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a ae ' Ccadernos dominicanos ®. Frei Emilio Barcelon.op Antropologia que emerge de nossa Constituicze Fundamental Tradugdao: Laura Chaer 1984 CADERNOS DOMINICANOS 8 antropologia que eme de nos s constituig#o fundamental 1984 Frei Emilio Barcelén, UP Direct6rio “40 1424 BUENOS AIRES Tradugfo: Laure Chae APRESENTACAO PRETENSAO INGTIL? E objetive nesse aptesentar uma capéets de casate tevtigice ¢ espéirétuat. Tatvez hafa atquim que repute v tituee deste rseexde per demais pretencéoso. Tatvez até se peraunte: serd Cegitim jazet emoroir da Constituicte sundamen- tat determinade tépe de homem, consigurady ovr deternanades ekementos? Déga-se de inicio que nav & nosso intuéto viotentar o texto da Constituccdo gundamen- fa para fazd-La dizer o que ndo diz. Trata-se de um ensaéo, © que justigicn nossa aventura reslexéva, aberta F eritica » F comptementasée. DELINITACAO DE NOSSO TRABALBO Vanes regerer-mos, de pregeréncia av que convinws chanur "cultura wrbano- Grdusteiae, apetade nestes motives: dndustriag come um dos primedre: porque Puebla apresenta a cuctura \rbai arandes desasios que enjnenta a tarefa ovangetizadora da Tyres segundo: porque ¢ cariana dominicanc, desde os prinrdios, desenvetveu-se nearnou préncipatmente nas cédades, esto Z, na cuftura urbana. Neo que- os remes com Este sékencear a chra misséonaria da Ordem. Ademais, na atualidade,a materia de nossas comunidades ¢ nosso trabadin apostitior estdo inseridos nas cidades ¢ a cultura que as define. Na America Latina, a poputacae humana con- centra-se nas grandes cédades que crescem em ritne acecerad terceiw: porque o estilo de vida ¢ os ekementos que configuram a cultura urbano- industrial estas chegando, por Orgludneia dos Meées de Cominicacde So- cial, a outrs setores née wrbanos. METODO DE ESTUDO A antropelugia dominicana que emerge de nessa Constituicde — sundanentat aparece com mais clareza se nie a desencarnams de contexte historiee que ed- tanos vévende. Motive porque moss redferdo consta de duas partes: na primed- ra, tentaremos descrever a tysologia antropoligica que nos oferece a cultura wrbano- industrial; na segunda, buscaremos situar os ekementes e vatores que determinan a antropotegia dominicana, com resposta evangetizadora ae tipo de homem que nos apresenta a mencéonada cultura urbano-industrial. Este motedo, em conte sentido figurative, ajudar-nes-d a proeisar a atuatidade de nossa per senatidade carismatica ¢ pederd bréndar-nus principios de vrientacdo para una planigicacdo e para a setecdu e furmacde das voeagies. As upcdes de CIDAL-CARACAS pela sustica ¢ pelos pobres estardo também pre sentes para rati{icar sua vigineta ¢ sua relacde coma antreprtogia dominicana. ANTROPOLOGIA QUE EMERGE DE NOSSA CONSTITUICRO FUNDAMENTAL CULTURA URBANO-INDUSTRIAL E ANTROPOLOGIA ESPIRITAL DOMINICANA Apresentagac 1. TRACOS ANTROPOLOGICOS DA CULTURA URBANO-INDUSTRIAL }, Tipologia antropolégica da cultura urbano-industrial 1 2 163) 1a Homo Homo Homo Homo sapiens (racionalismo positivista) faber (ativismo eficientista) consumens (consumismo irracional) potens (dominio manipulador) 2. Elementos configurativos da cultura-urbane industrial Cultura da informagao Cultura da imagem 3. Critica 31 = 3.2 = 33-8 II. TRACOS DA Cultura da matéria Cultura da mudanga Intento de sintese teolégica 3 antropologia urbano-industrial 0 homem despojado de sua dignidade 0 pecado, raiz de toda injustica injustiga, fonte de desigualdades sociais ANTROPOLOGIA DOMINICANA 1. Tipologia antropolégica dominicana 4.2 Home Homo Homo Homo contemplativus (Ordo fidei) solidarius (Ordo misericordiae) reflexivus (Ordo veritatis) apostolicus (Oudo Praedicationis) 2. Valores determinativos da antropologia dominicana Capacidade de adaptacao Capacidade para o positivo Capacidade de equilibrio Capacidade para o didlogo Bat 2.2 2.3 2.6 2:5) Capacidade "sapiencial” 3. Antropologia dominicanae transformagao do mundo 3.1 - Servico evangelizador © parabola do semeador Contemplacdo apostélica @ parabola do Filho prédigo Misericérdia solidéria e parébola do bom samaritano Busca da verdade e par4bola dos talentos 3.2 3.3 3.4 4, Mediacées operativas 4.1 - 0 projeto comunitario - 11 - discernimento comunitdrio promocao da contemplag&o e do estudo ratio formationis pppoe valorizagao do pluralismo NOTAS BIBLIOGRAFICAS 34 34 34 34 36 T, TRAGOS ANTROPOLOGICOS DA CULTURA URBANO-INDUSTRIAL Wao pretendemos um estudo exaustivo do tema. Necessitariamos de mais tempo e espaco. Tentamos apresentar uma espécie de ensaio analitico-descritivo que nos permita aproximar-nos dos tragus fatores, ideologias e idolos, relacoes e com- portamentos que vio delineando o perfil da cultura urbano-industrial, Trata-se, em definitivo, d ia abordagem de sintese do tema. 1. TIPOLOGIA ARTROPGLOGICA BS CULTURA RD: STRIAL A razéo (hows sapiens), a acao (homo faber), as coisas (homo consumens) e © poder (homo potens) constituem a identidade do homem urbano- industrial. A razdo positivista, o fazer técnico, o consumismo permissive eo poder com petitivo estao se transformando em valores Gnicos e em critérios exclusivos pa- ra interpretar a vida, 0 mundo, a convivéncia social, ou o sentido da existén- cia, da histdria, da politica e do pluralismo cultural. Nenhun dos elementos indicados sdo negativos en si mesmos: 0 raciocinar, o fazer, o ter e 0 poder sao valores positivos e configurativos do homem, inseri- No en- dos em sua vocacao e identidade radical: "imagem e semelhanca de Deus" tanto, quando se postulam como valores absolutos, conduzem-nos a falsas concep- goes do homem (1) e dao vida as distintas ideologias antropolégicas em si mes- mas reducionistas e unilaterais, terminando por desencadear qualquer tipo de pro, cesso desumanizador. Analisemos agora a tipologia que nos oferece a cultura urbano-industrial , Jevando em conta esta breve apresentacao. 1.1 = Hono sapiens (racionalismpo positivista) 0 homem tomou consciéncia da capacidade transformadora de sua razao. Em uma linha marcadamente racionalista e positivista, 0 homem de hoje costuma dizer- se: "basto-me por mim mesmo". Por que ou para que oThar para cima quando a solu cdo esta em nossas maos? A ideologia da razao vai deslocando da cidade o misté- rio, a transcendéncia e a religiosidade para ceder o passo a uma sociedade que, idolatrando sua confianca no poder da razao, enfatiza orgulhosamente a “apari- ¢a0 do humanismo laicizante e profano em toda sua terrivel estatura", segundo palavras de Paulo VI (2). Isto ocorre em uma sociedade latino-americana tradi- cionalmente catdlica. 0 substrato cultural catdlico nado encontra nas grandes ci- dades latino-americanes estruturas e mediacoes que The permitamexpressar-se (3) Estara condenado 3 morte pelo tribunal do racionalismo positivista? "A religiao do Deus que se fez homem encontrou-se com a religiao ~- porque assim & - do homem que se faz Deus" (4). 0 super homem de Nietzsche encontrou un palacio & sua medida: a grande cidade. Este homem da cultura urbano-industrial descansa sobre um postulado mortifero: "tudo o que pode ser feito deve ser fei- to". Este postulado, levado a qualquer plano da existéncia e convivéncia huma- nas, acarreta consequéncias imprevisiveis. Se podemos fazer a bomba atdmica, fa amo-1a; se podemos manipular as leis genéticas, devemos fazé-1o; se podemos es- cravizar-nos uns aos outros, por que ndo fazé-1o? 0 homem desta cultura, orgu- Thoso de seu poder racional, néo pode converter o mencionado postulado em "bem eebsoluto" ou em “norma suprema" de sua vida. A légica deste super homem que se autocoroou a si mesmo como e se ufana de sua total independéncia de qualquer outra divindade, esta inspirada neste principio: o mundo esta governado pela ciéncia, isto &, cresce na convic- a0 de que os problemas, buscas e indagacdes profundas do homem podem ser trata dos e resolvidos pela ciéncia, em definitivo, pela razao humana. Encontramo-nos aqui com o rosto de um secularismo radical, que a fé crista jamais aceitara co- mo valido para interpretar o mistério do homem (5). Este “homem rigido que cultiva somente a realidade cientifica, néo apenas se faz centro de seu interesse como também se atreve a chamar-se principio e ra 280 de toda realidade" (6). SO cré no que faz ou pode medir, no que experimen- ta e sua razdo descobre. Proclama sua autonomia no tocante a toda transcendén- cia e as aparéncias configuram seu novo credo. 0 "homem fenoménico” é o resulta do de tudo isto. A cultura urbano- industrial oferece-Ihe 0 ambiente propicio. Ambiente que ele mesmo vai criando. Na revelacéo crista vétero e neotestamenta- ria, descobrimos uma espécie de constante: o deserto é 0 lugar de encontro com Deus através da provacdo, da purificacdo e da solidao. Ao passo que a cidade apa rece com toda sua forca desumanizadora e em total despreocupacdo como divino. Na cidade, a lei de Deus nao @ respeitada.Recordemos Sodoma, Gomorra, Babild- nia (7). 1.2 - Homo faber (ativismo eficientista) 0 homem "trabalhador" @ una dimensao antropoldgica ressaltada dignamente pela revelacdo, a espiritualidade e a teologia. Basta-nos, para confirmacao dis to, 0 testemunho da constituicdo do Concilio Gaudium et Spes, quenos oferece um texto antolégico sobre o sentido e valor da atividade humana, tanto em sua pro- jecéo histdrica quanto em sua projecao transcendente. A cultura urbano-industrial, ao contrario, oferece-nos um tipo de — homem preocupado preferentemente com a matéria e a técnica. Um homem que adquiriu cons ciéncia,de seu poder transformador do mundo a partir de sua capacidade racional. A ideologia da técnica gera adeptos e impoe suas proprias leis. Esta ideo- -4 logia descansa e preconiza um Ydolo preciso: fazer. 0 que importa @ produzir, trabalhar, fazer. Isto desemboca em una sociedade tecnicista onde as relacoes humanas e a convivéncia estado regidas pelo ativismo. Um ativismo p matico e eficientista. 