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Carlos B. Vainer*
I. INTRODUÇÃO 1.
Tal monotonia encontra apoio em uma literatura preocupada antes “em detectar
regularidades e generalizar efeitos a partir de estudos feitos em contextos sociais
distintos” (Sigaud, 1986) que em entender os processos sociais diferenciados que
intervenções vindas de cima engendram em cada caso. Tendo abdicado de questionar ou
problematizar a natureza, o sentido e as forças econômicas e políticas que estão à
origem dos empreendimentos, invocando um auto-complacente realismo que os toma a
priori como inexoráveis e/ou benéficos2, esta “antropologia de barragens” (Sigaud,
1986) contenta-se em produzir sugestões para minimizar ou reparar os impactos – ou, na
linguagem da última metodologia em voga, prevenir os riscos (Cernea & McDowell,
2000) – que se abatem sobre as populações.
“os setores sociais atingidos pela mega-obra são recuados para um lugar
de fundo, de “ambiente, sobre o qual e contra o qual se desenha uma
forma: a obra. As populações humanas são assimiladas a uma natureza, e
a obra recolhe em si os valores de sujeitos” (Castro e Andrade, 1988, p.10).
3
O Banco Mundial, o BID e demais agências internacionais, assim como organismos nacionais, utlizam o
eufemismo reassentamento involuntário para designar os processos de deslocamento compulsório que, na
verdade, constituem o primeiro e principal efeito social da implantação de grandes lagos aritificiais. O
reassentamento, como é sabido, nem sempre ocorre, e quando ocorre, tem sido muitas vezes o resultado
da pressão dos movimentos sociais para minimizar as perdas resultantes do deslocamento forçado. A luta
simbólica que se trava a partir e em torno à nomeação dos processos sociais involucrados na implantação
de grandes barragens oferece, por si só, material suficientemente para um trabalho específico, mas que
escapa ao escopo deste trabalho. Algumas contribuições para esta análise encontram-se em Castro. E
Andrade, 1988; Sigaud, 1986, s.d. e 1988; Vainer, 1996.
4
No limite, a perspectiva que informa os estudos oficiais consegue pensar as resistências como
resistências (culturais) à mudança, na tradição de uma sociologia funcionalista do desenvolvimento,
muito em voga nos anos 50 e 60, e que, no fundo, acusava as populações dos países desenvolvidos de
irracionais, posto que resistentes à racionalidade imanente à acumulação capitalista.
O resgate da história deste movimento coloca desafios que ultrapassam de muito
as possibilidades deste pequeno trabalho. Em primeiro lugar, porque não dispusemos
dos meios e tempo para sistematizar o abundante material empírico necessário para tal
empreendimento. Em segundo lugar, porque as informações disponíveis na bibliografia
– artigos, relatórios de pesqsuisa, e, sobretudo, dissertações de mestrado e teses de
doutorado – constituem, quase sempre, o resultado de estudos de caso, em que se
examinam impactos sociais e ambientais e conflitos resultantes da implantação de
barragens, particularmente para a geração hidrelétrica. Por outro lado, não se encontra
na literatura qualquer trabalho que possa servir de referência para uma abordagem do
movimento nacional. Tais carências se compreendem quando se tem em vista que
apenas 13 anos nos separam do I Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por
Barragens, reunido em Goiânia, em abril de 1989. Há apenas 11 anos reuniu-se o I
Congresso Nacional de Atingidos por Barragens, quando se deliberou constituir o MAB
– Movimento (Nacional) de Atingidos por Barragens.
