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RIBEIRO, Luiz Dario - Tuareg, Os Homens Azuis Do Sahara
RIBEIRO, Luiz Dario - Tuareg, Os Homens Azuis Do Sahara
Resumo
Este artigo se propõe a examinar a trajetória dos Tuareg, um dos povos nômades do
Sahara, procurando resgatar sua ancestralidade e historicidade, na medida em que busca
explicar sua presença no comércio do ouro nas rotas transaarianas, e seu papel na
expansão do islamismo no continente africano. Em seu desenvolvimento, realça os
pressupostos capazes de explicar as rupturas e as persistências que contextualizaram seu
processo histórico.
1 Introdução
7
KI-ZERBO, J. (Coord.). História da África Negra. In: HRBEK. I. As fontes escritas a partir o
século XV. São Paulo: Ática, 1980. v. I, (cap. 6), p. 139.
8
Conforme o texto, em espanhol, “[..] entre los cuales no hay nada de bueno” (IBN BATTUTA.
Através del Islam. Madrid: Allianza, 1987, p. 792).
9
Conforme texto, em espanhol, “Uno de sus principales salió a nuestro encuentro y detuvo la caravana
hasta que se comprometieron a pagarle en telas y otros objetos por dejarnos pasar” (Ibid., p. 792).
10
Conforme o texto, em espanhol, “Em el siglo XIX surgieron dos historiografias mutuamente
hostiles referidas a esse ámbito de difícil definicion que constituye el Maghreb, la colonial y la
nacionalista” (LAROUI, Abdallah. Historia del Magreb, desde los orígenes hasta el despertar
magrebí. Madrid: Mapfre, 1994, p. 1).
11
Conforme o texto, em espanhol, “visión que um magrebí tiene de su propia tierra” (Ibid., p. 14).
12
O autor se refere à obra The United States and North Africa, de E. G. Gallagher, na qual,
define o Maghreb como “zona que no produce ideas” (Ibid. , p. 33).
13
O autor se refere à obra Histoire Ancienne, de Gsell, p. 236-274 (Ibid., p. 104).
14
Sahel, em árabe significa “costa”, “margem” ou “litoral”. Conforme a explicação de
Alberto da Costa e Silva, Sahel é a “praia do deserto”, cujos limites se alargam ou se
retraem, de acordo com o volume e a distribuição das chuvas (SILVA, Alberto da Costa e. A
enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 13).
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Para reafirmar a presença dos Tuareg no referido contexto, este estudo
priorizou as imagens cartográficas contidas no “Atlas Catalão”15 e a menção
de Vilar ao analisar a procedência do ouro africano:
2 Sahara
24
SILVA, 1996, p. 18.
25
Os Tuareg preferem uma espécie de camelo mais magra, mais ágil e mais alta que a comum,
conhecida pelo nome de Mehari. Alguns autores não fazem distinção entre “camelo” e
“dromedário” e usam tanto um termo quanto o outro em seu texto, como é o caso de Alberto
Costa e Silva. Enquanto P. Salama explica que “trata-se mais exatamente do dromedário,
originário do Oriente Próximo” (Ibid., p. 249); (MOKHTAR, G. (Coord.). A África Antiga. In:
SALAMA, P. O Saara durante a antiguidade clássica. São Paulo: Ática, 1980. v. II, p. 543, cap. 20).
26
Os camelos sempre foram muito bem cotados nos mercados freqüentados pelos povos do
deserto, e a riqueza de um indivíduo era contabilizada de acordo com o número de camelos
que ele possuía. Noção que ainda hoje permanece na cultura destes povos.
27
SILVA, op. cit., p. 249.
28
Por convenção, o termo Neolítico é empregado para designar o aparecimento de novas
técnicas, em particular a arte da cerâmica, o polimento da pedra, o início da domesticação
de animais, a agricultura e a urbanização.
29
MOKHTAR, 1980, p. 431, cap. 20.
