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ÍNDICE

nesta edição

04
Apresentação
05
Editorial
06
Status do Não Nascido
Numa Perspectiva
Teologia em Revista, o Esta edição de Teologia Adventista
periódico do curso de em Revista pretende Os primeiros adventistas
discutir alguns temas viam o não nascido como
teologia do IAP teólogicos relaciona- um ser humano pleno...
dos às Questões sociais
contemporâneas.

22
Uma Análise da
35
A IASD e As Novas
55
Análise da Disciplina:
Escravidão Na Gerações:
Teocracia Israelita Segundo
Existiram nações que Um estudo sobre como Hebreus 12:4-11
garantiam leis de prote-
ção aos escravos, uma tornala relevante no
delas foi Israel. Século XXI

67
O Contexto Panorâmico
89
A Relação Cristo-cultura:
do Segundo Testamento
O Segundo Testamen- Uma classificação
to é um relato histórico Teológica para a
insirado sobre o berço Igreja Adventista do
do Protestantismo... Sétimo Dia a Partir da
Tipologia Niebuhriana
Apresentação Geral
E sta edição de Teologia em Revis-
ta pretende discutir alguns temas
teológicos relacionados às questões sociais
possibilidade positiva da igreja ser mais
relevante às novas gerações. No artigo se-
guinte, os autores João Luiz Marcon e Paulo
contemporâneas, bem como descortinar o Goulard avaliam o tema da disciplina ecle-
horizonte compreensivo de temas bíblicos siástica a partir de Hebreus 12:4-11. Os auto-
à luz da história e da arqueologia. O objeti- res percorrem um caminho de análise que
vo é trazer contribuições aos debates, não passa pela exegese do texto e pelo estudo
apenas descrevendo problemas, mas tam- teológico do tema de maneira mais ampla,
bém sugerindo aprofundamentos teóricos levando em conta outros textos bíblicos. O
e reflexões criativas. tema é importante, pois a disciplina está
A edição começa com uma avaliação presente na prática eclesiástica de boa par-
teológica do status do nascituro na Bíblia. te das denominações evangélicas do Brasil.
O artigo demonstra que o texto bíblico tra- Os aspectos contextuais que impac-
ta o nascituro como um ser plenamente hu- taram a formação do Novo Testamento são
mano, com a mesma dignidade essencial abordados por Lucas Lima Martins Fridman
e Chandler Tiago S. Sant’ Ana. Nesse artigo,
de um ser humano já nascido. Em seguida,
os autores examinam panoramicamente o
Cátia Sirlene Lunkes Marcon e Samuel Elias
contexto geográfico, histórico e social do
Lunkes Marcon voltam sua atenção para o surgimento do protocristianismo. Final-
tema da escravidão na teocracia israelita. A mente, a relação entre Cristo e cultura no
reflexão é feita a partir da análise de textos pensamento de H. Richard Niebuhr é abor-
bíblicos e também utiliza aportes históri- dada por Hanny Brcic Guzman e Leonar-
cos e arqueológicos que iluminam a cultura do Henrique Arruda de Souza. Os autores
hebraica antiga. buscam, a partir da proposta de Niebuhr,
Na sequência, Igor Costa Bez Birolo e identificar uma postura ético-teológica da
Antonio Carlos Tavela ampliam a compre- Igreja Adventista do Sétimo Dia nos encon-
ensão do tema das novas gerações e sua tros entre sua missão e a cultura. A compre-
relação com a Igreja Adventista do Sétimo ensão da relação entre Cristo e cultura tem
Dia. Olhando tanto para os recursos de que impactos tanto na identidade quanto na
a igreja dispõe quanto para as necessidades missão adventista, e isso demonstra a rele-
das novas gerações, o artigo aponta para uma vância do estudo.

Desejamos a todos os leitores uma esti-


mulante leitura.
Prof. Dr. Isaac Malheiros (SALT-IAP)
Editor Chefe
Prof. Dr. Erico Tadeu Xavier (SALT-IAP)
Editor Associado
TEOLOGIA em revista

O STATUS DO NÃO NASCIDO


NUMA PERSPECTIVA ADVENTISTA
THE STATUS OF THE UNBORN IN AN ADVENTIST PERSPECTIVE
Isaac Malheiros
Doutor em Teologia

Os primeiros adventistas viam o não nascido como


um ser humano pleno, eram claramente contrários ao
aborto, e escreveram sobre isso.

1
Doutor em Teologia (EST, São Leopoldo-RS), docente da Faculdade Adventista do
Paraná (Ivatuba-PR. Contato: pr_isaac@yahoo.com

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TEOLOGIA em revista

Resumo
Este artigo pretende, por meio da análise
do texto bíblico em suas línguas originais e
uma pesquisa bibliográfica, verificar como
o não nascido é considerado na Bíblia. A
pesquisa, numa perspectiva adventista,
se justifica dada a diversidade de opiniões
sobre o tema e a recente publicação de
uma declaração sobre o assunto pela Igreja
Adventista do Sétimo Dia (IASD). Para
atingir os objetivos, esta pesquisa fará uma
apresentação do histórico da discussão, e, em
seguida, procederá à análise do texto bíblico.
Com base nas evidências coletadas neste
artigo, é possível concluir que o não nascido
tem o status de um ser humano na Bíblia.

Palavras-chave: Nascituro; Aborto; An-


tropologia bíblica.

Abstract:
This article intends, through the analysis
of the biblical text in its original languages
and a bibliographical research, to verify
how the unborn are considered in the Bible.
The survey, from an Adventist perspective,
is justified given the diversity of opinions
on the topic and the recent publication of a
statement on the matter by the Seventh-day
Adventist Church. To achieve the objectives,
this research will present the history of
the discussion, and then proceed with the
analysis of the biblical text. Based on the
evidence collected in this article, it is possible
to conclude that the unborn have the status
of a human being in the Bible.

Keywords: Unborn child; Abortion;


Biblical anthropology.

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TEOLOGIA em revista

A partir deste momento, adquire o direito


à vida, um direito tão sagrado que em toda terra
violar é incorrer na pena da morte. Quantos

1
assassinos e assassinas ficaram impunes!
Ninguém, a não ser Deus, conhece a extensão
deste crime hediondo; mas o Avaliador de todos
os corações conhece e lembra de cada um que
assim transgrediu; e no dia da avaliação final,
qual será o veredicto? Assassinato? Assassinato,

Introdução assassinato de crianças, matança de inocentes


mais cruel que a de Herodes, mais sangue frio
que o assassino da meia-noite, mais criminoso
que o homem que mata seu inimigo – o mais

O s primeiros adventistas viam o


não nascido como um ser humano
pleno, eram claramente contrários ao
desnatural, mais desumano, mais revoltante
dos crimes contra a vida humana (KELLOGG,
1894, p. 424-425, tradução nossa).
aborto, e escreveram sobre isso. A posição Nos escritos de Ellen G. White parece
dos pioneiros adventistas sobre não pegar não haver nenhuma afirmação direta
em armas e não combatência repousava sobre o aborto, mas ela fez declarações
sobre o mesmo fundamento da posição que podem ser relacionadas ao tema,
deles contra o aborto: a santidade da vida como a declaração sobre a sacralidade
humana e o sexto mandamento. da vida humana em qualquer fase do seu
Vários artigos da Advent Review desenvolvimento:
and Sabbath Herald trataram do tema do
aborto, descrevendo o não nascido como A vida é misteriosa e sagrada. É a
humano e o aborto como assassinato manifestação do próprio Deus, fonte de
intencional: “O assassinato intencional de toda a vida. Preciosas são as oportunidades
um ser humano em qualquer estágio de sua que ela encerra, e devem ser zelosamente
aproveitadas. Uma vez perdidas,
existência é assassinato” (TODD, 1867, p. desaparecem para sempre. […] Deus olha
29-30, tradução nossa). o interior da pequenina semente que Ele
Outro artigo afirmou, em 1869, que próprio criou, e nela vê encoberta a bela flor,
“Um dos pecados mais chocantes, e mais o arbusto ou a grande e frondosa árvore.
Assim vê Ele as possibilidades em toda
comuns desta geração, é o assassinato criatura humana (WHITE, 1989, p. 397).
de bebês não nascidos”, e concluiu que
“[...] Deus não passará despercebido pelo Ela apela à dignidade da vida huma-
assassinato de tais crianças” (ANDREWS, na para justificar para o estabelecimento
1869, p. 184, tradução nossa). Em 1870, da pena de morte como punição do homi-
Tiago White editou um livro que descrevia o cídio no Antigo Testamento: “A segurança
aborto como “prática pior do que diabólica”, e pureza da nação exigiam que o pecado
“crime mais básico”, “destruição dos de homicídio fosse severamente punido. A
bebês”, “pecado” e “assassinato” (WHITE, vida humana, que apenas Deus podia dar,
devia, de maneira sagrada, ser guardada”
1870, p. 100, tradução nossa). (WHITE, 1995, p. 377).
O médico adventista John Kellogg, Ao comentar sobre os vestidos de ar-
em 1894, defendeu a posição de que a vida golas usados em meados do século XIX,
humana começa na sua concepção, e acabar que apertavam a cintura das mulheres, ela
com essa vida é assassinato: declarou:

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TEOLOGIA em revista
“Nunca foi praticada tal iniquidade como
essa desde essa invenção de [vestidos de]
aro, nunca houve tantos assassinatos de
crianças [murders of infants]” (WHITE,
1861, tradução nossa). Esses “assassinatos
de crianças” podem ser uma referência aos
abortos provocados por essa moda.
Ela também afirma que mulheres
grávidas “vão considerar que outra vida
depende delas e serão cuidadosas em todos
os seus hábitos e especialmente na dieta”
(WHITE, 2007, p. 257). Essa declaração
sugere que o não nascido é um indivíduo,
pois trata-se de “outra vida”.
Ao alertar para o perigo de mulheres
grávidas usarem bebida alcoólica, ela faz
uma afirmação que leva em conta a saúde
do não nascido, e evidencia que atentar
contra a vida no não nascido é pecado:
“Cada gota de bebida forte ingerida [por
uma mulher grávida] para satisfazer seu
apetite, põe em risco a saúde física, mental
e moral do filho, e é um pecado direto
contra seu Criador” (WHITE, 2002, p. 217).
Uma citação é especialmente
interessante: ao falar sobre o risco de deixar
uma mulher trabalhar excessivamente
durante a gravidez, Ellen White declara:

Caso o pai procurasse conhecer as leis


físicas, compreenderia melhor suas obri-
gações e responsabilidades. Veria que ha-
via sido culpado quase de matar [em inglês,
murdering] seus filhos mediante o permitir
que tantos fardos impendessem sobre a mãe,
e compelindo-a a trabalhar além de suas for-
ças antes do nascimento das crianças, a fim
de obter meios para lhes deixar (WHITE,
2001, p. 429-430).

O texto em inglês diz literalmente


que o pai veria “que ele tinha sido culpado
de quase assassinar seus filhos” ao fazer a
mãe trabalhar demais “antes do nasci-
mento deles”.

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TEOLOGIA em revista

Nesse texto, Ellen White não está A justificativa é que a vida humana vem
condenando especificamente o aborto, de Deus (Gn 1:26, 27; 2:7; Sl 36:9; At 17:25,
mas ao falar sobre o quase assassinato 28), Deus é o proprietário da vida (1Co
dos fetos, e ao chamar os fetos de filhos/ 6:19-20), e a vida tem propósito especial
crianças (children), ela indica que via o não (Gn 1:29, 30; Sl 8:4-9), propósito que se
nascido como plenamente humano. Mas revela muito cedo, ainda no ventre (Jr 1:5;
esse permanece sendo um tópico ainda a Lc 1:15; Gl 1:15). Segundo Kis (2011, p. 780):
ser explorado nos escritos de Ellen White.
Apesar da posição dos pioneiros,
novas compreensões surgiram entre os […] o aborto não deve ser conside-
adventistas. Em 1957, o livro Questions on rado um método de planejamento fa-
Doctrine declarou que: “Vem à existência miliar. Só em situações extremas pode
uma nova alma toda vez que nasce uma
criança” (IASD, 1957, p. 512). Ou seja, o
ser procedimento justificável. Dentre
status de “alma vivente” começa apenas esses casos estão a gravidez infantil, a
após o nascimento. Essa declaração pode gravidez sob circunstâncias crimino-
implicar que o não nascido não tem o sas e o aborto para salvar a vida da mãe.
mesmo status da criança nascida.
Uma declaração mais ousada foi feita Ao expor o conceito adventista de ca-
durante o debate acerca da posição oficial samento e família, Rock (2011, p. 821) afir-
da IASD sobre o aborto na década de 1970. ma que “o aborto tem que ver com o tér-
O documento preparado por médicos e mino da vida e se converte numa questão
teólogos sugeriu à comissão que estudava teológica”. Acrescenta que Deus se preocu-
o tema o seguinte: “A posição Adventista pa com a proteção dos indefesos (Pv 24:11-
reconhece que nenhuma passagem 12; Tg 1:27), e que “a vida de uma criança
bíblica expressamente condena o aborto ainda não nascida deve ser respeitada de-
ou fala de um homem como plenamente vido à sacralidade inerente a toda vida hu-
humano antes do nascimento mana” (ROCK, 2011, p. 821).
(ABORTION COMMITTEE REPORT, Em 1992 a IASD votou uma declaração
1971). O documento cita Ex 21:22-25, e sobre aborto que, apesar de considerar o
não nascido como uma “vida humana pré-
conclui que “deve ser notado que o feto
-natal” e não endossar abortos “por moti-
não era considerado uma vida humana vo de controle natalício, escolha do sexo ou
até o ponto onde ‘vida por vida’ deveria por conveniências”, não deixava explícita a
ser exigido. Assim uma distinção é feita visão bíblica sobre o status do não nascido
entre a destruição de um feto e a morte de (IASD, 2005, p. 117-120). Por causa disso,
uma pessoa” (ABORTION COMMITTEE em 2019 outro voto foi tomado, aprovan-
REPORT, 1971). do o documento Declaração sobre a visão
Essa, porém, não parece ser a visão bíblica da vida intrauterina e suas implica-
do Tratado de Teologia Adventista do ções para o aborto. Esse documento mais
Sétimo Dia, publicado no Brasil em 2011. recente reafirma o valor da vida humana
Num artigo sobre o estilo de vida e a de “crianças não nascidas”, diz que “Deus
conduta cristã, Kis (2011, p. 780) afirma considera a criança que não nasceu como
que “os contraceptivos devem ser usados vida humana”, e que a “vida pré-natal é
para impedir a concepção, e não para preciosa aos olhos de Deus” (IASD, 2019).
abortar fetos”. As diferenças entre os dois documentos são
nítidas.

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TEOLOGIA em revista

Portanto, é evidente que não há um Para este estudo bíblico a respeito do


consenso sobre o tema entre os adventistas, status do nascituro na Bíblia, será utilizado
e que ainda há um vasto campo de pesquisa um software de pesquisa nas línguas originais
nesse assunto. Esse assunto antecede deci- (BIBLEWORKS, 2015) e léxicos de hebraico
sões éticas e pragmáticas, e a teologia ad- e grego bíblicos (BALZ; SCHNEIDER, 1990;
ventista não deveria se sentir marginaliza- BROWN, 1996; FRIBERG, 2000; GINGRICH;
da ou acuada pela cultura, mas levar cativo DANKER, 1984; HOLLADAY, 1971; LIDDELL;
todo pensamento para torná-lo obediente a SCOTT, 1996). O texto hebraico utilizado será
Cristo (2Co 10:5). o da Biblia Hebraica Stuttgartensia, 5ª edição
Este estudo pretende verificar se é ver- (ELLIGER; RUDOLPH, 1997), e o texto grego
dade que nenhuma passagem bíblica fala do será o da 28ª edição do Novum Testamentum
homem como plenamente humano antes do Graece (NESTLE; ALAND, 2012). A não ser
nascimento, e se o nascituro não é conside- no caso de indicação contrária, os textos
rado uma vida humana na Bíblia. Não será bíblicos citados neste artigo serão da versão
discutido especificamente o tempo a par- Almeida Revista e Atualizada, 2ª edição
tir do qual um embrião/feto/bebê pode ser (1993) Por questão de espaço, este estudo
considerado uma vida humana (apesar do não será exaustivo e não avaliará a literatura
estudo tocar tangencialmente nesse tema). extrabíblica judaica ou cristã.

2 A LINGUAGEM UTILIZADA PARA


REFERIR-SE AOS NÃO NASCIDOS
A linguagem utilizada na Bíblia para referir-se ao não
nascido é semelhante à linguagem utilizada para falar
de um indivíduo já nascido, atribuindo características
individuais e personalidade ao nascituro. Este artigo vai
analisar alguns exemplos.

2.1 A natureza pessoal do


não nascido
Falando sobre os não nascidos Esaú e Sansão já era nazireu “desde o ven-
Jacó, Deus afirma que havia “dois povos”, tre de sua mãe” (Jz 13:5, 7; 16:17), sujei-
“duas nações” no ventre de Rebeca (Gn to às restrições do nazireado (e, por isso,
25:23). Deus viu mais que dois não nasci- sua mãe teve que se submeter às restri-
dos, viu a história, a personalidade e a des- ções também; Jz 13:4, 7). O nazireado era
cendência deles. Ao relembrar a história igual para ambos, o nascituro e o nascido.
deles, a Bíblia considera que o Jacó de den- “Desde o ventre” no Antigo Testamen-
tro do útero é o mesmo Jacó adulto: “No to, por vezes, parece ser uma expressão
ventre da mãe, segurou o calcanhar de seu idiomática para indicar “desde o início”,
irmão; no seu vigor, lutou com Deus” (Os “desde a origem”, “desde muito tempo”
12:3). Não há diferença na individualida- (por ex., Jó 31:18), mas não nesse caso,
de e na personalidade do nascido e do não onde o sentido é literal.
nascido, ambos são “Jacó”.

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TEOLOGIA em revista

Na concepção, e não apenas no nasci- O próprio Jeremias considera que o que es-
mento, Jó já era considerado um “homem” tava no ventre era ele mesmo, e que a mor-
(geber): “Pereça o dia em que nasci e a te no ventre seria a sua morte: “Por que
noite em que se disse: Foi concebido [ha- não me matou Deus no ventre materno?
rah] um homem [geber]!” (Jó 3:3). O ver- Por que minha mãe não foi minha sepultu-
bo aqui é harah, conceber, utilizado tam- ra?” (Jr 20:17, ênfase acrescentada).
bém para a gravidez de Hagar (Gn 16:4), e O Novo Testamento segue a mesma
para a gravidez de Tamar (Gn 38:18). Ao tendência. Por exemplo, João Batista já
lamentar sua existência, Jó conecta seu era cheio do Espírito Santo no ventre ma-
nascimento e sua concepção como itens terno, antes do seu nascimento: “Pois ele
paralelos de uma mesma unidade. Tanto será grande diante do Senhor, não bebe-
sua concepção no ventre de sua mãe quan- rá vinho nem bebida forte e será cheio do
to seu nascimento são parte integrante do Espírito Santo, já do ventre materno” (Lc
que ele é. Davi também liga nascimento e 1:15, ênfase acrescentada). João Batista ti-
concepção: “Eu nasci na iniquidade, e em nha seis meses no ventre da mãe (Lc 1:24,
pecado me concebeu minha mãe” (Sl 51:5). 26, 36) quando reagiu à presença de Maria
Além disso, a palavra hebraica geber é ge- e do não nascido Jesus, que tinha menos de
ralmente usada para indivíduos adultos três meses no ventre de Maria. O relato diz
(cf. Jó 3:23; 4:17; 10:5; 34:7; Sl 127:5; 128:4, que Maria resolveu visitar Isabel “naque-
e outros). Ao aplicar geber ao nascituro, o les dias”, ou seja, num período próximo ao
Antigo Testamento indica que trata-se de começo da gravidez de Maria (Lc 1:39). Ela
algo mais significativo que um amontoado ainda ficou mais três meses com Isabel, até
de células e tecidos. o tempo do nascimento de João Batista.
Em Jó 10:18-19, ele diz que se tives- Há natureza emocional e personalidade no
se morrido ao sair do ventre da mãe, teria não nascido em Sl 139:13-16:
sido “como se nunca existira”. Ou seja, aqui
aparentemente ele despreza o período an-
terior ao nascimento, não o considerando Tu criaste o íntimo do meu ser e me te-
como existência. No entanto, Jó também ceste no ventre de minha mãe. Eu te louvo
se refere a esse período anterior ao nasci- porque me fizeste de modo especial e admi-
mento com expressões pessoais (“se eu rável. Tuas obras são maravilhosas! Digo isso
morresse”, “me vissem”, etc.), mostrando com convicção. Meus ossos não estavam es-
que quem estava no ventre era ele mesmo. condidos de ti quando em secreto fui formado
Além disso, ele faz uma comparação le- e entretecido como nas profundezas da terra.
vantando uma mera hipótese do que teria Os teus olhos viram o meu embrião; todos os
sido, usando a partícula como. Em outras dias determinados para mim foram escritos
palavras, ele seria como se nunca tivesse no teu livro antes de qualquer deles existir”.
existido, mas não de fato. Essa teria sido a
impressão provocada se ele tivesse nascido
morto. Destaca-se a primeira frase, Deus
Jeremias foi consagrado e constituído criando o “íntimo de meu ser”, ou as “partes
profeta antes de sair do ventre: “Antes que interiores”, literalmente “os rins” (kilyah).
eu te formasse no ventre materno, eu te Metaforicamente, essa é uma expressão
conheci, e, antes que saísses da madre, te que indica as emoções, o “coração dentro de
consagrei, e te constituí profeta às nações” mim” (Jó 19:27), a mente e os afetos do ser
(Jr 1:5). Ele foi tratado por Deus como humano, que podem ser sondados por Deus
pessoa no ventre. (Sl 7:9; 26:2; Jr 11:20; 17:10; 20:12).

11
TEOLOGIA em revista

Apesar da evidente linguagem poéti- A mulher é chamada de “mãe” mesmo


ca, diante de Sl 139:13-16 é difícil rebaixar quando seu filho é abortado: “Ora, não seja
o status do ser humano não nascido. Nes- ela como um aborto, que, saindo do ventre
se texto está a única ocorrência de golem de sua mãe [‘em], tenha metade de sua car-
(embrião, ou “substância sem forma”) ne já consumida” (Nm 12:12). Se um bebê
na Bíblia. Na única vez que o Antigo Tes- morre antes de nascer, a mulher que o con-
tamento fala especificamente de um em- cebeu ainda é uma “mãe”.
brião, a descrição é poética e grandiosa. Da mesma forma, no Novo Testamen-
Uma natureza moral já está vinculada to, a mulher já é chamada de “mãe” (mḗ-
ao nascituro desde a sua concepção em Sl tēr) mesmo quando seu bebê ainda não
51:5 (cf. Rm 5:12-19): “Eu nasci na iniquida- nasceu: Maria estava no início da gravidez
de, e em pecado me concebeu minha mãe”. quando foi chamada de “a mãe [mḗtēr] do
Ao refletir sobre o pecado em seu coração, meu Senhor” (Lc 1:43). Isabel “concebeu
o salmista adulto reconhece que o pecado um filho [huiós] na sua velhice” (Lc 1:36).
de seu coração não é algo recente, mas vol- O que é concebido, antes do nascimento, já
ta ao ponto de sua concepção no ventre de é chamado de “filho” (huiós), e o que nasce
sua mãe. Tal estado moral contínuo só po- também: “A Isabel cumpriu-se o tempo de
deria ser atribuído a uma pessoa humana dar à luz, e teve um filho [huiós]” (Lc 1:57;
no ventre. Os ímpios também já são peca- cf. At 7:29).
dores desde o ventre (Sl 58:3; Is 48:8).
Além disso, há na Bíblia a descrição
da relação de Deus com não nascidos. O 2.3 Os nascituros e os nasci-
salmista declara: “Sobre ti fui lançado des- dos são igualmente “crianças
de a madre; tu és o meu Deus desde o ven- No Antigo Testamento, em Ex 21:22, o
tre de minha mãe” (Sl 22:10). E o apóstolo nascituro é chamado de yeled, uma palavra
Paulo afirma: “Mas Deus me separou des- comum para uma criança nascida viva, um
de o ventre materno e me chamou por sua filho: “Se homens brigarem e ferirem uma
graça. Quando lhe agradou” (Gl 1:15). mulher grávida, e ela der à luz prematura-
mente [em hebraico, “e saírem as crianças
dela”], não havendo, porém, nenhum dano
2.2 Os nascituros e os nasci- sério, o ofensor pagará a indenização que o
dos são igualmente “filhos” marido daquela mulher exigir, conforme a
No Antigo Testamento, os nascitu- determinação dos juízes” (Êx 21:22 NVI).
ros são chamados de ben, são “filhos” da A palavra hebraica yeled geralmente
mesma forma que os já nascidos (2Rs 19:3; designa a criança de maneira genérica, mas
Rt 1:11). Uma “mãe” (‘em) é a mulher que pode referir-se também ao recém-nascido
fica grávida, que carrega uma criança no (Ex 1:18), ao filho que foi desmamado (Gn
ventre, e não apenas a que dá à luz. Quan- 21:8), ao adolescente (Gn 21:15; 37:30), aos jo-
do relata que os filhos não nascidos de vens (2Rs 2:24; Dn 1:4, 10, 15, 17), aos adultos,
Rebeca lutavam dentro dela (Gn 25:22), a e aos descendentes (Is 29:23).
Bíblia usa o termo “filhos” (banim, plural Apesar de yeled também ser usada para
de ben), mesma palavra usada para filhos designar os filhotes de animais (Jó 38:41,
nascidos. 39:3, Is 11:7), o abundante uso dessa palavra
O status de ambos, mulher grávida e para se referir aos seres humanos na Bíblia
nascituro, é mantido o mesmo antes e de- indica que o não nascido também é uma pes-
pois do nascimento: ela já é “mãe”, e o não soa. Ao identificar o nascituro como um ye-
nascido já é “filho”. led, Ex 21:22 sugere a humanidade e a perso-
nalidade do não nascido.

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TEOLOGIA em revista
No relato do infanticídio de Ex 1:16- Analisando textos do Antigo Testa-
17, Faraó mandou matar os filhos (ben) mento que se referem à existência intrau-
recém-nascidos dos hebreus, mas as par- terina, alguns verbos se destacam, como
teiras deixaram viver os meninos (yeled). asah e yatsar, por exemplo:
Ao recontar essa história, o Novo Testa-
mento chama essas crianças de bréphos. As tuas mãos me plasmaram e me aperfeiçoaram
Todos esses termos também são usados [asah]; […] me formaste [asah] como em barro
para nascituros na Bíblia: como os já nas- (Jó 10:8-9).Aquele que me formou [asah] no
cidos, os não nascidos também são ben, ventre materno não os fez [asah] também a
yeled e bréphos. eles? Ou não é o mesmo que nos formou na
Até o bebê abortado, ou que nasceu madre? (Jó 31:15).As tuas mãos me fizeram
morto e nunca viu a luz, é chamado de [asah] e me afeiçoaram […] (Sl 119:73).Assim
“criança” (hebraico ‘olel; ou nēpios, na diz o SENHOR, que te criou [asah], e te formou
LXX): “ou, como aborto oculto, eu não [yatsar] desde o ventre […] (Is 44:2).
existiria, como crianças [‘olel] que nunca […] o mesmo que te formou [yatsar] desde o
viram a luz” (Jó 3:16). A palavra hebraica ventre materno […]” (Is 44:24; cf. 49:5)
‘olel sempre se refere a indivíduos huma-
nos (1Sm 15:3; 22:19; 2Rs 8:12; Sl 8:2; 17:14;
137:9; Is 13:16; Jr 6:11; 9:21; 44:7; Lm 1:5;
2:11, 19, 20; 4:4; Os 13:16; Jl 2:16; Mq 2:9;
Na 3:10).
No Novo Testamento, João Batista é
chamado de “criança” (bréphos) no ven-
tre (Lc 1:41, 44), e Jesus já nascido tam-
bém é chamado de “criança” (bréphos)
(Lc 2:12, 16). As crianças abençoadas por
Jesus (Lc 18:15), e os recém nascidos mortos
por Faraó (At 7:19) também são “crianças”
(bréphos). Nascidos e não nascidos recebem
a mesma designação no Novo Testamento.

2.4 O desenvolvimento do
nascituro é obra de Deus
A Bíblia nunca fala da vida no ven-
tre como mera atividade química ou
algo vago, em vez disso, o nascituro
no ventre materno é descrito em lin-
guagem vívida e pessoal, como um ser
humano sendo modelado, formado, e
tecido pelo próprio de Deus (Sl 139:13-
16). Como relata Jó a respeito de sua
formação no ventre: “De pele e carne
me vestiste e de ossos e tendões me
entreteceste” (Jó 10:11). Até o início do
processo é atribuído a Deus: o Senhor
deu a concepção para Rute (Rt 4:13).

13
TEOLOGIA em revista
Curiosamente, no relato da criação, blicos não vinculariam o nascituro às ca-
quando Deus disse “façamos [asah] o racterísticas humanas se de fato eles não
homem à nossa imagem” (Gn 1:26, cf. 1:31, acreditassem que o nascituro fosse um ser
2:18), e quando relata que “formou [yatsar] humano.
o SENHOR Deus ao homem do pó da terra Por que a Bíblia emprega essa lin-
[…]” (Gn 2:7), a Bíblia usa os mesmos guagem geral? Por que não usou termos
verbos destacados acima. Ou seja, assim técnicos mais precisos para se referir ao
como Deus formou Adão do pó da terra, embrião ou ao feto? Não podemos ter
ele também está ativamente envolvido na completa certeza a respeito dos motivos
formação do feto no útero. Na criação de pelos quais os autores bíblicos escolhe-
Eva, o verbo hebraico utilizado é banah, ram uma determinada palavra em vez de
mesmo verbo utilizado para referir-se ao(s) outra, mas há aqui uma evidência que não
filho(s) que Abraão teria com Hagar (Gn pode ser desprezada.
16:2), e aos filhos nascidos através da lei do
levirato (Dt 25:9). Assim, a vida intrauterina 2.5 As mortes dos nascituros
é descrita como obra de Deus. Deus é o que e dos nascidos são maldições
forma “desde o ventre” (Is 44:2, 24; 49:5), equivalentes
chama desde o ventre (Is 49:1). É Deus quem
sustenta no ventre e tira do ventre (Sl 22:9, Os 9:11-16 é um texto onde Deus
71:6). anuncia que provocaria, dentre outras coi-
Uma pergunta importante é: os auto- sas, abortos entre o povo de Efraim:
res bíblicos tinham palavras mais adequa-
das para falar dos nascituros? Será que a
Bíblia usa esses termos por falta de opções A glória de Efraim lhe fugirá como pássaro:
nenhum nascimento, nenhuma gravidez,
melhores? O hebraico bíblico apresenta nenhuma concepção. Mesmo que criem filhos,
pelo menos duas palavras mais específicas porei de luto cada um deles. Ai deles quando
para usar: o embrião pode ser designado eu me afastar! Vi Efraim, plantado num lugar
por golem, como no Sl 139:16, e o feto nati- agradável, como Tiro. Mas Efraim entregará
morto por nephel, como em Sl 58:8; Ec 6:3 seus filhos ao matador. “Ó Senhor, que darás
e Jó 3:16. a eles? Dá-lhes ventres que abortem e seios
Levando em conta o hebraico e o grego ressecados. “Toda a sua impiedade começou
extrabíblicos, percebe-se que havia palavras em Gilgal; de fato, ali eu os odiei. Por causa dos
e expressões mais específicas à disposição. seus pecados, eu os expulsarei da minha terra.
Em grego, por exemplo, embryo especifi- Não os amarei mais; todos os seus líderes são
caria um feto, enquanto téknon, paidíon, e rebeldes. Efraim está ferido, sua raiz está seca,
nēpios seriam expressões mais específicas eles não produzem frutos. Mesmo que criem
para crianças já nascidas, ao contrário de filhos, eu matarei sua querida prole” (Os 9:11-
brephos, que é um termo genérico. O he- 16 NVI).
braico, bíblico e pós-bíblico, possui pelo
menos seis palavras para se referir ao feto
ou ao nascituro (FULLER, 1994, p. 178-179). Dessa forma, se o próprio Deus
Além de descrever o nascituro com ex- provoca a interrupção intencional da
pressões mais gerais, associadas a pessoas, gravidez, isso poderia significar que o não
seres humanos, a Bíblia vincula o nascituro nascido é menos que humano e legitimar
a outras expressões, pensamentos e ideias o aborto intencional hoje? Alguns pontos
que o equiparam a uma pessoa humana merecem consideração.
completa. Mesmo se não houvesse pala- O primeiro ponto a ser destacado
vras alternativas para falar sobre a vida é que aqui não se trata de uma mãe que
intrauterina, no mínimo, os escritores bí- decidiu livremente abortar seu filho, mas

14
TEOLOGIA em revista

de uma ação divina. Nessa advertência, a perda de um filho no ventre é apresentada


Deus avisa que abortos seriam provoca- lado a lado com a perda de um filho já nascido.
dos como um castigo, um juízo. O contrá-
rio dessa maldição é a bênção de Ex 23:26:
“Em sua terra nenhuma grávida perderá
o filho, nem haverá mulher estéril. Farei
completar-se o tempo de duração da vida
de vocês”.
3 O STATUS DO
Tomar um castigo divino como pa-
râmetro para ações humanas hoje pode
NÃO NASCIDO EM
ser perigoso, e basta um exemplo para que
isso fique claro: como punição divina, o fi-
ÊXODO 21:22-23
lho gerado no adultério de Davi com Bate- Um dos textos mais disputados quan-
-Seba morreu uma semana depois do seu do se discute o status do nascituro e o abor-
nascimento (2Sm 12:14-18). Sendo assim, o to é Ex 21:22-23. As diferentes interpretações
leitor contemporâneo estaria biblicamen- já podem ser vistas ao se comparar algumas
te autorizado a praticar o infanticídio em versões do texto: trata-se de um aborto ou
caso de adultério? Certamente, essa seria de um nascimento prematuro?
uma terrível interpretação desse texto.
O segundo ponto é que a morte de
um nascituro está lado a lado com a morte
de um filho já nascido. Não conceber, não “ Se homens brigarem, e ferirem mulher grá-
manter uma gravidez, não dar à luz ou per- vida, e forem causa de que aborte, porém sem
der um filho já nascido fazem parte de uma maior dano, aquele que feriu será obrigado a
mesma maldição. E não há no texto de Os indenizar segundo o que lhe exigir o marido
9:11-16 nenhuma indicação clara de que da mulher; e pagará como os juízes lhe deter-
Deus faz diferença significativa entre um minarem. Mas, se houver dano grave, então,
filho no ventre ou fora dele: darás vida por vida, […]” (versão ARA, ênfase
acrescentada).
“[…] não haverá nascimento, nem gravidez,
nem concepção. Ainda que venham a criar seus
“Se homens brigarem e ferirem uma mulher
grávida, e ela der à luz prematuramente, não
filhos, eu os privarei deles, para que não fique
nenhum homem.” (Os 9:11-12); “[…] Dá-lhes havendo, porém, nenhum dano sério, o ofen-
ventres que abortem e seios ressecados” (Os sor pagará a indenização que o marido da-
9:14 [NVI], ou “madre que aborte” [ACF e AA]); quela mulher exigir, conforme a determina-
“Ferido está Efraim, secaram-se as suas raízes; ção dos juízes. Mas, se houver danos graves, a
não dará fruto; ainda que gere filhos, eu mata- pena será vida por vida, […]” (versão NVI, ên-
rei os mais queridos do seu ventre” (Os 9:16). fase acrescentada).

