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Andréa Zhouri

Klemens Laschefski

Desenvolvimento e Conflitos Ambientais


um novo campo de investigação

O antagonismo entre meio ambiente e desenvolvimento marcou o solo do debate


ambiental que, nas décadas de 1970 e 1980, colocava em dúvida o modelo de
desenvolvimento que se espalhou por quase todos os países do mundo. A imagem da
Amazônia em chamas, nos anos 80, fez emergir inúmeros grupos ambientalistas que
passaram a questionar a atuação dos governos e das instituições financeiras internacionais,
tais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, cujos projetos de
desenvolvimento foram marcados por desastrosas consequências sociais e ambientais. As
estratégias de modernização dos países do chamado Terceiro Mundo lideradas por essas
agências visavam estruturações e reestruturações de instituições sociais, assim como
investimentos em infraestrutura de transporte, energia e de indústrias de base como pólos
de desenvolvimento para aceleração do crescimento econômico. Havia uma expectativa de
que, após uma fase inicial denominada de take off, ocorresse, quase que automaticamente, a
inclusão social através da geração de renda e de emprego, seguida da instalação do estado
de “bem-estar” social, o processo trickle down. Nessa concepção, áreas primordialmente
cobertas pela vegetação natural foram vistas como espaços sub-utilizados e passíveis,
portanto, de apropriação por grandes empreendimentos agroexportadores ou complexos
industriais, como o de Grande Carajás, na Amazônia Legal.
Contudo, as estratégias desenvolvimentistas não lograram o cumprimento de suas
promessas. A desigualdade social cresceu em todo país: vale registar o fenômeno do
desemprego estrutural nos centros urbanos, os mais variados conflitos fundiários e formas
de exclusão de grupos marginalizados. Além disso, as novas fronteiras de “inclusão
nacional” ao longo dos eixos de desenvolvimento resultaram na devastação ambiental e na
ameaça aos grupos que viviam nessas áreas, os quais passaram a se organizar em
resistência a esse processo. Os protestos surtiram efeitos: o Banco Mundial e demais
instituições que conduziram a colaboração técnica entre os países industrializados e os
países em desenvolvimento suspenderam, no final dos anos 80 e início dos anos 90, o
financiamento para os grandes projetos de infraestrutura e para madeireiras industriais nas
florestas tropicais. Além disso, passaram a exigir, no caso de novos projetos, estudos de
avaliação de impactos ambientais e sociais e o planejamento participativo no sentido do
“empoderamento” das vítimas do desenvolvimento (Sachs, 2000; Zhouri, 2004; 2006).
Nesse processo, o assassinato de Chico Mendes, em 1988, representa um marco
simbólico em um duplo sentido: de um lado, marcou o auge dos conflitos entre visões
ambientalistas e desenvolvimentistas; por outro lado, Chico Mendes e seus companheiros
seringueiros se tornaram emblemáticos no sentido de uma nova concepção de atuação
socioambientalista. Ou seja, eles passaram a expressar uma defesa da natureza diferente da
visão preservacionista clássica, que valorizava a natureza porque presumivelmente
“intocada”. A luta dos seringueiros representava a ideia de que a natureza poderia ser
valorizada com a inclusão dos grupos sociais que nela vivem. Então, nos anos 80, se
consolidou a noção de uso sustentável da natureza e da existência dos “povos da floresta”,
isto é, os grupos indígenas, ribeirinhos, seringueiros e demais grupos tradicionais que se
tornaram protagonistas na história de superação da dicotomia sociedade-natureza e da
promoção do “desenvolvimento sustentável”.
Essa ideia foi internacionalmente reconhecida na II Cúpula da Terra, no Rio de
Janeiro, em 1992 (Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento – CNUMAD, mais conhecida como Eco ‘92). Com efeito, na
Conferência, mais de uma centena de países concordaram que um novo modelo de
desenvolvimento deveria ser construído a partir do tripé economia-ecologia-equidade
social. Para tanto, os líderes mundiais passaram a convocar os chamados especialistas de
notório saber nessas três esferas, a fim de que eles elaborassem propostas para políticas
públicas correspondentes.
Ocorre que o discurso sobre o desenvolvimento sustentável foi apropriado, nesse
contexto, em um sentido diferente daquele pretendido pela luta dos “povos da floresta” e de
seus apoiadores. Para esses últimos, os modos de vida dos grupos locais – incluindo
apropriação material e simbólica da natureza – representava um contraponto ao modo de
vida da sociedade urbano-industrial que, a partir desse ponto de vista, não poderia ter
continuidade na trilha do desenvolvimento, tendo em vista a sua insustentabilidade. Ao
contrário desta visão, no entanto, a perspectiva política que se consolidou fez emergir o
paradigma da participação na gestão ambiental e social com o objetivo de conciliar os
interesses econômicos, ambientais e sociais e, assim, “moldar” o modelo clássico de
desenvolvimento. Assim emergiram as ações de prevenção de impactos ambientais através
de meios técnicos ou, nos casos em isso não fosse possível, a adoção de medidas de
mitigação e de compensação para os danos ambientais. Em relação aos problemas sociais,
foram formuladas políticas de “necessidades básicas” para combater a pobreza,
acompanhadas por iniciativas de capacitação e de autoajuda, além de políticas
assistencialistas. Na esteira deste esquema conciliador, menos crítico, de “adequação
ambiental e social” (Zhouri et al., 2005) foram perdendo terreno as concepções que
preconizavam uma reestruturação profunda da sociedade urbano-industrial-capitalista,
assim como as reivindicações societárias que resistiam (e ainda resistem) a esse modelo de
desenvolvimento e clamavam (ainda clamam) o direito de autonomia para decisão sobre o
seu próprio destino, configurando propostas de modernidades alternativas (Escobar, 2005).
A administração da estratégia de desenvolvimento sustentável hoje preponderante
desencadeou toda uma dinâmica no sentido da implementação de sistemas regulatórios e
institucionais. Destaca-se a criação de fóruns internacionais, nacionais e locais para discutir
a questão, a introdução de esquemas de avaliação ambiental nas instituições financeiras
internacionais, com a subsequente criação de instituições ambientais, mecanismos de
licenciamento ambiental, reforço da legislação ambiental e ênfase na educação ambiental
em geral. No setor privado, o processo se reflete no desenvolvimento de novas tecnologias
ditas ambientais, em iniciativas para promoção da responsabilidade socioambiental
empresarial e na abertura para o diálogo com os antigos adversários: os grupos
ambientalistas e os movimentos sociais. Nesse processo, sob a alegação de
“amadurecimento”, grupos ambientalistas passaram a substituir as estratégias de
confrontação por atuações em parcerias com a finalidade de se promover soluções (Zhouri,
1998; 2006; Laschefski, 2001; 2002). O foco deixou de ser o confronto com empresas ou
instituições que promovam atividades ambientalmente predatórias e prejudiciais aos grupos
marginalizados. Ao contrário, a maior parte das ações ambientalistas tem se concentrado
nos esforços para uma espécie de “pedagogia” voltada para o esverdeamento do
empresariado, ou seja, estratégias de convencimento junto ao empresariado para a adoção
de planos de gestão ou manejo ambiental, além da elaboração de políticas sociais. Uma tal
mudança indicava, para muitos analistas e até mesmo ativistas, que o “ambientalismo
multissetoral” permearia a sociedade, a qual se uniria frente ao objetivo único de evitar a
crise ecológica planetária.
Contudo, na prática, as soluções que têm sido apresentadas abrangem,
primordialmente, propostas que visam à eficiência energética material na produção, o
desenvolvimento de novas mercadorias “ecologicamente corretas”, o desenvolvimento de
mecanismos de mercado (certificação ambiental, mercado de carbono) e melhoramentos
das condições de trabalho, sempre encaixadas numa racionalidade produtiva que visa à
abertura de novos mercados. Consolidou-se, por esta via, uma aposta no casamento feliz
entre a economia e a ecologia.
Nesse cenário, o que se realizou, pelo menos em parte, foi o entendimento da
modernização ecológica tal como formulado pela Comissão Mundial sobre o
Desenvolvimento e Meio Ambiente em 1987. Segundo a Comissão,

