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PSICOLOGIAS DO SÉCULO XX
Tradução de:
LAURO S. BLANDY
Titulo original:
SEVEN PSYCHOLOGIES
Capa de:
WILSON TADEI
SEVEN PSYCHOLOGIES, 1' edition, by Edna Heidbreder. Copijright, 1933, The Century Company.
Traduzido e publicado com permissão de AppletonCentury-Crofts, Division of Meredith
Publishing Company.
Direitos reservados para os países de língua portuguesa pela EDITORA MESTRE JOU PREFÁCIO
mas sim para aqueles que se interessam pela psicologia e que, tendo feito uma incursão
preliminar no assunto, estão admirados pelo fato de haver tantas escolas diferentes de
pensamento em psicologia e desejam saber mais sobre o assunto.
-americana.
Este método de escolha tem desvantagens inegáveis. Para apresentar um sistema sem um
acompanhamento de interpretações correlatas, poderia dar a impressão de que seus adeptos
formam um grupo único, coeso e uniforme, cujas
Edna Heidbreder
idéias são cópias fiéis das de seu chefe. Tal impressão seria completamente falsa. De maneira
idêntica, a escolha de sete sistemas pode parecer que a psicologia americana esteja
organizada em sete escolas; e esta impressão também seria falsa. A seleção pode ainda
significar que, de todos os sistemas atuais em psicologia, estes sete são os mais dignos de
estudo; e não se deseja dar esta idéia.
Ainda mais, apesar de suas reconhecidas desvantagens, o plano de apresentar alguns sistemas
e de mostrá-los como concepções simples e bem definidas, deixando de lado, sempre que
possível, suas interpretações e concepções correlatas, foi adotado com o risco de cairmos em
uma simplificação excessiva, como um dos mais adequados para a presente finalidade; pois o
propósito não é de se fazer um estudo exaustivo dos sistemas de psicologia, nem de
apresentar, ainda que em resumo, uma descrição completa da psicologia norte-americana; ao
contrário, destina-se a permitir ao leitor ainda leigo no assunto tornar-se familiarizado com
alguns dos diferentes pontos de vista dos quais podem ser encarados os fatos psicológicos. Com
esse propósito em mente, pareceu-nos mais lógico apresentar sete sistemas do que setenta.
Os sistemas, além disso, foram tratados como sendo fatores que produzem diferenças reais no
desenvolvimento da psicologia. Por esse motivo, cada sistema foi apresentado em seu
fundamento histórico e em relação à continuidade histórica que pode ser discernida através das
várias interpretações da psicologia. Pela mesma razão, foi feita uma tentativa para avaliar a
influência do sistema sobre o progresso real da psicologia, embora os cálculos sejam de fato
prematuros e experimentais. A escolha dos sete sistemas foi determinada também pela
concepção dos sistemas como sendo influências úteis ao desenvolvimento da psicologia. Os
sistemas estudados foram adotados em alguns casos porque representam pontos cruciais no
desenvolvimento da psicologia norte-americana; em outros, porque foram associados com
importantes centros de pesquisa; e finalmente, porque quando considerados em conjunto, suas
diferenças demonstram que são possíveis muitos caminhos diferentes para o problema da
psicologia. Talvez ninguém mais teria escolhido somente estes sete; confesso que esta escolha
representa urna opinião pessoal. Mas para o propósito indicado não é essencial escolher todos
os sistemas e nem os mais importantes. Apresentar sete concepções diferentes da psicologia,
que estejam em uso corrente, significa não só escolher a função e
Psicologuzs do Século XX
o significado daquelas sete, mas também sugerir a função e o significado de todos os sistemas
de um modo geral.
Apresento este livro com certa apreensão. As dificuldades inerentes ao fato de tentar descrever
de modo preciso ou avaliar exatamente os pensamentos dos outros dispensam comentários. A
maior dessas dificukktdes é a de não existir um padrão objetivo pelo qual os sistemas possam
ser julgados e comparados. Portanto, não posso nem desejo considerar o estudo que escrevi
como sendo imparcial ou impecável. Acredito, entretanto, que isto não seja prejudicial à
utilidade do livro. Os leitores perspicazes perceberão as minhas falhas melhor do que eu; e
fazendo a. sua correção, embora sem abandonar as suas próprias parcialidades, tomarão parte
num método que, como tentei demonstrar através de todos os capítulos seguintes, é um passo
útil e praticamente necessário no processo de revelar um conhecimento objetivo.
Muitas pessoas me auxiliaram a escrever este livro. Alguns dos meus alunos fizeram-me
sugestões que achei estimulantes e úteis. Os professores Josephine Curtis Foster, Kate Hevner
e Heinrich Klüver leram algumas partes do livro; a Srta. Amy Armstrong e o professor R. M.
Elliott leram todo o manuscrito. Todos deram sugestões que me foram úteis. A Sra. Nancy
Johnson Fugene, as Srtas. Dreda Harper e Marian Greenham prestaram um grande auxílio
preparando o manuscrito para os editores. A Clark University Press, Henry Holt & Co., a J. B.
Lippincott Company, Longmans, Green & Co., a Macmillan Company e a W. W. Norton &
Company deram-me permissão para citar trechos de seus livros. Por todos estes auxílios desejo
reconhecer o quanto devo e expressar meus sinceros agradecimentos.
EDNA HEJDBREDER
Mineapolis, Minessota
INTRODUÇÃO
Ninguém sabe disso melhor que os próprios psicólogos. Verificam, pelo processo comum de
associação, não somente a inegável pobreza de sua ciência, como também a fragilidade e a
falsidade de grande parte da matéria que são solicitados a aceitar como verdadeira. Os
psicólogos estão constantemente examinando os trabalhos de seus colegas e achando que não
são bons. E, quase sem hesitar, expõem os pontos fracos e as falhas que encontram.
Mal atravessamos o limiar dessa jovem ciência prática e já desconfiamos não ser tudo paz e
harmonia à sua sombra; vemos que os grupos de trabalhadores que encontramos representam
não só uma divisão de trabalho necessária mas também um estado de luta interna. O mais
positivo dos grupos em luta talvez seja composto por jovens estudantes de psicologia animal e
comparada que, em sua maior parte, se orgulham de ser obstinados e realistas e de se haver
descartado das insignificâncias de uma psicologia que tratad ihentes. D Am,atÍifã d
o,iêrriõr6saniite cientííieos e alguns1wpacéi estãr convencidõWdi que afiié11iõï ifianeira de
realizar esta ambição é parecerem o mais exatamente possível com seus vizinhos próximos, os
fisiologistas. São, em sua maioria, jovens confiantes e resolutos, imbuídos
-J
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Psicoiog,as do Século XX
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Um grupo menos ativo, mas nem por isso menos convicto, e consciente da sinceridade de sua
ciência, é o formado pelos psicólogos experimentais. Para estes, a palavra "expe(2 1 rimental"
não é aplicada no sentido de incluir todos os que \, realizam pesquisas pelo método
experimental comum à ciência natural em geral, mas naquele especial e oculto de indicar
aqueles que estão na linha de descendência que provéffi mais
Intimamente associados a este grupo, na realidade não se distinguindo claramente dele, estão
os que trabalham em
(q' de menores, nas clínicas de orientação infantil, bem como em '-é" instituições para os
débeis mentais, os psicopatas e os loucos,
procurando contribuir, pela melhor compreensão das pessoas sob seus cuidados, a facilitar- lhes
a adaptação à vida normal. Na psicologia aplicada encontram-se também os psicólogos
educacionais, ocupados não só com os vários problemas da aprendizagem e do ensino, mas
tentando, ultimamente, medir as capacidades e as aptidões dos alunos e a eficiência dos vários
métodos educacionais.
Estes grupos, nenhum dos quais apresenta uma delimitação exata, juntamente com outros
grupos ainda menos bem definidos e muitos indivíduos isolados, formam o conjunto dos
psicólogos. Embora cada grupo possa ligar-se imperceptivelmente com outros de um modo
completo, desde os mais exatos, constituídos pelos estudiosos da psicologia experimental e
animal até o mais recente e mais novato dos paicometristas, todos eles discutem
reciprocamente o valor e a validez de seus trabalhos. Além disso, debatem a validez do trabalho
dos outros membros de seu próprio grupo. Ninguém é capaz de criticar tão bem um psicólogo
que estuda o animal, como outro estudante de psicologia animal; os ataques mais acirrados
contra os psicometristas provêm de outros psicometristas. Quem estiver empenhado na tarefa
complicada de procurar fatos, sabe - e sabe com especial convicção quando o
assunto pertence ao seu próprio campo - como é raro eles serem obtidos do manancial da fé,
da esperança e das hipóteses em que se baseiam, como é freqüente desaparecerem em mera
ilusão, e se persistirem, como é pequeno o seu valor provável, quando comparados com o seu
valor aparente na alegria da descoberta. Tal pessoa, naturalmente, não acredita, de imediato,
em qualquer porção maior do suposto conhecimento que um seu colega de trabalho lhe
apresente como fato provado. Acredita somente quando o tiver verificado completamente,
submetendo-o a todas as provas críticas que conheça.
Isso tudo é muito bom para a jovem ciência psicológica. Porque qualquer coisa que suna deste
tratamento como sendo fato, passando pela crítica mais ardente, belicosa e persistente, deve
ter no seu cerne o traço de teimosia que torna um fato real. Se os testes de inteligência ou as
leis do aprendi-
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E, felizmente, a pujança da nova ciência é evidente não só nos debates como em seus esforços.
Os contendores são parecidos pelo menos em um ponto; são todos incansavelmente ativos.
Com uma dedicação quase incrível, contam os erros de seus ratos, calculam os coeficientes de
correlação e registram as indicações de pesos suspensos. E o resultado de toda essa aplicação
e de toda essa crítica é o estabelecimento ocasional de um fato, ou o que é mais freqüente e
quase tão bom, a queda de um dogma.
Além disso, no desenrolar dessa luta desenvolveu-se um profundo respeito para com a ciência
em si. Em presença de ciências mais antigas, a psicologia sente um pouco do respeito do noviço
pelo seu mestre, algo da admiração invejosa dos nouveaux riches pela aristocracia existente.
Sente também o mesmo interesse ansioso temendo que o seu modo de viver deixe de seguir os
padrões do meio social e o seu próprio desvelo em manter aqueles padrões
transparece, às vezes, em uma superioridade jactanciosa em relação às práticas que há tão
pouco tempo havia aprendido a desprezar. Mas essa j actância é compensadora e superficial.
Pois, esta jovem ciência frágil, assim como muitas outras coisas novas e frágeis, está bem
consciente de seus defeitos. Ela compara os seus gráficos toscos e suas correlações duvidosas
com a notável precisão da física, e chega a duvidar de que tudo esteja bem. Porque sob sua
agitação, existe o anseio de fatos concretos e de uma técnica segura. A intolerância arrogante
que às vezes demonstra em relação a qualquer coisa que não tenha recebido o sinete da
ciência é, pelo menos em parte, um certo cuidado e ciúme que sente pela integridade de seu
conhecimento, quase igual ao desprezo sutil de Bacon pelas pretensões dos aristotélicos de
sua época. Pois, em seus poucos anos de existência, a psicologia adquiriu não só atividade
como também ceticismo, que para uma ciência é o começo da sabedoria. Sabe que conhece
pouco e que esse pouco é experimental. A psicologia não pode mostrar nenhum acervo
imponente de fatos; sabe que sua maior virtude é a decisão em seguir o método científico, e
que na melhor das hipóteses, tenta introduzir aquele método em urna região, onde até
agora as perquirições da ciência não haviam penetrado. Acima de tudo, a psicologia está a par
da grande necessidade do elemento concreto, do qual qualquer ciência é, em grande parte,
constituída e aprendeu a olhar com desaprovação, quase com temor, toda indagação que não
seja fortemente apoiada em fatos.
Então, por que se formaram todos estes sistemas? Por que a psicologia, que está tão
empenhada em se tornar uma ciência, constrói estruturas de pensamento especulativo que
não poderá, durante anos, verificar por meio de fatos existentes?
Em suma, porque atingiu uma posição onde tal conduta é de todo inevitável. Ninguém é capaz
de afirmar atualmente as circunstâncias exatas que estimulam o pensamento - a palavra
"pensamento" é usada neste caso para indicar as atividades refletoras e criadoras do intelecto
quando em confronto com a observação e a experimentação - porém as condições gerais são
bastante conhecidas para tornar evidente que a psicologia não seguiria caminhos
intelectualistas se não tivesse sido estimulada. Sofreu a ação dos três mais poderosos
incentivos ao pensamento: um conhecimento cada vez maior, um interesse profundo e uma
dúvida persistente.
O conhecimento estimula, às vezes, o pensamento, porém a sua dosagem deve ser levada em
conta - nem demasiado muito nem demasiado pouco. Se uma pessoa estivesse de posse de
todos os fatos de um determinado assunto, seu pensamento sobre ele cessaria
automaticamente. Seu problema estaria resolvido; não mais haveria motivo para pensar. O
adulto culto não precisa pensar quando responde a perguntas como: Quanto são sete vezes
cinco? Qual é a composição química da água? Quais são as leis do movimento de Newton? Já
estará de posse desses conhecimentos ou os mesmos estarão facilmente ao seu alcance. Já
houve uma época, na história da raça humana e quem sabe mesmo na dos indivíduos, em que
essas perguntas suscitaram um grande esforço mental, porém atualmente despertam apenas
as associações adequadas, de modo mais ou menos rápido. De maneira idêntica, um indivíduo
nada pensa se não possuir nenhum fato. A maioria das pessoas, provavelmente, pensa muito
pouco, ou mesmo não pensa, sobre diferenciais ou a escrita uncial e sobre as atuais intrigas
políticas em Montenegro. Na maior parte delas, os fatos importantes estão ausentes e temos,
portanto, falta dos próprios materiais com os quais o pensamento age. Este é, sem dúvida, o
motivo pelo qual a
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Edna Hedbreder
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nossa maioria não pensa mais sobre a teoria da relatividade de Einstein, pelo menos sobre
seus princípios fundamentais. De fato, existem alguns aspectos da teoria sobre os quais
pensamos; encaramo-la como uma idéia revolucionária, como um feito intelectual brilhante,
como uma descoberta que exige uma revisão dos modos fundamentais de conceber o universo
físico, como uma outra indicação do que o pensamento matemático é capaz de realizar. Mas
isto acontece em parte porque nós conhecemos alguma coisa sobre idéias revolucionárias,
feitos intelectuais, revisões de conceitos fundamentais, e a capacidade de raciocínio
matemático. Podemos seguir satisfeitos até onde o conhecimento nos conduza, mas não nos
leva muito longe; sabemos que há alguma coisa por trás disso. Realmente, o interesse
provocado pela teoria de Einstein é uma excelente amostra do grau de conhecimento que tem
probabilidade de estimular o pensamento. Sabemos que existe alguma coisa estimulante; não
sabemos exatamente o que seja. Nossa curiosidade é espicaçada; temos um começo, sentimos
um impulso para seguir até o fim. E o fato do impulso não nos levar a adquirir suficiente
conhecimento da física e da matemática que nos conduza a uma compreensão total, não
significa que não tenha sido despertado em nós o impulso para pensar, mas sim que o mesmo
não é bastante forte para nos permitir afastar os obstáculos, ou ainda que estes são superiores
às nossas forças. Isto não quer dizer que o pensamento cesse quando atinge os limites do
conhecimento; ele supre o conhecimento com a criação; tem forte tendência para completar o
quadro inacabado de algum modo - a todo o custo. Uma cultura limitada é perigosa
justamente porque desperta o pensamento criador, e este, embora possa, muitas vezes,
conduzir à verdade, em outras leva ao ridículo ou a um erro perigoso.
ral ou eterna. O pensamento que produz maior estímulo no mundo é aquele que tem algum
apoio no destino do homem e de seus afazeres. A teoria de Copérnico chamou a atenção não
tanto por exigir uma nova concepção do universo quanto por pedir uma nova visão do homem,
daí em diante não mais como personagem central. E o darwinismo é interessante,
principalmente pelas suas conseqüências para a humanidade; porque apresenta o homem não
como objeto de uma atenção especial, mas simplesmente como uma das muitas formas que o
protoplasma adquiriu em um mundo que não foi feito especialmente para nenhuma delas.
Qualquer assunto que os homens considerem como incluindo o seu próprio bem-estar, tem
boa probabilidade de estimular o pensamento, embora a qualidade deste seja determinada por
outras condições além da natureza e da magnitude de sentimento nele contido.
O pensamento relaciona-se também com a ação, e por meio dela, com a dúvida. Pensamos o
que vamos fazer, principalmente quando nossas maneiras antigas de fazer as coisas sofrem
interferência, ou quando descobrimos que não têm mais utilidade. É então que duvidamos e a
dúvida - a descoberta de que o que parecia conveniente pode deixar de sê-lo - é prova de que
um novo ajuste deve ser feito. Talvez num animal perfeitamente ajustado fossesupérfluo o
pensamento. Mas quando alguma coisa vai mal, o pensamento pode ser útil e é provável que
apareça. Quando um motor pára, o seu dono procura saber por que parou; quando seu
trabalho vai mal, ele analisa a situação; e quando seu Weltanschauung (cosmovisão) sofre
modificação de tal forma que se veja, não mais num papel desejado, e sim num outro que é
ridículo ou insignificante, é lançado em seu Sturm und Drang de uma agitação intelectual de
proporções ainda maiores. A dúvida significa que um novo ajuste deve ser feito, e na solução
dos ajustamentos humanos o pensamento é muitas vezes utilizado, embora nem sempre isso
aconteça.
Existem inúmeros exemplos, fora do campo da psicoloê gia, que apresentam estas condições
em funcionamento. Não
foi por acaso que os grandes sistemas racionalistas de Des cartes, de Leibniz e de Espinosa
foram estabelecidos após a
medieval tenha provocado uma resposta do mesmo gênero. Bacon, por ser um crítico dos
métodos racionalistas da
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Idade Média, deixou sua contribuição para a ciência não tanto pela utilização do novo método
que preconizava, quanto
por seguir outro mais parecido com o antigo método que desprezava, O Novum Organum,
embora seja um argumento
reais tratados pelo pensamento humano. Mesmo o empirismo ti crítico de Locke e Hume foi
obtido menos pela observação 9 real da mente em ação, do que por uma análise retrospectiva
e racional do intelecto em relação às pretensões, sobre as quais aqueles autores eram tão
céticos. O empirismo desacreS ditou as pretensões excessivas do intelecto por meio de um
exame das mesmas, feito de uma forma mais intelectual do que empírica em sua essência.
Portanto, não é de admirar que a psicologia que, de acordo com suas normas vigentes, deveria
contentar-se com a sóbria conquista de fatos, tenha-se empenhado, às vezes, em discussões e
produzido sistemas de pensamento para os quais os fatos comprovados estão
reconhecidamente ausentes e serão obtidos somente em um futuro remoto. Pois a psicologia
está cercada pelas condições de tal pensamento. Os seus fatos são bastante numerosos para
serem sugestivos, mas não o suficiente para serem conclusivos; as dúvidas são inúmeras; o seu
tema está próximo dos interesses pessoais que não existem no caso da ciência pura, mas que
têm grande probabilidade de despertar o interesse dos seres humanos. Nestas circunstâncias, é
natural para um psicólogo entrar em indagações como o seria para um físico cair em direção ao
centro da Terra, se o centro de gravidade de seu corpo não estivesse entre seus pontos de
apoio.
Mas, o que significa tudo isso para os sistemas de psicologia? Basicamente, significa que eles
devem ser encarados como produtos de seres viventes, trabalhando em meio à dúvida, aos
interesses e aos conhecimentos incompletos, a fim de conseguirem melhores ajustamentos às
circunstâncias especiais que os circundam. A natureza, a função e as limitações dos sistemas
estão todas presentes nesta maneira de concebê-los.
Isto significa, pelo menos, que os sistemas de psicologia não devem ser considerados como
formações totalmente imparciais ou não emotivas, determinadas somente pela lógica e
pela evidência. Em nenhum caso é prudente considerar os sistemas como separados das
situações especiais que lhes de. ram origem - ou seja, das tradições, convenções, padrões,
preconceitos e, às vezes, dos vigorosos sentimentos pessoais que constituem a sua bagagem. A
origem mais comum dos sistemas está na insatisfação com um sistema mais antigo, a quebra de
um modus vivencli científico; e o abandono de um modus vivendi, que abrange a
desorganização do hábito e da emoção, bem como o estímulo do intelecto, dificilmente dará
origem a uma atividade totalmente serena e desinteressada. A resposta normal à descoberta de
que a maneira de viver de um indivíduo falhou é a de tentar outra, apesar de a nova maneira
poder estar baseada em um conhecimento incompleto, como era a anterior. Talvez o método
puramente racional de enfrentar a situação fosse o de suspender o j ulgamento até que se
tivesse toda a evidência, porém suspendê-lo indefinidamente é uma ação muito sofisticada,
nem sempre apropriada às maneiras rudes e inéditas de uma ciência nova. Atualmente o
progresso científico tem sido obtido muitas vezes pela aceitação de respostas erradas,
incompletas ou experimentais baseadas nos dados disponíveis, e corrigindo as
respostas à medida que mais dados são obtidos. A psicologia, pelo menos, tem tido pouco
êxito em sustar o seu pensamento a meio caminho; tem respondido às ques. tões que lhe são
dirigidas formando sistemas, cada um dos quais é para os seus adeptos um prenúncio da
verdade e im programa de ação - ao mesmo tempo uma coisa com a qual se trabalha e para
quem se trabalha. Por conseguinte, um sistema de psicologia não é somente uma norma de
conduta, mas também de moral. É possível que para os adeptos de um dado sistema a
justificativa para a sua aceitação deva ser encontrada em algo parecido com a filosofia do
"como se" de Vaihinger. Mas aquele que observa e estuda o sistema deve vê-lo da mesma
maneira que um psicólogo vê as ações de um rato em um labirinto: como um conjunto de
ações complexas e variadas que são as maneiras mais ou menos eficientes de atingir um
determinado objetivo.
Isto significa por sua vez que os sistemas de psicologia devem ser encarados não como
postulados do conhecimento científico, mas sim como instrumentos com os quais o
conhecimento científico é produzido; não como descrições de um fato científico, mas como
meios de adquirir um fato científico. Representam a armação dentro da qual a estrutura da
ciência psicológica está sendo erguida, tão necessária e provisória
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como a própria armação; não é identificada com a estrutura em si, todavia não poderia existir
sem ela. São os instrumentos mediante os quais o conhecimento é obtido, porém tão
diferentes dele como os instrumentos são diversos do minério de que provêm. Infundem
entusiasmo nos que neles trabalham, mas são tão diferentes do trabalho, como a inspiração o
é da produção. Oferecem um programa de ação típico e, às vezes, atraente, mas o programa
não deve ser confundido com a realização. É difícil saber o que mais ressaltar: se a
indispensabilidade do instrumento ou se o fato de ele ser um instrumento.
Nenhum sistema de psicologia pode, nem pretende, no momento, ser estabelecido por fatos.
Assim como nenhum sistema age com indiferença total em relação aos fatos. A verdade é que
a psicologia não possui, no momento, número suficiente de fatos com os quais possa testar
seus sistemas. Sua carência de fatos faz com que evite a especulação; a sua falta de fatos faz
com que recorra à prática, e assim o faz de maneira forçada.
E surge novamente a pergunta: Por que a psicologia não abandona os seus sistemas e se
dedica a coligir os fatos de que tem tanta necessidade? A resposta para tal pergunta é a
justificativa dos sistemas: que sem eles poucos fatos seriam acessíveis. Pois o conhecimento
científico não é simplesmente acumulado; é mais provável que se desenvolva sobre hipóteses
que apresentam questões definidas e que atuam como centros de organização em busca do
conhecimento. Aliás, segundo a História, a ciência não progrediu por ter seguido o método
descrito por Bacon - isto é, pela constante
É por esse motivo que os sistemas aparecem de modo tão evidente e tão associados à
psicologia contemporânea. Um sistema pode desempenhar a sua função provando ser certo
ou errado ou, o que é mais provável, provando ser, em parte, certo e, em parte, errado. Os
próprios erros de um sistema, sendo principalmente bem definidos e decisivos, podem
fomentar a causa da ciência revelando erros que não precisam ser repetidos. Os sistemas
proporcionam forma, acabamento e direção a um empreendimento que sem isso seria
impreciso e sem objetivo; e mais ainda, transmitem interesse e desvelo pelo empreendimento.
Pois a ciência não vive só de fatos, nem mesmo de fatos e hipóteses apenas. Precisa da alegria
do combate e da esperança da realização, e, evidentemente, às vezes do tempero da malícia e
da excitação de concorrer com os outros; e para a psicologia atualmente isto significa escolas e
sistemas.
24 Ecina Heidbredet
Considerados sob esse aspecto, como programas de ação e bases de moral, os sistemas podem
ser considerados como sintomas significativos da situação da psicologia em certos lugares, em
certas épocas e nas mãos de determinados grupos de pesquisadores; e também como
indicações dos aspectos da psicologia que parecem estar recebendo maior ênfase do que o
necessário, num dado conjunto de circunstâncias. Não é o caso de se lastimar o fato de haver
uma valorização excessiva da psicologia, pois ela atrai a atenção para assuntos importantes,
estimula a crítica e, quase certamente, é compensada por uma valorização excessiva no
sentido oposto em outras épocas e lugares. Pois o progresso da ciência não pode ser
considerado o trabalho de um só homem ou de um grupo de homens, a ciência é um grande
empreendimento social, no qual as contribuições mais valiosas de um indivíduo podem ser os
seus maiores erros.
É desse ponto de vista, então, que os sistemas de psicologia serão considerados neste estudo;
não como certos ou errados, nem como aproximações mais ou menos completas ao
conhecimento, mas na medida de sua influência no desenvolvimento real da ciência
psicológica. Podem ser melhor compreendidos não como afirmações de um fato científico, nem
como resumos do conhecimento existente, mas como processos e maneiras de chegar ao
conhecimento, como etapas provisórias, porém necessárias ao desenvolvimento de uma
ciência, como criações de trabalhadores que, num empreendimento confuso e, às vezes,
depressivo, devem conservar não só o seu garbo mas também a sua energia. Pois nunca é
demais repetir que a ciência não age somente à luz da razão, mas assim como outros
empreendimentos, é uma aventura incerta, que se passa
(N. da Ed.)
II
PSICOLOGIA PRÉ-CIENTÍFICA
-370 a.C.); Anaxágoras (499-428 a.C.); Sócrates (436-338 a.C.); Platão (427-348 a.C.);
Aristóteles (384-322 a.C.); Descartes (1596-
-1650); Hobbes (1588-1679); Locke (1632-1704); Berkeley (1685-
Teoricamente, e em sua forma final, um sistema de psicologia é uma visão conjunta de todo o
campo da psicologia como um todo consistente e unificado. Admite que as minúcias
aparentemente caóticas que existem dentro de seu âmbi
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Edna Heidbreder
Psicologias do Século XX
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to, se forem bem compreendidas, podem ser postas em ordem e clareza: que é possível definir
a matéria estudada, estabelecer o problema principal, conciliar os métodos de investigação,
determinar as relações com outros tipos de conhecimento, identificar os elementos ou
processos básicos, determinar as características próprias e indicar o seu esboço geral ou
orientação característica. Conhecer um sistema é saber como ele se porta em relação a todos
estes assuntos e principalmente saber o ponto de vista do qual os considera. Pois o ponto
principal de um sistema de psicologia é a posição da qual ele engloba o seu campo, a posição
privilegiada a partir da qual examina os dados concretos da ciência e da qual distingue um
padrão coerente que lhes dá unidade.
Mas, sejam quais forem os sistemas de psicologia, não são simplesmente estruturas lógicas
estáticas, completas, que possam ser consideradas como tantas outras coisas independentes,
separadas e completas, para serem analisadas fora das condições que lhes deram origem. Pois
os sistemas de psicologia atualmente existentes - os conjuntos de fatos e suposições que agem
como sistemas - não são, muitas vezes, sistemas no exato sentido da palavra, nem,
certamente, formações de pensamento, herméticas e completas, elaboradas de modo
consistente em todos os seus detalhes. 1 Pelo contrário, resultam de longas e, às vezes,
obscuras correntes de desenvolvimento histórico; porque a psicologia, como qualquer outro
empreendimento do intelecto humano
- talvez mais do que a maioria - tem estado sujeita a confusões, compromissos, e mal-
entendidos, muitos dos quais têm sua origem em passado remoto.
1 A expressão "sistema de psicologia" da forma em que é usada neste livro não Indica
necessariamente uma construção completa e hermética. Refere-se antes a qualquer esforço em
abranger o campo da psicologia sob um ponto de vista definido e assim reunir os fatos. Por esse
motivo, foram Incluldas algumas interpretaões da psicologia que os próprios autores não
consideram "sistemas" no sentido exato do termo.
mem o centro do qual todos os interesses humanos irradiam, foram, no início, simplesmente
supostas como certas. O pensamento, no começo, não tem consciência de seu ego, porque isto
implica um modo de observá-lo de certa forma como quem observa outros objetos, uma
percepção do ego que nunca está livre do interesse próprio mas que, não obstante, dá indícios
de desprendimento intelectual. Exigir uma explicação do ego e de seus modos de agir significa
inquirir a seu respeito, e isto só poderá ser feito depois que a primeira impressão de considerá-
lo como uma certeza tiver até certo ponto desaparecido.
É por isso que a psicologia, que no início é humana, começa com observações que são ao
mesmo tempo secundárias em relação às tarefas superiores do intelecto. Em filosofia, é mais
provável que se encontre a psicologia como epistemologia. Em seus esforços para
compreender o universo, os filósofos deparam-se, mais cedo ou mais tarde, com o
pensamento: "Comopodemos conhecer?", e esta pergunta dá origem a um exame dos
processos humanos de conhecimento. As indagações psicológicas surgem, também, na ética e
na teoria social e política; as questões referentes à conduta do homem para com seus
concidadãos e para com o Estado orientam facilmente a atenção para a própria natureza do
homem. Em ciência, a psicologia proveio da fisiologia, principalmente da fisiologia dos órgãos
dos sentidos, que pareciam ser as vias de comunicação entre o mundo exterior e o da
experiência pessoal e íntima. Por outro lado, também em suas vidas diárias e no trato com
seus semelhantes, os seres humanos são obrigados a aprender, pelo menos dentro das normas
imediatas e simples do bom senso, algo sobre as maneiras humanas. Além disso, seja qual for
o ponto de partida do qual os seres humanos se considerem, são de modo quase irresistível,
envolvidos em questões relativas ao seu próprio valor e bem-estar - sobre a sua posição na
natureza, sua origem e destino, o significado da existência e
suas possibilidades de salvação. Desde o início, as observações dos homens sobre a natureza
humana são provavelmente eivadas - do ponto de vista da ciência pura - pelas esperanças,
desejos e temores humanos. Mesmo quando a psicologia surge como disciplina isolada, traz
alguma coisa de filosofia, de ética e de senso comum. Como resultado, o primeiro passo no
sentido de compreender os sistemas psicológicos da atualidade consiste numa visão geral,
embora bre
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Isto não significa ser possível retornar ao princípio. Mesmo nas primitivas cosmologias gregas,
antes de ter sido feita a distinção entre a mente e o corpo, muitas das concepções encontradas
na moderna psicologia, muitas das suas maneiras peculiares de lidar com seu material, já
existiam e, em geral, já tinham amadurecido. Uma dessas foi a tentativa, feita durante todo o
período cosmológico, no sentido de reduzir o universo a seus elementos mais simples. Os
antigos gregos, com a mais absoluta honestidade, queriam saber de que era feito o mundo,
Encontraram uma resposta quando analisaram a sua complexidade como era vista em algum
elemento isolado - agua, ar, átomos -- ou num sistema de elementos. A tarefa a que se
propuseram era a de reduzir o complexo ao simples, e sua afirmação era a de que o complexo
e a variedade constituem o mundo da aparência, em contraste com a realidade subjacente,
que é simples. Estas duas coisas nunca deixaram de impressionar o intelecto humano.
Implicam que o universo ou alguma parte do mesmo que esteja sendo estudada podem ser
compreendidos se descobrirmos as unidades de que se compõem. A física encontrou tais
unidades no átomo; a biologia, nas células; e a psicologia, dependendo do ponto de vista
adotado, nas idéias simples, sensações, ou traços do comportamento que incluem as
associações elementares de estímulo-resposta. Mas, seja qual for a unidade, o princípio de
construção é sempre o mesmo; inclui de alguma forma, grosseira ou sutil, a concepção do
universo como sendo composto de partes, ou mistura de elementos simples. Para um ser
perquiridor, como é o homem, isto constitui um longo passo no sentido de tornar o mundo
inteligível. Sabe do que este é feito; pode ver como as partes se ajustam umas às outras; se
tivesse as partes, poderia colocá-las juntas. A verdade é que a simpli. cidade atraente que
caracteriza este ponto à primeira vista, torna-se menos perceptível quando o examinamos;
surgem dificuldades que não são de imediato evidentes. O método é satisfatório e útil desde
que não se olhe com muita curiosidade além dos limites do bom senso. Sua eficácia tem sido
provada várias vezes por meio de realizações bem sucedidas; e não resta dúvida que é uma
das respostas mais prontas e eficazes dos seres humanos em face de situações complexas. É
um método que aparece amiúde, de uma forma ou de outra, na tentativa de tratar com
material psicológico.
Um segundo desenvolvimento surgiu corno urna crítica do primeiro. Muito antes da época de
Dernócrito, houve filósofos que perceberam as dificuldades do artifício aparentemente simples
de reduzir o mundo em seus elementos. Um deles foi Heráclito, que expressou o seu
desagrado de um modo um tanto paradoxal em sua tese segundo a qual toda a natureza era
formada pelo elemento fogo. Mas, embora Heráclito se referisse ao fogo num sentido literal -
do mesmo modo como Tales considerava a água - via, como sua característica principal, a
instabilidade ou a variação. No cerne do universo não encontrou nenhuma substância
duradoura, nada sólido, nada permanente, que pudesse servir como elemento estável. As
próprias montanhas, observou ele, não são as mesmas de uma época para outra, nem de um
dia para outro, ninguém pode pisar duas vezes no mesmo curso de água. Somente a variação é
real: "Todas as coisas
30
Ednci Heidbrejer
fluem"é o seu ensinamento principal. Em sua essência, esta doutrina é uma crítica do senso
comum. "As coisas" não são reais; estão continuamente se desvanecendo, transformandose
em seus opostos. Os sentidos podem indicar o que parece ser corpos concretos, mas o
pensamento, indo além das aparências, percebe a realidade, que é variação. Enquanto o bom
senso via coisas, Heráclito via processos, e ao assim fazer empregou uma teoria idêntica
àquela usada pela física atual, que está despojando a matéria de sua estabilidade e solidez. A
importância deste modo de pensar para a psico.. logia é logo percebida. Um psicólogo não
pode ter o menor conhecimento novo da matéria que estuda, sem que perceba não estar
tratando com partes ou partículas de qualquer coisa estável ou concreta, mas sim com
processos mutáveis. Mesmo nos sistemas de psicologia que reduzem o seu material a
elementos, estes, quer sejam fases da consciência ou de um comportamento, são definidos
como processos. É verdade que, tendo sido definidos como processos, são muitas vezes na
prática tratados como unidades fixas, porque é forte o hábito de pensar em termos de
unidades fixas. Porém, quando a atenção é dirigida diretamente para um material psicológico,
o caráter de variação apresenta-se como sendo um fato inevitável. A psicologia está
continuamente chamando a atenção para o fato de estar tratando com processos e
acontecimentos.
Um terceiro desenvolvimento foi aquele iniciado por Anaxágoras. Como Heráclito, ele
acreditava que uma redução a elementos simples não explicava completamente o mundo, mas
a sua crítica foi menos radical do que a de Heráclito. Não ficou perplexo por pensar que não
existe substância, e que, portanto, não existem elementos. Anaxágoras, realmente, defendia a
existência de um número indefinido de elementos qualitativos diferentes. Seu problema surgiu
da suposição de que, embora os elementos fossem conhecidos, ficar-
-se-ia ainda incapaz de descrever o mundo como o vemos. Considerava a disposição dos
elementos tão importante quanto sua existência. A ordem do mundo deve ser explicada, bem
como as partes que o constituem, e esse princípio ordenador ele encontrou no nous, algo
semelhante à inteligência ou razão humana, mas não ainda em contraste com a matéria. Esta
doutrina é importante para a psicologia, em parte porque escolhe um processo psicológico que
recebe atenção especial e também porque, ao chamar a atenção para o problema da
disposição, da ordem, do padrão, apresen Psicologia
do Século XX
31
- que dá à filosofia de Anaxágoras o seu principal significado para a moderna psicologia. É uma
opinião intimamente relacionada com os contínuos protestos contra as várias formas do
sensacionismo, e não difere muito da revolta que o movimento da Gestalt, um dos mais
recentes em psicologia, está dirigindo contra o atomismo psicológico de nossos dias.
Mas aos poucos, no transcurso dessas investigações sobre a natureza do universo, em meio a
todas essas teorias, cada qual considerando-se certa e todas provando a sua exatidão com um
certo grau de plausibilidade, surgiu uma dúvida de outra espécie - a pergunta "Como podemos
conhecer?". Em primeiro lugar, isto não era uma pergunta psicológica; não era "Como
conhecemos?" mas "Como podemos conhecer ?" e provocada menos por curiosidade sobre o
processo do conhecimento do que pelo interesse sobre a validade do mesmo. No entanto, este
interesse pela validade do conhecimento provocou investigações sobre os seus processos. Já de
há muito os filósofos haviam feito distinção entre o conhecimento adquirido pelos sentidos
daquele obtido pela razão. Haviam também observado que o conhecimento é relativo, que é
humano, conseguido a partir de um ponto de vista humano, eivado de maneiras humanas de
obter o conhecimento. O próximo passo seria investigar se qualquer método humano de
'conceber o mundo poderia ter validade
Edna Heidbreder
Psicologia. do Século XX
33
Os sofistas, partindo deste ponto de vista, deram uma direção inteiramente nova ao
pensamento grego. Passaram de modo definitivo da cosmologia para as coisas humanas, e
assim vieram a interessar-se por assuntos que podem ser chamados, em sentido amplo,
psicológicos. Além disso, seu estudo era prático. Era inevitável que a própria abundância de
especulações sobre o universo, a exibição de explicações sucessivas, todas igualmente
plausíveis, acabasse por impressionar algumas mentes, principalmente pela inutilidade de tal
especulação. Os sofistas, de qualquer forma, recusaram-se a se ocupar com tentativas de
compreender a natureza fundamental da realidade. Dedicaram-se, em vez disso, à sua
profissão, que era o ensino da filosofia como norma de vida, e da retórica e dialética como
habilidades práticas. De modo deliberadamente superficial e habilmente prático, aceitaram,
mediante pagamento, treinar os jovens nas artes da persuasão - as quais eram muito úteis na
Grécia onde os homens subiam ao poder convencendo os seus semelhantes e dominando as
massas. Havia, naturalmente, sofistas e sofistas, representando uma escala de integridade
intelectual que ia desde o gosto pelo exercício livre da inteligência crítica até o desejo de "fazer
o pior parecer melhor". Porém, quaisquer que fossem as suas idéias sobre a utilidade ou não da
dialética, estavam interessados pelo processo em si. Encontravam nele alguma coisa em
que se ocupar, algo que podia ser exercido, cultivado e controlado, e além disso, que - não
importando a natureza última da realidade - era de valor no mundo dos assuntos da vida diária.
Com uma atitude curiosamente idêntica à da moderna psicologia aplicada, dedicaram- se a
realizações específicas e situações concretas, muito mais interessados em manipular o imediato
e o real do que em mergulhar no fundamental e no profundo. Seria um erro, naturalmente,
atribuir aos que atualmente trabalham em psicologia aplicada as idéias associadas aos sofistas
gregos, mas qualquer que fosse o ponto de partida teórico de suas atividades, alguma coisa é
idêntica no temperamerito de ambos. A grande virtude da psicologia aplicada é a sua ligação
benéfica com o real e o imediato, o seu hábito de manter-se próxima, ou pelo menos, à vista de
materiais que os seres humanos podem manejar e controlar.
Uma conseqüência indireta dos ensinamentos dos sofistas foi a filosofia de Sócrates, uma das
figuras mais pito resca
da brilhante sociedade de Atenas, no século V antes de Cristo. Sócrates era feio, encantador,
excêntrico, sociável e generoso; a principal atividade de sua vida fora atrair os jovens para as
conversas filosóficas e daí, por meio de uma hábil argumentação, fazê-los ver que suas idéias
sobre os assuntos fundamentais da vida, mesmo os mais triviais, eram confusas e
contraditórias. O seu objetivo era colocar seus ouvintes ante a necessidade de definir as suas
palavras de maneira exata, e obrigá-los a descobrir o que a razão mostrava como verdadeiro.
O sucesso que obteve fazendo aqueles que o ouviram duvidar de verdades aparentemente
óbvias, foi tão grande que, em sua velhice, foi julgado e condenado à morte, sob acusação de
minar a religião do Estado e corromper a juventude.
Da mesma forma que os sofistas, Sócrates acreditava que a investigação sobre a natureza do
universo é inútil mas, ao contrário deles, acreditava que um tipo de conhecimento pode ser
obtido - o do próprio eu. Além disso, acreditava que é este tipo de conhecimento que os
homens realmente necessitam, e que lhes pode indicar o que devem fazer, permitindo-lhes
assim levar vida virtuosa. Sócrates acreditava que a virtude é o resultado do conhecimento e
que o mal é basicamente ignorância - um antigo exemplo da crença encontrada amiúde em
psicologia que afirma ser o princípio racional ou intelectual o que prevalece no homem.
Acreditava, ainda, que a verdade está implícita no intelecto humano; que ela necessita apenas
ser extraída e purificada. Para demonstrar esta asserção, conseguiu que um escravo não
ensinado, auxiliado somente por perguntas hábeis, descobrisse por si mesmo que o quadrado
da hipotenusa de um triângulo é igual à soma dos quadrados dos outros dois lados.
Apesar disso, Sócrates estava mais interessado na natureza integral do homem do que em
qualquer de suas habilidades individuais. Em essência, seu interesse pelos seres humanos era
ético, e este fato é responsável por um dos traços característicos de sua abordagem
psicológica. Considera os homens não como unidades isoladas, mas sempre em relação com
seus semelhantes e o Estado. De certo modo, esta idéia é a mesma dos atuais behavioristas,
que acreditam no estudo do organismo total em suas relações com o meio ambiente.
Realmente, o behaviorismo em seus primeiros tempos pretendeu interessar-se muito pelo
ambiente físico, ao passo que Sócrates estava interessado principalmente pelo ambiente
social; mas ultimamente o behaviorismo tem dado
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35
cada vez maior ênfase às influências sociais na vida humana e está cada vez mais se
aproximando dos problemas éticos.
• O mais famoso aluno de Sócrates foi Platão, que estabeleceu pela primeira vez uma distinção
definida entre a mente e a matéria, distinção essa que tem aparecido de modo bastante
destacado na pskologia até os nossos dias. Platão era um aristocrata, tanto por nascimento
quanto por temperamento, um homem que tinha pouco interesse pelas coisas comuns da
existência diária, e que se dedicou de modo mais completo possível à vida intelectual, pois
acreditava que vivendo pelo intelecto, o homem estaria exprimindo as suas maiores
possibilidades. Em sua vida de contemplação, impressionou-se profundamente pela diferença
entre as idéias, que são manifestadas pela razão e os objetos que são revelados pelos sentidos;
e colocando as idéias num mundo a elas pertencente, considerava-as tão reais quanto as do
mundo conhecido pelos sentidos. As idéias, observou Platão, possuem uma perfeição que nunca
é encontrada nas coisas concretas. A idéia da beleza, por exemplo, é permanente, sem defeitos,
imutável, absoluta; ao passo que as coisas belas, que são bonitas somente em relação a uma
outra, são imperfeitas, mutáveis e contingentes. Para Platão parecia evidente que tudo que é
permanente, perfeito, imutável e absoluto deveria ser mais real do que os corpos perecíveis,
mutáveis e imperfeitos os quais, por mais beleza que pudessem conter, poderiam apenas se
aproximar da beleza pura. Portanto, pressupôs um mundo de idéias, do qual o mundo "real" -
aquele revelado pelos sentidos - é apenas uma cópia imperfeita. A matéria é a substância na
qual as idéias se expressam por si mesmas, mas a sua própria natureza torna impossível a suá
perfeita expressão, porque impõe suas próprias limitações sobre elas e as despoja de sua
pureza. Assim, Platão não somente estabeleceu uma distinção entre a mente e a matéria, mas
também associou tais termos a conjuntos de valores opostos. A mente foi identificada com o
bem e o belo. A matéria era o inimigo, a parte mais inferior do homem e do universo, algo para
ser combatido e subjugado. Esta distinção, juntamente com os valores atribuídos por Platão aos
termos, tem permanecido até hoje. Existe ainda uma tendência no pensamento diário para
considerar a mente como sublime e a matéria como inferior. Em alguns setores, entretanto,
houve uma curiosa inversão. Os triunfos da ciência moderna têm sido os da ciência física; o
método e o ponto de vista científicos têm estado associados com o estu d
Quando Platão considerava os homens, pensava neles naturalmente do ponto de vista de seu
próprio interesse pela vida do intelecto. Classificando as forças humanas desde a mais elevada
até à mais baixa, citava em primeiro lugar a razão, que reside na cabeça; depois, a coragem,
que se encontra no peito; os sentidos e os desejos, que ficam no abdome. Platão considerava
essas forças como partes da alma e por isso utilizou um modo de pensar idêntico ao que seria
mais tarde chamado de faculdade psicológica. Reconheceu também as diferenças individuais
entre os homens. No Estado ideal, a República, os homens deveriam ser escolhidos para seus
vários misteres de acordo com suas habilidades. Os dotados de razão superior seriam
dirigentes; os que possuíssem coragem seriam guerreiros; o resto da humanidade seria
composta de artesões, comerciantes, trabalhadores e escravos
- necessários ao Estado, porém de classe inferior aos militares e estadistas, da mesma forma
em que os desejos e os sentidos são inferiores à coragem e à razão. Esta parte do pensamento
de Platão, entretanto, teve pouca influência sobre a psicologia moderna. A principal fonte de
sua influência está na distinção entre a mente e a matéria e sua identificação da mente com o
extraterreno - e que ainda persiste na crença mantida por alguns psicólogos de que o mental
nunca poderá ser objeto de conhecimento científico.
Mas os próprios gregos não desistiram de tentar compreender a mente. Aristóteles, aluno e
sucessor de Platáo, e até certo ponto seu rival, ao tentar fazer uma avaliação compreensível do
ser humano, dirigiu-se às coisas da mente, de maneira idêntica a tudo o mais na ordem
natural. Entretanto, sua distinção entre a mente e a matéria não foi a mesma de Platão.
Pensou mais em termos de matéria e forma. No modo de ver as coisas e em temperamento,
Aristó.
36
Edna Hetdbreder
P8icologias do Século XX
37
teles era muito diferente de Platão. Estava interessado pelo concreto e pelo real ao contrário de
Platão, e desviando sua atenção naquela direção, não encontrou uma diferença marcante entre
a matéria e a mente ou, como dizia, entre a materia e a forma. Tinha a impressão de que uma
não podia existir sem a outra. A forma existe no objeto concreto, afirmava ele, não como uma
entidade separada. A matéria é forma potencial, o objeto real é a forma atualizada na matéria,
é a união de forma e matéria. O mármore é matéria para a estátua; esta é a forma atualizada no
mármore. Além disso, a distinção entre a forma e a matéria não é absoluta; o mármore, que é
matéria para a estátua, é forma para as organizações inferiores da matéria. Desse modo a
realidade concreta dispõe-se em uma seqüência na qual é impossível indicar um ponto qualquer
e dizer que de um lado há matéria, e de outro, forma. Este conceito de continuidade, embora
descrito num contexto muito diferente do de Aristóteles também é o mesmo encontrado,
muitas vezes, na psicoIogi atual. Os psicólogos modernos da mesma
forma que Aris tóteles, quando em presença de dados concretos, acham im possível fixar
limites rígidos e estáveis; não podem indicar uma linha divisória entre os processos
conscientes e inconscientes, entre a inteligência e a debilidade mental, a raiva e o temor, a
sanidade e a insanidade mental, o instinto e a razão, a infância e a maturidade, a psicologia e a
fisiologia. Lidam muito menos com diferenças absolutas do que com seqüências nas quais
existem gradações contínuas entre os extremos.
todo fosse um olho, a alma seria a vista. O corpo existe por causa da alma, porém, a alma existe
somente no corpo e através do corpo. Em outras palavras, as atividades da alma são aquelas
dos órgãos corporais. É tão impossível desejar e ter impulsos sem as estruturas físicas
adequadas cõmo enxergar sem olhos. Considera os processos psicológicos individuais como
atividades e funções das estruturas físicas, que se realizam em um mundo onde tal atividade é
definitivamente relacionada com uma certa constituição física.
Mas na alma, Aristóteles faz distinção entre a parte mortal e a imortal. As atividades que são
funções das estruturas do corpo perecem com o mesmo, porém existe no homem um
intelecto ativo que não é uma função do corpo. É este intelecto ativo que Aristóteles declara
ser simples, imaterial e imortal, e foi esta parte de seu ensino, o seu reconhecimento do
intelecto ativo, que exigiu o maior interesse dos teólogos medievais.
Em acréscimo ao seu tratamento dos processos psicológicos dentro do esquema geral das
coisas, Aristóteles fez uma contribuição definida à teoria psicológica em seu estudo da memória,
principalmente em sua famosa enunciação dos princípios da associação. Estes princípios -
associação por contraste, por igualdade e por contigüidade no tempo e no espaço - foram dados
como regras empíricas. Na maneira aparentemente causal das idéias se apresentarem,
Aristóteles não via o acaso, mas sim uma lei. Tanto a concepção geral de associação quanto as
regras próprias que formulou exerceram uma grande influência no desenvolvimento da
psicologia séculos mais tarde.
Aristóteles foi o último dos grandes filósofos da antigüidade. Sua morte, no último quartel do
quarto século antes de Cristo, assinala o encerramento do período mais original e produtivo do
pensamento grego. Entre as filosofias que floresceram durante os séculos finais do mundo
antigo, as idéias sustentadas pelos estóicos e epicuristas são as mais interessantes para a
psicologia devido às atividades contrastantes que eles assumiam naquilo que pode ser
considerado uma aplicação prática da psicologia. As duas escolas se ocuparam principalmente
com o problema de conseguir o máximo da vida humana. Em geral, os estóicos apoiavam a
supressão, e os epicuristas eram favoráveis à expressão dos impulsos naturais. Os estóicos
acreditavam na submissão do desejo à razão por amor à virtude, que devia ser buscada
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38
Edita Hed,breder
pelo seu valor intrínseco; os epicuristas acreditavam na disciplina da expressão dos impulsos
naturais a fim de obter a felicidade e a tranqüilidade. É interessante observar que os processos
dessas duas escolas rivais persistem até hoje nas modernas teorias sobre o controle da natureza
humana, e na obtenção da felicidade e da virtude.
Dessa maneira, quando a psicologia era ainda uma parte da filosofia, muitos dos padrões de
pensamento que deveriam tornar-se proeminentes mais tarde, já haviam aparecido. Isto não
quer dizer que os atuais modos de pensar foram conscientemente emprestados dos antigos,
nem que as descobertas da ciência moderna já estivessem implícitas nas antigas especulações.
Antes significa que os mesmos problemas surgiram na vida humana, foram percebidos da
mesma maneira, e deram origem aos mesmos métodos para resolvê-los. Naquela época, como
agora, existiam os problemas dos elementos e da forma, das partes e do todo, da relação entre
a mente e o corpo, da função e da estrutura, dos processos e da substância, e do controle e
orientação da natureza humana para obter a realização, a virtude e a felicidade.
Do ponto de vista das contribuições positivas para a psicologia científica, a Idade Média é
relativamente sem importância. Sua contribuição característica aos problemas psicológicos
acha-se nos estudos escolásticos sobre a natureza e os atributos da alma. Mas, como todos
sabem, esses estudos foram muitas vezes mencionados como sendo a própria antítese do
método científico. Não começam com perguntas, mas com uma verdade já aceita, baseada na
autoridade. Ao avançar, não se utilizavam da observação e da indução, mas se apoiavam no
desenrolar minucioso das implicações dos conceitos e na dedução lógica das conseqüências.
Não buscavam, enfim, a evidência dos fatos mas a sua validade lógica. Seu método de pensar
tem sido usado como o exemplo par excelience da especulação sem base, do raciocínio
trabalhando sem o lastro dos fatos empíricos. Todavia, os efeitos negativos dessa mesma
prática foram da mais Ita importância para a ciência. Muitas das características da ciência - de
fato, não a sua natureza essencial, mas um número apreciável de seus traços acidentais -
podem ser explicadas como uma revolta contra os excessos de tal método. A sua aversão pelo
dogmatismo e o seu temor pelas especulações não provadas são perfeitos sobreviventes das
atitudes emocionais desenvolvidas na luta necessariamente violenta contra o apelo à
autoridade e a urática da deducão v. au o
Psicologias do Século XX
Muito perto da fonte deste movimento estava René Descartes, cuja obra na primeira metade
do século XVII é inteiramente típica do início do período moderno pela sua revolta contra o
dogmatismo da tradição escolástica. O próprio Descartes, entretanto, não passava de um
rebelde por temperamento. Era um homem extremamente razoável, sincero, muito cauteloso,
que, embora se tivesse devotado à procura do saber, descobriu, ao atingir a maturidade, que
nada existia que ele soubesse com certeza. Verificando que podia duvidar de algumas das
maiores crenças dos homens, decidiu deliberadameflte utilizar a dúvida como um método -
duvidar de tudo que fosse possível duvidar, na esperança de chegar ao evidente por si e ao
indubitável. Descobriu que podia duvidar bastante: da existência de Deus, do mundo, e mesmo
da existência de seu próprio corpo. De uma coisa não podia duvidar: era o fato de que estava
duvidando, e a certeza de que sua dúvida - isto é, seu pensamento - existia, deu-lhe
o fundamento para seu sistema. Estabeleceu sua convicção na famosa frase: "Penso, logo
existo", e a considerou como um axioma. Estabeleceu, portanto, a crença em sua própria
existência como um ser pensante, e daí por um processo de raciocínio dedutivo, a crença na
existência de Deus e do mundo, incluindo o seu próprio corpo físico. Sua prova da existência
de Deus consistia no argumento que ele, que duvidava e era um ser imperfeito, não obstante
possuía a idéia de Deus, um ser perfeito. E uma vez que o perfeito não pode depender do
imperfeito, é necessário admitir a existência de Deus para poder ter a idéia Dele. Então, se
Deus
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existe, o mundo deve existir, porque as idéias que nós percebemos clara e distintamente como
verdades - não aquelas que aceitamos simplesmente pela evidência da imaginação e dos
sentidos - devem ser verdadeiras, "porque do contrário não poderia ser que Deus, sendo
totalmente perfeito e veraz, as tivesse colocado em nós". Assim Descartes chegou com o seu
raciocínio a tudo aquilo que a sua dúyida havia destruído. A diferença entre o seu primeiro
estado e o último não era uma diferença nos objetos da crença, mas no fato de que os
mesmos estavam agora estabelecidos racionalmente.
Este ponto é significativo. Quer dizer que embora Descartes combatesse o dogmatismo do
pensamento escolástico, não atacou os seus métodos intelectualistas. Recorria à razão em lugar
da experiência. Se existe algo em Descartes mais notável do que o esforço deliberado de um
completo ceticismo, é a sua fé serena no poder do intelecto humano para esclarecer a confusão
reinante. À primeira vista, parece que Descartes não leva em conta a possibilidade de a razão
ser inadequada para tal tarefa. Quando descobriu que não podia ter certeza de nada, lançou
mão da razão como uma coisa natural e dedicou-se sistematicamente à tarefa de elaborar um
fundamento intelectual estável para o universo. Desferiu um notável golpe na subserviência
medieval à autoridade, mas, ao assim fazer, utilizou o método dedutivo que é
tão característico do pensamento medieval quanto o seu dogmatismo.
-N Existem várias afirmações de Descartes que são de especial interesse para a psicologia. A de
maior alcance entre elas é o seu dualismo que, embora diferente do de Platão em sua origem, é
idêntico em seus efeitos. De acordo com Descartes, existem duas substâncias: mente e matéria,
a substância pensante e a extensa. Esta concepção colocou-o em algumas
dificuldades interessantes e esclarecedoras; havia separado a mente e a matéria de modo tão
completo que achava difícil juntá-las novamente de forma harmônica. Um resultado desta
situação foi a teoria de que os animais, por não possuírem res cogitans, ou substância pensante,
são autômatos - uma interpretação dos organismos vivos complexos que é especialmente
interessante à luz das recentes interpretações mecanicistas do comportamento animal e
humano. Descartes foi, na realidade, um completo mecanicista em referência a todo o mundo
material. Acreditava que todas as ações do corpo humano - os movimentos dos músculos e
tendões, as atividades da respiração, mesmo os pro cesso
da sensação - podem ser explicadas de acordo com princípios mecânicos. Foi Descartes, de
fato, que introduziu o conceito de ação reflexa, tão largamente usado desde então nas
explanações mecanicistas dos processos corporais. Todavia, Descartes se absteve de
considerar os seres humanos como meros autômatos; acreditava que em cada pessoa havia
uma alma provida de razão, uma substância pensante, que tinha o poder de dirigir e alterar o
rumo mecânico dos acontecimentos. Esta alma age através da glândula pineal na base do
cérebro, e influencia os movimentos do corpo, agindo sobre os espíritos animais no sangue, o
qual entrando por um nervo ou outro determina que movimento deve ser efetuado. Mas, a
ação do corpo em si, embora sujeita à direção da alma, é puramente mecânica. A relação entre
a mente e o corpo, como Descartes a via, é, portanto, de interação. A mente age sobre o corpo
da maneira que acabamos de descrever, e sofre a influência do corpo através da sensação,
emoção e ação. Descartes deixou de explicar como duas substâncias tão diferentes podem se
influenciar reciprocamente, porém estabeleceu a posição do dualismo e do interacionismo com
a máxima clareza e assim reafirmou a distinção entre a mente e a matéria no pensamento
moderno.
Outro ponto dos ensinamentos de Descartes que tem uma conexão direta com a psicologia é a
sua crença nas idéias inatas. Descartes, que era tão bom matemático quanto filósofo, admitiu
que existem certas verdades necessárias ou axiomas que constituem a base do conhecimento
demonstrável. Tais verdades, segundo admitia, são inerentes à natureza humana e quando
percebidas são evidentes por si mesmas. Apesar de sua intenção de duvidar de tudo, Descartes
não argumentou sobre a existência das idéias inatas. Esta questão da dúvida, entretanto, foi
suscitada por alguns de seus críticos, e alcançou tal importância que se tornou o ponto de
partida da longa série de investigações, pelas quais os filósofos da Grã-Bretanha desenvolveram
o seu empirismo crítico.
42
Ecina Heidbreder
Do ponto de vista da psicologia, é significativo no estudo de Hobbes o uso que faz da idéia de
"homem racional", isto é, de que a conduta humana é dominada pela razão. Embora o medo e
o egoísmo, de fato, sejam considerados os motivos da ação, a razão sugere "condições
convenientes de paz" e orienta a forma da conduta. O medo e o egoísmo atuam de uma forma
calculada e não se manifestam às cegas. Em outras palavras, é a razão que controla a situação.
Dessa maneira, Hobbes fornece outro exemplo da tendência geral de pensarmos no homem
çomo sendo um animal racional, de explicar a seqüência de suas ações como planejadas e
previstas, em lugar de determinadas pelo acaso; e como sendo dirigidas finalmente por
considerações intelectuais, ao invés de por alguma coisa tão irracional como o sentimento, a
emoção, e os incidentes da vida. A psicologia está continuamente descobrindo que os seres
humanos gostam de atribuir à razão o maior papel nos seus afazeres; e é um sinal evidente do
poder desta tendência o fato de ela aparecer no cínico e realista Hobbes, que nunca foi acusado
de tentar descrever a natureza humana de uma forma lisonjeira, por mínima que fosse.
Porém, a atitude de Hobbes em relação ao homem racional foi menos uma expressão
propriamente sua do que do modo de pensar corrente na época. De fato, isto é significa-
Psicologias do Século XX
43
tivo porque é uma expressão daquele modo de pensar. Outras contribuições de Hobbes para a
psicologia, entretanto, abriram novos horizontes. Uma delas é um tratamento geral dos
processos psicológicos que os coloca de modo inequívoco na corrente dos acontecimentos
naturais. Hobbes havia-se impressionado pela obra de Galileu e, aproveitando-se da
possibilidade sugerida de uma explicação naturalista, tentou descrever toda a atividade
humana, inclusive a psicológica, em função do movimento. A sensação, que é a fonte do
conhecimento, é movimento comunicado pelo objeto externo ao cérebro. A imaginação e a
memória são continuações daquele movimento; "sentido decadente" é a expressão usada por
Hobbes. A mente não tem conteúdo, por mais complexo que seja, que não possa ser reduzido a
estes termos. Mesmo as seqüências de pensamento, por mais ocasionais que possam parecer,
são parte da lei natural. Da mesma forma que as idéias são determinadas pelos objetos agindo
sobre os sentidos, assim também as transições de uma idéia para outra são determinadas pelas
relações que elas mantêm entre si na experiência inicial. Naturalmente,
isto implica o princípio básico do associacionismo: isto é, que uma idéia sucede a outra não por
acaso, mas de acordo com uma lei. Foi em relação a isto que Hobbes fez uma distinção entre as
duas espécies de pensamento que foram desde então chamadas associação livre e controlada.
Na primeira, "diz-se que os pensamentos vagueiam e parecem não ter relação entre si, como
acontece no sonho"; na segunda, existe algum "pensamento interno para governar e dirigir os
outros que vêm a seguir". E ainda, mesmo no "ordenamento confuso" aparente da associação
livre, Hobbes considerava o curso do pensamento como determinado. Sua psicologia foi
materialista, mecanicista e determinista em seu todo, na qual mesmo as mais causais
imaginações do homem têm o seu lugar em uma corrente ordenada de acontecimentos que
constituem o mundo da natureza.
Não foi Hobbes, entretanto, mas seu continuador, John Locke, quem suscitou a questão
específica que deu impulso ao empirismo britânico. Do ponto de vista da psicologia, Locke situa-
se no ponto de partida de dois movimentos. Um deles, uma série de investigações críticas
efetuadas por Berkeley, Hume e Kant, resultou na destruição da antiga psicologia racional, um
sistema de pensamento que, pretendendo um conhecimento da alma baseado na intuição e na
dedução, sustentava que o seu conhecimento é demonstrável como
P8icologias do Século XX
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44
Edna Heidl'reder
O problema de Locke, é preciso notar, não era exclusivament psicológico. Como os filósofos
gregos, estava interessado principalmente na validadE' do conhecimento; não examinava o
processo do conhecimento pelo seu valor intrínseco. Foi puramente ocasional sua pergunta
"Como conhecemos'?". Em essência, a pergunta era "O que concordamos em aceitar como
conhecimento verdadeiro?". Em primeiro lugar, o empreendimento de Locke foi uma
investigação epistemológica, mas desviou a atenção para os problemas psicológicos.
Quando Locke examinou a constituição do conhecimento, convenceu-se de que todo
conhecimento é derivado de uma única fonte, a experiência. Mas a experiência em si é de duas
espécies: uma provém da sensação, outra da reflexão; em outras palavras, uma parte é
proveniente dos objetos sensíveis do mundo exterior, e outra da percepção das funções de
nossa própria mente. Não existem outras fontes de conhecimento. Não existem idéias inatas.
Um ponto em que Locke insiste de modo especial é o de que nós não começamos a vida com
uma reserva de axiomas ou verdades necessárias. Através de páginas e mais páginas,
desencadeia uma guerra contra a noção de que a mente esteja provida de idéias independentes
da experiência. Inicialmente a mente é "um papel em branco, desprovida de atributos, sem
nenhuma idéia". "Nada existe no intelecto que não tenha passado antes pelos
Para Locke, tudo isso era de interesse e importante, porque mostrava as capacidades e,
principalmente, as limitações da compreensão humana. Isso lhe deu um critério para provar a
validade do conhecimento. Se pudéssemos descobrir a origem real de uma idéia, a experiência,
tal idéia seria aceitável; se não se pudesse encontrar um fundamento na experiência, ela seria
ilusória - teria entrado furtivamente e não seria baseada em fatos. A análise do conhecimento
de Locke, entretanto, teve um significado tanto epistemológico quanto psicológico.
Estabeleceu no pensamento da época uma concepção atomística da mente - uma concepção
da mente como sendo composta de unidades combinadas de vários modos. Proporcionou um
conjunto de idéias simples e um plano de organização mental que mostrou ser necessário
somente descobrir como as idéias simples são reunidas, a fim de compreendermos a mente
humana e todas as suas possibilidades. É este aspecto positivo do ensino de Locke, sua
esperança de tornar a mente inteligível em função de unidades e suas combinações, que levou
ao aperfeiçoamento da escola do associacionismo psicológico.
Mas, existe alguma diferença real entre as qualidades primárias e secundárias? Esta pergunta
foi feita por George Berkeley, notável jovem irlandês, que se tornou mais tarde bispo de
Cloyne. Berkeley formulou esta pergunta em 1710, no livro A Treatise concerning the
Principies of Human Knowledge. De inteiro acordo com Locke, salientou que o nosso
conhecimento do mundo exterior nos chega através
46
Edna Heidbreder
dos sentidos. Tudo o que sabemos sobre uma maçã, por exemplo, é aquilo que os nossos
sentidos nos transmitem. Sabemos que é vermelha, doce e aromática porque temos sensações
de visão, paladar e olfato; sabemos que é sólida e possui volume, porque temos sensações de
tato - porque sentimos sensações na pele e nos músculos quando oferecem resistência à
pressão, ou quando fazemos movimentos dos músculos ao tocá-la. Existe, então, alguma
diferença entre o nosso conhecimento de solidez e volume, que são qualidades primárias, e as
da vermelhidão e do aroma, que são secundárias? Todas são provenientes da sensação e de
nenhuma outra fonte. O próprio Locke declarou: "Dando-se o caso de impedir o olho de ver a
luz ou as cores; o ouvido de ouvir o som; o paladar, de saborear e o nariz, de cheirar; provar-
se-á que todas as cores, sabores, odores e sons, em sua forma de idéias individuais,
desaparecem e cessam". Berkeley levou simplesmente o raciocínio de Locke um passo adiante.
A solidez, o volume e todas as outras qualidades primárias são igualmente conhecidos
somente através da percepção, e estão exatamente no mesmo caso das qualidades
secundárias. A maçã é, toda ela, sensação; nada mais é senão sensação; o seu esse é percipi. A
doutrina principal de Berkeley é a de que ser consiste em ser percebido, e para estabelecer esta
circunstância recorreu diretamente à experiência. Confiante em que a façanha é impossível,
pede ao leitor para imaginar qualquer das qualidades dos objetos - tanto primárias quanto
secundárias - sem uma mente que as perceba Retirai a percepção, diz ele, e a qualidade
desaparece. Assim como não pode existir vermelho sem a percepção do vermelho, não pode
haver solidez sem a percepção da mesma. Para tornar mais claro, não existe substância
material. Conhecemos somente as qualidades sensoriais; nunca vamos além delas; e se o
tentarmos e concluirmos que existe uma substância imanente nelas, algo que as mantém e que
lhe é próprio, nada estaremos acrescentando. Estaremos fazendo simplesmente uma
declaração vazia, completamente gratuita e sem fundamento e, em última análise,
inconcebível. Locke, que se apegou ao senso comum, conservou um núcleo de
substância material no mundo exterior; Berkeley, que aderiu a um método de raciocínio lógico,
deixou-o de lado.
Ou talvez nem isto, pois Berkeley não ignorou a diferença entre os objetos percebidos e os
imaginados. Os primeiros, afirmou, são independentes de nossa vontade; existem, quei
psicologia
cio Século XX
47
ramos ou não; mais ainda, possuem uma ordem, uma coerência e firmeza que não lhes são
impostas por nós. Não estão sujeitos aos nossos caprichos; possuem uma realidade fora de nós.
Mas esta realidade, insiste Berkeley, não pode ser corporal. A sua análise mostrou que a
substância material não é real; que a existência das coisas depende de serem percebidas; que
os objetos externos não possuem um núcleo de substância corporal; que não há necessidade
de tal núcleo e nem mesmo é imaginável. Ainda mais, a coercitividade, a independência, a
ordem e a estabilidade dos objetos são fatos que precisam ser levados em conta; e Berkeley
explica essas qualidades dizendo que elas residem na mente perceptiva de Deus - um conceito
que para ele está livre da contradição e da vacuidade que encontra na idéia de substância
material. Assim como nossas idéias estão para as nossas mentes, a natureza toda está para a
mente divina. A existência das coisas, finalmente, consiste na percepção de Deus. Para
Berkeley, este era o ponto essencial de todo o seu tratado. Assim como Locke, ele estava
interessado em sua análise psicológica principalmente pelas suas conseqüências metafísicas.
Mas do ponto de vista da evolução histórica, o lado positivo de seu pensamento teve pouca
influência. Foi o lado crítico e destrutivo de sua filosofia que produziu fruto no pensamento
subseqüente.
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49
ajustes oculares necessários para olhar objetos próximos ou distantes, ou quando movemos
nossos corpos ou partes deles ao nos aproximarmos ou ao nos afastarmos dos objetos vistos.
Esta é provavelmente a primeira aplicação do princípio da associação a um problema
exclusivamente psicológico. Talvez deva ser mencionado de passagem que Berkeley parecia, em
um grau fora do comum, estar ciente do papel desempenhado pelas sensações musculares e do
tato nos processos psicológicos. Por algum motivo, as sensações que nos fazem cientes de
nossos próprios movimentos corporais são mais facilmente omitidas do que são aquelas
provenientes da vista e do ouvido, e chamaram a atenção um pouco tarde no
desenvolvimento da psicologia. E, todavia, Berkeley utilizou estas sensações não somente para
explicar a percepção da distância, como também para mostrar que as qualidades primárias,
assim como as secundárias, consistem em última análise em serem sentidas ou percebidas. O
reconhecimento das sensações musculares e tácteis fazia, portanto, parte da doutrina
principal de sua filosofia.
pensamentos que não possuam nenhum conteúdo sensorial e que, não obstante, tenham uma
função real como pensarnento? Questões como estas estavam implícitas na investigação de
Berkeley; porém só surgiram como problemas estritamente psicológicos dois séculos mais
tarde, quando a controvérsia do pensamento sem imagem deu-lhe a clareza de enunciado que
um ambiente experimental possibilita.
Naturalmente, Berkeley havia feito uma análise crítica de Locke muito além do que este havia
esperado, mas o filó-
• sofo escocês David Hume foi ainda mais longe. Berkeley havia tratado o conceito de
substância material, negando a existência objetiva das coisas ou dos objetos fora das mentes
que as pesquisam ou da Mente. Não havia, entretanto, duvidado da existência da mente em si,
nem posto em dúvida o princípio da causalidade. Ao contrário, tinha admitido as duas coisas,
dando como causa das características que distinguem as percepções das imagens, a mente
divina que as percebe. O universo, na concepção de Berkeley, possuía ainda algum apoio; não
era um simples caleidoscópio de idéias. Hume pretendeu retirar este apoio, pondo em dúvida
tanto a existência do eu pensante como o princípio da causalidade.
De maneira idêntica, Hume trata da causalidade. A idéia de causa, diz ele, contém a idéia da
conexão necessária, porém quando ele procura ligá-la de novo com as experiências das quais
ela possivelmente provém, nada encontra que dê idéia de necessidade, apenas contigüidade e
sucessão. A experiência não nos fornece nada além de uma seqüência invariável dentro do
tempo; tudo o que nós realmente vemos é que quando acontece A, B vem em seguida. A
necessidade em que a idéia de causalidade implica nunca é encontrada na experiência. A idéia
de causalidade, portanto, não possui validade objetiva. É produzida na mente, e não descoberta
no objeto. Permanece o fato, entretanto, que temos uma crença arraigada na causalidade, fato
que Hume nunca nega,
50
e que tenta explicar. Nossa crença na causalidade é considerada por ele uma questão de
costume ou hábito, ou ainda uma associação muito forte. Tudo o que sabemos é que certas
seqüências se verificam do modo invariável, mas que, com a repetição, provocam na mente
uma forte disposição para ligar os acontecimentos que as compõem. Se A foi sempre seguido
por B, o aparecimento de A nos leva a esperar B. O princípio da causalidade, portanto, é
baseado num hábito, tendência ou disposição em nós existentes: não se garante que possua
validade objetiva.
Assim, pela crítica de Hume, o mundo reduzia-se a um agregado de idéias, sem substância que
as mantivesse, e sem nenhuma lei que as ligasse. A crítica de Berkeley havia afastado a
substância material, porém havia deixado um mundo de acontecimentos bem ordenados, sob a
dependência de uma substância espiritual. Aplicando a mesma espécie de crítica usada pelo
próprio Berkeley, Hume desfez tudo o que restara de ordem e de substância que aquele havia
deixado no mundo. Segundo Hume, o mundo era uma torrente de idéias, sem conexão,
permanência, unidade ou sentido, apenas presentes e passageiras. Mesmo para o seu autor,
havia algo de f orçado e antinatural nesta concepção. Ninguém viu melhor que Hume a
discrepância entre o extremo ceticismo a que seu raciocínio o havia conduzido e as exigências
da vida diária; mas não apresentou uma compensação lógica para isso. ",Tanto, jogo uma
partida de gamão, converso e divirto-me com meus amigos", comenta ele, "e quando, após três
ou quatro horas de diversão, retorno a essas indagações, elas me parecem tão frias, forçadas e
ridículas, que não encontro mais disposição para iniciá-las novamente".
