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Centro Biomédico
Instituto de Medicina Social
Rio de Janeiro
2013
Bárbara Fonseca da Costa Caldeira de Andrada
Rio de Janeiro
2013
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CB/C
CDU
364.444:615.8
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação, desde que citada a fonte.
_____________________________________________ _____________________
Assinatura Data
Bárbara Fonseca da Costa Caldeira de Andrada
___________________________________________________
Prof.ª Dra. Sandra Cordeiro de Melo
Faculdade de Educação – UFRJ
___________________________________________________
Prof.ª Dra. Regina Cohen
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - UFRJ
Rio de Janeiro
2013
DEDICATÓRIA
Currently, disability is thought through two main models: the medical model and the
social model. Each one of them has its own paradigms for the definition of disability and
proposal of remedial actions. The social effects of adopting each of the models vary widely,
ranging from exclusion to social inclusion of people with disabilities. This dissertation
presents the contribution of recent critical perspectives - named here as "integrationist
perspectives" - which bring together elements from previous models. These perspectives point
to the limits of traditional models, and propose an integrated approach that can cope with the
complexity of the phenomenon of disability, a characteristic that makes them particularly
interesting for the field of Collective Health. In Brazil disability is still considered a topic of
specific niches of knowledge, most linked to the fields of health and education. The theme of
disability remains covered incipiently by humanities and social science in the country.
However, Brazil is experiencing a time of transition in paradigms regarding disability: while
developing legal devices aligned with the guidelines of the Convention on the Rights of
Persons with Disabilities (UN), there is still a huge difference between the circulating
discourses and practices concerning people with disabilities. Therefore, this study aimed to
give an overview of the Brazilian academic discourse on disability, to evaluate how the
different perspectives and theoretical models emerge in academic narratives on the subject.
For this purpose, it was conducted a literature review on virtual database SciELO (Brazil). We
selected for the sample articles related to the issue of disability in Brazil and with findings
from empirical research, experience reports, documentary research or case studies on the
theme of disability. We used quantitative and qualitative procedures for sample analysis. The
work is divided into two parts: the first part presents the main theoretical models of disability
and the contribution of critical integrationist perspectives. The purpose of this theoretical
discussion is situating disability in its transversality and highlighting the relationship between
the adoption of a model and the practices and discourses on disability which comes from it.
The second part presents and debates the survey data aimed to assess the specificities of the
Brazilian context on the subject of disability, relating the findings to the international
discussions of the field of Disability Studies.
APRESENTAÇÃO.......................................................…..………...................... 13
1 MODELOS TEÓRICOS DA DEFICIÊNCIA E CONCEPÇÕES DE
NORMALIDADE: DESTINOS POSSÍVEIS PARA A DIFERENÇA……... 37
1.1 Definição de modelo…....………………………………......…………………... 37
1.2 Modelos teóricos da deficiência: concepções de normalidade e destinos da
diferença.................................................................…......................…...........….. 40
1.2.1 Valorar, classificar e explicar.................................…....….............................…... 40
1.2.2 Construção de normais e anormais..................................................................….. 44
1.3 O normal: dois pontos de vista..................................................................…….. 51
1.3.1 Modelo médico: o normal do ponto de vista naturalista...............…...............….. 52
1.3.2 Modelo social: o normal do ponto de vista normativo .........….....….............…… 57
2 CRÍTICAS E REFORMULAÇÕES: AS PERSPECTIVAS
INTEGRACIONISTAS…………………………………………………........... 67
2.1 Novas abordagens à questão da deficiência: desdobramentos e integração
de modelos………………........................…………………...………………….. 67
2.2 Críticas ao modelo social……………......….................................................….. 71
2.2.1 A ideologia da autonomia no discurso do modelo social: a crítica da deficiência
intelectual e do feminismo..........................................………….....................….. 73
2.2.2 Contribuições fenomenológicas.....................………...….................................… 79
3 A DEFICIÊNCIA NO CENÁRIO DA PRODUÇÃO ACADÊMICA
BRASILEIRA.........................................................…........................................... 84
3.1 Percurso metodológico e desenho da pesquisa…………...........…………….... 85
3.1.1 Primeira abordagem: emaranhado de termos e recurso aos descritores de busca.......... 86
3.1.2 Desenho final - uniformização de termos de busca, homogeneidade e 88
visibilidade do campo…..…………………………………………………….......
3.1.3 Instrumento de classificação e análise da amostra….........…………………….... 91
3.2 Apresentação e discussão dos resultados da pesquisa…..............………….... 91
3.2.1 Panorama geral da amostra………………….....………………………………... 91
3.2.2 O discurso das diferentes áreas sobre a deficiência ……...........……………….... 105
3.2.3 Tipos de deficiência e deficiência como uma categoria unificada ……................ 113
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................. 117
REFERÊNCIAS ................................................................................................... 121
APÊNDICE A - Seleção dos descritores……………......………………........... 134
APÊNDICE B - Distribuição de sinônimos e artigos nos descritores
pesquisados…….................................................................................................... 142
APÊNDICE C - Artigos selecionados para pesquisa……………………......... 145
APÊNDICE D - Instrumento de análise dos artigos pesquisados……............ 154
APÊNDICE E - Periódicos pesquisados……………………………................. 156
13
APRESENTAÇÃO
Introdução e contextualização
1
Em seu curso sobre “Os Anormais”, Michel Foucault define a figura do monstro como “o princípio de
inteligibilidade de todas as formas de anomalia” (FOUCAULT 2010, p. 48). O monstro era compreendido como
uma transgressão da lei natural, e como tal, se colocava como questão tanto para o saber médico quanto para o
saber jurídico desde o século XVIII. É sobre “a monstruosidade por trás das anomalias” que o poder de
normalização médico-jurídico vai incidir através de práticas e discursos de controle social.
14
2
Georges Canguilhem (1904-1995), filósofo e médico francês, cuja obra “o Normal e o Patológico” (1943)
tornou-se uma referência para o estudo dos conceitos de normal, anormal e anômalo, bem como suas relações
com noções de saúde, doença, diferença e deficit. Além disso, Canguilhem aborda neste livro uma questão que é
central também ao campo dos Estudos sobre Deficiência, a saber, o processo de normalização da sociedade (ver
adiante, capítulo 1).
15
3
Tradução livre sugerida por Luciana Caliman e Rogério Almeida (2009) para making up people, conceito
forjado por Hacking para dar conta de como novas formas de classificar pessoas abrem ou fecham possibilidades
para a ação humana (HACKING, 2002, p.99). Outro conceito do mesmo autor que será de grande valia para
pensar a relação entre as classificações operadas pelos modelos da deficiência e as pessoas por eles classificadas
- ou seja, as próprias pessoas com deficiência - é o de “efeito rebote” (looping effect).
Apesar de a deficiência não ter sido um dos casos sobre os quais Ian Hacking pesquisou de modo específico, os
conceitos de efeito rebote e moldagem de pessoas desenvolvidos pelo autor serão úteis para abordar a temática
da deficiência de modo contextualizado, pois ilustram a questão colocada pela deficiência quanto à relação entre
classificações e classificados, bem como entre atores, práticas e saberes que compõem esta relação.
16
4
Tradução livre para Disability Studies. O campo dos Estudos sobre Deficiência se consolidou no Reino Unido e
nos EUA, nos anos 1970, a partir do movimento político de reivindicação de direitos de pessoas com deficiência.
É um campo de estudos cujos autores – em grande parte - são pessoas com deficiência, e tramitam entre a
militância e a academia. Possui como característica marcante a interdisciplinaridade, sendo um campo
acadêmico que aborda a deficiência a partir de diferentes perspectivas críticas. Os Estudos sobre Deficiência
desenvolvem abordagens complexas do tema, envolvendo fatores sociais, políticos, filosóficos e econômicos na
construção de definições da deficiência e das respostas e ações sociais acerca das diferenças. Têm como ponto
central um questionamento crítico da hegemonia do paradigma biomédico para a concepção do que é a
deficiência. Além disso, congregam diferentes disciplinas, assumindo um discurso positivo a respeito da
deficiência. Uma grande contribuição teórica deste campo foi a consolidação, no final dos anos 1970, do modelo
social da deficiência a partir da crítica ao modelo médico da deficiência, até então hegemônico.
5
O texto em língua estrangeira é: “the rise of disability politics has created a new category, a new way of
affiliating and identifying, which did not exist before”.
17
6
Os termos “restrição”, “lesão” e “impedimento” são traduções encontradas na literatura especializada sobre
deficiência para a palavra inglesa impairment. Nenhuma destas palavras em português possui a mesma
abrangência semântica que impairment, além de tensionarem sentidos muito diversos (ver: DINIZ et al., 2007a;
SAMPAIO; LUZ, 2009)
7
Adotada pela ONU em 2006 e ratificada como emenda constitucional pelo Brasil em 2008. A Convenção é um
marco na história das pessoas com deficiência, e um importante instrumento de regulação de direitos humanos:
trata-se de um documento internacional, coletivamente construído e com marcante participação das pessoas com
deficiência em todo o processo.
18
(PEREIRA, 2009) afirma que em sociedades que valorizavam o corpo e se orientavam por
ideais estéticos e atléticos - como no caso da Grécia antiga - o destino das pessoas com
deficiência era a eliminação. Não havia para elas qualquer lugar na sociedade. Já no caso de
outras culturas, cujos valores entendiam a diversidade corporal como uma marca divina, as
pessoas com deficiência tanto foram acolhidas como divindades (a exemplo do Egito antigo)
como também foram consideradas pecadoras, cujo crime moral estava marcado no corpo
(como no caso da Palestina e dos povos do início da era Cristã).
A interpretação religiosa da deficiência, que perdurou ao longo da Idade Média e até
bem tardiamente na Idade Moderna, forneceu à condição destinos diversos conforme o tipo de
valor que lhe era atribuído: as práticas de normalização destes indivíduos variaram entre maus
tratos e torturas (caso a diversidade funcional fosse interpretada como signo do pecado e
ligação com o demônio) até atitudes “mais acolhedoras” decorrentes de interpretações da
deficiência não atribuída a causas sobrenaturais, mas entendida como uma tragédia. Nestes
casos, os dispositivos de normalização consistiam em instituições nas quais pessoas com
deficiência eram tornadas objeto da caridade alheia, sendo este o único papel social que lhes
cabia. Como consequência da institucionalização, o destino social destes indivíduos era a
invisibilidade, fosse por banimento ou encarceramento.
A ascensão do discurso científico a partir do final do século XIX trouxe uma nova
forma de identificação e de manejo social da deficiência. A diferença corporal/mental
paulatinamente deixa de ser entendida como um castigo divino e passa a ser vista como um
erro da natureza, um acidente natural a ser corrigido pela ciência. A transformação desta
identidade da deficiência na de um “defeituoso” ou “retardado” decorre de um deslizamento
conceitual que captura o indivíduo como objeto do saber médico. O poder de normalização
passa, então, a se exercer pela via terapêutica, incidindo sobre o corpo/mente anormal. De
acordo com Débora Diniz e Lívia Barbosa:
No final do século XX, uma nova virada interpretativa da deficiência emergiu. Sob a
influência dos movimentos por direitos civis, movimentos de pessoas com deficiência se
organizaram a partir de reivindicações de liberdade e de direitos humanos. Tal forma de
conceber a deficiência considera sua origem na desigualdade e opressão social, e não mais na
19
diferença corporal. Deste ponto de vista, a deficiência não é mais entendida como um
problema individual apenas, mas como o efeito de uma sociedade opressiva sobre pessoas
com configurações corporais/mentais normodiversas. Isso aponta para outra mudança no
paradigma de classificação da deficiência, a qual deixa de ser percebida como um problema
individual e passa a ser considerada como um problema social, demandando, assim, práticas
de normalização que incidam no coletivo e não apenas sobre o indivíduo.
A relação entre dispositivos sociais e processos de subjetivação, bem como o modo
como estes últimos se produzem a partir de formas de poder e saber, foi objeto central no
pensamento de Michel Foucault. Ao longo de sua obra, Foucault se debruçou sobre questões
que vão da clínica à sexualidade, passando pela loucura, sempre com foco nas práticas e
discursos jurídicos e médicos, os quais operam como dispositivos de poder, subjetivação e,
posteriormente, governamentalidade. Tais dispositivos incidem sobre corpos e espaços,
produzindo subjetividade e verdade. Dentro do panorama da obra foucaultiana, os processos
de assimilação e exclusão sociais aparecem como práticas de normalização dos anormais
(FOUCAULT, 1996, 2005, 2010).
Sendo assim, redescrições terminológicas e reformulações teóricas em um dado campo
de conhecimento produzem tensões com efeitos de rearranjo na tríade saber-poder-verdade.
Estes efeitos atravessam do corpo social ao corpo individual, constituindo-se em uma rede de
poderes que institui práticas, discursos e subjetividades. Foucault, em seu curso “Em defesa
da sociedade”, afirma que relações de poder perpassam, caracterizam e constituem o corpo
social e que elas não se dissociam da produção do discurso de verdade (FOUCAULT, 2005).
Na medida em que não há exercício de poder sem uma produção de discurso de verdade,
estamos submetidos à verdade como norma, pois somos “julgados, condenados, classificados,
obrigados a tarefas, destinados a certa maneira de viver ou a certa maneira de morrer em
função de discursos verdadeiros, que trazem consigo efeitos específicos de poder”
(FOUCAULT, 2005, p. 29).