0 postulado desta tipologia antropologica @ este: "vales pelo que fazes ¢ realizes, nao pelo que és". 0 ser foi substituide e deslocado Jtico, prage pelo fazer. A oracao e concentracao, a serenidade do Ocio e a tranquilidade in- terior encontram grandes obstdculos para penetrar no coracao e na vida do homem urbane. Na culture urbano-industrial contam os resultados. Seu codigo de vida pode. ria resumir-se assim: A "capacidade", em todos os aspectos, vem a ser a virtude xito", 0 objetivo de- cisivo; 0 “rendimento", a lei desta moderna sociedade industrial, na qual cada um tem destinado papel" (9). Max Weber em sua obra "A étice protestante e 0 espi- rito do capital ismo" (1905), demonstra as raizes ético-religiosas desta cultura marcadamentematerialista que justificaa prépriaexisténcia e o sentido da vida vel, isto 6, na produtividade e laboriosidade. sta visdo unilateral do homem traz consigo consequéncias negativas que por exceléncia; a “utilidade", o critério dominante; o " na atividade incans ameacam a humanidade auténtica do homem. Sua liberdade fica sujeita as exigén- cias das estruturas produtivas, perdendo, deste modo, autonomia pessoal, ao ser dirigido de fora e pelo sistema implantado pela sociedade industrial, o que afe- ta muito diretamente a familia. 0 homem sente-se pressionado ¢ aprisionado pelo Jegalismo que impoe a sociedade industrial. Escapar dele € quase impossivel ese se quiser “progredir" @ necessario sujeitar-se ao mesmo. Nao exageramos ao di- zer que, em muitas de suas exigéncias, a sociedade industrial e urbana é escra- vizadora. Pensemos, por exemplo, nesse operario que, 365 dias (se nao faz horas extras), se coloca diante de uma maquina para, em fracdes de segundos, por e ti rar tornos. Ademais, tem que render uma quantidade determinada , do contrario,nao serve, isto €, ndo @ rentavel nem produtivo. K perda de liberdade se acrescenta a perda de valores que fazem a perfei- c&o do homem e sua felicidade. 0 trabalho mecanizado e especializado, os cédi- gos do rendimento e da produtividade vao matando o tempo e a vontade de culti- var outras dimensdes do ser humano. Sua vida @ uma espécie de carreira sem meta que deve obedecer a continuas servidoes, a tal ponto que o prendem a um circulo sem saida. 0 horario, a eficiéncia, o rendimento controlam sua vide e polarizam seu interesse. Este homem vive vazio e até insatisfeito, torna-se agressivo e desconfiado, perde o sentido da solidariedade e se encerra em seu proprio mun- do. Finalmente, a perda de liberdade e a perda de valores superiores desembo- cam, ou esto acompanhadas pela perdade identidade. Ja nao € o mesmo. Est alie nado. "Toda sua eficacia e atividade nao Ihe fardo recobrar seu ser, sua identi Biss dade, sua liberdade e personalidade, a afirmacdo de seu eue o sentido de sua existéncia" (10). De que Ihe serve ganhar o mundo e proclamar-se o melhor opera rio ou profissional, se fracassa redondamente como homem? Em minha experiéncia pessoal como sacerdote, comprovei a amargura de homens e mulheres que nao con- seguem encontrar-se consigo mesmos. Esta crise de identidade origina seres huma nos sem convicgdes, sem valores firmes, sem perseveranca no que empreendem. Con vertem-se em uma espacie de marionetes manejados e puxados. 0 homem,chamado por Deus a ser senhor e dono das coisas, converte-se em escravo das mesmas. Nao sa- be dominar as circunstancias. Por isto, a cultura urbano-industrial favorece os dramas humanos, os descontentamentos interiores e uma existéncia presidida com frequéncia pelo tragico. 0 rendimento jamais podera converter-se em chave absoluta para interpretar © sentido da existéncia humana. 0 "fazer" e seu filho, o ativismo, ndo chegarao nunca a ser o decisivo na vida de um ser humano, A produtividade e a eficiéncia nao contém, por si mesmas, a felicidade e a plenitude buscadas pelo homem (11). 1,3 - Homo consumens (consumismo irracional) A vazao, aplicada @ matéria para transformé-1a, produzindo novos bens mate- riais, esta direcionada ao possuir para consumir. 0 homem e a sociedade consu- mistas centram o sentido da vida humana na ideologia do ter. Seu idolo séo as coisas, os bens materiais: 0 dinheiro, a riqueza, o luxo, o "status" social, 0 progresso econdmico. Ou também os bens corporais: desfrutar e gozar. 0 “prazer", como busca desesperada do homem moderno no marco urbano-industrial, da vida ao que poderfamos chamar "culto aos sentidos". Que ha por detras destas afirmacoes? Que tipologia antropoldgica brota e caracteriza o culto do consumo? Nos paises mais abastados, industrializados e produtivos, “desde a infan- cia vém-nos modelando como consumidores, em méos de uma publicidade que ja @ co mo 0 ar que respiramos. Uma vez formado 0 “homo consumens", ele e ela influem por sua vez, na economia, criando e justificando necessidades cada vez maiores: seu supérfluo torna-se conveniente, 0 conveniente se faz necessario, o necessa- rio se converte em indispensavel. A propaganda esta perfeitamente estudada para passar do nivel racional e consciente ao inconsciente, com tao decisiva influén cia em nossa psicologia e nossas decisdes, que alguns chegarama se perguntar se realmente nos resta alguma liberdade para nos comportar de modo diverso" (12). As pressoes do consumismo sao um fato incontestavel. Introduzem-nos em uma dinamica de necessidades (nos consumidores) e de estimulos (nos produtores) que integram uma espécie de espiral ilimitada, isto €, irracional. Homens e mulhe- res chegam a consumir por consumir, sem que por isto sejam mais felizes. 0 pos- tulado basico de uma mentalidade consumista poderia sintetizar-se assim: "ter e acambarcar cada dia mais para conquistar um bem-estar cada vez mais sofistica- do". Ja nao faltam manifestacdes que contestam con veeméncia a cultura de consu mo, sobretudo entre os jovens, cansados do mal-estar, desorientacaoe fastio que produz 0 consumo. Do homem consumista, passamos agora 4 sociedade consumista, "Nao se conten tam com modelar a pessoa do consumidor. Chegam, inclusive, a criar (a publicida de e a propaganda) a sociedade de consumo, con valores, atitudes e leis pro- prias, com manifesta consciéncia de superioridade de classe. Nesta sociedade, liberdade quer dizer: uso ilimitado de bens, servicos, dinheiro. Desenvolvimen- to significa: ter mais, industrializacdo, urbanizacdo, aumento de inaresso per capita. A informacao, segundo este esquema, @ livre quando vem de determinada direcdo e impulsiona para determinadas metas. 0 fim de tudo isso € abrir ou am- pliar mercados, aumentar os beneficios e, para tanto, converter > "aldeia glo- bai" (“global village") em "cidade de negocios" (business town). 0 centro: meu "eu". Os demais homens, "coisas" para mim. 0 motivo: ganancia. A lei moral: a a3). Qual € a dinamica propria do consumo? Quais os passos que o definem? Con- eficacia. Meios: todos os eficazes, caia quem cai centram-se em quatro momentos principais: 1) 2 avidez e até o desassossego por ter, isto &, por possuir um determinado produto: 2) 0 fato de apoderar-se de al- go ou de alguém desejado; 3) usar 0 possuido; 4) desprender-se, tirando o que comecou desejando. E 0 momento em que brota o cansaco e 0 vazio no possuir, @ por isto mesmo se tira, para comecar de novo o proceso. Isto nos permite perguntar-nos: os que vivem nesta dinamica ou os que al- cancaram um alto bem-estar material sao mais felizes do que aqueles que nao se deixaram levar pela psicose enfermica do consumo? Onde se enraiza o erro radi- cal do consumismo? Em considerar que 2 posse, 0 desenvolvimento, o bem-estar € (© consumo sao fins em si mesmos ou valores absolutos, quando, na verdade, sao meios a servico do progresso integral do homem. Com efeito, o homem nao foi fei to para a posse, 0 desenvolvimento, o consumo, mas tudo isto para o homem. A in versao de valores nos conduzira sempre ao interior de processos e de postulados antihumanos e desumanizantes. Por que estranhar a crise de humanidade que nos afeta a todos, se uma ingente propor¢ao de homens e mulheres vive na cruel espi ral do consumismo irracional? “Quando 0 indivfduo ou 0 grupo esquecemque todos os bens destemundo estdo ‘a servico do homem e no vice-versa, ngo adoram o tinico Deus verdadeiro, mas a multid3o de deuses falsos: Mammon, o poder, 0 sexo, o trabalho, O prestigio.Aban donam o homem em maos destes deuses cruéis" (14). 0 consumismo descrito nos con- duz & idolatria. 0 homem se vende “aos bezerros de ouro" que se chamam autom6- vel, eletrodomésticos, élcool, tabaco, sexualidade, cosméticos. modas, viagens, .. € 0 homem deixa de ser homem em meio aos bens materiais que pode e deve u- sar. 0 homem busca "a vida" na idolatria e encontra "sua morte". -7- 1.4 - Homo potens (dominio manipulador) A razao, aplicada a matéria para produzir e consumir, esta orientada para a conquista do poder. Puebla denuncia repetidas vezes a idolatria do poder, con vertido em Tdolo. 0 poder, em si mesmo, & um valor e uma realidade positiva. Significa capa- cidade para. Nao podemos partir, pois, de uma concepcdo negativa do poder. Um homem sem capacidade para, sem poder, nao poderia alcancar sua plenitude, quer se trate de um poder fisico, moral, econdmico, cultural ou politico. Desvirtua- Se a positividade do poder quando se absolutiza ou toma o nome de dominacao, ma- nipulacdo, autoritarismo ou ditadura, nao apenas na ordem politica, como também nos outros niveis indicados. Existem ditaduras econdmicas, do mesmo modo como se dao dominacoes culturais. E existem manipulagées morais, do mesmo modo como se dao autoritarismos ideoldgicos A pessoa humana @ um ser dotado de poder, revestido deste don que chamamos capacidade para. No entanto, conforme seja a relacao do homem, seu poder recebe diferentes nomes. Assim, em sua relacdo com Deus e em sua condicao de filho, o homem possui a capacidade para louva-lo e adora-lo. 0 poder aqui se chama adora cao e obediéncia. Em sua relacéo com seus semelhantes e em sua condicao de ir- ‘mao, 0 homem possui a capacidade necessdria para ama-lo. 0 poder aqui recebe o nome de servico respeitoso. Finalmente, em sua relacdo com 0 mundo e em sua con dicdo de administrador das coisas, o homem possui a capacidade de transform las. 0 poder se chama aqui trabalho. 