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depois foram identificadas como os territórios dos Tuareg. Nestas áreas
foram encontradas fortes evidências da existência de uma civilização
agrícola, retratada nas pinturas de Tassili N’Ajjer30 e datada para o período
entre o IV e o III milênio a.C. Além das gravações rupestres também foram
encontrados inúmeros vestígios, tais como: monumentos monolíticos,
tumbas de pedra, cavernas com indícios de terem sido utilizadas como
cemitérios, fossos circulares que podem ter sido usados como depósitos de
trigo, carros puxados por cavalos, jóias de metal, peças de vidros e de
couro, esculturas, vasos de cerâmica e símbolos da fecundidade
representados por figuras femininas. Artefatos arqueológicos de tamanha
relevância que, mais recentemente, tem levado alguns historiadores a
revisar suas interpretações, buscando um re-significado para o passado
do Sahara. Até então, as pesquisas têm apontado para um passado que foi
testemunha do florescimento de uma cultura superior, com características
similares às das culturas que se desenvolveram no Oriente Próximo, no
oeste e no sul da Europa. Por outro lado, alguns estudiosos são unânimes
em afirmar que as pinturas atribuídas à raça Crô-Magnon do paleolítico
superior, encontradas nas cavernas no sul da França e no norte da Espanha,
revelam uma semelhança nos traços e sugerem um elo com a civilização
do Sahara. Idéia compartilhada com alguns pré-historiadores, que
enfatizam as semelhanças físicas dos homens da raça de Crô-Magnon,
ruivos e de olhos azuis, com os antigos povos da Líbia, de tez clara,
retratados nos documentos egípcios também como homens ruivos e com
olhos azuis. Um argumento para justificar esta interpretação é que entre
os povos do Sahara, em particular na região do Atlas, ainda hoje são
encontrados homens ruivos e com olhos azuis.
A partir de meados do III milênio a.C, as condições climáticas no
norte africano se alteraram profundamente e o Sahara foi tornando-se cada
vez mais árido e menos povoado. No processo de dessecação do Sahara, a
então florescente civilização agrícola foi forçada a se deslocar para regiões
mais férteis e assimilar um outro ritmo civilizacional, diverso daquele que
até então vinha se desenvolvendo, que era semelhante ao de outras
culturas, em outras regiões. O ressecamento do Sahara acabou gerando
novas realidades e ao mesmo tempo em que levou à dispersão e ao
isolamento de seus habitantes, também criou novas dinâmicas que re-
caracterizaram os povos e imprimiram especificidades em suas culturas.
Ao longo do I milênio a.C, o processo das mudanças climáticas se
completou e o Sahara se transformou no aspecto que tem hoje. Neste novo
meio ambiente, a permanência dos povos dependeu não só da adaptação
30
Região rochosa em pleno deserto, onde foram encontradas gravações e pinturas rupestres
testemunhas da cultura ancestral dos atuais habitantes do Sahara. Estas pinturas retratam
arqueiros, nadadores, dançarinas, assim como os animais típicos das estepes e savanas, as
girafas, elefantes, rinocerontes, búfalos, antílopes, leões e avestruzes. Elas foram descobertas
em torno de 1933, mas somente quando o território foi explorado por uma expedição
francesa dirigida pelo arqueólogo Henri Lhote, entre 1956 e 1957, é que começaram a
despertar o interesse dos pesquisadores.
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física, mas também de um novo modo de vida, limitado pela extrema
escassez de água. Contudo, Desanges informa que “subsistiram durante
longo tempo afloramentos lacustres do lençol freático”31, na região de
Fezzan32, hoje território dos Tuareg, o que permite pensar na possibilidade
de ter ocorrido uma continuidade civilizacional nesta região.
Se o homem foi capaz de se adequar às novas condições ambientais,
o mesmo não aconteceu com o cavalo33, que não resistiu à falta de água e ao
calor excessivo. Em torno de 200 a.C, o cavalo foi sendo gradativamente
suplantado pelo camelo e, com este animal como meio de transporte, se
intensificavam as trocas nas rotas transaarianas.
40
Eram chamados de foggaras pelos Garamantes.
41
Conforme a referência do autor: (KI-ZERBO, J.). (Coord.). História da África Negra. In:
FOERSTER, 1893 apud OLDEROGGE, D. Migrações e diferenciações étnicas e lingüísticas. São
Paulo: Ática, 1980. v. I cap. 11, p. 389.
42
MOKHTAR, 1980, p. 531, cap. 11.
43
Hoje é a atual cidade de Germa.
