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TEOLOGIA
em revista
Diretor Geral:
Me. Gilberto Damasceno (IAP, Brasil)
Diretor Financeiro:
Esp. Juliano Marcimiano de Almeida (IAP, Brasil)
Diretor SALT-IAP:
Me. João Luiz Marcon (FAP, Brasil)
Coordenador SALT-IAP:
Dr. Leonardo Godinho (FAP, Brasil)
Editores:
Dr. Isaac Malheiros (FAP, Brasil)
Dr. Erico Tadeu Xavier (FAP, Brasil)
Editores Associados:
Ms. Thiago Cesar Frediani Sant’ Ana (FAP, Brasil)
Ms. Poliana Fragatti Cristovam (FAP, Brasil)
Conselho Editorial:
Esp. Adilson Pavan (FAP, Brasil)
Dr. Márcio Donizeti da Costa (FAP, Brasil)
Me. Elmer Arrais Guzman (FAP, Brasil)
Dr. Agenilton Marques Corrêa (FADBA, Brasil)
Dr. Silvano Barbosa dos Santos (UNASP, Brasil)
Dr. Marco Yañez Matamala (UNACH, Chile)
Ms. Karl Gunther Boskamp Ulloa (UAP, Argentina)
Dr. Roberto Pereyra (UAP, Argentina)
Dr. Daniel Plenc (UAP, Argentina)
Revisores:
Me. Cátia Sirlene Lunkes Marcon (FAP, Brasil)
Me. Angela Cipryano Ramos (FAP, Brasil)
Editoração Eletrônica/Diagramação:
Lucas Dias Souza (IAP, Brasil)
Imagens e ilustrações:
Shutterstock
Instituição Promotora:
Instituto Adventista Paranaense - Gleba Paiçandu,
Lote 80 - Zona Rural, Ivatuba - PR, 87130-000.
Endereço eletrônico:
teologiaemrevista@educadventista.org.br
nesta edição
ÍNDICE
04
Apresentação
08
A ira de Deus:
52
A relevância da
Teologia em Revista, o Um estudo teológico beneficência social
periódico do curso de da justiça divina em Isaías 58:6-7
teologia do IAP
05
Editorial
22
A crítica feminista
70
Identidade e missão
A pesquisa teológica à teologia cristã: na jornada de Jesus
deve nos conduzir ao Uma análise crítica à rumo a Jerusalém
conhecimento de uma teologia feminista em Lucas
Pessoa, Jesus Cristo
07
Agradecimentos
34
Religião, pandemia
86
A narrativa
Esta publicação acadê- e comunicação de Ester:
mica semestral surge institucional: Literatura como ferra-
para apresentar artigos O que os grupos reli- menta para o desen-
e pesquisas em teolo- giosos noticiaram no volvimento moral
pico do isolamento
social da COVID-19
no Brasil
Apre
semelhante, nasceu Teolo- do curso de Teologia, que
gia em Revista, o periódico sempre apoiaram a ideia
do curso de teologia do IAP. de se ter um veículo de di-
A revista expressa as vulgação que contribuís-
sen
diretrizes filosóficas e aca- se com a produção teoló-
dêmicas do SALT-DSA e o gica no Brasil e no mundo.
eixo integrador do SALT-IAP, Agradecemos tam-
que é o ministério pastoral bém, aos apoiadores des-
tação
integral. Três ênfases com- se projeto: Pr. Gilberto Da-
põem este eixo integrador: masceno, diretor do IAP; Pr.
1. Evangelização de Marlinton Lopes presiden-
grandes centros urbanos; te da mantenedora (USB);
geral
2. Abordagem missionária Pr. Adolfo Suarez, reitor do
para mentes secularizadas SALT-DSA; Dr. Diego Silva,
e pós-modernas; 3. Traba- diretor acadêmico da FAP;
lho com as novas gerações. Pr. Adilson Pavan e a Me.
Teologia em Revista Poliana Fragatti Cristovam,
procura expressar ideais de responsáveis pelas publi-
uma teologia bíblica equi- cações do IAP; ao depar-
Me. João Luiz Marcon librada enfatizando a teoria tamento financeiro do IAP
Diretor do SALT IAP e a prática relevantes para nas pessoas dos Srs. Mar-
as pessoas que vivem em tim Distler, Arthur Morais
“tempos difíceis” (2Tm 3:1). Silva e Pr. Juliano Almeida;
É necessário reco-
nhecer e agradecer a algu-
mas pessoas que sonharam
junto comigo, a fim de que
esta revista nascesse. Primei-
ramente, ao Dr. Erico Xavier,
um homem incansável na
Lucas Dias Souza, comu-
nicação de mídia do SALT
IAP; e à comissão edi-
torial do SALT e da FAP.
A todos, muito obriga-
do. A Deus seja toda
a glória e louvor.
“
Teologia em Revista I SALT IAP Página 4
T
eologia em Revis- no-Americano de Teologia
ta nasce no ano de (IAP, Ivatuba-PR) vem cons-
2021 - período em truindo novos rumos para a
que a humanidade enfrenta formação de pastores que
uma das piores pandemias possam atuar com eficiên-
já registradas nos anais da cia no campo missionário,
história. Dando a lume o pri- voltando-se, também, para
meiro número da revista do ações que visem à educa-
Seminário Adventista Lati- ção continuada, da qual a
no-Americano de Teologia Teologia em Revista emerge
Edi
(IAP, Ivatuba-PR), fazemo-lo como um dos instrumentos.
impulsionados pelo ardente Neste primeiro núme-
desejo de cooperar com a ro, Érico Tadeu Xavier e David
igreja num momento tão de- Barcelos H. da Silva, no arti-
to
licado da história, oferecendo go “A ira de Deus: um estudo
artigos que venham ajudar teológico da justiça divina”,
no enriquecimento intelectu- analisam a ira como um dos
al e espiritual de seus mem- atributos do caráter divino
rial
bros e obreiros. É também apresentados nas Escritu-
propósito deste periódico ras, como ela se caracteriza,
aproximar os professores de como se manifesta, e como se
Teologia dos alunos, pasto- contrasta com a ira humana.
res, líderes e fiéis da igreja à Na sequência, Tiago
medida em que, semestral- Dias de Souza traz um arti-
mente, publicarmos matérias go que contribui para o de-
Dr. Isaac Malheiros
que abordem temas atuais e bate sobre gênero, cultura
Editor Chefe relevantes que possam for- e teologia. Nele, a teologia
talecer a mente e o coração. feminista é avaliada histori-
Dr. Erico Tadeu Xavier A pesquisa teológica camente e teologicamente,
deve nos conduzir ao conhe- especialmente em sua abor-
Editor Associado
cimento de uma Pessoa, Je- dagem hermenêutica e suas
sus Cristo, e habilitar-nos para propostas e reflexões refe-
que coloquemos a experiên- rentes à Bíblia e à igreja cristã.
cia adquirida a serviço das
pessoas. Nesse processo, está
implicada uma série de rela-
ções: aprender e ensinar; re-
flexão e ação; teoria e prática.
Pensando assim, o
Seminário Adventista Lati-
A seguir, a comunica-
ção institucional das religiões
durante a pandemia de Co-
vid-19 é o tema do artigo de
Renata da Cruz Paes. Ela in-
vestiga como grupos religio-
sos predominantes no Brasil
“
Teologia em Revista I SALT IAP Página 5
se posicionaram oficialmente ças. Os dilemas morais da
no auge do isolamento social. narrativa, bem como suas
A pesquisa mostra que, em características literárias, po-
geral, as igrejas produziram dem fomentar reflexões
conteúdos informativos ali- e debates que favoreçam
nhados às agências de saú- o amadurecimento moral.
de, o que reforça a relevância Possa este órgão
da comunicação institucional de divulgação e pesquisa
como um serviço à sociedade. teológica contribuir, a seu
A relevância da be- modo, para o surgimento
Edi
to
neficência social para o estilo
de vida cristão à luz de Isaí-
as 58:6-7 é o tema do arti-
go seguinte. Nele, João Luiz
Marcon e Diogo Florencio
Sansalone apontam os funda-
mentos bíblicos para a ação
social cristã, e como Igre-
ou crescimento de uma Te-
ologia que ajude a comu-
nidade cristã a pensar e a
viver autenticamente, num
mundo em crise, a sua ta-
refa missional e profética.
“
rial
ja Adventista do Sétimo Dia
desenvolveu historicamente
sua abordagem a esse tema.
A questão do relacio-
namento da identidade de
Jesus com a sua missão, es-
pecialmente na sua jornada
Dr. Isaac Malheiros
rumo a Jerusalém é abordada
Editor Chefe por Isaac Malheiros, Jefferson
Ribeiro Café e Jonny David
Dr. Erico Tadeu Xavier Amaral Hernández. Através de
uma leitura atenta do evan-
Editor Associado
gelho de Lucas, é possível ex-
trair princípios missiológicos
para a igreja do século XXI a
partir do exemplo de Cristo.
Finalmente, Vanessa
Meira aprofunda questões
sobre o potencial da narra-
tiva bíblica de Ester como
ferramenta para o desen-
volvimento moral de crian-
men
conhecimento seguro e novo periódico cumpra a
útil. ‘Teologia em Revista’ função de difundir o sa-
chega em boa hora, para ber teológico e promo-
demonstrar que o traba- ver a Palavra de Deus no
tos
lho teológico no SALT-IAP meio acadêmico através
está rendendo frutos in- de artigos redigidos com
telectuais para o Reino de o rigor científico que o
Deus. Obrigado a todos os assunto deve possuir."
que tornaram realidade "Esta é apenas a
este sonho. Que este pe- primeira edição de mui-
riódico abençoe seus lei- tas que ultrapassarão os
Dr. Pr. Adolfo Suárez
tores, e que seja uma po- limites geográficos da
Reitor SALT derosa ferramenta para o região Sul e alcançarão
cumprimento da Missão”. teólogos, professores,
Me. Pr. Marlinton Lopes estudantes e demais inte-
“Enfim nasceu! E ressados ao redor do pla-
Presidente USB
tem a cara do Pai! Nome? neta, contribuindo para a
‘Teologia em Revista’. Missão de pregar o evan-
Me. Pr. Gilberto Damasceno Esta publicação acadêmi- gelho e discipular mais
Diretor Geral IAP ca semestral surge para
apresentar artigos e pes-
quisas em teologia, ciên-
cias da religião e temas
interdisciplinares que au-
xiliarão pastores, líderes
e membros a fortalecer
pessoas para a Obra".
“
Teologia em Revista I SALT IAP Página 7
Dr. Erico Tadeu Xavier David B. H. da Silva
A ira de
Deus:
Um estudo
teológico
da justiça
divina
através de duas facetas: mi- Ira. Deus. Juízo. Justiça. Pecado. Pecador.aaaaasasasa
Re
de natureza exploratória e
bibliográfica, envolve a busca
sobre o tema em vários teó- Ira.
logos, principalmente da área Deus.
su
sistemática. A partir das con-
siderações desses teólogos,
Juízo.
Justiça.
mo
este trabalho traz uma defini-
ção do que é a ira divina e faz
articulações sobre qual seria
a natureza dessa ira e como a
mesma pode ser contrastada
com a ira humana. Preocu-
* Pecado.
Pecador.
Abs
phic nature, involves the se-
arch on the subject in seve-
Wrath.
ral theologians, mainly in the God.
systematic area. Based on the Judgement.
tract *
considerations of these theo-
Sin.
logians, this work provides a
definition of what divine wra- Sinner.
th is and articulates what the
nature of that wrath would be
and how it can be contrasted
with human wrath. It is also
concerned with describing
the manifestation of God's
wrath against sin that involves
the plan of redemption in the
present and eschatological
aspect. It concludes that the
wrath of God is manifested
against all kinds of impiety,
remaining impartial and just,
different from human wrath,
which is generally partisan
and selfish, lending itself to a
greater objective of revealing
God's aversion to sin and lead
people to repentance in Je-
sus Christ, in accordance with
His justice, His law, and His
character. Palavras-chave:
1.
misericórdia e justiça, que,
por vezes, tem se revelado
através da ira. Diferentemen-
te da ira humana, a ira divina Diferentemente
In
se apresenta como uma ma- da ira humana, a
nifestação contra o pecado, ira divina se apre-
sendo, portanto, inerente ao
plano de redenção no aspec- senta como uma
du
ção
envolve a busca sobre o tema
em vários teólogos, principal-
mente da área sistemática.
Ao traçar a definição
da ira divina em contraste
com a ira humana, preten-
de-se contribuir significativa-
mente para a melhor com-
“
sendo, portanto,
inerente ao plano
de redenção no
aspecto presente
e escatológico.