O continuador de Hume no movimento crítico foi Emanuel Kant. Porém, Kant achou impossível
aceitar com a equanimidade de Hume o resultado das especulações destrutivas daquele. Não
podia concordar com uma situação na qual as cogitações do estudo dos filósofos levavam a uma
visão do mundo diferente daquela das exigências da vida diária. Afinal de contas, insistia Kant, o
mundo como nós o conhecemos é um mundo ordenado; e esta ordem, como Hume havia
claramente percebido, não podia ser proveniente da experiência. Nem podia ser negada. Nesse
caso, deveria provir da própria mente, a qual, em lugar de refletir a ordem de um
mundo exterior, impõe suas próprias leis sobre a natureza. Esta é a tese que, em 1781, Kant
apresentou em seu livro Crítica da Razão Pura, que fez de seu autor, até então
51
A experiência, de acordo com Kant, é proveniente de duas fontes: as coisas como elas são em
si mesmas, e a mente. A experiência é um produto, uma criação das duas. Ela começa quando
as coisas em si agem sobre os sentidos, mas no momento em que isso acontece, um
mecanismo complexo é posto em movimento, o que torna para sempre impossível que
conheçamos as coisas como elas são, independente da nossa maneira de conhecer. Não
somente é o conteúdo de nossa experiência determinado pelos nossos modos de sentir
- fato este que foi suficientemente reconhecido - como também a sua forma e disposição, sua
ordem e organização são determinadas pela mente que as recebe e as modela. Nada pode
fazer parte de nossa experiência sem se dispor de acordo com as leis de nossa natureza: 2 em
primeiro lugar, de acordo com as formas de percepção imediata ou intuição, espaço e tempo,
que são puramente subjetivas; em segundo, conforme uma ordem lógica imposta pelas
categorias do entendimento, das quais a causalidade é uma delas; e finalmente, naquele
mundo unificado que se torna necessário pela unidade lógica do eu que percebetodosos
conteúdos da experiência. A ordem e a coerência que vemos na natureza são as que impomos
sobre ela. As coisas em si mesmas, portanto, nunca podem ser conhecidas como realmente
são; podem ser conhecidas somente como aparecem na experiência, determinadas pelas
formas de nosso pensamento. A natureza não pode nunca ser descoberta; a realidade, na
forma em que existe fora de nossa experiência, está para sempre além de nosso alcance. O
verdadeiro conhecimento metafísico é impossível; apenas o conhecimento empírico pode ser
adquirido. Não podemos jamais conhecer o mundo como é em si mesmo, como existe fora de
nossos modos de conhecer. Mas também não podemos conhecer a alma que percebe, de
forma direta
52
Edna Heidbreder
psicologias do Século XX
58
eia empírica poderá fazer, no caso da natureza física. Nem o mundo nem o eu podem ser
conhecidos pela mente humana em sua verdadeira natureza. É inútil tentar obter uma
resposta absoluta e final sobre qualquer um deles. A psicologia, assim como a física, é uma
ciência empírica, ou como diria Kant, uma mera ciência empírica.
O próprio Kant escreveu, sob o título de Antropologia, o equivalente a uma psicologia empírica;
mas, em sua opinião, a psicologia não poderia nunca atingir uma posição de destaque mesmo
como ciência empírica, porque o seu conteúdo não é redutível a termos quantitativos e,
portanto, não é suscetível de ser tratada com a exatidão que caracteriza uma verdadeira
ciência. Não foi como psicólogo, entretanto, que Kant influiu sobre a psicologia. Foi como
filósofo crítico que declarou serem sem fundamento as pretensões da psicologia racional. Sua
importância para a psicologia reside no fato de ele permanecer no extremo de
uma série de investigações críticas na qual, pelo exame de seu próprio instrumento, o intelecto
humano, a filosofia tornou cada vez mais evidente que a psicologia, qualquer que seja, não é
metafísica. Descartes iniciou o movimento com seu apelo da autoridade para a razão. Hobbes,
Locke, Berkeley e Hume, efetuando suas análises através de etapas sucessivas, chegaram a um
ponto onde não se podia dar nenhuma justificativa absoluta para a autoridade do intelecto.
Kant, ao mesmo tempo que afirmava o papel do intelecto na experiência, declarou que este era
válido somente dentro do campo da experiência, e que todo conhecimento que pretendesse
transcender a mesma, ser absoluto e de certeza final, não tinha fundamento. A psicologia
racional fazia parte desse conhecimento sem base. Não havia mais tanta esperança, seja na
psicologia, seja na física, para se obter um conhecimento certo e absoluto. A psicologia, como a
física, somente podia existir como ciência empírica.
Neste ínterim, o interesse pelos aspectos psicológicos da experiência em si não esperou por
essa justificação metaf ísica. Devemos lembrar que lado a lado com a crítica do conhecimento
havia um outro movimento, de caráter mais positivo, que tinha sua origem na análise empírica
do conhecimento, que Locke e seus continuadores utilizaram. Uma parte desse movimento
expressou-se na filosofia do senso comum da escola escocesa. O seu ponto de partida foi Hume,
como o havia sido de Kant, mas os filósofos escoceses trataram seus ilustres conterrâneos de
modo muito mais drástico do que o
diligente Kant. Os resolutos realistas escoceses firmaram-se num mundo sólido que se
recusava a ser banido por especulações sutis. Estas lhes pareciam menos reais do que os
objetos dos sentidos e da vida diária, e se a análise racional deixava uma impressão de coisas
tão claramente em contraste com a realidade como ela aparece ao senso comum, achavam
que isso era muito nocivo à análise racional. Thomas Reid, professor de filosofia em Edimburgo
e contemporâneo de Hume, foi o fundador dessa escola. Baseava sua posição no "instinto" e no
"senso comum". Os sentidos, afirmava, nos fazem imediatamente conscientes de um mundo
exterior e despertam em nós uma "crença inabalável" na existência dos objetos externos.
Embora seja verdade não ser possível justificar nossa crença, a sua presença é indiscutível, e ela
própria deve ser explicada, portanto, como devida a uma tendência inicial e instintiva
implantada na natureza humana. Foi lembrado que as idéias de Hume e Reid não
são, afinal, muito diferentes, uma vez que ambos sustentam que a crença não possui uma base
racional, mas não obstante existe. Conta-se que quando este assunto foi sugerido ao Dr.
Thomas Brown, um dos seguidores de Reid, Brown respondeu: "Sim, Reid proclamou aos gritos
que nós devemos crer num mundo exterior; mas acrescentou4 em voz baixa, não termos
motivos para esta crença. Hume alardeia que não temos motivo para tal idéia; e, a meia voz,
reconhece que não podemos nos livrar dela."3
Mas a diferença em ênfase teve enormes conseqüências práticas. A atitude da escola do senso
comum não só chamou a atenção para o mundo dos fatos empíricos, como também justificou o
sentido daquela atenção. Ao assim fazer, adotou a posição que é, em essência, a que a ciência
compartilha com o senso comum - ou seja, aceitar como certo, como ponto de partida, o
mundo como parece ser para a percepção ingênua. A filosofia do senso comum adotou o
mesmo processo para o caso da religião revelada. Era, de fato, um dos objetivos da escola
escocesa protestar contra as implicações do ceticismo de Rume que pudessem minar a fé
religiosa. Afirmar que a fé e a crença são atitudes verdadeiras e necessárias em relação ao
mundo exterior era dar um passo no sentido de justificar essas atitudes com respeito à
religião. Para a escola escocesa, religião era sinônimo de calvinismo, e como esta escola uniu-
se, logo depois, ao
54
Edna Heidbreder
Mas o associacionismo britânico provinha, ainda mais diretamente que a filosofia da escola
escocesa, do modo de pensar que caracterizou Locke e seus continuadores. É difícil dizer o
nome do fundador do associacionismo - pode ter sido Hobbes, Locke, Berkeley ou Hume -
porém não resta dúvida que, na obra de Daniel Hartley, esta doutrina básica foi formulada com
toda a integridade e clareza que qualquer escola poderia exigir. Hartley, como Reid, foi o
contemporâneo de Hume; era médico, e talvez em sua profissão adquiriu o interesse, nem
sempre encontrado em outros associacionistas, pelos aspectos fisiológicos do assunto.
Segundo Hartley, existem dois tipos de acontecimentos que devem ser considerados, os
mentais e os físicos. Estas duas classes não são idênticas, mas seguem paralelas uma à outra,
de maneira que uma mudança numa delas é seguida por uma mudança na outra. Do lado
mental, existem sensações e idéias; do lado físico, existem vibrações e infravibrações. As
primeiras são movimentos extremamente pequenos nas partículas do sistema nervoso; e as
segundas são ainda menores e da mesma espécie, e ocorrem somente no cérebro. Enquanto
as sensações incluem a ação tanto dos nervos quanto do cérebro, as idéias exigem a ação
apenas do cérebro. As vibrações, que são ativas na sensação, dão início às infravibrações, que
são ativas na ideação. Existe assim uma conexão direta entre a sensação e a idéia. A lei geral
da associação consiste em que as sensações que tenham sido experimentadas juntas terão as
idéias correspondentes tendendo a ocorrer em conjunto; se A esteve associada com B, C, e D
na experiência sensorial, A ocorrendo sozinha, tenderá a despertar as idéias de B, C
Psicologias do Século XX
55
Depois de Brown, a principal série de sucessores vai de Sir William Hamilton aos Mills, Spencer
e Bain, que representam o associacionismo em seu apogeu. Sir William Hamilton, homem
notavelmente capaz, foi inicialmente um filósofo e um lógico. É mais conhecido em psicologia
por sua definição de "reintegração total", ou seja, a tendência que uma idéia possui de
restabelecer na mente todas as coisas que a ela estão ligadas na experiência inicial. James MuI
é algumas vezes mencionado como o associacionista par excellence, porque em seus escritos os
princípios associacionistas foram aplicados em toda a sua inteireza e com tal minúcia que suas
limitações se tornam evidentes a par de suas possibilidades. Mill era infatigável em seu esforço
para mostrar que os processos associativos são adequados para as mais
fi6
57
altas complexidades da vida mental. Suas observações a respeito da idéia do "Todo" são
muitas vezes citadas como exemplo de até onde desejava levar seu princípio.
"Tijolo é uma idéia complexa", escreveu ele, "reboco é outra; essas idéias, junto com as de
posição e quantidade, formam minha idéia de parede. Minha idéia de uma tábua é complexa, a
de viga é complexa, a de prego também o é. Essas, unidas com as mesmas idéias de posição e
quantidade, compõem minha idéia composta de assoalho. De maneira Idêntica, minhas idéias
complexas de vidro, madeira e outras formam minha idéia composta de janela; e essas idéias
compostas, todas juntas, formam minha idéia de uma casa, que é formada de várias idéias
compostas. Quantas idéias complexas ou compostas estão juntas na idéia de mobilia? E
quantas mais na de mercadoria? E ainda mais na idéia do Todo ?"
John Stuart Mill, filho de James Mili, achou difícil explicar as idéias complexas em termos de
idéias mais simples "todas juntas" mesmo se fosse admitido, como seu pai admitira, que os
elementos não retêm sua distinção, O filho, entretanto, continuou associacionista, pelo menos
de nome, e sobrepujou sua dificuldade por meio do conceito de "química mental". As idéias
complexas, dizia, nem sempre são destinadas à composição; pode-se dizer que resultam de
idéias simples ou são geradas por elas, mas não formadas por elas, assim como nos compostos
químicos aparece alguma coisa no composto que não está presente nos elementos tomados em
separado. Da forma em que a sensação do branco não é composta. das sete cores do prisma,
mas é gerada por elas, assim uma idéia complexa pode ser gerada, e não composta, de idéias
simples. Nos dois Miils, também, os princípios do utilitarismo de Bentham foram combinados
com as doutrinas do associacionismo, dando como resultado que o associacionismo trazia, em
si, um conceito de motivação que explica a conduta humana na condição um tanto super-
racional de "egoísmo esclarecido", uma crença de que os atos humanos podem ser explicados
em função da busca do prazer e da fuga da dor.
Herbert Spencer, catorze anos mais jovem do que John Stuart Mill, é importante para o
associacionismo principalmente porque adotou o ponto de vista da evolução em seu
pensamento psicológico. Spencer, que acreditava na herança dos caracteres adquiridos,
sustentava que os traços complexos evoluem na raça da mesma forma que as idéias
complexas se desenvolvem nos indivíduos a partir das idéias sim-
pies - que os instintos, por exemplo, são formados a partir dos reflexos. Alexander Bain,
contemporâneo de Spencer, é mais conhecido pelos seus dois livros The Sense8 and the
Intellect e The Emotions and the Will. Sua importância reside não tanto por qualquer
contribuição definida, nem devido a uma doutrina ou teoria particular, quanto pelo fato de seus
dois livros constituírem uma explicação sistemática e didática do associacionismo clássico em
seu apogeu. Estes livros, publicados logo após a primeira metade do século XIX, assinalam o
ponto culminante do associacionismo britânico e, portanto, podem ser considerados como
marcos da história da psicologia.
De certo modo, o associacionismo foi a primeira "escola" de psicologia. Seus adeptos formavam
um grupo de homens que trabalhava sob a mesma orientação e que encarava os maiores
problemas da psicologia quase da mesma forma. Não concordavam em todos os pontos - na
relação entre a idéia e a sensação, por exemplo, e em pontos tais como se a associação por
semelhança deveria ser reconhecida junto com a associação por contigüidade - porém estavam
todos ocupados com os mesmos tipos de questões e seu pensamento apresentava um
desenvolvimento contínuo. E de modo bem definido, os associacionistas estavam escrevendo
psicologia em lugar de filosofia. Examinavam os problemas na forma fatual das ciências
naturais, buscando o seu objeto na experiência real, nas formações de pensamento que
podiam ser observadas. Em suas mãos, a mente perdia muito de sua aura de mistério e
infalibilidade, e a psicologia torna-se evidente, despretensiosa e empírica. A principal tarefa da
escola era a mesma que em toda parte a ciência realiza - a tentativa de descobrir as leis
naturais nunÇ mundo de fatos naturais e observáveis.
Até agora pouco falamos sobre os filósofos da Europa continental. Somente Descartes e Kant
foram mencionados, e foram incluídos devido às suas ligações com o pensamento crítico e
empírico da Grã-Bretanha. Ainda mais do que os seus contemporâneos britânicos, os filósofos
do Continente estavam só ocasionalmente interessados em psicologia. Não havia, certamente
no Continente, uma linha contínua de investigação psicológica que persistisse, como no caso do
associacionismo e empirismo britânicos, através das personalidades e dos problemas mutáveis.
No entanto, muitas das concepções dos filósofos continentais, embora se tivessem
desenvolvido em tentativas de resolver problemas que não eram
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59
EtLna Heidbreder
Leibniz, realmente, como Descartes e Espinosa, estabeleceu o último dos três grandes sistemas
racionalistas do século. Sua concepção de realidade era a de um "universo pulverizado",
composto de um número infinito de centros de
força imateriais, sem dimensão, chamados mônadas. Seu hábito mental de "pulverizar" está
também presente em suas contribuições às ciências especiais; no cálculo infinitesimal, do qual
foi um dos inventores, e nas petites perceptions que estão incluídas em uma de suas
contribuições à psicologia. Esta doutrina das petites perceptions é virtualmente a doutrina do
inconsciente, e da continuidade do inconsciente com o consciente. Da mesma forma em que o
mundo visível pode ser reduzido a mônadas invisíveis, assim também nossa consciência clara
retorna à consciência obscura ou mesmo a estados mentais inconscientes. Leibniz utilizou o
bramido do mar para exemplificar o significado disto. É um fato inegável que ouvimos este som;
todavia, os "pequenos sons" dos quais ele deve ser composto - aqueles produzidos pelas ondas
isoladas que constituem o mar - não seriam ouvidos se cada um deles ocorresse sozinho. Não
obstante, devemos ser um pouco afetados pelas ondas isoladamente, porque
"do contrário não teríamos a percepção de centenas de milhares de ondas, pois uma centena
de milhar de nadas não pode produzir alguma coisa". Talvez a moderna psicologia devesse
preferir, em seu todo, explicar este fenômeno em função da soma total dos estímulos, do que
em função da soma total das percepções inconscientes. Mas o ponto significativo é que em
Leibniz há um reconhecimento definido dos processos mentais inconscientes, uma região da
psicologia que, é escusado dizer, tem provocado o mais vivo interesse na psicologia atual. As
doutrinas dos psicanalistas, por mais que possam diferir em forma e caráter das indagações de
Leibniz, não obstante possuem algo em comum com os raciocínios exatos e as percepções
penetrantes de um dos fundadores do cálculo.
Leibniz estava por demais interessado no problema das idéias inatas. Locke, deve ser lembrado,
negava a existência delas, mas baseava seu argumento na hipótese de que tais idéias eram
tanto presentes quanto ausentes, completamente formadas ou inexistentes. Locke levou muito
em conta o fato de os axiomas básicos não se encontrarem nas mentes das crianças, dos
selvagens e dos não instruídos, e só aparecerem quando o indivíduo vive as experiências que
são capazes de produzi-los. Para Leibniz, tudo isso podia ser verdade, e todavia o conceito da
mente como um "papel em branco" ou "tabula rasa" não poderia ser a única explicação
possível. Sugeriu o "mármore com nervuras" como uma alternativa. Assim como um bloco de
mármore pode ser mar-
Psicoløgias do Século XX
60
P8woZogias do Sdoulo XX
61
Edna Heidreder
cado com nervuras a fim de torná-lo mais adequado para a estátua de Hércules do que para
qualquer outra, também o ser humano pode nascer com idéias não completamente formadas,
mas com tendências e predisposições que tornam o desenvolvimento de certas idéias
altamente provável e adequado à sua natureza. Esta concepção não difere daquela dos
instintos livremente organizados, que é aceita por um certo número de psicólogos hoje em dia
- isto é, que certos tipos de comportamento são inatos, não no sentido de surgirem
completamente formados, perfeitos, e com a regularidade mecânica de uma cadeia de reflexos,
mas no de existirem como tendências à reação, cujos detalhes são adquiridos por um processo
de aprendizagem por ensaio e erro, em resposta às características de situações reais. De acordo
com este modo de pensar, os tipos de ação conhecidos como instintos são produzidos por dois
conjuntos de fatores, os que fazem parte da constituição inata e aqueles proporcionados pelo
meio ambiente.
No século XVIII, persistia o racionalismo do século anterior, não como uma tendência para
formar sistemas fechados como os de Espinosa e Leibniz, mas no formalismo, classicismo e no
prazer da construção lógica que caracterizou o pensamento desse período. Na França, as duas
principais correntes de pensamento psicológico foram tentativas para levar as teorias existentes
até suas conclusões lógicas. Uma delas foi a representada por Lamettrie e Cabanis. Descartes,
como vimos, explicava os animais como sendo autômatos e utilizou os princípios mecanicistas
de forma bastante extensa para explicar o comportamento humano. Em 1748, Lamettrie em
seu livro L'Homme Machine tomou a decisão que Descartes não queria tomar e afirmou que
todas as ações dos seres humanos podem ser explicadas mecanicamente. Cinqüenta anos mais
tarde, o médico Cabanis reafirmou e desenvolveu a mesma opinião. Declarou que a mente é
simplesmente uma função do corpo, mais propriamente do cérebro, e que as ações humanas,
inclusive as mais complicadas funções do intelecto e as mais avançadas expressões de sua
natureza moral, não são nada mais do que as conseqüências inevitáveis de uma lei natural
agindo em seu corpo físico. O materialismo e o mecanicismo eram aceitos de bom grado como
constituindo uma explicação inteiramente adequada da conduta humana.
- as de paladar, audição, visão e tato - a sua vida psíquica torna-se muitíssimo mais complexa. O
sentido do tato tem importância especial, uma vez que proporciona o ponto de partida para a
idéia de um corpo, e portanto, do mundo exterior. Porém, tudo o que acontece na mente e
todas as idéias por ela produzidas são derivados da sensação. O conteúdo integral da mente,
inclusive suas operações, nada mais é do que sensação que se transforma de várias maneiras. A
tese de Condillac é a última palavra em sensacionismo, e também em empirismo, considerando
este termo como indicativo de uma teoria do conhecimento que se forma e se desenvolve
através da experiência. Mas, é importante observar que o sistema de Condillac não é empírico
no sentido de oposto ao racional. É sempre até o fim uma construção lógica; e não uma
descrição de fatos observados. Talvez deva-
-se notar também que Condillac não era materialista. Partindo de sua convicção de que todos os
fatos mentais são apenas sensação transformada, poderia ter acreditado facilmente, com os
materialistas franceses de sua época, que a sensação é produzida pelo funcionamento dos
órgãos dos sentidos e do cérebro. Mas o abade de Mureaux não fez isto. De modo claro e
definido, supôs uma alma que, embora dis
62
Edna Heidbreder
63
tinta do corpo, era, no que diz respeito à psicologia, nada mais do que a simples capacidade
para sentir. Entretanto, este ponto não é importante em seus ensinamentos. Condillac é
lembrado principalmente por afirmar que a sensação isolada é suficiente para explicar as mais
complexas funções da mente humana.
PswoZogzas do Século XX
64 Edna Heidbreder
bição, em vez da associação, a tônica de seu sistema. Toda idéia, de acordo com Herbart, possui
a tendência de se conservar e afastar as outras com as quais seja incompatível; e variam em
poder. Quando uma idéia encontra outra mais forte ou um grupo de idéias com as quais é
incompatível, é lançada abaixo do limiar da consciência. A idéia não é destruída, entretanto, mas
persiste, embora no momento seja inconsciente. Aquela que seja em si mesma fraca pode
adentrar a consciência e aí se conservar no caso das outras acima do limiar da consciência
serem afins. As idéias, já de posse do campo da consciência, geralmente repelem aquelas com
as quais não tenham afinidade; porém as idéias não inibidas, seguindo a tendência geral de
subir à tona da consciência, são assimiladas pelas que estejam na consciência naquela ocasião.
Herbart chama este processo de apercepção, e o grupo no qual a idéia que chega é introduzida
é conhecido como massa de apercepção. A vida mental é assim principalmente uma luta entre
idéias, todas ativas, esforçando-
-se para conseguir e conservar um lugar na consciência, e cada uma repelíndo todas as outras
com as quais não seja compatível.
Esta concepção permitiu a Herbart pensar nos fenômenos mentais em função da mecânica
mental, e também em termos quantitativos. As idéias variam tanto em tempo de duração
quanto em força ou intensidade; portanto, o material psicológico apresenta duas variáveis
mensuráveis independentes. Aplicando este princípio, Herbart escreveu fórmulas matemáticas
para exprimir as leis da mente. Acreditava, entretanto, que a psicologia jamais se tornaria
experimental. É importante observar este fato como indicativo da maneira bastante gradual
pela qual evoluiu o conceito de psicologia como ciência. Kant, na segunda metade do século
XVIII, embora considerasse a psicologia uma ciência empírica, era de opinião que ela nunca se
tornaria quantitativa. Herbart, na primeira metade do século XIX, acreditava que embora a
psicologia pudesse se tornar quantitativa nunca seria experimental. E, contudo, foi parcialmente
através da concepção da psicologia quantitativa de Herbart que a mesma se desenvolveu como
ciência experimental durante o mejo século após sua morte.
_ Psicologias do Século XX
a metade do século XIX, a longa era da psicologia pre-c)entífica chegara ao fim. Porém, no
decurso desse pe ríodo tinha avançado muito. Começando com especulações
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67
66
Edna He:dbreder
acidentais ligadas aos problemas práticos da humanidade e das sociedades e à busca da verdade
final, surgiu como um corpo de conhecimentos estudados pelo seu valor intrínseco e existindo
por sua própria conta. Entre os gregos, antes da psicologia existir como uma disciplina isolada, a
cosmologia e a epistemologia, a ética, a teoria política e as atividades práticas haviam todas
enfrentado questões sobre a natureza humana. Nessa ocasião, entretanto, estas questões não
foram objeto de um interesse psicológico real. Não foram estudadas pelo seu valor intrínseco,
mas pela luz que lançavam sobre outros problemas; foram estudadas porque faziam parte de
tentativas para compreender o universo ou planejar a maneira racional de viver. Além disso,
foram solucionadas menos na base da observação do que da especulação, e as observações
sistemáticas que delas se originaram eram gerais e abstratas. Mas, por essa mesma razão, as
primeiras observações permanecem nos esboços definidos dos conceitos racionais, ainda não
maculados pela minúcia dos fatos que foram posteriormente revelados pela observação
cuidadosa e que, mais do que nunca, não se coadunam com o modelo conceitual. Em
conseqüência, muitos dos problemas tratados pelos gregos - de substância e processo, das
partes e do todo, da mente e da matéria, do indivíduo e da sociedade, das causas próximas e
remotas, da abordagem matemática para o entendimento, e o problema geral do conhecimento
- foram estabelecidos de tal maneira que têm servido desde então de pontos fixos de referência
e como instrumentos conceituais nas cogitações da psicologia.
Na época atual, na Europa Ocidental, surgiram novamente os problemas psicológicos. Por algum
tempo, a filosofia esteve bastante interessada pela crítica do conhecimento, e daí surgiu um
interesse psicológico ativo. Em suas linhas gerais, o movimento crítico iniciou-se partindo do
apelo à autoridade eclesiástica para o apelo à razão e, em seguida, do apelo à razão, como
é concebida pelos metafísicos, ao da evidênciâ dos fatos como existem na ciência. Um dos
frutos desse movimento foi o interesse pela psicologia em si, e que eventualmente expressou-
se pela formação de duas escolas, o associacionismo e o herbartismo. Nesse ínterim, surgiram
problemas típicos da psicologia - os da possibilidade de idéias inatas e abstratas, da natureza da
percepção do espaço, das leis de associação, da relação entre os processos conscientes e
inconscientes. Haviam surgido poucas tendências bem definidas, entre elas a possibilidade de
explicar as ati Psicokgia
do Século XX
SISTEMAS DE PSICOLOGIA
O ESTRUTURALISMO 1: TITCHENER ;1
A. nova psicologia foi desde logo importada pelos Estados Unidos. Vários jovens norte-
americanos figuravam entre os primeiros alunos do laboratório de Leipzig, e quando
regressaram para a América do Norte, logo dirigiram seus próprios laboratórios e ensinaram
psicologias que, embora possam diferir entre si, e do modelo wundtiano, trazem sinais
inconfundíveis de terem procedido de Leipzig. Hali, Cattell, Wolfe, Pace, Scripture e Frank AngeIl
foram os primeiros dentre estes. Porém, o mais ardoroso campeão da nova psicologia nos
Estados Unidos não era norte-americano. Edward Bradford Titchener, notável jovem inglês que,
em 1892, tornou-se diretor do laboratório da Universidade de Cornell, trabalhou tão rigorosa e
conscienciosamente na tradição wundtiana que veio a ser o representante autorizado daquele
sistema dos Estados Unidos. Apesar de divergir em certos pontos, Titchener estava
decididamente ao lado da ortodoxia wundtiana. Foi ele quem se empenhou
mais resolutamente para estabelecer a nova psicologia no novo mundo e que, com um desvelo
parecido com o do profeta pela integridade de sua mensagem, lutou para conservá-la imune
às doutrinas desse mundo.
108
Edna Heidbrede'r
Psicologias do Século XX
109
"A morte de nenhum outro psicólogo poderia alterar tanto o panorama psicológico na América
do Norte. . . ele era um ponto cardeal na orientação metódica nacional. A oposição bem
definida entre o behaviorismo e seus aliados por um lado, e alguma outra escola por outro,
torna-se clara somente quando a oposição é entre o behaviorismo e Titchener. A sua morte,
dessa forma, de certo modo, cria um caos classificatório na psicologia sistemática norte-
americana." 2
É significativo o fato de Titchener nunca ter corrido o mínimo risco de americanizar-se, embora
tivesse ido para os Estados Unidos quando tinha somente vinte e cinco anos de idade e ali
tivesse permanecido até sua morte, trinta e cinco anos mais tarde. Todavia, uma permanência
de somente dois anos em Leipzig o tinha germanizado. Até mesmo parecia alemão e era, às
vezes, tomado por um deles; a ciência para a qual trabalhou era toda alemã; e no que pareceu-
lhe uma universidade atrasada no outro lado do Atlântico, presêrvou com uma devoção firme
e meticulosa o cerimonial com o qual tinha visto cercada a psicologia numa universidade alenlã.
Ê evidente que encontrou na cultura alemã, pelo menos na ciência alemã, alguma coisa
profundamente adequada à sua natureza. Porém Titchener nunca combinou com o ambiente
norte-americano. Afastou-se e opôs-se aos empreendimentos tipicamente norte-americanos
em psicologia os quais, trazendo todos os indícios da origem nativa, firmaram-se e prosperaram
naquele país. A psicologia' aplicada, o estudo das diferenças individuais, o movimento a favor
dos testes mentais, em todos os quais o interesse norte-americano era espontâneo e vivo,
parecia a ele de segunda classe, e do ponto de vista da ciência pura, até um
pouco desprezível; e quando surgiram e prosperaram escolas definidas como o funcionalismo e
o behaviorismo, combateu-as de forma realmente jupiteriana. Era evidente que ele não
combinava com a mentalidade norte-americana. Achou mesmo difícil continuar como sócio da
Associação Americana de Psicologia, organização da qual os maiores psicólogos da América
eram tradicionalmente sócios. Certa ocasião, não conseguiu o apoio da Associação, num
assunto que, a seu ver, era uma
Como resultado dessa atitude, desse hábito de contrastar a psicologia experimental com a
norte-americana em geral, criou-se uma situação interessante. De certo modo, as condições
no novo país eram francamente favoráveis ao desenvolvimento de uma psicologia
experimental. À medida que o método experimental implicava a tendência de preferir fatos a
teorias, em lançar mão da evidência ao invés da especulação, provar os elementos e
"demonstrá-los" em lugar de aceitá-los em confiança, o temperamento americano era
inteiramente receptivo ao movimento experimental. E apesar disso a psicologia experimental
nos Estados Unidos, na forma em que era considerada como autêntica, foi cuidadosamente
protegida das influências norte-americanas mais típicas. Tornou-se uma coisa à parte, quase
preciosa, completamente afastada da corrente principal dos interesses norte-americanos. A
própria expressão "psicologia experimental" adquiriu um significado especial. Nos Estados
Unidos, a psicologia experimental podia ser descrita quase como aquela formada na Alemanha
e importada por Titchener. Seus adeptos eram naturalmente estudiosos norte-americanos,
porém, em sua maioria, haviam sido treinados sob a influência de Titchener e sob um sistema
de mores eruditos importados, que dificilmente poderiam deixar de impressioná-los.
110
111
"No primeiro semestre, nas terças e quintas, às 11 horas, ele lecionava aos estudantes na nova
sala de leitura do Goldwin Smith Hall, sala que possuia um laboratório profissional para
demonstrações e um escritório anexo especialmente construído e cujas cadeiras estavam na
altura determinada para combinar com a estatura de Titchener. A demonstração havia sido
escolhida uma hora antes e Titchener chegava logo depois das dez horas para fiscalizá-la. Mais
tarde, os assistentes reuniam-se aos poucos em seu escritório. Quando chegava a hora da aula,
ele vestia a sua beca, um assistente a escovava para remover as cinzas do seu infalível charuto,
os assistentes transpunham a porta aparatosamente e tomavam lugar na primeira fila. Titchener
subia então na plataforma, vindo da porta de seu escritório. Todo esse ritual era executado com
prazer e algumas vezes de forma humorística, contudo era seguido escrupulosamente. O
pessoal reunia-se, após a aula, na sala de Titchener durante uma hora para conversar e às 13
horas dispersava-se para almoçar." 3
Todo esse ritual era baseado naquele que Titchener havia prenciado em Leipzig, como
discípulo de Wundt. Embora tives.e trazido sua psicologia para um país distante, conservava
não só a matéria como também o sistema da tradição de Leipzig.
As aulas em si eram precisas e eficientes, e de ano para ano atraíam multidões de estudantes.
Não somente apresentavam a psicologia erudita pura no sentido exato da palavra, como
também incluíam prescrições para acautelar-se dos falsos profetas. Os assistentes as ouviam no
mínimo com o mesmo interesse que os estudantes, pois nestas aulas, às vezes, ouviam o
primeiro pronunciamento de Titchener a respeito de uma nova teoria ou descoberta, e sobre a
forma em que deveria ser incorporada, no caso de ser aceita, no conjunto principal da
psicologia.
Tudo isso era para os principiantes. Os estudantes graduados também achavam impressionante
a psicologia em Corneil. Durante o segundo semestre, Titchener dirigia um seminário do qual
participavam os assistentes e os estudantes graduados e onde, é escusado dizer, ele dominava a
situação. Com exceção dessas reuniões para os exames de doutoramento, e aquelas ocasiões
em que fazia o papel de anfitrião de visitantes ilustres, não ia ao laboratório. Nas raras ocasiões
em que os estudantes conferenciavam com ele, faziam-no em sua casa, através de entrevistas.
Suas horas de trabalho em casa eram cuidadosamente protegidas, e era sabido que somente
uma verdadeira emergência justificaria uma tentativa de chamá-lo pelo telefone.
Porém Titchener era um homem possuidor de fascínio e influência, e a admiração que os seus
discípulos sentiam por ele não era exclusivamente pela sua perícia em sua especialidade. Era
um homem de interesses múltiplos e contagiantes, um notável conversador e um anfitrião
simpático. Podia ser tanto amável, quando imponente, tão prestimoso como autoritário. Não
há dúvida de que o sentimento por ele despertado em seus discípulos e colaboradores era
mais do que de simples respeito.
Embora fosse 'raramente visto na universidade, a influência de Titchener era considerável; e a
psicologia em Cornell tornou-se aquela interpretada por uma única pessoa influente, por uma
presença completa porém invisível. Nos bastidores havia sempre uma autoridade final que
conservava o destino e as teorias dos homens em suas mãos, que traçava uma linha definida
entre a ortodoxia e a heterodoxia, que fazia da distinção o primeiro requisito da casta erudita e
que dispunha os elementos de seu mundo erudito no sentido de defesa e progresso da nova
psicologia - da nova e única psicologia em toda a sua pureza.
Em suas obras, Titchener também fala caracteristicamente. Principalmente nos livros que
escreveu para os esta- dantes o seu tom é de autoridade. Pois os livros didáticos de Titchener
são pouco mais notáveis pela competência científica e poder de exposição do que pela falta
absoluta de tato pedagógico. Raramente dá uma oportunidade à inteligência do leitor.
Considera que, como autor, deve salientar tudo até os mínimos detalhes; que deve livrar-se
das implicações; que deve explicar, ao máximo, as classificações e restrições. Nem uma única
vez pede ao leitor para aceitar suas idéias sem evidência ou argumento, porém a sua própria
maneira
Psicologias do Século XX
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112
Edna Heidbreder
de ordenar os fatos, de acumular uma explicação sobre outra e um argumento após outro, é
didática. Não resta dúvida que muito do cuidado meticuloso que caracteriza a explanação de
Titchener é devido a seu próprio amor pela clareza e explicação, e a necessidade premente de
integridade em sua própria natureza. Chega-se a suspeitar, também, que uma parte disto se
origina de uma apreciação sensível fora do comum de todas as objeções que possam ser
argumentadas contra a sua atitude; que suas convicções não apareceram com a tranqüilidade
inalterável que caracteriza os temperamentos menos críticos; e que suas conclusões, quando
estabelecidas, eram declaradas do modo mais claro e mantidas da maneira mais firme porque
não eram obtidas sem resistências internas. Porém, existe além disso mais de uma insinuação
do seu estilo normativo de ensinar. Por fim, o modo característico de Titchener apresentar um
assunto é o de expor as suas próprias operações intelectuais a esse respeito; implicando isto
em que o leitor deverá observar de perto, e produzir a melhor reprodução que puder. Em
dissertações dedicadas aos seus colegas de profissão e para auditórios possuidores de algum
conhecimento técnico psicológico, ele é menos mestre-escola, mas com a mesma autoridade.
Mesmo neste caso - nas duas séries de aulas publicadas sob o título de Experimental
Psychology of the Higher Thought Processes e Psychology of Feeling and Attention, por
exemplo, - realmente não pede ao público para tratar do assunto junto com ele; examina o
terreno, organiza os fatos e aponta o caminho a seguir.
E o sistema em si? E a psicologia que era o motivo para todo este impressionante dispositivo, o
objeto de toda esta exposição cuidadosa e defesa vigorosa? É uma psicologia que não possui
um nome aceito por todos, mas que às vezes é chamada de estruturalismo, outras de
introspeccionismo, às vezes de existencialismo, 5e ocasionalmente de titchenerismo. Exposta
em sua forma mais completa e sistemática no livro Text-book of Psychology de Titchener, é a
psicologia que, nos Estados Unidos, principalmente após o aparecimento do behaviorismo, tem
sido geralmente carac4 Devido à importância que atribuí à introspecção como método de
estudo.
terizada como "tradicional" e "reacionária". Tem sido às vezes declarada animista, porque trata
com a mente. Tem sido também chamada de metafísica em contraste com a científica,
aparentemente devido ao curioso conjunto de pressupostos de que o mental é sinônimo de
sobrenatural, de que a diferença entre a ciência e a metafísica é a mesma que entre a matéria
e a mente, e ainda de que qualquer investigação que se dirija aos processos mentais está ipso
facto fora do campo da ciência natural.
Seria difícil, entretanto, encontrar outra atitude que com mais certeza empanasse o significado
de todo o movimento do qual a psicologia de Titchener faz parte, ou que servisse melhor como
exemplo de falácia histórica. Nada poderia ser mais enganoso do que aplicar a palavra "não
científica", como é usada por um certo grupo de psicólogos hoje em dia, a uma escola que há
meio século atrás ajudou a combater e a vencer a batalha travada pela independência da
psicologia em relação à metafísica. A questão toda com a nova psicologia estava em ser esta um
prolongamento do método científico dentro de um novo setor. Quando se recorda que no
século XIX mesmo as ciências físicas eram relativamente novas, e que a fisiologia era
considerada uma aventura ousada pela aplicação dos princípios científicos à matéria viva, e
que os processos mentais, tais como a sensação e a percepção, gozavam de bom conceito nos
laboratórios de fisiologia, torna-se evidente que logicamente o passo seguinte seria estender o
método científico aos processos mentais - tratá-los como fatos naturais em um mundo natural e
submetê-los ao tipo de pesquisa experimental que caracterizava as outras matérias científicas.
A nova psicologia estava baseada na fé extrema do método científico, a saber, em seu poder de
revelar as leis dos processos mentais como ela os havia descoberto e os da natureza física que
ainda estava descobrindo. Foi por esse motivo que a nova psicologia se considerava como o
impulso mais corajoso e de maior alcance do movimento científico e por ter-se tornado
consciente, mesmo autoconscientemente científica. Ao definir o seu objeto, ao determinar os
seus métodos, e ao estabelecer os seus princípios, seus seguidores mantinham sempre
presente a pergunta: Isto é uma ciência? A tônica do empreendimento todo era a tentativa de
considerar o material psicológico da maneira como a ciência trata normalmente os seus
elementos. Deixar de reconhecer esta tentativa como básica para o esforço todo é perder de
vista o significado mais profundo do movimento.
Psicologias do Sáculo XX
115
"4
Edna Hekibrede'r
A tarefa inicial de Titchener, ao apresentar o seu sistema, 6 era demonstrar que o objeto da
psicologia era merecedor de estudo científico. Talvez a maneira mais fácil de compreender o
seu significado é dizer que ele encara a psicologia como a ciência da "consciência" ou "mente",
e então se apressa em acrescentar que não se deve ver nessas palavras os sentidos que o senso
comum provavelmente lhes atribui. Titchener, sem hesitação, garante ao leitor que as antigas
noções sobre a mente são impróprias para uso científico. O que a ciência chama de consciência
e mente pode ser melhor compreendido mostrando-se como o objeto da psicologia difere do da
física.
Toda ciência, explica Titchener, tem o seu ponto de partida na experiência. Basicamente, o
objeto da física e o da psicologia são idênticos. As duas ciências diferem, não porque tratam de
assuntos diferentes, mas porque encaram o seu objeto comum, o mundo da experiência, sob
pontos de vista diferentes. A física estuda o mundo sem considerar o homem. A psicologia
estuda o mundo em relação ao indivíduo que o experimenta. O objeto da física é a experiência
independente da pessoa que percebe; o da psicologia é aquela que depende de quem a sente.
Na física, por exemplo, o espaço, o tempo e a massa são sempre os mesmos; o centímetro, o
segundo e o grama são unidades constantes, não afetadas pela pessoa que as maneja. Na
psicologia, entretanto, um espaço pode ser grande ou pequeno, uma hora longa ou curta, um
peso leve ou pesado, de acordo com as condições que afetam a pessoa que os observa. O
mesmo é verdade em relação ao calor, ao som e à luz. Psicologicamente, eles variam de
acordo com os fatores que afetam a pessoa que os experimenta; porém, fisicamente, o calor é
sempre movimento molecular, o som um movimento ondulatório do ar, a luz um movimento
ondulatório no éter. No mundo da física, não existem cores, nem sons, nem sabores, odores e
"sentidos", porque tudo isso depende da pessoa que os experimenta. Do ponto de vista da
psicologia, um certo detalhe no mundo da experiência é vermelho; do ponto de vista da f ísica,
é uma vibração do éter de um determinado comprimento de onda. O mesmo acontece com
todo o material da experiência. Concebida como independente da pessoa que a sente, é o tema
da física; em caso contrário, é assunto da
Titchener explica ainda que o "sujeito experienciante" significa o corpo vivo e que, para as
finalidades do psicólogo, este corpo vivo pode ser reduzido ao "sistema nervoso e seus anexos".
Faz também distinção entre a mente e a consciência. A mente refere-se "à soma total dos
processos mentais que ocorrem durante a vida de um indivíduo"; a consciência, "à soma total
dos processos mentais que ocorrem agora, em algum dado momento". Porém, a mente e
a consciência devem ambas ser consideradas como experiência humana, dependentes de um
sistema nervoso, e podendo ser descritas em função dos fatos observados.
Ao definir seu objeto em função do ponto de vista, Titchener estava seguindo Wundt; ao
defini-lo como "uma experiência que depende de um sujeito experienciante" estava
introduzindo modificações que eram provenientes de seu tempo de estudante em Leipzig.
Wundt havia também feito distinção entre o objeto da psicologia e o da física somente após
haver insistido que ambos provêm da mesma fonte, a experiência humana, e que ambos estão
sujeitos à observação humana. A diferenciação de Wundt, entretanto, era baseada na diferença
entre a experiência imediata e mediata. Um indivíduo fica direta e imediatamente consciente
de sua sensação de vermelho; as ondas do éter que o explicam, consideradas como objetos no
mundo físico, são construídas baseadas na sensação e são percebidas somente através dela. A
sensação do vermelho que é percebida imediatamente, pertence à psicologia; as ondas do éter,
que são percebidas mediatamente, pertencem à física. Wundt não aprofunda a questão que
algumas vezes surgiu sobre este assunto, qual seja a de que o conhecimento psicológico é,
portanto, mais seguro e mais correto, menos sujeito aos deslizes de conclusão, do que o
conhecimento mediato da física. Sua principal finalidade era a de mostrar que a psicologia,
assim como a física ou qualquer outra ciência natural, trata de um
assunto que é dado pela experiência, e seu principal interesse era o de justificar a afirmação de
que a psicologia é uma ciência
116
Edna Heidbreder
Psicologias do Século XX
117
natural. Porém, alguns discípulos de Wundt, tão completamente convencidos quanto ele, da
possibilidade de uma psicologia científica, escolheram outra explicação. Külpe, influenciado
pelas obras de Mach e Avenarius, acreditava que a diferenciação entre a física e a psicologia
podia ser feita melhor em função da experiência como dependente ou independente de um
sistema nervoso; e foi esta idéia que Titchener aceitou. É interessante observar que ambas as
teorias exprimem a mesma convicção básica de que a consciência e os processos mentais
podem ser objetos de observação científica. Em seus princípios básicos, ambas são tentativas
para mostrar que a psicologia é uma ciência da experiência e, como tal, diferente da
metafísica.
Mas para Titchener, não bastava manter o objeto da psicologia livre da metafísica; era
necessário também conservá-lo isento do senso comum. Considerava francamente as idéias de
mente e consciência dadas pelo senso comum como inimigas, talvez as mais poderosas inimigas
que a psicologia científica poderia enfrentar, O senso comum, explica ele, considera a mente
como "um boneco imaterial vivendo dentro da cabeça", uma espécie de homem
interno fantasmagórico que dirige as ações do homem visível exterior, e que, por sua vez, é
afetaddpelas experiências sofridas pelo homem externo. Isto, insiste Titchener, é o que
significa a idéia da mente dada pelo senso comum, quando apresentada abertamente, e ele
nunca se cansou de ridicularizar as inconsistências e absurdos dessa idéia. Contra a concepção
da mente como boneco, concepção esta completamente adversa, em sua opinião, a qualquer
compreensão verdadeira da psicologia, nunca cessou de combater.
7 Para evitar confusão, deveria talvez ser mencionado nesta altura que Titchener não seguiu
Külpe nas idéias que este último desenvolveu mais tarde no emprego da introspecção. É
provável que Titchener não tenha aceitado a interpretação dada por Külpe, baseado em seus
estudos introspectivos.
da maneira como o senso comum o faz, valendo-se das simpatias e interesses humanos,
simplesmente não existe. Da mesma forma impessoal e imparcial pela qual um físico estuda
um bloco descendo por um plano inclinado, o psicólogo estuda os processos mentais. É
verdade que os resultados da ciência podem ser utilizados na vida diária e podem assim
adquirir importância aos olhos do senso comum; porém, para a ciência como tal, os seus
valores são irrelevantes. Ninguém deve estar menos preocupado com interesses pessoais ou
particulares do que um psicólogo treinado que esteja tentando descobrir exatamente como
uma sensação difere de outra em qualidade, ou de que é feito um suposto pensamento sem
imagem.
De todos os pontos de vista, realmente. Titchener era a favor da psicologia pura em lugar da
aplicada. Assim como Wundt, ele estava interessado na "mente humana em geral" e não em
mentes ou diferenças individuais, que são assuntos de inegável importância nos afazeres
práticos da vida diária. É verdade que tanto Wundt como Titchener reconheceram
explicitamente que a psicologia pode incluir o estudo dos animais, das crianças, das sociedades e
dos loucos, porém, para ambos, os pontos de partida e final de referência eram sempre a
consciência do homem adulto, da qual o psicólogo tem ime-liata consciência. A psicologia pode
reunir seu material a partir de muitas fontes, porém o seu alvo é compreender a mente humana
em geral; compreender a mente, insistiu sempre Titchener, e não alterá-la ou
melhorá-la, ou tentar utilizá-la de qualquer forma. E isto é sintomático tanto de seus gostos
quanto de sua ascendência, pois num país que se inclina mais fortemente a valorizar o
conhecimento menos pelo seu valor intrínseco do que pelo que este pode realizar, Titchener
defendeu a idéia de que o único trabalho próprio ou adequado à verdadeira ciência é o estudo
desinteressado de sua matéria.
Para Titchener, pois, o objeto da psicologia é a consciência; não como o senso comum a
concebe, não como um boneco animando o corpo, nem como a substância de que são feitos
os espíritos, mas sim como "experiência que depende do organismo experienciante". Tal
experiência consiste de processos observáveis no mundo da natureza, livre dos interesses
humanos e separada das dificuldades práticas da vida diária. É algo que pode ser estudado da
mesma forma impessoal que a ciência adota comumente em relação ao seu material. Não está
ligada de nenhum modo ao sorenatural.
118
119
Nada poderia ser mais isento da nódoa do animismo do que a consciência que Titchener
inspeciona e analisa.
- e nada mais - para que um homem, suficientemente fiel aos dados da experiência, insistisse
em fazer inclusão dos fatos mentais e físicos e fosse suficientemente cônscio das reflexões
racionais para sentir-se desconcertado sem uma explicação sistemática. O fato de que ele não
argumentava sobre isto e de que pretendia apenas servir-se dela pela sua utilidade mostra
quão definidamente a psicologia se havia separado de sua base metafísica. Ele é quase
perfuntório na discussão deste tópico. É óbvio que achou todo este problema de muito menor
interesse do que as questões exclusivamente psicológicas, tal como se as imagens e as
sensações fossem diferentes em sua estrutura, ou existissem outros processos afetivos
primários além do prazer e do desprazer.
A questão dos métodos que a psicologia pode legitimamente empregar é um dos pontos
importantes do sistema de Titchener; e uma vez que o sistema é, às vezes, chamado de
introspeccionismo, basta dizer sem mais delongas que o método típico é a introspecção.
Porém, tal proceder seria tão errôneo como dizer sem comentar que a matéria estudada é a
colsciência. Porque neste caso novamente Titchener acha necessário indicar com grande
exatidão o que a ciência entende, e o que não, com essa palavra.
A introspecção, além disso, é uma espécie muito especial de observação. Por algum tempo,
muito se ouviu falar, na nova ciência, sobre o "introspeccionismo treinado". À medida que a
psicologia se tornou consciente de sua posição como ciência, tendeu fortemente a dar ênfase
à introspecção, de modo que, ao substituir a especulação pela observação, separou-se da
psicologia racional do passado pré-científico. Ao que parece, alguns dos psicólogos da época se
deliciaram com a posse de um método, técnico e esotérico, que distinguia a psicologia das
outras ciências, sem todavia excluí-la da ilustre comunidade científica. Insistiram, portanto,
que a introspecção não pode ser considerada de modo superficial. Salientaram a dificuldade em
observar os processos conscientes, os quais não se detêm para serem observados, que estão tão
emaranhados com outros processos conscientes que se torna difícil separar um deles para
exame, e se de fato devem ser vistos como na realidade são, exigem uma atitude que vai de
encontro aos hábitos de toda uma existência. Pois os hábitos comuns de observação
determinam que vejamos os objetos e fatos do senso comum e da vida diária, e não os
conteúdos da consciência. Ver a coisa em si, em lugar do conteúdo consciente, foi
posteriormente chamado de "erro de estímulo". Quando um indivíduo observa ingenuamente,
de acordo com o senso comum, vê, por exemplo, uma mesa; porém, se um introspeccionista
vê a mesa ao fazer uma observação científica da percepção que ele tem da mesma, estará
cometendo o erro de estímulo. Estará respondendo ao estrrnulo ao invés do processo cons
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Edna Heidbreder
Psicologiaa do Século XX
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com a empírica, e assim mantiveram a distinção que remonta à diferença entre Wundt e os
psicólogos do ato. O destaque dado por Titchener ao método experimental dispensa
comentários quando se recorda que nos Estados Unidos a própria expressão "psicologia
experimental" passou a significar, na mente de muitos, o tipo de psicologia que Titchener
aprovara.
físico, precisamente por ser independente do indivíduo que o percebe, não contém tais
lacunas e rupturas. Devido a isso e também porque as correntes mental e física fluem paralelas
uma à outra - torna-se possível observar quais os fatos físicos que normalmente acompanham
determinados processos mentais e assim atribuir a cada processo mental um lugar definido em
uma seqüência uniforme e contínua. É nesse sentido, mas somente nele, que a menção do
corpo esclarece os fatos mentais.
É importante observar que este método de explicação não significa que o sistema nervoso seja
indispensável à consciência ou que seja de qualquer forma mais real do que esta. Titchener
esclarece que o conhecimento do sistema nervoso não é em si psicologia; que nada acrescenta
aos elementos da psicologia, que são os conteúdos da consciência aberta à introspecção. A
psicologia, de fato, busca suas explicações fora do mundo de seu objeto próprio; porém, assim o
faz não porque o mundo físico seja mais verdadeiro ou mais fundamental, mas porque é mais
contínuo e mais intato do que o mundo revelado pela introspecção.
sensação, afecção e imagem. As sensações são definidas como sendo os elementos típicos das
percepções; verificam-se nas visões, nos sons, nos odores, nos paladares, nas "sensações"
musculares e do tato, e em outras semelhantes observações dos objetos físicos reais. As
imagens são os elementos característicos das idéias; aparecem nos processos mentais que
retratam, ou de certa forma representam, experiências não presentes atualmente, tais como as
lembranças do passado e as concepções do futuro. As afecções são os elementos
característicos da emoção; acham-se em experiências, tais como o amor e o ódio, na alegria e
tristeza. Titchener
Pascologias do ScuZo XX
125
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Edna Heidbreder
não está completamente seguro de que a sensação e a imagem pertençam a classes diferentes.
Chega a acreditar que a afecção tem muita semelhança com a sensação, o bastante para dar a
impressão de terem um "ascendente mental comum". Porém, em sentido global, prefere
encará-las separadamente e reconhecer três tipos de processos elementares - sensação,
imagem e sentimento.
Os elementos, na qualidade de processos mais simples a que a consciência pode ser reduzida,
são absolutamente simples, do ponto de vista da psicologia. Entretanto, possuem atributos. As
sensações e as imagens têm sempre pelo menos quatro atributos: qualidade, intensidade,
duração e clareza. A afecção tem os três primeiros, porém não possui o atributo de clareza.
A qualidade é definida como o atributo que distingue os processos elementares entre si. O frio,
o azul, o sal e o si bemol são exemplos. A intensidade é o atributo que coloca a percepção de
uma determinada qualidade em uma escala que vai do mais alto ao mais baixo grau de seu
tipo característico, o que torna possível dizer que uma sensação é mais forte ou mais fraca,
mais clara ou mais confusa, mais intensa ou mais débil do que outra. A duração é o atributo
que dá a um processo sua posição característica dentro do tempo
- a sua "ascensão, seu ponto de equilíbrio e seu declínio". O atributo de clareza determina o
lugar de um dado processo na consciência; se está próximo ou afastado do fato principal. Se for
claro, o processo predomina e é notório, como no caso dos sons que alguém ouve atentamente;
em caso contrário, desaparece em segundo plano, como acontece com os ruídos desconexos
qüe mal percebemos quando estamos absortos em uma tarefa interessante. A afecção,
entretanto, carece de clareza. É impossível fixarmo-nos diretamente sobre o prazer e o
desprazer; quando tentamos fazer isto, a própria qualidade da afecção desaparece. O prazer e o
desprazer são sentidos mais de perto quando atendemos às sensa'ções e às imagens com as
quais as próprias qualidades da afecção estão associadas.
Estes atributos, entretanto, não constituem uma lista exaustiva. Certos processos possuem
seus atributos próprios. A visão e o tato, por exemplo, possuem o atributo da extensão; estão
espalhados no espaço. Além disso, existem "atributos de segunda classe" formados pela
junção do dois ou mais atributos. Um desses é a "insistência" que Titchener encontra na
"penetrabilidade dos odores, tais como o da
Assim, torna-se evidente que os elementos com seus atributos são as unidades com as quais é
formada toda a estrutura psíquica. Os elementos, entretanto, não são unidades estáticas. São
processos; sua "essência é ser processo" (processence). Formam um mosaico, porém em
movimento, no qual são formados padrões intricados e fugazes. E contudo, no meio de toda
essa complexidade, existe um princípio simples de organização. Tudo que sucede na consciência
é redutível a três espécies de elementos e suas combinações. Evidentemente, uma
compreensão dos diferentes tipos de ele-. mentos torna-se o próximo passo no sentido de se
compreender a psicologia.
126
127
sobre assuntos, tais como estímulos terminal e limiar e diferenças mínimas perceptíveis, ao
invés dos Q. 1. (quociente intelectual) e I.M. (idade mental) que a expressão atualmente
sugere. As referências para leituras adicionais no fim dos capítulos são o ponto mais típico
deste livro. Cheio de títulos em alemão e com os grandes nomes da época, nos trazem à
memória de modo muito claro os dias produtivos, laboriosos e cheios de esperança, quando a
psicologia estava se impondo como ciência independente.
Pouco há que dizer sobre a imagem. No Text-book, é tratada num só parágrafo reduzido. A sua
grande semelhança com a sensação é aceita e mesmo ressaltada, porém sua "diferença em
contextura" - o fato de ser "mais tênue, vaporosa e transparente" - constitui a base para o seu
reconhecimento como um processo elementar diferente daquela.
A afecção é tratada em maior extensão do que a imagem, porém não tanto quanto a sensação.
Os processos da afecção representam um dos campos mais confusos e controvertidos em toda
a psicologia, e ninguém estava mais a par do que Titchener das dificuldades do assunto.
Estabeleceu, entretanto, sua posição com clareza típica. "A afecção", insistia sempre, "não é
sensação". Difere dela em parte porque lhe falta o atributo de clareza, e também porque suas
duas qualidades básicas, o prazer e o desprazer, não são somente diferentes uma da outra,
como também são opostas; são "incompatíveis" na consciência, ao contrário das sensações de
vermelho e azul, por exemplo. As qualidades elementares da afecção são o prazer e o
desprazer, e são as únicas. Titchener tinha essa opinião, contrária à teoria tridimensional dos
sentimentos de Wundt, pela qual "o sentimento movimenta-se primeiro entre os pólos opostos
do prazer e do desprazer; em segundo, entre os pólos opostos do excitamento e da depressão;
em terceiro, entre a tensão e o relaxamento". Após uma consideração detalhada desta teoria,
Titchener rejeitou-a sob a alegação de que não está construída de forma lógica e que não é
apoiada pela evidência dos fatos. A idéia de Titchener sobre a afecção levou-o, também, a
rejeitar a teoria das emoções de James-Lange, que diz ser a emoção a soma total das sensações
estabelecida pela agitação corporal que se origina em certas situações excitantes. A emoção
reduz-se, portanto, à sensação, principalmente à orgânica. Embora Titchener admitisse que a
sensação orgânica está presente na emoção, que é uma parte importante da experiência
emocional em seu todo, não acredi L
tava ser possível desprezar o elemento sentimental. A sensação orgânica, dizia, é simplesmente
orgânica e muito diferente da afecção em si. Não pode ser responsável pelo prazer e desprazer
em si, e estas são as qualidades que dão o seu tom característico à experiência emocional. Os
processos da afecção em si não são redutíveis a nada mais. O prazer e o desprazer são
elementos conscientes, relacionados com as sensações e as imagens.
A partir desses elementos - sensação, imagem e afecção - forma-se toda a estrutura da vida
psíquica; e nesta idéia está incluído o plano geral, o esquema arquitetônico básico do sistema
como um todo. O próprio esquema é simples ao extremo - isto é, em sua concepção geral; os
detalhes concretos são muitas vezes de enorme complexidade. A afirmação básica é a de que
de alguma forma os estados de consciência mais complexos são sempre formados a partir de
processos elementares, isto é, que as diferentes combinações dos elementos, reunidos em
diversos graus de intimidade, constituem experiências conscientes, tais como a percepção, a
imaginação, a emoção e o pensamento. Às vezes, as combinações são muito estreitas, como
acontece na fusão da nota fundamental e os sobretons em um som musical; outras vezes, as
ligações são menos íntimas, como na percepção de uma melodia que é um padrão, ao mesmo
tempo qualitativo e temporal; e, às vezes, a associação é muito fraca, como na lembrança do
nome de uma melodia que está sendo executada. Porém, os estados mais complexos são
sempre, até certo ponto, composições de elementos; e a tarefa da psicologia é de mostrar
como os processos mentais mais elevados podem ser assim explicados.
No limiar desta tarefa, encontra-se o problema da atenção. O modo de Titchener tratar este
problema é bastante característico, revelando distintamente os traços "estruturais" de sua
psicologia. No caso da atenção, mais do que em qualquer outro processo mental, parece haver
algo realmente em ação, daí a origem do "poder da atenção" da psicologia popular, e a
"faculdade da atenção" da psicologia pré-científica. Porém, na psicologia de Titchener não há
lugar para "poderes" e "faculdades" nem, por esse motivo, para "ações" e "funções" das escolas
rivais da época. Em suas mãos, a própria atenção torna-se uma questão de conteúdo; e a
introspecção é consultada de modo natural, a fim de descobrir a sua natureza. A consciência
atenta típica, na sua opinião, tem como traço característico um arranjo de conteúdos cons
128
Edna Heidbreder
Pstcologiczs do Século XX
129
cientes de tal modo que os observados estão em primeiro plano. No estado de atenção, a
consciência admite um foco e urna margem, sendo a diferença essencial entre ambos uma
questão de clareza. A atenção é, pois, essencialmente clareza, e referindo-se a um atributo da
sensação e da imagem, Titchener é capaz de descrever a atenção sem recorrer a "forças" e
"ações", sem precisar de nada que não esteja dado nos elementos e seus atributos, e assim
descrevê-la toda como um conteúdo. Em resumo, a atenção é uma padronização da
consciência. Esta idéia remonta ao conceito de apercepção de Wundt. De acordo com ele, a
consciência não é disposta de modo uniforme sobre todo o seu campo. Existe um foco, no qual
os processos são apercebidos, dentro de um campo total que inclui o alcance integral da
consciência. É este o padrão wundtiano, esta disposição em foco e margem, que Titchener
adota para explicar a atenção. Quanto à sua natureza exata, ele não está inteiramente certo,
mas não duvida que seja um padrão. De um modo geral, tende a acreditar que o padrão tem
dois níveis, com uma diferença bem def inida entre o nível de clareza e o de obscuridade.
Considera a possibilidade de haver um obscurecimento gradual do foco para a margem, mas em
seu todo apóia aquelia que tem dois níveis principais e sugere que onde houver mais graus de
clareza, trata-se de diferenças existentes entre um dos dois níveis principais, "ranhuras" nas
suas superfícies e nada mais. Do ponto de vista do sistema em seu todo, entretanto, o ponto
importante é o reconhecimento da atenção como um arranjo - como conteúdo e clareza - sem
recorrer a nada que os elementos não possam suprir; isto é, sem referência a nada que não seja
"estrutural". Esse ponto é significativo porque a atenção, que mais do que qualquer outro
processo mental parece fazer realmente alguma coisa, tem grande probabilidade de escapar
dos limites do conteúdo.
Com a mesma consistência, Titchener trata de outros processos mentais. O problema difícil do
significado, por exemplo, ele reduz a uma questão de contexto. Psicologicamente, o significado
de um processo mental é a reunião de processos na qual estes permanecem; nada mais do
que isso. Por exemplo, uma percepção significa perigo se ocorrer num contexto de sensações
cinestésicas que acompanham a tendência para fugir de processos orgânicos e emocionais que
caracterizam o medo. Assim o significado, como a atenção, pode ser descrito como conteúdo.
Assim pode ser também a emoção, que é um processo transitório, "iniciado de re pente"
130
Edna Heü1breder
Psicologuzs do Século XX
131
principal; apesar da cuidadosa explicação das razões pró e contra; apesar dos repetidos
lembretes de que a psicologia é incompleta, que não pode fazer afirmações em forma
dogmática, que suas conclusões devem estar prontas a ser modificadas pela evidência dos
fatos de que ela tanto necessita; a despeito de tudo isso, o plano geral é inconfundível. A
imperfeição da psicologia é admitida continuamente, mas não com a implicação de que o
projeto principal seria alterado. As experiências futuras preencherão as lacunas do
conhecimento e resolverão pontos controversos, porém o plano de ataque é conhecido. O
Text-book finaliza com uma nota confidencial. "O método experimental, tendo conquistado
todo o domínio da natureza e da vida, está impulsionando, para as maiores alturas da mente, o
próprio pensamento. Não é preciso ter o dom da profecia para predizer que a primeira metade
deste século marcará época na história da psicologia científica." E não é necessário ser
adivinho para suspeitar que, segundo Titchener, estes progressos que fazem época não
exigirão alterações profundas nas concepções básicas de seu sistema.
Isso se aplica mais ao que o sistema é. É importante observar, também, o que ele não é. Até o
fim, Titchener se absteve de consagrar ao trabalho, com os testes de inteligência, um
empreendimento que os psicólogos americanos, com seu interesse prático pelas diferenças
individuais, haviam prontamente adotado. A psicologia aplicada, outra empresa que os
psicólogos americanos estavam desenvolvendo com energia e entusiasmo, também ficou fora
de seu âmbito. E, ao que parece, Titchener nem ao menos cogitou em incluir na sua psicologia
geral, o que McDougall chamara de "fragmentos de psicologia anormal", materiais que estão
enconttando aceitação em muitos cursos de psicologia geral, e que exercem grande atração
sobre os jovens perturbados. Também se opunha à teoria das emoções de James-Lange, que
considerava a emoção, sem reconhecer um elemento emocional específico. Era, também,
inteiramente contrário ao movimento do pensamento sem imagem, que lançou dúvidas
quanto à interpretação do pensamento sob o ponto de vista das sensações, imagens e
conteúdos conscientes em geral, e que utilizou um método de introspecção 12 não ortodoxo,
para não dizer pior. E conclui-se que fez oposição às escolas
12 Já no fim de sua vida, Titchener demonstrou grande interesse pela fenomenologia, porém
não fez nenhuma declaração definida de mudança de opinião em relação a este assunto.
A psicologia de Titchener exerceu, de fato, a sua maior influência nos Estados Unidos, como
concepção bem definida e como atitude positiva. Era um método com forma e código
definidos. Pura, mas enérgica, desinteressada de propósitos, conscientemente exata,
sobressaía visivelmente como ponto de referência fixo e inconfundível no panorama
rapidamente cambiante da psicologia norte-americana.
Porém, apesar de toda a sua força e lealdade, Titchener não podia deter a marcha do tempo.
Novas psicologias, de vários graus de heterodoxia, surgiam em toda parte à sua volta. Em
Colúmbia, Cattell estimulava constantemente o estudo das diferenças individuais, e afirmava
abertamente que a maioria dos estudos realizados em seu laboratório poderiam dispensar a
colaboração do introspeccionista treinado. Thorndike, também em Colúmbia, fez experiências
com animais e escolares, preferindo reconhecidamente pesquisas em larga escala que tratam
de milhares de casos em lugar das observações minuciosas de alguns psicólogos treinados. Em
Chicago, desenvolveu-se um novo movimento conhecido como funcionalismo, uma escola que
tratava os processos mentais como funções dos organismos vivos. Para Titchener, tal idéia
sobre a psicologia significava um desvio cômodo na direção do senso comum, em contraste com
os modos de pensar científicos, uma fuga às exigências da psicologia rigorosamente
experimental, e um namoro perigoso com a teleologia; significava uma confusão entre a ciência
e a tecnologia, por um lado, e a filosofia, por outro. Considerava a mesma como o tipo de
psicologia representada por Brentano, um modo de pensar que se opunha geralmente à
verdadeira psi13 A posição de Titchener quanto ao funcionalismo pode ser encontrada em seu
artigo "Postulates of a Structural Psychology" PkUosoiical Review (1898). 7. 449-465. e em
"Structural and Functlonal PgycholOgy", ibid. (1899), 8, 290-297. Sua réplica à proclamação do
behaviorlsmo de Watson foi dada num trabalho intitulado 0n Psychology as the Behavlorist
Vlews It' ", Proceedings o! t1e Ameri.can Philosophtcal Bociety, 53, 1-17.
132
133
O trabalho dos que eram favoráveis ao "pensamento sem imagem" era especialmente
inquietante, porque neste caso havia homens, alguns dos quais educados na escola a que
pertencia, proclamando descobertas que faziam a psicologia da época parecer inadequada.
Külpe e seus discípulos na Alemanha, Binet na França, e Woodworth nos Estados Unidos
haviam, em separado e quase ao mesmo tempo, apresentado provas indicativas de que o
pensamento não é uma questão de imagens e sensações, como se havia pensado. Os seus
estudos, baseados no exame direto de vários processos do pensamento, mostravam que o
pensamento pode produzir-se, às vezes, sem qualquer conteúdo de imagem ou sensação
observável, e o que pode ser notado nessas ocasiões consiste quase sempre de atitudes ou
"estados de consciência" geralmente imprecisos e impossíveis de ser analisados e bem diversos
dos esperados "conteúdos" conscientes. Alguns autores sugeriram que devia ser incluído um
elemento do pensamento. Titchener não podia aceitar este ponto de vista. Acreditava que os
estados de consciência "não analisáveis" simplesmente não podiam ser analisados; e baseado
em suas próprias introspecções e em estudos feitos em seu laboratório, achava que estes
"estados de consciência", "sentimentos de relação" e "pensamentos sem imagem" eram, de
fato, complexos de sensações e imagens cinestésicas facilmente omitidas,
as quais representam as atitudes motoras na consciência. Dessa forma, incorporou esta
descoberta ao seu sistema, sem alterá-lo: o pensamento consciente, embora ainda continuasse
sendo uma questão dé imagens e sensações, continha faixas onde os conteúdos eram em
grande parte cinestésicos; reconheceu também "disposições motoras" e "tendências
determinantes" que não possuem acompanhamento consciente. Porém, embora Titchener
tenha assim, de certo modo, superado esta dificuldade, muitos psicólogos acreditavam que o
fato importante no movimento do pensamento sem imagem era o de que, mesmo no
pensamento, a atividade motora e as bases nervosas parecem ser de máxima importância, e
que a introspecção pode não dar as indicações mais apropriadas com relação ao que está
realmente acontecendo.
Seja qual for o motivo, a influência de Titchener e aparentemente o próprio grau de seu
interesse em psicologia diminuíram durante a última década de sua vida. Istava nessa época
trabalhando em sua obra Prole gomena, um livro que, feito com a intenção d ser uma
exposição final dos princípios básicos de seu método, iria ser o seu magnum opus. Porém, o
trabalho permaneceu inacabado devido à sua morte, e os quatro capítulos terminados,
formando uma exposição ainda mais completa que as suas primeiras conclusões daquilo que
considerava como princípios fundamentais da psicologia, não contêm nada de novo. Era quase
como se a psicologia, como a concebia, fosse inadequada para manter capacidade de trabalho
do homem que havia labutado tão conscienciosamente a seu favor. Passou a estudar moedas
antigas e com honestidade típica tornou-se perito no assunto. Tendo-se dedicado a uma das
aventuras mais recentes do pensamento humano, passou os últimos anos de sua vida, embora
não fosse um velho, absorto com as relíquias de civilizações extintas.
Porém, sejam quais forem as oposições internas e externas por ele encontradas, Titchener
combateu-as a ponto de produzir um grande..volume de trabalho. Em diversas épocas de sua
carreira, escreveu quatro dos livros didáticos mais famosos de seu tempo, An Outline of
Psychology, Primer of Psychology, Text-book of Psychology e Beginner's Psychology. Destes, o
Text-book é de primordial importância porque encerra a apresentação mais bem elaborada de
seu método, em sentido global. O seu livro Expeimental Psychology: A Manual for Laboratory
Practice é geralmente considerado sua maior realização isolada. Compõe-se de quatro volumes,
dois sobre experiências qualitativas e dois sobre quantitativas, um manual para o aluno e outro
para o instrutor, em cada conjunto. Este trabalho, um monumento à erudição do seu autor, é
muitas vezes citado como uma espécie de evidência documentada a favor da existência real de
uma ciência psicológica experimental. O livro Psychology
14 Titchener faleceu a 3 de agosto de 1927, vitima de um tumor cerebral. porém não houve
indicação de qualquer diminuição em sua capacidade intelectual.
1J4
of Feeling and Attention e o Experimental Psycholotjy of the HiQher Thought Processes expõem
a sua maneira característica, tanto conscienciosa quanto autoritária, de lidar com grandes
quantidades de provas interligadas de forma intricada a respeito de assuntos altamente
controvertidos. Além de seus livros, escreveu rtumerosos artigos, polêmicos ou não, e por meio
de sua influência sobre os estudantes e seus trabalhc(s, e rios debates sobre psicologia em geral,
desempenhou um papel preponderante na formação da psicologia nos Estados Unidos.
Não há dúvida de que o capítulo que Titchener escreveu sobre a psicologia norte-americana é
importante. Talvez a sua maior realização tenha sido submeter o método por ele representado a
um teste completo. Esta afirmação faz referência não somente à sua exposição sistemática
pessoal, mas também ao tipo geral de psicologia que seu método representava para aquela
psicologia que era "experimental" em sentido restrito, resultado de movimentos científicos
específicos que culminaram nos laboratórios alemães. Mesmo para Titchener, este tipo de
psicologia era a psicologia científica. Em sua essência, era uma tentativa para estudar, não pelas
indagações da filosofia, nem pelos instrumentos toscos do senso comum, mas sim pela
observação precisa e pela experiência, os fenômenos da consciência. Foi salientado no início
deste capítulo que este era quase de modo inevitável o passo seguinte que a ciência deveria dar.
Tendo ela revelado em primeiro lugar as peculiaridades da matéria inorgânica, depois dos
corpos vivos, iria agora revelar aquelas dos procesos mentais. E desde que essa probabilidade se
apresentou tão a propósito, era desejável que fosse sincera- mente testada. Ninguém poderia
melhor revelar as experiências da nova psicologia do que alguém que a aceitara com bastante fé
e a tratara o mais seriamente possível. Se a psicologia na forma em que Titchener a interpretava
não pudesse se manter nos Estados Unidos sob a liderança de uni homem com
sua habilidade; se, com o prestígio da prioridade e o de uma honrosa tradição acadêmica, ela
não se pudesse estabelecer como a base da futura psicologia e assimilar os futuros
desenvolvimentos - este próprio fato seria significativo. E ter revelado isto já não foi fácil. Se a
psicologia como Titchener a definia e dirigia nada mais tivesse feito que revelar suas próprias
deficiências, ao ampliar ao máximo suas forças e pretensões, ainda assim a tentativa teria
valido a pena. Haver mostrado por seu próprio exem plo
por meio de uma experiência completa, corajosa e definida, que a psicologia científica, como
fora concebida de início, era inadequada às exigências de seu material de estudo, já era
prestar honroso serviço a uma ciência em evolução.
É fora de dúvida que a escola fez importantes contribuições à psicologia. É simples realidade
histórica que o tipo de psicologia ensinada por Titchener, empreendimento que se concentrou
nos laboratórios alemães, foi o primeiro a conseguir para a psicologia o reconhecimento como
ciência. E é também verdade que esta disciplina, importada da Alemanha, foi um dos meios
pelo qual a psicologia norte-americana fez a transição da filosofia mental para a ciência,
aprendendo a confiar menos na especulação e mais na observação, a estar menos preocupada
com valores éticos ou de outra espécie, e a prestar mais atenção aos fatos como tais. Além
disso, o método preconizado pela nova psicologia era justificado pelos estudos cuidadosos
provenientes dos laboratórios. Em sensação e percepção, tinha a seu favor eminentes
realizações; fez algum progresso ao explorar os processos emocionais; até certo ponto
penetrou mesmo nos campos difíceis da memória, pensamento e vontade. Todavia, a
psicologia experimental, como Titchener a entendia, não permaneceu como sendo (1
psicologia científica nos Estados Unidos:
Talvez o motivo principal para este estado de coisas estivesse na paixão pela precisão
sistemática que caracterizava a escola titcheneriana. Por seu próprio desvelo em ser científica
estabeleceu limitações que cercearam o seu desenvolvimento. Tendo definido certos materiais
e métodos como cientificamente exatos, limitou-se a problemas dentro do escopo dessas
definições. Porém, a curiosidade, mesmo a científica, começa com situações concretas e não
com definições exatas; e se for ativa e verdadeira, não será dominada por definições. Se existe
um desejo forte e verdadeiro para saber, por exemplo, como os seres humanos agem e por que,
e se essas perguntas vão além dos limites impostos por um determinado código científico
- em pesquisas sobre músculos e glândulas, por exemplo, ou sobre o comportamento animal,
ou diferenças individuais, ou ainda sobre as funções e utilidade das atividades mentais - a
curiosidade legítima não será barrada pela afirmação de que seu interesse não é científico.