44
Viveu em torno de 400 a.C.
45
J. Desanges explica que “a origem dos carros saarianos permanece desconhecida:
inteiramente em madeira e de concepção bastante simples, poderiam ter sido produzidos
segundo técnicas originais” (MOKHTAR, 1980, p. 440, cap. 17).
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puxados por quatro cavalos46. Segundo Heródoto, este povo dominou uma
antiga rota de comércio através do Sahara, desde a costa da atual Líbia até
o rio Níger, e seu reino exercia um controle sobre toda a região de Fezzan,
arrecadando tributos das tribos nômades e sedentárias dos arredores.
Se no primeiro momento, os Garamantes tentaram impedir o avanço
dos romanos nas fronteiras meridionais do Maghreb, conforme esclarece
Salama, em seguida, o reino dos Garamantes se transformou em “um tipo de
Estado-cliente do Império”. 47 Aliança que gerou contatos e trocas,
comprovadas nas ruínas de uma casa de banho romana encontrada em
Garama.
O declínio da civilização dos Garamantes está associado às violentas
alterações climáticas ocorridas no norte africano, que além de destruírem
seu modo de vida, romperam com sua unidade. Os povos Tuareg podem
representar o reagrupamento dos Garamantes, ressurgidos da fragmentação
e dispersão no Sahara. Warmington reforça esta idéia ao revelar que “a
semelhança observada entre a escrita líbia e o alfabeto Tuareg dos tempos
modernos continua inexplicada”48, uma lacuna que pode significar o elo
que falta para esclarecer a ancestralidade dos Tuareg. Salama concorda
com a possível relação de parentesco entre os líbios e os Tuareg, declarando
que: “vários pontos são inquestionáveis. O dessecamento do clima não
matou o deserto: a atividade humana se manteve. As línguas e a escrita se
consolidaram. Com a difusão do camelo, diminuíram os problemas de
transporte e comunicação”.49 O contexto descrito por Salama remete a
uma dialética relevante para a dispersão dos povos nômades no Sahara,
idéia que Willis compartilha e considera como a responsável na
consolidação das “redes de mercadores de longa distância”.50
51
MOKHTAR, 1980, p. 539, cap. 20.
52
Id., 1980, p. 459, cap. 18.
53
KI-ZERBO, J. (Coord.). História da África Negra. In: MABOGUNJE. Geografia histórica:
aspectos econômicos. São Paulo: Ática, 1980. v. I (cap. 14), p. 359.
54
Ibid., p. 359.
55
SILVA, 1996, p. 31.
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pois os agricultores sedentários temiam que os pastores nômades
disputassem suas terras e o acesso às águas.
Os povos Tuareg se percebiam como guerreiros, uma consciência
nascida da luta constante pela sobrevivência frente à natureza do Sahara e
as tribos inimigas, o que potencializava o clima para as animosidades. Os
primeiros embates entre os pastores nômades e os agricultores na região
do Sahel, foram raízes dos confrontos históricos que mais tarde
aconteceram entre os Tuareg e os Impérios de Gana, Mali e Songai. Estes
conflitos persistiram e se avolumaram ao longo dos séculos, até se
transformarem nos enfrentamentos dos últimos anos, com os Tuareg lutando
pela autonomia de seus territórios em oposição aos interesses dos países
da Nigéria, Gana e Mali. Para Cissoko, compreender as atitudes de confronto
e violência que marcaram a história dos Tuareg significa superar as idéias
preconceituosas, e só então é possível entender “suas ações pelo contexto
histórico em que se encontravam”56, e haver justiça na análise.
Por outro lado, também foi possível uma convivência pacífica entre
os Tuareg e os agricultores de Sahel, e Silva pondera que “o longo contato
entre os povos agrícolas e pastoris muitas vezes se resolve numa espécie
de simbiose”57, gerando uma relação de jugo e de dependência ou uma
relação de associação de interesses e de colaboração mútua.