Assim, em vez de apresentar o não nas-


cido como algo menos que humano e legi-
timar a prática do aborto, esse texto sugere
que o nascituro tem um status humano se-
melhante ao de um filho já nascido.
Não conceber, não manter uma gravi-
dez, não dar à luz ou perder um filho já nas-
cido fazem parte de uma mesma maldição, e

15
TEOLOGIA em revista

A versão ARA sustenta que esta passa- metade da sua carne já consumida” (Nm
gem trata de um caso de aborto provocado 12:12 ARC). Essa é uma evidência de que
por um ferimento acidental de uma mulher o sentido natural de “uma criança saiu” é
grávida. A lei exigiria apenas uma indeniza- um nascimento de um bebê vivo, exigindo
ção pela perda do feto, mas se a mãe sofres- complemento e explicação em caso con-
se qualquer dano mais sério ou morresse, a trário.
lex talionis (“vida por vida”) ser executada. Em Nm 12:12, não descobrimos que a
Visto desta forma, esse texto diferencia o criança está morta a partir do verbo “sair”
feto e a mãe, tratando apenas a mãe como (yatsa’), mas o texto tem que dizer isso
um ser humano, e considerando apenas a claramente usando o particípio do verbo
morte da mãe como assassinato. Assim, já “morrer” (muth). O mesmo acontece em
que o feto não é considerado plenamente Jó 3:11: “Por que não morri [muth] eu na
humano, o aborto não deveria ser equipara- madre? Por que não expirei ao sair [yatsa’]
do ao assassinato. dela?” Ou seja, se yatsa’ nunca significa
Por outro lado, a versão NVI suge- aborto na Bíblia, por que entender isso em
re que o texto está falando do nascimento Ex 21:22?
prematuro de um bebê vivo, pelo qual uma Yatsa’, inclusive, é usado para retratar
indenização deveria ser paga. Mas houves- o surgimento de vida, como, por exemplo:
se maior dano (ferimento ou morte) à mãe na criação (Gn 1:24), na promessa do nas-
ou ao feto, a lex talionis deveria ser aplica- cimento de Isaque (Gn 15:4), no nascimen-
da. Nessa interpretação, o feto tem o mes- to de Esaú e Jacó (Gn 25:25-26), no nasci-
mo status de sua mãe, e esse texto não daria mento de Salomão (1Rs 8:19), nos filhos de
apoio à legitimação do aborto. Ezequias (2Rs 20:18), no nascimento de
Não será feita aqui uma análise exegé- Jeremias (Jr 1:5).
tica desse texto, apenas algumas observa-
ções a partir de uma leitura atenta do texto.
3.2 O que sai é uma criança
3.1 O verbo “sair” não viva, não um aborto
significa “aborto” Ex 21:22 refere-se aos nascituros/nas-
Ex 21:22 diz literalmente que as crian- cidos com uma palavra comum para uma
ças saíram da mulher (usando o verbo yat- criança viva, um filho (yeled), e não com a
sa’). Ou seja, as crianças apenas saem, nas- palavra usada para descrever um feto nas-
cem prematuramente, o texto não diz nada cido morto (nephel, como em Jó 3:16 e Sl
sobre elas estarem mortas. Sozinho, yatsa’ é 58:8).
usado para descrever nascimentos de crian- A combinação de “sair” (yatsa’) com
ças vivas (Gn 25:25-26; 38:28-30), não para “criança” (yeled) em Ex 21:22 indica que a
descrever abortos. Há um verbo hebraico criança nasceu viva, pois, em seus sentidos
mais específico para “abortar” (shakal, Ex mais simples, yeled não é uma criança que
23:26), mas ele não é usado em Ex 21:22-23. nasceu morta, e yatsa’ não é um aborto.
Numa das poucas ocorrências de yat- Por que entender a “saída das crianças”
sa’ relacionado a um aborto, em Nm 12:12, como aborto em Ex 21:22, se existem palavras
o autor faz questão de explicar que o bebê hebraicas mais especificas para isso (como o
“saiu” morto (o texto diz literalmente que substantivo nephel e o verbo shakal)? Se o
“aquele que é morto” sai do ventre): “Ora, autor tinha em seu vocabulário palavras es-
não seja ela como um morto [muth], que, pecificas para descrever um aborto (como
saindo [yatsa’] do ventre de sua mãe, tenha usou em Ex 23:26; Gn 31:38; Jó 3:16; 21:20),

16
TEOLOGIA em revista

por que teríamos que forçar um sentido por isso inserem as expressões destacadas
único, diferente, exclusivo aqui em Ex 21:22? (“maior”, “para a sua saúde”, e “outro”).
Ou, por outra via: se o autor usou em Ex A inserção de “para a sua [da mãe] saúde”
21:22 as mesmas palavras que usou em ou- implica que a não-ocorrência do dano
tros lugares para falar de crianças nascidas estaria se referindo apenas à mãe e não às
vivas, por que só em Ex 21:22 o significado crianças. Entretanto, a posição da palavra
deve ser aborto? ’ason na sentença em hebraico indica
que ela se pode se referir tanto às crianças
3.3 O “dano” é aplicado quanto à sua mãe. Numa leitura natural, as
crianças não estariam isoladas do “mas não
tanto à grávida quanto aos ocorre dano”, portanto a inserção de “para a
filhos no ventre sua [da mãe] saúde” é injustificada.
Por sua vez, a inserção das palavras
“outro” e “maior” implica que, na
Ex 21:22 diz literalmente que as crianças
interpretação dos tradutores, algum dano
saiam dela “mas não existe dano”, ou “mas
já havia ocorrido: o suposto aborto. Mas
não ocorre dano”. O “dano” (’ason) que
o texto hebraico diz apenas que nenhum
não ocorre se refere à criança e à mãe, por-
’ason (dano) ocorre, e não indica que a saída
tanto, não houve aborto. A palavra ’ason é
da criança já havia sido em si um dano. A
usada na Bíblia apenas em Gênesis 42:4,
leitura mais natural do texto sugere que
38; e 44:29, onde Jacó revela seu medo de
as crianças saíram prematuramente, mas
que algum mal (’ason) aconteça a seu filho
tanto elas quanto a mãe estão sem dano.
caçula, Benjamim. É curioso que na única
O dano ocorre apenas no verso 23
ocorrência de ’ason no Antigo Testamento,
(literalmente, “mas se ’ason ocorre”), sem
além de Ex 21:22-23, o termo esteja inserido
indicar que se trata de um dano apenas à
no relato onde um pai não quer se separar
mãe, ou um dano a mais. Dentre as versões
de um filho, por medo de que algum dano
em português analisadas aqui, a NVI
(possivelmente a morte) lhe ocorra. Ao usar
transmitiu um pouco melhor a essência do
a mesma expressão com relação ao nasci-
que está escrito em hebraico: “não havendo,
turo, Ex 21:22-23 indica que o feto era reco-
porém, nenhum dano sério”, mesmo
nhecido como uma criança e alvo das mes-
inserindo a palavra “sério”, que também
mas preocupações e direitos que os filhos já
não está no texto hebraico.
nascidos.
As versões que interpretam que Ex 21:22-23
está falando de um aborto tiveram que in-
serir palavras nessa sentença, como se pode 3.4 Esse texto trata de um
ver a seguir (ênfases acrescentadas): aborto intencional
Essa lei de Ex 21:22-23 não ser refere
ao caso de uma mãe que resolve matar o
[...] porém sem maior dano [...] (ARA).
[...] mas sem maior prejuízo para a sua saúde [...] próprio filho. Ainda que fosse considerada
(NTLH). correta a interpretação que vê um aborto em
[...] não resultando, porém, outro dano [...] (AA). Ex 21:22, seria um aborto causado por outra
[...] porém não havendo outro dano” (ACF).
pessoa, contra a vontade da grávida (ou
independentemente dela). Mesmo nessa
interpretação, esse texto não serve como
Nenhuma dessas palavras destacadas está uma descrição do não nascido como algo
no texto hebraico. Todas essas versões menos que humano e nem como defesa do
assumem que os fetos foram abortados, e aborto intencional.

17
TEOLOGIA em revista

A evidência textual sugere que Ex matar um escravo era diferente da punição


21:22-23 fala de um nascimento prematuro por matar um livre, mas isso não significa
provocado por uma briga, e pelo qual uma que o escravo não é pessoa humana. A dife-
indenização deve ser paga. E se a agressão rença era o status legal, não o status moral
provocasse ferimento ou morte da mãe ou a natureza humana do escravo.
ou da criança, a lex talionis deveria ser Ademais, Ex 21:22-23 não especifica
aplicada. Em vez de fazer uma diferenciação a idade do feto, portanto, o status do nas-
entre o feto e a mãe, tratando apenas a mãe cituro é o mesmo durante toda a gravidez.
como ser humano, Ex 21:22-23 trata o feto Esse fato causa uma dificuldade para quem
ser humano de valor igual ao de sua mãe. usa uma leitura particular de Ex 21:22-23
para justificar legislações favoráveis ao
aborto hoje: não há aí nenhuma diferença
3.4 O pagamento de entre um feto de 12 semanas e um bebê a
indenização e o status do poucos minutos de nascer. Portanto, nes-
ser humano se caso, um bebê de 42 semanas também
não seria uma pessoa humana, e matá-lo
Provocar um nascimento prematuro não poderia ser considerado mais grave ou
numa grávida entra nos casos de ferimentos mais errado.
não mortais, com direito à indenização. Faz Mesmo se o texto estiver falando de
sentido alguém pagar por golpear uma um aborto acidental (como sugere a ARA),
grávida e a fazer parir antes da hora. a exigência de uma indenização dos cul-
A indenização para o nascimento pados da tragédia mostra que a morte de
prematuro provocado por uma agressão um feto não é aceitável, não é para se tor-
é justificada porque bebês nascidos nar algo normal, corriqueiro. Se um aborto
prematuramente exigem cuidados acidental resulta em punição do culpado,
especiais, além dos eventuais prejuízos para quanto mais grave seria a morte intencio-
a integridade física da mãe que teve que nal de um feto? Parece inadequado usar
dar à luz em circunstâncias adversas, antes esta passagem para descrever o não nasci-
do previsto. Por isso a indenização deveria do como não-humano e sancionar o abor-
ser estabelecida, ela não tem valor fixo: to intencional de uma criança.
depende do que vai acontecer com a mãe,
das despesas com o prematuro, e outros
fatores.
Contudo, mesmo se a versão ARA (que
4 O STATUS DO
vê um aborto em Ex 21:22) estivesse correta,
e uma indenização financeira fosse a puni-
NÃO NASCIDO EM
ção por causar a morte de um nascituro, em
vez da pena de morte, isso não significaria
NÚMEROS 5:22
que o nascituro não é uma pessoa humana.
Nm 5:22 texto faz parte da lei a res-
As diferentes penalidades não indicam ne-
peito do que fazer com uma mulher casa-
cessariamente nada sobre a personalidade e
da sob suspeita de adultério (Nm 5:12-31).
a condição humana das vítimas. A lei tam-
Trata-se de um teste no qual a mulher, sob
bém não exigia a pena de morte em casos
juramento, bebia uma água amaldiçoada:
de morte acidental de alguém já nascido
“e esta água amaldiçoante penetre nas tuas
(Ex 21:13), e havia a punição mais branda
entranhas, para te fazer inchar o ventre e te
no caso de um dono de escravo que matas-
fazer descair a coxa. Então, a mulher dirá:
se seu escravo (Ex 21:20-21). A punição por
Amém! Amém!” (Nm 5:22).

18
TEOLOGIA em revista

Alguns entendem que essa água, além Esse texto também poderia indicar
de deixar a mulher infértil, provocaria um que a vida humana era considerada ape-
aborto do filho gerado no adultério (a ex- nas depois do primeiro mês após o nasci-
pressão eufemística “inchar o ventre e te mento, pois as crianças recém-nascidas
fazer descair a coxa” significaria isso), e eram ignoradas na contagem dos primo-
isto indicaria que Deus estaria aprovando o gênitos: “E o Senhor disse a Moisés: Conte
aborto de filhos indesejados. todos os primeiros filhos dos israelitas, do
Esse texto não é claro com respeito ao sexo masculino, de um mês de idade para
que aconteceria com uma mulher adúltera
cima e faça uma relação de seus nomes”
grávida, e o aborto pode ser apenas inferido
como um possível resultado. Mesmo assim, (Nm 3:40; cf. 3:15).
trata-se de uma severa punição imposta à Uma inferência possível, a partir
mulher, não um ato de livre escolha indi- desse texto, seria: se uma criança recém-
vidual. Se o caso for mesmo de um aborto, -nascida era considerada dessa forma,
ele seria um juízo divino, como os nascitu- quão menos importante seria uma crian-
ros abortados em Os 9:11-16, e como a morte ça ainda no ventre?
do filho de Davi com Bate-Seba (2Sm 12:13- No entanto, interpretar esse texto
14). Utilizar um aborto provocado por um assim abre portas para o infanticídio, pois
castigo divino para justificar o aborto por bebês poderiam ser descartados com até
conveniência hoje é tão errado quanto usar um mês de nascimento, já que não seriam
a morte de crianças em juízos divinos para pessoas no sentido pleno. Dificilmente
justificar o infanticídio hoje. um cristão estaria disposto a argumentar
Além disso, esse texto não reflete um nesse sentido, mas essa é a consequência
padrão bíblico a respeito da gravidez fru- lógica de usar esse texto para descrever
to de uma relação ilícita. Bate-Seba reco-
nheceu que havia ficado grávida por causa um não nascido como menos que huma-
do adultério (2Sm 11:5), mas o filho não foi no e justificar o aborto.
abortado (essa hipótese nem aparece no re- Na verdade, esse texto está falando
lato). As filhas de Ló engravidaram por uma da idade limite para que um primogênito
relação incestuosa com o próprio pai (Gn fosse resgatado e cerimonialmente subs-
19:36), mas não houve intervenção divina e tituído por um levita: “Eis que tenho eu
nenhuma sugestão no texto para que os fi- tomado os levitas do meio dos filhos de
lhos fossem abortados. Israel, em lugar de todo primogênito que
abre a madre, entre os filhos de Israel; e
os levitas serão meus” (Nm 3:12). Os pri-
mogênitos eram permutados pelos levitas
com um mês de idade (Nm 3:45-47; 18:15-

5 O STATUS
16). Portanto, essa não é uma questão re-
ferente ao status moral do bebê, mas a
uma questão legal cerimonial relativa ao
DAS CRIANÇAS resgate dos primogênitos.

EM NÚMEROS

19
TEOLOGIA em revista

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da evidência bíblica revela Na Bíblia, portanto, o que foi concebido
uma linguagem que se refere ao homem e vive no ventre materno é um “filho”, uma
como plenamente humano mesmo antes “criança”, e a mulher em cujo ventre esse
do nascimento. Deus chama, consagra, pequeno ser vive é uma “mãe”. Mesmo que
sustenta, forma, molda o nascituro. Mes- a criança ainda não tenha nascido, e mesmo
mo no ventre, ele recebe a atenção e o cui- que morra antes do nascimento, ela é “filho”
dado de Deus. E a Bíblia jamais o descreve e “criança”, e a mulher que a concebeu é uma
como uma “coisa” inanimada ou sub-hu- “mãe”.
mana, pelo contrário: dedica-lhe textos
Essas expressões mostram que o nas-
poéticos, proféticos e históricos, com ad-
jetivos, substantivos e verbos igualmente cituro na Bíblia é identificado por termos
usados para seres humanos já nascidos. distintamente humanos, e tal linguagem
É temerário concluir que o nascituro sugere que não há diferença essencial entre
não é considerado uma vida humana na o nascido e o não nascido, pois a Bíblia usa
Bíblia, pois nela ele tem individualidade exatamente os mesmos termos para ambos.
como a de um nascido, é chamado de “fi- Portanto, diante dessas evidências, é possível
lho” e de Deus e em linguagem pessoal, e concluir que a Bíblia sugere que nascituros
sua morte é uma maldição equivalente à e nascidos partilham da mesma natureza, e
morte de um nascido. que a vida no ventre materno é vida humana.

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21
TEOLOGIA em revista

UMA ANÁLISE DA ESCRAVIDÃO


NA TEOCRACIA ISRAELITA
AN ANALYSIS OF SLAVERY IN ISRAEL’S THEOCRACY
Cátia Sirlene Lunkes Marcon 1

Mestre em Gestão do
Conhecimento nas Organizações

Samuel Elias Lunkes Marcon


2

Teólogo Pós Graduado


em Filosofia

1
Mestre em Gestão do Conhecimento nas Organizações (Centro Universitário de
Maringá – UNICESUMAR). Docente da Faculdade Adventista do Paraná (Ivatuba-PR).
Contato: catia.marcon7@hotmail.com
2
Teólogo formado no Centro Universitário Adventista e Historiador pelo Centro
Universitário ETEP. Pós-graduando em Filosofia na IBRA. Professor de Ensino Religioso
e Auxiliar de Capelania no Colégio Adventista São José dos Pinhais - PR. E-mail:
samuel,lunkes@educadventista.org.br.
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TEOLOGIA em revista

Resumo
Por muitos séculos a escravidão fez-se presente no con-
texto social e isso desagrada a mentalidade moderna pois é
considerada uma ação desumana. Apesar de muitos povos
adotarem o regime escravagista para formarem sua nação,
existiram outras nações que, mesmo havendo escravos, ga-
rantiam leis que os protegiam, uma delas foi a nação de Is-
rael. O artigo presente tem como objetivo analisar a escravi-
dão na teocracia israelita. Para isso, foram consideradas as
leis dos povos antigos referentes à escravidão, o pensamen-
to teocrático bíblico sobre o ser humano, a relação entre a
lei, Deus e escravidão; e, por último, como as leis mosaicas
lidavam com a escravidão. Os pontos principais conside-
rados foram a desvalorização do ser humano nas culturas
antigas, a valorização que a Bíblia traz para a raça huma-
na, a preocupação do ser divino bíblico com os excluídos da
sociedade antiga e a compreensão das leis encontradas no
Pentateuco referentes a escravidão hebraica.

Palavras-chave: escravidão; teocracia; Israel.

Abstract:
For many centuries slavery was present in the social
context and this displeases the modern mentality as it is
considered an inhumane action. Although many peoples
adopted the slave regime to form their nation, there were other
nations that, even with slaves, guaranteed laws that protected
them, one of them was the nation of Israel. This article aims
to analyze slavery in the Israeli theocracy. For this, the laws
referring to slavery in ancient peoples, the biblical theocratic
thought about the human being, the relationship between
law, God and slavery and finally how the Mosaic laws dealt
with slavery were considered. The main points considered
were the devaluation of the human being in ancient cultures,
the appreciation that the Bible brings to the human race, the
concern of the biblical divine being with those excluded from
ancient society and the understanding of the laws found in
the Pentateuch regarding Hebrew slavery.

Keywords: Uslavery; theocracy; Israel

23
TEOLOGIA em revista

1
INTRODUÇÃO
Ao longo dos séculos a escravidão es- A problemática do artigo foi encon-
teve presente na história da humanidade e trar a harmonia entre uma teocracia que se
muitas sociedades foram construídas atra- diz baseada em leis de amor e bondade e a
vés da submissão forçada de povos domi- escravidão, por ser algo que desumaniza o
ser humano. Desta forma, como analisar a
nados. Meillassoux (1995, p. 17) comenta escravidão teocrática?
que “A escravidão é um período da história O objetivo geral do trabalho foi ana-
universal que afetou todos os continentes, lisar um recorte da história do povo isra-
simultaneamente às vezes, ou sucessiva- elita e sua cosmovisão sobre a escravidão
mente”. no período em que o rei do povo foi Deus
Essa realidade não foi diferente en- (teocracia) e Ele concedeu ordens para o
tre o povo hebreu, e, por isso, a pesquisa povo por meio da Torah. Para alcançar o
realizada para este trabalho teve o intuito objetivo, buscou-se compreender quatro
de buscar informações para a compreen- aspectos, o conceito de escravidão nos po-
são de como eram as leis sobre a escravi- vos antigos, o valor do ser humano do pon-
dão entre os hebreus. E como essas leis se to de vista bíblico, a relação da lei com o
relacionavam com o seu Deus. Abriu-se a ser divino e por fim as leis sobre escravidão
premissa de investigar se havia algum di- entre o povo hebreu.
Para atingir o objetivo realizou-se um
ferencial entre essas leis e as leis dos anti- trabalho descritivo, investigando informa-
gos povos que viveram na mesma época e ções em materiais bibliográficos e, portan-
até mesmo com povos considerados mais to, com cunho qualitativo, para expor os
evoluídos em séculos futuros. conceitos, os motivos e os resultados.

2 O SER HUMANO NA ESCRAVIDÃO


O historiador Oliver Pétré-Grenou- 1) as tarefas tornam-se cada vez mais com-
illeau (2009) afirma que as civilizações plexas e diferenciadas;
mais antigas tais como Egito, Uruk, Ja- 2) há necessidade de armazenamento agrí-
cola;
pão, China arcaica, Camboja, Grécia, Ín-
3) há desigualdade social, tanto interna-
dia e outros, possuem registros de traba- mente quanto externamente;
lho escravo. Ele aponta que esse tipo de 4) existe uma mentalidade propensa à
trabalho aparece em sociedades em que: escravidão.

24
TEOLOGIA em revista

Segundo o autor, nem todas as civi- portante pontuar que, apesar de o


lizações que tiveram a escravidão em sua escravo ser desumanizado, o seu patrão ti-
história eram sociedades escravagistas, nha um limite natural, pois o escravizado
onde o escravo exercia um papel importan- tinha um valor econômico e era útil ao seu
te para o desenvolvimento desse Estado. senhor. Isso porque a escravidão “favorece
Meillassoux (1995, p. 9) afirma que a o fortalecimento das elites estabelecidas”
definição de escravo no direito é descrita (PÉTRÉ-GRENOULIEAU, 2009, p. 63).
como “objeto de propriedade, logo, alie- Em uma análise dos autores Pétré-
nável e submetido ao seu proprietário”. -Grenouilleau (2009), Trespach (2018),
Já Pétré-Grenoulieau (2009) busca espe- Flávio Josefo (2004) e Stadelmann (1978),
cificar mais esse conceito, pois, de acordo percebe-se que independente da socieda-
com ele, não se deve dizer que alguém está de ser escravista ou ter escravos, havia leis
em regime de escravidão pelas condições que ditavam funções, deveres e “privilé-
de vida e nem pelas condições de seu tra- gios” para os trabalhadores.
balho. Essa interpretação se deve ao fato Entre os Sumérios, por exemplo, ha-
de que haviam escravos que eram levados via duas classes sociais: (1) os livres e (2)
para trabalhar em busca de matéria prima os escravos. Na segunda classe, os escravos
e outros para trabalhar em casas. Da mes- eram divididos em nativos e estrangeiros.
ma forma, havia aqueles que eram postos Nessa organização, o escravo nativo tinha
como aprendizes para posteriormente se um tratamento totalmente diferente do
tornarem professores; e ainda existiram os escravo estrangeiro, tendo o direito de ter
que eram raptados quando crianças e usa- propriedade particular e julgamento para
dos como soldados. Sobre isso, Pétré-Gre- expor e defender suas causas. (STADEL-
noulieau (2009) enumera quatro pontos MANN, 1978).
que juntos definem o que é um escravo: Standelmann (1978) também escreve
sobre as leis referentes aos escravos no Có-
digo de Hamurabi e entre as leis Hititas. No
1) é um estranho - é uma pessoa que não Código de Hamurabi, apesar de haver três
está inclusa no grupo social da época;
classes sociais, a burguesia, os plebeus e os
2) é propriedade do senhor - o escravo per- escravos, cada indivíduo era proporcional-
tence ao senhor podendo ser comprado, mente igual perante a lei. Ainda é apresen-
adquirido, doado, etc. O escravo pode ser tado que o escravo poderia se tornar livre
utilizado como moeda de troca, parte do se participasse da cerimônia religiosa de
comércio, e muitos deles foram usurpados
na guerra; manumissão – a família adotaria o escravo
e assim ele se tornaria livre, porém os direi-
3) é um homem condicional - ao mesmo tos continuavam restritos.
tempo que eram tratados como seres hu- Entre os hititas, as leis diziam que o
manos podiam ser considerados como ani- escravo/servo era uma pessoa “cuja a vida
mais, fazendo com que fossem desumani-
zados com facilidade; e a integridade física estão protegidas con-
tra o abuso do poder” (STADELMAN, 1978,
4) é um sujeito útil ao seu senhor - poderia p. 165). Apesar disso, como o seu status so-
ser utilizado pelo seu senhor em casa ou cial era menor que a de um homem livre a
qualquer atividade braçal. compensação de danos e a pena também
eram inferiores, o que correspondia à me-
Valendo-se da junção dessas tade de uma pena ou compensação de um
quatro considerações, pode-se concluir homem livre. O autor acrescenta que esse
que um escravo estava limitado às leis e povo só reduzia seus compatriotas à escra-
vontades do seu superior. Também é im- vidão em casos excepcionais.

01
25
TEOLOGIA em revista

Pétré-Grenouilleau (2009) comenta 1) Eram privados de direitos;


que no Egito os escravos pagavam impos- 2) Juridicamente ele seria um ser nulo na
tos para o Estado. Na Grécia, mais especi- sociedade – assim, ele estaria sujeito ao
ficamente em Atenas, havia escravidão por tratamento que o dono achasse que ele
dividas até o período do legislador Sólon. merecesse e isso envolveria
A partir de Sólon houve leis que protegiam
os cidadãos atenienses, até mesmo os mais a) Não ter participação política;
pobres. Isso obrigou os atenienses a bus- b) Não ter poder de tomada de decisões,
carem outros meios – tráfico de escravos, seguindo sua própria consciência/juízo;
e escravos adquiridos em guerra. As leis de c) O trabalho a ser realizado dependeria
do que o patrão estipulasse – isso envol-
Atenas com relação à escravidão restrin- via também trabalhos pesados ou/e humi-
giam o escravo a ter outro nome além da- lhantes, incluindo ações abusivas.
quele que o seu senhor havia dado. Ele não
poderia casar e nem ter direitos jurídicos.
Com respeito à alforria, a mesma era feita
de maneira restritiva. Enquanto isso, “em Porém, como o historiador Flávio Jo-
Roma, a escravidão não deixou de ser um sefo (2004) narra, houve um momento de
atentado à dignidade da pessoa humana” caos no Estado Romano, quando o impe-
(VASCONCELOS, 2012, p. 138). Vasconce- rador Caio permitiu que os escravos des-
los (2012) expõe o tratamento aos escravos prezassem e acusassem falsamente seus
na época do império: senhores.

Portanto, um escravo era um ser hu-


Por fim, Nichols (2013) pontua que em mano inferior em direitos, onde estava su-
geral a situação dos escravos era: jeito vontade dos seus senhores. Notando-
Solitária, pois eram separados de suas -se que a cosmovisão de um povo a respeito
famílias, vivendo longe delas; da vida humano favorecia a escravidão, em
muitos casos.
Na próxima seção discutir-se-á como
Sem direitos políticos; o ser divino, incluindo seu caráter, afetava
a formulação das leis de um povo, em es-
pecífico as relacionadas à escravidão.
Com alguns privilégios sociais;

Serem apresentados como inferiores


aos seus senhores;

Estar sujeitos a castigos físicos;

Trabalhar de forma exaustiva


sem uma jornada justa.

02
26
TEOLOGIA em revista

3 O SER HUMANO Além dos fatores econômicos e so-


ciais, a filosofia e o pensamento sobre
Deus e o homem contribuíram para for-
NA TEOCRACIA mação das leis de uma civilização. Exem-
plo disso é o que Rodrigo Trespach (2018)
Deus criou, homem e apresenta sobre o código babilônico,
constituído por Hamurabi, que justificava
mulher, a “sua imagem e o direito de escravizar uma pessoa com a
ideia de que os deuses haviam dado a li-
semelhança”! berdade para tal ato. Trespach (2018, p.
13), ainda menciona que Platão defendia
que a escravidão era algo “natural, conve-
niente e justo” e coloca o escravo na mes-
ma posição de um animal.
Aristóteles apresenta que a escravi-
dão faz parte da harmonia social, onde
sempre haveria os escravizados e os li-
vres, e caso mudasse a situação, a civili-
zação iria ruir (PÉTRÉ-GRENOULIEAU,
2009). As ideias de Platão e de Aristóteles
se mostram bastante similares à maneira
que o evolucionismo explica a origem da
escravidão. Segundo Pétré-Grenouilleau
(2009), a teoria evolucionista defende
que a escravidão seria um resquício da
animalidade natural da raça humana e
não poderia ser explicada pois seria um
processo natural da evolução do homem.
No pensamento Judaico-Cristão,
que tem como sua fonte primária a Bíblia,
a escravidão seria uma consequência de
um mundo deturpado pelo pecado, como
apresenta Jones (2014). Na cosmovisão
bíblica, o responsável pela criação teria
feito os seres humanos, homem e mulher,
a “sua imagem e semelhança” (Gn 1.27)
de forma igual e fazendo-os ocupar “um
lugar único entre as criaturas”, pois “só
eles são feitos a ‘imagem e semelhança’
de Deus” (HOUSE, 2005, p. 76).

Segundo Cairus (2013), nessa ex-


pressão está subentendido que o homem
e a mulher:

27
TEOLOGIA em revista

1) Contribuem para glorificar a Deus – isso sem de ser bons e se tornassem “corruptos”
ocorre quando eles estabelecem uma rela- (Jr 17.9). Com essa corrupção, problemas
ção harmoniosa com esse Deus e entre eles sociais surgiram, entre eles a escravidão e,
mesmos; portanto, “qualquer desigualdade [...] que
2) São um retrato do Ser Divino que os se manifesta nas sociedades humanas é re-
criou; sultado do pecado” (JONES, 2014, p. 195).
3) Possuem uma posição superior no pla- Não importa se for desigualdade entre gê-
neta Terra, em comparação a todo o resto neros, classes sociais, culturais ou econô-
dos seres animados e inanimados. micas, no pensamento bíblico, essas desi-
gualdades são consequência do afastar-se
Jones (2014), completa afirmando do Divino, completa Jones (2014). Sergio
que, no ponto de vista bíblico, o valor do Feldman (2008) diz que em nenhum mo-
ser humano se dá não por causa da sua in- mento da narrativa bíblica a desigualdade
teligência, seu poder de relacionamento, através da escravidão seria uma ordem di-
sua força ou sua raça, mas esse valor lhe vina. Em todo o tempo de história, a escra-
é atribuído por ter sido feito à imagem e vidão partiria de uma “necessidade” hu-
semelhança de Deus. Nesse sentido o ho- mana.
mem não é somente mais um organismo

4 A ESCRAVIDÃO
vivo no planeta, mas possui uma função
que é a de refletir o caráter de Deus. A ex-
pressão “a imagem de Deus” inclui ex-
pressar sua natureza moral. Logo, o ser
humano, no princípio e ao longo da histó- NA TEOCRACIA
ria, deveria ser bom pois imita o Deus que O ideal na teocracia bíblica é que entre
ao concluir sua criação declara que tudo o os humanos não houvesse nenhuma desi-
que tinha feito “era muito bom” (Gn 1.31). gualdade e que todos fossem livres. Ainda
(CAIRUS, 2013). assim, a escravidão se tornou uma institui-
A teologia bíblica sobre o ser hu- ção universal, e, por isso, “Deus permitiu
mano e o seu valor é então construída a sua prática, mas, ao mesmo tempo procu-
partir de Genesis 1.27 e complementada rou diminuir o mal que a acompanhava”
com a ideia de que o homem é bom, mos- (NICHOLS, 2013, p. 657).
trando o ideal para a raça humana. Sendo Muitos tentam justificar a escravidão
assim uma vida de equilibro na sociedade dos negros relacionando a maldição que
fazendo com que não houvesse desigual- Cam recebeu de Noé, seu pai. Mas, na Bí-
dades sociais e que a moralidade estivesse blia, não há base para esse argumento, e na
intrínseca na humanidade que a expressa verdade nem se sabe quem foi o origina-
através do ser bom. dor dessa teoria (PÉTRÉ-GRENOUILLEAU,
O ponto de vista cristão também ex- 2009).
plica que, em decorrência do pecado da A ação divina no livro de Êxodo mos-
desobediência a Deus, narrada em Gênesis tra o contrário do argumento de que a or-
3, as relações humanas foram deturpadas dem para existir escravidão veio do Deus
fazendo com que os seres humanos deixas- bíblico.