0 problema nao @ poder, mas a valorizacéo do mesmo e sua instrumental iza~ cdo. Lamentavelmente a cultura urbano- industrial desfigurou 0 auténtico rosto do poder, Esta convertendo-o em lei suprema para impor suas proprias leis: os cen- tros de poder econdmico, por exemplo, impdem suas proprias condicdes e exigén- cias nas relacdes econémicas, criando dependéncias inumanas. 0 "poderoso, seja de que ordem for, impde seus proprios critérios ao débil; 0 rico, ao pobre, dan do origem a comportamentos manipuladores. Ademais, 0 poder esta se transforman- do em critério exclusivo nas rivalidades existentes entre os partidos politicos. Cada qual quer conquistar 0 poder para conduzir a totalidade segundo sua ideolo gia propria e seus proprios interesses. Promete-se 0 que nao se cumpre.Deste mo do, a mentira, 0 engano, a falsidade sao 0 caminho quase ordinario para se fa- zer como poder. Isto vale tanto para a ordem econdmica quanto para a ordem cul. tural. 0 poder como lei iinica, como critério absolute, como meta exclusiva, como Jdolo definitivo nos conduz, tanto nas relacdes inter pessoais quanto nas rela~ cOes intercomunitarias, a comportamentos de competicao e rivalidade. Na cultura urbano-industrial, @ mister competir para chegar primeiro e aos melhores pos- tos. Isto origina uma sociedade na qual o homem vé o homem como rival, orienta~ tada para demonstrarmos uns 20s outros nossa prépria superior idede. A vocagao de servico morre ante a forga de uma psicologia social de dominaciic. 0 auto- ritarismo massificador é @ resultado de tudo isto. A participagdo € anulada. Impede-se ao honen ser “rorjador de seu préprio destino", como o afirma Joao Paulo Il. 0 poder asssim entendido nae considera os meios. Seu postuiaco é t8o cla~ ro quanto tiranico: “tudo o que puder oferecer perigo @ meu poder deve ser su- primido". Para isto inventam inimiges" que ndo existen, se anulam Tiberda~ des pessoais © os dirnitos da pessoa humana so interpretados segundo os inte- resses do poder. Isto nfo admite critica, mas submissso. O poder converte o ho mem em “objeto” a se: rolago, divigido, dominado. Insistimos em que estas. afirmagdes nao devem ser aplicadas aopenas ao exercicio do poder politico, mas também a todo tipo de poder! 2. ELEMENTOS CONFIGUR“TIVUS DA CULTURA URES NG- INDUSTRIAL A tipologia antre tos que nos ajudan a apreciar a descrigéo da culture urbano-incustrial, isto oldgica descrita contém em si mesma uma .é ie de elemen 6, 05 modos de viver e conviver prdprios do homem urbano e@ industrial. Esta ti, pologia e seus elementos configurativos corresponderdo eles ao substrato culty ral do homem letino-americano? A resposta nos levaria a um estude comparativo impossivel de realizar-se agora. E certo que as culturas se enr quecem mutua- mente através dos intercambios com outras culturas. Ne entanto, a adveniente cultura universal tende 2 homogeneizar os modos peculiares e préprios da cul- 8, acaba- tura de cada povo. Ao invés de integrar os distintos valores cultu se por eliminé-los ®. Vejamos em sintese e aproximadamente, quais os elementos, valores e ten- déncias que preferentenente se d30 no que convimos chanar “cultura” urbano-in dustrial. Uma vez mais, enfatizaremos o seguinte: trata-se de valores que, ab- solutizados, perdem sua riqueza e positividade para se converteren em desvalo- res. 2.1 - Cultura da informacao 0 home moderno vive imerso no que convimos chanar “cultura da informa- G30". As invengdes técnicas aplicadas @ informética. Vivemos informados atra- vés dos dados que nos oferecem os meios de informagao. Poderao 2l2s ser chama- dos em plenitude meios de comunicagao? Esta cultura do dado,de tipo enciclopé- dico, estd apoiada, ademai deste modo, com uma formaco preferentemente analitica com esta caracterfsti- por alguns sistemas educativos. Encontramo-nos, tica: © homem urbano- industrial domina os cados, mas nao a sintese. Sabe o que acontece no mindo cu no conteato social préximo no qual vive, mas, chegaré ele a descobrir as raizes, as causas e as relacdes dos fatos e dos dados? Esta “cultura de informagao", em mdos dos centros do poder econémico e€ ideoldgico, ndo ¢ inofensiva, pois, com frequéncia manipula a verdade dos fa- tos. Os dados chegam ao homem atenuados ou interpretados, sem que este — tenha tempo ou meios para comprovd-los pessoalmente. As consequéncias podem ser as seguintes dentre outras: em primeiro lugar, vai-se configurando um comportamento passivo ne homem,o qual recebe dadoscons tantemente e os aceita sem submeté-los a critica de sua prépria reflexao. Mais ainda, evidencia-se no homem urbano-industrial certa alergia ao estudo reflexi vo, consequéncia, talvez, de seu ativismo e de seu senso eficientista. A "cul- tura de informac3o" nao 0 ajuda a julgar as coisas com critério préprio 8 1uz da verdade’”, 0s meios de informacao, isto €, aqueles que os dirigem, pensam pe lo leitor e The indican o que € bem e © que é mau. Desta maneira, vai-se lo- grando, quase imperceptivelmente, 2 despersonalizagao da pessoa humana, incapa citada para orientar sua vida segundo suas prdprias e intimas convicgdes. se assim 6, urge promover uma consciéncia crftico-reflexiva no homem, Em segundo lugar, a propaganda € 2 publicidade acompanham © homem onde quer que vd ou esteja: a televisdo, as revistas, 05 Onibus, as estradas, a rua, tudo é aproveitado para dizer ao homem que deve comprar, ou Os produtos de que necesita. Este bombardeio psicolégico e permanente exerce sobre o homem uma espécie de coagdo externa que o incapacita a ser plenamente livre. Por este ca minho, rapidamente indicado, chega-se ao mesmio resultado: a despersonalizagao,a qual produz um homem no integrado em si mesmo, mas dividido, um homem insegu- ro e com diminuicao de sua capacidade pessoal de decisdo, um homem voluvel e varidvel em suas idéias e em suas opgdes. Paulo VI o chama "o homem versé- til sempre disposto a representar qualquer papet’ 2.2 - Cultura da imagem Os substratos exteriores do homem sao os que regulam seu comportamento e suas opgdes. 0 mundo dos sentidos e dos sentimentos engloba preferentemente a vida do homem. Por isto mesmo, esta "cultura da imagem" pode chamar-se também cultura dos sentidos ou cultura da exterioridade. Esta tendéncia cultural vai conformando uma antropologia da dispersao e da divers3o que busca ansiosamente superar a monotonia, a rotina de uma sociedade mecanizada, € 0 tédio do jé experimentado. 0 predominio do sensitivo, daquilo que satisfaz aos sentidos, impele oho- mem urbano- industria) rumo 3 busca incessante do prazer. Seus nomes concretos 530 0 consumismo € 0 hedonismo, orientados a satisfacdo dos instintos e das pai. xdes do homem. Desfrutar a vida e gozar ao méximo constituem jé uma ordem in- = 10 - discutfvel para a maioria dos homens. Neste ambiente, determinados va mo a humildade, 0 sacrificio, a abnegagao perderam sua carta de cidadania. "0 que gosto", "o que sinto" converteram-se em normas supremas. 9 homem autopro- clamou-se deus de si mesmo. Por que estranhar esta cultura do prazer? Suas consequéncias? Em tracos breves, poderfamos indicar as seguintes: em primeiro lugar, esta cultura descarta de seu horizonte vital o mistério. A in- terioridade, a concentragao, o siléncio, a contemplacéo trnscendem, de certa forma, as exigéncias dos sentidos, pedindo-thes siléncio. £ isto é muito diff- ci} para o homem que vive envolto no torvelinho da imagem. Nao vivemos em con- textos de cultura contemplativa. Quem pode negar isto? Em segundo lugar, esta cultura dos sentidos nos oferece o rosto de um ho~ mem caracterizado por certa imaturidade, cujos frutos séo a superficialidade e a mediocridade. 0 herofsmo como a profundidade nas decisdes, nas relagdes in- terpessoais, na convivéncia e nos valores que a enriquecem n&o sdo produtos ven didos no mercado da imagem e do prazer. Busca-se 0 facil e 0 comodo, conquista dos, as vezes, violentamente. E certo que o homem desta cultura urbano- industrial é imaturo? Que catego rias possuimos para determinar os critérios da maturidade e da imaturidade? Ar risquemos a apresentar alguns sinais como respostas a estas indagagdes. Nao sao os unicos € talvez nem os mais importantes: O equilitrio, sinal de maturidade. 0 homem maduro sabe encarnar um justo equi lf brio entre o relativo e 0 absoluto, entre o pessoal eo comunitirio, entre 0 subjetivo @ 0 objetivo, entre o afetivo e o racional. A virtude e a perfeigao radicam no equilfbrio, j diziam os antigos fildsofos da Grécia. Quando o ho- men enfatiza unilateralmente um dos termos em detrimento do outro, inicia um caminho rumo & imaturidade ov ao desequilibrio. A solidéo, sinal de maturidade. 0 homem maduro sabe estar sozinho, sempor isso cultivar 0 isolamento. Precisamente por saber encontrar-se a sds consigo mesmo, sabe estar com os’demais. Ao homem urbano The custa a solidao, inclusi- ve o molesta. Discernimento, sinal de maturidade. 0 homem maduro sabe distinguir conve- nientemente entre o que sucede constantemente € 0 que deveria ser. Nao justifi ca sem mais nem menos as situagdes ou os fatos, pois esté convicto de que oque sucede nem sempre é justificdvel. £m outros termos, a pessoa madura sabe dis- tinguir entre o que €, 0 que sucede, 0 que deve ser e 0 que pode ser. A cultura urbano- industrial, a grande cidade, tornam dificil a conquista do equilibrio, da solidao e do discernimento. Os sinais de maturidade indica- dos no so favorecidos por essa tendéncia primordialmente sensitiva e centra- da no prazer, Este tema mereceria ser aprofundado. 