A equação foucaultiana entre saber, verdade e poder produz dispositivos de
subjetivação, dimensões valorativas e possibilidades de agência de atores sociais, além de
direcionar perspectivas para concepções de fenômenos. Trata-se de um processo dinâmico
cujos elementos estão em constante estado de tensão, com potencial para reconfiguração das
relações estabelecidas entre eles. Tensionamentos na tríade saber-verdade-poder estão no
cerne dos processos classificatórios, os quais acontecem, necessariamente, de modo ativo e
relacional: entre saberes, práticas, sujeitos, instituições e valores. Neste sentido, classificar –
principalmente tipos de pessoas – é um processo interativo de reclassificações.
20
8
Assim como a palavra “queer”, adotada pelo movimento Gay para fins de afirmação e empoderamento, ou a
reformulação do sentido proposta na frase “Black is beautiful” usada como lema de empoderamento do
movimento Negro norte-americano. É um uso com fins políticos de termos cujos sentidos originais eram
negativos e opressores. Trata-se de um mecanismo de empoderamento e de ressignificação identitária. O uso
político da palavra “deficiência” procura redefinir lhe o sentido, ao acrescentar um valor afirmativo com vistas a
transformar a experiência de opressão em empoderamento.
21
9
A fim de evitar uma confusão conceitual decorrente de uma coincidência terminológica, gostaria de esclarecer
o que, neste trabalho, não são as perspectivas integracionistas.
O termo integracionista foi uma escolha minha para nomear uma variedade de perspectivas críticas aos modelos
teóricos mais tradicionais da deficiência (modelos médico e social). Tais perspectivas, ao mesmo tempo em que
criticam a rigidez dos modelos anteriores - apontando seus limites -, combinam elementos de ambos os modelos,
numa abordagem mais pragmática à questão da deficiência. Desta forma, promovem uma integração de pontos
de vista, e é neste sentido que o termo “integracionista” será usado nesta dissertação. Trata-se, assim, de um
termo que descreve o conceito de integração de perspectivas teóricas sobre a deficiência e não de integração da
pessoa com deficiência.
Portanto, por “perspectivas integracionistas” não me refiro a abordagens de integração de pessoas com
deficiência, mas a perspectivas teóricas que se desdobram a partir de uma flexibilização pragmática do modelo
social e cujo objetivo é a inclusão das pessoas com deficiência. A a coexistência de elementos do modelos
médico e social nestas perspectivas teóricas é indicativa da posição pragmática que assumem, por reconhecerem
as especificidades e a complexidade da condição da deficiência.
22
10
Para citar alguns exemplos de questões que os modelos médico e social falharam em endereçar: a
artificialidade da divisão entre impedimento/lesão e deficiência; a não consideração da dimensão de
predicamento do impedimento/lesão; a ideologia da autonomia nas narrativas sobre deficiência; e a dimensão do
cuidado e da codependência.
23
Uma abordagem dos diferentes modelos teóricos da deficiência deve levar em conta a
extrema complexidade da condição de deficiência e das muitas possibilidades narrativas que a
descrevem. As diferentes descrições da deficiência ao longo da história coexistem ainda hoje.
Algumas dessas narrativas perderam a força hegemônica que tinham no passado (tal como
algumas interpretações religiosas da deficiência), mas ainda estão presentes, mesmo que de
modo mais brando, em discursos e práticas contemporâneas. A emergência do modelo médico
e, posteriormente, do modelo social não eliminou totalmente interpretações de que a
deficiência “é um castigo” ou uma “punição por pecados cometidos”, por exemplo. Assim, há
atualmente uma superposição de sentidos convocados pela deficiência. Além disso, a
deficiência é um fenômeno transversal na cultura, tal como as categorias de gênero, raça/etnia
e classe. As abordagens acadêmica, política e legal da deficiência devem levar em conta tal
característica (DINIZ; SQUINCA; MEDEIROS, 2007c; MELLO; NUERNBERG, 2012).
É por ser um objeto transversal que a deficiência emerge como um fenômeno
complexo. Para alguns autores do campo dos Estudos sobre Deficiência, a complexidade da
condição se deve, dentre outros fatores, ao seu aspecto “relacional” (CARLSON, 2010;
SHAKESPEARE, 2006a; SHAKESPEARE; WATSON, 2002). Na perspectiva deste campo
de estudos, a deficiência é um conceito que “surge na interseção da biologia com a sociedade
e da agência com a estrutura” 11 (SHAKESPEARE; WATSON, 2002, p.19, tradução nossa) e,
por esta razão, requer uma abordagem que contemple seu caráter transversal, considerando os
diferentes níveis, mecanismos e contextos envolvidos na questão da deficiência. As
abordagens epistêmicas que privilegiam apenas um dos lados do fenômeno não contemplam
esta transversalidade, e correm o risco de discutir o tema de modo parcializado. Neste sentido,
Tom Shakespeare é enfático ao afirmar que “a deficiência é sempre resultante de uma
12
interação entre fatores individuais e fatores sociais” (SHAKESPEARE, 2006a, p. 55,
tradução nossa). Percebe-se assim que, para o campo dos Estudos sobre Deficiência, a
deficiência implica um conjunto bastante heterogêneo de relações estabelecidas pelo contato
de pessoas com especificidades corporais/mentais diversas e os contextos sociais nos quais
esses indivíduos convivem. A deficiência decorre, portanto, não de uma morfofuncionalidade
aquém de um “padrão normal”, mas de uma situação de desvantagem que se manifesta em
uma sociedade pouco sensível à diversidade. Sob este ponto de vista, o conceito de
deficiência se produz de forma complexa e multidimensional e articula, a uma só vez,
11
O texto em língua estrangeira é: “It sits at the intersection of biology and society and of agency and structure”.
12
O texto em língua estrangeira é: “disability is always an interaction between individual and structural factors”.
24
“(…) o marco conceitual da saúde coletiva, tal como vem sendo construído a partir
da década de 70, resulta, de um lado, da crítica aos diferentes movimentos e projetos
de reforma em saúde ocorridos nos países capitalistas e, de outro, da elaboração
teórico-epistemológica e da produção científica, articuladas às práticas sociais”
(PAIM; ALMEIDA FILHO, 1998, p.309).
paradigmas próprios e distintos. Sua riqueza está justamente em sua capacidade de fazer
dialogar perspectivas divergentes.
Por esta razão, a característica transdisciplinar crítica do campo da Saúde Coletiva
pode aproximá-lo do tipo de debates que os Estudos sobre Deficiência desenvolvem em
outros países. No Brasil não há (ainda) um campo específico que se debruce sobre as questões
da deficiência de modo transversal tal como os Estudos sobre Deficiência o fazem (BAMPI et
al., 2010; MELLO; NUERNBERG, 2012). Trata-se de um campo pouco explorado por razões
ligadas ao modo como se concebe no país o que é a deficiência. De acordo com a análise de
Débora Diniz, isso se deve não apenas ao fato de que a deficiência ainda não se libertou da
autoridade biomédica, mas principalmente porque no Brasil a deficiência ainda é considerada
uma tragédia pessoal e não uma questão de justiça social (DINIZ, 2007).
Além disso, o campo dos Estudos sobre Deficiência compartilha algumas
semelhanças com a Saúde Coletiva, pois muitos de seus debates apresentam afinidades com
este campo. As discussões oriundas dos Estudos sobre Deficiência atravessam diferentes áreas
do conhecimento - filosofia, antropologia, medicina, direito, ética - e se desdobram ao longo
dos níveis teórico, político e tecnológico. Os efeitos destes debates se expressam em
transformações políticas e sociais que vêm ressignificando o lugar da deficiência no mundo
nas últimas quatro décadas. Ademais, tais debates se apresentam como elementos
reconfiguradores de concepções de normalidade e patologia e, ao desnaturalizarem essas
classificações, produzem como efeito desdobramentos em termos de participação e justiça
sociais para pessoas com deficiência.
No entanto, no Brasil a deficiência ainda é considerada por boa parte da comunidade
acadêmica uma temática muito específica de determinados nichos de conhecimento, mais
diretamente ligados ao campo da Saúde e da Educação. De modo geral, a deficiência
enquanto objeto de investigação acadêmica é abordada de modo isolado, sem contemplar seu
caráter multidimensional e tampouco estabelece um diálogo com as demais áreas do
conhecimento. Por exemplo, um olhar voltado para aspectos da reabilitação motora de
pessoas com deficiência física adquirida exige um recorte metodológico, que, no entanto, não
pode se confundir com a conceituação de deficiência como efeito único e direto da lesão
medular ou, ainda, com a avaliação do grau da deficiência apenas através de mensurações
eletroneuromiográficas.
De acordo com Anahi Mello e Adriano Nuernberg, “a deficiência ainda é um tema
periférico nas Ciências Humanas e Sociais” (MELLO; NUERNBERG, 2012 p.635). Os
autores alertam que uma abordagem mais atenta do fenômeno concebe a deficiência como o
27
sobre o tema. Além disso, busquei traçar uma cartografia da distribuição destes modelos e
perspectivas no discurso acadêmico brasileiro. Para tanto, fiz uma pesquisa em base de dados
virtuais de artigos cuja temática seja a deficiência no contexto brasileiro, através de um
levantamento em diferentes áreas do conhecimento.
A abordagem de fenômenos ligados a processos de saúde/doença e de
normalidade/anormalidade, a interdisciplinaridade e adoção de perspectivas críticas quanto à
naturalização de categorias relativas à saúde e identidade individual e coletiva são
características comuns aos campos dos Estudos sobre Deficiência e da Saúde Coletiva. Uma
importante contribuição do campo dos Estudos sobre Deficiência, sobre o(s) modo(s) de
definição do que é a deficiência é a relativização da hegemonia do paradigma biomédico
acerca do que é deficiência e a proposição de novas maneiras de definir a condição de
deficiência, as quais se desdobram a partir do campo das ciências sociais e humanas. Os
Estudos sobre Deficiência operam, portanto, como uma ferramenta crítica para reformulações
de concepções sobre saúde, corporeidade, normalidade e anormalidade, construção de
identidades, dentre outras.
Há também um outro ponto de vista compartilhado pelos campos da Saúde Coletiva
e dos Estudos sobre Deficiência: trata-se da concepção ampliada da noção de saúde, que
inclui concepções normativistas para a definição do que é saúde, não se restringindo apenas às
descrições naturalistas e biomédicas. A dimensão qualitativa presente na concepção de “saúde
como um valor” congrega níveis epistemológicos que articulam direitos e cidadania,
avançando para além das descrições biológicas.
De modo geral, os modelos e perspectivas teóricos da deficiência consideram a
deficiência como um "locus de dificuldade", tal como aponta Anita Silvers, filósofa do campo
dos Estudos sobre Deficiência, em um trabalho sobre os modelos teóricos da deficiência e os
diferentes valores que lhes são subjacentes (SILVERS, 2010, p.19). A autora considera que os
modelos e perspectivas da deficiência reconhecem na condição de deficiência a imposição de
um sofrimento - seja por conceber a condição como uma consequência direta de lesão ou
impedimento corporal (físico, sensorial ou mental) – tal como estabelece o modelo médico –
seja por considerar a deficiência como efeito de opressão social de uma sociedade não
inclusiva, que oprime e exclui pessoas com impedimentos físicos, mentais ou sensoriais–tal
como afirma o modelo social. Desta forma, cada modelo da deficiência possui abordagens
específicas quanto a fatores causais e propostas de solução para os desafios colocados pela
deficiência. Estas abordagens se baseiam na adoção de valores que privilegiam determinadas
29
a. Objetivos
Objetivos Gerais
Objetivos Específicos
b. Justificativa
13
Há uma distinção conceitual entre deficiência intelectual e deficiência mental (ver adiante, nota 82). No
entanto, tal distinção no Brasil não é comumente considerada, pois mesmo na literatura especializada os termos
“deficiência mental” e “deficiência intelectual” são utilizados com sinônimos, apontando para uma compreensão
pouco nuançada por parte da comunidade acadêmica brasileira do conceito de deficiência expresso na
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ver adiante, capítulo 3).
14
A metodologia empregada na coleta de dados do censo de 2010 considera um escopo bastante ampliado para
definição de deficiência. Não apenas levou-se em conta as dificuldades decorrentes de impedimentos, mas
também os determinantes sociais e as implicações para o indivíduo na interação entre seu(s) impedimento(s) e o
ambiente físico e social (Para maiores detalhes ver: BRASIL, 2012).
31
que mesmo compondo uma parcela relevante da população, as pessoas com deficiência ainda
não haviam se consolidado como uma “minoria social” de fato, pois lhes faltava, no Brasil, a
ascensão ao patamar político que lhes garantisse direitos a partir do reconhecimento de suas
diferenças (SANTOS, 2008, p. 509).
Contudo, algumas coisas mudaram desde então: no mesmo ano de 2008, o Brasil
ratificou, com equivalência de emenda constitucional, a Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência da ONU15. De acordo com Mário Lanna Jr, trata-se de um fato que
“balizará toda a discussão em torno de um possível estatuto dos direitos da pessoa com
deficiência” (LANNA JR., 2010, p.10), pois a ratificação da Convenção promove uma
redefinição da concepção de deficiência adotada, na época, de modo oficial no Brasil. Uma
das muitas contribuições deste documento é a definição da deficiência como resultado da
interação entre a pessoa e o ambiente, uma perspectiva que desloca a deficiência do corpo e a
situa na interação social, mais alinhada ao paradigma do modelo social da deficiência. Trata-
se de uma ruptura com um modelo de conceituação da deficiência até então vigente no país, o
qual até este momento se alinhava à perspectiva do modelo médico e concebia a deficiência
como um objeto exclusivo de práticas médicas, assistencialistas e reabilitadoras. Tal mudança
de perspectiva permite que se possam estabelecer referências legais a partir de ações de
inclusão, acessibilidade, garantia de direitos e reivindicação de participação.