o conceito de desenvolvimento sustentável tem, é claro, limites – não limites absolutos,


mas limitações impostas pelo estágio atual da tecnologia e da organização social, no
tocante aos recursos ambientais, e pela capacidade da biosfera de absorver os efeitos da
atividade humana. Mas tanto a tecnologia quanto a organização social podem ser
geridas e aprimoradas a fim de proporcionar uma nova era de crescimento econômico
(CMDM, 1991, p. 9).

Os últimos vinte anos de história têm comprovado os limites desta formulação. No


Brasil, quando o sindicalista Luis Inácio Lula da Silva assumiu o governo, em 2003, foi
grande a esperança de uma mudança estrutural. Representantes de ONGs ambientalistas e
de movimentos sociais foram convidados a assumir cargos nos diversos escalões do
governo federal. Marina Silva, que acompanhava a luta de Chico Mendes, foi designada
para o Ministério de Meio Ambiente. Um de seus objetivos era realizar a transversalidade
entre os demais setores do governo para que as ações econômicas, sociais e ambientais se
tornassem coerentes. Ainda em 2008, Marina Silva foi apontada pelo jornal inglês The
Guardian, como uma das 50 pessoas que poderiam salvar o planeta. Porém, no âmbito
nacional, as esperanças se esvaneceram após os primeiros anos de governo.
Não obstante os avanços sociais assistidos pelo país, os resultados do modelo de
desenvolvimento sustentável baseado na chamada modernização ecológica não são
animadores no seu conjunto. Os índices que apontam as mudanças climáticas estão cada
vez mais evidentes, o desmatamento continuou nas mesmas taxas anuais, a extinção de
espécies se acelerou, o quadro de poluição dos meios terra, água e ar se agravaram e a
desigualdade social, apesar dos avanços sociais, não diminuiu.
O Brasil, ao final da primeira década do novo milênio, encontra-se marcado pelo
ressurgimento de velhos conflitos em torno à temática socioambiental. Marina Silva perdeu
a luta contra os transgênicos e a influência nas políticas para a Amazônia e demais
ecossistemas ameaçados. No âmbito do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), foram
retomados grandes projetos de infraestrutura, como hidrelétricas, hidrovias, rodovias,
portos, entre outros, ao longo dos antigos eixos de desenvolvimento, desta vez com a
perspectiva da “inclusão internacional” da nação ao mercado global. Observa-se que os
ganhos ambientais, como o código florestal, o licenciamento ambiental, os planos de
mitigação e de compensação ambiental, as propostas para realização de Zoneamentos
Ecológicos e Econômicos (ZEEs) e os direitos de grupos indígenas, quilombolas e povos
tradicionais ancorados na Constituição de 1988, têm sido considerados como “entraves” ao
desenvolvimento.
Diante desse quadro, surgem as indagações: o que de fato representa a transposição
do Rio São Francisco para as populações ribeirinhas, para o nordeste e para o país? O que
representa para os povos que vivem do cerrado e das florestas tropicais o avanço das
monoculturas de eucalipto, soja, milho e outras plantações relacionadas ao
agrocombustível? Quais as conseqüências da ênfase na matriz energética centrada na
hidroeletricidade para os que vivem às margens dos rios? Qual o estado do saneamento e da
saúde nas nossas cidades? O que dizer dos loteamentos urbanos, das condições de trabalho
nas fábricas e nas plantações?
As recentes descobertas de reservas de petróleo na camada pré-sal, no litoral do
estado do Rio de Janeiro, trazem ainda novas contradições. Enquanto representantes de
altos escalões do governo discorrem sobre o “novo padrão de desenvolvimento”,1 a “era
pós-fossil”, que indicaria um modelo energético renovável na direção de uma sociedade
sustentável, parece ficar mais distante. O que se observa, não apenas no cenário político,
mas também no ambiente acadêmico, é a reafirmação de receitas desenvolvimentistas que
fazem lembrar a ambiência pré-Eco ’92. Em muitas situações e discursos, até mesmo os
adjetivos sustentável e ambiental parecem desaparecer.
Nesse sentido, a saída de Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente, em 2008,
pode ser lida como um indicador do ressurgimento de conflitos entre visões
desenvolvimentistas e ambientalistas que, até então, estavam subsumidas pela categoria
homogeneizadora de desenvolvimento sustentável. Entretanto, a situação atual se delineia
de forma diferente daquela vivida a 20 anos atrás. O “ambientalismo” mostra-se mais
dividido. Enquanto alguns continuam a lutar para tornar as medidas da modernização
ecológica realmente eficientes, outros vêm apontando os limites estruturais dessas
estratégias. Retoma-se uma discussão sobre a insustentabilidade estrutural do modelo de
desenvolvimento urbano-industrial-capitalista, mesmo quando “ambientalmente adequado”
(a esta sociedade). Os grupos tradicionais persistem na luta pelo reconhecimento dos seus
modos de vida e o direito de autonomia. Então, o campo dos conflitos ambientais,2 ponto
central das contribuições nesta coletânea, encontra-se caracterizado pela diversidade e pela
heterogeneidade dos atores e dos seus modos de pensar o mundo e nele projetar o futuro.
As possibilidades diversas, então gestadas pelos diferentes inconformismos e resistências,
sinalizam, positivamente, a continuada busca de uma sociedade mais justa, igualitária e
ambientalmente viável.

