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Clara Regina Rappaport

Wagner da Rocha Fiori


Cláudia Davis

Psicologia do Desenvolvimento

Volume 1

Teorias do desenvolvimento

Conceitos fundamentais Coordenadora:

Clara Regina Rappaport

Nt1729

1 4 reimpressão
ISBN 85-12-64610-1

(c) E.P.U. - Editora Pedagógica e Universitária Ltda., São Paulo, 1981. Todos os direitos
reservados. A reprodução desta obra, no todo ou em parte, por qualqi meio, sem autorização
expressa e por escrito da Editora, sujeitará o infrator, nos tem da lei ne 6.895, de 17-12-1980, à
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Impresso no Brasil Printed in Brazil

Sumário

Prefácio . IX

Capítulo 1 - Introdução . 1

1. 1 O que é a Psicologia do Desenvolvimento 1

• 2 Bibliografia 9

Capítulo 2 - Modelo psicanalítico (Wagner da Rocha Fiori) . . . 11

2. 1 Freud e a Psicanálise - o trabalho inicial II

2. 2 Consciente e inconsciente - o modelo topológico . . . 14

2. 3 Resistência e repressão 17

2 .4 As estruturas dinâmicas da personalidade 20

2.4.1 O Id 20

2.4.2 O Ego 25

2.4.3 O Superego 28

2. 5

Mecanismos de defesa

29
2. 5. 1

Repressão

30

2.5 . 2

Divisão ou cisão

30

2. 5 . 3

Negação ou negação da realidade

30

2.5.4

Projeção

31

2. 5 . 5

Racionalização

31

2. 5 . 6

1ormação reativa

31

2.5.7

Identificaçã
32

2.5.8

Regressão

32

2 . 5 .9

Isolamento

32

2. 5. 10

Deslocamento

33

2.5.11

Sublimação . .

33

2. 6

Sexualidade e libido

33

2. 7

Fases de desenvolvimento

35

2.7.1

Fase oral
'35

2.7.2

Fase anal

38

2. 7 . 3 Fase fálica . 4

2 . 7 .4 Período de latência 4

2 . 7 . 5 Fase genital 4

2. 8 A formação de sintomas 4

2 . 8. 1 Os atos falhos ou parapraxias 4

2. 8. 2 Os sonhos e o simbolismo 4

2. 8 . 3 Neurose e sintomas 4

2 .9 Leituras recomendadas 5

Capítulo 3 - Modelo piagetiano (Clara Regina Rappaport)

3. 1 Introdução

3 . 2 Alguns conceitos fundamentais

3 . 2. 1 Hereditariedade

3.2.2 Adaptação

3.2.3 Esquema

3 .2.4 Equilíbrio

3. 3 Características gerais dos principais períodos de desen volvimento 3 . 3. 1 Período


sensório-motor (0-24 meses)

3 . 2. 3 Período pré-operacional (2-7 anos)

3 .3 .3 Período das operações concretas (7-1 1, 12 anos)

3 . 3 . 4 Período das operações formais (12 anos em diante)

3 .4 Bibliografia
Capítulo 4 - Modelo da aprendizagem social (Cláudia Davis)

4. 1 Aprendizagem social

4. 2 Aprendizagem e expectativas

4. 3 Aquisição e desempenho: uma distinção necessária . .

4 . 3. 1 Aprendizagem por observação: aquisição versus desem penho 4.4 Desenvolvimento da


personalidade segundo a visão da teoria da aprendizagem social

4. 5 Variáveis cognitivas e sua influência no comportamento

4. 6 Resumo e conclusão

4. 7 Bibliografia

Capítulo 5 - Conclusão

VI

Prefácio

O leitor habituado às extensas listas de publicações na área da Psicologia do Desenvolvimento


pode estranhar o aparecimento deste trabalho. Qual a utilidade de mais uma publicação na
área? Quais as novidades a serem introduzidas? Quais os pontos críticos a serem discutidos?
Certamente estas e outras questões virão à mente do leitor quando informado desta nova
publicação.

Vamos esclarecer então que os nossos objetivos se referem mais à apresentação e


sistematização do conteúdo das aulas de Psicologia do Desenvolvimento, ministradas pelos
autores na Faculdade de Psicologia das Faculdades Metropolitanas Unidas, desde seu início em
1976.

Durante estes anos de magistério, de convívio com a bibliografia existente e também diante da
necessidade de formar psicólogos eficientes, de bom nível, com possibilidades de atuar tanto no
sentido profilático como terapêutico com as nossas crianças, deparamo-nos sempre com um
impasse. Qual seria o livro ou os livros mais adequados para nossas finalidades? Várias
tentativas foram feitas, tomando sempre por base obras de autores de outros países que
desconhecem a nossa realidade. E. essas tentativas, embora muito discutidas pela equipe,
sempre se revelaram insatisfatórias. Se, por um lado, um manual abrange uma vasta gama de
itens, por outro lado, perde em profundidade. Se abandonamos os manuais e indicamos
inúmeras obras aos alunos, ganhamos em profundidade. mas perdemos a unidade e a
seqüência, além de onerá-los excessivamente.

Diante dessas dificuldades e de outras mais, cuja enumeração se tornaria cansativa para o
leitor, decidimos aceitar o convite para uma apresentação sistemática de nossas idéias e de
nossas vivências na área da Psicologia da Criança e da Adolescência.
preciso, entretanto, deixar bem claro que não temos a pretensão de esgotar o assunto ou de
eliminar a necessidade de uma consulta mais profunda às outras obras da área e de uma
reflexão crítica a respeito delas. Isto porque entendemos que a função de um curso
universitário, que pretenda formar psicólogos,

consiste não apenas em transmitir informações aos alunos, mas em proporcionar-lhes um


ponto de partida para a análise crítica do comportamento da criança e para o entendimento
do significado de suas manifestações comportamentais, a partir de um campo coerente de
informações teóricas. Oferecer-lhes condições de entender por que uma determinada criança
atua de uma certa maneira, num dado momento de sua vida. Pretendemos contribuir,
portanto, para a formação de um profissional competente que, a partir de um conjunto de
conhecimentos teóricos, possa entender a criança brasileira e contribuir para que o seu
desenvolvimento se realize de maneira saudável. Certamente não será o psicólogo isolado
quem irá solucionar os grandes problemas enfrentados pela população jovem de nosso país.
Mas, temos certeza, é com base numa formação sólida e no trabalho em equipe com outros
profissionais, de inúmeras especialidades, que poderemos ter uma participação mais efetiva na
solução destes problemas. Propomos, portanto, que a função da Psicologia do
Desenvolvimento consista não apenas em fornecer subsídios para o atendimento clínico da
criança com distúrbios mais ou menos graves, mas que ofereça um conjunto de conhecimentos
teóricos, de pesquisas científicas que realmente capacitem o profissional a atuar nas famílias,
nas escolas, nas instituições da comunidade, informando, educando, mostrando quais as
condições necessárias para um desenvolvimento saudável. Quais as condições ambientais
adequadas para otimizar o rendimento da criança na escola, qual o conteúdo programático
que a criança tem condições de assimilar, qual a estrutura e a
dinâmica da inteligência e da afetividade da criança em cada faixa etária? Todas estas questões
poderão ser respondidas pelo psicólogo escolar, evitando assim, muitas vezes, o surgimento
de distúrbios de comportamento ou de aprendizagem pelo conteúdo ou metodologia de
ensino inadequados.

Quais as condições que devem ser criadas na família, especialmente nas famílias de
populações carentes, para se evitar o abandono e a delinqüência do menor? Qual a
importância do relacionamento social e da exposição aos meios de comunicação de massa
para a formação da personalidade da criança?

Acreditamos que, ao longo das últimas décadas, a Psicologia do Desenvolvimento vem


adquirindo maturidade para responder a algumas destas questões. Esperamos, então, que os
nossos estudantes de Psicologia se compenetrem da extensão e da complexidade do assunto
em que estão se iniciando. E acreditamos realmente que só a partir de um conhecimento
profundo da bibliografia teórica e de pesquisa, aliado à observação constante da criança, é que
poderão adquirir competência para um trabalho fecundo e produtivo.

VIII

Quanto a nós, pretendemos, modestamente, contribuir para este processo de formação com a
apresentação desta obra, que nada mais é do que o resultado da nossa experiência.
O conteúdo será apresentado numa série de quatro livros. O primeiro dará ao leitor uma idéia
geral de três modelos de desenvolvimento, que são: o modelo psicanalítico, o modelo
piagetiano e o modelo de aprendizagem social. Os demais representarão um aprofundamento
e uma ampliação destes conceitos iniciais em cada fase da infância.

Assim o segundo volume tratará da Psicologia da Gravidez, realçando a importância do estado


emocional da mãe durante a gestação e o parto como determinante do tipo de vínculo que irá
estabelecer com seu filho, fator sem dúvida fundamental para a vida da criança. Dará ainda
uma visão do desenvolvimento na fase inicial da vida, mais especificamente na idade de zero a
dois anos. Para tanto, apresentará a organização afetiva, cognitiva e social do bebê,
isoladamente; mostrará depois como esses diferentes aspectos do desenvolvimento se
integram no que poderíamos denominar "organização inicial da personalidade".

Já o terceiro enfocará a denominada idade pré-escolar com todo o seu encanto e riqueza.
Veremos o modelo psicanalítico realçando a importância do relacionamento da criança com
seus pais como determinante de um futuro ajustamento de personalidade. Piaget mostrará as
limitações do pensamento egocêntrico que determina uma visão distorcida da realidade. E,
finalmente, do ponto de vista social, veremos a criança dando seus primeiros passos fora da
família, em direção à sociedade mais ampla.

O quarto e último tentará suprir uma lacuna na bibliografia da Psicologia do Desenvolvimento,


qual seja, a de apresentar uma integração dos conhecimentos sobre a idade escolar, que será
marcada principalmente pela freqüência à escola primária e pelas aquisições intelectuais
devido ao incremento do pensamento lógico.

Incluirá ainda o estudo da adolescência, focalizando a importância deste período na busca da


individualidade e da autonomia, com todos os conflitos que lhe são característicos. Mostrará o
adolescente às voltas com modificações corporais, emocionais, sociais, intelectuais que
rompem não apenas o seu estado de equilíbrio emocional, mas o de toda a família, requerendo
uma reestruturação de sua dinâmica.

Clara R. Rappaport

Ix

Capítulo 1

Introdução

1.1 O que é a Psicologia do Desenvolvimento

Representa uma abordagem para a compreensão da criança e do adolescente, através da


descrição e exploração das mudanças psicológicas que as crianças sofrem no decorrer do
tempo. A Psicologia do Desenvolvimento pretende explicar de que maneiras importantes as
crianças mudam no decorrer do tempo e como essas mudanças podem ser descritas e
compreendidas.*
Note-se que esta preocupação com o estudo da criança é bastante recente em termos de
História da Humanidade. Até época relativamente próxima ao século XX, as crianças eram
tratadas como pequenos adultos. Recebiam cuidados especiais apenas em idade precoce. A
partir dos 3 a 4 anos participavam das mesmas atividades que os adultos, inclusive orgias,
enforcamentos públicos, trabalhavam nos campos e vendiam seus produtos nos mercados,
além de serem alvos de todo tipo de atrocidades pelos adultos.

A partir do século XVII, a Igreja afasta a criança de assuntos ligados ao sexo, apontando as
inadequações que estas vivências traziam à formação do caráter e da moral dos indivíduos.
Passaram a constituir escolas onde, além da preocupação básica com o ensino da religião e da
moral, ensinavam-se habilidades como leitura, escrita, aritmética, etc.

Esta atuação foi evidentemente limitada, embora tenha sido importante no sentido de apontar
as grandes diferenças entre as personalidades das crianças e dos adultos. Esta limitação se
refere tanto aos objetivos específicos propostos para a educação, como aos métodos utilizados
e ainda ao pequeno número de crianças atendidas.

* As abordagens mais recentes a respeito do desenvolvimento humano consideram-no como


um processo que se inicia na concepção e termina com a morte do indivíduo. O leitor
interessado nas várias etapas evolutivas da vida adulta poderá consultar as obras de Erikson
(1972 e 1976).

Mas despertou a consciência da humanidade para uma reflexão acerca do assunto, e grandes
filósofos dos séculos XVII e XVIII passaram a discutir aspectos da natureza humana, baseados
nas suas próprias concepções a respeito da criança.

Já no século XIX e mesmo no início do século XX observamos urna preocupação mais ampla e
mais sistematica com o estudo da criança e com a necessidade de educação formal. Apesar
disso, a disciplina era exercida, tanto nas famílias como nas escolas, de forma violenta e
agressiva. Várias formas de castigo - como palmatória, ajoelhar no milho, espancamentos
violentos e quartos escuros - foram abolidas das escolas ainda recentemente, embora,
infelizmente, algumas dessas práticas continuem sendo utilizadas em nosso meio,
especialmente nas populações de baixo nível sócio-econômico-educacional.

Estas atitudes começaram a modificar-se a partir do estudo científico da criança, que se iniciou
efetivamente neste século. Podemos ver, portanto, que dentro de uma perspectiva histórica de
milhares de anos, em que predominou o total desconhecimento da criança, a nossa área de
estudos encontrou no seu início uma série de dificuldades para se impor como área realmente
séria, científica e útil, do ponto de vista social.

Iniciamos nossa história como ciência do comportamento infantil com uma tendência para
descrever os comportamentos típicos de cada faixa etária e organizar extensas escalas de
desenvolvimento. Como exemplo podemos citar o trabalho de Geseli, nos Estados Unidos, ou de
Binet, na França (este último mais preocupado com medidas da inteligência). A partir da
elaboração destas escalas. de uma certa forma, o desenvolvimento de cada criança poderia ser
medido e comparado com o que se esperava para a sua faixa de idade ou com o
comportamento considerado "normal". Por outro lado, através de um procedimento muito
diferente, qual seja a psicanálise de pacientes adultos com vários tipos de perturbações, Freud
chocava a humanidade no início do século XX com suas descobertas a respeito do
desenvolvimento da personalidade da criança e com a constatação de que certos
acontocimentos vi'enciados na infância eram os determinantes principais de distúrbios de
personalidade na idade adulta. Freud causou um impacto decisjvo ao mostrar a importância
dos primeiros anos de vida na estruturação da personalidade, determinando o cursc do seu
desenvolvimento futuro no sentido da saúde mental e da adaptação social adequada OU da
patologia. A idéia e a metodologia de trabalho de Freud, que serão expostas no próximo
capítulo deste livro, tiveram também o mérito de mostrar a presença de processos
inconscientes em

todas as fases da vida (derrubando o mito do homem racional) e da sexualidade infantil.


Apesar de ter estudado pouco a criança em si, pois ele propôs a sua teoria de
desenvolvimento, com base principalmente na análise de pacientes adultos, Freud prestou
contribuição inestimável à nossa ciência. Muitas de suas idéias continuam sendo plenamente
aceitas, em nossos dias, ao passo que outras foram revistas pelos seus seguidores ortodoxos
ou dissidentes. De qualquer forma, apesar das críticas que hoje em dia possam ser feitas à
obra de Freud, seu nome continua presente entre os autores que mais auxiliam a
compreensão do desenvolvimento psicológico da criança.

A psicologia infantil, podemos atualmente conceituá-la de maneira bem ampla, bem como a
ciência, ou aspecto da ciência, que pretende descrever e explicar os eventos ocorridos no
decorrr do tempo que levam a determinados comportamentos emergentes durante a infância,
adolescência ou idade adulta. Pretende, pois, explicar como é que, a partir de um
equipamento inicial (inato), o sujeito vai sofrendo uma série de transformações decorrentes
de sua própria maturação (fisiológica, neurológica e psicológica) que, em contato com as
exigências e respostas do meio (físico e social), levam à emergência desses comportamentos.
Portanto, a nossa ciência pretende:

a) Observar e descrever os fenômenos (exemplo: choro, agressão, linguagem, solução de


problemas, etc.).

b) Explicar os fenômenos. Explicar quais os processos subjacentes, quais os mecanismos


psicológicos, internos, que atuam para possibilitar o aparecimento destes fenômenos
comportamentais.

Por conseguinte, a Psicologia Infantil pretende descrever e explicar o processo de


desenvolvimento da personalidade em termos de como e por que aparecem certos
comportamentos. Tenciona, portanto, conhecer os processos internos que direcionam o
comportamento infantil.

Para tanto, valemo-nos de pesquisas cuja principal finalidade é a obtenção da descrição


precisa dos comportamentos das crianças quer em situações naturais (lar, escola, parque) quer
em situações de laborório; e de teorias que propõem conceitos explicativos desses
comportamentos.
Exemplificando: ao estudar a interação mãe-criança, aspecto fundamental para a
compreensão da criança e da família, iniciamos pela observação de nossos sujeitos.
Selecionamos amostras de pares mãe-criança representativas de vários segmentos da
população, das várias faixas etárias, etc.

Recorremos então a um método de observação e registro de comportamento: observação no


meio natural e registro gráfico ou em filmes, aplicação de questionários e entrevistas, testes
de desenvolvimento, etc. A partir deste procedimento, denominado coleta de dados, temos
uma visão dos comportamentos emitidos pelos nossos sujeitos. Sabemos então como se
comportam mãe e filho, uma em relação ao outro, dentro de determinadas situações
delimitadas pelo nosso procedimento experimental.

Trata-se de um passo fundamental, sem dúvida, porém insuficiente. Não basta saber que a
mãe, ou as mães, tomam certas atitudes em relação a seus filhos. E necessário explicar quais
os fatores que determinam essas atitudes. Seriam características de personalidade da própria
mãe? Quais? Seriam as características da criança? Seriam fatores circunstanciais,
momentâneos? Seriam fatores externos à dinâmica da própria dupla (econômicos, por
exemplo)? Quais as repercussões que essas atitudes maternas terão no desenvolvimento da
personalidade da criança? E na própria seqüência da interação?

No momento então em que estas dúvidas são lançadas, torna-se necessário recorrer à teoria,
ou às teorias do desenvolvimento. Uma teoria do desenvolvimento se constitui num conjunto
de conhecimentos teóricos que oferecem subsídios para a explicação dos comportamentos
observados.

Fica claro então que o psicólogo do desenvolvimento, através da pesquisa (descrição precisa
dos fenômenos comportamentais individuais ou em situação de interação social) e da
teorização (tentativa de explicar e integrar os dados das pesquisas num todo coerente e
unitário), oferece subsídios para a compreensão:

a) do processo normal de desenvolvimento numa determinada cultura. Isto é, conhecimento


das capacidades, potencialidades, limitações, ansiedades, angústias mais ou menos típicas de
cada faixa etária.

b) dos possíveis desvios, desajustes e distúrbios que ocorrem durante o processo e podem
resultar em problemas emocionais (neuroses, psicoses), sociais (delinqüência, vícios, etc.),
escolares (repetência, evasão, distúrbios de aprendizagem) ou profissionais.

Assim, a Psicologia do Desenvolvimento é uma disciplina básica dentro da Psicologia, pois nos
permite conhecer e trabalhar tanto com as crianças como com os adolescentes e adultos.
Oferecemos inúmeras opções de aplicação prática de nossa ciência tanto no trabalho
profissional como psicólogos (clínicos ou escolares) ou ainda orientando profissionais de áreas
afins. Podemos auxiliar o educador, mostrando quais as habilidades, capacidades e limitações
de cada faixa etária nos vários aspectos da personalidade (motores, emocionais, intelectuais,
etc.), e assim ajudá-lo a estabelecer programas escolares e metodologias de ensino
adequadas, bem como programas esportivos e recreativos.

Podemos auxiliar o assistente social, ensinando-lhe como orientar as famílias no sentido de


proporcionar um desenvolvimento saudável; o médico, mostrando-lhe os componentes
emocionais dos distúrbios físicos, etc.

Enfim, a nossa ciência é muito abrangente e pode ter uma série de aplicações práticas.

O psicólogo do desenvolvimento pode optar por um trabalho mais ligado à pesquisa do


comportamento infantil, portanto um trabalho mais acadêmico, ou à aplicação prática. Neste
último caso, pode ainda atuar no sentido profilático ou remediativo, clínico.

Profilaticamente, podemos atuar junto às instituições da comunidade (família, escola, etc.),


procurando criar condições para que as crianças possam ter um desenvolvimento saudável,
clinicamente, auxiliando aqueles que, pelas mais diversas razões, estejam apresentando
distúrbios de conduta ou de personalidade.

Não há dúvida de que se torna necessário, no momento atual da sociedade brasileira (onde o
problema do menor vem assumindo proporções cada vez mais graves), uma intervenção do
psicólogo infantil ao lado de outros profissionais. A divulgação de nossas idéias junto às
famílias e às instituições educacionais pode contribuir para que as crianças carentes recebam
um tratamento mais adequado. Se os pais forem apoiados e educados no sentido de
proporcionar mais afeto e mais estimulação para o desenvolvimento intelectual, e receberem
eles próprios este afeto e esta estimulação, poderemos então minimizar um pouco o
sofrimento de nossas crianças e diminuir o grau de abandono em que se encontram. Se as
escolas forem instrumentadas para elaborar programas educacionais mais adequados a estas
crianças, menor será o índice de evasão escolar e de desajuste social e profissional
conseqüente.

Enfim, é muito amplo o campo de trabalho tanto no sentido de conhecer a nossa criança
(pesquisa) quanto de aplicações práticas. Muito há para fazer. Mas, é sem dúvida necessária
uma grande disposição para o trabalho e para a sua avaliação crítica constante.

Por um lado, temos um grande conjunto de conhecimentos científicos e, por outro,


inumeráveis oportunidades de aplicações práticas. Por que atuamos tão pouco então? Ou por
que falhamos tantas e tantas vezes?

Pelo menos em parte, a resposta está na jovialidade da nossa ciência. Pois, apesar da
maturidade crescente que a Psicologia do

Desenvolvimento vem ganhando como ciência, notamos ainda muitos pontos falhos. E um dos
principais pontos em que falhamos é o dos métodos de pesquisa que temos.
Antes de iniciarmos o estudo do desenvolvimento humano propriamente dito, focalizaremos
rapidamente as dificuldades metodológicas inerentes às pesquisas neste campo, pois se
verifica que. acompanhando as investigações empíricas e clínicas a respeito dos fatores mais
importantes e da forma como atuam no desenvolvimento da personalidade infantil, tem
ocorrido, em paralelo, uma discussão sobre a adequação dos métodos de investigação, que,
em última análise, determinam a validade e a credibilidade dos dados.

Tão grande seria esta preocupação, que várias análises críticas foram feitas. Apenas na área da
interação mãe-criança podemos contar dez publicações.2

As pesquisas iniciais sobre o desenvolvimento da persona1idad infantil receberam influência


teórica da psicanálise e gradualmente tiveram seus interesses deslocados dos estudos
longitudinais para os efeitos que as características infantis exerciam na personalidade do
adulto.

Assim, historicamente, tais estudos se orientaram em duas direções diferentes: a da influência


do adulto sobre a criança em desenvolvimento e, posteriormente, a da influência desta sobre o
adulto.

A primeira destas linhas de estudo preocupou-se com as práticas de criação infantil e os traços
de personalidade dos pais associados com o desenvolvimento da personalidade da criança.

Coerentes com esta orientação, esses trabalhos tomaram emprestados métodos de


investigação usados em estudos clínicos e em explorações da personalidade humana, entre os
quais se destacam as entrevistas e os questionários. As possibilidades e limitações desses
procedimentos foram discutidas por Yarrow (1963), para quem as entrevistas representam
autodescrições de pessoas extremamente ego-envolvidas; sofrem, especialmente na classe
média, influência dos tabus e das expectativas sociais. Além disso, as entrevistas e
questionários, quando usados para identificar atitudes adotadas pelos pais, requerem
discriminações e sínteses muito difíceis para a mãe ou para o pai. Pede-se ao sujeito que
sintetize em duas horas de

1 Uma descrição destes métodos poderá ser encontrada nas seguintes obras:

Mussen, P.H.; Conger, J.J. e Kagan, J. Desenvolvimento e personalidade da criança. São Paulo,
Ed. Harper, 1977 ou Pikynas, J. Desenvolvimento humano São Paulo, Ed. McGraw-HiIl do Brasil,
1979.

2 Ver em Rappaport, C . R. Interação mãe-filho: influência da hiperatividade da criança no


comportamento materno. Tese - U.S.P.. 1978.

entrevista a essência do processo de interação com seu(s) filho(s);

e que ele se "lembre" dos seus sentimentos e dos de seus filhos; e

assim ocorre o perigo de fazerem observações gerais, baseadas

em respostas a situações específicas.


A todas essas limitações, acrescente-se que, quando vários membros da família são consultados
(pai, mãe, criança), os dados variam em função do informante. Verificou-se, por exemplo, que
quando uma das pessoas (digamos a mãe) sabe que a outra, o pai, também será consultado,
suas referências sobre o marido tendem a ser mais positivas do que quando sabe ou pensa que
apenas ela será consultada. Embora não invalide as respostas maternas, isso tudo coloca a
questão de se saber até que ponto elas refletem a situação. Usando estes procedimentos,
alguns autores estabeleceram relações comprobatórias dos princípios teóricos relativos à
socialização infantil; mas, neste caso, diz Yarrow (1963), as correlações são muito baixas,
indicando apenas que "existe algo" que não pode ser especificado.

A partir de 1945, além dos métodos correlacionais, um número crescente de pesquisadores


preferiu observar diretamente a criança, usando para isso basicamente dois métodos: a
observação naturalística, sem manipulação experimental; ou o método situacional, que
consiste no estudo de laboratório com manipulação e controle das variávejs.

Estes métodos apresentam, porém, sérias limitações (Lytton, 1971). Por exemplo, as
observações naturalísticas realizadas no lar, embora permitam observar algumas facetas da
socialização, como a hora do banho ou de dormir, contudo, podem perder dados valiosos. E
que situações de conflito ou punições podem ocorrer fora do horário de observação.

Geralmente, este método sem estruturação é usado com bebês, pois são sujeitos mais fáceis
de serem observados (o que talvez explique o fato de a literatura oferecer um número muito
maior de dados a respeito desta faixa etária do que das subseqüentes).

Na idade pré-escolar (2 a 6 anos), são mais raros os estudos deste tipo, quando se usam mais
situações de laboratório. Em relação à idade escolar (7 a 11 anos) existem alguns estudos com
objetivos específicos, por exemplo, o de verificar as reações dos pais e das crianças diante de
certas tarefas estruturadas.

Quanto à observação naturalística, os autores reconhecem que nela pode haver uma distorção
no sentido da desejabilidade social.

O laboratório ou a sala experimental de brinquedos também leva às mesmas distorções,


embora alguns controles, como mudança inesperada de situações, estejam sendo introduzidos
no

sentido de forçar o aparecimento de comportamentos espontâneos, não planejados.

Por outro lado, estudiosos com formação etológica, como Blurton Jones (1972) ou Lytton
(1971), criticam o que consideram como falta grave na metodologia de pesquisa da Psicologia
do Desenvolvimento, qual seja a de ter pulado o passo essencial de descrição e de estudos
normativos do repertório comportamental de seus sujeitos.

Embora sugiram para a obtenção de dados o uso dos métodos etológicos, esses autores
reconhecem a necessidade de cautela ao se transpor diretamente para o estudo de seres
humanos, métodos, técnicas e mesmo dados colhidos com outras espécies. A transposição de
tais modos e técnicas constituiria apenas uma tentativa inicial para tornar mais rigorosa e
válida a observação.

As dificuldades aqui apontadas devem ser levadas em conta quando se analisam as pesquisas e
os resultados delas derivados.

Além disso, não se pode deixar de pensar que fatores externos à própria criança ou à dinâmica
específica estabelecida entre os membros da família possam interferir ou mesmo dirigir o
processo de desenvolvimento.

Isto porque, conforme sugestões de Biurton Jones (1972), é apenas a partir de uma abordagem
mais ampla, que leve em consideração outras variáveis além das especificamente psicológicas.
que se poderá chegar à compreensão do processo do desenvolvimento humano.