C
e White Junior (2010), orge GER, WHITE JR., 2010, p. 922).
omo é de conheci- designa uma expressão de ira A expressão thumos
mento geral, a Bíblia foi onde a mente está num esta- significa “raiva ardente, pai-
escrita em três línguas, do controlável e calmo. Ge- xão” (VINE, UNGER, WHITE
hebraico, aramaico e grego. ralmente ele é usado quan- JR., 2010, p. 723). Esse termo
Contudo, palavras que deno- do existe uma intenção de designa uma explosão de sen-
tam o sentido de ira só apa- vingança. “Originalmente ela timentos interiores originada
recem em hebraico ou grego. significa ‘impulso, disposição de um evento exterior. Como
Segundo Reis (2017, p. natural’. Com o tempo, ga- orge essa palavra pode apa-
17) as expressões hebraicas nhou o significado de “raiva’” recer em casos de vingança.
utilizadas para descrever a (p. 922). Esta palavra é usa- É uma expressão usada para
ira de Deus são basicamente da no contexto bíblico tanto indicar um sentimento que
as seguintes: “‘ânaf, ‘af; chê- para descrever a ira humana “se inflama depressa e logo
mâh, chârâh, chârôn; kâ’as; (Ef. 4:31; Tg 1:19,20) como a se amaina, embora isso não
qâtsaf, qêtsef; bâ’ar, ‘ebhrah; ira de Deus (Mc 3:5; Hb 3:11 e esteja necessariamente im-
râgaz, rôgez; zâ’am, za’am; 4:3; Rm 9:22; Jo 3:36; 1Ts 2:16). plicado em cada caso” (p. 922).
zâ’af, za’af, za’êf e zal’âfâh; e Reis (2017, p. 9) acres- Quando designada
rûach.” Esses “termos trans- centa que “orge é menos para Deus, aparece oito ve-
mitem a ideia de impaciên- súbita que thumos em seu zes. Sete delas, no Apoca-
cia, desgosto, irritação, ira, aparecimento; porém, mais lipse; e uma, em Romanos. E
indignação, extermínio” (REIS, duradoura.” Barnhouse (1959, todas as vezes carrega “um
2017, p. 8), entre outros. Em apud REIS, 2017, p. 9) ex- sentido escatológico, uma
sua maioria são usadas para plica que orge “traz a ideia referência à cólera divina
Deus, mas também são usa- de uma indignação que au- que incidirá no final da histó-
das para descrever a ira hu- menta gradualmente até ria humana sobre o pecador
mana. Nenhuma delas tem se tornar mais consistente”. contumaz” (REIS, 2017, p. 9).
um significado teológico es- Reis (2017) também desta-
pecial, pelo contrário, “[...] o ca que quando esse termo
uso paralelo desses termos for aplicado para Deus deve
em um mesmo versículo ou ser separado de toda seme-
perícope demonstra que eles lhança com a ira humana.
têm significado semelhante.” Já o dicionário VINE
(BALOIAN, 1992, apud REIS, acrescenta outra palavra: pa-
D
e acordo com a a nar- irado, o ser humano dificil- e na maioria
rativa bíblica o ho- mente pondera as atitudes e
mem perdeu o con- consequências, e, muito me- das vezes
“
tado direto com Deus devido nos, o melhor para com aque- partidária.
ao pecado (Is 59:2). Deus não le(a) que é o objeto de sua ira.
pode mais se revelar de forma Como exemplo dis-
visível, e então se fez necessá- so, temos Jonas com sua ira
rio outra forma de revelação. acendida depois que sua
A Bíblia é uma das maneiras missão em Nínive havia ter-
de Deus se revelar. Contudo, minado (Jn 4:1-11). Foi a ira
para que o homem pudesse de Caim que o levou a matar
compreendê-lo, Ele precisou seu irmão Abel (Gn 4:5,8), e
falar na nossa linguagem. Bi- que quase levou Saul a matar
blicamente chamamos isso Davi e seu próprio filho Jôna-
de antropomorfismo e antro- tas (1Sm 18:11; 19:10; 20:30-34).
popatia. O primeiro é a atri- A ira está classifica-
buição de formas físicas hu- da por Paulo como “obra da
manas a Deus, e o segundo é carne”, em Gl 5:19-21, junta-
a atribuição dos sentimentos mente com idolatria, bebe-
e emoções do ser humano a deiras, espiritismo e outras
Deus (PFEIFFER; VOS; REA, coisas, e o texto deixa claro
2017). Isso não significa que que quem as pratica não en-
Deus tenha a mesma forma trará no reino dos céus. O mo-
física do homem ou a mes- tivo disso é óbvio. A ira não
ma natureza de sentimen- faz parte do fruto do Espírito
tos que a nossa (REIS, 2017). e, nas palavras de Tiago, “[...]
O amor humano, por a ira do homem não opera
exemplo, por mais genuíno a justiça de Deus” (Tg 1:20).
que seja, é naturalmente ego- Paulo, ao aconselhar
ísta e orgulhoso. Não há amor Tito, adverte os presbíteros a
por alguém sem a retribuição não serem irascíveis (Tt 1:7),
desse amor. Ninguém entra e apela também para que os
num matrimônio apenas para efésios fiquem “longe de toda
fazer a outra pessoa feliz, mas amargura, cólera e ira” (Ef
porque também vê que pode 4:31,32), pois o próprio Deus os
ser feliz com a outra pessoa. havia perdoado dos seus pe-
E mesmo que, com a ajuda cados e assim eles deveriam
de Deus, o homem chegue agir também com as demais
ao ponto de amar o próxi- pessoas. Mas, “quem se irar
mo como a si mesmo, nunca contra seu irmão estará sujei-
o amará como Deus o ama. to a julgamento” (Mt 5:22), ar-
Com a ira não é diferente. A ira ranjando dessa maneira “um
humana é volátil, nem sem- laço para alma” (Pv 22:24, 25).
pre justificável, e na maioria
das vezes partidária. Quando
Não é é difícil notar frontado pelo pecado e pelo da ira de Deus não é contra-
que, na grande maioria das ve- mal”. Ele classifica a ira de ditório nem incompatível com
zes, nossa ira vai contra tudo Deus como uma caracterís- Sua natureza. Visto que Deus
que o reino de Deus repre- tica pertencente ao Seu ca- é amor, Seu objetivo é salvar
senta. Talvez seja por isso que ráter, sem a qual Ele deixaria todos os seres humanos. Pau-
tantas pessoas não admitem a de ser completamente justo lo expôs com precisão esse
ideia de um Deus irado. Como e seu amor degeneraria em fato básico da teologia cristã
disse Bruce (1986, p. 231): sentimentalismo. Grudem em uma afirmação concisa:
(2015, p.151) concorda com ‘Deus não nos destinou para
Se se pensa que a Shedd ao dizer que a ira é a ira, mas para alcançar a
palavra não é mais apro- um atributo comunicável de salvação mediante nosso Se-
priada para usar-se com Deus “que expressa seu ódio nhor Jesus Cristo’ (1 Ts 5:9).
relação a Deus, é provavel- por tudo que confronta seu
mente porque a ira como a caráter moral. Portanto, sua O que os autores aci-
conhecemos na vida huma- ira está intimamente associa- ma querem dizer é que ira e
na, constantemente envolve da à sua santidade e justiça”. amor coexistem em Deus.
paixão egocêntrica, pecami- Nessa perspectiva, Contudo, o amor é uma in-
nosa. Com Deus não é assim. Deus não pode ser justo se tenção de Deus enquanto a
não aborrecer a maldade e a ira é uma resposta ao pecado
Portanto, não pode- injustiça. E se fosse, Ele seria humano. Assim como um dos
mos comparar a ira de Deus um Deus romântico, na melhor reflexos do amor é a miseri-
com a nossa ira. Nossa ira ge- das hipóteses, como naque- córdia e o perdão, um dos re-
ralmente procura satisfação les romances de início de um flexos da justiça é a ira e a pu-
própria de justiça. Justiça essa relacionamento onde os erros nição. Porém, tanto ao amar
que, na maioria das vezes, são ignorados pois a paixão quanto ao punir Deus é justo:
não tem suas pressuposições encobre tudo. Mas Deus não
enraizadas na concepção de é assim. Sua ira não é uma [...] no Novo Testamen-
justiça do reino de Deus. Por ficção ou brincadeira (Martin to os homens não ouvem qual-
outro lado, a ira de Deus é na- Luther, 1549 apud GEISLER, quer choque entre a ira divina
turalmente diferente e se ma- 2003). As pessoas que ficaram e a longanimidade divina; pelo
nifesta de maneira diferente: de fora da arca de Noé e os contrário, ficam certos tanto
habitantes de Sodoma e Go- da bondade quanto da seve-
A ira de Deus não in- morra entenderam isso bem. ridade de Deus; certos de que
dica alguma forma de emo- E apesar de, às ve- a sua severidade faz parte da
ção humana, que perturbe zes, a ira divina parecer se- Sua bondade, e que, se essa
o equilíbrio emocional das vera, ela sempre é “‘justifica- severidade estivesse ausente,
pessoas e as torne desejo- da’ e ‘imparcial’ [...] governada ele não seria bom, porquanto
sas de ferir às outras, em for- pelo seu amor à justiça [...] e os alicerces morais do mundo
ma de ações maldosamente não proveniente de um ca- se desequilibrariam e entra-
planejadas, conforme a ira pricho momentâneo a ser riam em colapso (GOSSIP, apud
humana geralmente obriga posteriormente lamentada” APOLINÁRIO, 1990, p. 368).
as suas vítimas a fazerem. (ESTUDO, 1991, p. 417-418).
(CHAMPLIN, 2002, p. 576). Em mais simples,
Deus não age de forma par-
Mas então, por que cial, irracional e impulsi-
Deus se ira? Sua ira não con- va. Todos os seus atos, se-
tradiz seu amor? E ainda: qual jam bênçãos ou punições,
é a natureza de sua ira? são temperados com amor.
Shedd (1978, p.753) Canale (2012, p.
define a ira de Deus como “a 127) declara que:
atitude permanente do Deus
santo e justo, quando con- [...] o conceito bíblico
O conceito
bíblico da
ira de Deus
não é con-
traditório
nem in-
compatível
com Sua
natureza.
“
Teologia em Revista I SALT IAP Página 16
2.3
A MANIFESTAÇÃO DA IRA
DIVINA CONTRA O PECADO
D
Na perspectiva bí- juízo. A primeira forma é a que permissivo, mas também
blica, a ira de Deus chamamos de natural. Nesta, punitivo. MacArthur (2002, p.
se manifesta quando Deus apenas permite que o 129,130, tradução nossa) diz
um pecador não responde homem sofra as consequên- que o verbo paradidomi é
ao chamado de arrependi- cias de suas escolhas. Como tão intenso que foi usado em
mento e escolhe, sistemati- exemplo, vamos analisar Rm um sentido jurídico. Ou seja,
camente, rejeitar ao seu Cria- 1:24-32. Os versículos anterio- além de retirar do homem
dor e Redentor. Logo, não res a essa passagem dizem sua proteção “permitindo que
podemos argumentar que que Deus se irou contra os as consequências do pecado
Deus é injusto ou maldoso homens, pois estes, mesmo sigam seu curso inevitável e
ao manifestar sua ira, como tendo o conhecimento de destrutivo”, o homem, ao ser
explica Xavier (2018, p. 46): Deus,escolheram continuar abandonado por Deus, está
na prática do pecado (v. 18- sentenciado a morte eter-
Alguns ficam pertur- 23). A ira de Deus e sua conse- na. Logo, o verbo assume
bados com o pensamento quente punição se manifesta- dois significados: o de per-
de um Deus de ira e punição. ram de uma maneira muito missão e punição, revelando
Argumentam que é contrário interessante. A punição a qual Deus como um sujeito passi-
à Sua natureza executar juí- Deus os sentenciou foi a con- vo e ativo ao mesmo tempo.
zos ou castigos. No entanto, o cessão da liberdade - a liber- Assim, Deus entre-
apóstolo Paulo diz claramente dade fora dos planos de Deus. ga esses homens a “imun-
na epístola aos Hebreus que, O verbo que Paulo dícia, as paixões infames e a
como o pai corrige o seu filho usa três vezes para expressar uma disposição mental re-
que ama, Deus também corrige isso é παρέδωκεν (SCHOLZ, provável” (v. 24-28). O que
aos que ama e considera seus 2004, p.567-569) palavra de- naturalmente esperaríamos
filhos (Hb 12:4-11). Isto significa rivada de didomi ou paradi- desses homens após eles
que Ele castiga. No entanto, o domi (MOUNCE, 2012, p.467- terem consciência disso é
castigo de Deus é uma conse- 468) que indica “permissão” que se arrependessem. Mas
quência de nosso pecado (Rm ou “entregar nas mãos - en- não é assim que o capítulo
1 e 2). Não se origina em Deus tregar alguém ao domínio ou termina: “Ora, conhecendo
(Tg 1:13). A necessidade de controle de outros” (LOUW; eles a sentença de Deus, de
castigo se origina em nós, em NIDA, 2013, p.149, 422). Neste que são passíveis de morte
nosso pecado, em nossa deso- caso, Deus estaria permitindo os que tais coisas praticam,
bediência, em nossa dificulda- ao homem viver como bem não somente as fazem, como
de para atender às coisas de quer, ou ainda o entregando também aprovam os que
Deus. Deus é amor e miseri- a si mesmo e às consequ- assim procedem” (Rm 1:32).