***

Esta coletânea reúne as contribuições feitas por diferentes pesquisadores do país e


do exterior durante o I Seminário Nacional sobre Desenvolvimento e Conflitos
Ambientais.3 Elas permitem uma reflexão crítica ao chamado paradigma da Modernização
Ecológica, que orienta os discursos, debates e ações hegemônicas do campo ambiental na
atualidade. Longe de um discurso uníssono, contudo, os autores expressaram as diversas
possibilidades que compreendem as investigações e as interações que recobrem sociedade,
natureza e meio ambiente, questionando, assim, as posturas homogeneizadoras que
subsumem os complexos processos sociais e os diversos sujeitos neles envolvidos.
Consequentemente, este livro pretendeu então reunir as reflexões que provocassem
um questionamento epistemológico das categorias hoje correntes na pesquisa e na ação
ambiental, notadamente desenvolvimento, sustentabilidade, territorialidade, equidade,
conservação, consenso, participação, sociedade civil, gestão, entre outras. Esse
questionamento com vistas à produção de um conhecimento crítico revela-se atualmente
ainda mais pertinente frente à crescente explicitação, nos discursos oficiais e nos órgãos de
comunicação, da oposição entre desenvolvimento e meio ambiente. Contraposição latente,
mas camuflada nas últimas duas décadas, como visto acima, pelo pretendido consenso
gerado pela noção de “desenvolvimento sustentável”. Ao colocar em relevo as políticas
vigentes no chamado campo ambiental, os autores refletem sobre os diversos conflitos ali
inerentes, problematizando, assim, concepções consagradas de forma acrítica pela pesquisa
ambiental nas duas últimas décadas.
Em vários casos analisados, viu-se que, seja pela ação do Estado, seja pelas
consequências das atividades econômicas voltadas à acumulação de capital, a
sustentabilidade das práticas de reprodução material e simbólica de diferentes populações
vê-se ameaçada. Em geral, essas populações constituem-se em agentes de conflitos
ambientais, articulando variadas estratégias de resistência. A presença do Estado, nos
diferentes casos, mostra-se carregada de dubiedade: de um lado, surge como
implementador das políticas conservacionistas autocráticas que acirram conflitos
ambientais; de outro, surge como mediador que, por vezes, se posta ao lado das populações
atingidas. Essa dubiedade pode ser interpretada como expressão da incidência dos conflitos
ambientais sobre o campo institucional das chamadas “políticas ambientais”, fato que
evidencia a presença de brechas de contestação no interior da dominação exercida pelo
paradigma do desenvolvimento. Por meio desses conflitos, portanto, exprimem-se as
contradições do agenciamento espacial de atividades e formas sociais de uso e apropriação
dos recursos territorializados.
Algumas contribuições, nesta coletânea, se referem aos conflitos ambientais
territoriais gerados, na maioria dos casos, pela fronteira de expansão da produção de
commodities que se choca com a territorialidade de grupos que têm na base de seus
recursos elemento fundamental para a sua reprodução sociocultural, bem como para a
sustentação de sua presença nos embates em torno à natureza do desenvolvimento que se
pretende para o país.
No entanto, vale mencionar que, além desses conflitos ambientais de cunho
territorial, há situações em que as práticas sociais de um grupo provocam efeitos ambientais
negativos que afetam através dos fluxos espaciais outros grupos, como o lançamento de
poluentes no ar ou na água e a contaminação de solos. A abrangência de tais efeitos, em
muitos casos, é difusa, com intensidades regionais variadas, que não podem ser
circunscritas em determinados territórios, seja em um sentido estritamente físico-geográfico
seja no sentido antropológico (das territorialidades).
Assim, podemos dizer que os conflitos ambientais surgem das distintas práticas de
apropriação técnica, social e cultural do mundo material. Neste sentido, tais conflitos não se
restringem apenas a situações em que determinadas práticas de apropriação material já
estejam em curso, mas se iniciam mesmo desde a concepção e/ou planejamento de certa
atividade espacial ou territorial, como revelam nossas análises sobre o processo de
licenciamento ambiental (ZHOURI, LASCHEFSKI e PAIVA, 2005). Tal fato nos leva à
questão das distintas visões sobre a utilização do espaço, as quais configuram a base
cognitiva para os discursos e as ações dos grupos envolvidos em conflitos ambientais. Os
debates acadêmicos e políticos sobre as formas de apropriação do espaço podem configurar
o início de conflitos, quando consideramos que a visão dominante é o ponto de partida para
o planejamento. Como lembra a crítica de Lefèbvre (1991), qualquer planejamento,
concepção ou representação do espaço é uma redução da realidade, conforme a percepção
dos seus idealizadores. Os conflitos se materializam quando essas concepções de espaço
são transferidas para o espaço vivido.
Desta forma, a questão territorial ou espacial se encontra no cerne de muitos
conflitos ambientais que envolvem as relações entre poder e meio ambiente no terreno.
Neste sentido, ainda que de forma breve, é proveito considerar, para efeitos heurísticos,
três tipos diferentes de conflitos ambientais:

Conflitos ambientais distributivos


São conflitos que, manifestadamente, indicam graves desigualdades sociais em
torno do acesso e da utilização dos recursos naturais. Esta modalidade de conflito marca os
debates ambientais internacionais desde o seu surgimento. O Relatório Brundtland já
enfatizava a questão da distribuição dos recursos entre as gerações presentes e entre estas e
as gerações futuras. Assim também a Agenda 21, apresentada pelas Nações Unidas como
resultado da Eco'92, menciona:
...as principais causas da deterioração ininterrupta do meio ambiente
mundial são os padrões insustentáveis de consumo e produção,
especialmente nos países industrializados. Motivo de séria preocupação,
tais padrões de consumo e produção provocam o agravamento da pobreza
e dos desequilíbrios (NAÇÕES UNIDAS, 1992, p. 1).
Os estudos que visam quantificar tais desigualdades são abundantes. Segundo o
PNUD (1994), 20% da população mundial consomem 80% dos recursos, enquanto que
somente 20% desses estaria acessível aos outros 80% da população. Estimativas como
essas tornaram-se o ponto de partida para as abordagens sobre o “espaço ambiental”
(OPSCHOOR, 1992), ou ainda uma abordagem semelhante que se refere à “pegada
ecológica” (REED, WACKERNAGEL, 1996), que tem como objetivo calcular, de forma
mais detalhada, o super consumo do "Norte" às expensas do "Sul'". A ONG Amigos da
Terra calculou que o “espaço ambiental”1 da Holanda, em 1993, era aproximadamente
quinze vezes maior do que o seu próprio território (BUITENKAMP et al., 1993).

Essa “dívida ecológica” (MARTINEZ-ALIER, 1997: 216) dos países ricos poderia
então ser vista como um contrapeso à dívida econômica dos países pobres. Este conceito
combinou a crítica dos limites do crescimento do atual modelo de desenvolvimento com a
questão da justiça entre “Norte” e “Sul”, o que permitia também a vinculação da questão
ambiental com as abordagens dos teóricos latinoamericanos ao analisarem a dependência
estrutural dos países “da periferia”. Desta forma, alguns autores utilizam o conceito de
troca econômica-ecológica desigual (MONTIBELER, 2004, RICE, 2007, ROBERTS,
PARKS, 2008) como alegoria ao termo “troca socioeconomica desigual”, usado pela escola
da teoria da dependência. Segundo essas abordagens estruturalistas, a redução do consumo
nos países ricos seria necessária como forma de permitir que os países “dependentes”
consigam elevar o consumo interno para garantir as condições dignas de vida para toda a
população. A este propósito, Pádua (1999) sublinhou as desigualdades sociais internas em
países como o Brasil, lembrando que a questão não se refere necessariamente às diferenças
entre Estado-nações, mas, de modo geral, às elites ricas que vivem às custas do espaço
ambiental dos segmentos mais pobres no seu próprio país.

Cabe destacar que os estudos que abordam o “espaço ambiental“ e a “pegada


ecológica” focalizam os conflitos ambientais distributivos apenas de forma abstrata e

1 O espaço ambiental é definido pela quantidade de energia, recursos não-renováveis, água, madeira e área
cultivada com produtos agrícolas.
quantitativa. Desta forma, fornecem subsídios às abordagens que visam a transformação da
sociedade industrial, questionando o consumo material nas sociedades ditas modernas.

Entretanto, é necessário salientar algumas diferenças no que se refere às soluções


propostas a partir deste referencial. Uma linha de argumentação destaca a necessidade de
mudanças tecnológicas no âmbito da “modernização ecológica”, defendendo abordagens
vinculadas à economia ambiental baseadas em teorias econômicas clássicas ou
neoclássicas. Para a reestruturação das sociedades urbano-industriais em direção à
“sustentabilidade”, seria preciso, então, uma revolução da “eficiência” na produção
industrial a fim de se poupar recursos naturais e energia. Esta abordagem não questiona o
modelo capitalista ou sequer o modelo de industrialização. Ao contrário, a produção de
novas tecnologias “limpas” é entendida como resultado de investimentos de empresas em
pesquisa e desenvolvimento (P&D), os quais apenas poderiam ser garantidos através do
crescimento econômico. Assim, sustenta-se o modelo atual pela defesa das chamadas
indústrias limpas como fontes geradoras de emprego assalariado, bem como a subseqüente
geração de mercados como meio de inserção social.

Outras vertentes chamam atenção para o fato de que o sistema capitalista - e suas
contradições - seria o responsável pela desigualdade na distribuição dos recursos e sua
concentração nas mãos de alguns poucos. Conseqüentemente, elaboram o discurso da troca
ecológica desigual para reivindicar a superação do capitalismo por um sistema eco-
socialista.

Para amenizar os conflitos entre essas linhas de pensamento, algumas propostas


defendem que além da revolução da eficiência seria igualmente necessária uma revolução
da “suficiência”, para se repensar o conceito de crescimento econômico e o consumo
ilimitado como parâmetros de qualidade de vida nas sociedades modernas. Assim,
promovem valores que sustentam “estilos de vida solidários”, baseados em princípios do
“bem viver ao invés do muito possuir” (LOSKE, et al.,1996; WEIZSÄCKER, 1996).