Entre estas outras variáveis uma delas é o nível sócio-econômico-educacional a que o sujeito
pertence. E, neste sentido, é pertinente relembrar as maiores dificuldades metodológicas
encontradas por alguns pesquisadores ao trabalhar com sujeitos de classe baixa. Entre estes,
Zunich (1971) mostra a dificuldade de se obter um perfil real da interação mãe-criança em
uma amostragem de pessoas de classe baixa - vinte mães de meninos e vinte mães de meninas
de três a cinco anos de idade - através de um procedimento de questionário e também
observando diretamente a interação. Embora o autor acredite que esta forneça mais subsídios
(mesmo que a reticência ou inibição das mães interfira nos resultados) do que aquela onde os
julgamentos são feitos por indivíduos (os próprios sujeitos) menos qualificados do que os
observadores treinados e objetivos.

Estas rápidas considerações a respeito da metodologia podem ser realmente desalentadoras


para o pesquisador que procura uma forma de trabalho que possa conferir validade aos seus
resultados. Se os métodos tradicionais apresentam falhas e limitações compro-

vadas, e os mais recentes são ainda apenas tentativas, qual a melhor opção para o
pesquisador?

Nesse sentido lembramos ao leitor que deve estar ciente das dificuldades metodológicas da
pesquisa na área da Psicologia Infantil e da Psicologia em geral, quando os resultados práticos
e os conceitos teóricos forem analisados.

Apenas com o progresso na área de pesquisas, acompanhado da crítica constante sobre a


metodologia utilizada, é que se poderá chegar, talvez, a modelos mais rigorosos e mais
confiáveis de coleta e interpretação dos dados. Sem dúvida, são necessários novos modos de se
pensar e de investigar o processo de desenvolvimento humano, pois, quanto mais nos
aprofundamos em seu estudo, mais parece estarmos atentos a aspectos particulares, mínimos,
sem uma orientação subjacente, que nos permita uma visão global do processo.

Não que não sejam válidos os estudos de partes do comportamento, e até talvez seja esta a
única forma de se abordar cientificamente a conduta humana ou animal: mas porque esses
resultados, por vezes, se tornam fragmentados e não permitem que
o interessado em Psicologia do Desenvolvimento tenha uma visão adequada do processo como
um todo, dos encadeamentos e das influências biológicas e sociais que ocorrem, sem dúvida, a
todo momento, quer dando condições para o aparecimento de determinados comportamentos,
quer impondo exigências ou limitações para a manifestação desses mesmos comportamentos.

1.2 Bibliografia

1. Biurton Jones, N. Ethologjcal studies of child behavior. Cambridge, Cambridge Univ. Press,
1972.

2. Erikson, E. Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 1972.

3. Erikson, E. Infância e sociedade. 2. ed. Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 1976.

4. Lytton, H. Observational studies of parent-child interaction: a methodological review. Child


Development. Sept. 1971, v. 42, n. 3, p. 651-84.

5. Mussen. P. J.; Conger, 3. 3. e Kagan, J. Desenvolvimento e personalidade da criança. 4. ed.


São Paulo, Ed. Harper e Row do Brasil, 1977.

6. Pereira, O. G. e Jesuino, J. C. Desenvolvimento psicológico da criança. Rio de Janeiro, Ed.


Moraes, 1978. 1.0 v.

7. Pikunas, J. Desenvolvimento humano. São Paulo, Ed. McGraw-HjlI do Brasil, 1979.

8. Rappaport, C. R. Interação mãe-filho: influência da hiperatividade da criança no com


portamçnjo materno. Tese - U.S.P., 1978.

9. Smith, H. A comparison of interview and observatjon measures of mother behavior. lournal


o! Abnormal and Social Psychology, 1958. v. 57. p.

278-82.

10. Smith, H.C. Desenvolvimento da personalidade. São Paulo, Ed, McGrawHjIl dø Brasil, 1977.

11. Yarrow, L. Y. e Goodwin, M S. Some conceptual issues in the study o mother. Infant
interation. American Journal 01 Orrhopsychiatry, 1965

v. 35, n.° 3-5, p. 473-81.

12. Yarrow, M.R. Problems of methods in parent - Child research. Chil Development, 1963, v.
34, p. 215-26.

13. Zunich, M. Lower-class mother's behavior and attiudes toward chil rearing. Ps-vchological
Reporís, 1971, v. 29, p. 1.051-8.

lo
Capítulo 2

Modelo psicanalítico

Wagner da Rocha Fiori

2.1 Freud e a Psicanálise - o trabalho inicial

Um dos marcos que o século XX deixará para a posteridade é a psicanálise. Século de


explorações e conquistas, marcado pelas viagens espaciais, pela fissão e fusão do átomo, traz
também a descoberta do inconsciente como etapa significativa da busca que o homem realiza à
procura de si mesmo. Não se pode dissociar a figura de Sigmund Freud da origem e
consolidação do sistema psicanalítico. Lionel Trilling, ao resumir e organizar a imensa biografia
de Freud deixada por Ernest Jones, diz em sua introdução que, apesar da existência de grandes
nomes na psicanálise entre os colaboradores iniciais de Freud, nenhum deles trouxe qualquer
contribuição essencial à Teoria Psicanalítica. A única exceção é feita ao papel desempenhado
por Josef Breuer.

Freud nasceu em Freiberg, Morávia, em 1856. Ingressou na Universidade de Viena em 1873,


aos dezessete anos, tendo sido aprovado nos seus exames médicos finais em 1881. Sua
permanência na universidade foi prolongada, não por dificuldades pessoais, mas pela imensa
curiosidade científica que o levava a acompanhar os cursos de grandes cientistas e pensadores
que lá se encontravam. Em particular, os cursos de filosofia dados por Brentano, aos quais
Freud comparece por três anos, darão importante base humanística para a construção da
psicanálise. Com sua formatura e a perspectiva do casamento, Freud é obrigado a deixar
parcialmente a pesquisa e dedicar-se à clínica médica. Passa por várias enfermarias, já sendo
perceptível como seus interesses se organizam na direção de sua futura teoria. Dedica-se
assiduamente à psiquiatria, para terminar concluindo que os conhecimentos existentes não
eram significativos. No Departamento de Dermatologia interessa-se pelas conexões entre

II

a sífilis e várias moléstias do sistema nervoso. Durante este período inicial de carreira,
desenvolve ainda uma nova técnica para a coloração de tecidos nervosos pelo cloreto de ouro
e lança as bases para a utilização clínica da cocaína como anestésicó local. Nas décadas de
1880/1890 Freud fixa-se como neurologista de renome. Introduz explicações funcionais,
correlacionando áreas motoras, acústicas e visuais do cérebro. Seus trabalhos sobre a afasia,
paralisias infantis, hipertonias nos membros inferiores em enuréticos, bem como o trabalho
final sobre paralisia cerebral infantil já lhe assegurariam um lugar histórico na medicina.

O interesse de Freud pela psiquiatria, e particularmente pela histeria, o leva a conseguir uma
bolsa de estudos para estudar com Charcot, em Paris. Este psiquiatra havia se notabilizado por
seus estudos e trabalhos com pacientes histéricas. Seu prestígio havia reabilitado a utilização
médica da hipnose. Charcot descobrira que através da hipnose poderia eliminar
temporariamente a manifestação de sintomas histéricos. Descobrira também que, através da
hipnose, sintomas aparentemente histéricos poderiam ser criados artificialmente em suas
clientes. Freud acompanha seus seminários e sua descoberta de que os fenômenos histéricos e
a hipnose constituíam um mesmo processo. As perturbações que assumiam aparentemente
dimensões físicas não eram a expressão de um foco lesional, mas sim a manifestação de um
processo sugestivo, em geral traumático, que desencadeava a sintomatologia física. Na verdade,
a teoria pessoal de Charcot era mais física que funcional. Para ele a histeria era uma
incapacidade congênita de integrar funções psíquicas. Freud usa uma boa imagem para
representar a teoria de Charcot, comparando a histeria a uma mulher sobrecarregada de
pacotes, que não lhe cabem nos braços. Um deles cai e, ao abaixar-se para apanhá-lo, outro se
precipita. Ou seja, é como se o psiquismo, inatamente frágil, sempre apresentasse uma
defasagem na coordenação de suas funções. Este fenômeno era aparentemente confirmado
na prática clínica. Por exemplo, os sintomas de paralisia dos braços de uma histérica poderiam
ser suprimidos por sugestão hipnótica. Algum tempo depois eles ressurgiam ou, então, a
paralisia não voltava. mas outro sintoma físico ocupava seu lugar. Uma cegueira ou uma crise
convulsiva substituía a paralisia. Embora a teoria específica de Charcot não tenha tido utilidade
para a psicanálise, as correlações entre processos sugestivos e sintomas de doenças mentais
constituirão uma base para o pensamento de Freud.

Os trabalhos de Liebaut e Bernheim sobre sugestão pós-hipnótica. realizados na França


paralelamente aos de Charcot, constituirão outro ponto de partida para Freud. Sedimentarão a
idéia de que

12

existem processos inconscientes, subjacentes e determinantes sobre a consciência. Num


segundo momento, estas mesmas idéias permitirão a Freud abandonar a hipnose e permitir ao
paciente sozinho realizar a busca dos eventos traumáticos reprimidos.

O principal colaborador nas idéias iniciais de Freud é Joseph Breuer, médico vienense, mais
velho que Freud, e que já realizava na Áustria pesquisas de tratamento da histeria com a
hipnose, ao mesmo tempo que Charcot clinicava em Paris. Breuer se encarrega de uma
paciente histérica que entrará para os anais da psicanálise com o nome de Ana O. Ao ser
provocado o sonambulismo hipnótico como tranqüilizante, a paciente passa a narrar, durante
a hipnose, uma série de fatos passados, profundamente dolorosos. Estes fatos não faziam
parte do conhecimento consciente da paciente. Quando, ao despertar, a paciente pôde
reconstituir esta etapa do seu passado, com o auxílio de Breuer, os sintomas histéricos
desaparecem. O trabalho de Breuer no tratamento de Ana O. passa a ser o primeiro caso
clínico a ser tratado dentro do modelo que daria origem à psicanálise. O excelente nível
intelectual da paciente é também um dado importante que auxilia Breuer a se organizar em
seu tratamento. Este método de eliminar os sintomas com a retomada de recordações
traumáticas passadas, que se torna conhecido como Método Catártico, é pela primeira vez
definido e reconhecido pela própria paciente, que o define como "a cura pela fala". Ernest
Jones chega a definir Ana O., por esta observação, como sendo a pessoa que primeiro definiu a
técnica analítica.

Breuer introduz Freud em suas descobertas, envia-lhe pacientes para serem tratados pelo
novo método, tornando-se quase que uma espécie de protetor de Freud em seus trabalhos
iniciais. Juntos publicam suas descobertas, e a colaboração durará até a ruptura ocorrida
quando da elaboração da teoria da sexualidade infantil de Freud.

Em linhas muito gerais, estes são os dados iniciais da Teoria Psicanalítica que Freud continuará
a construir por mais cinqüenta anos. Alguns trabalhos serão os organizadores centrais do
modelo:

Os estudos sobre a histeria, escritos com Breuer em 1893-1895; A interpretação dos sonhos,
de 1900: Psicopatologia na vida cotidiana, de 1901; Três ensaios para uma teoria sexual, de
1905; os três casos clínicos de 1909-191 1 (O pequeno Hanz, O "homem dos rat&s"; O
Schreber); Os instintos e seus destinos, de 1915; Luto e melancolia de 1917; Mais além do
princípio do prazer. de 1920; O Ego e o Id. de 1923; Inibição, sintoma e angústia, de 1926.
Inúmeros outros trabalhos complementarão e explorarão

'3

as idéias centrais, abrindo inclusive a psicanálise para outras áreas como a arte, a religião, os
movimentos sociais, a lingüística.

O trabalho que presentemente desenvolvemos tem pretensões restritas. Visamos dar apenas
uma compreensão básica da psicanálise, necessária para o entendimento evolutivo da
afetividade humana. Ë um trabalho destinado aos cursos de Psicologia do Desenvolvimento
ministrado nas faculdades de Psicologia, Pedagogia, cursos paramédicos e ciências afins. Não
nos competiria, portanto, quaisquer revisões críticas da psicanálise. Neste volume, o primeiro
de uma série de quatro, tentaremos estabelecer como surgiram e o que significam os conceitos
básicos da psicanálise. Nossa orientação será estritamente freudiana, por julgar que aí está a
base fundamental do conhecimento em psicanálise. O texto não será pontilhado de
referências bibliográficas, ao nosso ver dispensáveis neste estágio inicial. Preferimos organizar,
ao final, a indicação de algumas leituras básicas de Freud, principalmente dos seus escritos
didáticos, por nos parecer esta a melhor maneira de uma organização inicial deste
conhecimento. Nos três volumes seguintes, desenvolveremos a evolução da libido, estágio por
estágio. Aí, sim, teremos campo para discussões detalhadas, nas quais incluiremos comparações
com os principais continuadores e dissidentes da obra freudiana.

2.2 Consciente e inconsciente - o modelo topológico

Atualmente nos é fácil aceitar a idéia da existência de processos inconscientes. isto não era
assim tão fácil nas etapas iniciais do desenvolvimento da psicanálise. A idéia despertou
ferrenha oposição, quer dentro dos círculos médicos, quer dos leigos. O próprio Freud
reconhece como uma atitude natural humana rejeitar a idéia de que somos dominados por
processos que desconhecemos, quando, na "Conferência introdutória à Psicanálise", de 1916,
mostra que a espécie humana sofreu três grandes feridas em seu narcisismo. A primeira foi
causada por Copérnico, ao tirar a Terra do centro do universo. A segunda, por Darwin que, ao
definir "A origem das espécies na luta pela vida", tira ao homem a pretensão de ser filho de
Deus. A terceira é a descoberta do inconsciente, que tira ao homem o domínio sobre sua
própria vontade.
A descoberta do inconsciente vem para Freud por dois caminhos diferentes e paralelos. De um
lado, a experiência clínica pioneira de Breuer; de outro, as experiências com sugestão pós-
hipnótica de Bernheim. Comecemos pelo segundo. Um paciente é hipnotizado e, durante o
sonambulismo, dá-se-lhe a sugestão de que, ao acordar, deverá ir para seu lugar. permanecer
quieto durante cinco minutos.

'4

ao término dos quais deverá abrir seu guarda-chuva, colocá-lo um pouco sobre a cabeça, e
depois fechá-lo. Em seguida, o paciente é despertado do sonambulismo. Normalmente ele volta
para seu lugar e, à medida em que o tempo passa, vai se tornando cada vez mais inquieto, até
que, num impulso, abre o guarda-chuva, coloca-o sobre sua cabeça por um momento e depois o
guarda. A pessoa está em geral um pouco constrangida com sua atitude. Não sabe por que foi
levada a fazer isto, mas é bastante lúcida para perceber o ridículo da situação, O hipnotizador a
aborda, questionando o porquê de sua atitude. Imediatamente uma ou mais explicações
aparentemente lógicas surgem, tentando explicar o estranho ato:

"achei que poderia estar chovendo e eu já ia sair", ou "fui verificar se não estava com defeito
para evitar surpresa na saída". Não consegue recordar o que a teria levado a abrir o guarda-
chuva. A ordem faz parte de um processo que não percebe, que é subjacente à sua consciência
e que, no caso específico, é dominante sobre a consciência. A própria atitude envergonhada nos
mostra que o ato foi consumado contra o que o sujeito acha que é adequado. Fica então
claramente definida a existência de dois processos psíquicos paralelos, um consciente e outro
inconsciente, sendo que o inconsciente determina as ações do sujeito, sem que este o
perceba.

Além da caracterização do consciente e inconsciente, dois outros processos psíquicos devem ser
considerados no exemplo acima, por permitirem posteriormente duas descobertas importantes
da psicanálise. O primeiro deles é que, apesar de o paciente realmente não se lembrar da
ordem que o levou a abrir o guarda-chuva, se o hipnotizador rejeita suas explicações iniciais e
continua insistindo para que se lembre do que realmente ocorreu, parece que num dado
momento o paciente faz um grande esforço de introspecção e de repente se lembra de tudo.
Recorda-se de ter sido hipnotizado, de ter recebido a ordem e de tê-la cumprido após o tempo
previsto. Sobram ainda ao paciente dois embaraços: não entende por que foi levado a cumprir a
ordem e não entende como, tendo a sensação de que sempre soubera da ordem recebida,
houve um momento em que não a recordou. Pode-se dizer que ele sabia da ordem. mas não
sabia que sabia, isto não é trocadilho. Veremos que um processo similar irá ocorrer com a
recordação de eventos traumáticos esquecidos.

O segundo processo psíquico curioso não chega a ficar bem caracterizado apenas neste
exemplo. Vimos que o paciente obedeceu a uma ordem que o deixou constrangido. E, se lhe
tivessem ordenado que fizesse algo que fosse ferir profundamente seus valores morais? A
ordem teria sido cumprida? Certamente que não. A

15
hipnose foi capaz de abrandar um pouco sua censura e até expô-lo a um certo ridículo, mas
jamais o faria cometer algo profundamente proibido. Não cometeria, por exemplo, um crime
sob efeito de sugestão pós-hipnótica. Uma paciente feminina não poderia ser levada a
desnudar-se por mero efeito de uma sugestão pós-hipnótica, a não ser que ela pessoalmente
não se incomodasse com tal procedimento. Normalmente, quando é dada ao hipnotizado uma
ordem que ele não pode cumprir, em geral acorda abruptamente do transe, bastante
incomodado, e torna-se em seguida resistente a entrar em nova hipnose, O que concluímos é
que, se a hipnose foi capaz de fazer surgir algumas pequenas atitudes que normalmente o
paciente não as teria, quando ele se sente ameaçado, não só se recusa a cumprir as ordens,
como torna-se particularmente resistente ao procedimento. Este dado pesará no posterior
abandono da hipnose na técnica de Freud.

O segundo caminho do estabelecimento do conceito de inconsciente, e o que marca o início da


elaboração da psicanálise, vem do atendimento clínico que Breuer propiciou a Ana O. Ela era
uma jovem de vinte e um anos, dotes intelectuais sempre elogiados pela literatura psicanalítica,
e que padecia de um quadro histérico típico: paralisias, perturbações nos movimentos oculares,
tosse nervosa. repugnância aos alimentos e inclusive um acesso de hidrofobia no qual ficou
várias semanas sem beber água, apesar da intensa sede, só sobrevivendo à custa de melões.
Apresentava ainda alguns estados de alteração psíquica, que Breuer chama de estados de
"absence". nos quais dizia coisas fragmentadas, sem que uma coerência de sentido fosse
estabelecida. Devemos lembrar que nesta época a medicina adotava em geral duas atitudes
diante da histeria: ou a ignorava, tratando os sintomas como mero fingimento consciente, ou
ainda presa às idéias de Hipócrates de Cós, tentava curá-la por alterações na posição do útero,
ou por extração do clitóris. Breuer, ao contrário, dedicou-lhe atenção permanente e procurou
utilizar-se da hipnose como processo de apaziguamento das tensões. Durante uma das sessões
de hipnose, Breuer repetiu para a paciente algumas das palavras que ela dissera em estado de
"absence", incitando-a a associar sobre elas. Ana O. passou então a relatar uma passagem triste,
ao leito de morte do pai, onde exausta entrou numa espécie de sono acordado, e alucinou ver
uma serpente negra que surgia para picar o enfermo. Quis afastar o réptil, mas sentiu seu braço
paralisado. Ao fixar os olhos em seu braço, viu seus dedos se transformarem em pequenas
serpentes cujas cabeças, localizadas nas unhas, eram caveiras. Assustada, tentou rezar, mas as
palavras lhe fugiram, só se lembrando de uma oração infantil em inglês. Toda

a história foi relatada a Breuer durante a hipnose. Ao despertar do sonambulismo, Ana O.


deixara de apresentar os sintomas de paralisia que a acompanhavam por mais de dois anos.
Idêntico procedimento curou-a da hidrofobia, ao recordar uma cena em que vira o "nojento"
cachorrinho da babá bebendo água em uma caneca. Nos dois casos percebemos um evento
traumático reprimido, que não faz parte da percepção consciente e que, ao ser recordado, traz
junto a vivência de toda emoção anteriormente reprimida. A recordação consciente do
trauma, com a correspondente descarga de emoções reprimidas, faz com que os sintomas
desapareçam.

Os Estudos sobre a histeria, publicados por Freud e Breuer em 1895, constituem o primeiro
trabalho de repercussão da psicanálise. Algumas conclusões, tiradas destes primeiros casos, já
definem a relação consciente e inconsciente. Fica estabelecida a existência de uma vida
psíquica inconsciente, paralela à consciência, e que pode ser dominante sobre esta. Estas
relações serão mantidas durante toda obra freudiana. A teoria de origem da neurose,
elaborada por Breuer, baseava-se nos chamados estados de "absence". Julgava ele que as
histéricas seriam sujeitas a estes estados, e, quando dentro deles, a capacidade de elaboração
de eventos afetivos seria reduzida. Isto significa que, durante o aparecimento destes estados, o
sujeito não teria condições de absorver ou integrar eventos psíquicos dolorosos. Os traumas
então sofridos não poderiam ser percebidos pela consciência. Eles passariam direto para o
inconsciente, lá permanecendo enquistados e sem elaboração. A reação do organismo ao
trauma enquistado produziria os sintomas. O doente fica então visto como passivo: não pode
reagir ao trauma e também não pode, sozinho, elaborar o trauma e eliminá-lo. A tarefa do
médico seria então utilizar a hipnose como um bisturi, penetrando no psiquismo e criando
condições para que o trauma ressurgisse à consciência, fora do estado de "absence", quando
então poderia ser experienciado com toda a carga afetiva que não pudera ser vivida na hora
traumática. Esse método de tratamento ficou conhecido como Método Catártico. Freud logo
em seguida o abandonará, com o abandono da hipnose.

2.3 Resistência e repressão

A utilização do Método Catártico e Hipnótico de Breuer logo traz problemas para Freud. Há
fracassos nos tratamentos e muitos pacientes não conseguem ser hipnotizados. Freud
desanima com a prática médica da hipnose. Talvez pelo grande respeito que ainda devota a
flreuer, não questiona a técnica, mas questiona-se a si pró-

16

17

prio, admitindo-se mau hipnotizador. Particularmente, julgamos que é muito difícil utilizar em
relações interpessoais uma técnica na qual não se confie. A técnica da hipnose é relativamente
simples, e não vemos como um bom profissional não conseguiria dominá-la. Pensamos que as
dificuldades alegadas por Freud já demonstram sua descrença para com a hipnose e a abertura
para a busca de novas soluções.

Freud então se recorda dos experimentos de sugestão pós-hipnótica a que assistira com
Bernheim. O paciente, que a princípio não se recordava da ordem do hipnotizador, conseguia
relembrá-la desde que, diante da insistência do hipnotizador, ele se esforçasse para consegui-
lo. Freud havia aprendido com Charcot que a histeria e a hipnose eram fenômenos similares.
Por que não tentar então com a histeria o mesmo procedimento que Bernheim utilizava na
recordação da sugestão pós-hipnótica? Freud abandona a hipnose e inicia uma técnica
sugestiva, onde afirma ao paciente que ele poderá se lembrar do acontecimento traumático
sofrido, que ele consciente- mente não sabe, mas que está guardado no inconsciente, O
procedimento sugestivo inicialmente utilizado consistia em afirmar ao paciente que, quando
Freud pusesse a mão sobre sua testa, ele se recordaria. O procedimento apresenta resultados
satisfatórios. As recordações inconscientes vão emergindo e entrando para a elaboração e o
domínio da consciência. Freud verifica que pode prescindir da hipnose e mobilizar a
colaboração do paciente em seu processo de descobrir o inconsciente.
Tivesse havido apenas uma alteração técnica no trabalho, isto quase nada acrescentaria à
psicanálise. Mas a descoberta de uma nova técnica quase sempre leva ao conhecimento de
novos fatos, a novas reflexões, e a mudanças na organização teórica do conhecimento. A
utilização do esforço consciente para a descoberta do inconsciente propõe várias questões:
Como o sujeito não fora capaz de se lembrar, antes, de um evento tão importante, o qual
acarretava inclusive perturbações em sua conduta? Por que fora necessário tanto esforço e a
colaboração do médico para que o evento viesse à consciência? O que impedia o acesso deste
evento ao consciente? Freud deduz que, se um fato tão significativo não podia emergir senão
com muito esforço, era porque havia uma força que se opunha à sua percepção consciente.
Freud define esta força, chamando-a de resistência. Ela mantinha o evento traumático
inconsciente, protegendo o indivíduo da dor e do sofrimento que seriam trazidos junto com
seu conhecimento. Quanto maior a dor a ser vivida com a recordação, mais a resistência era
mobilizada, tornando-se mais difícil a recordação do trauma. Esta força, a resistência, só

pode ser descoberta e compreendida com o abandono da hipnose. Deixa de haver uma
situação onde a hipnose era utilizada como um bisturi para remover o quisto traumático de
um paciente inerte. As forças do próprio paciente, as forças de sua consciência, passaram a ser
mobilizadas para vencer a resistência.

A descoberta da resistência leva imediatamente a outra questão:

se há necessidade de uma força tão grande para impedir que o trauma se torne consciente, é
sinal de que as recordações traumáticas não estão imobilizadas no inconsciente; se a resistência
deve ser aumentada na proporção em que o trauma é maior, quanto mais doloroso o evento
reprimido, maior é a força que ele deve fazer para se tornar consciente. Se o processo não quer
permanecer inconsciente, é lícito supor que nunca quis tornar-se inconsciente, e, se assim
ocorreu, é porque uma força maior, num momento de crise,
mobilizou-se para negar o conhecimento à consciência. A esta força que se mobiliza para que o
indivíduo não seja ferido em seus ideais éticos e estéticos, que tira da consciência a percepção
de acontecimentos cuja dor o indivíduo não poderia suportar, Freud chamou de repressão. Na
prática clínica o que se observa é o aparecimento da resistência. A repressão fica demonstrada
como conseqüência lógica da resistência.

Os processos psicológicos parecem ocorrer sempre paralelamente aos processos fisiológicos


ou biológicos básicos. Dizemos que a teorias psicológicas são anaclíticas (suportadas) ao
biológico. Psicologicamente, se alguém passa por um evento tão doloroso, que sente não
poder suportá-lo, é um processo de autoproteção reprimir

o acontecimento. Ao nível físico, o processo é similar ao psíquico. - Se alguém pisar em um


espinho, sentirá dor. Mas, se um traumatismo

lhe arranca o pé, possivelmente não sentirá dor em um primeiro momento. Se a dor é um
elemento adaptativo, necessário para que

o organismo se proteja, é exatamente a anestesia, ou seja, a ausência temporária da dor que


permitirá ao organismo tentar sobreviver diante da situação fortemente traumática. Tivemos a
oportunidade de acompanhar o caso de um jovem motociclista acidentado. Houve exatamente
a amputação do pé. Na hora o jovem nada sentiu. Teve forças e controle para providenciar um
torniquete com a manga da camisa, antes de desmaiar. O socorro demorou algum tempo, e seu
procedimento lhe salvou a vida. Tivesse ele ficado se contorcendo em dores desde o início,
possivelmente não se teria salvado. Assim também ocorre com os infortúnios psíquicos. A dor
pode ser suportada até um certo limite. Diante da perspectiva de uma grande dor, os
acontecimentos são reprimidos e escapam à percepção consciente Mas a repressão não os
elimina. O pé amputado

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não doeu na hora, mas doerá depois. O trauma reprimido estará permanentemente tentando
ocupar a consciência. A resistência o impedirá mas, como conseqüência da luta, teremos a
formação dos sintomas neuróticos.

A descoberta da resistência e da repressão marca a ultrapassagem de um modelo estático do


trauma, para um modelo dinâmico, de jogo de forças. O doente não é mais um fraco que
enquistou um trauma sem processá-lo. Agora é um forte que se mobilizou para afastar a
angústia. A sua aparente fraqueza decorre da imobilização dada pelo jogo de forças contrárias
que existe em seu interior. Esta luta interna consome suas energias, decorrendo daí o seu
rendimento externo inferior. É uma característica de o neurótico apresentar um rendimento
real inferior às suas capacidades potenciais. A descoberta da resistência e repressão marca
também a introdução do conceito de mecanismo de defesa.

2.4 As estruturas dinâmicas da personalidade

Embora pudessem explicar a dimensão do conflito interno, os conceitos de consciente e


inconsciente não puderam responder a algumas questões levantadas. Por exemplo, se por
motivos éticos e estéticos, o consciente não podia suportar a percepção de uma vivência e
mantinha permanentemente a resistência bloqueando esta percepção, isto poderia ser visto
como uma indicação inexplicável de que o consciente sabia o que não queria saber. Não se
pode considerar inadequado algo que não é conhecido. Aceitar que o consciente era o fator
desencadeante da repressão era o mesmo que aceitar que o reprimido era conscientemente
conhecido. Como explicar este processo? De onde partia a repressão? E onde estavam
localizadas as ditas aspirações éticas e estéticas que desencadeavam a repressão? Seriam
conscientes ou inconscientes? Ou ambas?