córdia (1 Jo 4:8), mas também ências de sua vida longe de No entanto, no mo-
é justiça (Sl 89:14), e a Sua jus- Deus. A ideia que transmi- mento em que houver arre-
tiça pode por vezes manifes- te é que Deus se abstém do pendimento por parte do pe-
tar-se em juízo punitivo contra cuidado com essas pessoas cador, Deus cessa seu juízo e
o pecado e a transgressão. e as deixa por conta própria. concede sua graça e perdão:
Outros comentaristas “Meus filhinhos, estas coisas
Basicamente existem defendem que esse aban- vos escrevo, para que não pe-
duas formas de Deus exercer dono de Deus não é apenas queis; e, se alguém pecar, te-
mos um Advogado para com de Jesus, mas contra o peca- feta Isaías, a estranha obra
o Pai, Jesus Cristo, o justo. do que estava sobre Ele. Nas de Deus (Is 28:21). Atos de ju-
Ele é a propiciação pelos palavras de White (2007b, p. ízo. Novamente o juízo é um
nossos, mas também pe- 525): “Deus permitiu que Sua castigo. Mas não originado
los de todo o mundo” (1 Jo ira contra a transgressão ca- em Deus. É uma consequên-
2:1-2). As consequências do ísse sobre Seu amado Filho. cia de nossas faltas. O castigo
pecado podem até vir, mas Devia ser crucificado pelos e o juízo se originam em nós;
a restauração é garantida. pecados dos homens”. se não cometêssemos nenhu-
A segunda forma que Esse é o evangelho ma falta, se nunca tivéssemos
Deus exerce Seu juízo, e tam- que como cristãos devemos pecado, Deus também nun-
bém a mais interessante, é pregar. O nosso pecado foi ca teria castigado. A morte
quando Deus manipula a pu- colocado sobre Jesus para do pecador não existiria. Mas
nição. No Antigo testamento, que a Sua justiça fossa impu- a realidade é que o pecado
de modo especial, encontra- tada/colocada sobre nós. As- existe em nós, somos deso-
mos diversos exemplos. No sim a ira de Deus recaí sobre bedientes, somos tardos para
dilúvio (Gn 6:1-9:28) Deus rei- Jesus, enquanto sobre nós aceitar os ensinos de Deus.
niciou a terra praticamente do recai o amor do Pai. “[...] Mas,
zero. Em Números 16, vemos o Filho de Deus, que em as- Apesar disso, a ira de
a terra se abrindo e engolin- sociação com o Pai criara o Deus, enquanto não chega o
do Corá, Datã e Abirão. Em homem, podia fazer pelo ho- fim, “é temperada com mise-
Gênesis 19, vemos a destrui- mem uma expiação aceitável ricórdia” (APOLINÁRIO, 1990,
ção de Sodoma e Gomorra. a Deus, dando Sua vida em p. 367). “Ele, porém, que é
Em Êxodo 7:1-12, vemos as sacrifício a arrostando a ira de misericordioso, perdoa a ini-
dez pragas caindo sobre o Seu Pai” (WHITE, 2008, p. 48). quidade e não destrói; antes,
Egito. Miriã e Arão também Apesar de Deus já ter muitas vezes desvia a sua ira
sofreram uma punição divina executado Sua ira em mui- e não dá largas a toda a sua
(Nm 12:9,10). Em 1 Crônicas tas ocasiões no passado, indignação” (Sl 78:38), e ainda:
13, Deus puniu Uzá porque ele ainda a executa hoje (Sl “Porque não passa de um mo-
este tocou na arca. E, talvez, 7:11), e a executará num fu- mento a sua ira; o seu favor
o maior exemplo do juízo di- turo não muito distante, visto dura a vida inteira” (Sl 30:5).
vino no AT seja as punições que o pecado ainda existe É certo que Deus está
e, por fim, o exílio de Isra- em nosso planeta. Apocalip- mais inclinado a perdoar e
el descritos em Dt 28:15-68. se 14:9-10 fala que aqueles redimir do que a castigar e
Mas no Novo Testa- que receberem a marca da punir. Porém, a resposta di-
mento também existem ca- besta beberão “[...] do vinho vina depende da escolha
sos de Deus executando sua da cólera de Deus, prepara- humana. E, nesse aspecto,
ira em juízo. Ananias e Safira do, sem mistura, do cálice fica mais evidente o papel
morrem por terem menti- de sua ira, e será atormen- que a ira divina exerce na
do (At 5:1-11), e talvez o caso tado com fogo e enxofre [...]”. salvação da humanidade.
mais curioso seja quando Alguns versícu-
Deus exerce sua ira sobre Je- los depois, João descre-
“
sus. Isso pode parecer estra- ve as sete pragas que cai- O nosso
nho. Mas se pensarmos que o rão sobre os ímpios. Sobre pecado foi
objeto da ira de Deus é o pe- elas, Xavier (2018, p.56) diz: colocado
cado, e que Jesus carregou sobre Jesus
“sobre si as nossas enfermi- Em Apocalipse 15:1 o
para que a
dades, dores, castigo”, e que apóstolo João fala dos sete
“o Senhor fez cair sobre ele as anjos que carregam as sete
Sua justiça
nossas iniquidades” (Is 53:4-7), pragas que consumam a ira fossa impu-
fica claro que Deus exerceu de Deus sobre a Terra. As úl- tada/colo-
sua ira sobre Jesus. A ira de timas pragas, como a morte, cada sobre
Deus não era contra a pessoa são atos que, segundo o pro- nós.
A
partir das informações podem ser permissíveis ou di- LHEIROS, 2019, p. 26). Com
expostas, entende- retamente enviados por Deus, respeito aos ímpios, Jesus é
-se que a ira de Deus como já visto anteriormente. o aplicador da ira divina (At
exerce um papel constante no Castigos permissíveis podem 17:31), tanto dos juízos parciais
presente e atuará com maior ser vistos, por exemplo, nas de Deus, quando do juízo final:
força no futuro, quando tudo consequências desastrosas
e todos estiverem julgados. de desonrar os pais, adulterar, Finalmente a justi-
Campos (2012, p. 357), classi- mentir, usar drogas etc. Como ça de Deus será vista em sua
fica essas atuações da ira de exemplos de castigos tempo- disposição para com todas as
Deus como “parciais” e “finais”. rais e enviados diretamente suas criaturas no fim – a glória
Os juízos parciais de de Deus, temos Acã, que de- eterna para aqueles que, atra-
Deus ao longo da história são sobedeceu a ordem de Deus vés da redenção, entraram em
juízos de advertência (MA- e pegou despojos dos inimi- relacionamento com Ele que
XWELL, 2012). Claro que o gos de Israel. Como consequ- deu liberdade a Ele de operar
dilúvio, Sodoma e Gomorra e ência ele e sua família foram para eles uma perfeita justiça
outros episódios exemplificam apedrejados e queimados (Js de tudo o que seu infinito amor
juízos de execução. Mas antes, 7:24-25). E também Datã, Abi- dispõe; por outro lado, uma re-
Deus havia advertido as pes- rão e Coré que não se arrepen- provação eterna para aqueles
soas. E mesmo essas execu- deram da revolta ao governo que persistentemente o repu-
ções servem de advertência e de Moisés, e juntamente com diam (CHAFER, 2013, p.228).
apontam para o grande dia do seus seguidores foram engo-
juízo final de Deus. Atos 17:30- lidos pela terra (Nm 16:1-49). Por último, um dos pa-
31 diz: “[...] agora, porém, no- Essas funções da ira péis da ira divina é demonstrar
tifica aos homens que todos, divina na história apresenta- a retidão e a justiça de Deus.
em toda parte, se arrepen- das até aqui são traduzidas Isso será visto de maneira
dam; porquanto estabeleceu por Campos (2012, p. 360) de especial no dia do juízo final:
um dia em que há de julgar o uma forma bem interessante: “Haverá tal revelação do cará-
mundo com justiça”. Ou seja, “Com relação a ira de Deus, ter de cada pessoa ante todos
as demonstrações de desa- Jesus exerce três papéis ao os que a rodeiam, ou diante
grado de Deus contra o peca- mesmo tempo. Um tem a ver de todos que a conhecem,
do e os pecadores impeniten- consigo mesmo, outro tem a que a justiça de sentença de
tes são uma advertência e um ver com os filhos de Deus e condenação ou absolvição
chamado ao arrependimento outro, ainda, com os ímpios”. será evidente” (HODGE, 2001,
e a uma vida de santidade. Com respeito a si p. 1644). Pelo resto da eterni-
Deus também exerce mesmo e aos filhos de Deus, dade não haverá dúvidas da
sua ira para demonstrar seu Jesus recebe essa ira no lu- justiça do julgamento divino e
desagrado contra o pecado gar daqueles que aceitam de sua própria pessoa. Agindo
e os pecadores. “É como se seu sacrifício de expiação e assim, Deus está “mantendo
ele fosse alérgico ao pecado propiciação, poupando esses a justiça exigida pela Sua lei”
e ao mal” (ERICKSON, 1997, dessa ira. Essa “salvação in- (APOLINÁRIO,1990, p. 368).
p. 119), e então, castiga tem- clui tanto o perdão e a purifi-
porariamente os pecadores cação dos pecados, quanto a
impenitentes. Esses castigos libertação da ira divina” (MA-
A
partir das conside- do seu pecado, a ira que era
rações feitas neste
trabalho, podemos
nossa, por direito concedido
pela transgressão, é posta so- Autores
concluir que a ira de Deus se bre o Filho, e a justiça dEle é
manifesta contra todo tipo de imputada sobre nós. Por cau-
Saiba mais
impiedade, permanecendo sa do Cordeiro morto e que
imparcial e justa, diferente da vive, podemos ser libertos da Erico Tadeu Xavier
ira humana, que geralmente é ira divina. Mas para isso é ne- Doutor em Teologia e
partidária e egoísta. Apesar dis- cessário aceitar Seu sacrifí- professor no Seminário
Adventista Latino-
so, a ira humana pode ser jus- cio expiatório e propiciatório.
Americano de Teologia
tificável quando ela também Por fim, ficou claro
(IAP) – Ivatuba, PR.
é contra o pecado - e nisso que as punições passadas e
Contato: etxacademico@
(motivo), ela é igual a de Deus. presentes de Deus são sem- gmail.com
O fato de Deus se pre por amor. Elas têm como
irar não contradiz Sua natu- propósito revelar a aversão de
reza amorosa. Pelo contrário, Deus face ao pecado e nos David Barcelos
como um Pai que ama seus conduzir ao arrependimento Hernandes da Silva
filhos, Ele os corrige. Por ve- em Jesus Cristo e assim nos
Bacharel em Teologia
zes, Sua correção é deixar o redimir e compensar Sua jus- pelo Seminário Adventis-
homem livre para viver como tiça, exigida pela Sua lei e pelo ta Latino-Americano de
quer, sem a influência do Es- Seu caráter. Além disso, elas Teologia
pírito Santo. Quando Deus faz são apenas parcelas de uma (IAP) – Ivatuba, PR.
isso, Paulo diz que Ele os en- dívida que será cobrada no ju- Contato: davidben1995@
tregou a si mesmos e, então, ízo final. Ou seja, esse dia, o dia hotmail.com
todo o tipo de perversão se do juízo final, não será dedica-
manifesta, culminando com a do para negociar a dívida. Esse
punição final: a morte eterna. tempo já terá passado. É um dia
Em outras ocasiões, de cobrança e recompensa.
quando o pecado alcançou ní-
veis elevadíssimos, Deus agiu
de maneira direta, punindo
“
com a morte o pecador rebel-
de. Durante a história pode- O fato de Deus
mos ver muitos destes casos. se irar não
O Antigo Testamento, de for- contradiz Sua
ma especial, contém inúme- natureza amo-
ros relatos da ação direta de rosa. Pelo con-
Deus em juízo. Já no Novo Tes- trário, como
tamento, as ocorrências são um Pai que
menores, mas é nele que se
ama seus filhos
revela a maior manifestação
Ele os corrige.
da ira de Deus até o presen-
te momento – a cruz. Nesse
pedaço de madeira feito sob
medida, a medida do meu e
APOLINÁRIO, Pedro. Expli- GRUDEM, Wayne. Teologia SHEDD, Russell, Philip. O novo
cações de textos difíceis da Sistemática: atual e exaustiva. dicionário da Bíblia. 2 ed. São
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A crítica
feminista
à teologia
cristã:
Uma
análise
crítica à
teologia
feminista
mo
pas são apresentadas suas
principais proposições e
toda a sua influência na arti-
culação da teologia feminis-
ta. Por meio desta pesquisa,
é possível chegar à conclu-
são de que a critica feita
pelo movimento feminista à
teologia cristã é uma crítica
que contradiz o próprio mo-
dus operandi do movimento
em si.
Abs Key
ology. The research presents
as a historical background
the beginning of the feminist
movement, going through
words:
tract
its three stages: first, second
and third wave of feminism. In
each stage its main proposi-
tions and its influence on the
articulation of feminist theo-
logy are presented. Through
*
Feminism.
Catholicism.
Protestantism.
