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Tuareg, os “homens azuis” do Sahara:

história de um povo nômade

Luiz Dario Ribeiro e Maria Eliane Caminha Leal1

Resumo
Este artigo se propõe a examinar a trajetória dos Tuareg, um dos povos nômades do
Sahara, procurando resgatar sua ancestralidade e historicidade, na medida em que busca
explicar sua presença no comércio do ouro nas rotas transaarianas, e seu papel na
expansão do islamismo no continente africano. Em seu desenvolvimento, realça os
pressupostos capazes de explicar as rupturas e as persistências que contextualizaram seu
processo histórico.

Palavras-chaves: Intercâmbio. Nômades. Rotas Transaarianas.

1 Introdução

Os Tuareg2 estão incluídos entre as sociedades autóctones que


resistiram ao extermínio provocado pelos invasores ao longo do tempo.
Sua luta tem sido a de defender o direito de permanecer no mesmo território
de seus antepassados, praticando as antigas tradições e vivendo em
harmonia com os valores que expressam sua cultura.
Também conhecidos como os “homens azuis”3 do Sahara4, os Tuareg
desempenharam um papel significativo no comércio do ouro e na expansão
do islamismo a partir do Maghreb5, através do Sahara, e seguindo na direção
sul para a região do Bilad al-Sudan6. No entanto, apesar de seu envolvimento
como ator histórico nestes processos, ainda persiste a noção preconceituosa
de serem um povo de má índole e com costumes bárbaros. Idéia denunciada
nas fontes escritas em língua árabe, que segundo Hrbek, predominavam
1
Docente da UFRGS (e-mail: teixeira.ribeiro@ufrgs.br). Acadêmica de História.
2
Tuareg é a forma plural e designa tanto um grupo dos habitantes do Sahara como a totalidade
deles. Targuí é a forma singular, aplicada a um indivíduo também habitante do Sahara. Em
ambos os casos, a denominação é exclusiva para os habitantes do Sahara.
3
Esta designação resulta do conhecimento que os Tuareg detêm à respeito da técnica de
tingir suas vestimentas com a cor índigo, que com o tempo perdem a pigmentação e deixam
a pele com tons azulados.
4
Sahara, em árabe significa “deserto” e se refere à região do Maghreb, no norte do continente
africano, incluindo a costa do Oceano Atlântico até o Mar Vermelho.
5
A expansão árabe a partir do século VIII cunhou duas expressões para distinguir o mundo
Árabe do Ocidente. Conforme destaca Linhares, a região ao norte da África foi designada
como Maghreb, em oposição à Machrek, o mundo árabe do Oriente, em função da diversidade
do ponto de vista étnico e das diferenças na linguagem e na prática dos costumes. (LINHARES,
Maria Yedda. Oriente Médio e o Mundo dos Árabes. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 19).
6
Região da África ocidental, identificada nos textos árabes como o “país dos negros”.
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 35-54, jul./dez. 2008 35
Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras>
“entre os séculos IX e XV”7, quando o autor analisou os testemunhos
documentais referentes à história da África. Entre os poucos registros sobre
os povos nômades, se destacam os escritos de Ibn Battûta, onde ele narra
seu encontro com os Tuareg durante o mês de Ramadan, experiência
emblemática do preconceito de Ibn Battûta para com estes povos,
revelando que “entre eles não havia nada de bom”.8 Julgamento justificado,
segundo suas palavras, porque “Um de seus chefes saiu em nosso encontro
e deteve a caravana, até que se comprometessem a pagar em tecidos ou
outros objetos, para nos deixar passar”.9 Uma noção que foi perpetuada
em seus relatos de viagem, e mais tarde apropriada pela ideologia colonial
e disseminada no imaginário dos europeus, seguindo a lógica de seus
valores eurocêntricos.
O historiador marroquino Laroui, ao afirmar na apresentação de
sua obra que “No século XIX surgiram duas historiografias mutuamente
hostis ao se referirem ao âmbito de difícil definição que constitui o Maghreb,
a colonial e a nacionalista”10, menciona a extensão que este preconceito
atingiu, inclusive transparecendo em muitos trabalhos acadêmicos.
Procurando reconstruir a história do Maghreb a partir da “visão que um
maghrebi tem de sua própria terra”11, Laroui desenvolveu uma profunda
análise crítica de várias obras, pontuando que há, com clareza ou com
sentido dúbio, referências ao Maghreb como a “zona que não produz idéias”12
e seu povo estando “sempre um passo atrás”13, quando comparado com o
mundo mediterrâneo.
O foco desta abordagem está voltado para os eventos compreendidos
entre os séculos VIII e XVI na região do Maghreb e do Sahara, em especial na
porção que atualmente corresponde aos territórios dos países da Argélia,
Líbia, Mali, Mauritânia e Níger; e no Sahel14, na região do Bilad al-Sudan,
para onde se dirigiam as caravanas na busca do ouro dos negros.

7
KI-ZERBO, J. (Coord.). História da África Negra. In: HRBEK. I. As fontes escritas a partir o
século XV. São Paulo: Ática, 1980. v. I, (cap. 6), p. 139.
8
Conforme o texto, em espanhol, “[..] entre los cuales no hay nada de bueno” (IBN BATTUTA.
Através del Islam. Madrid: Allianza, 1987, p. 792).
9
Conforme texto, em espanhol, “Uno de sus principales salió a nuestro encuentro y detuvo la caravana
hasta que se comprometieron a pagarle en telas y otros objetos por dejarnos pasar” (Ibid., p. 792).
10
Conforme o texto, em espanhol, “Em el siglo XIX surgieron dos historiografias mutuamente
hostiles referidas a esse ámbito de difícil definicion que constituye el Maghreb, la colonial y la
nacionalista” (LAROUI, Abdallah. Historia del Magreb, desde los orígenes hasta el despertar
magrebí. Madrid: Mapfre, 1994, p. 1).
11
Conforme o texto, em espanhol, “visión que um magrebí tiene de su propia tierra” (Ibid., p. 14).
12
O autor se refere à obra The United States and North Africa, de E. G. Gallagher, na qual,
define o Maghreb como “zona que no produce ideas” (Ibid. , p. 33).
13
O autor se refere à obra Histoire Ancienne, de Gsell, p. 236-274 (Ibid., p. 104).
14
Sahel, em árabe significa “costa”, “margem” ou “litoral”. Conforme a explicação de
Alberto da Costa e Silva, Sahel é a “praia do deserto”, cujos limites se alargam ou se
retraem, de acordo com o volume e a distribuição das chuvas (SILVA, Alberto da Costa e. A
enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 13).
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Para reafirmar a presença dos Tuareg no referido contexto, este estudo
priorizou as imagens cartográficas contidas no “Atlas Catalão”15 e a menção
de Vilar ao analisar a procedência do ouro africano:

O Atlas Catalão, de 1375-80, representa admiravelmente


toda a África do Norte, mas a embocadura do Níger, na
Guiné, aparece nele ocupada por uma simples figura
simbólica, um rei negro, dono do ouro; entre as duas, ao
sul do Atlas, representado por uma linha contínua, um
homem num camelo, com a seguinte legenda: “Toda esta
região é ocupada por homens envoltos em mantos, de que
só se vêem os olhos; vivem em tendas e fazem cavalgadas
em camelos”. 16