Por volta de 1920 Freud faz o que em seu Vocabulário de psicanálise, Laplanche e Pontalis
chamam de "a viragem" do modelo psicanalítico. Os conceitos tópicos de consciente e
inconsciente cedem lugar a três constructos psicanalíticos que constituirão o modelo dinâmico
da estruturação da personalidade: Id, Ego e Superego.

2.4.1 O Id

O Id é o reservatório de energia do indivíduo. É constituído pelo conjunto dos impulsos


instintivos inatos, que motivam as relações do indivíduo com o mundo. O organismo, desde o
momento do nascimefito, é uma fonte de energia que se mobiliza em direção ao
mundo, buscando a satisfação do que necessita para seu desenvolvimento. O conceito de
instinto parece explicar bem o mecanismo que se estabelece. Em função de seu desequilíbrio
homeostático, ou da necessidade do estabelecimento de relações evolutivas, o organismo
sente uma carência. Esta carência mobiliza as energias do organismo em direção à sua
satisfação. Mas, para que se satisfaça, é necessário que o organismo tenha um objeto que
corresponda a essa necessidade. Por exemplo, diante da fome, é necessário que se organize
uma imagem de alimento. Esta imagem é o que chamamos de objeto do instinto. E qual a
relação estabelecida entre a necessidade e seu objeto? No caso da fome, podemos dizer que é
a incorporação. A incorporação fica assim definida como o alvo do instinto. Logicamente, o
exemplo é simplificado. A relação não é apenas linear e direta. Quando a criança fantasia a
imagem do seio para sua saciação, não é apenas a fome que é trabalhada, mas também a
ligação afetiva com o seio, a construção da figura da mãe, as relações de bom e mau
estabelecidas, a adequação do processo mãe-criança, a confiança no mundo exterior, etc.

Nos trabalhos iniciais, quando Freud falava do inconsciente, definia-o como o conjunto dos
desejos reprimidos, com as relações que estes estabelecem. Neste aspecto, o conceito anterior
de inconsciente vai ser abarcado pelo de Id. Mas o Id não será apenas isto. Já vimos que ele é a
fonte da energia psíquica, além de ser o gerador das imagens que organizarão a canalização
destas energias. A este mecanismo de gerar imagens correspondentes às pulsões, Freud
chamará de "processo primário", constituindo-se ele no mecanismo fundamental de
manifestação do Id.

2.4.1.1 Características do Id

1.) É o responsável pelo processo primário. Diante da manifestação do desejo, forma, no plano
do imaginário, o objeto que permitirá sua satisfação. Um exemplo ilustrativo é o sonho, onde os
desejos vão tentando uma satisfação alucinatória ao nível das imagens geradas. Já vimos que
um desejo corresponde a uma carência que, ao ser satisfeita, gerará prazer. Os desejos não
podem satisfazer_se com objetos apenas alucinatórios, mas é necessário que uma imagem, ou
seja, um objeto alucinatório seja gerado, para que

o Ego, responsável pelas relações de realidade, possa satisfazê-lo na prática.

2.a) Funciona pelo princípio do prazer. Busca a satisfação imediata das necessidades. O
processo primário é sua tentativa

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21

alucinatória de satisfação imediata. Não questiona qualquer aspecto da adaptação do desejo à


realidade física, social ou moral. As interdições virão do Ego ou do Superego. O ld sempre
manterá o modelo de querer, e de querer a qualquer preço.

3.) Inexiste o princípio da não-contradição. Como não é dimensionado pela realidade, podem
estar presentes desejos ou fantasias mutuamente excludentes dentro da lógica. Voltemos aos
sonhos, que são a melhor maneira de exemplificarmos os processos do Id. Neles podemos
estar mortos e vivos ao mesmo tempo. Podemos entrar no fogo, e o fogo ser frio. Podemos
nos ver em dois lugares ao mesmo tempo. À medida em que o princípio da não-contradição
inexiste, todas as coisas são possíveis ao nível do Id.

4.) Ë atemporal. A única dimensão da vivência é o presente. Não há passado ou futuro, mas
existe a elaboração de uma dimensão única, vivida como presente. Reviver (recordar) é o
mesmo que viver. Nos sonhos, a recapitulação de um acidente é vivida como o próprio
acidente. Nos sonhos, um projeto de realização futura é vivido como realização presente. Nos
próprios devaneios que temos, ou seja, quando sonhamos acordados, transformamos em
realizações presentes os desejos com perspectivas de realizações futuras. Fantasiamo-nos
dentro do carro que gostaríamos de comprar. Quando compramos um bilhete de loteria,
surpreendemo-nos, fazendo planos para a utilização do dinheiro, como se já o tivéssemos
ganho.

5•a) Não é verbal. Funciona pela produção de imagens. Temos utilizado os sonhos para
exemplificar o Id. Mas quando nos recordamos de um sonho, já efetuamos uma elaboração
secundária sobre ele, ou seja, já o reduzimos ao domínio da linguagem. Em sua forma original,
os sonhos são basicamente plásticos. As imagens são criadas, fragmentadas, deslocadas,
combinadas, de forma a se adequarem à satisfação do desejo.

6.a) Funciona basicamente pelos processos de condensação e deslocamento, que são os


processos básicos do inconsciente. Na condensação, agrupamos, dentro de uma imagem,
características pertencentes a vários processos inconscientes. No deslocamento, as
características de uma imagem são transferidas para outra, com a qual o sujeito estabelece
relações como se fosse a primeira. A diferenciação é enquanto modelo, porque dentro do
funcionamento real os processos de condensação e deslocamento são superpostoS. Vejamos
um exemplo de cada processo. O primeiro é mitológico, e o segundo, tirado dos casos clínicos
de Freud.

Condensação

A imagem da água é um símbolo onírico considerado universal e simbolicamente ligado às


fantasias de nascimento. Sonhar com água é evocar fantasias ligadas ao nascimento ou ao
retorno à segurança do útero materno. Estudaremos melhor depois uma relação que agora
apresentaremos pronta: diante de um trauma emocional, tendemos a regressar a modelos
infantis de funcionamento psicológico. Quanto maior a perspectiva da angústia numa
frustração, maior a regressão que em geral efetuamos, como um processo defensivo. E o último
estágjo de uma regressão formal e temporal que podemos efetuar é a volta à tranqüilidade do
útero materno. Sandor Ferenczi, psicanalista colaborador inicial de Freud, chega a levantar em
seu livro Thalassa - Psicanálise das origens da vida sexual, a hipótese de que a regressão
transcende a própria mãe e vai até às origens da vida, o que seria um sentido mais profundo do
retorno ao meio líquido. Ficamos por enquanto com esta imagem do retomo à figura da mãe,
através do retomo em fantasia ao meio líquido inicial.

Uma outra fantasia original do homem é o medo de ser destruído pela mulher. Para isto
podemos buscar uma relação ontológica. Em suas iras, a criança pequena ataca em fantasia o
corpo da mãe, e isto poderá gerar um retorno persecutório onde a imagem feminina ficará
como um elemento prestes a destruí-lo. Como a agressividade inicial da criança é oral, a
fantasia decorrente será um temor de ataque oral. Combinado com as fantasias ligadas ao
temor de castração, isto produzirá no homem um temor de ser castrado por uma vagina
dentada ao penetrar na mulher. Ë lógico que a imagem da vagina dentada não aparece
literalmente ao neurótico, mas aparece simbolizada. Veja-se um excelente exemplo desta
fantasia no livro de Hanna Segal, Introduçâo à obra de ?yIe1a,zieKLi,K1eit. Se estas fantasias
existem ontologicamente, também o existem filogeneticamente. As mulheres dominavam o
meio de produção estável, a agricultura doméstica, e a fertilidade masculina era desconhecida.
A mulher era a única responsável pela existência dos filhos e continuidade do grupo. Os homens
eram elementos secundários no grupo social. Veja-se que a estátuas primitivas de deuses são
basicamente femininas, em oposição às atuais divindades masculinas de nossas religiões
contemporâneas. O papel da mulher fica ameaçado, diante da progressiva importância
econômica do homem, e principalmente com a evolução das guerras e da escravidão, e com a
descoberta da fertilidade masculina. Parece que foi uma última defesa do grupo feminino em
tentar controlar o domínio masculino, ritualizar a fertilidade do homem em festas religiosas.
Nestes rituais, um

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homem era eleito o representante da fertilidade, e, após fecundar a rainha do grupo, ou suas
virgens, ele era literalmente devorado pelas mulheres, ou era morto e seu sangue espargido
pela terra para despertar sua fertilidade. Tal qual no ritual de acasalamento da abelha rainha,
ou da aranha, o macho era destruído após cumprir seu papel biológico-simbólico. Vemos que
há, nas origens filo e ontogenética do homem, traços que levam a estruturar uma fantasia
básica de temor, onde a mulher aparece como devoradora.

Uma terceira relação que é fundamental é a satisfação orgástica

que a mulher representa para o homem. O prazer, sensualidade, a

beleza são elementos a,qpico que dirigem o homem em direção

à mulher. A expectativa orgastica é o ponto culminante da atração.

Este terceiro fator é tão evidente que não necessita maior análise.

Estamos verificando que há várias fantasias básicas que surgem no homem em sua relação
com a mulher: regressão-nascimento- água, fertilidade-destruição-canibalismo, atração-
prazer-sexualidade. O inconsciente formula então uma imagem que condenso todos estes
aspectos e surge a figura mitológica da sereia ou da iara. Ë a mulher que atrai, que seduz com
seu canto e sua beleza, que desperta a sensualidade masculina e que leva sua vítima para a
destruição dentro d'água, onde perece afogada (simbolicamente devorada pelo mar) ou é
literalmente devorada pela própria mulher, como ocorre com nossa mitológica iara. Ê inclusive
muito significativo que esta fantasia surja na mitologia grega, na nórdica, bem como entre os
grupos indígenas da América do Sul. A iara e a sereia se equivalem. Isto parece indicar que as
modalidades de fantasias condensadas nestas figuras são características universais,
manifestações arquetípicas do inconsciente filogenético da espécie.

Deslocamento
Freud acompanhou e orientou, através do pai, a psicoterapia de um garoto de cinco anos, que
sofria de uma fobia por cavalos. Não podia sair às ruas em função do pânico que a visão dos
cavalos lhe despertava. Tenha-se em mente que é um caso clínico da transição do século, e a
condução era de tração animal. No decorrer do estudo, fica claro que o temor inicial era de que
o pai o atacasse e castrasse. O temor de castração, de ocorrência normal, tornara-se tão
forte, no caso do garoto, que a angústia não pôde ser suportada. Mas como poderia sobreviver
um garoto de cinco anos, se o violento temor pelo pai lhe impedisse o convívio familiar? E como
conciliar tão grande temor com o igualmente grande amor devotado ao pai? Em um
nível inconsciente, o temor é deslocado do pai para os cava-

los. melhor não poder sair às ruas, do que não poder ficar em casa, e o amor pelo pai pode ser
preservado. Este é um exemplo didático do processo de deslocamento mas, como já vimos, os
mecanismos de condensação e deslocamento são em geral coexistentes. Vejamos como os
dois se combinam neste caso: o pai é uma figura grande, tem bigode e possui um pênis grande.
Estas características são abstraídas do pai, deslocadas e condensadas no cavalo: grande, com
focinheira e pênis grande. Há deslocamento na transferência das características e condensação
no seu reagrupamento, o que é permitido ao estabelecer a ligação simbólica pai-cavalo.

7.a) Finalmente, o Id é uma instância estruturalmente inconsciente. Todos os processos


descritos são estruturados sem a percepção ou participação do consciente. Devemos frisar que
o Id não é o inconsciente, mas é, em quase sua totalidade, inconsciente. Os desejos oriundos do
Id podem ser percebidos pela consciência, quando não sofrem repressão. E veremos a seguir
que as outras instâncias, o Ego e o Superego, são em parte conscientes e em parte
inconscientes.

2.4.2 O Ego

Embora esta estrutura já comece a se configurar nos trabalhos iniciais de Freud, sua
organização mais ou menos final fica elaborada com o trabalho O Ego e o Id, de 1923. O Ego
surge como uma instância que se diferencia a partir do Id, servindo de intermediário entre o
desejo e a realidade. Diferenciado a partir de uma formação instintiva, para Freud, o Ego se
estrutura como uma nova etapa de adaptação evolutiva do sujeito. Isto o leva a afirmar que o
Ego é acima de tudo corporal, ou seja, biológico. Aqui é interessante notar como os pontos de
partida de Ereiid Piag são similares nas origens: há uma formação instintiva inicial que se
desdobra em estruturas mais sofisticadas a partir da elaboração da realidade.

Imaginemos um bebê que tem fome. Ou lhe é imediatamente fornecido alimento, ou ocorre
uma violenta reação de desespero, expressa pelo choro. À medida em que as relações com a
mãe sejam satisfatórias, estabelece-se uma relação de confiança entre o bebê e ela. Diante da
fome, ele já pode aguardar um pouco, porque sabe que o alimento virá. Pode resistir por
alguns momentos sem crise. O rudimento de uma organização temporal começa a se
estabelecer. Há um "agora", com fome, que pode ser suportado, porque há um "depois", com
alimento, que é sentido como certo. Começam a ser estabelecidas as correlações entre o
desejo e a realidade. Progressivamente surgem vagidos diferenciados. Ainda não é

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25

linguagem, é apenas sinal. Mas a mãe já po 'e diferenciar os sons que pedem comi,cla, dos
gritos de desespero e dor. O Ego começa progressivamente a se diferenciar. Diante do desejo,
mobiliza-se para que a realidade possa satisfazer ao desejo. Havíamos definido o Id como o
nível dos instintos, o princípio do prazer, o funcionamento pelos processos primários.
Definimos agora o Ego como funcionando pelo princípio da realidade e pelos processos
secundários.

2.42.1 Características do Ego

Freud não teve a preocupação de delimitar pedagogicamente as características do Ego. De


seus vários trabalhos, podemos enumerar as seguintes características como constituintes do
Ego:

l.) Dá o juízo de realidade, funcionando pelo processo secundário, O Id dá o nível do desejo, o


nível do querer, independentemente das possibilidades reais de o desejo ser satisfeito ou não.
O Ego partirá do desejo, da imagem formada pelo processo primário, para tentar construir na
realidade caminhos que possibilitem a satisfação do desejo.

2.) Intermediário entre os processos internos (ld-SuperegO) e a relação destes com a


realidade. Num diagrama, o processo seria assim:

ld Ego Superego

Realidade

Diante da manifestação do desejo, duas proibições podem opor- se: as proibições moraís,
oriundas do Superego, e as interdições da realidade objetiva. Por exemplo, é um sonho humano
voar. Quantas vezes, nos nossos sonhos, magicamente alçamos vôo sem que tenhamos asas. O
desejo não conhece proibições. E necessário que o Ego, instância de realidade, nos estabeleça
limites, ou possibilite-nos a aquisição de instrumentos para o vôo. Se estivermos apenas no
nível do desejo, repetiremos o sonho trágico de Icaro, pois as asas da imaginação não vencem a
gravidade. As proibições com as quais o Ego lida não são apenas da ordem do real. Temos
internalizado uma instância censora, o Superego. Uma jovem criada dentro de uma organização
familiar de tradições morais nos moldes antigos provavelmente tenderá a ver a sexualidade,
notadamente a sexualidade pré-marital como algo pecaminoso e proibido. Abraçada ao seu
namorado, os desejos sexuais se manifestam. As proibições surgem tanto do lado real (risco de
gravidez, possíveis atritos reais com a

família) quanto do lado superegóico, ou seja, mesmo que o real esteja sob controle, que ela
racionalmente ache que a experiência será válida, que não há perigo de gravidez e que a família
não necessita saber de sua conduta, algo interno, não definido, proíbe-a de tentar. E o Superego
que se manifesta. Se ceder só aos desejos, corre o risco de não se adequar ao mundo físico e
social. Mas se permanentemente ficar presa às proibições, ela poderá ser imobilizada e não
evoluir, não poderá por si viver novas experiências e crescer com a elaboração de seus
resultados. Cabe exatamente ao Ego efetuar a conciliação entre os desejos e proibições
internas e os desejos e as proibições da realidade objetiva, de forma a possibilitar a atuação
conciliatória mais produtiva para o sujeito.

3.a) Setor mais organizado e atual da personalidade. O Id, como matriz instintiva, é uma
estrutura arcaica, filogenética. O Superego contém proibições que também são oriundas da
evolução da espécie, por exemplo, os tabus contra o incesto, o parricídio, o matricídio, o
filicídio. Os valores morais a serem internalizados são do grupo ao qual o indivíduo pertence,
portanto também anteriores a ele. Cabe ao Ego organizar uma síntese atual, tornando o
indivíduo único e original e permitindo-lhe uma adaptação ativa ao mundo presente em que
vive.

4a) Domina a capacidade de síntese. Aqui englobamos todas as funções lógicas do


funcionamento mental, que para a psicanálise são atributos do Ego. A memória e o
desenvolvimento do pensamento lógico e operatório estão aqui contidos. Resta lembrar que o
conhecimento epistemológico da construção do real é obra de Piaget. Para a psicanálise a
organização destas funções só interessa ao nível individual, quando as perturbações afetivas
comprometem seu funcionamento.

5.) Domínio da motilidade. O domínio do esquema corporal instrumental, ou seja, o domínio


das prax é uma função do Ego. A nossa atuação corporal é o nosso instrumento prático de
realização do processo secundário. E é exatamente por estar o domínio da motilidade situado
no Ego, que quando este se vê enfraquecido por distúrbios afetivos, a atuação corporal fica
prejudicada, rígida, estereotipada, perturbada em suas relações práxicas. Podemos
exemplificar isto com vários sintomas presentes, por exemplo, na histeria, na melancolia, ou
mesmo reportando-nos ao trabalho teórico de carta forma dissidente da psicanálise de Reich.

6.a) Organiza a simbolização. O processo primário é piástco. O processo secundário, ao


organizar a linguagem, organiza o' domínio sobre as fantasias e fornece um instrumento de
reter, elaborar e atuar sobre a realidade física e psíquica.

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7) Sede da angústia. Como instância adaptativa, o Ego é o responsável pela detecção dos
perigos reais e psicológicos que ameacem a integridade do indivíduo. De acordo com a origem
do perigo, classificamos a angústia em:

a) angústia real - normalmente denominada medo. o sinal que mobiliza o indivíduo diante da
perspectiva de uma agressão real. Tem inclusive uma dimensão biológica bem definida, ou
seja, diante do perigo uma descarga de adrenalina na corrente sanguínea mobiliza uma
vasodilatação muscular e uma vasoconstrição periférica e visceral, propiciando ao organismo
condições para lutar ou fugir.

h) angústia neurótica - é o temor existente no Ego de que o Id, ou seja, os desejos prevaleçam
sobre os dados da realidade. Na prática isto aparece numa espécie de sentimento de que
estamos enlouquecendo, ou de que não resistiremos ao impulso de matar alguém, ou de fazer
atos em que perderemos nosso controle.
e) angústia moral - é um sentimento acusatório no qual sentimos que erramos, que somos
maus, e nada mais poderá ser feito a não ser espiar a culpa. Este sentimento provém da
atuação de um Superego rigoroso que, ao perceber os desejos que condena, passa a punir
permanentemente o indivíduo como se a transgressão houvesse ocorrido. A confissão dos
pecados por pensamento, existente em nossas religiões, é um bom exemplo do processo. Por
imaginar um ato desonesto, a acusação superegóica de criminoso nos perseguirá, ao imaginar
uma atuação sexual nos sentimos imorais e desmerecedores do amor das outras pessoas.

2.4.3 O Superego

A terceira das instâncias dinâmicas da personalidade é o Superego, responsável pela


estruturação interna dos valores morais, ou seja, pela internalização das normas referentes ao
que é moralmente proibido e o que é valorizado e deve ser ativamente buscado. Ao estudarmos
o Id e o Ego, várias de nossas referências já caracterizaram a atuação do Superego. Cabe-nos,
portanto, apenas algumas conclusões finais. O Superego se divide em duas partes
complementares. A primeira é chamada de Ego Ideal e corresponde à internalização dos ideais
valorizados dentro do grupo cultural, os quais o indivíduo deve ativamente perseguir.
Valorizamos a honestidade. a coragem, o desenvolvimento intelectual, a caridade, etc. O
Superego, através do Ego Ideal, tende a impulsionar o indivíduo na obtenção

destes valores, punindo-o ou criticando-o quando falha na perseguição desses objetivos. Por
exemplo, a nossa cultura é meritocrática na valorização de títulos universitários. Um açougueiro
que possui seu próprio negócio provavelmente ganha mais que um professor universitário, ou
um bacharel em ciências humanas, ou mesmo que um engenheiro em início ou médio
desenvolvimento profissional. Mas o açougueiro sente-se humilhado diante destes profissionais
que são menos remunerados que ele. Alguma coisa interna, ou seja, um Ego Ideal meritocrático
lhe diz internameite que ele é inferior.

A outra face do Superego é a Consciência Moral. Ela corresponde à internalização das


proibições. Vemos que é uma face complementar e paralela ao Ego Ideal. Se a honestidade é
valorizada, a sua transgressão acarretará a punição pelos sentimentos acusatórios oriundos da
Consciência Moral. Se a virgindade é um ideal de conduta feminina pré-marital, a sua
transgressão ativará sentimentos culposos de inadequação.

O Superego é uma estrutura necessária para o desenvolvimento do grupo social. Sem ele,
seríamos todos delinquentes, respeitando apenas as restrições da força externa. Dizemos que
alguém que não desenvolve seu Superego é um psicopata, ou seja, alguém que, por não ter
valores internos, será propenso à delinqüência e só se conterá diante de uma restrição externa
punitiva, por exemplo, o temor de ser preso.

Mas, se o Superego é uma instância necessária ao grupo, quando exacerbado tende a imobilizar
ou a neurotizar o indivíduo. Se os valores que o Ego Ideal estrutura são tão altos que o indivíduo
jamais poderá alcançá-los, o indivíduo permanecerá impotente e imobilizar- se-á. Se as
proibições forem muito severas, qualquer atitude que fuja aos valores parentais será
considerada um grande crime. Na prática, isto será particularmente importante na evolução da
sexualidade normal. Neste aspecto, nossa cultura tem sido particularmente cínica. ou seja, mães
e pais pregam aos filhos condutas que em geral não tiveram. Nesta situação,
particularmente o adolescente, será levado a considerar imorais desejos legítimos. Lembrem-
se de que a punição superegójca vem mesmo sem a prática. Basta o desejo. Se sua severidade
for grande, não poderemos nem desejar.

2.5 Mecanismos de defesa

Os conceitos de resistência e repressão estudados bem como as instâncias psicodinâmjcas da


personalidade nos permitirão agora compreender o conceito de mecanismo de defesa.
Chamamos de mecaFusmos de defesa os diversos tipos de processos psíquicos, cuja

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29

finalidade consiste em afastar um evento gerador de angústia da percepção consciente. Os


mecanismos de defesa são funções do Ego e, por definição, inconscientes. O Ego situa-se em
parte no consciente e em parte no inconsciente. Como sede da angústia, ele é mobilizado diante
de um sinal de perigo e desencadeia uma série de mecanismos repressores que impedirão a
vivência de fatos dolorosos, os quais o organismo não está pronto para suportar. Por situar-se
em parte no inconsciente, poderá mobilizar mecanismos inconscientes, que não serão
percebidos pelo sujeito. Nem será percebido o evento doloroso, tampouco o mecanismo que o
reprimiu. O conceito de mecanismo de defesa surge nos trabalhos de Freud e é desenvolvido
principalmente por sua filha, Ana Freud, em O Ego e os mecanismos de defesa. Vários outros
autores desenvolverão conceitos de defesas típicas de certas fases da vida, ou de certos quadros
psicopatológicOs. Neste aspecto, o trabalho de Melanie Klein será particularmente importante.
Daremos agora uma relação dos principais mecanismos de defesa.

2.5.1 Repressão

A repressão impede que pensamentos dolorosos ou perigOSoS cheguem à consciência. Ë o


principal mecanismo de defesa, do qual derivam os demais. Já o estudamos. juntamente com a
resistência.

2.5.2 Divisão ou cisão

Um objeto ou imagem com o qual nos relacionamos pode ter simultanearnente características
que despertam nosso amor e o nosso ódio ou temor. Dividimos então este objeto em dois. Um
será o objeto bom, ou seja, portador das características de amor, e com o qual preservaremos
nosso bom relacionamento. O outro será o objeto mau, que negaremos ou poderemos atacar
sem vivenciar culpas, uma vez que seus aspectos positivos já foram isolados no objeto bom.
Para Melanie Klein, este é um mecanismo normal das primeiras etapas da vida, constituindo-se
patológica a sua manutenção.

2.5.3 Negação ou negação da realidade

Não percebemos aspectos que nos magoariam ou que seriam perigosoS para nós. Por exemplo,
se um filho começa a apresentar características homossexuais, o pai pode demorar a
percebê-las ou não as perceber. O clássico chavão que diz "tem pai que é cego" caracteriza
bem a negação de perceber eventos dolorosos. Outro

exemplo da realidade cotidiana é o cigarro. Negamos os riscos de câncer, as perturbações


cardíacas que pode provocar, e continuamos fumando.

2.5.4 Projeção

Quando nos sentimos maus, ou quando um evento doloroso é de nossa responsabilidade,


tendemos a projetá-lo no mundo externo. que ao nosso ver assumirá as características daquilo
que não podemos ver em nós. Por exemplo, uma mãe que não cuida adequadamente dos filhos,
acarretando-lhes vários problemas, poderá projetar a culpa em todas as situações que
envolvem a criança. Dirá que se o filho vai mal na escola é porque a professora é ineficiente; se
o filho vive doente é porque os amigos são doentes e o contaminam; se o filho não tem
iniciativa é porque o pai não é firme; se é agressivo, ou melhor, que reage, é porque todas as
pessoas o atacam. O extremo do funcionamento por mecanismos projetivos é a paranóia,
onde o sujeito tem tanta destrutibilidade interior que é obrigado a projetá-la e, a partir dai,
passa a ver todo o mundo como perseguidor.

2.5.5 Racionalização

Abstraímo-nos das vivências afetivas e, em cima de premissas lógicas, tentamos justificar nossas
atitudes. Com isto tentamos nos provar que somos merecedores do reconhecimento dos
outros. Por exemplo, exploramos uma empregada doméstica que recebe um salário muito
baixo. Não podemos suportar a angústia de nos ver como exploradores. Então passamos a nos
justificar para nós mesmos: "Ela é burra e não merece ganhar mais do que isso", "trabalho
braçal não cansa", "se fosse para outro emprego, ganharia menos", etc. Selecionamos,
portanto, da realidade, algumas informações fragmentadas, que justificam nossa conduta, e
todo nosso pensamento é elaborado em cima delas. Muitas vezes a defesa da eutanásia é uma
racionalização. Encontramos muitas justificativas lógicas pelas quais

o doente incurável deve ser morto, mas na verdade estamos encobrindo os nossos próprios
sentimentos agressivos contra aquele ser que só nos traz trabalho e angústia. A racionalização
é um mecanismo típico do neurótico obsessivo.

2.5.6 Formação reativa

Caracteriza-se por uma atitude ou um hábito psicológico com sentido oposto ao desejo
recalcado. Por exemplo, desejos sexuais ifl31

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tensos podem ser transformados em comportamentos extremamente pudorosos ou puritanos.


Estes desejos são sentidos como perigosos, ou seja, que o indivíduo perderia seu controle caso
cedesse a eles. Firmar-se numa atitude moralista, ou seja, atuar contrariamente ao que se
deseja é um meio de autopreservação. Este exemplo é um tema freqüente da literatura, onde
alguém que mantinha um comportamento externo rigidamente puritano, diante da primeira
experiência contrária, entrega-se à luxúria, cedendo aos desejos originais.
2.5.7 Identificação

Diante de sentimentos de inadequação, o sujeito intemaliza características de alguém


valorizado, passando a sentir-se como ele. A identificação é um processo necessário no início da
vida, quando a criança está assimilando o mundo. Mas permanecer em identificações impede a
aquisição de uma identidade própria. Os movimentos fanáticos também se estruturam sobre a
identificação: pessoas que se sentiam vazias passam a sentir-se valorizadas por se identificarem
com o líder, ou com as propostas do movimento. Exemplo típico disto temos a juventude
hitlerista.