28
TEOLOGIA em revista

O autor desse livro narra que Deus viu o A lei encontrada na Torah seria uma
povo de Israel sofrer como escravos no Egi- expressão direta da vontade divina direcio-
to e resolveu libertá-los enviando Moisés nando os hebreus, como relembra Stanel-
para Canaã (Êx 1-13). Segundo Jean-Louis mann (1978). Assim, “o povo que se cha-
Ska (2018), a partir do livro de Êxodo, no- ma pelo nome do SENHOR devia mostrar
ta-se como o trabalho pode ser degradado as características de seu Deus em todas as
e explorado pelo pecado, já que o trabalho áreas da vida”. (JONES, 2014, p. 276).
de Israel no Egito Antigo era uma escravi- As ordenanças presentes no Penta-
dão. Além disso, se compreende que o Deus teuco mostravam não somente o que esse
apresentado na narrativa bíblica não gosta legislador divino esperava do seu povo,
da opressão. Portanto, Ele liberta o povo mas também o que esse povo poderia espe-
hebreu para que sejam livres (FELDMAN, rar dessa entidade divina. Essas leis mos-
2008). Com essa libertação o povo torna- traram que o Deus bíblico não se importa
-se “propriedade particular” de Deus para somente com as questões envolvendo reli-
serem um reflexo desse Deus, onde forem gião e adoração, mas também demonstra
(Êx 19.5-6). preocupação e importância com todos os
De acordo com House (2005), a partir do aspectos da sociedade humana. Haviam
momento que Deus liberta o povo, ele vai sis- leis envolvendo questões de “liderança,
tematicamente definindo a comunidade à sua guerra, crimes, relações familiares, ques-
imagem e semelhança. Como o ideal não existia
tões econômicas e comerciais”. (JONES,
mais, o Libertador do povo apresenta uma lei que
“mostrou a Israel como expressar o amor de Deus
2014, p. 276). Jones completa apresentan-
em um mundo real” (RICHARDS, 2004, p. 113). do que as ordenanças também contêm
Esse Deus não mostra somente os concei- “diversas instruções que visam a proteção
tos abstratos da lei, mas apresenta “como os con- da família e do casamento, a devolução de
ceitos abstratos são expressos na situação do dia- animais perdidos, a segurança pública na
-a-dia” (RICHARDS, 2004, p. 112). Os princípios construção e a necessidade da observân-
e orientações base para a nação hebraica encon- cia de práticas comerciais justas” (JONES,
tram-se escritos nos cinco primeiros livros da Bí- 2014, p. 276).
blia - a saber, Gênesis, Êxodo, Levítico, Números
A preocupação demonstrada na lei,
e Deuteronômio - conhecidos como Pentateuco
ou Torah, o Livro da lei, e “Moisés recebeu todas
por parte do ser divino, fez com que o co-
essas leis do próprio Deus, no monte Sinai, para mentarista bíblico Richards (2004) notasse
dá-las ao povo, quando estavam acampados aos uma extrema compaixão da parte de Deus
pés do monte, e escreveu-as para serem observa- pelos seres humanos e especificamente
das por aqueles que viessem depois deles” (JOSE- pelos grupos marginalizados da época bí-
FO, 2004, p. 146). blica. Exemplo disso seriam os preceitos
que protegiam os escravos e as mulheres.
Ele compara dizendo que a compaixão era
“inexistente nas leis de outras culturas da

5 A ESCRAVIDÃO
época” (RICHARDS, 2004, p. 113).
Aos olhos dos estudiosos bíblicos até
aqui apresentados, a relação Deus, povo e
NA TORAH lei deveria estar intrínseca na sociedade
hebraica e envolvia adoração e questões do

29
TEOLOGIA em revista

cotidiano, não de forma separada, mas lida com o real. Isso faz com que a Bíblia
num conjunto. O principal objetivo das aplique leis sobre a escravidão para “prote-
leis mosaicas era revelar o caráter de Deus, ger os escravos como filhos de Deus, como
expresso através do povo: “Por isso, a Lei irmãos da comunidade religiosa e como
mostrou a Israel como expressar o amor cidadãos de um sistema social cuja meta
de Deus em um mundo real” (RICHARDS, é a liberdade do ser humano” (NICHOLS,
2004, p. 113). 2013, p. 1105).
Ainda no Pentateuco, encontram-se Estudiosos como Harrison e Pferffer
as leis referentes à escravatura, mais espe- (1965), Meillasoux (1995), e Nichols (2013)
cífico nos livros de Êxodo, Levítico e Deu- mostram que essas leis eram tão favoráveis
teronômio. Um fator inicial que Nichols ao escravo que os povos ao redor dificil-
(2013) apresenta é que a escravidão não mente considerariam o escravo hebreu um
deveria acontecer, pois, Deus tirou o povo escravo mesmo, eram vistos por muitos
de Israel da terra do Egito para eles não fos- como um penhor.
sem mais escravos, como o texto de Levíti- As leis referentes à escravidão en-
co 26.11-13, apresenta: contradas no Pentateuco são sintetizadas
por Henri Daniel-Rops (2008), em espe-
Estabelecerei a minha habitação entre vo- cífico as que permitiam que um hebreu se
cês e não os rejeitarei. Andarei entre vocês e tornasse um escravo:
serei o seu Deus, e vocês serão o meu povo.
Eu sou o Senhor, o Deus de vocês, que os
tirou da terra do Egito para que não mais 1) Quando a pessoa devia algo;
fossem escravos deles; quebrei as traves do 2) Quando a pessoa roubava e não tinha
jugo que os prendia e os fiz andar de cabe- dinheiro para restituir o que havia sido
ça erguida (grifo nosso). roubado;
3) Quando a pessoa era pobre, e para não
Complementando essa ideia, Nichols morrer de fome se sujeitava à escravidão.
(2013, p. 657) discorre que :

“No espírito, a lei de Moisés é contra a es- Isso quer dizer que o próprio israelita
cravidão. Sua ênfase na dignidade do ser poderia se vender, ou vender os membros
humano feito a imagem de Deus e seu reco- da sua família, para saldar suas dívidas ou
nhecimento de que toda a humanidade se evitar a pobreza. Porém, ele não poderia,
originou de um casal continuam em prin- segundo Henry (2017), ser sequestrado por
cípio a afirmação de todo direito humano” seus compatriotas e forçado à escravidão.
Mas “se um israelita fosse comprado por
um senhor pagão ou por outro judeu que
Esse pensamento não é expresso so- planejasse tirá-lo da Terra Santa, a comu-
mente na Torah. Daniel-Rops (2008, p. nidade o resgatava, caso a família não ti-
163) diz que “a Bíblia lembrou repetida- vesse condições para isso” (DANIEL-ROPS,
mente os israelitas que tinham sido es- 2008, p. 166). Essa atitude completamente
cravos no Egito, e lhes disse que esta lem- diferente das demais civilizações da época.
brança deveria torna-los compassivos. A Também, Daneil-Roos (2008) clas-
escravidão era algo comum no ambiente sifica quais deveriam ser as condições de
social da época e o Legislador dos hebreus trabalho:

30
TEOLOGIA em revista

1) Horário de trabalho - até dez horas por Essas leis não eram somente para os
dia e somente durante o dia, tendo o sába- homens, mas também para as mulheres.
do como um dia de descanso; Henri (2008, p. 166) mostra que além des-
2) Trabalho somente para o senhor - não sas leis, haviam mais algumas regras que
poderia trabalhar para o público e não era as protegiam:
obrigado a fazer algo que causasse humi-
lhação.
1) Se fosse casada com um escravo parti-
O Pentateuco ainda, segundo ele, lhava da sorte dele, a não ser que “perten-
apresentava uma segurança para a vida do cesse ao Senhor antes de casar-se”;
escravo, protegendo-o da seguinte forma: 2) “Muitas se tornavam concubinas dos
senhores ou dos filhos destes” e mesmo
assim não era permitido que o patrão as
1) A lei ordenava que o senhor que matasse vendesse caso não se agradasse mais delas
o escravo fosse castigado; e deveriam ser tratadas como sua esposa,
2) A lei ordenava que o escravo fosse liber- sem direitos inferiores.
to caso fosse mutilado ou ferido com gol- 3) A alforria do Ano do Jubileu só se aplica-
pes pelo seu senhor va quando a mulher exigia;

Além dessas leis, vale ressaltar que a


lei mosaica previa a libertação de um es- O escravo que era considerado pagão,
cravo hebreu assim que completasse o va- comprado em mercado para serviços usu-
lor da sua dívida ou a cada seis anos de seu ais, mas não pertencente ao povo hebreu,
serviço, não podendo passar desse período. também teria direitos que o protegeriam.
Quando o hebreu fosse liberto o seu antigo Seis leis resguardavam o escravo de origem
patrão deveria ser generoso com ele, não de outra nação:
podendo sair de mãos vazias para que evi-
tasse uma escravidão futura, novamente.
Um ponto a salientar é que quando o 1) Não poderia ser maltratado ou mutilado;
escravo fosse liberto perante a sociedade, 2) Teria direito ao dia de descanso, o sába-
estipulava-se uma premissa: do;
3) Se escapasse não seria devolvido ao
dono;
1) Se fosse judeu: voltava a usufruir de todos 4) Teria que se sujeitar a certas exigências
os direitos de um hebreu e pertenceria nova- bíblicas, pois pertencia a um israelita;
mente ao povo de Israel; 5) Não podia ser circuncidado contra sua
2) Se fosse pagão circuncidado: também pas- vontade;
sava a pertencer ao povo de Israel, mas com 6) Se não se sujeitasse as exigências judai-
menos direitos que um ex-escravo judeu. cas, depois de 12 meses, deveria ser vendi-
do de volta aos pagãos. Porém, se concor-
dasse com as exigências, era considerado
Apesar dos direitos, o historiador membro da família.
Flavio Josefo (2004, p. 183) lembra seus
leitores que uma das restrições de um es-
cravo seria a de que ele não poderia depor
em um julgamento, pois a “baixeza de sua Vale ressaltar que os dois grupos, es-
condição lhes abate o ânimo, e o temor ou cravos hebreus e escravos de outras na-
o intersere pode levá-los a depor contra a ções, tinham direito ao mesmo descanso
verdade”. semanal.

31
TEOLOGIA em revista

A menção do direito ao descanso sema- Percebe-se que há diferença entre a


nal, pelo escravo, que é explicita no quar- sociedade hebraica com relação as demais
to mandamento deuteronômico, alude a sociedades. A sociedade hebraica apresen-
um momento presente, pois ordena que tava um estilo de convivência e de lidar com
lhe seja dado o mesmo descanso do ho- a condição da escravatura, à frente do seu
mem livre, do senhor, de sua esposa, de tempo. A explicação para essa vanguarda é
seus filhos e até de seus animais de carga que essa sociedade seria regida por leis de
e de tração. (FELDMAN, 2008, p. 6-7). um Deus que se importa com a raça huma-
na. Essas normas indicavam que em uma
Entende-se assim que em um dia da nação teocêntrica todos deveriam ajudar
semana, o sábado, não havia diferenças so- uns aos outros, pois foram feitos a imagem
ciais, econômicas e culturais. Nesse dia, to- de Deus, como ensina Gênesis 1.27. Sendo
dos estariam diante da presença de Deus e assim, a comunidade como um todo e de
todos teriam o mesmo direito. Mostrando forma equitativa poderia participar de um
que o Deus de Israel busca a liberdade de relacionamento completo com Deus.
todos e não trata com diferença. Portanto é demonstrado que
A fim de comparar as diferenças en-
tre a escravidão teocrática e a escravidão A consciência de que cada ser humano
em sociedades da época fez-se um resumo, tem sua origem em Deus inspira o sen-
conforme quadro 1, baseado nas conside- so de pertinência e responsabilidade.
rações de Nichols (2013). Também confere a vida humana senso
de dignidade e nobreza, e o comporta-
Leis na sociedade hebraica mento humano reflete um senso de calor
próprio e de respeito para com os outros
O escravo não deveria ser tratado com tirania seres humanos (KIS, 2013, p. 750).
O escravo não era considerado inferior ao
seu patrão, mas deveria ser considerado Quanto ao senso de respeito pelos de-
como irmão mais seres humanos, vale ressaltar que
Quando o escravo pagava o que devia ele era
ser liberto
Os judeus do AT viviam na sua cultura
Existiam trabalhos que o escravo hebreu e no seu tempo - não no nosso. Naquela
não era obrigado a realizar
cultura a escravidão era uma forma de
O escravo tinha uma jornada de trabalho vida. Por isso a Lei ordenava os israelitas
a viverem da maneira que Deus queria
no contexto da época - não no mundo de
Leis nas demais sociedade hoje (RICHARDS, 2004, p. 113).
O escravo era considerado como inferior aos
seus senhores
Sendo assim, a cultura bíblica apre-
O escravo vivia longe da família, separado e senta através dessas leis que o Deus de Is-
o vínculo familiar era desconsiderado rael buscou amenizar o que foi possível,
considerando os costumes e a cosmovisão
O escravo não tinha direitos políticos e pos- da época, os efeitos da escravidão trazendo
suía poucos privilégios sociais em forma de leis proteção e garantia de que
O escravo estava sujeito a castigos físicos e aqueles que se submetessem a essa prática
todo o tipo de humilhação tivessem também direitos humanos.
O escravo deveria trabalhar de forma exaus-
tiva sem uma jornada justa

32
TEOLOGIA em revista

6 CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Considerando a problemática do ar- considerando o momento de sua formação
tigo de analisar a escravidão teocrática, no como um povo onde as leis foram dadas
que ser refere ao contexto da escravidão por seu Rei e Deus por meio da Torah. So-
nos tempos antigos compreendeu-se que bre a prática dessas leis após as receberem
fatores sociais e econômicos levaram seres e como elas se desenvolv eram ao longo do
humanos a se tornarem escravos, porém ao tempo no povo de Israel e consequente-
avaliar as leis referentes a escravidão entre mente entre judeus, há necessidade de no-
os egípcios, hititas, sumérios romanos e gre- vas pesquisas sobre o assunto.
gos e outros povos, entendeu-se que eram
práticas desumanas. As justificativas para a
prática da escravidão foram explicadas por
teóricos e legisladores da época como sen-
do normal e natural da natureza humana.
No entanto, a cosmovisão bíblica apresenta
que o ser humano foi criado a imagem e se-
melhança de seu Criador, levando em con-
ta que ser a imagem e semelhança de Deus
simboliza representar seu caráter. Logo,
não seria natural ao homem ser escravo e
sim livre.
A narrativa bíblica ainda apresenta
que devido o pecado, o ideal proposto por
Deus não é mais possível e por isso o ser di-
vino bíblico trabalha com a realidade hu-
mana. Deus cria leis que buscam restaurar
o homem e a mulher a sua imagem e seme-
lhança, na condição em que se encontram.
As leis não são somente teóricas, mas são
práticas e envolvem o dia-a-dia da comuni-
dade hebraica.
Dentro dessas ordenanças, o Legisla-
dor divino apresenta como os israelitas de-
veriam tratar os escravos, tanto da própria
nação quanto das nações de fora. Deus não
aprovava a prática da escravidão, mas tole-
rou a cultura praticada por outros povos, e
criou meios para amenizar a dor e valorizar
a vida humana.
Em uma análise comparativa con-
cluiu-se que a escravidão no meio do povo
hebreu era mais branda mostrando o caráter
do Deus de Israel que se preocupava com os
seres humanos, indiferente de sua condição,
sendo ele escravo ou livre. Esse artigo fez um
recorte na histórica dos israelitas, con-

33
TEOLOGIA em revista

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34
TEOLOGIA em revista

A IASD E AS NOVAS GERAÇÕES:


UM ESTUDO SOBRE COMO TORNÁ-LA
RELEVANTE NO SÉCULO XXI
SDA CHURCH AND NEW GENERATIONS: A STUDY ON
HOW TO MAKE IT RELEVANT IN THE 21ST CENTURY

Antonio Carlos Tavela1


Mestre em Teologia
Igor Costa Bez Birolo2
Graduando em Teologia

1 Mestre em Teologia (UNASP, Engenheiro Coelho-


SP). Contato: antonio.tavela@educadventista.org
2
Graduando em Teologia no Seminário Adventista
Latino-americano de Teologia (IAP, Ivatuba-PR).
Contato: igorcostabezbirolo@gmail.com
35
TEOLOGIA em revista

Resumo
O presente trabalho teve como objetivo analisar a relação
entre Novas Gerações e a Igreja Adventista do Sétimo dia do sé-
culo XXI, bem como propor métodos e conceitos para ela se tor-
nar relevante na sociedade e na vida de fé dos jovens da atuali-
dade. Para tanto, foram analisados vários pontos dentro desses
grupos. Dentro do escopo das Novas Gerações, foi estudado a sua
importância para a Igreja Adventista atual, e suas principais ne-
cessidades. Também foi exposto a visão delas sobre a igreja e os
motivos do abandono da fé. Em relação à Igreja Adventista, foi
observado como ela pode se tornar significativa para os jovens
através de quatro pontos cardeais: uma liderança modelo, um re-
lacionamento pessoal, métodos contextualizados e um modelo
de discipulado bíblico. A pesquisa se utilizou do método de re-
visão bibliográfica. De acordo com o que foi visto no trabalho, é
possível concluir que a Igreja Adventista dispõe de todos os meios
para se tornar relevante para as Novas Gerações nos dias de hoje.

Palavras-chave: Novas Gerações. Igreja Adventista do Sé-


timo Dia. Relevância.

Abstract:
The present work aimed to analyze the relationship between
the New Generations and the Seventh-day Adventist Church
of the 21st century, as well as to propose methods and concepts
for it to become relevant in society and in the faith life of young
people today. Therefore, several points within these groups were
analyzed. Within the scope of New Generations, its importance
for the current Adventist Church, and its main needs, was studied.
Their views on the church and the reasons for abandoning the
faith were also exposed. In relation to the Adventist Church, it was
observed how it can become meaningful to young people through
four cardinal points: a model leadership, a personal relationship,
contextualized methods and a model of biblical discipleship. The
research used the literature review method. From what was seen
in the work, it is possible to conclude that the Adventist Church has
all the means to become relevant to the New Generations today.

Key words: New Generations. Seventh-day Adventist Church.


Relevance.

36
TEOLOGIA em revista

1 da visão que os jovens têm da Igreja. A vi-


são que se tinha dela como necessária para
uma vida espiritual completa tem muda-

Introdução
do, fazendo com que as Novas Gerações
não enxerguem mais a igreja como um
fator relevante em suas vidas. Vivemos
As Novas Gerações estão se desligan- em uma geração dinâmica que a cada mo-
do cada vez mais da Igreja Adventista do mento está se alterando, e é dever da IASD
Sétimo Dia (IASD) no século XXI, porém a poder estar se adaptando constantemente
igreja não consegue compreender a razão para conseguir alcançar as pessoas onde
dessa onda de desistentes. Por mais que os quer que elas estejam, porém mantendo
jovens realmente tenham fé em Deus, eles suas doutrinas e princípios de maneira que
creem que a espiritualidade não está rela- se possa mudar os métodos, porém não os
cionada com a frequência a um templo ou princípios.
congregação em específico. A visão de igre- É preciso que os jovens entendam que
ja que eles têm precisa ser mudada. Con- para terem um real relacionamento com
tudo para isso é preciso entender as Novas Deus é necessária uma congregação em
Gerações, bem como suas necessidades. É suas vidas. Apenas frequentar uma igreja
imprescindível que a igreja mude seus mé- não nos torna cristãos verdadeiros, mas
todos existentes e adote outros novos para um cristianismo sem igreja não é realmen-
conquistá-las. te vivido.
Com o estudo aprofundado des-
ta proposta, é pretendido alcançar a real
compreensão de como a IASD deve se
adaptar, sem perder seus princípios e va-
lores, para alcançar e manter as Novas Ge-
rações na igreja. Será explanado o que uma
igreja deve deixar de lado e o que ela de- 1.2 Problemas, objetivo
verá adotar para fazer a diferença na vida
dos jovens. É importante ressaltar que nes-
geral e objetivos específicos
te trabalho os termos “Novas Gerações” e Os membros mais antigos da IASD
“jovens” serão usados para se referir ao têm uma dificuldade considerável para se
mesmo grupo de pessoas. comunicar com as Novas Gerações. Isso
levanta algumas questões, como: quais são
as necessidades das Novas Gerações? Como
elas veem a igreja atualmente? Quais os
1.1 Delimitação do tema motivos que levam a apostasia? Qual seria
o tipo ideal de igreja que faria a diferença
Este tema foi escolhido com o intui- na vida das Novas Gerações? Essas e outras
to de compreender o que torna a Igreja um questões, que serão analisadas no decorrer
fator de diferença na vida de um jovem em do presente estudo, permitem definir
pleno século XXI. As doutrinas e crenças o principal objetivo do trabalho: O que
da IASD muitas vezes são compreendidas seria uma igreja relevante para as Novas
e aceitas, porém os jovens não veem a ne- Gerações?
cessidade de adotar uma religião como um
elemento fundamental em suas vidas. Para que consiga alcançar esse objetivo
A sociedade está em constante muta- principal o atual trabalho será guiado pelos
ção, e juntamente com ela está a mudança seguintes objetivos específicos:

37
TEOLOGIA em revista

• Procurar compreender a visão que os jo- da extinção’’.


vens têm da IASD
Os jovens da igreja são seu maior pa-
• Entender as necessidades das Novas Ge- trimônio e esperança” (GANE, 2014, p. 14).
rações Caso a ênfase seja dada somente às gera-
• Estabelecer um caminho para a Igreja Ad- ções anteriores, as Novas Gerações não en-
ventista do século XXI se tornar uma igreja contrarão seu lugar dentro dos templos da
relevante.
comunidade Adventista, e eventualmente
sairão pela porta dos fundos. O futuro da

2 AS NOVAS
igreja está totalmente entrelaçado com as
Novas Gerações, é importante que se dê
atenção a elas para que o futuro da IASD
não fique comprometido.
Os métodos atuais da IASD não estão
GERAÇÕES surtindo mais efeit, pois há mais jovens
apostando na fé do que propriamente se
As Novas Gerações podem ser defi- convertendo (DUDLEY, 2000). Eles es-
nidas como a juventude que frequenta as tão preferindo dar atenção às atividades
igrejas nos dias atuais (KINNAMAN, 2014). seculares do que as atividades e eventos
Kinnaman e Lyons (2012, p. 18), em seu li- da igreja. Uma estimativa conservadora
vro “Descrentes”, publicado em 2012, refe- mostra que pelo menos 55% dos jovens es-
rem-se a eles como a “Geração Mosaica (os tão deixando-a a cada geração (DUDLEY,
nascidos entre 1984 e 2002) e a Geração da 2000). Isso significa que enquanto há um
Queda (os nascidos entre 1965 e 1983)”, ou número considerável de integrantes das
seja, o grupo de pessoas que têm entre 16 e Novas Gerações que estão adentrando pe-
29 anos. Thom Rainer e seu filho Sam Rai- las portas da IASD, há um número maior
ner (2014), contudo, afirmam que as Novas ainda a abandonando.
Gerações são as pessoas entre as faixas de Um estudo realizado nos Estados
18 a 30 anos. Dessa maneira, no presente Unidos, contudo, mostra que a situação
trabalho, ao falar das Novas Gerações será relativa à permanência e adesão de jo-
englobado os jovens que se encontram vens adultos à igreja está mais difícil do
hoje entre a idade de 16 e 30 anos, dentro e que aparenta. A cada geração e a cada ano
fora da igreja. Mas porque é necessário dar que passa, maior é o número de pessoas
tanta atenção a esse grupo em especial? que deixam de frequentar uma igreja. Em
1972 apenas 9,3% da população dos Esta-
dos Unidos não frequentava uma igreja,
2.1 A importância das Novas mas a porcentagem subiu para 26,2% em
Gerações para a Igreja 2014 (RELIGIOUS SERVICE ATTENDAN-
Adventista do Sétimo Dia CE, 2014?). Esse é um número bastante
É fundamental compreender que os elevado, e faz-se notar que a igreja não está
jovens são o futuro da igreja. Caso não seja convertendo-os verdadeiramente; há um
ensino aprofundado sobre doutrinas, po-
trilhado o caminho de revitalização e do
rém elas não estão fazendo-os permanecer
foco na permanência deles na comunidade na igreja (THOMPSON, 2011).
de fé, a IASD passará por sérias dificuldades Quando é feito uma análise das es-
futuramente, muito mais do que já está tratégias da IASD nota-se claramente que
enfrentando hoje. Deve-se assimilar que o foco está em grande parte nos jovens de
“qualquer igreja está a apenas uma geração fora, porém há poucas estratégias voltadas

38
TEOLOGIA em revista

para os membros regulares. Segundo Gan


(2014, p. 15), “[...] a igreja gasta milhões 2.2 A época em que as Novas
de dólares em evangelismo, muitas Gerações abandonam a
vezes esquecendo que a nossa própria igreja
juventude precisa ser salva”. Essa ênfase
de trazer os jovens de fora para dentro da Como foi apresentado no tópico
igreja acaba ofuscando a necessidade dos anterior, há mais jovens deixando a IASD
jovens que ainda permanecem dentro da do que começando a frequentá-la. O
igreja e que também precisam da atenção período mais grave para a permanência
dos membros, bem como de estratégias dos mesmos é no final do ensino médio,
bem-elaboradas para a manutenção e quando eles iniciam uma faculdade ou
preservação da juventude em nossos entram no mercado de trabalho, “como
templos. os jovens afirmam sua independência
Esse processo de conquista das nessa fase da vida, uma das maneiras de
Novas Gerações deve ser realizado por se fazer isso é mediante questionamento,
todos os membros da igreja, porém algo reavaliação e, muitas vezes, rejeição dos
que é necessário se enfatizar é o fato valores e crenças de seus pais e da igreja”
de que os jovens têm mais influência (GANE, 2014, p. 17). Eles querem ser
sobre eles mesmos do que os adultos. independentes, e fazem isso através do
Pode-se perceber isso nas palavras de questionamento de sua fé. Procuram ver o
Ellen G. White: “pregadores ou leigos que é realmente relevante em suas vidas.
de idade avançada não podem ter, sobre Por outro lado, Steptoe (2006)
a juventude, metade da influência que acrescenta que aproximadamente 61% dos
os jovens consagrados têm sobre seus jovens abandonam a igreja quando estão na
companheiros” (WHITE, 2009, p. 204). faixa dos 20 anos de idade. Isso confirma-
É por esse motivo que a juventude já se novamente com Rainer e Rainer (2014),
convertida deve ser preservada, pois eles os quais realizaram estudos com as Novas
serão o meio de alcance para com os jovens Gerações e constataram que dois terços
não convertidos. Caso a igreja não tenha dos jovens abandonam a igreja entre 18 e
sua atenção nas Novas Gerações, as pessoas 22 anos. Pode-se perceber que o período de
das gerações mais antigas terão pouca ou apostasia está realmente entre essa faixa
nenhuma influência sobre eles, fazendo etária. É na época que eles abandonam
com que o processo se torne infinitamente a igreja que se deve focar ainda mais em
mais difícil. envolve-los na mesma. Por conseguinte:
Dessa maneira é claro notar que
a ênfase inicial deve estar nos jovens A melhor oportunidade de assimilá-los na co-
de dentro da igreja, pois sem eles a munidade é, exatamente, quando eles estão
comunidade de fé não terá um futuro. mais distantes e é mais difícil envolve-los. A
Além disso, compreende-se que a igreja deve trabalhar com afinco para ir e en-
contrar esses adolescentes onde eles estão, a
influência que eles têm sobre os seus fim de não os perderem para outra comunida-
semelhantes é tremendamente maior do de, de fora, em definitivo (RAINER; RAINER,
que as pessoas mais velhas da IASD podem 2014, p. 71 e 72).
ter. Entendendo a importância das Novas
Gerações para a perpetuação da IASD
do século XXI, agora será apresentado o Compreende-se que é nesse momento
período de suas vidas em que geralmente sensível da juventude que a congregação
abandonam a fé. mais deve busca-los, pois é a época em que

39
TEOLOGIA em revista

abandonam a igreja e necessitam de sobre a igreja influencia diretamente o


cuidados de maneira especial. Apesar de modo com que se relacionam com as pessoas
notar-se que é no período que ingressam de dentro dela (KINNAMAN; LYONS,
na faculdade que ocorre o afastamento 2012). Em suma, quanto melhor a visão
da comunidade de fé por parte das Novas que os jovens têmtem da igreja, melhor
Gerações, a faculdade não é a maior será seu relacionamento com ela, e por
culpada por isso. Estudos apresentam que consequência maior comprometimento
as faculdades não são as responsáveis pelo eles terão com sua comunidade de fé.
abandono da igreja por parte dos jovens, A posição que os jovens têm dela se
na realidade a responsável é a própria deve, em maior parte, pelas experiências
igreja (RAINER; RAINER, 2014). e relacionamentos que eles tiveram
Ao contrário do pensamento dentro da igreja (KINNAMAN; LYONS,
antiquado de que uma faculdade secular 2012). Grande parte deles não tiram suas
afasta os jovens da fé, uma pesquisa conclusões sobre ela através de relatos de
realizada no Texas de 1994 a 2002 outras pessoas ou do que veem nas redes
apresentou que os jovens cristãos que sociais; muito pelo contrário, a visão deles
iniciam algum curso superior em uma provém diretamente da vivência que
faculdade estão menos propensos a tiveram dentro dos templos.
abandonar sua igreja do que os que nunca O problema não necessariamente está
ingressaram em uma (KWON, 2007). no fato de que o ponto de vista das Novas
Muitas vezes a necessidade de defenderem Gerações está baseado em sua vivência,
sua fé acaba por fortalece-la, fazendo mas no fato de que em geral esse ponto de
com que assim apresentem um maior vista não é nada generoso. De acordo com
compromisso com a igreja. Kinnaman e Lyons (2012), 30% dos jovens
Desse modo, pode-se concluir que tiveram experiências negativas na igreja
o motivo do abandono em grande escala e no seu relacionamento com os cristãos
é, em grande medida, o ambiente hostil em geral. Caso a IASD não trabalhe esse
promovido pela própria igreja, na pessoa aspecto com mais cuidado e de forma
de seus membros e administração. Durante urgente, dando atenção às Novas Gerações,
o período entre 18 e 22 anos os jovens se o caminho de volta e o resgate desses jovens
questionam e acabam percebendo que a pode se tornar uma tarefa muito difícil,
igreja não é mais relevante em suas vidas, comprometendo seriamente o futuro da
tomando assim a decisão de se afastar Igreja Adventista do Sétimo Dia.
dela e de seus membros. E é exatamente
nesse período que a igreja deve entrar
em ação, mas para isso antes precisa-se
compreender qual a visão que as Novas
Gerações têm da mesma. Esse assunto será
tratado no próximo tópico. 2.3.1 A visão das Novas
Gerações acerca dos Membros
Quando o livro de Atos dos Apóstolos
2.3 A visão das Novas é analisado, constata-se que o que forma
Gerações acerca da igreja uma igreja não são necessariamente
Qual a necessidade de se entender a quatro paredes erguidas, mas sim que
visão das Novas Gerações sobre a igreja? ela é formada por pessoas (CHAN, 2019).
Porque a visão que as Novas Gerações têm Baseado nisso, podemos nos referir a igreja,

40
TEOLOGIA em revista

nesse momento em específico do trabalho, “Os líderes tendem a gastar mais tempo
como os membros de uma congregação. A com as proibições do que com o lado
principal visão que as Novas Gerações têm libertador e acessível das coisas boas”
da igreja se resume a estes pontos: (GANE, 2014, p. 21).
E em terceiro lugar, a grande
maioria dos jovens vê os membros da
Em nossas pesquisas nacionais, descobri- igreja como hipócritas. De acordo com
mos que as três percepções mais comuns são
que os cristãos atuais são anti-homossexuais Thompson (2011) os jovens percebem
(imagem sustentada por 91% dos observado- muito claramente quando uma pessoa
res externos jovens), julgadores (87%) e hi- está sendo hipócrita. Segundo ele, muitos
pócritas (85%). Essas “três grandes percep- jovens desistem da igreja porque foram
ções” são seguidas das seguintes impressões
negativas adotadas pela maioria dos adultos obrigados a frequentá-la desde pequenos
jovens: antiquados, envolvidos demais na po- por pais que nunca amaram Cristo
lítica, se contato com a realidade, insensíveis genuinamente. Entende-se que esse é
aos outros, chatos, incapazes de aceitar outras um dos principais motivos para as Novas
formas de fé e confusos (KINNAMAN; LYONS,
2012, p. 30). Gerações abandonarem a igreja. A maioria
dos adultos não vivem o que pregam, estão
vivendo uma vida falsa (GANE, 2014).
Pode-se verificar que em primeiro Ainda dentro dessa esfera, as Novas
lugar os cristãos do século XXI, em geral, Gerações têm a visão de uma igreja
têm um preconceito muito grande contra “água com açúcar”, ou seja, uma religião
os homossexuais. Hoje, a IASD é vista superficial. Steptoe sustenta que esse tipo
não pelo que ela apoia, mas sim pelas de cristianismo, que surgiu entre as décadas
coisas a que se opõe (KINNAMAN; LYONS, de 1980 e 1990 fez com que muitos jovens
2012). Isso significa que ela não é mais deixassem de participar das atividades e
conhecida por apoiar atos de beneficência eventos que a igreja proporcionava, bem
social, e sim por um legalismo parecido como deixar de praticar sua fé (STEPTOE,
com o dos fariseus no primeiro século. 2006). Ela enfatiza muito as coisas que
A igreja, que deveria ser conhecida por não são essenciais, e isso acaba por tornar
tirar as pessoas do pecado através da uma religião rasa e sem aprofundamento
propagação da mensagem de amor e do espiritual.
sacrifício de Cristo na cruz, agora prega Os jovens de hoje também têm uma
sobre mandamentos sem nunca ensinar opinião sobre o cristianismo ter se afastado
as pessoas a realmente amarem a Cristo. do cristianismo verdadeiro. Eles o rejeitam
Os templos não transmitem mais o amor porque afirmam que ele não é mais puro
que Cristo transmitiu à igreja primitiva em sua essência. Dizem que o cristianismo
(CHAN, 2019). que existe hoje não é mais o que Cristo
Em segundo lugar, os cristãos são pretendia.
conhecidos por serem julgadores. Os jovens
veem a igreja como um grupo de pessoas [...] eles acham que os cristãos não represen-
que somente criticam e são indiferentes, tam mais o que Jesus tinha em mente, que o
eles se sentem demonizados por causa cristianismo na nossa sociedade não é o que
de sua aparência e pelo que acreditam deveria ser. [...] para muitas pessoas, a fé cris-
tã parece saturada e esgotada. [...] “O cristia-
ou deixam de acreditar. Percebem que as nismo está saturado de seguidores cegos que
pessoas de dentro da igreja se preocupam preferem repetir lemas e realmente sentir ver-
mais com o seu ex terior do que interior. dadeira compaixão e fazer algo pelos outros”
(KINNAMAN; LYONS, 2012, p. 16).

41
TEOLOGIA em revista

Isso mostra que a visão que os Essa geração gosta de falar sobre fé. Muitos
jovens de fora têm não é uma visão muito creem, certo ou errado, que possuem fé. Ques-
conveniente. O grande problema é que tões religiosas não os assustam. A maioria
esse conceito de igreja não está somente mantém algum tipo de interesse em assuntos
religiosos. No entanto, a menos que essa gera-
cunhado nos de fora, mas também nos ção junte fé e igreja, ela não verá motivo para
jovens de dentro. Segundo Kinnaman permanecer na igreja. [...] Nossa pesquisa re-
e Lyons (2012), uma grande parte dos velou o que muitos pastores e líderes de igre-
jovens que fazem parte de igrejas cristãs ja já sabem de modo informal: a geração mais
nova não necessariamente abandona a sua fé;
compartilham das mesmas visões dos na verdade, ela deixa sua igreja local. [...] Eles
jovens que estão fora. não estão abandonando sua fé, mas estão dei-
Portanto, consegue-se identificar xando a igreja (RAINER; RAINER, 2014, p. 41).
que as Novas Gerações não têm uma
imagem muito aprazível dos membros.
As Novas Gerações consideram a
Acreditam piamente que o cristianismo
igreja apenas como mais um elemento
que se vive hoje não é mais o pregado e
de suas vidas, todavia consideram-na
ensinado por Cristo no primeiro século.
como algo não relevante. Além disso,
No próximo subtópico será apresentado
somente 30% delas enxergam a Bíblia
qual a relevância que a igreja e a religião
exata em todos os princípios que ensina
têm para as Novas Gerações. Será que elas
(KINNAMAN; LYONS, 2012). Através disso
realmente sentem que a igreja é necessária
pode-se concluir que muitos dos que se
em suas vidas?
afastam do cristianismo o fazem porque
têm pouca confiança na fé cristã, não veem
a igreja como algo que pode trazer uma
mudança real em suas vidas.
2.3.2 A relevância da IASD Mas há uma esperança para o futuro
para as Novas Gerações da IASD. Ainda segundo Kinnaman e
Apesar das críticas e de um horizonte Lyons, três quartos dos jovens consideram
de abandono, a igreja ainda se mostra que o cristianismo do século XXI tem
irrelevante para as Novas Gerações. bons valores e princípios, e alguns até
Conforme diz Barry Gane (2014), em seu afirmam que ele é amigável: “uma minoria
livro “O Caminho de Volta”, os jovens dos observadores externos percebe o
estão deixando a igreja pois não acham cristianismo como genuíno e verdadeiro,
que ela traga algum significado para a vida. como algo que faz sentido e tem a ver com
Afirmam veementemente que a igreja se a vida deles (KINNAMAN; LYONS, 2012, p.
tornou irrelevante em suas vidas diárias, 30).
que podem viver tranquilamente sem a Alguns poucos jovens ainda veem
convivência com o corpo de crentes. Dessa a igreja como relevante em suas vidas,
maneira buscam se afastar dela e de seus “a igreja é essencial para eles porque, em
membros. contrapartida, sabem que são essenciais
O interessante, contudo, é que hoje para ela, mesmo sendo jovens” (RAINER;
eles estão querendo buscar a Deus, porém RAINER, 2014, p. 43). A imagem negativa
essa busca é por conta própria. Para os que os jovens têm dela pode melhorar, mas
jovens, a igreja se tornou algo ultrapassado, para isso o corpo de crentes precisa mudar
algo que foi perdendo sua utilidade com o sua conduta sem perder seus princípios.
passar do tempo (CHAN, 2019). Em suma, Na próxima seção será apresentado os
eles não estão abandonando a fé, mas sim principais motivos que levam os jovens a
a igreja, o livro “Igreja Essencial” diz: abandonarem a igreja.