5
Note-se que este número encontra-se aquém do número total de movimentos de resistência, pois há
vários (quantos?) que se desenvolvem e desenvolveram à margem do MAB. Pesquisa realizada sobre os
projetos de implantação de barragens hidrelétricas no Vale do Ribeira, atingindo áreas dos Estados de São
Paulo e Paraná, permitiram tomar conhecimento de uma curiosa situação: do lado paulista se estruturou
um movimento – Movimento dos Ameaçados pelas Barragens do Vale do Ribeira (MOAB) – com estreita
vinculação com o MAB nacional, inclusive com um seu representante na Executiva Nacional; do lado do
Paraná surgiu um movimento, sem qualquer vínculo com o MAB, que, embora mais passageiro e menos
orgânico, atuou de forma vigorosa no período de audiências públicas do processo de licenciamento
ambiental (Lemos, 1999).
movimentos locais e, de maneira combinada, retraçar a história do movimento nacional.
Mais que isso: seria necessário, de um lado, capturar os complexos processos através
dos quais os movimentos locais e regionais, nem sempre de maneira harmoniosa,
caminharam em direção à constituição do MAB nacional; de outro lado, haveria que
examinar a forma como os movimentos locais/regionais informam a ação do movimento
nacional e vice-versa.
II. AS ORIGENS.
6
As referências aqui utilizadas sobre Itaipu e sobre o Movimento Justiça e Terra foram Germani, 1982 e
Soares, 2001
7
A Usina Hidrelétrica de Itaipu, maior usina hidrelétrica do mundo, com 12.600 Mw de potência
instalada, e pertence à empresa Itaipu Binacional, resultante de um tratado firmado entre o Brasil e o
Paraguai. Seu reservatório ocupa aproximadamente 1.350 km2, e sua implantação exigiu o deslocamento
de 42.444 pessoas, das quais 38.445 na área rural.
várias ocasiões, o papel de mediadores entre os agricultores e as autoridades, seguindo
um padrão bastante usual nestes cinzentos tempos de ditadura militar. A CPT e, logo,
também, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, passam a pressionar o governo,
através de denúncias, inclusive através da imprensa, para que negocie melhores
condições de indenização. Germani relata que, paralelamente, e de forma independente
da ação da CPT, agricultores do município de Marechal Cândido Rondon contratam os
serviços de 3 advogados pra constentar os valores oferecidos pela empresa8. Mobilizam-
se, igualmente, sindicatos de trabalhadores rurais, na esteira do Sindicato de
Trabalhadores Rurais de São Miguel de Itaipu, que buscava defender os direitos à
indenização dos colonos assentados no Projeto Integrado de Colonização de Ocoí (PIC-
Ocoí). A imprensa local e regional registra, de várias maneiras, as lamentações e
frustrações da população local pelos impactos ambientais e, sobretudo, no município de
Guaíra, pela perda que representará o desaparecimento dos Saltos de Sete Quedas
(Soares, 2001).
As peripécias por que passou este movimento são muito similares àquelas
vividas por muitos dos movimentos reivindicatórios de base popular à época:
manifestos, abaixo-assinados, forte presença dos mediadores das Igrejas9, reuniões e
assembléias que conscientizam número crescente de agricultores de seus direitos e da
possibilidade de organizar-se e de lutar. Se durante algum tempo a intransigência da
empresa funcionara como eficaz mecanismo de pressão para que os agricultores
aceitassem acordos extorsivos, a partir do momento em que se estrutura o movimento, a
mesma intransigência passa a provocar o efeito contrário: indignação, ampliação e
radicalização da resistência.
8
Segundo Germani, este grupo não era muito expressivo e estava sob a liderança de políticos ligados à
Aliança Renovadora Nacional – ARENA -, partido dos militares no poder.
9
Depoimento exemplar da perspectiva de muitos dos religiosos progressistas que na segunda metade dos
anos 70 e no início dos anos 80 desempenharão papel central na organização de base de movimentos
populares em todo o país, e particularmente no campo, é o do Secretário da CPT-Paraná, Pastor Werner
Guchs “O nosso interesse não é controlar um movimento dos agricultores, embora os estimulemos.