2.5.8 Regressão

É voltar a níveis anteriores de desenvolvimento, que em geral se caracterizam por respostas


menos maduras, diante de uma frustração evolutiva. Por exemplo, com o nascimento de um
irmão menor, a criança mais velha não suporta a frustração de ser passada para segundo plano.
Como defesa, infantiliza-se, volta à chupeta, à linguagem infantil, urina na cama, etc. Se o
adultismo pode provocar frustrações, volta a um modelo infantil onde se sentia mais feliz.

2.5.9 Isolamento

Consiste em isolarmos um pensamento, atitude ou comportamento, das conexões que teria


com o resto da elaboração mental. O comportamento assim isolado passa a não ameaçar,
porque está separado e não mais conectado aos desejos iniciais. As condutas rituais dos
neuróticos obsessivos são um exemplo típico do isolamento. Não só o afeto original fica
isolado, como o ritual não é associado aos desejos iniciais.

32

2.5.] O Deslocamento

Através dele, descarregamos sentimentos acumulados, em geral sentimentos agressivos, em


pessoas ou objetos menos perigosos. Por exemplo, suportamos o mau humor do chefe e em
casa brigamos com os filhos ou chutamos o cachorro. Ouvimos, condescendentes uma asneira
praticada por nossa esposa, e crucificamos a secretária pelo menor erro cometido. Todos os
sintomas psiconeuróticos acabam tendo a participação do deslocamento.

2.5.]j Sublimação

É considerado o mecanismo de defesa mais evoluído e é característico do indivíduo normal. Os


desejos afetivos, que consideramos sexuais em um sentido amplo, qapdo não podem ser
literalmente realizados, são canaljzados pelo Ego para serem satisfeitos em atividades
simbolicamente similares e socialmente produtivas Por exemplo, os desejos sexuais intensos
podem gerar, por sublimação, um grande fotógrafo. O desejo pelas mulheres fica sublimado em
fotografá-las. Os desejos onipotentes de domínio da sociedade podem gerar um bom sociólogo.
Os desejos agressivos contidos e sublimados podem gerar um bom cirurgião ou dentista.

2.6 Sexualjdade e Ilbido


Referimo_nos freqüentemente aos conceitos de instinto e pulsão. A caracterização específica
dos conceitos constitui ainda uma dificuldade para a psicanálise, quer porque os termos
evoluíram ou foram empregados em mais de um sentido na obra de Freud, quer porque os
autores que geraram desenvolvimentos teóricos da psicanálise, divergiram em sua elaboração
conceitual. Utilizamos de uma maneira não muito específica os termos instinto e pulsão.
Tentávamos referir- nos a uma fonte original de energia afetiva, que mobiliza o organismo na
perseguição de seus objetivos. o termo mais específico para designar esta energia é o de libido.
A libido é a energia afetiva Original que sofrerá progressivas organizações durante o
desenvolvimento, cada uma das quais suportada por uma organização biológica emergente no
período. Cada nova organização da libido, apoiada numa zona erógena corporal, caracterizará
uma fase de desenvolvimento Podemos definir uma fase de desenvolvimento como "a
organização da libido, em torno de uma zona erógena, dando uma fantasia básica e uma
modalidade de relação de objeto".

A libjdo é, portanto, uma energia voltada para a obtenção de

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prazer. E neste sentido que a definimos como uma energia sexual, num sentido amplo, e que
caracterizaremos cada fase de desenvolvimento infantil como uma etapa psicossexual de
desenvolvimento. Estamos especificando que a sexualidade não é vista pela psicanálise em seu
sentido restrito usual, mas abarca a evolução de todas as ligações afetivas estabelecidas desde
o nascimento até a sexualidade genital adulta. Por definição, todo vínculo de prazer é erótico ou
sexual. Ao organizar-se progressivamente em tomo de zonas erógenas definidas, a libido
caracterizará três fases de desenvolvimento infantil:

a fase oral, a fase anal e a fase fálica, um período intermediário sem novas organizações, o
período de latência, e uma fase final de organização adulta, a fase genital.

Há uma tendência natural para o desenvolvimento sucessivo das fases. Mas, se num dado
momento de evolução a angústia é muito forte, o Ego é obrigado a mobilizar fortes mecanismos
de defesa para enfrentá-la. Isto significa que há, de um lado, a energia do desejo imobilizada. A
angústia só surge se, ao tentarmos nos ligar a um objeto, isto implica em relações de temor ou
de destruição. Do outro lado, o Ego, que é também um depositário da energia original, mobiliza
energias que são estancadas nos mecanismos de defesa. Isto cria um ponto de fixação, ou seja,
um momento no processo evolutivo onde paramos, por não poder satisfazer um desejo, e onde
também paramos por que aí deixamos muita energia imobilizada. O Ego se torna mais frágil em
seu processo evolutivo, porque parte de sua energia permanece ligada a este momento. Por ser
mais frágil, terá dificuldades em enfrentar novos momentos críticos e se, nesses momentos, a
angústia for muito forte, o Ego regredirá para estes pontos de fixação. A regressão será dupla.
Por um lado, regredirá para uma fantasia infantil, ou seja,
para o desejo que não foi satisfeito. Por outro lado, fará uma regressão formal, ou seja, como a
tentativa de adaptação posterior falhou, o Ego regride exatamente para este ponto onde tem
muita energia mobilizada em um tipo de defesa, passando a relacionar-se com o mundo através
desta defesa. Por isso, a neurose é definida por Freud como um infantilismo psíquico. O
neurótico está sempre atualizando fantasias infantis e repete sempre, na relação com os
objetos atuais, aquele modelo infantil no qual foi fixado e para o qual regrediu depois de um
evento traumático.

Para a compreensão do processo, apresentaremos inicialmente um relato descritivo das fases


de desenvolvimento propostas por Freud. Isto nos ajudará a caracterizar os momentos
evolutivos de um desenvolvimento normal. O relato é apenas introdutório e, nos volumes
seguintes desta coleção, teremos a oportunidade de detalhar

o processo. Em seguida, como uma introdução à formação de sintomas, estudaremos os atos


falhos, os sonhos e o simbolismo e, finalmente, alguns processos de formação de sintomas.

2.7 Fases de desenvolvimento

2.7.1 Fase oral

Ao nascer, o bebê perde a relação simbiótjca pré-natal que Possuía com a mãe, e a satisfação
plena da vida intra-uterina Com

o corte do cordão, a separação irreversível, e a criança deve iniciar sua adaptação ao meio.
Muito se tem falado no "trauma do nascimento", enfatizando_se os traumatismos físicos de
parto, como uma entrada violenta no mundo. Não negamos que estes processos possam ter
influências no desenvolvimento futuro. Deles podem inclusive decorrer seqUelas lesionais. Mas
não é daí que surgirá a angústia fundamental do nascimento, o termo angústia, em sua própria
origem etimológica, significa "dificuldade para respirar". Com o corte do cordão, bloqueia-se o
afluxo do oxigênio materno. A carência é sentida, e o organismo já luta para sobreviver. A luta
entre os instintos de vida e os instintos de morte já é um combate franco neste momento. Ë
preciso reagir, inspirar, introjetar o mundo externo. Ou se recebe o externo, ou se deixa de
viver. A angústia de respirar é a perda do paraíso bíblico e o início da conquista do pão com o
suor do próprio rosto. Perdido o útero, a criança terá de enfrentar o mundo. Construirá
progressivame suas relações afetivas e intelectuais, até que ela própria se torne progenitora.
Está estabelecida a luta pela perpetuação da vida, finalidade última da própria vida. A latência
da semente cede lugar às primeiras folhas que se abrem para o sol e a chuva, para o crescer e o
tornar-se árvore. Respirar marca o ponto inicial da independência humana. Várias etapas se
sucederão até a plena aquisição de sua identidade.

A luta inicial é pela manutenção do equilíbrio homeostático Os processos já existentes na vida


intra-uterina, de incorporar os alimentos necessários e excretar o que é prejudicial, serão agora
deslocados para as relações com o mundo. Inspira-se o ar saudável, repleto de oxigênio, e
expira-se o ar viciado. A amamentação traz o leite que alimenta, as fezes e a urina dejetam os
produtos já metabolizados e inúteis. Aí estão os fundamentos biológicos dos mecanismos de
projeção e introjeção que virão estabelecer as primeiras trocas Psicológicas da criança com o
mundo.

Ao nascimento, a estrutura sensorial mais desenvolvida é a boca. pela boca que se mobilizará
na luta pela preservação do equilí 34

35
rio homeostático. E pela boca que começará a provar e a conhecer o mundo. E pela boca que
fará sua primeira e mais importante descoberta afetiva: o seio, O seio é o primeiro objeto de
ligação infantil. E o depositário de seus primeiros amores e ódios, O seio já existe quando o
desenvolvimento maturacional não permite ainda à criança reconhecer o seu primeiro objeto
total: a mãe. Esta se construirá gradativamente a partir do amor que o seio oferece. Eriksoi
define que, neste momento, a criança ama com a boca

a mãe ama com o seio.

Neste momento a libido está organizada em torno da zona oral. Como já vimos, o conceito de
fase pressupõe a organização da libido em torno de uma zona erógena, dando uma
modalidade de relação de objeto. A fase fica caracterizada pela zona erotizada, e daí a
denominação de fase oral, dada a este período. A modalidade de relação oral será a
incorporação.

2.7.1.1 A modalidade incorporativa

A incorporação é um caso particular do mecanismo de introjeção. Como nas etapas iniciais da


vida, a simbolização ainda não evoluiu e a incorporação necessita de um elemento concreto. A
criança incorpora o leite e o seio e sente ter a mãe dentro de si. O vínculo inicial pode ser
estabelecido. Tudo o que a criança pega é levado à boca: é comendo que ela conhece o mundo
e que as identificações podem ser estabelecidas. É difícil, como adultos, retomarmos o
pensamento desse período precoce da vida. Só poderemos fazê-lo por um esforço de abstração.
Mas creio que nos será mais fácil compreender essa modalidade incorporativa, se observarmos
seus resquícios nos comportamentos adultos. Tomemos micialmente dois comportamentos
míticos: o canibalismo e a comunhão. Os grupos primitivos, que praticam o canibalismo, não o
fazem por necessidade alimentar, mas o praticam como um ritual. Só os guerreiros podem ser
comidos, e assim mesmo apenas os fortes e aprisionados em combate
(veja-se o poema "1-Juca Pirama", de Gonçalves Dias). Não é a carne que se incorpora, mas é a
força e a bravura dos guerreiros aprisionados que passarão para quem os come. A carne
representa a dimensão concreta e oral da modalidade incorporativa. Da mesma forma que se
incorpora a mãe pelo leite e pelo seio, os atributos valorizados do guerreiro são incorporados
pela sua ingestão. A incorporação lança os fundamentos da identificação. Na comunhão o
processo é similar. Através da hóstia, incorpora-se o corpo de Cristo. Não exatamente o seu
corpo, mas os seus atributos: a bondade, o amor, o perdão, a fé, a esperança.

36

b sacerdote não diz simplesmente "tenham Cristo em vocês". Mas

o concretiza num ritual proposto pelo próprio Messias na Última

Ceia. A hóstia é fisicamente incorporada para estabelecer os princípios básicos da identificação


cristã.

A incorporação é a etapa concreta da introjeção e a organização primitiva da identificação,


Quanto mais regredido, menos simbolizado e mais concreto o processo. Quanto mais
regredido etariamente, mais se toma a parte (atributo) pelo todo (substantivo).
2.7.1.2 As etapas orai.v

Partindo das observações do pediatra Lindner, de Budapest, Freud descreve uma sexuajidade
oral infantil. E muito curioso como as descrições de Lindner são similares às que Freud
posteriormente fará, excetuando a conotação sexual que este último atribui ao processo. Freud
rende-lhe tributos em várias de suas obras. Vamos tentar discriminar esta sexualidade oral,
diferenciando_a inicialmente dos processos biológicos de base que lhe dão origem. A criança
nasce com um corpo de reflexos que em geral a pediatria divide em reflexos alimentares,
reflexos posturajs e reflexos defensivos. Sobre este conjunto inicial de reflexos, vão se
estabelecendo os processos corticais que formam a base progressiva de construção do real.
Este é o tema básico da obra piagetiana. O conjunto de reflexos alimentares é o que na prática
serve às primeiras necessidades de equilíbrio homeostátj_ co da criança. A modalidade reflexa
inata de busca de alimentos é necessária para a sobrevivência Freud (e Lindner) percebe que,
além da necessidade física de alimentação, a criança sente um grande prazer no ato de mamar
em si. Mesmo depois de satisfeita, ela continua a sugar a chupeta. Quando dorme, faz
movimentos de sucção, aparentando grande prazer. O prazer oral é uma modalidade que se
estabelece anacliticamente ao prazer alimentar, mas que dele se separa. Este vínculo inicial de
prazer em Si, independente da sobrevivência física, constituirá a base das futuras ligações
afetivas. O que é o afeto senão um vínculo prazeiroso que se estrutura independentemente das
necessidades básicas de sobrevivência, embora com ela tenha correlações iniciais? Se a ligação
de amor existisse apenas no plano alimentar, as crianças institucionalizadas se desenvolveriam
tão bem quanto as criadas pela própria mãe - o que todos sabemos que não é verdade E a
capacidade de formar um vínculo de prazer em si que pode permitir a formação da afetividade.
Este processo de progresj5 ligações emocionais, que denominamos de desenvolvimento das
relações objetais, começa com o amor que a criança

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inicialmente dirige ao seio. Posteriormente o afeto reconhecerá a mãe, o pai, as outras


pessoas e objetos do mundo, até a futura constituição de afetividade genital adulta.

K. Abrahan, um dos primeiros e mais atuantes colaboradores de Freud, propõe duas etapas do
desenvolvimento da libido na fase oral. A primeira precede à dentição e é chamada de etapa
oral de sucção, onde a modalidade de relação é incorporativa (introjetiva) e visa a apreensão
em si do mundo (seio, mãe, etc.). Nesta etapa a criança ainda vive seu mundo interno de
fantasias como realidade, sendo que a realidade objetiva externa só é apreendida parcial e
fragmentariamente. Chamamos de narcisismo a este modelo de organização psíquica infantil. A
fixação do indivíduo nesta etapa, ou seu posterior retorno ao modelo desta etapa, através de
uma regressão psicológica, caracterizará um quadro clínico que denominamos
esquizofrenia. A segunda etapa, que surge com a eclosão dos dentes, é denominada etapa oral
sádico-canibal. Os dentes surgem para a criança como a primeira concretização de sua
capacidade destrutiva. É necessário que a agressividade se manifeste, porque dela derivará a
futura combatividade social. Mas r a criança é posta pela primeira vez em uma posição
ambivalente.

De um lado, ama, e amar significa a incorporação oral. De outro, o mastigar e comer atualiza
fantasias destrutivas. Se o desenvolvimento afetivo for normal, o amor será estabelecido como
sentimento básico. Se o desenvolvimento for dominado por angústias, a agressividade (ódio)
será predominante, restando o sentimento de que tudo aquilo que é amado e incorporado, é
inevitavelmente destruído. Este sentimento de destruir o que é amado constitui o ponto de
fixação que poderá estabelecer um futuro quadro de melancolia (psicose maníaco-depressiva).

2.7.2 Fase anal

No início do segundo ano de vida, a libido passa da organização oral para a anal. Temos
insistido sempre que a psicanálise deve ser vista dentro de um modelo anaclítico, ou seja,
sempre há organizações biológicas de base sobre as quais os modelos psicológicos são
organizados. Examinamos no item anterior como isto se dá com a modalidade incorporativa,
que é a estrutura básica do primeiro ano de vida.

No segundo e terceiro anos de vida, dá-se a maturação do controle muscular na criança, isto é,
dá-se a organização psicomotora de base. Ë o período em que se inicia o andar, o falar e em que
se estabelece o controle de esfíncteres. A mão sai do tateio e

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preensão mais grosseiros, para desenvolver grande precisão na pinça indicadorpojegar Embora
ainda com o andar apoiado na ponta dos pS, desequilibrado, aparentando o anjinho barroco que
vai alçar vôo, a criança já pode sair para conhecer o mundo de pé, frente a frente, e não mais de
baixo para cima como ocorria na fase oral. As funções corticais substituem as condutas
anteriormente reflexas. A segmentação neuromuscular permitirá o aparecimento de
movimentos finos e coordenados dominando sobre os antigos comportamentos globais.

Dois processos básicos estão se Organizando na evolução psicológica. O primeiro diz respeito
ao conteúdo, ou seja, às fantasias que a criança elabora sobre os primeiros produtos
realmente seus que coloca no mundo. O segundo diz respeito ao modelo de relação a ser
estabelecido com o mundo através destes produtos.

Primeiramente desenvolve_se o sentimento de que a criança tem coisas suas, coisas que ela
produz e que pode ofertar ou negar ao mundo. Ao nível mais imediato, poderemos perceber
isto no andar ou no falar. Só anda quando está bem; se chega um estranho, volta a engatinhar
em busca da mãe. Fala, mas só o faz se sente que é aceita. Quando assustada, emudece,
negando seu produto "fala" ao ambiente que a rejeita ou a ataca.

O período é denominado fase anal, porque a libido passa a organizar-se sobre a zona erógena
anal. A fantasia básica será ligada aos primeiros produtos, notadamente ao valor simbólico das
fezes. Duas modalidades de relação serão estabelecidas. a projeção e o controle.

2.7.2.1 O valor simbólico dos produtos anais

Dentre os produtos que a criança elabora, as fezes assumem um lugar central na fantasia
infantil. São objetos que vêm de dentro do próprio corpo, que são, de certa forma, partes da
própria criança. São objetos que geram prazer ao serem produzidos. Durante o treino de
esfíncteres, as fezes são dadas aos pais como prendas ou recompensas Se o ambiente é hostil,
são recusadas. A nós, adultos, pode parecer ingênuo enfatizar tanto o valor psicológico das
fezes. Pois bem, observemos uma mãe ensinando a criança a utilizar o "troninho". ela elogia o
esforço da criança, incentiva, torce para que ela consiga e, quando o produto finalmente vem,
é recebido com honrarias; canta-se "Parabéns" e "Pique-pique" para o cocô. Todo este
processo é vivido por nós como absolutamente normal. Mas imaginem um personagem
emocionalmente frio, como o famoso Dr. Spock de "Jornada nas Estrelas", assistindo

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o processo. No mínimo o definiria como uma loucura a dois. Tomem outros exemplos normais
adultos, como o ritual de contemplar as fezes antes da descarga, ou o procedimento de
transformar o banheiro num salão de estar, com música, revistas e cigarros. Tomem ainda o
exemplo antropológico de várias tribos que defecam em cima do túmulo do ente querido, em
sinal de respeito. Ou ainda o fato de que o odor das próprias fezes é sentido como agradável
pela maior parte das pessoas, enquanto causa náuseas às outras. Os exemplos poderiam ser
ampliados e analisados em profundidade, tarefa que reservamos para a análise específica desta
fase, num volume seguinte.

Quando o desenvolvimento é normal, ou seja, quando a criança ama e sente que é amada pelos
pais, cada elemento que a criança produz é sentido como bom e valorizado. O sentimento
básicoL que fica estabelecido a levará em todas as etapas posteriores da vida a sentir que ela é
adequada e que seus produtos são bons; portanto, estará sempre livre e estimulada a produzir.
Temos visto vários livros correlacionando fase anal com capacidades artísticas. Isto é só uma
parte do processo. O sentimento de que o que produzimos é bom, é necessário para todas as
relações produtivas que estabelecemos com o mundo. Produzimos no trabalho, e temos de
sentir que nosso produto é bom. Produzimos filhos, e temos de sentir
que nosso produto é bom. Só poderemos criar se houver um sentimento interior de que nossos
produtos são bons. O sentimento de autonomia que Erik Erikson descreve como
correspondente a esta fase, talvez pudesse ser melhor definido como um sentimento geral de
adequação.

2.7.2.2 As etapas anais

Abrahan e Freud subdividem a fase anal em duas etapas. A etapa inicial é biologicamente
caracterizada pelo domínio dos processos expulsivos, sobre os quais se assentará o mecanismo
psicológico da projeção. A segunda etapa é retentiva, o que propiciará a base para os
mecanismos psicológicos ligados ao controle. Temos de levar em conta que a Teoria Psicanalítica
surge de trabalhos clínicos; portanto, é natural que muitos dos processos
descritos derivem sua denominação da psicopatologia. Assim, todos os mecanismos
psicológicos que surgem são necessários e adaptativos dentro de um certo momento de vida,
mas à medida em que um mecanismo psicológico infantil se fixar e se tornar o centro da
organização afetiva, teremos a configuração de um quadro psicopatológico definido e
estruturado por este mecanismo. Vimos que é um processo normal a criança

pôr coisas no mundo, como também é normal discriminar quando e para quem dá seus
produtos.
Mas pode ocorrer que as relações de angústia predominem sobre as relações de amor. Os
primeiros produtos infantis não são mais objetos de valor, mas se constituem em armas
destrutivas que agridem o mundo toda vez em que são produzidos. Pensemos, por exemplo, em
uma mãe neurótica que entra em pânico toda vez em que a criança suja as fraldas ou que, por
não suportar barulho, obriga a criança ao silêncio. Isto concretiza para a criança a fantasia de
que seus produtos são maus e destrutivos. E uma defesa usual expelir tudo que há em nós e que
sentimos que é mau. Atiramos então nossos produtos destrutivos no mundo e, como
depositário de nossas agressões, o mundo se tornará mau e destruidor. A projeção dos maus
produtos sempre cria um mundo perseguidor. A paranóia é a primeira filha do fracasso em
estabelecer a colocação dos produtos infantis no mundo.

A neurose obsessiva é a segunda conseqüência no fracasso do desenvolvimento da fase anal. Se


os produtos foram projetados numa estrutura paranóica, na estrutura obsessiva são retidos e
controlados. Se os produtos geram angústia "necessito exercer um grande controle sobre o que
posso liberar e sobre as pessoas para quem liberarei minha produção". O amor e o afeto vão
progressivamente cedendo terreno à temática do controle e da organização, até que um
mundo, que deveria ser estruturado sobre o afeto, seja substituído por um mundo frio e formal.
O obsessivo torna-se afetivamente desativado, robotiza-se nas ritualizações frias e formais e
torna-se incapaz de criar.

2.7.3 Fase fálica

Por volta dos três anos de idade, a libido inicia nova organização.

A erotização passa a ser dirigida para os genitais, desenvolve-se o

interesse infantil por eles, a masturbação torna-se freqüente e normal

e a preocupação com as diferenças sexuais entre meninos e meninas

passam a contaminar até a percepção dos objetos: "O ônibus tem

pipi?" - "Se não tem, é mulher". Curiosamente est. dsL rlmiracào sexual

não caracteriza a existência de dois genitais, o masculino e

o feminino, mas apenas a presença ou ausência de pênis. A vagina

é e continuará sendo desconhecida ainda por muito tempo. Os

homens, e o gênero masculino, são definidos pela presença do órgão

fálico, ao passo que as mulheres identificam-se pela sua ausência. Nas fases oral e anal já
vimos que cada uma delas tem uma

erotização corporal, uma fantasia particular e uma modalidade de

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relação de objeto. A erotização dos genitais, que se inicia neste período, traz a fantasia de
meninos e meninas serem possuidores de um pênis. A erotização masculina, portanto, recairá
normalmente sobre o pênis, enquanto que a feminina se manifestará no clitóris, que será
fantasiado como sendo um pequeno pênis que ainda crescerá. O menino exibe seu membro,
orgulhoso, com ares de superioridade, aproando que é homem. A menina reage, protestando
que o seu ainda crescerá e ficará igual ao do menino. Mas, à medida em que o
desenvolvimento se processa, a percepção correta da realidade confirmará aos olhos infantis
que só o homem é portador de pênis, ficando a mulher na condição de castrada. Numa visão
freudiana, esta configuração primitiva do pensamento sexual infantil fornecerá as bases
diferenciais das organizações psicológicas masculina e feminina. Ao homem adjudica-se um
elemento de superioridade, que é a posse do pênis. Em decorrência, configura-se uma grande
ameaça diante dos conflitos interpessoais, que é o temor de ser atacado naquilo que mais
valoriza, ou seja, o temor de castração. À mulher atribui-se um elemento de inferioridade, a
castração, e uma inveja decorrente, a inveja do pênis, que a mobilizará no sentido de conseguir
o que só o homem tem, ou de compensar esta inferioridade sentida no plano da fantasia.

Na fase fálica, a libido erotiza os genitais. A fantasia básica é fálica. E qual a tarefa básica desta
fase, ou seja, qual a sua modalidade de relação? A tarefa básica deste momento consiste em
organizar os modelos de relação entre o homem e a mulher. Os genitais erotizados dirigem
uma busca de satisfações de desejos sexuais. Nunca devemos nos esquecer de que estamos
nos referindo à organização da fantasia infantil. A procura do parceiro para a satisfação sexual
real é uma tarefa do adulto, é um trabalho da fase genital. Ao nível da criança, é a modalidade
de relação que se define, ou seja, é no menino que se forma uma espécie de sentimento de
busca de prazer junto a uma mulher. Por parte da menina, o processo é similar e inverso, ou
seja, existe a busca de prazer junto a um homem.

A procura do sexo oposto é uma estrutura comportamental instintiva nos animais, enquanto
grupo geral. Por exemplo, dois coelhos, um macho e uma fêmea, criados individualmente
isolados durante toda a vida, se postos juntos, quando adultos, partem imediatamente para um
lacionamento sexual. Mas à medida em que se sobe na escala filogenética, notadamente entre
os mamíferos primatas, a relação macho-fêmea não é só ditada por traços instintivos. Ela requer
etapas de socialização onde o desenvolvimento inicial tem particular importância. Por exemplo,
macacos superiores criados

isolados, sem a mãe, quando postos juntos, são incapazes de um relacionamento sexual. Macho
e fêmea ficam excitados, agarram-se e agridem-se, mas não sabem o que fazer. E como se o
traço instintivo fosse difuso e necessitasse de uma fase de aprendizado de amor para se
organizar. Quando falamos em atração sexual infantil, é mais ou menos nestes termos que o
processo deve ser considerado. Há a fantasia de busca do parceiro, mas dentro de processos
difusos (embora permeados pela fantasia fálica), que devem ser organizados para que se
estabeleça uma adequada atração masculino-feminina

A libido está organizada sob o primado da zona erógena genital, mas configurada sob a
fantasia fálica. A erotização de uma zona corporal cria um desejo a ser satisfeito. A erotização
é vista dentro de um modelo homeostático, ou seja, há um acúmulo de tensão que deve ser
descarregado. A descarga corresponde à sensação de prazer. A erotização genital cria a
necessidade de buscar o objeto que permitirá a obtenção de prazer, ou seja, um elemento do
sexo oposto. E, portanto, natural que durante a fase fálica, como reação à emergente
erotização, o menino seja dirigido para a busca de uma figura feminina. Buscá-la faz parte de
uma organização filogenética de preservação e continuação da vida. E quem é a figura
feminina mais próxima, e de quem o menino gosta mais? E a mãe. A maior parte dos vínculos
de prazer da infância estão ligados à mãe. É também natural que na fantasia infantil o menino
a configure como seu objeto de atração sexual, O menino está genitalmente erotizado, sente
que isto é bom e que precisa compartilhar isto com uma figura feminina. A figura da mãe
preenche na fantasia este papel. E esta relação estabelecida servirá de suporte para que mais
tarde, quando adulto, possa buscar uma parceira sexual externa à família, com quem
estabelecerá vínculos afetivos importantes e constituirá sua própria família. Podemos dizer que
é aprendendo a amar em casa que a criança se tornará o adulto capaz de amar fora.

Se aprender a amar é uma relação positiva, o amor incestuoso é uma relação proibida, O tabu
do incesto é a lei mínima da organização humana. Foi necessário aprender a amar, mas a
relação incestuosa que serviu de suporte para esta aprendizagem deve agora ser reprimida. O
esquema repressor é desencadeado com a entrada do pai em cena. O pai soma as fantasias
filogenéticas de pai totêmico, dono da mãe e das mulheres, com a configuração real de pai,
marido e símbolo da autoridade. A autoridade usará de sua força para fazer cumprir a lei. Tem
o poder de recompensar e punir. O pai coloca-se então como um interceptor entre o filho e a
mãe.