42
TEOLOGIA em revista

2.4 Motivos da apostasia Isso mostra que, assim como já foi


apresentado antes, os jovens não desistem
das Novas Gerações da fé, mas sim da igreja. Um dos motivos
Essa seção do trabalho se relaciona que podem acarretar isso são os pais que
muito com a anterior. Será constatado usam a religião como meio para obterem
que os principais motivos que levam as a obediência dos filhos; se eles a utilizam
Novas Gerações a deixarem a igreja são em para controlar seus filhos, quando eles
grande parte a resposta à visão delas sobre chegarem à juventude usarão a religião
a mesma. É importante enfatizar que os para afirmarem sua independência
jovens não planejam deixar a igreja, pois (STRAHAN, 1994).
de acordo com um estudo realizado pela Além desse fator, aproximadamente
“Lifeway Research”, pôde-se perceber um em cada cinco jovens afirmam que um
que a grande maioria dos jovens, mais culto maçante seria um dos motivos que os
especificamente 80% deles, não planejam levariam a abandonar a igreja (GILLESPIE;
deixar a igreja (CHURCH DROPOUTS, DONAHUE; GANE; BOYATT, 2004). E por
2007). último, um dos principais motivos que
Há basicamente três categorias de acarretam no abandono da igreja é o fato
desistentes da igreja: os que não estão de a igreja ser muito superficial hoje em
de acordo com as crenças e doutrinas da dia (STEPTOE, 2006).
mesma; os que decidem abandonar por Há ainda outras razões para a
preferência pessoal e/ou rebeldia, e os que apostasia, porém elas já foram citadas
estão apenas confusos. Aproximadamente no tópico anterior, como por exemplo a
53% dos jovens estão de acordo com as hipocrisia dos membros e a falta de amor
crenças de sua igreja (RAINER; RAINER, por parte deles (RAINER; RAINER, 2014).
2014), porém desses outros 47% que não Consegue-se compreender a visão que as
estão em conformidade, pouquíssimos Novas Gerações têm da igreja, bem como os
deles a abandonam por causa dos motivos que levam elas a abandonarem a
fundamentos bíblicos; eles abandonam a mesma, mas do que realmente necessitam?
igreja por preferências pessoais (CHAN,
2019).
Os que decidem afastar-se dela
porque estão confusos, de acordo com
Francis Chan (2019), o fazem porque
nunca conseguiram relacionar o que leram
na Bíblia com o que presenciaram na igreja.
Muitos deles até amam a Jesus, porém 2.5 As necessidades das
não encontram uma associação entre a fé Novas Gerações
e a necessidade de frequentar uma igreja.
Deve-se destacar que a maioria dos jovens Neste tópico será apresentado as
não sai da igreja porque desistiu da fé, principais necessidades que as Novas
mas simplesmente porque não quer mais Gerações têm. Algumas delas são
participar de uma religião organizada; exatamente o oposto do que a igreja
ainda sentem a necessidade de terem um proporciona, como apresentado nos dois
relacionamento com Deus, porém não tópicos anteriores, juntamente com seus
sentem a necessidade de participarem subtópicos. Uma breve descrição de suas
de uma congregação local (CHURCH necessidades pode ser encontrada no livro
DROPOUTS, 2007). “O Caminho de Volta”:

43
TEOLOGIA em revista

Na igreja, a música os afeta profundamente. O mais interessante é que eles querem


Buscam uma ampla variedade de opções. Rela- ajuda e direcionamento dos mais velhos,
cionam-se melhor com sermões narrativos em
grande estilo. Já que o senso de comunidade é porém nunca verbalizam isso. Segundo
importante, eles falam abertamente na igreja. Rainer e Rainer, “[...] os adolescentes
Muitos de geração do milênio veem-se como realmente querem ajuda nas decisões da
espirituais, mas divorciados da igreja organi- vida. Eles buscam orientação, mesmo que
zada. [...] os que pertencem a essa geração bus- jamais verbalizem esse desejo. E, de fato,
cam uma liderança forte, porém flexível, que irá
desafiá-los, reconhecendo sua necessidade de os adolescentes se espelham nos adultos,
trabalhar de perto com seus amigos. Sua depen- embora nunca admitam isso” (RAINER;
dência da tecnologia é incomparável com qual- RAINER, 2014, p. 108). As Novas Gerações,
quer outra geração (GANE, 2014, p. 53). ao contrário do que se pensa, estão sedentas
por orientação por parte das gerações mais
Os jovens buscam uma adoração que antigas.
os agrade; a música deve ser atraente para Para que isso ocorra, contudo, precisa-
eles; os sermões, bem dirigidos. Gane (2014) se construir relacionamentos com os
também comenta sobre o afastamento que jovens e entre os jovens. Segundo Thom
eles têm da igreja organizada e enfatiza a Rainer e Sam Rainer (2014), uma das
busca que os jovens têm por uma liderança maiores necessidades das Novas Gerações
forte, que irá desafiá-los a trabalharem é de edificarem relacionamentos e de se
na igreja. Relacionado a isso, um outro conectarem de maneira pessoal uns com
autor também confirma: “eles não estão os outros. Barry Gane ainda completa: “em
buscando liberdade; apenas desejam uma análise ampla dos valores da juventude,
Donald Poterski afirmou que 90% dos jovens
responsabilidade. Dê-lhes a tarefa e colocam a amizade no topo da lista das coisas
observe-os crescer e amadurecer” (RAINER; que eles mais valorizam” (GANE, 2014, p. 22).
RAINER, 2014, p. 43). Além disso, eles também carecem de
Os jovens também têm uma uma razão satisfatória para viver (SCIACCA,
necessidade tremenda de se sentirem 1990). Muitos jovens de hoje estão em sério
amados, e para que isso ocorra a igreja risco simplesmente porque não têm uma
necessita se tornar acessível a eles (GANE, motivação para seguirem suas vidas. A igreja
2014). Eles querem um atendimento tem um papel relevante nesse quesito, pois
personalizado, um relacionamento que seja quando ela se torna relevante na vida deles
um a um. Vemos na Bíblia que as histórias consequentemente os jovens encontram
mais marcantes de Cristo não eram aquelas uma razão para viver (GANE, 2014).
em que Ele realizou milagres em meio Ademais, as Novas Gerações não são
a multidões, mas sim quando tinha um convertidas pelo entretenimento ou por
encontro pessoal com as pessoas (BARRETO eventos da igreja. Segundo o livro “Igreja
JÚNIOR, 2019). Essencial”:
Junkin (2000, p. 38) ainda acrescenta
que os jovens precisam serem ouvidos:
“Ouvir com interesse os estudantes e Os jovens querem que sua igreja seja autêntica
prestar atenção às suas preocupações, em e real. Esperam a verdade, mesmo se discor-
darem dela. Eles desejam saber qual a sua po-
vez de dizer-lhes o que devem fazer e ser, sição. Podem não gostar dela a princípio, mas
promovem o crescimento em vez de rebelião, respeitarão você. E ser realista sempre amea-
ainda mais nessa fase”. Quando se presta lhará o respeito de jovens adultos. Uma igreja
atenção às suas dúvidas e provocações essencial exibe essa autenticidade, não tenta
reflexivas são expostas, eles se sentem mais ser algo que não é. Entretenimento e atrações
talvez atraiam uma multidão por algum tem-
propensos a questionar abertamente. Dessa po, mas a assimilação nunca ocorrerá a menos
maneira a igreja poderá tirar suas dúvidas e que a igreja seja, de fato, autêntica, transparen-
fortalecer sua fé. te e genuína (RAINER; RAINER, 2014, p. 54).

44
TEOLOGIA em revista

Eles querem uma igreja autêntica deve prover autenticidade” (BURRILL,


e real. O entretenimento os atrairá por 2018, p. 111).
algum tempo, mas nenhum conhecimento Pensando na espiritualidade e na
real será passado a eles se ela não foi religiosidade, percebe-se que os jovens têm
transparente e genuína. Além disso Rainer várias necessidades. Algumas delas a igreja
e Rainer (2014) declaram que os jovens poderá suprir se mudar seu modo de lidar
buscam a verdade; não querem algo com estes jovens adultos; outras, levará
superficial, mas sim desafios propostos mais tempo. Precisa-se conhece-los e
para que descubram as coisas por si levar em consideração essas necessidades,
mesmos. Russell Burrill também confirma porém é crucial fazer uma avaliação e
que as Novas Gerações estão cansadas da definir quais são as prioridades (BARRETO
superficialidade: “elas precisam e querem JÚNIOR, 2019). No próximo tópico, será
o ‘supra-sumo’ urgentemente. Nesta época sugerido um caminho para a IASD se
de imitação de tudo o que se encontra tornar verdadeiramente relevante na vida
debaixo do Sol, o evangelho de Jesus Cristo das Novas Gerações.

3 UMA IGREJA ADVENTISTA DO SÉTIMO


DIA RELEVANTE PARA AS NOVAS GERAÇÕES
O tópico anterior teve como ênfase gundo eles, uma igreja composta em
as Novas Gerações, a visão que elas grande parte por membros mais velhos
têm da IASD, bem como os motivos de ou idosos não é necessariamente ruim se
sua apostasia e suas necessidades; este eles estão compartilhando sua sabedoria e
tópico terá como foco a IASD e os passos experiência pessoal para alcançar os mais
necessários para ela se tornar uma igreja jovens. Mas para que esse treinamento
relevante para as Novas Gerações. dê algum resultado o tempo mínimo que
um pastor deve permanecer no mesmo
local é de pelo menos três anos (BARRETO
3.1 Uma liderança modelo JÚNIOR, 2019).
Um ponto importante a ser
A liderança é um dos fatores mais ressaltado é que mais pastores de jovens
importantes para o mentoreamento e não necessariamente levam mais jovens
direcionamento das Novas Gerações pois a Cristo. De acordo com Reid (2004), nos
a igreja absorve as características de seus últimos 20 anos o número de pastores
líderes, sejam elas boas ou más; quando os jovens cresceu exorbitantemente, porém
jovens percebem que não são relevantes ao mesmo tempo o número dos que saíram
para o funcionamento da igreja, por da igreja aumentou em maior escala. O
decorrência do foco de seus líderes, eles a ponto é: não são pastores de jovens que os
abandonam (RAINER; RAINER, 2014). levam a Cristo, mas sim pastores dedicados
Rainer e Rainer (2014) ainda afirmam a criarem relacionamentos com eles, e que
que o pastor deve treinar as gerações estão dispostos a se tornarem um deles
anteriores para lidarem com as novas. Se- (RICHARDS, 1979). Os pastores, líderes e

45
TEOLOGIA em revista

membros de uma igreja têm o dever e É fundamental que os membros da


a obrigação de se relacionarem com os igreja dediquem tempo aos mais jovens,
integrantes da geração que será o futuro da porque é somente quando passam tempo
igreja, mas como esse relacionamento será com eles que conseguem construir e firmar
estabelecido? relacionamentos, conhecendo-os verda-
deiramente (WHITE, 2007). É de relacio-
namentos que eles necessitam, e é relacio-
namentos que a igreja deve proporcionar:
3.2 Um relacionamento
pessoal com as Novas [...] as pessoas estão querendo um atendimen-
Gerações to personalizado. Vemos isso quando olhamos
para a Bíblia onde as histórias mais marcantes
O segundo ponto para a IASD do sé- de Jesus não foram quando ele se encontrou
culo XXI se tornar relevante para as Novas com as multidões, mas foi no encontro indivi-
dual com a mulher Samaritana, com Nicode-
Gerações é manter um relacionamento mos, com o cego Bartimeu, com Zaqueu e com
pessoal com elas. Quando a Bíblia é anali- tantos outros (BARRETO JÚNIOR, 2019, p. 102).
sada pode-se constatar que Cristo manti-
nha um modelo de ministério pessoal com
cada um com quem Ele entrava em conta- Nas histórias bíblicas percebe-se que
to, e quando a igreja toma essa decisão de Cristo dedicava uma grande parte de seu
colocar o modelo de Cristo como priorida- tempo a construir amizades e mostrar para
de, uma boa parte de seu tempo começa a as pessoas sua importância. Esse é outro
ser investido no contato pessoal (GANE, dever da igreja: mostrar para os jovens que
2014). eles são importantes. Se os jovens são vi-
Ellen White diz que somente os mé- sitados nos dois primeiros meses após o
todos de Cristo proporcionarão sucesso abandono da igreja aproximadamente 4
para alcançar os jovens, e acrescenta que em cada 5 tomam a decisão de retorna-
“se se empregasse menos tempo a pregar rem para a mesma, pois isso demonstra
sermões, e mais fosse dedicado a serviço que a igreja realmente se importa com eles
pessoal, maiores seriam os resultados que (GANE, 2014).
se veriam” (WHITE, 2013, p. 143). O foco Segundo o livro “Igreja Essencial”,
deve estar no serviço pessoal com cada um; “praticamente quatro entre dez jovens
e ouvir um jovem, segundo Gane (2014), é afastados (39%) nos contaram que seus
a maneira mais rápida e eficaz de construir pais ou familiares próximos haviam sido
um relacionamento com as Novas Gera- instrumentos em seu regresso à igreja”
ções. (RAINER; RAINER, 2014, p. 258). Consta-
Quando esses pontos são levados a ta-se que para os jovens retornarem para
sério, o relacionamento, e consequente- a congregação muitas vezes somente pre-
mente a amizade estabelecida, não serão cisam de uma visita ou do incentivo de
apenas um meio para alcançar as Novas amigos ou familiares, mais uma vez de-
Gerações, mas serão o próprio ministério monstrando a importância que as Novas
(WARD, 1999). Nenhum resultado será Gerações dão ao relacionamento pessoal.
obtido, contudo, se a igreja continuar dis- A IASD perde muitos jovens, porém ela
tante e inalcançável, pois “para ministrar conseguirá recuperar aproximadamente
aos jovens, temos de ser acessíveis a eles” metade deles com um simples encoraja-
(GANE, 2014, p. 86). mento da família e amigos. Ao retornarem,

46
TEOLOGIA em revista

Rainer e Rainer (2014) ainda complemen- O mundo sofre mudanças, porém a


tam que um jovem afastado se sente mais cultura interna da igreja não; dessa ma-
confortável em entrar novamente no tem- neira ela passa a se tornar irrelevante na
plo se a pessoa que o convidou o acompa- vida das Novas Gerações. De acordo com
nhar na primeira visita. Rainer e Rainer (2014), o sermão do pastor
Reconhece-se que os jovens necessi- tem uma importância considerável; quan-
tam que relacionamentos sejam estabele- do seu sermão se conecta com os jovens,
cidos, tanto entre eles quanto com a igreja, maior é a probabilidade de eles permane-
mas o relacionamento não extinguirá to- cerem na igreja. Assim, entende-se que o
dos os problemas. No primeiro tópico fo- sermão precisa ser contextualizado para
ram apresentadas as objeções que as Novas as necessidades das Novas Gerações, bem
Gerações fazem sobre a igreja, em especial como para sua maneira de se expressarem.
sobre seus métodos; compreendendo suas Uma IASD relevante também deve ser
objeções será possível estabelecer um diá- uma igreja em transformação, é uma con-
logo mais relevante com elas (KINNAMAN; gregação que sempre está em processo de
LYONS, 2012), e no próximo tópico será ex- mudança porque pessoas de diversas cul-
posto os métodos que a IASD deverá ado- turas e subculturas estão sempre entran-
tar para que esse diálogo possa ter eficácia. do no corpo de crentes (RAINER; RAINER,
2014). Todos os métodos possíveis devem
ser usados para que a mensagem se tor-
ne relevante para os jovens, White (1962)
declara que novos meios devem ser in-
3.3 Métodos contextualizados ventados para fazer com que a verdade se
O terceiro ponto para a IASD se tor- destaque e se distinga de qualquer outra
nar relevante para as Novas Gerações fica mensagem irrelevante pregada.
ao encargo da contextualização e da cria- Ainda outro ponto que tem se mos-
ção de novos métodos para alcança-los. Os trado relevante para as Novas Gerações nos
jovens de hoje não são como os das gera- dias de hoje é o fato de que a igreja deve ser
ções anteriores, e maneiras obsoletas de liderada por pessoas da cultura local e deve
alcança-los não são mais efetivas, a não ser se expressar na linguagem da cultura local.
que sejam contextualizadas (CHAN, 2019). Russell Burrill analisa que “ocorreu no ad-
Essa contextualização é importante por- ventismo o mesmo fenômeno que ocorrera
que as igrejas que não mudarem seus mé- na igreja primitiva, revelando novamen-
todos irão consequentemente perecer: te que a igreja cresce mais quando é con-
trolada pela liderança local e expressada
na cultura local” (BURRILL, 2018, p. 50).
Igrejas que não encontram maneiras de se tor- Isso indica que um dos fatores para a IASD
narem relevantes em suas respectivas comuni-
dades eventualmente irão esmorecer. Igrejas crescer e se multiplicar hoje é colocar nas
que mantêm sua cultura interna imutável por igrejas líderes que sejam participantes ou
cinquenta anos, enquanto o mundo à volta nativos da cultura local.
passa por contínuos períodos de transforma- Porém um dos grandes perigos de se
ção, morrem com aquela velha cultura. Igrejas
que se perguntam “Como podemos relacio- adaptar ao mundo em mudança é acabar
nar o evangelho imutável à mutante cultura por alterar não somente os métodos, mas
ao nosso redor da melhor maneira possível?” também os princípios (RAINER; RAINER,
estão um passo mais perto da relevância e de 2014). Quando se analisa o livro de Atos
alcançar uma nova geração (RAINER; RAINER,
2014, p. 31). percebe-se que paulo adaptava a mensa-

47
TEOLOGIA em revista

gem era transmitida sem mudá-la em sua dem corretamente as escrituras terão pro-
essência, e segundo Burrill (2018, p. 52) blemas para permanecerem obedientes e
“ele não comprometeu o que acreditava fiéis à Palavra, ou seja, para que os jovens
ser cristianismo básico meramente para sigam realmente a Bíblia é necessário an-
alcançar as pessoas, mas, certamente, en- tes ensiná-los de maneira clara e objetiva.
tendeu as partes que eram culturalmente Francis Chan (2019) ressalta que os
neutras. Portanto, adaptou suas apresen- autores bíblicos não deixaram muitas ins-
tações para ir ao encontro das pessoas na truções acerca de como deveria ser a orien-
cultura onde viviam”. Ser uma igreja cul- tação eclesiástica, porém isso não significa
turalmente relevante remete a pregar um que ela seja irrelevante, “é necessário dis-
Evangelho eterno a uma sociedade em por de uma estrutura sólida e biblicamente
constante mudança (BURRILL, 2018). fundamentada que nos impeça de perder o
Mudar os métodos, por conseguinte rumo” (CHAN, 2019, p. 151). A fundamen-
leva ao fato de a igreja ter que adotar ou tação das crenças é essencial, mas devemos
abandonar algumas tradições. No primei- ensinar os princípios aos jovens, e, quando
ro século Jesus repreendeu os fariseus por tiverem um relacionamento íntimo com
esse motivo; eles criaram suas próprias re- Cristo poderão tomar as atitudes corretas:
gras e as valorizaram diversas vezes mais
do que os mandamentos de Deus (CHAN,
Em vez de simplesmente apresentar doutrinas,
2019). Para superar esse obstáculo a IASD como uma fria lista de “pode e não pode fazer”,
deve separar o que é cristianismo do que nós apresentamos os grandes princípios da
é cultura e tradição, e essa é uma das coi- Palavra de Deus e permitimos que as pessoas
sas mais difíceis para qualquer igreja hoje usem a mente para fazer escolhas certas. Elas
devem fazer tais escolhas como discípulos radi-
(BURRILL, 2018). cais de Jesus, mentalmente restaurados à ima-
A mudança será eficiente e valorosa, gem de Deus (BURRILL, 2018, p. 89).
contudo “se muitas mudanças são intro-
duzidas de uma só vez, a igreja pode tor-
nar-se instável e fazer os membros mais Isso indica que antes de pregar dou-
velhos sentirem-se inseguros. Essa é uma trinas deve-se ensinar às Novas Gerações
área que vai exigir muita discussão aberta, a amarem a Cristo. É possível uma pessoa
negociação e tempo” (GANE, 2014, p. 96). viver uma vida toda seguindo dez man-
Essas alterações devem ser feitas de ma- damentos sem nunca ter amado a Cristo
neira progressiva, com muita sabedoria. verdadeiramente, porém é impossível uma
Vale a pena ressaltar que nem tudo deve pessoa amar a Cristo e não seguir seus
ser mudado, pois quando é fornecido aos mandamentos (BULLÓN, 2014). O Evan-
jovens tudo o que eles querem as reclama- gelho puro foi a única coisa necessária para
ções só aumentam (CHAN, 2019). a igreja primitiva crescer e se multiplicar, e
É uma linha muito tênue entre mo- a mesma coisa acontecerá com a juventude
dificar métodos e abandonar princípios, de hoje se Cristo for colocado em evidência
e para que isso possa ser feito da manei- (CHAN, 2019).
ra correta a IASD precisa de duas coisas: Hoje os métodos para alcançar os jo-
fundamentar suas crenças e transmiti-las vens se resumem em programações e even-
de maneira clara para os membros; e dis- tos diferenciados, mas em diversas vezes
por de uma estrutura biblicamente funda- elas somente atrapalham (THOMPSON,
mentada. Segundo Rainer e Rainer (2014), 2011). Isso se deve primariamente a dois
os membros da igreja que não compreen- motivos; o primeiro é porque elas somente

48
TEOLOGIA em revista

atraem os jovens de fora, mas não Disciplina não deve significar castigo,
garantem a integração nem a permanên- mas a construção de um discípulo melhor”
cia deles na igreja. Segundo Rainer e Rai- (GANE, 2014, p. 21). Diversas vezes a igreja
ner (2014, p. 106), “de fato, eventos des- disciplina os jovens por se afastarem dos
se tipo podem ajudar a atrair estudantes princípios divinos, contudo não os auxiliam
da comunidade que não conhecem Jesus a retornar para o caminho correto.
Cristo, porém apenas isso não garante a O modelo adventista de discipulado é
incorporação dos estudantes que frequen- um exemplo para as outras igrejas, por isso
tam a igreja por um período de tempo”. O Burrill (2018) reconhece que ele não deve
segundo motivo é o fato de que se a IASD ser deixado de lado. Apesar de ser um mo-
ganhar jovens por meio de entretenimen- delo exemplar, infelizmente a IASD hoje é
to, acabará por ter que entretê-los o tempo composta em sua maioria por membros que
todo; para mantê-los perto a igreja preci- nunca foram discipulados; dessa maneira o
sará continuar usando essas mesmas fer- conhecimento acabou por não ser difundi-
ramentas intermitentemente (HIRSCH, do entre eles.
2016). O discipulado deve ser uma das pri-
É por essa razão que a ênfase deve ser meiras coisas a ser praticada por um jovem
na Bíblia e em Cristo; métodos para atrair quando está chegando na igreja, pois novos
os jovens podem ser úteis, porém se usados conversos adventistas que adotam o dis-
de maneira excessiva tirarão o enfoque do cipulado antes de se batizar são mais pro-
Evangelho restaurador e transformador. pensos a permanecerem na igreja do que
No próximo tópico abordaremos o último os que somente aprenderam sobre crenças
passo para a IASD se tornar relevante para e doutrinas (MCGAVRAN, 1990). Além de
as Novas Gerações. um crente não discipulado ter uma grande
probabilidade de deixar a igreja, ele ainda
atrapalha e enfraquece a igreja; de acordo
com Burrill “esses cristãos fracos posterior-
3.4 Um modelo de mente enfraquecerão o testemunho vivo da
discipulado bíblico igreja” (BURRILL, 2018, p. 81). Por essa ra-
Esse tópico não terá como ênfase um zão o discipulado deve ser praticado desde o
aprofundamento na definição de discipu- início com os futuros jovens da IASD.
lado, mas sim apresentar os motivos que Uma igreja relevante é baseada no mo-
fazem com que ele seja importante para delo bíblico, e deve levar pessoas a um dis-
conquistar e manter as Novas Gerações na cipulado radical; uma verdadeira igreja que
igreja. Em suma, o discipulado pode ser segue o modelo do Novo Testamento deve
definido como a vivência de um relacio- ter como sua prioridade o fazer discípulos
namento entre o discipulador e seu disci- (RAINER; RAINER, 2014). Um tema impor-
pulando (BURRIL, 2018). O discipulado, tante que deve ser dado destaque é que é
segundo Brown (1986), envolve o conhe- mais fácil conquistar novos jovens conver-
cimento teórico e prático; ou seja, envolve sos para esse tipo de discipulado do que
não somente o saber, mas também o fazer. mudar a cabeça dos que já estão na igreja a
O discipulado também traz consigo a algum tempo; segundo Burrill, “se quiser-
disciplina, porém ela é realizada não com mos igrejas revolucionárias, produtoras de
o objetivo de punir, mas de ensinar. Barry discípulos, e não apenas membros, preci-
Gane afirma que “muitas vezes nós nos samos começar com o grupo mais fácil de
esquecemos de que a palavra disciplina ser transformado em discípulos – os novos
tem a mesma raiz do termo discípulo. conversos” (BURRILL, 2018, p. 99).

49
TEOLOGIA em revista

Com os fatores citados pode-se Segue dizendo que: “não só o envolvimento


entender que o discipulado é o fator decisivo imediato protege a conexão frágil do novo jo-
para tornar a IASD relevante para as Novas vem, mas ele também a fortalece. Não espere
Gerações, pois engloba uma liderança para envolve-lo; a participação constrói um
modelo, um relacionamento pessoal e sentimento de posse” (GANE, 2014, p. 68).
também a contextualização de métodos. O Agora que se percebe a importância de en-
envolvimento dos jovens dentro da igreja é volver os jovens na igreja, será apresentado a
de extrema importância (GANE, 2014), mas importância de dois ministérios da IASD que
de que maneira será possível envolve-los se mostram indispensáveis no fortalecimen-
hoje? Esse será o assunto do próximo tópico. to espiritual das Novas Gerações, os quais
consequentemente assumem papel de ma-
nutenção da jornada espiritual desta juven-
tude de maneira coletiva e individual.
O primeiro é o Ministério Jovem. De
3.4.1 O envolvimento das Novas acordo com Gane (2014), aproximadamen-
Gerações na IASD através do te 80% dos jovens envolvidos nesse mi-
Ministério Jovem e de Pequenos nistério buscam o crescimento espiritual,
Grupos e 63% deles têm satisfação em irem para a
Primeiramente precisa-se compre- igreja. Esse é um número bastante elevado
ender o porquê de o envolvimento ser tão se for levado em conta que apenas 23% de-
significativo para as Novas Gerações con- les sentem vontade de frequentar um culto,
siderarem a IASD relevante em suas vidas. e 28% não veem a oração pessoal e o contato
Os jovens necessitam que seja dado a eles com Deus relevante em suas vidas quando
responsabilidades; ao contrário do que não existe um Ministério Jovem na igreja lo-
se pensa eles não estão buscando a liber- cal (GANE, 2014).
dade, e é a partir do momento que a igre- Esse ministério é um fator decisivo na
ja os delegar funções que eles crescerão e permanência das Novas Gerações na igre-
amadurecerão (RAINER; RAINER, 2014). ja, dessa maneira pode-se compreender
Um outro motivo que faz o envolvimento que não é algo opcional, mas obrigatório
se tornar essencial é encontrado no livro em todas as congregações (GANE, 1997).
“Discípulos Modernos”: Ainda que seja um elemento que não pode
ser deixado de lado, isso não significa que
Alguns de nós que ainda temos algumas dúvi- o Ministério Jovem não deve ter um acom-
das sobre Jesus, hoje, somos enviados a fazer panhamento dos líderes da igreja local; se-
discípulos. Ao obedecermos à ordem, as dúvi-
das se dissiparão. Aqui, talvez indiretamente, gundo Barreto Júnior: “[...] o sucesso, se não
Jesus está sugerindo que a melhor maneira de for acompanhado e até mesmo monitora-
remover a dúvida é estarmos ocupados em fa- do, tende a dar um sentimento de autos-
zer discípulos. [...] É somente através do envol- suficiência e até de superioridade que leva
vimento na missão que as dúvidas serão remo-
vidas (BURRILL, 2018, p. 11). o grupo da juventude a declarar uma inde-
pendência do resto da igreja” (BARRETO
JÚNIOR, 2019, 28 p.), ou seja, quando o Mi-
Os jovens envolvidos com a igreja nistério Jovem não é assistido de maneira
e que já iniciaram o processo de disci- próxima ele pode acabar por se considerar
pulado consequentemente sanam suas mais importante que a própria igreja em si.
dúvidas. Gane (2014) ainda acrescen- O segundo ministério são os Pequenos
ta que eles param de reclamar sobre a Grupos (PGs). Os primeiros cristãos se reu-
igreja, param de sentir que é restritiva, niam em casa, em PGs, e seu dinheiro era in-
e a vontade de abandoná-la desaparece. vestido unicamente na missão, e não na ma-

50
TEOLOGIA em revista
nutenção dos templos (BURRILL, 2018). Eles parte do treinamento (CHAN, 2019). Pode-se
são a maneira mais eficaz e econômica de fa- concluir que o envolvimento dos jovens na
zer com que os jovens entrem em comunhão igreja através do processo de discipulado vol-
uns com os outros, estabeleçam laços e fa- tado para os de fora, bem como da adoção de
çam a igreja crescer (CHAN, 2019). métodos para abrange-los no Ministério Jo-
Quando os relacionamentos interpes- vem e em PGs, são dois fatores basilares para
soais são estabelecidos em um PG, a proba- a IASD se tornar relevante em suas vidas.
bilidade da apostasia cai vertiginosamente;
mas para que isso ocorra de forma eficaz o

6 CONSIDERAÇÕES
propósito deve ser não somente em fortale-
cer os jovens de dentro, mas de também al-
cançar os ainda não conversos (RAINER; RAI-
NER, 2014). Uma igreja relevante prega para FINAIS
os de fora, e conforme Burrill (2018), se ela
Foi possível, através do desenrolar
focar somente na sobrevivência dos mem-
do presente trabalho, compreender que as
bros ela acabará por perecer. Muito além dis-
Novas Gerações são extremamente impor-
so, se a IASD não investir no crescimento das
tantes, pois são o futuro da igreja, e tam-
Novas Gerações dentro dela, elas irão morrer
bém têm uma maior influência sobre elas
espiritualmente:
mesmas do que as gerações anteriores. Pô-
de-se constatarr que há um número maior
Sabemos que o auge da maturidade biológica de jovens se desligando da igreja do que
é a reprodução, por isso, quando um cristão se convertendo, e que o período crítico da
não se reproduz espiritualmente, é porque ele apostasia é entre 18 e 22 anos.
sofreu algum tipo de “vasectomia” ou “ligadu-
ra de trompas” espirituais. O mesmo é verda- A visão que eles têm sobre a IASD é em
de para um grupo de adolescentes ou jovens. maior parte ruim; enxergam os membros
Quando esse grupo entra para um modo de como julgadores e hipócritas, insensíveis e
manutenção e não ganha novos jovens a cada distantes, e incapazes de aceitar novas vi-
dia, isso gera a morte espiritual do grupo (BAR-
RETO JÚNIOR, 2019, p. 99). sões. Essa percepção negativa provém em
grande parte dos relacionamentos que eles
tiveram com os membros da igreja. Outro
Segundo White (2013, p. 103), “todo ponto que se pôde notar é que os jovens
verdadeiro discípulo nasce no reino de Deus não veem a igreja como relevante em suas
como missionário”. Ou seja, um jovem em vidas, e é por essa razão que a abandonam,
processo de discipulado já deve ter iniciado mas não a fé.
seu crescimento no relacionamento com A juventude quer um atendimento
Cristo para que possa discipular outros pessoal e também que sejam ouvidos. Bus-
também. A igreja que prega de maneira cam um estilo de adoração que os agrade,
clara e objetiva suas crenças e doutrinas, e sermões que se conectem com eles e orien-
discipula jovens a pensarem nos ainda não tação por parte dos membros mais expe-
conversos, aumentam a chance de mantê- rientes. Necessitam de uma igreja autênti-
los dentro da igreja RAINER; RAINER, 2014. ca e real, mas o que se pode atestar é que
QuandoseobservaoNovoTestamento nem todas essas necessidades devem ser
percebe-se que Cristo fazia seus discípulos atendidas, pois quando os jovens têm tudo
pensarem nos que ainda não tinham sido
alcançados pelo verdadeiro Evangelho, o que querem as críticas só aumentam.
e que os enviava ao mundo; não porque Há quatro pontos principais que a
estivessem inteiramente treinados e não IASD deve adotar para se tornar relevante
iriam errar, mas sim porque o envio fazia para as Novas Gerações. O primeiro é a li-

51
TEOLOGIA em revista
derança modelo, que treina as gerações an- Portanto, para que a IASD do século
teriores a lidarem com as novas; o segundo XXI se torne relevante para as Novas Ge-
é estabelecer um relacionamento pessoal rações, é necessário que ela busque com-
com os jovens, conhecendo-os de verdade e preendê-las, identifique suas necessidades
mostrando que são importantes. O terceiro: espirituais e religiosas e encontre formas
aplicar métodos contextualizados; a igreja de preencher essas lacunas. A igreja deve
deve abandonar tradições, mas não princí- se aproximar dos jovens e contextualizar a
pios, e essa mudança deve ser feita de ma- maneira como o Evangelho é pregado, para
neira progressiva. O último, incorporar um que assim possa alcançar todas as nações,
modelo de discipulado bíblico, envolvendo tribos, povos e línguas.
o conhecimento e a prática com o enfoque
na missão para com os de fora.

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53
TEOLOGIA em revista

ANÁLISE DA DISCIPLINA
SEGUNDO HEBREUS 12:4-11
ANALYSIS OF DISCIPLINE ACCORDING TO HEBREWS 12:4-11
João Luiz Marcon 1
Mestre em Teologia
2
Paulo Goulard
Teólogo

1
Mestre em Teologia (EST, São Leopoldo-RS) e doutorando em Teologia (Universidad
Adventista del Plata, Argentina). Diretor do Seminário Adventista Latino-Americano de
Teologia (IAP, Ivatuba-PR). Contato: joao.marcon7@gmail.com
2
Paulo Junior Anschau Goulart Bacharel em teologia (Seminário Adventista Latino-
Americano de Teologia, IAP, Ivatuba-PR). Pastor Distrital na Associação Norte
Paranaense da IASD. Contato: paulojrag@hotmail.com

54
TEOLOGIA em revista

Resumo
Este artigo se propõe a analisar o tema
da disciplina em Hebreus 12:4-11. Tal tarefa
se dará através de uma pesquisa bibliográfica
e exegética. A análise do contexto de Hebreus
auxilia na compreensão do momento em
que os leitores originais se encontravam.
Para que o tema da disciplina seja melhor
compreendido, se analisa palavras chaves
dentro do texto. Depois segue a reflexão da
citação de Provérbios 3:11, 12 com o texto
de Deuteronômio 8:5, o qual é importante
no entendimento do tema da disciplina em
Hebreus. Depois de tal estudo, apresenta-se
a reflexão teológica do tema da disciplina na
vida do cristão

Palavras-chave: Nascituro; Aborto; An-


tropologia bíblica.

Abstract:
This article proposes to analyze the
subject of discipline in Hebrews 12:4-11. This
task will be done through a bibliographical
and exegetical research. Analysis of the
context of the Hebrews helps to understand
the situation in which the original readers
found themselves. For the subject of the
discipline to be better understood, key words
within the text are analyzed, followed by a
reflection on the quotation from Proverbs
3:11, 12 with the text of Deuteronomy 8:5,
which is important in understanding the
subject of the discipline. in Hebrews. After
this study, the theological reflection on the
theme of discipline in the life of the Christian
is presented.

Keywords: Discipline. Hebrews. Exege-


sis. LXX.