Contudo, os conflitos ambientais distributivos não se restringem apenas ao nível


discursivo dos grandes debates ambientais. No mundo real, há inúmeros conflitos que
envolvem o acesso aos recursos das florestas, da água, dos minérios, entre outros. Um dos
exemplos mais ilustrativos remete à guerra no Iraque, em que o acesso ao petróleo pelos
países industrializados configura um fator de suma importância. Outros exemplos remetem
àquelas situações envolvendo acesso à água entre Estados Unidos e México (exploração do
rio Colorado para a irrigação na Califórnia), Turquia e Síria (construção da barragem
Ataturk para fins de irrigação) e entre Jordânia e Israel (conflito sobre o acesso da água do
lago Genezaré). Nesse sentido, esta coletânea apresenta análises dos conflitos sobre a água
no espaço urbano bem como os casos concretos em torno da transposição do rio São
Francisco, o regulamento da pesca e suas consequências para os ribeirinhos desse rio.
Outro exemplo remete aos agrocombustíveis no contexto do debate sobre matriz
energética e mudanças climáticas. Neste caso, os conflitos ambientais distributivos se
referem a um sistema agro-exportador que fornece combustíveis para os países
desenvolvidos, ou melhor, as camadas sociais mais ricas, enquanto grande parte da
população, nas áreas de origem, não só será privada do acesso a essa mercadoria tão
valorizada, como terá a base material da sua própria existência comprometida. Mas a
questão não se esgota aí. Pelo contrário, remete ainda a outro tipo de conflito em torno das
necessidades extensionistas por parte dos agrocombustíveis, quer dizer, a demanda por
grandes extensões de terra, o que acaba se configurando como outra modalidade de
conflito, os conflitos ambientais territoriais (ver adiante). Antes, porém, da discussão
territorial propriamente dita, cabe ressaltar, para melhor compreensão, a natureza espacial
dos conflitos ambientais.

Conflitos ambientais espaciais

Os conflitos ambientais espaciais abrangem os conflitos causados por efeitos ou


impactos ambientais que ultrapassam os limites entre os territórios de diversos agentes ou
grupos sociais, tais como emissões gasosas, poluição da água etc. Desta forma, trata-se de
conflitos que não surgem em torno de disputas territoriais entre grupos com modos distintos
de apropriação ou produção do espaço, situação que configura um conflito ambiental
territorial, como será discutido adiante. A questão da chuva ácida, oriunda de emissões de
compostos de enxofre SOx (formando o ácido sulfúrico) na Europa Continental, que
afetaram os lagos na Escandinávia, o acidente, em 1984, na indústria química da Union
Carbide India Limited, localizada em Bhopal, Índia, que resultou em 3.800 vitimas fatais, a
catástrofe nuclear de Chernobyl, em 1986, e o problema do desaparecimento das ilhas-
nações no Oceano Pacifico, por causa das mudanças climáticas, são exemplos de impactos
ambientais que provocaram conflitos em nível internacional. Estes conflitos contribuíram
para a emergência e a consolidação de sujeitos sociais, os movimentos ambientalistas dos
anos 70 e 80 que, para alguns, até pareciam configurar uma força transformadora da
sociedade urbano-industrial.
Neste sentido, merece destacar o movimento pela Justiça Ambiental, que surgiu nos
anos 80, nos EUA, embora não esteja restrito apenas aos grupos envolvidos em conflitos
ambientais espaciais. O movimento pela Justiça Ambiental tem sido marcado pelo objetivo
de elaborar uma agenda comum entre as inúmeras lutas localizadas contra diversos
conflitos em torno do tratamento de esgoto, poluição industrial, lixo tóxico, incineradores,
além das condições insalubres de trabalho etc, em que os envolvidos se sentem, enfim,
privados dos seus direitos. De fato, as atividades causadoras de impactos ambientais são,
frequentemente, localizadas em áreas ocupadas pela população mais marginalizada e
vulnerabilizada da cidadania, ou seja, as camadas sociais de baixa renda, as quais
coincidem, muitas vezes, nos EUA, com as comunidades afro-americanas, ameríndias e
asiático-americanas. O eixo comum das atividades desse movimento heterogêneo tem sido
a denúncia e a luta contra a injustiça ou a desigualdade ambiental, evidenciando, assim, seu
caráter de conflito social. Nesse caso, a abordagem da justiça ambiental difere daquelas
comumente encontradas entre os ambientalistas “clássicos”, que se concentram nas
questões técnicas ou administrativas para solucionar os impactos ambientais ou preservar a
natureza.
Acselrad (2004) parece entender que o movimento pela Justiça Ambiental, num
contexto global, poderia representar um contrapeso à expansão do capital. Atualmente, no
contexto da globalização econômica, o capital retira a sua força da “... capacidade de se
deslocalizar, enfraquecendo os atores sociais atuais menos móveis - governos locais e
sindicatos por exemplo - e desfazendo, pela chantagem da localização, normas
governamentais urbanas ou ambientais, bem como as conquistas sociais” (ACSELRAD,
2004, p. 34). Contudo,

Os grupos sociais que resistem a esta divisão espacial da degradação


ambiental dificultam, conseqüentemente, a rentabilização esperada dos
capitais, ao reduzir para estes a liberdade de escolha locacional e o índice
de mobilidade de seus componentes técnicos. As lutas por justiça
ambiental mostram assim toda a sua potência como barreira organizada a
este instrumento de subordinação política próprio à acumulação flexível: a
mobilidade espacial dos capitais (ACSELRAD, 2004, p. 34).