Nosso objetivo é despertá-los para a solução de seus próprios problemas. Apenas no final do processo de
conscientização, nós entramos com nossa participação física, que é dar voz às reivindicações por eles
apresentadas <…> Não entendemos como alguém que vai em frente, ou que puxa o barco, ou que, como
herói, vai lutar em lugar do povo. Nós entendemos que todos devem acompanhar esse trabalho, pois se
trata de um trabalho coletivo, um trabalho de equipe. E nós estamos aí para dar ânimo ao agricultor
para que ele mesmo faça sua reivindicação, mas de forma pacífica. Estamos preparados para uma
caminhada muito longa” (Jornal “Rondon-Hoje, 5/12/78; apud Germani, p. 27).
julho, os agricultores cercam o escritório da empresa em Santa Helena, cantam o hino
nacional e uma liderança lê o comunicado “Ao povo, ao Governo e à Itaipu”,
reinvidicando indenização imediata com reajuste de 100%, reassentamento no Estado
do Paraná, indenização das redes elétricas. Durante vários dias os expropriados de Itaipu
vão receber a solidariedade de várias entidades, religiosas e leigas, parlamentares,
movmentos sociais, com expressiva repercussão na imprensa. Viviam-se os últimos
momentos da ditadura militar, avançava a luta por eleições diretas. Nascia o Movimento
Justiça e Terra. Nascia a luta organizada dos atingidos por barragens.
Itaipu não é importante apenas por ser a maior usina hidrelétrica do mundo, nem
porque, por esta razão, se transformou em símbolo da engenharia nacional e da potência
do estado, orgulho maior do Setor Elétrico. Itaipu não é importante apenas porque que
foi onde, de certa maneira, teve início a luta dos atingidos de barragens no Brasil. Itaipu
é importante também porque o desprezo com que foram tratados os atingidos e seus
direitos tornaram-se exemplares. Quando, em 1979, correm na região do Alto Rio
Uruguai as primeiras notícias de que que serão construídas 25 usinas na bacia, 3 das
quais binacionais, atingindo os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina,
expulsando de 200.000 a 300.000 pessoas, o exemplo dramático dos expropriados de
Itaipu será evocado por aqueles que tomam a iniciativa de informar, organizar e
mobilizar os agricultores11.
10
Além de seu conhecimento pessoal do processo, o autor recorreu aos seguintes trabalhos: Moraes,
1996, Sigaud, 1986; Medeiros, 1989; Grzybowski, 1987; Vainer, 1990.
11
Além do triste exemplo de Itaipu, também é mencionada na região a dramática experiência dos
“afogados de Passo Real”, barragem de menor porte construída na região.
12
Neste trabalho inicial de informação e organização, desempenharam papel relevante, além de setores
progressistas da Igreja Católica e da IECLB, professores da Fundação Alto Uruguai de Pesquisa e Ensino
Superior (FAPES), de Erexim, instituição de ensino superior com atuação regional. Segundo Moraes, foi
a “missão de alerta” junto às comunidades a que se lançaram os agentes de pastorais e professores que
“deu ao Movimento sua marca diferenciadora: o fato de ter se organizado antes mesmo do anúncio
oficial do projeto” (Moraes, 1996:139)
uma comissão geral, cuja Comissão Executiva constituirá a direção do movimento.
Assembléias gerais que se reúnem a cada 3 anos ou em situações excepcionais vão
completar a estrutura do movimento13.
“No início dos anos 80, a luta pela terra na sua forma recorrente em
diversos momentos da história do pais, ou seja, envolvendo posseiros e
grileiros, rendeiros, foreiros ou parceiros e proprietários de terra e, mais
modernamente, posseiros e beneficiários de grandes licitações de terra
feitas durante o regime militar, se intensificou. Mas a ela agregaram-se
novos personagens, gerados na expulsão de segingueiros nativos, para
transformá-los em pastagens, na construção de barragens para usinas
hidrelétricas ou pela exclusão a que milhares de trabalhadors agrícolas
foram condenados frente ao rápido avanço da modernização do campo. Foi
nesse caldo de cultura que novas formas de luta surgiram e que a demanda
por reforma agrária se intensificou” (Medeiros, 1989 – ênfase C.B.V).