55
TEOLOGIA em revista

1 Gordon D. Fee, em seu Manual de Exegese


Bíblica. A facilidade de acesso para o leitor
da obra de Fee foi também um dos moti-
vadores da escolha da mesma, já que, a
Introdução proposta de Fee é para que leigos também
consigam compreender os passos exegéti-
A dor e o sofrimento tem feito parte cos expostos em sua obra (STUART e FEE,
da vida do ser humano desde a queda de 2008).
Adão e Eva (Gn 3). A dor é presenciada e Nesta pesquisa, utiliza-se a versão
sentida por todos os seres humanos, sejam bíblica de João Ferreira de Almeida, Revista
eles, amigos, parentes e até mesmo pesso- e Atualizada, 2ª edição de 1993. Para a LXX
as desconhecidas, os quais, estão passando (Septuaginta), se usa a versão de Alfred
pela dor constantemente. Porém, Hebreus Rahlfs de 1979.
12:6-8 e 10b parece afirmar que Deus pode
causar certa disciplina, a qual ocasiona dor

2
em seus filhos. Seriam tais dores causadas
por Deus? Haveria algum sofrimento cau-
sado por Ele? Como poderia ser isso, se sua ASPECTOS
natureza é amor (1Jo 4:7, 8, 16; 2Co 13:11) INICIAIS SOBRE O
e é Deus quem alivia os fardos (Mt 11:28),
tira a sede (Jo 7:37) e o cansaço (Jr 31:25)? LIVRO DE HEBREUS
Logo, tem-se a problemática: Qual é o sig- É de extrema importância analisar o
nificado da disciplina do Senhor em He- contexto do livro de Hebreus para esta dis-
breus 12:4-11? cussão, pois, ele dá um referencial da situ-
Para compreender este dilema, este ação histórica em que se encontravam os
artigo se utiliza uma metodologia exegéti- primeiros destinatários da homilia-epis-
ca do texto de Hebreus 12:4-11. Essa análi- tola.
se fica mais clara ao se observar o contexto Então, primeiramente, necessita-se
do livro de Hebreus, estudado de palavras identificar o autor de Hebreus, porém, isso
chaves dentro do texto em questão e com- não é uma tarefa tão fácil quanto parece. É
parar como Provérbios e Deuteronômio importante ressaltar que há diversas opi-
deram base para a compreensão dessa dis- niões, entre elas, alguns mencionam que
ciplina. Ao observar esses passos, busca-se foi Barnabé, Apolo, Priscila, Silas, Timó-
esclarecer o tema da disciplina de Deus em teo, Clemente de Roma, Epafras, Felipe o
um contexto atual. diácono ou até mesmo Maria mãe de Jesus
Este estudo se dividirá em cinco (CARSON, 2005; BROWN, 1997). Como
principais partes. (1) Panorama geral de muitos nomes são propostos para a auto-
Hebreus, abordando seu contexto geral e ria de Hebreus, neste ponto, Hagner (2011)
específico; (2) análise léxico-sintática de menciona o alto nível de especulação com
palavras chaves do texto; (3) estabeleci- relação a várias propostas feitas.
mento do texto com as variantes textuais, Autores como Attridge (1990), Car-
propondo uma tradução para os versos de son e Moo (2005) descredibilizam a au-
Hebreus 12:4-11; (4) análise do uso de Pro- toria paulina para Hebreus. Entretanto,
vérbios e Deuteronômio em Hebreus e suas Michales e Allen (apud Malheiros, 2017,
implicações; e a (5) abrangência teológica p. 81, 82) dizem que a hipótese da autoria
das descobertas feitas nesse trabalho. Es- paulina de Hebreus não deve ser excluída,
ses passos se darão por meio de dois mé- pois não há evidências fortes e conclusivas
todos, sendo eles: 1) revisão bibliográfica, e para tal ação. Autores como Charles Fors-
2) uma adaptação dos passos exegéticos de ter, Moses A. Stuart e William Leonard,

56
TEOLOGIA em revista
“formam a mais abrangente compilação (ATTRIDGE, 1990, p. 9). O que fica claro é
de evidências para a hipótese da autoria que os destinatários de Hebreus são cris-
paulina”, sem deixar de mencionar que tãos que conhecem bem a LXX e os ritos
“o melhor argumento recente em favor judaicos.
da autoria paulina é o de David A. Black” O tema geral de Hebreus é a supre-
(Malheiros, 2017, p. 75, 80, 82). É válido macia “do Filho de Deus, Jesus Cristo, uma
citar também, que o P46 (papiro), o mais supremacia que não tolera desafios, sejam
antigo de Hebreus, datado de ca. 200 E.C, angélicos ou seres humanos [...]” (CARSON
menciona Hebreus entre as “Epistolas de e MOO, 2005, p. 597). Brown (1997, p. 701)
Paulo” (METZGER e EHRMAN, 2005, p. também vai afirmar que “o (alto) sacerdó-
54). Tendo isso em mente, por que então cio de Jesus Cristo é um tema importante”
negar Paulo como uma das propostas vá- do livro de Hebreus.
lidas para a autoria de Hebreus? De fato, Qual o propósito de Hebreus? Carson
é “inegável” a “influência paulina no li- e Moo (2005, p. 612) dizem que o propó-
vro de Hebreus” (Malheiros, 2017, p. 82), sito está intimamente ligado ao destina-
por isso, este artigo reconhece e favorece tário. Como visto acima, os destinatários
as evidências para a autoria paulina. Tais eram cristãos que conheciam bem a LXX
evidências, merecem maior credibilidade e os ritos judaicos. De fato, o autor de He-
e confiabilidade, já que tais propostas, tra- breus não está tão preocupado com as ra-
balham “com evidências materiais” (Ma- zões do afastamento mas, a consequência
lheiros, 2017, p. 82) e não especulativas. que esse afastamento levaria, em outras
Quanto a data em que o livro de He- palavras, “Cristo, seu sacrifício e sua obra
breus foi escrito, Brown (1997, p. 696, 697) sacerdotal são tão relativizados que são
vai concluir esta discussão favorecendo o efetivamente negados.” Com isso, a apos-
ano de 80 E.C. Carson e Moo (2005, p. 607, tasia está a um fio de distância para eles. “É
608), por outro lado, favorecem as evidên- exatamente para evitar tal calamidade que
cias para uma data anterior a 70 E.C., antes o autor escreve esta epístola”. Lane (1991a,
da destruição de Jerusalém. Lane (1991a) p. 214, 215) afirma que o autor de Hebreus
também irá favorecer uma data anterior a também tinha o desejo de dissuadir eles de
70 E.C. Diversos fatores devem ser levados um caminho que os levaria para algo “ca-
em conta para essa discussão, todavia, este tastrófico.” Apresentar a Cristo como sen-
trabalho se limita a dizer que é difícil certi- do superior e a base da fé é ideal para evitar
ficar-se da data precisa, não tomando mais tal apostasia.
espaços para as discussões sobre a data- Por fim, Hebreus pode ser considera-
ção, este artigo afirma que a data provável do uma epístola, já que há similaridades
é a “segunda metade do primeiro século” com elas por causa do seu “final epistolar”
(MALHEIROS, 2019, p. 36). (BROWN 1997, p. 690; CARSON e MOO,
Para se desvendar os destinatários de 2005; ATTRIDGE, 1990). Entretanto, não
Hebreus, Lane (1991a, p. 148) afirma que somente isso, Hebreus pode ser considera-
a fonte de autoridade deles “é a Bíblia em do também como um sermão ou uma ho-
uma versão grega antiga [...]”, a LXX. Tan- milia (ATTRIDGE, 1990; CARSON e MOO,
to Attridge quanto Carson e Moo (1990, p. 2005; BRUCE, 1990; COCKERILL, 2012).
10; 2005, p. 608, 609) concordam que os Lane (1991a, p. 171, 176) vai além e diz que
destinatários sejam cristãos. Quanto a lo- “Hebreus é um sermão preparado para ser
calização geográfica, Carson e Moo (2005) lido em voz alta para um grupo de audi-
afirmam que Roma é uma sugestão bem tores que irão receber sua mensagem não
válida quanto qualquer outra, porém, não principalmente através da leitura e refle-
deixa de ser uma sugestão, todavia, esse xão livre, mas oralmente”, do tipo que se
aspecto geográfico é “menos significativo” entrega “em uma sinagoga da diáspora”.

57
TEOLOGIA em revista

3 UMA ANÁLISE DE (1990) estabelecem que παιδεύω (pai-


deuo) pode ser uma “disciplina na forma de
punição de Deus”, o que é mencionada em
PALAVRAS-CHAVE Hebreus 12: 6.
EM HEBREUS 12:4-11 3) μαστιγόω (mastigoo): é usado uma
única vez no verso 6, onde o autor de Hebreus
faz a citação de Provérbios. Bauer (2000, p.
Para uma melhor compreensão do 1048) sugere traduções como: “punir, cas-
tema, se faz necessário uma análise de três tigar [...] de Deus [...] para disciplina [...] Hb
palavras-chave em Hebreus 12:4-11. São 12:6.” Friberg (2000) diz ser “literalmente,
termos encontrados na delimitação que como bater com açoite ou chicote [...]” ou “fi-
está baseada na Nestle Aland 28ª edição gurativamente, da punição corretiva de Deus
(NA28). castigar, punir severamente (Hb 12.6).” Kittel
1) παιδεία (paideia): é o segundo (1985) declara que o uso em Hebreus 12:6 é
substantivo mais repetido na perícope, “figurativo [...] ‘para conceder punição cor-
com quatro repetições em apenas onze retiva’. Assim como os pais podem corrigir os
versos. Bauer (2000, p. 1241) comenta filhos que amam, Deus corrige por meio de
que παιδεία (paideia) é “o ato de forne- sofrimentos.”
cer orientação para uma vida responsável,
educação, treinamento, instrução”; tam-

4 O TEXTO GREGO
bém como “disciplina” ou “correção,” po-
dendo também, ser proveniente de Deus
(Hb 12:5, 7, 8, 11). Friberg (2000) sugere
traduções como: “treinamento, instrução,
disciplina (Hb 12:11) [...] punição, correção
E SUA TRADUÇÃO
(Hb 12:5).” Gingrich e Danker (1984, p. 153) Há uma necessidade de se ponderar
dizem que pode ser traduzido como “trei- neste momento no texto grego de Hebreus
namento.” Já Kittel (1985) afirma que além 12:4-11, do qual, uma tradução mais dinâ-
de conotação como treinamento, παιδεία mica é proposta, porém, respeitando a lite-
(paideia) “também carrega o pensamento ralidade do texto. O texto grego que serve
de censura, advertência e medidas discipli- como base para esta tradução é o NA28, to-
nares. Até o castigo corporal está incluído davia, com uma alteração que será discuti-
(Pv 13:24), pois evita coisas piores (23:13) da nesta seção:
e dá esperança de emenda (19:18)”. Balz e
Schneider (1990) articulam que “em todas 4 Οὔπω μέχρις αἵματος ἀντικατέστητε πρὸς τὴν
ἁμαρτίαν αγωνιζομενοι. 5 καὶ ἐκλέλησθε τῆς
as 6 instâncias, παιδεία (paideia) é usado παρακλήσεως, ἥτις ὑμῖν ὡς υἱοῖς διαλέγεται·υἱέ
ativamente para treinamento (2 Timóteo μου, μὴ ὀλιγώρει παιδείας κυρίου μηδὲ ἐκλύου
3:16) ou de repreender/disciplinar, não no ὑπ᾽ αὐτοῦ ἐλεγχόμενος·
6 ὃν γὰρ ἀγαπᾷ κύριος παιδεύει, μαστιγοῖ δὲ
(passivo) sentido de ‘educação’”. πάντα υἱὸν ὃν παραδέχεται.
2) παιδεύω (paideuo): é um verbo 7 εἰς παιδείαν ὑπομένετε, ὡς υἱοῖς ὑμῖν
προσφέρεται ὁ θεός. τίς γὰρ υἱὸς ὃν οὐ παιδεύει
que para Bauer (2000, p. 1242) significa πατήρ; 8 εἰ δὲ χωρίς ἐστε παιδείας ἧς μέτοχοι
“disciplina” ou “punição” (ou castigo). γεγόνασιν πάντες, ἄρα νόθοι καὶ οὐχ υἱοί ἐστε.
9 εἶτα τοὺς μὲν τῆς σαρκὸς ἡμῶν πατέρας
Sendo “principalmente de disciplina divi- εἴχομεν παιδευτὰς καὶ ἐνετρεπόμεθα· οὐ πολὺ
na” (Hb 12:6, 10b), mas também “de dis- [δὲ] μᾶλλον ὑποταγησόμεθα τῷ πατρὶ τῶν
πνευμάτων καὶ ζήσομεν; 10 οἱ μὲν γὰρ πρὸς
ciplina por pais humanos” (Hb 12:7, 10a). ὀλίγας ἡμέρας κατὰ τὸ δοκοῦν αὐτοῖς ἐπαίδευον,
Friberg (2000) acrescenta opções de tra- ὁ δὲ ἐπὶ τὸ συμφέρον εἰς τὸ μεταλαβεῖν τῆς
duções como: “instruir, treinar, educar (At ἁγιότητος αὐτοῦ. 11 πᾶσα δὲ παιδεία πρὸς μὲν
τὸ παρὸν οὐ δοκεῖ χαρᾶς εἶναι ἀλλὰ λύπης,
7,22);” também como “corrigir, orientar, ὕστερον δὲ καρπὸν εἰρηνικὸν τοῖς δι᾽ αὐτῆς
disciplinar (1 Tm 1.20).” Balz e Schneider γεγυμνασμένοις ἀποδίδωσιν δικαιοσύνης.

58
TEOLOGIA em revista
Uma possível tradução seria a seguinte: A variante αγωνιζoμενοι (agoni-
zomenoi) tem apoio nos P13.46, do mi-
4 Na luta de vocês contra o pecado, ainda não núsculo 1505 e a versão antiga z (ALAND,
resistiram até ao ponto de derramarem o san- 2012, p. 680). O The Center for New Tes-
gue. 5 E vocês se esqueceram da exortação que tament Textual Studies New Testament
argumenta com vocês como filhos: Filho meu,
não despreze a disciplina do Senhor nem desa- Critical Apparatus (2004) menciona ain-
nime quando estiver sendo reprovado por ele da o apoio dos minúsculos 69, 181, 1245 e
6 porque o Senhor disciplina a quem ama e 2495 para essa variante.
açoita a todo filho a quem recebe; A variante ἀνταγωνιζόμενοι (an-
7 é para disciplina que suportais, Deus trata tagonizomenoi) por outro lado, tem o
vocês como filhos. Qual é, pois, o filho a quem
um pai não disciplina? 8 Mas se estais sem dis- apoio das seguintes testemunhas: ‫א‬c, A,
ciplina da qual todos se tornam participantes, D06, Ψ, 1, 33, 35, 81, 88, 131, 209, 218, 256,
então vocês são bastardos e não filhos, 9 além 323, 424, 489, 630, 927, 945, 999, 1243,
disso, nossos próprios pais, que respeitávamos, 1244, 1251, 1315, 1319, 1424, 1573, 1646,
eram disciplinadores. Não nos subordinaremos 1735, 1739, 1751, 1836, 1874ccc, 1881, 1891,
muito mais ao pai dos espíritos, e viveremos? 10
Porque nossos pais nos disciplinavam por pou- 1912, 1957, 1962, 2191, MT, SBL e TR.
cos dias segundo o que eles mesmos achavam, As testemunhas mais antigas são
mas Deus nos disciplina para aproveitamento, os P13 datados do século III/IV e o P46
para participarmos da santidade dele. 11 Toda de ca. 200 E.C. (ALAND, 2012, p. 792,
disciplina então, a primeiro momento não pa-
rece ser de alegria, mas tristeza, mas depois ao 794), os quis, dão apoio a variante
ser por ela exercitados produz fruto pacífico de αγωνιζομενοι (agonizomenoi). A va-
justiça (tradução dos autores). riante ἀνταγωνιζόμενοι (antagonizo-
menoi), apesar de ter muitas testemu-
nhas, não é usado em nenhum outro lugar
além de Hebreus 12:4. Por outro lado, a va-
riante αγωνιζομενοι (agonizomenoi),

5 ANALISANDO UMA
do verbo ἀγωνίζομαι (agonizomai) apa-
rece nas cartas de Paulo 6 vezes (1Co 9:25;
Cl 1:29; 4:12; 1Tm 4:10; 6:12; 2Tm 4:7) e
VARIANTE TEXTUAL tem apoio das testemunhas mais antigas
(P13.46). Lucas (Lc 13:24) e João (Jo 18:36)
Este trabalho não se detém em todas também usam o mesmo verbo.
as variantes apresentadas pelo NA28, po- Para a análise de uma variante, de-
rém, analisa uma das variantes, por consi- ve-se levar em conta as evidências ex-
derá-la importante dentro da probabilida- ternas e as evidências internas. A proba-
de intrínseca (STUART E FEE, 2008, p. 263, bilidade própria, que se encontra dentro
264). Tal variante se encontra em Hebreus da evidência interna, lida com a questão
12:4 que diz: “Ora, na vossa luta contra o de como certa expressão ou palavra se
pecado, ainda não tendes resistido até ao adapta ao “estilo do autor” (STUART e
sangue” (grifo dos autores). Neste verso, FEE, 2008, p. 263; METZGER e EHRMAN,
a variante se encontra na palavra “luta”, 2005, p. 305-315). Tendo isso em vista,
do grego ἀνταγωνιζόμενοι (antagoni- o presente artigo explora a probabilida-
zomenoi), composta pela preposição ἀντί de intrínseca. Isso é feito considerando o
(anti), mais o verbo ἀγωνίζομαι (agonizo- estilo em que o autor de 1 Coríntios usa o
mai) (BAUER, 2000, p. 228). Nesta varian- verbo τρέχω (trecho) em conexão com
te, o NA28 menciona que pode haver uma o verbo ἀγωνίζομαι (agonizomai), e
substituição (⸀) de ἀνταγωνιζόμενοι como esse mesmo estilo é usado em He-
(antagonizomenoi) por αγωνιζoμενοι breus 12, favorecendo, assim, a variante
(agonizomenoi). de αγωνιζομενοι (agonizomenoi).

59
TEOLOGIA em revista
O significado do verbo τρέχω (tre- Assim sendo, este artigo propõe que a varian-
cho) em Hebreu 12:1 e 1 Coríntios 9:24, 26 te αγωνιζομενοι (agonizomenoi) seja aceita
é de uma corrida a “pé em um estádio” em lugar de ἀνταγωνιζόμενοι (antagoni-
(BAUER, 2000, p.1647). Tanto Thiselton zomenoi) como plausível leitura original do
(2000, p. 709, 710) quanto Fee (1987, p. 433) texto, pois tal variante demonstra de maneira
estabelecem que em 1 Coríntios 9:24, Pau- perceptível relação do estilo do autor.
lo usa uma competição greco-romana de
maneira metafórica. No caso de 1 Coríntios
9, a competição a ser corrida é para obter o
autocontrole e a “recompensa escatológi-
ca”, que é a coroa incorruptível (FEE, 1987, 6 O FUNDO CONCEITUAL
p. 434). Bauer (2000, p. 121) propõe que DA DISCIPLINA EM
“ἀγωνιζόμενος” (agonizomenos) em 1 HEBREUS 12
Coríntios 9:25, deve ser entendida como “de Beale e Carson (2014, p. 1209) men-
uma (atlética) disputa” (ou competição) em cionam que no trecho em estudo, o autor
um contexto de “armamento”, podendo até de Hebreus lida com as dificuldades e a
ser traduzida como “lutar”. Percebe-se en- perseverança, comparando-as com a dis-
tão, que Paulo faz uso do verbo τρέχω (tre- ciplina aplicada pelos pais. Nesta altura o
cho) (1 Co 9:24) de maneira metafórica, e o autor faz uso de Provérbios 3:11, 12, do qual,
faz em conexão com o verbo ἀγωνίζομαι eles expõem em três partes principais. Pri-
(agonizomai) (1 Co 9:25). Vale ressaltar meiramente dando validade ao “relacio-
que Paulo é o único que faz uso de τρέχω namento entre os ouvintes e Deus, como
(trecho) de forma figurada no Novo Testa- Pai.” Em seguida o autor apresenta qual é
mento (Rm 9:16; 1 Co 9:24c, 26; Gl 2:2; 5:7; a “atitude adequada à disciplina de Deus.”
Fp 2:16). Todavia, esse uso do verbo τρέχω Por fim, ele dá “encorajamento ao apontar
(trecho) com ἀγωνίζομαι (agonizomai), o benefício da disciplina: ela conduz à san-
que o autor de 1 Coríntios está relacionan- tidade.” Thiessen (2009, p. 366, 367) afirma
do, é o mesmo que faz o autor de Hebreus, que o contexto encontrado em Deuteronô-
no capítulo 12. Ou seja, 1 Corintios 9 e He- mio, Sabedoria, Philo e Josefo é de grande
breus 12 estão empregando o mesmo estilo importância para o entendimento de He-
no uso idêntico dos dois verbos em seu con- breus 12. Também se deve levar em conta a
texto imediato. Lane (1991b, p. 399) afirma concepção judaica “do tempo de Israel”, e a
que a expressão encontrada em Hebreus 12 παιδεία (paideia) que precisa ser entendi-
é equivalente a encontrada em 1 Coríntios do à luz da mesma experiência que “Israel
9. Em Hebreus 12, a corrida metafórica se experimentou” no deserto. Fica claro que
refere a experiência cristã, na qual, deve-se Provérbios é a base da exortação de Hebreus
demonstrar perseverança quando afligido 12 (BEALE e CARSON, 2014).
por provações, as quais, devem ser enfren- Neste ponto, necessita-se levantar
tadas como disciplina divina (LANE, 1991b, uma questão importante, “qual fundo con-
p. 409). Também com “respeito à luta con- ceitual é hermeneuticamente relevante
tra o pecado,” essa “corrida a ser suportada para o significado” de παιδεία (paideia)
envolve jogar fora o ‘pecado’ que tão facil- em Hebreus 12? (SPELLMAN, 2016, p. 491).
mente se envolve” (SPELLMAN, 2016, p. Ao contrário de Croy (1998) e Thiessen
503) (Hb 12:1-3). (2009), Spellman (2016, p. 490) propõe que
Portanto, não restam dúvidas de que 1 a disciplina de Hebreus 12 seja compreendi-
Coríntios e Hebreus estão fazendo uso da mes- da com “conotações negativas e positivas”.
ma metáfora, a metáfora da corrida (τρέχω) Hebreus, ao fazer a citação de Provér-
e ligando a metáfora ao verbo ἀγωνίζομαι bios 3:11, 12, “parece apropriado extrair nos-
(agonizomai), “luta de um atleta”. sa compreenssão de paideia diretamente do

60
TEOLOGIA em revista
próprio livro de Provérbios,” até porque, o Lane (1991b, p. 430), citando Deute-
conceito de disciplina vem de Provérbios ronômio 8:5 em seu comentário sobre He-
(SPELLMAN, 2016, p. 490). Croy (1998, p. breus 12:5, 6, afirma que a compreensão de
78), entretanto, não dá muita importân- παιδεία (paideia) está ligada com o rela-
cia para o fundo conceitual de Provérbios, cionamento de pai-filho, e que “o quadro
ele menciona que este fundo conceitual adequado para compreender o caráter da
“parece ter distorcido” o conceito de disci- disciplina divina é a aliança que une Deus
plina exposto em Hebreus 12. Este artigo, e seus filhos em uma relação familiar.” É
porém, discorda de Croy neste ponto, por- provável que “o conceito de disciplina no
que entende que o autor de Hebreus ao ci- livro de Provérbios” foi feito pelo desenvol-
tar Provérbios, extrai não só a citação, mas, vimento “do conceito no livro de Deutero-
também o conceito estabelecido pelo texto. nômio” (SPELLMAN, 2016, p. 499). Este
Analisar a citação e o conceito de παιδεία mesmo conceito de disciplina e a analogia
(paideia) na Bíblica Hebraica é fundamen- pai-filho é visto em Hebreus 12.
tal, passos, os quais, Spellman (2016) busca Thiessen (2009) por outro lado, vê so-
alcançar. Ao analisar o uso que Hebreus 12 mente a ligação de Deuteronômio com He-
faz de Provérbios, entende-se, desta forma breus, e não Deuteronômio com Provérbios.
que a compreensão do tema da disciplina A ligação entre Deuteronômio e Provérbios
em Hebreus está fundamentada em Provér- fica mais visível na LXX, quando “as três pa-
bios. lavras-chave de Pv 3: 11-12 e Hb 12: 3-11, que
O relacionamento de “pai-filho com o são: ‘filho’ (υἱός), ‘disciplina’ (παιδεύω)
conceito de disciplina é hermeneuticamen- e ‘Senhor’ (κύριος), aparecem em Dt 8:5”
te significativo.” Em Provérbios encontra- (SPELMMAN, 2016, p. 500).
-se a disciplina que implica em “correção Dentro de Deuteronômio 6, logo de-
pois do Shema e do grande mandamento,
(13:24; 23:12-14; 29:17), censura (5:12; 15:32), Moisés diz: “Também as atarás [qashar]
orientação e instrução (23:19)” (SPELLMAN como sinal na tua mão, e te serão por frontal
2016, p. 493). Portanto, para “argumentar entre os olhos” (Dt 6:8). Em Deuteronômio
que o sentido corretivo de paideia não” es- 11:18, novamente Moisés diz: “Ponde, pois,
teja presente no livro de Hebreus, se faria estas minhas palavras no vosso coração e
necessário argumentar que o autor de He- na vossa alma; atai-as [qashar] por sinal
breus não retira sua “compreensão de pai- na vossa mão, para que estejam por fron-
deia do livro de Provérbios” (SPELLMAN, tal entre os olhos.” Tal expressão aparece
2016, p. 493). Será que de fato Hebreus 12 também em Provérbios 1-9, dentro de um
não retira tal compreensão de Provérbios? contexto semelhante e na mesma linha de
Nos primeiros nove capítulos de Pro- raciocínio da imagem pai-filho. Provérbios
vérbios há a imagem de um pai instruindo 3:3 por exemplo dirá: “Não te desamparem
seu filho na sabedoria, explicando que o fi- a benignidade e a fidelidade; ata-as [qashar]
lho ideal em Provérbios é aquele que aceita ao pescoço; escreve-as na tábua do teu cora-
a disciplina do seu pai e a Divina. Spellman ção.” Provérbios 6:21, onde diz para se ouvir
(2016, p. 495) faz o comentário de que “no a instrução do pai ele dirá: “ata-os [qashar]
texto hebraico, provérbios termina com a perpetuamente ao teu coração, pendura-
imagem pai-filho: ‘Pois a quem o Senhor -os ao pescoço.” Também em Provérbios
ama, ele reprova, assim como o pai corri- 7:3: “Ata-os [qashar] aos dedos, escreve-os
ge o filho em quem tem prazer.’ Aqui, dis- na tábua do teu coração.” Essas conexões
ciplina divina está diretamente conectado verbais sugestivas “fornecem pelo menos
à analogia pai-filho”, o qual pode prover uma possível conexão texto-iminente entre
uma ligação com Deuteronômio 8:5, de tal o conceito de disciplina em Provérbios e o
maneira que talvez o autor de Hebreus não Pentateuco.” As características “teológicas
tenha somente baseado sua compreensão e textuais de Deuteronômio e Provérbios
de παιδεία (paideia) só do livro de Provér- são utilizadas no desenvolvimento de He-
bios, mas também do Pentateuco. breus 12.” Dentro deste “perfil intertextual,

61
TEOLOGIA em revista
a citação do escritor [Hb 12] de Prov. 3:11-12 Percebe-se também, que a disciplina
parece menos uma imposição distrativa e não tem somente conotação verbal, mas fí-
mais como um movimento hermenêutico sica (BAUER, 2000; GINGRICH E DANKER,
adequado e estratégico.” É importante res- 1984; LIDDELL, 1996). Spellman (2016, p.
saltar que “a forma como o autor expande 495) afirma que, “esta disciplina é poste-
a citação dos Provérbios 3 em sua exposi- riormente descrita em termos vívidos e
ção se encaixa notavelmente bem com o viscerais como açoite [μαστιγοῖ - masti-
contexto mais amplo de Provérbios 1-9 e goi]”. “A imagem da flagelação confirma
Deuteronômio 6-8.” (SPELLMAN, p. 502). e enfatiza a fisicalidade deste sofrimento
Conclui-se, portanto, que há uma ín- e privação.” A dor é algo presente para o
tima ligação de Hebreus 12 não somente crente neste mundo (Jo 16:33). Contudo,
com Provérbios, mas também com Deu- essa dor promovida pela aflição, pelas difi-
teronômio através da repetição das pala- culdades e pela disciplina, tem sua origem
vras chave (filho, disciplina e Senhor) e da de pelo menos três lugares: 1- do próprio
imagem pai-filho. Deve-se compreender Diabo que é o originador de todo o mal; 2-
também, que “[...] a faixa semântica de de nossas próprias escolhas; 3- mas tam-
παιδεία inclui aspectos punitivos e não bém pode ser causada por Deus como meio
punitivos e é capaz de uma função dupla de salvação ou juízo. Todavia, é necessário
se o contexto permitir esse uso.” Percebe- ter em mente a incapacidade de distinguir
-se assim que “o conceito de disciplina res- com precisão a procedência da dor que o
soa tanto com o drama da desobediência crente possa estar passando atualmente.
visto na geração do deserto quanto com o Para isso é necessário crer que mesmo no
drama da fidelidade visto no sofrimento meio da maior dor ou aflição, é neste mo-
sem pecado de Jesus em sua encarnação.” mento em que mais perto está o amor e o
(SPELLMAN, 2016, p. 503, 504). auxílio Divino (WHITE, 2004).
Nesta altura, pode-se fazer o ques-
tionamento de porque a necessidade de
disciplina. Lane (1991b, p. 412) vai dizer

7 IMPLICAÇÕES
que “a própria experiência de triunfo de
Jesus através do sofrimento fornece uma
perspectiva sobre o propósito de sofrer na
TEOLÓGICAS experiência dos cristãos (Hb 12:4-11).” Pe-
dro afirma que o crente precisa se alegrar
Como explorado acima, a disciplina, ao participar dos sofrimentos de Cristo e
παιδεία (paideia), pode vir tanto de uma que não deve achar estranho os sofrimen-
situação de obediência como desobediên- tos (1Pe 4:12-19). O sofrimento pode trazer
cia, incluindo aspectos punitivos e não pu- aprendizagem para o crente, assim como
nitivos, o qual, é capaz de manter os dois Cristo aprendeu “pelas coisas que sofreu”
aspectos se o contexto assim permitir. Por- (Hb 5:8). O texto é claro em afirmar que
tanto, παιδεία (paideia) abarca “correção Deus só disciplina aqueles que Ele ama (Pv
por desobediência” como “treinamento em 3:11, 12; Hb 12:5, 6). No texto há uma íntima
obediência” (SPELLMAN, 2016, p. 504). O conexão “entre disciplina e amor que não é
conceito de “castigo educativo” é bem pre- necessariamente intuitiva”, ou seja, a dis-
sente na Bíblia e em outras literaturas, po- ciplina não é algo cruel ou um ato de cruel-
rém, é necessário reconhecer que não é tare- dade, mas totalmente o “oposto é verdade
fa fácil diferenciar o sofrimento disciplinar neste caso.” A motivação para tal ação é o
que um justo recebe de um sofrimento pe- amor (SPELLMAN, 2016, p. 495). Um pai
nal de um ímpio (KITTEL, 1985). seria negligente e demonstraria falta de

62
TEOLOGIA em revista
amor se não disciplinasse seu filho quando “assume um significado escatológico.” O
necessário (Pv 1-9). Através da disciplina, o Deus que está tratando-os como filhos,
pai pode ensinar o filho a ser uma pessoa “agora também está na linha de chega-
melhor e fazer as escolhas certas. Maxwell da” (2016, p. 503). Diferente de qualquer
(1998, p. 231) faz a seguinte pergunta: “Por- disciplina humana, “a disciplina paterna
ventura Deus nos ama e ao mesmo tempo de Deus é determinada por sua sabedoria
nos fere?” Ele continua e faz a afirmação perfeita e é motivada por uma preocupa-
que sim, pois, “por vezes o amor tem que ção intrínseca com nosso bem-estar [...]”
gritar – e punir.” Uma das razões para tal (LANE, 1991b, p. 435).
ato de amor, é fazer o crente se arrepender
e modificar o curso de sua vida.

8CONSIDERAÇÕES
Enquanto Cristo Jesus não voltar, de-
ve-se entender que no mundo de pecado
em que o ser humano vive, “sem sofrimen-
to, pode não haver crescimento espiritual.” FINAIS
(COLLINS, 2004, p. 665). Gulley (2016, p.
625, 628) é claro em afirmar que “se Deus
tirasse os humanos dos problemas de ma- Assim sendo, não importa o que Deus
neira contínua, não haveria desenvolvi- faça, tudo que fizer será justo e uma de-
mento de caráter”, pois, “Deus sabe que o monstração do Seu amor. Essa compreen-
que é experienciado na tribulação é muito são, portanto, afeta o modo de viver cris-
mais importante do que ser arrebatado ou tão, pois, através deste entendimento o
separado dela.” Em 1 Coríntios 10:13, Paulo crente agora não mais se pergunta o que
vai dizer que não virá sobre o crente tenta- fez de errado para estar passando por tal
ção que não possa suportar, mas Deus é fiel sofrimento. O cristão entende que talvez
e vai nos prover um livramento, e esse li- esse sofrimento seja a disciplina do Todo
vramento é suportar a tentação, e “não ser Poderoso, porque está exercitando-o para
removido dela.” alcançar a linha de chegada, a cidade que-
Por fim, necessita-se compreender rida, a Nova Jerusalém. Igualmente como
que esta disciplina provinda de Deus não um pai disciplina seus filhos, Deus discipli-
tem como finalidade somente transformar na os dele. Essa disciplina pode sim causar
o caráter do filho e da filha de Deus, mas desconforto e sofrimento, podendo não ser
também fazer com que o crente participe agradável a princípio, mas, a mão guiadora
da santidade Divina, produza o fruto de de Deus os está protegendo e conduzindo,
justiça, tenha perseverança (Hb 12; Tg 1; 2 não para o seu lar terreno, mas para o seu
Co 4:17) e haja um “amadurecimento no lar celestial, o qual, foi conquistado pelo
relacionamento com Deus” (LANE, 1991b, sangue daquele que tudo suportou, para
p. 412). Como diz Spellman, “além disso, que aqueles que passassem por aflições
a corrida de Hb 12:1-2 tem uma linha de como Ele passou, também participassem
chegada, ou ponto final em Hebreus 12, a da Sua glória.
saber, a melhor montanha, o Monte Sião
no reino celestial (12:22-24).” Ou seja, os
filhos e as filhas de Deus estão prestes a
chegar na linha final. Continuando, o au-
tor afirma que “este destino final retrata
um ponto final escatológico para a metá-
fora da corrida que começa em Hb 12:1-2.”
Agora então o treinamento da disciplina

63
TEOLOGIA em revista

Referências
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65
TEOLOGIA em revista

O CONTEXTO PANORÂMICO DO
SEGUNDO TESTAMENTO
THE PANORAMIC CONTEXT OF THE SECOND TESTAMENT

Lucas Lima Martins Fridman


Teólogo e Sociólogo
Chandler Tiago S. Sant’ Ana
Teólogo e Graduado
em estudos Judaicos

Bacharel em Teologia pelo Seminário Latino-Americano de Teologia – IAP, Licenciado


em Ciências Sociais pela Faculdade de Educação Paulistana. Mestrando em Teologia
1 Histórica. Contato: lucaslmfridman@gmail.com.

Bacharel em Teologia pelo Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia –


FADBA e graduando em Estudos Judaicos pelo Seminário Rabínico Latinoamericano
2 Marshall T. Meyer. Contato: chandlertiagosantana@gmail.com.

66
TEOLOGIA em revista

Resumo
O presente artigo, através de uma revisão bibliográfica, tem
como objetivo mostrar quais foram os principais aspectos con-
textuais do século I EC que impactaram a formação do Segundo
Testamento, também conhecido como Novo Testamento. O Se-
gundo Testamento é um relato histórico inspirado, cheio de in-
formações sobre o berço do Protocristianismo, surgido a partir
do movimento messiânico de Yeshua, que, a despeito de estar
envolvido em um contexto histórico fluido, tornou-se uma das
maiores religiões monoteístas do mundo nos séculos seguintes.
Entender qual era o contexto geográfico, histórico e social desse
surgimento, de forma panorâmica, é o objetivo principal dessa
pesquisa, levando o leitor a compreender como o imaginário da
época era composto, causando assim uma reflexão sobre quais
influências podem ser sentidas no estudo do Protocristianismo.

Palavras-chave: Protocristianismo. Helenização. Judaís-


mo.

Abstract:
This article, through a bibliographical review, aims to show
the main contextual aspects of the 1st century CE. The Second
Testament, also known as the New Testament, is an inspired
historical account filled with information about the birthplace
of Proto-Christianity. Such a religious conception arises from
the Messianic movement of Yeshua, and despite being involved
in a fluid historical context, it becomes one of the greatest
monotheistic religions in the world in the following centuries.
Understanding the geographic, historical and social context of
this emergence, in a panoramic way, is the main objective of this
research, leading the reader to understand how the imagination
of the time was composed, thus causing a reflection on what
influences can be felt in the study of Proto-Christianity.

Keywords: Proto-Christianity. Hellenization. Jewish.