In
mulheres tiveram uma parti- ba tendo uma relação signi-
cipação mais intensa na luta ficativa com as revoluções
pela modificação de sua con- Francesa (1789-1799) e Ame-
dição, como também de sua ricana (1775-1781), e, mobili-
tro
família (SCHMIDT, 2012, p. 12). zou mulheres de vários países
De acordo com Oli- para reivindicar seus direitos
veira e Cassab (2014, p. 12), sociais e políticos (OLIVEIRA;
os primeiros indícios do mo- CASSAB, 2014, p. 1).
du
vimento feminista ocorreram Conforme a descrição
durante a Revolução Fran- de Cassab e Oliveira, levando
cesa, através da publicação em consideração a opinião de
do livro A Vindication of the Elizabete Rodrigues da Silva,
ção
Rights of Woman (1792), de “o movimento feminista sur-
Mary Wollstonecraft. O livro ge com a intenção de rom-
tinha como objetivo, não ape- per com a ordem patriarcal,
nas reivindicar, mas também denunciando a desigualdade
legitimar e ampliar os direitos entre homens e mulheres e
políticos, educacionais, ma- buscando direitos igualitários
ternais e trabalhistas para as e mais humanos para as mu-
mulheres e tantos outros di- lheres” (SILVA, 2002 apud OLI-
reitos que estivessem relacio- VEIRA; CASSAB, 2014, p. 2).
nados às questões de âmbito No decorrer do tem-
social. po, o feminismo vai ganhado
Zina Abreu (2002, corpo e tomando novas pro-
p. 444) observa que Mary porções. Desde a Revolução
Wollstonecraft “manifestou a Francesa até os dias atuais, o
sua preocupação com o es- movimento feminista passou
tatuto social, político e civil por três etapas , denominado
das mulheres da sua época, de primeira, segunda e tercei-
que considerava deplorável”; ra onda do feminismo.
e unicamente, na visão de
Wollstonecraft, por meio de
2. As três ondas
do movimento feminista
C
om o surgimento de Ferreira, observa que a pri- espécie de ‘bíblia’ do novo
um novo discurso fi- meira onda vai “desde o final feminismo: A mística femi-
losófico a respeito da do século XIX até a década de nina” (PINTO, 2010, p. 16).
mulher, nas últimas déca- 1930” (FERREIRA, 2017, p. 5). Com o objetivo de
das do século XIX, caracte- No entanto, esta fase questionar os parâmetros po-
rizado por acontecimentos do movimento feminista que líticos impostos pela socie-
que visavam a melhoria na se inicia na Europa, Estados dade, o feminismo se alinha
forma de viver da mulher e Unidos e também no Brasil, com o pensamento liberal e
marcado por manifestações teve seu momento de declí- rompe com tudo aquilo que
em favor do direito ao voto, nio após a década de 1930, é privado na esfera social.
como também contra a dis- tornando a ressurgir, desta Com isso, o movimento pas-
criminação feminina, teve vez com mais força, na dé- sa definitivamente a ter uma
início a chamada primeira cada de 1960 (PINTO, 2010, estrutura organizada (OLI-
onda do feminismo (RODRI- p. 16), quando passa a ter VEIRA; CASSAB, 2014, p. 2).
GUES; COSTA, 2019, p. 5). uma nova reconfiguração, Assim como outros
chamada de segunda onda. movimentos, o movimento
feminista passou por dife-
rentes fases no desenrolar
2.1 2.2 da história. Quanto à segun-
da onda, “o mais caracterís-
PRIMEIRA ONDA tico dessa etapa é a busca
SEGUNDA ONDA da emancipação da mulher
nas várias dimensões de sua
D
existência” (SOCIEDADE DE
A
e acordo com com TEOLOGIA E CIÊNCIAS DA
Céli Regina Jardim referência fundamen- RELIGIÃO, 2003, p.19-20).
Pinto (2010, p. 15), “a tal para falar da se-
chamada primeira onda do gunda onda do mo- Durante o século XX, o
feminismo aconteceu a partir vimento feminista da década chamado “Feminismo Liberal”,
das últimas décadas do sécu- de 1960, é o livro O segundo passou por várias fases – en-
lo XIX, quando as mulheres, sexo, de Simone de Beauvoir, tre se fortalecer e perder pres-
primeiro na Inglaterra, orga- publicado no final da década tígio na sociedade –, porém
nizaram-se para lutar pelos de 1950. Nesta obra, Simo- uma nova consciência o im-
seus direitos, sendo que o ne procura estabelecer as pulsionou, promovendo outras
primeiro deles que se popu- máximas do feminismo (OLI- conquistas, tanto na produ-
larizou foi o direito ao voto”. VEIRA; CASSAB, 2014, p. 2). ção teórica quanto na prática.
Corroborando com o Para consolidar ainda Era visível uma nova direção
pensamento de Pinto a res- mais o movimento feminista, empreendida pelo movimen-
peito do surgimento da deno- “em meio a esta efervescên- to, sendo conhecido naquele
minada primeira onda femi- cia, Betty Friedan lança em momento como “Feminismo
nista, Lilian Tavares de Barros 1963 o livro que seria uma Radical”. Esse se constitui com
1. Aparentemente, a teoria das três etapas é a mais conhecida e divulgada pelas feministas. Teologia em Revista I SALT IAP Página 26
pesquisas acadêmicas, re- fundamentado pela explica- tre tantas outras” (DI FIORI,
flexões, lutas radicais e pelo ção de que homens e mulheres 2007 apud COELHO, p. 217).
enfoque nos temas sobre vio- seriam em essência diferentes. Atualmente, a pro-
lência sexual, sexualidade e posta central do feminismo
direitos sobre o próprio corpo. As feministas desta da terceira onda está relacio-
Tais questionamentos e mu- corrente defendem a ideia nada ao estudo das relações
danças tornaram-se os frutos de que é preciso que todas de gênero, ao mesmo tempo
de uma produção teórica, de as mulheres se unam na luta em que pensa a igualdade
reflexões e estudos acadêmi- contra o patriarcado, rejeitan- e diferença, destaca Mayara
cos, utilizando, naquele mo- do todas as instituições que, Pacheco Coelho (2016, p. 217).
mento de matrizes teóricas para elas, são fruto do pa- Na terceira onda, as
marxistas e da psicanálise triarcalismo. Neste caso, para feministas passam a questio-
(OLIVEIRA; CASSAB, 2014, p. 2). derrotar a opressão femini- nar o próprio movimento em
na, não basta ficar no campo si, pois para elas a primeira e
Durante as décadas teórico, é preciso sair para a a segunda onda não contem-
de 60 e 70, especialmente luta, observa Silva (2008, p. 4). plavam as mulheres como
nos Estados Unidos, houve Silva destaca ainda um todo. A partir de então,
um grande agitamento en- que “o despontar da corren- começa a ocorrer um proces-
tre as ativistas feministas que te Feminista Radical, foi for- so de desconstrução univer-
visava a uma reorganização temente marcado por uma sal da mulher, pois nem todas
das lutas pelos direitos das luta política voltada para o as mulheres vivem em uma
mulheres. Essa nova onda, conhecimento, valorização e mesma situação, cada qual
adjetivada como Feminismo libertação do corpo feminino”, vive em contextos sociais
Radical, buscava encontrar, sem contar que “lutaram pelo diferentes umas das outras.
por meio da reflexão e inves- fim da tirania da família bioló- Desta forma, a terceira onda
tigação acadêmicas, traços gica, e a favor da bissexuali- propõe o reconhecimento da
históricos das desigualdades dade, onde a diferença ge- pluralidade feminina em to-
sociais de origens patriarcais nital entre os sexos não mais dos os seus aspectos, como
que oprimiram as mulheres importava” (SAFFIOTI, 1987 destacam Melaine C. Marques
no decorrer da história, e lu- apud SILVA, 2008, p. 10-11). e Kella R. L. Xavier (2018, p. 6).
tar contra todo tipo de dis-
criminação e preconceito
com base sexista sofrido por
mulheres ao longo dos tem-
pos (SILVA, 2008, p. 4). Nas
2.3
palavras de Silva (2008, p. 4): TERCEIRA ONDA
O Feminismo Radical
A
é uma corrente feminista que
se assenta sobre a afirmação terceira onda do mo-
de que a raiz da desigualdade vimento feminista
social em todas as sociedades ocorre com maior
até agora existentes tem sido intensidade entre os anos
o patriarcado, a dominação de 1990 a 2000 (MONTEI-
do homem sobre a mulher. A RO; GRUBBA, 2017, p. 264).
Teoria do Patriarcado consi- Nessa etapa, o feminismo
dera que os homens são os passa por um momento de
primeiros responsáveis pela fragmentação que acaba
opressão feminina e que o pa- “ocasionando o surgimento
triarcado necessita da diferen- de outras correntes como o
ciação sexual para se manter anarco-feminismo, eco-fe-
como um sistema de poder, minismo, feminismo pop, en-
A
té o começo dos anos ras patriarcais e os modelos mais justa no campo eclesi-
1960, várias organi- androcêntricos passam a ser ástico, era fundamental que
zações feministas já questionadas dando lugar a ela tivesse como suporte
estavam empenhadas nas algumas transformações em para seu discurso uma teo-
lutas pela igualdade dos di- relação ao papel da mulher, logia que fosse ao encontro
reitos civis entre homens e observa Gibellini (2012, p. 419). das necessidades da mulher,
mulheres (JUNIOR; SOUZA, Como já abordado e que pudesse resistir à es-
2012, p. 3). Como resultado nos parágrafos anteriores, o trutura teológico-eclesiástica
desse engajamento, surgiram feminismo não foi um movi- reinante até aquele momen-
reflexões teológicas: “Todo mento que influenciou ape- to. Neste caso, nada melhor
esse movimento teve uma in- nas os campos da política, que uma teologia feminista.
fluência direta na articulação filosofia e sociologia, mas
da Teologia Feminista, uma também a teologia. Na rea-
teologia que visa a libertação lidade, pode se dizer que, o
das mulheres” (BLASI; BRUN; movimento feminista influen-
DILLENBURG, 2016, p. 11). O ciou todas as subáreas das
movimento ganhava força e Ciências Humanas (ROSADO, Feminismo
“
se solidificava cada vez mais 2018). E é a partir da Revolu- não foi um
em alguns países ocidentais, ção Francesa, quando o movi- movimento
tais como: França, Grã-Bre- mento feminista surge, que a que influen-
tanha e Estados Unidos. A luta pela igualdade da mulher ciou apenas
luta das mulheres neste pe- passa do campo sócio/políti- os campos
ríodo ficou conhecida como co e, com o decorrer do tem-
da política,
o estágio dos movimentos po, se estende para o campo
filosofia e
pela emancipação da mulher. religioso (MARTINS, 2018).
De início, foram cria- No entanto, para
sociologia,
das várias organizações fe- que a teologia feminista ti- mas também
ministas. Essas organizações vesse um lugar no campo a teologia
feministas estavam empenha- eclesiástico, seria necessá-
das em realizar mudanças no rio, primeiramente, ter uma
campo social, cultural e polí- abertura de pensamento e
tico; no tocante à questão da estrutural na sociedade, para
mulher, o foco maior era uma que pudessem construir ca-
busca pelos direitos femininos minhos para a esfera teo-
(JUNIOR; SOUZA, 2012, p. 3). lógica. E foi o que ocorreu.
A partir dos anos A estrutura eclesiás-
1960, o movimento feminista tica - tida como símbolo de
assume a forma de liberta- dominação masculina - pas-
ção da mulher, estimulando saria, agora, a não mais ser
as lutas da Teologia Feminista vista com bons olhos frente
para algo que fosse além da às novas mudanças sociais.
questão da igualdade entre Todavia, para que a mulher
homem e mulher. As estrutu- pudesse ter uma inserção
O
s séculos XVI e XVII Sem contar que esse Deus tos, teólogas feministas,
foram marcados por priorizava o homem e detri- passam a olhar com sus-
filosofias que aba- mento da mulher. Neste caso, peita algumas passagens
laram a teologia da Igreja as teólogas feministas con- bíblicas, tidas como patriar-
cristã, lançando dúvidas e cluíram que era necessário cais, como vemos a seguir:
incertezas, inclusive, quan- reconstruir a imagem de Deus
to à autoridade da Bíblia. O com traços femininos, ca- A Bíblia é um texto sa-
conceito bíblico de divinda- racterísticos à mulher (SOU- grado e muito importante para
de, como também os aspec- ZA; SCHMITT, 2018, p. 91). a igreja cristã, mas ela precisa
tos éticos religiosos judai- A teóloga Ivone Geba- ser lida com olhos críticos. É
co/cristãos passaram a ser ra (2007, p. 11-12), por exem- necessário reavaliar os textos
duramente questionados. A plo, em sua obra O Que é Te- bíblicos e procurar analisar o
partir de então, a ciência e a ologia Feminista, questiona o lugar teológico dado para ho-
razão passam a ocupar o lu- fato de que o fazer teologia mens e mulheres. Precisamos
gar que outrora pertenciam estivesse restrito aos homens. perguntar pelas relações que
aos pressupostos básicos da Segundo Gebara, essa ex- existem na Bíblia, perguntar
fé judaico/cristã contidos na pressão masculina de Deus é onde estão as mulheres que
Bíblia. Esta, por sua vez, dei- consequência de uma cons- foram invisibilizadas e por-
xa de ter primazia quanto a trução simbólica e linguística que foram invisibilizadas. As
ter uma verdade absoluta. masculina do homem para relações de poder são assim
Sendo assim, uma Deus. Gebara observa ainda constituídas porque a própria
vez que a ideia de divindade que esta linguagem masculi- Bíblia nos ensinou perspecti-
conforme descrita pela Bí- na do divino se torna um en- vas patriarcais. Por este moti-
blia passou a ser entendida trave para a inclusão de ele- vo é necessário reler os textos
apenas como fruto de uma mentos simbólicos femininos, bíblicos a partir de um olhar
construção social, patriar- o que para ela é uma injustiça. crítico, sempre lembrando que
cal e machista, era neces- Gebara (2007, p. 14) Jesus veio para reconciliar o
sário descontruir esta ima- ainda observa que, geral- mundo e pregar a igualdade.