De outro lado, Harvey (1996) sublinha situações contraditórias, em que as lutas


contra determinadas instalações industriais não raramente são iniciadas por membros da
classe média, os quais, por sua vez - mesmo visando à defesa dos direitos dos mais fracos -
se encontram em situações conflituosas com as classes operárias e desempregadas que
temem justamente o deslocamento do capital, diminuindo, assim, a possibilidade de obter
ou manter o emprego. Para os últimos, os possíveis efeitos de uma contaminação para a
saúde são frequentemente vistos como algo distante e abstrato.
No mesmo sentido, as próprias vítimas da exposição a substâncias que afetam a
saúde, que denunciam uma situação de injustiça, não necessariamente questionam a
existência da fábrica em si, solicitando simplesmente a sua deslocalização. A construção de
uma rede de solidariedade intraclasse ou intragrupo tem sido colocada, então, como um dos
desafios para o movimento pela Justiça Ambiental. Outro aspecto refere-se ao fato de
alguns conflitos ambientais espaciais em torno da poluição emitida por estabelecimentos
industriais poderem ser resolvidos por meio da "modernização ecológica”. A título de
exemplo, cita-se a instalação de tecnologias ambientais, como filtros ou Estações de
Tratamento de Esgoto (ETE). No caso de produtos com alto risco socioambiental – tal
como o amianto utilizado na construção civil-, o conflito pode ser resolvido através da
substituição por outros produtos, sem que a indústria em si seja questionada.
As lutas em torno dos conflitos ambientais espaciais são, portanto, bastante
heterogêneas. O que leva Harvey (1996) a questionar as militâncias particulares contra um
lixão aqui ou uma fabrica acolá, dinâmica que, na sua concepção, desafia o movimento pela
justiça ambiental no que concerne a elaboração de um projeto comum de transformação da
sociedade.
Há que se observar ainda que, no caso de uma luta que se concentra no fechamento
ou na deslocalização de uma atividade causadora de impactos ambientais, os processos
podem também desencadear uma transformação em direção a um conflito ambiental
territorial. Esta é a situação que envolve os atingidos por contaminação, ou por exposição a
uma emissão ameaçadora para a qualidade de vida, que se sentem obrigados a se
deslocalizar.
Conflitos ambientais territoriais
Em princípio, os conflitos ambientais territoriais marcam situações em que existe
sobreposição de reivindicações de diversos segmentos sociais, portadores de identidades e
lógicas culturais diferenciadas, sobre o mesmo recorte espacial (p. e. área para a
implementação de uma hidrelétrica versus territorialidades da população afetada). A
diferença em relação aos conflitos sobre a terra é que os grupos envolvidos apresentam
modos distintos de produção dos seus territórios, o que se reflete nas variadas formas de
apropriação daquilo que chamamos de natureza naqueles recortes espaciais.
Considerando a expansão dos agrocombustíveis para a substituição dos derivados
do petróleo, matéria-prima das mais relevantes para a industrialização, enfoca-se os
conflitos entre grupos hegemônicos da sociedade urbano-industrial-capitalista e os grupos
chamados tradicionais, que não são ou apenas parcialmente encontram-se inseridos neste
modelo de sociedade. Para os últimos, a comunidade e o território, com suas características
físicas, representam uma unidade que garante a produção e a reprodução dos seus modos de
vida – entendidos em suas facetas econômicas, sociais e culturais -, algo que resulta numa
forte identidade com o espaço onde se vive. A sociedade urbano-industrial-capitalista, por
outro lado, é caracterizada por uma forte divisão do trabalho e pela individualização dos
sujeitos sociais que se relacionam em grande parte através da mediação do mercado. O
progresso tecnológico e a criação de redes para trocas de produtos, com inúmeros
intermediários, resultam num distanciamento físico e conseqüentemente a alienação dos
indivíduos em relação à base territorial necessária para a reprodução de seus modos de
vida. Um dos efeitos disso é a ilusão de que a sociedade esteja se livrando dos
constrangimentos ecológicos, ou seja, uma concepção desmaterializada da vida na
modernidade. Embora os sujeitos ditos modernos possam desenvolver identidades
territoriais ou mesmo multiterritoriais nos domínios político-econômico ou sócio-cultural, o
território físico por eles apropriado tornou-se uma abstração fora da experiência vivida no
cotidiano. A organização e o planejamento territorial são transferidos às instâncias ditas
públicas, que controlam, numa relação dialética com o setor empresarial, os fluxos e fixos
nos territórios de sua responsabilidade (território no sentido clássico do Estado-Nação).
Porém, as empresas, ao ampliarem suas atuações para além dos limites dos territórios
nacionais, ganharam e ganham em força através do processo de globalização econômica.
Elas se tornaram agentes independentes que criam suas próprias espacialidades e
territorialidades, seja na busca de novos mercados de consumo ou de localizações para as
suas unidades produtivas, além de áreas de exploração de matéria-prima. No atual regime
de acumulação flexível, a territorialidade empresarial está cada vez mais caracterizada por
temporalidades, ou seja, por desterritorializações e reterritorializações. A chantagem da
deslocalização, ou melhor, a ameaça do rompimento dos seus contratos e compromissos
sociais (como empregadores, assim como contribuintes para o orçamento público, com
todos os setores produtivos e serviços ligados a elas), tornou-se a arma poderosa para que
os Estados cedam às demandas territoriais das corporações. A condição básica para esta
dinâmica territorial empresarial é a transformação do espaço em unidades de propriedades
privadas que possam ser comercializadas como mercadorias, avaliadas pelo seu valor de
troca e cada vez menos pelo seu valor do uso. Porém, também não pode ser negligenciado
o papel dos próprios Estados que, competindo entre si para atrair o capital externo,
facilitam a aquisição de terrenos através da isenção de taxas e impostos ou disponibilizando
terras públicas/devolutas para o setor privado, na forma de concessões com a finalidade de
exercer determinadas atividades econômicas. Esta atitude é quase sempre justificada sob o
argumento de estímulo ao crescimento econômico para a geração de emprego.
Com efeito, é nesse contexto que o Estado muitas vezes se alia aos segmentos do