67
TEOLOGIA em revista

1 Segundo Bastos (2009), “a Palestina


ou Terra Santa, ou Israel, como era cha-
mada nos tempos de Jesus, possuía uma
extensão territorial relativamente peque-
Introdução na, sendo uma estreita área situada entre
a África, a Ásia e a Europa, funcionando
Ao estudarmos uma temática a fun- como uma espécie de ponte entre essas re-
do, não podemos olhar somente para o giões” (BASTOS, 2009, p. 105 apud SILVA,
nosso objeto de estudo, mas precisamos 2006). Talvez essa seja uma das mais belas
olhar para ele inserido em um contexto estratégias divinas para seu povo, visto que
maior, que o circunda. Em termos de inte- Deus não só escolhera Israel como povo
resse, nosso objeto de estudo aqui é o Se- (Gênesis 12:1-3), mas também escolhera o
gundo Testamento (também conhecido que eles comeriam (Levítico 11), como eles
como Novo Testamento), mas para conhe- se vestiriam (Números 15: 37-38/ Deutero-
cermos a fundo o texto e o que o autor quis nômio 22:12) e inclusive o lugar onde eles
transmitir, precisamos entender qual era o morariam (Deuteronômio 11:10-12).
contexto maior ao redor. É preciso enten- O interessante da escolha geográfi-
der como viviam, como se alimentavam, ca de Deus é que Israel está localizado no
como trabalhavam, como eram as constru- Oriente Médio, logo pertence a uma con-
ções e tudo isso nos ajudará a montar um fluência de continentes, eixo central que
quebra-cabeça de uma época tão distante liga Europa, África e Ásia. Quando o Eter-
da atual, para que no estudo que fizermos, no decidiu por esse lugar, escolheu pro-
não incorramos em anacronismos. positalmente, para que Seu povo fosse o
O povo de Israel demonstrou seu ca- “centro” do mundo (Jubileus 8:19). Assim,
ráter etnográfico e cultural através da Bí- qualquer rota que passasse por esse eixo,
blia, que além de um documento histórico, conheceria o Deus de Israel e levaria sua
é considerado por judeus e cristãos, como mensagem para os continentes ao redor,
texto sagrado. Lançando mão às bases de como consta no livro de Ezequiel “Assim
tais religiões compreendemos que o pri- diz o Soberano, o SENHOR: Esta é Jerusa-
meiro século, momento importante para lém, que pus no meio dos povos, com na-
ambas as tradições, se fez muito confuso, ções ao seu redor.” (Ezequiel 5:5). Há ou-
visto estar envolto de uma série de crises, tros motivos para a escolha da geográfica
políticas, religiosas e partidárias. Sendo de Deus, pode-se citar, dentre eles o que
assim, conhecer tais crises e fenômenos está relatado em Deuteronômio 11:10-12
geográficos, culturais e históricos, se tor- quando o Eterno diz:
na imprescindível para um estudo sério.
Assim, o presente artigo pretende de uma
forma geral e panorâmica, dar ao leitor A terra da qual vocês vão tomar posse não
um vislumbre dos mais variados contextos é como a terra do Egito, de onde vocês
vieram e onde plantavam as sementes e
existentes no período de surgimento do tinham que fazer a irrigação a pé, como
protocristianismo e desenrolar do Segun- numa horta. Mas a terra em que vocês,
do Testamento. atravessando o Jordão, vão entrar para
dela tomar posse, é terra de montes e

2
vales, que bebe chuva do céu. É uma terra
da qual o SENHOR, o seu Deus, cuida;
os olhos do SENHOR, o seu Deus, estão
CONTEXTO continuamente sobre ela, do início ao fim
do ano (Deuteronômio 11:10-12).
GEOGRÁFICO
68
TEOLOGIA em revista

O Senhor estava querendo ensinar ao ladeiras ocidentais” (OSEIAS, 2008; BIBLIA


Seu povo que eles deveriam depender ex- ANOTADA). Com isso, as regiões da Galileia
clusivamente dEle para sobreviver e cum- e arredores têm maior dificuldade em rece-
prir o propósito para o qual foram chama- ber chuva e esse era o plano do Eterno. Em
dos. É necessário destacar que ao anunciar Deuteronômio 11:13 e 14, Ele explica:
como seria a terra para onde iriam, o Eter-
no realiza uma comparação entre a terra do
Egito e a forma com que eles plantavam e Portanto, se vocês obedecerem fielmente
colhiam para sobreviver. O sistema de irri- aos mandamentos que hoje lhes dou,
gação egípcio, como relatado no texto aci- amando o Senhor, o seu Deus, e servindo-o
de todo o coração e de toda a alma, então,
ma, provia de desvio das águas do rio Nilo no devido tempo, enviarei chuva sobre a
e aproveitamento de suas enchentes que sua terra, chuva de outono e de primavera,
geravam limo na terra, deixando-a mais para que vocês recolham o seu cereal, e
fértil (ANDRADE, 2016). Eles desenvolve- tenham vinho novo e azeite.
ram um sistema de canais que usavam a
água do Nilo quando estava na época de
cheia, criaram também umas espécies de O Eterno estava ensinando que quem
bacias cercadas por diques de madeira, enviaria chuva do céu, no tempo certo seria
que armazenavam a água excedente. Fato Ele, assim como quem cuidaria das lavou-
é que os egípcios muitas vezes carregavam ras, das plantações, dos cereais, da terra do
água em baldes ou mesmo com um siste- povo e de tudo que ali estivesse, era Ele. Não
ma de bombeamento (JACOBUCCI, 2020). existe maior e mais linda promessa que essa
Quando o Eterno propôs o local onde Seu feita pelo Senhor. Ele não se preocupa ape-
povo se estabeleceria, propôs uma forma nas com uma parte, mas se preocupa com o
diferente de subsistência, e no texto (Deu- todo.
teronômio 11:10-12) Ele explica que a terra Nos tempos de Jesus, “[...] a terra de
para onde eles iriam, era terra que bebia Israel encontrava-se dividida em áreas me-
água do céu e ainda ressalta que é uma ter- nores, sendo elas: Judéia, Samaria e Galileia,
ra que fica localizada entre montes e vales. ao oeste; Ituréia, ao norte; Gualanítade, Ba-
Por que essas informações são importan- tanéia, Traconítide, Auranítide, Decápole e
tes? Observando a topografia de Israel é Peréia, ao leste; e Iduméia ao sul” (BASTOS,
mais fácil compreender o que Deus estava 2009 apud SILVA, 2006). Como descreve
dizendo para eles. Silva (2006):
É possível perceber, analisando um
mapa topográfico, que a Terra de Israel é
extremamente desnivelada e que as regi- Todo esse território era margeado pelo Mar
ões montanhosas e os vales se encontram Mediterrâneo, no extremo Oeste. Ao Leste
facilmente. O Mar da Galileia, aproxima- estava o Rio Jordão que desemboca no Mar
Morto, ao sul, entrecortando toda região
damente a 230 metros abaixo do Mar Me- havia uma cadeia de montanhas e montes
diterrâneo e o Mar Morto, cerca de 400 com 600m de altura, sendo que os mais altos
metros abaixo do Mar Mediterrâneo, se estavam situados na Galileia e no Hermon.
configuram como os pontos mais baixos
do planeta Terra (ANDRADE, 2016). O fato
é que “as chuvas variam na Palestina (Is- Cada detalhe da linda terra prometida
rael) segundo a região, quanto mais pró- era experimentado nos dias de Jesus, cada
ximas do Mediterrâneo, mais chuvas as montanha com suas belezas distintas, des-
terras recebem, pois, as montanhas atuam de a planície costeira até o planalto transjor-
como uma barreira que detém os ventos daniano, cada detalhe demonstra a diversi-
úmidos do mar e as faz descarregar sobre as dade e complexidade planejada por Deus.

69
TEOLOGIA em revista

Um país tão pequeno, mas com tanto a na Galileia chovia mais do que na Judeia,
oferecer, as planícies costeiras do mediter- mas, mesmo depois da “separação da re-
râneo que cercam um mar azul cristalino, gião costeira e das cidades transjordâni-
que repousa os raios quentes refletidos cas por Pompeu (na metade do século 1
pelo sol, a beleza da vegetação baixa, em a.C.)”, o comércio judaico enfraqueceu-se,
um verde pálido, misturado em tons pas- e a maior parte da subsistência do povo era
téis, causados pelo vento oriental castiga- da pesca. Muitas histórias emocionantes
dor. aconteceram ao redor desse lago: o sermão
Shephela, com seus longos campos, da Montanha, a história do endemoninha-
marcadas pelas ondas de vento nas planta- do de Gadara, e tantas outras lindas histó-
ções douradas de trigo, em contraste com rias, tiveram esse pequeno lago como pal-
o azul anil que se espalhava pela imensi- co de seu desfecho (STEGEMANN, 2004).
dão do céu. O vale de Jezreel conhecido por Os Altos de Golã, com suas quedas
suas montanhas e vales verdes predomi- d’água, seu ambiente mais frio, trazem a
nantes em sua extensão, “[...] é delimitado calma e o refrigério para os dias quentes
ao sul pelos planaltos de Samaria e pelo de Israel. Essa paisagem contrastada com
monte Gilboa, ao norte pela Baixa Galileia, Nahal Zeelim, o deserto da Judeia, de-
ao oeste pela cordilheira do monte Carme- monstram quão grandiosa é a variedade
lo e ao leste pelo vale do Jordão” (LAGES, das cores e belezas daquele pequeno país.
2012). Assim, a topografia nos mostra que Nahal Amud com suas densas florestas es-
“[...] estando no norte do país, o vale é ser- palham o verde escuro pelo Norte de Israel
vido por chuvas mais que o Negueve, ao e trazem diversidade na flora do local.
sul, o que favorece a agricultura” (CAFE- O que falar de Jerusalém? Como
TORAH, 2019; LAND OF THE BIBLE, 2018; escreveu o salmista: “Se eu de ti me
BÍBLIA ANOTADA,2020). esquecer ó Jerusalém, que se resseque a
No fosso do Jordão, encontramos minha mão direita” (Sl 137:5). A despeito de
a paisagem mais conhecida do Segundo ser uma pequena cidade, tinha um porte de
Testamento, onde, por muitas vezes, Je- nobreza tamanho, que impunha respeito a
sus caminhou, descansou e partilhou sua todos aqueles que por ali passavam. Longe
sabedoria: O mar da Galileia. Apesar de de dar um ar místico a essa descrição, é
ser conhecido como “mar”, esse é um pe- necessário dizer que a terra de Jerusalém
queno território, uma pequena lagoa, que possui um clima diferente que gera saudade
recebe água principalmente do rio Jordão de uma pátria comum aos povos. Chegar
e que aflui para o Mar Morto. A beleza é em Jerusalém era como chegar à presença
incomparável em sua pequena imensidão de Deus, pois, ali no alto do Monte Moriá,
de 20 km de comprimento e 13 km de lar- em meio as montanhas de clima ameno
gura. Nesse lugar, muitas vezes Jesus falou de Israel, o próprio Deus manifestara-se
ao povo e encontrou alguns de seus discí- muitas vezes através do shekinah e de sua
pulos, convocando-os ao lindo ministério presença corpórea. O comentário rabínico
de pescadores de homens (Mt 4:19) (GAR- afirma: “Quem não viu a Jerusalém jamais
NIER, 1950; ANDRADE, 2016; ROPS, 2008). viu uma cidade realmente bela” (Tratado
Segundo Stegemann (2004), “a eco- Sukkah, 51.6). Não existia melhor lugar
nomia da Palestina, como a de todos os para se contemplar a linda Jerusalém, se
povos do mediterrâneo, era preponderan- não no alto do Monte das Oliveiras. Esse
temente agrária”. Mas, segundo o autor, lugar foi marcado, no primeiro século,
muitas variáveis faziam com que a popula- pelo momento em que Jesus, contempla as
ção que vivia ao redor do Lago de Genesaré fortalezas da mais bela cidade do mundo e
sofresse, especialmente as comunidades afirma: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os
não ribeirinhas. Um ponto positivo é que profetas e apedrejas os que te foram enviados!

70
TEOLOGIA em revista

Quantas vezes Eu quis reunir os teus filhos


como a galinha reúne os seus pintinhos
debaixo das suas asas, mas vós não o
aceitastes!” (Lc 13:34).
3 CONTEXTO
HISTÓRICO
No meio dessa joia esculpida pelo
tempo, através das próprias mãos do
Eterno, estava o templo. Exuberante em DO SEGUNDO
sua forma, com seu enorme pináculo e
compartimentos, de onde se podia ver
TESTAMENTO
toda a linda terra ao redor. Aquele templo Ao iniciarmos um estudo
possuía glória e honra maior que o primeiro aprofundado sobre um tema, não podemos
templo, destruído por Babilônia, pois, deixar de observar perifericamente sobre
ali pisara Deus encarnado. O historiador ele. Ao redor do nosso objeto de estudo,
Henri Daniel-Rops (2008) se questiona: sempre existirão pistas e detalhes que
“Como os Israelitas poderiam deixar de nos ajudarão a montar o quebra-cabeça.
amar sua terra?” e afirma: Não é diferente quando o assunto é o
passado e, principalmente, ao se tratar de
um passado bíblico. O contexto histórico
O perfil das colinas em toda a parte é pode nos enriquecer na argumentação
tão singular, puro e delicado que parece quanto à veracidade dos fatos levantados.
desenhado por mão de artista; existe ali Ao analisarmos o último livro profético
uma perfeição somente comparável à de da Bíblia Hebraica, Malaquias, nos
Atenas. Onde quer que seja, a relação dos deparamos com o período histórico da
planos, as distâncias remotas, imprimem reconstrução de Jerusalém e a volta do
uma harmonia secreta sobre a mente e a cativeiro babilônico: “Esse livro foi escrito
fazem voltar-se para a eternidade. Sob o por volta do ano 425 AEC., no mesmo
céu azul profundo, as cores fulgem com período de Esdras” (SDABC, 2012 p. 1123),
extraordinária riqueza __ o vermelho da sendo esse o último relato que temos
terra dos vinhedos, o verde delicado das antes dos evangelhos e da experiência
hortas, o ouro pálido da cevada madura, emblemática do Messias. Fato é que temos
o amarelo-tostado do deserto; e sob um período de aproximadamente de 400
o sol todas essas cores contrastantes anos sem nenhum relato bíblico para a
se fundem num só brilho quente, e na contextualização do Segundo Testamento.
sombra nos tons violeta do bronze. E para Por esse fato, nos aliamos à história afim
tornar ainda mais evidente a harmonia, de ter respaldo para a compreensão do
aqui e ali grupos de ciprestes escuros se
integram na paisagem; ou, de repente, a momento em que viveu Jesus. Ao montar
superfície trêmula dos olivais ressalta em o cenário é possível compreender o quão
azul (ROPS, 2008 p. 15). instável foi a época em que Jesus nasceu,
mas ao mesmo Paulo o denomina como a
plenitude dos tempos (Gl 4:4), visto que
Essa era a paisagem por onde Jesus esse é o período em que as possibilidades
andava, onde se desenrolou as histórias e de crescimento e difusão do evangelho
milagres do Segundo Testamento e onde o eram mais favorecedoras.
ser humano caído teve a maior de suas ex- Arle Cairns, comenta que os romanos
periências: em cima do monte do calvário, e gregos são esquecidos como agentes
o amor morreu, mas a boa notícia é que na- auxiliadores desse processo, mas que
quela mesma terra santa, Ele ressuscitou contribuíram muito para a preparação
nos garantindo a salvação. religiosa na ocasião da vinda de Cristo: “Os

71
TEOLOGIA em revista
gregos e romanos ajudaram a levar o 6) O evangelho para ser universal
desenvolvimento histórico até o ponto precisava de uma língua universal, para
em que Cristo pudesse exercer o impacto promover impacto em todo mundo
máximo sobre a história de uma forma até conhecido. O grego foi a herança linguística
entãoimpossível”(CAIRNS,2008,p.31).Em mais difundida nesses séculos, assim como
seu livro, Cairns (2008) enumera algumas o inglês é hoje;
razões pelas quais o Império Romano e o 7) A filosofia preparou o caminho
pensamento grego contribuíram para a para a vinda de Jesus, destruindo a ideia
expansão do cristianismo, sendo elas: politeísta das religiões Greco-romanas até
1) A lei de Roma, com sua ênfase na então existentes. Mas a filosofia não pôde
dignidade do indivíduo, e no direito deste suprir a necessidade espiritual das pessoas,
a justiça e à cidadania romana, agrupava que precisavam ter uma experiência real
homens de diferentes raças a uma única com o divino;
organização política, e isso facilitou a 8) A filosofia grega ainda chamando
difusão de um evangelho que pregava a a atenção do povo para uma realidade que
unidade de uma espécie pecadora, carente transcendia o mundo temporal e visível
de um Salvador; em que viviam.
2) A movimentação livre em torno Em meio a todo esse cenário
do mediterrâneo teria sido difícil se histórico, acontece o desenvolvimento
Pompeu não tivesse varrido os piratas dos evangelhos e da vida no Segundo
do Mediterrâneo e os soldados romanos Testamento. Todas essas mudanças
não mantivessem a paz nas estradas da comportamentais e influências externas
Ásia, África e Europa. Essa pacificação sobre Israel geram uma difusão
possibilitou as viagens missionárias dos heterogênea do pensamento e afetam tanto
primeiros cristãos, levando a mensagem religiosamente quanto politicamente a
em todo o mundo conhecido; terra e o povo, onde o Segundo Testamento
3) Os romanos criaram um ótimo seria desenvolvido.
sistema de estradas que iam do marco áureo
no fórum a todas as regiões do império. Um
estudo das viagens de Paulo mostra que ele
se serviu muito desse sistema viário para

4
atingir os cetros estratégicos do Império;
4) O exército que promovia a paz das
estradas e de todo império. Os soldados CONTEXTO
trabalhavam por turnos e rodízio, e muitos
deles converteram-se ao cristianismo SOCIOPOLÍTICO
e levaram o evangelho às regiões para
onde eram designados. É provável que o
E RELIGIOSO
evangelho tenha chegado precocemente A influência sociopolítica e religiosa
na Grã-Bretanha dessa forma; é facilmente evidenciada pela pluralidade
5) As conquistas romanas levaram do pensamento judaico da época de Cristo.
muitos povos a perder a fé em seus deuses, A disputa religiosa, política e econômica
uma vez que eles não foram capazes de que havia sido acionada por Antíoco IV e
protegê-los dos romanos. Esse vácuo continuada sob os hasmoneus foi apenas
espiritual deveria ser preenchido; exacerbada pela política romana. Não
constitui surpresa que a primeira resposta
ao censo romano de 6 EC. tenha sido uma
rebelião local liderada pelo fundador do
partido zelote, Judas, o Galileu. É contra

72
TEOLOGIA em revista
esse pano de fundo geral que devemos renta anos de luta dos sucessores após
entender a divisão que surgiu no tempo a morte de Alexandre (GRABBE, 2000;
dos hasmoneus entre um partido BORGER, 2003; SKARSAUNE, 2004).
sacerdotal, aristocrático, e um partido mais Na Babilônia, uma grande parte da
religiosamente exclusivo, devoto, popular: população falava aramaico, e a influência
os saduceus e os fariseus (WALKER, 2006, helenística era provavelmente menor do
p. 24-25). Para melhor compreensão das que em outros lugares, já que essa área
informações, descreveremos de forma foi tomada pelos partos após menos de
sucinta como aconteceu. um século de domínio grego. Mas muitos
Alexandre, o Grande teve uma judeus também viviam no Egito, na Síria
carreira breve como rei, mas deixou marcas ou na Ásia Menor, geralmente em cidades
na história que permanecem através dos de língua grega. Muitos perderam seus
séculos. Quando Alexandre morre em conhecimentos de hebraico e aramaico
323 AEC, suas conquistas se estendiam como, por exemplo, Filo, que claramente
por todo mediterrâneo; o rei dera início conhece pouco ou nenhum hebraico,
a uma revolução cultural na antiguidade certamente não o suficiente para usar
tanto no âmbito social quanto religioso a Bíblia no original. É por isso que a
(SCOTT, 2017; GUNDRY, 1985; TILLY, Septuaginta (LXX) foi originalmente
2004). Skarsaune (2004) bem salienta que criada: para fornecer uma Bíblia. os judeus
Alexandre e seus sucessores, sabiamente, de fala grega podiam entender (SCOTT,
não tentaram suprimir as divindades locais 2017; FISCHER, 2013; TILLY, 2004; ALVES,
nem tampouco o culto a elas prestado. Com 2012). Mesmo aqueles que mantiveram
o passar do tempo, o resultado foi um alto um conhecimento de hebraico e aramaico
grau de sincretismo religioso. As religiões não teriam escapado da forte influência
orientais foram helenizadas, porém a de seu ambiente de fala grega. Esequias
religião grega não ficou imune à influência Soares (2009) observa que a LXX foi usada
das demais culturas. na própria sinagoga o que diz muito.
No período grego, a cultura grega Sabemos dos judeus na diáspora
foi disseminada por meio das cidades de vários tipos de fontes. Primeiro vem
Helênicas: as pólis, que eram cidades alguma literatura dos judeus da diáspora,
espalhadas pelo império cujo um dos embora seja muitas vezes fragmentária.
objetivos era disseminar a cultura grega. Em segundo lugar, sabe-se da presença
Os gregos acreditavam que a vida nas pólis de comunidades judaicas em vários locais
era a única referência dentro da qual seria antigos por causa de inscrições, por
possível a vida humana. Os gregos tinham exemplo, de sinagogas. Apenas no Egito
sua cultura em um padrão muito elevado; alguns documentos escritos em papiros
aqueles que não haviam sido helenizados sobreviveram. Uma terceira fonte são as
eram considerados bárbaros. Todo o referências a comunidades judaicas em
judaísmo foi afetado pela cultura grega em fontes literárias, como Josefo e os escritores
maior ou menor medida; tanto os judeus greco-romanos.
da diáspora quanto os de Jerusalém. Os escritos dos judeus na diáspora
A helenização na diáspora foi um nem sempre podem ser separados
processo que ocorreu em todos os lugares facilmente dos judeus palestinos que
sob o domínio grego e até mesmo alcançou escolheram escrever em grego. No entanto,
áreas sobre as quais a lança de Alexandre é geralmente aceito que 2 Macabeus foi o
não se estendeu. Portanto, é complexa a epítome de uma obra maior escrita por
distinção feita entre os judeus na Palestina um judeu da diáspora, Jasão de Cirene.
e os outros sob o domínio grego; a maioria Filo de Alexandria deixou um material
dos judeus no mundo se viu em um dos extremamente valioso, não apenas
impérios gregos que se seguiram aos qua- sobre a interpretação judaica da Bíblia,

73
TEOLOGIA em revista

mas também muitas referências ca que Judá ficou livre da influência


passageiras à comunidade alexandrina. helênica, todavia ele deixou de observar
Outros escritos, por falantes de grego, o que foi destacado acima. É evidente
incluem a Sabedoria de Salomão, Oráculos que o povo de Judá foi menos afetado
Sibilinos 3-5, Testamento de Abraão e 4 que o da diáspora, mas como salientado
Macabeus. Alguns dos escritores judeus anteriormente não ficou totalmente ileso.
fragmentários em grego foram escritos O próprio Borger (2003) reconhece que os
na diáspora, embora alguns deles fossem soferim receberam grande influência do
provavelmente escritos na própria pensamento de Sócrates.
Palestina. A tradução de literatura de Encontra-se, então, uma situação
originais semíticos também parece ter se complicada. Todos os judeus na Palestina
tornado um grande esforço, provavelmente entraram em contato com a administração
principalmente na diáspora, produzindo grega, enquanto muitos aprenderam um
traduções gregas de Ben Sira, 1 e 2 Enoque, pouco de grego e alguns aprenderam
Tobias, Testamentos dos Doze Patriarcas, bem. Mas, além do modo de vida daqueles
Salmos de Salomão, sem mencionar a que eram cidadãos de uma cidade grega,
Bíblia. a influência grega era mais evidente
O que se encontra em toda essa nas áreas de literatura e arquitetura. A
literatura, a maior parte religiosa, é a influência na literatura poderia ser muito
adoção de dispositivos literários e modos de sutil, embora, como já foi notado, muitos
comunicação gregos. Isso não significa que escritos judaicos desse período foram
a religião em si tenha sido comprometida, escritos ou traduzidos para o grego.
mas a maneira de expressar essa religião Neste contexto de helenização
foi adaptada às características retóricas e aparece uma das figuras mais antissemitas
literárias do veículo em que foi transmitida, da história: Antíoco IV (175–164 AEC.). Os
a saber, a literatura grega (GRABBE, 2000). judeus podiam praticar sua religião sem
Enquanto na Palestina, assim como ser incomodados, mas isso mudou com
qualquer outro povo da região sírio- Antíoco IV, pois ele tenta uma investida
palestina, os judeus da palestina foram contra o Egito, mas por temor de Roma
influenciados pela helenização. Assim, retrocede e no seu retorno se volta contra
pode-se dizer que, desde algum tempo Jerusalém. Quando Antíoco IV obteve
bem no início do período grego, “todo posse de Jerusalém, muitos do partido
judaísmo deve realmente ser designado oposto foram mortos; e quando ele havia
‘judaísmo helenístico’ no sentido saqueado uma grande quantia, retornou a
estrito”. A administração grega alcançou Antioquia (JOSEPHUS, 1996, 253).
os níveis mais baixos da sociedade, e o Para apressar o andamento da
grego, a língua, era amplamente (embora helenização, Simeon bem Tobias depõem
não exclusivamente) a linguagem da o sumo sacerdote Onias III; colocando
administração. Um conhecimento do no seu lugar Jason. Um dos homens mais
grego era uma maneira de se elevar no agressivos da ala helenizadora. Este tinha
mundo e alguns, evidentemente, acharam o apoio de Antíoco IV. Com o trabalho
outros aspectos do estilo de vida grego e opressão desses homens em 172 AEC.
atrativos. Assim, com o passar do tempo, Jerusalém é proclamada uma pólis. Em
a identidade grega mudou de ênfase na 168 AEC. Antíoco tentou eliminar o culto
descendência étnica para uma de língua e ao Deus de Israel. O rei construiu um altar
educação (GRABBE, 2000, p. 612). Alguém de ídolos no altar de Deus, ele matou um
com um bom conhecimento da língua porco, e assim ofereceu sacrifício, nem de
e uma educação grega poderia atingir acordo com a lei, nem com o culto religioso
melhores posições sociais, mesmo que não judaico daquele país. Além de também os
nascesse grego. Hans Borger (2003) desta- compelir a abandonar a adoração que pa-

74
TEOLOGIA em revista
garam a seu próprio Deus e a adorar em que os emissários do rei chegam até
aqueles que ele considerava serem deuses; o velho sacerdote Matatias para que esse
e os fez construir templos e erguer altares ofereça um sacríficio de acordo com os
ídolos em todas as cidades e aldeias e requisitos do rei. Matatias se recusa, mas
oferecer suínos sobre eles todos os dias um judeu se atreveu a fazer o sacrifício. O
(JOSEFO, 1996; GUNDRY, 1985; SCOTT, velho sacerdote tomado de ira derrubou
2017). Os rolos da Lei foram queimados e o altar e assassinou o funcionário do rei
quem possuísse rolos da Torá era morto. que ordenava o sacrifício (1 Macabeus 2.
Mães que circuncidavam seus filhos eram 17 – 28). Matatias, após este feito, convida
assassinadas (1 Macabeus 1.44–64). todos os judeus tementes a Deus a fugirem
O antissemitismo era uma realidade para as montanhas com ele. Se esconderam
vivida e intensa para os judeus da época. em cavernas com seus filhos e esposas,
Aqueles que contrariavam as atitudes mas quando os generais do rei souberam
do rei eram açoitados com varas. A(s) disso, tomaram todas as forças que tinham
causa(s) desta tirania a dúvida continuará na cidadela de Jerusalém e perseguiram os
a ser debatida por muito tempo sem uma judeus no deserto; e, quando os alcançaram,
solução clara, mas não há dúvida de que em primeiro lugar, esforçaram-se para
o governo selêucida tentou proibir as persuadi-los a se arrependerem e a escolher
práticas religiosas judaicas na Palestina o que mais lhe servia de vantagem, sem
(não está claro que os judeus fora Judéia colocá-los na necessidade de usá-los de
foram afetadas). Apenas a revolta dos acordo com a lei da guerra; mas quando
Macabeus trouxe uma revogação do eles não obedeceram às suas convicções,
decreto. Necessário também é salientar mas continuaram a ter uma mentalidade
que alguns que estavam em Jerusalém diferente, lutaram contra eles no dia de
nesta época participaram do processo de sábado e os queimaram como estavam
helenização por livre vontade: nas cavernas, sem resistência, e sem tanto
quanto parando as entradas das cavernas.
Eles evitavam se defender naquele dia,
Por esses dias surgiram de Israel porque não estavam dispostos a romper a
indivíduos ignóbeis que seduziram a honra que eles deviam ao sábado, mesmo
muitos, dizendo-lhes: “Vamos! Aliemo- em tais aflições; porque a lei requeria que
nos às nações que t os cercam, pois, depois descansassem naquele dia (JOSEPHUS,
que delas nos separamos, sobrevieram- 1996, p. 260–276).
nos muitos males”. Agradou-lhes tal Havia cerca de três mil, com suas
arrazoado, e alguns de entre o povo
apressaram-se a ir ter com o rei, o qual lhes esposas e filhos, que foram sufocados e
deu autorização para observar as práticas morreram nessas cavernas; mas muitos
das nações [ou, dos gentios], conforme dos que escaparam juntaram-se a Matatias
os usos delas. Construíram, pois, um e o nomearam para ser seu governante
ginásio em Jerusalém, refizeram o seu (JOSEFO, 1996). Era o início da revolta
prepúcio, renegaram a aliança santa para Macabéia; Matatias sendo avançado
se associarem aos pagãos e venderam-se
para fazer o mal (1 Macabeus 1.11-15). em idade faleceu pouco depois do início
da revolta. Judas Macabeu, seu filho, se
tornou o líder da revolta. Judas expulsou
seus inimigos da terra que transgrediram
Muitos judeus permaneceram fiéis suas leis, e purificaram a terra de todas
ao Deus de Israel praticando seu culto as poluições que estavam nele. Em
devidamente. Os habitantes de Mondin 164 AEC, o templo foi reconsagrado,
que não haviam se submetido ao decreto do data posteriormente celebrada no
rei continuaram a oferecer seus sacrifícios. feriado de Hanuká (festa das luzes), no
O livro de 1 Macabeus registra o momento estabelecimento de um estado judaico par-

75
TEOLOGIA em revista
cialmente autônomo e reconhecido O “judaísmo” é apresentado como um
pelos sírios e, mais tarde, “em um estado ponto de união para a resistência aos sírios
judeu independente, que perdurou e para um levantamento da identidade
até a conquista romana em 63 AEC” nacional como povo da aliança do Senhor.
Dito de outra forma, “judaísmo” foi
(SKARSAUNE, 2004, p. 17). cunhado como um título para o defender
Skarsaune (2004, p. 17) faz um ao contrário do helenismo” (2Mc 4,13).
questionamento importante: “o que Em outras palavras, o termo “judaísmo”
estava em jogo nessa revolta?” A parece ter sido cunhado como meio para
dar enfoque à determinação dos patriotas.
resposta parece óbvia: A insurreição dos Não era, simplesmente, descrição neutra
Macabeus representava a autodefesa da religião dos judeus, como poderíamos
do judaísmo contra a “helenização” compreender hoje.
forçada implementada por Antíoco IV.
A revolta macabéia tornou explícita a
incompatibilidade entre judaísmo e Esse contexto histórico permite ao
helenismo” (BRUCE, 1988; GUNDRY, pesquisador concluir que judaísmo no pe-
1985; SATRAN, 2009; SKARSAUNE, ríodo do Segundo Templo era um estilo de
2004; STERN, 1996). vida e não um dogmatismo. Não só Dunn
Oskar Skarsaune (2004, p. 27) (2003) percebeu essa verdade como visto
destaca a importância da revolta acima, mas também Skarsaune (2004).
macabéia acentuando que se não fosse Após a morte de Judas Macabeus, todos
esta o judaísmo teria sido extinto. É no os ímpios e aqueles que transgrediram as
período dos Macabeus que surgem os leis de seus antepassados, ressurgiram na
termos helenismo e judaísmo. Esses Judéia, e cresceram sobre eles, e os afligi-
representavam dois estilos de vida ram de todos os lados. A fome também
diferentes. Com esse contexto em mente ajudou a iniquidade deles e afligiu o país,
não é difícil o leitor atento entender por até não poucos, que por falta de bens ne-
que alguns Judeus conseguiram incitar cessários, e porque eles não foram capazes
o povo contra Paulo tão rapidamente de suportar as misérias que tanto a fome
ao afirmarem que o apóstolo teria quanto seus inimigos trouxeram sobre o
introduzido um grego incircunciso no povo, abandonaram seu país e foram para
templo (At 21.28–29); sabendo do amor os macedônios.
do povo pelo templo e de toda história Josefo observa que nesta época Jôna-
usaram a boa fé do povo para prejudicar tas, irmão de Judas, passou a liderar o povo
Paulo. e um exército judeu. Com Jônatas no co-
Quando Paulo diz: “E, na minha mando foi possível expandir o território e
nação, quanto ao judaísmo, avantajava- conquistar a independência. “Jônatas fez
me a muitos da minha idade, sendo vários acordos e alianças com vários países,
extremamente zeloso das tradições de com Esparta e inclusive com a potência da
meus pais.” (Gl 1.14); ele queria observar época, a República Romana, para que fos-
que era extremamente preocupado com se reconhecida a situação de Israel como
a pureza de seu povo, ou seja, ele vivia de nação livre perante o império selêucida
acordo com a Torá e não queria ver o seu (1996, 13.1:1–3. Jônatas prosseguiu com a
povo imerso no helenismo. James Dunn revolta, até que no ano de 153 AEC, ganha
(2003, p. 401) observa acertadamente: o cargo de sacerdote de Israel por decreto
de Alexandre Balas, rei selêucida”. Em-
bora a família dos hasmoneus não fosse
da linhagem de Zadoque permaneceram

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TEOLOGIA em revista
sacerdotes até o período da ocupação ro- que Moisés também teria recebido no Si-
mana em 63 AEC. (GUNDRY, 1985, p. 9–10; nai (LENHARDT, 1997). O governo has-
SCOTT, 2017, p. 86–87 SKARSAUNE, 2004, moneus sob a direção de João Hircano se
p. 42). A primeira vez em que grupos como tornara corrompido, assim como o sacer-
fariseus e saduceus são mencionados é no dócio. Hircano precisava do voto do siné-
período em que Jônatas governava ao que drio para suas atividades políticas e como
parece esses partidos já existiam anterior- não possuía o apoio dos fariseus devido
mente e provavelmente tiveram um papel sua má gestão, os destituiu colocando em
no combate ao helenismo (JOSEPHUS, seu lugar os saduceus que concordavam
1996, 13:171–173; SALDARINI, 2001, p. 4; com sua política - nesse contexto histórico
SCOTT, 2017, 87; BULL, 2009, p. 215). é que, possivelmente, surgiu a comunida-
João Hircano (134 – 104 AEC.) é um de de Qumran um grupo que se afastou da
nome importante na dinastia hasmonéia, sociedade de então por conta das corrup-
pois, durante seu governo algumas contro- ções religiosas e sociais (NICKELSBURG,
vérsias marcaram o judaísmo do Segundo 2011, p. 240–241).
Templo. Controvérsias que talvez tenham No governo de Alexandra, os fariseus
dado origem a comunidade de Qumran; retomam o sinédrio e conseguem exercer
Hircano deu início a uma política de con- um nível de influência significativo e se
quista, usando mercenários helenistas, tornaram inimigos da dinastia hamonéia,
bem como soldados judeus. Anexou áreas por esse motivo surge a forte inimizade
a leste do Jordão, a idumeus ao sul e as ter- entre fariseus e saduceus. O maior líder
ras samaritanas até Citópolis (Bete-Seã), fariseu da época, Simeon ben Shetach,
ao norte. Os idumeus foram forçados a era irmão de Alexandra. Após a morte de
aceitar a circuncisão e a viver de acordo Alexandra em 67 AEC irmãos Hircano II e
com a lei judaica. Hircano destruiu o tem- Aristóbulo lutavam pelo direito do trono
plo samaritano no monte Gerizim em 108 quando em 63 AEC três delegações judias
e, posteriormente, a cidade de Samaria. buscam a Pompeu, general romano em
Josefo (JOSEPHUS, 1996, 10: 284 – 298) Damasco. Duas das delegações reivindi-
inclui uma história na qual João Hircano cavam a ajuda de Pompeu para resolver o
deixa de lado a lealdade aos fariseus e pas- problema dos irmãos. A terceira delegação
sa a ser leal aos saduceus. No início, Hirca- dizia representar o povo (BORGER, 2003;
no favoreceu os fariseus, mas os rejeitou BULL, 2009; SKARSAUNE, 2004; SCOTT,
para apoiar os saduceus. Sob a liderança 2017). Josefo (1996) registra a queixa dessa
de Jason os escribas foram removidos de terceira:
seus cargos, porém com a revolta de Judas
Macabeus esses retomaram suas funções [...] Damasco; e lá foi que ele ouviu as causas
e nesse período os chassidim ou Assideu dos judeus, e de seus governantes Hircano
reacenderam aos seus lugares de profes- e Aristóbulo, que estavam em diferença
uns com os outros, como também da nação
sores da Lei (Torá) sob o nome de fariseus contra os dois, que não desejavam estar sob
(MANSOOR, 1945; PUIG, 2006; SCHÜRER, governo real. porque a forma de governo
1985; VERMES, 1997). que receberam de seus antepassados era a
de sujeição aos sacerdotes daquele Deus a
Os fariseus queriam que a Lei fosse a quem eles adoravam; e [eles reclamaram],
norma do povo em todas as áreas da vida, que embora esses dois fossem a posteridade
isto é, religiosa, ritual, econômica e social. dos sacerdotes, ainda assim eles procuraram
mudar o governo de sua nação para outra
Os fariseus criam tanto na lei escrita por forma, a fim de escravizá-los (JOSEFO, 1996,
Moisés como na oral (Torá she – be’ alpé) 14:41-42).