gem masculina de Deus e mente, nas religiões mono- Além disso, precisamos reco-
resgatar os traços femininos teístas, a figura da divindade nhecer o potencial das mu-
na divindade. Nesta pers- é revestida de traços patriar- lheres e trabalhar para que
pectiva, a teologia feminis- cais, gerando uma cultura de elas se sintam empoderadas
ta propõe uma releitura do dominação masculina que e desafiadas para assumirem
texto bíblico que contemple reprime toda e qualquer ten- estes espaços de liderança e
também as mulheres (SOU- tativa feminina de representar cargos de representatividade,
ZA; SCHMITT, 2018, p. 89-90). Deus em simbolismo e lin- revalorizando seu papel na
Na avaliação feminis- guagem. Para ela, isso acar- caminhada da igreja e lem-
ta, o discurso tradicional da reta consequências de ordem brando que muitos espaços
igreja cristã, com sua des- psicológica e social, geran- foram abertos e conquistados
crição bíblica do Deus dos do organismos/mecanismos igreja e lembrando que muitos
hebreus, não era familiar à de dominação e submissão ços foram abertos e conquis-
mulher, pois ele estava muito do homem sobre a mulher. tados graças a luta de mui-
aquém do universo feminino. Diante de tais fa- tas mulheres (BLASI; BRUN;
espaços foram abertos e con- Streck (2019, p. 2), “a teologia um recurso para a liberta-
quistados graças a luta de feminista coloca em discus- ção e emancipação da mu-
muitas mulheres (BLASI; BRUN; são o mundo masculino e o lher, como observa Fiorenza.
DILLENBURG, 2016, p. 24). seu modelo social patriar- Neste caso, “o obje-
cal”. Neste caso, a teologia tivo da hermenêutica femi-
De acordo com Rava- feminista vem para romper nista não é simplesmente
si (2015), “as feministas estão com as estruturas sociais interpretar textos bíblicos e
colocando em discussão to- e eclesiásticas considera- transmitir revelações divinas,
das as formas hierárquicas, das patriarcais e opressoras. mas remover a mistificação
os papéis tradicionais de lide- Desta forma, pode- e a desumanização kyriar-
rança, a distinção entre clero -se afirmar que, assim como cais”, afirma Fiorenza (2009,
e leigos, as formas, a lingua- outras teologias de liberta- p. 87). Desta forma, toda es-
gem, as imagens de culto e ção, “a teologia feminista é trutura e conceito religioso
espiritualidade que não sejam uma teologia da libertação cristão, que dá sustentação
inclusivas”. Além disso, temas das mulheres, isto é, elabo- e legitima o kyriarcado, deve
relacionados à religião, como rada e praticada por mulhe- ser tomado como suspeitos.
família e sexo, também são res militantes no movimen- Krob e Streck con-
alvos da desconstrução femi- to de libertação da mulher” firmam que a hermenêuti-
nista: “são objeto de crítica às (GIBELLINI, 2012, p. 421). ca da suspeita é uma das
definições da vida familiar e Em sua obra Cami- características importantes
dos papéis sexuais que estão nhos da Sabedoria, a teólo- da teologia feminista (2019,
na base da educação religio- ga Fiorenza (2009, p. 23-24), p. 3); e é correto dizer que
sa” Ravasi (2015). por exemplo, destaca que os a hermenêutica da suspei-
Para a teóloga fe- estudos bíblicos feministas ta é uma das ferramentas
minista Elisabeth Schüssler das décadas de 1970, 1980 fundamentais no processo
Fiorenza (1995, p. 70), o fe- e 1990 foram fundamentais de interpretação do texto
minismo é assertivo quan- para o estabelecimento de bíblico com viés feminista.
do faz crítica ao cristianismo. uma nova área de pesquisa Para a hermenêutica
Segundo ela, o cristianismo na teologia, e com publica- feminista, “os textos bíblicos
influenciou fortemente a cul- ções próprias das mulheres. não somente devem ser liber-
tura ocidental, e este serve O resultado dessas pesqui- tados de suas interpretações
de base para o fortalecimen- sas serviu de suporte para o patriarcais, mas os próprios
to da ideologia sexista que ensinamento de conceitos da estudos teológicos como um
trata de inferiorizar as mu- teologia feminista em escolas todo, devem ser submetidos
lheres, justificando as desi- e cursos de nível superior em a uma reivindicação crítica
gualdades institucionais por diversas regiões do mundo. fundamental” observa Urich
meio da teologia tradicional. Tais estudos, em sua H. J. Körtner (2009, p. 51-52).
Citando Mary Daly, maioria, apresentam quatro Ainda, de acordo com
Fiorenza (1995, p. 70) afirma pontos em comum: 1) que a o teólogo Körtner (2009, p.
que o patriarcalismo cristão Bíblia serve a interesses pa- 52), “a hermenêutica feminis-
levou, inclusive, as mulheres triarcais; 2) a formação do câ- ta da suspeita parte do pres-
a se voltarem contra si mes- non bíblico se deu em cultu- suposto teórico de premissas
mas, o que para ela é um ab- ras e sociedades patriarcais; feministas, reunidas no con-
surdo. Sem contar que, em 3) o ensino bíblico é ensinado ceito de sexismo”. Assim sen-
sua visão, as mulheres são em comunidades religiosas do, para a interpretação femi-
pessoas histórica e cultural- patriarcais, e 4) levando em nista, a Bíblia é fruto de uma
mente oprimidas por causa do consideração os três primei- linguagem masculina e nem
sexo. Neste contexto, Schüller ros pontos destacados, é ne- todo o seu conteúdo pode ser
Fiorenza compara o sexis- cessário realizar um processo tido como verdade absoluta,
mo ao racismo (1995, p. 67). crítico interpretativo feminis- voga Fiorenza (1992, p. 36-38).
Conforme Daniéli Bu- ta do texto bíblico, para que
sanello Krob e Gisela I. W. ela possa funcionar como
A
o patriarcalismo ou kyriarcado. é a Palavra de Deus (verda-
história registra que Seja na esfera social de absoluta), não só aceitam
sempre houve mu- e/ou política, o feminismo como defendem releituras e
lheres que lutaram vai criticar e colocar em dú- desconstruções feministas
por direitos igualitários em vida, tudo aquilo que, em sua da Bíblia e de crenças funda-
relação aos homens. No en- visão, seja promotor e/ou mentais, tendo como base a
tanto, é a partir da Revolução agente da opressão da mu- hermenêutica da suspeita?
Francesa que o movimento lher. Neste caso, nem mesmo
feminino se estrutura e pas- a Bíblia está livre de qual-
sa a lutar organizadamente quer suspeita, julgamento ou
pelos direitos das mulheres. desconstrução. Isso se deve
Entrementes, por volta do fi- ao fato de o texto bíblico ser,
nal do século XIX e início do para a teologia feminista, um
século XX, ocorreram diver- dos principais responsáveis
sas manifestações públicas por toda estrutura de domi-
em favor das mulheres, dando
início à primeira onda do mo-
nação da mulher, em espe-
cifico, no mundo ocidental.
Autores
vimento feminista. Esta que Para as teólogas fe- Saiba mais
tinha por objetivo a emancipa- ministas, a teologia cristã não
ção da mulher na sociedade. pode ser considerada como Tiago Dias
Em oposição à pri- sendo ou contendo a verdade
de Souza
meira onda do movimento absoluta, verdade esta funda-
Doutor em Teologia
- que tinha um viés mais re- mentada nas Escrituras Sagra-
ligiosamente conservador –, das; pois a Bíblia, antes de se (EST, São Leopoldo-RS)
o feminismo segunda onda considerar absoluta, precisa E-mail: pr.tiagodias@
(1960-1980) trazia uma ver- passar pelo crivo da interpre- hotmail.com
ABREU, Zina. Luta das mul- João Paixão Neto. 3. ed. São Públicas, Universidade Estadu-
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Bernardo do Campo: Nhanduti GRUBBA, Leiliane Serratine. A
Editora, 2009. luta das mulheres pelo espaço
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GIBELLINI, Rosino. A teologia a 29 de maio de 2014. Anais do
do século XX. Tradução de III Simpósio Gênero e Políticas
Religião,
pandemia e
comunicação
institucional:
O que os grupos religiosos
noticiaram no pico do iso-
lamento social da
COVID-19 no Brasil
Re
busca mostrar o que diferen-
tes grupos religiosos predo- Palavras
minantes no Brasil comunica-
ram e como se posicionaram Chave:
su
no auge do isolamento social.
Para tanto, buscou-se anali- Comunicação.
sar os tipos de notícias divul- Institucional.
gadas nos sites institucionais
Notícias.
mo
das Igrejas Católica, Congre-
gação Cristã no Brasil, Univer- Covid-19.
sal do Reino de Deus, Batista, Pandemia.
Adventista do Sétimo Dia, Es-
pírita e afro-brasileira. A partir
do levantamento e da técnica
de Análise de Conteúdo (AC),
contabilizou-se 487 publica-
*
Igrejas.
Isolamento social.
tract
positioned themselves at the
height of social isolation. To
Communication.
this end, we sought to analyze News.
the types of news published Covid-19.
on the institutional websites
Pandemic.
of the Catholic, Christian Con-
gregation in Brazil, Universal
Kingdom of God, Baptist, Se-
venth-day Adventist, Spiritist
and afro-brazilian churches.
Based on the survey and the
*
Churches.
Social isolation.
In
Vale lembrar que esse mo- na vida das pessoas acelera-
mento foi marcado pela de- ram os processos de trans-
terminação das medidas de formação digital para que as
isolamento social estabeleci- novas necessidades fossem
tro
das pelo poder público para sanadas pelos serviços ofe-
conter à pandemia da Co- recidos na internet. Durante
vid-19 no Brasil. a pandemia, não só a tv, rá-
Diante do cenário de dio ou as redes sociais, mas
du
incertezas sobre o futuro, de- também os websites organi-
semprego, mortes sendo no- zacionais das congregações
ticiadas diariamente, Reinaldo religiosas se tornaram, como
e Santos (2016) enfatizam que definem Sant’Anna e Fernan-
Para não perder o con- comunicação com os fiéis.
tato com os fiéis, as congrega-
ções religiosas migraram para
o ambiente digital. Os encon-
2. A pandemia
no Brasil e no mundo
A
Organização M u n - ronavírus e 433 suspeitos. Em mendou cautela. Ainda em
dial de Saúde 5 do mesmo mês, confirmou- junho, o país registrou 100 mil
(OMS) foi alertada, -se a primeira transmissão in- novos casos em três dias. O
em 31 de dezembro de 2019, terna, no Brasil. A edição ex- Ceará passou a ter mais mor-
sobre casos de pneumonia tra do Diário Oficial da União tes do que a própria China.
na cidade de Wuhan, China (DOU) publicou a assinatura Nesse período, o Brasil en-
(ISAÚDE, 2020). Suspeitava- de contratos para aquisição trou como o segundo maior
-se de um novo tipo de coro- de máscaras de proteção. país com casos de pesso-
navírus, até então, não iden- Em 12 de março ocor- as infectadas por COVID-19.
tificado em seres humanos. reu a primeira morte por co- Em 19 de junho, o
Em 7 de janeiro veio a confir- ronavírus no Brasil. No dia se- Brasil ultrapassou um milhão
mação do novo coronavírus guinte, o Ministério da Saúde de infectados pelo vírus. No
pelas autoridades chinesas. regulamentou os critérios de mesmo mês a OMS decla-
Dia 11, o novo vírus rece- isolamento para a quarente- rou o país como responsável
beu o nome de SARS-CoV-2. na. As igrejas em todo o Brasil por uma a cada quatro mor-
Em 21 de janeiro foi re- tiveram os cultos cancelados. tes nas Américas. Em 1° de
gistrado, nos Estados Unidos, Depois de 114 países julho, o boletim epidemioló-
o primeiro caso de COVID-19 atingidos pela doença, em gico do Ministério da Saúde
em alguém que teria retorna- 11 de março, a Organização informou que houve redução
do da China. Em 23 do mes- Mundial da Saúde (OMS) de- de mortes pelo coronavírus.
mo mês, a OMS comunicou clarou o novo coronavírus Em 6 de agosto, o
que o vírus era emergente na como uma pandemia. A Eu- Instituto Butantan informou
China, mas o nível de conta- ropa se tornou o epicentro a possibilidade de a vacina
minação mundial era mode- da doença no mundo. Em contra o coronavírus estar
rado, como noticiou a repor- 22 do mesmo mês, o Brasil em circulação até outubro
tagem do G1, em 3 de abril apresentou o maior índice de 2020. Enquanto o Brasil
de 2020 (PINHEIRO, 2020). do isolamento social (62,2%). registrava a marca de três
Tudo indica que a Em 19 de maio, com milhões de infectados, a Rús-
pandemia alterou a rotina dos 17.971 mortos e 271.628 casos, sia anunciava a primeira va-
brasileiros de 26 de fevereiro o Brasil esteve entre os três cina chamada de Sputnik V.
em diante, quando houve a países com o maior núme- Em 9 de novembro,
confirmação do primeiro caso ro pessoas infectadas, atrás a Anvisa interrompeu os tes-
no Brasil. O paciente era um apenas dos EUA e Rússia. tes em humanos da vacina
homem de 61 anos, que re- Segundo a OMS, em maio, Coronavac, realizadas pelo
tornou da Itália e deu entra- a América do Sul tornou-se Instituto Butantan. O motivo
da no Hospital Albert Einstein o novo epicentro do vírus e teria sido um “evento adver-
(SP). Em 29 de fevereiro, o o Brasil o país mais afetado. so grave” com um dos vo-
Brasil teve o segundo caso Em 2 de junho, cida- luntários, como noticiou o
importado do coronavírus. des brasileiras iniciaram a G1 (2020). Dois dias depois,
No início de março, flexibilização das restrições. o Instituto Butantan teve au-
o Ministério da Saúde confir- O Organização Pan-Ameri- torização para retomar os
mou dois casos do novo co- cana de Saúde (Opas) reco- testes, visto que a morte do
3. governamentais, posiciona-
mento científicos, a pergunta
que fica é: como as instituições
COMUNICAÇÃO religiosas no Brasil se posicio-
naram diante da pandemia?