13
Esta organização é a que predominará na segunda metade dos anos 80. Com a estagnação econômica,
que se aprofunda na segunda metade dos anos 80 e início dos 90, desacelera-se a execução do plano de
expansão do Setor Elétrico e, em consequência, o plano de construção de barragens na Bacia do Rio
Uruguai. Do ponto de vista do movimento, a consequência será uma progressiva desmobilização e
desestruturação de muitas das organizações de base, restringindo-se o movimento quase que apenas às
barragens de Itá e Machadinho, as duas primeiras usinas do cronograma da Eletrosul. Por outro lado, com
a constituição dos primeiros reassentamentos dos deslocados pela barragem de Itá, a representação dos
reassentados também se fará presente da CRAB. Houve, ao longo do tempo, várias reestruturações,
fundindo ou eliminando regiões. As comissões por comunidade ou linhas, após um largo período de
relativa desmobilização e desestruturação das bases, estão sendo substituídas, como unidade organizativa
de base, pelos grupos de base, reunindo de 5 a 10 famílias. Mais adiante esta forma de organização
voltará ser referida e examinada.
de Assuntos Fundiários. Após ter timidamente pedido, a exemplo do movimento Justiça
e Terra, “indenizações justas”, a CRAB havia dado prioridade à luta por “terra por
terra”, enfatizando a necessidade de reassentar os colonos compulsoriamente
deslocados. Agora, era o confronto aberto, a luta contra a construção das barragens:
“Terras Sim, Barragens Não”
Esta situação parece ter propiciado as condições para que tanto a Eletrosul
quanto a CRAB caminhassem em direção ao acordo de 1987. Do ponto de vista das
lideranças da CRAB o acordo significava, de fato, o reconhecimento e aceitação tácita
da construção de barragens na bacia do rio Uruguai, pelo menos das barragens de Itá e
Machadinho. Do ponto de vista da Eletrosul, e do Setor Elétrico brasileiro, era o
reconhecimento da CRAB como representante legítimo dos atingidos e o compromisso
com uma série de condições para seguir adiante com o projeto. Dentre estas, as mais
importantes eram: fim das negociações individuais e aceitação de que todas as
negociações seriam feitas, comunidade por comunidade, com a presença de
representantes da CRAB; atrelamento do cronograma das obras ao cronograma de
negociação e solução dos problemas sociais; oferta a todos os atingidos, inclusive aos
não proprietários, da possibilidade de reassentamento coletivo15.
A história da luta após o acordo histórico de 1987 pode ser descrita em poucas
palavras: luta pelo cumprimento do acordo. A crise econômica enfrentada pelo país,
com seus reflexos no Setor Elétrico, provocaram a suspensão dos movimentos da
Eletrosul em direção à realização das demais barragens. Mesmo no caso de
Machadinho, que encabeçava o cronograma de obras do Plano 2010, a paralisação é
aparentemente total; em Itá, as obras prosseguem lentamente, com vários períodos de
interrupção. O Movimento, evidentemente, reflete estas peripécias, concentrando seus
esforços na mobilização dos atingidos de Itá pelo cumprimento do acordo de 1987 e na
organização dos reassentados.
14
Esta avaliação aplica-se muito mais aos atingidos pela barragem de Itá que aos atingidos pela barragem
de Machadinho. Sinteticamente pode-se dizer que, por razões que anda precisam ser melhor analisadas, a
resistência e organização foi bastante mais forte em Machadinho que em Itá, favorecendo avanço mais
rápido das obras neste segundo empreendimento. Assim, em 1987, quase toda a cidade de nova Itá estava
construída, enquanto as obras relativas a Machadinho encontravam-se na estaca zero. Embora
originalmente prevista como a primeira obra a ser realizada na bacia, Machadinho foi levada a cabo
apenas na segunda metade do anos 90, e segundo um desenho que reduziu em cerca de 50% o número de
famílias a serem deslocadas. Acerca das estratégias de negociação coletiva, do movimento, e de
negociação individual, dos empreendedores, ver Vainer, 1990 e 1997.