77
TEOLOGIA em revista

No outono de 63 AEC, Pompeu to- tanos já foram tratados de forma


mou Jerusalém; sob o governo do Roma- significativa acima esta parte não os
no o povo obteve paz por um período. Os incluirá, mas reconhece sua importância
Romanos respeitavam o judaísmo por sua na época de Jesus. A seguir trataremos
antiguidade e admiravam a religião judai- dos seguintes grupos Escribas, Fariseus,
ca. Durante algum tempo o povo viveu em Saduceus e Essênios (ou Zadoquitas):
harmonia com os Romanos, mas em 37 1) Escribas: Quando a religião judaica
AEC, chega ao trono Herodes, o Grande. enfrentou uma das maiores crises nos
Com o governo de Herodes a “lua de séculos VI e IV AEC, houve a necessidade de
mel” entre judeus e Romanos acaba; He- se reinventar para sobreviver. Uma figura
rodes foi um dos maiores helenizantes do fundamental nesse contexto foi Esdras,
povo. Na estreia de seu governo houve a or- o sacerdote, escriba e estudioso (7:11).
dem a morte de quarenta e cinco fariseus Ele é descrito na tradição como aquele
do sinédrio os acusando de sentimento que reestabeleceu a religião judaica. No
pró-hasmoneus. O povo também viven- mundo antigo quase toda corte tinha seus
ciou, neste período, um avanço significati- escribas que eram, sobretudo, copistas. No
vo na segurança pública e nas construções. entanto, os escribas em Israel, após Esdras,
Herodes construiu cidades, aquedutos, passaram a ser vistos como mestres da Lei.
pontes, estradas, teatros, ginásios entre Isso se deve ao fato de seu conhecimento
outros. Além de ampliar generosamente o sobre ela; no processo de copiá-la os
templo de Jerusalém, porém em seu des- escribas se tornaram peritos. No início
conhecimento da religião judaica colocou os escribas tinham um lugar ao lado
uma águia romana sobre os portões; seu fa- dos sacerdotes e com o tempo muitos se
lecimento se deu em 4 AEC por uma doen- tornaram sacerdotes. Quando o sacerdócio
ça no intestino (GUNDRY, 1985; BORGER, se deixou levar pelo helenismo os escribas
2003; SKARSAUNE, 2004; TILLY, 2004). adquiriram um lugar de destaque na
Estes séculos de guerras e debates vida do povo; como conhecedores da lei a
deram a moldura ao judaísmo do Segun- ensinavam para a população de forma que
do Templo no qual tanto a Jesus quanto os lhes era possível cumprir na vida cotidiana.
apóstolos viveram. A compreensão desse É comum imaginar que todos os escribas
contexto pode ajudar o leitor do Segun- faziam parte de um grupo e tinham em
do Testamento a entender, por exemplo, comum a mesma ideologia, porém não era
porque os judeus do período de Jesus não assim. Havia escribas que eram fariseus
se relacionavam com os samaritanos, por- (Lc 5.30; Mc 2. 16) e outros que estavam
que tinham tanta resistência aos gregos e alinhados com os sacerdotes (Mt 2.4;
sua cultura ou porque fariseus e saduceus 20.18). É evidente que na época de Jesus
tinham um relacionamento tenso. Jesus os escribas estavam afilhados a diversos
de Nazaré estava dentro deste contexto e partidos existentes. Alguns dos escribas
como religioso se envolveu em debates re- mais famosos foram Hillel e Shammai.
ligiosos que se formaram no decorrer de Estes eram fariseus contemporâneos de
séculos. Jesus de Nazaré (SALDARINI, 2001; SCOTT,
O judaísmo do Segundo Templo 2017).
contava com a existência de mais de vinte 2) Fariseus: Como visto anteriormen-
cinco grupos religiosos; nenhum deles te, são mencionados pela primeira vez no
tinha o monopólio e viviam em constante tempo em que Jônatas governava, isto é,
debate (BOYARIN, 1999; SKARSAUNE, 152 AEC. Provavelmente surgiram um pou-
2004; SALDARINI, 2001). Como os samari- co antes, porém não é possível afirmar se-

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TEOLOGIA em revista

guramente o período exato. “Os fariseus [E] O “arrogante fariseu” diz: “Espera por
eram um grupo leigo, heterogêneo e pie- mim. Eu estou [ocupado usando meu tem-
doso. Falavam a língua do povo, iden- po] para cumprir os mandamentos! [Eu
tificavam – se com suas vicissitudes e não tenho tempo para você.]”
aspirações” (MIRANDA; MALCA, 2001; [F] O “contador [Fariseu]” paga cada dívi-
SCHÜRER, 1985). O Segundo Testamento da [isto é, pecado] executando um manda-
registra alguns debates entre Jesus e alguns mento [boa ação].
fariseus, isso fez com que durante séculos [G] O “fariseu” parcimonioso diz: “Do pou-
cristãos tivessem a percepção dos fariseus co que tenho, o que posso reservar para
como hipócritas. O historiador George executar mandamentos?”
Knight (2016) bem observa que os cris- [H] O “pagando [fariseu]” diz: “Diga-me
tãos precisam rever seus conceitos sobre que pecado cometi e executarei um man-
os fariseus pois não é possível delimitar a damento para compensá-lo”. [esses cinco
religião farisaica com base unicamente no tipos são modelos negativos, pomposos e
Segundo Testamento. Este não se propõe a ostensivos.]
fazer uma análise histórica do farisaísmo, [I] O temente [Fariseu] Jó. O “amoroso”
pelo contrário os escritores descrevem al- [fariseu emula] Abraão. E ninguém é mais
guns debates entre Jesus e os fariseus. amado por Deus do que o “amoroso” [fari-
Como em todas as religiões, comu- seu que emula] Abraão.
nidades e sociedades, nem todos os fari- [J] Abraão, nosso antepassado, transfor-
seus viviam de acordo com seus elevados mou até mesmo o desejo maligno [dentro
princípios, conforme relatos da Mishiná e dele] em bem. Como está escrito: “E en-
do próprio Talmud (MIRANDA; MALCA, contraste o seu coração (sugerindo mais de
2001). O fato de Jesus debater e até cha- um) fiel diante de ti” (Ne 9: 8). [ambos os
mar alguns fariseus de hipócritas causa seus desejos de corações eram fiéis.]
augirias em algumas pessoas; é necessário [K] disse R. Aha, “Ele fez um acordo [com
salientar que os fariseus debatiam entre seu desejo maligno para que ele pudesse
si e se auto criticavam. Algumas referên- controlá-lo. Como diz: “E fiz com ele o pac-
cias do Segundo Testamento os destacam to etc.” (J. BERAKOT, 9.5).
como “hipócritas” ou “descendentes” de
víboras” (Mateus 3: 7; Lucas 18: 9 etc.) são
aplicáveis para todo o grupo. No entan- A crítica à hipocrisia não se restringe a
to, os líderes estavam bem conscientes da Jesus, mas também parte dos próprios fari-
presença do insincero entre seus números, seus. Assim, taxar todos os fariseus como hi-
descritos pelos próprios fariseus no Tal- pócritas é um engano; os fariseus que foram
mud como “pontos doloridos” ou “Pragas advertidos por Cristo e por outros fariseus
do partido farisaico” (b. SOTA 3: 4 e 22b). não são a medida da religião farisaica, ou
O Talmud registra ainda outras críticas de seja, não são a base para descrever o farisaís-
fariseus feitas a fariseus de hipocrisia: mo. Brad Young (1995, p. 245-249) bem ob-
serva que o estereótipo negativo dos fariseus
[C] há sete tipos de fariseus [p’rushim]: o construído ao decorrer da história faz com
vistoso [Fariseu], o altruísta [Fariseu], o que os cristãos muitas vezes interpretem o
guarda-livros [fariseu], o lavrador [o fa- texto do Segundo Testamento de forma er-
riseu], o [fariseu], o temente [fariseu]; rônea. Acadêmicos, depois de tomar conhe-
amando [fariseu]. cimento do farisaísmo como realmente ele
[D] O “vistoso [fariseu]” carrega suas boas era, tem chegado à conclusão de que o pró-
ações no ombro [para mostrá-las]. prio Cristo era um fariseu, um dos temen-

79
TEOLOGIA em revista

tes a Deus, pois como Skarsaune (2004) procuraram trazer Deus para o homem.
observa os característicos debates entre Je- Seu Deus era antropomórfico e a adoração
sus e fariseus têm uma característica intra- oferecida a ele era como uma homenagem
farisaica. O evangelho de Mateus (23:3) in- paga a um rei ou governante humano. Os
dica que para Jesus a mensagem farisaica fariseus, por outro lado, procuraram elevar
não era um problema; o problema estava o homem a alturas divinas e aproximá-lo a
na hipocrisia de alguns fariseus. O farisa- um Deus espiritual e transcendente. Os sa-
ísmo era um partido complexo de muitas duceus, portanto, rejeitaram o sobrenatu-
opiniões e, portanto, poderia compreender ral farisaico, alegando que eles não tinham
as opiniões de Jesus (SKARSAUNE, 2004; base na Torá. Os saduceus também nega-
BRONSTEIN, 2003). ram a doutrina da ressurreição do corpo;
Os fariseus foram um grupo muito historicamente, os saduceus ficaram sob a
importante para o judaísmo do Segundo influência do Helenismo e depois estavam
Templo, pois eles mantiveram o judaísmo em boa posição com os governantes roma-
vivo após a destruição do templo em 70 EC. nos, embora impopular com as pessoas
As várias seitas foram desaparecendo com comuns, de quem eles mantiveram-se dis-
o tempo, mas o farisaísmo continuou e deu tantes. A hierarquia dos saduceus teve sua
origem ao judaísmo rabínico (MIRANDA; fortaleza no Templo, e foi apenas durante
MALCA, 2001). as duas últimas décadas de existência do
3) Saduceus: Os saduceus eram um Templo que os fariseus finalmente ganha-
importante grupo na época de Jesus, po- ram controle. Desde que todo o poder e ra-
rém pouco se sabe sobre este grupo. Como zão de ser dos saduceus estavam ligados ao
visto anteriormente, os saduceus nasce- culto do Templo, o grupo deixou de existir
ram no meio da grande crise resultante do após a destruição do Templo em 70 AEC.
programa de helenização de Antíoco IV e (MANSOOR, 1945; PUIG, 2006).
da reação que protagonizou o movimen- 4) Essênios: Os Essênios são citados
to dos chassidim. Os saduceus, por outro por Flavio Josefo, Filo de Alexandria entre
lado, pretendiam assimilar a herança dos outros; geralmente, se identifica esse gru-
sadoquitas, ou seja, das famílias sacerdo- po com a comunidade de Qumran. É difícil
tais entre as quais era eleito o sumo-sacer- determinar com segurança que a comuni-
dote. Os saduceus cuidavam do serviço do dade de Qumran e os Essênios são o mes-
templo. As crenças dos saduceus estavam mo grupo por existirem algumas desseme-
em oposição a dos fariseus até o tempo da lhanças. Uma dessas dessemelhanças diz
destruição de Jerusalém em 70 EC. A prin- respeito ao celibatário; tem se defendido
cipal diferença entre os fariseus e os sadu- que os Essênios eram celibatários quando
ceus era em relação à Torá. A supremacia na verdade a arqueologia demonstrou que
da Torá foi reconhecida por ambas as par- a seita de Qumran não se abstinha do casa-
tes. Contudo, os fariseus designaram para mento, pelo menos não totalmente.
a Lei Oral um lugar de autoridade lado a A erudita israelense Rachel Elior
lado com a Torá escrita e determinada sua (2020), observa que os chamados Manus-
interpretação, enquanto os saduceus se re- critos do Mar Morto têm características
cusavam a aceitar qualquer preceito como sacerdotais e de fato os portadores desses
ligação, a menos que fosse baseado dire- textos se identificavam como “filhos de
tamente na Torá. A luta teológica entre as Zadoque”. Não há menção nos manuscritos
duas partes, foi na verdade, uma disputa aos supostos Essênios de Josefo. Elior (2012)
entre dois conceitos de Deus. Os saduceus

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TEOLOGIA em revista
após mais de uma década de pesquisa con- Em apoio a este tema Josefo frequente-
cluiu que os manuscritos pertenciam aos mente emprega uma linguagem espar-
Zadoquitas. Esses parecem ser um grupo tana de treinamento, disciplina, ordem,
de sacerdotes que decepcionados com a coragem, resistência, destreza viril e des-
política dos governantes hamoneus deci- prezo pela morte; esta última aparecen-
diu ir para o deserto. Elior (2012) destaca: do com mais frequência na guerra do que
em qualquer outro texto antigo conhe-
cido. Passagem muito discutida de Jose-
Em contradição a essa luta sacerdotal de- fo sobre os essênios, “Legião” (2.119-61)
monstrada nos pergaminhos, nenhuma tem a maior concentração de linguagem
identidade sacerdotal explícita é mencio- espartana em seu corpus. Sua seção mais
nada por Fílon, Plínio e Josefo, nenhuma longa (e menos discutida) diz respei-
aliança é mencionada, nenhum assun- to ao desprezo pela morte: “Sorriem em
to de calendário é discutido, nenhuma suas agonias e zombam de quem estava
lei sacerdotal referente ao Templo e os infligindo as torturas, eles costumavam
ritos dos sacrifícios são discutidos. re- despedir alegremente de suas almas”
lógios sacerdotais e nenhuma liturgia (2.151–58). O tema continua na Guerra,
angelical-sacerdotal são mencionados e enquanto observamos pessoas comuns
Jerusalém, a cidade escolhida de Deus, desnudando seus pescoços à espada, em
um tema central em muitos dos perga- vez de violar a lei ancestral (2.174, 196).
minhos, não está associada aos essênios. Vespasiano fica maravilhado com a cora-
Em outras palavras, nenhum assunto gem de um judeu capturado que, segu-
que é atestado ricamente nos Manuscri- rando sob todo tipo de tortura, finalmen-
tos do Mar Morto é descrito em qualquer te “encontrou a morte com um sorriso”
relação significativa com os essênios. em uma cruz (3.320–21).

Para Steve Mason (2007), renomado es-


pecialista em Josefo, os Essênios seriam
uma criação literária do escritor. Mason
(2007) argumenta que o texto mais lon-
go sobre os supostos Essênios está em
Guerras Judaicas uma obra escrita no
período Flaviano, já mencionado ante-
riormente. Após a destruição, no ano 70
EC. os judeus estavam sendo humilha-
dos pelos romanos, eles não tinham ne- Figura 1 - Moeda onde a Judéia é representada como uma mulher
nhum crédito. Josefo ao escrever pinta confusa ou um homem franzino, indefeso, em contraste com o
Romano alto e confiante.
os Essênios como um modelo de socie- Fonte: MASON, 2016, p. 103.
dade judaica e os descreve com carac-
terísticas gregas. Os Essênios de Josefo
são verdadeiros espartanos. O objetivo Assim, os Essênios de Josefo não são
de Josefo ao fazer isso, segundo Mason descritos como não tendo algum tipo de
(2007), é reestabelecer a dignidade ju- interesse em questões sacerdotais, ao con-
daica entre os Romanos. Steve Mason trário dos Zadoquitas de Qumrã, que eram
(2016, 104) salienta que: extremamente preocupados com essas.

81
TEOLOGIA em revista

Tais discrepâncias, no que tange ao O desenvolvimento histórico do Ju-


conteúdo dos manuscritos e a arqueológica, daísmo do Segundo Templo como visto
indicaram que a seita do Mar Morto não acima é de suma importância para o perí-
eram os supostos Essênios. Elior (2002) odo do Segundo Testamento, pois é nesse
põe em dúvida a existência de tal grupo e contexto histórico que os debates se de-
o estudo de Mason (2007) indica a mesma senvolvem. Uma característica marcan-
conclusão. Portanto, não é estranho te do judaísmo eram os debates infindos;
que não exista referência aos essênios diversos acadêmicos perceberam o caráter
na literatura rabínica, ou no Segundo
Testamento. múltiplo do judaísmo. Na época de Jesus de
Dados arqueológicos datam o Nazaré existiam “judaísmos” e não “juda-
surgimento dos Zadoquitas por volta de ísmo”; não existia um judaísmo dogmático
150 a 140 AEC, período que corrobora com muito pelo contrário, havia muitas visões
a sugestão vista de que a comunidade de diferentes sobre diversos temas. Como
Qumrã tenha surgido no período de João bem salientou Oskar Skarsaune (2004, p.
Hircano. Essa comunidade era formada 100 – 101) o “judaísmo” era mais um esti-
por sacerdotes Zadoquitas e leigos. O lo de vida do que uma religião dogmática.
Documento de Damasco descoberto na Os principais grupos escribas, fariseus,
Geniza do Cairo e publicado em 1910 é uma saduceus, zelotes entre outros viviam em
obra fundamental para o conhecimento constante debate e isso era natural para a
desta comunidade (VERMES, 1996; época” E continua nos relembrando que
SKARSAUNE, 2004; SCOTT, 2017; “embora existissem debates teológicos no
MANSOOR, 1945). período do Segundo Templo, a religião era
5) Zelotes: os Zelotes era o partido
mais enérgico existente em Israel. Flávio mais ortopraxia (comportamento e ações)
Josefo os identifica como a “quarta do que ortodoxa (sã doutrina); essa carac-
filosofia”, pois eles apoiavam a ação militar terística é significativa para o retrato “dos
contra os Romanos como resistência judaísmos”.
política e religiosa, com o objetivo de O estudante que desconhece esse
restaurar o estado independente de Israel. contexto pode ser tentado a pensar que Je-
Essa resistência fomenta a grande primeira sus e seus discípulos estavam rompendo
guerra dos Judeus com os Romanos (66- com o judaísmo ao discordar de determi-
73 EC), a guerra dos Macabeus. Toda nadas visões teológicas da época. Fato é
essa divergência sociopolítica e religiosa que isso não aconteceu, tanto Jesus quanto
permeava o pensamento judaico da época, seus discípulos estavam envolvidos em de-
gerando inúmeros conflitos de opinião e bates assim como a grande maioria dos ju-
interesse. Nesse contexto, Jesus aparece deus religiosos da época. Os especialistas
com uma mensagem de restauração em Segundo Testamento Wilson Paroschi
espiritual e restauração da fé. A maior parte
dos judeus aguardavam uma restauração e James D. Dunn bem notaram isso ao des-
política, enquanto muitos outros já não tacar que a igreja apostólica nunca pensou
sabiam mais o que esperar, visto que a fé ser algo a parte do judaísmo; a igreja pen-
e o pensamento estavam distorcidos e sava estar vivendo o clímax do judaísmo
segmentados. (PAROSCHI, 2011, p. 353; DUNN, 2009, p.
360–365). Por cinco décadas após a ascen-
são de Jesus de Nazaré a igreja viveu como
5 CONSIDERAÇÕES um grupo que compunha o judaísmo, foi
só após a destruição do templo e o início
FINAIS do judaísmo rabínico que a separação co-
meçou (PAROSCHI, 2011, p. 360).

82
TEOLOGIA em revista

Essa separação foi gradativa e ga-


nhou mais força em 135 d.C. com a revol-
ta de Bar Kokhba. Tal revolucionário ale-
gava ser o messias, como os cristão não o
apoiaram, a divisão aumentou significati-
vamente nessa época. No segundo século
essa divisão havia ganhado uma força sin-
gular e teve seu ápice no terceiro e quarto
século. O cenário histórico do primeiro sé-
culo foi importante para o crescimento dos
seguidores de Jesus; a multiplicidade de
judaísmos permitiu que esse novo grupo
crescesse significativamente. O judaísmo
era respeitado no império Romano por sua
antiguidade, embora existissem algumas
desavenças, como a liberdade de culto, di-
ferente de outros grupos. Essa liberdade
garantiu aos seguidores de Jesus liberda-
de de expressão por algum tempo o que
foi fundamental para as proporções que
esse grupo tomou. Judaísmo e Cristianis-
mo parecem ser religiões irmãs; irmãs que
estão brigadas. Tanto o judaísmo rabínico
quanto o Cristianismo têm suas origens
no judaísmo do Segundo Templo. Nem as
perseguições da Idade Média ou Luterana
podem esconder essa verdade; o caminho
para ambos os grupos é o estudo acurado
das Escrituras e da história.

83
TEOLOGIA em revista

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86
TEOLOGIA em revista

A RELAÇÃO CRISTO-CULTURA:
UMA CLASSIFICAÇÃO TEOLÓGICA PARA A IGREJA ADVENTISTA
DO SÉTIMO DIA A PARTIR DA TIPOLOGIA NIEBUHRIANA

THE CHRIST-CULTURE RELATION: A THEOLOGICAL CLAS-


SIFICATION FOR THE SEVENTH-DAY ADVENTIST CHURCH
FROM THE NIEBURIAN TIPOLOGY
Hanny Brcic Guzman 1

Doutora em Ministério
Leonardo Henrique Arruda de Souza
2

Teólogo

1
Doutora em Ministério (Andrews University); Licenciatura em Pedagogia (Unasp-EC),
docente da Faculdade Adventista do Paraná. Contato: hanny.brcic@gmail.com

2
Bacharel em Teologia (Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia, Ivatuba-
PR). Contato: leonardo.h.a.souza@gmail.com

87
TEOLOGIA em revista

Resumo
O presente trabalho busca abordar a relação existente entre
Cristo e cultura no pensamento de H. Richard Niebuhr e, a partir
desse referencial, identificar uma postura ético-teológica da
Igreja Adventista do Sétimo Dia nos encontros entre sua missão
e a cultura. Para tanto é feita uma contextualização histórica do
pensamento de H. R. Niebuhr, uma descrição de seu livro Cristo
e Cultura e, por fim, uma aplicação da tipologia niebuhriana ao
pensamento adventista contido em publicações oficiais da Igreja.
Sendo assim, faz-se uso de metodologia teológica, dialogando
com contextualização histórica e implicações missiológicas.
Ao final da pesquisa, conclui-se que os tipos niebuhrianos que
poderiam descrever a postura adventista do sétimo dia diante
dos encontros com a cultura são os tipos Cristo-e-cultura-em-
paradoxo e Cristo-transformador-da-cultura.

Palavras-chave: H. Richard Niebuhr. Cristo e Cultura.


Ética Cristã. Missiologia Adventista.

Abstract:
The present paper aims to address the existing relation
between Christ and culture in the thought of H. Richard
Niebuhr and, based on this framework, to identify an ethical-
theological posture of the Seventh-day Adventist Church in
the encounters between its mission and culture. For that, a
historical contextualization of the thought of H. R. Niebuhr
is made, also a description of his book Christ and culture
and, finally, an application of the Niebuhrian typology to the
Adventist thought contained in official Church publications.
Thus, theological methodology is used, dialoguing with
historical contextualization and missiological implications.
At the end of the research, it is concluded that the Niebuhrian
types that could describe the Seventh-day Adventist posture
in the face of its encounters with culture are the Christ-and-
culture-in-paradox and Christ-transformer-of-culture types.

Keywords: H. Richard Niebuhr. Christ and Culture. Chris-


tian Ethics. Adventist Missiology.

88
TEOLOGIA em revista

1 com a cultura que ainda hoje permanece


relevante no meio acadêmico (NOVAES,
2016; CARSON, 2012; YEAGER, 2005).
A partir da tipologia niebuhriana é
Introdução possível identificar uma postura ético-teo-
lógica em indivíduos e comunidades dian-
Desde muito cedo na história ecle- te do problema Cristo-cultura, o que, por
siástica cristã, a noção de “nação santa” sua vez, contribui para definir uma práti-
e “reino de sacerdotes” (Ex 19:6; 1Pe 2:9) ca missiológica coerente com a respectiva
unida à noção de levar o Evangelho a “cada compreensão da relação entre Cristo e a
nação, e tribo, e língua e povo” (Ap 14:6), cultura.
gerou o problema existencial da igreja de Sendo assim, o objetivo deste artigo é
ter que viver ao mesmo tempo no Reino de utilizar a tipologia niebuhriana como filtro
Deus e no Reino dos homens. O problema para identificar a postura ético-teológica
da dupla cidadania e natureza gera inevi- da Igreja Adventista do Sétimo Dia, ava-
tavelmente tensão existencial eclesiásti- liando e categorizando sua compreensão
ca em decorrência do crente possuir uma missiológica em relação a correlação en-
natureza espiritual santa e uma natureza tre a mensagem do evangelho e o contexto
carnal profana, além de ser chamado para cultural. Ao longo do artigo a Igreja Adven-
lidar com questões tanto espirituais e san- tista do Sétimo Dia será chamada de IASD,
tas quanto materiais e cotidianas. Dessa enquanto seus adeptos, os adventistas do
forma, ao mesmo tempo que, como Igreja sétimo dia, serão chamados de ASD.
ou corpo de Cristo, o indivíduo participa de
uma realidade de natureza eterna e santa,
como ser humano ele participa de uma re-
alidade temporal e secular que é permeada
1.1 Problema e Premissa
por diversas culturas e questões sociais. Em toda cristandade, inclusive na
Nesse contexto, surge, naturalmente, IASD, existem embates e conflitos motiva-
inúmeras questões, que em última instân- dos por diferenças culturais. Por diversas
cia buscam entender como Cristo se rela- vezes elementos culturais são considera-
ciona com a cultura. Tais questões são de dos como princípios eternos, fazendo com
extrema importância para a missiologia que qualquer diferença cultural seja consi-
cristã, uma vez que elas definem a atitude derada uma perversão do Evangelho. Com
que o cristão terá em relação ao não-cris- isso a expansão do Reino de Deus a todas
tão e, portanto, a forma de alcança-lo com as culturas é prejudicada e a evangelização
o Evangelho. Ao longo dos anos diversas se torna em colonização (NASCIMENTO,
respostas cristãs foram dadas a essas ques- 2015). Por outro lado, existem questões
tões, porém nunca esgotando o tema ou culturais que são conflitantes com o Evan-
chegando a uma conclusão definitiva e in- gelho e não podem ser validadas por ele,
questionável. ameaçando, assim, a integridade da men-
Um dos grandes nomes que estudou sagem bíblica caso tais questões sejam
essas relações entre Cristo e a cultura foi H. conservadas.
Richard Niebuhr, teólogo e eticista cristão Ao abordar o problema Cristo-cultu-
que se propôs a fazer uma avaliação das ra, Niebuhr busca entender como o cris-
respostas cristãs sobre esse tema em seu tianismo respondeu a esse encontro de au-
livro Cristo e Cultura, publicado em 1951. toridades, a saber, a autoridade de Cristo
Niebuhr desenvolveu uma tipologia mui- e a autoridade da cultura, através de uma
to útil para a classificação geral das com- tipologia elaborada via recorte seletivo na
preensões cristãs sobre a relação de Cristo teologia histórica. Com essa tipologia é

89
TEOLOGIA em revista

possível avaliar a postura ético-teológica anos lecionando também escreveu di-


da IASD e identificar sua relação com a cul- versos livros (NOVAES, 2016). É possível no-
tura. tar uma progressão gradativa em sua obra,
Portanto, o problema que o presente sendo que ele migra de uma abordagem
artigo abordará é o problema da identifi- mais sociológica presente em seus primei-
cação de uma identidade ético-teológica ros livros para uma abordagem mais teoló-
adventista que permita uma relação entre gica nos últimos. A obra em questão neste
Igreja e sociedade/cultura que seja saudá- artigo, Cristo e Cultura, pertence ao grupo
vel e fiel às Escrituras. de livros com abordagem mais teológica.
Para uma melhor compreensão da Niebuhr se destacou pela habilidade
análise em questão, será dado um breve que possuía em dialogar com diferentes li-
panorama de quem foi H. Richard Niebuhr nhas teológicas. Nota-se na totalidade de
e qual era seu entendimento sobre a rela- sua obra influencias do puritanismo, pie-
ção Cristo-cultura, para então ser avaliada tismo, da teologia liberal alemã, da neo-
como sua tipologia se aplicaria à realidade -ortodoxia, do pragmatismo da chamada
da IASD. “Escola de Chicago”, do pós-liberalismo
da chamada “Escola de Yale”, do realismo
cristão, do relativismo histórico de Troelts-
ch e do monoteísmo radical, esse último

2 HELMUT
sendo uma concepção teológica própria de
Richard Niebuhr. Essa grande envergadura
teológica foi fundamental para a escrita de
Cristo e Cultura.
RICHARD NIEBUHR Por sua vez, a publicação do referido
livro se deu num contexto sociocultural que
H. Richard Niebuhr foi um importan- envolvia um forte nacionalismo norte-ame-
te teólogo e eticista do séc. XX. Foi pionei- ricano com o pano de fundo da Guerra Fria
ro no uso da sociologia da religião para o num período pós-guerra-mundial e pós-
contexto teológico norte-americano e se -grande-depressão. Niebuhr chega a men-
tornou conhecido por estabelecer diálogo cionar que se desenvolvia “debate multifor-
entre a teologia protestante alemã e a te- me acerca das relações entre cristianismo e
ologia protestante norte-americana, além civilização” (NIEBUHR, 1967, p. 21).
de ser o responsável por introduzir o pen- Dois grandes grupos estavam se le-
samento de Ernst Troeltsch nos Estados vantando. De um lado havia os liberais se-
Unidos. Sua obra se mantém relevante culares e culturalistas, que consideravam
para os campos da ética e missiologia cris- a civilização como o valor supremo da hu-
tã até os dias atuais (NOVAES, 2016; CAR- manidade e acreditavam que o liberalismo
SON, 2012; YEAGER, 2005). secular científico era a única maneira de
Richard Niebuhr possuía formação alcançar uma civilização livre de preconcei-
na área de Teologia pelo Eden Theological to e intolerância. Já do outro lado estavam
Seminary, mestrado em história pela Wa- figuras influentes, como o próprio Niebuhr,
shignton University e obteve seu Ph.D pela que defendiam que no cristianismo e na tra-
Yale University, com uma tese sobre a “Fi- dição judaico-cristã se encontravam as me-
losofia da Religião de Ernst Troeltsch”. Ao lhores bases para “uma verdadeira civiliza-
longo de sua experiência profissional exer- ção liberal e tolerante” (MARSDEN, 1999, p.
ceu o ministério pastoral em St. Louis, foi 5). Carregado com esse contexto teológico
diretor no Elmhurst College, lecionou teo- e visando apresentar uma resposta ao con-
logia e ética cristã no Eden Theological Se- texto sociocultural, o livro Cristo e Cultura
minary e na Yale Universitiy. Ao longo dos seria publicado em 1951.

90
TEOLOGIA em revista

3 RELAÇÃO CRISTO-CULTURA
NO PENSAMENTO DE RICHARD
NIEBUHR
Para Niebuhr, o conflito existente en- da-cultura , também chamados de cristãos
tre os valores e estilo de vida propostos pelo sinteticistas, dá início às categorias inter-
cristianismo e os valores e estilo de vida mediárias. Assim como os cristãos culturais,
propostos pela civilização, qualquer que eles enxergam tanto Cristo quanto cultura
seja ela, se origina no embate de duas auto- possuindo naturezas positivas, no entan-
ridades, a saber, a autoridade de Cristo e a to, diferente dos culturais que entendem a
autoridade da cultura (NIEBUHR, 1967). As Cristo e cultura como uma coisa só, os sin-
diversas compreensões que foram manifes- teticistas enxergam a Cristo sendo distinto
tadas ao longo da história cristã sobre a rela- da cultura e estando muito superior a ela,
ção entre essas duas autoridades podem ser uma vez que essa é permeada pelo pecado,
descritas através de uma tipologia quíntu- surgindo assim um abismo entre ambos.
pla constituída de duas categorias localiza- Em outras palavras, as duas autoridades es-
das em pólos opostos e três categorias inter- tão em harmonia, porém é a autoridade de
mediárias, a saber, Cristo-contra-a-cultura, Cristo que se sobressai e valida a autoridade
Cristo-da-cultura, Cristo-acima-da-cultu- cultural. A cultura pode pressentir e até vis-
ra, Cristo-e-cultura-em-paradoxo e Cristo- lumbrar os valores de Cristo, mas precisa de
-o-transformador-da-cultura. uma intervenção sobrenatural para alcan-
Para a primeira categoria da tipolo- çá-los.
gia niebuhriana, Cristo-contra-a-cultura, A quarta categoria tipológica, Cristo-
também denominados de cristãos exclusi- -e-cultura-em-paradoxo, cujos integran-
vistas, Cristo e cultura são completamente tes são denominados de cristãos dualistas,
opostos. Esse grupo condena toda forma de também é uma categoria intermediária.
expressão cultural sem se aperceber de que Seu dualismo não é no sentido manique-
sua vivência religiosa também é permeada ísta, mas sim se refere ao fato de que para
por uma cultura. Se isola do mundo na ten- esse grupo Cristo e cultura são valores com-
tativa de manter o pecado fora de sua co- pletamente opostos em natureza, porém o
munidade e assim muitas vezes possui pou- cristão deve se submeter a ambas autorida-
ca ou nenhuma relevância social. des enquanto nesse mundo. A vida é uma
Já para a segunda categoria tipológica, constante tensão entre o reino de Deus e
Cristo-da-cultura, denominados também dos homens enquanto a graça divina sus-
de cristãos culturais, Cristo é um exemplo tenta a ambos até a consumação final. Dife-
da realização dos ideais mais elevados da rente dos exclusivistas, os cristãos dualistas
cultura. Sendo assim, ambos compartilham sabem que não há como se isolar do peca-
da mesma natureza positiva. Esse grupo va- do, por isso se envolvem com a vida secular,
loriza em Cristo aquilo que é de valor para apesar de viverem em constante conflito de
a cultura, ao mesmo tempo que se envolve valores.
com os elementos culturais que são com- A quinta e última categoria tipológi-
patíveis com Cristo. Dessa forma, corre o ca, Cristo-o-transformador-da-cultura,
grande risco de tornar Cristo em apenas cujos integrantes são chamados de cristãos
mais um ídolo cultural, um camaleão que conversionistas, também pertence às cate-
se molda às preferências vigentes, ou seja, a gorias intermediárias. Esse grupo enxerga
cultura é o valor que validaria a Cristo. Cristo e cultura como opostos em realidade,
A terceira categoria tipológica, Cristo-acima contudo, a cultura aqui foi criada boa e com

91
TEOLOGIA em revista

natureza positiva assim como Cristo, po- É importante pontuar que o livro Cris-
rém, com o pecado, a cultura teria sido to e Cultura possui caráter descritivo, ao in-
pervertida e se tornado negativa. Sendo as- vés de prescritivo. Nele Niebuhr pretende
sim, para os conversionistas Cristo busca expor as diferentes compreensões cristãs
restaurar a natureza positiva da cultura e, para que o leitor escolha com consciência e
portanto, valida todos os aspectos culturais responsabilidade a que melhor expressa sua
positivos e neutros enquanto trabalha para fé. Dessa forma é uma útil ferramenta para
transformar os aspectos negativos. categorização de movimentos e indivíduos.