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As fantasias infantis de se casar com a mãe, de ser seu namorado (expressões estas, todas
usuais de crianças desta idade), ficam vedadas pelo pai. Paralela e ambivalentemente ao amor
que o menino devota ao pai, fica-lhe dirigido um sentimento mesclado de ódio e temor. A
criança configura o desejo de eliminar aquele que lhe impede o acesso à mãe. Fica então
configurado o triângulo que Freud denomina Complexo de Édipo, numa referência ao drama
"Édipo Rei", de Sófocles.

Com o estabelecimento d6 triângulo edípico, o pai, maior, mais forte e dono da mãe, é sentido
pelo filho como um adversário contra o qual não poderá lutar. Se o elemento mais valorizado
pela criança é o pênis, se o ponto de competição com o pai é sua erotização, parece decorrência
lógica que, na fantasia infantil, o pai o puna, atacando-o no ponto fundamental do conflito, ou
seja, o pai o castrará. Configura-se então, na relação com o pai, o temor de castração, que o
obrigará a reprimir a atração sentida pela mãe. Com esta repressão fica encerrada a etapa fálica
infantil. Mas o modelo de busca de um amor heterossexual foi estabelecido e será
posteriormente retomado com a adolescência.
O Complexo de Édípo, também chamado por Freud de Complexo Nuclear, é o ponto central da
organização afetiva dentro do modelo psicanalítico. Ele envolve vários elementos evolutivos,
alguns dos quais se tornam pontos de dissidência dentro da psicanálise.

Nesta seção, descreveu-se apenas a configuração inicial do Édipo masculino. A organização e a


evolução do modelo masculino, bem como o do feminino (que para Freud é diferente), serão
analisadas em detalhes numa etapa posterior deste trabalho, quando descreveremos o
desenvolvimento afetivo do pré-esctilar. Nessa oportunidade confrontaremos o modelo
freudiano ëom as principais evoluções e divergências surgidas na psicanálise.

2.7.4 Período de latência

Com a repressão do Édipo, a energia da libido fica temporariamente deslocada dos seus
objetivos sexuaís. Dizemos que houve de início a repressão da energia sexual. Como esta
energia é permanentemente gerada, ela não pode ser simplesmente eliminada ou reprimida. É
preciso que ela seja canalizada para outras finalidades. Estando os fins eróticos vedados, ela é
canalizada para o desenvolvimento intelectual e social da criança. A este processo de canalizar
uma energía inicialmente sexual em uma energia mobilizadora chamamos de realizações
socialmente produtivas de sublimação. Ao

período que sucede a fase fálica, chamamos de período de latência. O período de latência
caracteriza-se pela canalização das energias sexuais para o desenvolvimento social, através das
sublimações. O período de latência não é, portanto, uma fase: não há nova organização de zona
erógena, não há nova organização de fantasias básicas e nem novas modalidades de relações
objetais. E um período intermediário entre a genitalidade infantil (fase fálica) e a adulta (fase
genital). A sexualidade, que permanece reprimida durante este período, aguarda a eclosão da
puberdade para ressurgir. Enquanto a sexualidade permanece dormente, as grandes conquistas
da etapa situar-se-ão nas realizações intelectuais e na socialização. É por isso que este é o
período típico do início da escolaridade formal ou da profissionalização, em todas as culturas do
mundo.

2.7.5 Fase genital

Ao perguntarem a Freud, em sua velhice - quando já tinha realizado praticamente toda sua
obra pessoal -, como definiria um homem adulto normal, ele respondeu apenas que o homem
normal era aquele que é capaz de "amar e trabalhar". Alcançar a fase genital constitui, para a
psicanálise, atingir o pleno desenvolvimento do adulto normal. É ser o homem que começou a
surgir quando a criança perde o nirvana intra-uterino e vai progressivamente introjetando e
elaborando o mundo. As adaptações biológicas e psicológicas foram realizadas. Aprendeu a
amar e a competir. Discrimjnou seu papel sexual. Desenvolveu-se intelectual e social- mente.
Agora é a hora das realizações. E capaz de amar num sentido genital amplo. É capaz de definir
um vínculo heterossexual signifjcativo e duradouro. Sua capacidade orgástica é plena, e o
prazer dela oriundo será componente fundamental de sua capacidade de amar. A perturbação
na capacidade orgástica é uma tônica dos neuróticos.

O indivíduo normal não só se realizará na genitalidade específica, como o fará num sentido
amplo. A perpetuação da vida é a finalidade última da vida. Procriará e os filhos serão fonte de
prazer. Sublimará e, como frutos paralelos, será capaz de trabalhar e produzir. Produzir é, num
sentido amplo, sublimação do gerar. A obra social é derivada da genitalidacle. Estabelecer
filiações significativas com profissões, partidos políticos, ideologias religiosas, correntes
estéticas, são sublimações da sua capacidade de amar, de estabelecer um vínculo maduro nas
relações naturais homem-mulher.

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2.8 A formação de sintomas

Freud descobriu no ser humano dois níveis de estruturas psíquicas coexistentes: o consciente e
o inconsciente. No caso da cliente de Breuer, Ana O., vimos que, os sintomas histéricos
cessavam, quando um evento traumático era trazido para a consciência. Isto nos coloca diante
de uma questão básica: por que os sofrimentos, com a doença do pai, fizeram surgir sintomas
físicos, paralelamente ao processo de repressão das lembranças? Quando acompanhamos
outros casos de doenças mentais, encontramos sempre o sintoma como um substituto do
evento traumático reprimido. Deve haver, portanto, um caminho que progressivamente
transforma os desejos e angústias iniciais em processos completamente diferentes. Nesses
processos, a energia da libido poderá ter vazão, sem que a angústia seja desencadeada.

Parece constituir uma característica básica do ser humano a utilização de meios indiretos para
se comunicar. Isto é um processo normal, criativo e esteticamente valorizado. As figuras de
linguagem que povoam qualquer língua oferecem excelentes exemplos do processo. Jamais
poderão ser tomadas em seu sentido literal as expressões do tipo "deu um nó na garganta",
"estou matando cachorro a grito", "fala pelos cotovelos", "voltando à vaca-fria". Quando as
analisamos em profundidade, poderemos até encontrar relações entre o que formalmente é
dito e o sentimento que faz surgir a frase. O inconsciente, como depositário básico da
simbologia onto e filogenética, tem a capacidade de, por encadeamento de símbolos, propor
fórmulas alternativas para expressar uma mensagem que conscientemente não pode ser
percebida. Vejamos os níveis de ocorrência do processo.

2.8.1 Os atos falhos ou parapraxias

Uma jovem está se arrumando para sair e a mãe lhe diz: "leve a sombrinha que vai chover". A
jovem faz de conta que concorda, mas ignora o conselho. Ao se dirigir para a sala, encontra a
sombrinha que a mãe deixou sobre a mesa, junto à bolsa, para que não a esqueça. A jovem
finge que não percebe, apanha a bolsa e vai para o carro. Solícita, a mãe corre atrás e
triunfante enfia a sombrinha pela janela. Quando retorna depois do passeio, a jovem constata
que perdeu a sombrinha. Pode, inclusive, sentir-se preocupada com isto. Mas, no fundo, a
atuação dos processos inconscientes deram um jeito de livrá-la do símbolo da opressão
materna. Isto é um ato falho. Podemos presumir, oculto por ele, um desejo inconsciente de se
rebelar, romper vínculos com a dependência

que lhe é imposta, ou mesmo uma certa dose de rancor contra mãe. Oposta a isto, há a
postura da boa filha, que ama a mãe, com a qual jamais se permitiria ser grosseira.
Externamente, a última tendência vence, e seu comportamento é atencioso. Mas a primeira
não está morta. Está apenas buscando um meio de burlar a repressão, ou seja, tentando surgir
de uma maneira tão indireta, que a agressão à mãe não seja percebida. Vemos que o ato de
esquecer a sombrinha em algum lugar estabelece um acordo entre as duas tendências
conflitantes. De um lado, pôde contrariar a imposição materna. De outro, pôde preservar sua
boa relação com a mãe.

Dentro deste mesmo modelo estão os esquecimentos de nomes, os lapsos de memória, as


expressões que saem exatamente contrárias ao que queríamos dizer (por exemplo, dar
felicitações em vez de pêsames nos funerais) e os acidentes com relíquias de família (por
exemplo, quebrar o vasinho de estimação da tia chata).

Temos então em conflito um desejo ou intenção que não pode ser percebida, por contrariar os
ideais morais do sujeito. A isto chamamos de tendência perturbadora Por outro lado, temos as
atitudes ou bons pensamentos que o sujeito se acha na obrigação de assumir, mas que não
correspondem aos seus desejos inconscientes. A isto chamamos de tendência perturbada. Do
conflito estabelecido, surge uma terceira conduta, que em parte satisfaz e em parte contraria
cada uma das duas. Isto é um sintoma, O ato falho é um modelo típico de formação de
sintomas. Nem houve a agressão, nem a submissão. Deve, porém, ser frisado que, se o ato falho
resolveu o conflito no momento, ele não contribuiu em nada para o crescimento individual, ou
seja, não resolveu o conflito pessoal existente. Apenas retardou sua explosão.

2.8.2 Os sonhos e o simbolismo .'

Tal qual as parapraxias, os sonhos são fenômenos psíquicos que nos facilitam compreender o
inconsciente. No próprio dizer de Freud, os sonhos são portas para o inconsciente. Vamos
começar analisando uma modalidade de sonhos que não apresentam conflitos na relação
consciente-inconsciente, para depois discutirmos a estrutura dos sonhos conflitjvos. Uma
criança cobiça os doces de uma vitrina e durante a noite sonha que está comendo muitos
doces. Um rapaz fica apaixonado por um carro esporte que vê na rua. À noite. durante o
sonho, dirige o carro que é seu. A garota vê os prospectos de uma agência de turismo e nos
sonhos passeia por Roma ou Paris, Em todos estes casos tivemos um desejo que não pode ser
realizado

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por motivos externos e práticos. Ao nível interno, nada se opunha às realizações. Nos sonhos
os desejos são retomados e realizados alucinatoriamente. O Ego. enfraquecido no sono,
diminui o limite que separa a fantasia da realidade. A tensão do desejo pode então ser
aliviada. Os sonhos são realizações alucinatórias de desejos. A este tipo de sonhos que traz a
realização literal de desejos (porque estes desejos não são conflitivos) chamamos de sonhos
infantis.

Mas, parte dos desejos que temos não pode ser por nós aceita, não podendo nem sequer ser
percebida, notadamente os desejos ligados à agressão ou a fantasias sexuais que nossa
estrutura ética rejeita (por exemplo, o incesto ou as tendências homossexuais). Tomemos um
exemplo. Uma mulher se casa e fica grávida em seguida. Com a criança é obrigada a deixar o
emprego e, como conseqüência das dificuldades econômicas geradas, deixa os estudos. Depois
de alguns anos encontra uma colega diplomada e profissionalmente bem-sucedida. Nesta
noite tem um sonho onde vê o filho embarcando sozinho em um trem para uma viagem. Não
se recorda de outros detalhes, mas acorda angustiada.

A interpretação deste sonho seria relativamente simples. Ao nível da simbologia inconsciente,


partir significa morrer. Este filho desperta sentimentos ambíguos na mãe. Por um lado, é
objeto de amor, e os valores introjetados no papel de mãe só permitem a manifestação de
sentimentos amorosos e positivos na relação com a criança. Por outro, esse filho lhe destruiu
muitas das aspirações da vida. Bloqueou seus estudos e sua carreira profissional. Neste nível,
seu desejo seria o de não ter tido este filho, ou seja, há um desejo de morte do filho que está
latente e reprimido. No sonho, enfraquecidas as defesas, ele surge. Mas, mesmo assim, não
pode ser expresso abertamente. A capacidade plástica do inconsciente de utilizar símbolos
substitutivos acaba encontrando um meio de realizar alucinatoriamente o desejo, sem que o
sonhador o perceba. Tal qual nos atos falhos, o sonho fica uma criação intermediária entre o
desejo reprimido (simbolicamente realizado) e as proibições morais, que aparentemente não
são transgredidas.

O sonho é um bom exemplo do simbolismo insconsciente. Além de concretizar imagens, o


sonho é um fenômeno normal e universal. É também um bom exemplo da formação de
sintomas. Do conflito entre dois elementos, o desejo e a repressão, surge uma solução
simbólica intermediária que em parte satisfaz e em parte contraria a ambos.

Os trabalhos clínicos têm comprovado a universalidade de muitos símbolos. A casa é


representativa do corpo da mãe, ou

seja, um lugar de proteção, onde há pessoas. As conchas são símbolos dos genitais femininos.
Os objetos compridos (bengalas. postes) são em geral símbolos dos genitais masculinos. A
água está ligada à fantasia de nascer-renascer (observem os mitos ligados aos batismos).
Cavalgar ou subir escadas são símbolos ligados ao ato sexual. Perdas de dentes simbolizam a
castração.

2.8.3 Neurose e sintomas

O modelo de aparecimento das neuroses e psicoses é similar à formação de sintomas descritos


nos atos falhos e nos sonhos. Durante todo nosso processo de desenvolvimento, enfrentamos
angústias com as quais teremos de lidar. Se falhamos neste processo, a repressão
desencadeada pelo Ego criará um ponto de fixação, ao qual estaremos sujeitos a retornar
diante de novas crises, notada- mente as crises que possuam relações com as fantasias ou
desejos reprimidos. Achamos que agora poderemos entender melhor o caso de Ana O. A sua
permanência no leito de morte do pai foi um processo doloroso. Mas estar ali, cuidando do pai,
exercendo o papel da mãe que estava ausente, fez com que fosse retomada uma antiga fixação
no Complexo de Édipo. Os pensamentos que querem surgir são ligados a um sentimento
amoroso, não como filha, mas como a menininha que desejava o pai, que queria tomar
o lugar de sua mãe. Este desejo incestuoso é um tipo de desejo que os valores morais não
permitem suportar. Fica estabelecido o conflito entre o desejo (Id) e a proibição (Superego). O
desejo que não pode surgir implica em um envolvimento corporal com o pai. Nós já vimos que a
fantasia básica de punição deste período é a castração, portanto, o temor de um ataque
corporal. Do conflito entre o desejo corporal e o temor de ataque corporal, surge o sintoma
como um ponto de conciliação. Surge a paralisia que imobiliza. O corpo está simbolicamente
punido (castrado) para impedir a manifestação da sexualjdade. Mas, na punição, está presente
o desejo pelo pai. Todos estes processos são inconscientes. Ao nível externo, apenas o sintoma
aparece. A angústia do conflito não é vivida, O sintoma surge assim como um enigma, que
simultaneamente atualiza, proíbe e encobre o desejo conflitivo.

Os vários quadros psicopatológicos têm origem similar. Como um aprofundamento específico


em cada quadro, recomendamos as leituras das seguintes obras de Freud: Análise da fobia de
um menino de cinco anos (1909); Análise de um caso de neurose obsessiva (1909) e
Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia (1911).

48

49

2.9 Leituras recomendadas

A coleção das obras completas de Freud é um acervo volumos Recomendaremos apenas


algumas obras, que julgamos sejam faci1it doras para um contato preliminar com seu trabalho.
As obr estão indicadas numa ordem didática de leitura. Normalmente.

obras completas estão apresentadas em ordem cronológica, portani indicaremos apenas o


título e a data inicial de publicação. Coi estes referenciais, qualquer edição poderá ser
consultada.

l.) Cinco lições de psicanálise (1910). Constitui-se de ui conjunto de cinco conferências


pronunciadas por Freud em 19l( na Clark University (Estados Unidos), para um público leigo ei
psicanálise. E uma visão sintética e clara do surgimento e d proposta clínica da psicanálise.

2.a) ConJerè,icias introdutórias à psicanálise (1916). E ui grupo de vinte e ilto conferências


proferidas por Freud a médicc em 1916, num curso introdutório à psicanálise. Tem o mérito d
resumir seus principais trabalhos publicados. A primeira pari dedicada às parapraxias, sintetiza
a "Psicopatologia da vida cotidiana (1901). A segunda parte, dedicada aos sonhos, é uma
descriçã didática dos aspectos fundamentais de "A interpretação dos sonhos (1900). A terceira
parte, dedicada às neuroses, engloba os "Trí ensaios para uma teoria sexual" (1905) e discute
vários de sei casos clínicos, bem como as novas descobertas nos processos d formação de
sintomas.

3.a) O Ego e o Id (1923). E o texto no qual Freud propõ

sua teoria definitiva sobre a formação das instâncias psicodinâmica

da personalidade.
4.) Análise terminável e interminável (1937). Este textc escrito no período final da vida de
Freud, faz uma retrospectiv crítica das possibilidades da psicanálise, sob a luz do início
término do trabalho clínico. Nele há também uma exposição muit didática de sua teoria final
dos instintos, onde opõe os instintc de vida aos instintos de morte.

50

Capítulo 3

Modelo piagetiano

Clara Regina Rappaport

3.1 Introdução

Piaget tem mais de 50 livros e monografias, além de centenas

de artigos publicados num período de 70 anos.

Preocupou-se com vários aspectos do conhecimento dando ênfase principal ao estudo da


natureza do desenvolvimento de todo conhecimento - em tods as disciplinas e em toda
história intelectual da humanidade -, como também e principalmente no desenvolvimento
intelectual da criança. Pesquisou e escreveu nos seguintes campos:

Biologia, Filosofia, Psicologia, Lógica, Sociologia, Teologia e História da Ciência, além de Física e
Matemática.

A preocupação central de Piaget foi o "sujeito epistêmico" (Gruber e Vonèche, 1977), isto é, o
estudo dos processos de pensamento presentes desde a infância inicial até a idade adulta.
Interessou-se basicamente pela necessidade de conhecimento típico do homem, que o define
como espécie "homo sapiens". Esta necessidade foi negligenciada por outras correntes
teóricas explicativas do desenvolvimento humano tais como a psicanálise e o behaviorismo. A
primeira centralizou seus etudos nos processos emocionais e irracionais, enfatizando a
presença de impulsos primitivos como a base da conduta; e a segunda despiu o homem de
suas características individuais, mostrando a conduta como resultante de processos de
aprendizagem, que podem ser controlados pela estimulação ambiental.

Piaget apresentou uma visão interacionista. Mostrou a criança

e o homem num processo ativo de contínua interação, procurando

entender quais os mecanismos mentais que o sujeito usa nas diferentes

etapas da vida para poder entender o mundo. Sim, pois para Piaget

a adaptação à realidade externa depende basicamente do conhecimento. Estudou o


desenvolvimento do conhecimento da lógica, espaço,
51

tempo, causalidade, moralidade, brinquedo, linguagem e matemática. Lidou com muitos


processos psicológicos: pensamento. percepção. imaginação, memória, imitação, ação.

Além disso, preocupou-se em elaborar uma posição filosófica, a epistemologia genética. Isto é,
procurou estudar cientificamente quais os processos que o indivíduo usa para conhecer a
realidade. E, como se a tarefa de pesquisar uma área tão vasta e tão desconhecida já não fosse
gigantesca, Piaget procurou formular um ponto de vista filosófico sobre a gênese do
conhecimento. Isto é, conviveu com crianças de todas as idades, submetendo-as às mais
variadas formas de estimulação e experimentação, mas não deixou de refletir sobre as bases
filosóficas do conhecimento.

A preocupação central de Piaget dirige-se à elaboração de uma

teoria do conhecimento, que possa explicar como o organismo

conhece o mundo. E esta colocação reflete sua formação inicial

m Biologia, pois considera que só o conhecimento possibilita ao

homem um estado de equilibcio rnterno que o capacita a adaptar-se

o meio ambiente. Existe, para ele, uma realidade externa ao sujeito do conhecimento, e é a
presença desta realidade que regula e corrige o desenvolvimento do conhecimento
adaptativo. A função do desenvolvimento não consiste em produzir cópias internalizada da
realidade externa, mas sim, em produzir estruturas lógicas que permitam ao indivíduo atuar
sobre o mundo de formas cada vez mais flexíveis e complexas.

Preocupa-se, portanto, com a gênese do conhecimento, isto é. em saber quais os processos


mentais envolvidos numa dada situação de resolução de problemas e quais os processos que
ocorrem na criança para possibilitar aquele tipo de atuação. Assim, sua obra é de epistemologia
genética e mostra como o conhecimento se desenvolve, desde as rudimentares estruturas
mentais do recém-nascido até o pensamento lógico formal do adolescente. Procura entender
como, e em função de que, estas estruturas iniciais se transformam, dando lugar a outras cada
vez mais complexas.

Vê a criança como que tentando descobrir o sentido do mundo. lidando ativamente com
objetos e pessoas. A criança vai construir estruturas mentais e adquirir modos de
funcionamento dessas estruturas em função de sua tentativa incessante de entender o mundo
ao seu redor, compreender seus eventos e sistematizar suas idéias num todo coerente.

Estudou, portanto, o desenvolvimento dos vários processos cognitivos, dirigindo-se aos aspectos
qualitativos e não quantitativos. Lembremo-nos de que, quando Piaget começou suas
investigações. n interesse principal dos psicólogos do desenvolvimento, no que se

52

refere à inteligência, consistia numa tentativa de quantificação, de medição com vista à


padronização de testes. Ao aplicar estes testes, Piaget interessou-se muito mais pelas
respostas incorretas do que pelas corretas, passando a uma busca de entendimento dos
processos mentais que a criança usara para chegar à emissão daqueh resposta. Portanto, não
se contentou com a obtenção e registro das respostas corretas, da solução adequada do
problema, como faziam os demais pesquisadores, mas, através de outras questões que
colocava diante da criança, procurou entender qual o processo de pensamento subjacente na
emissão daquela resposta.

A partir de seus primeiros contatos com os testes de inteligência e tendo despertado sua
curiosidade científica para a pesquisa dos processos cognitivos, passou a observar o
desenvolvimento de seus próprios filhos, registrando suas reações desde os primeiros dias de
vida. Em muitas obras de Piaget são freqüentes as citações das reações de Jacqueline, Laurent
e Lucienne.

Em 1921, passou a ocupar o cargo de Diretor de Estudos no Instituto J. J. Rousseau, em


Genebra, quando iniciou uma série ie estudos que resultaram numa obra vastíssima,
totalmente documentada por investigações empíricas. Possui notável coerência interna,
riqueza de detalhes e de assuntos abordados. Grande número de colaboradores foram
atraídos por estes projetos e eles possibilitaram a ampliação das pesquisas, pois vários deles se
tornaram co-autores de alguns artigos e livros.

Piaget utilizou como técnica básica de pesquisa o método clínico, que havia aprendido a
aplicar na clínica de Bleuler e nos cursos .práticos da Sorbonne.

Esta opção, às vezes criticada por falhas no controle experimental e descrição incompleta
(Baldwin, 1967), permitiu um aprofundamento no conhecimento dos processos mentais das
crianças. Uma de suas primeiras constatações foi a de que o estudo do pensamento expresso
apenas verbalmente - isto é, através de perguntas feitas à criança, na ausência de
manipulações concretas às quais suas respostas pudessem referir-se - pode fornecer somente
um quadro incompleto da estrutura cognitiva e de seu desenvolvimento. Só depois de 1923,
quando estudou bebês e crianças em idade escolar; é que percebeu a necessidade de fazer
uma distinção entre a lógica das ações, isto é, a lógica expressa no comportamento emitido, e a
lógica aplicada a afirmações verbais.

Assim, através do contato contínuo e constante com um número cada vez maior de sujeitos das
várias faixas etárias e pesquisando diferentes aspectos do funcionamento cognitivo, Piaget
chegou à

53

formulação de inúmeros conceitos continuamente reavaliados em função de novos dados.


Seus colaboradores recebiam treinamento intensivo na aplicação das técnicas de pesquisa
antes de saírem a campo para coleta de dados, para a aplicação das provas nos sujeitos
experimentais.

Os trabalhos de Piaget, que se multiplicaram rapidamente na Europa, não foram prontamente


absorvidos pela literatura psicológica americana, que estava dominada por uma visão
mecanicista da natureza humana, pela crença de que idéias, pensamentos e modos de
resolução de problemas representam primariamente o resultado de aprendizagem. Assim, a
tarefa do psicólogo consistiria em descobrir quais seriam esses processos e em desenvolver
técnicas cada vez mais adequadas de ensino de conceitos, tarefas, etc. Somente no período
pós-guerra, em que todo o sistema educacional americano começou a ser questionado. é que
alguns autores se voltaram para essas novas idéias que estavam sendo desenvolvidas na
Europa. Surgiram então as primeiras traduções das obras de Piaget para o inglês, e várias
tentativas de resumi-Ias em manuais, ou ainda, de apresentá-las de forma mais didática, visto
que, mesmo para quem domine o francês, muitos aspectos das obras piagetianas são difíceis
de entender.

No Brasil, Piaget começou a ser conhecido na década de 60, e a partir dessa época foi incluído
o seu estudo no currículo dos cursos universitários de Psicologia, Pedagogia, etc. Alguns
autores tentaram, como nos Estados Unidos, uma apresentação mais didática de seus
conceitos (Biággio, 1976).

No Brasil observamos, no entanto, um fenômeno para o qual gostaríamos de chamar a


atenção do leitor. Muitas escolas para crianças em idades precoces (a partir dos 2 anos),
denominadas escolas maternais ou jardins de infância, ou mesmo escolas de 1 o grau,
passaram a utilizar o que denominaram Método Piaget.

E preciso ficar bem claro que é possível, válida e recomendável uma utilização dos
conhecimentos trazidos à luz por Piaget a respeito das estruturas mentais que se acham
presentes em cada faixa etária e do modo de funcionamento característico dessas estruturas
em cada fase do desenvolvimento. Mas, é perigoso tentar transpor esses conhecimentos para
um conteúdo programático sem um aprofundamento maior.

Acreditamos ser necessário tanto um conhecimento profundo da nossa criança, nos vários
segmentos da população, como também um estudo árduo e prolongado das propostas
piagetianas para que possamos chegar a uma utilização válida e profícua.

Não há dúvida de que muito se tem a ganhar no que se refere

54

ao desenvolvimento pleno das capacidades mentais da criança, quando o planejamento


pedagógico leva em conta os potenciais e interesses típicos de cada idade. Mas, no caso de um
conhecimento superficial da obra de Piaget a meu ver, a aplicação prática imediata pode ser
considerada inadequada, se não, irrefletida.

3.2 Alguns conceitos fundamentais

Passemos entãc a examinar alguns conceitos piagetianos que são essenciais para a
compreensão do processo de desenvolvimento da inteligência.

3.2.1 Hereditariedade

O indivíduo herda uma série de estruturas biológicas sensoriais e neurológicas-) que


predispõem ao surgimento de certas estruturas mentais. Portanto, a inteligência não a
herdamos. Herdamos um organismo que vai amadurecer em contato com o meio ambiente.
Desta interação organismo-ambiente resultarão determinadas estruturas cognitivas que vão
funcionar de modo semelhante durante toda a vida do sujeito. Este modo de funcionamento,
que constitui para Piaget nossa herança biológica (Flaveli, 1975), permanece essencial- mente
constante durante toda a vida. Por conseguinte, existe um paralelismo entre o biológico e o
mental, na medida em que todo organismo dispõe de certas propriedades para se adaptar ao
meio ambiente, e o funcionamento mental seria apenas um dos aspectos deste
relacionamento.

Ainda atentos ao aspecto biológico, podemos dizer que a maturação do organismo


(basicamente do sistema nervoso central) vai contribuir de forma decisiva para que apareçam
essas novas estruturas mentais que proporcionam a possibilidade de adaptação cada vez
melhor ao ambiente.

Quando se fala em ambiente, é bom lembrar que este inclui tanto aspectos físicos como sociais,
de relacionamento humano, que tornam mais difícil e complexo o processo de adaptação. Isto
porque a criança vai precisar desenvolver recursos intelectuais para solucionar uma ampla
variedade de situações para viver satisfatoriamente num determinado ambiente social.

Assim, lembramos, tanto o ambiente físico como o social concorrem no sentido de oferecer
estímulos e situações que requerem um processo cognitivo para resolução.