Embora a pergunta seja feita de modo im
136
157
-americana em geral.
pura como essa deveria ser estéril; e que as exposições sistemáticas atuais não devem ser
levadas tão a sério a ponto de excluir problemas importantes que não estão preparadas para
enfrentar. É verdade que muitas das objeções podiam ser refutadas por argumentos lógicos
pelos titchenerianos; outras, sem importância devido à maneira como foram estabelecidas, em
nada a modificaram ou abalaram. Porém, foi contra o sistema, pera maneira com que realizava
os seus empreendimentos e pelas suas rejeições diligentes, que as psicologias mais recentes se
opuseram em protestos sucessivos, e não simplesmente pelo que pudesse estar declarado ou
definido em seus escritos.
E, no entanto, o movimento que Titchener dirigiu nos Estados Unidos representa uma
realização definida no sentido de tornar a psicologia uma ciência. À medida que sua matéria era
algo realmente presente na experiência, e até o ponto em que sua pureza chamou a atenção
mais para os fatos do que para os valores, a psicologia de Titchener assinalou um verdadeiro
progresso em direção ao ponto de vista científico. Se levou muito a sério suas definições e
rejeições, assim o fez numa tentativa de firmar-se como um empreendimento diferente do
senso comum, da tecnologia e da metafísica. Se tentou, sem êxito, colocar toda psicologia
dentro do seu molde - ou melhor, afirmar que coincidiam os seus limites com os da verdadeira
psicologia - o seu fracasso demonstrou tanto as possibilidades quanto as limitações de seus
princípios. Não resta dúvida que a psicologia de Titchener desempenhou um papel
preponderante no desenvolvimento da psicologia norte-americana, não somente como
realização eminente e duradoura, mas também como fracasso heróico e esclarecedor.
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II
INJ este ínterim, houve William James. De certo modo, James tanto precede como segue
Titchener na psicologia norte-americana. Era vinte cinco anos mais velho que Titchener;
publicou o livro The Principies of Psycho(ogy, sua maior obra, em 1890, dois anos antes de
Titchener ingressar em Comeu e faleceu em 1910, quando a influência daquele estava em seu
apogeu. Entretanto, os dois são responsáveis por influências que eram mais paralelas do que
sucessivas e que, realmente, nunca se encontraram.
Os ensinamentos de William James indiscutivelmente remontam mais ao passado do que os de
Titchener, ou seja, à antiga psicologia metafísica que este abandona completamente; mas, ao
que parece, estão destinados a se prolongar mais além no futuro, porque continuam a
prosperar com um vigor e um viço que os torna importantes em face dos novos problemas. A
psicologia de James é a de transição:
mostra os sinais da metafísica, porém, é um movimento orientado para a ciência. Pois James,
menos preocupado com a exatidão rigorosa do que em compreender o material que estudava,
desviou-se em suas pesquisas em direção à experiência concreta tanto em relação às sugestões
quanto à evidência. Enquanto Titchener estava concentrado principalmente em fazer da nova
psicologia uma ciência, James se interessava mais em que a nova ciência fosse psicologia.
i! impossível situar William James em qualquer das linhas bem definidas do desenvolvimento
psicológico em curso na sua época. Não era nem fundador nem adepto de qualquer escola.
Antes de tudo era um indivíduo, e foi como tal que exerceu sua influência na psicologia.
Embora se tor
140
Psicologias do Século XX
Edna Heidbreder
141
nasse absorto num movimento, embora se entusiasmasse pela sua importância, nunca se
deixou subjugar por ele; permanecia sempre ele mesmo; estava bem atento a todos os
empreendimentos psicológicos em progresso no seu tempo - sempre interessado e, por vezes,
simpatizante, satisfeito, crítico e admirador. Fazia a escolha e elogiava, rejeitava e aceitava,
porém, nunca se desorientou, tanto em seus entusiasmos quanto em suas antipatias. Todavia,
não era de nenhuma forma indiferente. Encontrava-se no centro da jovem psicologia
turbulenta e revoltada, mas nunca perdeu sua individualidade e sua indepeidência.
A relação entre William James e a nova psicologia experimental da escola wundtiana é bem
característica dessa atitude. Para a maioria dos psicólogos de sua época, a psicologia
experimental aprovada por Wundt era, de certa forma, decisiva. Tanto os adeptos quanto os
dissidentes eram levados pela torrente de seu pensamento. Mesmo homens como Brentano e
Stumpf recebem parte de sua importância, de sua relação com ele, e suas posições são
significativas com referência a esse pensamento. É a psicologia com a qual as suas opiniões são
comparadas e postas em confronto. Porém, tais afirmações dificilmente podem ser feitas com
relação a James. Seu pensamento desenvolveu-se independentemente da nova psicologia
experimental, inteirou-se completamente dela, retirou certas partes, acrescentou e assimilou
grandes porções da mesma; mas não foi modificado por ela. Há um quê de isolamento ianque
na psicologia de James, e mais do que um pouco do espírito de independência ianque em sua
recusa jovial a sucumbir aos apelos da fama.
Atitude idêntica assinala suas relações com as outras escolas - em especial ao associacionismo
britânico e à psiquiatria francesa. As páginas do livro The Principies estão repletas de nomes de
autores britânicos e juncadas de expressões de gratidão pelas suas observações e opiniões.
Entretanto, James não escreveu segundo a tradição britânica; e decididamente não era
associacionista. Com esse mesmo espírito de aprovação, bastante entusiasta, porém imparcial,
tratou da obra dos psiquiatras franceses. Acreditava que ao tratarem com as personalidades
psicopáticas, especialmente por seu trabalho com a dissociação e a personalidade múltipla,
estavam fazendo descobertas da máxima importância; estava bastante convencido de que a
sicologia dos doentes tem muito a contribuir para a psicologia em geral. Porém, embora
mergulhasse no estudo dos casos dos anor mai
e dos quase normais, nunca limitou sua atenção a tais problemas. Novamente mostrou aquela
mistura de compreensão e independência, que o fizeram ao mesmo tempo o mais universal e o
mais individual dos psicólogos.
Existe, realmente, algo da mesma atitude independente na forma de William James tratar a
psicologia como um todo. Ele equipara-se aos grandes psicólogos - alguns o colocam em
primeiro lugar - todavia mesmo como profissão, a psicologia não o ocupou de forma exclusiva.
Iniciou sua carreira, deve ser lembrado, não como psicólogo, mas como biólogo e foi quando
ensinava anatomia na escola de medicina de Harvard que reservou lugar em seu laboratório
para experiências psicológicas, e assim iniciou quase por acaso o primeiro laboratório
psicológico. A mudança definitiva de seu interesse em direção à psicologia deu-se em 1878,
quando começou a escrever The Principies of Psychoiogy, trabalho que o ocupou por doze anos.
Durante este tempo, entretanto, interessou-se pela filosofia; ou melhor, a filosofia, que o havia
atraído desde tenra idade, reclamava cada vez mais sua atenção. Como é natural, os seus
cargos oficiais em Harvard não correspondiam exatamente aos seus diversos interesses.
Quando era instrutor de anatomia em Harvard, realizava experiências psicológicas. Quando
trabalhava em seu livro The Principies of Psychology, foi nomeado professor de filosofia. Um
ano antes do The Principies ser publicado, seu cargo foi mudado para professor de psicologia;
mas, nessa altura, seu interesse havia mudado tão completamente para a filosofia que o seu
cargo voltou a ser professor de filosofia. Não há dúvida de que após publicar The Principies
deixou de se interessar pela psicologia. Todas as perguntas merecedoras de resposta, dizia,
estavam na filosofia. Para ele, a psicologia havia sido uma fase. Embora fosse uma das
influências mais poderosas na formação da nova ciência da psicologia, e embora durante algum
tempo a tivesse servido bem e com ardor, ao final chamou-a de "cienciazinha irritante".
Não é de admirar, portanto, que William James seja, às vezes, embaraçoso para alguns
psicólogos. É reconhecido como um dos maiores entre seus pares, entretanto, violou
abertamente algumas de suas maiores proibições; vagueou por campos de pesquisa
considerados suspeitos - na região dúbia da pesquisa psíquica, por exemplo, a qual foi sempre
considerada um tanto desacreditada. James nunca se deixou intimidar pelos tabus acadêmicos.
Se desejava investi-
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Edna Heidbredcr
P8wologias do Século XX
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gar a possibilidade de comunicação com o mundo dos espíritos, assim o fazia; se se sentisse
impelido para debater de espontânea vontade um capítulo sobre a atenção, seguia seu impulso;
e ao deparar com um problema para o qual não havia ainda dados estatísticos ou experiências
definitivas, não recuava prudentemente da especulação. Costumava observar com perspicácia,
e depois opinava ao sabor da evidência disponível, confiando em seu intelecto para preencher
as lacunas - às vezes muito grandes - e compreender o porquê da situação da melhor forma
possível. Pela adoção deste método, possuía um modo de desenvolver concepções, tal como a
teoria de James-Lange das emoções, que foram de grandq valor para a pesquisa. Sabia também
de certo modo prever as futuras descobertas; seu capítulo sobre os fluxos de pensamento
contém excelentes descrições dos "pensamentos sem imagem" posteriormente descobertos
nas experiências psicológicas. E, apesar deste hábito, James não poderia ser acusado de
manejar incorretamente os fatos. Admitia um fato como tal e a indagação também, e embora
muitas vezes tivesse desobedecido às restrições específicas da ciência da época, era
essencialmente possuidor de mentalidade científica. Qualquer que fosse a matéria de estudo,
atirava-se à mesma em busca de fatos inéditos e com um dom para a observação fiel que os
mais austeros cientistas reconheceram. Mas, sabia também ficar do lado certo em um problema
que a ciência não podia resolver. Era tão sensível aos desejos e esperanças da humanidade que
não podia deixar de lhes dar uma oportunidade.
-se em seu pensamento, e seus escritos trazem a marca inconfundível de seu temperamento.
Porém, isto não quer dizer que seu pensamento fosse assoberbado pela emoção. Ninguém
poderia reconhecer com maior segurança do que James a diferença entre o intelecto e a
emoção, ou entre um fato e sua escolha. Foi, realmente, a percepção da diferença, e não uma
dúvida sobre a mesma, que o fez tão convicto no reconhecimento do papel do temperamento e
das inclinações nas atividades intelectuais. Sua lealdade para com os fatos o fez reconhecer este
entre outros, porém, tornou também impossível para ele concordar com as pretensões do
intelecto quanto a um raciocínio puro e absoluto.
Não é fácil descrever a personalidade de William James. Talvez o melhor como ponto de
partida seja a sua posição sobre este mesmo assunto do papel exercido pelo intelecto
nos afazeres humanos. Na questão do intelectualismo versus empirismo, James era a favor do
segundo contra o primeiro, colocando o assunto em termos de um contraste absoluto. Tinha
plena convicção de que a experiência pode servir de ponto de partida e de verificação do
pensamento. Esta crença aparece em sua filosofia bem como em sua psicologia, pois a atração
para o imediatismo situa-se tanto na base de sua lógica quanto de sua metafísica - do
pragmatismo e do empirismo radical; e embora a publicação do The Principies antecedesse a
elaboração dessas teorias, as tendências que elas representam estavam presentes com
evidência em seu pensamento psicológico. Devido a motivos relacionados com este mesmo
ponto de vista, James opunha-se ao determinismo em contraste com o livre arbítrio; tinha
propensão para confiar no sentimento imediato de que a atenção e a vontade efetivamente
decidem algo, e que a vida humana não é o "arrastar penoso de uma corrente". Reconhecia o
determinismo como uma simplificação bastante conveniente do universo e, portanto, como um
instrumento que exerce grande atração sobre o intelecto. Porém, para James o intelecto,
apenas um dos muitos fenômenos em um mundo complexo, não tinha o direito de impor suas
exigências sobre o caráter da realidade em geral. Considerava-o como uma das muitas formas
do homem tratar com o seu meio ambiente; mas reconhecia o mesmo como um entre muitos e
que possuía um lugar delimitado e definido na natureza humana como um todo. Sua recusa em
aceitar as pretensões do intelecto muito a sério - em particular se se tratava da expressão de
opiniões acadêmicas oficialmente aceitas - o fez muitas vezes o campeão das causas
perdidas contra a firme honorabilidade intelectual de sua época. Achava que nada que surgisse
como possibilidade deveria ser abandonado sem lhe dar atenção. Santayana, um de seus
colegas de filosofia em Harvard, pronunciou-se a seu respeito, nos seguintes termos:
"A filosofia era para ele como a constituição polonesa; bastava um só voto contra a maioria
para que uma lei não fosse aprovada. A abstenção de julgar que se impusera como um dever,
tornou-se quase uma necessidade. Acho que ficaria deprimido se precisasse confessar que
alguma questão importante havia sido resolvida por completo. Teria ainda esperado que algo
surgisse de outra parte, como se fosse um carrasco da ciência, prestes a executar um pobre
condenado e que estivesse almejando a chegada repentina de urna testemunha inesperada,
trazendo provas da inocência do réu."'
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Psicologas do Século XX
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- era talvez a sua maior preocupação. Parecia impulsionado pelo desejo de ser fiel para com
todos e este desejo se revela não só em suas relações com os outros - seus colegas, discípulos
e amigos - como também ao tratar com idéias.
Pois a atitude de James em relação às idéias é, acima de tudo, democrática. Recebe-as com
cortesia, trata-as com interesse, realmente inclinado em conhecê-las tais quais são. Não pode
aceitá-las todas, não pretende gostar de todas, porém, está decidido a examiná-las
indiscriminadamente; e quando rejeita as que deve rejeitar, abandona-as às vezes quase com
pesar, com pleno conhecimento do poder e da fraqueza dessas idéias. Tem a mesma maneira
cativante de tratar com todos em termos de igualdade, inclusive com os leitores de suas obras.
Admite de forma lisonjeira que o leitor é seu igual no intelecto e que o leitor, o autor, os
doutos cientistas cujas idéias estão sendo debatidas, estão todos empenhados na tarefa comum
de tentar atingir o âmago de qualquer assunto absorvente que esteja sendo considerado. Por
serem todos iguais, é possível ser ao mesmo tempo generoso e severo. Numa sociedade onde
todos são iguais, ninguém precisa ter excesso de consideração com respeito às suscetibilidades
dos outros. A todos podemos pedir satisfações, porque todos podem se defender. O caráter da
obra polêmica de James é o de justiça entre iguais, de imparcialidade
no plano intelectual. Por esse motivo, James, como se tem afirmado muitas vezes, pode expor a
posição de um adversário melhor do que ele próprio; e, pela mesma razão, pode criticá-lo com
inexorável meticulosidade. Na crítica, como em tudo o mais, sua minuciosidade obriga-o a
empenhar-se ao máximo. Dá ao inimigo a honra de exercer todo o seu poderio contra ele.
Talvez a eficiência com que James trata determinado assunto, exija uma palavra de
observação, principalmente porque a fluidez e o viço de seu estilo, às vezes, dão a impressão
de que suas opiniões não são bem fundamentadas. Suas rápidas caracterizações, suas visões
vivamente esclare cedoras
seus rompantes, tudo dá a idéia de alguma coisa correndo a alta velocidade, dirigida somente
pelo impulso do momento; porém, nenhuma outra impressão poderia estar mais distante da
realidade. Os trabalhos de James são perfeitamente exatos. Era de um escrúpulo excessivo a
esse reBpeito. Guardava os seus manuscritos e os burilava, recusando entregá-los até que
dissessem exatamente o que deviam. Sempre se ressentiu da crítica de que seus escritos não
eram cuidadosamente planejados. Apesar de todo o seu prazer nas inspirações do momento,
não poupava esforços, quer trabalhando com grandes quantidades de fatos materiais
enfadonhos, quer acompanhando longas séries de argumentos e especulações que
considerava pretensiosos e inúteis. Apesar de sentir que grande parte do trabalho dos
laboratórios alemães era de penosa futilidade - costumava chamar algumas de suas
dissertações de "elaborações do óbvio" - tornou-se um especialista neste ramo da literatura
psicológica. Quem quer que examine as notas do livro The Principies verá quão profundamente
James dominava a psicologia de sua época; e quem examinar as partes
controvertidas de seu livro - seu exame da teoria do autômato, a da substância da alma, o livre
arbítrio, e as localizações cerebrais - verá quão meticulosamente examinava as hipóteses
sugeridas pelos outros pontos de vista além do seu. Há uma exatidão surpreendente na obra de
James, que sem dúvida se relaciona com o fato dc ter achado difícil aceitar qualquer coisa que
não fosse provada e definitiva. Sua tolerância, sua perfeição, sua exatidão e sua alta seriedade
constituem partes de sua personalidade complexa tanto quanto a sua vivacidade e agudeza.
Em suas relações pessoais diretas, James era tão eficiente quanto em seus escritos. Suas
Letters 2 mostram quantos pontos de contato manteve com seus amigos; e essa
correspondência revela também o objetivo de seus interesses. Seus discípulos achavam-no
extraordinariamente encoraja- dor. Em sua sala de aula, como em seus livros, admitia um
convívio sem distinção entre os alunos. Não estava habituado a fazer preleções solenes e,
muitas vezes, mergulhava em notáveis divagações sugeridas pela ocasião. ÀS vezes, afastava-
se bastante de seu sistema em busca de um assunto que achava absorvente, e um dia um
aluno, tentando fazê-lo voltar a si de uma dessas divagações, exclamou: "Mas, professor,
falando sério por um momento. . ." Naturalmente, o
2 The Letters of William James, ed. por seu filho Henry James.
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ambiente da sala de aula de James era tal, a ponto de faze1 com que se esquecessem os
procedimentos de uma classe qualquer. Nada é mais típico de James do que o fato de não ter
fundado uma escola. Encorajava os alunos para que pensassem - não propriamente os seus
pensamentos. Preferia lançar os seus pensamentos e teorias no mundo e deixá-los ter uma
oportunidade em relação a outros pensamentos e teorias. Não procurava dar-lhes o apoio de
uma escola; deixava-os confiar em suas próprias forças desprotegidas.
A psicologia de James é apresentada em sua forma mais completa nos dois volumes do The
Principies of Psychology. Tem-se dito com freqüência que este trabalho não é sistemático, que
tem falta de organização ou, pelo menos, que qualquer organização que possua não é de muito
valor. De fato, o livro não dá a idéia de uma estrutura intimamente articulada; dá mais a
impressão de uma série de intuições, de lampejos penetrantes nas profundezas do assunto.
Quase todos os capítulos podem ser lidos isoladamente como ensaios em separado, sobre o seu
assunto particular; e, com raras exceções, cada capítulo se apresenta como se o seu tema fosse
o mais importante da psicologia, como se neste caso, por este estudo, fosse encontrado o
caminho para o próprio âmago do assunto. O próprio James acreditava ser, antes de tudo, uma
"criatura de aperçus" e o livro The Principies é claramente o trabalho de tal criatura. Embora
fosse o tratado mais exaustivo sobre psicologia geral em sua época, é, na melhor das hipóteses,
uma série de percepções agudas e visões penetrantes dentro de um setor do conhecimento
novo e pouco explorado.
Tudo isto é verdade, todavia não deve ser ressaltada a falta de organização. Pois, através do
livro todo existe um padrão, fracamente indicado e nunca imposto, mas não obstante
significativo. Sem dúvida, algumas das observações, no sentido de que o livro não foi planejado
com cuidado, tiveram origem no fato de que êle não segue o sistema convencional de começar
com unidades, tais como sensações e idéias simples e, a partir dessas unidades, construir os
estados de consciência mais complexos. Porém, uma parte essencial do ensinamento de James
destinava-se justamente a provar que este método não é justificado; e que o ponto de partida
certo é a experiência na forma em que se apresenta, a torrente como flui perante a percepção,
e não a simples sensação. A "sensação simples" ou "idéia simples", insistia sempre James, não se
encontra na experiência não analisa-
Em resumo, este é o esboço do livro The Pri'ncipies. Os primeiros seis capítulos do primeiro
volume são bastante úteis no sentido de preparar o terreno para a psicologia propriamente
dita. Considerando como sua primeira tarefa colocar as concepções biológicas necessárias
perante o leitor, James debate os aspectos da atividade nervosa que considera mais
importantes à vida mental; e a esse respeito, inclui o seu famoso capítulo sobre o hábito - o
qual desenvolve, a tese de que a vida mental, na realidade, toda a conduta humana, é, em
grande parte, determinada pela tendência do sistema nervoso em ser modificado de tal forma
em cada ação, que toda ação subseqüente da mesma espécie se torna um pouco mais fácil do
que a anterior. A seguir, James predispõe o leitor para o ponto de vista científico debatendo as
principais concepções metafísicas da mente. Trata da teoria do autômato, a da mente corpórea,
a da mônada material e a da alma; porém, finaliza rejeitando todas as hipóteses metafísicas
relativas à relação mente-corpo, contentando-se, para as finalidades da psicologia, com uma
"correspondência simples imediata, termo por termo, entre a sucessão de estados de
consciência e a sucessão dos processos cerebrais totais". Em outras palavras, aceita tanto os
estados de consciência quanto os processos cerebrais como fenômenos de um mundo natural;
e acredita que sendo a psicologia uma ciência natural e não um sistema de metafí
'1
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sica, pode observar e aceitar quaisquer relações que encontre sem se sentir obrigado a
esclarecer porque existem.
No resto do livro, James trata da psicologia propriamente dita. Debate os métodos de pesquisa
num capítulo ao mesmo tempo perspicaz e tolerante, com o título sugestivo de "Os Métodos e
as Ciladas da Psicologia". Um capítulo intitulado "O Fluxo do Pensamento" - quase na metade do
livro - descreve o objeto da psicologia como James o considera. O tema do capítulo é o de que a
consciência não é formada de pedacinhos reunidos, mas sim de uma corrente, a fluir
continuamente. O fluxo do pensamento é descrito como possuindo cinco características
principais: é pessoal; mutável; sensivelmente contínuo; trata com objetos exteriores a ele
mesmo; e está sempre escolhendo entre eles, aceitando, rejeitando, destacando, selecionando.
De certo modo, o resto do primeiro volume é um desenvolvimento deste
capítulo. O caráter imediatamente pessoal da consciência é debatido num capítulo sobre o eu -
e que vem logo a seguir ao do fluxo do pensamento, em vez de ser posto no final do livro,
onde é comumente encontrado nos tratados de psicologia. A natureza seletivá da consciência é
tratada em três capítulos, "Atenção", "Concepção" e "Discriminação e Comparação"; e o resto
do volume trata dos vários aspectos da mudança e da continuidade do fluxo de pensamento. O
capítulo sobre "Associação" trata dos processos associativos não como união de "idéias
simples" ou partes discretas da consciência, mas como combinação de processos fisiológicos no
sistema nervoso. Este capítulo, em seu ataque à teoria da consciência composta de partes
discretas, repete e põe em destaque a afirmação de que a consciência é sensivelmente contínua
e mutável. No capítulo intitulado "A Percepção do Tei'npo", James salienta novamente a
mudança e a continuidade, ressaltando que em nossa experiência direta e imediata do tempo -
como sentimos e não como o conceituamos - o passado, o presente e o
futuro estão todos contidos no "presente ilusório". O último capítulo, sobre a "Memória", trata
dos fatos no tempo ideal, e não no tempo dado ou imediato. Este capítulo é importante
principalmente por sua pretensão de que a faculdade de reter inata é jâ estabelecida e não
pode ser melhorada pelo exercício. Em apoio deste argumento, James relata uma de suas
poucas experiências psicológicas, a única que foi influente. Embora sua experiência sobre o
treinamento da memória não. tivesse
sido bem controlada, despertou grande interesse e levou a maiores pesquisas sobre este
problema.
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Psicologias do Século XX
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Edna Heid&reder
-se uma ciência natural; a transição é visível em seu modo de tratar o assunto.
Os dois volumes do The Principies estão tão cheios de detalhes - com observações,
argumentos, teorias, achados experimentais, interpretações, intuições - que seria loucura
tentar uma descrição compreensível de seus ensinamentos. O melhor que se pode fazer é
selecionar algumas partes que são mais representativas do total.
Talvez o caminho mais curto a uma compreensão do conceito que James tinha a respeito da
psicologia, é considerar a sua posição nas questões básicas do objeto e dos métodos, e da
relação entre a vida mental e o resto da natureza. Em relação a estes temas, a tendência de
James era a de ser inclusivo, mais que exclusivo. O livro começa com a frase "A psicologia é a
ciência da vida mental, tanto em seus fenômenos quanto em suas condições". As palavras
"fenômenos" e "condições" são ambas importantes: "fenômenos" porque indica que o seu
objeto é encontrado iia experiência, e "condições", porque para James as condições imediatas
da vida mental estão no corpo humano, principalmente no cérebro. A partir deste ponto de
vista, as estruturas físicas que constituem as condições da vida mental formam uma parte real
da psicologia; não são simplesmente o material de estudo de uma ciência afim. James escreveu
tendo em mira o ser humano integral; o foco de seu interesse estava no fluxo da consciência,
mas da consciência tal como existe em seu "habitat" natural, o homem físico. Esta reviravolta
biológica do pensamento, realmente, é um dos traços distintivos da psicologia de James. A
partir do novo e controvertido material representado pela fsiologia do cérebro - pois James
escreveu quando a fisiologia do cérebro era novidade e quando todo este assunto estava ainda
menos estabelecido do que agora - aceitou a idéia do sistema nervoso como sendo um
aparelho no qual os fluxos iniciados pela estimulação dos órgãos dos sentidos atravessam os
nervos sensoriais até ao sistema nervoso central, de lá passam através das vias de ligação de
vários graus de complexidade, e daí fluem para fora através dos nervos motores para os
músculos. Na opinião de James, é a ação do cérebro que está associada com a consciência, de
forma imediata.
A outra palavra em sua definição, "fenômenos", possui também implicações importantes, pois
estudar os fenômenos
da vida mental é estudar a consciência tal como existe na experiência real e imediata. Isto
significou para James o "fluxo do pensamento". Acreditava que o verdadeiro ponto de partida
da psicologia é a experiência sentida de forma imediata - não uma alma ou mente que se
manifesta pela e através da consciência, não porções de material consciente aglomeradas, mas
sim a experiência como a conhecemos no momento. A descrição do fluxo de pensamento feita
por James é um dos mais famosos trechos de toda a literatura psicológica. É um clássico, em
parte porque descreve com vivacidade e fidelidade algo que é muito difícil de ser descrito, e em
parte porque tem valor histórico por ser um ataque ao atomismo do associacionismo e do
herbartismo.
William James observa como primeira característica do fluxo de consciência ser ela pessoal, e
esta característica é aceita por ele como um fato básico. Não iniciamos com pensamentos e
terminamos com eus. O eu está presente desde o início; não como uma alma, nem espírito
imanente, nem como um conjunto de idéias, nem como uma construção lógica, mas sim como
um fato empírico evidente - o de que "todo pensamento tende a ser parte de uma consciência
pessoal". Ou melhor, nem todo pensamento é invariavelmente uma parte da consciência
pessoal. Janet demonstrou que o pensamento pode ser dissociado da personalidade principal.
Porém, mesmo essas partes separadas da consciência, se possuírem uma porção considerável
de conteúdo, tenderão a adquirir a forma pessoal e a se tornarem personalidades secundárias,
que existem lado a lado com a principal.
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153
mo algo que há apenas um instante atrás era vagamente presente na orla da consciência pode
crescer e tornar-se domin.ante e dar uma nova direção ao curso total do pensamento.
A quarta característica do fluxo de consciência, o fato de que o pensamento trata com objetos
distintos de si mesmo, James a considera como um fato fundamental, do ponto de vista da
psicologia. Refere-se em outro trecho ao "dualismo irredutível!' entre a mente e seus objetos,
os quais simplesmente aceita como psicólogo. Porém, o objeto não deve ser considerado,
psicologicamente, em um sentido tão simples quanto o comum. Quando se pede para designar
a finalidade do pensamento expresso pelas palavras "Colombo descobriu a América em 1492", a
maioria das pessoas responde "Colombo", ou "América", ou ainda "a descoberta da América".
Em outras palavras, escolhem algum termo relativo a um estado essencial do pensamento e
esquecem a orla. Porém, realmente, a finalidade do pensamento, insiste James, não é Colombo,
nem a América nem a descoberta da América; é nada menos do que a frase toda, "Colombo
descobriu a América em 1492" com todo o seu conjunto de relações. E, contudo, apesar de toda
a sua complexidade, o estado da mente que conhece o objeto é simples. Não é uma idéia de
Colombo, ligada à de descoberta, e a da América ligada à de 1492. Novamente James insiste na
unidade e continuidade do pensamento, embora a sua finalidade seja complexa.
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Este fluxo de pensamento é o objeto da psicologia como é visto pela introspecção do ser
humano adulto. Porém, William James não limitou o objeto da psicologia ao que pode ser
observado dessa maneira. Reconheceu como psicologia o estudo dos animais, dos selvagens,
das crianças e dos loucos. Sempre se interessou pela psicologia dos anormais; dizia amiúde
que muito poderia ser aprendido das 'mentes enfermas. Naturalmente, desejava dar lugar
para tudo que pudesse ser acrescentado talvez à soma total do conhecimento psicológico. O
estudo da fisiologia, o exame da consciência, pesquisas das mentes maduras e imaturas,
normais e anormais, humanas e animais - tods essas pesquisas ele as acolhia como possíveis
fontes de conhecimento. Tinha suas preferências e aversões, porém, não há notícia de haver-
se recusado a dar atenção a qualquer assunto.
Quando William James examina a questão dos métodos, intitula de modo significativo o capítulo
de "Os Métodos e as Ciladas da Psicologia". Pois embora aceite a psicologia como uma ciência
natural, avalia inteiramente as dificuldades que o seu objeto apresenta à observação científica.
Dos métodos de pesquisas, menciona a introspecção em primeiro lugar como absolutamente
fundamental. Aceita como fato básico, que nunca foi posto em dúvida, o descobrirmos estados
de consciência quando examinamos nossas próprias mentes. Admite que a crença nesse fato
representa o postulado mais básico da psicologia, e rejeita "todas as investigações curiosas
sobre a sua exatidão, por serem demasiado metafísicas para a
finalidade deste livro". Sua declaração de que a "existência de estados de consciência não foi
posta em dúvida por nenhum crítico" soa de modo estranho aos ouvidos dos estudantes de
psicologia de nossos dias. Porém, é importante observar que tais dúvidas são, para James,
demasiado metafísicas para um livro sobre ciência natural; para ele nada poderia ser mais real,
mais evidente, menos necessitado de prova metafísica do que o fluxo de consciência como
surge de forma imediata.
seu "habitat" natural. Não era a introspecção de laboratório, auxiliada por instrumentos de
metal; era a rápida e segura apreensão de uma impressão feita por um observador sensível e
perspicaz. Porém, James não estava menos cônscio das dificuldades da introspecção do que o
estavam os mais ferrenhos adeptos dessa fé ortodoxa. Examinava os dois extremos da atitude
com respeito à introspecção. Um deles, representado por Brentano entre outros, é a crença na
infalibilidade da introspecção; de que na apreensão de nossos próprios estados de consciência,
experimentamos a realidade de forma imediata e sem deformação, não na maneira
reconstruída pela qual tomamos conhecimento dos objetos do mundo exterior. O outro
extremo é representado por Comte. "O pensador", afirma Comte, "não pode se dividir em
dois, um dos quais raciocina enquanto o outro o observa raciocinar. O órgão observado e o
órgão que observa, neste caso, são os mesmos; então, como se pode produzir a observação?"
James não adotou nenhuma dessas idéias radicais. Aceitou a introspecção como uma forma de
observação que não é infalível e nem impossível. Admitia que ela estava cercada de
dificuldades, próprias à sua natureza, porém, acreditava que, como as outras formas, pode ser
examinada por meio de verificações apropriadas e comparando-se as descrições de vários
observadores. Este tipo de verificação é normalmente aceito pela ciência, e o tipo de
conhecimento obtido dessa maneira é tudo o que James exige para a introspecção.
Embora não fosse ele próprio um experimentador, James tinha confiança também no método
experimental em psicologia. Sua própria descrição do método constitui a melhor prova da sua
atitude.
"Porém, a psicologia está entrando numa fase mais complicada. Há poucos anos o que se
poderia chamar de psicologia microscópica surgiu na Alemanha, realizada por métodos
experimentais, reclamando naturalmente a todo instante dados introspectivos, mas eliminando
a sua incerteza por meio da ação em larga escala e da utilização de recursos estatisticos. Este
método exige o máximo de paciência e dificilmente poderia ter aparecido num país onde seus
habitantes pudessem ficar oborrecaios. É óbvio que tal não ocorre com alemães como Weber,
Fechner. \Tierordt e Wundt. e o sucesso que obtiveram trouxe para este campo um cortejo de
jovens psicólogos experimentais, propensos a estudar os elementos da vida mental,
dissecando-os dos resultados brutos nos quais estão incluídos, e reduzindo-os o mais possível a
valores quantitativos. Esgotado o método de ataque simples e franco, tenta- se o da paciência,
da submissão pela fome, da atormentação até à morte: a mente deve ser submetida a um
perfeito cerco, no
ii
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qual as menores vantagens obtidas cada dia pelas forças que a assediam vão-se somando até à
sua derrota final. Pouco existe de estilo nobre nesses novos filósofos de relógio, pêndulo e
prisma. Eles não estão brincando e não se preocupam com o cavalheirismo, O que no
conseguiram fazer a generosa intuição e a superioridade em virtude, que Cícero considerava
necessárias para dar ao homem a melhor visão da natureza, será sem dúvida conseguido algum
dia pelas investigações e seleções, pela terrível tenacidade e habilidade quase diabólica dos
novos filósofos."
Não é preciso dizer que esta atitude meio divertida não era aquela adotada comumente pelos
devotos da nova psicologia. Porém, para William James, grande parte deste ataque organizado e
penoso, grande parte da tarefa de selecionar elemento por elemento, parecia forçada e
artificial. O método experimental, entretanto, era tido por ele como um dos meios possíveis de
se chegar ao conhecimento psicológico. "Fatos são fatos", dizia, "e se os conseguirmos em
número suficiente, certamente hão de se combinar". Como sempre, estava decidido a conhecer
todas as fontes do conhecimento.
O método comparativo era incluído por William James como suplemento aos métodos
introspectivo e experimental. Sua utilidade, achava ele, estava em revelar a vida mental em
suas variações. Realiza investigações na psicologia dos animais, das crianças, das raças
primitivas, dos selvagens e dos loucos, e na história de instituições, tais como a linguagem, os
costumes e o mito. O método, entretanto, não é exato, e as interpretações baseadas em seus
achados estão sujeitas a muitos deslizes. A esse respeito, James faz um comentário no qual diz
que as pesquisas posteriores provaram ser verdade que os estudos comparativos, para darem
bom resultado, devem ser feitos, com a finalidade de provarem alguma hipótese específica. E
acrescenta que "a única coisa a fazer então é usar a maior perspicácia possível e ser o mais
sincero que se puder".
Em seus comentários sobre os vários métodos, William James mostra amiúde que está a par
das dificuldades em seu uso: a introspecção é, às vezes, imprecisa; a experiencia é, por vezes,
cansativa e inútil; a interpretação dos resultados da psicologia comparada pode tornar-se um
"trabalho estafante". Porém, existem duas dificuldades neste metodo que acha tão profundas
e tão sérias que sentiu ser preciso considerá-las à parte.
Uma delas provém do uso da linguagem. Nossas palavras são forjadas pelo senso comum e não
pela ciência; foram feitas para servir às necessidades práticas da vida diária e não para refletir
os pensamentos e os sentimentos. Como resultado, não existe uma correspondência digna de
confiança entre as palavras e os fatos da consciência, e as palavras deformam nossa visão do
material psicológico. Se não existe uma palavra para designar um fato mental, somos
inclinados a omitir o próprio fato; achamo até difícil acreditar que tal fato exista. Por outro
lado, se existe uma palavra que pretenda significar um processo mental, somos levados a crer
neste, mesmo que não haja prova introspectiva de sua existência. Além disso, uma vez que as
palavras do senso comum têm habitualmente uma significação concreta, é provável que
achemos que nossos pensamentos são idênticos aos objetos que representam. Assim, somos
inclinados a encarar o pensamento das diversas coisas isoladas como porções separadas de
pensamento; e devido aos objetos do pensamento irem e virem sem cessar, julgamos os
pensamentos como indo e vindo, permanecendo e retendo sua identidade como cremos que
ocorra com os objetos. Esta ilusão, de acordo com James, encontra-se na base de todas as
escolas associacionistas e herbartistas e da concepção atomística da psicologia em geral - uma
ilusão contra a qual o psicólogo deve estar sempre alerta.
A outra grande dificuldade é a "ilusão do psicólogo". Em sua essência, é uma confusão entre o
ponto de vista do psicólogo e o do estado mental que o mesmo está estudando. O psicólogo,
como tal, está fora do estado mental que estuda, mesmo do seu próprio. Conhece não só o
estado mental, mas também o seu objeto, e o mundo da realidade no qual o pensamento e o
objeto existem. Poderá, portanto, extrair de um estado mental, por exemplo, a percepção de
uma árvore, o que ele conhece a respeito dela além da percepção; isto é, pode supor que tudo
que sabe a respeito da mesma está nesta percepção atual. Pode ainda supor que esta
percepção da árvore se pareça com ela. AlémÀlsso, pode admitir que a percepção tem
consciência de si mesma como ele, enquanto psicólogo, tem dela; e que ao invés de se conhecer
somente de dentro para fora, conhece também suas próprias relações com os outros
pensamentos e coisas comó ele, o psicólogo, as conhece. Porém, se nós considerarmos a
própria consciência e virmos como ela realmente é, descobriremos que a consciência de um
certo objeto não tem que
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Edna Heidbrpder
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ser igual ao objeto a que se refere, e que, em si mesma, não tem que estar consciente de suas
relações externas. Novamente James insistia num apelo à experiência imediata. Este apelo,
realmente, é a base verdadeira de sua advertência contra a "ilusão do psicólogo". O que estava
instando, para que a psicologia fizesse, era examinar a sua matéria sem preconceitos - para
verificar tudo o que ali existe e nada mais do que ali existe, e ver isso não deformado pelo
hábito, pelo saber, ou pelos costumes não-críticos do senso comum.
A relação entre a mente e o corpo, como William James a considerava em psicologia, pode ser
descrita em poucas palavras. Como uma ciência natural a psicologia deve começar pelo ponto
de partida comum a todas as ciéncias, ou seja, o mundo como é visto pela observação singela
de todos os dias. A partir deste ponto de vista, as mentes estudadas pelo psicólogo são objetos
num mundo de objetos; são as mentes de determinados indivíduos, existindo no tempo e no
espaço. "Com qualquer outra espécie de mente, com a Inteligência Suprema, com a Mente
não ligada a um determinado corpo, ou com a Mente não sujeita à passagem do tempo, o
verdadeiro psicólogo nada tem a ver". Aceita simplesmente, e como fato empírico, que as
condições imediatas das mentes são organismos vivos e cérebros; a natureza final da relação
entre eles é um problema de metafísica, e não de psicologia.
As mentes possuem uma outra relação com o mundo dos objetos no qual elas existem - a de ter
consciência desses objetos, de conhecê-los e de aceitá-los ou rejeitá-los. Com referência a esta
relação, nada se pode dizer a não ser a simples afirmação de que existe. Para o psicólogo, o
conhecimento é uma "relação primária que precisa ser aceita, quer seja explicada ou não, de
forma idêntica às diferenças e semelhanças que ninguém procura explicar". De fato, existem
problemas que giram em torno da relação do conhecimento, porém, são epistemológicos e não
psicológicos. A atitude do psicólogo é simplesmente a de que a relação do conhecimento existe,
e que não pode ser reduzida a termos mais simples ou mais inteligíveis, e deve ser aceita assim
como a ciência aceita qualquer outra relação que, a seu ver, seja básica.
É importante observar que foi William James, o psicólogo, que tomou essa posição em relação
ao problema mente-corpo. Como filósofo estava profundamente interessado no problema que
ele separou da psicologia por ser metafísi co
Em sua teoria do empirismo radical - mais exatamente no seu ensaio "Existe a Consciência ?" -
introduz, como filósofo, uma concepção original sobre a relação mente-corpo. Porém, embora
muitas de suas atitudes, que foram mais tarde explicadas em sua filosofia, possam ser notadas
em sua psicologia, James, como psicólogo e como autor do The Principies, manteve a posição
que formulara.
O mesmo se diga sobre a atitude de William James no tocante aos problemas básicos de seu
objeto e método e da relação das mentes com o mundo em que existem. O seu modo de tratar
os problemas especiais deve ser examinado a seguir. Aqui, de modo ainda mais claro do que em
seu debate dos princípios básicos da psicologia, seu estilo característico é revelado. Seria
impossível apreciar tanto o viço como a extensão de seu tratamento, sem se notar sua
maneira de lidar com alguns dos assuntos especiais da psicologia.
No capítulo sobre o eu, William James mostra alguns de seus hábitos mentais mais típicos. Não
trata do eu como se fosse uma simples abstração, que persiste através da experiência, dando-
lhe unidade; trata com os eus percebidos que vivem no mundo real. Em sua forma mais
evidente, o eu é material, porém, esta matéria é variável. O eu material é o corpo, porém, é
mais do que isso; inclui as roupas, a casa, as propriedades e a conta no banco - todas as posses
que o eu pode considerar suas. Todas essas coisas despertam as mesmas espécies de
sensações, embora não necessariamente no mesmo grau. Quando aumentam e prosperam,
produzem júbilo e uma sensação de triunfo; quando diminuem ou acabam, produzem
abatimento e depressão, e uma sensação de "conversão parcial. . . ao nada, que é, em si
mesmo, um fenômeno psicológico".
Psicologias do Século XX
161
160
Edna Heidbreder
mo a sua "fama" ou "honra" são eus sociais. Os triunfos e as desgraças de seus eus sociais
provocam as mesmas espécies de subidas e quedas na emoção, e os mesmos tipos de júbilo ou
depressão, como o fazem as eventualidades do eu material.
"Como acontece com muitos motivos de desejo, a natureza física restringe nossa escolha para
um só entre muitos bens apresentados, e assim também acontece neste caso. Deparo com
freqüência com a necessidade de ficar com um dos meus eus empiricos e renunciar aos outros.
Não significa que eu não queira, se pudesse, ser ao mesmo tempo elegante e gordo, bem
vestido, grande atleta, ganhar um milhão de dólares por ano, ser humorista, bon-vivant,
conquistador e também filósofo; filantropo, estadista, guerreiro e explorador africano, assim
como músico romântico e santo. Porém, isto é simplesmente impossível. Os interesses do
milionário iriam de encontro aos do santo; o bonvivant e o filantropo não poderiam andar de
acordo; o filósofo e o conquistador não poderiam viver na mesma habitação. Tais caracteres tão
diferentes podem ser concebidos como possíveis para um homem no começo de sua vida.
Porém, tornar qualquer um deles real exige que os restantes sejam mais ou menos suprimidos.
Assim, aquele que busca o seu eu mais real, mais forte e mais profundo, deve rever esta lista
com atenção e escolher aquele com o qual possa garantir seu futuro. Todos os outros eus por
isso tornam-se irreais, mas os acontecimentos deste eu são reais. Seus fracassos também, assim
como suas vitórias, levando vergonha e alegria com eles.
"Eu, que até agora me apliquei inteiramente em ser um psicókzgo, sofro se outros conhecem
muito mais psicologia do que eu; porém, estou satisfeito em chafurdar-me na maior ignorância
do idioma grego. Neste caso, as minhas deficiéncias não me fazem sentir humilhado. Tivesse
eu pretensóes' de ser um lingüista, teria sido exatamente o contrário. Assim, podemos observar
o paradoxo de um homem que se sente envergonhado só por ser o segundo pugilista ou o
segundo remador do mundo. O fato de que ele seja capaz de derrotar toda a população do
globo, menos um, nada significa; comprometeu-se a derrotar aquele único homem; e enquanto
não o fizer, nada mais importa. Aos seus próprios olhos, ele é incapaz de derrotar quem quer
que seja; e, se ele assim pensa, ele assim é."
Naturalmente, o eu empírico, de acordo com James, carece daquela unidade absoluta que o
pensamento popular, a teologia e muitos sistemas de filosofia consideram como sua
característica essencial.
Ij
16!
Edna Heidbreder
Psicologias do Século XX
163 11
em seguida a outro que, embora esteja passando, ainda não o fez por completo; sente a sua
continuidade com o seu anterior, apropria-se dele e, por sua vez, é apropriado pelo que lhe
sucede. Existe assim uma sensação contínua de propriedade, mas não é devida a algo unitário
por detrás da experiência, é devida a relações de apropriação na experiência e que transmitem
a sensação de propriedade de um instante para o outro. Essa explicação da identidade pessoal é
mantida por James contra a teoria de uma alma imaterial e substancial, contra a doutrina do eu
dos associacionistas, como sendo estados sucessivos de consciência e que "se colam uns aos
outros", e contra a doutrina kantiana de um eu transcendental de apercepção que está
logicamente subentendido em todo pensamento. Tudo o que é preciso para explicar a unidade
do eu, é por ele encontrado no fluxo da consciência, mais propriamente nas relações de
apropriação que são estados transitórios que podem ser encontrados na experiência imediata.
William James conclui seu capítulo sobre o eu relatando casos de notáveis mudanças de
personalidade - aqueles fenômenos de personalidades múltiplas, estados de consciência
cindidos e dissociação que sempre o interessaram. Para ele, isso parecia representar a
evidência empírica de que o eu não é a unidade absoluta que freqüentemente dizem ser. Para
ele, o fenômeno da dissociação parecia ter implicações de grande alcance com respeito
organização dos eus reais.
Este resumo omitiu naturalmente grande parte dos detalhes concretos que dão ao capítulo o
seu tom característico. Em nenhuma prte do livro The Principies, o estilo de James é melhor
apresentado do que quando trata do eu. As observações perspicazes e compreensivas, as
descrições pitorescas, o estudo empírico, a explicação da unidade do eu em função das
sensações transitórias de relação, a explanaç .o cuidadosa de sua posição com o devido
respeito às teorias correntes, tanto psicológicas como metafísicas, o interesse pelos fenômenos
recentemente investigados das personalidades anormais - tudo revela o seu toque
característico. E através de todo o capítulo que percorre toda a gama da observação direta até
a especulação metafísica abstrata, do exame minucioso até à generalização ampla, o eu
permanece como uma coisa vivente. Não é tratado como abstração, como alma, ou como
sucessão de idéias simples, ou necessidade lógica de pensar, mas sim como realidade
psicológica, não apenas imaginada mas também sentida.
Outra das atitudes características de William James é encontrada em seu modo de tratar os
processos intelectuais. Foi uma de suas maiores crenças a de que a psicologia havia
intelectualizado em excesso o seu material; e, às vezes, parecia que o seu principal interesse,
ao discutir a natureza do homem racional, era o de mostrar como este é, em grande parte,
irracional. Na base de seu modo de tratar a definição, a crença e o raciocínio, assenta-se a
profunda convicção de que as atividades intelectuais estão presentes no animal humano
porque possuem utilidade biológica; fazem parte das maneiras práticas pelas quais a criatura
humana se mantém no mundo.
Assim, as definições são criações dos seres viventes aplicadas em determinadas empresas e
objetivos. São secções retiradas do fluxo da experiência, recebendo nomes e adaptadas para
atender às finalidades humanas. São maneiras humanas de tratar com a experiência, que em si
nunca fica imóvel. As definições, entretanto, são fixas e imutáveis; são tornadas fixas e
imutáveis por meio do intelecto. Constituem o "âmago" de nosso pensar, uma vez que somente
se referindo à sua estabilidade somos capazes de tratar com a experiência, a qual de outra
forma nos escaparia para sempre. Quando, por exemplo, pensamos sobre o papel como algo
para ser escrito, nós isolamos e fixamos este fato a seu respeito e, ao assim fazer,
transformamo-lo em alguma coisa na qual podemos agir de certa forma. Porém, tal concepção
é de nossa própria autoria; é um instrumento talhado para uma certa necessidade; não quer
dizer que o papel seja essencialmente algo para ser escrito. Não existe, insiste James, nenhuma
propriedade completamente exclusiva de unia determinada coisa. Enquanto estamos
escrevendo, o papel é concebido como uma superfície para escrever, porém, se o estivermos
usando para acender fogo, é imaginado como material combustível. O mesmo papel pode ser
concebido de inúmeras maneiras: "um corpo delgado, um hidrocarboneto, um corpo de oito
por dez polegadas, um objeto próximo a uma pedra no quintal de meu vizinho, um produto
norte-
'Qualquer um desses aspectos de seu ser que eu classificar pro\'isoriamente, torna-me injusto
para com os outros. Porém, como estou sempre classificando-o sob um aspecto ou outro, sou
sempre injusto, sempre parcial, sempre exclusivista. Minha desculpa para isso é a da
necessidade que a minha natureza prática e limitada me impõe.
164
Edna Heidbreder
Meu pensamento existe, sempre, e do princípio ao fim, em consideração com o que faço, e só
posso fazer uma coisa de cada vez." 6
William James considera uma idéia contrária ao senso comum o fato de não haver uma
qualidade inteiramente exclusiva de um objeto, nem uma coisa que seja ele verdadeiramente. O
senso comum admite que deve haver algo no âmago de um objeto que constitua a sua essência
e da qual suas várias características sejam simplesmente propriedades. A essência do objeto é o
que lhe dá o nome. O objeto é o papel, e sua forma retangular, sua propriedade de combustão,
sua distância de uma certa pedra são propriedades que lhe são inerentes. Porém, esta atitude é
em si devida a uma de nossas finalidades práticas e determinadas, qual seja a de dar nome aos
objetos. É de grande utilidade ter nomes para as coisas, algo por meio do qual elas possam ser
representadas, mesmo quando ausentes. Como resultado, o hábito de dar nomes tornou-se tão
corriqueiro que os nomes mais comuns nos vêm à mente para significar o que tal coisa é, sob as
maneiras mais raras de concebê-las. Ou então, se adotarmos a atitude da ciência popular,
podemos pensar sobre a água como sendo real e essencialmente H20. Porém, a água não é mais
verdadeira como 1120 do que como algo a ser bebido, ou que conserva viçosas as flores.
Concebê-la sob sua fórmula química é útil em algumas circunstâncias, e sob outras formas, é útil
em outros casos; porém, nenhuma definição representa de modo invariável a sua realidade
separada de certas finalidades. "Toda a função de definir, de fixar, de se ater aos significados,
nada representa além do fato de que aquele
que define é um ser com propósitos limitados e objetivos próprios.""
P8icologiczs do Século XX
165
lar os elementos essenciais para as necessidades do caso, é o passo mais importante em todo o
processo do raciocínio. Conceber de maneira adequada pressupõe a habilidade de dividir uma
situação completa em partes, ver o que é importante e - o que possui a mesma importância -
ignorar o restante, o caráter selecionado provoca então associações que levam à
conclusão. Estas associações são, naturalmente, resultados do aprendizado. Assim, se o calor é
imaginado como movimento, os fatos já conhecidos sobre movimento são agora associados ao
calor. Para se compreender o calor de forma mecânica, existem dois estágios. Um deles abrange
o que James denomina sagacidade; é a concepção do calor como movimento. O outro inclui o
aprendizado; é o despertar do conhecimento associado à idéia de movimento. Em forma de
silogismo, o ato de imaginar fornece a premissa menor, a de que o calor é movimento. A
premissa maior, a proposição sobre movimento, origina-se pela associação.
Isto não significa que James queira dar a impressão de que o raciocínio, do ponto de vista
psicológico, siga o padrão do silogismo. Uma vez que o raciocínio depende da associação, está
sujeito a todos os imprevistos, restrições, irregularidades e impropriedades da associação. A
associação por igualdade é especialmente importante para o raciocínio porque está presente
na concepção, na percepção da essência. A escolha, também, desempenha um papel
importante no raciocínio. Surge primeiro na formação de conceitos - isto é, na escolha das
coisas principais; porém, os processos, pelos quais as associações importantes para o elemento
escolhido são despertadas, também incluem a escolha. E esta, não é demais repetir, é uma
atividade de seres com finalidades parciais e práticas que estão em busca de fins particulares.
James sublinha o fato de que o raciocínio ocorre no interesse da ação.
166
167
ela, é que começamos a duvidar. Isto significa que existem muitas formas de realidade, muitos
tipos de crença, e que devemos escolher um como real e desprezar os outros. Devemos
resolver, por exemplo, se numa determinada percepção, estamos vendo um fantasma, um
nevoeiro ou uma alucinação. Existem, realmente, vários tipos de realidade que muita gente
reconhece e seleciona uma das outras. Há, em primeiro lugar, o mundo dos sentidos ou coisas
físicas na forma como as percebemos de imediato, com suas cores, sons e temperaturas. Existe
também o mundo da ciência, do qual as cores, os sons e outras qualidades secundárias estão
excluídos. Existem mundos de relações abstratas, dos quais são exemplos os mundos da lógica e
da matemática. Existem vários mundos sobrenaturais, tais como o Céu e o Inferno dos cristãos,
e o mundo da mitologia clássica. Existem mundos de ficção intencional, como o de Pickwick
Papers, o qual, embora admitido como ficção, possui uma realidade própria tão peculiar que a
idéia de uma alteração qualquer é percebida logo como própria ou imprópria. Existem todos os
mundos da opinião pessoal. Existem até mundos da loucura, que possuem o seu tipo especial de
realidade.
Face a tantas possibilidades, deve haver uma escolha. Tais possibilidades não são, entretanto,
reciprocamente exclusivas. Aceitamos o mundo dos sentidos, e o da ciência, e o do Pickwick
Papers em diferentes estados de humor e para fins diversos. Contudo, nos deparamos amiúde
com a tarefa de distinguir o real do irreal, e o mais verdadeiro do menos; e, ao assim fazer, não
usamos um critério único mas vários. James escreve:
"Por via de regra, a persistência com a qual um objeto contraditório se conserva em nossa
crença é proporcional a várias qualidades que deve possuir. Dessas, uma que deveria ser posta
em primeiro lugar por muita gente, porque caracteriza objetos de sensação, é sua - "(1)
Coercitividade sobre a atenção, ou o simples poder de ter
"(3) Efeito estimulante sobre a vontade, isto é, capacidade de provocar impulsos ativos,
quanto mais instintivos melhor;
"(4) Interesse emocional, como objeto de amor, temor, admiração, desejo etc.;
Porém, subjacente a todas essas condições de crença esta o fato de que uma coisa, para ser
acreditada, deve possuir alguma relação vital com o eu. Deve causar prazer ou dor, ou
conduzir à ação. Do ponto de vista exclusivo do intelecto, damos uma certa realidade a um
objeto no qual pensamos; aceitamo-lo como real pelo menos como objeto de pensamento.
Porém, não somos simples seres intelectuais; somos criaturas dotadas de emoção e vontade
também; e atribuímos maior grau de realidade às coisas que despertam nossa natureza
emocional e volitiva. Só é verdadeiramente real aquilo que tem alguma ligação com o eu, que
o atinge com alguma palavra "pungente", que o estimula emocional- mente e que o impele à
ação. A relação entre a vontade e a crença é de especial significado para James. Ele mantém
que o objeto da crença não é somente determinado pela evidência, mas em grande parte pelo
desejo e finalmente pela decisão do que crê. O que nós desejamos acreditar, determina em
grande parte o que nós acreditamos.
Assim, os processos do pensamento, como James os encara, não são de forma alguma racionais
num sentido absoluto. As conceituações formam-se a partir do ponto de vista de fins
particulares; o raciocínio é exercido no interesse da ação; e as crenças são determinadas pelo
desejo e pela vontade tanto quanto pela prova e pela evidência, O pensamento é uma
atividade de seres ue estão em busca de programas de ação práticos e limitados. O intelecto
humano se assenta nas necessidades dos organismos vivos, que têm algo a realizar no mundo.
Em seu capítulo sobre o instinto, James comenta outro aspecto não racional da conduta
humana:
"Pois bem, por que os diversos animais fazem o que nos parece estranho, em presença de tais
estímulos esquisitos? Por que a galinha. por exemplo, submete-se ao incômodo de incubar esse
conjunto de coisas tão desinteressante como uma ninhada de ovos, a menos que possua
alguma espécie de visão profética do resultado? A única resposta é ad hominem. Só podemos
interpretar os instintos dos seres brutos pelo que sabemos dos nossos próprios instintos. Por
que os homens sem pre se deitam, quando podem, em camas macias, em vez de chãos duros?
Por que se sentam perto da lareira num dia frio? Por que, numa sala, se colocam, em 99% dos
casos, com os rostos na direção do meio desta, em vez da parede? Por que preferem costeletas
de carneiro e champanha em vez de pão seco e água suja? Por que a jovem interessa tanto ao
moço, de forma que tudo a respeito dela lhe pareça mais
1-32.
168
Edna Heicibreder
Psicologias do Século XX
169
ii
importante e significativo do que qualquer outra coisa no mundo? Nada mais se pode dizer
senão que assim se comportam os seres humanos e que cada criatura goeta de seus próprios
modos e os segue como coisa natural. Pode acontecer que a ciência examine essas maneiras e
verifique que a maioria delas é útil. Porém, não é por causa de sua utilidade que são seguidas,
mas porque na ocasião de adotá-las esta é a única coisa conveniente a fazer. Nem um só
homem dentre um bilhão, ao fazer sua refeição, pensa jamais sobre sua utilidade. Come
porque o alimento lhe parece bom e o faz desejar mais. Se você lhe perguntar por que deseja
comer mais daquela comida saborosa, em vez de considerar você como um filósofo, há de
dizer, rindo, que você é um idiota. A relação entre a sensação de sabor e o ato que ela
despertar é para ele absoluta e selbstverst,finlZich., ou seja, uma 'síntese a priori' do tipo mais
perfeito, não requerendo nenhuma prova a não ser a sua própria evidência. Em resumo, é
preciso ter o que Berkeley chama de mente corrompida pela cultura para fazer com que o
natural pareça estranho, a ponto de perguntar o porquê de qualquer ato humano instintivo.
Somente para o metafísico podem ocorrer perguntas como estas:
Por que sorrimos quando satisfeitos, e não franzimos a testa? Por que somos incapazes de
falar a uma multidão como falamos a um único amigo? Por que determinada moça nos
transtorna tanto? O homem comum pode dizer somente: 'naturalmente nós sorrimos,
naturalmente nosso coração palpita à vista da multidão, naturalmente amamos a moça,
aquela bela alma encarnada em forma perfeita, tão palpável e feita evidentemente para ser
amada eternamente!'
"E assim, provavelmente, sente cada animal a respeito de certas coisas que tem tendência a
fazer em presença de determinados objetos. Essas coisas são também sinteses a prori. Para o
leão, é a leoa que foi feita para ser amada; para o urso, a ursa. Para a galinha choca pareceria
monstruosa a idéia de que houvesse alguém no mundo que não considerasse atraente uma
ninhada de ovos para deitar-se em cima dias a fio com a maior satisfação." 10
Este trecho, mostrando a natureza impulsiva e irracional do instinto, contém o ponto essencial
do ensino de James a este respeito. Talvez devêssemos observar que a ênfase dada ao instinto
na época de James tinha significado muito diferente do qué teria nos dias atuais. Existe hoje, na
psicologia, uma tendência para afastar-se do conceito de instinto, em desconfiar dele porque
poderia talvez subentender idéias inatas, ou mesmo alguma força misteriosa, não analisável
pela ciência, que forçaria o organismo a comportar-se de determinadas maneiras, algo que
desencorajaria a pesquisa porque seria aceito como um "dom". Porém, na geração de James,
um destaque dado ao instinto, principalmente se fosse associado às suas idéias sobre a
natureza dos processos intelectuais, significava chamar a atenção para o fato de que as espécies
estudadas pela psicologia humana
Realmente, é interessante observar que alguns dos comentários de James sobre o instinto,
publicados em fins do século passado, estão estreitamente de acordo com as tendências da
psicologia atual. James dizia que os instintos não são obrigatoriamente "cegos e invariáveis"
como afirmava o conceito histórico de instinto, e que podem ser modificados pelo hábito. Neste
ponto, suas observações estão em harmonia com a melhor das evidências experimentais
disponíveis atualmente, que mostram que quando as atividades comumente classificadas
como instintivas são submetidas à observação sob condições controladas, verifica-se que elas
não são as realizações "perfeitas", imutáveis e inevitáveis que se poderia esperar, de acordo
com o antigo conceito. Além disso, sua idéia de que os seres humanos têm um grande número
de instintos - realmente, mais do que os possuem os animais inferiores - está também de
acordo com as críticas contemporâneas, pois inclina-se no sentido da especificidade. A
partição do instinto em modos típicos de comportamento foi, de fato, o primeiro passo no
sentido de abandonar a antiga idéia de instinto como uma grande força, incerta, carregada de
misteriosa potência. As forças enormes e incertas que são, por definição, misteriosas não se
prestam para os estudos práticos da ciência; mas em face de realizações definidas e típicas, a
ciência pode agir imediatamente. Como resultado, quando os pesquisadores resolveram dividir
entidades maiores, como o instinto de conservação, em atividades particulares, como a
locomoção e a fala, ou mesmo em atividades definidas menores, como a criatividade, a
curiosidade e a combatividade, o espanto e o pavor, em presença do desconhecido, começaram
a dar lugar às pesquisas sobre ocorrências concretas e definidas.
Em seu modo de tratar as emoções, James desenvolveu a teoria que é talvez a sua
contribuição mais famosa para a psicologia. Trata-se do conceito conhecido como teoria das
emoções de James-Lange. Ao considerar o problema dó ponto de vista psicológico, convenceu-
se de que a emoção nada mais é que a sensação da atividade corporal despertada por via
reflexa por certas circunstâncias estimulantes. O fisiólogo dinamarquês Lange, estudando em
particular o
1I
170
Edna Hei4breder
William James expôs sua teoria, opondo-a ao ponto de vista do senso comum:
"O senso comum afirma que ao perdermos nossas riquezas, ficamos tristes e choramos;
encontramos um urso, ficamos com medo e corremos; somos insultados por um inimigo,
ficamos com raiva e brigamos. A hipótese a considerar neste caso diz que a ordem desta
seqüência está errada, que um dos estados mentais não é imediatamente induzido pelo outro,
que os sintomas corporais devem primeiramente interpor-se entre eles, e que uma afirmação
mais racional é a de que nós ficamos tristes porque choramos, zangados porque brigamos,
medrosos porque trememos, e não que choramos, brigamos ou trememos porque estejamos
tristes, zangados ou medrosos, conforme o caso. Sem os estados corpóreos sucedendo à
percepção, esta última seria puramente cognitiva, pálida e incolor, destituida de calor
emocional. Poderíamos então ver o urso, e decidir se é melhor correr, receber o insulto e achar
que devemos brigar, mas não sentiriamos realmente medo ou raiva."
Nas emoções mais grosseiras, tais como a raiva, o temor, o pesar e o amor, as perturbações
corpóreas são óbvias; naquelas mais sutis, as respostas do corpo, embora não tão fáceis de
descobrir, estão, não obstante, presentes. A não ser que se sorria ante um fato humorístico, a
menos que vibremos em face de um ato de justiça ou coragem, não teremos uma apreciação
emotiva da situação; teremos simplesmente uma percepção intelectual de que o objeto de
nossa atenção é engraçado, justo ou corajoso. Sem a perturbação corporal, forte ou fraca, não
existe emoção.
Esta teoria, como James a expõe de modo explícito, é diretamente oposta à concepção do
senso comum. De acordo com este, vemos primeiro o urso, a seguir sentimos medo, e depois
corremos; a ordem dos fatos é a percepção, a emoção e o movimento do corpo. James inverte
a seqüência temporal dos dois últimos fatos; o movimento corporal precede a emoção e
constitui a sua base. O que sentimos realmente como emoção é o conjunto de sensações
ocasionadas pelos movimentos do corpo. A sensação desses movimentos é a emoção.
Porém, a teoria, assim exposta, está numa forma muito crua e ousada. São necessários certos
requisitos para fazer com que esta exposição descreva o pensamento de James de
Psicoogias do Sdculo XX
171
maneira mais exata. Em primeiro lugar, James não quer dizer que existem três fatos
psicológicos separados - a percepção do estímulo, os movimentos do corpo e a sensação dos
mesmos - separados por intervalos apreciáveis de tempo. A seqüência é tão rápida, e a
superposição é tão grande, que não se pode esperar nenhuma introspecção exata de ordem
temporal. O que ele quer dizer é que a emoção possui uma
não haverá emoção, e que além e acima das sensações provo cada pelo estímulo do corpo não
existe substância da mente
e os movimentos do corpo, James não nega o papel desem penhad pela resposta cortical ao
influir na reação total.
numa jaula provocam reações diferentes; isto porque repre senta circunstâncias diferentes e a
situação global é a que
e instintiva entre o objeto e a reação; declara que "os obje to estimulam as mudanças corporais
por meio de um me canism preestabelecido"; mas insiste também que a situa çã total, e não
determinada parte dela, é que produz o resul tado; e a captação da situação global implica uma
resposta
o conceito de instinto quanto o conhecimento do sistema ner vos eram muito imprecisos na
época em que estava escre vendo o fato não causa surprIM4 É evidente, entretanto,
deseja deixar claro é o de que, embora a idéia ou a aprecia çã intelectual do perigo possa estar
presente e, nesse caso,
tanto pelos psicólogos como pelos fisiólogos. A principal obje çã feita pela psicologia de sua
época proveio do fato de que
aquele ponto de vista abolia um elemento tipicamente afeti vo Se James houvesse sido um
psicólogo que formasse esta do de consciência a partir de elementos, poderia ter cons truíd
um sistema inteiro, usando de um só elemento, a sen sação pois havia reduzido a emoção e o
sentimento a sen
172
Edna Heidbreder
Naturalmente, a teoria de James-Lange interessava aos fisiólogos, bem como aos psicólogos.
Sherrington ' e Cannon, 14 para mencionar dois dos autores mais conhecidos, procuraram
testar esta teoria através de experiências de laboratório. Sherrington, trabalhando com cães,
seccionou o trato espinal que transmite ao cérebro os impulsos nervosos que provêm das
vísceras do tronco. Verificando que a vocalização, as expressões faciais e os movimentos deste
gênero, geralmente associados com a emoção, ocorriam mesmo após a operação em
circunstâncias que normalmente causariam emoção, concluiu que esta não poderia ser
produzida na maneira descrita por James. Cannon encontrou os sinais habituais de raiva e
medo em gatos, após haver retirado a parte do sistema pervoso autônomo que se relaciona
com a estimulação das reações viscerais normalmente presentes durante aquelas emoções.
Descobriu, também, por uma série de experiências, que as mesmas mudanças fisiológicas
estavam presentes no medo, raiva, fome e dor; em outras palavras, que as diversas emoções
não podiam ser diferençadas com base em suas característiW fisiológicas próprias. Encarou
este fato como mais uma prova contra a teoria.
255-268.
14 W. E. Cannon, Bodily Changes in Pain, Hunger, Fear and Rage; "A Teoria das Emoções de
James-Lange: estudo critico e teoria explicativa", Ãmerican Journal of Psychologp (1927), 39,
106-124. A própria teoria das emoções de Cannon também salienta o papel do tálamo na
emoção e dá uma explicação mais detalhada, baseada em pesquisas experimentais dos
processos nervosos incluldos na emoção. Uma curta exposição da teoria de Cannon e um
resumo da evidéncia dos fatos em apoio da mesma podem ser encontrados em um estudo de
Philip Bard, "A Base Neuro-Humoral das Reações Emotivas", The Foundations of Experimental
Fsychology, compilado por Carl Murchison, 449-487.
Psicologias do Século XX
173
mes considerava a principal base orgânica foi eliminado, mas acreditam que talvez tenham
ficado intactas bases fisiológicas menos visíveis e que estas podem ser suficientes para iniciar
as respostas emocionais observadas. Salientam, além disso, que estas respostas podem ter
estado associadas com determinadas circunstâncias por meio do aprendizado, e que, na
ocasião em que foram notadas, não incluíam emoção real. Foi também sugerido que o fracasso
de Cannon, em encontrar condições fisiológicas que diferençassem as emoções entre si, não
vai obrigatoriamente contra esta teoria; que pode haver condições fisiológicas não investigadas
em suas pesquisas - diferenças devidas à atitude corporal, postura, expressão facial, ou
mudanças fisiológicas muito rápidas - que distinguem as emoções na forma em que nós
comumente as consideramos. Foi também sugerido que os distúrbios encontrados por Cannon
são os comuns às emoções em geral, as quais, afinal de contas, não são tão diferentes entre si
como as julgam nossos modos de pensar habituais.
Aliás, embora a teoria de James-Lange não haja sido aprovada ou desaprovada de modo
absoluto pelas provas experimentais, o consenso geral, hoje em dia, é o de que ela não explica
de maneira adequada os fatos conhecidos; principalmente, que não explica a relação entre a
percepção e a sensação, e que é um tanto imprecisa ou totalmente errada quanto às conexões
nervosas entre o cérebro e as vísceras. Entretanto, não se discute ter exercido esta teoria
grande influência. É geralmente admitido que o lado orgânico da emoção é muitíssimo
importante, mesmo por aqueles que discordam que a emoção seja somente a sensação do
distúrbio corporal. A teoria foi aceita também em suas linhas gerais, porque dá uma razão de
ser biológica à emoção e lhe confere um lugar e uma função na economia total da natureza
humana. Acima de tudo, estimulou a pesquisa sobre as emoções, mais do que qualquer outra
concepção. Seja qual for a resposta da evidência experimental, a teoria de James-Lange terá
desempenhado um papel importante em sua revelação.
A maneira como James tratou destes assuntos demonstrou as principais tendências de seu
pensamento. Poderia ter sido escolhido qualquer outro tópico. O seu famoso capítulo sobre o
hábito poderia ter sido usado para exemplificar sua pronunciada vocação fisiológica,
mostrando a seu modo com que entusiasmo defendeu a tese de que as vias formadas no
sistema nervoso pelos nossos próprios atos determinam
di
P8woZogias do SécuZo XX
174
Edna Heidbreder
175
a própria estrutura de nossa conduta - o tom em que falamos, as roupas que usamos, nossas
características profissionais, nosso comportamento social, nossas simpatias, nossos
julgamentos, e mesmo nosso caráter moral. O capítulo sobre associação poderia ter sido
escolhido para exemplificar o mesmo ponto, pois nele o autor trata da associação em função
das vias neurais. Tendo primeiro reduzido a associação por semelhança a um caso especial de
associação por proximidade, reduz esta última às conexões funcionais do sistema nervoso.
Existem diversos capítulos que poderiam servir de exempio do hábito inveterado do autor em
se utilizar da experiência imediata para responder aos seus problemas. O seu "inatismo" a
respeito da percepção do espaço e do tempo é um exemplo a considerar, pois encara a
continuidade do tempo como "dado" no "presente ilusório" e a percepção de profundidade
como proveniente da "extensividade imperfeita" de nossas impressões imediatas. James, de
fato, é propenso a dar uma interpretação inatista a muitas reações humanas. A crença, por
exemplo, é baseada na credulidade inata; a própria vontade em suas manifestações mais
elevadas nada mais é do que uma modificação da atividade ideomotora, que não passa de uma
impulsividade inata das idéias, uma tendência a se tornarem expressas por meio da ação.
Atualmente a tendência da psicologia está distante do inatismo; muitos pesquisadores acham
que aceitar uma coisa como "dada" é quase o mesmo que aceitá-la como milagre. Porém, o
inatismo de James originou-se de uma aversão pelo que considerava milagres que o intelecto
era chamado a realizar na filosofia empírica. Não era evidente para ele, por exemplo, a maneira
pela qual as qualidades próprias do volume espacial poderiam provir de elementos não
espaciais, e a sua lealdade para com o valor intrínseco da experiência fê-lo recusar-se a reduzir
isto a uma forma diferente dela mesma. É significativo que, ao enfrentar esta circunstância e
outras parecidas, tivesse preferido reconhecer dados fornecidos pela experiência imediata em
lugar de aceitar um resultado, fruto do intelecto.
Por último, existem tópicos nos quais o tratamento dado por James mostra uma tendência que
tem sido muito pouco assinalada neste livro - a tendência para o voluntarismo. Até certo ponto,
sua posição a respeito deste problema está implícita no seu relato sobre a conceituação,
raciocínio e crença como estando intimamente associados à natureza ati v
e emocional do homem. Porém, em seu capítulo sobre a atenção, aborda o problema de forma
mais direta. Ali salienta que se, através da atenção voluntária, uma determinada idéia pudesse
ser prolongada apenas por um instante - o suficiente para permitir a entrada de associações
reforçadoras e para que essas desempenhassem o seu papel - estaria assegurada a vitória
daquela idéia, O esforço da vontade realizaria então o que ele parece fazer, e James admite esta
possibilidade. O problema do livre arbítrio, salienta ele, está fora do âmbito da ciência; ela não
pode ser contra nem a favor do mesmo. James, porém, como pessoa, preferiu a teoria do livre
arbítrio ao invés do determinismo e, portanto, teve grande dificuldade para mostrar que uma é
tão cientificamente respeitável quanto a outra.
Talvez a característica mais marcante deste livro seja o fato de haver tratado definitivamente a
psicologia como ciência natural, especialmente como ciência biológica. A psicologia,
naturalmente, estava sendo tratada como ciência em toda parte, principalmente pelos
experimentalistas na Alemanha. A de James, porém, tomou direção muito diferente. Ele estava
interessado em processos conscientes não só pelo seu valor intrínseco, como também por
serem atividades dos organismos vivos nos quai ocorrem, modificando as suas vidas. Foi a sua
vocação científica generalizada, naturalmente, que o fez passar da contemplação especuladora
da mente para a observação direta da experiência imediata e de suas condições; porém, foi o
seu interesse biológico específico que o fez ver os processos mentais como atividades de seres
viventes conservando-se no mundo da natureza - como atividades, possivelmente úteis,
deveras, para os seres que as exercem. Esta idéia sobre a vida mental tem tido conseqüências
importantes para a psicologia norte-americana. De fato, ao tratar os processos mentais como
arraigados nas necessidades e práticas dos organismos vivos, James
II
176
Edna Heidbreder
estava escrevendo o que desde então se tem demonstrado ser uma psicologia tipicamente
norte-americana. Expressava uma atitude que, quando se tornou explícita, veio a ser a da
primeira escola de psicologia definitivamente norte-americana, o funcionalismo.
Intimamente relacionado com esta atitude em relação à vida mental, está o destaque que
James deu ao lado irracional da natureza humana. Através de todo o livro, nunca deixa que o
leitor esqueça que o ser em questão é uma criatura dotada de emoção e ação, bem como de
conhecimento e razão. Mesmo quando examina os próprios processos intelectuais, assinala os
fatores irracionais incluídos. Descreve com a máxima clareza, principalmente em seus capítulos
sobre o hábito e a associação, sua certeza de que o intelecto funciona sob condições fisiológicas
definidas. E vai mais longe. A crença, insiste, é determinada por fatores emocionais e volitivos; a
conceituação e o raciocínio, surgindo sob a influência de desejos e necessidades individuais,
ocorrem em vista da ação. O pensamento, na forma descrita por James, é um tipo de reação
desenvolvida por um ser empenhado com a questão prática de reagir ao seu meio ambiente. O
ser humano que surge na psicologia de James pouco se parece com o homem racional dos anos
anteriores.