Uma mudança mais recente, em 2011, foi o lançamento pelo governo federal do
plano “Viver sem Limite: plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência” (BRASIL,
2011c), organizado em parceria com a sociedade civil16 e cuja proposta é traçar ações
conjuntas entre as esferas federal, estadual e municipal a fim de viabilizar os compromissos
assumidos na Convenção. O plano pretende articular políticas governamentais de acesso à
educação, inclusão social, atenção à saúde e acessibilidade.
Tanto a ratificação da Convenção como a elaboração do Plano Nacional são
movimentos macropolíticos em sintonia com o cenário internacional e apontam para o
desenvolvimento de políticas de proteção dos direitos das pessoas com deficiência. Refletem,
assim, uma mudança, ou melhor, uma flexibilização de paradigmas na definição do que é a
deficiência. Mesmo com estes avanços na legislação e o comprometimento do Estado com
diretrizes internacionais quanto aos direitos das pessoas com deficiência, ainda há uma
enorme diferença no que concerne aos discursos e práticas dirigidos e essa população. A
15
Através dos Decretos Legislativos nª 186/2008 e nº 6.949/2009.
16
Através do CONADE: Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência.
32
Este estudo ainda aponta avanços no cenário brasileiro no que concerne à legislação,
mas que são iniciativas que não asseguram a proteção dos cidadãos. Os autores destacam o
papel da economia de mercado e a insuficiência do orçamento do Estado como entraves à
destinação eficiente de recursos públicos para a assistência à saúde das pessoas com
deficiência. José Moreira Souza e Ricardo Carneiro, em um estudo sobre a atenção especial
dispensada às pessoas com deficiência em um município de Minas Gerais concluem que,
apesar da legislação existente, há uma desarticulação entre a focalização e universalização nas
intervenções públicas na área social, resultando em desamparo à população de pessoas com
deficiência, as quais se encontram em situação de maior vulnerabilidade social dada a forte
relação entre deficiência, violência e pobreza. (SOUZA; CARNEIRO, 2007).
17
Que instituiu a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência.
33
c. Metodologia
18
No capítulo 3 há uma descrição detalhada das etapas do desenho da metodologia, bem como dos critérios que
me levaram a escolha do campo e do descritor de busca.
35
19
Nomeadamente, o modelo médico e a concepção naturalista do normal e o modelo social e a concepção
normativa do normal.
36
perspectivas são vertentes críticas distintas entre si, que não chegam a configurar um modelo,
pois cada uma destaca aspectos particulares dos modelos anteriores. No entanto, para os fins
deste trabalho, serão agrupadas em uma mesma categoria que chamo de “perspectivas
integracionistas”, pois têm em comum a característica de flexibilização de categorias e de
promoção de um diálogo entre os modelos anteriores de teorização da deficiência. Além
disso, são perspectivas que assimilam elementos tanto do modelo médico como do modelo
social, integrando pontos de vista aparentemente díspares. O capítulo aborda dois aspectos
importantes da contribuição destas perspectivas: a crítica que revela uma ideologia da
autonomia no discurso do modelo social, e as contribuições da fenomenologia para o tema da
deficiência.
Finalmente, o terceiro capítulo consiste na apresentação e discussão dos dados da
pesquisa sobre a deficiência no cenário da produção acadêmica brasileira, tomando como eixo
para a análise modelos/perspectivas teóricos prevalentes na produção acadêmica nacional.
Busquei rastrear especificidades do contexto brasileiro quanto às representações e práticas
voltadas para o tema da deficiência. O propósito desta análise é explorar os usos pragmáticos
que cada um dos modelos e perspectivas teóricas da deficiência podem vir a ter no campo da
Saúde Coletiva.
37
20
Engel não se ocupou diretamente dos modelos da deficiência - sua obra é voltada para a teorização de modelos
de doença, especialmente de doença mental. No entanto, foi um contundente crítico do modelo biomédico para
concepções de doença, partindo de uma abordagem que relativizava a posição e a função de um modelo, como
sendo apenas uma dentre muitas possibilidades explicativas e resolutivas para condições tidas como
perturbadoras. Em sua crítica ao modelo biomédico sobre doenças (caracterizado pelo autor como um modelo
científico, desenhado para a pesquisa e cujo extremo reducionismo se mostra insuficiente para a atividade
clínica), Engel propõe uma abordagem menos reducionista, com elementos epistemológicos que abracem as
diversas faces da doença, propondo um modelo biopsicossocial.
21
O texto em língua estrangeira é: “(…) a model is nothing more than a belief system utilized to explain natural
phenomena, to make sense out of what is puzzling or disturbing”.
22
Para Engel, mesmo os modelos científicos (cujo propósito principal é a pesquisa científica) se encaixam nesta
dimensão valorativa, pois “na sociedade ocidental a biomedicina não apenas forneceu as bases para o estudo
científico das doenças, ela também se tornou nossa própria perspectiva culturalmente específica” (ENGEL
[1977], 2004, p.54, tradução nossa. O texto em língua estrangeira é: “in modern Western society biomedicine not
only has provided a basis for the scientific study of disease, it has also become our own culturally specific
perspective about disease, that is, our folk model”). O que Engel chama atenção é o quanto a ciência se tornou
nosso imperativo cultural. Para o autor, a noção de “objetividade” como uma forma de isolar a dimensão
valorativa presente na construção de modelos explicativos já é, em si, o signo da adoção de um valor. A ciência é
uma prática social, e, como tal, atravessada por valores.
39
O que define um modelo é sua simplicidade. Alinhado a este ponto de vista, Erik
Hollnagel23, considera que “um modelo é por definição uma representação simplificada das
24
características mais marcantes de um determinado sistema” (HOLLNAGEL, 1998, p.142,
tradução nossa), consistindo em um esquema explicativo, uma simplificação de uma realidade
complexa. Sendo assim, os modelos teóricos são recursos metodológicos que visam
classificar, explicar e projetar ações em relação a uma condição específica. Há, no entanto,
um problema na constituição de modelos: o estabelecimento de quais são as características
mais marcantes da condição à qual o modelo se aplica. Em muitas situações, não há uma
concordância quanto ao que constitui o conjunto de traços essenciais de uma condição, tal
como acontece no caso da deficiência. Cada arranjo de “traços essenciais” consolida uma
perspectiva ou modelo distinto, e decorre de apreciações valorativas a respeito da condição de
deficiência. No caso dos modelos teóricos da deficiência não há consenso quanto às quais
variações de habilidades caracterizam necessariamente o que é deficiência. Tal definição
depende, fundamentalmente, de critérios valorativos acerca da dimensão da variedade
humana, em termos de funções e estruturas corporais, sociais e culturais (DINIZ et al.,
2007b).
Hollnagel também faz um alerta quanto à influência de critérios valorativos na
finalidade explicativa dos modelos. A capacidade de um modelo de explicar uma determinada
condição visando uma ação sobre ela é limitada pela própria característica de “representação
simplificada” do modelo. Uma vez que essa simplificação é efeito de escolhas valorativas e
contingentes relacionadas aos elementos que compõem o modelo, as possibilidades de
explicação e ações sobre a condição também são limitadas pelos mesmos valores. Neste
sentido, Hollnagel afirma que um modelo possui um efeito limitante quanto ao que se pode
apreender da condição a qual ele visa. Para o autor, o próprio modelo restringe o que pode ser
medido (e conhecido) de um determinado fenômeno, já que tem como pretensão descrever a
performance essencial esperada, fazendo de seus próprios parâmetros o limite para o
entendimento da condição (HOLLNAGEL, 1988).
Percebe-se, desta forma, que a dimensão valorativa atravessa os modelos teóricos em
dois aspectos: primeiramente, seleciona quais elementos de uma dada condição serão
escolhidos como representantes de uma realidade complexa, e, posteriormente, influencia o
23
Psicólogo dinamarquês, estudioso do campo das ciências da informação. Dentre os temas aos quais se dedica
está a questão do desenho de modelos teóricos para sistemas complexos.
24
O texto em língua estrangeira é: “A model is by definition a simplified representation of the salient features of
the target system”.
40
repertório de ações projetadas a partir da adoção do modelo. Sendo assim, nenhum modelo
teórico sobre deficiência é plenamente adequado para todas as ações e contextos relacionados
à condição. A relação entre um modelo teórico e sua acuidade na representação do que é a
deficiência depende da sintonia entre os valores que fundamentam o modelo e o contexto no
qual a deficiência emerge. Isso aponta para uma característica não-universalista dos modelos
da deficiência, os quais são mais bem descritos como ferramentas de categorização de pessoas
para fins muito específicos.
25
Autora que articula Teoria Feminista com o campo dos Estudos sobre Deficiência. Ela se alinha a uma
perspectiva crítica mais recente no campo dos Estudos sobre Deficiência, trazendo contribuições a partir de sua
condição de pessoa com deficiência bem como da teoria feminista no que concerne à transversalidade do
fenômeno da deficiência em relação à categoria de gênero.
41
26
O texto em língua estrangeira é: “(…) Paradigms of health and ideas about appropriate kinds and levels of
performance are culturally dependent. In addition, within each society there is much variation from the norm of
any ability; at what point does this variation becomes a disability? The answer depends on such factors as what
activities society values and how it distributes values and resources. The idea that there is some universal,
perhaps biologically or medically describable paradigm of human physical ability is an illusion.’
27
O texto em língua estrangeira é: “A model is a standard, example, image, simplified representation, style,
design, or pattern, often executed in miniature so that its components all are easy to discern”.
28
O texto em língua estrangeira é: “why the individuals are disabled (…) and why they have the limitations
associated with disability”.
42
maneira conjunta ou separadamente, dependendo de quais são os usos que se pretende fazer
deles.
Dentro da função classificatória dos modelos da deficiência, Silvers inclui aspectos
dos modelos que se propõem a fornecer paradigmas para a categorização de pessoas visando
propósitos específicos (elegibilidade para benefícios sociais, por exemplo). Tal função
classificatória tem por objetivo delinear um parâmetro ao qual se pode recorrer para decidir
quem é ou não “pessoa com deficiência”. No entanto, esta função não se confunde com
aquela chamada por Silvers de “propósito explicativo”, cujo objetivo é levantar as relações
causais da deficiência. Para a ela, a função classificatória e a função explicativa dos modelos
precisam ser consideradas em relação às circunstâncias nas quais o conceito de deficiência é
invocado. Há nesta perspectiva de Silvers um ponto de vista pragmático, que consiste na
abordagem dos conceitos (e dos modelos) como ferramentas para o pensamento e a ação e
não como espelhos de uma “realidade” independente dos valores e interesses que estão em
jogo.
São aos valores subjacentes a cada um dos modelos que Silvers atribui o antagonismo
entre os dois principais modelos teóricos da deficiência. Para ela, o embate entre os modelos
médico e social se apresenta como um desdobramento do confronto entre os valores que lhes
sustentam. E é em relação e estes valores subjacentes que a autora discute a questão da
deficiência e da adequação dos modelos teóricos para descrevê-la.
Em função desta dependência valorativa, os modelos da deficiência se mostram como
instrumentos desenhados para fins específicos e sujeitos a reformulações constantes,
consoantes com arranjos (e rearranjos) no contexto sociocultural. O processo classificatório
que os modelos teóricos executam, bem como as ações que deles se derivam, interage com as
pessoas por eles classificadas, as quais podem assimilar ou refutar as características que
determinado modelo lhes designa a partir de seus princípios classificatórios. Um exemplo
deste processo de reformulação das classificações a partir de interações entre classificações e
pessoas classificadas – o efeito rebote (looping effect), conceituado por Ian Hacking
(HACKING, 1995, 2002, 2007) – é a transformação, efetuada pelo movimento das pessoas
com deficiência, do paradigma de deficiência do modelo médico para aquele do modelo
social. Tom Shakespeare argumenta neste sentido, e destaca que as transformações da
categoria 'deficiência' nas últimas décadas foram conquistadas através da ação das pessoas
com deficiência. A ação política e a subsequente transformação da categoria “deficiência”
levaram a mudanças nas pessoas classificadas a partir desta categoria (SHAKESPEARE,
2006a). Ou seja, a consolidação de um novo paradigma para a deficiência (o modelo social)
43
29
O processo de moldagem de pessoas se refere, segundo Hacking, as maneiras pelas quais novas classificações
fazem surgir um novo tipo de pessoa, concebida e experienciada como um novo modo de ser uma pessoa.
(HACKING, 2007, grifo nosso) Há neste processo uma estreita relação entre mecanismos de classificação de
pessoas e comportamentos e processos de subjetivação e de construção de identidades.
30
“As ciências humanas, assim compreendidas, incluem muitas das ciências sociais, a psicologia, a psiquiatria, e
uma boa parte da medicina clínica.” (HACKING, 2007, p.293, tradução nossa). O texto em língua estrangeira é:
“The human sciences, thus understood, include many social sciences, psychology, psychiatry, and a good deal of
clinical medicine”.