Segundo Vilar, “Temos, assim três mundos: O Maghreb conhecido, o


deserto das caravanas (Mediterrâneo saariano) e o mundo negro
misterioso, origem do ouro”.17 O “Atlas Catalão”, interpretado conforme
os princípios da metodologia iconográfica, seguem as orientações de Burke,
para quem “a interpretação de imagens através de uma análise de
detalhes”18 é um modo viável de extrair informações e construir novos
saberes, pois “toda a imagem conta uma história”.19 Para Burke a leitura
de formas simbólicas disponibiliza aos estudiosos mais um recurso para
recuperar as experiências passadas dos homens, além dos documentos
escritos. Nesta perspectiva, o “Atlas Catalão” se transforma no testemunho
de um momento histórico, desde que seja interpretado com o olhar isento
de preconceitos.
A contribuição pretendida com este texto reside na tentativa de
despertar o interesse para a história dos Tuareg, cujo conhecimento ainda
é bastante limitado, dado as dificuldades de acesso a uma bibliografia
específica. As informações disponíveis, em sua maioria, se referem aos
Tuareg de forma generalizada, confundindo este grupo com os demais povos
berberes que vivem no Sahara, transitando no mesmo espaço físico e
levando um estilo de vida similar, mas diferentes em termos históricos e
culturais. Outro aspecto relevante na bibliografia disponível, diz respeito
à maneira quase casual e descompromissada das análises sobre a
participação dos Tuareg na história do Maghreb. Uma lacuna que este estudo
denuncia, com a intenção de chamar atenção, neste nosso universo cultural
15
O autor do “Atlas Catalão” foi provavelmente Jehuda Cresques, natural de Mallorca, na
Espanha, filho do também cartógrafo judeu-catalão Cresques Abraão. O Atlas foi desenhado
por volta de 1375, à pedido do Imperador Carlos V. Durante as perseguições às famílias judias,
Jehuda Cresques foi obrigado a converter-se ao cristianismo, adotando o nome de Jaume
Riba. Há registro de um Mestre Jacome de Mallorca na escola naval de Sagres, em Portugal,
em 1420, o que levou muitos pesquisadores a acreditar que se trata da mesma pessoa.
16
VILAR, Pierre. Ouro e Moeda na História (1450-1920). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 51.
17
Ibid., p. 51.
18
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. São Paulo: EDUSC, 2004, p. 41.
19
Ibid., p. 175.
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tão distante e tão diverso, para um povo que produziu sua história e
interferiu na história de outros povos. O que vem explicar o caráter mais
introdutório deste texto, procurando mostrar a diversidade de
perspectivas que ficaram evidentes ao longo de sua estruturação, para
serem contempladas em futuros trabalhos acadêmicos.
As palavras de origem árabe e berbere, enunciadas ao longo da
exposição, são provenientes em sua maioria da obra de Vazquez-Figueroa20,
onde o autor explica que todas as notas citadas contaram com a colaboração
da jornalista Sukaima Al Haj. Neste sentido, também o trabalho de Alberto
da Costa e Silva e os capítulos abordados da obra História da África Negra,
sob a coordenação de J. Ki-Zerbo, foram de grande valia.
Feito estas colocações e ressalvas, é chegado o momento de adentrar
no mundo do “infinito nada do deserto sem fronteiras”21, onde ao longo
dos tempos os Tuareg continuam transitando nas mesmas rotas no Sahara.

2 Sahara

Considerado o maior deserto do mundo, com cerca de oito milhões


de quilômetros quadrados, o Sahara se estende por cerca de cinco mil
quilômetros de dunas de areia, pedras e maciços rochosos, desde a costa
do Oceano Atlântico até o mar Vermelho, ocupando a porção norte do
continente africano. O Sahara se caracteriza pela aridez, pelas temperaturas
que sofrem grandes oscilações e pelos ventos22 fortes e gelados, que
constantemente estão a remodelar as dunas e o perfil do seu horizonte.
É neste universo que os Tuareg permanecem vivendo sua história,
seguindo rotas que se mantiveram inalteradas por séculos, traçadas em
caminhos de areia que somente os homens do Sahara conseguem reconhecer.
A sobrevivência deste povo nômade sempre dependeu de sua relação com
a natureza, que respeitam e temem, pois com ela adquiriram a sabedoria
de como enfrentar o medo da escassez de água. Para os Tuareg o Sahara é o
seu “baraka”, o destino designado por Alá, tudo o que precisam saber para
continuar vivendo nas areias e sobrevivendo nos oásis.23
Independente de sua extensão, os oásis sempre tiveram um grande
significado para os povos do Sahara, pois além da presença da água, era o
ponto de confluência das caravanas, o que permitiu contatos culturais e
comerciais entre os povos. A importância dos oásis como centros de trocas,
pode ser explicada pelo delineamento das rotas, traçadas estrategicamente
de modo a cruzar pelos oásis situados ao longo de suas trajetórias. Para
20
O autor Alberto Vázquez-Figueroa nasceu em Santa Cruz de Tenerife em 1936; passou
grande parte de sua infância no Sahara e mais tarde foi viver em Madrid.
21
Expresão de Alberto Vázquez-Figueroa, se referindo a vastidão do Sahara (VÁZQUEZ-
FIGUEROA, Alberto. Tuareg. Porto Alegre: L&PM, 2002, p. 31).
22
Hamartã, nome do vento temido pelos povos do deserto, causador das tempestades de areia.
23
Wãha, em árabe.
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Silva, o Sahara foi a barreira natural que “distanciou a África negra do
Mediterrâneo”24, pois mesmo sendo a região de contato entre os povos
acostumados a suportar suas duras condições, também foi um impasse ao
deslocamento dos povos que viviam abaixo da região do Sahel, e mais
adiante, no Bilad al-Sudan, gerando o isolamento destes povos em relação
ao Maghreb. A idéia de barreira natural também pode ter uma outra leitura,
aquela que percebe no obstáculo um elemento de impulso às trocas culturais
e comerciais, o que poderia explicar a circulação de produtos trazidos de
terras distantes para serem negociados nos próprios oásis, ou para serem
levados pelas caravanas e comercializados em outros mercados e para
outros povos.
Percorrer as longas distâncias do Sahara só se tornou viável com a
disseminação do camelo25 no solo africano, o que ocorreu nos três primeiros
séculos da nossa era. Quando as tribos nômades adotaram este animal
como meio de transporte foi possível penetrar, cada vez mais, no interior
do Sahara, e neste avanço o camelo foi se transformando em um símbolo de
poder e riqueza26 para os povos do Sahara. Nos confrontos tribais o camelo
foi decisivo para as vitórias, e conforme Silva salienta, as “tribos cameleiras
reduziam à obediência ou a servidão os habitantes dos oásis”27, reforçando
seu prestígio e aumentando seus domínios. Foi neste cenário e nestas
condições que os Tuareg se transformaram nos senhores do Sahara,
controlando as rotas transaarianas que ligavam o Maghreb ao Bilad al-Sudan.
O Sahara nem sempre foi este mundo de areia que hoje conhecemos.
No período Neolítico28 o Sahara era recortado por rios e recoberto por uma
espessa vegetação, onde viviam numerosos rebanhos e circulavam povos
caçadores, pescadores e agricultores. Nestas condições geográficas e
climáticas viveram as culturas ancestrais dos povos do Sahara. De acordo
com as pesquisas de Desanges, as “datações recentes por radiocarbono
indicam que o emprego da cerâmica difundiu-se a partir do Sahara central
e oriental”, sugerindo que “os inícios da produção da cerâmica podem ser
fixados no VIII milênio a.C, do Ennedi ao Hoggar”29, regiões que séculos