4 UMA PERSPECTIVA NIEBUHRIANA


PARA A POSTURA ADVENTISTA DO
SÉTIMO DIA DIANTE DO PROBLEMA
CRISTO-CULTURA
Diante das diversas respostas apre- Para tanto, um brevíssimo panorama
sentadas no tópico anterior para a relação histórico do desenvolvimento da missiolo-
entre a autoridade de Cristo e da cultura na gia adventista se faz de grande valia.
vida do cristão, surge o interesse por saber
em qual categoria a compreensão adventis-
ta do sétimo dia se enquadraria. Tal questão 4.1 Contexto histórico do
apresenta grande relevância na construção Adventismo do Sétimo Dia
de uma identidade ético-teológica dos ad-
ventistas do sétimo dia, sobretudo para um A organização da IASD foi um desdo-
diálogo eficiente com o restante da cristan- bramento do Movimento Milerita que a
precedeu. Esse, por sua vez, se desenvolveu
dade e uma interação prudente no âmbito no contexto do Segundo Grande Desperta-
missiológico. mento norte-americano (1790-1840), um
Como o próprio Niebuhr salienta em fenômeno de avivamento das igrejas pro-
sua obra, qualquer realidade particular de testantes nos Estados Unidos (SCHANTZ,
casos individuais, seja de um indivíduo ou 1983). O Movimento Milerita possuía uma
de um grupo, não poderia se enquadrar ple- natureza ecumênica centrada nas profecias
namente em uma categoria tipológica, já escatológicas e, portanto, em sua posterior
que tipologias se valem de generalizações organização, a IASD manifestaria aspectos
que servem para identificar continuidades de três principais correntes protestantes: 1)
e descontinuidades entre os diversos ele- Puritanos, com seu apelo por reformas reli-
mentos que descrevem (NIEBUHR, 1967). giosas e sociais e o conceito de “Missio Dei”
(DAMSTEEGT, 1977, p. 259). 2) Anabatistas,
Sendo assim, a realidade da IASD poderá com a separação entre Igreja e Estado, com a
apresentar elementos de várias categorias motivação escatológica para a missão e com
niebuhrianas, porém a presente pesquisa se a visão de um Catolicismo e Protestantismo
valerá das compreensões validadas por pu- corrompidos e 3) Pietistas, com seu forte
blicações oficiais da Instituição, no intuito apelo por um relacionamento pessoal com
de relacioná-la à categoria niebuhriana que Cristo e uma espiritualidade individual que
mais faz jus à realidade adventista. enfatiza a santificação (MCEDWARD, 2011).

92
TEOLOGIA em revista

Parte da interpretação profética mi- cultural, em seguida para um círculo mais


lerita envolvia a proclamação do iminente abrangente, porém ainda delimitado por
retorno de Cristo entre 1843 e 1844, che- afinidades culturais, então expandiram seu
gando a declararem o dia 22 de outubro de alcance a um círculo ainda comum, porém,
1844 como a data de Seu retorno. Quando agora, com maiores diferenças culturais e
a data passou e Cristo não retornou, houve geográficas, até que compreenderam que
o chamado Grande Desapontamento, fato todos os povos, tribos e línguas deveriam ser
que acabou com o Movimento Milerita. En- alcançados pelo evangelho. Sendo assim,
tretanto, uma parcela de mileritas estava usando analogicamente a expansão missio-
convicta que as datas proféticas estavam nária descrita em Atos 1:8, será apresentado
corretas, consequentemente, o evento de- como a expansão da missão da IASD tornou
via estar errado. Isso os levaria a um profun- uma denominação local e norte-americana
do estudo das Escrituras e à compreensão em um movimento global.
das doutrinas distintivas da futura IASD,
que seriam organizadas por esses ex-mi-
leritas. Essas doutrinas mantiveram uma
forte ênfase escatológica e manifestavam
4.2.1 Jerusalém: Contexto
uma identidade estreitamente relacionada Milerita (1844-1850)
com a imagem do remanescente bíblico. A Com o fracasso da previsão profética
compreensão do público-alvo a ser alcança- milerita, os demais cristãos passaram a se
do pela mensagem adventista e a forma de opor aos mileritas e os descrentes a escar-
compartilhá-la passariam por um desen- necer deles. Ao mesmo tempo, um grupo
volvimento gradual a partir daí. de mileritas, que seriam os futuros ASD, es-
tavam compreendendo doutrinas bíblicas,
que em sua visão haviam sido ou perverti-
4.2 Desenvolvimento da das ou mal compreendidas pelo restante da
missiologia Adventista do cristandade, inclusive pelos próprios mile-
ritas. À medida que estudavam, começaram
Sétimo Dia a criar uma identidade própria em torno
O desenvolvimento da missiologia ad- das doutrinas que eram compreendidas,
ventista do sétimo dia foi dinâmico e pro- chegando a se identificarem informalmente
gressivo. Para Höschele (2004, p. 9) a histó- como adventistas sabatistas. Contudo, pela
ria geral do adventismo do sétimo dia pode grande resistência de cristãos e descrentes
ser entendida como “a história do desen- à mensagem do Advento, resistência mo-
volvimento da missão dessa igreja”. Em seu tivada pela antipatia existente em relação
livro, ele relaciona o desenvolvimento da aos mileritas, desenvolveu-se em seu meio
compreensão missiológica adventista com a “Teoria da Porta Fechada”, que consistia
a compreensão progressiva que os apósto- no entendimento de que a “porta da graça”
los tiveram da abrangência de sua missão. A estava fechada para todos que não tinham
mesma estrutura será utilizada neste capí- passado pelo Desapontamento e, sendo as-
tulo. Seguindo a sequência mencionada por sim, esforços missionários só surtiriam efei-
Cristo em Atos 1:8, a saber, “[...] serão mi- to entre os mileritas. Dessa forma, apesar de
nhas testemunhas em Jerusalém, em toda a importantes figuras adventistas sabatistas
Judéia e Samaria, e até os confins da terra”, terem rejeitado a Teoria da Porta Fechada
tanto os apóstolos quanto os ASD, primei- (LOUGHBOROUGH, 2019), é bem docu-
ramente, dirigiram seus esforços missioná- mentado entre os historiadores do adven-
rios para seu próprio círculo tismo do sétimo dia que muitos sabatistas

93
TEOLOGIA em revista

foram adeptos dessa teoria entre os anos de sar de não ser unânime, a ideia de que a mis-
1844 e 1850 (SCHANTZ, 1983), ou seja, em são devia ser feita apenas nos Estados Uni-
geral, aqueles que fundariam o adventismo dos e que os povos da Terra seriam alcança-
do sétimo dia, nessa fase pré-organizacio- dos através da pregação para os imigrantes
nal, possuíam uma noção missiológica limi- em solo americano, tendo influentes figuras
tada e uma inclinação ao exclusivismo. Em como Urias Smith sustentando essa postura
outras palavras, a preocupação primária (HOSCHELE, 2004).
deles era 1) o desenvolvimento doutrinário Nesse contexto, a postura da IASD se
e 2) os aspectos que os diferenciavam tanto mostrava consideravelmente etnocêntrica e
da cristandade quanto do mundo e, assim, com grande ênfase nos elementos distinti-
o campo missionário deles era, principal- vos de sua identidade, além de possuir uma
mente, os mileritas. (HÖSCHELE, 2004). forte atitude contracultural, motivada por
sua escatologia que identificava os Estados
Unidos como a segunda besta de Apocalipse
13. Essa compreensão escatológica e atitude
4.2.2 Judéia: América do contracultural era ainda mais evidente ao se
considerar que as denominações norte-ame-
Norte Branca (1850-1870) ricanas contemporâneas manifestavam um
Com o abandono da Teoria da Porta forte nacionalismo que considerava o pro-
Fechada por parte dos adventistas sabatis- gresso da nação como providência divina e
tas e o estabelecimento de um núcleo dou- enxergava os Estados Unidos como a “nação
trinário bem definido por volta de 1850, escolhida” de Deus (DORNELES, 2012).
novas iniciativas manifestavam uma nova e
mais abrangente fase da missiologia adven-
tista. Já em 1849, Tiago White, um impor-
tante pioneiro adventista, teria dado início
à revista Present Truth que no ano seguinte, 4.2.3 Samaria: Mundo
em 1850, seria unida a uma segunda revista Cristão em Geral
iniciada por ele, Advent Review, e surgiria (1870-1890)
então a Second Advent Review and Sabba-
th Herald, uma revista destinada a alcançar Com a grande aceitação do adventis-
toda a cristandade norte-americana com a mo em solo americano por parte de imi-
mensagem adventista (HOSCHELE, 2004). grantes europeus que ainda mantinham
É válido pontuar que nessa época, iniciati- fortes laços com sua terra natal, uma nova
vas ASD dirigidas a grupos culturais negros, fase na missiologia adventista teve início.
asiáticos e indígenas dentro dos EUA eram Esses novos conversos sentiam-se impeli-
escassas senão inexistentes. dos a compartilhar a mensagem adventista
Outra manifestação de uma conside- para além dos Estados Unidos e assim, em
ração maior por questões missiológicas foi 1872, começaram a ser produzidas litera-
a organização dos adventistas sabatistas na turas adventistas em línguas estrangeiras.
Igreja Adventista do Sétimo Dia. Depois de Esse novo foco em alcançar comunidades
muita discussão, estudo e oração, os adven- cristãs ao redor do mundo levaria ao cres-
tistas decidiram que deveriam se organizar cimento da obra de publicações e ao desen-
em uma igreja formal exatamente visando volvimento da obra médico-missionária,
serem mais eficientes em seus esforços mis- da obra educacional, da obra de assistência
sionários. Assim, o ímpeto missiológico es- social e das sociedades missionárias adven-
tava aumentando, porém era corrente, ape- tistas. A IASD, como instituição, passaria a

94
TEOLOGIA em revista

manifestar muito mais relação com mo-


vimentos sociais, como o movimento de
4.2 Desenvolvimento da
temperança, movimento abolicionista missiologia Adventista do
e movimento sufragista. Em 1874 o pri- Sétimo Dia
meiro missionário oficial da IASD seria Já em 1886, o presidente da Associação
enviado para a Europa e, dali em diante, Geral, George Butler, manifestaria o desejo
a obra missionária adventista se expan- de que os países cristãos que haviam sido al-
diria cada vez mais para as Américas, cançados pelo adventismo do sétimo dia se
África, Ásia, Oceania e também para ou- tornassem “trampolins” para uma expan-
tros grupos étnicos dentro dos Estados são ainda maior da missão. Seria da década
Unidos (SCHWARZ, 2016). de 1890 em diante que os ASD manifesta-
Ao entrar em contato com diferen- riam grande engajamento para levar a men-
tes contextos culturais, a IASD começou a sagem adventista para países não-cristãos.
manifestar reflexões missiológicas mais Nessa década o recém-formado “Conselho
profundas e sérias, começou a perceber de Missão Estrangeira” operaria ativamen-
a importância da adaptação das metodo- te propiciando que o envio de missionários
logias missionárias e expandiu sua atu- americanos adventistas aumentasse consi-
ação reformadora para além da reforma deravelmente e que diversos outros países
estritamente doutrinária, adentrando enviassem missionários adventistas para
as áreas da saúde, educação e ética cris- locais não alcançados. Em 1901, haveria
tã. Em outras palavras, ao mesmo tempo uma reorganização da estrutura da igreja
em que mantinha uma forte identidade global que favoreceria ainda mais a ativida-
escatológica, ela começou a manifestar de missionária transcultural (HÖSCHELE,
mais ativamente sua compreensão ho- 2004).
lística da restauração do ideal bíblico e a As décadas subsequentes foram de
desenvolver maior sensibilidade cultu- grande sucesso. Cem anos após esse avanço
ral. missionário, a maioria dos países do mun-
Um fator que teve grande influên- do haviam entrado em contato com o ad-
cia no desenvolvimento da missiologia ventismo, dando uma sensação de “missão
adventista e que conduziria para a próxi- cumprida”, no entanto, metade da popula-
ma fase missiológica foi a mudança que ção mundial permanecia intocada por sua
a Conferência Geral de 1888 traria para a mensagem. Os ASD ainda não tinham tido
ênfase da mensagem adventista. Do iní- a percepção de alcançar grupos étnicos, ao
cio de sua organização até 1888, a men- invés de países. Depois da Segunda Guerra
sagem adventista apresentava uma forte Mundial, o planejamento missiológico con-
ênfase nas doutrinas do Juízo e do Sába- sistia em retomar a atividade missionária
do, inclusive com inclinações ao legalis- presente antes das guerras e expandir essas
mo. Por outro lado, de 1888 em diante, atividades nos campos já alcançados. Com
a mensagem passaria a enfatizar a dou- os movimentos de independência das colô-
trina da Justificação pela Fé (DANIELLS, nias europeias ao redor do mundo, a lideran-
2015). Esse despertar adventista, provo- ça dos escritórios administrativos da IASD
caria um grande reavivamento e impul- local deixaria de ter tantos estrangeiros e
sionaria os esforços missionários nos passaria o comando para ASD locais. Dessa
EUA e nos campos estrangeiros, sendo forma, a Associação Geral da IASD deixaria
combustível para expandir a compreen- sob responsabilidade das lideranças locais a
são e prática missiológica mais uma vez obra de alcançar territórios não alcançados
(DANIELLS, 2015; HÖSCHELE, 2004). anteriormente (HÖSCHELE, 2004).

95
TEOLOGIA em revista

Pelo sentimento de “missão cumpri- Adventistas do Sétimo Dia. A apresentação


da” advindo da presença adventista em das declarações buscará ser suficiente, ape-
grande parte dos países ao redor do mun- sar de não ser exaustiva.
do, pôde-se constatar, ao longo do século
XX, um considerável declínio dos missio-
nários adventistas, apesar do aumento de
novos conversos no mesmo período. Seria 4.3.1 Manual da Igreja
apenas a partir dos anos de 1980 que se ve- Adventista do Sétimo Dia
ria um renovado interesse pela missiologia No capítulo 12 do Manual da Igreja, in-
adventista, envolvendo cada vez mais estu- titulado “Normas de Vida Cristã”, na seção
dos visando uma compreensão sistemática “Relacionamento com a Comunidade”, po-
da mesma. Em 1986, a Conferência Geral da de-se ler:
IASD anunciaria a iniciativa “Missão Glo-
bal”, que visava estabelecer a presença ad-
Se bem que nossa mais alta responsabili-
ventista em cada segmento populacional dade seja para com a Igreja e a Comissão
de 1 milhão de pessoas ao redor do mundo. Evangélica, devemos, até onde seja pos-
Alguns anos depois diminuíram o tamanho sível e até onde seja coerente com nos-
do segmento para contextos mais específi- sas crenças, por meio de nosso serviço e
cos (HÖSCHELE, 2004). A partir daí diver- nossos recursos, apoiar os esforços pela
sas iniciativas institucionais e independen- ordem e melhoramento sociais. Embora
tes surgiram, e ainda surgem, no meio ASD devamos nos afastar das disputas políti-
com o objetivo de estudar a missiologia cas e sociais, devemos sempre, tranquila e
adventista e de levar o Evangelho Eterno firmemente, manter uma posição inflexí-
mencionado em Apocalipse 14 a toda nação, vel ao lado da justiça e do direito nas ques-
tribo, língua e povo. Contudo, qual seria a tões cívicas, completamente apegados a
postura adventista atual diante dos contex- nossas convicções religiosas. É nossa sa-
tos culturais com os quais ela se depara? grada responsabilidade ser leais cidadãos
Para responder essa pergunta, serão da nação a que pertencemos, entregando
apresentadas algumas declarações oficias ‘a César o que é de César e a Deus o que é
da IASD que lidam com tal questão. de Deus’ (Mt 22:21) (MANUAL DA IGREJA,
2016, p. 147-148, grifo nosso).

Nesse trecho, fica clara uma postura


4.3 IASD: Postura que se submete primariamente à Igreja, em
última instância a Cristo, mas que também
eclesiológica diante dos reconhece sua responsabilidade para com a
encontros com a cultura sociedade, em última instância para com a
Com o intuito de compreender a pos- cultura, inclusive buscando contribuir para
tura oficial da IASD diante dos encontros o “melhoramento social”.
de sua missão com a cultura, serão analisa-
dos alguns trechos que foram extraídos de
textos denominacionalmente relevantes, 4.3.2 Tratado de Teologia
tais como o Manual da Igreja Adventista do
Sétimo Dia (2016), do Tratado de Teologia
Adventista do Sétimo Dia
Adventista do Sétimo Dia (2011) e das De- No capítulo 15 do Tratado de Teologia,
clarações Oficiais votadas pelo Comitê onde é exposta a compreensão teológica
Administrativo da Conferência Geral dos dos ASD sobre a doutrina da Igreja, na seção

96
TEOLOGIA em revista

“A Missão da Igreja”, lê-se que “os membros [...] estão comprometidos com relaciona-
da igreja foram chamados a sair do mundo mentos respeitosos e cooperativos entre
para serem enviados de volta ao mundo todas as pessoas, reconhecendo nossa ori-
com uma missão e uma mensagem” (DE- gem comum e percebendo nossa dignida-
DEREN, 2011, p. 610, grifo nosso). Ainda na de humana como um presente do Criador.
mesma seção, é dito que “os crentes devem Visto que a pobreza humana e a degrada-
se separar das alianças mundanas”, no en- ção ambiental estão inter-relacionadas,
tanto “por serem o ‘sal da Terra’ e ‘a luz do nos comprometemos a melhorar a quali-
mundo’ [...], eles são chamados a apoiar dade de vida de todas as pessoas (GENE-
as causas que promovem a prosperidade RAL CONFERENCE OF SEVENTH-DAY
ADVENTISTS EXECUTIVE COMMITTEE,
social, econômica e educacional da famí- 1992, tradução e grifo nosso).
lia humana.” (DEDEREN, 2011, p. 611, grifo
nosso).
Já na seção “Um Olhar Sóbrio para o Também na declaração intitulada
Futuro”, do mesmo capítulo, encontra-se Tolerância, votada em 1995, a IASD de-
escrito que: clara apoiar a proclamação da ONU de
1995 como o ano da Tolerância. Uma de-
claração oficial da IASD mencionando
[...] enquanto se acha neste mundo, a igre- um alinhamento com, talvez, a institui-
ja é militante, empenhada diariamente ção secular que mais simboliza a civiliza-
nas batalhas de seu Senhor e em campa- ção contemporânea é algo digno de nota
nha contra as instrumentalidades satâ-
no contexto dos encontros entre Igreja e
nicas. Seus membros estão em conflito
com o mundo, a carne e os poderes do mal sociedade, Cristo e cultura. (GENERAL
(DEDEREN, 2011, p. 628, grifo nosso). CONFERENCE OF SEVENTH-DAY AD-
VENTISTS ADMINISTRATIVE COMMIT-
TEE, 1995).
Tais textos sugerem que, do ponto de Nessa mesma linha, talvez uma das
vista teológico, a IASD considera o mundo e/ declarações oficiais mais esclarecedoras
ou a cultura como elementos com os quais a sobre a relação entre Igreja e sociedade,
igreja está em conflito e que não deve fazer Cristo e cultura, na mentalidade adven-
aliança, por serem completamente corrom- tista seria votada em 1996 e levaria o título
pidos pelo pecado. Ao mesmo tempo, su- “Renovação Espiritual Impacta Mudança
gerem que a IASD compreende que a Igreja Social”. Ela expressaria a compreensão
é enviada a esse mundo e/ou cultura com adventista de uma cultura corrompida e
uma missão que estimula a cooperação e em constante mudança ao afirmar:
parceria com causas culturais que benefi-
ciam o ser humano.
A presença real do mal no mundo e a
pecaminosidade dos seres humanos,
4.3.3 Declarações Oficiais agravada por rápidas mudanças na edu-
da Igreja Adventista do cação, indústria, tecnologia e economia,
continuam a envolver nosso planeta em
Sétimo Dia massivas mudanças sociais (GENERAL
Votada em 1992, a declaração intitulada CONFERENCE OF SEVENTH-DAY AD-
“Cuidando do Meio Ambiente” asseveraria VENTISTS ADMINISTRATIVE COM-
que os ASD aceitam “o desafio de trabalhar MITTEE, 1996, tradução nossa).
para restaurar o projeto geral de Deus” e que:

97
TEOLOGIA em revista

Essa declaração ainda afirma que a Com vistas a serem efetivos em seu
IASD “vê como parte da sua Missão a exten- engajamento com a responsabilidade so-
são do ministério de Cristo em um mundo cial cristã, declara-se que:
de sofrimento”, e também que:
Os ASD se juntam à comunidade global
no apoio às Metas de Desenvolvimento
A Igreja atua como um vigia na socie- do Milênio das Nações Unidas para redu-
dade e como uma comunidade empo- zir a pobreza em pelo menos 50 por cento
deradora, exortando indivíduos e famí- até 2015. Em prol disso, os adventistas do
lias a avaliar as condições ao seu redor, sétimo dia fazem parceria com a socieda-
defendendo o que é bom e transcen- de civil, governos e outros, trabalhando
dendo e alterando o que é prejudicial juntos localmente e globalmente para
(SPIRITUAL RENEWAL IMPACTS SO- participar da obra de Deus de estabelecer
CIAL CHANGE, 1996, tradução e grifo justiça duradoura em um mundo arrasa-
nosso). do (EXECUTIVE COMMITTEE OF THE
GENERAL CONFERENCE OF SEVENTH-
-DAY ADVENTISTS, 2010, tradução e gri-
fo nosso).
Ainda digno de destaque é o seguinte
trecho: Ainda é interessante como o futuro
escatológico impacta o presente escatoló-
gico na noção adventista expressa no final
O Evangelho de Cristo em si é um agen- do documento:
te de mudança. [...] A presença de pes-
soas espiritualmente renovadas na co-
munidade pode fazer um trabalho que Como seguidores de Cristo, nos engaja-
as iniciativas políticas e sociais por si só mos nessa tarefa com esperança deter-
não podem realizar. Os cristãos que ex- minada, energizados pela promessa divi-
perimentaram o poder transformador na visionária de um novo céu e uma nova
terra onde não haja pobreza ou injustiça.
de Cristo são estabilizadores, pilares Os adventistas do sétimo dia são chama-
de fortificação na sociedade e preser- dos a viver com imaginação e fidelida-
vam valores que afirmam a vida. Eles de dentro dessa visão do Reino de Deus,
agem como agentes de mudança em agindo para erradicar a pobreza agora
face da decadência moral (SPIRITUAL (EXECUTIVE COMMITTEE OF THE GE-
RENEWAL IMPACTS SOCIAL CHANGE, NERAL CONFERENCE OF SEVENTH-
1996, tradução e grifo nosso). -DAY ADVENTISTS, 2010, tradução e gri-
fo nosso).

Já em 2010, seria votada uma declara- Ainda foi votada, em 2014, a “Declara-
ção ainda mais reveladora sobre a relação ção de Missão da Igreja Adventista do Séti-
entre Igreja e sociedade na visão adventista. mo Dia”. No contexto da presente pesquisa
Seu título seria “Pobreza Global”. Nesse do- é de especial relevância a seção “Nossa Vi-
cumento se afirmaria que “ASD acreditam são” dessa declaração. Nela é sustentado
que as ações para reduzir a pobreza e as in- que “em harmonia com a revelação da Bí-
justiças que as acompanham são uma parte blia, os ASD vêem como o clímax do plano
importante da responsabilidade social cris- de Deus a restauração de toda a Sua cria-
tã”. Nesse contexto: ção em plena harmonia com Sua perfeita

98
TEOLOGIA em revista

vontade e justiça” (GENERAL CONFEREN- que são organizações adventistas que, de-
CE OF SEVENTH-DAY ADVENTISTS EXE- vido a profundas diferenças no contexto
CUTIVE COMMITTEE, 2014, tradução e cultural, necessitam possuir uma estrutu-
grifo nosso). ra organizacional diferente da tradicional,
Com essas declarações oficiais da visando maior relevância cultural.
IASD é possível notar que, diante dos en- No quinto e último tópico do do-
contros entre Igreja e sociedade, existe cumento, abordando contextualização
na postura adventista uma disposição e sincretismo, o termo contextualização
em buscar a elevação humana através da é definido como o “esforço intencional e
transformação tanto espiritual quanto so- judicioso de comunicar a mensagem do
cial. Essa disposição se origina na compre- evangelho de uma maneira culturalmente
ensão adventista das doutrinas da criação significativa”. Nele ainda é asseverado:
bíblica e da redenção em Cristo e é moti-
vada por sua visão escatológica da missão.
Apresentando, dessa forma, um alinha- A contextualização intencional da ma-
mento com as posturas características da neira como comunicamos nossa fé e
“Igreja do meio” da tipologia niebuhriana. prática é bíblica, legítima e necessária.
Sem ela, a Igreja corre o risco da falta de
comunicação e de mal-entendidos, per-
da de identidade e sincretismo. Histori-
4.4 IASD: Postura camente, a adaptação ocorreu ao redor
missiológica diante dos do mundo como uma parte crucial da
encontros com a cultura divulgação das três mensagens angéli-
cas para cada nação, tribo e povo. Isso
Nas diretrizes para o “Engajamen- vai continuar acontecendo (GLOBAL
to na Missão Global”, desenvolvidas pelo MISSION ISSUES COMMITTEE, 2003,
Global Mission Issues Committee (AD- tradução nossa).
COM-S), editadas pelo Biblical Research
Institute e votadas em 2003 pelo Comitê
Administrativo da Conferência Geral dos É importante mencionar a ênfase que
Adventistas do Sétimo Dia, no tópico “O as diretrizes dão para uma contextualiza-
Uso da Bíblia na Missão Vis-à-vis ‘Escritos ção que evita, e mesmo combate, o sincre-
Sagrados’”, se reconhece a utilidade do uso tismo religioso. Além disso, declara-se que
de “escritos sagrados” das culturas locais, a “contextualização visa encorajar todas as
juntamente com a Bíblia, para a constru- Crenças Fundamentais (da IASD) e torná-
ção de pontes com os não-cristãos. Está es- -las verdadeiramente compreendidas em
crito: “Ao construir pontes com não-cris- sua plenitude” (GLOBAL MISSION ISSUES
tãos, o uso de seus ‘escritos sagrados’ pode COMMITTEE, 2003, tradução nossa).
ser muito útil em um contato inicial, com Nesse documento, fica muito clara a
vistas a demonstrar sensibilidade e condu- valorização do contexto cultural e, ainda é
zir pessoas por caminhos que são, de algu- possível constatar o reconhecimento, por
ma forma, familiares” (GLOBAL MISSION parte da IASD, da importância que há na
ISSUES COMMITTEE, 2003, tradução nos- interação entre Igreja e sociedade, Evan-
gelho e contexto social, Cristo e cultura.
sa). Além disso, expressa o reconhecimento da
Ainda nesse documento, são ofere- necessidade de uma relação orgânica entre
cidas diretrizes para o estabelecimento de ambos, contanto que o Evangelho e Cristo
“Estruturas Organizacionais de Transição”, tenham primazia sobre a cultura.

99
TEOLOGIA em revista

4.5 Aplicação da última da alma com Deus”, b) como “tenso


período entre a promessa de vida e o seu fi-
Tipologia Niebuhriana nal cumprimento” e c) como “a história dos
feitos poderosos de Deus e das respostas do
Com a postura ASD suficientemente
homem a eles” (NIEBUHR, 1967, p. 229),
exposta, é possível considerar uma aplica-
ção da tipologia niebuhriana a ela. Para a sendo assim, os tipos a) sinteticista, b) du-
aplicação da tipologia niebuhriana à pos- alista e c) conversionista seriam os que mais
tura ASD, a presente pesquisa se valerá da corresponderiam à visão adventista nesse
análise da lógica e do modus operandi teo- quesito.
lógico da tipologia como apresentado por 2) Em relação à tipologia niebuhriana,
Novaes (2016) que, por sua vez, é baseado a postura ASD poderia se alinhar com os ti-
nas análises feitas por Ottati (1982, 1988 e pos que sobre razão-revelação, consideram
2003) e por Yeager (2005). ambas válidas, mas sempre subordinam a
Segundo a apresentação de Nova- razão à revelação por entender que a) “a ra-
es (2016) sobre a análise feita por Yeager zão nos empreendimentos humanos nunca
(2005), cada tipo niebuhriano é definido a se separa de sua perversão egoística e ímpia”
partir da análise sobre 6 questões, a saber, (NIEBUHR, 1967, p. 186) ou que b) “a vida da
1) Visão de história, que é a interpretação razão acima de tudo” deva ser “reorientada
que cada sujeito tem da história; 2) Razão- e redirigida” ao ponto onde “o arrazoar do
-Revelação, que se trata da compreensão homem começa com a fé em Deus” (NIE-
de cada sujeito sobre a relação de autorida- BUHR, 1967, p. 249), sendo assim, os tipos
de entre razão e revelação enquanto fontes a) dualista e b) conversionista seriam os que
de conhecimento sobre Deus, mundo, nós mais corresponderiam ao adventismo nes-
mesmos, teologia e ética cristãs; 3) Natu- se quesito. O tipo sinteticista não se aplica
reza-graça, que se trata da compreensão aqui, pois, apesar de considerar ambas váli-
de cada sujeito sobre a relação do Criador das, não subordina a razão à revelação e os
com suas criaturas e criação; 4) Pecado- tipos exclusivista e cultural, favorecem uma
-bem, que se refere à compreensão de cada enquanto desconsideram a outra.
sujeito sobre os efeitos da queda na cor- 3) Em relação à tipologia niebuhriana,
rupção humana e de suas instituições; 5) a postura ASD poderia se alinhar com os ti-
Lei-evangelho, que se trata da compreen- pos que sobre natureza-graça, consideram
são de cada sujeito sobre a relação entre as que “a atividade criativa de Deus e de Cristo
normas morais e as boas-novas de Cristo, em Deus é um tema de importância funda-
e, 6) Igreja-mundo, que se trata da forma mental, jamais sendo subjugado pela (ou ja-
que aqueles que são leais a Deus em Cristo mais subjugando a) ideia de expiação” e, que
se relacionam com aqueles que não o são. nesse sentido, procuram “manter juntos, em
Seguindo essa lógica e considerando um movimento, os vários temas da criação e
as declarações da IASD, a seguinte relação redenção, de encarnação e expiação” (NIE-
com a tipologia niebuhriana pode ser vista BUHR, 1967, p. 225-226). O único tipo que
na postura adventista: expressa essa ênfase na criação como o que
1) Em relação à tipologia niebuhria- é visto no adventismo é o tipo conversionis-
na, a postura ASD poderia se alinhar com ta. Os outros tipos ou desassociam Cristo do
os tipos que sobre visão de história, inter- Deus criador da natureza, espiritualizando-
pretam a história, nas palavras de Niebuhr, -O, ou dão pouca ênfase ao potencial e ne-
como a) “período de preparação sob a lei, ra- cessidade de transformação restauradora que
zão, Evangelho e Igreja para uma comunhão está atrelada à doutrina da criação.

100
TEOLOGIA em revista

4) Em relação à tipologia niebuhria- respectivamente nos tipos a) dualista e


na, a postura ASD poderia se alinhar com os b) conversionista. Os tipos exclusivista
tipos que sobre pecado-bem, consideram e cultural são legalistas em sua natureza
que o pecado “está profundamente enrai- e o tipo sinteticista considera a lei divi-
zado na alma do homem, penetrando toda na como uma extensão da lei social, por
a obra humana, e que não existe gradação esses motivos não se harmonizam com a
de corrupção, ainda que os seus sintomas atual visão adventista oficial.
sejam vários” (NIEBUHR, 1967, p. 224), po- 6) Em relação à tipologia niebuhria-
dendo a) considerar que as ordens materiais na, a postura ASD poderia se alinhar com
e físicas da criação implicam em queda, por os tipos que sobre igreja-mundo, enten-
isso haver uma relação paradoxal com elas dem que Igreja e mundo estão em profun-
(NIEBUHR, 1967); ou b) que a queda é uma da oposição, porém a) inevitavelmente
reversão da criação, uma corrupção da es- interagem entre si, ainda que de forma
sência boa que as ordens materiais e físicas incômoda e cautelosa, pois a igreja com-
já possuíram, assim podendo ser restaura- partilha da cultura caída do mundo, na
das (NIEBUHR, 1967). Dessa forma, os tipos medida que é composta por seres huma-
a) dualista e b) conversionista seriam os que nos e, por sua vez, a cultura do mundo
mais corresponderiam à visão adventista compartilha da graça divina, na medida
sobre essa questão. Os outros tipos ou con- que é sustentada por Deus ou b) manifes-
sideram o pecado localizado fora do ser hu- tam uma interação onde a Igreja coopera
mano ou, apesar de identificar o pecado no com a essência originalmente boa, porém
ser humano, considera a cultura como pos- corrompida da cultura, com vistas à res-
suindo natureza positiva. tauração e transformação positiva des-
5) Em relação à tipologia niebuhriana, sa cultura. Tais entendimentos estariam
a postura ASD poderia se alinhar com os ti- presentes nos tipos a) dualista e b) con-
pos que sobre lei-evangelho, ao reconhecer a versionista. Os outros tipos ou se excluem
depravação da cultura, buscam a) a “manu- da relação com a sociedade ou não enxer-
tenção da autoridade da lei de Cristo sobre gam oposição entre a Igreja e o mundo,
todos os homens e a exposição da mesma, diferindo assim da visão adventista oficial
em seu sentido literal e claro”, ao mesmo na atualidade.
tempo em que insistem que “nenhuma Dessa forma, devido à grande ênfa-
cultura própria do homem em obediência se dada pela IASD à doutrina da criação e
àquela lei se presta a livrá-lo do seu dilema da futura restauração escatológica, à vi-
de pecado”. Dessa forma, a “lei de Deus nas são sobre a queda e a consequente natu-
mãos dos homens é um instrumento de pe- reza pecaminosa de toda a humanidade,
cado. Contudo, na medida em que vem de à importância dada à lei divina dentro do
Deus, [...] ela é um meio de graça”, apesar de contexto da salvação pela graça median-
ser “uma espécie de meio negativo, levando te a fé, à forte valorização da razão hu-
o homem ao desespero de si mesmo e pre- mana subordinada à revelação divina e
parando-o para voltar-se para Deus.” (NIE- à interação que a igreja manifesta com a
BUHR, 1967, p. 187-188) ou b) consideram sociedade e a cultura, fica demonstrado
que a obra redentiva realizada na encarna- na presente análise que os dois tipos que
ção de Cristo é a razão do “futuro escatológi- poderiam descrever a postura ASD dian-
co ter se tornado [...] um presente escatológi- te dos encontros com a cultura são os ti-
co” de conduta (NIEBUHR, 1967, p. 229). pos a) Cristo-e-cultura-em-paradoxo e b)
Essas compreensões seriam encontradas Cristo-o-transformador-da-cultura.

101
TEOLOGIA em revista

5 CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Ao definir a IASD como exemplo do amadureceu e, exatamente pela visão es-
tipo niebuhriano Cristo-o-transforma- catológica e identidade remanescente bem
dor-da-cultura, podendo também ser as- compreendidas, agora expressa uma atitu-
sociada com o tipo Cristo-e-cultura-em- de que, pela grande ênfase na escatologia
-paradoxo, pode-se concluir que atitudes e no iminente retorno de Cristo, se alinha
e discursos legalistas, antinomistas, ex- à visão dualista com sua tensão paradoxal,
clusivistas, nacionalistas, isolacionistas, mas pela abrangente preocupação com a
tradicionalistas e/ou culturalistas não reforma e restauração holística do ser hu-
expressam a identidade e compreensão mano no presente, manifesta a visão con-
das publicações oficiais da ASD diante do versionista, buscando ser culturalmente
problema Cristo-cultura. Além disso, a relevante enquanto fiel às escrituras.
existência de um grande espaço para uma Sendo assim, considerando o desen-
maior sensibilidade cultural e maior re- volvimento histórico da missão adventis-
levância e cooperação com entidades so- ta, o amadurecimento de sua compreensão
ciais na esfera das igrejas locais se torna missiológica, algumas de suas publicações
uma questão digna de consideração. oficiais que lidam com a relação entre a
Ainda é digno de nota que, como de- Igreja e a cultura e analisando esses dados
monstrado historicamente, por uma forte através das lentes da tipologia niebuhria-
noção escatológica e identificação com o na, conclui-se na presente pesquisa que
remanescente bíblico, por muito tempo os tipos niebuhrianos que poderiam des-
uma atitude exclusivista e inclinada ao le- crever a postura ASD diante dos encontros
galismo foi vista entre os ASD, porém com com a cultura são os tipos a) Cristo-e-cul-
o avanço dos estudos teológicos e de sua tura-em-paradoxo e b) Cristo-transforma-
missiologia, a compreensão adventista dor-da-cultura.

102
TEOLOGIA em revista

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