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Urá Lobato Martins*

Direitos humanos
e multiculturalismo: um desafio
para a construção do conceito
de dignidade da pessoa humana
Resumo: O artigo analisa os pontos sensíveis decorrentes da relação entre os direitos humanos e o
multiculturalismo. Para tanto, será estudado o conceito de Geertz sobre o etnocentrismo e o relati-
vismo, com o fim de demonstrar a contribuição do autor para a construção do conceito de dignida-
de da pessoa humana, sem violar os direitos humanos e a diversidade cultural. O presente artigo
demonstrará as limitações de percepção e entendimento provocadas pela visão etnocêntrica.
Palavras-chave: Direitos humanos. Multiculturalismo. Dignidade. Geertz.

Human rights and multiculturalism: a challenge for the construction of the concept of human
dignity of person
Abstract: The article analyzes the current sensitive points of the relationship between human rights
and multiculturalism. Therefore, the concept of Geertz on etnocentrism and relativism will be
studied, in order to demonstrate the author’s contribution for the construction of the concept of
human dignity, without violating human rights and cultural diversity. The present article will show
the limitations of perception and understanding caused by the ethnocentrical vision.
Key words: Human rights. Multiculturalism. Dignity. Geertz.

Considerações iniciais
Estamos inseridos num mundo globalizado, razão pela qual as ques-
tões que emergem dentro de uma sociedade possuem repercussão interna-
cional. Nesse contexto, torna-se importante o debate sobre os direitos hu-
manos e o multiculturalismo.
Para que seja atribuído sentido aos direitos humanos, é necessário
analisar alguns pontos sensíveis ligados ao presente tema, quais sejam:
Quais são as limitações oriundas da visão etnocêntrica? Como deve ser
construído o conceito de direitos humanos sem violar a cultura das socie-

* Mestra em Direito pela Universidade Federal do Pará. Advogada. uramartins@ig.com.br.

Revista do Curso de Direito da FSG Caxias do Sul ano 3 n. 5 jan./jun. 2009 p. 177-185
dades que possuem conceitos morais distintos? Diante de diferentes visões
de mundo, como pode ser construído o conceito vida digna?
Para responder a tais questões, será utilizada a contribuição doutriná-
ria de Geertz.

1 Limitações de percepção e entendimento provocadas


pela visão etnocêntrica
Cabe ressaltar que o direito e a antropologia são ciências orientadas
para a prática, apesar de adotarem técnicas e pressupostos distintos. É es-
sencial analisar a contribuição da antropologia para o estudo de questões
jurídicas que envolvem o homem.
Sabe-se que os povos, até hoje, não chegaram a uma conclusão do que
seja uma vida digna. Sobre esta questão, Geertz afirma que a rendição fácil
ao comodismo de sermos apenas nós mesmos, cultivando a surdez, será
fatal para as tradições intelectuais do estudo científico da diversidade cultu-
1
ral e do liberalismo burguês pós-moderno.
Na realidade, o problema do etnocentrismo2 é que ele nos impede de
analisar o outro de acordo com seu sistema de valores. Isso porque a per-
cepção de um fato depende do sistema de referência adotado pelo sujeito.
Caso do índio bêbado e da máquina de hemodiálise3
para demonstrar que os médicos desconsideraram o sistema de crenças e
valores do índio, ao entenderem que a sua conduta estava errada, pelo fato
de o índio ter utilizado a máquina de hemodiálise sem deixar de ingerir
bebidas alcoólicas. Ou seja, tais médicos julgaram a conduta do índio de
acordo com uma visão etnocêntrica.
Para o referido o autor, não é a incapacidade de as pessoas envolvidas
abandonarem suas próprias convicções e adotarem as ideias dos outros que
faz a história mencionada ser deprimente, mas sim, o fato de as pessoas
sequer imaginarem a possibilidade de se contornar uma assimetria moral.4
1
GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 73.
2
“Etnocentrismo é uma visão onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos
os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições
do que é a existência” (ROCHA, Everardo. O que é etnocentrismo? São Paulo: Brasiliense, 2004.
p. 07).
3
Após conseguir uma máquina de hemodiálise, apesar deste equipamento ser escasso, o índio
recusou-se a parar de beber, o que foi visto pelos médicos como um fato errado, pois o índio es-
taria impedindo o acesso ao referido aparelho por outras pessoas que poderiam aproveitar me-
lhor os seus benefícios.
4
GEERTZ, op. cit., p. 78.