24
SILVA, 1996, p. 18.
25
Os Tuareg preferem uma espécie de camelo mais magra, mais ágil e mais alta que a comum,
conhecida pelo nome de Mehari. Alguns autores não fazem distinção entre “camelo” e
“dromedário” e usam tanto um termo quanto o outro em seu texto, como é o caso de Alberto
Costa e Silva. Enquanto P. Salama explica que “trata-se mais exatamente do dromedário,
originário do Oriente Próximo” (Ibid., p. 249); (MOKHTAR, G. (Coord.). A África Antiga. In:
SALAMA, P. O Saara durante a antiguidade clássica. São Paulo: Ática, 1980. v. II, p. 543, cap. 20).
26
Os camelos sempre foram muito bem cotados nos mercados freqüentados pelos povos do
deserto, e a riqueza de um indivíduo era contabilizada de acordo com o número de camelos
que ele possuía. Noção que ainda hoje permanece na cultura destes povos.
27
SILVA, op. cit., p. 249.
28
Por convenção, o termo Neolítico é empregado para designar o aparecimento de novas
técnicas, em particular a arte da cerâmica, o polimento da pedra, o início da domesticação
de animais, a agricultura e a urbanização.
29
MOKHTAR, 1980, p. 431, cap. 20.
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depois foram identificadas como os territórios dos Tuareg. Nestas áreas
foram encontradas fortes evidências da existência de uma civilização
agrícola, retratada nas pinturas de Tassili N’Ajjer30 e datada para o período
entre o IV e o III milênio a.C. Além das gravações rupestres também foram
encontrados inúmeros vestígios, tais como: monumentos monolíticos,
tumbas de pedra, cavernas com indícios de terem sido utilizadas como
cemitérios, fossos circulares que podem ter sido usados como depósitos de
trigo, carros puxados por cavalos, jóias de metal, peças de vidros e de
couro, esculturas, vasos de cerâmica e símbolos da fecundidade
representados por figuras femininas. Artefatos arqueológicos de tamanha
relevância que, mais recentemente, tem levado alguns historiadores a
revisar suas interpretações, buscando um re-significado para o passado
do Sahara. Até então, as pesquisas têm apontado para um passado que foi
testemunha do florescimento de uma cultura superior, com características
similares às das culturas que se desenvolveram no Oriente Próximo, no
oeste e no sul da Europa. Por outro lado, alguns estudiosos são unânimes
em afirmar que as pinturas atribuídas à raça Crô-Magnon do paleolítico
superior, encontradas nas cavernas no sul da França e no norte da Espanha,
revelam uma semelhança nos traços e sugerem um elo com a civilização
do Sahara. Idéia compartilhada com alguns pré-historiadores, que
enfatizam as semelhanças físicas dos homens da raça de Crô-Magnon,
ruivos e de olhos azuis, com os antigos povos da Líbia, de tez clara,
retratados nos documentos egípcios também como homens ruivos e com
olhos azuis. Um argumento para justificar esta interpretação é que entre
os povos do Sahara, em particular na região do Atlas, ainda hoje são
encontrados homens ruivos e com olhos azuis.
A partir de meados do III milênio a.C, as condições climáticas no
norte africano se alteraram profundamente e o Sahara foi tornando-se cada
vez mais árido e menos povoado. No processo de dessecação do Sahara, a
então florescente civilização agrícola foi forçada a se deslocar para regiões
mais férteis e assimilar um outro ritmo civilizacional, diverso daquele que
até então vinha se desenvolvendo, que era semelhante ao de outras
culturas, em outras regiões. O ressecamento do Sahara acabou gerando
novas realidades e ao mesmo tempo em que levou à dispersão e ao
isolamento de seus habitantes, também criou novas dinâmicas que re-
caracterizaram os povos e imprimiram especificidades em suas culturas.
Ao longo do I milênio a.C, o processo das mudanças climáticas se
completou e o Sahara se transformou no aspecto que tem hoje. Neste novo
meio ambiente, a permanência dos povos dependeu não só da adaptação
30
Região rochosa em pleno deserto, onde foram encontradas gravações e pinturas rupestres
testemunhas da cultura ancestral dos atuais habitantes do Sahara. Estas pinturas retratam
arqueiros, nadadores, dançarinas, assim como os animais típicos das estepes e savanas, as
girafas, elefantes, rinocerontes, búfalos, antílopes, leões e avestruzes. Elas foram descobertas
em torno de 1933, mas somente quando o território foi explorado por uma expedição
francesa dirigida pelo arqueólogo Henri Lhote, entre 1956 e 1957, é que começaram a
despertar o interesse dos pesquisadores.
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física, mas também de um novo modo de vida, limitado pela extrema
escassez de água. Contudo, Desanges informa que “subsistiram durante
longo tempo afloramentos lacustres do lençol freático”31, na região de
Fezzan32, hoje território dos Tuareg, o que permite pensar na possibilidade
de ter ocorrido uma continuidade civilizacional nesta região.
Se o homem foi capaz de se adequar às novas condições ambientais,
o mesmo não aconteceu com o cavalo33, que não resistiu à falta de água e ao
calor excessivo. Em torno de 200 a.C, o cavalo foi sendo gradativamente
suplantado pelo camelo e, com este animal como meio de transporte, se
intensificavam as trocas nas rotas transaarianas.

3 Os Garamantes: antigo povo da Líbia

A partir do século VIII, a expansão árabe causou a fragmentação


das sociedades berberes remanescentes, na medida em que penetrava no
Sahara. Simultaneamente, muitos traços singulares da cultura dos povos
nômades, até então isenta de influências estrangeiras, foram exterminados,
o que explica as dificuldades enfrentadas pelos historiadores e arqueólogos
na busca de indícios que esclareçam a origem destes povos. Salama salienta
a ausência de recursos confiáveis para estudar os povos do Sahara,
declarando que:
Na ausência de uma cronologia absolutamente confiável,
parece difícil avaliar a priori o progresso da civilização
saariana na Antiguidade, principalmente porque não se
sabe ao certo se as diferentes zonas deste vasto território
se desenvolveram uniformemente. 34