Entre os estímulos sociais estão os comportamentos, tarefas, conceitos etc., que são
ensinados, deliberadamente ou não, pelas

55

pessoas da cultura através dos processos que costumamos chamar de aprendizagem social.
Ou, dito de outra forma, a aprendizagem social se refere àqueles comportamentos, atitudes e
conhecimentos que a criança adquire através do contato humano constante e contínuo.

Ë óbvio, então, que a riqueza ou a pobreza de estimulação tanto no plano físico corno no social
vão interferir no processo de desenvolvimento da inteligência. No aspecto físico, um ambiente
rico em estimulação irá proporcionar objetos que possam ser manipulados pela criança, lugares
que possam ser explorados, oportunidades de observação de fenômenos da natureza, etc. No
plano social, o ambiente será rico de estimulação quando reforçar e valorizar a aquisição de
competência da criança em muitos e muitos aspectos. Exemplificando: o desempenho
lingüístico da criança vai depender, além dos aspectos de maturação orgânica, do grau de
estimulação verbal e social que a criança vier a receber. Assim, numa família onde os vários
membros têm uma linguagem elaborada e consideram importante a capacidade de expressão
verbal, a criança terá maior probabilidade de desenvolver um repertório verbal amplo cc
rnplexo do que se vivesse numa família onde a linguagem habitualmene utilizada pelos adultos
é pobre, concreta e reduzida.

Entenda-se, pois, que, no caso da linguagem ou de outros aspectos que dependem do


desenvolvimento cognitivo, o sujeito herda a capacidade para a aprendizagem e o
desempenho. Mas a plena realização destas capacidades depende das condições que o meio
ambiente irá oferecer.

3.2.2 A dapração

O ambiente físico e social coloca continuamente a criança diante de questões que rompem o
estado de equilíbrio do organismo e eliciam a busca de comportamentos mais adaptativos. No
caso do tuncionamento mental, as questões podem ser propostas pelo próprio sujeito do
conhecimento. E, neste ponto, podemos mencionar que Piaget valoriza a curiosidade
intelectual e a criatividade, sugerindo que o ato de conhecer é prazeiroso e gratificante tanto
para a criança como para o adolescente e o adulto, e se constitui numa torça motivadora para o
seu próprio desenvolvimento. Em última análise, poderíamos dizer que o conhecimento
possibilita novas formas de interação com o ambiente, proporcionando uma adaptação cada
vez mais completa e eficiente e, neste sentido, é gratificante para o organismo, que se sente
mais apto a lidar com situações novas.

Desta forma, poderíamos dizer que as novas questões. movimentam o organismo no sentido
de resolvê-las. Para tanto vai se

utilizar das estruturas mentais já existentes ou então, quando estas estruturas se mostram
ineficientes, elas serão modificadas a fim de se chegar a uma forma adequada para se lidar
com a nova situação. Assim, no processo global de adaptação, estariam implicados dois
processos complementares: a as'irnilação e a acomodação.

O prcesso de assimilação se refere à tentativa, feita pelo sujeito, de solucionar uma


determinada situação, utilizando uma estrutura mental já formada, isto é, a nova situação, ou o
novo elemento é incorporado e assimilado a um sistema já pronto. Trata-se portanto da
atualização de um aspecto do repertório comportamental ou mental do sujeito numa dada
circunstância. Exemplos: a partir do momento em que uma criança aprende a subir escadas,
saberá fazê-lo em qualquer circunstância. O mesmo exemplo vale para a aquisição de outros
comportamentos motores, como correr, andar de bicicleta, chutar bola, varrer a casa, etc. Ou
ainda, se a criança passou a dominar as quatro operações aritméticas básicas (somar, subtrair,
multiplicar, dividir) saberá fazê-lo, sempre que solicitada. Ou mesmo, se aprender o caminho
que vai de sua casa à escola, sabendo atravessar as ruas, etc., poderá ir sozinha à escola todos
os dias.

Esta assimilação mental é bastante semelhante à assimilação biológica. No caso da ingestão de


um alimento que o organismo já está habituado, haverá ativação de todo um processo de
mastigação, deglutição, transformação, etc., até que o organismo assimile o alimento. No caso
de ser um alimento diferente daqueles habitualmente ingeridos, os processos digestivos
precisam adaptar-se às propriedades físicas e químicas específicas deste novo elemento. Assim,
o organismo precisa ajustar-se a esse novo elemento para tornar possível a obtenção
de um estado de equilíbrio.

O mesmo ocorre em relação aos processos mentais. Suponhamos que uma criança, que
aprendeu a andar de bicicleta, se depare com outro veículo que guarde algumas semelhanças
com o primeiro, porém contenIa elementos novos que a criança desconhece, como, por
exemplo, diversas marchas. Nesta situação a criança tentará agir com a segunda bicicleta da
mesma maneira como fazia com a primeira, e não obterá sucesso. Estará usando um processo
de assimilação, isto é, de tentar solucionar a situação nova com base nas estruturas antigas.
Este processo não será eficiente, pois estas estruturas são inadequadas e insuficientes para
este novo elemento. O sujeito tentará então novas maneiras de acir, levando agora em
consideração as propriedades específicas daquele objeto. Isto é. irá modificar suas estruturas
antigas para poder dominar uma nova Situação. A este processo de modificação dc etrutura
antigas com

vistas à solução de um novo problema de ajustamento. a uma nova situação, Piaget denomina
acornodaçdo. E no momento em que a criança conseguir dominar adequadamente o segundo
veículo, diremos que se acomodou a ele e, portanto, adaptou-se a esta nova exigência da
realidade.

Vemos, pois, que da mesma maneira como, biologicamente, o organismo desenvolve maneiras
de se adaptar à realidade e manter com ela um estado de equilíbrio, mentalmente
desenvolvemos processos com o mesmo objetivo.

Para Piaget existe uma troca constante entre o sujeito e o meio, bem como uma busca
constante de um estado de equilíbrio biológico e mental.

Os processos de assimilação e acomodação são complementares e acham-se presentes


durante toda a vida do indivíduo e permitem um estado de adaptação intelectual.

É muito difícil, se não impossível, imaginar uma situação em que possa ocorrer assimilação
sem acomodação, pois dificilmente um objeto é exatamente igual a outro já conhecido, ou
uma situação exatamente igual a outra.

Exemplifiquemos: um bebê que brinca com bolas e que já tenha formado um esquema de
brincar com bolas. Ao receber uma nova bola, a criança irá manipulá-la da mesma forma como
fez anteriormente com objetos semelhantes (assimilação); mas, supondo que a nova bola seja
ligeiramente maior ou menor do que aquelas anteriormente manipuladas, será necessário um
processo de acomodação.

Ou outro exemplo: um professor que pretenda ministrar a mesma aula a duas ou três
diferentes turmas de alunos. Por mais que ele procure ater-se ao mesmo conteúdo e à mesma
metodologia (assimilação), algumas pequenas modificações serão introduzidas. em função da
reação dos alunos (acomodação).

O processo de adaptação intelectual é, pois, um processo extremamente dinâmico e envolve a


todo momento tanto a assimilação como a acomodação, possibilitando um crescimento, um
desenvolvimento pssoal, na medida em que o sujeito adquire uma competéncia e uma
flexibilidade cada vez maiores para lidar com as situações da vida prática.

3.2.3 Lvquema
Quando nascem, as crianças não são dotadas de capacidades mentais prontas, mas apenas de
alguns reflexos, como chupar e agarrar. além de tendências inatas a exercitá-los e a organizar
suas

ações. Herdam, portanto, não uma inteligência organizada, mas alguns elementos (a estrutura
biológica, neurológica) que determinam seu modo de reagir ao ambiente, que é, no início da
vida, absolutamente caótico para a criança. Devido à sua imaturidade neurológica e psicológica,
a criança não tem qualquer conhecimento da realidade externa (objetos, pessoas, situações) ou
de seus estados internos (fome, frio, etc.). Poderíamos dizer que a criança, através de seu
aparato sensorial, dispõe apenas de sensações provenientes tanto do exterior como do
interior, mas de nenhuma capacidade para discriminar qualquer uma delas. Exemplificando:
reagirá a uma luz intensa, fechando os olhos; mas este ato será puramente reflexo. Chorará ao
sentir fome, mas não saberá discriminar que o estado de desconforto interno se deve à falta de
alimentação.

Assim, de acordo com Piaget, a partir de um equipamento biológico hereditário, a criança irá
formar estruturas mentais com a finalidade de organizar este caos de sensações e estados
internos desconhecidos. Podemos então introduzir um novo conceito que, por sua
complexidade, será tão difícil de entender, como os anteriores e os que citaremos a seguir.
Quero me referir ao conceito de esquema, uma unidade estrutural básica de pensamento ou
de ação e que corresponde, de certa maneira, à estrutura biolóeica que muda e se adapta.

No aspecto orgânico, sabemos que o nosso corpo é formado de várias estruturas unitárias
(células, por exemplo) que se organizam em elementos maiores (órgãos) ou em sistemas de
funcionamento (aparelhos). No aspecto mental, poderíamos dizer que a nossa estrutura
unitária básica é o esquema, que pode ser simples (como, por exemplo, uma resposta
específica a um estímulo - sugar o dedo quando este encosta nos lábios) ou complexo (como o
esquema que temos das pessoas - de nossa mãe, por exemplo, ou ainda a maneira como
solucionamos problemas matemáticos ou científicos).

Vemos, portanto, que o termo esquema pode referir-se tanto a uma seqüência específica de
ações motoras realizadas por um bebê para alcançar uma argola pendurada em seu berço,
como à imagem interiorizada que temos da escola primária que freqüentamos (incluindo
instalações físicas, localização do prédio, vivências que lá tivemos. pessoas e situações
significativas) ate estratégias mentais que utilizamos para solução de problemas (de análise
combinatória, por exemplo).

Podemos tentar então conceituar um esquema tanto como uma disposição comportamental
específica (uma seqüência de comportamentos eliciada sempre que uni estímulo especifico se
apresenta, como, por exemplo, o esquema de preensão, que seria ativado sempre que o
indivíduo, criança ou adulto, procurasse alcançar um

59

objeto e segurá-lo em suas mãos), ou como uma idéia que formamos a respeito de uma pessoa,
objeto ou situação, ou ainda como uma determinada maneira de solucionar problemas
abstratos.
Ou, conforme disse Flaveli (1975): "Sendo uma estrutura cognitiva, um esquema é uma forma
mais ou menos fluida de uma organização mais ou menos plástica, à qual as ações e os objetos
são assimilados durante o funcionamento cognitivo" (p. 54).

Vemos então que o esquema constitui a unidade estrutural da mente e que, da mesma forma
como as unidades estruturais biológicas. não é um elemento estático, porém, dinâmico e
variado em seu conteúdo.

Vejamos como se dá o processo de formação de um esquema sensorial motor, como, por


exemplo, o esquema de preensão. A criança nasce com o denominado reflexo de preensão, isto
é, qualquer objeto que seja colocado na palma de sua mão, elicia o ato reflexo de fechá-la,
agarrando. portanto, o objeto. À medida que ocorre maturação biológica e que o ambiente
apresenta à criança inúmeros objetos que possam ser pegos, ela irá desenvolver um esquema
de preensão. Este esquema é muito mais complexo do que o ato reflexo, porque inclui vários
movimentos da criança, além de sua vontade de querer pegar aquele objeto. Uma vez formado
este esquema, ele será ativado toda vez em que a criança quiser pegar um objeto e
será modificado, sempre que o novo objeto tiver propriedades específicas, diferentes daqueles
anteriormente "pegos" pela criança. Assim, os esquemas são unidades estruturais móveis que
se modificam e adaptam, enriquecendo com isso tanto o repertório comportamental como a
vida mental do indivíduo.

Vejamos um outro exemplo que ilustre a maleabilidade dos esquemas. A criança, em contato
com sua mãe, irá formar um esquema de mãe. Este esquema incluirá tanto a figura física da
mãe como os sentimentos que a criança tem em relação a ela, as vivências que tiveram em
comum, etc. À medida em que a criança vai crescendo, este esquema irá se modificando e
ampliando não apenas no sentido de incluir novas vivências que a criança tenha com a própria
mãe (que seria um aspecto mais quantitativo, de acréscimo de elementos), mas também de
incluir outras mães, até chegar ao conceito abstrato que nós adultos temos de mãe (mudanças
também qualitativas, que modificam a própria estrutura do esquema inicial, mais simples e
mais primitiva).

Os esquemas, portanto, estão er contínuo desenvolvimento e este desenvolvimento se dá no


sentido de permitir ao indivíduo uma adaptação mais complexa a uma realidade que é
percebida

por ele, de forma cada vez mais diferenciada e abrangente, exigindo. portanto, formas de
comportamento e de pensamento mais evoluídas.

Nesta evolução, que constitui a essência do crescimento mental, os esquemas iniciais


primitivos e sensório-motores se ampliam, se fundem, se diferenciam, interiorizam-se e
adquirem a organização que caracteriza os sistemas operacionais concretos (colocar varinhas
de madeira por ordem crescente de tamanho) ou abstratos (compreensão do sistema
numérico ou de teorias científicas).

Na realidade, nossa tarefa, neste momento, poderia resumir-se na tentativa de formar um


esquema mental do conceito piagetiano de esquema. E, diga-se de passagem, esta não é uma
tarefa das mais fáceis.
3.2.4 Equilíbrio

O conceito de equilíbrio, ou melhor, do processo de equilibração é um dos que apresenta


maiores dificuldades para o leitor que está iniciando seus estudos das abordagens piagetianas.
Apesar de estar presente em várias de suas obras, uma das suas últimas publicações discute em
maior profundidade este conceito (A equilibração das estruturas cognitivas - 1976).

Dada justamente a complexidade deste aspecto da teoria piagetiana, não temos a pretensão,
neste momento, de fazer uma apresentação aprofundada do mesmo, mas apenas uma
colocação inicial, que possibilite ao leitor o entendimento dos aspectos básicos do
desenvolvimento cognitivo.

Anteriormente já vimos que Piaget traça um paralelismo entre o desenvolvimento biológico e o


desenvolvimento mental. Sabemos que o organismo funciona de modo a atingir e a procurar
manter um estado de equilíbrio interno que permita a sobrevivência num determinado meio
ambiente. Para isto, os vários elementos orgânicos se organizam em sistemas maiores ou
menores, mais simples ou mais complexos, de forma a obter tanto um desenvolvimento como
um funcionamento harmônico de todas as partes. Se um dos elementos de um sistema entra
em desacordo com os demais, ocorre um processo qualquer no organismo, com vistas a
retornar ao estado anterior de equilíbrio. Exemplificando: ao sentir fome, o indivíduo buscará
uma forma de obtenção e ingestão de alimentos que permita sanar esta deficiência orgânica e,
quando o fizer, retornará a um estado de equilíbrio.

Podemos dizer que um processo semelhante está presente na organização mental do


indivíduo, processo este denominado equilibração das eru!uras cognitivas ou apenas
equilíbrio. Em linguagem

60

61

simples, não passaria de um processo de organização das estruturas cognitivas num sistema
coerente, interdependente, que possibilita ao indivíduo um tipo ou outro de adaptação à
realidade. Exemplo:

voltamos à situação do recém-nascido ou do bebê de poucos meses de vida e analisemos sua


situação diante da realidade. A criança está recebendo continuamente uma série de impressões
sensoriais desprovidas de qualquer significado para ela. Está, portanto, em completo
desequilíbrio com esta realidade, dependendo totalmente da interferência de outras pessoas
para sobreviver. A tarefa principal do crescimento mental do primeiro ano de vida consistirá em
organizar estas impressões sensoriais de alguma maneira que permita à criança atuar de modo
coerente sobre a realidade. Isto se conseguirá à medida em que forme seus primeiros
esquemas, que Piaget denomina de esquemas sen.soriais-tnotores, justamente porque sua
formação dependerá das impressões sensoriais que a criança receber dos objetos
e de sua possibilidade de manipulação, de exploração motora.
Assim, a primeira forma de equilíbrio que a criança irá adquirir consiste, justamente, na
formação de uma série de esquemas senso- riais-motores que lhe permitirão organizar aquele
caos inicial de sensações internas e externas, dando-lhe condições de atuar sobre a realidade.

Assim sendo, poderíamos dizer que o desenvolvimento é um processo que busca atingir formas
de equilíbrio cada vez melhores; ou, dito de outra maneira, é um processo de equilibração
sucessiva que tende a uma forma final, qual seja a aquisição do pensamento operacional
formal. Isto é, em cada fase de desenvolvimento, a criança consegue uma determinada
organização mental que lhe permite lidar com o ambiente. Esta organização mental (equilíbrio)
será modificada à medida em que o indivíduo conseguir atingir novas formas de compreeAder
a realidade e de atuar sobre ela,* e tenderá a uma forma final que será atingida na
adolescência e que consistirá no padrão intelectual que persistirá durante a idade adulta. Não
que o desenvolvimento intelectual atinja um ápice na adolescência e depois ocorra uma
estagnação. Nada disso. Simplesmente, o que ocorre é que, uma vez atingido o grau de
maturidade mental representado pela oportunidade de realizar operações mentais formais,
esta será a forma predominante de raciocínio utilizada pelo adulto. Seu desenvolvimento
posterior consistirá numa ampliação de conhecimentos tanto em extensão como em
profundidade, mas não na aquisição de novos modos de funcionamento mental.

* Veremos as principais fases no item seguinte.

Podemos dizer que o adulto atinge uma forma de equilíbrio com o ambiente. Conseguiu
desenvolver estruturas e modos de funcionamento dessas estruturas que lhe permitem viver
num estado de equilíbrio satisfatório com o ambiente. Este não será, entretanto, um equilíbrio
estático, mas sim, um equilíbrio dinâmico. Isto porque, a todo momento as pessoas estão sendo
solicitadas a solucionar situações e problemas novos. A cada solicitação este equilíbrio é
rompido e ocorre uma movimentação das estruturas mentais no sentido de solucionar este
desequilíbrio e atingir novamente o estado de equilíbrio. Este será conseguido no momento em
que o problema for solucionado. No caso do adulto, para se equilibrar, ele utilizará sempre o
mesmo tipo de estrutura e o mesmo tipo de funcionamento dessas estruturas. No caso da
criança, ela poderá não apenas se utilizar dos recursos já existentes, mas desenvolver novos
processos de funcionamento mental. E é neste sentido que podemos dizer que o
desenvolvimento consiste numa passagem constante de um estado de equilíbrio para um
estado de desequilíbrio - para um equilíbrio superior no sentido de que a criança terá
desenvolvido uma maneira mais eficiente (poderíamos até dizer, mais inteligente) de lidar com
seu ambiente.

3.3 Características gerais dos principais períodos de desenvolvimento

Podemos conceituar o desenvolvimento - conforme Piaget - como um processo de


equilibração progressiva que tende para uma forma final, qual seja a conquista das operações
formais, O equilíbrio se refere à forma pela qual o indivíduo lida com a realidade na tentativa
de compreendê-la, como organiza seus conhecimentos (ou seus esquemas) em sistemas
integrados de ações ou crenças. com a finalidade de adaptação.

Ao longo de sua vida Piaget observou que existem formas diferentes de interagir com o
ambiente nas diversas faixas etárias. A estas maneiras típicas de agir e pensar, Piaget
denominou estágio ou período, Assim sendo, podemos dizer, que a determinadas faixas
etárias correspondem determinados tipos de equisições mentais e de organização destas
aquisições que condicionam a atuação da criança em seu ambiente. A criança irá, pois, à
medida que amadurece física e psicologicamente, que é estimulada pelo ambiente físico e
social, construindo sua inteligência.

Sim, porque é preciso ficar bem claro que embora tanto a teoria psicanalítica como a teoria
piagetiana possam ser chamadas de teorias de estágios, pois consideram a natureza do
desenvolvimento relativamente seqüencial e fixa, focalizando estágios de de-

62

63

senvolvimento, isto é, consideram o curso de aquisição de comportamentos, aptidões,


sentimentos, conhecimentos, etc., relativamente fixo para a maioria das crianças, existem
entre as duas posturas diferenças fundamentais.

Uma delas se refere ao fato de que para Freud a criança não tomará parte ativa na
determinação da seqüência de suas fases de desenvolvimento. Estas ocorrerão, basicamente na
mesma idade, para todas as crianças e se caracterizarão, principalmente, pelo investimento da
libido em urna ou outra região do corpo. E como se esta seqüência de desenvolvimento e de
integração da personalidade estivesse pré-fixada e seguisse um curso natural acompanhando a
própria maturação física da criança. Existe, portanto, um paralelismo muito forte entre o
biológico e o psicológico, quase que se poderia dizer que o próprio crescimento biológico irá
determinar em que fase dè desenvolvimento psicológico a criança estará. Esta parece ser
considerada um indivíduo passivo em seu próprio processo de desenvolvimento.

No caso de Piaget, não há dúvida também que o crescimento orgânico, a maturidade


neurológica e fisiológica geral seja um dos determinantes fundamentais do desenvolvimento
psicológico, mas este não será dado à criança. Ela é quem irá construir seu crescimento mental.
A cria1ça é vista como agente de seu próprio desenvolvimento. Ela irá construí-lo a partir dos
quatro determinantes básicos, já citados anteriormente (maturação, estimulação do ambiente
físico, aprendizagem social e tendência ao equilíbrio); e este processo é observado em todas as
crianças, O que ocorre - e é também o que nos permite falar em estágios ou períodos de
desenvolvimento - é que como a maturação é um dos elementos básicos do processo de
desenvolvimento, e que a grande maioria das crianças de uma dada cultura amadurece seus
processos biológicos e psicológicos, em faixas etárias aproximadas, as estruturas mentais e os
seus mecanismos funcionais acabam sendo comuns à grande maioria das crianças de uma
mesma idade cronológica.

Assim, o desenvolvimento, para Piaget, irá seguir determinadas etapas (fases, períodos ou
estágios) caracterizadas pela aparição de estruturas originais e de urna determinada forma de
equilíbrio, que dependem das construções anteriores, mas dela se distinguem. Podemos dizer
que "o essencial dessas construções sucessivas permanece no decorrer dos estágios ulteriores,
como subestruturas sobre as quais se edificam as novas características" (Piaget, 1964).
Assim sendo, no adulto permanecem elementos adquiridos nas fases anteriores e é isto que
justifica a grande riqueza de comportamentos e ajustamentos observados nas várias situações.
O adulto.

por ter atingido a sua forma final de equilíbrio, qual seja, a possibilidade de pensar
abstratamente sobre situações hipotéticas, de modo lógico, poderá tanto conceber uma nova
teoria científica ou doutrina filosófica, como agarrar com suas mãos um determinado objeto
que deseje. Assim estará no primeiro caso, utilizando uma forma superior de equilíbrio
(operações lógico-formais) adquirida na adolescência, e no segundo, um esquema sensorial-
motor, adquirido na infância inicial.

Podemos dizer então que, cada fase corresponde a determinadas características que são
modificadas em função da melhor organização. Cada estágio constitui uma forma particular de
equilíbrio, efetuando-se a evolução mental no sentido de uma equilibração sempre mais
completa e de uma interiorização progressiva.

O desenvolvimento se inicia a partir do equipamento inicial (reflexos inatos) que vão


gradualmente (no primeiro ano de vida) se transformando em esquemas sensoriais motores
rudimentares. Estes esquemas incluem ações motoras explícitas, sendo, portanto, uma forma
de inteligência exteriorizada, que irá se modificar, ao longo do tempo, no sentido de uma
interiorização gradual, caminhará para um desligamento progressivo da ação e para a
formação de esquemas conceituais que supõem uma ação mental.

Na fase pré-operacional, que se segue à sensório-motora e corresponde aproximadamente à


faixa etária que vai dos 2 aos 7 anos, a criança irá formar esquemas simbólicos que
representam cópias internalizadas dos esquemas sensório-motores. Por este motivo, como
veremos mais detalhadamente nos capítulos subseqüentes, este período é considerado de
transição e se caracteriza por um equilíbrio instável. Já no período seguinte, o operacional
concreto, os conhecimentos a respeito da realidade externa adquiridos na fase anterior são
gradualmente transformados em verdadeiros esquemas conceituais. Isto é, na idade escolar
(7-1 1 anos) a criança já forma esquemas conceituais e já trabalha com eles de acordo com os
princípios da lógica, mas ainda depende da existência dos objetos no mundo exterior. Forma,
portanto, esquemas mentais daqueles objetos que têm existência concreta. Só no período
seguinte, denominado período de operações formais (adolescência) é que a criança atingirá os
objetivos básicos de seu desenvolvimento mental, qual sejam pensar abstratamente, pensar
sobre situações hipotéticas de modo lógico e organizar regras, em estruturas mais complexas.
Será. portanto, na adolescência que o sujeito atingirá sua forma final de equilíbrio e isto será
possível pela formação dos esquemas conceituais abstratos. Jsto significa que apenas neste
estágio O Sujeito será

64

capaz de conceituar jermos como bondade, ternura, amizade, Deus, etc.

Apenas por esta colocação podemos ver quão longo e complicado é o processo de
desenvolvimento mental, que se inicia com um organismo totalmente imaturo, dotado apenas
de uns poucos reflexos e vai gradualmente construindo sua vida mental, enriquecendo-se
progressivamente, até chegar a ter capacidade para imaginar uma doutrina filosófica,
questionar valores sociais e com isto contribuir para o progresso social, discutir teorias
científicas já estabelecidas e desenvolver novas, analisar os fundamentos dos dogmas
religiosos, etc. E é justamente em função da complexidade do processo que o estudo do
desenvolvimento da inteligência é uma tarefa árdua, difícil e muitas vezes até penosa para o
estudante. Mas, por outro lado, é extremamente gratificante quando se chega à compreensão
de qual é o mecanismo mental que está determinando tal ou qual comportamento da criança.

3.3.1. Período sensório-motor (0-24 meses)

Representa a conquista, através da percepção e dos movimentos, de todo universo prático que
cerca a criança. Isto é, a formação dos esquemas sensoriais-motores irá permitir ao bebê a
organização inicial dos estímulos ambientais, permitindo que, ao final do período, ele tenha
condições de lidar, embora de modo rudimentar. com a maioria das situações que lhe são
apresentadas.

"No ponto de partida da evolução mental, não existe, certamente, nenhuma diferenciação
entre o eu e o mundo exterior, isto é, as impressões vividas e percebidas não são relacionadas
nem à consciência pessoal sentida como um 'eu', nem a objetos concebidos como exteriores.
São simplesmente dados em um bloco indissociado. ou como que exposto sobre um mesmo
plano, que não é nem interno nem externo, mas a meio caminho entre esses dois pólos. Estes
só se oporão um ao outro pouco a pouco. Ora, por causa desta indissociação primitiva, tudo que
é percebido é centralizado sobre a própria atividade. O eu, no início, está no centro da
realidade. porque é inconsciente de si mesmo e à medida que se constrój como uma realidade
interna ou subjetiva, o mundo exterior vai se objetivando. Em outras palavras, a consciência
começa por um egocentrismo inconsciente e integral, até que os progressos da inteligência
sensório-motora levem à construção de m universo objetivo, onde o próprio corpo aparece
como elemento entre os outros, e, ao qual se opõe a vida interior, localizada neste corpo"
(Piaget, 1964, p. 19).

Uma das funções da inteligência será, portanto, nesta fase, a diferenciação entre os objetos
externos e o próprio corpo.

O período de bebê é sem dúvida bastante complexo do ponto de vista do desenvolvimento, pois
nele irá ocorrer a organização psicológica básica em todos os aspectos (perceptivo, motor,
intelectual, afetivo, social). Do ponto de vista do autoconhecimento, o bebê irá explorar seu
próprio corpo, conhecer os seus vários componentes, sentir emoções, estimular o ambiente
social e ser por ele estimulado e assim irá desenvolver a base do seu autoconcejto. Este
autoconceito estará alicerçado no esquema corporal isto é, na idéia que a criança forma de seu
próprio corpo.

Para chegar à concepção desta imagem corporal (que continuará em formação após esta fase
inicial), é necessária a intervenção de um processo cognitivo, que leve a um conhecimento do
próprio corpo. Vemos, portanto, que o desenvolvimento é um processo integi ado e que a
divisão por itens ou aspectos (emocional, social, intelectual, etc.) é meramente didática.
Em suma, vemos que a criança está trabalhando ativamente no sentido de formar uma noção
do eu, de se distinguir como objeto dos demais objetos existentes no exterior e de se colocar
em relação a eles.