Além das três rotas citadas anteriormente, Monés descreve uma
outra rota que “atravessaria o Sahara de um lado a outro, quase na altura
de Ghat, no atual oásis no extremo sudoeste da Líbia”58, revelando que um
trecho desta rota não era percorrido com freqüência, sendo desconhecido
de muitos povos nômades. O autor explica que al-Idrîsî se referiu a este
trecho quando narrou sua experiência no ano de 530, ocasião em que
informou que a travessia exigia o auxílio de guias experientes e destacou a
presença do “povo do véu”59 neste percurso da rota. O costume de transitar
pela região da Líbia e o hábito deste povo de cobrir o rosto apontam para
os Tuareg, mas Monés adverte que também podem ser outros grupos
beduínos, como os sanhãyíes ou sanhadja. Neste caso, a observação de Monés
serve para reforçar a presença dos Tuareg nesta rota, pois segundo Cissoko,
a federação Tuareg Kel Antessar, também conhecida por “Magcharen”60, era
56
Cissoko se refere à idéia de violência que se formou em torno de Sunnï Alï Ber, o rei de
Gao, e as conquistas territoriais que geraram o Império de Songai, assim como o ataque aos
Tuareg em 1468, retirando Timbuktu de seu controle. Mas sua explicação pode ser estendida
também para outros confrontos dos povos Tuareg (NIANE, D. T. (Coord.). A África do século
XII ao século XVI. In: CISSOKO, Sékené, Mody. Os Songhai do século XII ao XVI. São Paulo:
Ática, 1980, v. II, (Cap. 20), p. 210).
57
SILVA, 1996, p. 32.
58
Conforme o texto, em espanhol, “[...] atravessaria el Sahara de um lado a outro, casi a la
altura de Ghat, el actual oásis em el extremo suroeste de Líbia” (MONÉS, Hussain. Las rutas
de comercio em el Sahara africano segun los escritores árabes. IV Congresso de Estudos
Árabes e Islâmicos - ACTAS. Lisboa, 1968, p. 514).
59
Conforme o texto, em espanhol “[...] la gente del Velo” (Ibid., p. 514).
60
Segundo o autor Sékéné Mody Cissoko, “Os “Magcharen”, não eram grupo étnico ou
clânico; constituíam a camada nobre da sociedade” (NIANE, 1980, p. 218, cap. 20).
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composta pelos “tuareg de origem Sanhadja da região de Timbuktu-
Walata”.61
A importância das rotas transaarianas pode ser explicada sob
diferentes ângulos e de acordo com a diversidade dos contextos, por onde
passavam seus traçados. Para Ducellier, as rotas explicam o crescimento
urbano, e ao se referir ao Maghreb salienta que “as cidades se desenvolveram
em função da sua situação relativa ao comércio transaariano” 62 ,
caracterizando-se como cidades escalas ou pontos finais das caravanas.
Já para Monés, as rotas representam “artérias de vida para as tribos”,63 do
Sahara, impedindo seu isolamento e desintegração. Para os Impérios de
Gana e de Mali as rotas significavam o fortalecimento de seu poder, que em
grande medida dependia da obtenção do ouro e de escravos nas regiões
mais ao sul do Sahel, para depois serem comercializados com os povos
mercadores que circulavam nas rotas transaarianas. Para evidenciar a
amplitude do sentido que as rotas tinham para os povos do Sahara, um
bom exemplo é dado pelo Império de Songai, que para garantir sua
hegemonia empreendeu uma ofensiva e conquistou as minas de sal de
Taghaza, localizadas estrategicamente no traçado das rotas transaarianas
que cruzavam o território dos Tuareg.
O sal era um produto raro e muito disputado, trocado às vezes em
peso de ouro, segundo Silva, porque “havia uma grande carência de sal
em quase toda a África”.64 Em algumas regiões do Sahara, a extração do sal
era a única atividade econômica, como nas minas de Taouden ou Taghaza,
cujo comércio foi controlado pelos Tuareg até a investida do Império de
Songai. Em 1352, o viajante Ibn Battûta descreveu em suas anotações uma
cidade construída com blocos de sal, como se fossem pedras, ao passar por
Taghaza. Os oásis de Karuar e de Bilma também foram etapas importantes
no comércio do sal, incluindo as pedras de alume, usadas pelos Tuareg para
tingir suas vestimentas na cor índigo.