A historiografia explica que o processo de dispersão gerado pela


chegada dos árabes no Maghreb impulsionou os Tuareg na direção dos
maciços da região central do Sahara, conhecidos geograficamente pelas
denominações de Hoggar, Adrar, Ifora e Ayr. As condições de difícil acesso a
estes refúgios permitiram aos Tuareg manterem seus hábitos e costumes
mais tempo ilesos da influência árabe. No entanto, não conseguiram impedir
31
MOKHTAR, 1980, p. 433, cap. 20.
32
Desanges cita Plínio o Velho e sua menção ao lago salgado de Apuscidamo, ou Cidamum,
assim como a presença de pântanos entre Nefzaoua e Gadames, aos quais al-Bakrî faz
referências em sua obra “Description de I’Afrique Septentrionale” (p. 116). (MOKHTAR, G. (Coord.).
A África Antiga. In: DESANGES, J. Os Protobérberes. São Paulo: Ática, 1980. v. II, cap. 17, p. 433).
33
A introdução do cavalo representou um avanço para os povos líbios e há um consenso
entre os pesquisadores, em um primeiro momento, o cavalo foi o meio de transporte
responsável pela penetração no interior do Sahara. As gravações rupestres de Tassili N’Ajjer
também apontam nesta direção. Os cavalos utilizados por estes povos eram de pequena
estatura, tinham dorso proeminente e eram conhecidos como cavalos bardo, cavalgados
pelas tribos mongóis. Estes cavalos foram dominantes até a chegada dos árabes, introduzidos
na África através do Egito, durante a invasão dos hicsos, como animal de guerra.
34
MOKHTAR, 1980, p. 532, cap. 17.
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o crescente processo de islamização entre as tribos Tuareg, explicado porque
o islã35 se desenvolveu a partir dos intercâmbios comerciais nas rotas
transaarianas.
Em seus territórios, os Tuareg se dividiam em tribos, que por sua vez
eram compostas de diversas subtribos. Gellner salienta que os povos Tuareg
possuíam “uma classificação altamente hierárquica entre grupos tribais”36,
o que se refletia no controle das rotas e dos intercâmbios comerciais. As tribos
de maior prestígio atendiam pelo nome de Kel Ahaggar ou Kel Hoggar; Kel
Adagh ou Kel Iforas; Kel Tademekkt; Kel Lullemmeden e Kel Ayr, e ainda hoje
continuam tendo supremacia sobre as demais.
No século XIX, a expansão imperialista das potências européias
alcançou o Sahara e, nestas condições e regiões, os europeus encontraram
os povos Tuareg. Portanto, resgatar a ancestralidade dos Tuareg significa
partir da análise destas tribos e concentrar a atenção nestas regiões, pois
segundo Salama, “possuímos dados mais precisos para duas regiões: o
Hoggar e o Fezzan”.37
Os Tuareg da região de Hoggar ainda hoje narram a origem de seus
ancestrais a partir de uma lenda local, que realça a figura de uma rainha
vinda de Tafilet, uma área localizada no sudeste do atual Marrocos. Em
tempos remotos, Tin Hinan teria surgido montada no dorso de um camelo
branco no oásis de Abalessa, localizado nas proximidades de Tamanraset, na
companhia de uma serva chamada Takama. Esta explicação tem uma
origem lendária e vem sendo repassada de geração para geração pela
tradição oral. Uma lenda que desperta o interesse dos historiadores, já que
Salama afirma que na região de Hoggar, “na segunda metade do século IV
da era cristã, a pirâmide sócio política tinha em seu topo uma mulher”.38
Foi também nesta região, mais especificamente nos arredores do oásis de
Abalessa, que o túmulo de uma soberana foi descoberto, junto com uma
série de artefatos que sugerem a presença de mulheres da raça branca.
Elementos que evocam a lenda de Tin Hinan e que podem vir a explicar o
tratamento respeitoso que os povos Tuareg sempre dedicaram às suas
mulheres, as quais desfrutavam de uma liberdade que contrariava os
preceitos religiosos da tradição do Islã.
Para as tribos Tuareg da região de Fezzan, uma outra lenda39 narra
que seus ancestrais, descendentes de uma raça culta e poderosa, teriam
vindo da ilha de Creta no tempo dos Faraós. Eram identificados como um
povo guerreiro que tentou invadir o Egito, mas delatados por uma mulher,
perderam a batalha. Durante a fuga, alguns guerreiros se deslocaram para
O Islã (com maiúscula) significa a comunidade dos povos que professam a religião
35

mulçumana, o islã (com minúscula).


36
GELLNER, Ernest. Antropologia e Política: revoluções no Bosque Sagrado. Rio de Janeiro:
Zahar, 1997, p. 187.
37
MOKHTAR, 1980, p. 533, cap. 17.
38
Ibid., p. 533.
39
Vázquez-Figueroa faz menção a esta lenda em sua obra (VÁZQUEZ-FIGUEROA, 2002, p. 141).
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 35-54, jul./dez. 2008 42
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o leste e se estabeleceram junto ao mar, dando origem ao povo Fenício, os
homens que dominaram os mares. Outros seguiram para o oeste e criaram
um poderoso reino na região de Fezzan, hoje território da Líbia, conhecido
pelo complexo sistema de irrigação composto de canais40 subterrâneos
para o transporte da água. Estes povos deram origem aos Garamantes, os
homens que dominaram o Sahara.
Na busca de informações que possam auxiliar na elucidação da lenda
que deu origem aos Garamantes, ou a origem dos líbios como provenientes
da ilha de Creta, o historiador Olderogge cita em sua obra um autor latino
que diz “que alguns dos líbios parecem etíopes, outros são originários da
ilha de Creta”.41 As referências e as inscrições em monumentos egípcios e
fontes gregas também informam que a antiga população da Líbia era
bastante heterogênea em termos de cor de pele: há alusões a povos com
pele clara e olhos azuis, assim como povos com pele mais escura. De acordo
com as recentes investigações no Fezzan e na Argélia saariana, Salama
relata que na Antiguidade, “o Sahara central e meridional era povoado
predominantemente por “elementos brancos altos, de aspecto
mediterrâneo [...] de grande volume craniano [...] rosto mais ou menos
longo e estreito [...] membros delgados” características morfológicas
idênticas às dos Tuareg modernos”.42 Contudo, devido à gradativa ocupação
dos territórios “saharianos” e “sahelianos” e dos contatos das tribos Tuareg
com os agricultores sedentários e com os inimigos capturados e
incorporados como escravos em suas tribos, o aspecto físico original dos
Tuareg, branco e mediterrâneo, acabou se alterando. Os Tuareg sofreram
um processo de mestiçagem e hoje podem ser tanto de origem saariana
como de procedência subsaariana.
Há poucas informações sobre os Garamantes, o antigo povo da Líbia,
e além das referências dos gregos e romanos, os estudiosos contam com as
escavações arqueológicas nas áreas onde eles fundaram cidades, como sua
capital conhecida por Garama43. Nesta cidade, os vestígios indicam que os
Garamantes praticaram o comércio do sal, do trigo e de escravos com os
romanos, e importaram vinho, óleo e outros produtos necessários. No
século V a.C, Heródoto44 descreveu os Garamantes como um povo guerreiro
que vivia em “uma nação muito grande”, como criadores de gado,
agricultores e caçadores, acentuando que seus soldados conduziam carros45