INSTITUCIONAL Será que dentro das organi-
zações religiosas, o discurso
NA PANDEMIA da fé prevaleceu acima das
recomendações científicas e
médicas, quanto à COVID-19?
A
Quais discursos institucionais
comunicação é uma foram adotados pelas igrejas?
parte essencial das O que move este tra-
organizações. É por balho vai além da buscar por
ela que os grupos existem e uma reflexão sobre comu-
estabelecem relacionamen- nicação institucional religio-
to com o público. Segundo sa diante de crises como a
Kunsch (2003), a comunica- do coronavírus. A presente
ção institucional envolve um pesquisa busca apresentar
conjunto de informações de o posicionamento religioso,
interesse público a respei- na web, diante do contexto
to das filosofias, políticas, da pandemia de COVID-19
práticas e objetivos de uma que o mundo todo enfrenta.
organização. Portanto, a co- A comunicação insti-
municação de uma institui- tucional, de caráter informa-
ção deve ser pensada numa tivo e social, responsável em
perspectiva que contem- cuidar da imagem e reputa-
ple a contemporaneidade. ção de uma empresa, se não
A comunicação reli- for bem desenvolvida, pode
giosa, já ambientada na web, gerar mais fragmentação da
precisou adaptar-se às novas realidade e falsas notícias
rotinas de produção de con- sobre um tema de interes-
teúdo. Diante da pandemia se global, social e científico.
da COVID-19, em meio a con-
flitos e tomadas de decisões
políticas, houve instituições
39
Me. Renata da Cruz Paes
3.1
FUNDAMENTAÇÃO
Até 2013 a
TEÓRICA
internet seria
o veículo de
D
iante de uma pan- to e o retorno gradativo aos comunicação
demia, em que ati- cultos presenciais, os cultos
tudes individuais on-line estabeleceram-se
mais utilizado
passaram a afetar o coletivo, como uma contínua alterna- pelas Igrejas
“
a comunicação institucio- tiva para quem ainda se res-
nal das igrejas exerce mais guarda em isolamento social, no Brasil.
ainda o papel de influência. como é o caso dos idosos.
Marshall McLuhan Banni et al. (2020)
(1964), na obra Os Meios de perceberam que o isola-
Comunicação como Exten- mento social potencializou
são do Homem, afirma que “o as interações entre os fiéis
meio é a mensagem”. Em ou- nas redes sociais, ao agre-
tras palavras, a presença de gar valor e engajamento
determinado meio de comu- nas comunidades religiosas.
nicação que informa a socie- É neste ponto que
dade também a transforma, esta pesquisa se mostra
muda hábitos e a percepção mais relevante ainda, pois as
que as pessoas têm do mundo. redes sociais institucionais
O presente estudo têm sido alvo de centenas
baseia-se na ideia de Martino de pesquisas, antes mesmo
(2017), que atribui às crenças da pandemia. Porém, mui-
o modo como as pessoas, so- to antes da consolidação
ciedade, comunidade vivem das redes sociais, já existiam
e relacionam-se uns com os outras plataformas digitais
outros. Lemos e Amado (2020) para divulgação de informa-
chegaram a dizer que até ções institucionais, como os
2013 a internet seria o veícu- sites dos grupos religiosos.
lo de comunicação mais uti- Eles são fontes ofi-
lizado pelas Igrejas no Brasil. ciais e por meio deles as
Logo, como enfatizam instituições buscam divul-
Maciel e Garcia (2006), as co- gar comunicados oficiais,
munidades virtuais refletem o conteúdos doutrinários e de
que as comunidades físicas interesse público. Porém,
pensam e praticam. E é pela há escassez de autores que
comunicação institucional analisam esta ferramenta e,
que as empresas, neste caso, consequentemente, recebe
grupos religiosos, constro- menos visibilidade para ques-
em a própria personalidade tionamentos do que é publi-
perante seus públicos, ao di- cado pelos grupos religiosos.
vulgar suas filosofias, políticas
e práticas (GARÇON, 2010).
Após a flexibilização
das medidas de isolamen-
D
iante da pluralida- ser escrito, decifrado pelas ro de Geografia e Estatística
de religiosa no Bra- técnicas de análise de con- (IBGE, 2010), que mostra o seg-
sil, a presente pes- teúdo” (BARDIN, 1977, p. 32). mento religioso da população
quisa analisa as notícias dos A AC é uma técni- residente no Brasil. Dentre os
sites das igrejas Católica, ca de investigação aplicada seis grupos religiosos citados
Batista, Universal, Assem- tanto para pesquisas quan- abaixo, selecionou-se os qua-
bleia, Adventista do Séti- titativas quanto qualitativas. tro primeiros mais expressi-
mo Dia, bem como Espírita A diferença é que, segundo vos: católicos, evangélicos,
e religiões afro-brasileiras Silva et al. (2005), Caregnato espíritas e afro-brasileiros.
durante o período de maior e Mutti (2006), a quantitati- A partir de 1980, o
isolamento social da pande- va resulta na frequência de Brasil passou a vivenciar o
mia de COVID-19 no Brasil, características repetidas no chamado pluralismo religioso
a partir de março de 2020. conteúdo do texto, enquanto (MARTINO, 2017). Ainda se-
O estudo também a qualitativa se verifica a au- gundo Martino (2017), o Brasil
quantificará que grupo reli- sência ou presença de de- já não tinha mais o catolicis-
gioso mais publicou no site terminada característica de mo como denominação prin-
institucional durante o maior um trecho da mensagem. cipal. Movimentos religiosos
pico de isolamento, iden- Neste trabalho utili- minoritários – evangélicos e
tificará que tipos de infor- za-se quatro procedimentos espíritas - passaram a se or-
mações foram prioritárias e para delimitar a amostragem ganizar e a ganhar espaço.
apresentará o discurso das das matérias jornalísticas. A
igrejas em relação as me- primeira refere-se à escolha
didas de isolamento social das instituições religiosas;
Para tanto, utiliza-se seguida de pré-análise das
a técnica da Análise de Con- matérias jornalísticas; depois,
teúdo (AC), que se apresen- categorização; e, finalmen-
ta como “um transporte de te o tratamento dos dados.
significações de um emissor A escolha das institui-
para um receptor controlado ções religiosas baseia-se no
ou não por este, deveria poder Censo do Instituto Brasilei-
Religião Endereço
Igreja Católica www.vaticannews.va/pt.html
Congregação Cristão www.congregacaocrista
no Brasil nobrasil.org.br/
Universal www.universal.org/
Batista www.convencaobatista.com.br/
Adventista www.adventistas.org.br
Espírita www.febnet.org.br/portal/
Umbanda www.noticiasdeterreiro.com.br
1-O ESEB trata-se de uma pesquisa pós-eleitoral que buscou traçar os contextos sócio-políticos que afetam Teologia em Revista I SALT IAP Página 42
diretamente as dinâmicas eleitorais. Entre as variáveis pesquisadas estão as crenças dos cidadãos.
A
pesar de a Assem- Era importante ter a com 62,2% de índice registra-
bleia de Deus ser o data das matérias, visto que do, segundo o Mapa do Índice
grupo religioso evan- a amostragem foi delimitada de Isolamento Social no Brasil.
gélico pentecostal com maior de 15 de março a 4 de abril Fez-se o levanta-
número de membros, o site de 2020. O período compre- mento quantitativo de notí-
institucional não favoreceu a ende uma semana antes até cias, classificando-as con-
busca das notícias por data, uma semana depois da data forme as editorias, que
o que inviabilizou definir a de maior pico de isolamento são seções especializadas
amostragem a ser analisada. social no Brasil, 22 de março, em temáticas específicas.
4.
RESULTADOS E
DISCUSSÃO
D
e 15 de março a 4 de údo publicado (225), seguido movimento do neopentecos-
abril de 2020 foram da Católica (117) e Adventista talismo, que é uma das verten-
contabilizadas 487 pu- do Sétimo Dia (42). Apesar de tes do pentecostalismo que
blicações (Figura 1) nos sites o catolicismo ter um número mais cresce atualmente, e é
institucionais da Igreja Católi- maior de fiéis no Brasil e es- a que ocupa maior espaço na
ca, Congregação Cristã no Bra- tar presente na comunicação televisão brasileira. O neopen-
sil, Universal do Reino de Deus, desde os anos 1930 (PRA- tecostalismo se iniciou na se-
Batista, Adventista, Espírita e TA; LOPES; CAMPELO, 2014), gunda metade de 1970, cres-
afro-brasileira (que compre- Cunha (2019) reforça que a ceu e ganhou visibilidade com
ende o Candomblé, Umbanda, Igreja Universal, nos últimos a Universal do Reino de Deus.
Quimbanda, Batuque, além anos, investiu massivamen-
das demais crenças e cultu- te nos meios de comunica-
ras de origem afro e brasileira). ção como rádio, tv e website.
Percebeu-se que o Mariano (2004) res-
site da igreja Universal teve salta que a Igreja Universal foi
maior quantidade de conte- responsável por dar início ao
2. O Mapa do Índice de Isolamento Social no Brasil mostra a o percentual da população que respeita a recomendação de
isolamento. Ele foi desenvolvido para auxiliar as autoridades, segurança pública, comunicação e saúde. Disponível em: Teologia em Revista I SALT IAP Página 43
<https://bit.ly/3mjsdl5>. Acesso em 22 Mar. 2021.
Me. Renata da Cruz Paes
I
dentificou-se 11 editorias diretamente de assuntos re- ção da editoria de “en-
(seções) nos sites insti- lacionados à pandemia da tretenimento” como des-
tucionais. Todas trataram COVID-19, com exce- crito no gráfico abaixo.
Fonte: Autora, 2020.
Igrejas Entrete
Atualidade Economia Meio Ambiente Saúde
Editorias nimento
Adventista 1 0 0 0 0
Católica 0 0 0 0 0
Cristã do Brasil 0 0 0 0 0
Espírita 0 0 0 0 0
Umbanda 0 1 0 0 0
Universal 1 1 28 1 2
Fonte: Autora, 2020
“
dos tempos, publicou con- co, opiniões e preferências
teúdo acusando a imprensa dos evangélicos no Brasil, dogmáticas
de oportunismo ao noticiar Bohn (2004) constatou que
sobre o posicionamento do os evangélicos fazem parte
dirigente maior da igreja, de um grupo que levanta a
Edir Macedo, quanto às me- bandeira do conservadoris-
didas de isolamento e re- mo, se comparado a outros
O Autores
tema coronavírus es- diferentes entre si, notou-se
teve presente entre o engajamento da Igreja Ca-
os sete grupos reli- tólica, Universal e Adventis-
giosos alvos da pesquisa. Com ta, com atualizações diárias
Saiba mais
exceção do site “universal.org”, no site oficial institucional.
os demais sites convergiram Percebeu-se que os Renata da
para o discurso semelhante sites “Vatican News”, “univer- Cruz Paes
ao da ciência e das autorida- sal.org” e “adventistas.org” são
des de saúde, quanto a impor- atualizados cotidianamen- Mestra em Ciências
tância do isolamento social. te, e que a valorização desta Ambientais (Universi-
Assim como as pes- plataforma digital (site) não
dade do Estado do Pará
soas apegaram-se a fé, os necessariamente tem que
– UEPA), Especialista em
grupos religiosos, tentaram ver com o número de mem-
amparar os fiéis com conte- bros no Brasil, e sim com o Assessoria de Imprensa e
údo sobre espiritualidade, engajamento social, político Jornalismo Empresarial
amplamente divulgados no e defesa do que acreditam. (Estácio – MG), graduada
site institucional. Publicações Como grupos que em jornalismo (Faculdade
voltadas à espiritualidade e influenciam diretamente no de Estudos Avançados do
ações institucionais, não ul- comportamento e pensa-
Pará – FEAPA).
trapassaram a quantidade mento dos fiéis, as igrejas, ao
Contato: contact.renata-
de informações e orienta- publicarem informações nos
ções sobre o coronavírus. sites institucionais, reforçam paes@gmail.com
Essa atitude torna cla- a relevância que as ferramen-
ro o papel da comunicação tas de comunicação oficial
institucional das igrejas: o de para orientar o próprio público.
dialogar com o público, inter- Em período de pan-
no e externo, informar com demia, a comunicação insti-
qualidade, se posicionar e tucional dos grupos religio-
demonstrar interesse e preo- sos não parou, revelando-se
cupação com o cenário atual. como serviço essencial de
Idenficou-se ainda o orientação aos fiéis, produ-
empenho dos grupos religio- ção de conteúdos espirituais e
sos, até mesmo da Congrega- posicionamento institucional.