2.3 - Cultura da matéria © homem, inspirado por uma concepc3o dinamico-positivista da vida e sedu zido pela euforia do técnico, apoia sua existéncia e sua convivencia nos nfveis fenoménicos-aparentes-visiveis das coisas, dos processos e das pessoas. Este homem acredita apenas na matéria, isto é, naquilo que pode comprovar, expert~ mentar, transformar e perceber. N30 se trata apenas de uma busca desmesurada dos bens materiais, como tam bém do fundamento filosdéfico que alimenta e fundamenta essa busca. Isto signi- fica que a matéria aparece como raiz interpretativa do homem e de suas rela- gdes de convivéncia. Esta nova concepgo da vida a partir da matéria tem como pai os “mestres da suspeita", tit Narx, freud e Nietzsche'?, 0 materialismo destrona a religi8 e com ela os va- a lo criado por Paul Ricoeur para aplicd lores espirituais. Estes conduzem-nos a uma evasdo da realidade, da terra, da histéria, segundo aftrmacdo unanime dos "mestres da suspeita". A religiao € *épio", na expressdo marxista, “ilusao", na freudiana,"veneno” para Wietzs- che, posta na vida para destrui-la e denegri-la. Estas afirmagdes falam-nos de algo mais do que de uma "suspeit Nem o marxismo com seu materialismo dialético, nem a psicandlise com di- mensdes pansexualistas nem o superhomem com pretensdes de autonomia absoluta pu deram dar resposta adequada &s indagagées profundas do homem e a seus desejos mais auténticos de felicidade. Os trés sao imanentistas, motivo por que, inca- pazes de explicar o enigma da vida humana e dar-Ihe seu verdadeiro “sentido”. Conseguiram, no entanto, que o homem cresga em uma sé dimensdo: a de progredir materialmente e a de dar cabal satisfacao a seus gostos e desejos de gozar. Esta cultura da matéria, ao apresentar a concepcao da vida sob um angulo determinado e exclusivo, foi apagando dimensées positivas que fazem a plenitu- de da pessoa. Quais? Assinalaremos as seguintes, sem pretender 4 exaustividade: em primeiro lugar, as ci@ncias fisicas e as ci€ncias “humanas" de acentuado ca rater positivista, suplantaram @ metaffsica. 0 ambiente que respira o homem da cultura urbano- industrial nao € precisamente propicio as abstracées, as essén- cias, aos conceitos. 0 meta-fisico © o meta-histérico nao entram no quadro de seus interesses. 0 que transcende ao fenémeno perde importancia e se termina por elimind-lo. Em segundo lugar © muito relacionado com o ponto anterior, 0 homem ur- bano- industrial move-se no horizonte do “dtil". Utilidade e eficiéncia sao as medidas necessdrias para determinar os valores e a bondade das coisas e até das pessoas. Temos assim uma cultura que fundamenta a existéncia humana sobre .o “bem util" © sobre o “bem sensivel", que rejeita, porém alicergar-se sobre 0 "bem honesto", Este, em geral, ndo é rentével. E como nao é "Util", deixa de ser umbem para esta cultura da matéria. Um exemplo nos ajudard a entender me- 242 = jhor 0 indicado: a politica econémica costuma considerar o homem como produtor @ como consumidor, com exclusao de uma dimensdo “herdica", isto é, a que estd livre de motivos interessados. A psicologia © os comportamentos do homem urba noe industrializado se desenvolve no jogo do interesse e da utilidade. A gra- tuidade, o nao dar para receber, 0 nao servir para ser gratificado economica- mente jé ndo saem passeando pelas ruas € pracas da cidade grande Em terceiro lugar, os valores religiosos transcendem o fenoménico e com- provavel. A santidade nao se mede precisamente pelos critérios da utilidade © da efici@ncia. A abertura do homem ao transcendente € divino no pode ser con- trolada pela ffsica. Precisamente por isto, a religiao, a santidade e a trans- cendéncia foram eliminadas e ridiculizadas pela assim chamada "cultura da ma- teria" Qual o resultado final? Os grandes eixos deste sociedade material ista sem fina idade humana s80 0 crescimento e€ a poténcia técnica. 0 homemé vassalo des tes novos deuses que o convidam € o coagem a descartar de seu horizonte pesso- al acétedra da morte. A pedagogia da morte, como relativizagdo de muitos bens que se absolutizam, fica reduzida ao siléncio. Sem a sabedoria da morte, a vi- da fice empobrecida € até desumanizada, sobretudo quando 0 enigma do mais além fica esvaziado de uma resposta da esperanca. E esta é, precisamente, a grande resposta do cristianismo: o Pai, em Cristo Jesus, desvenda a incégnita da mor- te com a esperanca da ressurreigdo. Jé nao € a morte seno a morte vencida a Clave interpretativa da existéncia humana. Nao ¢ a matéria, sendo a "vida",com projecdo transcendente, 0 gue dé sentido e plenitude 2 caminhada do homem. A cultura da matéria nao tem resposta satisfatéria para o mistério da morte. Co- mo no pode vencé-la, oculta-a. 2.4 - Cultura da mudanga A sociedade atual est4 marcada pelas mudancas e transformacdes nos distin tos niveis em que se desenvolve a pessoa humana. Estas mudancgas, inspiradas no espfrito @ conquistas técnicas, esto modificando constantemente o ambiente cul tural, a maneira de pensar, 0 modo de viver e de relacionar-se. A rapideze a velocidade, as trnsformagdes e mudangas favorecem o aparecimento de um homem que n8o sabe mais viver sen corer. Desta forma, defrontamo-nos com uma cultu- ra de mudanca, en midanca @ para a mudancga®°. Esta cultura produz um tipo de ho men instdvel, desorientado e até perdido, sem que veja satisfeitas suas aspira goes mais profundas. 0 relativismo € 2 primeira consequéncia. Se vivemos no marco de uma psi- cologia e de uma sociedade que experimentam de perto as mudancas constantes, 0 homem urbano-industrial chega a uma conclusa : no hd valores absolutos nem per -13- manentes. 0 que hoje é verdadeiro, amanha pode ser falso. que hoje € valori- zado, amanha pode ser desprezado. 0 que hoje € considerado bom @ justo, talvez amanha mide de figura, Esta mental idade relativista causa e € causada, € orj- gem e efeito de uma situagao concreta e palpdvel: a crise de valores. Isto con- duz a uma conduta e postulado vital espectfico: a axiologia cada qual a fabri ca em cada momento e segundo as situagdes. Ndo se trata de uma antropologia de situagdo. 0 homem relativista sofre a invasao da inseguranga, do medo, da ddvida A falta de uma hierarquia de valores produz nele um vazio interior ecerta ver tigem pessoal: ndo saber com certeza o que o faz feliz. Outras vezes, suahie- rarquia de valores est viciada e as consequéncias sao as mesmas. 0 relativismo axiolégico exerce ume espécie de paternidade sobre o subje tivismo. £ outro dos produtos desta cultura da mudanga. 0 que importa, em de- Finitivo, € 0 que cada um vive, sente e pensa. E como experimenta pessoalmen- te tudo isto. Este subjetivismo ignora a objetividade. Mais ainda, converte- se em critério supremo e unico no viver pessoal © no convivio com os outros. Em geral, 0 homem subjetivista dé primazia aos sentimentos, sendo sua afetivi dade a que conduz suas opgdes, suas prioridades e suas relagées comos demais. 0 processo indicado termina por uma cu ura de permissividade, Como nao hd valores permanentes nen objetivos, chega-se a afirmar: "tudo estd permiti- do, desde que possas consegui-io". A moral permissiva j4 tem trénsito interna cional. Talvez, por isto, a moral evangélica e o caminho de vida percorrido por Jesus Cristo nao sejam compreendidos pelo homem urbano-industrial. Muito menos ainda, o magistério da Igreja sobre questdes de "fé e costumes". 0 permissivismo exalta Lanto a liberdade humana que a escraviza. Por que impedir o matriménio de homossexuais? Por que manter uma unidade matrimonial quando no hé anor? Por que sao proibidas as rel des pré-conjugais? Por que n3o se pode utilizar anticonceptivo? A norma de conduta deste homem permissi vista sintetiza-se assim: vale aquilo que eu entendo e aguilo em que eu encon tro sentido. Este homem urbano-industrial, dominado pela rapidez, o ativismo eo afa de possuir logo para desfrutar depressa, encontra dificuldades para ser cons- tante. £ um homem sem grande senso da fidelidade e a incoeréncia acompanha-o como amiga inseparével. Sem valores permanentes, como justificar a fidelida~ de? Sem valores objetivos, 2 que devo ser fiel? 2.5 - Tentativa de sintese 0s aspectos indicados nao podemos entendé-10s adequadamente sem inter relaciond-los entre si. Mutuamente se intereterem, se explicam e se condicio- fam. Na realidade complexa da vida, no aparecem como um rosto "quimicamente puro". Por outro lado, a pés a releitura da reflexio anterior, temos a sensacéo de ter insistido sobre os aspectos negativos. Isto ndo significa esquecer os avancos positivos da cultura urbano-industrial. Pretendemos, aocontrério, des cobrir as necessidades humanas a partir de um amor muito grande pelo homem, sem trair a verdade. As tendéncias assinaladas coincidem em certas caracteristicas comuns ou englobantes de todas elas. Para sermos breve e modesto, limitar-nos-emos ape- nas a indicd-las: Em primeiro lugar, defrontamo-nos com uma antropologia tecnocéntrica ou, se preferimos, com uma forte tendéncia cosmocéntrica. Razao, matéria e téc~ nica parecem erigir-se em nova trindade do homem urbano- industrial. Essa tria~ de fundamenta tudo o mais, inspira-o, justifica-o ou o destréi. 