capital contra as territorialidades dos outros grupos existentes no interior da nação, tais
como os povos indígenas, os quilombolas e outros povos tradicionais. A regulação
fundiária direcionada por um ideal de desenvolvimento que prevê a integração daquelas
comunidades ao sistema urbano-industrial-capitalista frequentemente acaba em um
processo que Harvey (2005) chama de “acumulação por espoliação”.
Na prática, tal processo se reflete na monoculturização ambiental e social do espaço,
gerando um mosaico de parcelas territoriais destinadas à produção de matérias-primas
inseridas em cadeias de produção de mercadorias específicas. Surgem aglomerações
urbanas com as suas territorialidades múltiplas (dentro da lógica urbano-industrial
capitalista) que dependem, além das cidades construídas, de áreas destinadas
exclusivamente para a produção de soja, frutas, milho, eucalipto ou áreas da extração de
minérios, produção de energia (hidrelétricas), em redes de fluxos com abrangência regional,
nacional ou mesmo globais, configurando, assim, os territórios dinâmicos do sistema
urbano-industrial-capitalista.
Os conflitos ambientais territoriais surgem, então, quando este sistema de
apropriação do espaço, com suas conseqüências sociais e ambientais, se choca com os
territórios gerados por grupos cujas formas de uso dependem, em alto grau, dos ritmos de
regeneração natural do meio utilizado. Com freqüência, tais formas de uso são vinculadas a
uma socialização do grupo em princípios de reciprocidade e coletividade mais do que
competitividade. O território é entendido como patrimônio necessário para a produção e
reprodução que garante a sobrevivência da comunidade como um todo.
O deslocamento ou a remoção desses grupos significa, frequentemente, não apenas
a perda da terra, mas uma verdadeira desterritorialização, pois muitas vezes a nova
localização, com condições físicas diferentes, não permite a retomada dos modos de vida
nos locais de origem, sem contar o desmoronamento da memória e da identidade centradas
nos lugares. Assim, as comunidades perdem literalmente a base material e simbólica dos
seus modos de socialização com a conseqüência da sua desestruturação. Desta forma, é
questionável a tese de Haesbaert (2007), de que a desterritorialização resultaria numa
reterritorialização (processo da des(re)territorialização), pois se vislumbra, nesses casos, no
máximo uma nova territorialização forçada, que impõe uma mudança social profunda
envolvendo também a transformação das relações dos grupos com o “meio ambiente” em
que têm que viver daí por diante. Contudo, concordamos com Haesbaert (2007) sobre o fato
de que a desterritorialização não é um estado final e permanente de um processo, pois
mesmo os sem teto, os sem terra e outros grupos minoritários estão se territorializando
precariamente e lutando por territórios mínimos que permitam uma vida com dignidade.
Em resumo, entendemos que a luta de grupos não inseridos, ou apenas parcialmente
inseridos, no sistema urbano-industrial-capitalista contra a desterritorialização está
frequentemente vinculada com o questionamento do modelo de desenvolvimento
hegemônico, fenômeno que conduz alguns pesquisadores latinoamericanos a refletir sobre
o processo de “colonialidade” do pensamento moderno (LANDER 2005, MIGNOLO
2003). Consequentemente, a análise dos conflitos ambientais territoriais apresenta-se como
um grande desafio, que remete, inclusive, aos fundamentos da produção do conhecimento
na academia contemporâneamente.
Vale lembrar que, em geral, se observa uma dinâmica dialética entre os conflitos
ambientais territoriais, espaciais e distributivos. Em muitos casos, os vários tipos de
conflitos coexistem e alguns podem até provocar consequências que pertencem a um outro
tipo. Um exemplo é quando a qualidade de vida de um determinado grupo é tão
comprometida que a única solução possível é o seu deslocamento para outro local, fato que
pode transformar radicalmente o seu modo de vida. Aqui os conflitos podem desencadear
dinâmicas que são ao mesmo tempo espaciais, distributivas e territoriais.
Apesar dos limites reais de toda classificação, uma tipologia dos conflitos permite,
para fins analíticos, uma certa visualização quanto a forma e a profundidade do
enfrentamento entre os grupos envolvidos e as possibilidades reais da sua conciliação ou
solução. Desta forma, as questões relativas à poluição/contaminação podem, muitas vezes,
ser solucionadas através de meios técnicos, dentro da lógica da modernização ecológica
(substituição de produtos cancerígenos, instalações de filtros ou técnicas de tratamento de
água/esgoto etc.). Em relação aos conflitos distributivos, que são vinculados à questão dos
modos de produção, de circulação e de consumo, há a possibilidade do enfrentamento por
vias econômicas neoclássicas/neoliberais, keynesianas ou marxistas. Ou seja, abordagens
que envolvem pensar o papel do Estado e do mercado como instituições reguladoras da
sociedade moderna e que podem se traduzir, em última instância, em estratégias clássicas
de transformação da sociedade capitalista. Finalmente, no caso de conflitos ambientais
territoriais, entre grupos com modos diferenciados de apropriação do meio, o
estabelecimento de compromissos ou consensos se torna extremamente difícil, uma vez
que, frequentemente, eles colocam em jogo racionalidades distintas. Tais conflitos
revelam, em geral, modos diferenciados de existência que colocam em questão o próprio
conceito de desenvolvimento, assim como expressam a luta pela autonomia de grupos que
resistem ao modelo de sociedade urbano-industrial e as instituições reguladoras do Estado
moderno.
Tendo como referência essas modalidades de conflitos ambientais, esta coletânea
encontra-se organizada em quatro partes. A primeira delas, “Inserção do Brasil na
economia-mundo e conflitos ambientais”, traz contribuições de Henri Acselrad e Gustavo
das Neves Bezerra sobre o processo de difusão de técnicas de “resolução de conflitos
ambientais” na América Latina, seus esquemas de construção da realidade, bem como o
modo como qualificam a problemática ambiental. O capítulo de Klemens Laschefski,
“Agrocombustíveis: a caminho de um novo imperialismo ecológico?”, discute o papel dos
agrocombustíveis como alternativa energética para a solução às mudanças climáticas em
nível mundial, acentuando os problemas sociais e ambientais gerados pela expansão das
monoculturas de cana-de-açúcar, entre outras. Em “Amazônia: território do capital e