40
Eram chamados de foggaras pelos Garamantes.
41
Conforme a referência do autor: (KI-ZERBO, J.). (Coord.). História da África Negra. In:
FOERSTER, 1893 apud OLDEROGGE, D. Migrações e diferenciações étnicas e lingüísticas. São
Paulo: Ática, 1980. v. I cap. 11, p. 389.
42
MOKHTAR, 1980, p. 531, cap. 11.
43
Hoje é a atual cidade de Germa.
44
Viveu em torno de 400 a.C.
45
J. Desanges explica que “a origem dos carros saarianos permanece desconhecida:
inteiramente em madeira e de concepção bastante simples, poderiam ter sido produzidos
segundo técnicas originais” (MOKHTAR, 1980, p. 440, cap. 17).
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 35-54, jul./dez. 2008 43
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puxados por quatro cavalos46. Segundo Heródoto, este povo dominou uma
antiga rota de comércio através do Sahara, desde a costa da atual Líbia até
o rio Níger, e seu reino exercia um controle sobre toda a região de Fezzan,
arrecadando tributos das tribos nômades e sedentárias dos arredores.
Se no primeiro momento, os Garamantes tentaram impedir o avanço
dos romanos nas fronteiras meridionais do Maghreb, conforme esclarece
Salama, em seguida, o reino dos Garamantes se transformou em “um tipo de
Estado-cliente do Império”. 47 Aliança que gerou contatos e trocas,
comprovadas nas ruínas de uma casa de banho romana encontrada em
Garama.
O declínio da civilização dos Garamantes está associado às violentas
alterações climáticas ocorridas no norte africano, que além de destruírem
seu modo de vida, romperam com sua unidade. Os povos Tuareg podem
representar o reagrupamento dos Garamantes, ressurgidos da fragmentação
e dispersão no Sahara. Warmington reforça esta idéia ao revelar que “a
semelhança observada entre a escrita líbia e o alfabeto Tuareg dos tempos
modernos continua inexplicada”48, uma lacuna que pode significar o elo
que falta para esclarecer a ancestralidade dos Tuareg. Salama concorda
com a possível relação de parentesco entre os líbios e os Tuareg, declarando
que: “vários pontos são inquestionáveis. O dessecamento do clima não
matou o deserto: a atividade humana se manteve. As línguas e a escrita se
consolidaram. Com a difusão do camelo, diminuíram os problemas de
transporte e comunicação”.49 O contexto descrito por Salama remete a
uma dialética relevante para a dispersão dos povos nômades no Sahara,
idéia que Willis compartilha e considera como a responsável na
consolidação das “redes de mercadores de longa distância”.50

4 Os Tuareg e as rotas transaarianas: intercâmbios


comerciais e a expansão do islã

As pesquisas indicam que na Antiguidade clássica três rotas


atravessavam o Sahara, no sentido norte e sul. As duas primeiras rotas
interligavam o Marrocos e a Tunísia à região da cidade de Timbuktu;
enquanto a terceira rota partia da Líbia, através de Fezzan e na direção do
lago Chade. Mesmo considerando que as rotas ainda demandam estudos
46
Silva também se refere aos carros puxados por cavalos que cruzavam o Sahara, e que
estão documentados nos “desenhos rupestres nos itinerários entre a Líbia e o Fezzan ou o
Tassili-des-Ajjers, ou entre o Marrocos e o Adrar mauritânio”. Regiões que fazem parte dos
territórios dos Tuareg (SILVA, 1996, p. 249).
47
MOKHTAR, 1980, p. 533, cap. 20.
48
MOKHTAR, G. (Coord.). A África Antiga. In: WARMINGTON, B. H. O período cartaginês. São
Paulo: Ática, 1980. v. II, (cap. 18), p. 471.
49
Id. 1980, p. 545, (cap. 20).
50
Também conhecida por Juula (WILLIS, Jr. John. 1688: o início da Era Moderna. Rio de
Janeiro: Campus, 2001, p. 60).
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 35-54, jul./dez. 2008 44
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mais minuciosos, há um consenso entre alguns historiadores de que não
ocorreu uma efetiva utilização das rotas saarianas na Antiguidade, pois
os indícios apontam para relações comerciais muito fugazes para este
período. Esta questão é levantada pelo historiador Salama, ao revelar que
“os únicos elementos de que dispomos para uma tentativa de reconstituição
dessa rede de caminhos são certos locais onde desembocavam vias naturais
(como Gadames ou a Phazania); a dispersão territorial dos objetos romanos
no Sahara e, finalmente, a comparação com as rotas de caravanas anteriores
ou posteriores ao período considerado”. 51 Problematizando esta
perspectiva, Warmington acrescenta que o comércio de marfim e peles
poderia ter ocorrido, mas considerando as condições climáticas do período,
estes produtos eram encontrados no Maghreb, dispensando a prática de
um comércio intensivo. Warmington chama a atenção para a ausência do
camelo no norte da África nesta época, o que “dificultaria enormemente
qualquer comércio de larga escala. Portanto, a integração das regiões
saarianas e transaarianas num conjunto cultural mais amplo deve ser
datada do início do período árabe”.52
A expansão árabe forneceu dados mais confiáveis para avaliar os
intercâmbios entre o Maghreb e o Bilad al-Sudan, contudo não se deve deixar
de considerar que, em torno de 2500 até 500 a.C, os pastores nômades já
circulavam na região central do Sahara, e muito freqüentemente se
deslocavam para o sul, na direção da Nigéria e do Chade, em busca de
pastagens para seus rebanhos. Nestas migrações internas, motivadas pela
progressiva dessecação do deserto, os pastores nômades difundiam o
conhecimento sobre práticas agrícolas herdadas de seus antepassados e
comercializavam seus produtos. De acordo com Mabogunje não houve
uma uniformidade no desenvolvimento do pastoreio na África, pois
“enquanto a maior parte das comunidades logrou dominar as variedades
menores de gado, apenas uma minoria conseguiu domesticar as maiores,
como foi o caso dos Tuareg do Sahara”.53 Mabogunje explica que os Tuareg
“continuavam ligados à vida pastoril, renunciando a qualquer tentativa
de combinar este modo de vida com a agrícola”54, o que é compreensível,
dada as novas condições climáticas do Sahara, seu habitat natural. O apego
dos Tuareg à prática pastoril impulsionou seu deslocamento na direção
das fronteiras meridionais do Sahara, promovendo as trocas com os povos
do Sahel e de Bilad al-Sudan. Silva enfatiza que “a transumância facilitava
os contatos e o comércio entre pastores e agricultores”55, e esclarece que as
relações entre estes dois grupos distintos nem sempre foram tranqüilas,