No sul do país os relatos acerca dos dramas enfrentados pelos expropriados de
Itaipu e os afogados de Porto Real funcionaram como advertência do que poderia vir a
ocorrer na bacia do rio Uruguai se os atingidos não se organizassem; no Vale do São
Francisco, no Nordeste, papel similar foi desempenhado pela construção, no início dos
anos 70, das barragens de Moxotó e, sobretudo, Sobradinho, feitas sem qualquer
consideração para os problemas sociais.
2.4. Tucuruí.
21
O descumprimento dos acordos, em particular no que se refere à criação de condições para a atividade
agrícola produtiva, em virtude do atraso nos programas de irrigação, levou a situações de de verdadeira
anomia em alguns reassentamentos: desesperança, desagregação familiar, alcoolismo e rusgas
permanentes passaram a dominar o quotidiano de trabalhadores reduzidos à desocupação e ociosidade.
Apesar deste verdadeiro escândalo, fracassou a tentativa de instaurar um painel junto ao Banco Mundial,
que apoio parte do projeto.
Como nos outros casos, a luta pelo cumprimento dos acordos se mostra tão
árdua quanto a luta por abrir as negociações. As obras civis prosseguem num ritmo, as
indenizações e reassentamentos em outro, muito mais lento. As comportas são fechadas
em setembro de 1984, quando grande parte dos expropiados, nos municípios de Jacundá
e Itupiranga, ainda não haviam recebido seus lotes. Para agravar a situação, grande parte
dos reassentados descobrem, com surpresa, que seus lotes estavam em área dos índios
Parakanã, cujo território também tinha sido inundado. Nestas condições, diante da
iminência de confronto com os índios, muitas famílias abandonam os lotes.
Novo ato público encontra forte aparato repressivo bloqueando a estrada que
leva à cidade de Tucuruí. Em Belém, capital do estado do Pará, entidades democráticas
pressionam o governador a levantar o cerco à cidade e permitir a livre manifestação. E
assim, novo acampamento se forma às portas do Escritório do Serviço de Patrimônio
Imobiliário da ELETRONORTE22. Novas negociações em Brasília, enquanto mais de
2.500 pessoas encontram-se acampadas em Tucuruí. Os problemas centrais da
negociação apontam para a resolução do problema dos Parakanã, indenizações, ajuda
financeira para preparar a terra nos novos lotes, demarcação dos lotes, etc.
A luta pelo cumprimento do acordo, como nos outros casos relatados, passa a ser
o objetivo central do movimento. Mas, neste caso, a realidade torna-se ainda mais
dramática em virtude do fato de que 600 famílias já reassentadas têm suas terras
tomadas pelo lago: a ELETRONORTE se havia equivocado na demarcação das áreas a
serem inundadas! Em outra trágica demonstração de irresponsabilidade, em que a
dimensão social da degradação ecológica alcança uma dimensão exemplar, a margem
esquerda do reservatório, onde havia sido assentada a maioria dos expropriados, é
infestada por uma praga de mosquitos até então desconhecidos na região.
É em meados dos anos 80, como se viu, que cresce, nas diferentes regiões, a
organização e combatividade dos atingidos por barragens. É também período de
22
Que a “questão social” seja tratada pelo Serviço de Patrimônio Imobiliário é apenas uma demonstração
do que, em outros trabalhos, designei de estratégia territorial patrimonialista (Vainer, 1990) das
empresas do Setor Elétrico. Estratégia territorial porque seu objetivo nuclear é a “limpeza do território”,
na perspectiva de força de ocupação; estratégia patrimonialista porque apenas reconhece, neste território,
propriedades. A estratégia territorial patrimonialista reduz o espaço social a território, e o território a
propriedade fundiária.
crescimento dos movimentos rurais de modo geral. Em 1985 o Movimento dos Sem
Terra realizou seu primeiro congresso, com 1.500 delegados, representando 20 estados.