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O autor ensina que compreender não significa concordância de opi-
niões, mas sim uma possibilidade de percepção e discernimento. Por tal
motivo, Geertz não ignora a dificuldade de compreender aquilo que seja
entranho ao indivíduo, mas defende que é através do fortalecimento da
capacidade de apreender o que está diante de nós que residem os usos da
diversidade e do estudo da diversidade.5
Dessa forma, Geertz afirma que não compartilha como o mesmo pen-
samento do Índio Bêbado, mas tem simpatia sentimental por ele, em vir-
tude do preço que o índio teve que pagar para conquistar o direito às suas
6
opiniões.
Sabe-se que os direitos humanos devem ser aplicados com o fim de
garantir uma vida digna aos homens, porém os atos praticados por outras
sociedades não podem ser analisado de acordo com uma visão etnocêntrica.
Ao contrário, deve ser respeitado o direito de cada ser humano adotar o
sistema de valores que entende coerente. Caso contrário, estaremos retro-
cedendo, impondo nossa cultura de forma autoritária e injusta.

2 Relativismo e direitos humanos


O relativismo7 pretende impedir que nossa percepção seja prejudicada
ao restringirmos tudo em razão de nossas escolhas internalizadas e valoriza-
das de nossa própria sociedade.
Geertz assevera que a Antropologia procura examinar, compreender
as implicações existentes nas pesquisas antropológicas, sem procurar rejeitar
ou “domesticar” o objeto de estudo.8

5
GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 84.
6
Id., ibid., p. 85.
7
“Mas, existem ideias que se contrapõem ao etnocentrismo. Uma das mais importantes é a de
relativização. Quando vemos que as verdades da vida são menos uma questão de essência das coi-
sas e mais uma questão de posição, estamos relativizando. Quando o significado de um ato é vis-
to não na sua dimensão absoluta mas no contexto em que acontece, estamos relativizando.
Quando compreendemos o ‘outro’ nos seus próprios valores e não nos nossos, estamos relativi-
zando. Enfim, relativizar é ver as coisas do mundo como uma relação capaz de ter tido um nas-
cimento, capaz de ter um fim ou uma transformação. Ver as coisas do mundo como a relação
entre elas. Ver que a verdade está mais no olhar que naquilo que é olhado. Relativizar é não
transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem ou mal, mas vê-la
na sua dimensão de riqueza por ser diferença” (ROCHA, op. cit., p. 20).
8
GEERTZ, op. cit., p. 65.

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Talvez os conflitos gerados por diferenças étnicas, políticas e religiosas
poderiam ser evitados se cada um tentasse compreender o outro sem rejei-
tar de imediato seu pensamento.
Cabe destacar que o próprio Brasil, em toda a sua história,9 apresenta
exemplos patentes de violações aos direitos humanos. Na realidade, tais
violações permanecem até hoje.
Atualmente, a Constituição Brasileira de 1988 prevê alguns dispositi-
vos que protegem os índios, dentre os quais, podemos citar o art. 3º, IV,
art. 4º, III, art. 129, V, art. 215, art. 231 da CF/88.
Contudo, a violação aos direitos dos índios ainda não cessou. Ao con-
trário, muitas terras indígenas têm sido invadidas por grileiros, e outros
tipos de indivíduos, com o intuito de roubar suas riquezas com a desculpa
que índios não precisam de terras, ou então, que eles possuem até demais
para as suas necessidades. Além disso, o próprio governo brasileiro, com
base em discurso desenvolvimentista, tem realizado abertura de estradas
que cortam terras indígenas, sem avaliar os impactos que serão causados
10
aos povos daquela região.
Ora, enquanto ficarmos analisando outras sociedades através de nos-
sas lentes, ou seja, de acordo com o nosso sistema de valores, jamais pode-
remos entender a necessidade de se respeitar a diversidade cultural.
Geertz ressalta que a atração pelo que não se enquadra e não se con-
forma representa o fio condutor da história cultural dos “tempos moder-
nos”, considerando que os pensamentos vêm tentando descobrir como
continuar vivos sem as certezas que os desencadearam. É por isso que o
referido autor afirma que a filosofia, a arte, a teoria política e antropologia