Começará, portanto, com uns poucos reflexos hereditários que irão gradualmente, pelo
exercício, se transformando em esquemas sensoriais_motores. Exemplificando: a criança herda
uma tendência instintiva a se nutrir, tendência esta que será atualizada pelo reflexo de sucção.
Ora, se observarmos um recém-nascido no momento de seu nascimento e alguns dias depois,
veremos que este reflexo já se modificou, incorporando novos elementos, constitujndose em
comportamento mais amplo. Diremos que a sucção de um bebê de 30 dias ou (0.0.30) como
escreve Piaget (onde o primeiro algarismo se refere à idade em anos, o segundo à idade em
meses e o terceiro em dias) deixou de ser um simples reflexo e se transformou em esquema de
sucção. Este esquema continuará se modificando nas semanas e meses seguintes de forma a se
tornar mais abrangente e mais eficiente.

Assim, gradualmente, a criança irá conquistar alguns comportamentos que lhe permitam dar
uma organização à realidade pela conquista da permanência substancial dos quadros sensoriais
(que será obtida pela aquisição da noçào de permanência dos objetos em torno dos
9 meses de idade, e que permitirá à criança a concepção de um mundo estável onde a
existência dos objetos é independente de sua percepção imediata), da construção do espaço
prático (um espaço geral que contém todos os Outros espaços parciais e aos

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objetos neles contidos, bem como sua interrelação e a percepção de si mesmo como um
objeto espacialmente colocado e integrado) da causalidade (reconhecer as relações de
causalidade entre si, objetivando causas para os acontecimentos) e a objetivação das séries
temporais.

Assim ao final do período, embora a criança permaneça bastante egocêntrica, autocentralizada


em seu entendimento da realidade, já terá realizado uma boa caminhada no sentido de
conhecimento e adaptação à realidade, embora permaneça bastante limitada em suas
possibilidades intelectuais. Terá conseguido atingir uma forma de equilíbrio, isto é, terá
desenvolvido recursos pessoais para resolver uma serie de situações através de uma
inteligência explícita. ou sensório-motora.

3.3.2. Período pré-operacional (2-7 OflOS

Ao se aproximar dos 24 meses a criança estará desenvolvendo ativamente a linguagem o que


lhe dará possibilidades de. além de se utilizar da inteligência prática decorrente dos esquemas
sensoriaismotores formados na fase anterior, iniciar a capacidade de representar uma coisa por
outra, ou seja. formar esquemas simbólicos. Isto será conseguido tanto a partir do uso de um
objeto como se fosse outro (quando por exemplo. uma caixa de fósforos pode se transformar
num carrinho para brincar), de uma situação por outra (na brincadeira de casinha a criança
estará representando situações da vida diária) OU ainda de um objeto. pessoa ou situação por
uma palavra.
O alcance do pensamento irá aumentar, obviamente, mas lenta e gradualmente, e assim a
criança continuará bastante egocêntrica e presa às ações. Egocêntrica, pois devido à ausência
de esquemas onceituais e de lógica. o pensamento será caractcriiado por uma tendência
lúdica, por uma mistura de realidade com lantasia, o que determinará uma percepção muito
distorcida da realidade. E esta distorção se dará justamente em função destas limitacões.

feremos. entao, uma criança que a niel comportamental atuará de modo lógico e coerente (em
função dos esquemas sensoriaismotores adquiridos na fase anterior) e que a nível de
entendimento da realidade estará desequilibrada (eni funcão da ausência de esquemas
conceituais t.

O egocentrismo se caracteriia. basicamente, por uma visão da realidade que parte do próprio
e:i, isto é, a criança não concebe um mundo, uma situação da qual não faça parte. confunde-se
com objetos e pessoas, no sentido de atribuir a eles seus próprios pensa-

nentos, sentimentos, etc. Assim a criança dará explicações animísticas (atribuição de


características humanas a animais, plantas e objetos, por exemplo, dizer que a boneca vai
dormir porque está com sono ou que a panela está sentada no fogão), artificialjstas (atribuição
de causas humanas aos fenômenos naturais, exemplo disso é dizer que os rios foram feitos por
um homem), etc. Este egocenrismo é tão marcante que se manifestará em todas as áreas de
atuação da criança, ou seja, intelectual, social, de linguagem.

Do egocentrismo intelectual já citamos alguns exemplos, mas poderíamos acrescentar ainda o


fato significativo, de que, em função da ausência de esquemas conceituais verdadeiros (pois a
criança estará, nesta fase, desenvolvendo os chamados pré-conceitos, isto é. noções a respeito
de objetos que serão utilizados na fase seguinte para formar os esquemas conceituais) o seu
julgamento será altamente dependente da percepção imediata, e sujeito, portanto, a vários
erros. Assim, por exemplo, se fizermos duas fileiras de fichas, emparelhadas uma a uma e
perguntarmos a uma criança de cinco anos se as fileiras são iguais (isto é, se têm a mesma
quantidade de fichas), ela, provavelmente, responderá que sim. Se mantivermos as posições
na primeira fileira e deslocarmos uma das fichas da segunda fila e fizermos a mesma pergunta,
possivelmente a criança responderá que a secunda fileira tem maior quantidade de fichas.

1.8 situação 2,a situação

O mesmo ocorrerá em relação à conservação de volume, massa ç peso. Em relação à


conservação de volume, se despejarmos, na frente da criança, uma certa quantidade de água
de um copo baixo e largo para um copo alto e fino ela não perceberá que a quantidade de água
não foi alterada. Isto porque em função da ausência de esquemas concejtuais e da noção de
conservação ou invariância a criança julgará pelo que vê. E no caso do copo alto e fino, o nível
da água será mais alto.

1.a situação

2,a situação
(-d

69

Em relação à conservação de massa, se fizermos duas bolinhas, com massinha de modelar, e


uma delas for transformada em salsicha, a nossa criança pré-operacional não entenderá que
não houve mudança na quantidade de massa.

1 a situação 2a situação

o oU

Para verificarmos a presença ou ausência da noção de conservação de peso, podemos utilizar


novamente a massinha de modelar. Fazemos duas bolas iguais e pedimos à criança que avalie
se o peso é igual para as duas. Se a criança disser que sim, transformamos uma das bolas em
bife e repetimos a pergunta. A criança responderá que unia delas pesa mais.

1a situação 2•a situação

Alem destas provas clássicas, Piaget realizou inumeras outras que demonstraram
empiricamente a ausência do pensamento conceitual e das noções de conservação e
invariância na criança em idade pré-escolar. Como estas são premissas básicas para a
realização das operações mentais o período foi denominado pré-operacional.

O que se verifica é que estas provas têm sido repetidas por

pesquisadores, psicólogos e professores em vários locais do mundo e

os resultados têm confirmado aqueles obtidos por Piaget na Suíça.

O que varia algumas vezes é a idade em que os conceitos são adquiridos pelas crianças e esta
variação (que não é muito grande) pode

ser explicada por uma estimulação social e educacional mais rica

e mais adequada.

Quanto ao aspecto social, vemos como característica marcante desta fase, o início do
desligamento da família em direção a uma sociedade de crianças. Isto é, se quando bebê o
contato social se restringia às pessoas da família e algumas outras, na fase pré-escolar a
criança começará a se interessar por outras de sua mesma idade.

Mas, o tipo de relacionamento se caracteriza por um brinquedo paralelo, um fazer coisas juntos,
mas sem uma interação efetiva. Assim, é freqüente observarmos várias crianças brincando
juntas com carrinhos, bonecas, ou areia, mas cada uma delas está brincando sozinha. Isto
decorre de seu egocentrismo, de sua dificuldade de considerar o outro como uma pessoa com
sentimentos, atitudes e vontades diferentes das suas próprias. Existe um tipo de extensão de si
mesmo para os demais. Ë como se a criança concentrada em sua própria atividade não pudesse
perceber que outras pessoas estão fazendo, sentindo ou pensando coisas diferentes. £ difícil,
por exemplo, para o adulto explicar a uma criança de quatro anos
que ele não quer passear ou brincar por estar cansado. Pois a criança está presa às suas próprias
perspectivas, no caso, desejo de passear ou brincar, e não consegue perceber que o outro não
está. Outro exemplo ainda de egocentrismo social observado com freqüência por todos que
trabalham com crianças pequenas se refere à situação em que uma começa a chorar e várias
outras exibem o mesmo comportamento, sem causa aparente.

No que se refere à linguagem, o que se nota é a presença concomitante de linguagem


socializada (um diálogo verdadeiro, com intenção de. comunicação) e de linguagem
egocêntrica (aquela que não necessita necessariamente de um interlocutor, não tem função de
comunicação). O que se pode observar é que quanto menor a criança, maior a porcentagem de
linguagem egocêntrica em relação à linguagem socializada. À medida que ela
vai crescendo a evolução da linguagem se dá no sentido de uma maior socialização, mostrando
mais uma vez que toda a tendência do desenvolvimento em seus vários aspectos se dá no
sentido da interiorização e da socialização. Isto porque, para Piaget, a linguagem socializada é
aquela que pode ser compreendida pelas outras pessoas de uma mesma cultura. E para ele
todo pensamento adulto é socializado, no sentido de ser construído de tal forma, que se for
verbalizado será compreendido pelo interlocutor.

A fase pré-operacional é considerada como de transição também no aspecto de linguagem,


pois observamos com freqüência a criança falando sozinha, enquanto brinca ou realiza uma
atividade qualquer (monólogo), a criança fala o que está fazendo. Exemplo:

enquanto come diz: "nenê papa" ou enquanto brinca "o carrinho vai para a garagem"; "a
boneca está com frio e vou trocar sua roupa"; "estou fazendo bolo de chocolate". Esta
verbalização que acompanha a ação pode ser entendida como um treino dos esquemas
verbais recém-adquiridos e como uma passagem gradual do pensamento explícito (motor)
para o pensamento interiorizado.

70

71

3.3.3. Período da.s operações concretas (7_li, 12 anos)

Este período que corresponde praticamente à idade em que se inicia a freqüência à escola
elementar será marcado por grandes aquisições intelectuais de acordo com as proposições
piagetianas.

Observa-se um marcante declínio do egocentrismo intelectual e um crescente incremento do


pensamento lógico. Isto é, em função da capacidade, agora adquirida, de formação de
esquemas conceituais, de esquemas mentais verdadeiros, a realidade passará a ser
estruturada pela razão e não mais pela assimilação egocêntrica, como ocorria na fase anterior.
A criança terá um conhecimento real, correto e adequado de objetos e situações da realidade
externa (esquemas conceituais), e poderá trabalhar com eles de modo lógico. Assim, a
tendência lúdica do pensamento, típica da idade anterior, quando o real e o fantástico se
misturavam nas explicações fornecidas pela criança, será substituída por uma atitude crítica. A
criança não irá mais tolerar contradições no seu pensamento, ou entre o pensamento e a ação
como antes, mas sim, irá sentir necessidade de explicar logicamente suas idéias e ações.

As ações físicas, típicas da inteligência sensorial-motora e ainda necessárias na fase pré-


operacional, passam a ser internalizadas, passam a ocorrer mentalmente. Daí o nome dado à
fase: operações concretas. Exemplificando: se oferecermos a uma criança pré-operacional uma
série de varetas, cada uma delas com um tamanho diferente, para serem colocadas em ordem
de altura, o procedimento será o de tomar as varetas duas a duas e através de comparações
sucessivas chegar à formação da série. Isto demonstra que a criança foi capaz de solucionar o
problema proposto, mas que precisou, para tanto, realizar uma ação física. Se a mesma
solicitação for feita a uma criança operacional concreta, o procedimento sera diferente. A
criança irá olhar para as varetas, solucionar mentalmente o problema e realizar imediatamente a
seqüência de tamanhos. A operação que antes levava alguns minutos agora e resolvida em
questão de segundos.

Estas operações mentais consistem em transformações reversíveis (toda operação pode ser
invertida) que implicam na aquisição da noção de conservação ou invariância (objetos
continuam sendo iguais a si mesmos, apesar das mudanças aparentes. O julgamento deixa de
ser dependente da percepção e se torna conceitual. Para esclarecer tomemos os mesmos
exemplos citados para a fase anterior. No caso das duas fileiras de fichas, como a criança já
terá adquirido a noção de conservação de quantidade, entenderá que o número de

fichas permanece igual nas duas fileiras, apesar da mudança na disposição das mesmas.

No que se refere à conservação de volume, massa e peso, a criança perceberá, não só que não
houve alteração como também que a operação pode ser invertida, isto é, que se voltarmos a
colocar a água no 1.0 recipiente o nível será igual. O mesmo vale para o caso da massa e do
peso. A criança entende, portanto, tanto a operação direta como a inversa como fazendo parte
de um mesmo sistema e isto consolida o pensamento da criança numa estrutura lógica, que
Piaget denomina agrupamento. Este termo, assim como outros utilizados por ele, tem origem
lógico-matemática e não claramente psicológica. Isto porque, para ele, certas estruturas
lógico- matemáticas se prestam para explicar a organização das estruturas cognitivas nesta fase
e na seguinte (de operações formais). Dada a complexidade do conceito de agrupamento, não
iremos, neste momento, entrar em detalhes.

Diremos apenas que um agrupamento se refere a um tipo de organização lógica entre os seus
elementos, de tal forma que existem leis que regulem a relação de cada elemento com os
demais, lembrando que estas relações devem ser reversíveis. Para exemplificar, a capacidade
para organizar séries e classes (a nível comportamental) pressupõe que a criança possua, em
torno de oito anos, o agrupamento de soma de classes lógicas (a nível mental). O termo
agrupamento se refere, portanto, a leis que organizam e regulamentam a utilização dos
esquemas conceituais adquiridos nesta fase, e que são responsáveis pela coerência agora
observada no pensamento da criança.

No que se refere à linguagem, verificar-se-á um acentuado declínio da linguagem egocêntrica


até seu completo desaparecimento. Isto significa que, se no início da fase, em torno de 7 anos
ainda podemos observar eventuais manifestações de egocentrismo na linguagem, isto não mais
ocorrerá nos anos subseqüentes, quando então poderemos dizer que a linguagem já será
totalmente socializada.

Quanto ao desenvolvimento social, que não só ocorre paralelamente ao intelectual, mas que
se constitui num dos seus fatores motivadores, poderemos observar também progressos
significativos. Ocorrerá diminuição no egocentrismo social, e a criança já terá capacidade para
perceber que outras pessoas tem pensamentos, sentimentos e necessidades diferentes dos
seus. Isto levará ao desenvolvimento de uma interação social mais genuína e mais efetiva
tanto com seus pares como com os próprios adultos. Pela flexibilidade mental que está agora
adquirindo passará a entender regras de jogos e isto modificará em parte as brincadeiras
pre(eridas,

72

73

pois na idade pré-escolar, em função das limitações já citadas. estes jogos não eram
compreendidos pela criança.

Quanto ao desenvolvimento dos julgamentos morais, observaremos mais uma vez uma
tendência para a interiorização, pois se na fase pré-escolar os julgamentos eram feitos em
função do ato efetivamente praticado, já agora as intenções do sujeito passam a ser levadas
em consideração.

Assim, vemos uma criança que caminha lenta, mas decisiva- mente, de um estado de
indiferenciação, de desorganização do pensamento e de autocentralização, para uma
compreensão lógica e adequada da realidade que lhe permite o percebe-se como um indivíduo
entre outros, como um elemento de um universo que pouco a pouco passa a estruturar pela
razão, O pensamento é, sem dúvida,' para Piaget, um dos aspectos centrais na adaptabilidade
do homem ao seu meio circundante.

3.3.4 Período das operações formais (12 anos em diante)

Se no período das operações concretas, a inteligência da criança manifesta progressos


notáveis, apresenta, por outro lado, ainda algumas limitações. Talvez a principal delas, que
está implícita no próprio nome, relaciona-se ao fato de que tanto os esquemas conceituais
como as operações mentais realizadas se referem a objetos ou situações que existem
concretamente na realidade.

Na adolescência, esta limitação deixa de existir, e o sujeito será então capaz de formar
esquemas conceituais abstratos (conceituar termos como amor, fantasia, justiça, esquema,
democracia) e realizar com eles operações mentais que seguem os princípios da lógica formal,
o que lhe dará, sem dúvida, uma riqueza imensa em termos de conteúdo e de flexibilidade de
pensamento. Com isso adquire capacidade para criticar os sistemas sociais e propor novos
códigos de conduta; discute os valores morais de seus pais e constrói os seus próprios
(adquirindo, portanto. autonomia); torna-se capaz de aceitar suposições pelo gosto da
discussão; faz sucessão de hipóteses que expressa em proposições para depois testá-las;
procura propriedades uerais que permitam dar definições exaustivas, declarar leis gerais e ver
significação comum em material verbal; os seus conceitos espaciais podem ir além do tangível
finito e conhecido para conceber o infinitamente grande ou infinitamente pequeno: torna-se
consciente de seu próprio pensamento, refletindo sobre ele a fim de oferecer justificações
lógicas para os julgamentos que faz; lida com relações entre relações, etc.

Estas e outras aquisicões são responsaveis em grande parte

pelas mudanças que ocorrem em todo o comportamento do adoles cente, ajudando-o,


inclusive, no que considera a problemática básica da adolescência, qual seja, a busca da
identidade e da autonomia pessoal.

Do ponto de vista piagetiano, podemos dizer que, ao adquirir as capacidades acima


mencionadas, o indivíduo atingiu sua forma final de equilíbrio, e é justamente em função
destas possibilidades mentais que Piaget chegou a conceber uma teoria tão complexa e que
nós temos condições de entendê-la. Isto porque, entre outras aquisições típicas do
pensamento lógico-formal, figura a possibilidade tanto de conceber como de entender
doutrinas filosóficas ou teorias científicas,

3.4 Bibliografia

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1973.

10. Piaget, J. A equilibração da.s estruturas co,'nitis'a,s. Rio de laneiro. Fd. iahar, 1976.
74

75

Capítulo 4

Modelo da aprendizagem social

Cláudia Davis

O objetivo deste capítulo é fazer com que o leitor entre e contato com alguns conceitos
fundamentais da Teoria da Aprendiz gem Social. Derivada das teorias de "estímulo-resposta",
porá muito menos radical, esta proposta fornece um modelo de atuaç humana coerente e
harmonioso. A despeito da reconhecida influên dos fatores externos sobre o comportamento
humano, o home permanece segundo esta visão - como sendo capaz de autodirecionar. Na
medida em que a potencialidade humana preservada, outras variáveis - não somente aquelas
passíveis observação - passam a ser consideradas.

Os processos vicariantes, simbólicos e auto-regulatórios ocupa na Teoria da Aprendizagem


Social, um lugar predominante.

necessidade de ampliar o alcance da teoria tradicional decorr do fato de que o pensamento, o


sentimento e o comportamen humano podem ser decisivamente alterados pela observação.
Ne sentido, a experiência socialmente mediada adquire um papel centi dentro desta
concepção.

Convém lembrar que nas teorias tradicionais de comportamen o enfoque principal é dado à
experiência direta, ou seja: no cent está a idéia de que o comportamento é aprendido e
modificado p variáveis de reforçamento com que o próprio sujeito entra em contal
Recentemente, progressos no entendimento dos processos psicológic geraram a necessidade
de reformular alguns dos pressupostos básic a respeito de como o comportamento humano é
adquirido e regulaé Neste capítulo, serão indicados os desenvolvimentos mais significativ
dentro do quadro conceitual da Teoria da Aprendizagem Social.

A primeira grande modificação introduzida foi o reconhecimen de que a análise do


comportamento humano deve levar em cor os processos simbólicos. Na medida em que a
capacidade de utili uma linguagem torna o homem capaz de representar eventos, analisar sua
experiência passada e sua situação presente, de comunir

o produto desta análise e, principalmente, de criar, planejar e prever suas ações futuras, torna-
se imperioso o estudo de tais processos. Assim sendo, procura-se, hoje, desenvolver técnicas
que permitam a análise cuidadosa do pensamento e dos mecanismos de que este se utiliza para
controlar a ação.

Um segundo aspecto importante da Teoria da Aprendizagem Social é a ênfase que se dá aos


processos auto-regulatórios. Nesta abordagem, os indivíduos não são organismos meramente
passivos. sujeitos a um constante bombardeio de estímulos ambientais. Ao contrário, são
organismos ativos, capazes de focalizar, selecionar e organizar, dentre estes estímulos, aqueles
que consideram relevantes. Neste sentido, as pessoas podem exercer, através de índuções e
efeitos autoproduzidos, uma certa influência sobre seu próprio comportamento. Na medida em
que a Teoria da Aprendizagem Social reconhece a capacidade individual de direcionar o curso da
ação. o sujeito passa a ser visto como o principal agente de sua própria mudança. Desta forma,
a pesquisa, nesta área, tenta desenvolver paradigmas que propiciem uma análise das condições
que facilitam o exercício do autocontrole e das variáveis que atuam no processamento destas
condições.

Fica claro, então, que a explicação do comportamento humano está centrada em uma
interação contínua e recíproca entre fatores ambientais, comportamentais e cognitivos. Desta
forma, a Teoria da Aprendizagem Social afirma que as pessoas nem são totalmente livres para
seguirem seu próprio caminho, nem totalmente impossibilitadas de participar da determinação
de seu destino. Chega-se assim, na teoria, a um novo equilíbrio, deixando margem para que os
indivíduos possam, em certa medida, ampliar ou restringir seu curso de vida pessoal. Neste
determinismo recíproco, as pessoas. tanto como o ambiente, devem ser variáveis estudadas,
uma vez que um fator tem sempre um impacto sobre o outro.

4.1 Aprendiiagem social

A noção de aprendizagem social indica o fato de que o comportamento pode ser adquirido e
modificado independentemente da ação de reforços. A ênfase dada à aprendizagem através
das conseqüências de urna determinada ação tem sido privilegiada nas teorias tradicionais de
comportamento porque:

a) os incentivos e reforços revelaram-se, repetidamente, como determinantes importantes na


aprendizagem e seleção de respostas.

b) grande parte dos estudos experimentais foram desenvolvidos em laboratórios, com animais,
onde o principal fator de aprendizagem parecia ser a apresentação de reforços diretos.

77

Recentemente, a preocupação em estudar o comportamento humano e interpessoal tornou


necessária a utilização de modelos explicativos mais complexos. A noção de aprendizagem
social surge, então, como alternativa explanatória para a aquisição e modificação de
comportamentos sem a necessidade de ref orçamento aparente.

Fundamental para o fortalecimento desta teoria foi a inadequação dos conceitos tradicionais da
ciência do comportamento para explicar o desenvolvimento de padrões complexos de resposta.
De maneira geral, após a observação dc modelos, verifica-se: 1) a aquisição súbita de novas
unidades amplas de comportamento; 2) a independência entre aquisição da resposta e
variáveis de reforçamento; 3) o fato da manifestação da resposta aprendida poder dar-se dias,
semanas ou meses após a observação do modelo.

Bandura (1969) descreve de maneira sucinta a relevância da aprendizagem mediada por


modelos:
"O fornecimento de modelos sociais é também um meio indispensável de transmitir e modificar
o comportamento em situações em que os erros podem, provavelmente, levar a conseqüências
fatais. Na verdade, se a aprendizagem social ocorresse exclusivamente em termos de
conseqüências reforçadoras e punitivas, a maioria das pessoas não sobreviveria ao processo de
socialização. De fato, seria difícil imaginar um processo de socialização no qual a linguagem, as
obrigações, os direitos, os costumes familiares e as práticas educacionais de uma cultura
fossem modeladas, em cada novo membro, através de reforçamento seletivo, sem a resposta
de orientação de modelos que contêm os repertórios culturais acumulados em seu próprio
comportamento".

Conseqüentemente. fica implícito que a crítica de Bandura à teoria tradicional se refere


primordialmente ao fato de que, somente através de um processo lento e gradual de
condicionamento, seria impossível a acumulação e transmissão de hábitos, valores, crenças,
usos e costumes que atuam em uma dada sociedade. Ë inegável. entretanto, a importância da
Teoria da Aprendizagem. Quando retirados dos laboratórios de pesquisa básica e aplicados ao
comportamento humano, seus princípios rapidamente se infiltraram em diversas áreas do
conhecimento psicológico. Hoje em dia, é comum se observar suas extensões na Psicologia
Clínica, Psicologia do Trabalho, Psicologia Educacional, etc. Por outro lado, outros campos, tais
como a Sociologia e mesmo a Literatura, sofreram inegável influência de alguns de seus
pressupostos básicos.

A aprendizagem social é também conhecida como vicariante. cognitiva ou observacional. Um


outro termo, bastante difundido, seria o de "aprendizagem através de modelação", ou seja, da
Imitação de modelos. Todos estes nomes se referem à aquisição de conhecimentos e
comportamentos novos através da observação.

7.4

Como já foi dito, as características básicas deste processo de aprendizagem seriam:

a) inexistência de reforço externo direto.

b) possível, e mesmo provável, defasagem entre observação e emissão da resposta.


De acordo com esta abordagem, grande parte da aprendizagem humana depende de
processos perceptuais e cognitivos, tais como atenção às feições distintivas de um
determinado evento, e da observação do meio físico-social. Desta forma, o reforço direto da
própria ação do sujeito é somente uma das variáveis que atuam no processo de aquisição de
novos padrões de resposta. Dados de laboratório (Deutsch e Deutsch, 1966) mostram que
mesmo organismos mais primitivos podem aprender um novo comportamento em situações
onde são impedidos de manifestar a resposta emitida por um modelo. Ë somente em uma
segunda etapa - após a observação do modelo, quando as restrições são retiradas

- que a resposta se manifesta.

4.2 Aprendizagem e expectativas


O termo "expectativa" introduz no corpo teórico da aprendizagem social uma dimensão de
ordem cognitiva. Este conceito foi elaborado por J. B. Rotter (1954) para se referir às
expectativas pessoais que diferentes sujeitos mantêm em relação às conseqüências futuras de
suas ações. Da mesma forma, o termo implica também na noção de que os possíveis resultados
de uma dada ação irão receber diferentes pesos no sistema de valoração pessoal. Assim sendo,
na formulação de Rotter, a probabilidade de que um padrão particular de
comportamento venha a ocorrer, depende da expectativa do sujeito em relação aos resultados
que este comportamento produzirá e do valor atribuído a estes resultados. Por exemplo, uma
criança se comportará de maneira agressiva se acreditar que isto lhe trará uma maior atenção e
uma maior interação com diferentes elementos de seu meio ambiente. Implícita está, aí, a idéia
de que a criança atribui um valor positivo a tais conseqüências do padrão de comportamento
adotado. Da mesma forma, a mesma criança evitará comportamentos agressivos se supuser que
estes lhe trarão, como conseqüência, castigos e desaprovação. Novamente, é necessário, para
que isto ocorra, que a criança em questão atribua uma valência negativa aos resultados de seu
comportamento.

Para que se possa prever qual o curso de ação a ser adotado, é - necessária uma estimativa dos
valores e expectativas pessoais que irão atuar na determinação das diferentes escolhas que se
apresentam como alternativas de comportamento ao sujeito. Neste

79

sentido, esta estimativa deve voltar-se para as experiências passadas vividas pelo indivíduo cm
situações semelhantes. É na aprendizagem anterior que está a chave para se descobrir como se
formam as expectativas e os valores. Entretanto, vale ressaltar que tanto expectativas quanto
valores são facilmente modificáveis por alterações na situação individual. Em virtude deste fato,
criou-se o termo "expectativa generalizada" para se referir a um grupo ou conjunto de
expectativas que parecem ser mais constantes, mantendo-se estáveis ao longo de diferentes
situações. Da mesma forma que as outras, as expectativas generalizadas são produtos da
experiência passada e, conseqüentemente, aprendidas.

4.3 Aquisição e desempenho: uma distinção necessária

Uma distinção importante feita pelos teóricos da aprendizagem social seria a distinção entre
aquisição e desempenho. Obviamente, as pessoas sabem fazer coisas que, muitas vezes, não
fazem em situações rotineiras. Por exemplo, tanto os meninos como as meninas sabem como
se deve proceder para brincar de casinha. No entanto, em nossa cultura, este tipo de
brincadeira é levada adiante principalmente pelas meninas. Em geral, os padrões culturais
vigentes na sociedade brasileira restringem às crianças do sexo masculino de participar deste
tipo de atividade. Nesta medida, é possível dizer que existem diferenças significativas na
freqüência com que crianças, de sexos diferentes, apresentam tal comportamento. A partir
desta observação - de que existem grandes discrepâncias entre a capacidade das pessoas para
executar determinadas ações e suas ações propriamente ditas parece útil distinguir-se entre
aquisição e desempenho.