ção Cristã no Brasil, quase au- Ainda assim, é neces-
sente do ambiente digital, em sário repensar algumas publi-
informar oficialmente sobre as cações emitidas por grupos
medidas de cancelamento dos religiosos, que por questões
cultos frente à pandemia e, ideológicas ou partidárias, po-
assim, não causar dúvidas so- dem interferir no comporta-
bre as decisões da instituição. mento das pessoas, a ponto de
Apesar de os grupos afetar a sociedade em geral.
religiosos analisados terem
doutrinas e formas de cultos
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A relevância da
beneficência
social
em Isaías 58:6-7
Re Chave:
no âmbito coletivo e individu-
al. A história mostra que dois
extremos foram praticados
em relação a esse assunto e Beneficência
su
nenhum deles representou a
mensagem bíblica para esse social.
tema. O presente artigo busca Grande
mo
através de uma resenha his-
tórica apontar quais foram os
dois extremos, como a Igreja
Adventista do Sétimo Dia de-
senvolveu sua abordagem e
compreender qual é a rele-
*
reversão.
Isaías 58:6-7.
Palavras-chave:
Abs
mes were practiced regar-
Social
ding to this matter and none
of them has represented the beneficence.
tract
biblical message concerning
to this theme. This article aims
through a historical review to
point out what the two extre-
mes were, and how the SDA
*
Great reversal.
Isaiah 58:6-7.
1.
virtude de um debate entre última metade do século 20
duas linhas teológicas. Sergio desenvolveram seu próprio
Becerra (2011), no seu artigo evangelho social em resposta
La obra humanitária em La às aflições físicas e sociais do
In
misión de La Iglesia Adven- mundo”.
tista, comentou que o embate A mensagem bíblica
entre o liberalismo e o fun- em relação ao cuidado neces-
damentalismo desenvolveu sário para com os que estão
ção
ção é tão séria que “um livro objetivo desse artigo será
que aborde o tema da assis- compreender qual é o enten-
tência e desenvolvimento não dimento da IASD sobre bene-
é encontrado com facilidade; ficência social, como ela se
muito menos um que integre desenvolveu e, por meio de
esses temas como parte do uma breve análise exegética
cerne do ministério do evan- de Is 58:6-7, verificar as princi-
gelho” (KUHN, 2016, p. 13). pais palavras, o contexto his-
A visão da Igreja Ad- tórico e a relevância da bene-
ventista do Sétimo Dia (dora- ficência social para o estilo de
vante mencionada através da vida cristão. Desta forma, res-
sigla IASD) para com os po- ta encontrar a solução para a
bres e oprimidos teve diferen- seguinte problemática: como
tes momentos na história até Is 58:6-7 contribui para o en-
alcançar um consenso que tendimento da beneficência
resultou na atual filosofia da social cristã no cumprimento
Igreja em relação à respon- de sua missão?
sabilidade social do cristão.
Schwarz e Greenleaf (2009,
p. 459) comentam de manei-
ra bem direta que “os adven-
D
esde a queda do ho- que “reconhecer a Deus como a abundância de vossas reu-
mem no jardim do soberano inclui preocupar-se niões que Deus aceita. Não
Éden, a beneficência com os pobres e conceder as numerosas orações, mas a
social tem socorrido o ser hu- liberdade aos que estão pre- prática do bem, o fazer as coi-
mano, e o primeiro agente do sos a um ciclo contínuo de sas certas no tempo certo. É o
socorro foi o próprio Deus. A endividamento”. Ele afirma ser menos egoísta e mais be-
beneficência social não foi ainda que os vários milagres nevolente (WHITE, 1987, p. 28).
algo desenvolvido pelos ho- que Jesus realizou validam
mens, no entanto foi criada Seu amor, zelo e preocupa- Para White, a religião
por causa dos homens. Kuhn ção para com a vida humana por si só não tinha condições
(2016) comenta que sua ori- no âmbito social, físico e es- de ser aceita por Deus se esti-
gem se deu logo após a entra- piritual. Santos (2011) com- vesse destituída da misericór-
da do pecado, quando toda a plementa que Paulo entendia dia para com o semelhante.
Criação foi prejudicada. A mu- que a Igreja devia participar Douglass (2015, p.
lher e o homem perceberam na assistência aos santos 366) comenta que embora
que estavam desprovidos de (2Co 8:4) e desafia os coríntios Ellen G. White “enfatizasse
vestes, e Deus aparece nesse a serem generosos para ali- sua preocupação pelo equilí-
relato com o intuito de res- viar o sofrimento dos irmãos. brio e prioridades, ela deixava
gatá-los e providenciar vesti- Ellen G. White escre- claro que a responsabilidade
mentas para cobrir a nudez e veu muito a respeito da be- para com as necessidades
a vergonha deles. Deus ainda, neficência social. Em suas dos outros é tão importante
além de resolver a necessida- cartas, ela pede aos que se quanto seu dever para com
de imediata deles, promete dizem filhos da luz que leiam Deus”. O trabalho que Jesus
uma solução para o problema o capítulo 58 de Isaías. Her- Cristo desempenhou duran-
do pecado. De acordo com bert Douglass (2015, p. 369) te seu ministério terreno foi
esse autor, “Essa foi a primei- informa que no “Comprehen- também um trabalho de be-
ra vez na história da huma- sive Index to the Writings of nevolência. White (1987, p. 32
nidade que uma assistência Ellen G. White, cerca de 200 e 34) comenta que “somente
emergencial – prover vestuá- referências envolvem Isaías pela manifestação de interes-
rio – se fez necessária e con- 58”. Ellen White (1987, p. 28) se pelos que estão em neces-
cedida” (KUHN, 2016, p. 15). escreveu que aqueles que se sidade é que podemos dar
A benevolência para sentem relutantes em ajudar uma demonstração prática
com o semelhante é demasia- ao semelhante deveriam re- das verdades do evangelho”,
damente importante, e Ellen ler esse capítulo da Bíblia. Na e que “a obra de beneficência
G. White (1987, p. 15) diz que linguagem da própria autora: recomendada nesse capítulo,
“nunca houve tempo em que é a obra que Deus requer de
fosse maior a necessidade do Vós, cujo coração e Seu povo neste tempo. É uma
exército da misericórdia do casa são demasiado estreitos obra indicada por Ele próprio”.
que hoje. Ao redor de todos para prover um lar aos que
nós estão os pobres, os sofre- não o têm, lede-o; os que po-
dores, os aflitos, os tristes, os deis ver os órfãos e as viúvas
que estão prestes a perecer”. oprimidos pela mão de fer-
A obra da beneficên- ro da pobreza e humilhados
cia social é tão importante pela dureza de coração dos
que Kuhn (2013, p. 38) afirma mundanos, lede-o. [...] Não é
A
Roma que os primi- to, mas uma prática concreta.. res homens e mulheres do Im-
tivos cristãos encon- De maneira objetiva, pério se deixaram isolar dentro
traram tinha herdado a Igreja cristã progrediu em dos mosteiros, e assim, o mun-
as maldades sociais de um direção à prática da benefi- do já tão necessitado, perdeu
sistema falido. Contudo, “um cência social. Após o período a possibilidade de contar com
exemplo do testemunho vivo primitivo, novas contribuições sua contribuição (2008, p. 134).,
de Deus em palavras e ações a essa abordagem aconte-
demonstrado pelos que se- ceram, tais como a caridade Pouco antes da Re-
guiram a Cristo também é das ordens monásticas da forma, a pobreza havia se
encontrado durante o perí- Igreja Católica. Earle E. Cairns tornado um grave problema
odo anterior a Constantino” (2008, p. 133) comenta que: e era entendida como voca-
(KUHN, 2016, p. 19). Viven- ção (KUHN, 2013). Essa abor-
do sob o império Romano, os mosteiros eram um dagem teológica distorcida
os crentes “não queriam se refúgio para os que se isolavam sobre a salvação teve que ser
comprometer com as es- da sociedade e precisavam de enfrentada, e recebeu uma
truturas más que permitiam ajuda. Os que necessitavam resposta adequada de Marti-
que o pobre, o doente, o es- de hospitalização geralmente nho Lutero e outros reforma-
cravo e o prisioneiro sofres- eram bem cuidados nos mos- dores. Sobre Lutero, se diz que,
sem sem receber assistência teiros. Os viajantes cansados
alguma” (KUHN 2013, p. 75) podiam estar certos de en- neste contexto, o re-
De maneira surpreen- contrar alimentação e repou- formador pediu que cada co-
dente e motivados pelo auto so no albergue do mosteiro. munidade e cidade devesse
sacrifício de Jesus, os primei- cuidar de seus pobres, adver-
ros cristãos não buscaram Cairns ainda expli- tindo que toda a mendicân-
uma reforma social e sim atos ca que a própria origem dos cia devia ser proibida. Todos
abnegados e sinceros de ca- mosteiros se deu com um aqueles que eram capazes de
ridade, e com isso ajudaram homem que após vender trabalhar tinham a responsa-
a aliviar muitos problemas seus bens e doar aos pobres bilidade de fazê-lo; no entan-
sociais. Wagner Kuhn (2016, escolheu viver uma vida reti- to, para as pessoas que não
p. 97), em seu livro Transfor- rada. De alguma forma a be- podiam trabalhar, uma forma
mação Radical, comenta que: neficência social e os mos- de subsistência devia ser as-
teiros estiveram intimamente segurada (KUHN, 2016, p. 90).
[...] todos os crentes, ligados desde sua origem
“
incluindo os pobres, eram in- também. No entanto, Cairns
centivados a ajudar outras acrescenta que uma compre- Pouco
pessoas pobres, e muitos se ensão equivocada da pobreza antes da
empenhavam em jejum a e do monasticismo contribuí-
Reforma,
fim de poupar um pedaço de ram para o caos social, pois
pão para dar aos mais ne-
a pobreza
cessitados. Esse trabalho de nesse balanço do mo- havia se
caridade não era uma mera nasticismo medieval primitivo tornado
teoria, mas uma realidade há também um débito a se con- um grave
viva; não apenas um concei- siderar, [...] muitos dos melho- problema
“
pois, a assistência social que assuntos sociais. Isso causou
foi sendo transferida para a uma “Grande Reversão” com assuntos
igreja, passa para o poder dos respeito ao envolvimento da puramen-
estados, e assim, “o governo igreja nos ministérios sociais e
te sociais
protestante também colocou assistenciais. Por volta de 1925,
todas as formas de assistên- e até bem depois da II Guerra levou mui-
cia sob uma administração Mundial, a ênfase dos evangé- tas pessoas
central responsável pela ar- licos estava quase totalmente a serem, de
recadação e distribuição de- no evangelismo (salvar almas). certa forma,
las” (KUHN, 2013, p.103-104). Assim as mudanças e o saldo
indiferentes
Após o desenvolvi- negativo criado pela “Grande
mento dos movimentos Pós- Reversão” ainda precisam ser à salvação
-Reforma, dos séculos XVII revertidos (KUHN, 2013, p. 142). pessoal e à
e XVIII, e dos reavivamentos vida eterna
evangélicos dos séculos XVIII Na opinião de Becerra
e XIX, “a preocupação com as- (2011), dizer que a missão da
suntos puramente sociais le- Igreja é somente evangelismo
vou muitas pessoas a serem, é uma maneira muito pobre
de certa forma, indiferentes à de expressar a missão divina.
salvação pessoal e à vida eter- Wagner Kuhn acrescenta que:
na” (KUHN, 2013, p. 134). Esse
extremo causou um grande O desejo contempo-
prejuízo ao entendimento da râneo para inverter a Grande
beneficência social, fazen- Reversão já começou a ser co-
do com que muitos cristãos locado em prática pelos evan-
decidissem tornar-se indife- gélicos que entendem que,
rentes ao sofrimento alheio com razão, não há dicotomia
e focar apenas na proclama- entre fé e obras, entre pala-
ção do evangelho, propondo vras e atos. Eles realmente
apenas a promessa de dias estão começando a entender
melhores no porvir. Em seu que revivalismo e social preo-
livro Integrando Beneficên- cupação podem dar as mãos
cia Social e Desenvolvimento e andar juntos. A esperança é
na Missão de Deus, Wagner que um dia compreenderemos
Kuhn ainda comenta que: que o evangelismo e a preo-
O enfoque por parte cupação social são as mãos
dos cristãos mais liberais em e os pés de um corpo, o Corpo
assuntos puramente sociais de Cristo (KUHN, 2016, p. 130).