0 homem, sua dignidade e seus direitos deixaram de ser centro para o homem. E Deus foi en- terrado. Em segundo lugar, encontramo-nos ante uma antropologia de alternativas e no ante uma antropologia na alternancia. Que significa isto? Aalternativa le va-nos a um reducionismo antropolégico. A alternancia conduz-nos a um equilf- brio hierarquizado de valores, evitando os reducionismos. Por exemplo: Deus ou o homem é uma afirmagdo altcrnativa. Deus € 0 homem é uma afirmagao na alter nancia. A cultura urbano- industrial e as tendéncias que origina se movem prefe- rentemente na linha alternativa: "deus ou o homen", quando em verdade nao po- demos entender o mistério de Deus sem passarmos pelo mistério do homem, — nem compreender o mistério do homem sem passarmos pelo mistério de Deus. Aqui apa- rece a sintese ou a afirmacdo hierarquizada dos termos da proposi¢ao. “0 pro- gresso técnico ou a dignidade do homem", quando o correto $ afirmar que o de~ senvolvimento técnico esté orientado para a dignidade do homem e a seu servi- G0, pois nao é 0 homem para o progresso técnico mas o progresso técnico para © homem, De novo a alternancia. Assim poderfamos ir procedendo na apresenta- G80 de outras afirmagdes, como por exenplo: "Estado ou pessoa", “agao ou con- templacao", "razdo ou coragao". Finalmente, defrontamo-nos com uma cultura desumanizada e dessacraliza- da, onde oegofsmo pessoal ou de grupo, as vezes institucionalizado e cinico, feroz e destrutor, nio se detém ante nada nem ante ninguém. Trata-se, em de- Finitivo, de uma situagao de pecado, como teremos ocasido de ver no t6pico se guinte. 3. CRITICA TEOLOGICA A ANTROPOLOGIA URBANO- INDUSTRIAL "No cerne das rafzes dos males sociais existe um mistério de pecado quan- do a pessoa humana, chanada a dominar 0 mundo, impregna os mecanismos da socie dade de valores materialistas"“'. A cultura urbano-industrial esforga-se por sanar as angistias e frustra- g0es do homem e, no entanto, as corrobora. Pretende dar resposta 2s suas aspi ragdes € indagacdes mais profundas e, no entanto, langa 2 pessoa humana em uma escuridao sem esperanca. Essa cultura urbano- industrial nao € precisamente a "boa nova" que o ho- mem espera, pois esté imersa em uma espécie de espiral com efeitos desumani- zantes. A partir do Evangelho ¢ a partir da luz que projeta a fé sobre a reali, dade que se vive, devemos afirmar que dita cultura tecnocentrica gera situa~ gdes de pecado e, a0 mesmo tempo, filha dos males sociais que causa. A huma- nidade urbano-industrial é causa e efeito de si mesma. Estd envolta em um cir- culo sem sada e sem sentido. 3.1 - 0 homem despojado de sua dignidade Estamos na raiz e ante o primeiro nome desse “mistério de pecado" do qual nos fala Puebla. A dignidade do homem, criado & imagem e semelhanga de Deus ¢ recriado em e por Cristo Jesus, é “irredutivel a uma mera parcela da natureza ou a um elemento andnimo da cidade humana” , A cultura urbano-industrial, com a tipologia antropolégica que origina, re duz 0 mistério do homem ou elimina algumas das dimensées da pessoa humana ou as hierarquiza indevidamente. Nisto radica seu pecado maior. AS relacdes constitu tivas da dignidade humana: filiacgao, fraternidade e senhorio, quando negadas ou invertidas, deixam o homem totalmente indefeso frente aos atrativos e exigén- cias dos fdolos. 0 home urbano-industrial reduz sua dignidade ao horizonte da temporalida de. A abertura transcendente e a religaco com Deus nao entram nos célculos ef cientistas de uma cultura que rechaca o rosto religioso da humanidade. Esse homem proclama sua autonomia frente ¢ qualquer divindade que naoele E cria suas préprias leis de vida e de convivéncia. Nao nos referimos apenas ao ateismo como ideologia ou como préxis vital, como também a’qualquer atitude humana que se aventura a reduzir o divino a seus prdprios interesses e conve- niéncias. Este homen, a0 invés de confessar sua vocagao e condig3o de Filho de De- ~ 46a us, afirma sua rebeldia afastando-se da casa paterna para interpretar por si mesmo a vida. 0 pecado, pois, da cultura urbano-industrial, € 0 rechago de De- us €, por conseguinte, a negagdo da comunhao com Ele. 0 pecado seré sempre sindnimo de "morte" sobretudo quando promove esta in- versao de ident idade: © homem, que é filho, pretende converter-se em Deus, que é Pai. Esta pretensdo 6 a fonte de todo desequilibrio pessoal e social. A cul- tura urbano-industrial descrita estd compronetida, a transformar o homem chama do a ser Filho, em Pai. Nao percede que o “Fitho prédigo", buscando 1 iberdade, encontrou a amargura e a infelicidade que dao os fdolos. “Sem uma radical comunh3o com Deus en Jesus Cristo, qualquer outra forma de comunhao meramente humana resulta por fim incapaz de sustentar-se e termina Fatalmente voltando-se contra o prépric honem 2, A cultura urbano-industrial ataina-se, embora o negue publicamente, em con verter o homem, chemado a ser irmaos e servo, em dono dos demais. Esta cultura reproduz, com nomes distintos, as atitudes de Caim e Abel, distorcendo as rela des humanas. E a passagem ldgica, suposta a negacdo de um Pai comum frente ao qual todos os homens somos radical e fundarctalmente iquais. A sociedade tecnificada e a grande cidade nao favorecema solidariedade hu mana. £m outros termos: 0 homem tecnocéntrico proclana-se autdnomo em relacao a Deus, sente-se capacitado para determinar 0 bom eo mau, e vive na convic- 580 de poder decidir sobre a vida dos outros, dos quais se considera dono. Resultado? Os homens se “matanientre si ou se utilizam mutuamente ou se ne gam direitos reciprocamente. Caim decide sobre a vida de Abel © 0 mata. 0 ho- mem e sua dignidade j4 nao sdo valores objetivos. Cada qual os interpreta e os condiciona a seus interesses e egoismos. 0 pecado aqui é sindnimo de tudo aqui- Jo que € antifraterno. Dominar e oprimir, em suas mi] maneiras de encarnar-se vao substituindo a fraternidade e o servigo. Os “bons samaritanos", que se identificam com o homem desconhecido e feri, do, escasseiam na consciéncia daqueles que nao admitem na pratica que “o outro" seja seu irm3o, filho do mesmo Pai, com igual dignidade e tao livre quanto ele. 0 homem esta sendo reduzido pelo homem a mero elemento da natureza, a um obje- to a mais. Talvez por isto se creia com direito de ir a seu encontro, espancé- Jo, despojé-lo de seus bens e deixd-lo ferido no caminho da vida. Este &0 fru- to l6gico do desequilibrio humano manifestado na inversao de identidades: 0 ho- mem, chamado a ser irmao do homem, se autoconstitui em seu dono. Finalmente 0 homem, chamado a ser administrador-senhor das coisas em sua relacao com o mundo material, vai-se convert Deus passa A obediéncia as coisas. Por que se afaina, corre, se desvive, se infarta o homem da cultura urba- endo em seu servo. Da obediéncia a a7 = no-industrial? Porque deseja ter mais, porque esta dominado pela avidez de pos suir, porque vive com a preocupacao de armazenar, porque deseja gozer e consu- mir tudo © depressa. Suas forgas, suas energias, suas qualidades polarizam-se nesta perspectiva. Se para tanto é necessdrio desobedecer a Deus, desobedece Se para tanto é conveniente bater no irmao, bate. "De que serve ao homem ga- nhar todo o mundo se perder sua vida?". No se pode servir a Deus a ao dinhei- ro, nem se pode servir ao irmio e a0 dinheiro. © pecado aqui é sinénimo de tudo aquilo que anula o senhorio do homem so- bre os bens materiais. Toda servidao, sobretudo a que cria depend@ncias absor- ventes em relacdo 8s coisas, seré sempre um ultraje a auténtica vocagéo e dig- nidade de pessoa humana. "0 homem ndo pode renunciar a si mesmo, nem a0 lugar que Ihe cabe no mun - do visfvel, nao pode se fazer escravo das coisas, dos sistemas econémicos, da producio e de seus préprios produtos"@*, 0 mais importante, pois, no éa trans- formagao @ multiplicagao das coisas, mas desenvolver a dignidade da pessoa hu- mana. A filiacdo e a fraternidade serdo sempre os postulados irrenuncidveis pa ra iluminar a relacao do homem com o mundo material através de seu trabalho. 3.2 - 0 pecado, raiz de toda in justiga "0 pecado 6 raiz © fonte de toda opressio, injustica e discriminago" > , tanto em seu aspecto pessoal como em sua dimensao estrutural®. 0 pecado des- crite no ponto anterior como “inversio de identidades", imprime sua marca des- trutora no coragao dos homens e nas diversas estruturas por eles criadas, sus- citando divisées e obstaculizando permanentemente o crescimento no amor e na comunhao’” A cultura urbano-industrial justifica todo meio til na produgdoe aquisicao de seus préprios fdolos: fazer, ter, saber, poder. Cria suas préprias estruturas € instituigdes, baseadas em ideologias © propagandas com pretensdes de servico ao progresso humano. Serio, porém, tio inofensivas quanto se apresentam? As ideologias € os fdolos instituem sua prdpria justiga. 0 homem auténomo, para o qual os valores objetivos nio existem e¢ se move sob o impulso de seu subjetivismo, determina por si mesmo e em cada circunstancia, 0 que € devido ao outro. Nao hé uma justiga objetiva. Se partimos deste postulado, por que estra nharmos as situagdes de injustica institucionalizada? A cultura urbano-indus- trial leva em si mesma a raiz de tada injustiga e a deterioracdo consequente da convivéncia social. Assim os poderosos aumentam seu poder, os ricos se tor- nam mais ricos, os fracos, mais indefesos, e os pobres se afundam mais na misé ria. Optar pela justiga implica necessariamente em abrir-se & verdade objeti- va, 3 liberdade liberada, 4 vocagao auténtica do homen. Ou inversamente: imp? Pee eae ieee ea Ee EEE EE EE EEE EERE EEL i - 18 = a. Toda atitude contrdria ao pecado como “inversdo de identidades" transfor- ma-se imediatamente e em unfssono em uma atitude em favor da justica. 3.3 - A injustiga, fonte de desigualdades sociais Puebla indica sem rodeios esta realidade: a pobreza e a miséria na qual vivem muitos seres humanos nao sdo algo fortuite, passageiro ou acidental. A brecha consciente entre ricos e pobres, com 0 consequente ou concomitante acd mulo das riquezas e do poder nas maos de poucos, tem sua raiz na injustiga institucionalizada. 