A intensificação dos intercâmbios nas rotas que cruzavam seus
territórios, despertou nas tribos Tuareg o interesse para outras atividades
e, conforme Silva menciona, estes povos “passaram a ter na pilhagem, na
proteção das caravanas e no comércio novos meios de aquisição de
riqueza”65, além da prática tradicional da transumância de seus rebanhos.
Durante muito tempo, os Tuareg foram os responsáveis pelo intercâmbio
de artigos de luxo, como o ouro66 e os escravos da África, interligando
cidades no extremo sul do Sahara com a costa africana no Mediterrâneo,
para onde eram atraídos os homens de negócios de Barcelona, Majorca,
61
Ibid., p. 218.
62
DUCELIER, Alain; KAPLAN, Michel; MARTIN, Bernadete. A Idade Média no Oriente:
Bizâncio e o Islão. Lisboa: Dom Quixote, 1994, p. 205.
63
Conforme o texto, em espanhol “[...] arterias de vida para las tribus” (MONÉS, 1968, p. 512).
64
SILVA, 1996, p. 35.
65
Ibid., p. 249.
66
O ouro, que os árabes chamavam de tíbr, era transportado em pó ou em barras.
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Gênova, Veneza e Florença, na busca do ouro africano para cunhar suas
moedas. É desta forma que, segundo Heers, “o tráfico transaariano
ultrapassa amplamente o quadro das regiões ribeirinhas do deserto; e
insere-se num vasto movimento internacional que anima as cidades e as
rotas, mulçumanas ou cristãs, de todo o Mediterrâneo”.67 Na maioria das
vezes, a historiografia prefere prestigiar a conjuntura mediterrânea e
européia no que diz respeito ao comércio de produtos africanos, ocultando
ou se referindo com evasivas sobre o papel dos povos nômades do Sahara
nos intercâmbios com a Europa. A presença marcante dos Tuareg no
comércio do ouro é evidenciada no “Atlas Catalão”, que retrata a opulência
do Império de Mali e sua majestade Mansa Musa oferecendo uma grande
pepita de ouro para uma figura imponente montada em um camelo,
envolvida em tecidos azulados, usando turbante68 e com o rosto velado.
Vilar enfatiza a presença dos povos do deserto no tráfico do ouro,
afirmando que: “o ‘ouro das caravanas’, ouro em pepitas dos rios do Sudão
e de Gana, ia para o Egito e para o Maghreb, através do Sahara”.69
As mesmas rotas que promoveram os contatos comerciais e as trocas
culturais, também propagaram o islamismo. A rota que cruzava os oásis
do Egito e seguia até a região do Fezzan, passando por Kawwãr e prosseguindo
para sul, na direção do Sahel, desempenhou um importante papel na
penetração do islã no continente africano. E, para destacar a presença das
tribos Tuareg na difusão da religião mulçumana, Monés salienta que no
Fezzan, território dos Tuareg, a rota se bifurcava em outras direções e “cada
uma de suas etapas era um centro de irradiação do Islã e de sua cultura”.70
Mantran realça que “a conquista árabe, seguida de uma colonização
e arabização bastante lentas, no início provocou alguns choques entre
árabes e berberes”71, mas com o tempo os povos foram se identificando
com a língua e os hábitos, e a assimilação do islamismo se consolidou.
Existiam afinidades que eram respeitadas tanto pelos árabes crentes como
pelos nômades pagãos, como a solidariedade e o código de honra, incutidas
em suas mentalidades antes mesmo do encontro de suas culturas. Enquanto
para Miquel, a conversão dos povos do Sahara se efetivou, em grande parte,
porque os árabes traziam um “projeto de vida”72, que envolvia o cotidiano
e a realidade destes povos, o que vem explicar o islã militante que os Tuareg
praticaram a partir de sua conversão. Neste sentido, a conversão da tribo
67
HEERS, Jacques. História Medieval. São Paulo: Difel, 1977, p. 343.
68
O conjunto é composto por um longo pano que forma o turbante, chamado de chech, ao
qual é amarrada a peça de pano que os Tuareg cobrem o nariz e a boca, chamada lithan..
69
VILAR, 1980, p. 43.
70
Conforme o texto, em espanhol, “Cada una de sus etapas era un centro de irradiación del Islam
y de su cultura” (MONÉS, 1968, p. 513).