E, entretanto, apesar de todo o seu empenho em tratar a psicologia como ciência e não como
metafísica, apesar de sua má vontade em superestimar o papel do intelecto na natureza
humana, James não se eximiu, pessoalmente, das exigências do intelecto para definir a vida que
se prolonga além da ciência. É bastante evidente que o autor do The Principies of Psychology é
um homem tremendamente interessado pelos problemas metafísicos. Pode-se distinguir
claramente em seu estudo da psicologia as tendência que deveriam surgir mais tarde em sua
filosofia, como o pragmatismo, o pluralismo e o empirismo radical. É significativo, entretanto,
ter James conservado a sua filosofia e psicologia separadas uma da outra; ou melhor, quando
incluiu a filosofia em seus debates, reconheceu-a como filosofia. Como resultado, veio a ser
vantajoso para a psicologia norte-americana que James possuísse interesses filosóficos. Foi,
realmente, em grande parte por seu intermédio que a psicologia norte-americana passou de
filosofia mental para ciência, e o fez integralmente com compreensão. Pois James não somente
rompeu com
Psicologia.s do Século XX
177
o passado; não tratou de modo superficial as maneiras mais comuns de lidar com o material
humano. Considerou seriamente a posição da psicologia que estava representando dentro das
idéias filosóficas a que os seus leitores estavam acostumados e, ao assim fazer, tornou
inteligível e justificável a mudança para o novo ponto de vista. Realmente, a inteireza com que
James trata desses problemas de filosofia mental, que a psicologia como ciência tem o direito
de ignorar - os problemas da alma e da substância mental, por exemplo - é urna das razões que
tornaram desnecessário que os tratados de psicologia considerassem atualmente este assunto.
"Mesmo nas partes mais claras da psicologia, nossa penetração Intima (insight) é bastante
insignificante, E quanto mais sinceramente procuramos traçar o caminho verdadeiro da
psicogênesc, ou seja, as etapas pelas quais, como raça, podemos ter adquirido os atributos
mentais típicos que possuímos, mais claramente percebemos o crepúsculo, tentamente
formado, a fechar-se em noite profunda."
.178
BIBLIOGRAFIA
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III
Em 1894, James Rowland Angeil, na ocasião um jovem de vinte e cinco anos, ingressou na nova
Universidade de Chicago como diretor do recém-formado departamento de psicologia. No
mesmo ano, John Dewey, que foi seu superior durante dez anos, veio para Chicago como
professor de filosofia. Ambos eram competentes, nos diversos campos pelos quais se
interessavam. Dewey, embora tivesse sido antes filósofo, havia trabalhado num dos primeiros
laboratórios psicológicos dos Estados Unidos, o de G. Stanley Hali, na Universidade John
Hopkins, e já estava desenvolvendo a linha de pensamento que o conduziria ao seu trabalho
sobre educação e sobre as ciências políticas e sociais. Angell havia estudado em várias
universidades alemãs, tinha sido discípulo de William James em Harvard, e estava agora em
Chicago acumulando deveres administrativos com o interesse pela psicologia. Ambos eram
também de uma eficiência fora do comum como professores - isto é, eficientes no sentido de
excitar o pensamento do estudante, impelindo-o à ação e em despertar verdadeiro entusiasmo
intelectual por seus programas e pontos de vista. Devido em grande parte à sua influência
conjunta, a Universidade de Chicago tornou-se rapidamente um centro florescente de estudo
da psicologia e sede de uma nova escola, o funcionalismo.
domínio exercido pelas escolas titcheneriana ou wundtiana. Como o próprio nome indica, o
funcionalismo estava interessado principalmente em atividades - em processos mentais não
simplesmente como conteúdos mas também como operações. Além disso, estava interessado
em estudá-las em seu habitat natural e do ponto de vista de sua utilidade. Aproveitando a
sugestão de Darwin, e considerando Os processos mentais tão úteis talvez ao organismo vivo
quanto à sua adaptação ao meio ambiente, o seu estudo foi, de início, tipicamente biológico.
Dava também a impressão de senso comum, não perturbado pelos tabus acadêmicos. Ao
examinar os processos mentais, formulava as perguntas do homem prático: "Para que servem
?", "Que diferença fazem?", "Como funcionam?". Naturalmente tais perguntas não podem ser
respondidas se estudarmos os processos mentais em si e por si mesmos. Embora tal análise
possa ser completa, o estudo de um processo, do ponto de vista de conteúdo somente, não
pode revelar o que o processo realiza. Para responder a esta pergunta, é necessário ir além do
próprio processo e considerar as ligações que este possui: investigar os seus antecedentes e
conseqüentes, descobrir que diferença faz para o organismo, e levar em conta a sua posição
complexa global no mundo complexo no qual surge.
Torna-se quase evidente de imediato que tais pesquisas divergiram amplamente da psicologia
oficial da época. Em primeiro lugar, havia o destaque dado pelo funcionalismo ao processo
como tal - ao evento em seu desenrolar-se. E verdade que Wundt e Titchener também
destacam este ponto, insistindo amiúde que os elementos mentais podem ser considerados
como processos. Porém, ao que parece, na prática real de conceber os elementos como
processos, existe uma dificuldade quase insuperável. Os elementos costumam ser considerados
como coisas ou pedaços estáticos, sejam quais forem os protestos do ponto de vista da teoria;
e este fato, juntamente com o interesse pelos conteúdos conscientes como tais, deu à
psicologia ortodoxa da época, pelo menos como era interpretada de modo não oficial, um
caráter estático e
1-uma impressão "granular". Os funcionalistas, entretanto, estavam empenhados em estudar
os processos mentais não
interesse do problema que havia escolhido, conservava o seu material no ambiente natural no
qual aparecia. Implícita neste caso está a segunda diferença marcante entre as duas escolas - a
diferença em suas atitudes com respeito às aplicações da ciência. O funcionalismo, unindo-se
abertamente ao senso comum, estava desde o início interessado em utilidades. Uma vez que
seu problema era "O que realizam os processos mentais no mundo?" mal podia se livrar
daquelas considerações de valor - neste caso, utilitárias - que Titchener havia afirmado com
insistência estarem fora do domínio da ciência pura. Portanto, era inevitável que o
funcionalismo se dirigisse no sentido da ciência aplicada, e realmente assim o fez quase
imediatamente, com a entrada de Dewey no setor da educação. Tudo isso representou uma
terceira grande diferença entre o estruturalismo e o funcionalismo, uma diferença em suas
concepções básicas do objeto e método. Desde a época de Wundt e Brentano havia sido
asseverado que as funções não podem aparecer na experiência direta e, portanto, não podem
ser objetos de observação introspectiva. Além disso, pesquisar as funções dos processos
mentais significava considerar muito mais do que a própria consciência. Em outras palavras, a
introspecção não poderia continuar a ser considerada como método distintivo da psicologia,
nem a consciê?icia o seu objeto específico. Assim, mesmo uma descrição preliminar do
programa do funcionalismo mostra grandes afastamentos das escolas consagradas.
É interessante que Dewey e Angeli não estavam inte-' ressados em fundar uma escola. É
provável que nenhum deles tivesse o jeito e o gênio de defensores fervorosos de uma nova
causa. Dewey, apesar de todo o seu prestígio e originalidade, era meditativo e ponderado.
Angeil, mesmo em seus mais veementes protestos contra o antigo estado de coisas, era afável
e tolerante. Todavia, o movimento que patrocinaram desafiava abertamente a autoridade, e se
desenrolou numa atmosfera estimulante de combate com um inimigo valoroso. O
funcionalismo tornou-se uma escola definida em parte porque as suas próprias declarações
permitiam abertamente heresias, e também porque Titchener decididamente o excomungara.
De certo modo, permaneceu assim até aos nossos dias. Os psicólogos treinados em Chicago
estão perfeitamente cônscios de sua linhagem psicológica; ainda encaram sua psicologia em
função de comparações e contrastes; e entre eles existe ainda hoje uma identidade de
7/
182
Edna Hedbreder
P8k,oZog*aS do Século XX
183
O fenômeno de uma escola surgindo de si mesma, com chefes que não estavam querendo
fundar uma escola, é, em si mesmo, significativo. Talvez algo no ambiente da nova Universidade
de Chicago fosse responsável pelo fato. É notório, certamente, que a primeira escola de
psicologia exclusivamente norte-americana tenha surgido na nova universidade que era
também uma expressão de tudo o que é tipicamente ianque. O fato quase inacreditável da
criação de uma grande universidade completa - de atualizar um plano, de reunir um corpo
docente notável, de tornar realidade uma organização complexa inteira, em corpo e alma deu
ao local um ar de grandes feitos realizados e por realizar; e não é de admirar que uma escola de
pensamento, começando em tais circunstâncias, prosperasse e crescesse.
Porém, o ambiente local, embora adequado, não é uma explicação suficiente. A formação
quase espontânea de uma nova escola de psicologia significava em primeiro lugar que muita
coisa estava preparada para ter início. Em muitos setores dos Estados Unidos existia a
impressão de que a psicologia, definida na forma convencional, era muito mesquinha e restrita.
Aliás, o progresso real da psicologia nos Estados Unidos não seguiu as regras para ela
estipuladas. A psicologia educacional, a da criança, a do animal, o estudo das diferenças
individuais e do desenvolvimento mental - nenhum desses movimentos poderia ser obrigado a
seguir o modelo convencional, todavia estavam todos progredindo. William James,
naturalmente, havia representado sempre uma influência poderosa fora do âmbito titcheriano.
G. Stanley Hail, embora houvesse estudado algum tempo em Leipzig, nunca ficara
impressionado de modo favorável por Wundt; e seu crescente entusiasmo pela psicologia
genética, aliado a uma predileção caprichosa pelo que se pode chamar de psicologia em geral,
significava que a psicologia em Clark havia superado amplamente os seus limites convencionais.
Em Colúmbia, Cattell insistia em seu interesse pelas diferenças individuais, e
Thorndike realizava experiências em animais e seres humanos com pouca atenção pelas regras
de Comeu. James Mark Baldwin era bastante franco com as críticas severas da psicologia
ortodoxa. Em sua opinião, uma ciência jovem e progressista não deve se limitar aos processos
sancionados por alguma escola, e seu próprio interesse pelas àferenças individuais e
desenvolvimento mental, aliado a
uma firme convicção do valor dos debates teóricos irrestritos, sem dúvida, muito contribuiu
para a firmeza de sua convicção.• Ele e Titchener brigaram abertamente numa controvérsia
sobre a interpretação da diferença entre os tempos de reação sensorial e motora, debate esse
menos importante pela questão em si do que pela franca oposição em que colocava as
interpretações mais amplas e as mais estritas da psicologia. Estes casos, além disso, são
somente sintomas de uma tendência geral. Nos Estados Unidos havia um desejo generalizado
de dar ouvidos à doutrina que afirmava que a função do psicólogo não se limita
necessariamente à dissecção minuciosa dos estados de consciência. Os empreendimentos
tipicamente norte-americanos em psicologia, por serem diferentes daqueles da tradição alemã,
se ajustaram prontamente ao plano do funcionalismo. As tendências já existiam,
prontas para serem centralizadas e colocadas dentro de uma fórmula que as unificaria e as
justificaria.
Não foi só nos Estados Unidos, entretanto, que a psicologia do tipo de Wundt e sua escola havia
deixado de exercer um controle incontestável. Na Alemanha, a psicologia do ato de Brentano,
exposta quase ao mesmo tempo que a de conteúdo de Wundt, nunca deixara de ter seus
adeptos importantes. Grande parte da psicologia francesa, também, com seu interesse pelas
anormalidades mentais, adaptou-se depressa aos conceitos funcionais. Na Inglaterra, James
Ward, em seu famoso artigo "Psychology" na Encyclopaedia Britannica, não só reconheceu
como também ressaltou a atividade do eu ou do sujeito; e G. F. Stout, influenciado por Ward,
desenvolveu uma psicologia na qual encarava como modos básicõs do ser consciente três
formas de atividade
184
185
contrário, deu-lhes mais ênfase, usando-as para demonstrar que o seu estudo era muitas vezes
levado a sério pelos estudiosos, e assim sugeriu que as limitações convencionais da época
eram artificiais. Realmente o funcionalismo não pretende haver descoberto algo de novo
debaixo do sol. Angeli insistia sempre que o funcionalismo não deveria ser identificado com a
psicologia que era ensinada em Chicago, e afirmou mesmo que não representava exatamente
uma esco la A seu ver, o movimento significava algo mais vasto do que qualquer culto científico
ou seita. Acreditava que os princípios funcionalistas haviam sempre feito parte da psicologia, e
que o estruturalismo, por estabelecer suas próprias qualidades, tinha sido realmente a
primeira escola a se separar do corpo principal da psicologia. Não há a menor dúvida que o
trabalho de Titchener, "The Postulates of a Structural Psychology", 1 por realçar o contraste
entre os pontos de vista estrutural e funcional, e por insistir que somente o primeiro era
legitimo numa verdadeira ciência psicológica, muito contribuiu para dar clareza e
individualidade ao novo empreendimento.
Porém, a nova escola se estabeleceu, e não pode haver dúvida que ela cresceu e prosperou e,
apesar dos protestos de Angell, o funcionalismo veio a se identificar com o tipo de psicologia
que estava se desenvolvendo na Universidade de Chicago. Desde o início, recebeu apoio
entusiástico da mesma. G. H. Mead e A. W. Moore, ambos da secção de filosofia, e também,
como Dewey, interessados pela psicologia, apoiaram claramente as novas idéias. Em 1902, o
próprio Dewey tornou-se diretor da Escola de Educação da Universidade de Chicago,
aproveitando a oportunidade, bastante lógica, de pôr em prática os princípios da sua filosofia e
da sua psicologia. Após exercer seu cargo durante dois anos, seguiu para o Teachers College da
Universidade de Colúmbia, como professor de filosofia. Charles H. Judd, que veio a ser diretor
da Escola de Educação alguns anos após a saída de Dewey, estava também bastante interessado
pelo novo movimento. Embora tivesse defendido sua tese de graduação em
Leipzig e assim devesse a sua formação à antiga escola, seu livro Psychology, publicado dois
anos antes de seguir para Chicago, foi escrito tão embebido no espírito do funcionalismo, que
o seu modo de tratar as reações motoras é muitas vezes citado como o melhor exemplo de
interpre taçã
É significativo não haver um livro ou tratado que represente o funcionalismo na forma em que
o Text-Book de Titchener representava o seu sistema, ou os Principies de W. James, a sua
psicologia. Dewey nunca escreveu uma exposição sistemática da psicologia funcional, embora
seus princípios estejam implícitos em seus mUitQS escritos. O seu livro Text-Book of Psychology
foi publicado em 1884, antes que houvesse elaborado suas idéias psicológicas típicas e doze
anos antes de haver sido lançado definitivamente o movimento funcionalista. Angeli publicou
seu Text-Book of Psichology em 1904 e seu Introduction (o Psychology em
1918, porém, embora os dois livros estejam escritos do ponto de vista funcionalista, nenhum
deles tem como seu principal objetivo a apresentação do funcionalismo como sistema. O
mesmo se pode dizer dos outros textos em geral escritos com tendência funcionalista. Além
disso, mesmo que existisse uma apresentação sistemática, nenhum livro, nenhum fruto do
pensamento funcionalista, poderia representar fielmente aquilo que era essencialmente um
movimento e uma atividade. Pois o funcionalismo, bem como o seu próprio objeto de estudo,
era um processo com uma função, uma transformação na psicologia norte-americana em
geral; e o que representou para esta, pode ser melhor discernido acompanhando-se o
processo de sua formação e desenvolvimento. Por comodidade, as três fases deste movimento
podem ser separadas assim: seu início com Dewey, seu desenvolvimento sob a liderança de
Angell e sua conservação como uma influência bem definida, com Carr.
O artigo de Dewey, "The Reflex Are Concept in Psychology" 2, publicado em 1896, assinala o
ponto de partida do funcionalismo como movimento definido. A importância desse estudo tão
debatido é a de que a atividade psicológica não pode ser dividida em partes ou elementos, mas
sim deve
Edna Heidbreder
ser encarada como um todo contínuo. Assim como William James, Dewey estava atacando o
atomismo psicológico. James, devemos estar lembrados, havia mostrado que as "idéias
simples" como porções de consciência não possuem existência real. Porém, Dewey acreditava
que o erro do elementarismo havia apenas mudado de lugar. No conceito de arco reflexo, com
sua distinção entre estímulo e resposta, entre sensação e movimento, entre as porções motora,
sensorial e central do arco, via a antiga tendência para pensar em função de unidades
separadas - o antigo atomismo sob nova forma. A tese de Dewey sustentava que distinções, tais
como entre estímulo e resposta, são puramente funcionais, e não são baseadas nas diferenças
reais da realidade existente, mas sim nos diferentes papéis desempenhados por certos atos no
processo total.
Dewey expôs seu caso referindo-se ao exemplo comum da criança que vê uma chama, procura
atingi-la e queima seus dedos. Esta atividade não é uma simples seqüência de três fatos: ver,
aproximar-se e queimar-se. Não se pode af ir- mar que, na primeira etapa da atividade, a visão
seja o estímulo e a busca seja a resposta; e que a sensação de ver venha em primeiro lugar e o
ato motor de busca venha a seguir. A sensação não precede o movimento, porque ver não pode
ser separado de olhar. Os ajustes motores da cabeça e dos olhos fazem parte da percepção da
luz. De maneira idêntica, a busca não vem depbis da visão e não pode ser considerada separada
dela. A busca não pode vir antes, a menos que a visão, sempre continua, iniba algumas reações
motoras e dê início a outras, controlando assim a ação. Ao mesmo tempo, a busca controla a
visão, determinando a sua direção durante todo o tempo. De modo exato, a atividade não é
simplesmente ver, mas sim "ver-para-atingir".
Então, por que foi feita esta distinção? Se a atividade é, de fato, um processo contínuo, por que
temos forte tendência em pensar como se ela fosse composta de partes separadas? E por que
esta tendência se tornou um hábito empedernido, a ponto de estarmos sempre prevenidos
contra ele?
O estímulo e a resposta foram distinguidos, responde Dewey, por causa dos papéis diferentes
que desempenham na coordenação total da busca ou para manter um fim ou objetivo; por
causa de seu significado prático de adaptar o organismo às circunstâncias do momento. A
distinção é do tipo funcional, baseada no que os processos realizam, e não do tipo existencial,
baseada no que os processos são.
Pscologkis do Século XX
187
Isto se torna claro se compararmos duas etapas da adaptação: uma sendo a adaptação
completa, tal como um instinto bem desenvolvido; a outra, uma adaptação em seu processo
de formação, como a atividade de uma criança aprendendo a não tocar a chama da vela. Na
adaptação completa, não se leva em conta o estímulo como estímulo e a resposta como
resposta. Existe apenas uma seqüência lógica de atos, na qual um deles pode ser encarado
como o estímulo do seguinte; porém, mesmo esta afirmação é verdadeira somente se a
coordenação for considerada como um ato e como um processo em direção a um fim ou
objetivo. Sem referência a uma finalidade e a seu papel em atingir o objetivo, ,os atos não
passam de uma seqüência dentro do tempo.
Porém, num ato de adaptação ainda não totalmente organizado, tal como o da criança em
busca da chama da vela, não há uma ordem de eventos fixos e certos. Nada se estabilizou
como estímulo ou resposta. O problema, segundo Dewey, é descobrir ou definir o estímu.lo,
tanto quanto descobrir ou definir a resposta. Na experiência anterior da criança, a busca de
objetos brilhantes algumas vezes terminou em prazer, outras, em dor. Agora depara com a
pergunta:
Que espécie de objeto brilhante é este? O problema está em definir o estímulo e justamente
neste caso é feita a distinção entre o estímulo e a resposta. Os movimentos de busca que
haviam sido iniciados são agora inibidos pela imperfeição da coordenação; o ato de definir o
estimulo, isto é, determinar a natureza da luz, tem que se dar antes que a busca possa ter lugar
sem conseqüências dolorosas. A atenção é assim orientada para ver, e aquela parte da
coordenação torna-se, portanto, separada da busca, não existencial mas funcionalmente, para
os fins práticos do momento. O perigo é o de que uma diferenciação teleológica, desenvolvida
no transcurso de um ato prático, possa ser tomada como representativa de um fato existencial.
Então é a coordenação total, e não qualquer parte da mesma, que o psicólogo deve tomar
como sua unidade. Isto não significa, entretanto, que Dewey substitua simplesmente uma
unidade maior por outra menor. Ele não crê que as coordenações, colocadas de princípio ao
fim, possam explicar a conduta, mais do que o estímulo e a resposta o podem fazer, nas
mesmas condições. A coordenação total que, por acaso, estejamos considerando no momento
não pode ser separada de seu ambiente, do mesmo modo que o estímulo e a resposta não
podem ser separados da coordenação completa
188
189
na qual se verificam. A coordenação total se relaciona com seu passado e futuro e com a
atividade total do organismo, da mesma forma em que as diferentes fases do ato reflexo se
relacionam entre si. Não há divisões entre as atividades do organismo. Quando um ato
manifesta unidade e perfeição, sua unidade é funcional, pelo que não apresenta separação
existencial.
Como é natural, o primeiro efeito deste ensinamento pode causar confusão; ele suprime as
discriminações usuais. Os limites evidentes que separam um conceito de outro demonstram
não ter uma correspondência na realidade existencial para a qual são utilizados. Aí, tudo é
continuidade. Entre o estímulo e a resposta, entre um movimento e outro, entre o organismo e
o seu meio ambiente, não existe solução de continuidade real. De fato, nós podemos e mesmo
devemos incluir separações ao pensar neles; mas não devemos esquecer nunca que as
discriminações que usamos são de nossa própria autoria, e não estão apoiadas na natureza das
coisas, porém são dispositivos convenientes que as pessoas inventam para fins práticos. As
linhas de demarcação que parecem fixas e estáveis não são realmente mais duradouras que as
nossas próprias finalidades; e no momento em que confundimos nossas discriminações
funcionais com a realidade existente, no momento em que esperamos que o real seja
encerrado dentro dos limites por nós estabelecidos - como quando ficamos surpresos porque o
abismo que fizemos entre as coisas e os pensamentos não é insuperáeLna natureza - estamos
completamente enganados a respeito da realidade. Podemos usar estas distinções funcionais
como dispositivos práticos, porém, sem jamais perder de vista o fato de que são simples
mecanismos e que, por baixo dessas distinções, existe continuidade.
Esta conceituação exige uma revisão muito mais completa do pensamento psicológico do que
pode parecer à primeira vista. Em primeiro lugar, é atacado o atomismo psicológico de uma
forma particularmente radical. É profundamente significativo que, em sua crítica ao
elementarismo, Dewey não tenha escolhido para seu objetivo sensações e afecções
elementares, mas sim o conceito de arco reflexo - o mesmo que havia sido incluído na
psicologia para acomodar o material que não se ajustava ao padrão convencional, e que parecia
se afastar da separação descritiva e estática dos elementos em estados de consciência. Dewey
mostrou, entretanto, que enquanto o arco reflexo fosse considerado
uma unidade à parte, ou como uma questão de partes separadas, estaria vulnerável às
mesmas objeções que haviam sido levantadas contra a antiga psicologia. Sua crítica resultava
em encurralar o velho inimigo em novo esconderijo inesperado e aparentemente seguro.
O ponto de vista de Dewey também implicava uma mudança de opinião a respeito do problema
mente-corpo. Em seu esquema, desaparece o antigo dualismo. Os aspectos mental e físico da
experiência são igualmente admitidos, mas não são tratados como uma série de fatos separados
e diferentes. Não existe divisão entre a sensação e o movimento, entre pensamentos e coisas. A
distinção entre a mente e o corpo não é também uma distinção existencial do mesmo modo
como aquela feita entre o estímulo e a resposta. Os atos mentais não são fatos psíquicos puros
e simples; são fatos nos quais estão presentes o físico e o psíquico. Surgindo em meio ao mundo
da natureza, desempenham seu papel no mundo como quaisquer outros fatos naturais.
É claro que Dewey não é primacialmente psicólogo ou educador. É um filósofo cuj a maneira de
encarar a humanidade e seus problemas conseguia conduzi-lo a setores especiais - nas ciências
políticas e sociais bem como na psicologia e na educação. Seu modo de pensar, em geral, foi
descrito como um hábito de considerar o homem "como uma espécie animal seguindo o seu
caminho pelos únicos processos do sistema nervoso central num planeta insignificante com um
clima péssimo e variável". Os seus dois livros mais famosos foram talvez
How We Think e Human Nature and Conduct. No primeiro, salienta a posição do pensamento
no mundo do real, chamando a atenção para o fato de que o pensamento vai para o passado e
o futuro sem maiores difi
129-131.
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culdades através do "abismo" por nós criado de modo artificial. No livro Human Nature and
Conduct, ressaltando a íntima relação entre o indivíduo e o ambiente que o cerca, e utilizando
o hábito como a solução para a psicologia social, mostra como os hábitos são formados na
"interação das aptidões biológicas com o meio ambiente social".
Durante a direção de Angeil em Chicago, o funcionalismo tomou corpo como escola realmente
átuante. Não se tratava mais apenas de uma esperança e de uma teoria, mas sim de um
empreendimento progressista visível num laboratório ativo, com crescente acervo de pesquisas,
dispondo de um corpo docente entusiasta e de um conjunto de estudantes também entusiasta.
É curioso que a contribuição de Angeli para a psicologia, talvez a sua principal contribuição,
tivesse adquirido esta forma, pois Angeil sempre achou que o funcionalismo não devia ser
identificado com a psicologia da escola de Chicago. Todavia, o aparecimento de tal escola foi da
maior importância prática; pois, sem uma escola, faltaria ao funcionalismo a centralização que
foi uma das razões de sua eficiência. Qualquer movimento se beneficia quando tem um local e
um nome; e com um locus operandi definido, o funcionalismo tornou- se uma viva realidade
que não podia ser desprezada. Com Angeli, o trabalho em Chicago logo se destacou. Em 1906,
quando foi eleito presidente da Associação Americana de Psicologia, pronunciou como discurso
de posse o seu agora famoso trabalho, "The Province of Functional Psychology". Da mesma
forma que o artigo de Dewey sobre o conceito do arco reflexo ("The Reflex Arc Concept"), o
discurso de Angeli é uma das declarações clássicas dos princípios do funcionalismo. O artigo de
Dewey deu ao funcionalismo sua primeira formulação; o de AngeIl delineou seus princípios
quando o movimento já vinha se desenvolvendo havia mais de uma década.
4 J. R. Angeli, 'The Province of FunctiOnal Psychology", PswhnlogIca Revew (1907), 14, 61 -91.
Embora não seja preciso insistir na questão, deve-se observar que o estudo de Angell sobre
este assunto lembra em parte a crítica de William James às "idéias" do associacionismo. O
"momento de consciência" que o estruturalismo analisa é uma coisa perecível. Uma sensação
ou uma idéia, quando não está realmente na experiência, não existe. Porém, as funções
mentais persistem. São tão duradouras como as estudadas pelos biólogos. Assim como a
mesma função fisiológica pode ser executada por estruturas diferentes, também a mesma
função mental pode ser realizada por idéias que diferem grandemente em seu conteúdo. Não
podemos nunca ter a mesma idéia duas vezes; porém, uma função pode ser identificada
através de suas repetições, cada vez representada na consciência por uma idéia que, em sua
composição existencial, pode ser muito diferente das outras, que em outras ocasiões serviram
ao mesmo fim. Angeil estabelece uma analogia entre as funções mentais e as do protoplasma
não diferençado; em ambos os casos, uma dada função pode aparecer seguidamente, embora
as estruturas provisórias utilizadas possam não ser as mesmas duas vezes. O material do
funcionalista é assim uma coisa mais constante do que aquela utilizada pelo estruturalista.
Além disso, mesmo o conteúdo mental que o estruturalista analisa não pode realmente ser
tratado como independente e isolado. O próprio estado de consciência que o estruturalista
estuda - uma sensação, por exemplo - depende das circunstâncias especiais em que ocorre,
tanto no paciente que a percebe como no ambiente real. Na terminologia de Titchener, o "o
que" não é de fato independente do "como" e do "por que". Porém, estudar as condições em
que surge uma atividade já é tarefa do funcionalismo. Qualquer investigação completa do
material estruturalista exige o ponto de vista e o processo do funcionalista.
Em segundo lugar, o funcionalismo pode ser considerado como um movimento que se interessa
pela utilidade dos processos mentais, O funcionalismo estuda a atividade mental não em si e
por si, mas como parte de todo o mundo da atividade biológica, como parte do movimento
integral da evolução orgânica. Por via de regra, as estruturas e as funções de um organismo vivo
são o que são, porque, de algum modo, permitiram a sobrevivência do organismo; porque
auxiliaram a sua adaptação às condições que constituem o seu meio ambiente; não há razão
para que a consciência seja uma exceção a esta regra. Uma vez que a consciência sobre-
viveu, é provável que faça alguma coisa para o organismo que de outra forma não seria
realizado. Q funcionalismo tenta descobrir precisamente qual é esta fundão, não só para a
consciência em geral, mas também para piocessos específicos, como o juízo, a sensação e a
vontade. A partir deste ponto de vista, o problema do funcionalismo pode ser def inido como o
que descobre as utilidades básicas das atividades conscientes. Ao tratar mais especificamente
da função da consciência, Angeli observa que tanto os biólogos como os psicólogos tendem a
tratar a consciência como sendo "substancialmente sinônimo" das reações de adaptação às
novas situações. É quando o organismo está formando um hábito, quando a coordenação não
está ainda sob controle, que a consciência geralmente aparece. Por outro lado, a consciência
tende a se afastar de um hábito fixado; é sabido que as reações inteiramente aprendidas
tendem a se tornar automáticas. E a consciência não só está normalmente presente quando o
organismo está se adaptando ao seu meio ambiente, mas o seu sinal característico no
comportamento visível é a "variação seletiva da resposta ao estímulo". Inspirando-se nestes
fatos, o funcionalismo encara a "acomodação seletiva" como o papel da consciência em geral.
Os processos específicos - de percepção, vontade, sensação e coisas parecidas
- podem ser classificados de várias formas, mesmo do ponto de vista funcional, uma vez que a
classificação é sempre teleológica. Porém, todos esses processos demonstram possuir Jguma
forma de "acomodação seletiva".
7- Em terceiro lugar, o funcionalismo pode ser considera- do como um método típico de tratar
com o problema "mente-
-corpo". Encarando a consciência do ponto de vista darwiniano, como tendo alguma utilidade
no adaptar o organismo ao seu meio ambiente, o funcionalismo admite uma intera ção entre o
psíquico e o físico. A possibilidade de uma inte' ração entre os dois, da mesma espécie da
existente entre as forças do mundo físico, é explicada com base no fato de não haver distinção
verdadeira entre o físico e o psíquico. O funcionalismo encara a relação mente-corpo "como
capaz de receber um tratamento em psicologia, mais como distinção metodológica do que
como distinção metafisicamente existencial". Isto é, o funcionalismo abandona o dualismo que
afirma ser o físico e o mental dois tipos de acontecimentos diferentes. Encara a distinção entre
a mente e o corpo como uma conveniência para o nosso pensamento, como uma "arma
teleológica", no dizer de James; como um instrumento útil pa. Psicologia
do Século XX 193
ra tratar com a experiência, mas não como um que nos levasse a crer que a mente e a matéria
são duas entidades diferentes. Deveras, a distinção entre a mente e o corpo faz-se sentir
somente após a reflexão; não está presente nos estágios mais primitivos da experiência. Além
disso, se tomada em caráter absoluto e existencial, conduz a dificuldades metafísicas que são
insolúveis. Por estas razões, é preferível tratar a distinção mente-corpo como metodológica,
encarar o físico e o psíquico como pertencendo à mesma categoria, e admitir uma passagem
fácil de um para o outro. Esta idéia não nos compromete com nenhum sistema de metafísica,
porém é compatível com qualquer uma das interpretações metafísicas.
O discurso de Angeli foi pronunciado quando o funcionalismo estava no auge de sua influência,
e a facilidade e a clareza que caracteriza o seu tratamento são, em parte, o resultado do sucesso
obtido pelo funcionalismo desde a crítica de Dewey sobre o conceito de arco reflexo. Angeli se
referia a um movimento já estabelecido; Dewey estava desenvolvendo uma idéia que era o
germe do movimento. Dewey, de propósito, mergulha o leitor no esforço e na fadiga de
conceitos remodeladores do trabalho. Coloca a idéia de arco reflexo no avesso para expor suas
inconveniências; e então, havendo despojado o leitor de seus recursos habituais, convida-o para
a tarefa de reconstrução. Quando Dewey escreveu o seu estudo, foi necessário conduzir o leitor
para dentro de seu próprio local de trabalho, onde estavam sendo forjados os conceitos básicos
da escola; Angeli poderia deixá-lo permanecer fora do movimento e vê-lo do lado de fora. Na
época do discurso de Angeli, o funcionalismo era uma empresa estabelecida e próspera, na qual
a juventude e o vigor estavam associados à realização.
A obra de Carr representa o funcionalismo já estabelecido e reconhecido como escola, e não
mais como uma renascença ou uma reforma. É, de fato, um dos sinais mais evidentes da
verdadeira vitalidade deste movimento ter ele persistido após a excitação da luta haver se
dissipado e haver mantido firmemente a sua produtividade nas pesquisas. A obra de Carr,
assim como a de Angeli, é insuperável de seus deveres como administrador; a direção das
atividades reais de cada dia do departamento de psicologia de Chicago constitui uma de suas
maiores contribuições à psicologia.
No início deste capítulo foi dito que os livros didáticos escritos pelos funcionalistas, em regra,
não apresentam o
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funcionalismo como sistema. A Psychology de Carr não constitui exceção a esta regra; é uma
manifestação mais do que uma exposição do funcionalismo. Além disso, é feita por um homem
cuja ligação com esta escola foi longa e íntima, e que havia trabalhado durante anos com
conceitos funcionais. Assim como os estudos de Dewey e Angeli representam etapas primitivas
do movimento, a Psychology de Carr representa o funcionalismo de nossos dias.
Neste livro, Carr define o objeto da psicologia como atividade mental. Esta é a expressão
genérica para processos, tais como a percepção, memória, imaginação, sensação, juízo e
vontade. A atividade mental relaciona-se com "a aquisição, fixação, retenção, organização e
avaliação das experiências, assim como com sua ulterior utilização para orientar a conduta".
Esta conduta, na qual surge a atividade mental, é chamada comportamento adaptativo ou de
ajustamento.
Neste caso, nas palavras sóbrias e tradicionais de uma escola que atingiu a maturidade,
incluem-se os conceitos que o funcionalismo do século XIX manteve contra a tradição que lhe
era oposta. O objeto da psicologia é definido como atividade, e uma descrição mais definida
não se refere a elementos e conteúdos, mas sim a processos, tais como perceber e sentir. A
natureza da atividade mental é descrita em função do que ela realiza desde a "aquisição" da
experiência até ao seu "emprego na orientação da conduta". O tipo de comportamento no qual
ocorre a atividade mental é descrito como tipicamente "adaptativo". Tudo isso é calmamente
apresentado na primeira página, de nenhuma forma como assunto para debates, mas
simplesmente como a exposição de um fato num livro didático.
São adotados vários métodos para estudar a atividade mental. Tanto a introspecção quanto a
observação objetiva são admitidas. As experiências são consideradas altamente desejáveis,
porém, considera-se impossível um completo controle experimental da mente humana. Inclui-
se, também, o estudo dos produtos sociais. Assim como Wundt, Carr acredita que através do
estudo da literatura, arte, linguagem, invenções, instituições políticas e sociais que a raça
humana tem produzido, algo pode ser aprendido sobre a mentalidade que as criou. Acredita,
também, que como a estrutura e a função estão intimamente relacionadas, um conhecimento
das estruturas anatômicas e dos processos fisiológicos, incluídos nos atos mentais, é
freqüentemente muito esclarecedor. Finalmente, admite que a observação comum é um meio
de se chegar ao conhecimento psicológico, embora também reconheça que a psicologia
científica difere do senso comum por ser mais sistemática e cuidadosa, por usar o método
experimental sempre que possível, por reunir seus fatos de um grande número de fontes e por
estabelecer uma estrutura sistemática mais adequada para a organizaçãq de seus dados. É
evidente que, para o funcionalismo, são numerosas as vias de acesso ao conhecimento
psicológico, que não está associado a um método em particular, como acontece com a
introspecção no caso do estruturalismo. Na prática real, entretanto, houve uma tendência
definida a favor da objetividade. Muitas partes das pesquisas realizadas em Chicago são feitas
sem recorrer à introspecção, e onde ela é usada, é verificada por meio de controles objetivos.
Este processo, naturalmente, é determinado de acordo com os problemas considerados; para
estudar um processo em seu ambiente e do ponto de vista de sua utilidade, é necessário
examiná-lo de fora. Na prática, portanto, embora não haja sido abandonada a introspecção, foi
dado uru destaque considerável à observação externa.
No capítulo intitulado "Some Principles of Organic Behavior", Carr dirige-se para o próprio
núcleo de sua concepção de psicologia. Considera primeiro o arco reflexo, porém,
nem mesmo ao apresentar o assunto - e seu livro é destinado aos principiantes - recorre à
simplicidade esquemática que às vezes empregava como recurso explicativo. O conceito de arco
reflexo, na forma por ele usada, implica três princípios. O primeiro é o de que "todo estímulo
sensorial deve exercer algum efeito sobre a atividade do organismo". A resposta não precisa ser
evidente, nem aparecer obrigatoriamente como movimento visível; porém, sempre ocorre
alguma resposta, talvez uma mudança na respiração ou nas pulsações, ou ainda uma variação
das tensões musculares. O segundo princípio é o de que "toda atividade, tanto ideativa como
motora, é iniciada por estímulos sensoriais". Este ponto é apresentado como axioma. Assim
como não há estímulo sem uma resposta correspondente, também não há resposta sem o seu
estímulo. O estímulo, note-se, não se acha obrigatoriamente no ambiente
exterior; pode estar dentro do organismo, como aqueles que se referem à fome, à sede e às
sensações de movimento muscular. O terceiro princípio é o de que existe "um processo
contínuo de interação entre os estímulos sensoriais e as respostas motoras". Cada movimento,
que é uma resposta a uma circunstância sensorial, modifica por sua vez a atividade
subseqüente. Para dar um exemplo simples, uma pessoa pode ter um vislumbre de um objeto
com o rabo dos olhos e responder focalizando diretamente o objeto. Porém, essa própria ação
alterou o campo de visão de tal maneira que os olhos estão agora sujeitos a um conjunto
diferente de estímu'os; e uma vez que o estímulo é agora diferente, a resposta também o será,
e assim por diante, indefinidamente. Destacando como o faz, a interação contínua entre o
estímulo e a resposta, e a complexidade e a sutileza de ambos, Carr não corre o risco de
apresentar a ação reflexa de uma forma simplista e decepcionante.
Estes fatos, entretanto, não explicam o comportamento ackzptativo. Apenas explicam sua
atividade 6 no sentido de que um organismo dotado de aparelho reflexo agirá de alguma
forma se for colocado num meio ambiente capaz de estimulá-lo. Porém, tal atividade não é
obrigatoriamente adaptativa. Uma pessoa que estiver tentando fugir de um edifício em
chamas pode espirrar, porém o espirro não é uma
6 Carr acredita não caber ao psicólogo considerar a atividade no sentido de explicar o porquê
de sua ocorrência. O psicólogo parte de um organismo nascido no mundo vivo e ativo. Seu
trabaiho consiste em estudar a forma e a direção da atividade, e não o porquê de sua
ocorrência. Carr, Psyc1otogy, 72-73.
resposta adaptativa. Um ato adaptativo possui três características: "um estímulo motivador,
uma circunstância sensorial e uma resposta que altera aquela circunstância de forma que
satisfaça as condições motivadoras". Se um homem faminto procura alimento e come até que
sua fome fique saciada, estará reagindo de forma adaptativa. Neste caso, a fome é o estímulo
motivador; o alimento, uma parte da circunstância sensorial, é o objeto estimulante; e o ato de
comer é a resposta adaptativa.
Um motivo, note-se, é um estímulo. Carr define o motivo como "um estímulo relativamente
persistente que domina o comportamento de um indivíduo até que este reaja de maneira a
não ser mais afetado por ele". Os motivos, Carr insiste, não são essenciais à atividade; não
determinam qw esta deva ocorrer; determinam apenas a sua direção. N4 exemplo citado, a
fome é o motivo no sentido de provoca:
uma certa espécie de atividade. Se a pessoa não estivesse f a- minta, poderia responder ao
alimento de qualquer outro modo - sem ingeri-lo.
O objeto estimulante, neste caso o alimento, deve também ser considerado, pois o ato
adaptativo é determinado não só pelo motivo, mas também pelo objeto para o qual é dirigido.
Este objeto é referido como o incentivo, o objetivo ou a finalidade. Um ato adaptativo é aquele
que afeta diretamente o objeto estimulante de alguma forma.
O ato adaptativo, uma vez despertado, prossegue até que suas condições motivadoras sejam
satisfeitas e o estímulo não seja mais eficiente. No exemplo dado, o ato de comer aplaca a
fome, alterando dessa maneira as condições motivadoras e tornando o alimento ineficiente
como objeto estimulante. Porém, existem outras maneiras pelas quais um ato adaptativo pode
ser anulado. A própria continuidade de um ato pode alterar as condições motivadoras; uma
criança pode parar de brincar porque ficou exausta. Ou o ato pode provocar conseqüências
sensoriais que o interrompam; uma pessoa que segura um ferro quente pode deixá-lo cair
devido à dor em suas mãos. Sempre que o ato cessa isso acontece porque a circunstância foi
alterada de tal maneira que as condições motivadoras e o objeto estimulante não são mais
eficientes.
Porém, não se deve supor um só momento que o estímulo motivador e o objeto estimulante
sejam os únicos fatores que determinam o ato adaptativo. Está incluída a circunstância
sensorial total. É muito diferente ver um urso nu-
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Psicologias do SécuZo XX
199
Além disso, um ato adaptativo nos organismos superiores geralmente abrange duas etapas:
uma preliminar de ajustamento cuidadoso e uma final de reação completa em relação ao
objeto. A etapa preliminar inclui atividades, tais como o início e a manutenção de dispositivos
motores apropriados e de ajustes dos órgãos dos sentidos - atividades que tendem a impedir a
distração e preparar o organismo para as respostas mais eficientes, motoras e sensoriais.
Finalmente, ao se considerar o ato adaptativo, deve ser feita uma distinção entre duas séries de
conseqüências. Uma delas já foi mencionada, ou seja, a satisfação das condições motivadoras. A
outra é a produção de certos resultados ulteriores. O comer não satisfaz somente a fome, mas
também nutre o corpo; e as duas séries de conseqüências não devem ser confundidas. Os
efeitos ulteriores de um ato não são o seu motivo. Nem são também o seu objetivo. Carr é
muito claro ao afirmar que um ato não pode ser explicado em função de suas ulteriores
conseqüências. Dizer que nós comemos para nutrir nossos corpos não é uma explicação
científica. O ato de comer, ou qualquer outro adaptativo, deve ser explicado não
em função de suas conseqüências, mas sim de suas condições próximas, dos fatores que o
causam e da situação sensorial. Este ponto é importante porque não deixa lugar para a
suposição que às vezes se faz, de que, por estar interessado na utilidade, o funcionalismo
explica os atos mentais de forma teleológica.
Com esta explicação do ato adaptativo, Carr expõe esquematicamente a sua idéia sobre o
material psicológico em geral. O principal significado de seu modo de tratar reside em que sua
idéia é, em todos os sentidos, um conceito ativo. Em
todo o capítulo, ele reduz o material do funcionalista - atividade ajustadora - a uma análise
minuciosa que equivale praticamente a um plano de pesquisa, e que, de certo modo, assinala a
evolução do funcionalismo, desde revolta até a plena atividade. Além disso, sua concepção do
ato adaptativo revela o ponto de vista geral em que apresenta os fatos reais da psicologia no
resto do livro. Os processos psicológicos são funções dos organismos vivos empenhados no
problema de sua adaptação ao meio ambiente. Estes processos são determinados tanto pelo
estímulo do exterior quanto do interior do organismo. Os organismos são ativos simplesmente
porque nasceram no mundo dotados de vida e de sensibilidade aos estímulos, porém, sua
atividade torna-se adaptativa somente quando um estímulo motivador determina a direção de
um ato que age com referência a um objeto estimulante e produz efeitos que satisfazem às
condições motivadoras. Não existem, entre o organismo e o seu meio ambiente, interrupções
ou abismos intransponíveis; ao contrário, há um permanente e complexo pôr e tirar. A
psicologia trata com fatos que não são redutíveis a termos estáticos, e que por atenderem e
conservarem o organismo, se ajustam ao esquema total da atividade biológica.
200
201
Num plano um tanto diverso, situa-se a crítica de que o funcionalismo não definiu os seus
termos, e que, em especial, deixou impreciso o seu conceito básico de "função". Aceitando o
problema sugerido por este caso, Ruckmick, discípulo de Titchener, procedeu a um exame
cuidadoso dos textos ingleses e norte-americanos, a fim de descobrir como a palavra "função"
é usada na prática real. Encontrou duas classes gerais, nas quais os vários usos da palavra
podem ser classificados. Na primeira, "função" é empregada como sinônimo de atividade; neste
sentido, o perceber e o rememorar são funções. Na segunda classe, esta palavra é usada para
indicar a utilidade de uma atividade para o organismo; assim, pode-se dizer que a função da
ideação é servir como substituto econômico para o sistema motor de tentativa e erro. Este
duplo emprego da palavra foi mencionado por alguns críticos como sinal de confusão e
inconsciência; salientaram que parece possível se referir a uma "função de uma função". Carr,
porém, num recente estudo, 8 argúi sobre os mesmos fatos com uma argumentação bem
diferente. Para ele, o fato de todos os empregos dessa palavra pertencerem a uma dessas duas
categorias, parece indicar um acordo considerável. Alegando, além disso, que os dois usos não
são incompatíveis, observa que os mesmos usos desses termos são feitos em biologia, onde a
palavra "função" indica. às vezes, uma atividade, como a respiração ou a digestão, e em outras
denota a utilidade de uma atividade, como no declarar que a oxidação é uma função da
respiração. Além disso, Carr acha que os dois usos do termo podem ser reduzidos a um único,
pelo emprego do conceito matemático de função, que indica uma relação de contingência sem
dar maiores detalhes dessa relação. Afirmar que a oxidação do sangue é função da respiração
é referir-se a uma espécie de relação, a de utilidade; dizer que a respiração é função dos
pulmões é referir-se a outra espécie de relação, aquela do tipo de função com respeito à
estrutura que age. De maneira idêntica, a psicologia pode falar da função do raciocínio, a fim
de referir-se à utilidade do mesmo em relação a todo o conjunto orgânico. Ou então pode
referir-se ao raciocínio como a uma função para designá-lo como a operação de alguma
estrutura; e quando, como no caso do raciocínio,
7 C. A. Ruckmick, "The Use of the Term Functiøn In English Text -Book of Psychology",
American Journal o! Psychology (1913), 24, 99-123.
8 Harvey Carr, "Functionalism", Psycholog,.es of 1930, compiladas por Cari Murchison, 59-78.
tais estruturas não são bem conhecidas, pode usar o termo "função" para significar alguma
relação com as condições fisiológicas. Porém, a análise de Carr, é importante observar, foi
efetuada depois do fato. O funcionalismo usou primeiro o conceito e definiu-o mais tarde; e
esta seqüência de fatos é característica do movimento. Pois o funcionalismo é antes de tudo
uma tendência numa direção geral; não é um sistema definitivamente esboçado e
intimamente articulado. Para o bem ou para o mal, o funcionalismo nunca se dispôs a colocar
a definição e a sistematização em primeiro plano.
O funcionalismo enfrentou também a crítica, às vezes uma vaga imputação apenas, de que
foge um pouco dos limites estritamente científicos. Esta atitude, ao que parece, remonta à
antiga oposição entre a psicologia do ato e a do conteúdo, na Alemanha - ao contraste entre
os métodos empírico e experimental, entre a observação feita fora do laboratório e os
processos controlados no mesmo, e à crença por parte da psicologia do conteúdo de que a
psicologia do ato é obrigatoriamente de menor rigor científico do que ela. Entretanto, esta
atitude é inaceitável, pois os funcionalistas norte-americanos, tanto quanto os de qualquer
outro grupo, estiveram interessados na experimentação. De fato, não utilizam os processos
padrões da escola titcheriana, mas pesquisam seus problemas sob condições experimentais.
Em seus estudos dos animais, por exemplo, o pesquisador não confia na simples observação
geral; insiste na necessidade de uma disposição cuidadosa e um controle das condições que
revelarão os fatos importantes para determinado problema. Se dermos à palavra
"experimento" o significado que possui na ciência em geral, e não a interpretação de uma
determinada escola de psicologia, o funcionalismo não precisa se desculpar seja pela
quantidade ou pela qualidade dos estudos experimentais que tem a seu favor.
Além dessas críticas, encontra-se a leve suspeita de que o funcionalismo, uma vez que trata com
utilidades, está um tanto eivado de teleologia; e a ciência de há muito tem desconfiado da
teleologia quando ela é incluída em suas explicações. Explicar o que são os olhos dizendo que
foram feitos para enxergar, os ouvidos para ouvir, tem demonstrado ser menos eficiente do que
descobrir as condições próximas que respondem pela estrutura e funcionamento daqueles
órgãos. É ainda assunto de animado debate a questão das explicações teleológicas poderem ser
ou não permitidas na ciência; porém, a questão é sem importância no presente caso porque
202
Edna Heidbreder
Psicologias do Século XX
203
O funcionalismo foi naturalmente acusado, do ponto de vista da ciência pura, de ser apenas
tecnologia e, portanto, de estar num plano inferior ao da busca desinteressada da verdade. É
fato que o funcionalismo nunca tentou livrar-se da utilidade; demonstrou pouco interesse em
conservar-se "puro", e nunca pediu desculpas pelo seu conhecimento ter tido alguma
aplicação prática. Em psicologia, assim como em outras ciências, os prós e os contras da ciência
pura em confronto com a ciência aplicada sempre tiveram os seus adeptos; e em psicologia,
como em tudo o mais, o problema é geralmente resolvido baseado em uma preferência
caprichosa. A esse respeito, Carr faz um comentário interessante sobre a posição
da ciência pura. Se ela é, de fato, "desinteressada", diz ele, não demonstrará nenhum interesse
no que se refere à utilidade ou não de suas descobertas; nem pode reclamar se suas
descobertas sejam de utilidade, ou ter orgulho por serem inúteis no mais alto grau. Uma
predileção pelos resultados que sejam rigorosamente não utilitários representa uma violação
do espírito da ciência pura, que desconhece preferências. Afinal de contas, salienta Carr, é a
adesão ao método científico que torna um estudo científico
- não o assunto com o qual ele trata, nem o ambiente onde se realiza. Certas pesquisas levadas
a efeito nos laboratórios industriais ilustram de modo admirável o espírito da ciência, algumas
mesmo da ciência pura; e teoricamente é bem possível obter-se conhecimentos inúteis dos usos
das
9 Isto não significa que Carr considere a explicação e a descrição como basicamente diferentes.
Apóia a idéia de que a explicação é uma descrição de uma espécie completa fora do comum.
204
Edna Heuibreder
Psicoiogias do Século XX
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processos considerados como a base da experiência pareceram fazer com que esta perdesse
por completo o seu valor. O senso comum dá preferência a algo que possa ser apreendido,
alguma coisa palpável, que possa ser tratado como elemento do mesmo modo que um tijolo é
considerado elemento de uma parede. Além disso, a posição do funcionalismo, com respeito à
questão mente-corpo, empanou um pouco a distinção mente-corpo que está hoje em dia
profundamente arraigada no pensamento humano. Embora o funcionalismo seja dualista no
sentido de admitir os aspectos físico e psíquico da experiência, não o é no sentido de separá- los
na forma que o senso comum herdou do passado. Não define o seu material como psíquico,
nem como físico mas como psicofísico e para muitos esta definição tem falta de clareza. É fácil,
por ser comum, pensar assim em função da mente e matéria, ou da mente ou matéria, e o
funcionalismo, abandonando este modo de pensar, corta um vínculo de entendimento com o
senso comum. Porém, sejam quais forem as dificuldades para conceber o seu material de forma
teórica, o funcionalismo provou pelas suas realizações que o seu estudo pode dar bons
resultados; e isto, é curioso, é o principal motivo por que não se destaca como uma escola em
separado. Os seus métodos e pontos de vista foram aceitos de forma tão
generalizada, que existem atualmente apenas como parte do patrimônio comum da psicologia;
não são mais propriedade exclusiva de uma determinada escola.
Assim, com o funcionalismo, a psicologia norte-americana passou por uma fase de seu
desenvolvimento na qual reuniu e organizou muitas tendências já existentes, utilizando-as com
tal êxito, que passaram para a prática generalizada. Considerar as atividades mentais bem como
os conteúdos, pensar em função de adaptações e ajustamentos, observar os processos
psicológicos em relação ao seu ambiente, encarar o homem como um organismo biológico
adaptando-se ao seu meio ambiente - todos estes processos foram tão amplamente aceitos
em psicologia que já não atraem atenção especial.
Ainda mais, há uma tendência em alguns setores em pensar no funcionalismo como algo do
passado; e de certo modo, este ponto de vista é justificado. Como escola e sistema, o
funcionalismo, embora conservasse algo do seu antigo esp'rit de corps, deixou de ser novidade
e perdeu muito de sua distinção. Porém, se os funcionalistas não estavam querendo fundar uma
escola, mas sim tornar legítimos certos
BIBLIOGRAFIA
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Stout, G. F., A Manual of Psijcholog,j (Nova lorque, Hinds and Noble, 1899).
Iv
(Psicologia do Comportamento)
Seria difícil exagerar a simplicidade da visão com a qual o watsoniano ortodoxo encara a
posição atual da psicologia. De um lado está o behaviorismo, e de outro, a "psicologia
tradicional". As psicologias não behavioristas podem diferir entre si, mas a não ser o fato
surpreendente de serem
departamento de filosofia.
todas mentalistas, as suas diferenças são insignificantes. Têm a mesma base, são todas
dualistas, lidam com a mente e a matéria, e por essa razão não podem ser científicas. Pois, para
Watson, a mente significa claramente algo de extra- natural, sendo que o dualista é alguém que
tenta misturar o que é natural com o que não o é, cometendo, por conseguinte, erro
imperdoável contra a ciência, de não fazer suas descrições em termos totalmente naturais. Se a
psicologia dever algum dia tornar-se uma ciência, precisará seguir o exemplo das ciências
naturais: tornar-se materialista, mecanicista, determinista e objetiva. Pressupor o mental é abrir
caminho para o místico e para a magia. Em vista do behaviorismo procurar fazer da psicologia
uma ciência no sentido exato da palavra, insiste para que a noção de mente seja rejeitada de
modo inequívoco.
Talvez isso tudo pareça um tanto sentimental, porém, seria um erro supor que o behaviorismo
progrediu baseado em simples sentimentalismo. Desde o início, contou com realizações
definidas para apoiar as suas pretensões e apresentou um programa de ação prático. Pois o
behaviorismo, embora iconoclasta, não é somente isso: basicamente, é responsável pela
medida construtiva e decidida de aplicar os métodos e o ponto de vista da psicologia animal à
humana; e em 1913, quando foi fundado oficialmente, a psicologia animal havia conquistado
uma posição que impunha respeito.
As origens da psicologia animal, entretanto, quase podem ser censuradas, pois a mais
importante delas situa-se nas argumentações dos antigos darwinianos que, em sua ânsia de
demonstrar que não existe solução de continuidade entre as espécies humana e animal,
atribuíram irrefletidamente processos mentais complexos aos animais. Na época, a psicologia
animal confiava mais no método anedótico, porém, suplantou aos poucos esta prática
discutível. Sob a influência de Lloyd-Morgan, foi submetida à disciplina da lei da parcimônia, e
os pesquisadores aprenderam logo a se abster de atribuir idéias aos animais, enquanto fosse
possível explicar o seu comportamento de modo mais simples. Além disso, Lloyd-Morgan,
desgostoso com o método anedótico, aperfeiçoou uma forma de observação que se
aproximava da experimental. Fazendo com que os animais realizassem habilidades ou tarefas
em circunstâncias especialmente criadas, observou com cuidado o que eles podiam e o que
não podiam fazer, sob determinadas condições. O progresso
portante a seguir quanto ao método, foi feito por Thorndik, que levou os problemas animais
ao laboratório e concebeu circunstâncias, tais como labirintos e caixas-problemas/que
tornaram possível observar, registrar e mesmo medir as proezas do animal com pormenores.
I1ais tarde, as obras de Pavlov e Bechterev começaram a atrair a atenção dos psicólogos, e
finalmente - nos Estados Unidos, porém, principalmente após o aparecimento do
behaviorismo - os estudiosos do comportamento animal acrescentaram com satisfação o
método do reflexo condicionado aos outros dispositivos que haviam aproveitado dos
laboratórios de fisiologia. Nos Estados Unidos, o interesse pela psicologia animal foi
particularmente intenso e as obras de Margaret Floy Washburn e Robert M. Yerkes muito
contribuíram para mantê-lo. Os processos para estudar a atividade animal melhoraram
i
í.
210
Psicologias do Século XX
Edna Heidbreder
211
Grande parte do caráter típico do behaviorismo provém de sua ligação íntima com a psicologia
animal. Esta é forçosamente objetiva no sentido de que o observador, assim corno o
astrônomo, o físico, ou o botânico, ficam obrigato;a rieite fora do material que estudam. De
fato, enquanto a psIcologia foi definida como ciência da consciência, a consciência do animal foi
normalmente pressuposta como provindo do comportamento motor; porém, mesmo os fatos
sobre o comportamento - sobre aprendizagem, sobre reações inatas, sobre a capacidade de
responder às várias classes de estímulos e coisas parecidas - foram os pontos que mais
interessaram à maioria dos pesquisadores; as indagações sobre a consciência animal estavam
propensas a ser superficiais. E, basicamente, é a tentativa de estudar os animais humanos, na
forma em que os outros animais são estudados, que representa a originalidade verdadeira do
behaviorismo. O materialismo que, às vezes, ele ostenta como radical é, afinal de contas, uma
filosofia muito antiga. Não há nada de novo em dizer que o homem é pó, ou mesmo que é um
animal;
porém, quando isso parte de um behaviorista, está a salvo de uma simples repetição oca de
um velho refrão, por estar defendendo um modo muito prático e definido de perceber e
estudar a natureza humana. Sua declaração significa que o homem deve ser encarado como
uma espécie animal, apenas como uma entre as muitas espécies do mundo animal, sem
representar um caso especial em nenhum sentido básico. Dá a entender ainda um desejo de
estudar as reações humanas exatamente como os outros fatos da natureza são estudados
Que a psicologia norte-americana estava preparada para tal plano ficou bem claro pela
aceitação que deu ao funcionalismo. Pois as mesmas condições que asseguraram ao
funcionalismo uma atenção especial, prepararam o caminho para a vitória ainda mais
espetacular do behaviorismo. Praticamente, este fez o mesmo que o funcionalismo, e de forma
mais impressionante. Cortou o nó górdio, que o funcionalismo havia apenas afrouxado para dar
à psicologia um âmbito maior. O próprio Watson, para ser exato, faz objeção a todas as
tentativas de associar o behaviorismo com o funcionalismo; por mais que os dois movimentos
possam diferir em mentalidade e concepções básicas, são parecidos por exigirem um alcance
maior para a pesquisa psicológica. A questão toda é que os psicólogos norte- americanos
tornaram-se inquietos devido às coibições habituais. Estavam achando os antigos problemas
fracos e sem interesse, estavam "meio enjoados de sombras" e, dirigindo-se para algo que
parecia mais vivo e real, adotaram uma revolta clara e franca. Pois o behaviorismo era muito
melhor do que o funcionalismo como válvula de escape para repressão. Conclamou
os seus seguidores para combater um inimigo que deveria ser completamente destruído, e não
apenas parlamentar com quem pudesse ser induzido a mudar de idéia.
212
Ecina Heidbreder
213
principal interesse, ainda nessa ocasião, estava na psicologia animal. Ele próprio formou o
laboratório animal e, após diplomar-se, permaneceu um ano em Chicago como membro do
corpo docente, encarregando-se do trabalho sobre psicologia animal. Em 1904, seguiu para a
Universidade Johns Hopkins, como professor de psicologia.
Foi durante sua estada em Chicago, entretanto, e com referência ao seu trabalho sobre
psicologia animal, que desenvolveu as concepções básicas do behaviorismo. Como já foi
mencionado, o próprio Watson é contrário a qualquer tentativa de procurar as origens do
behaviorismo no funcionalismo. Para ele, a diferença em suas atitudes quanto ao
reconhecimento da consciência separa, profunda e essencial mente, os dois pontos de vista.
Todavia, foi bem típico do funcionalismo considerar o homem como um animal reagindo ao
seu meio ambiente, e esta atitude é uma das que o behaviorismo aceita como certa. Foi,
também, a mesma que tornou o funcionalismo tão favorável à psicologia animal, solo onde
cresceu o behaviorismo.
Em seus estudos dos animais, Watson tornou-se cada vez mais convencido de que a psicologia
animal é uma ciência por direito próprio, totalmente apta a manter-se por suas próprias forças e
sem nenhuma obrigação de traduzir suas descobertas em termos mentalistas. Convenceu-se,
ainda mais, que os métodos da psicologia animal poderiam ser aplicados com proveito à
psicologia humana; e que esta realniente melhoraria muito se, pondo de lado toda alusão à
consciência, estudasse os seus pacientes como os animais são estudados. Em primeiro lugar,
expôs as suas idéias em palestras com seus colegas. Angeil, nessa época diretor do
departamento de psicologia da Universidade de Chicago, embora inteiramente de acordo com
algumas idéias de Watson, aconselhou-o a não ser responsável por uma psicologia humana
desprovida de consciência. Watson, entretanto, manteve a sua posição e, em 1912, expôs suas
idéias mima série de palestras na Universidade de Colúmbia. A primeira declaração publicada de
sua posição apareceu em 1913, em arti. go intitulado "Psychology as the Behaviorist Views It".
Um estudo, "The Image and Affection in Behavior", 6 veio
421-428.
Titchener não pôde deixar de se manifestar a este respeito. Em uma de suas polêmicas mais
decisivas, definiu-se dizendo que as descobertas não expostas em função da consciência,
simplesmente não são psicológicas. Podem ser interessantes, importantes e mesmo valiosas
para a psicologia; mas não são psicologia propriamente dita. Watson replicou que a única
psicologia digna do nome de ciência deve provir dessas descobertas; e que uma psicologia da
consciência é apenas falsa ciência. E como acontecera no caso do funcionalismo mais de dez
anos antes, Titchener deu distinção e significado impressionante ao movimento a que se
opunha, tomando uma posição decisiva contra o mesmo.
Seu livro seguinte, publicado em 1919, foi Psychokgy from the Standpoint of a Behaviorist. Aí,
os princípios da psicologia animal são decididamente ampliados para abranger a humana. A
tese principal do livro é a de que o ser humano e todas as suas atividades podem ser explicados
se considerarmos o indivíduo como máquina que responde aos estímulos. As palavras que
implicam consciência são escrupulosamente evitadas. O livro é notável, também, pela inclusão
que faz das descrições das pesquisas que Watson havia realizado sobre as reações inatas das
crianças e das
7 E. B. Tttchener, "On 'Psychology as the BehaviOrlSt Vlews It' ", Proceedings of the American
PhLosophicat Society (1914), 58, 1-17.
Psscologias do Século XX
214
Edna Heidbreder
215
suas primeiras aquisições pela experiência. O destaque dado a este material demonstra o
reconhecimento concedido pelo behaviorismo à importância da infância no desenvolvimento
humano e à do método genético de estudar as reações humanas.
O terceiro livro de Watson, Behciviorism, surgiu em 1925. 8 Embora seja uma apresentação
mais popular de seu ponto de vista, tem a mesma seriedade que os anteriores. "Todos os
esforços, escreve o autor no prefácio, foram feitos para apresentar os fatos sem deformações e
relatar posições teóricas com exatidão." Este livro difere dos anteriores em dois pontos
principais, O primeiro é o de que a atitude de aprovação com respeito à psicologia aplicada é
visivelmente mais pronunciada do que antes. Mesmo em 1919, apresentando o seu problema
como a "predição e o controle" do comportamento, Watson tornou-se responsável de modo
inequívoco por uma psicologia que apresenta resultados na prática; porém, no livro publicado
em 1925, demonstra um interesse ainda maior pelas aplicações práticas do conhecimento
psicológico. Não satisfeito em apenas compreender a máquina humana, apresenta sugestões
para alterá-la e melhorá-la. A segunda nova posição adotada neste livro diz respeito à
hereditariedade. Negando completamente a existência dos instintos, da inteligência inata e dos
"dons" inatos de qualquer espécie, Watson declara que aquilo que comumente chamamos de
instintos, dons especiais e habilidades inatas são, na realidade, resultado do meio ambiente e
do treinamento. Esta atitude naturalmente dá enorme ênfase à importância da infância e
dos primeiros anos de vida como o período de formação mais importante da vida humana.
Os contornos do behaviorismo são diagramaticamente claros. O objeto da psicologia é o
comportamento - e não conteúdos conscientes, nem funções mentais ou processos
psicofísicos de nenhuma espécie, mas sim movimentos no tempo e no espaço. O
comportamento é a atividade do organismo como um todo, assim como a digestão, a
respiração e a secreção são atividades de determinados órgãos. Da mesma forma que a
fisiologia estuda as funções do estômago, dos pulmões e do fígado, a psicologia estuda as
atividades dos corpos vivos completos. Os pulmões respiram, o corpo todo
comporta-se. Tanto a respiração como o comportamento são atividades das estruturas físicas
e, como tais, podem ser estudadas pelos métodos objetivos que caracterizam toda a ciência.
São aceitos como válidos somente os métodos objetivos. A introspecção é de todo rejeitada;
sua pretensão esmerada de observação cuidadosa é fútil e irrealizável desde o início. Mesmo
que houvesse estados de consciência para o introspeccionistà observar - e sua existência nunca
pode ser provada cientificamente - é sempre impossível que dois observadores vejam a mesma
coisa. Ninguém pode ver os pensamentos e os sentimentos de outra pessoa, e nada do
que seja acessível somente pela inspeção individual chegará a produzir conhecimento objetivo.
A psicologia possui vários métodos objetivos à sua disposição. A observação é, naturalmente,
básica para todos os processos, e as observações científicas podem ser feitas com ou sem
instrumentos. O primeiro caso pode ser exemplificado pelos estudos fotográficos dos
movimentos dos olhos durante a leitura, o segundo no clássico trabalho de Fabre sobre os
insetos. Os testes psicológicos são também aceitos, mas sem entusiasmo, e com a compreensão
clara de que não são testes "mentais" - que não testam a "inteligência" ou as
"aptidões especiais" como aspectos da "mente". Quando um behaviorista utiliza testes,
considera-os apenas como medidas do comportamento - das respostas do paciente, verbais ou
outras, às circunstâncias objetivas que os testes apresentam. O behaviorismo chega a aproveitar
alguns dos métodos da antiga psicologia. A medida do tempo de reação, por exemplo, é aceita
como tõtalmente objetiva. O mesmo se dá com as experiências sobre a memória, pois
Ebbinghaus e seus seguidores estudaram a formação, a retenção e o declínio das associações
em função de atos e circunstâncias objetivas. A aceitação das experiências sobre a memória é
acompanhada naturalmente pelo indispensável aviso de que não existe nada "mental" a
respeito da "memória"; que esta significa apenas a reprodução de reações após um certo tempo
durante o qual não foram praticadas. O behaviorismo reconhece, também, os métodos da
psicologia aplicada, educacionais e industriais, uma vez que certos problemas, como determinar
os lucros da publicidade e medir a eficiência do aprendizado ou de operações industriais em
certas circunstâncias, podem ser pesquisados comparando-se
atos objetivos definidos com circunstâncias objetivas específicas. O pró-
216
P8icologia8 do Século XX
Edncz Hekibreder
217
prio "relato verbal" é aceito como fonte de informação, mas nas mãos do behaviorista o
comentário do paciente sobre o seu próprio estado ou sua atividade recebe exatamente a
mesma atenção dada a quaisquer outras reações manifestas. Elas não são, certamente,
consideradas como estados de consciência. Se alguém diz "estou triste", sua declaração é tida,
juntamente com sua postura lânguida, talvez como sintomática do estado de todo o seu
sistema de reação. Nunca é aceita como um indício de um estado "mental".
Um método objetivo, entretanto, é tão importante na concepção behaviorista que deve ser
destacado para receber uma atenção especial. Esta é a técnica do reflexo condicionado
desenvolvida por Pavlov e seus discípulos. A menção do reflexo condicionado é a proclamação
de um tema que se torna rapidamente predominante na psicologia behaviorista. Pois o
processo de "condicionar" não só revela um novo meio de pesquisar o comportamento; é
também, em grande parte, responsável pelo seu caráter.
Uma resposta é "condicionada" quando se torna asso" ciada a um estímulo que anteriormente
não a provocava. Uma experiência de laboratório de Pavlov tornou-se o exemplo clássico. Em
cães, a resposta salivar é primeiramente despertada pela presença de alimentos sobre a língua;
isto é, o alimento é o "estímulo apropriado" para a resposta da salivação. Na experiência, uma
campainha é tocada toda vez que o alimento é apresentado, e após um certo número de
repetições, a campainha sozinha, sem o alimento, provocava a resposta. Em outras palavras,
um estímulo que micialmente não eliciava a resposta, passa a fazê-lo depois de participar
seguidamente da circunstância para a qual a resposta foi feita. Esta experiência, embora
encerre um caso muito simples de reflexo condicionado, ilustra o princípio de todo o
condicionamento. Às vezes, como no exemplo dado, a resposta permanece a mesma e um novo
estímulo é apresentado. Outras vezes, o estímulo permanece o mesmo e uma nova resposta é
apresentada, como no caso da criança que, em vez de indicar um objeto, aprende a chamá-lo
pelo nome. Porém, em ambos os casos, deu-se modificação do comportamento; em cada caso,
a associação inicial entre o estímulo e a resposta foi alterada.
A grande vantagem deste método é a sua completa objetividade - de grande valor nos
primeiros tempos quando o behaviorismo ansiava em mostrar que não havia setor da
psicologia, nem a própria sensação, que lhe fosse inacessível. Na prática real, entretanto, o
reflexo condicionado não demonstrou ser uma unidade de comportamento bastante estável
para servir como instrumento de pesquisa. Porém, a idéia de usá-lo tem valor como exemplo
da posição inflexível que o behaviorismo assume a favor dos métodos objetivos de pesquisa.
218
Psicologias do Século XX
Edna Hei4jbreder
"Dêem-me doze crianças sadias, de boa constituição e a liberdade de poder criá-las à minha
maneira. Tenho a certeza de que, se escolher uma delas ao acaso, e puder educá-la,
convenientemente, poderei transformá-la em qualquer tipo de especialista que eu queira --
médico, advogado, artista, grande comerciante, e até mesmo em mendigo e ladrão,
independente de seus talentos, propensões, tendências, aptidões, vocações e da raça de seus
ascendentes." Ii
219
todo o saber. A partir de poucas respostas simples que a criança tem acumuladas, em grande
parte através do aprendizado ou condicionamento, porém, parcialmente através do
crescimento e da maturidade, são elaboradas todas as atividades complexas que os adultos
manifestam. Os chamados instintos são produzidos desse modo. A combatividade, a confiança
em si, a curiosidade e coisas parecidas - todas as atividades que normalmente chamamos de
instintos - são integrações extremamente complexas de reações que, por meio do
condicionamento, foram reunidas e associadas a determinados estímulos. Este processo, quase
sempre muito trabalhoso, é do tipo no qual o meio ambiente social é muito importante e em
que o período da infância é de vital importância. Porém, do princípio ao fim, o processo é de
aprendizagem. Os "instintos" não são herdados.
As emoções, também, são em grande parte reações aprendidas. Três espécies de respostas
emocionais, e somente três
221
220
Edna Heidbreder
respostas primitivas de medo - seu início, choro, e fuga - podem se modificar bastante pela
substituição de outras reações por meio do condicionamento. Porém, embora haja muitas
ramificações, embora sejam intricadas as ligações, o padrão emocional complexo resulta do
aprendizado ou condicionamento.
Assim são também os sistemas complexos dos hábitos e das habilidades motoras aos quais
Watson chama de "hábitos manuais". Estes distinguem-se por um lado das atividades
emocionais ou "viscerais", e por outro dos hábitos "laríngeos", expressão que os behavioristas
aplicam comumente aos pensamentos Os hábitos manuais incluem habilidades definidas, tais
como escrever, datilografar, pintar e guiar um carro, e os modos de comportamento gerais,
como os que fazem uma pessoa ser pontual, ordeira e perseverante. Os hábitos manuais são
formados pelos movimentos "ao acaso" do tronco, braços, pernas, mãos e dedos. Embora
aceitando que a maior parte do processo da aprendizagem motora continua até agora
desconhecida, Watson acreditava firmemente que todo o processo pode ser reduzido ao
mecanismo da resposta condicionada. Por exemplo, numa atividade, como a de tocar escalas ao
piano, cada resposta isolada é, de início, convertida em estímulo visual, seja no teclado ou na
nota impressa na música. Porém, à medida que esta atividade é praticada cada vez mais, o
movimento de um dedo torna-se o estímulo do movimento do dedo seguinte e, às vezes, a
escala toda pode ser executada sem o estímulo visual das notas ou teclas. Cada movimento foi
condicionado ao precedente e a indicação visual não mais é necessária. O resultado disso é que
as reações de início separadas umas das outras foram reunidas para formar um padrão
unitário. Se forem usadas as duas mãos, as ligações tornam-se mais complexas, e se tocarem
acordes com ambas as mãos, serão formados sistemas de ligações ainda mais altamente
organizados. Porém, a unidade é sempre a reação condicionada. Além disso, a simples
repetição ou proximidade no tempo do exercício são suficientes para explicar a formação do
hábito. Watson é inteiramente contrário à teoria de que o "prazer" ou a "satisfação" tendam a
fixar reações agradáveis e o "aborrecimento" ou "insatisfação" a eliminar as desagradáveis. Sua
crítica dessa teoria inclui vários pontos técnicos, porém, sua objeção principal surge do fato de
que o "prazer"
Psicologvls do Século XX
e a "satisfação" lhe parecem implicar a intervenção de uma força mental. A aprendizagem, sei
a qual for a sua natureza exata, é uma questão completamente material e mecânica.