0 pecado gera a injustiga, e a injustiga gera desigualda- des sociais. A cultura urbano-industrial acarreta, ao ser reducionista, a germinagao da pobreza e os processos de empobrecimento dos jé pobres. A opgdo preferen- cial pelos pobres transforma-se inequivocamente em um compromisso de luta e- vangelica contra as causas que dao origem a situagdes de pobreza inumana. Con cretamente, trata-se de pdr em eviddncia a malfcia intrinseca dessa tipologia antropoldgica, produto de uma cultura, apadrinhada pelos processos “incontro- lados" de urbanizagao € industrial izagao. Existem os pobres porque vivemos em contextos sociais de injustiga estru turada, os quais obstaculizam @ comunhao humana e a solidariedade fraterna e dentro dos quais a comunicagao de bens continuaré sendo uma utopia. Se quiser mos passar de situagdes menos humanas a situagdes mais humanas, teremos de transformar o homem urbano-industrial. £ isto € um grande desafio a missao evangelizadora da Igreja. Queremos terminar este tépico intuindo um possfvel camirho de reflexao posterior: 0 pecado identifica-se, de algum modo, com a negagao da teologici- dade do homem. A fé, © amor e a esperanga serdo sempre o caminho de plenitude do homem e a luz fecunda para entender o mistério humano € assegurar uma trans formacao do mundo na justica. As virtudes teologais asseguram-nos a “nao in- versao de identidades", pois nelas e a partir delas, o homem se descobre fi- lho, irmao e senhor. TT. TRAGQS DE UMA ANTROPOLOGIA DOMINICANA A exposigaio da primeira parte permite-nos compreender melhor esta segunda, segundo a luz que projeta sobre este tema nossa Constituigdo fundamental. Nao é objetivo nosso esgotar o tema. Trata-se de sugerir caminhos de reflexao, chamados a iluminar 0 sentido © a miss%o de nossas comunidad 's inseridas na cultura urbano- industrial, com repercussSes muito diretas na tarefa formadora de nossas vocacbes, oriundas desse ambiente cultural urbano-industrial. pologia antropoldgica dominicana a misericérdia ("homo solidarius"), a verdade A £6 ("homo contemplativus" (homo reflexivus") a pregagdo ("homo apestélicus") constituem a identidade do he mem dominicano, ou melhor, configuram a identidade do carisma dominicano. Nenhum destes aspectos & separdvel dos outros. Estes elementos est&o solida- mente imbricados, devendo guardar um equilibrio harmdnico e fecundar-se mutuamen te28 este 0 segredo da antropologia dominicana. Desde 0 momento em que se po tencializa aigum dos elementos indicados em detrimento dos outros, cai-se no que po demos chamar "despersonalizagdo dominicana”, isto é, se desfigura © perde vigor a personalidade carismatica da Ordem dos Pregadores. Feitas estas adverténcias, passamos a expor os traces peculiares a uma antro- pologia dominicana, 1.1 - Homo contemplativus ‘A contemplagiio detine um dos tracos constitutives da antropologia dominicana. © dominicano é um homem contemplative, no sentido amplo do terme. A oracao, & fraternidade, 0 estudo, a ago evangelizadore so, para o dominicano, lugares de bora seja certo que cada um destes 4mbitos de contemplagdo apre contempiagao, en senta caracteristicas peculisres, A identidade antropoldgica dominicana cresce € se explica em torno da Pala~ vra de Deus. Trata-se de uma contemplagao teologal da fé que n&o rechaga 0 va- Jor da razio, Motive por que, a harmonia entre £é¢ € razdo possibilita-nos configurar © dominican como um "redlogo contemplative ", que confessa sua dimensfo transcen dente, sua dependéncia em liberdade de Deus, sua abertura ao divino, deixando o se- cularisme como clave interpretativa da sua vida. Ordo fidei A experiéncia de Deus envolve toda a vida de Domingos de Gusmao: "'S6 fala- va com Deus ou de Deus". Frente a esse testemunho, o dominicano € chamado a ser "perito em divindade” em meio a uma cultura urbano-industrial que cimenta a existéncia humana sobre a razdo ¢ de costas para a £6. A experiéncia de Deus de- il de sua vida, seiva fecundante de sua ve ser, para esta "Ordem da £6", manar ago © luz clarificadora de suas opcies. No entanto, 0 dominicano nao vive sua projegdo teologal de fé — desencarnado da historia, mas inserido na historicidade, no concreto de cada momento e situagao. Deus a quem contiou totalmente sua pessoa no é um Deus despreocupado com os homens. Ao contrario, € um Deus encarnado, que salva o homem a partir do ho- mem, redimindo-o de suas frustragdes mais profundas. A contemplagdo dominicana sera sempre “historica" € "transcendente", isto &, nela se encontram sempre o divi- no eo humano, Deus e o homem, © Pai e © irmao. A existéncia concreta do dominicano esta selada pela interioridade, a oracdo, =20~ © siléncio. As observancias regulares criam um clima propicio & contemplagio a qual liberta este homem evangelizador de todo ativismo desenfreado © — desumaniza dor. Nenhuma atividade apostética poderd arrancar 0 dominicano dos postulados | da contemplagao. Vivemos hoje sob impulsos de um imediatisme pastoral que desembo - ca, frequentemente, em opgdes evangelizadoras que ndo se nutrem da contemplagao. Ou por outra, no chegamos a inserir em nossas prioridades apostélicas determinadas opgdes mais comprometidas, porque carecemos da torga criativa e renovadora que brota da contemplagao. A contemplagao teologal nos enseja o abraco com o fnistério. Este reveste a antropologia dominicana, 2 qual é inconcebivel © incompreensivel & margem do mis- tério @ de costas para a transcendéncia. Por isto, 0 dominicano é um homem religi 080, isto 6, religado, dando vida em sua adorag%o, louvor, oragio ¢ liturgia, 8 sua condigao de filho de Deus. Rechaga todo o pecado da sociedade — urbano-industrial que consiste na “inversdo de identidades" e na negagdode Deus. © dominican, homem enxertado nos mistérios divinos através de sua contem plag3o, se sabe livre e, a mesmo tempo, assume a Condigdo de sua dependéncia ou de sua no autonomia absoluta. Eo homem da Palavra contemplada, descobrindo ne la 0s valores permanentes ¢ a dignidade propria e alheia. Frente as correntes rela tivistas € autonomistas, 0 dominicano esta convidado a transformar a historia © 0 mundo pela {é em Cristo Jesus, cujo nome deve anunciar, através do mundo, aos. figis © aos incrédulos. A contemplacao dominicana nao se explica por si mesma, mas em sua rela 40 com a evangelizaco. Nao 6 fim de si mesma, pois a contemplag&o esté orde- nada a pregacdo e esta se nutre daquela. Contemplaco e pregaco se fecundam mutuamente. Precisamente por isto a contemplagdo dominicana nunca seré "monds- tica", mas sempre “apostdlica", segundo 0 modelo idealizado por Domingos de Gus- mao. Recuperar a contemplacao, na pluralidade de formas que a possibilitem, é re— cuperar a antropologia dominicana. Fala-se muito hoje e com relativa trequéncia. da crise contemplativa desta Ordo fidei. Ay causas desta crise sio muito variadas € até complexas, Podemos assinalar, entre outras, influéncia da cultura urbano-in - dustrial. Neste breve percurso, pudemos colocar as caracteristicas préprias da contem- plagao dominicana: trata-se de uma contemplagio que 6, ao mesmo tempo, teolo- gal, histérica € apostélica. Como acompanhar as vocagBes neste processo de matu- rag&o contemplativa, quando provedentes de uma sociedade ativista, dispersa e re - lativista? Defrontamo-nos com um grande desafio para nossos métodas ©, priori- dades formadoras. Que fazer para que nossas conmunidades situadas nas grandes ci, dades, recuperem a dimens% contemplativa que define 0 resto da antropologia do - iminicana? © carisma de Domingos de Gusingio postule um tipo de homem — “perito em divindade" © "perito em humanidade". Transcendéneia e historia se cncontrans - 2 - harmonicamente equilibradas na antropologia dominicana. Deus € o homem serdo sein pre © contetido vital da contemplagao dominicana. 1.2 - Homo solidarius A fraternidade define um dos tragos configurativos da antropologia dominicana . © dominicano é © homem da solidariedade humana ¢ para a solidariedade universal , experimentada no interior da fraternidade evangética. Como "vardo evangélico" esta chamado a proclamar a dignidade do homem acima das coisas € dos bens materiis, Mais ainda, 0 dominicano comprometeu seu projeto pessoal com outros projetos pesso ais. Dai o convite permanente a manter-se undnime na vida comum: na comunh’o tra terna. © dominicano é um homem de Deus para e com os irmos: fraternidade. Tudo possui em comum para viver melhor a disponibilidade pessoal a service do anuncio da Palavra. Trata-se, pois, de um rosto humano que se confessa indigente (carente) do ou tro e, por isto mesmo, aberto aos demais no conviver partithando. Aqui tampouco ca- bem as autonomias com o nome de individualismo. Vimos j4 como a cultura urbano-in dustrial provoca e convida ao individualiseno € ao isolamento: cada qual olha por si ¢ para si, passando por cima dos demais se necessdrio ou tomando atitudes — competith vas, contrarias 4 solidariedade humana. Ordo misericordiae A Ordem dos Pregadores brota, na histéria © na Igreja, como fruto da misericér dia de Domingos de Gusmao. Estamos ante uma misericérdia que € resposta as neces sidades da sociedade ¢ do homem de entdo © agora. A misericérdia 0 penetra todo ¢ todo o fecunda, E a nota que define nosso ca- risma e caracteriza a comunidade dominicana. A partir dela € nela, descobrimos ou - tros aspectos da solidariedade, inserida em nossa identidade carismatica prépria. Em concreto, a comunicaco de bens espirituais ¢ materiais, Ndo hd comunhao — fraterna sen&o na medida em que somos solidérios, repartindo e comunicando, uns com os ou - tros, a nivel interpessoal © intercomunitdrio. © agambarcar egoisticamente, ou 0 inde- pendizar-se na vida, apostolads, projetos s8o atitudes que porao em perigo a fecundi- dade planiticadora da solidariedade dominicana. A misericérdia nos engaja a encarnar este postulado: crescer juntos como irmaes nos elementos que dlo vida & nossa peculiaridade carismdtica. Estudar juntos, —_orar por si mesmo, ou & margem do discernimento comunitario, pois se corre-o perigo de daniti- juntos. 