71
MANTRAN, Robert. Expansão Mulçumana (Séculos VII-XI.) São Paulo: Pioneira, 1977, p. 210-211.
72
Conforme o texto, em espanhol, “[...] proyecto de vida” (BALTA, Paul. Islam. Civilizacion y
sociedades. In: MIQUEL, André. Las primeras conquistas. Madri: Siglo Vintiuno de Espana,
[s.d.], p. 88).
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dos Almorávidas 73 à religião mulçumana, se refugiando em um
monastério74 e organizando um exército para levar adiante uma ofensiva
em nome de Alá, uma guerra santa visando promover a ortodoxia do Islã,
foi emblemática da militância em favor do islamismo.
Mais recentemente, a pesquisa de Farias tem revolucionado o que
até então alguns historiadores africanistas consideravam como verdades
acabadas. Triaud destaca em sua resenha, que Farias revela novas
possibilidades de leituras e interpretações historiográficas ao mostrar que
as “fontes escritas, tradições orais Tuareg e Songhay e mitos se entretecem
para formar uma nova textura”75. A hipótese de Farias, formulada no
contexto das rotas transaarianas e baseada na análise das epigrafias
tumulares de elites locais, afirma que o “encontro e a confrontação da
escrita árabe com a escrita tifinagh, teria provocado um feito de interação
do qual a epigrafia seria testemunha”76, realçando assim a interação
cultural entre os árabes e os povos nômades do Sahara.
O avanço do Império Otomano na região do Maghreb reduziu a
intensidade do comércio e das trocas culturais através das rotas
transaarianas. E no final do século XV, quando os portugueses alcançaram
o litoral do golfo da Guiné e o tráfico do ouro e de escravos foi deslocado
para as regiões ao sul, as rotas transaarianas perderam grande parte dos
intercâmbios e, sem eles, a importância que outrora tivera.
78
MOKHTAR, 1980, p. 532, cap. 20.
79
Inmouchar, denominação da categoria social mais elevada entre os Tuareg.
Haratim, escravos que serviam às tribos Tuareg semi-nômades dos oásis. Akli, escravos
80
provenientes das tribos Tuareg dominadas e escravizadas por outras tribos e sub-tribos Tuareg.
81
GELLNER, 1997, p. 187.
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 35-54, jul./dez. 2008 50
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comentando em sua rihla82, ao se referir as mulheres berberes da terra dos
Bardäma, como “as mais lindas e de mais belo rosto que há”83, acrescentando
que “entre eles a mulher goza de uma dignidade maior que a do homem”.84
Estas impressões podem ser explicadas porque Ibn Battûta desconhecia os
costumes e as tradições dos Tuareg e não estava familiarizado com o islã
praticado pelos povos do Sahara, que não seguia as mesmas regras e
tradições do Corão. Ibn Battûta tinha sido convertido ao islã que pregava
a supremacia masculina e orientava que “o homem tem autoridade sobre
a mulher, porque Deus fez um superior ao outro e porque ele gasta sua
fortuna mantendo-a; assim, a boa mulher é obediente, protegendo as partes
invisíveis porque Deus as protegeu”.85 O islamismo não excluiu as antigas
crenças dos povos Tuareg, mas deu espaço para a emergência de um
sincretismo religioso, onde as crenças animistas 86 pré-islâmicas
sobreviveram. Os Tuareg mantiveram suas crenças tradicionais e
praticaram o islamismo de maneira fluída e híbrida, constatado por Salam,
ao salientar que “o povo segue sendo parcial ou totalmente pagão”.87 O que
foi possível porque desde o século XI, quando os ulemás e os peregrinos
mulçumanos acompanhavam as caravanas nas rotas transaarianas com
a intenção de converter os mercadores nômades do Sahara e os reis dos
Impérios abaixo do Sahel, o islã e as crenças africanas coexistiram
pacificamente, o que foi determinante para a preservação da tradição dos
povos do Sahara.
6 Considerações finais
82
Almeida explica em seu artigo que a Rihla, além de ter um sentido de relato de viagem,
destacando as maravilhas e os costumes de lugares distantes e exóticos, também reflete em
sua narração a sociedade, seus valores e sua história, sendo um importante documento
para ser consultado como fonte (ALMEIDA, Maria Cândida Ferreira de. Palavras em viagem:
um estudo dos relatos de viagens medievais mulçumanos e cristãos. Revista Afro-Ásia,
Salvador: UFBA, n. 32, 2005).