9
“A subjugação cultural e econômica consistia em promover uma integração forçada, religiosa e
econômica. Ou isso, ou a destruição [...] A criação dos Estados nacionais latino-amercianos, se-
guindo o modelo europeu, se deu com a redação de uma Constituição que estabelecida um rol
de direitos e garantias individuais. Isto significou o esquecimento de seus índios e a omissão de
qualquer direito que não fosse a possibilidade de aquisição patrimonial individual. Portanto, aos
índios sobrou como direito a possibilidade de integração como indivíduo, como cidadão, ou, ju-
ridicamente falando, como sujeito individual de direitos. Se ganhava direitos individuais, perdia
o direito de ser povo” (SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Multiculturalismo e direi-
tos coletivos. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmo-
politismo muticultural. São Paulo: Afrontamento, 2004. p. 61).
10
Atualmente existe o projeto de asfaltar a BR 163, que liga Cuiabá a Santarém, contudo, existem
áreas indígenas neste local. Evidencia-se que a história se repete, pois no passado o governo brasi-
leiro abriu a referida estrada, o que ocasionou a morte de muitos índios (Panará), sendo que os
sobreviventes passaram a viver de esmola (SOUZA FILHO, op. cit., p. 28-69).

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conseguiram se perpetuar, pois não tentam se agarrar ao que um dia fun-
cionou.11
Eis a grande contribuição do trabalho de Geertz para o estudo dos
Direitos Humanos, quando assevera que, “se quisermos ser capazes de jul-
gar com largueza, como é óbvio que devemos fazer, precisamos torna-nos
capazes de enxergar com largueza”.12
Ao vincular o direito com a antropologia, Geertz não visa criar uma
disciplina central, mas sim busca uma consciência maior e mais precisa do
que a outra disciplina significa.
Evidencia-se, portanto, que é de suma importância a busca por temas
específicos que sejam semelhantes para a antropologia e para o direito.
Para que seja atingida esta meta, é necessária a utilização de um mé-
todo hermenêutico entre os dois campos, para que seja analisado cada pen-
samento, a fim de se formularem questões morais, políticas e intelectuais
13
que sejam importantes para as duas ciências.
A comparação de saberes locais, através de um relativismo que funde
processo de autoconhecimento, autopercepção e autoentendimento com os
processos de conhecimento, percepção e entendimento do outro, permite
que nossas consciências relutantes aceitem visões discordantes de como as
14
representações alheias devem ser feitas.
O conceito do que seja certo ou errado depende do sistema de valores
construído em cada sociedade, em determinado tempo.

3 Direitos humanos e multiculturalismo


De início, cabe demonstrar a diferença existente entre multicultura-
lismo e pluralismo. O multiculturalismo resulta na existência de diferentes
culturas e tradições, em um país, região ou local. O pluralismo é uma ca-
racterística de sociedades livres, que aceitam a existência de pensamentos
diferentes.15

11
GEERTZ. op. cit, p. 65-66.
12
GEERTZ. op. cit., p. 85.
13
GEERTZ, Clifford. O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa. In: O saber local:
novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 253.
14
Id., ibid., p. 272.
15
A Constituição Federal do Brasil de 1988 prevê em seu art. 1º, V, que a República Federativa do
Brasil constitui-se num Estado Democrático de Direito e tem como fundamento o pluralismo
político.