31
O termo “tipo humano” foi cunhado por Hacking como uma contrapartida ao conceito de ‘tipo natural”
derivado de John Stuart Mill (ver: HACKING, 2007, p.291). Ao longo de sua obra, Hacking foi reformulando a
terminologia - e o conceito - passando a usar “tipo interativo”. Atualmente o autor utiliza a concepção de tipo de
pessoa em interação com a classificação que a constitui.
44
“Os nomes das classes, e as pessoas que se enquadram sob elas, interagem
através de interações mais amplas no próspero mundo de instituições, especialistas e
seus conhecimentos (e muito mais). Uma das muitas coisas que aprendemos de
Michel Foucault é o papel capital desempenhado pelo conhecimento neste
processo.” 32 (HACKING, 2007, p.297, tradução nossa).
32
O texto em língua estrangeira é: “Names of classes, and the people who fall under them, interact through
larger interactions in the thriving world of institutions, experts, and their knowledge (as well as much else). One
of the many things we learned from Michel Foucault is the capital role that knowledge itself plays in this
process.”
45
algumas ressalvas quanto à terminologia adotada por Davis neste artigo. A começar pelo
termo normalcy, já no título. Em português normalcy é traduzido por normalidade (a mesma
tradução para normality). Porém, há uma diferença entre normalcy e normality: o primeiro
termo tornou-se popular depois de um discurso de Warren G. Harding em 1921, presidente
americano que venceu a eleição com uma plataforma política de “return to normalcy”, após o
fim da I Guerra Mundial. Harding faleceu no terceiro ano de seu mandato deixando para trás
uma série de escândalos políticos e administrativos. A palavra normalcy passou a ter, depois
disso, uma conotação de normalidade aparente, fabricada a partir de uma repressão daquilo
que seria perturbador. Tal sentido fica expresso no texto de Davis: ao relatar como que
historicamente a concepção de normal foi se tornando central na sociedade, também aponta
para a construção de uma ideologia da normalidade (normalcy) a qual força uma distinção do
tipo “ou…ou”: ou o corpo é able (capaz, hábil, eficiente), e portanto normal, ou o corpo é
disabled (incapaz, inábil, deficiente), e portanto anormal. A ideologia da normalidade
(normalcy) não deixa espaço para conceber pessoas (e seus corpos) como sendo
simultaneamente able e disabled, com capacidades e incapacidades que variam conforme o
contexto nos quais se apresentam.
A noção de normalcy se relaciona com o que foi chamado por Canguilhem – e
posteriormente por Foucault – de normalização da sociedade. Na verdade, normalcy diz
respeito a uma característica da modernidade na qual a ideia do normal foi apropriada no jogo
político. Davis não faz neste artigo referência à distinção entre normalcy e normality, mas em
outro trabalho o autor fornece a seguinte distinção:
“I would call ‘normality’ the alleged physical state of being normal, but
‘normalcy’ the political-juridical-institutional state that relies on the control of
normalization of bodies, on what Foucault calls ‘bio-power’. (…) Thus like
democracy, normalcy is a descriptor of a certain form of governmental rule, the
former by people, the latter over bodies.”33(DAVIS, 1998, p38)
33
Optei por transcrever a citação no idioma original, pois a distinção normalcy / normality poderia ficar
comprometida na tradução. A versão traduzida deste trecho seria: "Eu chamaria de "normalidade" (normality) o
suposto estado físico de ser normal, mas |chamaria de| ‘normalidade’ (normalcy) o estado político-jurídico-
institucional que se baseia no controle de normalização dos corpos, no que Foucault chama de ‘biopoder’. (...)
Assim como a democracia, a normalidade (normalcy) é um descritor de uma certa forma de regra
governamental, a primeira por pessoas, e a última sobre os corpos.”
47
34
deficiente” (DAVIS, [1995] 2006, p.3, tradução nossa). Assim, a emergência das pessoas
com deficiência como um “problema”, isto é, como desviantes, só é possível a partir do
momento em que a noção de normal passa a ocupar o lugar de referência, como parâmetro
para comparação de indivíduos. Davis demonstra que a noção de normal – que hoje permeiam
praticamente todos os aspectos da vida – é uma configuração cuja emergência se dá em um
momento histórico particular.
O tema da construção da normalidade foi abordado por diferentes enfoques por
diversos autores (AMUNDSON, 2000; CANGUILHEM, [1966] 2010; DAVIS, [1995] 2006;
DINIZ, 2007; FOUCAULT, [2001] 2010; HACKING, [1983] 2002). Todos eles apontam a
estreita correlação entre um determinado tipo de arranjo social e a emergência da ideia de
normal como um ideal. As ideias de função normal, corpo normal e pessoa normal são
recentes em nossa história, pois o normal como um parâmetro universal resulta da ascensão
de uma certa ideologia do pensamento científico moderno. No final do século XVIII, o
racionalismo e o empirismo da ciência moderna influenciaram o pensamento médico, o qual
passou a adotar um modelo mecanicista do corpo humano, inspirado no paradigma das
ciências naturais. A busca por leis gerais de funcionamento do organismo, inspirada na física
e na química, unificou ontologicamente as concepções de saúde e de doença. A partir de
então, ambas estariam sujeitas às mesmas leis de funcionamento biológico (BEZERRA JR.,
2006; CANGUILHEM, [1966] 2010).
Neste contexto, é fundamental o papel da estatística no início da modernidade para a
construção do imperativo da normalidade (CANGUILHEM, [1966] 2010; DAVIS, [1995]
2006) e de sua influência sobre os modos pelos quais as pessoas são compreendidas,
governadas e sobre a maneira como elas se veem (FOUCAULT, 2005, 2010; HACKING,
[1983] 2002). É neste panorama que a estatística se apresenta como a ferramenta de cálculo (e
de desvendamento) de padrões, de leis gerais de funcionamento da vida. A disseminação do
pensamento estatístico através de práticas e discursos sociais fez com que a concepção de
“normal” assumisse um colorido ético, transformando a maneira como as pessoas se
orientavam em relação à norma35. Alçada ao patamar de um ideal, a norma se transformou em
34
O texto em língua estrangeira é: “(...) the ‘problem’ is not the person with disabilities; the problem is the way
that normalcy is constructed to create the ‘problem” of the disabled person.”
35
Aqui é importante fazer uma distinção quanto ao sentido e ao uso da palavra norma: de modo geral, os autores
do campo dos Estudos sobre Deficiência tendem a empregá-la com o sentido de uma regra social, cultural ou
política, para a qual a dimensão do valor é contingente. Trata-se de um sentido diferente daquele usado por
Canguilhem, que emprega a palavra norma para se referir à norma biológica, como dotada de uma dimensão
intrínseca (e universal) de valor. (BEZERRA JR., 2006).
48
36
O texto em língua estrangeira é: “an individual who epitomized in himself, at a given time, all the qualities of
the average man, would represent at once all the greatness, beauty and goodness of that being”.
49
37
O texto em língua estrangeira é: “(…) with the concept of the norm comes the concept of deviations or
extremes”.
50
centrais para a sociedade como um todo, e no qual a medicina desempenha um papel central
nos dispositivos de normalização da sociedade.
Em uma sociedade normalizadora, o destino social das pessoas com deficiência
depende do modo como são classificadas, ou seja, do quanto e como são capturadas pelo
poder de normalização. Para Foucault, o desenvolvimento de mecanismos normalizadores é
fruto de um longo processo cujo objetivo é atender a um princípio de necessidade de defesa
da sociedade contra indivíduos considerados “perigosos”, isto é, contra aqueles cujas
peculiaridades físicas, mentais ou comportamentais constituíam aberrações em relação à
ordem social vigente e, de certa forma, uma ameaça ao contrato social. Para a sociedade
moderna disciplinar, a figura do desviante (ou do anormal) é alvo privilegiado de controle e
sua docilização torna-se, por isso, necessária à boa ordem do funcionamento social.
A análise dos valores presentes no pacto social constitutivo da modernidade demonstra
claramente que a capacidade laborativa, a força de trabalho e a identidade profissional são a
porta de entrada na cidadania. A perspectiva utilitarista, aliada a uma ética da autonomia,
definem, portanto, um lugar de destaque ao valor social do trabalho. Trata-se de um contexto
no qual a capacidade produtiva se torna um traço a ser cultivado e valorizado em cada
indivíduo, pois é através dela que se adquire o privilégio de pertencimento social. De acordo
com esta lógica, a exclusão na participação do contrato social se dá pela incapacidade de
comparecimento produtivo. O sistema ideológico da modernidade tem na autonomia o traço
principal de definição do ser humano moderno. Assim, o modelo do indivíduo autônomo da
contemporaneidade instaura normas e valores em função dos quais se classificam pessoas e
ações. As normas contemporâneas de normalidade, capacidade, saúde, cidadania e, até mesmo
de humanidade são tributárias deste indivíduo autônomo.
Caberá, portanto, à medicina, como portadora da verdade científica, fazer a distinção,
a partir de diferenças ancoradas na biologia, daqueles indivíduos que não são iguais
socialmente em função de sua condição natural de diferentes. A diferenciação dos iguais
(descritos desde então em termos de normais e anormais), assim como o limite da autonomia
e do livre arbítrio, se justificam a partir de uma concepção racional da natureza, na qual a
diferença natural se desdobra em exclusão social, sem com isso romper com a concepção
jurídica do “indivíduo-cidadão” autônomo, livre e igual.
A naturalização das identidades sociais relacionadas à deficiência emerge, portanto,
como efeito de um processo de normalização médica dos anormais, desenvolvido numa
aliança paradoxal entre biologia e cultura, natureza e sociedade, e cujo resultado é a alienação
social destes indivíduos. O resultado deste processo é a construção de uma ontologia negativa
51
O tipo de distinção efetuado por um modelo cujo propósito é classificar pessoas com a
insígnia da deficiência funciona a partir de um valor de referência. Cada um dos modelos
teóricos da deficiência tem como eixo central um valor distinto que lhe é subjacente e possui
forte afinidade com certo status de ideal assumido pela concepção de normal a partir do
século XIX. Esta dimensão valorativa fornece o ponto de vista desde o qual um modelo
teórico se estrutura. A perspectiva a partir da qual a concepção de normalidade é abordada
exerce uma importante influência sobrea direção dos dispositivos de normalização
empregados pelos modelos e perspectivas teóricos da deficiência.
A distinção entre as categorias de normalidade e anormalidade se faz através de
abordagens muitas vezes antagônicas. Neste sentido, as bases epistemológicas sobre as quais
a distinção normal/anormal se desenha variam da adoção de um ponto de vista naturalista -
compreendendo “saúde” e “doença”, normal/anormal como conceitos puramente descritivos,
visando à neutralização da dimensão do valor – àquelas que partem de uma perspectiva
normativista - cuja análise considera uma dimensão normativa a qual leva em conta uma
dimensão valorativa para definição do que é normal ou anormal.
Desta forma, as diferentes práticas de normalização (terapêuticas, pedagógicas,
punitivas, etc.) seguem rumos definidos por seus posicionamentos epistemológicos de base,
que lhes circunscrevem um campo de atuação e determinam efeitos próprios. Seguindo-se a
matriz foucaultiana, que afirma que o poder se exerce na articulação com o saber, a
modalidade de controle social - o modo como o poder se exerce - se articula com um saber - a
perspectiva epistemológica subjacente, seja normativista ou naturalista - e produz efeitos de
verdade que lhes são específicos. É em função desta dinâmica que a análise dos modelos,
52
normalidade biológica como parte do mundo natural real e passível de ser descoberta pela
ciência (AMUNDSON, 2000).
A perspectiva naturalista na medicina tem como pressuposto a existência, no âmbito
da biologia, de uma normalidade capturável pelos instrumentos da ciência. Por conseguinte, a
perspectiva naturalista procura definir a partir do dado biológico mais “puro” (o
funcionamento do organismo) a fronteira entre normalidade e anormalidade. Para tanto, se
utiliza de parâmetros quantitativos e teleológicos, tendo como ponto central a definição de
uma “função normal” que pode ser estatisticamente mensurada (AMUNDSON, 2000;
BOORSE, 1977, [1975] 2002). Usarei aqui como exemplo desta vertente epistemológica o
trabalho do filósofo da biologia Christopher Boorse.
O modelo teórico proposto por Boorse - a teoria bioestatística da saúde - trabalha o par
“normal/anormal” inicialmente através das concepções de saúde e doença e, posteriormente,
de normal e patológico. Boorse toma como ponto de partida para o desenvolvimento de sua
teoria é a fórmula “saúde como ausência de doença”, delineando um conceito teórico e
negativo do que seria a anormalidade (doença ou, posteriormente, patologia), ao passo que
delimita a concepção de saúde a partir da noção de que esta é o desempenho da função normal
de cada parte do organismo (BOORSE, [1975] 2002). Na concepção do autor, tal desempenho
de funções visa dois objetivos específicos: a sobrevivência e a reprodução. A fim de definir o
que é esperado da “função normal” de uma espécie, Boorse recorre à estatística para definição
do que é o normal e, por extensão, saudável. Tal medida é obtida ao se entrecruzar as noções
de função biológica e normalidade estatística. Para Boorse, saudável (equivalendo-se a
normal), é aquilo que se expressa por uma normalidade estatisticamente medida do
desempenho de uma função natural do organismo.