Em maio, seguindo o exemplo de cortadores de cana da Zona da Mata Pernambucana,
cerca de 80.000 trabalhadores volantes, cortadores de cana e apanhadores de laranja,
entram em greve no estado de São Paulo, no mesmo momento em que se reúne o IV
Congresso da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais, promovido pela
Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura. O acirramento das lutas no
campo conduz, um pouco por toda parte, a que militantes combativos conquistassem as
direções de muitos sindicatos até então sob controle de dirigentes burocratizados ou
mesmo comprometidos com o governo ou com os grandes proprietários. No âmbito
sindical, cresce a Central Única dos Trabalhadores e seu Deparamento Nacional de
Trabalhadores Rurais, que concorre com a CONTAG pela hegemonia no sindicalismo
rural.
23
Que os movimento tenha assumido a categoria descritiva com que são designados pelo Setor Elétrico e
pelos estudos de impacto não parece incomodar seus militantes e lideranças. Como tampouco lhes cria
problema que esta designação venha de uma forma verbal passiva. Ao contrário, via de regra os militantes
enunciam com um certo orgulho o fato de serem atingidos por tal ou qual barragem, quando se
apresentam nas reuniões.
Para o Setor Elétrico, e para os promotores de grandes projetos em geral, a categoria de “atingido” é
perfeitamente compatível com uma perspectiva que vê as populações com incapazes de agir e, portanto,
designadas por um qualificativo que as associa à passividiade. O movimento, ao contrário, pretende
justamente impedir que o “atingidos” fiquem passivos. O paradoxo poderia ser enunciado da seuinte
maneira: o movimento de atingidos tem como objetivo impedir a existência de atingidos e fazer com que
os atingidos não o sejam, ou, na pior das hipóteses, o sejam na menor medida possível.
Para uma discussão sobre a noção de “atingido”, ver Faillace, 1989.
condições de vida” (10 Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por
Barragens:34).24
Neste tema veio à tona o paradoxo enfrentado por um movimento que luta por
uma nova política energética da qual sejam banidas as grandes barragens e,
simultaneamente, reivindica melhores indenizações e condições de reassentamento para
os atingidos. De uma maneira ou de outra, estava colocado em pauta, igualmente, o
lugar da negociação na estratégia do movimento. Houve relativo consenso de que
“negociações e acordos sobre indenizações, reassentamentos, etc, remediam um fato
consumado, não repondo, nos casos acontecidos até o presente, os custos sociais e
ambientais impostos” (10 Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por
Barragens:34)
Organização do movimento
24
Esta definição respondia, de maneira clara, às experiências vindas de Tucuruí, onde se mobilizaram as
populações a justante. A CRAB, que já havia enfrentado regionalmente esta discussão, reagia a qualquer
ampliação do conceito, temerosa que isto permitisse que grupos ou entidades externas pudessem assumir,
em lugar dos “verdadeiros atingidos” a condução do movimento.
Nesta seção tratar-se-á, de maneira bastante sintética, alguns dos temas que, ao
longo da existência do MAB enquanto movimento nacional, têm estruturado seu debate
e constituído elementos nucleares de uma cultura política em permanente construção e
transformação.
E assim, ao longo dos anos 90, o MAB se confrontou à questão das relações
entre as necessidades políticas e organizacionais do movimento nacional e as
necessidades políticas e organizacionais dos movimentos locais e regionais. De um
lado, havia consenso de que o fundamento e a razão de existência do MAB são os
movimentos locais, as comunidades atingidas em luta. É o que se repete nas reuniões e
nos documentos: “não há movimento nacional sem luta nas barrancas e nos vales, sem
organização nas comunidades e nas regiões”25.