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Contudo, é preciso o estabelecimento de um meio-termo, razão pela
qual não podemos adotar uma postura radical, no sentido de entender que
tudo o que é fruto de uma cultura deve ser aceito. Por tal motivo, deve ser
respeitado o direito das pessoas de terem ideias diversas, porém, torna-se
necessário o respeito a valores universais mínimos em favor dos seres hu-
manos, sem os quais a própria preservação do homem sofrerá risco. Em
outras palavras, precisamos conhecer e compreender o outro, sem ter a
obrigação de aderir aos seus pensamentos e crenças.16
Tal visão é fundamental para a construção do conceito dos Direitos
Humanos, pois o respeito aos direitos dos homens dependerá, justamente,
da compreensão do outro como um ser que possui pensamentos e crenças
diferentes. Logo, é incorreto afirmar que apenas um tipo de pensamento é
o correto.
17
Geertz tenta combater o etnocentrismo, que representa o preconcei-
to acrítico em favor do próprio grupo e uma visão distorcida e preconcei-
tuosa em relação aos demais. Para tanto, Geertz levanta uma questão im-
portante sobre os Direitos Humanos, na medida em que tenta apresentar o
conflito entre o relativismo e o universalismo dos direitos humanos.
O referido conflito faz surgir a seguinte indagação: como deve ser
construído o conceito de direitos humanos sem violar a cultura das socie-
dades que possuem conceitos morais distintos? Geertz apresenta uma res-
posta à referida questão, no sentido de que o relativismo pretende impedir
que nossa percepção seja prejudicada ao restringirmos tudo em razão de
nossas escolhas internalizadas e valorizadas de nossa própria sociedade. Tal
medida impede a adoção de posições radicais. O mesmo autor apresenta
questões importantes não só pelo fato de apresentar a importância do rela-
tivismo, mas também por propiciar o debate sobre a questão do conflito
existente entre diversidade cultural e direitos humanos. Como ressalta o
autor, imaginar a diferença continua a ser uma ciência da qual todos preci-
samos, pois o momento atual requer um pensamento que trate sobre a
diversidade de modo diferente.18
Diante de diferentes visões de mundo, como pode ser feita a afirma-
ção do que represente uma vida digna? Através de uma visão etnocêntrica,

16
GEERTZ, Nova luz sobre antropologia, op. cit., p. 84.
17
A partir do século XV, as sociedades europeias se defrontaram com outras sociedades e percebe-
ram que estas não eram feitas à sua imagem, o que provocou a destruição de modos de vida e de
pensamentos diferentes dos compartilhados por aqueles que tinham a cultura europeia.
18
GEERTZ, Nova luz sobre antropologia, op. cit., p. 82.

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iríamos rejeitar, de imediato, a prática da mutilação genital feminina,19 por
entender que tal prática viola a dignidade da mulher. Mas se tentarmos
compreender como se processa o pensamento do outro, poderíamos adotar
postura diversa. Isso porque a imposição de limites para a cultura de um
povo também consiste num ato atentatório à dignidade da pessoa humana.
Dessa forma, caso uma organização mundial impedisse que certos grupos
realizassem uma prática cultural, poderia desencadear uma espécie de tor-
tura mental, na medida em que estas pessoas iriam ser impedidas de prati-
car um ato que para elas era importante.
A compreensão de atos como a mutilação genital feminina só poderá
ocorrer se nos despirmos de nossa visão. Não pretendo afirmar que temos
que aceitar a referida prática, apenas defendo que é possível compreendê-la.
A questão existente entre o multiculturalismo e os direitos humanos
torna-se mais complicada quando se trata da adoção de práticas que colo-
quem em risco a vida humana. Isso porque a cultura de cada povo deve ser
respeitada, mas a necessidade de perpetuação da vida humana deve sempre
prevalecer.
Portanto, caso fosse confirmado que a prática da infibulação estivesse
gerando a morte de milhares de mulheres, entendo que caberia uma inter-
venção a fim de evitar a destruição daquela sociedade.
Contudo, existe uma linha tênue entre a necessidade de intervenção e
a necessidade de se respeitar a cultura alheia.20 Sabe-se que, se não existisse
cultura, não existiria a sociedade. Porém, quando forem adotadas práticas
radicais que possam colocar em risco a vida humana deve ser feita uma
intervenção. De fato, é difícil construir um conceito de vida digna em face
do multiculturalismo. Contudo, deve ser resguardada uma pauta mínima
de direitos humanos, a fim de garantir que todos os seres humanos possam
viver de forma digna, isto é, que seja respeitado o seu direito de ter condi-
ções básicas para viver e ser livre.
Sobre o tema, leciona Brito Filho:

19
Algumas culturas entendem que os órgãos genitais femininos são “impuros” e precisam ser
purificados – sendo extirpados. Assim, somente os homens teriam o direito de desfrutar o prazer
sexual. É uma prática muito frequente em algumas partes da África. Tal prática é rejeitada pela
civilização ocidental.
20
A título de exemplo, a intervenção caberia no caso de genocídios, bem como no caso do sistema
de castas estabelecido na Índia, pelo fato de serem violações aos direitos humanos. Cabe ressaltar
que o sistema de castas foi abolido através da Constituição Indiana de 1949, mediante cláusula
que declarou ilegal o conceito de que existia uma casta de “intocáveis”. No entanto, a abolição
formal, obviamente, não significou o fim do sistema de castas na Índia.

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Há uma ordem internacional para os direitos humanos, isso é um fato e uma
necessidade. Ela, entretanto, deve ser estabelecida em cima de uma pauta mí-
nima, que possa ser tida efetivamente como universal e, em certos aspectos, do-
tada de flexibilidade suficiente para respeitar a adoção, em culturas distintas, de
21
modos distintos de viabilizar direitos.
Portanto, os direitos humanos geram direitos a todos os seres huma-
nos, independente de sua raça, religião, sexo, etc.

Considerações finais
Geertz trouxe contribuição para o estudo dos Direitos Humanos, pois
demonstra que a visão etnocêntrica impede que seja respeitado o direito à
diversidade cultural, impossibilitando não só a compreensão do outro,
como também retira a possibilidade de mudarmos de ideia.
Na realidade, os Direitos Humanos e o Multiculturalismo represen-
tam um desafio para a construção do conceito de vida digna, pois, confor-
me já salientado anteriormente, é complicado construir um conceito de
direitos humanos em virtude das sociedades possuírem conceitos morais
distintos.
Cabe ressaltar que o presente artigo não pretende esgotar o assunto,
pois apenas visa encontrar possíveis soluções para o problema mencionado.
Nesse sentido, entendo que, quando um país aceita ser signatário de um
Tratado de Direitos Humanos, passa a integrar uma sociedade internacio-
nal, comprometendo-se a respeitar alguns direitos básicos do ser humano.
Tal fato, por si só, é contraditório, pois cada sociedade tem o seu pró-
prio conceito do que seja justiça, dignidade, direito, etc, razão pela qual é
complicado analisar os termos de uma Declaração Universal de Direitos
Humanos apenas de acordo com a visão individual de cada um, desprezando
a possibilidade de existência de crenças e pensamentos diversos. Ou seja,
interpretar um pensamento diverso de acordo com sua própria cultura.
Contudo, não há como esquecer que vivemos no mesmo mundo.
Dessa forma, caso uma sociedade adote uma prática que coloque em risco
a vida humana, como por exemplo, a prática de uma atividade que provo-
que dano ao meio ambiente, o que irá afetar não somente aquela socieda-
de, mas também o mundo inteiro, entendo que a prática cultural terá que
ceder em nome de uma causa maior: a necessidade da perpetuação da espé-

21
BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Direitos humanos e discriminação no Brasil. Direi-
tos fundamentais e relações sociais no mundo contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2006. p. 224.

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cie humana. Eis o grande fundamento em favor da universalidade dos di-
reitos humanos.
Portanto, o dilema entre os direitos humanos e o multiculturalismo
sempre irá existir, mas a necessidade de garantir a vida dos homens irá fun-
damentar a aplicação dos Direitos Humanos com conotações universais.
No entanto, é primordial que ocorra o respeito à diversidade cultural,
uma vez que cada homem possui o direito de adotar o sistema de crenças
que entende correto e coerente, porém, o direito à diversidade cultural não
pode prevalecer em relação ao direito a uma vida digna.

Referências
BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Direitos humanos e discriminação no Brasil. Direitos
fundamentais e relações sociais no mundo contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2006.
GEERTZ, Clifford. O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa. In: O saber local:
novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1998.
______. Nova luz sobre antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
ROCHA, Everardo. O que é etnocentrismo? São Paulo: Brasiliense, 2004.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Multiculturalismo e direitos coletivos. In: SANTOS,
Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. São
Paulo: Afrontamento, 2004.

Recebido em 17/11/2009, aprovado em 25/02/2010.

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