A teoria funcional da saúde proposta por Boorse é teleológica e descritiva. Tem como
objeto de investigação não o indivíduo, mas a espécie. Boorse se empenha em eliminar
concepções valorativas de saúde e doença, sustentando uma posição especificamente
descritiva do normal. No entanto, a apreensão estritamente descritiva de normal/anormal,
saúde/doença, impede que estas sejam consideradas na relação do indivíduo com o meio, uma
vez que as particularidades desta relação não são passíveis de manejo estatístico. Deste modo,
Boorse define como seu objeto de investigação a “saúde enquanto conceito teórico”,
circunscrevendo um objeto mais próximo da filosofia da medicina do que da clínica médica.
A perspectiva epistemológica naturalista se afina com modelos de normalização de
indivíduos que têm o determinismo biológico como premissa. No que diz respeito às práticas
e discursos que se ocupam do anormal enquanto incarnado na figura da deficiência, a
54
perspectiva naturalista se consolida no que é chamado, pelos autores do campo dos Estudos
sobre Deficiência, de modelo médico da deficiência.
A partir do século XIX até o final do século XX, o modelo médico da deficiência se
firmou como a perspectiva hegemônica para a classificação e manejo da condição, dado o
papel da medicina nos dispositivos normalizadores da sociedade moderna.
Trata-se de um modelo da deficiência baseado em uma expectativa biomédica da
performance do que seria “normal” para a espécie, e tem como referência central a ideia de
função normal. Fortemente arraigado em definições biológicas de corporeidade e
performance, possui como fundamentação epistemológica uma perspectiva que se alinha com
as descrições naturalistas da conceituação do par normal/anormal. Neste modelo, a deficiência
é necessariamente equiparada à anormalidade biológica - uma vez que contraria a noção de
função normal - e é compreendida como a consequência direta da influência de uma anomalia
patológica em funções físicas, mentais, intelectuais e/ou sensoriais.
Em um modelo orientado pela concepção de função normal, qualquer variação em
relação a esta referência será tomada como uma anormalidade (estando no âmbito da
patologia). Neste sentido, a herança mecanicista do paradigma das ciências naturais fez com
que o corpo passasse a ser visto como uma máquina, na qual as doenças e as diferenças são
consideradas igualmente como disfunções (PEREIRA, 2009). Sob tal ponto de vista são
consideradas anomalias apenas aquelas variações que não atingem o escopo das funções
normais. Assim, uma variação considerada como patológica se configura como um
impedimento funcional, o qual leva a um desempenho aquém da expectativa de normalidade.
É por esta razão que para o modelo médico a deficiência é compreendida como consequência
direta de impedimentos/lesões. O modelo médico enquadra as limitações das pessoas com
deficiência em termos de patologia biológica. Seu ponto de partida é a assunção de que um
organismo é dotado de função normais para a espécie, as quais podem ser estatisticamente
mensuradas (e medicamente corrigidas).
Para este modelo, a deficiência é um fenômeno restrito ao indivíduo. Por ser
compreendida como o efeito direto de um impedimento, a deficiência assume o caráter de um
problema individual, tanto em sua etiologia, como em sua solução. Em função de seu ideal
teleológico, o modelo médico atribui à deficiência uma ontologia necessariamente negativa
(posto que a performance esperada no desempenho das funções normais não é atingida). Isso
confere à deficiência um caráter de “tragédia pessoal”, pois a perspectiva do modelo médico
individualiza e circunscreve ao corpo a condição de deficiência. A consequência direta deste
ponto de vista é a transformação da deficiência em um objeto a ser manejado prioritariamente
55
“Pessoas com inaptidão física ou mental que afeta ou limita suas atividades
de vida diárias e que podem requerer acomodações especiais.” (BIREME. BVS -
DeCS, 2012, grifo nosso).
38
Sua primeira edição foi em 1980, com reimpressões posteriores (1985, 1989 e 1993). Na última reimpressão
há no prefácio uma menção à preocupação com o fato de que a ICIDH não faz referência clara o suficiente ao
papel do ambiente físico e social no processo de desvantagem (handicap) e que pode ser interpretado como um
incentivo à medicalização da deficiência (disablement). A ICIDH foi substituída, em 2001, pela International
Classification of Functioning, Disability and Health - ICF (Classificação Internacional de Funcionalidade,
Incapacidade e Saúde - CIF), cujo enfoque se baseia em uma abordagem biopsicossocial e se aproxima do
modelo social da deficiência. A ICIDH foi alvo de duras críticas por parte do movimento políticos pelo direito
das Pessoas com Deficiência e pelo campo dos Estudos sobre Deficiência, por retratar a deficiência apenas pela
perspectiva biomédica. A resposta a tais críticas foi a elaboração da ICF, fruto de revisões na classificação
anterior, desenvolvidas após estudos de campo sistemáticos e consultas internacionais.
Ambas as classificações têm tradução oficial para a língua portuguesa. No entanto há uma polêmica quanto às
escolha da terminologia oficial adotada nas versões para português, na qual o termo impairment foi traduzido por
deficiência e disability por incapacidade. Optei por usar a citação extraída da versão inglesa para contornar tal
polêmica. Para a discussão sobre a terminologia da CIDID e da CIF na tradução para língua portuguesa ver:
DINIZ; BARBOSA; SANTOS, 2009.
39
O texto em língua estrangeira é: “Impairments: concerned with abnormalities of the body structure and
appearance and with organ or system function, resulting from any cause; in principle, impairments represent
disturbance ate the organ level.
Disabilities: reflecting the consequences of impairment in terms of functional performance and activity
by individual; disabilities thus represent disturbance at the level of the person.”
56
40
O texto em língua estrangeira é: “(…) can make them like other people – that is, cure them – the physical and
intellectual barriers they encounter and that limit them what keeps the majority of people from being fully free”
57
às limitações biológicas. O modelo médico considera o ambiente (físico e social) como uma
invariável a qual os indivíduos devem se ajustar. De modo geral, este modelo não leva em
conta o papel das estruturas sociais na opressão e exclusão das pessoas com deficiência, bem
como desconhece as articulações entre deficiência e fatores sociais, políticos e econômicos
(LANNA JR., 2010).
41
Sociólogo britânico e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência. Hunt desenvolveu distrofia muscular
progressiva, ainda na infância, e viveu institucionalizado desde sua adolescência. Durante sua juventude militou
pelos direitos das pessoas com deficiência e foi um dos fundadores da UPIAS (Union of Physically Impaired
Against Segregation) em 1972, a primeira organização política sobre deficiência a ser formada e gerenciada por
pessoas com deficiência.
59
“Podemos testemunhar a verdade de que a dignidade de uma pessoa não reside nem
em sua consciência e, certamente, também não está em sua beleza, idade,
inteligência ou cor. Aqueles de nós com mentes sem impedimentos, mas com corpos
gravemente deficientes, temos a oportunidade única de mostrar para as outras
pessoas que não apenas nossa diferença em relação a eles não diminui nosso valor,
mas também que nenhuma diferença entre os homens, por mais real, desagradável e
perturbadora, acaba com seu direito de ser tratado como inteiramente humano” 42
(HUNT, 1966, p.9, tradução nossa).
42
O texto em língua estrangeira é: “We can witness to the truth that a person's dignity does not rest even in his
consciousness, and certainly that it does not rest in his beauty, age, intelligence or colour. Those of us with
unimpaired minds but severely disabled bodies, have a unique opportunity to show other people not only that our
big difference from them does not lessen our worth but also that no difference between men, however real,
unpleasant and disturbing, does away with their right to be treated as fully human”.
43
O texto em língua estrangeira é: “we define impairment as lacking part of or all of a limb, or having a
defective limb, organ or mechanism of the body”.
60
44
O texto em língua estrangeira é: “the disadvantage or restriction of activity caused by a contemporary social
organisation which takes no or little account of people who have physical impairments and thus excludes them
from participation in the mainstream of social activities”.
61
45
Termo cunhado por Débora Diniz para comportar o sentido do neologismo disablism em língua inglesa. O
conceito de disablism descreve uma forma de opressão pelo corpo, análoga àquelas descritas pelo sexismo e pelo
racismo. O disablism é fruto de uma ideologia que supõe uma superioridade dos corpos não-deficientes em
relação ao corpos deficientes (CAMPBELL, 2008, 2009;DINIZ, 2007).
46
Autor norte-americano do campo dos Estudos sobre deficiência e ativista pelos direitos das pessoas com
deficiência.
47
O texto em língua estrangeira é: “‘Our Bodies, Ourselves’ and ‘Power to the People’ can be recognized as
precedents for ‘Nothing About Us Without Us’”.
62
48
O texto em língua estrangeira é: “If we thought merely about level of functional performance, rather that the
mode, fashion or style of function, the disadvantages of disability would not seem so natural and inevitable.
High levels of function are possible for very atypical people when they use atypical modes of functioning. A
concern with functional normality is less a concern with the level of performance than with cosmetic aspects of
functional mode. The widespread fascination with normality of functional mode is itself a hindrance to
functional performance”.
63
Neste sentido, a separação da variação humana em normal e anormal não possui uma
fundamentação biológica tão sólida tal como sustentada pelos autores naturalistas. Para
49
Amundson, “a diversidade de funções é um fato da biologia” (AMUNDSON, 2000, p. 34,
tradução nossa). A análise do autor demostra o quanto o argumento naturalista em defesa do
determinismo biológico (o qual respalda o conceito de função normal) é influenciado por
valores sociais. Amundson confronta este argumento naturalista partindo de uma análise da
própria teoria biológica. Deixando de lado os argumentos críticos das ciências sociais sobre a
rotulagem biológica de anormais, o autor se baseia em diferentes correntes teóricas da
biologia para desconstruir a doutrina determinista. Ao apresentar os argumentos em favor da
variação funcional ele toma como base, dentre outras teorias, a teoria da evolução de Darwin,
e a crítica de David Hull quanto à normalidade funcional50.
A crítica de Amundson e Hull quanto à reificação do normal na biologia tem como
perspectiva epistemológica uma abordagem normativa do normal, semelhante àquela
defendida por Georges Canguilhem.
Os conceitos de normal, anormal e anômalo, bem como suas relações com noções de
saúde, doença, diferença e déficit foram cuidadosamente analisadas por Georges Canguilhem,
em seu livro O Normal e o Patológico, de 1943. Na teoria canguilhemiana, o “normal” é um
conceito que implica dois níveis distintos de significação.
O primeiro nível descreve um traço observado mais frequentemente, aquilo que é mais
prevalente, a expressão de uma característica média em uma dada população. Trata-se de uma
concepção descritiva, que define o normal como um fato, a partir de uma abordagem
quantitativa, estatisticamente definida. No entanto, o autor considera que tal concepção
descritiva do normal é apenas a expressão de uma norma de vida em funcionamento e, por
essa razão, não possui a abrangência suficiente para definir o valor presente nesta norma. A
49
O texto em língua estrangeira é: “Diversity of function is a fact of biology”.
50
Filósofo da biologia, Hull exemplifica seu argumento com um questionamento quanto ao que seria a função
normal da mão humana. De acordo com o autor, “qualquer noção de ‘função da mão’ que seja suficientemente
geral para capturar todas as coisas que podemos fazer com nossas mãos, provavelmente será vazia e incapaz de
divisar usos normais dos anormais. Tudo que um biólogo pode dizer sobre a função da mão humana é que tudo
que podemos fazer com ela é ‘normal’. Um senso mais restrito de normalidade deve ser importado do senso
comum, da sociedade, profundamente arraigados em instituições ou sistemas morais”.(HULL, 1986, p.10,
tradução nossa). O texto em língua estrangeira é: “Any notion of ‘the function of the hand’ which is sufficiently
general to capture all the things that we can do with our hands is likely to be all but vacuous and surely will
make no cut between normal and abnormal uses. About all a biologist can say about the function of the human
hand is that anything that we can do with it is ‘normal’. A more restricted sense of normality must be imported
from common sense, society, deeply held institutions, or systems of morals.”
Percebe-se, com este exemplo de Hull, que a distinção do que é normal ou anormal para a mão humana não é,
portanto, um fato da biologia, mas um efeito de classificações pautadas em valores sociais.
64
51
“Viver é, mesmo para uma ameba, preferir e excluir” (CANGUILHEM, [1966] 2010, p.95). Canguilhem
utiliza este exemplo para ilustrar sua tese de que a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível.
Há nela uma polaridade dinâmica, uma posição inconsciente de valor. A vida tem em si a capacidade espontânea
de lutar contra aquilo que constitui um obstáculo à sua manutenção. Preferir e excluir são atividades normativas.
65
que “é a vida em si mesma, e não a apreciação médica, que faz do normal biológico um
conceito de valor, e não um conceito de realidade estatística” (CANGUILHEM, [1966] 2010,
p.90).
Canguilhem define o patológico como aquilo que implica pathos, sofrimento,
“sentimento de vida contrariada”. Assim, a definição do que é patológico tem, em sua origem,
a apreciação de um valor, o da normatividade vital restringida. É em função disso que a
delimitação da fronteira entre o que é normal e o que é patológico não pode ser feita
exclusivamente com base em fatos científicos; ela exige uma apreciação valorativa ou
normativa.