34 n&o € possivel que cada qual organize sua vida @ seu bel praz car © tecido das relagdes interpessoais no interior da fraternidade. A sociedade urba- no-industrial, 0 homem que respira sua cultura, necessita do testemunho de uma fra ternidade solidaria. Nossas comunidades estao chamadas a serem cétedra viva da so- lidariedade humana, iluminada pelo Evangelho. © préprio governo da Ordem é, em definitive, 0 exercicio de uma autoridade -~2= ‘em solidariedade. Trata-se de urn governo apostélico e comunitario, pois esta a servi co da pregag&o e da comunh’o fraterna. Estamos ante uma forma de governo que se desenvolve na dindmica da alterndncia: é& ao mesmo tempo, pessoal e colegial,o que pressupde uma preparagzio © uma responsabilidade préprias de um homem maduro. U- ma psicologia infantil, irresponsdvel ou desequilibrada poderd danificar 0 coracio de una fraternidade que assume 0 valor da participagdo democratica. A fraternidade dominicana, fundada na misericordia e na solidariedade, jamais poder por em jogo a personalidade peculiar a cada irmi%o e as qualidades que a confi guram: "Em virtude da prépria miss3o da Ordem, so afirmadas € promovidas de mo - do singular a responsabilidade € a graca pessoal dos frades. Cada qual, feita a protis~ so, & considerado como homem maduro, vez que ensina a outros homens € assume miltiplas fungdes na Ordem, Pela mesma razdo, quer a Ordem que suas leis ndo obri- guem sob pena de culpa, para que os frades as cumpram sabiamente, "nd como escra vos debaixo da lei, sendo como homens livres sob a graga" (Regra de Santo Agosti - nho) 22, Este texto. unido a nosso carisma, mostra a forga de um equilibrio entre os va lores pessoais ¢ os comunitarios e pleiteia uma antropologia de liberdade, madurez.res ponsabilidade © solidariedade. A misericérdia possibilita tudo isto. A experigncia evangélica de Domingos de Gusmao esta marcada pela compaixto misericordiosa para com os horicns © para com os primeiros frades. Haja vista 0 tes- temunho de Paléncia", "Nao quero estudar sobre peles mortas enquanto meus — irmdos morrem de fome". Af esto os gestos de misericérdia para com os irmaos visitados pe la debilidade. A compaixdo misericordiosa converte 0 dominicano em um homem com preensivo, tolerante, paciente, ante as fraquezas dos demais. Sua atitude ndo serd a de condenagao, mas a de salvag3o que brota do amor. Além do que, a compaixdo ini- sericordiosa transforma © dominicano em um homem que sente como suas as necessi - dades dos outros, seus problemas histdricos, e suas buscas de felicidade. Tudo isto se depreende do espirito da Constituigdo fundamental. Poderiamos chamd-la "constitul- do da misericérdia fraterna © apostélica” ‘A antropologia dominicana, segundo a perspectiva indicada, favorece uma dindmi ca de relagSes fundamentais na convivéncia humana, social € inclusive eclesial. uma antropologia que fomenta a comunh&o: a comum unidade dos elementos que defi- nem 0 carisma dominicane. Esta comunhao, porém, n&o significa uniformidade, vez que esta encarnada nas diferencas pessoais € histéricas. Valoriza-se a originalidade de cada irmao, de cada com nidade, de cada momento histérico. Esta diferenciacdo, no entanto, no postula © individualismo. Esté orientada para a complementagao recipro- ca, 0 que anula todo distanciamento ou antagonismo. Trata-se, pois, de uma diversida de complementar. Finalmente, dos principios anteriores se depreende o chamado & par ticipagdo corresponsdvel ¢ ativa na vida € na missdo da Ordem. Participagdo que to- ma corpo institucionalizado na forma democratica de seu governo. Esta solidariedade interior, feita de comunhdo, diferenciagtio, complementagao ¢ participagdo, langa 0 -23- dominicano a servico de uma solidariedade com 0 homem concreto € historico atra- vés da pregag’o. Podemes falar, com justiga, de uma solidariedade apostélica, de uma misericérdia apostélica. Nem 0 individualismos nem os isolamentos se justifi - cam na antropologia dominicana. De novo, a indagagao anterior: que fazer © como para que os jovens que aspi- ram a partilhar de nosso carisma passem de atitudes nao soliddrias € individualistas ‘a comportamentos de misericérdia e de vida comum? Este questionamento vale tam béin para nést que fazer para que nossas comunidades © os frades que vivem na cultura urbano-industrial re-descubram os valores e atitudes proprias de um "homem solidario"? 1.3 - Homo reflexivus © estudo assiduo é © terceiro trago configurativo da tipologia _antropoldgica dominicana. © dominican € o homem que tez do estudo € da reflexdo critica um estilo de vida, 0s quais 0 levam a descobrir 0 sentido das coisas ¢ da histéria,bus- cando sempre suas motivacdes © suas causas. Ha aqui uma te ntativa de transcen- der 0 meramente econdmico sem prescindir dele. Ha uma firme vontade de superar a exterioridade para adentrar-se_nas origens dos movimentos © processes humanos. A antropologia dominicana, @ partir desta vocagao reflexiva, n8o € acritica hem tampouco passiva. © estudo dé ao dominicano o senso do permanente © do mutavel, do absoluto e do relative, do imperecivel e do transformavel. No despre- za a ago nem a técnica, mas busca, por detras delas, o que faz ou destaz a dig - nidade do homem, revelada em Cristo Jesus. © estudo permite-the alcangar a sinte se € ver 0 meta-fisico para melhor compreender as idéias que sustentam e contro- lam a vida @ a convivéncia do homem. A cultura urbano-industrial € preferentemen te fenoménica, sem gosto pela reflexdo, sem capacidade critica e, pelo fato mesino impossibilitada para fazer a sintese. Ordo veritatis A vida do dominicano é uma permanente busca da verdade e um servigo ge ~ neroso, profético e comprometide com a verdade. Sua peculiaridade carism: ° convida a acompanhar os homens na busca da verdade, dentro das circunstancias processos mediante os quais se desenvolve sua caminhada. Desta busca da _verdade através do estudo e da reflexdo critica, brota o sentido da positividade dominicana: encontrar nas ideologias, nas culturas humanas, nos sistemas de pensamento, tudo o que contenham de verdade. Deste modo, 0 dominican vive @ necessidade de resga~ tar todos os valores que se ocultam em todo o humano ou é fruto da atividade do homem. "A Ordem ha de ter a fortaleza de animo de renovar-se a si mesma e de adaptar-se a elas (novas circunstancias), discernindo e provando © que é bom nas aspiragdes dos homens e, assimilando-o na imutavel harmonia dos elementos funda- mentais de sua prépria vida??, = 24 - A comunidade dominicana deve converter-se, dentro da cultura urbano-industri- al com 0s interesses, comportamentos ¢ ideologias que inspiram a dita cultura, em centro de reflexio ¢ de critica profética. Este servigo mana do préprio bojo de nossa antropologia € se [az imprescindivel na atuatidade. Pensar e ajudar a pensar, buscar a verdade e acompanhar nesta busca, fomentar © senso critico € reflexive ante os ‘acontecimentos sero sempre tarefas que definem todo homem que vive da verdade © para a verdad © dominicano n&o € alheio a este compromisso. Esta vocag&o em favor da verdade fundamenta a liberdade prépria da antropo - logia dominicana. "A verdade vos libertara” (Jo 8, 32). Deste modo, a verdade garan- tea liberdade do dominicano frente a qualquer dependéncia, quer ideolégica quer poli, tica. A ordem da verdade é logicamente a Ordem da liberdade, Uma Ordem de ho- mens livres, consagrados unicamente & comunh’o com o Pai © com os irm&os. Nem Domingos, nem Bartolomeu de las Casas, nem Francisco de Vitéria, nem Lacordaire , nem o Padre Lebret, para citar apenas algum, escravizaram sua liberdade com aiden, tificagdo a um sistema ou ideologia. Experimentaram pessoalmente a seiva deste pos tulado: a verdade no pode reduzir-se. A verdade € livre etranscende ay fronteiras de qualquer sistema ou partide politico. Acompanhar os homens em sua busca da verda - dade equivale a acompanhd-los na busca de sua liberdade frente aos idolos € as ideo- logias. Se a verdade conduz 0 dominicano a liberdade, esta 0 conduz a universalidade. A Constituigao fundamental fala da "comunh3o e universalidade" de nossa Ordem. Esta universalidade nao devemos entendé-la apenas no sentido geogratico ou como dispon bilidade para ir onde quer que nos destinein, imas também © preferentemente como Ambito interior no qual cresce a universalidade da verdade ? fa busca © © aniincio da verdade os fazemos e dizemos (testemunho © —antin cio) em © apartir da misericérdiia apostdlica, teremos um trace a mais da antropolo- gia dominicana, presente em nossa Constitui¢o fundamental. Como inserir as jovens vocages neste processo de liberdade interior, fruto da verdade, quando esto condicionadas por estas mil ataduras de consumismo urbano- dustrial? Que fazer para introduzi-las em uma dindmica de retlex3o © de estudo,quan do procedem de uma cultura que as convida a tudo menos & concentragdo? Pode-se perguntar inclusive se nossas comunidades dominicanas so testemunho vivo de uma fraternidade livre, quando se evidencia certa decadéncia do estudo € da reflexdo en - tre nds? Da maioria dos bispos com os quais tenho tido @ oportunidade de falar, ou - vi Sempre © mesmo convite: "Padre, nossas igrcjas necessitam de homens que se de- diquem a reflexo © ao estudo, f uma necessidade urgente ¢ prioritaria. Voces, como dominicanos, n&o devern perder isto que os define. E 0 servigo que esperamos de vo - cés", Estario preparadas nossas comunidades para oferecer este servico ao ministério profético dos bispos dos quais nos fizemos cooperadores? ?