"Hábitos laríngeos" é a expressão do behaviorista para significar pensamento. Desenvolvem-se
pela vocalização ao acaso, não aprendida, exatamente da mesma forma que os hábitos manuais
se formam dos movimentos ao acaso dos músculos e do tronco. A linguagem manifesta-se em
primeiro lugar. Por um processo de condicionamento, a criança aprende palavras; e estas, por
poderem ser substituídas por coisas ou situações concretas, dão-lhe o poder de manejar o seu
meio ambiente sem fazer os movimentos reais visíveis. Isto é tudo o que significa pensar. Um
homem pensa - isto é, realiza reações verbais implícitas - da mesma forma que um rato faz
movimentos musculares visíveis em um labirinto. As palavras do homem e os chiados do rato
através do labirinto são atividades por meio das quais o animal realiza uma adaptação a uma
circunstância para a qual de início lhe falta uma resposta adequada. A grande vantagem de
pensar está em ser mais econômico, em parte porque exige uma porção muito menor da
musculatura do corpo, e também porque pode ser realizada uma ação implicitamente sem risco,
perda de tempo e esforço, e sem o possível acidente que a
ação real poderia provocar. Novamente é feita a advertência inevitável; não há nada de
misterioso sobre o pensar. Suas operações, para ser exato, são internas e, portanto, invisíveis
para quem olha de fora, porém, nada existe dentro do corpo que seja diferente do mundo
externo - certamente nada "mental" ou imaterial. Além disso, a linguagem só aos poucos se
torna interna ou "implícita". De início, a criança utiliza os movimentos visíveis da linguagem
falada; depois, em grande parte devido ao seu meio ambiente social, aprende a reprimir sua
linguagem por gestos e os substitui por movimentos implícitos. Porém, aqueles continuam,
sub- vocais e implícitos, e representam tudo que se relaciona com o pensamento.
Embora haja sido feita uma distinção entre o comportamento manual e o laríngeo, ela não é
absoluta. A função da linguagem pode ser efetuada por qualquer movimento do corpo por um
encolhimento de ombros, um franzir da testa, um gesto, uma inclinação da cabeça, um
estiramento geral dos músculos; por qualquer movimento que seja, bastando que represente
um objeto ou circunstância, como no caso de uma palavra ou frase. É realmente a regra, e não
222
Edna Heidbreder
a exceção para o corpo todo, estar incluído numa atividade. O behaviorjsmo formula a
pergunta: "É o pensamento exclusivamente uma questão de mecanismo da linguagem?" A
resposta é "não" se a expressão "mecanismo da linguagem" se refere à linguagem somente,
com exclusão das atividades viscerais e manuais. Porém, se a expressão é usada para contrastar
o pensamento com a atividade mental, se se refere a qualquer movimento do corpo que realiza
a função da linguagem, a qualquer movimento que, como uma palavra, pode ser substituído por
algum objeto ou circunstância, a resposta é enfaticamente "sim". Além disso, as reações
manuais não se efetuam comumente sem uma verbalização implícita. É esta, de fato, que as
mantém sob controle. Podemos orientar nossos atos quando podemos fornecer sugestões
verbais; "sabemos" o que estamos fazendo, e como fazemos, quando podemos falar sobre isso,
implícita ou abertamente. Por via de regra, os três fluxos de atividade, manual, laríngea e
visceral, realizam-se ao mesmo tempo. Quando a laríngea está ausente, a atividade acha-se
descontrolada; daí ser a presença da verbalização da máxima importância prática.
Existem duas classes de reações, entretanto, das quais a verbalização está geralmente ausente
- as respostas emocionais e o comportamento da infância e da primeira infância. Naturalmente,
a verbalização não se pode verificar antes da linguagem ser aprendida; e, mesmo no caso de
adultos, uma vez que a linguagem foi criada em grande parte referindo-se a um mundo externo,
os seres humanos têm falta de palavras para a maioria dos fatos que se dão dentro de seus
corpos, principalmente para aquelas reações incertas e difíceis de localizar de que se constituem
as emoções. Assim, desenvolveu-se um sistema de reações não verbalizadas, principalmente
infantis e viscerais, as quais, por não serem faladas, influenciam o comportamento de seu
paciente de uma forma incontrolável. A este sistema pertencem as aversões vagas, temores,
preferências, saudade, preconceitos, todas as espécies de atitudes, infantis e emocionais, que
podem ser injustificáveis de forma intelectual e mesmo irreconhecíveis, porém, que não são
menos tenazes e certamente não menos potentes. Na terminologia de Watson, o "não
verbaaura
Todas essas reações reunidas - verbal, visceral, manual, real e potencial - constituem a
personalidade. Não há nada de misterioso a respeito da personalidade. Ela não é
Psicologias do Século XX
223
"algo indefinível" mas sim um sistema de respostas, a soma total das reações e tendências à
reação, de um indivíduo. O termo personalidade é usado muitas vezes para significar
especialmente o valor social de um indivíduo; em tais casos, se caracteriza por palavras, como
"dominador", "encantador", "repelente", "magnético" ou "fraco". Porém, este aspecto da
personalidade, como todos os demais, é explicável em função do estímulo e resposta. A
personalidade dominadora, por exemplo, é a que através de seus próprios traços e conduta -
por um modo autoritário de falar, um ar de segurança, uma estatura que se impõe, um porte
digno - desperta nos outros as respostas de submissão que na infância apresentaram, sem
refletir, diante dos adultos. Por ser a personalidade apenas um sistema de reações, pode ser
estudada pelos métodos tradicionais da ciência. Só não pode ser estudada de modo completo
na atualidade, porque não foram ainda desenvolvidos métodos adequados; nada existe na
personalidade que necessariamente se esquive à consideração científica. Conhecer uma
personalidade é possuir informação específica sobre os hábitos de trabalho do indivíduo, sua
educação, atitudes, realizações, tendências emocionais dominantes, adaptabilidade social,
recreações e desportos favoritos, vida sexual, reações aos padrões convencionais, traços
especiais e compensações para os ajustamentos não satisfatórios. Isso não quer dizer que seja
possível analisar a personalidade de uma vez por todas. A personalidade modifica-se à medida
que as antigas reações são abandonadas e se adquirem outras novas. Na psicologia do
behavioris, personalidade não subsiste raite através detQ4 as vicisitüdj.daçomo acontece com a
alma da teologia. Iorém, os conjuntos de hábitos predominantes em qualquer ocasião
representam a personalidade nessa época.
224
Edncj Heidbreder
Uma delas é a sua atitude especial em relação ao sistema nervoso. Na opinião de Watson, a
psicologia convencional deu, sem razão, uma importância exagerada, e também inútil, à
estrutura corporal. Realmente, pouco se conhece a respeito das funções do sistema nervoso.
Os "quadros de quebra-cabeças" nos livros didáticos e as legendas que os acompanham são,
em sua maioria, resultado de especulação gratuita, feitos de propósito para se adaptar aos
fatos que pretendem explicar. O sistema nervoso, diz Watson, é uma "caixa de segredos", um
lugar no qual uma psicologia mentalista lança seus problemas para criar a ilusão de que foram
explicados. Além disso - e essa objeção é bem típica - a preocupação com o sistema nervoso é
puro exagero; é o hábito de uma psicologia interessada em mentes e talvez com o que se
passa na cabeça e no cérebro. Porém, um dos ensinamentos mais destacados do behaviorismo
é o de que a psicologia deve estudar o corpo todo - músculos lisos e estriados, vísceras e
glândulas, receptores e conexionadores, carne, sangue e ossos." Deve estudar o sistema
nervoso, é evidente, porém, apenas como uma das estruturas do corpo, e não como a principal.
Se existe algum conjunto de órgãos que o behaviorista isola para dar uma atenção especial, são
os músculos e as glândulas, pois os efetores são os órgãos da conduta par exceilence. É bastante
significativo Watson explicar a aprendizagem associativa em função do que acontece nos
músculos mais do que no cérebro. Se um movimento muscular se torna o estímulo do seguinte,
o fenômeno todo lhe parece evidente - mais acessível e, portanto, menos misterioso do que as
associações efetuadas no interior do cérebro. Watson está bastante interessado em que os
músculos lisos e glândulas, órgãos da emoção, recebam, também, a sua parte de atenção; os
seres humanos, diz ele, estão "terrivelmente à mercê" de suas glândulas. A sua recusa em
destacar o sistema nervoso é, de fato, uma expressão de suas opiniões básicas. Uma delas é a
sua convicção de u
cologia deve estudar o organismo como um o o ; outra e a áua aver ioi ii uearnvjsivejnacessível
niesmo quando a invisibilidade e a inacessi 1 1 a
P8icologias do Século XX
225
O behaviorismo tem também uma opinião especial com respeito à hereditariedade. Em 1919,
no livro Psychology from the Standpoint of a Behaviomst, Watson, em uníssono com a maioria
dos psicólogos da época, admitiu a emoção e o instinto como um comportamento hereditário,
em contraste com os hábitos ou comportamento aprendidos. Porém, mesmo então, ainda de
acordo com muitos psicólogos, demonstrou um completo ceticismo em considerar os padrões
superiores de comportamento como hereditários. Admitiu como inatas somente três emoções,
o medo, a raiva e o amor; e considerou como reações instintivas somente coordenações
ssimples, como as existentes no amamentar e alguns movimentos primitivos de defesa. Logo
após o aparecimento de seu livro, entretanto, o conceito global de instinto foi submetido a uma
crítica sem precedentes. A pergunta foi feita:
O último ponto sugere outra característica do comportamento, isto é, o seu interesse pelo
controle prático dos assuntos humanos. Devido ao seu desprezo por tudo que não seja
estritamente científico, o behaviorismo não possui
12 Z. Y. Kuo, Glvlng up Instlncts In Psychology', Journal of Philosohj (1921), 18, 645-663; °HOw
Are Our Instincts Acquired", Psychoiogical Reinew (1922), 29, 344-365.
226
227
um só traço do escárnio com o qual a ciência pura às vezes encara a ciência aplicada. O
behaviorismo está decididamente interessado no bem-estar e na salvação - a salvação
estritamente secular - da raça humana. O behaviorista não examina o seu material com o
desinteresse que desconhece valores; sabe distinguir o bem do mal. Watson, por exemplo, não
se contenta apenas em observar os temores das crianças e verificar as condições pelas quais são
adquiridos e perdidos; considera a maioria desses temores como infortúnios evitáveis, e procura
meios e maneiras de afastá -los Não observa também com calma desinteressada que existem
falsos profetas na terra - ledores do caráter, psicanalistas, e falsos psicólogos que recebem paga
pelos seus falsos trabalhos. Lamenta com palavras grifadas que isto seja assim e sente que é seu
dever e prazer denunciá-los. Naturalmente, num estudo inteiramente desinteressado do
comportamento humano, nem o covarde ou o fanático, bem como o introspeccionista e a
fraude, provocariam o mais leve estremecimento de desaprovação ou compaixão. Porém, o
behaviorisrno não pretende ser uma psicologia desinteressada. É
francamente uma ciência aplicada, que procura colocar a eficiência do engeheiro a serviço dos
problemas da reforma. É verdade que a direção exata da reforma não está totalmente
estabelecida. Às vezes, com a sabedoria proverbial do homem prático, o behaviorismo parece
dizer que a sociedade estabeleceu os padrões aos quais a humanidade deve se adaptar; porém,
outras vezes indica que aqueles mesmos padrões foram estabelecidos com uma ignorância
total das limitações e das possibilidades da máquina humana. Às vezes, a crença na
possibilidade de melhorar a conduta humana atinge alturas espantosas. No parágrafo final do
livro Behaviorism, no qual o autor denuncia muitas vezes a loucura das crenças que não se
baseiam nos fatos provados da ciência, diz Watson:
"Estou tentando provocar um estímulo nos leitores, um estímulo verbal que, se obedecido,
mudará aos poucos todo o universo. Pois este se modificará se educardes os vossos filhos, não
na liberdade dos devassos, mas sim na do behaviorista - a qual não podemos nem descrever
por meio de palavras, tão pouco sabemos a seu respeito. Essas crianças, por sua vez, com suas
melhores maneiras de viver e pensar, não nos substituirão na sociedade, e por sua vez, não
educarão também os filhos de uma forma ainda mais científica, até que o mundo se torne
finalmente um lugar digno para ser habitado pelos seres humanos?"
Porém, se os seres humanos devem ser melhorados, é necessário começar nos primeiros
momentos da vida, e o reconhecimento da importância da infância é outra das características
notáveis do behaviorismo. A infância é interessante para o behaviorismo em parte do ponto de
vista da metodologia. Observando as crianças, o estudante pode ver a conduta em formação;
pode observar o acervo de reações que um ser humano possui ao nascer e descobrir as
maneiras pelas quais são modificadas. Porém, a infância é também importante do ponto de vista
do controle prático do comportamento, pois nela são estabelecidos os próprios fundamentos do
comportamento. Nestes primeiros anos, certamente antes de ter seis anos de idade, uma
pessoa é formada ou arruinada. É durante esses anos que ela aprende a enfrentar
o mundo com temor ou confiança, com hostilidade ou amizade, a sucumbir às dificuldades ou a
dominá-las, a esperar sucesso ou derrota; estes anos, em resumo, são um período durante o
qual ela adquire suas atitudes e hábitos, em grande parte viscerais e também não verbalizados,
que irão constituir sempre o âmago de sua personalidade, e que formam os alicerces da
poderosa parte "não verbalizada" de seu ser. O próprio interesse de Watson neste
setor é inconfundível. Algumas de suas pesquisas mais importantes foram sobre as reações das
crianças, e seu livro The Psychologiccil Care of the' Infant and Chitd é dedicado ao primeiro casal
que conseguir criar uma criança feliz.
Porém, sob estes traços específicos do sistema, encontra-se uma característica tão difundida
que não se adapta de modo especial a nenhuma outra doutrina. Talvez deva ser descrita em
primeiro lugar como uma reação de recuo, equivalendo quase a um afastamento de qualquer
coisa que sugira a palavra "mental". Esta atitude é mais do que uma calma convicção de que a
psicologia foi prejudicada por um interesse pela consciência e introspecção; é uma forte aversão
por todo o conceito de mente. Pois, para Watson, o mental significa aquilo que não é natural, e
até sobrenatural. Representa um modo de encarar as coisas totalmente antitético ao da ciência.
Significa almas e animismo, milagres e mistério. Sugere credulidade e espanto, em lugar de
ceticismo e pesquisa; um mundo invisível, em vez de fatos de observação;
especulação e palavras, ao invés de experimentação direta. Assim que Watson vê uma teoria
que inclui o mental, já a considera como fracassada. Naturalmente, ele não prescinde da
evidência e da avaliação crítica da mesma.
228
Edna Heidbreder
Porém, não se pode deixar de ter a impressão de que as suas investidas contra a consciência,
imagem, sentimento e instinto são determinadas antes de tudo pelo fato de vê-los como
implicando algo de imaterial e, portanto, sobrenatural; e que a questão já está de fato
resolvida para ele no momento fatal em que vê o conceito como algo abrangendo uma
aceitação do mental.
Por causa desta atitude, o behaviorismo tornou-se mais do que uma simples escola de
psicologia; veio a ser uma cruzada contra os inimigos da ciência, e neste papel ela assumiu,
mesmo num grau maior do que muitas escolas de psicologia, algo do caráter de uma religião.
Seus adeptos são dedicados a uma causa; estão de posse de uma verdade que nem todos os
homens têm a coragem, a sabedoria, ou a inteligência para aceitar; e grande parte do poder
do behaviorismo, como um movimento ativo, provém desse fato. Pois, a maioria dos jovens
norte-americanos sofreram, de algum modo, a influência do fundamentalismo, manifesto ou
sutil, e alguns, em sua revolta contra o mesmo, encontraram um maior sentimento de
liberdade ao aceitar o credo bem definido, obstinado, inequívoco do behaviorismo ortodoxo. É
interessante a esse respeito observar que as palavras, para muitos behavioristas, assumem algo
da importância que adquirem nos cultos primitivos; em especial que algumas são consideradas
tabu. Toda ciência, naturalmente, tem cuidado com sua terminologia; porém, há mais do que
interesse costumeiro de evitar significados secundários que confundem, mais do que a
exigência comum de exatidão, no desvelo com que o behaviorismo conserva pura a sua
terminologia. Está disposto a recorrer a todos os tipos de rodeios para evitar palavras como
"consciência", "sensação", "idéia", "vontade", "prazer" e "imagem"; e, se numa necessidade, é
forçado a empregá-las, cerca-as escrupulosamente com o cerimonial de notas explicativas. É, de
fato, uma das coisas curiosas e significativas do behaviorismo o fato de ter adquirido algumas
das atitudes emocionais geralmente associadas com o conceito de vida, que considera seu maior
inimigo. Suas proibições não são apenas as medidas preventivas da ciência; são meios de defesa
contra uma idéia rejeitada a respeito da vida.
do 2culo XX
229
pacidade para se entregar sem reservas às suas tarefas. Alinhando o certo de um lado e o
errado de outro, o behaviorismo conseguiu um sistema com contornos definidos e claros.
Como concepção, possui a firmeza e a exatidão que caracterizaram o estruturalismo, e em
parte por este motivo tornou-
-se, como aquele, um ponto de referência indispensável na psicologia norte-americana.
Existem, naturalmente, behaviorismos e behaviorismos. O que foi dito se aplica ao
behaviorismo watsoniano, porém, modificações deste sistema surgiram em toda parte. Aliás,
poucos psicólogos intitulam-se behavioristas sem uma classificação. Alguns aprovam de bom
grado o afastamento da consciência, porém, recusavam-se a aceitar as idéias de Watson sobre
a hereditariedade. Alguns argumentam contra a doutrina da formação pelo condicionamento,
porém, acreditam que devem ser usados somente métodos objetivos. Às vezes, tentou-se
sobrepujar o próprio Watson, e aceitações e rejeições foram experimentadas em toda espécie
de combinações. Como resultado, a psicologia behaviorista é absorvida aos poucos pela
psicologia em geral e, o que é estranho, o resultado não é a desordem. Graças à clareza dos
ensinamentos de Watson eles
em ra não ermanente elo qua o os os desvios odem ser ava ia os. O resultado é uma me or
comunicação entre as psicologias behavioristas e não-behavioristas que, com uma integração
pacífica, resultou em enormes conquistas para o behaviorismo. Pois, nem mesmo o
behaviorismo, com toda a sua audácia e caráter pitoresco, tomou a psicologia de assalto. De
fato, ela conquistou a imaginação pela violência; porém, sua influência nas práticas reais da
ciência foi obtida por um processo muito mais eficiente no sentido de provocar modificações
duradouras - por uma infiltração constante nos costumes.
230
Psicologias do Século XX
231
Edna Heidbreder
A linha de influência do behaviorismo mais direta foi a que resultou de sua insistência para que
fossem usados somente métodos objetivos, O behaviorismo, naturalmente, não introduziu os
métodos objetivos na psicologia. Desde a época de Fechner e Helmholtz, esses métodos haviam
tido um lugar de destaque, e assim foi mesmo nos dias em que a introspecção era proclamada
como um método típico da psicologia. O behaviorismo certamente não significa apenas o uso de
mais instrumentos de metal; já os havia muitos na psicologia mais antiga. Porém, por insistir em
métodos objetivos e no seu uso exclusivo, o behaviorismo provocou uma variação de ênfase
que equivale a uma revolução. Penetrou tão a fundo nos costumes prevalecentes de forma a
modif icar os próprios problemas que surgem em psicologia. Com suas origens na psicologia
animal e com seu hábito de observar o organismo todo em atividade, o behaviorismo apoderou-
se de problemas que são mais evidentes, de alcance mais amplo, e muito mais prováveis de
serem considerados como vitais do que as dissecações incrivelmente minuciosas dos estados de
consciência para as quais os introspeccionistas dedicaram o melhor de seus esforços. Mesmo
em sua mesquinhez e intolerância, o behaviorismo foi importante; pois não somente justifica
novos problemas, como também denuncia os antigos como ridículos. Tomando a posição do
vigoroso senso comum, congratula- se por ter algo melhor que fazer do que duvidosas
discriminações entre os matizes do
azul, e determinar se existe ou não um efeito vítreo nas imagens. Francamente orgulhoso por
manter o campo de observações aberto para todos - em tratar com movimentos visíveis e
registráveis, com traçados de folhas quimográficas, e com leituras de ponteiros que todos
podem ver - o behaviorismo se compraz em limitar seus estudos ao material que desperta a
convicção imediata de que realmente existe "alguma coisa ali". Como resultado de sua atit'ide
enérgica, mesmo aqueles estudos que ainda fazem uso n,jderado da introspecção apresentam
traços da influência behaviorista. De fato, um dos sinais do vigor deste movimento de
extraordinário poder é a maneira pela qual tentou conseguir que suas atitudes fossem
reconhecidas por aqueles que se opunham às suas doutrinas básicas. Mesmo os seus tabus são
circunspectos, talvez de um modo especial. Existe uma tendência, mesmo entre os psicólogos
que acreditam pia- mente no seu direito de levar em conta a consciência, em dar ênfase aos
registros objetivos de suas descobertas, e às vezes a explicar que, embora incluam a consciência
em seu próprio pensamento, suas declarações se aplicam igualmente para a conduta com a
consciência deixada à parte. Desde o aparecimento do behaviorismo, a introspecção e os seus
resultados têm menos probabilidade de se sustentar por si sós; são completados e mesmo
apoiados por dados objetivos. Não só entre os seus adeptos, como também na psicologia norte-
americana em geral, o behaviorismo aumentou grande- mente o destaque dado aos métodos
objetivos de pesquisa.
Pswologias do Século XX
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Edna Heidbreder
rados com os de grupos adequados de controle. Estes estudos, na linha divisória entre a
fisiologia e a psicologia, exigiram o uso de técnicas das duas ciências; e muitos psicólogos,
impressionados pelo uso direto dos recursos da fisiologia por um de seus colegas, sentiam-se
inclinados, às vezes, a esquecer o fato de que, sob o ponto de vista do método, o caráter
distintivo desse estudo é a determinação experimental e quantitativa do comporta.mento do
animal, através de toda a pesquisa - prática essa proveniente da psicologia. Este ponto é
importante porque, em muitos dos antigos estudos, os pesquisadores se satisfaziam em confiar
na observação geral em suas descrições do comportamento; em observar, por exemplo, se um
animal parecia desajeitado, indiferente ou hesitante. Porém, nos estudos de Lashley, a
observação geral foi substituída pelos métodos experimentais da psicologia animal e pelos
métodos quantitativos iguais aos usados na medição objetiva da inteligência. É especialmente
importante notar que os métodos eram quantitativos, bem como experimentais; pois, através
das medidas definidas do comportamento durante toda a pesquisa, foi possível determinar
matematicamente as relações entre a perda ou a diminuição de certas habilidades e a
localização e o grau das correspondentes lesões cerebrais.
O resultado dessas pesquisas foi um conjunto de provas, mostrando que, em muitos casos, uma
dada porção do córtex cerebral não está invariavelmente associada a um determinado ato; em
outras palavras, que a localização rigorosa de uma função não é a regra geral. Para Lashley, isto
significava não ser mais possível conceber o sistema nervoso como uma estrutura na qual o arco
reflexo é a unidade, ou como um sistema no qual algumas vias definidas e fixas ligam certos
pontos de estímulo com certos órgãos de resposta. Para ser exato, algumas vias têm maior
probabilidade de serem utilizadas em uma dada atividade do que outras - e que são de certa
maneira mais convenientes - porém não existe, em regra, exigência quanto à disposição. Se
essas vias forem destruídas, as suas funções não se perdem para sempre, mas são ao que
parece assumidas por outras partes do cérebro. Em lugar de uma localização exata da função no
córtex, existe uma igual potencialidade de suas várias
- uma relç treagua e a area crtcaj.4çruí- da e o grau de deteriora ão do com ortamento. Uma
ljgçj lesao cere ral, geralmente, não produz uma diminui ão senesão aumenã em grandeza, o
ato torna-ãiiãda vez
A relação entre a obra de Lashley e o behaviorismo é interessante sob vários pontos de vista.
Antes de mais nada, desacredita decididamente a concepção específica da atividade nervosa
que Watson supõe em todo o seu pensamento; nega que o comportamento seja "construído"
ou formado parte por parte na base do reflexo condicionado. Porém, ao mesmo tempo, deixa
inalterado o conceito behaviorista básico de que somente os métodos objetivos deveriam ser
usados; é realmente uma prova notável do valor de tais métodos na pesquisa psicológica. A
partir deste ponto de vista, a relação entre Lashley e o behaviorismo é um tanto parecida com a
de Külpe e as doutrinas de Wundt, pois tanto um quanto outro, por usarem os métodos
próprios de suas respectivas escolas, depararam com fatos que contrariavam os ensinamentos
daquelas escolas. Neste particular, eles exemplificam a função das escolas e sistemas na prática
real. O trabalho de ambos mostra que a pesquisa estimulada por um sistema e controlada pelo
método científico pode revelar fatos que discordam dele; e que um sistema estabelece
problemas definidos e estimula a pesquisa, porém não determina o seu resultado.
Até agora, entretanto, pouco se falou sobre o ponto que para muitos é básico, e que é
certamente a mais interessante questão levantada pelo behaviorismo: a possibilidade de uma
psicologia sem consciência. Alguns especialistas, absortos em
14 Isto não significa absolutamente que Lashiey exclua a local1zaço exata. Descobriu, de fato,
que a função do padrão visual se localiza num ponto exato do cõrtex. Acredita que tais fatos
de localização, juntamente com ratos Indicando ação conjunta, devem ser levados em conta
ao Interpretar a ação cortical. A tendência geral de seu próprio trabalho, entretanto, foi a de
destacar a teoria da ação conjunta, K. S. Lashley, 'Mass Action in Cerebral Function", Science
(1931), 73, 245-254.
234
Edna Heidbreder
E é bastante curioso que, na hora em que esta questão fundamental é diretamente focalizada,
o sistema comece a perder a clareza que à primeira vista parecia de forma acentuada
caracterizá-lo. Pois, o behaviorismo não proporciona realmente uma descrição da psicologia que
dispense ao indivíduo a consciência de suas próprias ações. Esta é, naturalmente, a sua
finalidade e, assim fazendo, pretende despojar a psicologia de seus últimos vestígios de
metafísica e subjetivismo. Os behavioristas geralmente admitem que quem se opõe às suas
idéias assim procede porque pensa ter o behaviorismo avançado demais ao insistir muito nos
rigores de um ponto de vista estritamente científico. Parecem não haver levado em conta que
sua posição poderia estar vulnerável ao ataque vindo de um outro setor; e que o behaviorismo
pode ser criticado por não seguir muito a ciência, e por não ser de bom grado obetiv2
coetambém por não ficar bastante liberado de uma atitude metafísica com resoaa Eco.
Se essa exposição do assunto parece uma contradição de palavras, tal fato é testemunha da
forte associação que o behaviorismo estabeleceu entre a concepção de uma psicologia
estritamente científica e o seu próprio ponto de vista. O behaviorismo, foi dito muitas vezes, é
psicologia científica. Qualquer atitude que esteja em contraste com ele é, por dedução, menos
científica. Querer que uma psicologia seja mais científica, equivale a querer que seja mais
behaviorista.
Psicologia. do Século XX
235
dados para consideração científica e forma conceitos para tratar com eles. Os processos do
pensamento, por exemplo, são considerados mecanismos da linguagem, não porque haja
evidência experimental para provar essa afirmação, mas porque assim se adaptam ao conceito
preferido, a matéria. O behaviorismo aceitou uma metafísica para acabar com a metafísica.
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Pscolog2a. do Século XX
Edna Heicjbreder
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rém, a menos que se considere o material como mais real, não se chega invariavelmente a esta
conclusão. Sem esta hipótese, a estreita correspondência pode significar um sem-número de
coisas - entre as mais óbvias a de que o material possa ser reduzido a mental, como queria
Berkeley e os idealistas alemães; ou, em nível menos pretensioso e mais empírico, que as
descrições sob o ponto de vista da consciência e do comportamento, dada sua estreita
concordância, completam-
Uma vez que a ciência não se interessa pela natureza úl tima da realidade, não faz diferença, do
ponto de vista puramente científico, qual o tipo de metafísica em que um cientista creia, desde
que a sua metafísica não intervenha em sua ciência. Porém, no momento em que um cientista
dá preferência aos seus conceitos metafísicos em relação aos fatos da experiência, estará
fugindo da ética científica. Pois o ideal da ciência é o de formular conceitos que resistam à prova
da experiência; e o caráter distintivo do método científico é o de que ele completa o apelo à
razão com a experiência, recusando-se a reconhecer a validade dos conceitos por ele forjados
até que tenham sido verificados pelos dados da observação. E o behaviorismo desobedece a
esta regra do cdigo; julga os dados concretos aplicando o conceito metafísico de matéria como
uma pedra de toque. Quando depara com descrições que pretendem tratar com certos
acontecimentos, tais como imagens, idéias, ou sentimentos de satisfação, sabe de antemão que
estão errados. Uma vez que esses pretensos fatos da experiência não se coadunam com um
modo preferido de conceber, não há necessidade de examiná-los.
Mas como é possível que o behaviorismo, que está disposto antes de tudo a ser científico, tenha
esse modo de pensar? Através da exigência inteiramente legítima de que o conhecimento
psicológico seja objetivo; por insistir que sem essa objetividade, a psicologia nunca poderá ser
levada a sério como ciência. Watson estava visivelmente perplexo pelas diferenças de opinião
em psicologia, pela falta de um corpo de conhecimento fidedigno que obrigasse à aceitação,
como o que se encontra nas ciências físicas; e admitindo, ao que parece, que o conhecimento
objetivo é o conhecimento do mundo físico externo que pela sua própria natureza está aberto à
verificação de todos, tentou remediar o mal, afastando da psicologia toda consideração pelos
processos mentais.
do conhecimento das ciências físicas, como Watson parece dar a entender, depende do fato
de tratar com um mundo material? E existe alguma certeza de que esse mundo esteja aberto
ao exame de todos? A resposta a estas perguntas exige um exame mais íntimo da palavra
"objetivo".
238
239
Este debate não implica, entretanto, que a psicologia deva se ater à noção de mental, seja como
um conceito explicativo ou como uma descrição de seu objeto. Ao contrário, sugere que a
distinção mente-corpo já recebeu demasiado destaque pela psicologia. Aliás, nem o conceito de
matéria ou
aquele da mente parecem atender às necessidades do presente caso na ciência. Já tem sido
muitas vezes notado que estão sendo rejeitados pela física e pela psicologia, as duas ciências
que, à primeira vista, achamos que deveriam considerá-los muito úteis. Os físicos não mais
tratam com a matéria como se fossem pequenas esferas ou substâncias sólidas, e os
psicólogos - behavioristas e não - deixaram de tratar com as mentes que Watson tão
enfaticamente condenava. Muito antes do aparecimento do behaviorismo, os estudiosos da
consciência haviam deixado de empregar a concepção imperfeita do mental na forma que
Watson lhes atribuía. 17
Apesar disso, há uma grande diferença entre a maneira pela qual a física tem colocado este
ponto e a questão que o behaviorismo está argumentando com a psicologia. Quando os físicos
descobriram as limitações do pensar em função de modelos mecânicos reais, que foram outrora
considerados como o ideal para explicar, lançaram mão de um novo tipo de explicação própria
para se ajustar aos fatos observados. Em lugar de modelos mecânicos, usaram fórmulas
matemáticas que deram informações quantitativas das relações observadas. Em outras
palavras, a física adotou uma nova forma de conceptualizar os seus dados. Porém, quando o
behaviorismo se convenceu de que o conceito da mente era inadequado para a tarefa da
psicologia, não fez, como a física, o ajustamento do método sugerido pelos próprios dados. Ao
contrário, reteve e utilizou a distinção entre a mente e a matéria. Achando um dos termos sem
aplicação, apenas o substituiu pelo outro, supondo que se um não servisse, o outro serviria. Em
vez de abandonar a distinção ment-corpo, o behaviorismo ressaltou-a e preservou-a.
As razões para este procedimento não são difíceis de descobrir. Em primeiro lugar, existe a
maior facilidade para pensar em termos comuns, para usar conceitos já disponíveis ao invés de
conceber novos modos de pensar. E desde que os problemas da psicologia animal, dos quais
surgiu o behaviorismo, aderiram prontamente ao conceito de matéria, pouco havia no caso que
estimulasse radicalmente modos de pensar diferentes. Em segundo lugar - e este é
provavelmente o motivo principal - o estudo do mundo físico tem sido associado, comum e
historicamente, ao método impessoal e imparcial da ciência. A partir desse ponto de vista, há de
fato
240
241
uma justificação prática para pensar exclusivamente em função da matéria. Se uma pessoa foi
assim condicionada, emotiva e intelectualmente, associando de modo inevitável à matéria
todas as atitudes da ciência, então, como um meio de conservar a posição científica, é
inteiramente legal para ela conceber todos os elementos psicológicos em termos físicos antes
de tentar agir sobre os mesmos, de modo científico. Porém, neste caso, a prática se torna uma
medida de precaução para aqueles que dela necessitam, e não uma parte essencial do processo
científico. Se um psicólogo pode estudar um desejo ou um pensamento tal como se dá de
maneira imediata na experiência original apenas como um fato natural num mundo natural -
assim como olha uma trovoada ou uma indigestão, por exemplo, quando as está examinando
de um ponto de vista científico impessoal - não é necessário que ele tente fortalezer esta
atitude convencendo-se de que todos estes acontecimentos estão de acordo com um conceito
para o qual a física encontrou um uso restrito. Existe tanta razão para que
todos os psicólogos se submetam a este processo como há para todos os pedreiros
executarem os gestos que os técnicos achem que os mais hábeis representantes daquela
profissão estão fazendo comumente, porém, sem serem necessários.
Talvez estas reflexões pareçam muito distantes dos problemas pelos quais o behaviorismo ou
qualquer outro sistema de psicologia esteja interessado de imediato. Porém, a conservação
pelo behaviorismo da diferença entre matéria e mente como sendo entre o real e o ilusório -
verdadeira, embora não declarada preservação dessa distinção - teve certos efeitos positivos
em suas práticas reais.
Um deles foi a tendência para tolerar certos aspectos da interpretação e, ao que parece, às
vezes considerar a mesma como uma explicação. Quando lemos algumas descrições dos
behavioristas, é difícil evitarmos a impressão de que os autores consideram explicação afirmar
que um desejo tem uma base orgânica, que o significado é uma atitude corporal, e que os
pensamentos são mecanismos da linguagem. Todavia, pouco é acrescentado ao conhecimento
dos desejos, significados e pensamentos por essas declarações, que afinal consistem em grande
parte no aproveitar o que já se conhece sobre estes acontecimentos pelo senso
comum e pela psicologia mais antiga e imaginar, muitas vezes sem se basear em fatos
conhecidos, alguma possível descrição fisiológica dos mesmos. Tais métodos podem
facilmente criar a ilusão de que há uma ex-
242
Pswologias do Século XX
Edna Heidbreder
243
os órgãos dos sentidos, músculos e nervos como determinados por fisiólogos competentes. O
relato do psicólogo não é apenas um substituto temporário para ser usado somente enquanto o
conhecimento fisiológico for incompleto, algo que se resolverá em fisiologia quando as
descrições dos órgãos dos sentidos, músculos e nervos estiverem completas até em seus
mínimos detalhes. Mesmo se fosse conhecida cada contração muscular, cada ligação estímulo-
resposta e cada reação sensorial, o processo total da aprendizagem do animal seria uma parte
necessária da descrição. Cada termo - o psicológico e o fisiológico - apresenta uma parte do
problema; cada um age como uma verificação do outro; nenhum pode ser considerado mais
importante do que o outro pelo conhecimento; ambos são indispensáveis. Os behavioristas
podem dizer que sempre reconheceram este fato e que, ao definirem o comportamento como
atividade do organismo como um todo, levaram o seu reconhecimento ao próprio foco da
psicologia. Mas, é muito significativo que, apesar deste fato, muitos behavioristas em sua
prática real considerem suas descobertas como respeitáveis cientificamente, somente quando
podem pensar nelas em função de processos fisiológicos definidos. É óbvio que existe uma forte
associação entre a concepção behaviorista do objeto da psicologia e a explicação do tipo
modelo mecânico.
E se esse modo de pensar surge no trabalho da psicologia animal, é muito mais pronunciado na
atitude com respeito aos estudos que nem ao menos pretendem oferecer explicação da
espécie modelo mecânico. Um exemplo disso é a atitude tíbia, quando não zombeteira, de
muitos behavioristas a respeito do trabalho sobre a inteligência. Uma vez que esta não pode
ser apresentada em função de processos corporais específicos, a noção global de inteligência é,
de acordo com os padrões do behaviorismo, vaga e nebulosa mesmo quando definida sem se
referir à consciência. Por outro lado, a psicologia foi igualmente mal sucedida na tentativa de
analisar a inteligência em componentes mentais. O problema da inteligência é, de fato, um
exemplo excelente do tipo de circunstância na qual a psicologia teve que conceber métodos
prescritos pelas exigências reais dos dados, ao invés de confiar nas técnicas existentes e
exposições sistemáticas.
Os dados que se obtêm de tais estudos podem ser e são interpretados de várias maneiras por
diversos pesquisadores; e uma vez que uma das interpretações evidentes é a de que a
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Edna Heidbreder
Existe ainda uma outra dificuldade, e mais séria, que provém da atitude do behaviorista em
relação ao problema mente-corpo: a incapacidade para descrever com precisão o que se
entende por rejeição da consciência. Algumas vezes o behaviorismo parece negar francamente
que se verificam fatos conscientes, e afirma que quem acredita neles é vítima de uma ilusão.
Porém, às vezes parece dizer que a questão de saber se ocorrem ou não fatos conscientes foge
do seu objeto principal - e que podem ou não existir, mas que se existem, são essencialmente
inacessíveis à investigação científica e que, portanto, não podem ter lugar em uma psicologia
científica. Adotando a segunda alternativa, o behaviorista pode conservar a sua ciência
completamente livre da consciência; mas, ao assim fazer, ele se entrega a um dualismo e a um
indeterminismo que vai de encontro aos princípios básicos de seu pensar. Se aceita que existe
algo na composição do homem que seja essencialmente - não apenas temporariamente e por
falta de técnica - inacessível à investigação científica, afirma uma dualidade da natureza humana
ao dizer que a atividade humana é de duas espécies diferentes, uma das quais está sujeita à
pesquisa científica e outra que está além da mesma. Porém, esta hipótese é tudo o que
necessita o mais ardoroso defensor do livre arbítrio. Com um constituinte, embora diminuto, da
estrutura humana que a ciência
P8tcologias do Século XX
245
nunca pode conhecer, tem à sua disposição algo que não está sujeito às leis da ciência, alguma
coisa que o cientista não pode prever e controlar. E este é um resultado que o behaviorista
naturalmente não deseja obter.
A solução é negar inteiramente a consciência, dizer que o organismo humano vive e se move
sem qualquer consciência do que está fazendo. Porém, se o behaviorista aceita esta solução,
acha extremamente difícil explicar o que significam alguns dos termos que utiliza. Quando diz
que pensar se trata apenas de uma questão de mecanismos de linguagem, ou que a emoção é
uma questão de respostas viscerais e glandulares, tem dificuldade pari explicar onde arranjou as
palavras "pensar" e "emoção". Não pode obtê-las a partir de sua própria consciência, de sua
própria voz interior ou dos batimentos cardíacos descontrolados, pois, por hipótese, é
impossível tal consciência. O coração e a laringe, de fato, pertencem ao mundo físico, porém a
consciência imediata que se pode ter de seu funcionamento pode se basear somente nas
sensações individuais e próprias de cada um. Então, será que o behaviorista quer dizer que uma
pessoa não pode estar consciente de sua própria raiva exceto através de traçados do
quimógrafo, ou de exames de sangue, ou alguma outra prova de suas reações corporais que
seja acessível aos outros tanto quanto a ele - avistando, por exemplo, em um espelho seu rosto
enrubescido, ou vendo diretamente seu próprio punho cerrado? Porém, o behaviorista admite
que não conhece ainda especificamente os padrões da reação corporal que constituem os
pensamentos e as emoções. E mais ainda, de acordo com a interpretação rigorosa de sua
hipótese, a consciência do mundo exterior - a habilidade para ler os registros do quimógrafo,
por exemplo - seria tão inexplicável como uma consciência imediata de sua voz interior ou das
contrações musculares, ou ainda dos batimentos cardíacos. Porém, o behaviorista não discute a
validade das observações do mundo exterior. Não exclui os exteroceptores, principalmente os
olhos, como fontes de informação. Na prática real, o behaviorista rejeita a percepção
proveniente dos interoceptores e proprioceptores; mas aquela que provém dos exteroceptores
é admitida sem discussão.
Neste ponto está a chave para as admissões e rejeiçõeS que caracterizam o behaviorismo. O
behaviorista, como qualquer outro cientista, depende de sua própria experiência imediata.
Mas aquelas que se referem a um objeto externo são aceitas na hipótese de tais objetos
poderem participar da
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Edna Heidbreder
Psicolcigias do Século XX
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20 o relato verbal' que o behaviorismo admite como método não inclui tais descrições. O
behaviorista trata um relato verbal apenas como uma reação vislvel e não como uma descrição
de algo fora dela mesma. Aceitar um relato verbal como descrição de uma experiência que um
individuo observou seria admitir a consciência de uma experiência inacessivel a um observador
externo e emnreear limo formo 1p introçnpr'cn
Também não significa que a tentativa de estudar tais processos equivaleria a uma simples
restauração do status quo em psicologia, um retorno ao costume da época, quando a psicologia
considerava sua função principal o estudo dos processos conscientes. A importância de estudar
o organismo como um todo, e a partir do exterior, foi demonstrada com tanto êxito que não é
preciso insistir no assunto. Não se trata de saber se a psicologia pode ser absorvida pelo
misticismo e pelo sobrenatural, mas sim se deve ampliar os métodos da ciência em regiões
consideradas como pertencentes ao misticisnio e ao sobrenatural. Seria uma reviravolta curiosa
e irônica se a escola que combateu com tanta bravura a favor de um estudo
totalmente científico dos processos psicológicos se tornasse, negando ou desprezando alguns
deles,
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249
É possível que uma parte do serviço prestado pelo behaviorismo tenha sido confrontar a
psicologia com esta situação. É possível também que, ao tentar escolher entre duas
alternativas, matéria e mente, conseguiu que a psicologia percebesse que não é obrigada a
aceitar esses conceitos, seja em conjunto ou isoladamente, como maneiras definitivas de
tratar com o seu objeto; mas que ela, assim como a física ou qualquer outra ciência natural,
face a uma situação para a qual são indequados os seus modos de pensar comuns, deve
revisar seus conceitos e conceber outros novos em formas determinadas pelos próprios dados
mais do que pelas formulações preexistentes.
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conductism já citada acima).
1 As palestras foram efetuadas em 1916-17. O livro Dynamic Psychøtoç ,y, que apareceu em
1918, embora fosse a primeira afirmação que aplica os métodos de trabalho do autor ao
campo total da psicologia, não foi a sua primeira publicação desses principios. Em seu artigo
'Dynamte PsychOlogy" (Psycholoqjes o! 1930, 327-336), encontramos a frase 'Psicologia DoiS-
mica, expressão que usei durante vinte anos".
Psicologias do Século XX
253
252
Edna Heidbreder
A caracterização de seu objeto por meio desta expressão extraída do passado chama a atenção
para outro traço característico da psicologia dinâmica; não pretende ser novidade. Não foi
feita para destruir nenhum inimigo e não possui nenhum plano de salvação para oferecer.
Havendo descoberto que a psicologia seguiu um caminho uniforme no passado, e crendo que
realizou e continua a realizar resultados de valor científico, a psicologia dinâmica tenta tornar
claros os princípios que sempre a nortearam. É, portanto, conservadora, no sentido literal do
termo. A sua finalidade não é a de fundar uma nova escola, mas sim tornar claro o que a
psicologia tem feito até agora. Muitos sistemas de psicologia surgem como tentativas para
começar algo de novo. Seus fundadores, sentindo que aprenderam do passado primeiro o que
não devem fazer, estão interessados principalmente em inovações que serão comprovadas
pela experiência no futuro. A psicologia dinâmica, por outro lado, tenta reunir as colaborações
do passado, e conduzir suas pesquisas baseada em princípios que já provaram ser úteis. Não é
um sistema de juventude, pela juventude e para a juventude. É um sistema que se delineou
baseado numa experiência frutuosa, numa interpretação apoiada na esperança, que foi
forjada e fortalecida pelas realizações passadas.
Quem quer que apresente um sistema em função de causa e efeito será certamente advertido
de que, na ciência refinada de nossos dias, estes conceitos não são mais usados. Woodworth
examina este ponto de modo específico. Não é preciso dizer que não está à procura das causas
finais; é sabido que as ciências só tratam das causas próximas. A objeção que tem de enfrentar é
a de que a ciência não usa mais o conceito de causa. Woodworth admite que numa descrição
completa do universo como sistema incluindo tudo, não haveria necessidade da noção de causa
nem para as idéias associadas a esta, de força e explicação. Observa, entretanto, que
não existe ainda tal descrição; e que em seu trabalho real, os cientistas empregam ainda algo
muito parecido com aqueles velhos conceitos, embora ainda definam força como o produto da
massa pela aceleração, se refiram a causas como estímulo, condições e situações, e considerem
a explicação tão simplesmente como uma descrição completa fora do comum. Na física, por
exemplo, embora a força seja definida em função do movimento, e ao ser assim tratada como
movimento parece desaparecer como força, apesar disso a força, que age num dado sistema A,
não é definida em função das mudanças naquele sistema, mas sim em função das mudanças em
um outro, B. O ponto crítico do assunto reside no fato de que, para
qualquer sistema dado, a força é algo que age naquele sistema vindo de fora. Este modo de
tratar cheira fortemente a causa e efeito; e Woodworth acredita que todos os que tratam com
sistemas que não são auto-suficientes - isto é, que variam de acordo com as mudanças no meio
am3 R. S. Woodworth, "Dynamlc PsychOlOgy", Psychologses of 1930,
328-329.
254
Edna Hedbreder
Psicologias do Século XX
255
biente - pensarão realmente em função de causa e efeito, embora possam melhorar a sua
terminologia. E o psicólogo está sempre tratando com um objeto que não é completo nem
auto-suficiente. Se trabalha com o organismo como um todo, deve levar em conta o meio
ambiente; se estuda uma determinada atividade, como a aprendizagem, não pode
desconhecer uma atividade concomitante, como a fome. Por esse motivo, Woodworth sente-
se justificado ao conservar o conceito de causa e efeito e prefere, em seu todo, assim fazer
sem lançar mão de uma terminologia modificada. Acredita, é evidente, que os problemas
prementes da psicologia podem ser buscados sem demasiada consideração pelas descobertas
revolucionárias da física e da astronomia. A largueza de visão da psicologia dinâmica em
relação às muitas escolas de pensamento psicológico é acompanhada por um propósito firme
em se ater aos problemas na forma em que se apresentam em termos concretos e em sua
etapa real e atual de desenvolvimento.
É possível que uma psicologia dinâmica seja solicitada, também, para se pronunciar sobre
questões de mecanismo e vitalismo, de livre arbítrio e determinismo. ' Porém, Woodworth
acredita que a ciência psicológica nada tem a ver com qualquer dessas questões. A questão do
mecanismo versus vitalismo, enquanto se restringe a ser um assunto científico, diz respeito aos
processos vitais das células e será solucionada, se alguma ciência a resolver, por meio da
fisiologia da célula. A psicologia, diz Woodworth, "não se aproxima muito dela". E o problema
do livre arbítrio versus determinismo, enquanto abrange a questão do finalismo, como uma
filosofia da natureza, é um problema metafísico e está, portanto, fora do âmbito da psicologia
ou de qualquer outra ciência natural. O que a psicologia dinâmica tenta fazer é a tarefa mais
imediata e mais modesta de determinar as seqüências observáveis de causa e efeito dentro de
um determinado campo.
A psicologia de Colúmbia não é fácil de ser descrita. Não se relaciona com nenhum corpo
definido de doutrina,
120.
Nos primeiros tempos da psicologia de Colúmbia, a figura predominante era, sem dúvida, a de
James McKeen Cattell. Este, como se recorda, foi um dos primeiros discípulos de Wundt no
laboratório de Leipzig. Já passou para a história e, a conselho de Wundt, tornou-se primeiro
assistente deste. No laboratório de Wundt, onde a finalidade do estudo era a mente humana
em geral, e onde Wundt geralmente designava aos estudantes os problemas para as suas teses
de formatura, Cattell escolheu seu próprio problema e incluiu em seu plano um estudo das
diferenças individuais. Wundt chamou o programa ganz Amerikanisch, e é muito importante
para a psicologia dos Estados Unidos o fato de Cattell haver permanecido ganz Amerikanisch e,
ao mesmo tempo, membro ativo do grupo de Leipzig. Sua atenção contínua às diferenças
individuais significava, entre outras coisas, que havia se tornado bastante interessado no estudo
de Galton sobre psicologia. Durante um ano, no qual fez preleções na Universidade de
Cambridge, associou-se pessoalmente a Galton e assim aliou à sua experiência direta com a
psico
O trabalho com testes, entretanto, mostra somente um aspecto da influência de Cattell. O seu
interesse pela psicologia experimental, em sentido mais restrito, é representado não só por
suas próprias pesquisas, principalmente em tempo de reação, associação e psicofísica, como
também pelo trabalho de seus alunos. Mesmo após a saída de Cattell, continuou a emergir do
laboratório de Colúmbia um fluxo permanente de estudos experimentais; e se tiveram menor
repercussão no mundo do que o movimento de testes, isso não é senão o destino comum dos
estudos, onde o valor prático não é evidente e talvez inexistente. Porém, mesmo dirigidos por
Cattell os proilemas experimentais clássicos assumiam uni aspecto fora do comum. A
introspecção não foi tratada corno doutrina inviolável, a estatística cansava-se cada vez mais
do encargo de verificar e organizar os resultados, e as diferenças individuais foram
devidamente observadas e examinadas em seus estudos que empregavam os métodos
desenvolvidos em Leipzig, para a pesquisa da mente humana em
geral. A psicologia experimental, segundo Cattell, não era uma disciplina esotérica que devia
medir forças com o senso comum. Já em 1904, cerca de uma década antes do aparecimento
oficial do behaviorismo, Cattell, numa alocução ao Congresso Internacional de Artes e Ciências,
fez a seguinte declaração com respeito ao papel desempenhado pelo "introspeccionista
treinado" em psicologia:
Este é somente um exemplo do fato de que nos Estados Unidos, assim como em Leipzig, o
estudo de Cattell sobre os problemas psicológicos foi assinalado por independência e retidão.
Cônscio de seu meio ambiente, sutilmente suscetível ao mesmo, tomando parte ativa nos
acontecimentos ao seu redor, conservou, não obstante, seus interesses particulares e suas
maneiras típicas de fazer as coisas. Como resultado, a tradição de Cattell em Colúmbia é
responsável por uma certa independência, uma certa heterodoxia e tolerância de
interpretação ao tratar com material psicológico. Isto não significa, entretanto, que Cattell
desse margem a uma grande incerteza no pensamento e prática psicológicos, e nem que
faltasse exatidão e expressividade em suas opiniões pessoais. As histórias propaladas à boca
pequena pelos seus antigos discípulos, a respeito das suas concessões com o que considerava
falhas da retidão científica, não dão a mínima impressão de tolerância excessiva em face de
tais violações.
5 James McKeen Cattell, "The Conceptions and Methods of PsychO1A v" Ponular E1cience
MOntkZi, (1904). 66. 176-186.
1
Psicologias do Século XX
258
Edncz Heidbre4er
Na geração acadêmica seguinte, em Colúmbia, a primeira pessoa a se destacar foi Edward Lee
Thorndike. A sua originalidade logo se impôs. Em 1898, quando tinha vinte e quatro anos de
idade, publicou a sua monografia clássica Animal Intelligence. Esta obra é importante em parte
porque descreve o primeiro estudo sistemático da inteligência animal por meio de experiências
de laboratório, e também porque conduziu à teoria da aprendizagem que desempenhou um
papel muito importante na pesquisa e teoria posteriores. Em seu estudo, Thorndike interpreta o
comportamento dos animais não em função de idéias, mas sim segundo a "fixação" e a
"eliminação" das ligações nervosas entre os estímulos e a resposta - o fortalecimento e a fixação
de certos elos e o enfraquecimento e a eliminação de outros até se formar um padrão de
comportamento que atenda às circunstâncias. O fortalecimento e o enfraquecimento são
explicados em função de duas leis principais: a lei do exercício e a lei do efeito. De acordo com a
primeira, quanto mais freqüentemente, mais recentemente e mais vigorosamente um vínculo é
exercido, mais efetivamente fica fixado; e ao contrário, quanto mais for exercido, é mais
provável que se torne enfraquecido eàs vezes desapareça. De acordo com a segunda, a lei do
efeito, as respostas que levam a estados de satisfação tendem a ser retidas, e as que conduzem
a estados de aborrecimento tendem a ser eliminadas; em outras palavras, as ligações nervosas
são influenciadas pelos efeitos da reação. A tendência desta teoria como um todo é explicar a
aprendizagem de forma mecanicista; e a definição pela qual o faz é tão definida e real, e trata
tão diretamente com um problema vital que se tornou um dos pontos pacíficos de referência no
setor bastante estudado da aprendizagem e da inteligência. O próprio Thorndike ampliou a
teoria para abranger a inteligência humana, a qual explicou como havia feito com a animal, em
função dos vínculos especiais de ligação entre o estímulo e a resposta. Posteriormente, admitiu
dimensões diferentes da inteligência, como altitude, amplitude, extensão e rapidez, e também
tipos diferentes, tais como a abstrata, a social e a concreta. Ainda mais tarde, admitiu o
princípio de "pertencer a uma mesma classe
ou categoria", além e acima de uma simples "associação" no tempo e no espaço. 6
260
261
cia de Thorndike, como sob a de Cattell, a experiência psicológica saiu dos caminhos batidos, e
como resultado surgiu não somente uma concepção modificada da experiência psicológica,
como também uma atmosfera de positivismo e eficiência técnica na pesquisa educacional. É
verdade que o culto do quantitativo na educação não havia sido realmente uma bênção.
Conduziu, às vezes, a trabalhos de pesquisa nos quais o desvelo pelo quantitativo,
acompanhado por curiosa falta de visão da situação pesquisada, expressou-se na fé cega e
quase hostil de que nenhum fator que não obedeça aos métodos de medição existentes possa
ser importante. Mas, em sentido global, a educação lucrou com a tentativa de medir seus
resultados e assim substituiu o conhecimento exato pela vaga esperança que algo de bom
poderia ser realizado.
É quase desnecessário acrescentar que, neste ambiente, as aplicações da psicologia não foram
desprezadas, e que outros campos além daquele da educação foram invadidos.
Não é exagero dizer que não chega mesmo a ser ensinada, e que é apenas encontrada como
uma entre várias formas em que a psicologia se expressa na Universidade de Colúmbia.
Todavia, no grau em que toma conhecimento das várias tendências em psicologia, antigas e
modernas, e acha algo de valor em todas, a psicologia dinâmica é representativa do mundo do
qual é parte, mundo onde muitos empreendimentos estão em andamento e onde nenhum
adquiriu bastante ascendência sobre os outros para ser capaz de afirmar que somente o seu
caminho conduz à verdade científica.
Existem, realmente, três pontos principais que Woodworth acredita que devem sempre ser
levados em conta ao
8 Psychological Revew (1899) Monograph supplement.
262
263
Um segundo ponto que deve ser reconhecido claramente é o de que nenhuma reação
estímulo-resposta pode ser considerada como um fato isolado, separado. Às vezes, o reflexo ou
alguma outra reação simples é, por conveniência, tratado como se fosse o único fato que
ocorresse no sistema nervoso na ocasião ou, pelo menos, como se se desenvolvesse
completamente sem ser influenciado por outros fatos. Realmente, o que se passa não é tão
simples. Qualquer fato nervoso está sujeito à influência de uma multidão de outros que o
precedem e o acompanham. Nenhum estímulo age sobre um organismo no qual não haja outra
atividade em andamento. É por isso que a psicologia deve estar sempre alerta contra a
simplicidade ilusória do conceito de arco-reflexo considerado teoricamente. Woodworth
concorda, de bom grado, com os protestos contra a tendência em considerar o arco de reação
separado de seu ambiente, como um fato isolado ocorrendo num outro organismo inativo.
Seu terceiro ponto - e esta é uma das críticas características de Woodworth - é o de que o arco
de reação não é uma unidade indivisível. Não só a reação não é isolada de suas circunstâncias;
sua unidade interna não é absoluta. Pode ser dividida ao meio. De acordo com Woodworth, há
uma vantagem em pensar em função de meios arcos, principalmente ao considerar a resposta
ou o lado motor da reação como uma unidade adequada, e em pensar que as respostas
9 Ele menciona especialmente e. S. Sherrington, The Integrattve Action of the Nervous System;
J. Dewey, "Tfle Reflex Are Concept In Psychology" (ver este livro, Capitulo VI); e L. L. Thurstone,
"The Stlmulus-Response Fallacy in Psychology", Psijchologjca( Review (1923), 30, 354-369. foram
provocadas por vários estímulos e acessíveis por diversas vias. Sherrington demonstrou que
mesmo os reflexos não incluem uma ligação fixa e invariável entre o estímulo e a resposta, mas
que cada reação motora possui um campo receptivo bem amplo. O reflexo de coçar, por
exemplo, pode ser eliciado pelo estímulo sobre uma vasta área lateral do corpo. Os estudos
sobre o reflexo condicionado dão as mesmas indicações. Uma resposta como a da salivação
que, de início, é eliciada por uma substância saborosa na língua, pode, por meio de treino, ser
despertada por um estímulo associado, tal como uma luz azul. Se a ligação primitiva fosse fixa
e inalterável, se o arco de reação fosse de fato uma unidade imutável, se não houvesse meio de
fazer novas ligações no meio, tal condicionamento simplesmente não poderia se realizar. A
psicologia incorre em erro, portanto, se tenta explicar o comportamento complexo como se
fosse uma construção ou elaboração de unidades complexas de conduta nas quais as reações
de arco completas aparecem como unidades. Woodworth acredita que se dão modificações
dentro dos próprios arcos, dentro do sistema nervoso central mais do que na periferia.
E, todavia, apesar dos perigos que rondam os seus arredores, Woodworth acredita que o
conceito de estímulo-
-resposta, quando considerado com as devidas precauções, é o instrumento mais útil que a
psicologia pode empregar para analisar o seu material. Isto não significa, entretanto, que não
haja nada mais para a psicologia do que a análise do comportamento em ligações de estímulo-
resposta. Mesmo que fosse possível, ao estudar uma atividade relativamente simples, como ver
um alfinete e apanhá-lo, localizar cada ligação estímulo-resposta, em detalhe minucioso, desde
a colisão da luz na retina, através de todas as reações, sensoriais, nervosas, musculares e
glandulares, exigidas para se chegar ao alfinete, curvar o corpo, e estender o braço até a
oposição do polegar com o indicador e o endireitamento do corpo, tal conhecimento não daria
à psicologia tudo o que ela deseja saber. O conhecimento mais minucioso não é
obrigatoriamente o mais completo. Ao descrever a atividade de ver e apanhar um alfinete, já se
deixou o nível das ligações estímulo-resposta minuciosas. Neste nível existe somente
diminuta sensação, nervosa, muscular e glandular, passando de uma para a outra, funcionando
juntas em seguida ou em
P8icologa8 do Século XX
265
264
Edna Heidbreder
"Um chimpanzé, por exemplo, junta duas varetas de bambu e usa a vara comprida assim
formada, para alcançar uma banana. Esta é uma descrição psicológica; poderiamos acrescentar
muito mais detalhes, porém, a descrição continuaria no mesmo nivel psicológico. Agora, o
fisiólogo pode resolver fazer a descrição desta mesma série de fatos, em função da ação de
diferentes músculos, ou fibras musculares isoladas, sinapses em centros nervosos localizados,
e assim por diante. Estaria descrevendo o mesmo processo real - não um processo 'paralelo'
- porém, sua descrição utilizaria conceitos diferentes e seria, em geral, muito diversa da do
psicólogo. Seria muito mais minuciosa do que aquela, mas não obrigatoriamente mais
verdadeira. Não incluiria as relações observadas pelo psicólogo, e não seria tão útil para as
finalidades de precisão e controle, se quiséssemos saber o que faria o chimpanzé em uma
dada circunstância." ''
Isto significa que o objeto da psicologia não pode ser separado daquele da fisiologia em função
do material de que é formado. As expressões "processo mental" e "vida mental", como
Woodworth as usa, não se referem a uma ordem de fatos diferentes daquela que constitui o
objeto das ciências físicas; o psicólogo e o fisiólogo estudam "o mesmo processo real" e não
"processos paralelos". Nem o psicólogo, nem qualquer outro cientista, como tal, têm a ver
alguma coisa com a natureza última deste processo. Basta dizer que a psicologia dinâmica se
interessa pelas sucessões de causa e efeito abrangendo relações mais amplas do que as
estudadas pela fisiologia e mais limitadas do que as da sociologia.
O que Woodworth quer significar como objeto da psicologia torna-se mais evidente quando
define a sua posição com referência às duas escolas que a psicologia norte-americana
comumente confronta entre si, o introspeccionismo e o behaviorismo. O objeto da psicologia
dinâmica não é nem consciência nem comportamento; inclui ambos. O ponto principal na
determinação de uma seqüência causal é conseguir uma série contínua de fatos, e para fazer
isso, tanto os fatos da consciência quanto os do comportamento devem ser levados em conta.
Através de observações do comportamento, é possível descobrir tanto os estímulos externos,
que dão início a uma reação, quanto a resposta visível pela qual ela finaliza; porém, o que
acontece entre os dois extremos do processo é conhecido, pelo menos por enquanto, em
grande parte por meio da introspecção.
Com referência à introspecção, a atitude de Woodworth não é nem de franca rejeição nem de
aceitação entusiástica. Neste caso, como em outros, pouco existe de caráter exclusivista em
sua resposta. Considerando as formas mais sim- pies da introspecção, não alimenta dúvidas
graves. Acredita que quando se pergunta a alguém "Qual dessas duas cores ihe parece mais
clara ?" esta observação não difere, em essência, da observação de um fato no mundo
exterior. Porém, o tipo mais complexo de introspecção é um assunto mais difícil e diferente.
Neste caso, o observador é, de fato, solicitado a fazer duas coisas ao mesmo tempo - seguir
através de um processo metal e observá-lo ao mesmo tempo; ou, uma vez que isto é uma
tarefa muito difícil e talvez impossível, deve captar, com um rápido olhar retrospectivo, o
conteúdo e o caráter do processo que acabou de completar.
266
Psicologias do Século XX
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Eáno Heidbreder
Woodworth acredita que esta espécie de introspecção não está isenta de dúvidas, porém,
verifica que alguns resultados foram obtidos com tal regularidade que reclamam aceitação
geral. Há, por exemplo, uma observação que diz ser a consciência inclinada a abandonar um ato
praticado à medida que este se torna habitual, até que por fim a sua execução torna-se
automática. Woodworth acha difícil não concordar com tais descobertas e acredita que "em
seu íntimo, mesmo os mais fanáticos behavioristas acreditam nelas". A seu ver, a introspecção
não é infalível nem sem valor; realiza o que pode realizar. O pesquisador não deve esperar
muito dela; não deve exigir da mesma uma análise muito rigorosa e, onde for possível, deve
aplicar verificações objetivas. A introspecção é um método que a psicologia dinâmica aceita
como suscetível de usos e limitações definidas.
Woodworth aceita a introspecção, portanto, como método legítimo, mas não como o método
por excelência da psicologia. Certamente não apóia a idéia de que a psicologia seja
propriamente o estudo da consciência pelo método da introspecção. Acredita, além disso, que
esta doutrina não fazia parte da psicologia experimental no seu início; e que não era uma parte
essencial da "nova" psicologia; e que o papel do psicólogo como "introspeccionista treinado"
começou a ser ressaltado na década de 1890, quando homens como Titchener e Külpe,
interessados em conseguir um lugar para a psicologia entre as ciências, ansiavam para lhe dar
um bom método e um campo de experiência não reclamado por qualquer outra ciência natural.
Woodworth acredita que a história real da psicologia dá pouco apoio a esse ponto de vista.
Salienta que grande parte do primitivo trabalho em psicologia experimental não era um estudo
introspectivo da consciência, e menciona como prova as experiências de Fechner em psicofísica,
os estudos do tempo de reação, o trabalho sobre a memória, os costumes, as diferenças
individuais, a hereditariedade, o desenvolvimento mental e as condições anormais. Se existe um
método característico em psicologia, Woodworth acredita ser o "dispositivo para medir o êxito",
que consiste na "atribuição de uma tarefa e a medida do êxito com o qual a mesma é executada;
com a variação das circunstâncias e as observações das mudanças resultantes na execução da
tarefa". 11 Quer seja o processo estudo da consciência ou
Woodworth é bastante favorável ao behaviorismo em. sentido global, talvez mais do que ao
introspeccionismo. É certo que o behaviorismo se lhe adapta melhor devido à sua tendência
em considerar o movimento do organismo e descobrir as condições que provocam certos
movimentos. Porém, não pode concordar que seja necessário abandonar o método
introspectivo e todos os trabalhos a seu respeito. Encara a rejeição da introspecção não como
o resultado inevitável de uma incompatibilidade básica entre o estudo da consciência e o do
comportamento, mas como conseqüência de uma rixa local - a do conjunto específico de
circunstâncias que forçaram a admissão do behaviorismo. Desde que a psicologia foi definida
como ciência da consciência, os estudiosos do comportamento animal tornaram-se não-
psicólogos por definição; e os behavioristas, não satisfeitos em revisar a definição para incluir a
sua própria obra, se desforraram afirmando que somente a sua psicologia era verdadeira e que
a mais antiga era apenas uma falsa ciência.
A luta que se seguiu foi notável, porém, segundo Woodworth, ficou fora do plano principal do
desenvolvimento psicológico. Encarando o problema da psicologia desta forma, como uma
tentativa de descobrir as relações de causa e efeito nas atividades mentais, considerava
incompletos tanto o introspeccjonismo quanto o behaviorismo. Mesmo que fosse possível fazer
uma descrição exaustiva da consciência, haveria lacunas no conhecimento das operações da
mente por alguma razão ou outra e, pelo menos, porque a consciência não acompanha todos os
fatos mentais. Da mesma forma, o comportamento considerado como uma série de reações
motoras aos estímulos externos, tomados isoladamente, não fornece uma descrição completa;
deixa de lado o que acontece no organismo entre o estímulo externo e a resposta motora. ÀS
vezes, uma análise minuciosa do processo existente pode ser feita pela fisiologia,
principalmente pela do cérebro; mas, nesse ínterim, muito poderá se aprender acompanhando
a atividade do princípio ao fim, usando a observação tanto do comportamento quanto da
consciência. Seria fugir do assunto, portanto, definir a psicologia sei a como ciência da
consciência ou como a do comportamento.
268
Edna Heidbreder
terial. Os fatos que ela apresenta, quando vistos de seu ponto de vista, aparecem sob um
prisma diferente. A psicologia dinâmica não é dualista. As expressões como "vida mental" e as
"operações da mente" não se referem a nada especial, diferente do material que as outras
ciências pesquisam. Indicam atividades, tais como aprender, pensar e sentir, que são, de
comum acordo e sem muita pesquisa sobre a sua natureza íntima, admitidas como objeto da'
psicologia. Aliás, Woodworth não se interessa muito pela definição de psicologia; considera a
definição de uma ciência não essencial ao seu desenvolvimento, nem como seu ponto de
partida adequado. A melhor definição de uma ciência, diz ele, é a descrição dos problemas que
ela realmente pesquisa. A identificação mais do que a definição do seu objeto é o ponto de
partida real de uma ciência, e o material usado pela psicologia pode ser identificado sem que
seja formalmente definido. 12 Afinal de contas, a pergunta feita pela psicologia dinâmica, em
relação ao seu objeto, não é "O que é isto?" mas "Como funciona?"
Todo esse debate teve mais que ver com a estrutura da psicologia do que com ela própria; e
muito mais ênfase foi dada a tais assuntos do que Woodworth geralmente lhes empresta. É
provável que Woodworth concorde o mais depressa possível com o que considera o
verdadeiro assunto da psicologia - os problemas típicos que seu objeto apresenta.
12 Tratar com material psicolÓgico dessa forma exige que este seja concebido muito abstrata
ou muito concretamente. No primeiro caso, os fatos devem ser tratados apenas como tais,
sem referéncia ao seu conteúdo. No segundo caso, devem ser tratados como surgem na
experiãncia, com O menor número possivel de pressuposições quanto à sua forma final. Os
extremos não são afastados como parece; ambos se apólam no desejo de ignorar, para as
finalidades do momento, as questões mais profundas de saber com o que se está tratando.
Psicologias do Século XX
269
aplicada, o vapor, eletricidade ou força hidráulica que faz a máquina funcionar. O mecanismo é
aquilo que é feito para funcionar; é a estrutura acionada por qualquer força que seja utilizada.
Os gatos de Thorndike, em suas lutas para escapar das caixas-problema, exemplificam tanto o
mecanismo como o impulso. Suas unhadas, arranhões, mordidas e empurrões são mecanismos
- formas de reação de que o animal dispõe quando estimulado de certos modos. O impulso é a
fome. O estímulo externo - talvez um pedaço de peixe fora da gaiola - nem sempre provoca
uma eclosão de atividade no gato que, fechado dentro da mesma, veja e fareje o peixe. Um
gato, estando farto, pode enrodilhar-se e dormir. Os mecanismos são acionados não só pelos
estímulos externos, mas também pelo impulso interno.
Fora do laboratório, os impulsos humanos são de uma complexidade muito maior, porém,
mesmo uma atividade altamente complexa como ler a Crítica da Razão Pura pode ser explicada
em função de mecanismo e impulso. Naturalmente, o leitor adquiriu os mecanismos
necessários, o conjunto complicado de reações chamado leitura. A página impressa fornece o
estímulo e a leitura é a resposta. Porém, novamente a resposta não é sempre eliciada; a
simples presença da Crítica da Razão Pura não desperta a vontade de ler em todas as pessoas
alfabetizadas. Mais uma vez torna-se necessário levar em conta o impulso. Uma pessoa pode
ler a Crítica da Razão Pura por ser estudante com um exame a
270
P8icologias do Século XX
271
Edna Heidbreder
o livro é de difícil leitura e deseja ver o que pode fazer a respeito, ou devido a mil e uma
razões. Pode ser impulsionado pela ambição, pela curiosidade, pela afirmação de si mesmo,
pelo interesse, pelo seu humor atual, ou pelo plano geral de toda a sua vida. O impulso que o
faz ler a Crítica da Razão Pura pode atuar durante longos períodos de sua vida e pode
determinar ampla variedade de atividades. Se assim o fizer apresentará muitos motivos
humanos, pois estes agem geralmente sobre períodos bastante longos de tempo, O
comportamento aparece de forma contínua, diz Woodworth, e não em parcelas isoladas de
estímulo-resposta; o problema do impulso abrange as atividades de longo e de pequeno
alcance da vida. Faz, surgir os problemas de necessidades e anseios, desejos e finalidades,
desde as formas mais amplas e evidentes, até às mais complexas e mais sutis.
Talvez isso tudo pareça um tanto afastado da fórmula simples do estímulo-resposta com a qual
a psicologia dinâmica principiou. E, todavia, é uma parte essencial da tese de Woodworth que as
maiores complexidades do comportamento humano, incluindo os motivos e as finalidades, têm
o seu lugar na cadeia normal de causa e efeito, e principalmente que se adaptam ao padrão
estímulo-resposta.
Ao sustentar sua tese, Woodworth salienta primeiro que a distinção entre mecanismo e
impulso não é absoluta. Este ponto é muito importante em seu sistema. Significa, em primeiro
lugar, que o próprio impulso é um mecanismo, uma resposta do organismo vivo. Um impulso
não é uma deux ex machina, algo inexplicável que dirige o organismo pelo lado de fora. Não é
também um deus in machina; é parte integrante do próprio organismo. O impulso pode ser um
estado orgânico, tal como a fome, a fadiga ou a euforia, que predispõe o organismo para agir
de certa forma. Pode ser uma disposição neuromuscular como aquela das experiências de
reação retardada; 14 ou, se preferirmos um exemplo tirado da vida esportiva, como aquela do
corredor em seu posto, curvado e pronto para partir assim que seja dado o tiro de pistola.
Pode ser também uma predisposição de uma espécie muito menos evidente e periférica - uma
ambição política ou um interesse pela matemática - a qual dificilmente pode
14 A reação retardada uma resposta feita após um intervalo de tempo haver passado entre a
presença do estimulo fisico e o inicio da resposta
ser mantida por uma postura corporal adequada, mas que, não obstante, é representada por
processos no organismo, entre os quais aqueles situados nos centros nervosos que
possivelmente desempenham papel preponderante. Mas, em todos os casos, a própria
atividade é uma resposta a um estímulo e um impulso devido à sua função - em virtude de
facilitar alguns mecanismos e inibir outros.
Porém, um mecanismo é também um impulso. Mesmo quando não se pode negar que seja um
mecanismo, quando é mais claramente movido por algo mais, um mecanismo só é
relativamente passivo; a sua própria natureza determina a da resposta. As unhadas de um gato,
dadas para escapar de uma caixa-problema, são ações determinadas em parte pelos
mecanismos à disposição do animal - pela estrutura de seus ossos, músculos e sistema nervoso.
Mesmo que a fome humana e a do gato fossem exatamente iguais, o comportamento do
homem e dos gatos seria diferente nas mesmas circunstâncias, porque os mecanismos do
esqueleto, os musculares, glandulares, nervosos e sensoriais são diferentes nas duas espécies.
Além disso, um mecanismo pode manter o seu próprio impulso. As reações da leitura foram
citadas como mecanismos, porém, uma vez adquiridas, tendem a entrar em ação e exigem
expressão própria. Podem até servir como impulso para outras atividades, tais como comprar
livros, procurar lugares sossegados, com boa luz, ou freqüentar bibliotecas. Woodworth acredita
que, com exceção de alguns reflexos simples, qualquer mecanismo pode adquirir o poder de
manter o seu próprio impulso, ou pode tornar-se um impulso para outras atividades. O homem
de negócios, que se sente infeliz quando se aposenta, é um exemplo excelente. Suas
atividades diárias tornaram-se tão completamente uma parte de seu ser que exigem expressão
própria.
A maneira pela qual o mecanismo e o impulso se ajustam a este padrão pode ser
exemplificada por urna ocorrên
272
27
Edna Heidbreder
o impulso é a fome, algo que é, em si, uma resposta orgânica a um estímulo - ou melhor, a um
certo número de estímulos
- um assoalho para andar, um botão para girar, uma porta para abrir. O padrão de estímulo-
resposta age através de toda a atividade. O próprio impulso é uma resposta ao estímulo; as
reações preparatórias e de acabamento são respostas aos estímulos; e todas são integradas
numa unidade de comportamento pela ação permanente do impulso. Mesmo uma ocorrência
tão simples apresenta uma organização altamente elaborada, porém, a unidade toda é
redutível a respostas aos estímulos.