83
Conforme o texto, em espanhol, “[...] las más hermosas y de más bello rostro que hay” (IBN
BATTUTA. 1987, p. 789).
84
No texto, em espanhol, “Entre ellos la mujer goza de una dignidad mayor que el hombre” (Ibid.,
p. 789).
85
Sura 4:31 (LINHARES, 1982, 21).
Permanência da presença do espírito Kel Esuf que ataca o rosto e os cabelos causando a
86
morte, e do Gri-Gri, o espírito maligno que trazia as desgraças para as tribos Tuareg.
87
Conforme o texto, em espanhol, “...el pueblo sigue siendo parcial o totalmente pagano”
(SALAM, Abdus. Islam, Civilización y Ciencia. Trabalho apresentado na Conferência organizada
pela Unesco, “Islam et Occident”, 1984, p. 115).
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livres do planeta. No entanto, esta noção há muito já não corresponde
mais a realidade destes povos.
Assim como seus ancestrais, os Tuareg dominaram os territórios do
Sahara onde a presença da água era a determinante para o traçado das
rotas transaarianas, transformando os oásis no ponto de encontro onde
os intercâmbios culturais e comerciais se realizavam. Quando a água se
tornava escassa, estes povos nômades se deslocavam para outras direções
na imensidão do Sahara, até encontrarem suas valiosas fontes. Após o
período colonial francês, os povos Tuareg perderam esta liberdade de ir e
vir, limitados pelas fronteiras territoriais que se constituíram neste período.
Barreiras que desconheciam e que aprenderam a desprezar. O Sahara, até
então, a unidade articuladora dos contatos dos povos Tuareg, acabou se
transformando na zona de disputas imperialistas e de acordos
diplomáticos que fragmentaram seu território.
Marginalizados pelos governos dos países do Sahel e da costa do
Mediterâneo, com exceção da Líbia, os Tuareg retomaram suas lutas, agora
para superar as limitações impostas pela constante escassez de alimentos
e para garantir sua autonomia como povo livre do Sahara.
Foi a partir de Agadez88 que os Tuareg separatistas se organizaram e
deram início a uma onda de rebeliões em 1990. Entre outras reivindicações,
defendiam o direito de suas crianças aprenderem a língua tamasheq nas
escolas que freqüentavam nas cidades, onde agora viviam muitas de suas
tribos.
Este estudo procurou conhecer um pouco mais do universo dos
Tuareg, mas não se esgota aqui. Ainda há muito para ser analisado e pensado
sobre seus códigos e dinâmicas culturais. Também foi uma tentativa de
prestar uma homenagem, sem pretensões, com um olhar de simpatia por
sua história de lutas, passadas e presentes. Uma tentativa limitada pela
dificuldade de tecer sua história com os fragmentos bibliográficos que
puderam ser encontrados e recolhidos. Mesmo assim, uma tentativa que
possa contribuir para chamar a atenção do papel histórico dos Tuareg no
passado do Sahara, mantendo viva a imagem das caravanas de camelos
atravessando as rotas transaarianas, sob o comando de enigmáticos Tuareg,
envolvidos em tecidos azulados e com seus rostos velados.
Recebido em outubro de 2008.
Aprovado em novembro de 2008.
Title: Tuareg, The Blue Men of the Sahara: History of a Nomadic People
Abstract
This paper aims to examine the Tuareg trajectory, one of the most important groups of
nomadic people in the Sahara, in order to recover their ancestry, trace their history, and
explain their presence in the gold trade in the trans-Saharan route as well as their role in
88
No século XIV os povos Tuareg fundaram sua capital no Sahara, chamada Agadez, onde
Silva salienta que “tinha assento o Sultão dos Tuareg do Air, Muhamed Talzi Tanet” (SILVA,
1996, p. 523).
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 35-54, jul./dez. 2008 52
Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras>
the expansion of Islam throughout the African continent. This paper also emphasizes
presuppositions which explain the persistence and ruptures that contextualize their
historical process.
Referências