25
Longe de ser manifestação de um militant particularism (Harvey, 1997) extremado, a ênfase no
movimento de base parece refletir a preocupação em evitar a constituição de burocracias cetnralizadoras,
desligadas das realidades das comunidades, do movimento e das lutas concretas. Expressa igualmente o
receio de que o movimento social possa ser controlado de maneira excessiva por organizações regionais e
locais mais estruturadas e com mais recursos.
pouco em relação ao tema da energia, do meio ambiente e dos recursos hídricos, que,
quase sempre, são objeto de preocupações ou bem nos meios técnicos, ou bem entre
ambientalistas.
26
Este maior investimento reflete, pelo menos em parte, os maiores recursos de que dispõe a CRAB.
27
Mobilização de âmbito nacional, realizada anualmente, envolvendo quase todas as organizações
populares atuantes no campo, em torno de uma pauta nacional de reivindicações encaminhada ao
governo, aos partidos e divulgada através de atos públicos. A existência do MAB enquanto organização
nacional tem favorecido incluir as reivindicações dos atingidos na pauta do Grito do Campo.
igualmente fundamental é que elas resultem da organização pela base, ao mesmo tempo
que a fortaleçam.
28
As culturas políticas podem ser bastante diferenciadas de uma organização local/regional para outra,
expressando os diferentes pesos que cada uma das vertentes desempenhou em cada situação específica.
Ademais, como costuma acontecer em movimentos com ampla mobilização popular, os níveis de
elaboração da problemática política é muito variável.
29
Afirmar quais sejam os valores fundamentais (fondamental beliefs) não significa afirmar que sempre,
em todos os momentos e lugares, os valores que eles expressam tenham sido homogeneamente aplicados.
O que pretendemos afirmar é que estes valores constituem, permanentemente, argumentos que são
acionados para validar ou legitimar propostas e posições, pois constituem, por assim dizer, valores por
todos compartilhados e inquestionáveis.
30
A negociação é entendida como resultado e parte da luta. A luta e a mobilização da base constituem a
única possibilidade de conquistar uma negociação justa.
Os integrantes do Movimento são na sua grande maioria pequenos
agricultores, trabalhadores rurais sem terra (meeiros, parceiros,
arrendatários, diaristas, posseiros …), povos indígenas, populações
quilombolas, percadores e mineradores.
Seja como for, a forte identidade com os trabalhadores rurais está presente em
toda a história e em todas as manifestações do movimento. Não espanta que, nesta
condições, tenham sido privilegiadas, ao longo do tempo, as relações com o
sindicalismo rural combativo e com o Movimento dos Sem Terra. A aproximação do
MAB com o MST, inclusive no que se refere a concepções e projetos políticos, tem
crescido nos últimos; em particular, o MAB participou e participa da Consulta Popular
que elaborou o chamado Projeto Popular para o Brasil, articulação de movimentos
populares liderada pelo MST. Juntamente com o MST e o Movimento de Pequenos
Agricultores (MPA), o MAB integra a Via Campesina no Brasil.
Nesta articulações, o MAB tem enfrentado problemas para fazer valer seus
pontos de vista sobre a questão energética e ambiental. Ainda hoje há vários segmentos
do movimento popular brasileiro, e isto é particularmente verdadeiro para o Movimento
dos Sem Terra, para os quais a construção de grandes hidrelétricas é vista como uma
necessidade imposta pelo anseio de desenvolvimento. Na verdade, poder-se-ia dizer que
o MAB desempenha, embora com enormes dificuldades, o ,espinhoso papel de crítico
de uma certa ideologia desenvolvimentista que ainda predomina em boa parte do
movimento popular brasileiro. O mesmo tipo de dificuldade tem enfrentado o MAB em
suas relações com os partidos progressistas, e particularmente com o PT, cujo programa
energético é fortemente dominado pela visão desenvolvimentista e pela perspectiva de
apoiar a competitividade da indústria nacional no suposto baixo custo da energia
hidrelétrica31.