51
MOKHTAR, 1980, p. 539, cap. 20.
52
Id., 1980, p. 459, cap. 18.
53
KI-ZERBO, J. (Coord.). História da África Negra. In: MABOGUNJE. Geografia histórica:
aspectos econômicos. São Paulo: Ática, 1980. v. I (cap. 14), p. 359.
54
Ibid., p. 359.
55
SILVA, 1996, p. 31.
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 35-54, jul./dez. 2008 45
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pois os agricultores sedentários temiam que os pastores nômades
disputassem suas terras e o acesso às águas.
Os povos Tuareg se percebiam como guerreiros, uma consciência
nascida da luta constante pela sobrevivência frente à natureza do Sahara e
as tribos inimigas, o que potencializava o clima para as animosidades. Os
primeiros embates entre os pastores nômades e os agricultores na região
do Sahel, foram raízes dos confrontos históricos que mais tarde
aconteceram entre os Tuareg e os Impérios de Gana, Mali e Songai. Estes
conflitos persistiram e se avolumaram ao longo dos séculos, até se
transformarem nos enfrentamentos dos últimos anos, com os Tuareg lutando
pela autonomia de seus territórios em oposição aos interesses dos países
da Nigéria, Gana e Mali. Para Cissoko, compreender as atitudes de confronto
e violência que marcaram a história dos Tuareg significa superar as idéias
preconceituosas, e só então é possível entender “suas ações pelo contexto
histórico em que se encontravam”56, e haver justiça na análise.
Por outro lado, também foi possível uma convivência pacífica entre
os Tuareg e os agricultores de Sahel, e Silva pondera que “o longo contato
entre os povos agrícolas e pastoris muitas vezes se resolve numa espécie
de simbiose”57, gerando uma relação de jugo e de dependência ou uma
relação de associação de interesses e de colaboração mútua.
Além das três rotas citadas anteriormente, Monés descreve uma
outra rota que “atravessaria o Sahara de um lado a outro, quase na altura
de Ghat, no atual oásis no extremo sudoeste da Líbia”58, revelando que um
trecho desta rota não era percorrido com freqüência, sendo desconhecido
de muitos povos nômades. O autor explica que al-Idrîsî se referiu a este
trecho quando narrou sua experiência no ano de 530, ocasião em que
informou que a travessia exigia o auxílio de guias experientes e destacou a
presença do “povo do véu”59 neste percurso da rota. O costume de transitar
pela região da Líbia e o hábito deste povo de cobrir o rosto apontam para
os Tuareg, mas Monés adverte que também podem ser outros grupos
beduínos, como os sanhãyíes ou sanhadja. Neste caso, a observação de Monés
serve para reforçar a presença dos Tuareg nesta rota, pois segundo Cissoko,
a federação Tuareg Kel Antessar, também conhecida por “Magcharen”60, era
56
Cissoko se refere à idéia de violência que se formou em torno de Sunnï Alï Ber, o rei de
Gao, e as conquistas territoriais que geraram o Império de Songai, assim como o ataque aos
Tuareg em 1468, retirando Timbuktu de seu controle. Mas sua explicação pode ser estendida
também para outros confrontos dos povos Tuareg (NIANE, D. T. (Coord.). A África do século
XII ao século XVI. In: CISSOKO, Sékené, Mody. Os Songhai do século XII ao XVI. São Paulo:
Ática, 1980, v. II, (Cap. 20), p. 210).
57
SILVA, 1996, p. 32.
58
Conforme o texto, em espanhol, “[...] atravessaria el Sahara de um lado a outro, casi a la
altura de Ghat, el actual oásis em el extremo suroeste de Líbia” (MONÉS, Hussain. Las rutas
de comercio em el Sahara africano segun los escritores árabes. IV Congresso de Estudos
Árabes e Islâmicos - ACTAS. Lisboa, 1968, p. 514).
59
Conforme o texto, em espanhol “[...] la gente del Velo” (Ibid., p. 514).
60
Segundo o autor Sékéné Mody Cissoko, “Os “Magcharen”, não eram grupo étnico ou
clânico; constituíam a camada nobre da sociedade” (NIANE, 1980, p. 218, cap. 20).
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 35-54, jul./dez. 2008 46
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composta pelos “tuareg de origem Sanhadja da região de Timbuktu-
Walata”.61
A importância das rotas transaarianas pode ser explicada sob
diferentes ângulos e de acordo com a diversidade dos contextos, por onde
passavam seus traçados. Para Ducellier, as rotas explicam o crescimento
urbano, e ao se referir ao Maghreb salienta que “as cidades se desenvolveram
em função da sua situação relativa ao comércio transaariano” 62 ,
caracterizando-se como cidades escalas ou pontos finais das caravanas.
Já para Monés, as rotas representam “artérias de vida para as tribos”,63 do
Sahara, impedindo seu isolamento e desintegração. Para os Impérios de
Gana e de Mali as rotas significavam o fortalecimento de seu poder, que em
grande medida dependia da obtenção do ouro e de escravos nas regiões
mais ao sul do Sahel, para depois serem comercializados com os povos
mercadores que circulavam nas rotas transaarianas. Para evidenciar a
amplitude do sentido que as rotas tinham para os povos do Sahara, um
bom exemplo é dado pelo Império de Songai, que para garantir sua
hegemonia empreendeu uma ofensiva e conquistou as minas de sal de
Taghaza, localizadas estrategicamente no traçado das rotas transaarianas
que cruzavam o território dos Tuareg.
O sal era um produto raro e muito disputado, trocado às vezes em
peso de ouro, segundo Silva, porque “havia uma grande carência de sal
em quase toda a África”.64 Em algumas regiões do Sahara, a extração do sal
era a única atividade econômica, como nas minas de Taouden ou Taghaza,
cujo comércio foi controlado pelos Tuareg até a investida do Império de
Songai. Em 1352, o viajante Ibn Battûta descreveu em suas anotações uma
cidade construída com blocos de sal, como se fossem pedras, ao passar por
Taghaza. Os oásis de Karuar e de Bilma também foram etapas importantes
no comércio do sal, incluindo as pedras de alume, usadas pelos Tuareg para
tingir suas vestimentas na cor índigo.
A intensificação dos intercâmbios nas rotas que cruzavam seus
territórios, despertou nas tribos Tuareg o interesse para outras atividades
e, conforme Silva menciona, estes povos “passaram a ter na pilhagem, na
proteção das caravanas e no comércio novos meios de aquisição de
riqueza”65, além da prática tradicional da transumância de seus rebanhos.
Durante muito tempo, os Tuareg foram os responsáveis pelo intercâmbio
de artigos de luxo, como o ouro66 e os escravos da África, interligando
cidades no extremo sul do Sahara com a costa africana no Mediterrâneo,
para onde eram atraídos os homens de negócios de Barcelona, Majorca,
61
Ibid., p. 218.
62
DUCELIER, Alain; KAPLAN, Michel; MARTIN, Bernadete. A Idade Média no Oriente:
Bizâncio e o Islão. Lisboa: Dom Quixote, 1994, p. 205.
63
Conforme o texto, em espanhol “[...] arterias de vida para las tribus” (MONÉS, 1968, p. 512).
64
SILVA, 1996, p. 35.
65
Ibid., p. 249.
66
O ouro, que os árabes chamavam de tíbr, era transportado em pó ou em barras.
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 35-54, jul./dez. 2008 47
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Gênova, Veneza e Florença, na busca do ouro africano para cunhar suas
moedas. É desta forma que, segundo Heers, “o tráfico transaariano
ultrapassa amplamente o quadro das regiões ribeirinhas do deserto; e
insere-se num vasto movimento internacional que anima as cidades e as
rotas, mulçumanas ou cristãs, de todo o Mediterrâneo”.67 Na maioria das
vezes, a historiografia prefere prestigiar a conjuntura mediterrânea e
européia no que diz respeito ao comércio de produtos africanos, ocultando
ou se referindo com evasivas sobre o papel dos povos nômades do Sahara
nos intercâmbios com a Europa. A presença marcante dos Tuareg no
comércio do ouro é evidenciada no “Atlas Catalão”, que retrata a opulência
do Império de Mali e sua majestade Mansa Musa oferecendo uma grande
pepita de ouro para uma figura imponente montada em um camelo,
envolvida em tecidos azulados, usando turbante68 e com o rosto velado.
Vilar enfatiza a presença dos povos do deserto no tráfico do ouro,
afirmando que: “o ‘ouro das caravanas’, ouro em pepitas dos rios do Sudão
e de Gana, ia para o Egito e para o Maghreb, através do Sahara”.69
As mesmas rotas que promoveram os contatos comerciais e as trocas
culturais, também propagaram o islamismo. A rota que cruzava os oásis
do Egito e seguia até a região do Fezzan, passando por Kawwãr e prosseguindo
para sul, na direção do Sahel, desempenhou um importante papel na
penetração do islã no continente africano. E, para destacar a presença das
tribos Tuareg na difusão da religião mulçumana, Monés salienta que no
Fezzan, território dos Tuareg, a rota se bifurcava em outras direções e “cada
uma de suas etapas era um centro de irradiação do Islã e de sua cultura”.70
Mantran realça que “a conquista árabe, seguida de uma colonização
e arabização bastante lentas, no início provocou alguns choques entre
árabes e berberes”71, mas com o tempo os povos foram se identificando
com a língua e os hábitos, e a assimilação do islamismo se consolidou.
Existiam afinidades que eram respeitadas tanto pelos árabes crentes como
pelos nômades pagãos, como a solidariedade e o código de honra, incutidas
em suas mentalidades antes mesmo do encontro de suas culturas. Enquanto
para Miquel, a conversão dos povos do Sahara se efetivou, em grande parte,
porque os árabes traziam um “projeto de vida”72, que envolvia o cotidiano
e a realidade destes povos, o que vem explicar o islã militante que os Tuareg
praticaram a partir de sua conversão. Neste sentido, a conversão da tribo