# easine 1.4 - Homo apostolicus ‘A pregagdo, segundo 0 modelo apostélico de Domingos de Gusmao, constitui quarto elemento especificativo da antropologia dominicana. © domininicano aparece aqui como servo evangélico. E 0 hormem que serve entregando aos demais 0 = que contemplou, partilhando com seus irmaos na fraternidade € refletindo em seu estudo © busca da verdade. Tudo esta orientado para a transformagao do homem e da soci- edade a partir do antincio do nome de Nosso Senhor Jesus Cristo >. Todo apéstolo é leminentemente um servo. Por conseguinte, a comunicaco da Palavra jamais pode converter-se em caminho de opressdo e manipulacdo, mas 40 contrario, em convite generoso & fé, & integragdo livre do mistério do homem no mistério de Deus. A pre gac%o jamais deve ser um instrumento de poder ou para o poder, mas um modo de servir para enriquecer os demais. A pessoa do dominicano se desenvolve na dinamica de um movimento de ida e volta: da contemplacao vai & pregagdo e , desta, volta de novo A contemplagao. Do estudo passa ao antincio da verdade, para de novo voltar & reflexdo. Da fraternida - de brota sua forga evangelizadora para desta voltar 2 fraternidade. Trata-se de uma personalidade harménica, que da cabida ao equilfbrio vital destes elementos. Ordo praedicationis: Desde suas origens, © dominicano se apresenta como um homem entregue total, mente e sem reservas & salvagdo integral dos homens. Pregar para salvar, pregar Pa ra transformar, pregar para engendrar uma humanidade nova. Este & 0 significado da pregagiio dominicana € seu servigo especitica, seguindo © modelo apostdlice. & este © empenho maximo do dominicano: dedicar-se inteiramente & evangelizagdo integra da Palavra de Deus" ™*, ‘Assim sendo, devemos evitar toda forma de pregagdo a-historica ¢ abstrarayunt lateralmente conceitual ou asséptica. Nossa pregacdo deve ser resposta indagagdes concretas de cada homem em cada momento histérico. Isto impBe-nos uma metodols gia: conhecer © interlocutor € os ambientes culturais de sua existéncia. Trata-se, em definitivo, do caminho percorride per Cristo Jesus € que se depreende do mistério da encarnago. Ele 6 0 enviado do Pai, encarnado na natureza humana, conhecedor da mesma e, por conseguinte, intérprete magistral das aspirades @ necessidades de seus ouvintes. Esta metodologia descarta qualquer atitude de estreiteza € isolamento. Des terra toda pretensdo de viver & margem dos homens. © apéstole dompinicano deverd levar sempre em conta as condig&es das pessoas, tempos € lugares Nossas pessoas, como nossas instituigdes ¢ estruturas ndo esto a service de nos sos interesses. Isto equivaleria a converté-las em fim de si mesmas. S80, pelo con - trdrio, instrumentos de evangelizagao. Assumir esta verdade com vigor impulsiona-nos ‘a uina revisio sincera € rigorosa de nossas instituigdes, sejam do tipo que forem. As vocacdes procedem de um estilo e mentalidade nas quais gastar a vida a servico dos demais nfo entra dentro de suas categorias eficientistas € pragmaticas. A formagso ree deve centrar-se neste objetivo primordial: acompanhar o homem que procede da cultu ra urbano-industrial em seu processo de integragao doselementos contigurativos da an- tropologia dominicana. Tareta nada facil. Por que? Simplesmente por se tratar de um processo de conversio e de transformacao quase radical: © homem racionalista ha que introduzi-lo numa dindmica de fé, centra- da no Evangelho e nfo nos postulados da mera razdo. O homem ativista e eficientista ha que inseri-lo em um ambiente de concentragdo contemplativa, a que no esté a costumado. © homem individualista hd que ajudd-lo a introduzir-se na {raternidade e no discernimento comunitério, arrancando-o de seus interesses pessoais. O homer que se afaina pelo poder os fdolos ha que acompanha lo para que vd assumindo atitudes de servigo e de entrega, © homem dominado pelas mudangas, os sentidos ¢ a disper - s&o, ha que apresentar-the as exigéncias © o valor do estudo e da reflexdo. Neste processo de conversdo radica a dificuldade formadora, Valores determinativos da antropologia dominicana Uma comunidade dominicana que vai perdendo 0 gosto ¢ 0 exercicio da contem- plagdo, ou onde as relacdes interpessoais dio se fundamentam na comunicagdo dos bens € no discernimento comunitario, ou na qual o estudo € menos valorizado, se transformard rapidamente em uma comunidade despersonalizada e sem forga evangeli- zadora. N&o se radicaré equi a origem de muitas inércias apostélicas’? Nossa origina- lidade e nossa personalidad carismaticas estéo constitiuidas por estes elementos in substituiveis embora adaptaveis. Deles brotam os valores determinativos da antropolo - gia dominicana, isto é, as aptiddes que definem © homem dominicano. E nosso intento sem sermos exaustivos, enumerar algumas dentre elas. 2.1- Capacidade de adaptagao A antropologia dominicana, como toda s antropologia, no é estatica, mas dind- mica. A vida e a misséo do dominicano, por fidel dade aos elementos tundamentais que 0 definem *6, devem adaptar-se permanentemente as condigBes das pessoas, tem- pos © lugares. No se trava de uma antropologia uniforme, menos ainda de uma antro- pologia paralisada no tempo. "A Ordem ha de ter a fortaleza de dnimo de renovar-se a si mesma e adaptar-se a elas..." 2”, Os Capitulos Gerais, desde os albores da Ordem, soa mais genuina expresso desta capacidade de adeptagiio e de renovacdo. Isto nos fala do sentido criative © da sensibilidade histdrica de que deve revestir se 0 dominicano. Esta dimensio dindmica coadut se com alguns rasgos da cultura ur- bano-industrial acostumada as mudangas, Uma personalidade humana fechada ¢ incapaz de compreender 0 dinamismo proprio da histéria no sintoniza com o carisma domini - cano, Lamentavelmente encontramos dominicanos que, por saudosistas, vivem estanca - dos, sem serem resposta ‘iva as novas necessidades d: sociedade © sem deixarem que 08 outros 0 sejam. Nosso =spirito © nossa tradig¢3o nos convidam a todo o contrario. 2.2 - Capacidade para o positive "Pregador da graca” dizemos de nosso Pai So Domingos. A positividade ou 0 que poderiamos chamar "cultura da graca" é configurativa da antropologia dominicana. Em momento algum a Constituigo fundamental nos apresenta como "cacadores de hereges"” ou como “anatematizadores do erro e do pecado". Descobrir o bem no mal, buscar a verdade no erro, extrair da morte a vida sie imperativos ineludiveis da misericérdia do minicana. Ista marca as dimensdes de nosso didlogo com a cultura urbano-industrial:res, gata dela todo o positivo que nos brinda. © dominicano sabe que sua missio é salvar, nfo condenar. Talvez por isto, sua pregagdo ndo se centre no "inferno" e no "pecado", mas no "céu" e na'graga". Neste espitito devem ser formadas as verdadeiras vocagdes dominicanas. 2.3 - Capacidade de equilibrio A Constituigdo fundamental, sem explicité-lo, oferece-nos o perfil de uma antro~ pologia equilibrada ¢ harménica. Nem sé corag3o (misericérdia) nem 96 razdo (verdade). E uma antropologia que conjuga harmonicamente o coragdo e a raz%io. Nem sé agdo {apostolado), nem so contemplacao, pois se trata de um movimento de ida e volta, co- mo j4 indicamos. Nem supervalorizagao da pessoa em detrimento da comunidade nem exaltag3o de comunitario em prejuizo da originalidade pessoal de cada irmao. E uma antropologia que harmoniza © ‘cm comum com o bem pessoal de cada irm&o. — Nem imobilismo, nem mudangas arbitrarias, mas uma antropologia que assume equilibrada ~ mente a permanéncia substancial dos elementos configurativos do carisma dominicano em formas de vida e de pregagdo adaptadas as necessidades da Igreja e dos homens. 2.4 - Capacidade para 0 didlogo A comunicacao e 0 didlogo definem 0 perfil do dominican. A comunicagao é re querida pela vida comum ¢ pela missdo apostdlica, © didlogo é imprescindivel para quem busca a verdade. A intolerdncia no é a atitude de quem definimos como “peri - to em divindade" e "experto ern humanidade". A lenda negra em torno da Inquisig3o nfo coaduna com a auténtica antropologia dominicana, ao menos com quem a encarnou com fidelidade: Domingos, Tomés, Alberto, Catarina... Nossa evangelizagdo é antes de tudo convite e nunca imposig&io, Nossa fraternidade se baseia no respeito para com os irmos e no espirito democrético de seu governo. Nossa retiexdo adota o método do didlogo com as culturas, mantido com vigor e rigor. 2.5 ~ Capacidade "sapiencial" Reterimo-nos aqui a este senso de hierarquizag8o abrigado no carisma dominica - no, € que devemos ir assirnilandodurante toda a nossa vida (formagdo permanente). © dominicano deve caracterizer-se por sua "sabedoria" para distinguir 0 essencial do aci- - 2B - dental 0 absolute do relative, 0 objetivo do subjetivo. Nisto consiste sua capacidade “sapiencial", a qual o compromete a evitar @ tentaco de perder a vida, o tempo © as energias no meramente relative ou acidental. Idolatrar o relative € uma constante da cultura urbano-industri:tl. 3. Antropologia dominicana ¢ transformagao do mundu A antropologia dominicana descrita, vivida em intensidade ¢ em fidelidade é,sem divida alguma, 0 caminho limpido que deve percorrer 9 dominicano para participar na transformagao do homem ¢ da sociedade. Esta ¢ a contribuigao substantiva que po- demos oterecer € que os outros esperam de nds, Esta deve ser nossa maneira peculi - ar de ajudar o homem para que passe de situagdes menos, humanas a situag3es mais humanas. E nossa forma prdpria de optar pela justiga © pelos pobres. Nao so estas agregadas cu justapostas « nosso carisma. Ao contrério, brotam com forga de nossa identidade carismatica. A cultura urbano-industrial, alicergada nos fdolos que tém por nome razdo, fazer, ter © poder, a antropologia dominicana the anuncia profeticamente 03 valores que fa~ zem a plenitude do homem, silenciades por essa cultura. Desta forma, ao racionalismo positivista (homo sapiens) da cultura urbano-indusirial, a antropologia dominicana ofere- ce-lhe 0 valor transcendente da f6 (homo contemplativus -Ordo fide). A seu ativisme eficientista (homo faber) brinda-ihe a forga da rt flextio © do estudo para superar ome ramente fenoménico (hom) reliexivus - Ordo veritatis). Frente ao consumismo irra - ional, © carisma dominican apresenta a cxcltacdo do homem através de sua solidari- edade misericordiosa (homo

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