Pode-se dizer que, em grande parte, a aprendizagem ou aquisição de novos comportamentos


é determinada por processos cognitivos e sensoriais. A presença de fatores de reforço e
incentivos parece atuar, principalmente, como elemento facilitador da aprendizagem. Decorre
daí que a aprendizagem se processa de maneira mais eficiente, se incentivos e reforços
estiverem presentes. No entanto, se isto não ocorrer, a aquisição de padrões diferentes de
comportamento pode ocorrer da mesma forma. Assim, o tipo de informação disponível, as
regras, as habilidades e os padrões de resposta já adquiridos, em suma, tudo aquilo que o
indivíduo já conhece, parece influir, de maneira mais acentuada, naquilo que ele é capaz de
fazer. Estes requisitos são, em sua maior parte, adquiridos através de processos cognitivos e da
observação do meio ambiente, não dependendo, exclusivamente, de processos de
condicionamento e reforçamento direto.

O grande impacto de variáveis de reforçamento e da presença de incentivos se dá naquilo que


é chamado de desempenho, ou seja, no comportamento observável. Estes elementos atuam,
principalmente, na escolha de que respostas, dentre aquelas disponíveis ao sujeito irão se
manifestar. É claro que a seleção de um determinado comportamento - entre tantos que a
pessoa é capaz de ter - depende de fatores motivacionais. É através dos resultados que se
acredita obter, como conseqüência de um dado curso de ação, que se processa a seleção e
escolha de comportamentos.

Alguns comportamentos podem se encontrar potencialmente presentes no repertório dos


sujeitos mas, em •função das condições de estímulo, podem também não se manifestar.
Retomando o exemplo já dado, os meninos não brincam de casinha porque esperam receber
caçoadas e punições se fizerem isso. Por outro lado, as meninas têm expectativas de que a
mesma ação - brincar de casinha - lhes propicie atenção e aprovação social. A resposta
"brincar de casinha", embora se encontre potencialmente disponível nos meninos, permanece
inibida neles, uma vez que as condições de incentivo não são suficientemente fortes para
ativá-la. No entanto, houver alteração nestas condições, ou seja, se um reforçador poderoso
for introduzido na situação, a resposta acima poderá ser prontamente obtida.

As expectativas das conseqüências que se espera atingir por uma determinada resposta não
são somente frutos da experiência passada do sujeito. Ou seja, as expectativas individuais não
dependem exclusivamente dos resultados produzidos pelas próprias ações em situações
anteriores semelhantes. Os resultados produzidos pelos comportamentos de outras pessoas
são também variáveis importantes na formação de expectativas, uma vez que estabelecem
indícios valiosos sobre o que pode acontecer ao sujeito caso se comporte de igual maneira.

A probabilidade de se comportar de maneira semelhante ao modelo aumenta, se for observado


que tal resposta trará conseqüências reforçadoras. Por exemplo, uma criança pode ver uma
outra (observação de um modelo) receber encorajamento e elogios por saltar do trampolim
mais alto da piscina do clube. Conseqüentemente, a probabilidade de que ela também suba no
trampolim e salte aumenta, em função de ter observado o resultado produzido pelo modelo.
No entanto, caso o "modelo", ao invés de elogios e atenção, tivesse recebido castigo e punição,
verificar-se-ia uma diminuição na probabilidade de a criança imitar aquele comportamento.

O experimento pioneiro na área da aprendizagem pela observação de modelos (Bandura.


1965) tinha, como hipótese principal, a
81

idéia de que as crianças que observassem um modelo recompensado por comportamento


agressivo reproduziriam este comportamento, ocorrendo o oposto com as que observassem um
modelo punido. Uma vez que a aprendizagem é expressa pelo desempenho, ficava implícito que
o reforço aos modelos seria crítico para o processo de aprendizagem. No entanto, grande parte
das crianças que não imitaram o modelo na situação de teste, foram capazes de descrever o
comportamento agressivo que observaram com grande acuidade. Este resultado levou a um
outro experimento, onde crianças observaram um modelo de externar comportamento
agressivo com: 1) conseqüências reforçadoras; 2) punitivas; 3) sem nenhuma conseqüência.
Novamente, observou-se que as crianças que viram o modelo sofrer conseqüências punitivas
imitavam menos o modelo que as crianças das outras duas condições. Entretanto, esta
diferença desaparecia quando incentivos poderosos eram introduzidos na situação. Desta
maneira, pode-se concluir que as conseqüências do comportamento agressivo tiveram um
efeito sobre o desempenho das crianças em relação a estas respostas, mas não sobre a
aquisição, ou aprendizagem, das mesmas.

Eis a seguir,. um resumo deste experimento, descrito original- mente por Albert Bandura sob o
título de "Influence of model's reinforcement contingencies on the acquisition of imitative
responses", no Journal of Personality and Social Psychology (1965), e citado por Lawrence
Pervin, no livro Personalidade: teoria, avaliação e pesquisa.

4.3.1 Aprendizagem por observação: aquisição versus desempenho

Hipótese: os reforços administrados a um modelo influenciam o desempenho mas não a


aquisição de respostas semelhantes (imítativas).

Sujeitos: 33 meninos e 33 meninas de escola maternal e 2 adultos do sexo masculino que


serviram como modelos.

Método: as crianças foram divididas ao acaso em três grupos de 22 sujeitos cada. Todas as
crianças foram levadas para uma sala onde assistiram a um filme na televisão, O filme começa
com uma cena na qual um modelo vai até um "João Bobo" de plástico inflável do tamanho de
um adulto e lhe ordena que saia do caminho, O "João Bobo" não obedece, e o modelo dá
quatro diferentes respostas agressivas, cada uma delas acompanhada por verbalização
distinta. Por exemplo, o modelo senta-se no boneco, dá-lhe um soco no nariz e diz: "Toma,
bem no nariz, bum, bum", e depois o golpeia na cabeça com um taco de pólo. A cena final do
filme é diferente para as crianças de cada um dos três grupos, denominados: "Condição

de modelo recompensado", "Condição de modelo punido" e "Condição sem conseqüências".

Para as crianças do grupo "Condição de modelo recompensado". a

cena final mostra um segundo adulto que aparece com balas e

refrigerantes e elogia bastante o modelo por seu comportamento

agressivo. Para as crianças do grupo "Condição de modelo punido",


a cena final mostra um segundo adulto que surge, sacode o dedo
ameaçadoramente, critica o modelo por seu comportamento agressivo
e finalmente lhe bate, enquanto menciona seu comportamento
agressivo. Para as crianças do grupo "Condição sem conseqüências",

o filme termina depois que o modelo acabou de ser agressivo com

o boneco.

Depois que assistiram ao filme, as crianças foram levadas até uma sala onde há um "João Bobo"
de plástico, inflável, e outros brinquedos. Ficaram brincando no quarto à vontade, sozinhas, por
dez minutos, enquanto seu comportamento era observado através de um espelho de visão
unilateral. Registrou-se o comportamento das crianças em termos de categorias pré-
determinadas de respostas imitativas. Como medida de desempenho usou-se o número de
respostas imitativas diferentes, físicas e verbais, emitidas espontaneamente pelas crianças.

Depois de obtida a medida de desempenho, foi dito às crianças dos três grupos que
receberiam doces para reproduzirem as reações físicas e verbais que observaram no filme. Isto
é uma "Condição de incentivo positivo", na qual as crianças são recompensadas por
desempenharem respostas imitativas. O número de respostas imitativas físicas e verbais
diferentes reproduzidas pelas crianças serviu como medida de aprendizagem ou como índice de
aquisição.

Resultados: a figura 1 mostra o número médio de respostas diferentes, reproduzidas pelas


crianças em cada uma das três condições de tratamento, durante as fases de não-incentivo e
incentivo positivo, no experimento. A análise desses dados revela o seguinte:

a) as conseqüências reforçadoras para o modelo aumentaram signif icativamente o número de


respostas semelhantes às do modelo que as crianças reproduziram espontaneamente.

b) os meninos adotaram mais respostas imitativas que as meninas. As garotas foram mais
influenciadas pelas conseqüências reforçadoras dadas ao modelo.

e) a introdução de incentivos positivos eliminou completamente as diferenças de desempenho


previamente observadas. Nas condições de incentivo positivo houve evidência de quantidade
de aprendizagem equivalente para as crianças nos três grupos.

82

83

Conclusão: reforços administrados a um modelo influenciam o desempenho, mas não a


aquisição, de respostas semelhantes às do modelo (imitativas).

Urna outra variável que afeta o comportamento são informações sobre suas possíveis
conseqüências. No entanto, da mesma forma que a observação das conseqüências sofridas por
um modelo, informações afetam o desempenho e não a aprendizagem deste comportamento.
Por exemplo, informações de que cobras são animais perigosos pode desenvolver medos, e
mesmo fobias, em indivíduos que nunca foram picados por estes animais. Desta forma, uma
pessoa pode nunca vir a segurar uma cobra embora conheça o procedimento adequado e,
portanto, seguro, de como fazê-lo.

4.4 Desenvolvimento da personalidade segundo a visão da teoria da aprendizagem social

De uma maneira geral, pode-se dizer que as teorias, tradicionais do comportamento são
ineficientes para explicar o funcionamento humano pelas seguintes razões: 1) não explicam o
aparecimento súbito de comportamentos complexos; 2) não explicam a aquisição de
comportamentos na ausência de recompensas ou incentivos; 3) não esclarecem como o
comportamento pode se manifestar dias, semanas e mesmo meses após terem sido
aprendidos. De igual maneira, as teorias tradicionais de comportamento falham por não
fazerem a distinção entre aquisição e desempenho e por acentuarem, de maneira marcante, a
aprendizagem por tentativa e erro e por aproximações sucessivas. Bandura (1971) expõe
claramente seu ponto de vista a este respeito:

"Seria excessivamente arriscado confiar no reforço diferencial de desempenhos em tentativa e


erro ao ensinar crianças a nadar, adolescentes a dirigir automóveis, estudantes de medicina a
realizar operações, ou adultos a desenvolverem atividades ocupacionais e sociais complexas. Se
as situações experimentais se tivessem tornado mais realistas, de modo que os animais se
esfalfassem nas caixas de Skinner e nos labirintos, caso se afogassem, fossem eletrocutados,
desmembrados ou excessivamente contundidos pelos erros que invariavelmente ocorrem
durante as fases iniciais de aprendizagem não dirigida, as limitações do condicionamento
instrumental teriam sido forçosa- mente reveladas" (Pervin, 1978).

Desta forma, para Bandura, a maioria das respostas sociais são adquiridas através de
indicações fórnecidas por modelos. Estas respostas, contudo, vão se manifestar
(desempenho), dependendo das condições de reforçamento em atuação no ambiente.
Consequentemente, a Teoria da Aprendizagem Social acredita que tanto a modelação, quanto
as contingências de reforçamento do ambiente são fundamentais na determinação da conduta
humana.

Por outro lado, o conceito clássico de personalidade implica na noção de coerência. Diz-se que
um indivíduo possui uma personalidade X se ao longo das mais diversas situações ele se
comportar de maneira X. Por exemplo, urna pessoa altruísta é aquela que sempre, a despeito
de condições adversas, penosas e mesmo intoleráveis, consegue pensar mais nos outros do que
em si mesma. Entretanto, a visão da aprendizagem social contesta o conceito tradicional de
personalidade: os indivíduos se comportam dc forma coerente, nas diferentes situações de seu
dia-a-dia, somente enquanto estes comportamentos produzam - ou se espera que produzam -
resultados semelhantes aos interiormente obtidos. Para

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I-i,tru 1 . Numero medio de respostas insitativas diferentes reproduzidas poi crianças como
uma função de conseqüências de resposta ao modelo de incentivos positivos. Fonte: Bandura
(1965). Reproduzido de: Pervin. L. A. Per (01111 114(1(11': ti'orii( . avo lia çdo e pe sqií isa . São
Paulo. E.P Li .. 1 97

Meninos Meninas Meninos Meninas Meninos Meninas

Modelo recompensado Modelo punido Sem conseqüências

84

85

que a pessoa se comporte de forma coerente, seria preciso que seus comportamentos tivessem
sido reforçados uniformemente em distintas ocasiões. Ora, na maioria dos casos,
comportaméntos sociais não estão sujeitos a esta regularidade de conseqüências. Por exemplo,
um homem pode se vestir de mulher, durante o carnaval, sem que isto implique em
conseqüências punitivas. Ao contrário, tal comportamento pode ser alvo de elogios, atenção e
aprovação. A mesma resposta, entretanto, poderá produzir conseqüências totalmente
contrárias se ocorrer numa segunda-feira qualquer, num escritório ou repartição pública. É,
portanto, necessário que os indivíduos desenvolvam discriminações, muitas vezes sutis, para
que se comportem adequadamente, na vida em sociedade. A partir destas discriminações, a
pessoa passa a se comportar da forma X em um dado contexto, e da forma Y, em um outro.
Nesta medida, o princípio da coerência não se mantém.

Os teóricos da aprendizagem social, conseqüentemente, propõem que se deveria ressaltar a


especificidade da resposta e não sua coerência. Diferentes situações, na medida em que
englobam diferentes estím ulos discriminativos, devem produzir diferentes respostas. Muito
raramente. uni determinado padrão de resposta pode ser igualmente reforçado em várias
situações diferentes. De acordo com o princípio de generalização, esta deveria ser a resposta
mais constante no repertorio do indivíduo, manifestando-se com alta freqüência. Por exemplo,
uma criança pode ser reforçada pela família sempre que adotar um comportamento
dependente com relação ao adulto. Com isto, ela pode se tornar um indivíduo sem iniciativa,
inseguro c constantemente indeciso, mesmo em relação a fatos insignificantes de rotina diária.
Entretanto, para que tal ocorra, é necessário considerar que: 1) a família continue a representar
para este indivíduo a fonte básica de influência, ou seja, que nenhum outro modelo venha a
atuar, competindo com o modelo fornecido pela família; 2) o comportamento dependente
nunca, ou raras vezes. traga conseqüências distintas, ou melhor, nunca seja, por exemplo,
punido. Como se pode ver, quando se trata de comportamentos sociais, fica difícil encontrar-se
regularidade de comportamentos em situações que são muito diferentes entre si. Ao longo do
processo de interação social, diferentes modeios competem entre si, acabando por produzir,
como efeito, discriminações sutis sobre a adequação. ou não, de determinadas respostas.
Dependendo das condições de estímulo, das conseqüências sofridas por modelos e
das características pessoais de cada um deles (tais como poder, prestígio. etc.), o
comportamento social vai ser mais ou menos constante.

Desta forma, uma pessoa pode ser doce, meiga e carinhosa em determinadas ocasiões, e
agressiva, rude e hostil em outras.

O conceito tradicional de personalidade tentaria explicar esta diversidade de comportamentos


em termos de diferentes manifestações de impulsos ou pulsões básicas. Na abordagem da
aprendizagem social, o comportamento manifesto é tomado "per si": a pessoa é, ou melhor, a
personalidade desta pessoa é todo este conjunto de comportamentos. Naturalmente, de
acordo com a Teoria da Aprendizagem, estes comportamentos não ocorrem aleatoriamente.
Cada um deles é controlado por estímulos discriminativos: o grau de formalidade da situação,
as pessoas envolvidas, o lugar, a hora, a ocasião. O fato de a pessoa discriminar estes eventos
todos não implica em falsidade ou falta de contato com sua personalidade real. Ao contrário,
cada um destes diferentes comportamentos exemplificam a história passada do indivíduo e sua
aprendizagem anterior.

4.5 Variáveis cognitivas e sua influência no comportamento

Enquanto que as teorias tradicionais do comportamento consideram desnecessário referir-se a


variáveis intervenientes para explicar o comportamento, as teorias mais recentes enfatizam a
presença de processos de representação na conduta humana. Pesquisadores que seguem a
linha proposta pela aprendizagem social estão, desta forma, interessados em compreender a
mediação que ocorre, a nível intra-individual, entre os estímulos recebidos pela pessoa e as
respostas que irão manifestar. Neste sentido, o papel da cognição passa a ser fundamental.
Estímulos não homhardeiam um organismo vazio que reage de maneira automátic.a. O ser
humano, vivo e ativo, é alguém que se interpreta e se avalia, sendo capaz. em certa medida.
de regular seu próprio comportamento.

O termo "cognição" possui um significado bastante amplo, mas de maneira geral, refere-se
àquelas condições que propiciam a aquisição de conhecimentos, Desta forma, seu sentido
primordial refere-se ao processamento de informações, ou seja, à atenção, coleta de dados e
resolução de problemas. Para que a informação seja processada, alguns pré-requisitos são
necessários: 1) o estímulo precisa ser discriminável, porque, de outra forma, passará
despercebido; 2) a pessoa tem de estar atenta para poder notar este estímulo - de nada
adianta o estímulo ser discriminável se a atenção do indivíduo está focalizada em outro lugar.
Outro fator Importante para se avaliar o impacto de um estímulo sobre um determinado
organismo é a maneira através da qual ele é apresentado. Além de suas características físicas,
especial importância deve ser

86

87

atribuida a instruções, pistas contextuais. informações adicionais, rótulos e nomes que o


acompanhem. Por exemplo, o comportamento manifesto será completamente diferente se a
pessoa acreditar que está presenciando um rapto como parte de um ensaio de peça teatral.
Uma lata, onde esteja escrito "formicida", é um estímulo distinto de uma lata igual, sem este
rótulo. Portanto, o impacto causado por um dado estímulo não é meramente função de suas
características físicas. De primordial importância é o significado atribuído a estes estímulos.
Nesta medida, é importante verificar de que forma alterações nas condições de estímulo, ou
seja, mudanças contextuais alteram o comportamento das pessoas. Conseqüentemente, grande
parte da pesquisa na área tem-se concentrado em verificar aquilo que o indivíduo faz em
relação às condições nas quais ele se encontra. Fica claro, então, que tanto os aspectos
singulares e únicos dos indivíduos como aqueles particulares e específicos de cada situação são
envolvidos na análise.

Na medida em que a Teoria da Aprendizagem Social privilegia tanto OS aspectos


idiossincráticos dos indivíduos quanto os fatores ambientais, não é de surpreender que
psicólogos desta abordagem venham enfatizando a -importância da avaliação cognitiva" das
situações. Por "avaliação cognitiva" entende-se a interpretação, ou significado, que cada pessoa
atribui aos estímulos com os quais se depara. Esta interpretação pode ser substancialmente
mudada pela presença de instruções ou informações. Conseqüentemente, informações podem
afetar radicalmente tanto a aquisição quanto o desempenho das pessoas. Por exemplo, é muito
mais fácil resolver um problema se existirem instruções detalhadas de como fazê-lo. É muito
mais simples seguir um mapa para se chegar a um bairro desconhecido da cidade do que se
tentar acertar na base do ensaio e erro. Da mesma forma, é muito mais eficiente usar uma
receita culinária, caso se queira fazer uma iguaria para o jantar.

Não somente informações alteram o comportamento humano. Mudanças drásticas podem ser
obtidas através de leituras - ou de se escutar sobre o comportamento de outras pessoas.
Embora a forma de atuação destes mecanismos seja ainda pouco clara, não resta, hoje em dia,
dúvidas de que processos simbólicos podem alterar o significado dos estímulos. É interessante
notar que os processos cognitivos podem modificar o comportamento social,
independentemente da observação de modelos reais. Modelos imaginários, como os que se
criam através da leitura, podem ser bastante influentes, promovendo tanto a aquisição como a
modificação de respostas.

Como já foi dito anteriormente, qualquer teoria que ressalte a importância das condições de
estímulo pode ser facilmente interpretada como sendo uma que exclui a capacidade de
autodireção de sua visão da potencialidade humana, O homem seria considerado como um
organismo vazio, à mercê de forças externas, ou seja, dos estímulos ambientais. Entretanto,
embora basicamente preocupada com a co-variação entre mudanças nas condições de
estímulo e reforçamento e mudanças em respostas, teóricos da aprendizagem social
acreditam que é o homem - e não o estímulo ou a situação

- aquele que exerce a ação. Desta forma, um dos pressupostos básicos desta teoria é que a
pessoa não é um agrupamento de respostas automáticas, desencadeadas por estímulos
ambientais. Embora estes últimos tenham um impacto sobre a conduta humana, os indivíduos
são capazes de monitorar seu próprio comportamento. Neste sentido, mudanças de
comportamento também ocasionam alterações no meio externo.

4.6 Resumo e conclusão


A Teoria da Aprendizagem Social propõe que experiências diretas (aquelas vividas pelos
próprios sujeitos) e experiências vicariantes (aquelas que se observou outras pessoas viverem)
determinam a gama de comportamentos disponíveis no repertório de um dado organismo.
Condições de incentivo e variáveis de reforçamento são os principais determinantes das
escolhas individuais a respeito de qual comportamento será adotado - dentre todos os
potencialmente acessíveis ao sujeito. Um dado comportamento é, então, produto das
expectativas aprendidas em situações semelhantes àquela com que a pessoa hoje se depara.
Entretanto, expectativas não são estáveis e permanentes: mudanças sutis na situação podem
gerar expectativas totalmente diferentes. Os indivíduos, por perceberem claramente tais
alterações, são altamente discriminativos em suas ações. Na medida em que situações
diferentes produzem respostas diferentes, os teóricos da aprendizagem social enfatizam a
especificidade, e não a regularidade ou coerência do comportamento humano. Com isto,
questionam. o conceito clássico de personalidade. Embora ênfase especial seja dada às
condições de estímulo, estassão vistas como algo bastante complexo, envolvendo fatores
cognitivos e motivacionais. O ser humano é visto como um organismo ativo, capaz de se auto-
regular através de induções e efeitos autoproduzidos. Desta forma, o ambiente controla o
indivíduo na mesma medida em que é controlado por este. Como se vê. a Teoria da
Aprendizagem Social trabalha dentro

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dos princípios da ciência positivista, ou seja, ela enfatiza air embora de maneira muito menos
radical, o dado objetivo. Teóri desta abordagem consideram desnecessário postularem-se
fases fi de desenvolvimento, atendo-se aos determinantes presentes comportamento.

4.7 Bibliografia

1 Bandura, Albert. Influence of model's reinforcement contingencies on

_icquisition of imitative responses. Journal of Pcr,ona/itv and S

Psvclioloev Is 59-95, 1965.

2 Bandura, Albert. Analysis of modeling processes. In Bandura, A. (01

P,svc/ioIo.,'icaI n,odeling. Chicago, Aldine-Athenton, 1971. p. 1-62.

3 . Bandura, Albert .So( ia! Iearninç' ilicorv. New York. Englewood Cl

Prentice-Ha!l, 1977.

Deut.sch, .1 . A. e Deutsch, D. P6 vs,ioloç'ical psvcholo,ç'v. Homeood,

Fhe Dorsey Press, 1966.

5 N4 chel, W. Introducí,o,i tu pcr.sona!ilv. Ne York. Holt-Rinehar

Winston, 1971.

6 Pervin . 1 . A . Pcr,o,iaIufluIc: u'oria. a ia/ia ç6a pc,squi.sa. São Paulo. E.


I97t.

7 Rotter. .1 . B .5aial Icar,u,, is aia! (lia/rui p.s v(/loioç'v New York. Fng1es

('Ijffs. Prentice-Hail, 1954

Capítulo 5

Conclusão

Como se vê, pela apresentação inicial destes três modelos teóricos (psicanalítico-freudiano,
cognitivista-piagetiano e social-Bandura), há várias maneiras de se conceituar o
desenvolvimento humano. Não há dúvida de que estas Várias maneiras decorrem de
condições particulares vivenciadas pelos seus autores e pelo momento histórico-científico em
que surgiram.

O que se nota de altamente positivo numa apresentação diversificada de modelos teóricos


sobre o desenvolvimento humano é que. antes de se chocarem, eles se complementam. Assim
é que, se o leitor se ativer a uma crítica de cada modelo, verá que são justamente seus pontos
falhos que se realçam pela apresentação seguinte, sem que ocorra uma destruição dos
conceitos apresentados. Exemplificando: se a psicanálise não explica o desenvolvimento dos
processos cognitivos, Piaget o faz. Se este por sua vez não explica o desenvolvimento
emocional, a psicanálise o faz. E o modelo de aprendizagem social traz à luz explicações sobre
as implicações dos processos de aprendizagem no desenvolvimento da personalidade.

Parece ficar claro que, devido à complexidade do processo de desenvolvimento humano e à


jovialiaade da ciência psicológica. nenhum modelo isoladamente tenha chegado à
compreensão profunda de todas as suas variáveis. Poderá um modelo positivista (como o de
aprendizagem social) recusar terminantemente a influência dos aspectos inconscientes? Não
estariam estes mascarados sob o nome de variáveis intervenientes? Poderá a psicanálise
(atualmente e não na época em que Freud apresentou seus escritos) desmerecer da influência
dos fatores de aprendizagem e de pressão social no sentido da emissão de determinados tipos
de respostas comportamentais e nau outras? Poderá um indivíduo ser feliz sem atender às
exigências ambientais? A cognico está realmente a serviço de processos inconscientes? Será
que urna teoria cognitivista, como a piagetiana, pode realmente ser tomada como indicativa
das diretrizes

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hasicas de todo o desenvolvimento? São dúvidas que certamente surgirão ao leitor sério e
critico.

A impressão que nos resta é i de que, qualquer que seja a linha mestra que nos pareça mais
razoável, restarão dúvidas de inegável valor científico. Sim, porque e nossa crença e nossa
convicção de
(lu, justamente por estarmos numa época relativamente inicial do estudo da crianca e do
adolescente, temos mais perguntas do que respostas a oferecer.

Isto poderia ser desalentador, não fosse o grande número de pesquisas práticas e teóricas em
curso atualmente e que têm caminhado, a nosso ver, basicamente no mesmo sentido: o de
reunir os conceitos apresentados por cada modelo teórico numa visão global do
desenvolvimento; o de extrair de cada modelo os conceitos fundamentais para se concluir que,
longe de se contrapor, eles se completam.

Exemplificando: na primeira etapa da vida denominada fase oral por uns, período sensório-
motor por outros, ou ainda infância inicial por terceiros, as características, tarefas e aquisições a
que se referem são basicamente as mesmas. A diferença está mais no enfoque. na teoria e na
técnica do que no comportamento observado, E, obviamente, a criança é a mesma, quer seja
vista por um psicanalista, por um cognitivista ou por um teórico da Aprendizagem Social.

Somos da opinião de que uma mente inquieta é aquela que mais tem oportunidade de crescer,
de se desenvolver e de se aprofundar. Assim sendo, esperamos ter provocado, neste volume
inicial, dúvidas básicas no leitor, que serão esclarecidas - esperamos - nos volumes seguintes.
Isto porque, como tentaremos demonstrar quando expusermos mais detalhadamente cada fase
do desenvolvimento, o exame minucioso das várias propostas teóricas levará o leitor à
formulação de uma idéia básica e integrada deste tão maravilhoso e por isto mesmo tão
complexo processo - a evolução de um ser imaturo, dependente, incapaz de garantir a própria
sobrevivência para um indivíduo autônomo, inteligente, maduro e. se possivel. bem adaptado a
seu ambiente social.

92

Rappaport, Clara Regina (Coord.)

Adolescência

Abordagem psicanalítica

180p., formato 14 x 21 cm ISBN 85-12-60470-O

A adolescência é um conceito historicamente determinado, um fenômeno da modernidade,


que atinge o jovem do ocidente por ocasião da eclosão da puberdade, quando, por falta de
dispositivos em geral presentes nas organizações societárias pré-modernas ou não ocidentais,
a passagem da criança ao jovem adulto se tornou problemática.

As mudanças subjetivas que o indivíduo tem que operar para dar conta das metamorfoses
corporais e das novas exigências sociais são abordadas neste livro, escrito por psicanalistas
experimentados tanto na clínica quanto no ensino.

Sumário: Introdução. Sobre o lugar da adolescência na teoria do sujeito. Aborrecência. Análise


com adolescentes. Adolescência, amor e psicanálise. A adolescência e o pai:
Sigmund adolescente e a adolescência em Freud. Algumas questões sobre a dúvida profissional
do adolescente. Introdução a uma abordagem psicanalítica da questão das drogas na
adolescência.

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