67
HEERS, Jacques. História Medieval. São Paulo: Difel, 1977, p. 343.
68
O conjunto é composto por um longo pano que forma o turbante, chamado de chech, ao
qual é amarrada a peça de pano que os Tuareg cobrem o nariz e a boca, chamada lithan..
69
VILAR, 1980, p. 43.
70
Conforme o texto, em espanhol, “Cada una de sus etapas era un centro de irradiación del Islam
y de su cultura” (MONÉS, 1968, p. 513).
71
MANTRAN, Robert. Expansão Mulçumana (Séculos VII-XI.) São Paulo: Pioneira, 1977, p. 210-211.
72
Conforme o texto, em espanhol, “[...] proyecto de vida” (BALTA, Paul. Islam. Civilizacion y
sociedades. In: MIQUEL, André. Las primeras conquistas. Madri: Siglo Vintiuno de Espana,
[s.d.], p. 88).
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dos Almorávidas 73 à religião mulçumana, se refugiando em um
monastério74 e organizando um exército para levar adiante uma ofensiva
em nome de Alá, uma guerra santa visando promover a ortodoxia do Islã,
foi emblemática da militância em favor do islamismo.
Mais recentemente, a pesquisa de Farias tem revolucionado o que
até então alguns historiadores africanistas consideravam como verdades
acabadas. Triaud destaca em sua resenha, que Farias revela novas
possibilidades de leituras e interpretações historiográficas ao mostrar que
as “fontes escritas, tradições orais Tuareg e Songhay e mitos se entretecem
para formar uma nova textura”75. A hipótese de Farias, formulada no
contexto das rotas transaarianas e baseada na análise das epigrafias
tumulares de elites locais, afirma que o “encontro e a confrontação da
escrita árabe com a escrita tifinagh, teria provocado um feito de interação
do qual a epigrafia seria testemunha”76, realçando assim a interação
cultural entre os árabes e os povos nômades do Sahara.
O avanço do Império Otomano na região do Maghreb reduziu a
intensidade do comércio e das trocas culturais através das rotas
transaarianas. E no final do século XV, quando os portugueses alcançaram
o litoral do golfo da Guiné e o tráfico do ouro e de escravos foi deslocado
para as regiões ao sul, as rotas transaarianas perderam grande parte dos
intercâmbios e, sem eles, a importância que outrora tivera.

5 Aspectos sócio-culturais dos Tuareg

O nome Tuareg foi dado pelos árabes aos povos nômades,


considerados povos “abandonados de Deus” antes de sua conversão ao
islã. No entanto, os Tuareg tinham o costume de se autodenominarem em
função das tribos as quais pertenciam, e embora estivessem divididos em
diversas tribos e subtribos eles se consideravam partilhando de uma
mesma cultura, respeitando os mesmos valores, honrando as mesmas
tradições e se expressando na mesma língua, a tamasheq. Para Störig,
“apesar da supremacia atual do árabe, as tribos berberes, como os Tuareg,
[...] conseguiram conservar suas línguas naturais (ou dialetos; as línguas
berberes são bastante semelhantes entre si)”77, o que reforça a idéia de que
73
Os Almorávidas devem seu nome ao termo al-Murâbitun, de ribât, ou seja, aquele que vive
em um mosteiro. Em suas origens, eles eram nômades da tribo dos Lamtûna, fazendo parte
dos povos Tuareg que habitam as regiões de Tagant e Adrar.
74
Ribât, em árabe.
75
Citado por Jean-Louis Triaud, ao se referir à pesquisa de Paulo Fernando de Moraes
Farias (TRIAUD, Jean-Louis. Uma nova Idade Média saeliana a partir das inscrições árabes
da República do Mali. Revista Afro-Ásia, Salvador: UFBA, n. 34, 2006, p. 319).
76
Citado por Jean-Louis Triaud, ao se referir à pesquisa de Paulo Fernando de Moraes
Farias (Ibid., p. 322).
77
STÖRIG, Hans Joachim, A aventura das línguas. Uma viagem através da história dos
idiomas do mundo. São Paulo: Melhoramentos, 1992, p. 179.
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 35-54, jul./dez. 2008 49
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os Tuareg sempre procuraram preservar sua identidade e seus traços
culturais. A língua tamasheq, com profundas modificações em relação às
suas origens e forma remota, seria uma derivação de uma antiga língua
datada para o período da Antiguidade, conhecida por “líbia”, do tronco
das línguas camito-semita. As investigações voltadas para o
esclarecimento da relação de ancestralidade entre os Tuareg e os Garamantes
foram impulsionadas com o estudo da língua tamasheq, e Salama reforça
que “não há dúvida de que a introdução dessa língua (tamasheq) no Sahara
ocorreu no norte ou nordeste, com a imigração de populações brancas”78.
Assim como a língua tamasheq, a escrita praticada entre os Tuareg, conhecida
por tifinagh e derivada do alfabeto líbio, também sugere este parentesco.
As diversas tribos Tuareg se dividiam hierarquicamente, em classes
sociais, que incluía a nobreza, tribos que pagavam tributos, escravos e
escravos libertos. A nobreza79 Tuareg sempre priorizou a pureza de sua
linhagem aristocrática e conservam ainda hoje suas características
mediterrâneas, em grande medida, íntegras. Quanto à concepção de
“escravo”80 para os Tuareg, é importante sublinhar que este conceito deve
ser entendido no contexto das vitórias e derrotas tribais, pois embora os
Tuareg participassem ativamente do comércio transaariano de escravos,
não costumavam escravizar para comercializar. O que não acontecia com
os povos de Bilad al-Sudan, que atacavam tribos, independente de suas
etnias, caçando homens para transformarem em seus escravos ou para
serem negociados com os mercadores das rotas transaarianas. Homens
negros caçados por outros negros, transportados nas caravanas dos Tuareg
e destinados ao comércio de escravos com os brancos, prática que ia muito
além das fronteiras do Sahara.
Para Gellner, os Tuareg “têm uma ideologia matrilinear e possuíram,
em algum grau que nunca foi corretamente investigado, uma organização
social matrilinear”81, que pode ser vislumbrada em um antigo ditado
saariano que conta que “as areias são dos homens e as aldeias das
mulheres”, deixando bem claro o papel de destaque que as mulheres tinham
na coletividade das tribos Tuareg. Uma posição de prestígio que remete à
lenda da rainha Tin Hinan, a ancestral dos Tuareg da região de Hoggar.
Mesmo contrariando os ensinamentos do Corão, os Tuareg
continuaram defendendo a igualdade de direitos para ambos os sexos e
suas mulheres desfrutavam da liberdade de cobrir ou não seu rosto com o
véu. Ibn Battûta, viajante islamizado e defensor do uso do véu feminino,
ficou surpreso ao se deparar com as mulheres das tribos Tuareg no Sahara,