As bases epistemológicas do modelo social da deficiência têm afinidade com esta
perspectiva normativa do normal. O modelo social, ao considerar a relação com o meio como
o ponto de emergência da deficiência se aproxima da perspectiva de Canguilhem de que “o
ser vivo e o meio, considerados separadamente, não são normais, porém é a sua relação que
os torna normais um para o outro.” (CANGUILHEM, [1966] 2010, p. 102, grifo nosso). Para
o modelo social, o caráter de anormalidade da deficiência não se deriva do
impedimento/lesão, mas se configura como um efeito de um meio social hostil. Há uma
semelhança na perspectiva normativista de Canguilhem e o paradigma do modelo social da
deficiência no que concerne à interação entre indivíduo e o meio. De ambos os pontos de
vista, as fronteiras da normalidade/anormalidade não estão dadas a priori: é preciso buscá-las
na relação com o contexto.
Em suas correntes mais radicais, o modelo social da deficiência equipara o
impedimento corporal à pura anomalia, sem qualquer ontologia negativa que daí possa
decorrer, e, portanto, sem qualquer conotação patológica (FINKELSTEIN, 1980; OLIVER,
1983; 1996; UPIAS, 1976). Para esta vertente, o impedimento é um traço de pura variação
corporal sobre o qual a sociedade impõe um regime de opressão e exclusão de indivíduos.
Trata-se de uma diferença corporal tornada estigma social.
Mesmos as abordagens posteriores do modelo social, menos radicais e que chegam a
considerar algum grau de pathos atribuível ao impedimento/lesão, compartilham desta
perspectiva normativista. A crítica do modelo social à desigualdade de oportunidades entre
pessoas com e sem deficiência também faz uso do argumento normativista. Autores dos
Estudos sobre Deficiência argumentam que o ambiente em que vivemos é a materialização de
escolhas e valores. Ou seja, as barreiras arquitetônicas e ambientais se derivam de barreiras
ideológicas (AMUNDSON, 2000; SILVERS, 2010). Para o modelo social da deficiência, a
sociedade constrói ambientes que impedem o exercício da normatividade de indivíduos
66
perspectiva ética utilitarista, e, do outro, o modelo social assume a liberdade como valor e se
pauta em uma ética da responsabilidade.
A perspectiva utilitarista orienta a classificação do modelo médico em categorias de
pessoas como aptas ou inaptas ao trabalho. Em um nível individual, um sujeito pode ser
classificado como socialmente produtivo e, ao mesmo tempo, biologicamente patológico, sem
que nisso resida qualquer conflito lógico entre as duas classificações. No entanto, ao se tomar
a relação entre a prevalência estatística na população destas duas características (socialmente
produtivo e biologicamente patológico) encontra-se que quanto mais se tende para a anomalia
biológica, mais se reduz a prevalência de produtividade laboral. Assim, ao tomar como objeto
de análise uma população e não um indivíduo, a tendência é a de se operar uma separação
entre produtividade e patologia, num tipo de classificação que funciona por arranjos
excludentes entre as categorias: ou se é produtivo (e, portanto, biologicamente normal e
socialmente incluído), ou se é improdutivo (e, portanto, biologicamente patológico e
socialmente excluído). A desvalorização das pessoas com impedimentos se baseia em uma
coincidência estatística que mostra a correlação inversa em uma população de pessoas
socialmente produtivas e pessoas biologicamente anômalas. No entanto, a classificação de
indivíduos considera o nível populacional, e não as especificidades individuais. Dependendo
de como os dados estatísticos sejam interpretados, diferentes políticas sobre a deficiência
serão privilegiadas.
52
O texto em língua estrangeira é: “When over-general and under-determined claims of this sort capture the
public consciousness, policy tends to be adopted to drive the pathological and the productive further apart (than
they actually are or need to be)”.
70
Num contexto no qual o valor da liberdade se impõe como essencial para a definição
de pessoa, o modelo social da deficiência se apresenta como o instrumento de normalização
mais adequado, e – do mesmo modo que o modelo médico em relação ao valor do trabalho –
funciona como um programa de remanejamento de pessoas entre categorias de um sistema
classificatório guiado pelo valor da liberdade, permitindo aos indivíduos se deslocarem da
categoria de institucionalizados à outra, de indivíduos livres.
Justamente porque nas sociedades contemporâneas os valores sociais não são
estanques e se apresentam mais como um repertório plural do como uma única diretriz
organizadora do tecido social, Silvers afirma que é mais apropriado que diferentes modelos da
deficiência atendam a diferentes valores sociais. Mesmo assim, o contexto no qual
determinado modelo deve ser empregado tem papel fundamental na adequação entre valores,
modelos e objetivos. O (aparente) antagonismo entre os modelos se encontra mais na esfera
teórica do que no campo das práticas. Um ponto a ser considerado neste sentido é a
progressiva aproximação entre as perspectivas do modelo médico e aquelas do modelo social,
a qual já se configura (ainda e modo ainda incipiente e irregular) como realidade em práticas e
53
Paul Abberley, em uma análise sobre o valor do trabalho na definição de pessoa e de seu impacto para as
pessoas com impedimentos, afirma que nas sociedades nas quais as noções de humanidade dependam do
trabalho o impedimento (lesão) permanecerá problemático. Para o autor, as teorias sobre deficiência precisam
romper com este modelo de humanidade, e, principalmente, “as noções de perfeição e racionalidade orientada
para a produção devem ser transcendidas” (ABBERLEY, 1997, p.25, tradução nossa). O texto em língua
estrangeira é: “notions of perfectability and production-orienteded rationality must be transcended”.
54
O texto em língua estrangeira é: “Liberty was the value that, at least initially, inspired the development of the
social model, with its fundamental classification of people as institutionalized and therefore lacking liberty, or as
living in the community and thereby free”.
71
Assim como o modelo médico foi alvo de críticas que constituíram o modelo social, nos
últimos anos o próprio modelo social tem sido objeto de críticas – internas e externas ao
campo dos Estudos sobre Deficiência – que propõem uma revisão da teoria da deficiência.
Tais críticas buscam refletir mais adequadamente as necessidades, prioridades e experiências
das pessoas com deficiência. Para os autores que sustentam essas perspectivas, o modelo
social da deficiência – tendo surgido como contraponto crítico ao modelo médico, mostrando
os limites deste modelo – também atingiu seu limite, e agora, necessita de uma reformulação
teórica.
Os valores sobre os quais o modelo social da deficiência originalmente se constituiu
estavam de acordo com o contexto e com os objetivos então visados. Ao longo dos últimos 40
anos, o movimento para reivindicação de direitos de pessoas com deficiência avançou em
suas conquistas, alterando em vários aspectos a realidade política e social da deficiência no
55
Ver adiante, no capítulo 3.
56
O texto em língua estrangeira é: “The decision about whether it is preferable to attempt to adjust environments
to individuals’ differences, or instead to alter the individuals so they more closely approximate the typical person
for whom constructed environments usually are made, is to some extent a practical one. But it also is a matter of
who is valued, which leads back to the question of what disability is. (…) But simply understanding that
inaccessible environments keep people far away, or locked away, prompts no political reform unless value is
placed on promoting social and economic inclusiveness”.
72
estritamente como opressão social. Pode-se dizer que, em linhas gerais, essa é a proposta das
vertentes críticas ao modelo social da deficiência. Estas vertentes críticas buscam integrar
elementos dos modelos médico e social da deficiência. Chamo estas vertentes neste trabalho,
e apenas por razões pragmáticas, de perspectivas integracionistas.
57
Filósofa do campo dos Estudos sobre Deficiência. Sua filha, Sesha, tem paralisa cerebral congênita e severa
deficiência intelectual. O trabalho de Kittay no campo dos Estudos sobre Deficiência é atravessado por sua
experiência de mãe e cuidadora de uma pessoa com deficiência grave.
58
O texto em língua estrangeira é: “Even though other movements of inclusion have challenged the liberalism
that they nonetheless invoked, the inclusion of people with mental retardation may well be liberalism’s limit
case, just as it is a limiting case for the demands of many in the disability community. Liberalism invokes a
notion of political participation in which one makes one’s voice heard. It depends on a conception of the person
as independent, rational, and capable of self-sufficiency”.
74
O argumento de Hunt era que o que mais limitava as pessoas com deficiência era a
segregação e o isolamento social que daí resultava. Sua reivindicação de liberdade não estava
atrelada à concepção de independência. Hunt reconhecia que muitas pessoas com deficiência
não poderiam atender à expectativa utilitarista da sociedade. Mais ainda, o autor descreve a
deficiência como um desafio à sociedade. Assim, a concepção utilitarista cede espaço para
uma ética da responsabilidade, na qual a autonomia é valorizada como exercício da liberdade
(de escolha, de ir e vir, de participação e de pertencimento) e não como exercício de
produtividade. A produtividade aparece como uma consequência da liberdade e em relação
com as possibilidades de seu exercício e de ação social. Sob este enfoque, a liberdade como
valor a ser defendido, consegue conjugar num mesmo espectro a autonomia (em sua face de
livre arbítrio) e a codependência (em sua face do cuidado). Porém, com o desenvolvimento do
movimento de direitos de pessoas com deficiência e com a consolidação de vertentes mais
radicais do modelo social da deficiência, a busca da liberdade passou a ficar subordinada a um
59
O texto em língua estrangeira é: “There is no doubt that we do put great stress on the individual's economic
contribution. Most people are wrapped up in a workaday, utilitarian world, and regard anything not visibly
productive as expendable. (…) Those who cannot work, such as the sick, aged or unemployed, are subject to a
tremendous pressure to feel useless, or at least of less value than the breadwinner”.
76
60
Filósofa do campo dos Estudos sobre Deficiência, cujo trabalho se dedica especialmente à deficiência
intelectual e aos os desdobramentos que o tema coloca para os campos da filosofia e da bioética.
77
“Propus que a defesa dos direitos de pessoas com deficiência mentais severas e
profundas requer simultaneamente a defesa dos direitos de seus cuidadores; que tal
projeto não era apenas justo e solidário, mas era a única forma eficaz de defender
direitos para o grupo inicial. Tenho defendido que concepções liberais de justiça
vêm excluindo tanto aqueles com graves deficiências de desenvolvimento como
aqueles que são seus cuidadores. Com um princípio de doulia, vimos como podemos
reconfigurar a justiça para que o trabalho do cuidado seja contado e recompensado
como parte de uma ideia mais ampla de cooperação social recíproca. Tal ideia
reflete a visão de que qualquer sociedade, e certamente qualquer sociedade decente,
tem no cuidado de dependentes uma de suas funções centrais.” 61 (KITTAY, 2001, p
573, tradução nossa).
61
O texto em língua estrangeira é: “I proposed that advocating for severely and profoundly mentally retarded
persons required simultaneously advocating for their caregivers; that such a project was not only just and caring,
but was the only way to advocate effectively for the initial group. I have maintained that liberal conceptions of
justice have excluded both those with severe developmental disabilities and those who are their caregivers. With
a principle of doulia, we have seen hoe we can reconfigure justice so that the labour of caregiving is counted and
rewarded as part of a broader idea of reciprocal social cooperation. Such an idea reflects the view that any
society, and surely ay decent society, has the care of dependents as one of its central functions.”
62
O trabalho de Jenny Morris (1991) e de Susan Wendell ([1989], 2003) são exemplos.
78
63
O texto em língua estrangeira é: “Even with the removal of barriers and the provision of support, impairment
will remain problematic for many disabled people.”
81
64
amplas relevantes à deficiência naquela sociedade” (SHAKESPEARE, 2006a, pp.
55-56, tradução nossa).
Shakespeare defende que uma abordagem interacional é capaz de dar conta da ampla
diversidade e variação da experiência da deficiência. O autor considera que o modelo social
falhou ao tentar agrupar em uma única categoria homogênea as diversidades de condições da
deficiência. Para ele, o impedimento possui, de fato, conotações negativas que são
escalonadas em gradações. Shakespeare considera que o impedimento implica
necessariamente em predicamento. Dentro desta concepção, o impedimento acaba por
desempenhar, invariavelmente, algum papel constitutivo do fenômeno da deficiência.
Aparentemente é uma concepção que se assemelha a uma aproximação do modelo médico da
deficiência, mas, no entanto, não se alinha com ele, em termos de discursos e valores.
(SHAKESPEARE, 2006a).
Assim, uma perspectiva fenomenológica pode se mostrar como um ponto fundamental
para a compreensão da deficiência (SHAKESPEARE, 2006a; HUGHES, 2005; SILVERS,
2010). Consonante com a posição de Shakespeare, Anita Silvers afirma que a experiência
subjetiva de um corpo com impedimento não deve ser deixada de lado ao se considerar a
dimensão social da deficiência. Neste ponto, Silvers critica de modo contundente o modelo
social “duro” que – para se contrapor à perspectiva do modelo médico que considera o
impedimento/lesão como fonte da deficiência – esvazia de sentido o impedimento e desloca
totalmente a fonte da deficiência para o campo social.
A dificuldade do modelo social radical em admitir a importância do impedimento
enquanto uma marca diferencial da experiência da deficiência no corpo pode ser ilustrada na
fala de Jenny Morris, ao expressar sua preocupação com o fato de dar visibilidade aos
aspectos negativos de viver com impedimentos/lesões, e com isso acabar passando a
mensagem de que a vida com deficiência não é digna de ser vivida. (MORRIS, apud.
SILVERS, 2010).
Há um ponto a ser explorado no que diz respeito à relação entre a experiência subjetiva
do corpo com impedimentos e a ação política. Silvers considera um erro do modelo social
radical da deficiência não observar a perspectiva fenomenológica da deficiência. Ela
64
O texto em língua estrangeira é: “The experience of a disabled person results from the relationship between
factors intrinsic to the individual, and extrinsic factors arising from the wider context in which she finds herself.