O esquema E-O-R é adequado, segundo Woodworth, mesmo para os casos mais complexos de
motivação. Todos os motivos são estados orgânicos ou reações em desenvolvimento e, como
tais, auxiliam algumas reações e inibem outras, assim como fazem todas as reações em curso.
Sua intenção é mostrar que todo o comportamento humano, mesmo em suas formas mais
complexas e sutis, pode ser explicado em função do mecanismo e do impulso.
Pswologuis do Século XX
outro "Por quê"?, ao passo que a resposta à pergunta "Como ?" é completa até o máximo
possível. A psicologia, portanto, tem-se ocupado principalmente com problemas de mecânica,
mais do que com problemas de dinâmica; com perguntas tais corno se dão as associações,
corno progride a aprendizagem, como o tempo de reação é afetado pelas várias circunstâncias.
Porém, nas atividades animais, e especialmente no comportamento humano, a pergunta por
quê se fazem certas coisas está presente tão amiúde ao senso comum que mais cedo ou mais
tarde deve ser tratada pela ciência. E Woodworth tenta mostrar que um reconhecimento da
pergunta "Por quê?" e dos fatos do motivo e da finalidade não leva necessariamente quem
pergunta a buscar forças fora do mundo da causa e efeito e fora da ordem natural.
Entretanto, Woodworth não foi o principal responsável pela apresentação desta questão na
psicologia contemporânea. Quando fez as suas preleções sobre psicologia dinâmica, o
problema dos móveis da ação já estava no ar. William McDougall tinha-lhe dado especial
destaque em seu livro Introduction to Social Psyckology," que defendia uma teoria do instinto,
que imediatamente despertou a atenção.
Do lado negativo, a doutrina de McDougall era uma negação acentuada de duas noções: a
concepção do homem racional, utilizada na teoria convencional social e política; e a idéia de
que a psicologia na forma em que existia - a mecanicista, por exemplo, que se dedicava às
funções minuciosas da associação - não tinha contribuição alguma a fazer ao problema dos
móveis da ação. O seu ensinamento positivo era o de que os instintos são as grandes forças
propulsoras da atividade humana. Nos seres humanos existem sete instintos primários: fuga,
combatividade, curiosidade, desgosto, comportamento paterno, auto-afirmação e
autonegaçãO. Além disso, existem tendências, como o gregarismo e a imitação, que carecem
de algumas das características dos instintos primários, mas que são, apesar disso, móveis
naturais da ação. Existem também sentimentos, como a lealdade e o patriotismo, que são
produtos complexos do instinto, do intelecto e da emoção, e que obtêm toda a sua força
motivadora a partir de seus componentes instintivos. Cada um dos instintos primários forma
um par com uma emoção primária, por exemplo, a fuga com o medo, a combatividade com a
raiva. O instintivo e o emocional na natureza humana estão
274
Edna Heidbreder
O ponto mais desafiador na teoria de McDougall era a sua insistência em que os instintos são
as grandes forças propulsoras da conduta humana; e que direta ou indiretamente são os
principais impulsores de toda a atividade humana, inclusive a intelectual; e que, somente com
o toque vitalizante dos instintos, os mecanismos humanos são impelidos à ação. A conação -
esforço propositado em direção a um objetivo, e que não é em si redutível a um mecanismo - é
para McDougail a categoria fundamental em psicologia.
Woodworth está de pleno acordo com a convicção de McDougall de que é necessário levar em
contar os impulsos, os anseios, como agentes motivadores no comportamento humano. Porém,
discorda profundamente da teoria que diz haver um conjunto especial de atividades, os
instintos, que fornecem obrigatoriamente o impulso para toda a conduta humana; e que alguns
poucos anseios poderosos formam a base dc toda a atividade humana. Woodworth argumenta
que não existe uma classe especial de atividades que forneça de modo obrigatório a força
motivadora para a conduta; e que a distinção entre o mecanismo e o impulso é puramente
funcional; e que qualquer mecanismo (com exceção de alguns reflexos simples) é capaz de
tornar-se o impulso para outros mecanismos; e que o impulso é em si um mecanismo que,
somente em virtude de suas relações funcionais com outros mecanismos, se tornou, por sua
vez, seu próprio impulso. Enquanto McDougall considera o instinto como possuindo uma única
força impulsora, Woodworth acredita que os impulsos não são dotados de nenhuma força
peculiar a si próprios, porém são mecanismos que se distinguem dos outros unicamente em
virtude de suas relações funcionais.
Psicologia8 do Século XX
?75
As capacidades inatas significam para Woodworth "aptidões" ou "dons" para realizar certas
respostas ou para lidar com certas coisas. Uma pessoa que tenha dom para a música ou para a
matemática é especialmente suscetível a certos tipos de objetos. Woodworth conclui que estas
capacidades são inatas a partir de evidências tais como tenderem a ocorrer em famílias, e
brotarem em indivíduos afastados de uma geração ou mais de outros membros da família que
possuíam o dom, e que certos indivíduos são mais suscetíveis do que a massa da
humanidade ao treinameito de um certo tipo e desenvolvem maior interesse em tal
treinamento do que o habitual. As capacidades inatas diferem dos instintos por serem menos
desenvolvidas e menos prontas a serem utilizadas. Seja qual for o grau em que uma pessoa é
dotada para a música ou para a matemática, ela não nasceu com os mecanismos apropriados
para uma ótima execução em qualquer uma dessas atividades. Nasceu com uma suscetibilidade
para certa classe de materiais que a torna mais rápida, mais pronta e mais eficiente na aquisição
dos mecanismos para lidar com estes materiais. Outra alusão feita por Woodworth com
respeito às capacidades inatas é a de que não são "faculdades" especiais, tais como a
percepção, a imaginação ou raciocínio, mas sim respostas a certas coisas ou relações. Numa
pessoa bem dotada, existem respostas imediatas- a certas classes de objetos - aos sons
musicais, ou às relações matemáticas, por exemplo. Finalmente, e o que é mais notável,
276
Psicoiogias do Século XX
77
Edita Heidbreder
as capacidades estão relacionadas com o aspecto intelectual da natureza humana mais do que
com o emocional ou com o conativo; estão, portanto, fora do campo dos instintos, como é
descrito por McDougall.
É neste ponto que se torna mais flagrante a diferença entre as teorias de Woodworth e
McDougall. As capacidades inatas, uma vez que são em grande parte intelectuais, pertencem ao
aspecto da natureza humana que McDougall considera como impotente quando desprovido de
instintos, como aparelhos que ficariam paralisados, a menos que se lhes infundisse vida
pela sua poderosa força impulsora. Porém, Woodworth considera estes dons ou capacidades
como participantes, como todas as outras reações inatas, da força motivadora necessária para
entrar em ação. Escreve ele:
"Este é o ponto principal sobre o qual o atual debate se estabelece com McDougall - de fato, o
desacordo neste ponto é o principal argumento em todo o seu livro, O maior objetivo do livro
é, digamos, tentar mostrar que qualquer mecanismo - com exceção talvez de alguns dos mais
rudimentares que formam os reflexos simples - uma vez despertado, é capaz de fornecer seu
próprio impulso e também de transmiti-lo a outros mecanismos a ele associados,
"O problema é saber se os mecanismos para as mil e uma coisas que o ser humano tem
capacidade para fazer são em si mesmos totalmente passivos, exigindo o impulso destes
poucos instintos, ou se cada um desses mecanismos pode ser diretamente despertado e
prosseguir agindo sem o auxílio da fome, sexo, autoconfiança, curiosidade e tudo o mais." 16
Woodworth aceita, sem hesitar, que os principais instintos fornecem impulso para outras
atividades e que se pode obter maior atividade de um sujeito suscitando-lhe a auto- confiança, a
liderança ou a curiosidade. Porém, afirmar que os principais instintos podem reforçar a prática
de um dom inato é muito diferente do que dizer que são as únicas fontes de energia pelas quais
tais atividades podem ser acionadas. Woodworth acredita que a força impulsora
dos instintos' não pode ser responsável por certos traços marcantes que a prática de um dom
apresenta. Por um lado, ela não explica a especialização tão evidente no indivíduo bem
dotado; e, também, por exemplo, por que o motivo dominante numa criança pode ser ativo
em certo setor, digamos, no dos números e não em outro, como no da música. Também não
explica por que o motivo dominante permanece inativo ou pode ser racionalizado para outro
setor, se procurarmos ape la
para o brio da criança e interessá-la em alguma atividade que nada tenha a ver com o seu dom
especial. Por último, ela não explica a absorção de uma pessoa em uma certa atiwdade.
Woodworth atribui grande importância a esta característica, pois sua presença sugere
fortemente que esta atividade é uma réação conclusiva. Além disso, sem a absorção, sem uma
completa atenção ao assunto em mãos, não existe uma realização perfeita. Quando estamos
empenhados ao máximo em uma realização, qualquer interesse alheio, qualquer consciência do
motivo dominante, ou da fome e do sexo, torna-se uma distração. Um matemático trabalha
melhor quando está interessado só pela matemática. E, todavia, se os instintos são os únicos
móveis da ação, a sua inclusão deveria auxiliar a reação, e o que é mais importante, deveria
ser necessária à sua prática. Porém, a opinião de Woodworth é a de que a atividade pode
prosseguir por conta própria; e prossegue, realmente, melhor por si mesma. Uma vez iniciada,
a execução continua sozinha. O motivo não é algo além ou fora da atividade que se realiza. É
parte integrante da própria atividade.
Esta atitude em relação à prática da capacidade inata é apenas um caso especial da atitude de
Woodworth com respeito à atividade em geral. Ele não acha sempre necessário considerar
impulsos poderosos como os instintos, para explicar a atividade de um organismo vivo. A criança
bem alimentada, bem descansada, esperneando e gritando, agitando os braços, não lhe parece
estar sob a influência de um impulso poderoso; parece estar agindo porque existem estímulos
no meio ambiente e em seu próprio corpo que despertam mecanismos que representam parte
de seu equipamento; e uma afirmação idêntica se pode fazer dos mecanismos mais altamente
desenvolvidos, inatos e adquiridos. De fato, qualquer'
mecanismo, com exceção talvez dos reflexos mais simples, uma vez despertado, não apenas
fornece o seu próprio impulso como também pode servir de impulso a outros mecanismos -
quaisquer que sejam, note-se, não só aqueles emocionais ou instintivos. 17 Isto significa que a
psicologia dinâmica, como Woodworth emprega essa expressão, não se limita a uma classe
especial de atividades psicológicas, mas inclui toda a psicologia. Os conceitos de mecanismo e
impulso se aplicam a atividades como aprendizagem, memória e associa-
278
Edna Heidbreder
Psi.cologas do Século XX
279
ção de idéias, bem como à emoção e ao instinto. É bastante significativo que num de seus
estudos 18 Woodworth utilize os fatos da percepção para ilustrar os princípios do mecanismo
e do impulso e até mesmo de toda a sua concepção de psicologia dinâmica.
Tudo isso conduz de novo à afirmação de que não existe uma diferença absoluta entre o
mecanismo e o impulso. Toda a atividade humana é da mesma espécie. A distinção é útil porque
torna possível uma afirmação clara dos problemas da psicologia, principalmente dos difíceis
problemas da motivação. Porém, a base para a distinção é funcional: um mecanismo é um
impulso, se auxilia ou reforça outro mecanismo. Não existe conjunto algum de atividades que
sirvam invariavelmente como impulsos. Os mesmos princípios estão ativos em todas as espécies
de comportamento. As atividades mais complexas podem ser explicadas em função do padrão
E-O-R. Todos os tipos de respostas, não somente as que se relacionam com o instinto e a
emoção, são capazes de se tornarem impulsos. Existe uma continuidade não interrompida
desde a espécie de facilitação e reforço que se observa nos reflexos espinhais até os casos mais
complexos que incluem finalidade.
O seu modo de tratar a questão da aprendizagem é um exemplo tão bom como qualquer outro.
Neste caso, o problema consiste em explicar o grande acréscimo que o indivíduo faz à sua
bagagem original de conhecimentos através da prática e da experiência. Ou talvez a palavra
modificação seja melhor do que acréscimo, pois a pessoa adquire novas reações por meio da
alteração de suas ligações inatas de estímulo-resposta quando reage aos estímulos de seu meio
ambiente.
-resposta de caráter inato pode ser reforçada e estabilizada por meio de exercício; um novo
estímulo pode ser associado a uma dada resposta na forma de reflexo condicionado; uma nova
resposta pode ser associada a um dado estímulo de forma semelhante; uma ligação existente
de estímulo-resposta pode ser interrompida por meio da dor, do fracasso, ou por adaptação
negativa, de forma que o estímulo não mais provoque a resposta a ele associada; e um certo
número de respostas isoladas pode ser superado por uma única resposta unitária, como no caso
da formação de "unidades superiores" na datilografia - neste caso referindo-se à escrita de uma
palavra ou frase completa em um só ato coordenado, em vez de bater as letras uma por uma,
em uma série de movimentos simples e isolados.
Vários pontos deste modo de tratar a ação de aprender são especialmente dignos de nota. Um
deles é a interpretação das "unidades superiores" - os "hábitos verbais" ou "frases habituais" do
datilógrafo exímio que suplantam os "hábitos de letras" do principiante. Conforme Woodworth,
o organismo adquire uma "unidade superior" executando uma única resposta unitária para uma
infinidade de estímulos. O datilógrafo exímio escreve a palavra "and" por
um único ato coordenado, e não apenas fazendo mais depressa os três movimentos isolados
necessários para bater as letras a, n, d. Enquanto que no caso do principiante, cada letra exige
um movimento isolado, no datilógrafo treinado as três letras (grande número de estímulos)
provocam os
SU
281
movimentos organizados em série para bater as letras a-n-d (a resposta unitária simples). O
ponto importante desta explicação é o destaque dado à resposta; a intima ligação dos três
primeiros movimentos separados é explicada não em função das características dos itens
associados - tal como contigüidade no tempo e no espaço - mas sim em função da atividade do
próprio organismo. Entretanto, este é somente um caso particular de aplicação da fórmula
estímulo-respos.ta, segundo a concepção da psicologia dinâmica, aos fatos da associação. Pois,
não é somente nos atos motores que a associação é explicada em função da resposta. As
atividades, tais como a percepção e a memória, são interpretadas de forma semelhante. A
percepção de uma mesa, por exemplo, é 'uma organização mais elevada dos processos
sensoriais - e não uma simples reunião dos mesmos - permanecendo na mesma relação com as
respostas sensoriais básicas, como a existente entre os "hábitos verbais" e os "hábitos de
letras". A percepção, em suma, é uma resposta ativa, e não algo "impresso nos sentidos", ou
uma simples reunião de elementos sensoriais. É muito interessante que Woodworth chame a
atenção para o fato de que os itens isolados de uma percepção não precisam surgir em primeiro
lugar - que uma palavra impressa, por exemplo, possa ser vista primeiramente como um todo, e
que as letras possam ser analisadas depois. A esse respeito e em outros - no seu
reconhecimento, por exemplo, da totalidade e integridade das unidades motoras mais elevadas
- está tratando com alguns dos fatos aos quais a psicologia da Gestalt dá grande
destaque. Mas para Woodworth, estes fatos não exigem a revisão completa da psicologia que
a escola da Gestalt acha necessária.
insistir que não é necessário supor a existência de alguns instintos ou tendências principais,
sem os quais o organismo não poderia entrar em ação. Observa, também, que é próprio do
organismo vivo responder a uma dificuldade maior por um esforço maior - e que a atividade
torna-se de especial interesse quando, embora estando dentro das habilidades do indivíduo,
não está tanto sob controle, nem tão fácil a ponto de ser automática. É nesta altura que a
atividade se torna interessante por si mesma; em outras palavras, começa a agir pelo seu
próprio impulso.
O exame desses assuntos mostra como Woodworth aplica os conceitos da psicologia dinâmica a
alguns dos principais problemas da aprendizagem. Os outros problemas principais - os que se
referem ao controle, originalidade, comportamento anormal e conduta social - são igualmente
estudados, e por fim o campo total da psicologia surge esboçado esquematicamente em função
de mecanismos e impulsos. Em sua análise, Woodworth enfrenta alguns dos problemas mais
complexos do comportamento humano; e através dessa análise, tenta mostrar que esses
problemas podem ser tratados de forma adequada por meio dos conceitos práticos e funcionais
da psicologia.
Este sistema, é bastante evidente, não atinge um ponto culminante. Não oferece uma síntese
nova ou revolucionária, e não conduz a uma posição privilegiada de onde os fatos da psicologia
apareçam sob uma perspectiva nova e imediatamente significativa. Pelo contrário, absorto
com o trabalho diário na oficina da ciência, tenta apenas mostrar que um princípio unificador
esteve sempre presente na psicologia e sempre tomou parte em suas realizações. A psicologia
dinâmica, não prometendo mais que as lentas conquistas da ciência, permanece
extremamente despretensiosa e calma.
Nem mesmo se envolve na excitação que se produz quando tomamos partido nas alternativas
tradicionalmente opostas em psicologia. O behaviorismo e o introspeccionismo, a
hereditariedade e o meio ambiente, a parte e o todo, o livre arbítrio e o determinismo, o
mecanismo e o vitalismo - em nenhuma dessas questões, o sistema apóia sem reservas um lado
em detrimento de outro. Woodworth tem sido muitas vezes criticado a esse respeito. Para
muita gente, existe algo de franco e satisfatório numa afirmação que suna nitidamente, pró ou
contra uma determinada proposição - talvez porque reduza o caso à expressão definida de luta.
Porém, para Woodworth, a questão não é de luta. Não se trata de
282
Edna Heidbreder
conseguir uma vitória, mas sim de empreender uma tarefa, e as alternativas, na forma que
assumiram através dos tempos, mostraram não ser compatíveis com este empreendimento.
Assumir uma atitude seria abandonar a tarefa e cair no irrelevante. E Woodworth não desiste. A
recusa em se decidir é realmente uma conseqüência obrigatória da empresa a que se propôs e
de toda a sua concepção da psicologia. Tomando como ponto de partida as atividades
concretas, individuais e observáveis dos organismos vivos, comprometeu-se a conseguir uma
descrição a mais completa possível das operações desses processos em função de causa e efeito
De fato, em seu interesse pelos processos específicos que está estudando, Woodworth segue o
método que sempre caracterizou a ciência em confronto com a metafísica. Mais do que se
pensa, as alternativas logicamente opostas que se confrontaram através dos séculos, atraem a
atenção da hunianidade seja direta ou indiretamente, através das implicações metafísicas que
as cercam. Porém, seja qual for o progresso que a ciência tenhà realizado, provém de haver
deliberadamente afastado sua atenção dos problemas metafísicos. Por esse motivo, a
psicologia, especialmente por ser uma ciência nova, que até há pouco fazia parte da filosofia,
está prevenida contra a metafísica; a tal ponto, de fato, que um sistema de psicologia pode
adotar, deliberadamente ou não, uma metafísica para justificar o seu abandono dos problemas
que considera metafísicos. Porém, Woodworth pressupõe que uni cientista tem Q direito, como
tal, de seguir os seus problemas até onde eles o conduzam no mundo da experiência, sem
oferecer uma justificação metafísica para a sua prática. A esse respeito, sua psicologia mostra
ser mais in 285
Provavelmente, esta atitude, este interesse pelos detalhes concretos de uma nova ciência,
também contribui para uma outra característica da psicologia de Woodworth. Seu sistema
nada tem de hermético. É uma psicologia que, mais do que a maioria das outras, reconhece a
imperfeição e o caráter experimental da ciência, e não impõe nenhuma simplicidade,
harmonia prematura ou finalidade aos seus diversos fatos. Conseqüentemente, não é um
sistema que se destaca com contornos nítidos. É um sistema, realmente, no qual há sempre o
perigo de não ver o todo devido às partes; de fato, a atenção é freqüentemente atraída para
certas partes ou mesmo para determinados conjuntos de partes. É, portanto, fácil perder de
vista as contribuições específicas do autor. Woodworth acredita piamente que existe uma
ciência psicológica independente de qualquer sistema particular, um corpo de conhecimentos
razoavelmente bem estabelecidos e aceitos pelos psicólogos em geral, e este é o objeto de seu
interesse. Há, portanto, uma interação muito íntima entre o seu próprio pensamento e o da
psicologia em geral. O resultado é que as suas contribuições e mesmo os seus trabalhos estão
entrelaçados com o contexto da psicologia formando um todo; não figuram como algo à parte.
Naturalmente, um sistema como esse não serve como ponto de concentração, seja para ataque
ou defesa. O seu caráter reflete a possibilidade de progresso da ciência, não por revolta mas por
crescimento, não por correção drástica mas por acúmulo gradual de conhecimentos e o
aparecimento de novos princípios e pontos de vista. Entre os muitos sistemas em luta na
psicologia de hoje, este caráter tem também o seu lugar. Pois a ciência acha-se muitas vezes
levada por linhas convergentes de evidência, não para os extremos de uma alternativa bem
definida, mas rumo a uma posição, não necessariamente entre as duas, da qual percebe que
ambas têm a sua parte de verdade.
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KÕHLER, KOFFKA
287
286
Edna Heidbreder
plicações habituais em função dos elementos sensoriais e suas combinações eram inteiramente
inadequadas; e que qualquer que fosse a experiência do movimento percebido, não era uma
composição de sensações visuais, nem um mosaico de partes combinadas, misturadas,
fundidas de alguma forma. Estava principalmente impressionado pelo fato de que as
explicações comuns não faziam justiça aos dados psicológicos na maneira em que são
imediatamente percebidos; e que não levavam em conta a simplicidade, a inteireza, a desunião
e a fluidez da experiência imediata. Para Wertheimer parecia que os psicólogos que acharam
satisfatórias as explicações existentes estavam ofuscados pelos modos de pensar habituais; e
que, partindo, como coisa natural, de idéia de sensações elementares, deixavam de considerar
o caráter real da experiência que se lhes deparava, em sua preocupação com a teoria que se
havia tornado tão corriqueira, a ponto de não ser posta em dúvida. A fim de se precaver contra
um erro dessa natureza, Wertheimer resolveu dar um nome especial à experiência que estava
pesquisando. Portanto, denominou a impressão do movjmento aparente de fenômeno phi, em
parte para isolá-lo como um fato único a ser explicado, e também para designá-lo por uma
palavra neutra que não o envolvesse com as teorias existentes.
O seu problema, além disso, tinha implicações fisiológicas. Tendo posto em dúvida a
explicação da percepção como uma soma de sensações, duvidou também da concepção dos
processos fisiológicos correspondentes como sendo uma soma de atividades em unidades
neurais separadas. Para Wertheimer parecia que nem o processo psicológico ou o fisiológico,
nem a percepção ou a excitação nervosa poderiam ser concebidos como uma simples soma de
partes; e que o processo cerebral, assim como a percepção, deveria ser um todo unificado, não
sendo mais uma integração de atividades isoladas de unidades nervosas, distintas, assim como a
percepção é tampouco uma composição de sensações separadas.
Os dois psicólogos que serviram como sujeitos no estudo de Wertheimer, Wolfgang Kihler e
Kurt Koffka, tornaram-se tão convencidos quanto aquele de que a psicologia mais antiga era
totalmente imprópria para os fatos deste caso - e na Alemanha, em 1910, a "psicologia mais
antiga" significava a psicologia experimental que trazia a marca wundtiana. Os três estavam
inteiramente cônscios de que tomando esta posição estariam se opondo a uma poderosa
tradição acadêmica. Sabiam que, ao atacarem o costume de
Psicologias do Século XX
Este protesto não era suave em caráter nem limitado em seu objetivo. A nova escola exigia
nada menos que uma completa revisão da psicologia. Os chefes do movimento viram logo que
o problema existente no fenômeno phi estava presente em outros casos comuns de percepção.
Por exemplo, estamos vendo sempre certos objetos como retangulares - tábuas de mesa,
molduras, portas e janelas, folhas de papel; porém, somente em casos realmente excepcionais
a imagem projetada na retina é realmente retangular. Vemos um objeto preto à luz solar como
preto, e um objeto branco na penumbra, como branco, mesmo quando as condições tenham
sido cuidadosamente dispostas de forma que fisicamente a mesma porção de luz seja refletida
pelos dois objetos. Vemos um homem como tendo a mesma estatura, esteja a cinco ou a dez
jardas de distância, embora num caso a imagem na retina seja quatro vezes maior do que no
outro. Em todos esses casos, assim como no fenômeno phi, e em milhares de outros idênticos, a
diferença óbvia e quase desenhável entre
o caráter da percepção real e o do estímulo sensorial local põe em evidência o problema que,
na opinião dos gestaltistas, a escola antiga havia sido completamente incapaz de resolver. E os
mesmos casos mostram com a máxima clareza a dependência da percepção da totalidade das
condições estimulantes.
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288
Edna Heidbrecler
fatoriamente. Começar com elementos é principiar pelo lado errado; porque os elementos são
resultantes da reflexão e da abstração, remotamente derivados da experiência imediata que se
lhes pede para explicar. A psicologia da Gestalt tenta remontar à percepção ingênua, à
experiência imediata "não corrompida pela aprendizagem"; e insiste em encontrar aí não uma
montagem de elementos, mas conjuntos unificados; árvores, nuvens e céu, em vez de massas
de sensações. E convida quem quiser para verificar esta afirmação, apenas abrindo os olhos e
vendo o mundo que o cerca, na forma comum da vida diária.
A Gestolt, é importante observar, é um todo que não é apenas a soma de suas partes. É
essencial para as partes e básico para as mesmas. A Gestalt não pode ser imaginada como uma
composição de elementos, declaração esta que os gestaltistas procuraram imediatamente
provar pela evidência experimental. Suas primeiras pesquisas foram feitas no campo da
percepção, porém, logo se estenderam a outros campos. A aprendizagem, a memória, o
discernimento (insight) e as reações motoras foram todos estudados como atividades que não
eram simples integrações de ações parciais. Toda a matéria da psicologia foi arrastada por este
movimento, e a escola, que havia começado como uma tentativa para justificar um certo
problema de percepção visual, acabou por exigir uma revisão completa dos princípios
fundamentais da ciência. E não parou, de fato, com a psicologia em si, mas expandiu os seus
princípios até às ciências físicas.
Não existe uma palavra inglesa (ou portuguesa) que corrresponda exatamente à alemã
Gestalt. Várias traduções. entre elas "forma", "contorno" e "configuração", foram propostas,
mas nenhuma delas foi aceita sem reservas. "Contorno" foi criticada por dar idéia de um
campo limitado, o visual. "Configuração" foi usada, porém com muita precaução, talvez
porque a sua derivação sugere, embora de leve, uma composição de elementos que é a
própria antítese da Ges<. "Forma" é, sem dúvida, a mais aceita, e estí tendo um uso
generalizado; mas, ao assim fazer, está adquirindo significados secundários derivados do
alemão Gestalt.
Segundo Kôhler, Gestalt é usada de duas maneiras em alemão. Às vezes, indica contorno ou
forma como uma propriedade das coisas; outras vezes, indica "uma entidade real, individual e
típica, existindo como algo à parte e tendo um
contorno ou forma como um de seus atributos". 1 Os dois usos exigem alguma explicação.
Como uma propriedade das coisas, Gestalt é usada com características, tais como a quadratura
ou a triangularidade das figuras geométricas, ou a aparência espacial diferente dos objetos
concretos, tais como mesas, cadeiras e árvores. É aplicada também às características das
seqüências dentro do tempo, tais COmo melodias, OU das que são tanto espaciais como de
tempo, como dançar, andar, arrastar-se ou pular. Neste sentido, Gestalt significa as
propriedades menos específicas das coisas, as qualidade expressas por adjetivos, tais como
"angular" ou "simétrico" em relação às figuras espaciais; "maior" ou "menor", às frases
musicais; "gracioso" ou "desajeitado", a movimentos, como andar e dançar. Tais propriedades,
é importante observar, nunca podem estar presentes lia experiência "punctiforme". Não são
circunscritas; abrangem, de alguma forma, "totalidades" extensas.
No segundo sentido, sendo aplicada a uma entidade que tem forma, a palavra Gestalt refere- se
a triângulos ou quadrados em contraste com a triangularidade e a quadratura, e a mesas e
cadeiras em contraste com as formas características daqueles objetos. Neste sentido, Gctalt
refere-se à qualquer "todo" separado e circunscrito. Segundo Kihler, há uma tendência para
preferir este significado do termo, uma yez que o mesmo processo que descreve a formação dos
todos, também explica as suas propriedades. Novamente devemos observar que a aplicação
desta palavra não se restringe ao campo visual, ou mesmo ao sensorial como um todo. O
aprender, o pensar, a luta, a ação, todos foram tratados como Gestulten. O conceito introduziu-
se em todo o campo da psicologia. Foi mesmo ampliado além de suas fronteiras. Kõhler vê
Gesto Iten nos processos biológicos como a ontogênese e nos processos físicos como a
polarização de um elétrodo. Na evolução das estruturas orgânicas a partir do protoplasma não
diferençado, e na padronização de um campo elétrico em pólos positivo e negativo, Kõhler
encontra a prova de que a natureza física, assim como a experiência psicológica, é imaginada e
"formada".
'2 M. Wertheimer, Experimentel]e Studlen Uber das Schen von Be\egungen", Zeitschrft fir
Psyehologw, 61, 161-265.
291
seu fundador. Porém, Kihler e Koffka, ambos iritimamente associados ao movimento desde o
inicio, não foram menos ativos do que ele ao elaborar os conceitos da Gestalt e ao organizar a
nova escola. Koffka dirigiu imediatamente seus esforços e os de seus discípulos para OS
problemas da percepção visual do movimento. Aplicou também os princípios da psicologia da
Gesfalt aos problemas do desenvolvimento mental. Kiihler é talvez mais conhecido nos Estados
Unidos pelo estudo relatado em seu livro Thc Menfolitq of Ajus. Este estudo foi feito na ilha de
Tenerife, para onde havia si(lQ mandado, para realizar esta pesquisa, pela Academia Prussiana,
e onde ficou isolado durante os quatro anos da Primeira Guerra Mundial. O ambiente na ilha era
extremamente favorável a um estudo completo dos nove macacos que eram seus pacientes, e
quantidade enorme de informações sobre os seus hábitos foi trazida à luz. Porém, talvez a
maior contribuição desse estudo, talvez o maior desafio do ponto de vista da
psicologia contemporânea tenha sido a aplicação do conceito da Gestalt aos processos mentais
mais elevados nos animais - à maneira pela qual os macacos resolveram problemas, e
mais particularmente à sua "compreensão repentina" de uma situação. * Kõhler é conhecido,
também, pela sua aplicação da teoria da Gestult à biologia e à física.
Além disso, ambos foram notavelmente eficientes ao apresentar as novas idéias perante o
público de língua inglesa. Koffka publicou vários artigos em inglês. Um de seus estudos,
especialmente, um relatório da literatura experimental da escola da Gsta1t, teve influência
notória no despertar o interesse dos psicólogos norte-americanos. Realmente, é em grande
parte devido a Kõhler e a Koffka que existe o atual interesse por este movimento nos Estados
Unidos. Ambos lecionaram naquele país e Koffka está atualmente realizando pesquisas no
Smith College. Os três livros mais lidos rios Estados Unidos sobre este assunto são The Grouth
o! the Mmd, (le Koffka, e The Mentality of Apes e Gestalt l's!/ehology, de Kihler, sendo este
último uma exposição geral destinada ao leigo, bem como ao psicólogo profissional.
3 W. Káhler, Die physsschen Gestalts'n in Ruhe und it station(zres Sus tand, 1920.
Naturalmente, os problemas que deram origem à escola da Gestult não haviam passado
completamente despercebidos aos antigos psicólogos. Tornou-se realmente moda descobrir
antecipações da psicologia da Gestalt na obra dos antigos autores - como também antecipações
do behaviorismo. da psicanálise e de tudo o mais. Não é de todo surpreendente que tais
antecipações tenham ocorrido, e que os problemas tratados diretamente por uma determinada
escola tenham atraído a atenção, embora às vezes de modo vago e superficial, de outros
especialistas no mesmo assunto. As antecipações, de certo modo, evidenciam a autenticidade
do próprio problema, mostrando que nele havia algo realmente. Além disso, ao lado de seu
significado sob este ponto de vista, as antecipações de um conceito muitas vezes o ampliam à
luz das semelhanças e contrastes. Isto é especialmente verdadeii'o em relação a duas das
antecipações da psicologia da Gestalt.
292
Edna Hedbreder
é independente das sensações próprias nas quais ocorre; pode surgir em um outro conjunto no
qual nenhum elemento do primeiro esteja presente. O mesmo é verdade quanto ao padrão
espacial. Um triângulo, assim como urna melodia, também pode ser "transposto". As linhas de
que é formado podem ser curtas ou longas; podem ser pretas, vermelhas ou azuis; e contudo, a
figura continua sendo um triângulo. O problema da forma é assim definitivamente apresentado.
A forma indiscutivelmente é. porém, mo está em nenhum dos elementos da sensação. Para vou
Ehrenfels e para a escola de Graz, que adotou o problema, isto significava que a forma é em si
mesma um elemento, mas um elemento que não é uma sensação. É um novo elemento criado
pelo intelecto atuando nos elementos sensoriais. Estes são indispensáveis. A partir dos
mesmos, o intelecto cria a forma. Para a escola de Graz, portanto, a forma era um flOvo
eiemeiito, formado na base das sensações, uma criação por ato do intelecto. Os psicólogos que
adotaram esta idéia resolveram o problema sem rejeitar elementos, mas acrescentando um
novo, derivado de forma diferente. Diferiam dos wuridtiat- ios não por negar os elementos, mas
pelo acréscimo de elementos que os wundtianos não incluíam, e que eram gerados pelos atos
mentais que eles não admitiam.
Outra antecipação da psicologia da Gestolt deu-se com o Protesto de William ,James contra o
elen1entarismo. Não é preciso repisar o fato de que James considerava os elementos dos
associacionistas como abstrações artificiais, e que na sua insistência de que a COflSciência é um
fluxo, não urna seqüência ou um mosaico, salientava não somente a continuidade da
experiência, como também o fato de que a continuidade é priniacial. Para James, as distinções
são secundárias. As "coisas" são deslindadas, para fins parciais e práticos, do fluxo da
experiência, que é inicialmente "uma grande, exuberante e barulhenta confusão". A concepção
de James é assim muito diferente daquela de von Ehrenfels. Este começava com elementos e
terminava com novos elementos; James principiava com continuidade e terminava com objetos
retirados de seu contexto pelas necessidades práticas e finalidades da vida.
Psicologia8 do Século XX
293
mente diferente dos elementos sensoriais geralmente aceitos, de que é transponível, e que
não pode ser reduzida aos próprios elementos, a psicologia da Gestalt não soluciona o
problema pelo acréscimo de novos elementos. Discorda de James em sua crença de que as
coisas, objetos, unidades de toda espécie, são criadas por terem sido arrancadas de seu
contexto. Acredita em totalidades, mas em totalidades segrega4a s - que são assim desde o
início. Quando olhamos para o mundo, dizem os gestaltistas, vemos objetos definidos, tais
como árvores e pedras, que são percebidos tão distinta e rapidamente de seus arredores,
quanto a cor verde é vista diferente da cinzenta.
Porém, estas diferenças de opinião são apenas ocasionais. É a psicologia experimental do tipo
wundtiano que os gestaltistas consideram a sua maior inimiga, e foi com referência a esta que
se tornaram logo independentes e estabeleceram o seu programa. Viam na "teoria do
significado" daquela escola um ótimo exemplo de seus vícios, e como resultado, uma das
melhores maneiras de compreender o ponto de vista dos gestaltistas é examinar as objeções
que eles apresentam contra aquela teoria.
O caso da persistência da forma na percepção servirá para fins de exemplo, tão bem como
qualquer outro. Como todos sabem, uma pessoa sentada a uma mesa retangular vê a parte de
cima desta realmente retangular, da mesma maneira què a vê quando está de pé ao seu lado,
ou olhando para a mesma de certa distância. Porém, em nenhum desses exemplos, a imagem
na retina é em si mesma um retângulo. Pode ser demonstrado em laboratório que a imagem na
retina é, em cada um desses casos, um quadrilátero irregular, e que varia de formato conforme
a posição dos olhos em relação à mesa. A psicologia, então, tem que responder à pergunta:
De que modo a percepção real se relaciona com uma imagem retinal tão diferente de si
mesma?
294
95
Tudo isso, de acordo com os gestaltistas, é um excelente exemplo do que a percepção não é. A
sua primeira objeção é dirigida contra a doutrina do elementarismo. A psicologia da Gestatt
assume uma posição inequívoca contra a idéia de que os elementos, como existem na realidade,
sejam o material que forma uma percepção ou outra qualquer experiência psicológica. Nega
positivamente que os elementos reunidos, misturados, fundidos, ou associados de qualquer
maneira, produzam as percepções que realmente vemos. Um núcleo de sensações, formando o
centro de uma multidão de imagens ou de quaisquer outros processos elementares,
simplesmente não é o que percebemos de imediato. Wertheimer empregou o termo "hipótese
de ligação" para caracterizar a teoria segundo a qual a experiência é uma composição de
elementos; e os gestaltistas dirigiram grande parte de sua crítica, principalmente nas primeiras
fases da sua luta, contra esta concepção. Os elementos, têm eles afirmado amiúde, existem
somente como resultadoa da análise. Em lugar de surgirem de imediato como material primitivo
que constitui a experiência, são encontrados somente após uma reflexão completa e como
resultado do que é reconhecidamente uma atitude especial, ou seja, a do introspeccionista
treinado. Um exame direto da experiência não revela nenhum elemento - segundo Kõhler,
"coisas diminutas locais que ninguém jamais viu". Além disso, o conceito de elementos é
discutível porque não nos deixa ver aquilo que realmente existe. Ficamos tão concentrados em
reduzir a percepção a seus elementos, que a alteramos, a destruímos, e privamos de sua
integridade e singularidade, na tentativa de fazê-la harmonizar- se com um plano preconcebido.
O elementarismo não nos dá apenas uma visão falsa; ele se interpõe em nossa observação
direta daquilo que realmente vemos.
Uma vez que os elementos e associações e a hipótese de ligações foram rejeitados, não é de
admirar que os gestaltistas estejam bem alertas contra os perigos da análise. O intelecto,
atuando sobre a nossa experiência, pode separá-la em partes; porém, daí não se conclui que a
experiência tenha realmente se formado das partes nas quais foi dividida. Pelo contrário, os
gestaltistas insistem que o resultado da análise não é inteiramente o mesmo que o da
experiência inicial. A análise altera os dados que destaca para examinar; destrói a própria coisa
que a ciência tem por função explicar. O caráter global e a sua singularidade perdem-se na
dissecação, assim como um músculo deixa de o ser, quando é cortado em pedaços para ser
estudado no microscópio. E mesmo se um músculo for dividido menos artificialmente, se for
dissecado em partes reais e naturais, em suas fibras musculares que podem ser vistas como
partes reais da estrutura, ele deixa de ser músculo. Ninguém tentaria explicar o que é um
músculo dizendo que provém da soma de tais partes, artificiais ou naturais, reunidas como
estavam antes. Entretanto, coisa muito parecida com tal tentativa é feita por uma psicologia
que explica o seu material como sendo realmente composto de elementos nos quais possa ser
dividido.
Um quarto protesto mal pode ser feito à parte dos outros, porque os apóia e inclui. É o ataque
feito à "hipótese de persistência". Conforme a escola gestaltista, esta hipótese se difunde no
pensamento psicológico sem ser definidamente admitida. Supõe uma localização estrita no
estímulo sensorial, uma relação ponto por ponto entre o estímulo periférico e a experiência
imediata. Enquanto houver uma correspondência entre os dois, supõe-se que nada existe para
ser explicado; e quando surge uma diferença, arranja-se uma
296
Edna Heicibreder
No livro Gestait Psychology. Kohler expõe, com o máximo cuidado, a hipótese de persistência.
Tão delicadamente como um cirurgião sondando um ferimento grave, ele disseca o tecido do
pensamento, onde jaz mergulhada a hipótese de persistência. Novamente a mesa retangular
pode ser usada como exemplo. Este objeto, como foi dito muitas vezes, geralmente parece
retangular e, todavia, é bem possível ver a superfície da mesa como o quadrilátero irregular
descrito pelo introspeccionista. Qual dessas é a experiência sensorial real ou verdadeira?
Naturalmente ambas são reais no sentido de que as duas se verificam na experiência.
Certamente é possível ver a mesa tanto como o senso comum a vê, quanto sob a forma em
que o introspeccionista treinado a observa. Porém, qual delas é a mais real? Qual é a
verdadeira experiência psicológica? A pergunta quase l)Ode ser feita assim: Qual é a real e qual
a ilusória?
Psicoloçjiaç do Scu1o XX
297
De fato, não há prova, insiste Kiihler, pelo menos na grande maioria dos casos, de que as
experiências explicadas pela teoria do significado ocorram porque realmente adquiriram
significado. É verdade que existem uns poucos casos onde é possível mostrar que o significado
foi acrescentado a algum núcleo central. O símbolo + inegavelmente é aceito corno "mais", e
isto acontece claramente porque esta noção foi aprendida. Porém, exemplos deste tipo não são
a regra geral. A teoria do significado nunca foi demonstrada quanto às mil e uma percepções da
vida diária para as quais é aplicada sem hesitação. Um extenso aprendizado teria de ser feito,
se a teoria do significado fosse verdadeira, antes que um objeto complexo, como é o rosto
humano, pudesse ser reconhecido como sendo o mesmo de todos os pontos
de vista e em todas as condições possíveis de luz e sombra; todavia, o rosto humano é uma das
primeiras coisas que a criança mostra sinais de reconhecer. E este é apenas um exemplo entre
muitos. A teoria do significado foi aceita não porque seja apoiada por provas, mas porque a
necessidade de provas não foi sentida.
Uma quinta objeção que a psicologia da Gestalt apresenta contra as suas rivais é dirigida
contra a fisiologia delas. É, de certo modo, uma objeção ao emprego da hipótese de
persistência à atividade do sistema nervoso. Pois, junta-
Edna Heicibreder
Psicologuis do SéçuZo XX
298
299
sol
receptores) um rato encontra o seu caminho através de um labirinto, ele priva os ratos de seus
receptores, grupo por grupo, e em várias combinações, e observa em cada caso como foi
afetada a sua atividade. Se deseja saber se uma certa parte do cérebro é utilizada para ver,
remove ou dimiflui aquela parte e verifica o que acontece. Não se ocupa, como o gestaltista,
com as fases sutis da percepção humana em condições ligeiramente variadas que, para o
homem prático, parecem não fazer nenhuma diferença no mundo. Além disso, a psicologia da
Gestalt tem uma consciência da epistemologia que o behaviorismo acha uma virtude não
possuir. O behaviorismo resolve seus problemas epistemológicos introduzindo-se neles
brutalmente e assumindo o realismo do sênso comum. A psicologia da Gestalt, porém, escolhe
o seu caminho deliberadamente através dos labirintos da epistemologia, explicando os motivos
da sua fé. Dispensa grande cuidado ao estabelecer seu direito à sua posição; ou melhor, ao
mostrar que, do ponto de vista da epistemologia, sua posição não é inferior à das ciências
físicas. Finalmente, o fato de a psicologia da Gestait pedir ao leitor para abandonar o
seu antigo hábito de pensar em função de uma parte ligada à outra, deixa-o com a sensação de
espanto que naturalmente acompanha a mudança de antigas maneiras de fazer as coisas. A este
respeito, principalmente, a psicologia da Gestalt exige uma mudança que é com certeza mais
fundamental e íntima do que qualquer coisa sugerida pelo behaviorismo. Exige uma alteração
nos modos de perceber e conceber. O radicalismo do behaviorismo é principalmente prático e
moral, porém, a visão da Gestalt exige um reajuste intelectual. E exigindo, como faz, uma
mudança nos modos habituais de pensar, a psicologia da Gestalt carece da inteligibilidade
imediata de uma concepção que exige apenas um novo e notável reajuste dos antigos modos de
pensar.
5 É interessante observar que, na Alemanha, a psicologia da Gestatt tem sIdo muitas vezes
criticada por sua falta de complexidade eplsteinológlca, e nos Estados Unidos por um interesse
demasiado profundo pelos problemas epistemológicos.
Psicologia8 do Século XX
casos verá objetos, e há duas implicações para este simples fato. A primeira é a que ele não vê
conjuntos de sensações, mas sim totalidades unificadas. A segunda, é a que as totalidades são
isoladas e separadas de um fundo. Não são somente totalidades, mas totalidades separadas.
Os mesmos fatos podem ser demonstrados em termos ainda mais simples, onde as unidades
não são objetos no sentido em que a palavra é comumente utilizada. 6 Um exemplo disto é a
disposição das linhas na figura 1.
FIGURA 1
11
11
11
liii
'III
1111
FIGURA 2
Edna Hejdbreder
um único par com as linhas mais afastadas, porém, muita gente acha impossível ver realmente
este agrupamento sobre todo o campo visual.
Pode ser facilmente demonstrado que cada agrupamento está intimamente relacionado com a
percepção das totalidades e dos objetos. Se forem acrescentadas outras linhas, como na figura
2, o fenômeno do agrupamento torna-se mais pronunciado. Os grupos ressaltam mais
distintamente como unidades. Se os espaços forem assim completamente cheios com linhas,
de maneira a termos uma imagem contínua, como na figura 3, não há dúvida de que as
unidades cheias são unidades; e se os retângulos que elas formam forem projetados para a
frente de modo a formarem sólidos, tornam-se imediatamente objetos no sentido comum da
palavra.
FIGURA 3
PsLrniojias do Scu1o XX
303
sas reações, mas é tão intensa que quando a circunstância externa não está inteiramente
"formada", a reação psicológica tende a completá-la. A "completação" é um caso particular da
"lei da pregnância", de acordo com a qual a experiência, quer seja espacial ou temporal, e seja
qual for a região sensitiva, tende a assumir a melhor forma possível, de modo que as formas
tendem a se tornar mais exatas e mais bem definidas - a tornarem-se o que elas são, de modo
mais completo e típico.
A figura 4 exemplifica também um outro fato. Mostra que a formação de totalidades não é
uma questão de um único conjunto de fatores. Neste caso, incluem-se tanto a proximidade
espacial como a propriedade de completar o espaço. Para muitos, a tendência para formar
espaços fechados é maior nesta circunstância do que a de proximidade espacial. Entretanto, o
fato de ser possível ver três grupos de figuras como a seguinte 1 [, mostra que esta tendência
não é invariavelmente dominante. A figura 5 mostra uma disposição onde mais outro fator
determina o agrupamento. Neste caso, nem a proximidade espacial ou o espaço fechado são
decisivos; os grupos são determinados pela semelhança qualitativa de seus elementos.
Porém, supondo-se que a figura 1 seja alterada não pelo enchimento dos espaços, mas pela
adição de linhas horizontais, como na figura 4,
ooofl
FIGURA 5
oociH
FIGURA 4
a percepção agora muda. Há uma tendência diferente para considerar como unidades os
espaços mais largos, limitados pelos pares de linhas mais afastados, e para ver os colchetes
que se confrontam um com o outro, formando retângulos. Este fenômeno serve de exemplo
do princípio de "completação". Não somente há uma tendência para a "forma" em nos-
A percepção clara é fluente e plástica, são várias as condições que determinam a formação dos
grupos.
Qualquer dos arranjos apresentados nestas cinco figuras exemplifica um outro fato observado
pela psicologia da Gestalt, qual seja o da figura e fundo. Mesmo na figura 1 os pares de linhas
com seus espaços delimitados são figuras em comparação com o resto do espaço, que serve de
fundo. Este fenômeno torna-se mais claro à medida que o agrupamento fica mais estável, e é o
mais percebido de todos, em formas inteiras como os retângulos da figura 3. Em alguns
padrões, a figura e o fundo são reversíveis - um fato que é
304
Edita Heidbrecjer
exemplificado por muitos desenhos decorativos. Muitas vezes o efeito total é muito diferente
quando a figura e o fundo são intercambiados. A figura e o fundo apresentam características
diferentes. A figura parece mais sólida; ela se "destaca", O fundo é apenas espaço vazio.
Somente a figura é "formada". Por exemplo, na figura 3 os retângulos são vistos como formas,
e o fundo é apenas espaço. O fundo não é visto como uma superfície plana com retângulos
extraídos da mesma, como é geometricamente possível.
Talvez pareça forçado extrair tanta teoria sobre algumas linhas e figuras. Porém, a psicologia da
Gesta2t, deve ser lembrado, está sempre prevenida contra a teoria do significado, e ao usar
exemplos tão claros quanto possível, está evitando a crítica de que seu material apresenta as
características que tem porque o significado lhe deu previamente essas características. Os
objetos comuns da vida estão repletos de significado, o que não acontece com os espaços e
linhas
305
simples. Além disso, os gestaltistas, tendo apresentado seus princípios neste meio sem
sentido, não têm dificuldade em mostrar que os mesmos princípios fazem parte da experiência
diária.
Qualquer objeto é um todo isolado. Não é uma reunião de partes, e também não é uma porção
indistinta de uma continuidade não diferençada; é uma unidade separada e imediatamente
sentida como tal. Qualquer objeto com a sua base demonstra figura e fundo e, em alguns casos,
as diferenças típicas entre figura e fundo são especialmente flagrantes. Kõhler salienta que o
céu visível entre os edifícios de uma rua não é geralmente visto como
"formado". Todavia, com os contornos definidos que o cercam, o céu poderia muito bem formar
uma "figura" geométrica, embora, psicologicamente, raramente o faça. Geralmente, os edifícios
são vistos como formas, e o céu como fundo. Um mapa marítimo, também, mostra a
importância da figura e fundo. Muita gente, ao olhar pela primeira vez tal mapa do mar
Mediterrâneo, não o reconhece como tal. O contorno é, naturalmente, exatamente o mesmo
do apresentado num mapa terrestre; mas não é reconhecido porque, no mapa marítimo, o mar
é apresentado como a forma, e não apenas como fundo, como nos mapas terrestres comuns da
área mediterrânea. Neste caso, a inversão da figura e fundo altera tanto a percepção que um
contorno habitual não é reconhecido. Os psicólogos da Gestait estão também interessados nos
casos de formas embutidas, tais como as que se encontram nos quadros de quebra-cabeças, nos
quais um cão, uma boneca ou qualquer objeto comum devem ser descobertos em alguma parte
do desenho. Segundo os gestaltistas, estas formas
embutidas mostram o triunfo da organização sensorial imediata, sobre o significado; pois tais
formas possuem tudo o que a teoria do significado requer, e todavia não são reconhecidas de
imediato. Têm contornos vistos seguidamente na experiência; acumularam um grande
estoque de informação; todavia, perdem-se nestas circunstâncias.
306
Psicologias do Século XX
307
das, e assim por diante. O agrupamento pode ocorrer em formas mais sutis, mas nem por isso
menos reais. Se três homens estão empenhados numa discussão, dois contra um, os dois serão
vistos como um grupo e o terceiro como uma unidade separada deles. A atividade do debate
pode determinar a percepção da cena toda, e pode ser dominante sobre as outras condições,
tais como proximidade espacial e igualdade de raça ou idade.
Uma formação de Gestalt que seja temporal e espacial é exemplificada pela padronização da
experiência que se verifica quando uma pessoa está travando conhecimento com uma cidade
que nunca fora por ela visitada. Nem mesmo um único ponto de referência é visto isolado,
porém surge de um modo vago. Logo a seguir, alguns outros pontos de referência se
destacam, alguns lugares se tornam definidos, e aos poucos toda a cena ganha em clareza e
entrosamento até ser obtido um conjunto definido.
Muitos casos como esse abrangem a percepção visual, porém os Gestalten, naturalmente, não
se resumem ao campo visual. Um padrão simples de toques
exemplifica, no campo auditivo, vários dos princípios que acabamos de debater; o fenômeno
do agrupamento, no qual os conjuntos de três são ouvidos como todos isolados; o fenômeno
da figura e fundo, no qual os grupos de toques são as figuras e os intervalos de silêncio, o
fundo; o fenômeno da "completação", no qual existe a tendência em adicionar um toque ao
último grupo para formar grupo completo. A propósito, a passagem do padrão visual para o
campo auditivo, que é feita sem a menor dificuldade, exemplifica a "transponibilidade" da
forma e demonstra sua independência de qualquer conjunto especial de elementos.
intimamente relacionadas e respondem uma à outra, e no qual nenhuma parte deixa de ser
influenciada pelo que está acontecendo nas outras. Os instintos, também, são Gestalten. Uma
ação instintiva, insiste Koffka, não é uma cadeia de reflexos, nem uma simples sucessão de
atividades parciais, mas sim um processo contínuo, um todo unificado no qual cada atividade
parcial é determinada não somente pela atividade que imediatamente a precede, mas também
pela atividade total e cada fase da mesma - principalmente pela natureza do ato que finaliza o
processo. Uma das notáveis características do instinto, a sua tendência na direção de um fim ou
alvo, é um excelente exemplo de "completação" numa Gestalt temporal.
Os estudos dos macacos feitos por Kõhler mostram que os Gestalten ocorrem no processo de
resolver problemas. A resolução de um problema, Kühler considera uma ação contínua - nada
parecida com a fixação e a eliminação de liames definidos preexistentes de Thorndike, mas uma
atividade visando a um fim, e que é um todo contínuo, e na qual cada atividade parcial se ajusta
ao padrão total que é o único a lhe dar significado. Este fato torna-se aparente pelo
comportamento visível do animal. Na verdadeira resolução de problemas, os próprios
movimentos corporais formam uma seqüência temporal que mostra claramente continuidade,
direção no sentido de um objetivo, e conclusão. Porém, ainda mais importante é o fato de que o
ponto crítico na solução do problema, o "insight" da situação, é também concebido como a
formação de uma Gestalt. O "insight" é uma padronização do campo perceptual de tal maneira
que as relações importantes são óbvias; é a formação de uma Gestalt na qual os fatores
relevantes se ajustam em relação ao todo. Para apresentar a questão de modo mais definido,
um animal tem um "insight" de seu problema quando concebe uma caixa como algo em que
pode subir para alcançar uma fruta que está suspensa fora de seu alcance; ou quando, por
acaso, consegue juntar duas varas para formar uma só de comprimento suficiente para obter a
fruta que cada vara isolada é muito
308
Paicologias do Sécu'o XX
309
Edna Heidbreder
Sem arranjos especiais, deve-se principalmente observar. A frase é importante porque fornece
a chave para os princípios explicativos que os gestaltistas propõem para substituir aqueles que
rejeitam. A psicologia da Gestalt tem dificuldade para mostrar que os Gestalten físicos podem
ser explicados através da interação das próprias forças físicas, e que as estruturas rígidas que
caracterizam as máquinas construídas pelo homem não são essenciais. A rejeição do
mecanicismo é geralmente considerada como implicando urna aceitação do vitalismo; porém, a
psicologia da Gestalt, afirma-se claramente, é tão oposta ao vitalismo como ao mecanicismo. O
mecanicismo e o vitalismo ignoram o campo da dinâ mica
a parte da física que estuda a interação das próprias forças físicas; e é neste campo da ciência
física que a psicologia da Gestalt encontra a oportunidade de explicar os seus fenômenos. Uma
explicação física, salientam os gestaltistas, não é obrigatoriamente uma explicação mecânica; e
uma explicação não-mecanicista não é necessariamente uma explicação mística. Uma psicologia
que não pode aceitar a antiga noção do sistema nervoso como sendo uma máquina
- como um arranjo de unidades de condução fixas - não é expulsa das ciências naturais em
busca de uma explicação. Tem todo o campo da dinâmica à sua disposição.
Nas máquinas feitas pelo homem há dois conjuntos de fatores incluídos; as forças que as
propulsionam e os arranjos especiais que as fazem andar de uma certa forma. Na máquina a
vapor, a força é a pressão exercida pelo vapor; os arranjos especiais são o cilindro e o pistão
que se adapta ao cilindro. A máquina a vapor é típica das máquinas feitas pelo homem no
sentido em que a força é guiada pelos dispositivos rígidos que tornam a ação possível em
apenas uma única direção.
Os seres humanos são inclíhados a pensar que as forças da natureza - as chamadas forças
"cegas" - se abandonadas a si mesmas, produzem somente caos e destruição. Raciocinando por
analogia com suas próprias máquinas, eles supõem que se as forças naturais devem produzir
alguma espécie de ordem, precisam ser dirigidas segundo normas rígidas assinaladas por
dispositivos especiais. Os homens demoraram para crer que as forças da natureza, atuando
umas sobre as outras, podem, em si mesmas e por si, produzir harmonia e ordem.
E, todavia, as máquinas feitas pelo homem são apenas um caso particular dos sistemas físicos
em geral. Em todos os sistemas físicos existem dois conjuntos de fatores: as próprias forças e
aquelas propriedades do sistema que podem ser chamadas as condições invariáveis de sua
ação. Os dispositivos rígidos, tais como os encontrados nas máquinas, são apenas um tipo
especial de condições invariáveis; e nos sistemas físicos realmente encontrados na natureza,
existe uma enorme variação na influência relativa das forças reais e das condições invariáveis.
Às vezes uma predomina, e por vezes, a outra. As máquinas feitas pelo homem são um caso
excepcional, no qual os dispositivos rígidos são muitíssimo importantes porque excluem todas
a possibilidades de ação, menos uma. Em contraste, existe a ordem do sistema solar, que é
310
311
mantida pela interação das forças físicas; neste caso, não há dispositivos rígidos - não existem
"esferas de cristal", como as da astronomia aristotélica, não existe estrutura alguma, de fato -
para manter os planetas em suas órbitas. E quando dois átomos se unem para formar uma
simples molécula, formam um todo bem ordenado, também sem arranjos especiais, somente
através da interação dinâmica.
A concepção do sistema nervoso, como um conjunto de condutores isolados por meio do qual
os impulsos nervosos são levados de um determinado ponto a outro ao longo de vias fixas,
corresponde à teoria da máquina. Um sistema concebido desta maneira é naturalmente uma
questão de dispositivos especiais; e como nas máquinas feitas pelo homem, os dispositivos
especiais - tecido fibroso especial, centros nervosos especiais, e coisas desse teor - são fatores
preponderantes. É a esta concepção que os gestaltistas se opõem. A psicologia da Gestalt
sustenta que a experiência revelada pela observação, padronizada, plástica e "formada" como
é, não pode ser obtida a partir de tais dispositivos rígidos; na interação das próprias forças
físicas, mais do que nas estruturas iguais à máquina que excluem todas as possibilidades,
menos uma, ela vê a explicação para o caso. A psicologia gestáltica supõe que exista no sistema
nervoso uma interação de forças análogas às da interação dinâmica, a qual, sem estruturas
especiais para restringir o seu raio de ação, produz organização no átomo e no sistema solar. O
gestaltista não pensa em função de sistemas de fibras ligando determinadas áreas sensitivas
com certos órgãos motores através de vias fixas no sistema nervoso central. Acredita que por
mais bem feitas e numerosas que as possibilidades de ligação se tornem, são inadequadas para
explicar a experiência como ela é. Pensa mais em função de padrões de forças para mudar e
em tensões como aquelas que dão a forma circular numa película de sabão. O sistema nervoso,
insiste ele, ou melhor, o sistema nervoso e seus anexos devem ser considerados como um
todo. O que acontece na retina, por exemplo, não pode nunca ser
considerado em si e por si mesmo; pois ela é apenas uma das superfícies do sistema nervoso, e
tudo o que nela acontece influencia e é influenciado pelo desenrolar total dos fatos no sistema
nervoso. É bastante significativo que a formação de Gestalten na experiência imediata é
determinada por fatores, como a distância relativa e as relações das propriedades qualitativas
- como se demonstra de forma mais simples pelos pares de linhas e outras figuras
dadas no início deste capítulo; pois são justamente tais fatores que a física acha serem decisivos
na interação das forças. Para os gestaltistas a concepção da atividade nervosa em função da
interação dinâmica parece não somente ser reclamada pelo caráter da experiência imediata,
como também apoiada pelos fatos das ciências físicas. Os detalhes da concepção não foram
formulados, porém, o contraste entre a teoria da interação dinâmica e a dos
dispositivos tipo máquina é claro e inconfundível.
É possível que tudo isso pareça muito pretensioso. É certo que os gestaltistas progrediram
depressa e avançaram muito. Começando com fenômenos especiais da percepção, ampliaram
os seus conceitos através de todo o campo da psicologia e mesmo além, na biologia e na física.
Surge a pergunta inevitável: Existe alguma prova em apoio dessas especulações?
Ninguém mais do que os próprios gestaltistas poderia estar a par mais seriamente da
oportunidade dessa pergunta, pois, embora apresentem o seu caso com desvelo, a sua escola
não é a do tipo que se estende em apresentação e argumento. Tomando como ponto de
partida um estudo experimental, a psicologia da Gestalt nunca pretendeu que seus problemas
pudessem ser resolvidos de qualquer outra maneira a não ser por um apelo à evidência
científica. Desde o início, os gestaltistas se aplicaram assiduamente à experimentação. Algumas
de suas pesquisas mais importantes foram sobre a percepção e, infelizmente do ponto de vista
da apresentação, a maior parte desse trabalho foi por demais técnico; porém, um experimento
de percepção, que é tão sim- pies na técnica como é típico no método geral, servirá de
exemplo do seu modo de atacar o problema.
-as a tirarem grãos de um papel de certa tonalidade de cinzento. Foram usados dois tons de
cinzento, sendo espalhados os grãos nos dois. Quando as aves apanhavam os grãos do
cinzento mais escuro podiam comê-los; quando apanhavam os do papel mais claro, eram
afugentadas. Às vezes, o cinzento escuro estava à direita e outras à esquerda do mais claro.
Finalmente, as galinhas aprenderam a comer os grãos do cinzento escuro.
312
313
Esta parte do experimento foi apenas preparatória. Seguiu-se uma série de testes, que colocou
o problema crucial. Novamente os grãos foram espalhados em papéis de dois tons diferentes de
cinzento, porém, aquele que tinha sido o mais escuro na série preliminar era o mais claro
na nova série de testes. Se as galinhas agora comessem deste papel, estariam reagindo a um
elemento específico, a um cinzento determinado; se procurassem alimento no cinzento mais
escuro, estariam reagindo a uma situação global, a uma relação, ao lado mais escuro do
padrão. As galinhas reagiram apanhando, por via de regra, os grãos no lado mais escuro dos
dois cinzentos, e não no cinzento que haviam aprendido a preferir na série prévia, O seu
comportamento foi uma reação à cor relativa. Esta descrição dá apenas o esboço mais simples
do experimento e não faz justiça à maneira pela qual as condições foram variadas e controladas
de modo sistemático, nem ao exame feito dos problemas subsidiários. Mostra, entretanto, o
plano geral que é típico de muitos dos experimentos sobre percepção. As circunstâncias são
dispostas de tal forma que é possível reagir tanto a um elemento isolado, como à Gestalt total,
e as reações dos sujeitos decidem a favor de uma das alternativas.
Seguindo o mesmo plano geral, foram empreendidas experiências de reconhecimento para
determinar se um dado elemento ou a situação global são decisivos. Sobre a memória em geral,
a escola da Gestalt tentou mostrar, pelas suas próprias experiências e pela reinterpretação dos
estudos anteriores, que a organização integral, mais do que as associações específicas entre
certos elementos, deteimina se um certo conteúdo é conservado ou reproduzido. O trabalho de
K5hler feito com macacos é o experimento clássico sobre os processos mais elevados que
incluem o "insight". Kurt Lewin contribuiu com estudos sobre a ação e o comportamento. O
conceito de figura e fundo, que os gestaltistas adotaram, derivou do trabalho de Edgar Rubin.
Do princípio ao fim, a pesquisa ativa desempenhou sempre um papel importante no programa
da escola da Gestalt.
É significativo, além disso, que os gestaltistas tenham encontrado provas em favor de suas
teorias, fora do campo da própria psicologia. Os psicólogos norte-americanos têm estado
particularmente interessados no fato de que uma parte dos recentes trabalhos sobre biologia -
levados a efeito de modo completamente independente da escola gestáltica e sem qualquer
relação com seus ensinamentos - deu resulta-
dos que se coadunam com as teorias gestálticas. O trabalho de Child, por exemplo, mostra que o
estabelecimento de um gradiente fisiológico é da máxima importância quando se determina o
padrão do organismo em desenvolvimento; e que este padrão pode ser alterado, alterando- se
o gradiente. Isto significa, usando a terminologia dos gestaltistas, que o desenvolvimento de um
organismo é uma questão de forças e tensões cambiantes - de interação dirrâmica mais do que
dispositivos rígidos. O trabalho de Coghill atinge mais diretamente os problemas da psicologia.
Estudando o comportamento motor dos organismos em desenvolvimeito com relação ao
crescimento nervoso, Coghill descobriu no amblistoma que os movimentos do
corpo todo surgem primeiro, e que os movimentos exatos e restritos como os reflexos
aparecem depois, os mais limitados diferenciando-se a partir dos maiores no decorrer do
desenvolvimento. Minkowsky e colaboradores encontraram indicações do mesmo tipo de
desenvolvimento no feto humano. Examinando as reações de fetos abortados, descobriram que
as atividades dos menores e mais jovens eram difusas, abrangendo o organismo como um todo,
mas naqueles que apresentavam uma etapa mais avançada de desenvolvimento, podiam ser
conseguidos reflexos bem definidos.
Assim também os estudos de Franz e Lashley mostram, pelo método de extirpação nos cérebros
de animais e pelo método de reeducar os soldados portadores de lesões cerebrais, que a
destruição de áreas limitadas no cérebro não impede definitivamente o comportamento
comumente atribuído àquelas porções do cérebro; ou, novamente usando as palavras dos
gestaltistas, que não existem "disposições rígidas" obrigatória e invariavelmente incluídas na
execução de determinados atos. É de particular interesse observar, a esse respeito, que foi o
exame da experiência imediata, mais do que a pesquisa direta no próprio sistema nervoso, que
levou os gestaltistas à sua teoria da natureza da atividade nervosa. Tendo observado certas
propriedades na experiência imediata - sua organização, sua susceptibilidade à soma total dos
estímulos - e achando a teoria da máquina inadequada para explicá-las, desenvolveram uma
nova teoria em harmonia tanto com suas próprias observações quanto com as leis físicas
conhecidas. Em outras palavras, os gestaltistas preferiram a sua teoria principalmente' porque
ela fornecia melhor descrição dos fatos da experiência imediata, e não porque houvessem
feito experiências com o próprio sis
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Edna Heidbreder
Psicologia8 do Século XX
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tema nervoso. ° Ao trabalhar dessa forma, participaram em uma das mais interessantes
convergências de pontos de vista em psicologia. A semelhança entre a interpretação gestáltica
da atividade nervosa e aquela difundida por Lashley, entre a "interação dinâmica" e a "ação de
massa" é imediatamente percebida, como também o fato de que esta prova fornecida por duas
fontes é complementar. É altamente significativo que dois planos de trabalho tão diversamente
motivados e surgindo de problemas e pontos de vista tão diferentes, chegassem tão próximos
um do outro; e que uma teoria da ação nervosa baseada, como era o caso, de acordo com a
observação da experiência imediata, concordasse tanto com uma teoria que, baseada na
experimentação direta com o próprio sistema nervoso, da mesma forma rejeitava a teoria da
ação com localização definida ao longo de caminhos rigidamente determinados e substituía o
conceito de ação de massa.
10 Isto não significa, naturalmente, que os gestaltistas agiram sem considerar os trabalhos
sobre a fisiologia do sistema nervoso. Em especial, Os estudos alemães baseados nas vitimas
da guerra vieram em apoio de suas idéias. As suas próprias contribuições tipicas, entretanto,
Provieram dos estudos experimentais dos próprios processos psicológicos.
* N. da djtora: Para a exata cronologia da psicologia da Gestalt, ver as datas das Obras citadas
na bibliografia deste capitulo.
experiência imediata como dados concretos nem um pouco menos discutíveis do que os dados
brutos das ciências físicas. Ela se opõe, entretanto, às limitações que a psicologia mais antiga
impõe ao estudo científico da experiência direta. Opõe-se ao uso exclusivo do tipo de
observação desenvolvido pelos "introspeccionistas treinados"; opõe-se ao uso exclusivo de uma
técnica na qual é assumida uma atitude especial de laboratório, e na qual a experiência como e
apresenta na observação diária (a mesa retangular como parece ser) é rejeitada em favor da
experiência "corrigida" (o quadrilátero irregular que o introspeccionista descreve). Os
gestaltistas insistem enfaticamente que a experiência ingênua do senso comum tem direito de
ser ouvida na psicologia. Acreditam no tipo de observação "não corrigida" que se chama
fenomenológica. E, mais ainda, acreditam que o introspeccionista exclui os problemas mais
urgentes e significativos de sua ciência ao considerar como "verdadeiros" dados psicológicos
somente as experiências, tais como as que resultam de sua atitude peculiar. A psicologia da
Gestalt não faz nenhuma objeção, seja qual for o estudo da experiência direta. A sua quizília
com o introspeccionista treinado é contra o artificialismo de seu método, e não contra sua
tentativa de estudar a consciência.
Contra o behaviorismo, a escola gestáltica apresenta duas objeções principais. Uma é a de que
os behavioristas sem necessidade rejeitam a consciência - sem necessidade, porque a
consciência é um fato da experiência, não mais nem menos justificável, lógica e
epistemologicamente, do que o mundo físico. É significativo que em Gesta.lt Psychology, livro
escrito em inglês para ser publicado nos Estados Unidos, Kõhler, dirigindo-se ao que chama o
fundamentalismo que o behaviorismo estabeleceu naquele país, utiliza todo o primeiro capítulo
para salientar a inconsistência entre a "ingenuidade sadia" dos behavioristas ao aceitar o
mundo físiço, e a sua "pureza epistemológica" ao rejeitar a consciência. Neste capítulo,
tomando a experiência ingênua como ponto de partida de toda ciência, mostra como é feita a
distinção entre o objetivo e o subjetivo, e explica que é tão impossível provar a existência de
um mundo físico independente como provar a consciência de uma pessoa vizinha. E uma vez
que a física tem ido para adiante apesar deste fato, argumenta que é possível para a psicologia
agir de forma idêntica; que é melhor adotar uma "ingenuidade sadia" do que ser limitado pelos
escrúpulos da "pureza epistemológica". A segun
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Edna Heidbreder
Psicologias do Século XX
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Mas não se pode ocultar o fato de que a principal objeção da psicologia da Gestalt ao
behaviorismo e ao estruturalismo é contra o hábito que eles têm de considerar o seu material
por partes, de supor que as suas unidades maiores nada mais sejam do que as menores
reunidas em determinadas combinações. Afinal de contas, a psicologia da Gestalt não está
principalmente interessada em questões tais como se a consciência ou a conduta são o objeto
da psicologia, ou se a introspecção ou a observação objetiva são o método apropriado. O seu
principal argumento é o de que por meio do conceito de Gestalt ela chamou a atenção para as
características da experiência que têm sido desprezadas e que não podem legitimamente ser
ignoradas; e todas as suas diferenças com outras escolas derivam de sua posição com respeito
a esse ponto crítico.
Qualquer movimento que atacasse a ordem em vigor, como fez a escola gestáltica, provocaria
naturalmente oposição; pois bem, a psicologia da Gestalt tem recebido todas as vantagens que
se podem obter da crítica enérgica e variada.
Em primeiro lugar está a objeção inevitável de que a psicologia da Gestalt não é realmente nova.
Esta objeção é logo mantida se se refere ao modo geral de pensar no todo como não sendo
equivalente à soma de suas partes, na forma e organização como características da experiência
não explicável em função de elementos. Neste sentido, a psicologia da Gestalt, como admitem
os gestaltistas, é pelo menos tão antiga como Heráclito e Anaxágoras, e não pode nem mesmo
alegar que redescobriu o problema na atualidade. Autores como James e Dewey protestaram
contra o elementarismo tão energicamente como qualquer gestaltista. Mas se a psicologia da
Gestalt for considerada num sentido mais específico como introduzindo certos conceitos que
revelaram problemas definidos obscurecidos pelas práticas da época, tem o mesmo direito de
ser chamada novidade como qualquer outro movimento; pois ela incluiu
na psicologia da época uma forma de considerar as coisas e um modo de fazer as coisas que não
estava sendo tentado ou que, pelo menos, não era reconhecido. Neste particular, a psicologia
da Gestalt é tão nova como os novos usos são novos, ou como a moda, os costumes, ou como as
mudanças de governo, a invenção de máquinas industriais, ou qualquer outra inovação que não
é nova em sentido absoluto mas que, não obstante, muda o curso dos acontecimentos na
época. Afinal de contas, do ponto de vista do progresso da ciência, o importante não é saber se
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Edna Heidbreder
uma idéia é nova, mas se é importante para as necessidades da situação existente. E a maneira
como a psicologia da Gestalt tem sugerido problemas e planos de investigação para os
pesquisadores estranhos a essa escola, ou mesmo opostos a ela, representa uma das melhores
provas de que os seus "insights" estabeleceram uma diferença nas práticas reais da ciência.
Existe, entretanto, uma outra forma um tanto mais sutil, na qual a objeção de que não há nada
de novo na psicologia da Gestalt às vezes aparece. Fala-se por vezes que os gestaltistas deram
uma importância exagerada à doutrina do elementarismo na forma em que é defendida pela
escola experimental mais antiga; afirmam que realmente enfrentaram um espantalho. Uma das
referências ao assunto é a seguinte:
"Também não se deve pensar que a psicologia ortodoxa tenha jamais levado a sua crença
sobre os elementos muito a sério. Estava habituada a prestar homenagem aos elementos e
aos seus atributos, vamos supor, aos domingos, e tratar com o que era de fato Gestalten
durante o resto da semana. A força da psicologia da Gestalt a esse respeito estava em que
pedia a todos para fazer o que já estavam fazendo quase sempre e que desejava, portanto,
confirmar a psicologia da pesquisa real, mais do que instaurar uma nova psicologia." 11
Porém, se este for o caso, é grande vantagem que a situação tenha sido esclarecida, pelo
menos pela destruição do espantalho. Afinal de contas, a ciência não pode consentir
seriamente em não deixar a mão direita saber o que faz a esquerda. A ciência, naturalmente,
não pode desprezar os resultados obtidos por métodos confusos ou empíricos. A prática
científica muitas vezes antecipa-se à teoria; freqüentemente lida de forma não intencional e
inconsciente com hipóteses que só descobre depois de haver utilizado. Mas esse procedimento
justifica-se porque, por meio da aquisição e interpretação desses dados, estas hipóteses
aparecem finalmente à luz do dia. Em algum lugar do plano há um ponto onde o cientista
depara com fatos obstinados que o obrigam a estudar as hipóteses que os fatos se recusavam a
aceitar. Tais pontos são sempre importantes no desenvolvimento de uma ciência. Como a
própria psicologia ensina, é a coisa mais natural do mundo que as hipóteses comuns deixem de
chamar a atenção, ficando, porém, a influenciar de forma oculta os trabalhos dos
pesquisadores. Se a psicologia da
Psicologias do Século XX
Gestalt fez apenas a apresentação de hipóteses que estão incluídas nas práticas da psicologia e
que não estavam definitivamente aceitas, já justificou a sua existência. Quer os seus ensinos
estejam certos ou errados, e sejam novos ou antigos, já contribuíram para esclarecer a situação.