31
É expressivo o número de lideranças do MAB filiadas ao PT, em todas as regiões, Algumas dessas
lideranças têm participado de processos eleitorais, e não são raros os casos de sucesso. Há assim,
vereadores, prefeitos de pequenas cidades e mesmo deputados cuja militância política se iniciou na luta
contra as barragens. Apesar disto, o MAB não tem tido sucesso em seu esforço para participar da
Mas se enquanto movimento marcado pela preocupação ambiental o MAB
enfrenta dificuldades em suas relações com o movimento popular, nem por isso suas
relações com o movimento ambientalista são sempre harmoniosas. Ao contrário, deste
lado o MAB se relaciona, muitas vezes, com organizações ambientalistas
predominantemente urbanas e de classe média, nem sempre sensíveis e capazes de
entender os aspectos sociais involucrados na questão energética e ambiental.
Sobre o primeiro tipo de relacão internacional, pode-se afirmar que é quase regra
geral entre os movimentos populares o estabelecimento de contatos regulares com
organizações não-governamentais dos países centrais para a obtenção de apoio
financeiro. Escaparia ao escopo deste trabalho uma discussão acerca do significado e
consequências deste tipo de relação, em particular no que se refere aos riscos que
poderiam decorrer para a própria autonomia do movimento 32.
elaboração do programa energético do PT, controlado por acadêmicos e técnicos com fortes vinculações
com o Setor Elétrico e claro comprometimento com a opção das grandes hidrelétricas.
32
É notável encontrar nos mais diferentes movimentos populares brasileiros a reprodução mimética de
uma retórica que atende às expectativas das ONGs financiadoras. Até que ponto isto pode levar a uma
reconfiguração de linguagens e, em consequência, de concepções e lógicas políticas e culturais, eis um
tema a ser aprofundado pela pesquisa.
33
Sob este aspecto parece que o MAB-Sul uma vez mais afirma sua particularidade, pois, embora
também pratique o levantamento de recursos junto a ONGs estrangeiras, conta com uma forte fonte de
recursos próprios, constituída pelos reassentados e por atividades de prestação de serviços que assumiu
nos reassentamentos e pelas quais tem sido remunerado pelas empresas.
é a participação em eventos internacionais sobre energia, recursos hídricos, meio
ambiente e outros, para denunciar o que se passa nas barragens do país. Igualmente
importante se tem revelado a relação com ONGs que se especializaram, nos países
centrais, em desenvolver ação de lobby junto a agências multilaterais ou a governos
nacionais.
Após quase uma década de relativa estagnação dos grandes projetos hidrelétricos
no país, a década que se inicia parece prometer uma retomada do ritmo dos anos 70,
investindo nas duas fronteiras hidrelétricas do país: a Amazônia e a bacia do rio
Uruguai. É também previsível a multiplicação do que se considera, tendo em vista a
potência instalada, pequenos e médios empreendimentos, mas cujos impactos nem
sempre são igualmente pequenos e médios. Diferentemente porém dos anos 70, esta
nova onda de empreendimentos ocorrerá, e já está ocorrendo, sob a égide de empresas
privadas35. As consequências para o tratamento das questões ambientais e sociais
parcem ser das mais perversas, colocando em riscos até mesmo as poucas conquistas
alcançadas a partir da segunda metade dos anos 8036. Como enfrentará o MAB esta
nova realidade?
Qual o significado e eficácia políticas que, neste sentido, poderiam ter processos
deflagrados por iniciativas como a articulação internacional Via Campesina e o Fórum
Social Mundial?
Estes são alguns dos vários desafios políticos a que o MAB está confrontado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Política, protesto e cidadania no campo. As lutas sociais dos colonos e
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