Among the intrinsic factors are issues such as: the nature and severity of her impairment, her own attitudes to it,
her personal qualities and abilities, and her personality. Among the contextual factors are: the attitudes and
reactions of others, the extent to which the environment is enabling or disabling, and wider cultural, social and
economic issues relevant to disability in society”.
82
(inicialmente concordando com o que é proposto pelo modelo médico) mas o ultrapassa, pois
considera a diferença corporal em sua relação com o meio. Neste sentido, critica o modelo
médico da deficiência por não levar em conta o impacto das relações estabelecidas entre o
indivíduo e o ambiente. Ao mesmo tempo, a abordagem fenomenológica critica o modelo
social da deficiência que repete a divisão cartesiana corpo/mente e a reproduz sob a forma de
uma cisão entre impedimento e deficiência, com o agravante de colocar todo o peso etiológico
da deficiência no meio social e de desconsiderar o papel da corporeidade (diferente) na
constituição da subjetividade.
As críticas ao modelo social da deficiência oriundas da fenomenologia, do feminismo
e das questões filosóficas e éticas envolvendo pessoas com deficiência intelectual grave
reapresentam para o debate sobre a deficiência dois elementos cruciais: o pathos presente na
dimensão corporal e a condição humana de dependência. Estes dois elementos estão
fortemente interligados: a deficiência articula o predicamento corporal e a condição de
dependência. Considerar que o impedimento produz impactos singulares na experiência dos
indivíduos é situa-lo como condição ontológica do ser humano, permitindo uma maior
aproximação entre a teoria e a prática. Segundo Shakespeare, isso torna visíveis as limitações
inexoráveis às quais todos nós estamos sujeitos ao longo da vida. Além disso, relativiza a
autonomia e independência como valores constitutivos do indivíduo. Shakespeare afirma que
a vantagem de conceber o predicamento como condição humana facilita uma abordagem mais
equânime das diferenças (SHAKESPEARE, 2006a).
84
65
O critério para este recorte temporal consistia no fato de que tanto o campo dos Estudos sobre Deficiência
como o campo da Saúde Coletiva se estruturaram neste período aproximado de tempo.
66
Descritores em Ciências da Saúde: http://decs.bvs.br/P/decsweb2012.htm
87
A listagem completa dos 140 descritores encontrados, assim como dos 26 finais
resultantes da exclusão das sobreposições, está no Apêndice A - Seleção dos descritores.
A etapa seguinte consistiria na aplicação destes 26 descritores aos 263 periódicos de
Saúde Coletiva indexados no Portal Periódicos da Capes, para a seleção dos artigos. No
entanto, a realização da pesquisa nestes moldes em tempo hábil se mostrou inviável, pois
67
Biblioteca Virtual em Saúde.
68
Os descritores selecionados categorizados como “outros” são:
- Em português: “expectativa de vida ativa”, “idoso fragilizado”, “pacientes domiciliares”, “perda auditiva”,
“previdência social”, e “seguro por invalidez”.
- Em inglês: “active life expectancy”, “frail elderly”, “home bound persons”, “hearing loss”, e “social security”.
88
mesmo após a redução dos descritores e da triagem dos periódicos, ainda era uma quantidade
de dados excessiva e de difícil manejo.
Em paralelo a isto, havia também um problema na limitação de campo de pesquisa
através da seleção exclusiva de periódicos especializados em Saúde Coletiva: o de não
capturar boa parte da produção acadêmica sobre a deficiência, publicada em periódicos e
revistas de outras áreas do conhecimento. Além do fato de a deficiência ser um tema de
estudo de diferentes áreas do conhecimento, o próprio campo da Saúde Coletiva é
transdisciplinar, ou seja, muitos trabalhos desta área são publicados em periódicos
especializados de outras áreas da saúde e das ciências humanas e sociais. Limitar o campo de
pesquisa através da seleção de periódicos de uma única área especializada (Saúde Coletiva)
poderia tendenciar os resultados das buscas, criando um viés na pesquisa.
Outro problema metodológico foi a falta de uniformidade no formato dos artigos ao
se tomar o Portal Periódicos da Capes como campo: nem todos possuíam resumo em inglês, o
que dificultaria a triagem dos artigos, pois os termos “disability” e “impairment” são mais
estáveis do que as várias possibilidades de tradução para o português.
69
Total de periódicos indexados na coleção SciELO Brasil, de 2000 a 2010. Disponível em:
http://www.scielo.org/php/level.php?lang=pt&component=56&item=49 (acesso em 18 de junho, 2012, 17:44).
89
70
Como um dos pontos de interesse desta pesquisa é analisar o discurso acadêmico sobre a deficiência no Brasil,
o fato de escolher como campo uma biblioteca eletrônica com tal projeção e visibilidade era acessar as narrativas
acadêmicas da deficiência que tenderiam a ter mais alcance nacional, e, assim, maior poder de reverberação nos
campos de práticas e serviços direcionados para as pessoas com deficiência, além de se constituírem como
narrativas com maior potencial para reformulação de saberes sobre a deficiência.
71
LILACS: Literatura Latino-americana em Ciências da Saúde (http://lilacs.bvsalud.org/) Foi escolhida como
fonte dos dados para a pesquisa por ser o mais abrangente índice da literatura científica e técnica sobre saúde da
América Latina e Caribe. Ela abrange todo o banco de dados do SciELO e tem a vantagem de possuir filtros de
busca mais eficientes (há um menu de clusters que permite a escolha de artigos com texto completo, exibe a
distribuição dos resultados da busca quanto ao assunto principal, tipo de estudo, periódico de origem, dentre
outros critérios).
90
de um descritor). Tal teste teve como propósito estabilizar a metodologia de busca e fazer um
levantamento da prevalência de artigos por descritor. Além disso, foi possível levantar
características da distribuição da produção acadêmica sobre o universo da deficiência.
A partir destes dados brutos, dois descritores de destacaram: “saúde da pessoa com
deficiência” e “pessoas com deficiência”. Ambos são os que mais possuem sinônimos (23 e
15, respectivamente) e, juntos, correspondem a 30% de todas as ocorrências de artigos (sendo
120 artigos para “saúde da pessoa com deficiência” e 103 artigos para “pessoas com
deficiência”). Privilegiou-se como termo de busca o descritor “pessoas com deficiência” em
função de sua centralidade no campo da deficiência e por possuir um potencial maior de
transdisciplinaridade72. Além disso, Pessoa com Deficiência não é apenas um descritor para
indexação bibliográfica, mas o qualificador de um sujeito político, que nomeia atores sociais
em torno (e a partir dos quais) se articulam discursos, ações e saberes73. É o termo escolhido
pelas próprias pessoas com deficiência, aprovado após debate mundial e que consta no texto
da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, elaborada pela
ONU. (SASSAKI, 2002).
A etapa seguinte consistiu na seleção dos artigos que se encaixavam no perfil da
pesquisa e na classificação destes conforme o modelo teórico sobre deficiência adotado. Das
103 ocorrências encontradas, foram excluídos 9 trabalhos por não adequação ao perfil da
pesquisa (eram cartas, editoriais e resenhas), deixando a amostra final com 94 artigos. Nesta
amostra foi feita uma análise dos temas abordados (educação, saúde, direitos, etc.) e uma
posterior classificação do material conforme estes eixos de análise. A listagem com todos os
artigos pesquisados se encontra no Apêndice C - Artigos selecionados para a pesquisa.
O desenho final da metodologia se estabilizou da seguinte forma:
72
O teste de representatividade dos descritores demonstrou que muitos dos artigos indexados como “pessoas
com deficiência”, também o eram como “saúde da pessoa com deficiência”.
73
A escolha deste termo como descritor de busca atendeu à necessidade metodológica de garantir alguma
precisão e estabilidade nos resultados que comporiam a amostra, sem desvincular a importância política do
termo, o que trouxe a vantagem de ser o ponto de construção de uma amostra aberta a uma maior presença de
trabalhos que refletissem justamente as implicações sociais e políticas da deficiência, já que este é o modo como
as pessoas com deficiência se autodenominam. Talvez o uso de um descritor de busca “apolítico” não
resultassem numa amostra com traços significativos deste tipo de debate.
91
publicações na área das Ciências da Saúde74, com 60,6% dos artigos (57 artigos), ao passo
que a área das Ciências Humanas concentrou 30,9% (29 artigos). Como havia periódicos
classificados nas duas áreas, 8 artigos publicados nestes periódicos se alocavam em ambas as
categorias, correspondendo a 8,5% da amostra, tal como ilustrado nos gráficos 1 (artigos por
área de assunto), 2 (artigos em periódicos de ciências da saúde) e 3 (artigos em periódicos de
ciências humanas):
8,5%
ciências da saúde
74
Este é um achado em consistência com o fato de muitos artigos possuírem como indexador o descritor “saúde
da pessoa com deficiência”.
94
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75
Justamente o ano com maior quantidade de artigos publicados na amostra.
96
76
Em: http://www.scielo.org/php/level.php?lang=en&component=42&item=25 Acesso em 30/12/2012.
77
Diniz et al. (2007b) destacam, por exemplo, a concepção de deficiência a partir do modelo médico presente na
legislação que regulamentava a concessão do BPC (decreto 1.744, de 1995. Ver BRASIL, 2011a). Os autores
consideraram este um fator problemático para a concessão do benefício, pois o decreto 1.744 adotava um modelo
que privilegia uma perspectiva da deficiência como “expressão de uma limitação corporal do indivíduo para
interagir socialmente” (DINIZ et al., 2007b, p. 2591), na qual as dificuldades geradas pela interface social não
são devidamente contempladas. No entanto, no mesmo ano de 2007 houve uma reformulação desta legislação
com a publicação do decreto 6.214 (ver: BRASIL, 2011a), o qual revoga o instrumento anterior e prevê uma
concepção de deficiência que contempla a dimensão social na origem do fenômeno (mais alinhada às
perspectivas integracionistas e ao próprio modelo social da deficiência). Trata-se de um grande avanço quanto a
ações de proteção social de pessoas com deficiência em situação de vulnerabilidade social, mostrando
justamente a reformulação do paradigma da deficiência sendo incorporada em ações concretas na sociedade.
98
que regulamentam as ações direcionadas para as pessoas com deficiência. Conforme afirmam
Inácia França e Lorita Pagliuca, no Brasil as pessoas com deficiência “conquistaram
legislação que assegura seu desenvolvimento, mas enfrentam dificuldades para superar a
pobreza e alcançar esse desenvolvimento” sendo os fatores limitadores oriundos dos campos
da saúde, da educação e do trabalho (FRANÇA; PAGLIUCA, 2007). Diversos trabalhos
mostram este choque entre o que já foi conquistado em termos de legislação e o que de fato
ocorre:
78
Especificamente a Lei nº 8.213 de 1991 que determina uma cota de vagas para pessoas com deficiência,
variando de 2 a 5 % junto a empresas privadas com mais de 100 funcionários. Há também a Lei nº 8.112 de 1990
que define em até 20% o percentual de vagas em concursos públicos. Os trabalhos analisados na amostra se
referiam à legislação de cotas na iniciativa privada.
99
Percebe-se, assim, que o período de 2007 a 2011 foi relevante para o tema da
deficiência quanto à elaboração de dispositivos legais. No entanto, a produção acadêmica de
investigações sobre questões de inclusão e acessibilidade neste período demonstra que as
práticas regulamentadas por tais dispositivos legais não acompanharam esta transformação.
Os exemplos citados de trabalhos deixam claro este descompasso.
100
Ciências da saúde 18 8 31 39 18 10 11
Ciências humanas 5 1 23 24 1 11 12
Ciências da saúde e
ciências humanas 3 1 4 5 - 4 1
26 10 58 68 19 25 24
% da amostra 27,7% 10,6% 61,7% 100% 27,9% (*) 36,8% (*) 35,3% (*)
(*): percentuais relativos ao total de artigos que fazem referência a algum modelo/perspectiva da deficiência (n=68).
Fonte: A autora, 2013.
79
Ver Apêndice D - Instrumento de análise dos artigos pesquisados. A pergunta n.29 do questionário lista
justamente estes elementos. Os itens 1, 3, 5 e 7 são elementos característicos do modelo médico da deficiência.
Já os itens 2, 4, 6, 8 e 9 se referem ao modelo social. Dependendo da combinação entre estes itens a resposta
pode indicar a adoção de uma perspectiva mais para um lado ou para o outro, ou então, se resultar em uma
combinação equilibrada, de uma perspectiva integracionista.
101
ciências da saúde
14 54 32
ciências humanas referência explícita
3 79 17 referência implícita
ciências da saúde e não faz referência
13 50 38
ciências humanas
#(" &#(" %##("
modelo médico
35,3% 27,9%
modelo social
36,8% perspectiva integracionista
ciências da saúde
14 54 32
ciências humanas referência explícita
3 79 17 referência implícita
ciências da saúde e não faz referência
13 50 38
ciências humanas
#(" &#(" %##("
Já a distribuição dos modelos na área das ciências humanas seguiu um outro arranjo.