Porém, esta linha de raciocínio sugere que mesmo nas explicações da psicologia da Gestalt
aparece a hipótese de persistência. Foi sugerido realmente que, de uma forma ou de outra, a
hipótese de persistência não é apenas urna tendência muito natural do pensamento, como
Kõhler salienta, mas também uma tendência necessária no pensamento científico. A própria
psicologia da Gestalt começou como uma tentativa para descrever a experiência como ela
surge de imediato em
Edna Heidlreder
Isso é verdade se a hipótese de persistência déve significar qualquer tentativa que seja para
estabelecer planos de relação entre a experiência e suas condições estimulantes, entre uma
situação e outra. Neste sentido muito geral, a psicologia da Gestalt está utilizando um método
sempre usado em psicologia e em todas as outras ciências. Porém, o termo "hipótese de
persistência", na forma em que é usado pela escola gestáltica, tem um significado muito mais
específico. Refere-se definidamente a uma "persistência" entre a experiência imediata e o
estímulo local definido, a uma teoria que está associada com a concepção do sistema nervoso
como uma estrutura de "disposições especiais" e com a concepção da experiência;imediata
como sendo composta de elementos. Se a hipótese de persistência é tomada neste sentido, a
psicologia da Gestalt, ao chamar a atenção sobre ela, colocou uma alternativa bem definida
perante a ciência. De um lado, estão os elementos e associações e um sistema nervoso de
arranjos especiais; de outro, estão as Gestalten e a interação dinâmica. Nas coisas reais, o
contraste é definido e claro. Pouca diferença faz o grau de novidade da situação; tampouco faz
diferença se existe uma semelhança básica no pensamento subjacente à hipótese de
persistência e à teoria de interação dinâmica. A questão é que, ao chamar a atenção para a
hipótese de persistência num sentido específico, a psicologia da Gestatt trouxe à luz do dia um
tema impor-
Psicologias do Século XX
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tante, forçou a psicologia a examinar algumas de suas hipóteses, obrigando-a assim a purificar
o seu pensamento.
Esta questão, entretanto, sugere que a psicologia da Gestalt foi também acusada de falta de
clareza em alguns de seus conceitos fundamentais. O conceito central, o de Gestalt, foi
mencionado como o exemplo mais flagrante. Os críticos salientaram que o termo tem sido
aplicado aos fenômenos mais diversos - aos padrões visuais, tanto espaciais como temporais, à
experiência imediata em outros campos sensoriais, à memória e ao pensamento, ao instinto e a
outras formas de comportamento motor visível; observaram que, em acréscimo, a palavra
Gestalt tem sido usada para se referir à totalidade, unidade e organização; e que com a junção
de tanto material sob o mesmo tópico, houve uma tendência para generalizar de um campo
para outro, nem sempre com a devida cautela. Nos primeiros tempos deste movimento, esta
crítica foi ouvida com maior freqüência do que agora, pois, à medida que foram sendo
formulados os problemas experimentais, as condições nas quais se verificam certos
fenômenos foram melhor determinadas e as afirmações se tornaram mais exatas. A acusação
de falta de clareza foi também feita contra as teorias fisiológicas propostas pela escola da
Gestalt. Certamente a psicologia da Gesta,lt não apresenta uma descrição da atividade nervosa
que possa ser visualizada e diagramada como a concepção que lhe é contrária e de acordo com a
qual é teoricamente possível seguir uma dada excitação do princípio ao fim por meio de
caminhos que se tornam bastante complicados, mas nos quais o princípio é sempre o mesmo, o
das unidades de condução colocadas de uma ponta a outra. Se falta de clareza significa
incapacidade para apresentar uma descrição bem esboçada e completa, a psicologia da Gestalt
pode considerar-se culpada. Ela admite abertamente que o seu conhecimento do sistema
nervoso é inadequado para a tarefa de acompanhar detalhadamente a interação dinâmica que
ela supõe existir. Os gestaltistas estão também a par de que o problema da interação dinâmica
apresenta mais dificuldades do que os conceitos mais antigos. Admitem também que deduziram
este processo dos fenômenos psicológicos e dos princípios da dinâmica e que a evidência
apresentada pela fisiologia é apenas confirmativa. Acreditam, entretanto, que é totalmente
legítimo seguir este método. Além disso, para os gestaltistas o fato de que sua explicação é
necessariamente in- . completa não significa que, até onde lhe diz respeito; seja
322
323
imprecisa. A direção para a qual se inclina é claramente assinalada; e não vêem motivo por que,
principalmente sendo trabalhadores de uma ciência muito jovem, devam se recusar a seguir as
sugestões de seus dados, mesmo quando indiquem que a maioria de seus problemas ainda
está pela frente.
A psicologia da Gestalt foi também criticada pela sua posição quanto à análise. Podem os
gestaltistas querer seriamente desacreditar a análise como método científico de pesquisa? Às
vezes parecem assim fazer em suas declarações de que a análise destrói a própria realidade
que procura explicar; e que reduzir uma coisa a seus elementos e estudá -l por partes é perder
de vista a própria coisa. Tais declarações fizeram parte do ataque dos gestaltistas contra o
elementarismo, e da sua insistência de que o todo não é apenas a soma de suas partes.
Naturalmente os críticos não perde. ram tempo em salientar que sem análise experimenta] a
ciência não poderia existir, e que mesmo a escola da Gestalt, deve usar a análise ao isolar,
variar e controlar experimentalmente diferentes conjuntos de fatores. Havia também muita
confusão quanto ao que os gestaltistas queriam exatamente significar com seus ataques à
análise. Em algumas de suas primeiras advertências contra os perigos da análise, eles
evidentemente se excederam. Entretanto, Kõhler recentemente considerou a questão de modo
específico. Ele explica que a psicologia gestáltica, pelo seu destaque aos todos, não pretende de
modo algum abandonar a análise como método científico. Salienta que os gestaltistas
reconhecem bem os todos segregados e que assim empregam um método de análise que trata
com partes genuínas, embora possam se recusar terminantemente a ter qualquer coisa a ver
com elementos de sensação que não possuem existência como partes separadas da
experiência. Por exemplo, toda vez que tratam com um campo no qual existem todos e
subtodos segregados, como num grupo em que existem vários membros, os gestaltistas
utilizam tais análises. A psicologia da Gestalt reconhece também uma forma de análise, na qual,
através da adoção de uma atitude definida pelo observador, dá-se a escolha de algumas partes
do campo e a supressão de outras
- uma espécie de aiiálise que pode provocar uma mudança na organização do' campo, de
maneira que a impressão total é visivelmente alterada. Porém, este tipo de análise é também
bastante freqüente na experiência real. Finalmente, a psicologia da Gestolt aceita mesmo uma
análise que não trate com .partes reais. Esta é uma espécie de análise "difereii cial"
324
Edna Heidbreder
Psicologias do Século XX
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nos verdadeiros do que as coisas naturais, claras, palpáveis e inegáveis com as quais estão
acostumados a lidar.
Essas não são de nenhuma forma as únicas objeções argumentadas contra a psicologia da
Gestalt, porém representam alguns dos principais temas. Neste ínterim, não pode haver
dúvida que esta escola imprimiu a sua marca sobre a ciência. Fez com que muitos psicólogos
pusessem em dúvida as hipóteses fundamentais com as quais estavam trabalhando, e
estudassem de forma crítica certas limitações formais que, em parte devido à tradição
acadêmica e também porque estavam sendo aceitas como verdadeiras, se estavam tornando
indevidamente influentes. Deu origem a problemas tão reais e significativos que despertaram
vivo interesse nos psicólogos, dentro e fora da escola. Acima de tudo, a psicologia da Gesta.lt
defende hipóteses definidas e métodos de experimentação e é direta e indiretamente
responsável por um grande volume de pesquisas. Assim como outras escolas, que se
rebelaram contra a ordem estabelecida, os gestaltistas exerceram uma influência renovadora
na psicologia em seu todo. Basicamente, a sua tentativa foi a de livrar a psicologia de um
profissionalismo rígido, levando-a para uma visão direta e clara da experiência. Muitas escolas,
uma após outra, têm de certa maneira tentado fazer a mesma coisa; e é sintomático das
dificuldades inerentes à psicologia o fato de ser sempre necessária uma nova tentativa.
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VII
A PSICANÁLISE: FREUD
O fundador deste movimento foi Sigmund Freud. Iniciou sua carreira estudando medicina em
Viena e durante algum tempo esteve interessado pela fisiologia, principalmente a do sistema
nervoso. Finalmente, entregou-se à prática da medicina, associando-se com um homem um
pouco mais velho, o Dr. Josef Breuer. Freud interessou-se logo pelas desordens neuróticas, e
foi em sua prática real com casos desta natureza - Freud salienta principalmente este
ponto - nas suas observações diretas abrangendo anos de experiência, que aos poucos elaborou
a prática e a teoria da psicanálise. Pois embora Freud afirme com convicção e, às vezes,
amargamente que ele, e só ele, foi o fundador da psicanálise, nunca pretendeu ter chegado a
esta concepção quer por uma visão repentina ou por uma criação definitiva. Menciona amiúde
a longa prática que pouco a pouco e em fragmentos desconexos lhe revelou a personalidade
humana na forma em que conseguiu vê-la.
Em 1885, Freud seguiu para Paris a fim de estudar sob a direção de Charcot, na época a
autoridade de maior projeção em desordens mentais, na Europa. Freud ficou bastante
impressionado com Charcot e interessou-se principalmente pelo seu modo de tratar a histeria.
Charcot acreditava que a histeria e a hipnose estão intimamente associadas; e que a verdadeira
hipnose é, de fato, essencialmente um fenômeno histérico e pode ser provocada somente em
pacientes histéricos. Muito naturalmente, aconselhava o seu uso tanto para as pesquisas
quanto para o tratamento dos sintomas histéricos. Essa idéia geral não era nova para Freud. Em
grande parte devido ao prestígio de Charcot, o tratamento da histeria pela hipnose tornara-se
amplamente difundido, e o próprio Freud havia-se familiarizado com a prática da mesma em
seus trabalhos em Viena.
Houve um incidente, entretanto, fora das aulas normais de Charcot, que sobressaiu com
memorável clareza nas experiências de Freud, quando estudante em Paris. Certa noite, numa
recepção, ouviu Charcot debatendo um caso que lhe havia chegado às mãos na sua prática
daquele dia. Falando com a maior ênfase possível, Charcot declarou que em tais condições havia
sempre um problema sexual. "Sempre, sempre, sempre", repetia ele. 1 Freud ficou perplexo,
não apenas pelo conteúdo da declaração, mas também pelo fato de que Charcot não revelara
este conhecimento aos seus alunos quando já o possuía. Posteriormente, quando sua própria
atividade o estava levando a descobrir sua teoria da origem sexual das neuroses, recordou-se da
declaração de Charcot, naturalmente a considerando como uma opinião técnica que vinha a
favor de suas próprias descobertas. Porém, antes mesmo de seguir para Paris, Freud tinha
vislumbrado uma
1 Charcot negou ter feito tal declaração. Freud relata tanto a declaração quanto a sua negativa
em seu trabalho sobre "The History or the Psychoanalytic Movement", Psychoaaalytical Review
(1916), 3, 406-454. A histÓria do desenvolvimento da psicanálise dada neste capitulo baseia-se
principalmente nesse relato escrito por Freud.
idéia que, como a teoria da origem sexual das neuroses, estava destinada a ser uma das
doutrinas básicas da psicanálise. Um dos casos de Breuer lhe parecia principalmente
significativo. A paciente era uma jovem senhora, cujos sintomas histéricos haviam surgido de
um incidente em sua infância. Naturalmente, ela havia ficado fortemente impressionada,
entretanto, havia esquecido completamente o incidente. O tratamento de seu estado foi
essencialmente uma catarse, uma liberação de emoção reprimida, realizada fazendo-se com
que ela se recordasse e reproduzisse sob hipnose a experiência que jazia na base de sua
perturbação. A interpretação tanto de Freud como de Breuer era a de que a experiência inicial
tinha provocado um distúrbio emocional que havia sido impedido de se manifestar na forma
direta e normal; e que esta emoção, encontrando bloqueada a sua saída natural, havia
procurado uma outra e se exprimia pelos sintomas. Freud chamou este processo de conversão,
e se referiu aos sintomas como sendo a conversão do efeito original. Este caso é importante no
desenvolvimento da teoria psicanalítica porque indica as funções subterrâneas das tensões
psíquicas. A descoberta de que um incidente, que está no inconsciente e de há muito esquecido,
era não obstante a fonte de acentuados distúrbios do comportamento, não só chamou a
atenção para o papel exercido pelo inconsciente, como também deu a entender que o
inconsciente é acentuadamente dinâmico.
Todavia, este caso, embora altamente significativo para o desenvolvimento da teoria, não
abrangia a verdadeira psicanálise. A hipnose havia sido usada e, segundo Freud, a verdadeira
psicanálise somente começa quando a hipnose é rejeitada. Freud havia estudado sua paciente,
devemos lembrar, antes de seguir para Paris, e o desenvolvimento da verdadeira psicanálise
deu-se muito mais tarde. Ao regressar a Viena, após haver estudado com Charcot, Freud
associou-
-se novamente a Breuer e adotou de novo a prática da hipnose juntamente com o processo de
catarse. Porém, não achou este método inteiramente satisfatório. Era bastante eficaz na
remoção dos sintomas, porém no final não realizava a cura. Muitos pacientes que haviam
recebido alta voltaram mais tarde, muitas vezes com outros sintomas. Um exame subseqüente
geralmente revelava que a verdadeira causa da perturbação não havia sido descoberta; e que se
ocultava muito mais profundamente no passado do paciente do que até onde havia chegado o
primeiro exame. Estes fatos fize Ii
330
Edna Hekibreder
ram com que Freud considerasse o método hipnótico como superficial, como instrumento
inadequado para aprofundar-
Neste ínterim, Freud e Breuer estavam aperfeiçoando, de forma um tanto informal, um método
inventado por Breuer no qual o paciente era incitado a falar de si mesmo ao médico - um
processo às vezes chamado o método da conversa. O paciente era mantido desperto
normalmente - isto é, não ficava sob hipnose - e era instado para se expressar livremente como
lhe aprouvesse, a dizer o que lhe viesse à cabeça, e a não ocultar nada que lhe parecesse
embaraçoso ou sem valor, ou porque não seria normalmente mencionado. Nessas palestras os
pacientes recordavam-se às vezes de experiências de há muito esquecidas, que constituíam
importantes pistas para a descoberta de suas perturbações.
A princípio, foram usados tanto a hipnose quanto o método da conversa, porém com o passar
do tempo Freud passou cada vez mais a depender deste último. Considerava principalmente
uma enorme vantagem trabalhar com a colaboração e o conhecimento ativos do paciente. Pois
sob hipnose o paciente não estava, por assim dizer, totalmente presente. Somente uma parte
dissociada de sua personalidade se achava presente; a restante estava mergulhada em sono
hipnótico. Ao dspertar, podia estar completamente alheio ao que acontecera durante o
tratamento, e como resultado não era completamente curado. Para Freud o método hipnótico
parecia um processo muito mais incompleto do que aquele em que o paciente, sob a orientação
do médico, porém, baseado em suas próprias contribuições, era levado a perceber a verdadeira
causa de sua perturbação.
Este procedimento foi o começo da técnica psicanalítica. A catarse foi incluída como essencial,
porém, a hipnose foi rejeitada como superficial, e o método da conversa ou, como foi mais
tarde chamado, o método de associação livre, a substituiu. Esta descrição não implica,
entretanto, que o desenvolvimento da técnica psicanalítica consistiu apenas em escolher e
juntar processos que estivessem disponíveis. A psicanálise progrediu lentamente e, através de
tentativas, conseguiu a sua forma adulta somente após haver vencido dificuldades obstinadas.
Mas, as próprias dificuldades foram úteis. Duas delas foram consideradas particularmente
significativas para Freud. A menor chamou de transferência. Este termo re Paicologia
do Século XX
351
fere-se ao :fato de que o paciente, durante as conversações longas e intimamente pessoais, nas
quais suas emoções estão sendo provadas e estimuladas, desenvolve uma forte ligação afetiva
pelo analista - ou fica apaixonado por ele claramente e sem subterfúgios, ou então desenvolve
uma atitude hostil e pessimista que Freud considera apenas como o inverso de se apaixonar, e
em essência é a mesma espécie de reação Quando Breuer se convenceu de que a transferênçia
era regularmente provocada, sentiu-se na obrigação de rejeitar o processo analítico. Também
se opôs ao destaque dado por Freud ao papel do sexo na gênese das neuroses. Desistiu,
portanto, deste método que tanto contribuíra para iniciar, e os dois médicos seguiram seus
caminhos profissionais em separado.
Para Freud, o surgimento da transferência representava mais uma prova da natureza sexual das
dificuldades do paciente. Significava que a emoção removida pela análise havia se apegado ao
analista. A transferência tornou-se em sua opinião uma parte necessária do processo - a ponto
de ser um dos traços característicos da verdadeira psicanálise. Porém, esta
circunstância, embora indispensável, era realmente só temporária. Fazia parte da tarefa cio
médico hábil destacar a emoção de si mesmo e dirigi-la outra vez para canais onde sua
presença fosse adequada, e onde favorecesse a saúde mental do paciente.
222
Edna Heidbreder
rando como é na realidade, com todas as suas implicações ocultas, somente reagindo à mesma
de modo completo e sem subterfúgios, poderá encontrar alívio para as suas emoções
recalcadas. No decorrer de uma análise completa, a resistência é encontrada não apenas uma
vez, porém, com freqüência, e todas as vezes deve ser vencida sem esmorecimento. Além disso,
deve ser vencida sem hipnose. Seria mais fácil, realmente, tanto para o paciente como para o
médico, se as lembranças dolorosas pudessem ser evocadas sob hipnose. Os incidentes
esquecidos seriam então reproduzidos sem fazer ligação com a personalidade consciente, e,
portanto, sem provocar resistência. Porém, a experiência de Freud tornara-o cada vez mais
cético em relação à hipnose como meio de penetrar nas camadas realmente profundas da
personalidade. Ademais, a finalidade básica da psicanálise é trazer de volta o conteúdo rejeitado
para a vida consciente, preencher a lacuna criada pela sua rejeição, e assim curar a ferida que
divide a personalidade contra si mesma. Isto só pode ser conseguido quando o paciente
considera a situação de forma consciente em sua absoluta clareza; não há outra maneira de
obter verdadeiro alívio.
Psicologias do Século XX
332
ria psicanalítica estão nele implícitos - a concepção do iiconsciente como ativo e lutador, e da
guerra entre o eu coisciente ou ego e o desejo inconsciente.
De acordo com Freud, o sonho é essencialmente uma satisfação disfarçada dos desejos que
foram recalcados durante o estado de vigília. Os sonhos são muito mais significativos e muito
mais complexos do que parecem. Cada sonho possui um conteúdo manifesto e outro latente.
O conteúdo manifesto é a descrição que se faz ao relembrar o sonho - o sonho em sua
aparência; porém, o conteúdo latente possui o seu significado verdadeiro. O conteúdo
manifesto pode ser fornecido pelos acontecimentos do estado de vigília de cada um - de fato,
é comumente extraído das experiências das vinte e quatro horas anteriores; mas, apesar de
tudo isso, o sonho não é um simples e casual jogo de associações triviais. O conteúdo
manifesto é simples material empregado pelas forças psíquicas reprimidas. Os desejos que
foram lançados no inconsciente durante o dia têm oportunidade de se exprimir à noite,
quando o sono enfraquece a vigilância do "censor", figura de retórica usada por Freud para
denominar as inibições que o ego impõe ao inconsciente. Mas mesmo quando o ego dorme e a
censura é diminuída, os desejos afastados não ousam se expressar abertamente. Se fossem
francamp,if øvii,ic, 1y,-mp nr1rii
P8icologias do Século XX
335
334
Edna Heidbreder
Foi também durante o período formativo da psicanálise que a teoria da sexualidade infantil se
desenvolveu. A prática de Freud o havia convencido completamente da base sexual das
neuroses; e embora a manifestação franca de sua crença lhe trouxesse a maior impopularidade
e algo muito parecido com o ostracismo profissional - circunstância que
i,- ia qt tporia e
sentiu-se mesmo na obrigação de levá-la adiante. Aos poucos, mas cada vez com maior
firmeza, tornou-se convencido de que os impulsos sexuais atuam fortemente antes da idade
da maturidade sexual; às vezes, concluía que atuam até mesmo na infância.
A evidência sobre a qual Freud baseava suas conclusões foi mencionada de passagem. Havia
desistido da hipnose em sua clínica porque sentira que ela deixava de atingir a causa subjacente
do problema do paciente. Um fato havia muitas vezes reclamado sua atenção, o de que cada
mal psíquico ou trauma possuía uma história. Uma pesquisa completa levava sempre o paciente
cada vez mais para o passado, e, às vezes, referia o seu mal a uma sedução ocorrida na infância.
Porém, paralela a esta descoberta, surgiu uma outra que parecia uma franca contradição. Em
muitos casos, pesquisas posteriores revelaram que as seduções eram simples fantasias; e que
simplesmente não haviam ocorrido. Freud ficou completamente perplexo durante algum
tempo. As análises conduziam invariavelmente aos choques sexuais na infância, e a pesquisa
mostrava que estes não tinham uma existência objetiva. Então, ocorreu-lhe a idéia de que se os
seus pacientes imaginavam seduções de forma tão regular, este fato em si era importante;
haver produzido fantasias de sedução parecia-lhe tão significativo, a seu modo, como se tivesse
ocorrido a sedução real. Para Freud, esta situação significava que os desejos sexuais da criança
eram satisfeitos pelas práticas auto-eróticas e que tais práticas,
proibidas e já consideradas como vergonhosas, eram afastadas do ego consciente por fantasias
de sedução, que eximiam o ego de toda a culpa. Esta interpretação deu-lhe a chave para
compreender a importância da vida sexual da criança; e a teoria da sexualidade infantil foi
acrescentada aos fundamentos de seu sistema juntamente com as doutrinas do recalque e do
inconsciente. Nenhuma escola ressaltou tanto como a psicanalista a tremenda importância da
meninice e mesmo da tenra infância na determinação do caráter do adulto.
Com essas descobertas, a teoria, bem como a técnica da psicanálise, havia completado a etapa
de formação. Porém, não se deve supor que o verdadeiro processo de desenvolvimento tenha
sido tão sistemático ou tão coerente, como a descrição posterior pode sugerir. Freud comenta
várias vezes os períodos de dúvida e perplexidade pelos quais passou, o fato de não haver
previsto as teorias para as quais as suas observações o conduziam. Todavia, pouco a pouco os
princi•
336
Edna Heidbreder
Psicologias do Século XX
337
pais conceitos tomaram corpo e concordaram entre si. O inconsciente foi concebido como
sendo ativo, lutador e poderoso. O recalque foi considerado como indicação de conflito entre o
ego e os desejos inconscientes. A direção tortuosa do insconsciente e seu caráter primitivo e
alógico foram ambos indicados pelos sonhos. Reconheceu-se a importância dos desejos
sexuais, mesmo na infância. Freud considera estes pontos de vista como os primeiros frutos da
análise; e insiste sempre que são resultados arduamente obtidos pela observação direta, e não
simples devaneios ou especulações.
A teoria psicanalítica pode ser considerada como a estrutura para explicar estas descobertas e
as futuras. Os ensinamentos de Freud, entretanto, nunca foram um corpo fixo e rígido de
doutrina. O próprio Freud estava, continuamente, modificando-os e ampliando-os, e sempre
explicando que não eram completos e finais. Contudo, os principais contornos permanecem
bastante invariáveis e podem ser rapidamente mostrados.
A vida psíquica dos seres humanos consiste de duas partes principais, o consciente e o
inconsciente. O consciente é pequeno e relativamente insignificante. O que uma pessoa sabe
sobre os seus próprios motivos e conduta dá apenas um aspecto superficial e fragmentário de
sua personalidade total. Por baixo do ego consciente está o vasto e poderoso inconsciente,
fonte das grandes forças ocultas que constituem a verdadeira força impulsora das ações
humanas. Entre o consciente e o inconsciente está o pré-consciente, que se funde
gradualmente com ambos, mas que se parece mais com o consciente do que com o
inconsciente em conteúdo e caráter e é acessível à consciência sem resistência emocional. O
pré-
-consciente não é formado pelo material que foi fortemente rejeitado e recalcado; em
conseqüência, os seus conteúdos podem ser evocados pelos processos comuns de associação.
A censura localiza-se geralmente no pré-consciente.
Tanto o consciente como o inconsciente são concebidos como ativos. Freud naturalmente
considera como um assunto de observação diária e evidente, assim como um fato que não
necessita ser provado, que os egos conscientes possuem desejos e anelos; e é um dos traços
característicos de sua teoria que o inconsciente é concebido também como ativo e impulsivo.
Neste sentido, Freud dá um caráter antropomórfico ao inconsciente. Refere-se a ele como se
fosse estritamente pessoal, como as pessoas que encontramos diariamente. Descreve o
inconsciente principalmente não em função
de traços nervosos ou engramas, não como conjuntos de hábitos, não como fragmentos
espalhados, destacados da personalidade - para mencionar somente algumas das concepções
menos antropomórficas que têm sido usadas pelos estudiosos do inconsciente - mas como um
agente ativo, impulsivo e cheio de desejos, muito parecido com as pessoas que o senso comum
reconhece e entende. O inconsciente, na forma em que Freud o imagina, é sempre dinâmico;
toda a estrutura psíquica, seja consciente ou não, é basicamente um misto de impulsos e
desejos.
A atenção de Freud foi primeiro orientada principalmente para a libido. Sempre considerou a
influência do impulso sexual como ponto essencialmente crucial em sua teoria. Considera
qualquer esforço para fugir do assunto como débil tentativa para tornar a verdade mais
suportável e como tímida concessão às maneiras convencionais de pensar e sentir. É esta,
essencialmente, a acusação que faz contra Jung e Adler, ambos seus antigos discípulos e
sócios, e ambos fundadores de escolas que divergiram da sua. Jung considera que a grande
força propulsora da humanidade é um ímpeto vital geral, que não deve ser confundido com o
impulso exclusivamente sexual, embora possua grande e importante componente sexual. O
papel que Freud atribui ao sexo, Adler concede ao desejo de dominação, à aspiração de "ser
um homem completo". Freud denuncia essas duas idéias como débeis e viciosas fugas do
assunto; não deixa a menor dúvida de que considera o impulso sexual como sendo de
esmagadora imnortância na conduta humana.
338
Edna Heidbreder
339
Freud usa a palavra "sexo" num sentido muito geral. Inclui nele não só os interesses e atividades
sexuais propriamente ditos, como também toda a vida amorosa - poderíamos quase dizer, tudo
o que abrange o prazer - dos seres humanos. A lista das atividades que ele e seus adeptos
consideram como possuindo um significado sexual é quase infinita; porém, o seu alcance e
variedade podem ser indicados pelo fato de incluírem práticas tão simples como andar, f umar e
tomar banho, e atividades tão complexas como a criação artística, as cerimônias religiosas, as
instituições políticas e sociais, e mesmo o desenvolvimento da própria civilização.
A luta entre a libido e o ego tem início na mais tenra infância. O primeiro prazer da criança
recém-nascida é o de mamar, e este prazer Freud considera como sexual. Desde o berço, a
criança ama a sua mãe; porém, a sociedade age de forma a que o interesse sexual não seja
expresso nem admitido como tal. É certo que o prazer que a criança sente por sua mãe não se
produz sem obstáculos. Por um lado, o pai tem direito à mãe e nesse ponto é o rival da criança,
O resultado é o complexo de Édipo: a criança ama sua mãe e odeia o pai. É verdade
que a criança pode também amar o pai, e nesse caso sua atitude é ambivalente - ama e odeia a
mesma pessoa. O mesmo complexo, desenvolvido de forma um tanto diferente, também se dá
com a menina: ela ama o pai e odeia a mãe ou desenvolve uma atitude ambivalente em
relação a ela. Toda esta situação, com seus amores e ciúmes violentos, com seus conflitos e
repressões inevitáveis, determina uma quantidade enorme de esforço e tensão psíquicos que
pode dar origem a desordens emocionais intermináveis.
3 Durante algum tempo, o amor da menina pelo pai foi chamado "complexo de Eletra", mas,
atualmente, por ser o princIpio subjacente o mesmo nos dois sexos, o termo "complexo de
adipo" é aplicado a ambos, O desenvolvimento do complexo de Êdipo na menina é mais
indireto e mais comflh1, ,fl ifl ciiip no ranaz.
O desenvolvimento normal mostra comumente estas etapas sucessivas, mas também pode
acontecer que esse desenvolvimento não ocorra. Todas as espécies de complicações provêm
do fato de que a criança é uma "perversa polimorfa"
- isto é, o seu impulso sexual não é rigorosamente delimitado; pode expressar-se numa grande
variedade de formas, e associar-se a uma grande variedade de objetos. Uma conseqüência
muito provável e comum desta situação é o homossexualismo; a libido encontra o seu objeto
numa pessoa do mesmo sexo que o ego. Uma forma branda de homossexualismo, de fato, pode
mesmo ser considerada uma fase do desenvolvimento normal, formando uma transição fácil ou
pelo menos 'cômoda das práticas auto-eróticas, que exigem apenãs o ego, para o verdadeiro
heterossexualismo, que requer uma pessoa do sexo oposto. Há outras formas,
também, nas quais o desenvolvimento normal da vida emocional pode sofrer interferência. A
"fixação" pode ocorrer em qualquer ponto. Um certo ajustamento pode ser tão satisfatório que
a próxima etapa não é sequer tentada; pelo menos pode ser preferido em lugar da aventura e
do risco existente ao enfrentar uma situação nova. Um menino pode ser tão dedicado à sua
mãe e estar tão satisfeito com essa relação, principalmente se o amor da mãe se concentra
nele, que deixa de se interessar por outras mulheres; ou, uma menina pode estar tão absorta
com suas companhias femininas, tão entretida com os altos e baixos emocionais proporcionados
pelas suas "paixonites" com colegas do mesmo sexo, que não faz sua transição para o amor dos
homens. Estas fases podem ou não incluir intimidade física, e podem ser passageiras ou
duradouras. Cada transição é feita com certa dificuldade; em conseqüência, uma pessoa tímida,
ou outra hipersensível ou com um trauma físico, pode achar inteiramente mais agradável
permanecer em um dado ponto, do que concentrar suas forças para um novo ajustamento.
Mesmo uma pessoa que haja conseguido com êxito uma transição, não está segura no nível
mais maduro. Existe sempre a possibilidade de "regressão" a uma etapa mais fácil e mais
primitiva. Uma criança que não se dá bem com os companheiros da sua idade pode
ensimesmar-se, ou procurar o abrigo confortante do círculo familiar. Um amante desgostoso
pode voltar nara a comoanhia de seu urónrio sexo ou para o ca
Psicologia.s do Século XX
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340
Edna Heidbreder
Ninguém, nem mesmo o mais feliz, pode escapar do conflito entre o desejo e a repressão. Cada
um que nasce na sociedade humana está fadado a ter algum de seus impulsos contrariado; e
como resultado, a conduta, mesmo das pessoas normais, dá mostra de atritos e tensões. A
psicologia da vida cotidiana mostra ser isto verdade, e Freud nunca acha difícil encontrar provas
para as suas teorias nos incidentes comuns que nós desprezamos como insignificantes ou
atribuímos ao acaso. As falhas da linguagem e as da escrita, nomes e encontros esquecidos,
presentes e objetos perdidos, todos indicam o papel desempenhado pelo desejo e pela
motivação. Tais acontecimentos, insiste Freud, nunca são acidentais. A mulher que perde o seu
anel de casamento desejaria nunca tê-lo possuído. O médico que esquece o nome de seu
concorrente, na realidade deseja ver aquele nome riscado da existência. O jornal que imprime
"Clown Prince" em lugar de "Crown Prince" e corrige o seu erro afirmando que naturalmente
quis dizer "Clown Prince", de fato quer dizer isso mesmo. * Mesmo o senso comum inculto tem
a suspeita astuta de que os esquecimentos são significativos; raramente uma pessoa declara,
sem embaraço, que deixou de comparecer a um encontro porque o esqueceu. Os fatos dessa
espécie são sempre determinados. São mesmo superdeterminados. Diversas linhas de
causalidade podem convergir sobre o mesmo incidente desagradável, e determinantes físicos
bem como psíquicos podem estar incluídos. Os erros no falar, por exemplo, podem ser devidos
em parte a dificuldades de coordenação muscular, à transferência de letras, à igualdade das
palavras, e coisas desse teor. Mas tais circunstâncias
não dão a explicação completa. Elas não explicam por que certa falha e não outra foi cometida
- por que foi pronunciada tal combinação de sons e não outra. Um jovem comerciante, por
exemplo, esforçando-se para ser educado a respeito de um concorrente, e pretendendo dizer
"Sim, ele é muito eficiente" ("efficient") realmente disse: "Sim, ele é muito intrometido"
("officious"). Naturalmente, ele estava incorrendo em uma fácil confusão de palavras; mas,
também estava exprimindo a sua verdadeira opinião. Dese4 A maioria dos exemplos dados
neste parágrafo são extraidos do livro The Psychopathology of Everyday Life.
N. da Editora. "Crown Prince' (prlnclpe da coroa) era o titulo do prlncipe herdeiro em certas
monarquias da Europa central. Clown Prince"
Além disso, as pessoas normais sonham, e os sonhos, é quase desnecessário repetir, dão
bastante prova das maquinações do inconsciente. Os devaneios bem como os sonhos noturnos
são comuns entre as pessoas normais e, como aqueles, são modos de satisfação dos desejos e
das maneiras primitivas de pensar. Os devaneios, de fato, dão a chave para uma das mais
interessantes teorias freudianas: a interpretação do papel do intelecto nos assuntos humanos.
Nas mãos de Freud, o intelecto recebe escasso respeito. A noção de "razão entronizada"
transforma-se em mito e o homem racional entra em colapso no meio dos desejos freudianos.
O pensamento e a razão podem ser tudo menos forças dominantes na natureza humana;
existem somente para servir aos grandes impulsos e desejos primaciais, que são os verdadeiros
donos da conduta humana. O intelecto é o seu servo, e muitas vezes servo corrupto, não se
pejando em torcer, esconder e manipular a verdade no interesse de seus poderosos donos. A
razão é sempre motivada por necessidades afetivas; ela existe para executar as suas ordens;
direta ou indiretamente, trabalha para conseguir as satisfações dessas necessidades. É verdade
que o intelecto, a fim de servir efetivamente, deve aprender a tratar com o mundo como ele é,
competir com os fatos reais e, portanto, assumir as maneiras críticas, lógicas e realistas que
reconhecemos como pensamento verdadeiro. Mas, essas são formas secundárias de reação
inculcadas sobre o pensamento primitivo e alógico pelo fato de que os anseios instintivos, para
conseguir sua verdadeira satisfação, devem atuar no mundo real. Mesmo o pensamento mais
lógico e realista é determinado pelo desejo pessoal e primitivo.
Além disso, o intelecto nem sempre faz caso das lições que aprendeu. Às vezes, esquivando-se
das dificuldades do ajustamento às situações reais, ele provê alegrias e triunfos imaginários que
não podem, na ocasião, ser obtidos na realidade. Bleuler deu o nome de "pensamento
autístico" a esta espécie de intelecção, da qual o devaneio é o melhor exemplo possível. Em
contraste com o pensamento realista, o autístico acredita no que quer acreditar, detendo-se
nas satisfações imediatas e imaginadas que podem ser obtidas sem o custo e o risco do
compromisso real com o mundo verdadeiro. O pensamento autístico, claramente motivado
pelo princípio do
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Edna Heidbreder
P84cologias do Século XX
prazer, revela que o intelecto está inconfundivelmente sujeito ao instinto e ao desejo. Outra
prática que denota o papel secundário do intelecto é a que Ernest Jones chama de
racionalização. Ela consiste em achar bons motivos para um ato, quando a pessoa não está
querendo revelar ou admitir o motivo real - ou quando, o que é perfeitamente possível, ela
própria desconhece qual seja o motivo verdadeiro. A ocorrência da racionalização significa qüe
nós fazemos as coisas primeiro porque desejamos fazer, e depois encontramos motivos para
as mesmas. O homem que de fato quer jogar golfe pode achar muitos bons motivos para assim
proceder, nas horas de trabalho e fora delas. O golfe é um bom exercício; desanuvia a mente
para o trabalho; muitas vezes fecha um negócio no campo de golfe; tanto trabalho sem
distração faz dele uma pessoa zangada. Os seres humanos gostam de pensar que são dirigidos
pela razão, e a racionalização é um artifício que alimenta esta ilusão.
Porém, tudo isso, pode-se argumentar, é bastante comum. 'Falhas de linguagem e lapsos de
memória, sonhos e erros, irregularidades do pensamento, tais como o devaneio e a
racionalização, não são afinal as maiores atividades da vida. Podem os princípios da psicanálise
explicar os problemas mais graves da conduta humana?
Os freudianos com certeza não se esquivam dessa tarefa. As neuroses não podem ser
consideradas coisas sem importância, e a teoria psicanalítica tem como sua própria origem a
tentativa de compreender e curar as neuroses. De acordo com os freudianos, exatamente as
mesmas forças estão em ação no comportamento normal e no anormal, porém, neste último,
estão exaltadas e seus efeitos são mais perceptiveis. Os sintomas neuróticos são expressões
indiretas de desejos reprimidos. A cegueira histérica pode ser uma fuga a um dever intolerável;
um soldado que não pode suportar a luta nem a fuga pode resolver seu problema ficando cego
- uma solução medíocre, de fato, mas que pelo menos resolve o conflito entre a consciência e
o desejo, sem ferir o amor-
-próprio. A paralisia histérica pode ser uma defesa contra uma estarrecedora tentação; os
membros, não podendo se mover, podem conservar o seu dono fora de perigo. Um
maneirismo ou excentricidade de conduta aparentemente sem significado pode ser a
satisfação substitutiva de um desejo não satisfeito; em certo caso, o hábito motor
estereotipado de uma moça neurótica representava a profissão do amante
que ela havia perdido. Isto não quer dizer que o caminho do desejo até o sintoma seja simples
e direto. Quase sempre o paciente não sabe o que está fazendo. Os mecanismos estão no
inconsciente; e este, atuando por vias indiretas características, torna incrivelmente difícil
descrever a verdadeira situação. Sempre, porém, na base da perturbação está o desejo - ao
qual foi negada a expressão direta e que aparece torturado na forma de alguma deformação
da conduta.
O próprio Freud, como médico, tratou das neuroses e psiconeuroses. Mas seus adeptos
ampliaram as suas interpretações, muitas vezes com acréscimos próprios, àqueles afastamentos
mais pronunciados do comportamento normal, que são classificados como psicoses. O primeiro
a fazer esta ampliação foi o psiquiatra suíço Bleuler, que explicou a esquizofrenia, a mais
desconcertante das psicoses, como uma cisão ou "fragmentação" da personalidade, resultante
de um conflito tão intenso que reduz a personalidade a frangalhos. A orientação de Bleuler foi
seguida com entusiasmo por outros elementos de sua profissão; e atualmente não há setor da
psicologia anormal no qual as interpretações psicanalíticas não hajam penetrado. Nenhum
sintoma é tão sem importância, nenhuma desordem é tão grande, para o desvelo, a diligência e
a completa e incrível habilidade daqueles que tentam adaptar a psicanálise para todos os casos.
o impulso pela realização, pelo sucesso, por considerações de toda a espécie, é basicamente o
desejo de possuir um companheiro do sexo oposto, e que por baixo de toda a luta pelo poder,
pela riqueza e pela fama, está o desejo de chamar a atenção de um companheiro adequado.
Através do trabalho do artista, do cientista, do estadista, do capitão de indústria, flui o motivo
do exibicionismo, - um exibicionismo certa-
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Psicologias do Século XX
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mente sublimado e reorientado, mas que é, basicamente, um desejo primitivo de ser notado.
Explicações mais específicas foram apresentadas em abundância. O cientista, foi sugeri-. do, é
um voyeur. Sua busca da verdade, embora possa parecer desinteressada e impessoal, tem sua
origem na curiosidade sexual contrariada na infância, que persiste e se une a objetos sem
ligação aparente com as circunstâncias que primeiramente a despertaram. Grande parte da
atenção foi dada às artes, porém a mais franca e famosa tentativa de explicar a produção de
um artista em função de conceitos psicanalíticos é o livro Leonardo da Vinci de Freud. Para o
autor, não poderia haver exemplo mais perfeito de complexo de Édipo do que aquele sofrido
por Leonardo, filho ilegítimo, dedicado à sua infeliz mãe, mesmo na idade adulta obsedado
pela sua fisionomia, e reproduzindo-a sempre em suas pinturas. Um modo um tanto diverso
de aplicar os princípios freudianos vê-se nos comentários de Freud a respeito do romance
Gra4iva de Jensen. Neste caso, um simples trabalho literário é usado para revelar não o motivo
da obra do autor, mas sim a interpretação psicanalítica da situação por ele descrita. O caráter
e a conduta do jovem arqueólogo, que é o herói do romance, mesmo o seu interesse pela
arqueologia, são apresentados como expressão de seus desejos inconscientes.
E as mesmas forças subterrâneas que agem nos indivíduos, também atuam na sociedade como
um todo. De mil maneiras, a energia sexual é sublimada - dirigida para canais aprovados pela
sociedade. O mito, as cerimônias religiosas, os tabus tribais, as instituições sociais - todos eles,
através do simbolismo ou algum outro disfarce, revelam a satisfação de desejos proibidos. As
práticas de que se servem, embora muito convencionais devido ao uso e a repetição, têm suas
raízes no inconsciente e estão carregadas de emoção. Toda a contextura da civilização está
marcada pelo padrão freudiano - com conflito, repressão, interposição de resistência e
caminhos indiretos para a satisfação.
Até então, supunha-se que havia uma oposição bastante simples entre o consciente e o
inconsciente, entre as tendências do ego e as do sexo. Porém, mais tarde, Freud apresentou
teorias que dizem ser essa oposição muito menos simples e definida do que parecia. Dirigindo
a atenção para as tendências do ego, impressionou-se pelo grande conteúdo libidinoso que
encontrou; pelo amor de si mesmo expressando-se de forma mais complexa e sutil do que a
encontrada no simples
auto-erotismo. O resultado disso foi uma nova teoria de organização da psique, girando em
volta de três conceitos, o id, o ego e o superego. A relação entre esta nova teoria e a antiga
não ficou bem esclarecida. Freud parece considerar ambas como aspectos da mesma
realidade, como panoramas da psique vistos de ângulos ligeiramente diferentes de visão.
Reconhece abertamente que as relações entre elas são obscuras, mas acredita que a falta de
clareza é devida ao conhecimento incompleto; além disso, ele acredita firmemente que um
desejo de coerência não deve impedir o registro dos "insights" a que um sistema existente -
principalmente um que se reconhece incompleto - não se adapta prontamente.
-Dos três conceitos, o id (o id latino) é talvez o menos rebelde. Corresponde mais de perto à
antiga noção de inconsciente. Alguns analistas, de fato, acreditam que ele suplantou o conceito
de inconsciente, embora outros o considerem como uma interpretação complementar. O id é
a parte mais primitiva e profunda da personalidade. Ê profundo, obscuro, inconsciente e
poderoso. Contém como seus maiores componentes os impulsos sexuais instintivos, mas inclui
também tendências de hábitos que o indivíduo suprimiu, e uma espécie de sabedoria cega
herdada da raça. O id, embora poderoso, é completamente desprovido de percepção; é
amoral, inculto, despótico e audacioso. Buscando somente os prazeres do momento, exige sua
satisfação insistente mas cegamente.
346
Edna Hejdbreder
de descrever o superego seja dizer que ele é a concepção da consciência, segundo Freud, e,
então, acrescentar imediatamente que se trata de uma consciência que é infantil, inculta, em
grande parte inconsciente e poderosa ao extremo, O superego é formado quando a criança,
em seus primeiros contatos com o mundo ao seu redor, incorpora em si mesma o pai ideal -
que representa de certo modo ambos os pais
- e adota como parte de si mesma as proibições inculcadas pelos pais na meninice e na tenra
infância, O superego tem sido chamado de "herdeiro do complexo de Édipo". Provém da
tentativa infantil de autodisciplina, de resistência contra os atos proibidos, pelo
estabelecimento dentro do eu dos padrões do mundo dos pais. O superego, portanto, inclui as
emoções que caracterizam o completo de Édipo e está organizado na base dos "Faça isto" e
"Não faça isto" que provêm das circunstâncias morais impensadas, incompreendidas e
confusamente emocionais da infância. Por sua intensidade emocional e pela 4nsistência cega
de suas exigências, assemelha-se mais ao id do que ao ego; comunica-se com o id mais
livremente do que o ego. E, contudo, desde cedo, o superego adquire um enorme poder sobre
o ego; é capaz de severidade a ponto de crueldade ao infligir punição pela violação de seu
código. Um curioso arranjo existe às vezes, no qual o superego permite ao ego afastamentos do
código à custa de agonias de remorso e sofrimento futuro, O superego, em suma, é a
moralidade inconsciente do indivíduo, a qual, muitas vezes em desacordo com suas crenças e
princípios conscientes, inflige sofrimento e exige expiação por atos dos quais a pessoa não sabe
conscientemente que o mesmo desaprova. Esta situação aumenta muito a probabilidade da
formação de conflitos; Freud acredita que uma quantidade incalculável de energia psíquica é
gasta pelas confusões nas quais o superego se envolve.
Devemos lembrar, também, que Freud não foi o único a revisar e desenvolver o seu sistema.
As modificações de seus ensinanentos surgiram em toda parte, muitas vezes asperamente
opostas entre si. Algumas das sugestões de seus adeptos foram aceitas por Freud, porém
outras - notadamente as de Jung e Adier - foram condenadas e rejeitadas por ele. É
surpreendente que, na exuberância da doutrina que se desenvolveu, os princípios de Freud se
destaquem tão claramente como o fazem. Pois, apesar das modificações que ele está
continuamente introduzindo, e a despeito das alterações e ampliações - tão freqüentes como
Psicologias do Século XX
347
não oficiais - que outros realizaram em seu nome, os contornos principais de sua concepção
são claramente percebidos. Existe sempre o padrão básico de um eu em luta com os desejos
inconscientes, embora as relações entre eles sejam intricadas e nem sempre claras. As
correntes de impulso e repressão percorrem toda a estrutura psíquica - linhas de resistência,
de burla da resistência e de satisfação indireta do desejo.
Esta situação, de fato, é um caso particular de dificuldade lógica que surge em qualquer
tentativa para avaliar a teoria do ponto de vista da ciência: é impossível tanto provar como
desaprovar as teorias psicanalíticas, baseando-se em evidência científica. É, realmente,
impossível provar que estão certas porque é impossível provar que estão erradas. A ciência, no
final, apela para a evidência experimental, e um experimento decisivo é o que dá uma clara
resposta af irmativa ou negativa a alguma pergunta, O experimento, portanto, deve ser feito de
tal forma que torne possível uma resposta de "Sim" ou "Não"; ou de "Sim - em uma certa
porcentagem de casos". É por este motivo que a ciência insiste em computar os casos negativos.
Porém, a teoria psicanalítica, na forma em que é agora exposta, torna impossível um caso
negativo. Por exemplo, se a análise revela um complexo sexual, a teoria fica confirmada. Em
caso contrário, deixa de o revelar porque a análise encontrou uma resistên6
Para ser mais especifico, se o critico rejeita a teoria, pode estar agindo
em defesa própria. Se ele simpatiza com a teoria em seu todo, reservando suas objeções para
um ou outro ponto, pode estar apenas usando uma defesa mais sutil, tentando proteger seus
pontos mais sensiveis fazendo concessões sobre pontos que não lhe dizem muito respeito.
Mesmo que apresente boas razões para a sua posição, nunca pode ter certeza de não estar
racionalizando. E o critico pode não ter certeza de não estar adotando tais artificlos, porque os
seus motivos podem estar profundamente situados em seu inconsciente,
348
Edna Heidbreder
cia obstinada, daí a existência de um complexo sexual bastante grave; e outra vez a teoria é
confirmada. Este exemplo é menos sutil que muitos outros que poderiam ser escolhidos,
porém, indica a natureza essencial da dificuldade.
Do ponto de vista da ciência, esta questão da evidência representa o mais sério obstáculo na
maneira de julgar a teoria. Foram feitas tentativas, para ser exato, em alguns casos por
psicanalistas, mas em sua maior parte pelos psicólogos acadêmicos, para submeter alguns dos
conceitos deste sistema aos processos experimentais e estatísticos da ciência. O experimento
sobre associação livre é um dos dispositivos que foram usados para este fim. Este experimento,
um dos clássicos do laboratório de Wundt, foi levado a efeito por Jung no campo da psicanálise;
e embora a associação livre na psicanálise e a de laboratório sejam
reconhecidamente um tanto diferentes, o método foi aproveitado por muitos psicólogos como
possível meio de colocar em forma experimental alguns dos problemas da psicanálise. A
psicologia animal sugere outras linhas de ataque. Por exemplo, foi feita uma tentativa para
determinar o poder relativo da fome e do sexo como impulsos, criando-se situações que
mostrarão para qual de duas alternativas, o alimento ou uma fêmea, o animal suportará
choques elétricos dolorosos. Com os seres humanos, questionários e tabelas foram usados para
descobrir até que ponto acham-se presentes condições específicas - por exemplo, a preferência
do rapaz pela mãe em lugar do pai - mas tais dados, mesmo quando positivos, são indiretos e,
na melhor das hipóteses, são apenas corroborativos. Além disso, há uma impressão, bastante
comum entre os psicanalistas, de que tais estudos são inúteis e mesmo condenáveis. Para
muitos deles parece claramente impossível incluir os verdadeiros fatores vitais numa
experiência de laboratório ou num questionário; não lhes parece apenas fora de propósito mas
francamente errôneo examinar médias estatísticas e curvas de distribuição e tirar conclusões
sobre tabelas de dados estudados quantitativamente. Tais práticas, eles insistem, empanam a
personalidade; e esta, cujas mínimas idiossincrasias podem ser importantes, deve ser sempre
mantida como centro da atenção.
Tudo isso significa que os psicanalistas oferecem um tipo de evidência diferente daquele aceito
pela ciência. Isto não quer dizer que não ofereçam evidência. A deles, entretanto, é a do tipo
acumulado na experiência conforme surge, e não em situações especialmente preparadas para
pôr à pro Psicologia
do Século XX
349
Além dessas críticas de natureza geral, têm sido feitas objeções a determinados pontos da
teoria psicanalítica. A mais comum é a de que Freud exagerou demais o papel desemoenhado
nelo sexo. Ouvimos, às vezes, a obiecão infun
350
Edna Heidbrcder
Psicologia8 do Século XX
351
dada de que Freud reduz tudo a sexo - sem fundamento, porque isto não coincide com os fatos.
Freud nunca pretendeu que o motivo sexual fosse o único impulso que leva à atividade.
Admitiu sempre as tendências autoconservadoras, e desde o início atribuiu ao ego forças que
são capazes de reprimir os desejos sexuais. Mas, o impulso sexual, saliente, está sujeito a uma
forte e contínua repressão, e devido a isso leva a distúrbios acentuados da conduta. Tudo isso,
entretanto, não altera o fato de que Freud atribui ao sexo o papel preponderante na conduta
humana, e que a doutrina da tremenda e universal potência do sexo é uma das suas mais
notáveis hipóteses de trabalho.
A resposta de Freud à objeção de ter supervalorizado o sexo é por demais evidente para exigir
explicação. Foi principalmente porque Jung e Adier tentaram alterar o seu ensinamento neste
particular que ele se afastou tão amarguradamente de ambos. Todavia, Jung e Adier, ambos
colocando o impulso geral no lugar do interesse sexual, estão muito mais próximos de Freud do
que a maioria de seus críticos. Para muitos psicólogos, parece um erro supor que a vasta e
variada gama da atividade humana seja tão largamente dependente, como acredita Freud, de
qualquer motivo geral simples, seja de autoconservação, autoconfiança. impulso sexual ou
força vital em geral. Consideram tal modo de proceder como uma tentação para entregar-se a
longas e vagas especulações; um convite para que qualquer tipo específico de conduta seja
relacionado à única fonte que se aceita. Observam que a psicologia, como qualquer outra
ciência, tem progredido em proporção direta à sua descoberta das condições específicas que
determinam certos fatos. Preferem, portanto, começar de forma mais singela, tomando as
diferenças visíveis pelo seu valor aparente, e tentando descobrir as condições especiais que
provocam a conduta que o senso comum atribui a uma variedade de motivos mais específicos
- medo, raiva, curiosidade, vingança, desejo de dominar e uma infinidade de outros. Acreditam
piamente que uma explicação verdadeira inclui uma descrição das condições particulares que
levaram a determinada ação; e que a disponibilidade sempre presente de uma explicação geral
- a possibilidade permanente de dizer a respeito de qualquer ação "é devida ao motivo sexual"
- pode facilmente desencorajar a pesquisa dos pormenores circunstanciados.
Será imediatamente objetado - e com razão - que os freudianos não se detêm, na prática, com
as exposições ge neralizadas
Não obstante, pode-se perguntar se os dados de Freud sobre a sexualidade infantil, mesmo
como ele próprio os apresenta, sustentam necessariamente suas conclusões. A teoria,
devemos lembrar, derivou do fato de que em suas primeiras análises sempre achou que uma
análise aparentemente acabada não estava realmente completa; que tinha de remontar cada
vez mais à história do paciente até alcançar a época de sua meninice ou tenra infância, onde
geralmente acabava por descobrir uma suposta sedução. Mas, esta série de fatos indica
necessariamente uma sexualidade infantil? Não poderia uma série de malogros em atingir a
raiz da perturbação significar isto mesmo - uma série de malogros - e nada mais? Não seria
necessário mudar o significado do termo "sexual" à medida que a análise retrocedesse cada
vez mais em direção à infância? E desde que as seduções na infância provaram ser fantasias,
não seria possível que algo no processo de análise tivesse sugerido a sua produção ou
ampliado o seu significado para os pacientes? Pelo menos são possíveis interpretações
diferentes dos dados citados por Freud. Isto não significa, naturalmente, que Freud não
estivesse sinceramente convencido, nem que sua convicção não estivesse baseada em
evidências. Mas é bem possível que sua convicção fosse o resultado de um conjunto de
impressões tão sutis que não pudessem ser observadas e formuladas em separado. É possível
que as bases reais de suas convicções fugissem à sua própria observação e descrição, e que
suas conclusões fossem o resultado de uma soma inconsciente de
352
Edna Heidbreder
Intimamente relacionada com este problema da relação entre a evidência e a convicção está a
crítica de que a associação livre empregada pela psicanálise não é de fato "livre". Observou-se
que, por mais cuidadosamente que o analista se subtraia, por mais que se esforce em evitar as
sugestões que possam influenciar o andamento das reflexões do paciente, a este deve de
alguma forma ser dado a entender que, ao deixar que seus pensamentos o conduzam para onde
quiserem, não deve tentar reter nada que pareça sem importância ou embaraçoso, ou que não
seja comumente mencionado nas conversas educadas. Mas este entendimento, como se sabe,
representa já uma influência no sentido de provocar uma tendência definida de pensamento.
Além disso, de vez em quando durante a análise, o médico intervém, às vezes para sugerir
interpretações, outras vezes para auxiliar o paciente a vencer uma resistência e outras para aj
udar no problema de transferência. Esta situação torna possível para o pesquisador exercer uma
influência contra a qual é particularmente difícil organizar defesa. Os próprios analistas estão
cientes dessas dificuldades e conceberam vários métodos pelos quais tentam superá-las. E com
certeza devemos dizer, a favor de Freud, que seu desejo de alterar as suas opiniões que foram
publicadas, indica que, pelo menos quanto a ele, as convicções teóricas não foram
impenetráveis às impressões causadas por fatos surgidos nos contatos
reais com os pacientes.
O sistema foi também criticado por possuir inconsistências internas e pontos obscuros. O
complexo de Édipo principalmente tem sofrido muitos ataques. De que maneira a criança
recém-nascida aprende a reprimir seus desejos libidinosos? De onde provém a sua força de
repressão? Como é que a atitude do meio ambiente social é exatamente transmitida à criança?
Das tendências do ego? Então elas são mais fortes do que a libido? Qual é a relação exata
entre os desejos sexuais e o ego? As mais recentes teorias de Freud sobre as tendências do
ego, indicando como o fazem
ISI(OlH)I(l' (l Século XX
uma ação recíproca e complexa entre a libido e o ego, e com um amor a si próprio no qual se
envolve a libido, tornam a distinção entre as duas menos clara do que antes. Tais reflexões,
entretanto, não perturbam seriamente os psicanalistas. Consideram como virtude de seus
líderes que não mostrem pressa em concretizar as crenças em sistemas completos e finais; que
conservem, ao contrário, uma suscetibilidade aos fatos como os vêem, mesmo se forem
aparentemente inconsistentes; e que mantenham uma disposição a admitir as tendências que
reconhecem estarem em atividade, mesmo que não possam ser representadas graficamente
as inter-relações das mesmas. Acreditam que muitas destas dificuldades são temporárias, que
algumas são artificiais e que, além disso, são, sem motivo, consideradas importantes por
aqueles cujos hábitos acadêmicos de pensamento deixam os seus possuidores desassossegados
até conseguirem estabelecer uma estrutura nitidamente articulada para as suas concepções de
trabalho. Acreditam, também, que para aqueles que tiveram uma experiência de primeira mão
com a psicanálise - novamente o apelo é para a observação direta e intuitiva - as imperfeições,
inconsistências e falhas do sistema parecem insignificantes ao
lado da relevância imediatamente visível da teoria como um todo, em relação aos fatos que se
apresentam na vida humana.
Assim, a diferença entre os psicólogos acadêmicos e os psicanalistas é, amiúde, nada mais que
diferenças nos hábitos de pensamento provocados pelos seus respectivos problemas.
Certamente, grande parte da circunspecção dos psicólogos acadêmicos tem sua origem numa
aversão pelo que consideram uma falta de clareza da linguagem - da simples e natural
expressão literal - nas declarações freudianas. A nuvem da mitologia e da personificação que
paira sobre os conceitos desta escola foi particularmente desagradável. As figuras de retórica,
como "censor" ou "complexo de Édipo", ou mesmo aquelas subentendidas em "conflito",
"recalque", "elaboração onírica" e outras que tais parecem estranhas e sem cabimento em
explicações científicas. Toda ciência, naturalmente, lança mão de termos que não são tomados
totalmente em sentido literal. O físico não quer dizer que um átomo seja uma bolinha de
matéria dura; e Freud não entende por censor um manequim real sentado no alçapão que se
comunica com a prisão do inconsciente. Pode mesmo haver certa vantagem para o psicanalista,
do ponto de vista da prática real, em personificar as forças psicológicas com as
35),
Edna Heidbrcdt
Psicolog:a3 do Século XX
355
quais trabalha. Afinal de contas, ele trata diretamente com pessoas, e sua atitude em relação a
seus pacientes pode ser afetada sutilmente pelo fato de pensar sobre suas dificuldades em
função não de esforços e anseios impessoais, mas de lutas e fracassos de criaturas humanas.
Porém, para a ciência todo o ambiente criado por esta prática parece de tumulto e confusão.
Pois a ciência deposita pouca fé em figuras de retórica; ela teme que as coisas essenciais
possam ser confundidas com traços que incidem apenas sobre um determinado tipo de
expressão, e que os problemas importantes possam ser obscurecidos. Por exemplo, enquanto
se considera a libido como um vasto reservatório de energia que pode fluir indiferentemente
através de vários canais, a possibilidade de sua variada expressão apresenta poucos problemas.
Somente quando se experimenta pensar em função das estruturas reais do corpo e das fontes
de energia é que se tornam evidentes as dificuldades próprias do conceito.
E, todavia, apesar das objeções que foram acumuladas sobre a teoria psicanalítica, as psicologias
convencionais não foram capazes de ignorá-la. De certa forma, algumas chegaram mesmo a
aceitá-la. O behaviorismo foi bastante favorável a alguns dos conceitos freudianos, quando os
traduziu em função de mecanismos corporais e os submeteu em alguns casos a operações
corretivas. Os conceitos da psicanálise tiveram também tremenda influência sobre a psicologia
social e a anormal. Tiveram guarida mesmo em muitos livros didáticos para principiantes,
embora muitas vezes tenham perdido muito de seu caráter original no decorrer deste processo.
E tudo isso aconteceu, é importante observar, na falta de uma prova que seja estritamente
científica. Onde quer que as teorias freudianas tenham sido aceitas fora do âmbito psicanalítico,
foram recebidas não porque trouxessem consigo credenciais de evidência
exata e verificável, mas porque desperta_ram a convicção na forma em que se verifica na vida
diária - pela impressão de que representam uma observação aguda e uma especulação
perspicaz as quais, na maior parte, concordam com os fatos.
boradas as hipóteses que podem ser mais tarde levadas ao crivo dos testes. Elas constituem
uma psicologia no nível de sugestões e conjeturas que serão mais tarde confirmadas ou
rejeitadas, uma psicologia que atualmente se dedica bastante à observação de seu próprio
material, mas que está até agora sem meios adequados para proteger suas observações. É
animador comparar a psicologia psicanalítica com o estruturalismo, que a esse respeito é a sua
antítese. O estruturalismo, provido de um método científico altamente desenvolvido, e
recusando-se a tratar com materiais irredutíveis àquele método, ilustra de modo admirável a
exigência de exatidão e precisão pelas quais a ciência disciplina a curiosidade não orientada. A
psicanálise, com sua curiosidade quase inesgotável, não possui atualmente os meios, e ao que
parece às vezes o desejo de verificar as suas profusas especulações por meio de testes
rigorosamente críticos. Mas o que lhe falta em precisão, sobra em energia, na
compreensibilidade de suas idéias, e na intimidade de seus problemas com as preocupações
da vida diária. Pois, nunca é demais repetir, a psicologia psicanalítica não prescinde da
observação; ela utiliza a que é mais intuitiva do que crítica.
É, portanto, através de sua energia, do seu contato direto com o seu material, de seu objetivo e
da sua perspicácia de senso comum que a psicologia psicanalítica influiu sobre a psicologia em
geral. É como se a psicologia acadêmica, em face de uma teoria que não pode aprovar nem
desaprovar, mas que não pode ignorar, contrapusesse uma intuição com outra e se arriscasse
a emitir um juízo. O seu veredicto coletivo foi algo parecido com "dois quintos de gênio e três
quintos de pura lorota", com as frações determinadas sem precisão. A psicologia acadêmica,
embora tenha mostrado um forte desejo de brandir a navalha de Occam (isto é, mostrar que
não existe distinção real entre a essência e a existência) e afastar o cabedal de construção
imaginativa que acompanha esta teoria, ficou não obstante impressionada com algumas de
suas interpretações. Muitos psicólogos acham os conceitos de conflito e recalque hipóteses
fecundas, e muitos acham que os mecanismos, como a racionalização, o pensamento autístico
e as várias formas indiretas de satisfação dos desejos, têm abundantes exemplos na vida diária.
Muitos deles reconhecem o valor da influência de Freud ao chamar a atenção para os
problemas da personalidade como um todo, e lhe concedem um lugar de destaque no
movimento geral que, solapando diretamente a noção de homem ra
356
Edna Heidbreder
Psicologuis do Século XX
357
cional, realça a tremenda importância dos aspectos conativo e afetivo da natureza humana. A
maioria deles também lhe dá valor por ressaltar os problemas psicológicos do sexo bastante
esquecidos. As doutrinas de Freud relativas à import.ân.cia da meninice e da primeira infância
foram aceitas - muitas vezes após a exclusão de muitos de seus ensinamentos a respeito da
sexualidade da criança - em parte porque, no cômputo geral, estão de acordo com muitas das
descobertas dos próprios psicólogos convencionais. É também geralmente reconhecido que
Freud, apesar de sua inclinação para o vago e o místico, promoveu em geral uma visão mais
naturalística do homem. Finalmente, a concepção básica de Freud da importância do
inconsciente, sua convicção de que as coisas que os seres humanos fazem consciente- mente
pouco esclarecem sobre as camadas mais profundas de sua natureza, é reconhecida como
tendo levantado problemas básicos a respeito da metodologia e da estrutura fundamental de
toda a ciência da psicologia.
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CONSiDERAÇÕES FINAIS
E possível que, com seu cortejo de sistemas, a psicologia de hoje esteja fazendo um papel não
muito brilhante. Um sistema após outro proclama seus princípios, cada um impõe a sua norma
aos fatos que atraem a sua atenção e cada um apresenta o seu caso com certo grau de
probabilidade. A questão é que todos procedem assim e estão quase sempre com pendêi:cias
entre si. É significativo, também, que quanto mais exatamente um sistema estabelece as regras
de seu estilo, niais rigorosamente seleciona os fatos; e que os sistemas mais inteligíveis e mais
coerentes são aqueles mais sujeitos às negações e às rejeições. Além disso, nenhum sistema,
nem mesmo os mais ativos, pode ou quer pretender que já esteja inteiramente apóiado em
fatos. E quando nos lembramos que os sistemas que acabamos de examinar são somente
alguns entre muitos da moderna psicologia, a confusão cresce e se multiplica. Todavia, esta é a
situação após mais de meio século de esforços: sistemas em profusão, porém, nenhuma
interpretação dos fatos da psicologia com os quais concordem a maioria, senão todos os
psicólogos.
Para muitos, esta falta de harmonia significa que todo o empreendimento da psicologia é um
dos esforços desperdiçados e desesperançados da raça humana. Em alguns, ela fortalece a
convicção de que a tentativa para tornar a psicologia uma ciência é totalmente fútil; não
apenas têm falhado os esforços, mas sempre hão de falhar, e a tarefa é por sua própria
natureza impossível, seja porque o intelecto humano é incapaz de tal feito ou, o que dá na
mesma, porque o tema é tão complexo e tão enganador que desafia o estudo científico.
Muitos que examinam este setor, seja de dentro ou de fora, aí encontram pouca coisa que se
possa chamar dc ciência, O que eles vêem é apenas parte dos fatos ou, na melhor
36),
Edna Ileidbreder
das hipóteses, séries espalhadas de evidência substancial, mas em nenhum lugar a estrutura
de conhecimento unificada e coerente que se supõe possa ser realizada pela ciência.
É bem fácil cair nessas conjeturas e nada podemos lucrar recusando-nos a reconhecer com toda
humildade que a psicologia, apesar de todo o seu esforço e ambição, pode fracassar. Mas
também seria insensato não querer aceitar que a possibilidade contrária também existe. Afinal,
o panorama da psicologia, da forma em que é visto através de seus sistemas divergentes, é
somente um aspecto do todo e, como tal, é incompleto e, até esse ponto, injusto. Pois existe
algo mais em psicologia do que apenas sistemas e fatos esparsos. Examinando o seu conteúdo
de fatos, mesmo como é visto pela crítica dos sistemas rivais, encontramos linhas convergentes
de evidência que apontam para as mesmas conclusões. Os mais impressionantes são aqueles
assinalados pelos investigadores que, partindo de bases teóricas muito diversas, se encontram
no mesmo terreno para a descoberta de fatos comuns - ou melhor, de fatos que requerem uma
interpretação comum. Não há nada mais promissor em psicologia do que as tendências para
acordo sobre peças isoladas de pesquisa que os diversos sistemas inspiraram, e que podem ser
o começo de um sólido trabalho de fundações, sobre as quais possa ser estabelecida uma
ciência psicológica baseada em fatos. Os sistemas poderão assim servir de base para operações
que revelem fatos que sejam independentes desses sistemas.
Talvez o caso mais impressionante de acordo seja aquele entre os psicólogos behavioristas e os
da psicologia da Gestalt, quanto à impropriedade da maneira convencional de definir a
atividade nervosa. Lashley, tratando diretamente com o sistema nervoso e com o
comportamento manifesto, lançou as mais sérias dúvidas sobre a concepção de reflexo e
reflexo condicionado da máquina orgânica e sobre toda a idéia de comportamento como sendo
formado de unidades de reações menores e relativamente estáveis. Os gestaltistas, começando
com problemas sobre percepção como é imediatamente percebida pelo paciente,
convenceram-se de que a mesma não podia ser explicada pela atividade de um sistema
nervoso formado de condutores isolados. Mesmo em seu aspecto positivo, estas teorias são
notavelmente idênticas. Tanto na teoria da ação em massa de Lashley como na concepção de
KÓhler da interação dinâmica, o sistema nervoso considerado como uma estrutura na qual a
ação do todo é
Psicologia8 do Século XX
365
de importância inescapáve] e na qual estão em ação linhas de influência mais sutis do que as
incluídas no funcionamen.. to de uma parte separada sobre outra parte separada.
Outros pontos de acordo surgiram diversas vezes. Külpe e seus discípulos ampliando os
métodos do laboratório wundtiano, Binet ocupado com os testes de inteligência, Woodworth
buscando a origem dos movimentos voluntários, todos chegaram de modo independente à
conclusão de que
Este aspecto dos estudos dos processos mais elevados do pensamento sugere ainda um outro
traço de união que liga as várias escolas, um crescente reconhecimento da importância do
aspecto motor da atividade humana. O fato aparentemente claro de que os processos
psicológicos se verificam em indivíduos que agem e se movem, somente aos poucos adquiriu
destaque em psicologia. Antigamente e no período moderno mais recente, embora o
movimento e a ação já fossem examinados às vezes, o destaque era dado resolutamente a
favor da cognição. Porém, assim que se desenvolveu a observação sistemática de laboratório,
assim que os psicólogos se entregaram deliberadamente ao exame dos processos que se
desenvolviam à sua frente, em vez de refletir sobre experiências relembradas do passado, as
provas da reação motora começaram a se impor de modo notável. De forma bastante
significajv, a possível importância do aspecto motor da atividade humana foi revelada muito
cedo pela introspecção. O caso mais notável foi a descoberta do
366
Edna Heidbreder
"conjunto motor" por Müller e Schumann - a descoberta de que quando o indivíduo compara os
pesos que levantou, o seu cálculo é resultante das sensações musculares imediatamente
sentidas, e não de processos intelectuais mais elevados nos quais as sensações presentes são
comparadas com imagens representando o passado. Mais tarde, os estudos introspectivos dos
processos mais elevados do pensamento novamente ressaltaram o possível significado da
atividade muscular. O aspecto motor da atividade tornou-se ainda mais pronunciado nos
estudos sobre a maneira como o indivíduo aprende, onde a aquisição das habilidades motoras
era muitas vezes usada como material para estudo e onde os dados introspectivos, quando
usados, completavam os registros do andamento da própria ação motora. O clímax de atenção
a este movimento do organismo foi alcançado pelo behaviorismo, que sustenta que a conduta
ou movimento, implícito ou explícito, é o objeto próprio da psicologia. Uma conseqüência
importante de toda esta tendência de levar em conta o movimento e a ação foi a de que a
psicologia adquiriu o hábito de observar o seu material tanto de fora para dentro como de
dentro para fora, e de encarar o homem como um animal reagindo ao seu meio ambiente
como os outros animais o fazem. O homem, assim colocado na série filogenética e evolutiva, foi
exposto à luz reveladora da psicologia comparada, e como resultado a psicologia libertou- se da
idéia de que os seres humanos constituem um caso especial e único na ordem da natureza.
Ainda outro movimento no qual os psicólogos de muitas escolas participaram foi a modificação
gradual da noção de homem racional. Por algum motivo, os seres humanos, quando começam a
refletir, têm forte tendência para encarar a natureza racional do homem como pertencendo
essencial e peculiarmente ao próprio homem. Foi certamente este o pensamento dos filósofos
gregos; e os escolásticos da Idade Média, embora diferentes dos gregos em temperamento e
intenção, exaltaram a razão no mesmo grau que os primeiros. A mesma tendência se encontra
no início do período moderno; pois a psicologia dos séculos XVII e XVIII estava preocupada, se
não com os processos racionais no sentido estrito do termo, pelo menos com o conhecimento
em geral. E, todavia, mesmo neste movimento, havia indícios de que a concepção do homem
racional devia ser modificada. Locke e Hume já supunham que os efeitos do pensamento são em
grande parte questões de hábito e costume e da experiência
Psicoiogias do Século XX
367
"impressa nos sentidos" vinda do exterior. E quando foram efetuados estudos experimentais
do pensamento, os resultados indicaram quase de imediato uma concepção do pensamento
como sendo uma atividade muito menos rigorosamente racional do que parecia. Talvez as
experiências mais impressionantes deste tipo sejam aquelas que, adaptando os métodos da
psicologia animal ao exame do pensamento humano, revelaram amiúde a freqüente
ocorrência do método do ensaio e erro, "tipicamente animal" no pensamento humano
colocado sob estas condições, e salientaram repetida- mente semelhanças em lugar de
diferenças entre os atos humanos e animais. Do ponto de vista oposto - isto é, da ocorrência
de "insight" em vez do método do ensaio e erro
- o estudo dos macacos de Kühler indicou também a continuidade da inteligência humana com a
animal. E não apenas foram os próprios processos intelectuais concebidos como menos
racionais do que pareciam; na forma em que se apresentam, e sejam quais forem, passaram a
ser encarados como muito menos decisivos do que se havia pensado quanto à determinação da
conduta humana. Os psicanalistas, naturalmente, foram muito positivos sobre este ponto; mas
os psicólogos acadêmicos inclinaram-se na mesma direção. De seus vários pontos de vista,
James, Dewey e McDougafl, todos foram contra a noção exagerada da potência da razão na
conduta humana; e Watson, chamando a atenção para a importância das atividades glandulares
e viscerais, tomou essencialmente a mesma posição. É interessante notar que todos os
psicólogos concordam em que os aspectos racionais e coghitivos da natureza humana foram
muitíssimo exagerados no passado.
Ao longo dessas linhas convergiram a prática e a opinião, e, em conseqüência, a psicologia está
hoje dirigindo-se a um material muito diferente daquele que constituiu o seu objeto um século
ou meio século atrás. Os seres humanos que a psicologia estuda agora são criaturas que
possuem um lugar definido na série animal e no mundo da natureza em geral, e que são
estudadas tanto pela observação dos que olham suas ações visíveis, como através de suas
próprias descrições de atividades invisíveis ao espectador; criaturas nas quais a emoção e o
impulso são fatores poderosos na determinação da conduta e nos quais a razão parece menos
importante do que muito tempo se supôs. São criaturas, também, que parecem não ser
estruturadas de acordo com nenhum padrão muito evidente de construção em mosaico,
865
Edna Heüibreder
Pswoloçnas do Século XX
369
seja de elementos conscientes ou de reações motoras. Não basta estudar as suas reações aos
pedaços; é preciso levar em conta o organismo como um todo.