territórios dos povos”, Jean Pierre Leroy analisa as disputas materiais e simbólicas entre o
capital e os grupos locais da Amazônia, evidenciando o totalitarismo presente nas
diferentes formas de apropriação do território pelo mercado e os conflitos gerados por essa
apropriação. Tratando o desenvolvimento como expressão da acumulação de capital em
grande escala, ampliação da economia mercantil, apropriação de terras, de rotas e de
recursos, Arsênio Oswaldo Sevá Filho relaciona a emergência dos conflitos à inserção do
Brasil na economia-mundo, focando sua análise nos problemas intrínsecos e graves da
expansão mineral, metalúrgica, petrolífera, e hidrelétrica nas Amazônias. Encerrando essa
seção, Raquel Maria Rigotto, Alice Maria Correia Pequeno Marinho, Ana Ecilda Lima
Ellery, José Levi Sampaio Furtado, Soraya Vanini Tupinambá {NOMES QUE ASSINAM
O CAPÍTULO E DEVE CONSTAR AQUI E NO SUMÁRIO] discutem os aspectos
históricos dos modelos de produção da região do Baixo Jaguaribe-CE, dando enfoque ao
recente processo de modernização agrícola e às transformações que o agronegócio da
fruticultura promove no território de vida das comunidades humanas da região.
A Parte 2 é intitulada “Conflitos ambientais, gestão e apropriação dos recursos
naturais”. Contrário à redução da dimensão do conflito pela perspectiva técnico-
administrativa, José Esteban Castro faz uma análise interdisciplinar dos conflitos pela água
em áreas urbanas do México, conflitos estes marcados por situações de injustiça ambiental.
Norma Felicidade Lopes da Silva Valencio realiza uma análise sociológica e crítica da
interlocução de pescadores artesanais, portadores de uma identidade territorializada em
trecho do rio São Francisco, e os denominados agentes da modernidade, portadores do
conhecimento especializado, chamando atenção para o processo de desacreditação pública
da pesca artesanal. O capítulo de Antonio Jeovah de Andrade Meireles e Luciana de Souza
Queiroz sintetiza os danos socioambientais da monocultura de camarão no litoral do
Nordeste do Brasil, atividade econômica que tem mercantilizado espaços vitais para
comunidades tradicionais. A partir da questão “desenvolver ou crescer sem envolver?”, o
capítulo de Doralice Barros Pereira e Marina de Oliveira Penido promove uma discussão
sobre desenvolvimento econômico em detrimento de direitos e valores humanos. As autoras
discorrem sobre movimentos de desterritorialização e reterritorialização que caracterizam
conflitos socioambientais a partir de empreendimentos hidrelétricos. Já na região
amazônica, ao considerar as dinâmicas de territorialização vivenciadas no vale do
médio/baixo rio Trombetas, Maria Célia Nunes Coelho, Luis Henrique Cunha e Luiz
Jardim de M. Wanderley analisam os conflitos relativos aos usos dos recursos naturais
naquela região, ponto de encontro entre mundos sociais distintos: de um lado, as
populações quilombolas e ribeirinhas e, de outro, grandes empreendimentos de exploração
mineral.
Na Parte 3 do livro, “Políticas públicas e participação”, Léo Heller, Ana Paula Vítor
de Oliveira e Sonaly Cristina Rezende discorrem sobre conflitos relativos à prestação dos
serviços de saneamento como política pública, analisando, em especial, o caso dos conflitos
institucionais em torno do abastecimento de água e do esgotamento sanitário no Brasil. Já
Sônia Oliveira, com base em dados sobre as Regiões Metropolitanas do Rio de Janeiro,
Belo Horizonte e Recife, analisa as diferenças existentes no que se refere aos serviços de
saneamento oferecidos nessas regiões, enquanto Severino Soares Agra Filho analisa os
problemas dos principais instrumentos da política ambiental no Brasil, tendo em vista a
perspectiva de resolução de conflitos ambientais. Finalizando essa parte, Franklin Daniel
Rothman faz uma análise da assimetria nas relações de poder entre dois projetos de
desenvolvimento na região da Zona da Mata, em Minas Gerais: de um lado, o dos
agricultores familiares e das entidades de apoio e, de outro, o projeto das grandes
mineradoras. O autor reflete ainda sobre as possíveis estratégias de articulação em redes
dos movimentos sociais rurais e organizações não governamentais na região.
A quarta e última parte desta coletânea trata dos conflitos ambientais e processos de
territorialização. Alfredo Wagner Berno de Almeida identifica, a partir da coalisão de
estratégias empresariais, uma campanha de desterritorialização na Amazônia que limita os
direitos territoriais e controla o uso dos recursos genéticos de povos e comunidades
tradicionais. Os processos de territorialização e conflitos sociais no uso dos recursos
ambientais pelo povo Awá-Guajá em área da antiga reserva florestal do Gurupi são tema do
capítulo de Eliane Cantarino O’Dwyer, em análise realizada a partir do laudo antropológico
produzido para o processo judicial sobre o caso em questão. Numa perspectiva urbana,
Eder Jurandir Carneiro, Dayse de Souza Leite e Denis Pereira Tavares analisam os aspectos
da tentativa, por parte das elites econômicas e políticas da cidade de São João Del-Rei, em
Minas Gerais, de uma reconfiguração material e simbólica do território urbano do
município, relacionada às iniciativas de empresariamento urbano que têm tido lugar em
diversas cidades do Brasil e do mundo. Por fim, Andréa Zhouri e Raquel Oliveira, a partir
das experiências de pesquisa em Minas Gerais, sobretudo no que se refere aos processos de
licenciamento ambiental de barragens hidrelétricas, refletem sobre as categorias de espaço,
lugar, território e identidade para analisar os movimentos de resistência ao avanço do
espaço/capital sobre os lugares – territorialidades distintas – dos moradores do Vale do
Jequitinhonha.

Notas

1
Aquino, Y.; Lima, D. Dilma diz que recursos do pré-sal vão acelerar redução da pobreza. In:
AGÊNCIA BRASIL, 29 set. 2009. Disponível em:
http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2009/09/29/materia.2009-09-29.3397896837/view.
Acesso em: 28 out. 2009.
2
A noção de conflitos ambientais surgiu na corrente da ecologia política que se preocupava com a
justiça ambiental, movimento que surgiu nos anos 1980, nos Estados Unidos (Robbins, 2004). A
discussão foi trazida para o Brasil por Henri Acselrad (2004).
3
O I Seminário Nacional sobre Desenvolvimento e Conflitos Ambientais foi realizado pelo Grupo
de Estudos em Temáticas Ambientais (Gesta) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
no período de 2 a 4 de abril de 2008, na UFMG, em Belo Horizonte.

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