Apenas 1 artigo adota o modelo médico como paradigma da deficiência (OLIVEIRA;
MARQUES, 2005) e poucos são os trabalhos que não fazem referência a modelos de
deficiência. Há uma distribuição equilibrada entre a quantidade artigos que abordam a
deficiência a partir do modelo social e de artigos que adotam perspectivas integracionistas
para a abordagem da deficiência.
Considerando a atual transição entre paradigmas da deficiência, expressa no panorama
internacional e na legislação brasileira (que vem sendo reformulada para atender às diretrizes
da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência), os trabalhos na área das
ciências humanas apresentam maior sintonia com este processo. Na verdade, há uma forte
relação entre a dimensão temporal e a crescente presença do modelo social da deficiência e de
vertentes integracionistas no discurso acadêmico brasileiro, tributária de um aumento na
publicação de trabalhos na área de ciências humanas. Isso indica que embora a deficiência
seja “um tema ainda periférico nas ciências humanas e sociais” (MELLO; NUENBERG,
2012) e, mesmo não havendo no país um campo específico dedicado ao tema de modo
transversal tal o campo dos Estudos sobre Deficiência (BAMPI ET AL., 2010; MELLO;
NUERNBERG, 2012), a deficiência tem se tornado um objeto de interesse das ciências
humanas. O aparecimento de publicações sobre a deficiência na área das ciências humanas
coincide com a elaboração de instrumentos legais no país que contemplam os fatores sociais
da deficiência (BRASIL, 2011a; LANNA JR., 2010). Ver gráfico 8 (Publicações por área a
por ano):
11 ciências da saúde
2
1
4
4 1
7 2
10 9
2 7 7
1 6 6
2 2 2 3 3
1
perspectivas integracionistas
modelo social
8 modelo médico
sem referência
4 5
1 3
3
1
2 5 2 3
6 5
9 2 1
3 3
2 1 4 2 4
2 1 2 2 1 2
1 1 1 1 1
De modo geral, a parcela de trabalhos cujos pontos de vista combinam elementos tanto
do modelo médico como do modelo social da deficiência é significativa na amostra. As
perspectivas integracionistas correspondem a 35,3% do total de artigos que adotam algum
modelo/perspectiva da deficiência (ver gráfico 6). Tal fato pode ser indicativo de uma maior
aproximação entre os modelos mais tradicionais e de uma concepção de deficiência que leve
em conta tanto a dimensão dos impedimentos corporais como da opressão social.
De modo geral, temas em saúde tiveram uma frequência alta na amostra, mesmo em
trabalhos cujo assunto principal não era a saúde. A presença de temas da saúde foi marcante
especialmente em artigos que discutiam questões da esfera do direito (ELIAS et al., 2008;
FRANÇA; PAGLUICA, 2009; LAMONICA et al., 2008; SAMPAIO et al., 2003; SANTOS,
2011).
A seguir, farei uma breve apresentação das categorias mais frequentes nos campos
temáticos da saúde, do direito e da educação, assim como o modo que cada modelo ou
perspectiva comparece nestes campos.
1) Temas em saúde
80
A área da saúde se mostrou um tema bastante relevante nesta amostra: não apenas muitos artigos estavam
indexados pelo DeCS “saúde da pessoa com deficiência”, bem como a maior parte dos trabalhos foram
publicados em periódicos das ciências da saúde. As temáticas mais comuns nas narrativas de toda a amostra
também se relacionavam ao universo da saúde.
107
deficiência. A distribuição geral na amostra dos temas em saúde está na tabela 4 - temas em
saúde.
“(…) o acesso das pessoas com deficiência, com segurança, autonomia e igualdade
de condições com os demais, ao ambiente físico, espaços, equipamentos urbanos,
edifícios, serviços de transporte, sistemas de informações e comunicação, inclusive
109
2) Temas em direito:
A categoria em direito mais frequente nos artigos pesquisados foi “legislação sobre
deficiência”. A análise dos tipos de deficiência mencionados nos artigos que abordavam a
legislação sobre deficiência mostrou que esta categoria obteve a maior frequência em cada um
dos tipos de deficiência. A deficiência física teve o maior número de menções (15 artigos),
seguida pela deficiência visual (mencionada em 10 artigos), deficiência auditiva (com
menções em 9 artigos) e deficiência intelectual (7 artigos). Nenhum dos trabalhos que
discutiam aspectos da legislação sobre deficiência tinha como fundamentação o modelo
médico da deficiência. Dos 30 trabalhos analisados que abordavam a categoria “legislação”,
16 artigos se pautavam no modelo social da deficiência e 14 artigos adotavam alguma
perspectiva integracionista. A distribuição geral na amostra dos temas em direito está na
tabela 5 - temas em direito.
111
3) Temas em educação
A categoria em educação com maior número de menções nos artigos pesquisados foi
“barreiras para o acesso à educação”. As barreiras representadas nesta categoria dizem
respeito, principalmente, às barreiras atitudinais. Trata-se da expressão de uma “ideologia de
112
opressão aos deficientes”81 (CAMPBELL, 2008, 2009;DINIZ, 2007). Esta categoria foi a que
obteve maior frequência de menções em cada um dos tipos de deficiência. Já a segunda
categoria temática em educação mais frequente foi “avaliação positiva da educação
inclusiva”, tanto no âmbito geral da amostra, como nas distribuições em cada um dos tipos de
deficiência. A distribuição geral na amostra dos temas em educação está na tabela 6 - temas
em educação.
Tal como no caso dos temas em saúde e em educação, a deficiência física teve o maior
número de menções (8 menções). Os outros três tipos de deficiência (visual, intelectual e
auditiva) se mantiveram cada um com 5 menções. Nenhum dos trabalhos que discutiam as
barreiras para o acesso à educação tinha no modelo médico da deficiência sua fundamentação
teórica. Dos 18 trabalhos que abordavam a categoria “barreiras ao acesso à educação”, 9
artigos adotavam perspectivas integracionistas, 8 artigos se baseavam no modelo social da
deficiência e 1 artigo não fazia qualquer referência à adoção de um modelo teórico (na
verdade, neste trabalho a deficiência era um tema periférico).
Ao se comparar as três áreas temáticas - saúde, direito e educação - fica claro que cada
uma delas privilegia um determinado sentido da noção de barreira. Nos trabalhos que
abordavam temas em saúde a concepção de barreira descreve uma dificuldade localizada no
corpo, sob a forma de impedimento ou lesão. Já os trabalhos que se ocupam de temas mais
voltados para o direito apresentam a noção de barreira como sendo a materialidade hostil do
ambiente. Nos artigos que abordam temas em educação, a noção de barreira expressa a
“ideologia de opressão ao deficiente” (CAMPBELL, 2008, 2009; DINIZ, 2007). Neste caso, o
81
proposta de Débora Diniz para a tradução do termo disablism.
113
fator etiológico da deficiência não está primariamente nem no corpo, nem no ambiente: a
origem da deficiência é atribuída ao preconceito contra categorias da diferença humana.
82
Em muitos artigos que abordavam estas condições não havia uma uniformidade quanto ao uso dos termos o
que inviabilizou a distinção entre elas. Por isso, neste trabalho, “deficiência intelectual” e “deficiência mental”
foram agrupadas em uma mesma categoria. No entanto, há uma distinção conceitual entre estas duas condições.
De acordo com Mello e Nuenberg, “deficiência mental se refere às pessoas com ‘sequelas de transtorno mental,
de acordo com a Lei n.10.216/2001’. De fato, segundo a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência, as pessoas com sofrimento mental também são consideradas pessoas com deficiência, sob a
tipificação de ‘deficiência mental’, para diferencia-la de deficiência intelectual, esta última alusiva a uma parte
específica do funcionamento do intelecto, e não de toda a mente” (MELLO; NUENBERG, 2012, p. 637).
83
Se compararmos esses dados com os achados do Censo Demográfico de 2010 (Brasil, 2012) veremos que há
uma diferença quanto ao tipo de deficiência que é mais prevalente. Possivelmente isso se deve ao recorte
metodológico que utilizei nesta pesquisa. Mas, no entanto, também pode ser devida a variações na visibilidade
de determinados tipos de deficiência enquanto objeto de estudo acadêmico/científico.
A análise dos resultados referente às pessoas com deficiência do Censo 2010 mostrou que tipo de deficiência
mais comum na população brasileira é a deficiência visual (18,8%), seguida da deficiência física/motora (7,0%),
deficiência auditiva (5,1%) e deficiência intelectual (1,4%) . Mesmo quando se toma o quantitativo de pessoas
que se auto declararam com deficiência grave, esta distribuição se mantém.
84
A construção de uma identidade (coletiva) da deficiência e a instauração de uma política identitária que almeje
à reivindicação de direitos, assim como o confronto à opressão, estão diretamente relacionados a dispositivos de
subjetivação nos quais o poder incide sobre os corpos, tal como descrito pelo instrumental foucaultiano do poder.
O desenvolvimento da agência, assim como a constituição de um movimento político identitário, pode decorrer
de um efeito de reflexibilidade do saber produzido a partir de dispositivos de poder.
115
Estes dois pontos de vista distintos aparecem claramente na amostra analisada. Dentre
os trabalhos que não faziam menção a um tipo específico de deficiência, a maioria se alinhava
ao primeiro ponto de vista, no qual a reunião da diversidade de condições que compõem o
universo da deficiência em uma única categoria é deliberada, visando a consolidação de uma
certa identidade grupal, com apoio em perspectivas teóricas do modelo social da deficiência e
em sintonia com discussões do campo dos Estudos sobre Deficiência. Neste trabalhos, as
pessoas com deficiência são tomadas como uma minoria cujos direitos humanos estão sendo
violados, e a unificação em uma categoria visa a consolidação de uma identidade com fins
políticos (BAMPI et al., 2010;BERNARDES et al., 2009; CARVALHO-FREITAS;
MARQUES, 2009; CROCHIK et al., 2009; CRUZ et al., 2007; DI NUBILA; BUCHALLA,
2008; FARIAS E BUCHALLA, 2005; FRANÇA et al., 2003;FRANÇA et al., 2008;
LAMONICA et al., 2008; LOMONACO et al., 2006; MARQUEZAN, 2008; OTHERO;
DALMASO, 2009; RECHINELI et al., 2008;SAMPAIO; LUZ, 2009; TANAKA; MANZINI,
2005;VASCONCELOS E PAGLIUCA, 2006).
No entanto, no outro grupo, composto por trabalhos que não faziam qualquer alusão a
um tipo específico de deficiência, havia uma heterogeneidade de posicionamentos quanto à
deficiência enquanto uma categoria: alguns trabalhos não tinham a deficiência como temática
principal e, portanto, se ocupavam do assunto de modo tangencial e superficialmente
(AMENDOLA et al., 2011;FERNANDES; GARCIA, 2009;MESQUITA et al.,
2008;TRIGUEIRO et al., 2011). Além destes trabalhos, havia também aqueles nos quais a
deficiência era tomada como um fenômeno dado, objetivado, sem qualquer perspectiva que
levasse em conta a questão da identidade na deficiência e sua interface com o campo dos
116
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante deste alerta, o campo da Saúde Coletiva não deveria se esquivar da importância
das contribuições dos Estudos sobre Deficiência, não apenas ao que concerne à encampar o
tema da deficiência em seus debates e tomá-lo como objeto de investigação e de ações
políticas, mas, também em assimilar em seu repertório teórico as discussões do campo dos
85
Que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista.
120
Estudos sobre Deficiência. A aproximação deste campo traria para a Saúde Coletiva um
instrumental teórico para pensar questões sobre as quais já se ocupa. O paradigma do modelo
social da deficiência e as contribuições de perspectivas integracionista podem enriquecer o
olhar da Saúde Coletiva sobre, por exemplo, os debates quanto às fronteiras entre
normalidade e anormalidade, saúde e doença, e, fundamentalmente, déficit e diferença.
A deficiência é, de fato, um objeto de investigação científica no Brasil - em diversas
áreas do conhecimento. No entanto, a sua abordagem enquanto um objeto complexo ainda se
mostra limitada no discurso acadêmico brasileiro. Uma abordagem complexificada da
deficiência - conforme a proposta do campo dos Estudos sobre Deficiência - tem o potencial
tanto de gerar aportes teóricos, como e detectar falhas na implantação de políticas de
promoção de direitos humanos das pessoas com e sem deficiência.
121
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19. Temas abordados na área da educação 29. Que elementos indicam a adoção de um
1. Avaliação negativa da educação inclusiva modelo ou perspectiva
2. Avaliação positiva da educação inclusiva 1. Diferença corporal/funcional como fator
3. Avaliação negativa da educação especial etiológico da deficiência
2. Barreiras descapacitantes como fator
4. Avaliação positiva da educação especial
etiológico da deficiência
5. Proposta pedagógica mista 3. Foco no indivíduo
6. Barreiras para acesso à educação 4. Foco na sociedade
7. Outro tema 5. Intervenções sobre o indivíduo
6. intervenções na sociedade
20. Se “outro tema na educação”, informar 7. Discurso do déficit
8. discurso da diferença
21. Temas abordados em pesquisa científica 9. diferença corporal/funcional como critério
identitário
1. Pesquisa sobre etiologia da deficiência
10. Outro
2. pesquisa sobre prevenção da deficiência
3. pesquisa sobre tratamento e/ou cura
4. Desenvolvimento de tecnologia de 30. Se “outro elemento”, informar
reabilitação e/ou adaptação
5. Outro tema
Ciências da
Revista CEFAC 1982-0216 CEFAC Saúde e Educação 33 1
saúde