Todos esses pontos de igualdade foram encontrados em conexão com um material de fatos
bastante concreto, porém. mesmo nas bases teóricas dos sistemas, nas próprias características
que distinguem um do outro, podem ser descobertos traços de concordância.
É estranho dizer que existe uma identidade fundamental de atitude com relação ao bicho-
papão da psicologia, o problema sempre presente da relação entre a mente e o corpo. Talvez
esta atitude seja melhor descrita como uma tentativa de entrar em acordo com o problema, de
maneira que não interfira sempre no caminho. De forma mais positiva e específica, a atitude é
a de quem considera o objeto da psicologia não como formando um mundo à parte, mas sim
como assumindo o seu lugar na ordem natural. Historicamente, a psicologia começou com o
estudo da mente ou consciência, e esta circunstância colocou o problema de relacionar os fatos
da psicologia com os das ciências físicas. Alguns sistemas tentaram resolver o problema pela
adoção de uma formulação geral que esperavam servisse de uma vez por todas a esta
finalidade. Outros apenas anotaram todas as relações que encontraram na experiência,
supondo que um cientista, pela própria natureza de seu problema, não é obrigado a descrever
suas relações em termos metafísicos. Além disso, esta atitude comum, esta tendência para
relacionar os fatos psicológicos com os das ciências naturais em geral, está presente, quer seja
o sistema "dualista" ou não, no sentido de considerar o mental e o físico como duas ordens
diferentes. De uma forma ou de outra, a ligação é feita. O estruturalismo, por exemplo, pela
doutrina do paralelismo psicofísico, torna possível distinguir entre o mental e o físico e ainda
relatar as relações observadas entre eles. O behaviorismo, pela redução do mental ao físico,
sustenta que esta relação é de identidade. O funcionalismo assevera que as suas idéias e
práticas são compatíveis com qualquer uma das numerosas interpretações metafísicas. Cada
sistema, ou concebe um modo diferente de justificar os seus processos ou afirma que não é
necessária uma justificação. Existe, realmente, uma tendência crescente para desprezar a
metafísica no problema da mente e do corpo, o que é um dos sinais mais certos de que a
psicologia se está transformando em ciência. Pois desde que a ciência, por definição, restrin g
as suas pesquisas ao mundo da experiência, não há motivo para que as relações mente-corpo
na forma em que são observadas na experiência não devam ser tratadas como as outras
relações observadas - como, por exemplo, são realmente tratadas na fisiologia dos sentidos.
Do ponto de vista empírico, as relações mente-corpo não são nem mais nem menos inteligíveis
do que as relações encontradas em outras ciências; e se parecem representar um problema
especialmente importante, assim o fazem porque os interesses pessoais e os valores emocionais
os isolaram como um caso especial. Geralmente, toda ciência natural encontra fatos e relações
que não pode explicar - e que flefli rne$mo t-'
explicar. E isto não significa que a ciência esteja impreg nada de mistério. Pelo contrário, a
ciência leva avante o seu trabalho exatamente porque aceita certos fatos e relações empíricas
como assentados e como constituindo os limites práticos de sua investigação, sem se deter
para ponderar porque são assim.
Como ciência, a psicologia acha-se na mesma situação. Tanto como qualquer ciência, não é
obrigada ou solicitada - a pronunciar-se sobre a natureza última de seus dados. Não mais do
que a qualquer ciência, exige-se dela - ou se lhe permite - admitir qualquer coisa fora da ordem
natural em suas explicações. Sua função, digamo -l novamente, como a de qualquer ciência, é
a de determinar as relações que observa na experiência e descrever o seu material em função
de tais relações. Isto se tornou lugar-comum no pensamento científico, a tal ponto que pode
parecer supérfluo mencioná-lo. E todavia, de pontos de vista diversos do científico, os fatos
geralmente classificados como mentais são tão freqüentemente considerados como
categoricamente únicos que, às vezes, é necessário expor explicitamente que podem ser
considerados simplesmente como acontecendo na ordem natural. Mas, o hábito de ver a dife..
renç.a entre os fatos materiais e mentais sob o mesmo aspecto em que são vistas outras
diferenças empírlcas, de considerar ambas as classes de eventos como fatos de experiência que
podem ser classificados de forma diversa e entre os quais é possível estabelecer relações
empíricas; de observar os pensamentos e sentimentos mais íntimos e intricados, seja como for
que possam ser chamados, como partes da mesma ordem natural como as marés, os planetas e
as contrações musculares - este hábito assinala a consecução da atitude científica. E a psicologia
está agora adquirindo este hábito. Pois
371
310
Edna Hekibreder
cada um dos sistemas estudados, até onde se tem relacionado com o problema mente-corpo,
adotou uma formulação que tornou possível o tratamento de seu objeto escolhido como parte
do mundo natural, tornando-o acessível aos procedimentos normais da ciência.
- um estado de coisas que não deve ser lamentado numa ciência que progride. E se algumas
escolas se dedicam com tanto zelo aos seus próprios empreendimentos, a ponto de
considerarem os outros como perda de tempo ou coisa pior, essa situação também apresenta
suas vantagens. As definições da psicologia, sustentadas pelos vários sistemas na forma em que
realmente se elaboram na prática, são expressões de certos problemas numa ciência
incompleta. São delimitações, convenientes por algum tempo e necessárias na prática, de um
campo tão vasto e tão pouco explorado que algo deve ser feito para reduzir as suas dimensões
a um tamanho em que se possa trabalhar.
Pskologia3 do SéculO XX
Nas questões de método, a situação é quase a mesma. Na realidade, os psicólogos não estão
tão afastados um do outro como parecem. Poucos métodos são rejeitados na íntegra e em seus
princípios por qualquer grupo de investiga. dores. O behavioriSmO, naturalmente, exclui
rigorosamente a introspecção, mas outras escolas demonstram pouca ou nenhuma hostilidade
para com esse método; sem lhe dar o destaque que já lhe tem sido atribuído, aceitam-no com
vários graus de entusiasmo e lhe dão licença para realizar o que puder. A técnica da psicanálise
é rejeitada por muitos como sendo insegura para a pesquisa científica, e não foi,
naturalmente, adotada como método comum de pesquisa experimental pela psicologia
acadêmica. Todavia, além desses dois meios de pesquisa, os métodos da psicologia tendem a
ser transferíveis de uma escola para outra. Outrossim, existem técnicas, experimentais e
estatísticas, que foram desenvolvidas fora de qualquer sistema - por exemplo, os dispositivos
usados em psicologia industrial e para testar e medir os traços mentais. Embora tenham sido
submetidos a um bombardeio de crítica, sobreviveram em parte, foram melhorados e
complementados e se estenderam até abranger situações muito diferentes daquelas que lhes
deram origem. Os métodos, naturalmente, são determinados pe'os problemas; e um
determinado psicólogo, desde que seus principais interesses estejam satisfeitos, não utiliza,
por via de regra, toda a gama de processos disponíveis, quando trabalha. Naturalmente,
também as diferenças de opinião, como costumam ocorrer em qualquer ciência, surgem com
referência aos méritos relativos das várias técnicas. Cada vez mais. porém, a crítica está
tendendo a se fixar sobre as fraquezas e as limitações específicas de uma técnica, e cada vez
menos em sua aliança com uma determinada escola ou sistema. A psicologia está acumulando
com muita firkrieza um acervo comum de métodos; e não mais causa surpresa ver os métodos
de experimentação e medição concebidos por uma escola, adaptados aos problemas de outra.
Seria bem possível, realmente, fazer uma descrição dos sistemas que, em lugar de ressaltar as
características pelas quais se distinguem, sublinhasse as suas igualdades subi acentes;
mostrasse que, apesar de suas diferenças, estão todos orientados para a mesma classe de
fatos; e que até mesmo sugerisse que as suas próprias divergências provêm de uma zelosa
preocupação para que essa classe de fatos seja corretamente observada. Seria possível,
realmente, basear
373
372
Edna Heidbreder
tal descrição nas declarações pelas quais certos sistemas se destacam expressamente de
outros - nos artigos de Titchener excomungando o funcionalismo e o behaviorismo, por
exemplo, e nas declarações de independência de Watson e Wertheimer. É interessante
considerar quanta psicologia não-sistemática fica de pé depois que os ataques das escolas
rivais atingiram o máximo; quantos dados fundamentais estão implícitos no fato de que elas
podem tornar suas críticas reciprocamente significativas. Um dos aspectos não menos
importantes de tais controvérsias está em que os antagonistas, quando assinalam uma
divergência, usam palavras e se referem a fatos que implicam concordâncias por ambas as
partes. Defrontam-se em terreno comum para tornar suas divergências mais nítjdas.
Por outro lado, seria possível, e talvez da maneira mais óbvia, tomar os sistemas com todas as
suas diferenças e traçar uma linha contínua de desenvolvimento; mostrar que mesmo os
movimentos revolucionários extraem algo de sua forma e muito de seu poder dos sistemas
contra os quais se revoltam; e que os protestos sucessivos resultaram em ampliação do campo
da psicologia, e não em aniquilamento de qualquer 4e suas genuínas realizações; mostrar, em
suma, que a ascensão e a queda das escolas e dos sistemas não formam um caos, mas sim uma
ordem. Seria possível, também, mostrar que a psicologia se está tornando cada vez mais cônscia
de tais fatos a seu respeito. Ultimamente, têm aparecido histórias de psicologia, descrições de
suas experiências relevantes, sínteses de seus materiais em certos setores e avaliações de suas
escolas e teorias contemporâneas que, em conjunto, indicam que a psicologia se está tornando
meditativa, fazendo pausas, ao que parece, para fazer o seu balanço e ver o que o seu desvelo e
empreendimentos realizaram. Talvez estas meditações signifiquem desapontamento, cansaço
ou desilusão; ou que a primeira confiança juvenil foi abalada, ou ainda que a originalidade e
criatividade primitivas estão temporariamente esgotadas. Mas podem também significar que a
psicologia está reunindo os seus recursos para uma luta mais árdua e demorada do que à
primeira vista parecia necessária.
Então, poder-se-ia afirmar, com humilde prudência, que a psicologia está tendendo para a
harmonia e a estabilidade. Porém, tal argumento seria profundamente falso se pretendesse
exprimir mais do que a verdade parcial que encerra. Toda a argumentação neste sentido
parece ilusória e forçada
?scOIO9W do Século XX
desde que deixe de ser acompanhada pela advertência, que não deve ser esquecida, de que
existe um outro aspecto da questão. A psicologia, de fato, possui realizaÇões definitivas a seu
crédito, e seria tolo e injusto menosprezá1as. Mas é igualmente tolice e injustiça pretender
que elas sejam maiores do que o são na realidade- Nada poderia ser mais errôneo do que
pretender que a psicologia esteja mais adiantada do que está, ou que já tenha conseguido uma
integração dos materiais ao seu alcance. Pois o fato significativo sobre a psicologia na forma em
que existe atualmente não é que sej a contraditória; ou que sei a inepta; e que seu
trabalho seja desordenado; mas que é jovem e que pode estar progredindo, que tem tanto a
inexperiência como a promessa de juventude, e está no meio da luta em busca daquele
controle de instrumentos e materiais que é típico de uma ciência desenvolvida.
A psicologia é realmente interessante, se não por outro motivo, pelo menos porque permite a
Visão de uma ciência ainda em formação. A curiosidade científica, que penetrou em tantos
caminhos da natureza, está sendo neste caso observada na própria ocasião em que abre
caminho através de uma região que apenas começou a explorar, topando com barreiras,
tateando através de confusões, trabalhando S vezes desastradamellte, outras vezes
astuciosamente, excitada ou cansada, num problema que está ainda em grande parte sem
solução. Pois a psicologia é uma ciência que ainda não fez a sua grande descoberta. Nada
encontrou que fizesse por ela o que a teoria atômica fez pela química, o princípio da evolução
orgânica para a biologia, e as leis do movimento para a física. Não foi ainda descoberto OU
reconhecido nada que lhe desse um princípio unificadOr. Por via de regra, uma ciência é
apresentada do ponto de vista do seu objeto e do seu desenvolvimento, à luz de seus grandes
êxitos. Suas hipóteses confirmadas formam as linhas estabelecidas sobre as quais coloca seus
fatos em ordem, e sobre os quais organiza a sua pesquisa. A psicologia, porém, ainda não
obteve a sua grande vitória unificadOra. Tem tido vislumbres de percepção, posSUi uma porção
de pistas, mas não conseguiu ainda uma síntese ou um "insight" que seja convincente, bem
como plausível. E ninguém presta algum serviço à psicologia pretendendo que a situação seja
outra. É certamente um elogio duvidoso atribuir à psicologia qualidades que não possui. Pois a
psicologia tem tanta necessidade de se desculpar quanto tem um jovem por não ser ainda
adulto ou
375
s1
Edna Heidbreder
um aprendiz por não ser mestre. É somente quando pretende ser algo que não é, que a
psicologia se torna pouco convincente e, às vezes, ridícula. Seus processos são justificados não
quando dão brilho aos fatos, mas quando os apresentam de maneira exata.
Certamente é desses atributos da psicologia - sua imperfeição, sua juventude, seu esforço em
direção a um alvo ainda longínquo - que os sistemas extraem o seu significado. Não
constituem o estágio final da psicologia, nem têm essa pretensão. Mas como programa de ação
e instrumentos de disciplina, tornam-se ao mesmo tempo inteligíveis e importantes. A sua
própria variedade torna-se significativa, sugerindo que a situação provocou a reação variada do
método de ensaio e erro pelo qual a inteligência humana normalmente ataca os problemas em
setores desconhecjdos. Seu caráter experimental, também, explica e justifica algumas de suas
características secundárias, entre outras a emotividade que, às vezes, os acompanha e que
muitas vezes parece estranhamente deslocada nas pesquisas austeras da ciência. Realmente,
algo muito parecido com uma utilidade biológica se percebe na emotividade que os sistemas
atuais requerem; pois, embora um fato firmemente estabelecido não provoque e nem exija
uma defesa ou propaganda ativa, uma teoria que pode possivelmente ser verdadeira mas que
não foi ainda provada pode ser apoiada ou criticada, durante o período em que está sendo
testada, por uma preferência ou aversão de origem emotiva. O caráter experimental dos
sistemas explica também a sua tendência para formar escolas. O apoio social, como a emoção,
fortalece as convicções ainda não estabelecidas como verdadeiras; e é difícil imaginar melhor
instrumento social para manter elevado o ânimo do que uma escola reconhecida, composta de
trabalhadores dedicados a uma causa comum, estimulados por esperanças, lealdades e
aversões comuns, aplicadas na tentativa de derrotar um inimigo comum. Não é de admirar,
portanto, que a psicologia esteja em grande parte organizada em escolas; e uma definição
satisfatória de uma escola é dizer que é um grupo de investigadores que dedica a uma certa
idéia ou a um determinado conjunto delas mujto majs do que uma simples parcela de atenção e
entusiasmo.
Novamente devemos dizer que não há nada de vergonhoso nesta situação; e que os sistemas
estão, ao contrário, entre os instrumentos legítimos, práticos, e pode-se dizer, indispensáveis,
que estão sendo utilizados para construir uma
Psicologi do Século XX
a uma empresa tão vasta e ambiciosa e ainda tão impreciSa que as limitações artificiais impostas
ao seu esforço estão, ao que parece, entre as condições necessárias para conseguir algum
resultado. Realmente, a maioria dos fatos de posse da psicologia derivaram de escolas e
sistemas. Mesmo a mais notável exceção a esta regra - a pesquisa da psicologia aplicada,
educacional e industrial - é uma prova disso; pois, neste caso, os limites, tais como os impostos
por um sistema, são segurad05 pelas exigências de um problema prático. Além disso, nem
mesmo as dissensõeS entre as escolas são de todo desevafltajosa& A rivalidade pode estimular
o esforço e assim aumentar a realização. As escolas mais intolerantes SO muitas vezes as mais
produtivas; e as lealdades, aversões e preconceitos fortemente emocionais podem contribuir
para a formação da verdade impessoal. Pois o resultado de pensamento científico não se
identifica com os meios nem com as condições de sua formação; O resultado é que é imparcial e
impessoal. O método científico é um instrumento para torná-lo assim, independente das
condições que provocaram a sua obtenção. Talvez a prova mais notável da eficiência do método
científico, a esse respeito, é aquela encontrada no trabalho dos pesquisadores que, como
adeptos de uma determinada escola, realizam pesquisas que revelam fatos em
desacordo com os ensinamentos dessa mesma escola. Em seus próprios atritos, além disso, as
escolas se corrigem entre si. Reconhecem, sem exceção, que a prova de uma doutrina, seja a
que estão apoiando ou a que estão atacando, é a verificação experimental; e é a sua aceitação
deste fato que torna os sistemas de psicologia mais do que simples especulações aéreas.
Fazendo a prova real das suas asserções - quer as próprias quer as das outras - as várias escolas
realizaram todas as conquistas que figuram a seu crédito. E se aparecer uma ciência psicológica
estável, essas conquistas e outras desse teor formarão O seu acervo de fatos.
III 1
o primeiro laboratório psicológico foi fundado por Wilhelm Wundt em Leipzig no ano de 1879.
Esta declaração faz parte quase que invariavelmente de qualquer descrição do
desenvolvimento da psicologia como ciência. Não é inteiramente exata, e a verdade nela
contida pode se tornar facilmente ilusória, porém aproxima-se tanto de ser um fato importante
que encontrou lugar seguro no conjunto de fatos que cercam a psicologia. Seja, pois, qual for o
seu verdadeiro significado, a fundação do laboratório de Leipzig é um ponto de referência
indispensável e destacado em qualquer descrição dos acontecimentos que conduziram à
psicologia científica.
Do ponto de vista da simples cronologia, o primeiro laboratório psicológico foi talvez aquele que
William James iniciou, quase por acaso, em Harvard, por volta de 1875. Nessa época, William
James era professor de anatomia na Escola de Medicina de Harvard, porém já demonstrava seu
desprezo típico pelas fronteiras erguidas entre as diversas discinlinas. Tendo- se tornado
bastante interessado pela fi
•/1
70
Edna Heidbreder
siologia sensorial, começou em certa época, durante o período de 1874 a 1876, a levar para o
seu laboratório problemas sobre sensação que eram tipicamente psicológicos. O laboratório de
W. James, entretanto, não se comparava em importância histórica como o de Wundt. O próprio
W. James não estava muito interessado nele, e só depois que o laboratório passou a ser dirigido
por Hugo Münsterberg, discípulo de Wundt, foi que a psicologia experimental realmente
progrediu em Harvard. O laboratório de Wundt, se não o primeiro, foi sem dúvida o que teve
maior repercussão.
Mas, mesmo assim, seria um erro considerar a fundação do laboratório de Leipzig como o início
da psicologia experimental. Esta estava no ar; já existia há muito tempo antes de se abrigar em
laboratórios, e também se instalou em outros laboratórios quase ao mesmo tempo que no de
Leipzig - naqueles, além disso, que não provinham do de Wundt. Ebbinghaus, Stumpf e G. E.
Müller, todos contemporâneos mais jovens de Wundt e todos ativos na
psicologia experi. mental, dificilmente podem ser considerados seus fiéis seguidores. Assim
como também não o podem ser Galton e Pearson, nem Charcot, Janet e Binet, que
promoveram importantes movimentos na psicologia na Inglaterra e França. Nem mesmo de
Hail e Cattell, discípulos de Wundt, que tiveram muito que ver com a fundação dos primeiros
laboratórios na América, pode-se dizer que tenham seguido de perto as pegadas de seu
mestre. O laboratório de Leipzig, sem dúvida, não foi o ponto sobre o qual convergiram todas
as correntes que conduzem à psicologia experimental e do qual todos os desenvolvimentos
posteriores tiveram o seu início. Mas também é certo que a sua fundação foi um
acontecimento da maior importância. A sua instalação solene numa grande universidade
alemã foi o sinal visível e exterior tanto de que a psicologia se tornara definitivamente
experimental quanto de que se convertera em ciência independente, vivendo por sua própria
conta.
Porém há uma grande distância entre a psicologia que culminou com Bain e Volkmann, e
aquela que teve início nos laboratórios. Antes de poder falar com o estilo da ciência, antes
mesmo que pretendesse produzir resultados que trouxessem o sinal do conhecimento que a
diferencia da opinião, a psicologia teve que adquirir novos métodos de coligir e elaborar os
seus dados. Teve, em suma, que aprender o método científico e, ao assim fazer, transferiu-se
da cátedra para o laboratório.
P8icOlois do Século XX
A diferença entre a psicologia de laboratório e a teórica não é a que existe entre a observação e
a não-observação. Também não é aquela entre a boa e a má observação. É a que existe entre
dois métodos de observação. Os ocupantes das cátedras são, às vezes, observadores sutis -
provam isso Hobbes, Locke e Rume - mas quando respondem a uma pergunta baseada em
observação, utilizam as que já ocorreram, isto é, aquelas que não foram feitas especialmente
com o fim de extrair os fatos relevantes sobre um determinado problema. Em tais
circunstâncias, onde os dados são limitados exclusivamente a casos que já se verificaram
espontaneamente, e que foram observados e lembrados, é óbvio que mesmo para os
observadores mais bem intencionados, fatores, tais como a direção da atenção, limitação da
experiência, acidentes do meio ambiente e lapsos da memória, podem influenciar a escolha da
evidência. O sinal distintivo de uma experiências científica é o de ser um meio de aciquirir só a
informação que é relevante - não simplesmente usando o que já está à mão - e de adquiri-la em
circunstâncias que excluem o mais completamente possível os fatores particulares e incidentais
na observação. Portanto, o pesquisador começa por formular sua questão de modo definido e
prossegue dispondo o conjunto típico de condições que possa revelar melhor os fatos a ela
associados. Repete suas observações cuidadosamente, tanto para aumentar a precisão quanto
para reduzir o acaso ao mínimo; muda sisteinaticamente as condições, tanto para alargar a sua
visão quanto para testar suas hipóteses; e controla a situação toda o mais rigorosamente
possível a fim de que sabendo exatamente o que colocou em sua experiência, não se engane
quanto ao que dela resultou. Sempre que possível, reduz os seus resultados a termos
quantitativos e os submete a tratamento estatístico, anotando escrupulosamente os casos
negativos, bem como os positivos. E faz tudo isso para reduzir ao mínimo possível a
influência de seus próprios característicos e as contingências de sua situação - os seus próprios
desejos e esperanças, suas preferências e aversões, suas suscetibilidades a impressões de uma
certa espécie e seus próprios modos de encarar o problema. Porque, num sentido muito real, o
método científico é um dispositivo para proteger aquele que investiga a influência do seu
interesse na própria pesquisa. As condições são dispostas de forma a que os fatos surgirão tão
impessoais quanto possível. A importância de tal proceder em psicologia, que trata de um assun
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Edna Heidbreder
Psicologw. do Século XX
73 1!
to pelo qual as pessoas são inclinadas a ter idéias preconcebidas e preferências sutilmente
determinadas, é tão evidente que dispensa comentários. A psicologia científica nada mais é do
que um prolongamento do método científico a uma região onde a observação desinteressada
tem sido particularmente difícil.
Uma vez que as ciências físicas haviam aparecido e progredido bastante, era inevitável que
surgisse a psicologia científica. As ciências mais antigas tornaram isso necessário. Os
pesquisadores estavam amiúde tendo sua atenção atraída para o organismo observador e para
a necessidade de levar em conta as suas reações, a fim de tornar seus próprios cálculos exatos e
completos. O exemplo clássico é encontrado na astronomia, em um incidente que todo
estudante de psicologia vem a conhecer mais cedo ou mais tarde. Em 1796, Maskelyne, o
astrônomo real do observatório de Greenwich, reparou que o seu jovem auxiliar, Kinnebrook,
registrara observações estelares que diferiam das suas, em mais de meio segundo. Quando elas
continuaram a diferir, mesmo após o jovem haver sido informado da discrepância, Maskelyne
achou necessário demiti-lo. Cerca de vinte anos mais tarde, o astrônomo alemão Bessel
estudou, o incidente. Desconfiado de sua importância, comparou as observações de um certo
número de astrônomos de reputação consagrada, e verificou que havia, regra geral, ligeiras
discrepâncias na observação; em outras palavras, que existem diferenças individuais entre os
observadores no tempo de reação exigido para o processo altamente complexo de anotar e
calcular, até a um décimo de segundo, o instante em que uma estrela atravessa uma dada linha
no campo do telescópio. Bessel chamou o fenômeno de equação pessoal.
Pesquisou-a experimentalinente, salientando a importância de sua correção, e assim fez a
astronomia ficar ciente do papel que o observador desempenha entre o acontecimento físico e
a percepção psicológica.
É interessante observar que, tanto na filosofia quanto na ciência, o interesse pela psicologia se
desenvolveu tarde e foi, de início, acidental. A filosofia, dispondo-se a descrever o universo em
linhas gerais, começou com a cosmologia, e somente quando se viu envolvida nos problemas da
epistemologia, dedicou-se séria e diretamente ao material psicológico. A ciência, também,
principiou com uma tentativa para explicar o mundo em geral, começando com a física e a
astronomia. E a ciência física, assim como à filosofia, deu atenção, pela primeira vez, à
psicologia de um modo sério,
74
75
Em relação à História, a obra de Ernst Heinrich Weber foi de primordial importância para a
psicologia. Weber, contemporâneo de Müller, também um pioneiro em filosofia, estava
interessado principalmente no sentido do tato. Ou melhor, era um dos fisiólogos que estavam
demonstrando que não existe um sentido único do tato; que, ao contrário, existem muitos
sentidos do tato; e que sensações diversas, tais como as de pressão, temperatura e dor, podem
ser distinguidas; e que os músculos, a pele e o interior do corpo, todos fazem
contribuições especiais e separadas. (A propósito, lembremos que o fato de não ser correto
falar-se dos antigos cinco sentidos foi considerado pela imaginação popular como uma das mais
revolucionárias descobertas da ciência moderna.) Enquanto Weber estava pesquisando a
sensibilidade relativa dos sentidos musculares e cutâneos, efetuou uma experiência que estava
destinada a ser de importância vital para o desenvolvimento da psicologia. O seu problema, que
parecia bastante prosaico, era descobrir até que ponto o sentido muscular influi na
discriminação de pesos. A sua experiência foi feita primeiramente para determinar se diferenças
de peso podem ser percebidas de modo mais preciso quando os pesos são levantados pelo
próprio paciente ou quando são colocados em sua mão pelo pesquisador - isto é, com e sem a
participação ativa dos músculos.
A pesquisa resultou em duas descobertas. A primeira foi a resposta direta ao ponto principal
da experiência: a sensibilidade ao peso é muito mais aguda quando é incluído o sentido
muscular. A segunda foi a descoberta que se tornou depois a lei de Weber, e o ponto de
partida de uma série de experiências que levaram diretamente à psicologia experimental.
A descoberta foi, em suma, que não havia uma relação simples de um para um entre a
grandeza de uma diferença e a habilidade do paciente para percebê-la. Se um peso padrão de
32 onças fosse colocado na mão do paciente, e se pedíssemos ao mesmo para compará-lo com
outros pesos igualmente apresentados, ele provavelmente notaria um aumento no peso
quando oito ou nove onças 1 - aproxima1 Estas quantidades são usadas como exemplo; não são
os valores exatos obtidos por Weber, embora os pesos padrões mencionados, 32 e 4
onças,
damente 1/4 do peso padrão - fossem acrescentadas. Este valor tem sido chamado a diferença
mínima perceptível. Porém, se fosse usado um peso padrão de 4 onças, poderia ser notado um
aumento de peso quando fosse acrescentada mais uma onça aproximadamente. Em outras
palavras, um aumento absoluto muito menor causou a mesma diferença perceptível, tanto num
caso quanto noutro; porém, novamente a diferença foi cerca de 1/4 do peso padrão. À primeira
vista, a percepção da diferença dependeu não do ta'man.ho absoluto da diferença, mas sim da
razão entre a diferença e o padrão. A razão foi diferente, cerca de um para quarenta, quando o
sentido muscular participou, mas ainda perfeitamente constante. E dentro de cada um dos
campos dos sentidos estudados, os resultados para as quatro pessoas que serviram como
pacientes foram mais ou menos os mesmos. Além disso, os resultados foram - confirmados em
uma experiência posterior, muito mais controlada. Não seria possível, então, exprimir, dentro
de um dado campo dos sentidos, a diferença mínima perceptível em função de uma razão
constante? Weber estava disposto a considerar esta generalização. Para prová- la, prolongou
suas observações até à discriminação das distâncias visuais e achou que, em geral, os resultados
confirmavam as suas hipóteses. Acreditava, 2 também, embora estivesse errado ao assim fazer,
que o estudo de Delezenne em acústica confirmava o seu ponto de vista no campo da
discriminação da altura do som; e com os elementos disponíveis, aventou a hipótese de que
dentro de cada campo sensorial a habilidade para distinguir diferenças mínimas perceptíveis
não depende da grandeza absoluta da diferença em questão, mas de uma razão constante entre
a diferença e a unidade de comparaçao.
Era esse o mesmo fato que se apresentara de forma menos pronunciada, porém infalível e
repetidamente, no trabalho de outros cientistas. Não se pode admitir que haja uma
correspondência simples, literal, ponto por ponto, entre
o estímulo físico e a sua percepção. Para Weber, isto era um fato fisiológico interessante e
nada mais. Ele não o apresentou como a lei de Weber, nem o considerou como tendo um
significado filosófico de maior alcance. A seu ver, a
2 Erroneamente, visto que Delezenne não fez nenhuma determinação comparativa do D.L." E.
a Tltchener, op. cit., XVIII.
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Edna Heidbreder
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generalização era tão importante, mas não mais do que qualquer outra regra empírica. Porém,
esta descoberta foi aproveitada quase como uma revelação por Gustav Theodor Fechner, que a
colocou no próprio centro de estudo psicológico. Para ele, sua importância residia no fato de
ela revelar uma ligação entre o físico e o psíquico - uma relação matemática exata - e uma
ligação de alguma forma entre os dois mundos era o que Fechner estivera buscando durante
longos e ansiosos anos com toda a grande dedicação de sua natureza amante da unidade.
Dedicou praticamente toda a sua vida para provar a lei de Weber, e ao assim fazer, elaborou
métodos de pesquisa que auxiliaram a tornar possível a psicologia científica.
Paicologias do Século XX
Fechner recuperou a saúde, ninguém soube como, muito menos ele próprio; porém, na manhã
do dia 22 de outubro de 1850 - ele anota esta data com carinho - sobreveio -lh uma idéia que
satisfez as exigências de sua natureza humanista e científica. Ocorreu-lhe que poderia haver
uma relação observável e até mensurável entre o estímulo e a sensação e, portanto, entre os
mundos mental e físico. Observou que a sensação e o estímulo parecem não aumentar de
intensidade no mesmo grau absoluto. Por exemplo, se uma vela está acesa em uma sala e
acendemos outra, a diferença é imediatamente notada; porém se estão acesas dez velas e é
acrescentada mais uma, a diferença quase não é percebida. É possível, então, que a sensação
cresça em progressão aritmética, ao passo que o estímulo aumenta em progressão
geométrica. A sensação em si não pode ser diretamente medida, mas o estímulo pode, e será
possível mostrar que um aumento no estímulo, por uma fração constante dele mesmo, é
regularmente correlacionado com cada aumento perceptível na sensação. Em outras palavras,
pode-se encontrar a relação quantitativa exata entre os mundos mental e f ísico. Para Fechner,
esta concepção era completamente satisfatória; se fosse confirmada, uniria o que havia
parecido desconexo e irreconciliável; daria a ele o sentido da unidade
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Psicoíogias do Século XX
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Edna Heidbreder
do mundo que sempre buscara - uma unidade do mundo, além disso, que ele poderia
demonstrar com evidência matemática, exata.
Restava, entretanto, a tarefa de provar experimental- mente sua hipótese, e só depois de
iniciada esta tarefa foi que se deparou com a descoberta de Weber. Para Fechner, ela parecia
confirmar suas esperanças. Deu forma matemática aos resultados obtidos por Weber, deu à
generalização o nome de lei de Weber e dedicou-se sem reservas à tarefa de verificá-la por
meio de experiências. Para esse fim, passou a levantar pesos, praticamente milhares de pesos,
tentando comparar suas impressões imediatas de peso com os pesos fisicamente determinados
dos objetos erguidos. Fez estudos semelhantes dos graus de brilho, e das distâncias visual e
tátil, acreditando sempre que se a sensação, isto é, o ponto de contato entre o físico e o
psíquico, pudesse ser demonstrada como tendo relação matemática definida em referência ao
estímulo, a unidade do mundo que procurava poderia ser estabelecida.
Porém, por mais difundido que tenha sido o uso dos métodos de Fechner, a interpretação de
seus dados tem sido de um tipo muito diferente do que pretendera. A interpretação mística,
que para ele era o principal resultado de suas experiências e a sua própria razão de ser, nunca
foi aceita em psicologia. Mesmo num sentido técnico e mais restrito, as interpretações de suas
experiências não tiveram aceitação geral. Havia e ainda há muito desacordo quanto ao grau de
precisão das medições feitas pelas experiências psicofísicas e houve pelo menos um crítico
importante que considerou todo o movimento iniciado por Fechner como inteiramente sem
valor. Escreveu William James:
"O Maasformel fechneriano e sua concepção como sendo uma 'lei psicofísica' final
permanecerá como um 'ídolo das cavernas', se alguma vez existiu algum. De fato, o próprio
Fechner era um Gefrhrter alemão do tipo ideal, ao mesmo tempo simples e perspicaz, místico
e experimentador, simples e ousado, tão leal para com os fatos, como
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Edna Heidbreder
Psicologias do Século XX
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para as suas teorias. Porém seria terrível se mesmo um homem tão bom como esse pudesse
sobrecarregar nossa ciência com os seus contínuos caprichos e, num mundo tão cheio de outros
objetos mais dignos de atenção, obrigasse todos os futuros estudantes de psicologia a lutar com
as dificuldades, não só de seus próprios trabalhos, como também de outros ainda mais áridos
escritos contra eles. Aqueles que desejarem esta horrível literatura podem encontrá-la; possui
um 'valor disciplinar'; mas, nem mesmo a mencionarei num rodapé. O lado cômico do assunto é
que os críticos de Fechner sentem-se obrigados, após combater suas teorias pondo tudo abaixo
desapiedadamente, a dizer que, não obstante, a ele pertence a glória imperecivel de as haver
formulado pela primeira vez e, dessa forma, tornado a psicologia uma ciência exata,
Mas, por mais plausível que W. Jarnes considerasse este assunto, permanece o fato histórico
de que uma das fontes da psicologia moderna reside nas pesquisas pacientes e talvez árduas
do "simpático velhinho" que realizou a primeira tentativa de medir realmente os processos
psicológicos, ainda que mal definidos, e correlacioná-los com os fatos físicos. Mesmo que não
restasse a mínima parte de suas doutrinas específicas, o estabelecimento da psicologia como
ciência seria ainda, em grande parte, resultado de seu trabalho.
A criação da nova ciência foi também, em grande parte, o trabalho de Hermann von Helmholtz,
que foi assistente de Fechner durante vinte anos. Assim como este, Helmholtz fora antes
estudante de medicina, e depois físico, cujo interesse não estava de maneira alguma limitado à
física. Porém, Helmholtz não se interessava muito pela unidade do universo. Queria saber,
entre outras coisas, a maneira exata como os olhos e os ouvidos funcionavam, e para tanto,
entre-
gou-se a uma série de pesquisas que englobaram a tremenda quantidade de fatos e teorias
que constituem seus dois grandes livros, Handbuch des physiologischen optik (Manual de
óptica fisiológica) e Lehre von Tonempfindung (Teoria da sensação dos tons). Do ponto de vista
do volume total de trabalho efetuado, a realização é magnífica. Helmholtz examinou
cuidadosamente todo o conhecimento existente sobre p assunto, testou-o
experimentalmente, concebeu novas experiências, descobriu novos fatos e sugeriu novas
teorias. Com a mesma facilidade, inventava aparelhos, concebia métodos experimentais e
elaborava teorias. Possuía um talento extraordinário para tratar tanto com coisas quanto com
idéias. Seus poderes de observação, visuais e auditivos, eram considerados muito agudos e
sensíveis. Nenhum aspecto de seu estudo deixava de interessá-lo; suas pesquisas iam desde a
anatomia da vista e do ouvido até a história do desenvolvimento da harmonia.
82
Edna Heidbreder
Sir Thomas Young, e que atualmente é conhecida como a teoria de Young-Helmholtz. Ao explicar
a percepção do espaço, adotou o ponto de vista empírico em vez do inatista, ou seja, não
considerava a percepção espacial como "dada", mas como resultado da experiência. Em
oposição ao ponto de vista kantiano, pelo qual o espaço é uma das formas de intuição,
Helmholtz afirmava que a percepção do espaço é um trabalho da mente, o produto de
conclusões inconscientes, extraídas de numerosas e variadas experiências que não são espaciais
em si mesmas. A controvérsia entre o inatismo e o empirismo, em suas várias formas, teve uma
longa história em psicologia e não está de modo algum resolvida; porém, foi bom que, no
conjunto especial de circunstâncias em que trabalhou, Helmholtz lançasse a parte maior de sua
influência para o lado do empirismo; porque a sua atitude neste caso significou a análise de
processos básicos que seriam de outra forma aceitos sem discussão. Foi em grande parte por
esse motivo que Helmholtz demonstrou a possibilidade de realizar observações científicas
exatas sobre a sensação e a percepção, processos que em seu tempo eram tidos como fazendo
parte do fundamento da vida mental. Assim como Fechner estabeleceu firmemente tanto a
idéia quanto a prática da medição em psicologia, também Helmholtz provou, através de suas
pesquisas bem sucedidas sobre a sensação e a pêrcepção, ser possível aplicar a observação
exata e a experimentação a um material estritamente psicológico.
83
gasto para atravessar a distância entre os dois pontos estimulados. Naturalmente, foi feita uma
série de tais medições. Achando os resultados consistentes, Helmholtz avaliou a velocidade de
transmissão no nervo motor em 30 metros por segundo, valor muito baixo para a expectativa
da maioria dos cientistas da época, alguns dos quais pensavam que a velocidade de
transmissão nervosa fosse comparável à da luz.
O próximo passo, desde que o impulso do nervo motor havia sido medido, era ver se a taxa de
transmissão dos nervos sensoriais era diferente. O método usado neste caso incluía o uso do
organismo intacto e, portanto, a parte principal da experiência do tempo de reação em sua
forma atual. Um órgão dos sentidos foi estimulado, o paciente foi instruído para que reagisse
assim que percebesse o estímulo, e foi medido o tempo decorrido entre a aplicação do
estímulo e a contração do músculo. Foi seguido o mesmo plano geral usado para medir a
velocidade do impulso no nervo motor: o estímulo foi aplicado em pontos diferentes, no joelho
e no pulso, e a média de transmissão obtida por subtração. Neste caso, entretanto, os
resultados foram extremamente variáveis, e Helmholtz não quis chegar a conclusões definitivas
baseadas neles.
Até então, observe-se, o problema havia sido puramente fisiológico; Helmholtz estava
interessado simplesmente em medir a velocidade do impulso nervoso. Porém, as
possibilidades psicológicas da experiência atraíram a atenção de outros pesquisadores, e o
método de medir a taxa de transmissão nos nervos sensoriais - aquele que exigia o organismo
intacto - transformou-se logo na experiência do tempo de reação, que tornou possível uma
série fecunda de diferentes pesquisas psicológicas.
•11
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pies. Então, em outra série, o paciente deveria reagir somente após haver distinguido entre
uma luz vermelha e uma verde, reagindo se aparecesse a vermelha e não em caso da luz
verde. Estas reações, parecia razoável supor, conteriam não só tudo que a simples reação
tinha, mas em acréscimo, a discriminação. Ainda em outra série, o paciente deveria reagir com
a sua mão direita no caso da luz vermelha, e com a esquerda à verde. Admitia-se que estas
reações incluíam tudo o que existe na reação discriminatória, e além disso, a seleção. Então,
fazendo as necessárias subtrações, seria possível obter medidas do "tempo de discriminação" e
"tempo de seleção". O resultado seria um certo número de fatos mentais relevantes que
poderiam ser medidos no tempo e dariam ao psicólogo unidades definidas com as quais
pudesse operar.
A idéia era atraente, pois prometia a agradável simplificação que resulta quando se reduz
material complexo em unidades quantitativas, identificáveis e fixas. Porém, a análise posterior
das reações simples e complexas mostrou pouca ou nenhuma evidência de "constantes"
psicológicas. Pelo contrário, provocou uma dúvida considerável quanto à legitimidade da
afirmação básica de que as reações mais complexas podem ser concebidas como uma
composição na qual a reação simples é retida em seus pontos essenciais, com o acréscimo de
um fator escolhido. É verdade que o próprio Donders realizou os seus planos e obteve
resultados que apresentavam tempos mais prolongados para as reações de seleção do que para
as de discriminação, e maiores nestas do que para as simples, e esse resultado bruto tem sido
várias vezes confirmado. Porém, à medida que as reações e os tempos de reação for.m
estudados de modo mais complexo, tornou-se cada vez mais evidente que, mesmo nesse
pequeno setor da atividade humana, a situação é bastante complexa. Tornou-se evidente que o
tempo de reação varia com o órgão dos sentidos estimulado, com a intensidade do estímulo,
com o número de itens a serem "discriminados" ou "escolhidos", com o grau de diferença entre
eles, com a extensão da prática que o paciente recebe, e com uma centena de outros fatores.
Uma das contribuições mais sugestivas foi feita por Lange, que descobriu que o tempo de
reação variava com a atitude do paciente. Se este prestava atenção principalmente aà estímulo,
o tempo de reação era ligeiramente mais longo do que se a atenção fosse fixada antes no
movimento a ser feito. Esta descoberta da diferença entre as reações
Porém este estudo dos tempos de reação vai além da principal história do desenvolvimento da
psicologia e constitui somente um simples exemplo da forma intensa pela qual Helmholtz
estimulou a pesquisa psicológica. Não somente tornou possível a experiência do tempo de
reação; havia demonstrado, com suas pesquisas sobre a vista e audição, que os métodos
experimentais usados em fisiologia eram aplicáveis aos processos psicológicos da sensação e
percepção. Colocando os recursos dos laboratórios de fisiologia à disposição dos estudantes de
psicologia, tornou inevitável o desenvolvimento de uma psicologia experimental. De fato, seu
estudo havia apresentado questões estimulantes. Não havia mostrado que a sensação podia ser
estudada experimental- mente? Não são realmente as sensações a matéria-prima, o
Edna Heidbreder
material básico, com o qual é formada a vida psíquica? Então, não é o estudo desses processos e
suas relações um meio evidente de introduzir o conhecimento científico mais para dentro do
campo psicológico? E não poderia ser obtido o conhecimento quantitativo exato, tendo à
disposição os métodos psicofísicos? Era algum raciocínio dessa espécie, experimental porém
esperançoso, com reservas, classificações e aperfeiçoamentos, que estava vagueando à tona
quando a psicologia se aprestava a tomar a forma de uma matéria independente. Já existia à
disposição uma porção razoável de trabalho científico, especificamente psicológico em
qualidade. Foram criadas técnicas, métodos de investigação e aparelhos, foram escritos livros
importantes, e despertou-se um interesse generalizado. As partes estavam prontas para serem
reunidas, e quando isso acontecesse, formariam uma nova ciência.
O toque final que uniu as partes foi dado por Wilhelm Wundt, que por esse motivo se tornou
outra figura eminente na história da psicologia - embora o fato de aplicar o adjetivo
"eminente" a Wundt seja um tanto impróprio, uma vez que nem a sua obra nem o seu caráter
possuem a simplicidade e a exatidão de objetivo suficientes para provocar a mínima impressão
duradoura. Compreender a obra de Wundt significa entender uma rede intrincada de relações,
na qual o destaque e a clareza estão normalmente subordinados à riqueza de detalhes. Pois
Wundt estava tão perfeitamente cônscio das qualidades que acompanham um determinado
fato que foi descrito como um homem que "nunca disse uma coisa tola nem uma genial".
Instruído, lógico, ativo e sistemático, adaptava-se de modo admirável, tanto por treino quanto
por temperamento, à tarefa de centralizar, organizar e integrar, o que para a psicologia era a
grande necessidade da época.
assumiu seu cunho característico antes de conhecer Fechner em Leipzig. Quando ainda em
Heidelberg, escreveu o livro Grundzüge der physiologischen Psychologie (Elementos de
psicologia fisiológica), tratado que é tido, mais do que qualquer outro livro, como o que traçou a
primeira estrutura da psicologia como ciência à parte. Em alguns de seus primeiros escritos,
houve realmente antecipações de sua concepção de uma psicologia experimental; porém em
seu livro Elementos de psicologia fisiológica esta foi definitivamente formulada e elaborada, e
muita coisa que havia estado vagamente implícita na psicologia dos laboratórios de fisiologia foi
tratada de forma explícita e sistemática. O livro, em verdade, tentava duas tarefas: a primeira,
uma apresentação compreensível dos fatos conhecidos da psicologia da época; e a segunda, o
estabelecimento dos princípios de um sistema. Este último, embora repetidamente modificado
nas muitas edições posteriores do livro, era em traços gerais aquele que Wundt aceitou durante
toda a sua vida. Afirmando como o fez, sua convicção básica de que a psicologia é o estudo dos
conteúdos mentais e uma ciência que atinge esses conteúdos principalmente por meio da
introspecção e da experimentação, seu livro Elementos de psicologia fisiológica tornou-se uma
das maiores influências na determinação do caráter do primeiro trabalho experimental da nova
ciência.
- definindo exatamente o que seria uma experiência psicológica. Na forma em que a descreve,
a experiência psicológica imita claramente a fisiológica: é um método no qual o processo a ser
estudado é mantido bem próximo de um estímulo controlável e de uma resposta objetiva, e no
qual a introspecção é um ato cuidadosamente preparado, intenso e de pequeno alcance. É
digno de nota o fato de que apesar de toda a sua fé na introspecção e na experimentação,
Wundt nunca acreditou que esses métodos fossem aplicáveis ao estudo dos processos mentais
mais elevados; e que mais tarde, quando alguns de seus discípulos - notadamente Külpe -
tentaram estudar os processos mais elevados do pensamento pela introspecção sob condições
controladas, cmalificaram esses métodos de "falsos experimentos". Acreditava que os processos
mentais miis elevadospuciessem ser estudados somente por meio dos "produtos sociais"; são
compreensíveis 50-
5 O próprio Wundt aplicou este método em seu livro VolkerpsiicholOgw (Psicologia dos povos),
obra de 10 volumes, que terminou pouco antes de sua morte.
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mente para o método histórico. Só descrevendo o desenvolvimento do homem através de sua
linguagem, sua arte, suas leis, seus costumes e suas instituições em geral - somente, em suma,
mediante o estudo dos "produtos sociais" - é possível descobrir a natureza dos processos
mentais pelos quais aqueles produtos se formaram.
Naturalmente, Leipzig tornou-se a Meca dos estudantes que desejavam aprender a "nova"
psicologia - a qual não mais era um ramo da filosofia especulativa, não mais ramo da fisiologia,
porém nova e ousada tentativa para estudar os processos mentais pelos métodos
experimentais e quantitativos comuns a todas as ciências. Pois a psicologia de Leipzig era, nas
décadas de 80 e 90, a maior novidade sob o Sol. Era a psicologia própria para os arrojados
jovens radicais que acreditavam ser possível medir e tratar experimentalmente os processos da
mente - e que possivelmente se consideravam, em suas reflexões íntimas, como pioneiros
na mais recente fronteira da ciência, levando o seu método a setores de conhecimento que até
então não haviam sido penetrados. De qualquer maneira, lançaram-se às suas tarefas com
diligência e desvelo. Tornaram-se introspeccionistas treinados e, aliando a introspecção aos
recursos dos laboratórios de fisiologia, tentaram realizar a análise minuciosa da sensação e da
percepção. Mediram tempos de reação, acompanhando seus problemas em ramificações
numerosas e difusas. Pesquisaram as reações verbais, estendendo, dessa maneira, as suas
próprias pesquisas dentro do campo da associação. Mediram o alcance e as variações da
atenção e anotaram alguns dos seus traços mais complexos no "experimento de complicação",
um método de laboratório nos moldes da situação que deu origem ao problema do
O Nas universidades alemãs, Os psicólogos faziam parte dos departa. mentos de filosofia.
Pswologias do Século XX
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Edna Heidbreder
dio de psicologia), passou por dez revisões. Deve ter sido enorme o trabalho necessário, porém
a tarefa era importante. Pois um corpo de doutrina reconhecido que mantivesse o passo com
esta ciência em rápido crescimento era notoriamente útil para dar forma e caráter à massa de
material que estava começando a ser chamada psicologia.
Parece, às vezes, que Wundt era o tipo do indivíduo propenso a ser menosprezado. Sda
personalidade não era bastante original para torná-lo uma exceção a esse respeito; e sua obra
não apresenta uma contribuição genial e única que possa ser prontamente delimitada e
catalogada por meio de uma frase. Sua grande realização foi estabelecer as relações reais entre
muitas coisas que, de fato, haviam existido antes, porém não haviam sido incluídas em uma
verdadeira organização; e, de certo modo, os seres humanos são inclinados a considerar tais
realizações menos surpreendentes e menos criadoras do que as do tipo de Helmholtz e de
Fechner. Porém, quem percebeu as tendências do pensamento científico como o fez Wundt,
que as incorporou em seu primeiro laboratório, dando-lhes forma em um 'sistema influente e
que as comunicou aos entusiastas estudantes orgulhosos em levar avante o seu trabalho, tem
bastante direito ao título que lhe é freqüentemente atribuído, qual seja o de pai da moderna
psicologia. O próprio Wundt estava ciente da dívida da psicologia para com sua pessoa, e não
inteiramente insensível ao fato disso ser ou não reconhecido. No seu papel de pai, assumia às
vezes um caráter patriarcal e quase papal; sentia-se no direito de falar com autoridade,
pronunciar-se ex cathedra sobre psicologia e psicólogos, e de traçar uma linha de separação
bem visível entre a verdadeira psicologia e aquela que ele não aprovava. Ainda hoje, a sua
influência e prestígio têm sido tão grandes que a expressão "psicologia experimental" ainda
tem como seu principal significado o tipo de psicologia ensinado no laboratório de Wundt ou
por ele reconhecido e aprovado.
Porém Wundt e a cidade de Leipzig, apesar de seu merecido prestígio e sua evidente resolução
de mantê-lo, nãa possuíam o monopólio da psicologia, mesmo na Alemanha. Em outros
lugares e sob outros mestres, a nova ciência também progredia. Hermann Lotze,
contemporâneo de Helmholtz, muito tinha feito para chamar a atenção sobre os problemas
que deveriam se tornar psicológicos. Embora Lotze se houvesse formado em medicina, era
artista e filósofo, além de cientista, e é notório o fato de sua primeira publicação
Psicoiogias do Século XX
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após sua tese de doutoramento ter sido um livro de poemas escrito quando era estudante. Sua
influência na psicologia deve-se principalmente ao seu livro Medizinische Psychologie oder
Physiologie der Seele (Psicologia médica ou fisiologia da alma), no qual tentou reconciliar os
valores humanos e os caminhos naturalistas da nova ciência experimental, e no qual combinou a
agudeza e a penetração de cientista e metafísico com a simpatia em relação aos desejos e
esperanças humanas nem sempre encontradas no temperamento crítico. Lotze acredita que
não existem estados mentais que não estejam relacionados com processos físicos, mas
acreditava também que este assunto não alterava os valores da vida. Sua contribuição
específica para a psicologia mais conhecida é a teoria da percepção do espaço, a qual admite
que em lugar de uma capacidade inata de percepção do espaço, os seres humanos elaboram
as suas percepções de espaço por meio da experiência. Os dados não elaborados são
características não-espaciais de sensação visual e tátil - a saber, certos complexos de
intensidade que acompanham o estímulo da pele e dos músculos e que, no caso da visão, são
gerados pelos movimentos dos olhos. Estes complexos de intensidade considerou ele como
"sinais locais",os quais, ligados comumente com o estímulo de certos pontos, servem para
distinguir uns dos outros. Esta teoria, é claro, pode ser atribuída tanto aos inatistas quanto aos
empíricos.
Da mesma geração erudita de Wundt, fazia parte Franz Brentano, padre cujos escrúpulos em
matéria de integridade intelectual estavam sempre a envolvê-lo em crises com o mundo erudito
e o levaram, finalmente, ao franco rompimento com a Igreja. A principal influência de Brentano
foi estabelecer a psicologia do ato - que afirma serem os processos psíquicos, em sua essência,
atos que dizem respeito ou são orientados no sentido de conteúdos. Esta concepção está em
visível contraste com a idéia wundtiana que diz serem conteiídos os proprios processos
psíquicos. Esta diferença pode ser exemplificada pelo processo de ouvir um som.
Segundo Brentano, é preciso distinguir entre o som que alguém ouve e a audição de um som. É
a nudçuo de um som, diz ele, que é uru processo ou ato psicolgico; o som ouvido é o conteúdo
do ato. ,Ouvir um dó natural é um processo psicológico; o dó natural, da forma em que é ouvido,
não o é. O conteúdo, entretanto, é indispensável ao processo psicológico, porque este pela sua
própria natureza refere-se a um conteúdo. Realmente, o traço distintivo de um processo psi
92
Edna Hedbreder psicoiogias do Século XX
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A geração seguinte de psicólogos alemães é representada por homens que, embora cerca de
vinte anos mais moçts do que Wundt, eram, não obstante, considerados pioneiros em
psicologia. Desses, provavelmente os mais influentes foram Carl Stumpf, Theodor Lipps,
Hermann Ebbinghaus e
Lipps, outra figura de destaque na nova psicologia, não era um experimentalista de vulto. Tendo
interesse principalmente pelos problemas da percepção e estética, estabeleceu suas teorias em
Esthetik (Estética), seu livro mais conhecido. Sua maior contribuição é a sua doutrina do
Emfühlung ou "empatia", pela qual aquele que observa tende a "sentir-se dentro" do objeto que
está contemplando e segundo a qual as ligeiras e quase despercebidas respostas musculares
que executa ao observar, constituem a base da experiência estética. A teoria é interessante,
além de sua relação evidente com a estética, por chamar a atenção para as reações motoras, de
uma forma diferente, neste caso ligeira e incipiente. É significativo o fato de que a tendência
para levar em conta as reações motoras torna-se cada vez maior à medida que a psicologia
depende cada vez mais da observação e menos da contemplação. Pois o reconhecimento do
movimento chegou à psicologia experimental através das
94
Edna Heidrçer
sensações de movimento, que, como as outras sensações, entraram na psicologia por meio da
introspecção; e assim, a própria introspecção exemplifica a tendência da observação em agir de
fora para dentro. As sensações que dizem respeito ao mundo exterior, como as da visão e da
audição, atraem mais fortemente a atenção do que aquelas pelas quais o paciente constata a
sua própria atividade.
-se a uma série de experiências que um seu colega psicólogo classificou de heróicas. Sua tarefa
incluía literalmente a aprendizagem de centenas de listas de sílabas sem nexo - uma das
ocupações mais enfadonhas, como pode testificar qualquer pessoa que tenha estudado a
matéria, jamais realizada dentro ou fora de um laboratório de psicologia. Seu plano geral era
controlar os processos de memorização e retenção, variando sistematicamente as condições,
medindo o número de repetições necessárias para aprender e reaprender determinadas listas
e, assim, acumulando dados quantitativos obtidos sob condições conhecidas sobre os processos
utilizados para lembrar e esquecer. Para fins de comparação, memorizou também um material
com nexo, sob condições controladas evperimentalmente. Em toda a sua obra, Ebbinghaus
dedicou a maior atenção, até mesmo ao dispor os acontecimentos de sua vida em relação à
rotina de suas
Paicoiogiae dó BécuZo XX
95
experiências, no sentido de conservar tão constantes quanto possíveis todas as condições que
pudessem afetar sua eficiência como paciente. Seus resultados são apresentados em sua
monografia Über das Ged,iichtni.s (Sobre a memória) e, embora fossem baseados nos registros
de um único paciente, foram confirmados em sua maior parte, por pesquisas posteriores. Este
trabalho sobre a memória é, sem dúvida, a maior realização de Ebbinghaus, a quem também
devemos um tratado geral de psicologia. Este último livro é comumente considerado como o
manual mais lido que existe sobre a matéria, na Alemanha, pois Ebbinghaus era conhecido
pela sua personalidade agradável além de uma capacidade científica fora do comum, e ambas
se revelam neste livro. Entretanto, o livro, tal como o havia planejado, foi interrompido pela
sua morte. O primeiro volume fez tanto sucesso que lhe pediram que fizesse duas revisões
para novas edições, enquanto estava ainda trabalhando no segundo volume, o qual após sua
morte foi completado por Dürr. Por último, é interessante o fato de Ebbinghaus haver
inventado o teste de completação. Já em 1897, num estudo dos possíveis efeitos da fadiga, e
de uma distribuição mais satisfatória das horas de trabalho para os escolares - pesquisa que
lhe foi solicitada pela cidade de Breslau - Ebbinghaus usou este sistema, que tem provado ser
um dos mais úteis programas de testes.
96
Ecina Heidbreder
ção. Este trabalho incluía um estudo dos vários "auxílios" usados para memorizar. Os resultados
dessas pesquisas, publicados em três grandes volumes, constituem o tratado mais exaustivo
existente sobre a memória. Em psicofísica também Müller revisou cuidadosamente o acervo
existente, submeteu-o a uma análise crítica completa e introduziu modificações no método.
Uma das descobertas de Müller, feita por acaso em seu principal trabalho sobre psicofísica, foi a
que resultou no conceito de "condicionamento motor". Em seu estudo de levantamento de
pesos, incluiu observações introspectivas cuidadosas do processo pelo qual o paciente julgava
um peso ser maior do que outro. Parecia razoável supor, baseado em uma análise intelectual,
que para formar um juízo de "mais leve" ou "mais pesado" a imagem- memória do peso anterior
deveria ser comparada com a sensação ou memória da imagem remanescente do peso atual.
Entretanto, esta análise provou não corresponder aos fatos observados. Um paciente, ao
levantar um peso, geralmente sabia de imediato se este era mais leve ou mais pesado do que
um outro há pouco levantado; seu braço subia depressa se o peso era menor e mais devagar,
com maior dificuldade, se aquele era maior; havia-se inconscientemente "condicionado" para
um dado impulso, e o peso confirmava essa
disposição ou provava que ela fora exagerada ou insuficiente. Em outras palavras, seu
julgamento era resultado de uma reação muscular sentida imediatamente, e não de uma
comparação intelectual. Este fato, aparentemente simples, é muito signif icativo como mais
uma prova de que uma análise intelectual a priori do material psicológico pode conduzir a uma
descrição falsa dos fatos. Tal análise tem grande probabilidade de intelectualizar em excesso a
situação e é improvável que seja posta em dúvida até que uma observação verídica mostre
que os fatos, neste caso, são diferentes. A explicação de Müller da situação observada em
função do condicionamento motor é ainda mais significativa como sendo outra indicação de
que o lado motor da reação estava aos poucos sendo percebido. Neste caso, a interpretação de
Müller resultou no conceito geral de "condicionamento" do organismo, que tem provado ser
muito útil - às vezes até um tanto útil demais - na interpretação da conduta. É interessante
observar que no caso de Müller como no de Lipps, o reconhecimento do papel exercido pela
atividade muscular foi resultado da introspecção.
Paicologias do Século XX
97
Estes homens e muitos outros dedicavam-se à psicologia na Alemanha. Alguns eram mais
filósofos do que psicólogos em suas preferências, outros mais fisiólogos, mas como resultado
de seus trabalhos estava surgindo um ramo de conhecimento que não era filosofia e nem
fisiologia. A "nova" psicologia não era um estudo da alma, não era também um inquérito feito
por análise racional de sua simplicidade, realidade e imortalidade. Era um estudo, por meio da
observação e da experimentação, de certas reações do organismo humano não incluídas na
matéria de nenhuma outra ciência. Os psicólogos alemães, apesar de suas muitas divergências.
estavam a esse respeito empenhados numa empresa comum; e sua habilidade, sua aplicação e
a orientação comum de seus trabalhos fizeram dos aperfeiçoamentos, nas universidades
alemãs, o centro do novo movimento da psicologia.
Não foi somente na Alemanha, entretanto, que se estava desenvolvendo um novo ponto de
vista em psicologia. Também na Inglaterra havia quem estudasse os homens de uma forma
naturalista. Neste caso, o fato científico notável do século foi a publicação em 1859 do livro
Origin of Species (Origem das espécies) de Darwin, que apresentou perante o mundo científico
a possibilidade de encarar a humanidade não como uma criação especial e favorita, não como
uma raça à parte, não como objeto de um interesse especial no universo, mas simplesmente
como uma das muitas espécies animais evoluídas no decorrer dos acontecimentos naturais.
Uma vez que a psicologia é uma ciência de seres viventes, a teoria de Darwin apresenta
implicações óbvias. Significa, antes de mais nada, que não basta estudar o homem em si e por si
mesmo, porém é necessário considerá-lo também em relação às muitas forças que o moldam -
conhecer sua história e suas circunstâncias, seu desenvolvimento tanto genético quanto
filogenético, sua posição no cortejo de espécies animais, e os meios pelos quais ele se adapta
ao seu ambiente. As psicologias genética, comparada e dos povos tornam-se todas muito
importantes, e ao mesmo temp passa a ocupar primeiro plano o conceito das atividades
mentais como funções de adaptação. De certo modo, a psicologia científica da Alemanha foi
formada nos moldes da f ísica. Surgindo em grande parte da tentativa de compreender os
órgãos dos sentidos como modelos mecânicos, e influenciada por este fato em sua maneira de
enfrentar a vida psíquica, empreendeu a tarefa de descobrir em que partes elementares podem
ser analisados os estados mentais, e deter-
98
Edna Heidbreder
99
minou as maneiras em que estas partes são combinadas. A psicologia alemã, em grande parte,
era das que mantinham um modelo mecânico à sua frente; porém Darwin deu à psicologia
outro padrão. À luz de sua concepção, o homem não era somente para ser analisado
minuciosamente; era também uma unidade num sistema fora de si mesmo, para ser estudado
em relação com sua história e seu ambiente.
Sir Francis Galton, primo de Darwin, foi o primeiro representante desta idéia em psicologia. Ao
contrário de seus colegas alemães, Galton não era psicólogo profissional. Era um homem calmo,
cuja viva curiosidade e inteligência extraordinariamente perspicaz foram atraídas para várias
ciências. Deparando com problemas psicológicos no decorrer de suas variadas atividades
intelectuais, encarava-os naturalmente de um ponto de vista um tanto diverso daqueles dos
pesquisadores dos laboratórios alemães. Um dos principais interesses de Galton era a eugenia,
e por meio dela foi levado a considerar o problema da herança das
características mentais, para cuja solução suas principais contribuições são os livros Hereditary
Genius, English Men of Science, Natural Inheritance e Inquiries into Human Faculty (Herança da
genialidade, Homens de ciência ingleses, Herança natural, Investigações sobre a faculdade
humana). Nos seus estudos neste setor, Galton aperfeiçoou vários métodos que se tornaram de
uso comum, dos quais podem ser mencionados o método biográfico, o da história da família, o
estudo da semelhança entre os gêmeos e a comparação entre as raças. Baseado em suas
pesquisas, chegou à conclusão de que a capacidade mental é algo inerente ao individuo, alguma
coisa que não depende basicamente de treino. Acreditava que os homens que conseguem altas
posições possuem uma capacidade fora do comum, e também que os homens realmente
capazes tornam-se famosos apesar das circunstâncias adversas.
dois tipos de instrumentos: primeiro, testes para revelar as diferenças de capacidade entre os
indivíduos; e segundo, métodos estatísticos para analisar o grande volume de dados
quantitativos que tais testes proporcionam. Galton idealizou as duas coisas e muito fez para
mantê-las bem estabelecidas em psicologia. É, às vezes, chamado de pai dos testes mentais. Um
"teste", deve-se notar, é um artifício para revelar a habilidade individual em uma dada ação, e
não para analisar o processo em si. Assim diferencia-se em propósito da experiência típica, que
é orientada no sentido de descobrir algo, não sobre o indivíduo, mas sobre o processo que está
sendo examinado. Esta diferença pode ser exemplificada por meio da técnica do tempo de
reação. Se for usado como teste, o método do tempo de reação determina simplesmente a
posição de um indivíduo numa escala, mostrando onde o mesmo se situa em relação aos outros
membros do grupo com referência ao item único, a velocidade de reação. Se for usado como
experimento, essa técnica abrange análises perfeitas, objetivas e subjetivas, tais como as
descritas acima. Como experimento, seu objetivo não é descobrir um fato isolado sobre um
indivíduo, mas tudo o que for possível, dentro das condições da experiência, sobre o processo
em si. Galton também recorria aos elementos estatísticos. Observou a curva de probabilidade
em seus estudos, dispôs os seus casos em séries que foram consideradas as antecedentes das
modernas escalas de avaliação, e elaborou um método para representar graficamente o dispor
quantitativamente o grau de relação entre duas variáveis, obtendo assim o que se chamou de
"índice de correlação". Seus estudos sobre a teoria da estatística foram aperfeiçoados por seu
discípulo, Karl Pearson, que elaborou a fórmula do produto-momento para obter o coeficiente
de correlação, agora amplamente usada.
Nenhuma descrição de Galton seria completa sem uma referência especial sobre o seu famoso
estudo da imaginação e seu trabalho sobre a associação, menos famoso mas de igual
importância. Neste último, foi seu próprio paciente e tentou uma análise de um grupo de
associações reais. Usou setenta e cinco palavras como estímulo, registrou as duas primeiras
associações de cada uma delas, mediu o tempo necessário para as duas associações, e tentou
descrever o seu conteúdo em função de sua própria experiência anterior. As "associações"
usadas por Galton eram tanto palavras isoladas quanto imagens mentais, que naturalmente
tinham de
Psiologias do Século XX
100
Edna Heidbreder
Psicologias do Século XX
101
ser descritas. O método foi quase de imediato aproveitado por Wundt, que o simplificou e
alterou em parte, principa'mente exigindo que a cada palavra-estímulo correspondesse uma
única resposta, controlando melhor as condições, e reduzindo o todo a um método mais
uniforme, que proporcionasse respostas suscetíveis de serem medidas em relação ao tempo,
classificadas e tratadas quantitativamente. Dessa forma, o estudo de Galton deu origem a
experiências sobre associação livre e controlada, que se tornaram um dos métodos mais
proveitosos na pesquisa dos processos mentais mais complexos, intelectuais e emocionais,
tanto em pacientes normais quanto nos anormais.
Assim, Galton, que não era psicólogo e cujo interesse pela psicologia era em grande parte
casual, contribuiu mais para essa progressista ciência do que muitos profissionais assíduos. Fez
incu - idas nos campos da associação, imaginação e h eia, ndo introduzido, em todos eles,
métodos p afi ente v5 de pesquisa. É largamente responsável p i rmflor ce te da moderna
psicologia:
o estudo das diferenças individuais. Além disso, toda a sua maneira de estudar a psicologia era
diferente daquela dos cientistas alemães. Ao estudar os processos integrais e os organismos
completos, tal como apareciam ao senso comum, completou o método de análise minuciosa
exercida nos laboratórios alemães com um outro de observação que utilizava conjuntos
maiores como unidades, que revelava problemas de outro teor, e que os apresentava sob uma
nova perspectiva.
102
Edna Heidi,reder
Psicologias do Século XX
103
Todos esses movimentos, assim na Alemanha como na Inglaterra e na França, faziam parte
daquele processo altamente complexo pelo qual veio a lume a psicologia atual. Como ciência,
não resultou do trabalho de um só homem ou de um só grupo. Não surgiu em conseqüência
de um problema ou de um conjunto deles. Foi, na realidade, uma das muitas manifestações do
modo de pensar científico que caracterizou a vida intelectual do século XIX. Não há dúvida de
que o centro do movimento estava nas universidades alemãs, e a "nova" psicologia, como
começava a ser conhecida. ligava-se geralmente com aquela desenvolvida na Alemanha,
principalmente com a do laboratório de Leipzig. Porém, em toda parte havia indícios de que o
pensamento científico havia encontrado o seu lugar na psicologia. Durante a segunda metade
do século XIX, a psicologia estava exercendo atividades em múltiplos setores. Estava
adquirindo técnicas, equipando laboratórios, realizando pesquisas e criando escolas e
sistemas. Como resultado, havia assegurado o reconhecimento dos eruditos como disciplina
independente, e na última década do século, instalara-se definitivamente como ciência. Onde
quer que os estudiosos se reunissem para observar mais do que para refletir sobre material
psicológico - embora pudessem divergir em suas definições formais - onde quer que
encarassem a sua matéria como parte de um mundo natural, onde quer que tentassem
observar com o auxílio de métodos experimentais e quantitativos as condições em que
ocorrem ou deixam de ocorrer os processos psicológicos, ali havia começado a psicologia
científica.
BIBLIOGRAFIA
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1925).
Woodworth, R. S., Contemporary Schools of Psychology (Nova lorque, The Ronald Press, 19
ÍNDICE ANALÍTICO
97
Agrupamento, 301
Ambivalência, 338
295, 321
Antecipação da psicologia da Gestatt, 292
Aristotélicos, 16
Associação, 37, 43, 55, 66, 99, 286, 295. Ver também Associacionismo e Associação livre
Associacionismo, 39, 43, 47, 53, 54, 55, 57, 140, 147, 151, 157, 191,
Atomistica, 45
Átomos, 28, 29
363
Auto-erotismo, 339
Behaviorismo, 33, 131, 20'7-249. 266, 267, 281, 315, 323, 365, 368
Biologia, 14, 28. 97, 141, 147, 176, 180, 241, 312
Boneco. 116
Calvinismo, 53
Causalidade, 49, 51
"Como se', 21
Concepção, 163
Condillae, 61
315, 337, 365. Ver também psicologia do ato, conteúdo psicológico e introspecção
Consciente, 337
Conteúdo psicológico, 91, 115, 132, 136, 180, 194, 365. Ver também psicologia do ato,
conteúdo psicológico e introspeção
Continuidade da consciência, 59
88
Critica do conhecimento, 31, 33, 39, 41, 43-44, 50, 66. Ver também Epistemologia
Definições formais (subject-matter), 102, 113v 150, 194, 215, 251, 265, 367, 370
Demócrito, 29
Descartes, René, 39
Determinismo, 29, 143, 208, 254, 281. Ver também Livre arbitrio
Dialética, 32
Dinamismo, 343n.
Discriminação, 83
Disposto ("Set"), 84
Distância tonal, 93
Dons, 275
Dualismo, 34, 41, 58, 192, 195, 204, 208, 268, 314, 368. Ver
"E-Conexões", 295
Einstein, teoria, 18
Elementarismo, 28, 146, 150, 186, 190, 286, 294. Ver também Associacionismo, Atomismo e
Elementos
Elementos, atributos dos, 124 Elementos estatisticos, 99. Ver também Métodos quantitativos
em psicologia
Emoção, 62, 129, 170, 219, 274, 278, 280. Ver também Psicanalise e Homem racional
"Empatia", 93
Energia especifica, 73
E-R, 271
Epistemologia, 27, 44, 66, 73, 300, 315, 323. Ver também Critica do conhecimento
Equação pessoal, 72
Equipotencialidade, 233
Edna Heidbrecler
bém Associacionismo
Esquizofrenia, 343
ética, 27, 66
Eugenia, 98
Exibicionismo, 343
Existencialismo, 11211.
83
Experiência em psicologia, 70, 71, 87, 121, 122, 155, 201, 256, 260,
311
Experimentalismo, 201
333
Fisiologia, 27, 73, 262, 286, 297. Ver também Sistema nervoso e Reflexo condicionado
Fixação, 339
"Gestaltqualitãt", 291
Gradiente, 313
Gradiva, 344
Habituais, 173
"Herança da genialidade", 98
"Herança natural", 98
Heterossexualidade, 339
Homem racional 33, 42, 176, 273, 341, 366, 367. Ver também Psicanálise e Intelecto
td, 345
Idade Média, 38
340
Inconsciente, 59, 65, 66, 329, 333, 335. Ver também Psicanálise
"lnslght", 307, 333, 367 Instinto, 53, 60, 167, 214, 219, 273, 307
Intelecto ativo, 37
Introspecção, 87, 88, 112n., 119, 154, 181, 195, 215, 246n., 256,
LibidO, 337
Literal, 353
.ivre arbitrio, 143, 173, 254, 282. Ver também Determinismo
Maquinaria, 308
Massa, apercepção, 64
Matéria e forma, 36
Mecãnico, 41, 42
Memória, 94
Metatisica, e psicologia, 25-67, 73, 118, 139, 234. 282-283. Ver tambem determinismo,
Epistemologia, Materialismo, Mecanicismo, Mente e Vitalismo
Elementos estatisticos
338, 346
"Nous", 30
Ordem, 30, 1
Ouvindo sons. 81
Paralelismo, Parte e o todo, a, 38, 66, 280. 281, 282. Ver também Gestalt e Forma
20, 374
389
390
Edna HidbrecJer
Persistência de sensação, 73
Personalidade, 223
Pineal, glândula, 41
Pluralismo, 176
Pré-clentifica, psicologia, 39
Pré-consciente, 336
Processos e substância, 38
comparativa
Psicologia aplicada, 15, 32, 37, 117, 130, 181, 202, 214, 226, 327,
375
Psicologia comparativa, 97, 117. Ver também Psicologia genética e Psicologia animal
Psicologia experimental, 90. 109, 131, 134, 140, 257. Ver também Psicologia do ato e
Psicologia
PsiconeUrOses, 343
Psicoses, 343
Qualidade primaria, 45
Questionário, 100
Qulmica mental, 56
Raciocinio, 165
Racional, homem, 33, 42, 176, 224, 341, 366-367. Ver também Psicanálise
Racionalismo, 39, 58
Racionalização, 342
Reação, 275-278
Regressão, 339
Reintegração, 55
República, 35
Res cogitans, 40
Seleção, 83
Sensacionalismo, 61
Senso comum, 30, 53, 116, 180.
"Set" (disposto), 85
Simbolismo, 334
Sinais locais, 91
27.
Substância material, 46
Tltchenerismo, 112
Tons, 93
Transferência, 330
Visão colorida, 95
Visão crepuscular, 73
Visão estereoscópica, 73
Vitalismo, 254, 282, 283, 308. Ver também Mecanicismo
Voluntarismo, 175
"Vorstellung", 151