78
MOKHTAR, 1980, p. 532, cap. 20.
79
Inmouchar, denominação da categoria social mais elevada entre os Tuareg.
Haratim, escravos que serviam às tribos Tuareg semi-nômades dos oásis. Akli, escravos
80

provenientes das tribos Tuareg dominadas e escravizadas por outras tribos e sub-tribos Tuareg.
81
GELLNER, 1997, p. 187.
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 35-54, jul./dez. 2008 50
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comentando em sua rihla82, ao se referir as mulheres berberes da terra dos
Bardäma, como “as mais lindas e de mais belo rosto que há”83, acrescentando
que “entre eles a mulher goza de uma dignidade maior que a do homem”.84
Estas impressões podem ser explicadas porque Ibn Battûta desconhecia os
costumes e as tradições dos Tuareg e não estava familiarizado com o islã
praticado pelos povos do Sahara, que não seguia as mesmas regras e
tradições do Corão. Ibn Battûta tinha sido convertido ao islã que pregava
a supremacia masculina e orientava que “o homem tem autoridade sobre
a mulher, porque Deus fez um superior ao outro e porque ele gasta sua
fortuna mantendo-a; assim, a boa mulher é obediente, protegendo as partes
invisíveis porque Deus as protegeu”.85 O islamismo não excluiu as antigas
crenças dos povos Tuareg, mas deu espaço para a emergência de um
sincretismo religioso, onde as crenças animistas 86 pré-islâmicas
sobreviveram. Os Tuareg mantiveram suas crenças tradicionais e
praticaram o islamismo de maneira fluída e híbrida, constatado por Salam,
ao salientar que “o povo segue sendo parcial ou totalmente pagão”.87 O que
foi possível porque desde o século XI, quando os ulemás e os peregrinos
mulçumanos acompanhavam as caravanas nas rotas transaarianas com
a intenção de converter os mercadores nômades do Sahara e os reis dos
Impérios abaixo do Sahel, o islã e as crenças africanas coexistiram
pacificamente, o que foi determinante para a preservação da tradição dos
povos do Sahara.

6 Considerações finais

No imaginário popular do mundo ocidental, os povos nômades são


associados aos exóticos homens que percorrem o Sahara em lentas caravanas
de camelos. Uma visão que em alguns pode despertar anseios de uma
liberdade perdida, considerando os nômades como um dos últimos povos

82
Almeida explica em seu artigo que a Rihla, além de ter um sentido de relato de viagem,
destacando as maravilhas e os costumes de lugares distantes e exóticos, também reflete em
sua narração a sociedade, seus valores e sua história, sendo um importante documento
para ser consultado como fonte (ALMEIDA, Maria Cândida Ferreira de. Palavras em viagem:
um estudo dos relatos de viagens medievais mulçumanos e cristãos. Revista Afro-Ásia,
Salvador: UFBA, n. 32, 2005).
83
Conforme o texto, em espanhol, “[...] las más hermosas y de más bello rostro que hay” (IBN
BATTUTA. 1987, p. 789).
84
No texto, em espanhol, “Entre ellos la mujer goza de una dignidad mayor que el hombre” (Ibid.,
p. 789).
85
Sura 4:31 (LINHARES, 1982, 21).
Permanência da presença do espírito Kel Esuf que ataca o rosto e os cabelos causando a
86

morte, e do Gri-Gri, o espírito maligno que trazia as desgraças para as tribos Tuareg.
87
Conforme o texto, em espanhol, “...el pueblo sigue siendo parcial o totalmente pagano”
(SALAM, Abdus. Islam, Civilización y Ciencia. Trabalho apresentado na Conferência organizada
pela Unesco, “Islam et Occident”, 1984, p. 115).
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 35-54, jul./dez. 2008 51
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livres do planeta. No entanto, esta noção há muito já não corresponde
mais a realidade destes povos.
Assim como seus ancestrais, os Tuareg dominaram os territórios do
Sahara onde a presença da água era a determinante para o traçado das
rotas transaarianas, transformando os oásis no ponto de encontro onde
os intercâmbios culturais e comerciais se realizavam. Quando a água se
tornava escassa, estes povos nômades se deslocavam para outras direções
na imensidão do Sahara, até encontrarem suas valiosas fontes. Após o
período colonial francês, os povos Tuareg perderam esta liberdade de ir e
vir, limitados pelas fronteiras territoriais que se constituíram neste período.
Barreiras que desconheciam e que aprenderam a desprezar. O Sahara, até
então, a unidade articuladora dos contatos dos povos Tuareg, acabou se
transformando na zona de disputas imperialistas e de acordos
diplomáticos que fragmentaram seu território.
Marginalizados pelos governos dos países do Sahel e da costa do
Mediterâneo, com exceção da Líbia, os Tuareg retomaram suas lutas, agora
para superar as limitações impostas pela constante escassez de alimentos
e para garantir sua autonomia como povo livre do Sahara.
Foi a partir de Agadez88 que os Tuareg separatistas se organizaram e
deram início a uma onda de rebeliões em 1990. Entre outras reivindicações,
defendiam o direito de suas crianças aprenderem a língua tamasheq nas
escolas que freqüentavam nas cidades, onde agora viviam muitas de suas
tribos.
Este estudo procurou conhecer um pouco mais do universo dos
Tuareg, mas não se esgota aqui. Ainda há muito para ser analisado e pensado
sobre seus códigos e dinâmicas culturais. Também foi uma tentativa de
prestar uma homenagem, sem pretensões, com um olhar de simpatia por
sua história de lutas, passadas e presentes. Uma tentativa limitada pela
dificuldade de tecer sua história com os fragmentos bibliográficos que
puderam ser encontrados e recolhidos. Mesmo assim, uma tentativa que
possa contribuir para chamar a atenção do papel histórico dos Tuareg no
passado do Sahara, mantendo viva a imagem das caravanas de camelos
atravessando as rotas transaarianas, sob o comando de enigmáticos Tuareg,
envolvidos em tecidos azulados e com seus rostos velados.
Recebido em outubro de 2008.
Aprovado em novembro de 2008.

Title: Tuareg, The Blue Men of the Sahara: History of a Nomadic People

Abstract
This paper aims to examine the Tuareg trajectory, one of the most important groups of
nomadic people in the Sahara, in order to recover their ancestry, trace their history, and
explain their presence in the gold trade in the trans-Saharan route as well as their role in

88
No século XIV os povos Tuareg fundaram sua capital no Sahara, chamada Agadez, onde
Silva salienta que “tinha assento o Sultão dos Tuareg do Air, Muhamed Talzi Tanet” (SILVA,
1996, p. 523).
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 35-54, jul./dez. 2008 52
Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras>
the expansion of Islam throughout the African continent. This paper also emphasizes
presuppositions which explain the persistence and ruptures that contextualize their
historical process.

Key-words: Exchange. Nomadic people. Trans-Saharan route.

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