A
abordagem da IASD aos pobres e órfãos necessita- verá senão duas classes, e seu
para com os pobres e dos, é negligência a Jesus na destino eterno será determi-
oprimidos passou por pessoa deles. [...] (Isaías 58:7) O nado pelo que houverem feito
diferentes momentos na his- jejum que Deus aceita é des- ou negligenciado fazer por Ele
tória até alcançar um consen- crito. “Que repartas o teu pão na pessoa dos pobres e so-
so que desenvolveu a visão da com o faminto, e recolhas em fredores (WHITE, 2018, p. 637).
Igreja acerca da responsabili- casa os pobres desterrados”.
dade social do cristão. Desde Não esperem que eles venham Aos dirigentes da IASD
muito cedo em seu ministério, a vocês. Não repousa sobre também foram feitos apelos,
Ellen White havia escrito para eles o trabalho de procurá-los como por exemplo: “Deus re-
que se realizasse uma obra e induzi-los a conceder-lhes quer que aqueles que ocu-
enfática em favor dos pobres um lar. Vocês devem buscá-los pam posições de responsabi-
e oprimidos. Para ela, a moti- e levá-los a sua casa. Devem lidade sejam consagrados ao
vação básica desta tarefa era abrir-lhes seu coração. Com trabalho. [...] Os que ocupam
uma imitação de Jesus, e o uma das mãos devem pela cargos de responsabilidade
fracasso em assistir aos des- fé alcançar o braço poderoso devem ser homens piedosos
naturados e afligidos era, na que traz salvação, enquanto [...]” (WHITE, 2005, p. 37). Este
verdade, o fracasso da verda- com a outra, a mão do amor, contexto foi formando uma
deira religião. Em 1868, ela es- devem alcançar o oprimido e melhor compreensão sobre
creveu o que provavelmente aliviá-lo (WHITE 2005, p. 24-34). a beneficência social na IASD.
é seu discurso mais enfático Schwarz e Green-
a favor da responsabilidade Estes e outros cha- leaf descrevem de manei-
social do cristão. Eis aqui al- mados semelhantes incen- ra resumida como ocor-
gumas de suas declarações: tivaram os crentes a assumir reu o desenvolvimento da
sua responsabilidade social consciência social da IASD:
O verdadeiro culto é o para com os pobres e opri-
trabalho junto com Cristo. Ora- midos. Explicando Mateus Não que a igreja nunca
ções, exortação e palestras são 25, Ellen White escreveu: tivesse sentido a relação en-
frutos baratos, frequentemente tre o evangelho e o bem-estar
entrelaçados; mas os frutos “E quando o Filho do das pessoas. Desde seus pri-
que se manifestam em boas homem vier em Sua glória, e mórdios, os adventistas tam-
obras, no cuidado dos necessi- todos os santos com Ele, en- bém haviam ensinado que o
tados, dos órfãos e das viúvas, tão Se assentará no trono da ministério de misericórdia de
são frutos genuínos, e produ- Sua glória; e todas as nações Cristo para com os sofrimen-
zem-se naturalmente na boa serão reunidas diante dEle, e tos era um exemplo para seus
árvore. [...] (Mateus 25:41-46). apartará uns dos outros”. Assim seguidores, daí uma forte ên-
Que união Jesus aqui expressa descreveu Cristo aos discípu- fase nas instituições de saúde.
como existente entre Ele e Seus los, no monte das Oliveiras, as final do século 19, J. H Kellogg
sofredores discípulos! Torna cenas do grande dia do Juí- dirigiu com sucesso as ener-
seu caso o dEle próprio. Identi- zo. E apresentou sua decisão gias adventistas em esforços
fica-Se como sendo em pessoa como girando em torno de um para aliviar o sofrimento, po-
o próprio sofredor. Notem, cris- ponto. Quando as nações se rém sua ruptura com a igre-
tãos egoístas, toda negligência reunirem diante dEle, não ha- ja projetou uma nuvem sobre
“
cobertores, consertavam e sucesso nesta obra [...]. Ela obra cristã
preparavam roupas usadas e está entretecida com a vida
dirigiam campanhas de arre- prática quando é vivida e pra-
para o cor-
cadação de alimento para víti- ticada. A união de obra cris- po e obra
mas de desastres (SCHWARZ; tã para o corpo e obra cristã cristã para
GREENLEAF, 2009, p. 458). para a alma é a verdadeira
a alma é a
interpretação do evangelho”
Sobre as Dorcas, Her- (WHITE, 1987, p. 33). Ela ain- verdadeira
bert Douglass (2015) comenta da comentou que Jesus “deu interpre-
que quando os adventistas aos discípulos lições práti- tação do
consideram as três esferas de cas, ensinando-lhes como
serviço - da igreja local por trabalhar de maneira que as
evangelho”
sua congregação, da igreja almas se sentissem jubilosas
local por sua comunidade e na verdade. Ele simpatizava
da igreja local pela comuni- com os cansados, os sobre-
dade mundial - se lembram carregados, os oprimidos. Ali-
imediatamente da Sociedade mentava os famintos e curava
das Dorcas. No ano de 1956, os enfermos” (WHITE, 1987,
a Associação Geral da IASD p. 56). Em seus últimos anos
“criou o Serviço Adventista (ela morreu em 1915), White
do Sétimo Dia de Assistência fixou sua posição filosófica
Bem-Estar Social para coor- acerca do trabalho pelos po-
denar e dirigir as atividades bres, de maneira destacada.
de socorro internacionais da Por conta des-
igreja” (SCHWARZ; GREEN- sas orientações e do de-
LEAF, 2009, p. 460). Douglass senvolvimento teológi-
(2015) explica que, dezesse- co da missão Schwarz e
te anos mais tarde, o nome Greenleaf escrevem que:
mudou para Serviço Mundial
Adventista do Sétimo Dia [...] o humanitarismo
(SAWS, sigla em inglês), e na adventista era diferente do
década 1980 passou por uma programa social do movimen-
nova reorganização, e agora to ecumênico. Os adventistas
se chama Agência Adventis- viam a ADRA, com suas mui-
ta de Desenvolvimento e Re- tas facetas, como uma cunha
cursos Assistenciais (ADRA). de entrada para a igreja, ape-
Após passar por mo- sar do seu caráter legalmente
mentos desafiadores com a não proselitista. Era um meio
ruptura do doutor J. H. Kel- de divulgar o nome da igre-
logg, no final do século XIX, ja em lugares inóspitos onde
a Igreja gradativamente foi nunca havia tido êxito ou tal-
sendo conduzida à visão que vez nunca tivesse estado an-
possui hoje da beneficência tes. Os dirigentes da denomi-
social. Ellen G. White, em seus nação criam que o organismo
O
6 אֹו֣לֲה ּתֹונַ ֵ֣צ ּֽתקּו׃ ֘הֶז ְם (shalah – “libertes”); ( ַנֵּתקnateq
texto de interesse עַׁשֶ֔ר תֹוּ֣בֻצְרַח ַ֙חֵּ֙תַּפ ּ֒והֵרָחְבֶא – “arranques”) e ֹ( ִכִּּסיתוkisito
deste artigo se en- ָטֹומ ַל ְחת ֶֹ֔וּ֣מדָֻךגֲא רֵּ֖תַהסְו ָ ֽל ָרה֑ ֵע ֙ב
ר ֹשַׁחַּ֤ ֤ל
ֹוא ָפ
ִצּול֙צְר ֙םי ֲה7 – “o cubras”). Tais verbos são
contra nos versos 6 e י־שְפָח ִׁ֔יאכְו ָ ֑ביִת ִ ּֽכםי ים ָ ּ֣ת ִב
ָָטֹומ־ל ֖רּוד ה
֖ ִ ֥יםּת ְמ ְוַ׃ּו ֲעקֽנִֵּ ִּיתַנ o foco de estudo desta aná-
7 do capítulo 58 de Isaías. Se- 7 םיִּ֥יִנֲעַו ָךֶ֔מְחַל ֙בֵעָרָֽל סֹ֤רָפ אֹו֙לֲה lise exegética, tendo em vista
ּומ ְּב ָׂש ְרָך֖ ֥ל ֹא ִ יתֹו ֔ ִת ְר ֶ ֤אה ָער ֹ֙ם וְ ִכ ִּס
gundo Ronald Lobo (2011, p. ֙םֹרָע הֶ֤אְרִת־יִּֽכ תִיָ֑ב איִבָּ֣ת םיִ֖דּורְמ que o verbo exerce a função
61), “os versículos 6-7 formam ם׃ אֹ֥ל ָ֖ךְרָׂשְּבִמּו ֹו֔תיִּסִכְו ת ַעְע ָ ּֽל
תִת ַ׃ ִתםָּֽ ְל de ser uma “palavra variável
um conjunto. Ambos iniciam que exprime ação” (AMORA,
com o mesmo estilo literário: Segundo o aparato 1917, p. 740). Para compreen-
Será que não ( אֹולֲהhalo’) (6a; crítico da Bíblia Stuttgarten- der se a beneficência social
7a)”. Ainda, comenta que, no sia (1997, p. 766), as antigas é relevante para o estilo de
verso 6, a realidade social é traduções no texto de Isaí- vida cristão, ao observar es-
descrita com a metáfora do as 58:6 apresentam poucas tes verbos, serão encontra-
jugo, conotando a opressão variantes. Contudo, Lobo das ações que Deus requer
que as pessoas menos favo- (2011, p. 60) afirma que o daqueles que O seguem.
recidas estavam enfrentan- texto hebraico massorético
do. Já no verso 7, é mantida possui a preferência. Na lin- De acordo com o Di-
a mesma estrutura literária, guagem do próprio autor: cionário Internacional de Te-
mas agora com o foco nos ologia do Antigo Testamento
grupos mais carentes. Desta O v. 6 no segmento 6ª (doravante mencionado nes-
forma, esses dois versos são apresenta uma modificação te artigo com a sigla DITAT),
chaves para verificar o con- entre o texto massorético e o o verbo ( ַּפֵּתַחpatheah - “sol-
ceito de beneficência social Documento da primeira gru- tes”) aparece 135 vezes no
e sua relevância para o es- ta de Qunram (1QIsª). O subs- Antigo Testamento: 97 no Qal;
tilo de vida cristã, fortaleci- tantivo jejum ( ) צ ֹו םaparece na 18 no Nifal; 19 no Piel; e uma
no Hitpael. Os significados como o verbo citado anterior- acordo com o e-Sword (Lvo
básicos são “’soltar’, ‘desatar’, mente, a tradução adequada 22:24; Js 4:18, 8:6, 16; Jz 16:9,
‘tirar’, ‘desfazer’, [...] mas com precisaria de acréscimo de 12, 20:31, 32; Jó 17:11, 18:14;
maior frequência no de ‘sol- palavras, e, de maneira livre Sl 2:3, 107:14; Ec 4:12; Is 5:27,
tar’ (Is 58.6) [...]” (HARRIS, 1998, e aplicada ao português, a 33:20, 58:6; Jr 2:20, 5:5, 6:29,
p. 1250). O significado básico tradução poderia ser “liber- 10:20, 12:3, 22:24, 30:8; Ez 17:9,
deste verbo na aplicação dos tes já!”. O BDB comenta que 23:34 e Na 1:13). Em Salmos,
versos analisados é “soltar”, das 266 vezes que este ver- Jeremias 30:8 e Naum 1:13 há
conotando “colocar em liber- bo aparece no grau Piel, 10 a mesma conotação de Isa-
dade”. Porém, como está no vezes são só no livro de Isa- ías 58:6. A mensagem é so-
Piel, há uma intensidade enér- ías (10:6,16; 27:8; 32:20; 43:14; bre destruir com força e de
gica que não tem como ser 45:13; 50:1; 57:9; 58:6; 66:19). maneira definitiva aquilo que
traduzida com exatidão para Na versão LXX esse tem aprisionado as pessoas.
o português, a não ser que verbo é correspondido pela Ao ser observada
se acrescentassem palavras. palavra διαλύω (dialyō), e de a versão LXX, este verbo
Nesse grau, a tradução pode- acordo com o e-Sword, essa é substituído pela palavra
ria ser “soltes imediatamente”. palavra só ocorre uma vez no δεασπάω (deaspáō - espeda-
O DITAT ainda mos- Novo Testamento, em Atos çar). De acordo com e-Sword,
tra que este verbo, em suas 5:36. Sua tradução para por- ele aparece apenas em Mar-
formas Qal e Nifal, significa tuguês é “dissolver totalmen- cos 5:4 e Atos 23:10. Em Mar-
“abrir”, com exceção de Isaías te”. Tendo em vista que o ver- cos, a palavra é aplicada para
5:27 e 51:14, onde o sentido é bo em hebraico está no Piel, cadeias quebradas, muito
“desatar” e “libertar”. O mesmo percebe-se que os tradutores parecida com a conotação
verbo aparece também em Jó da LXX buscaram intensificar de Isaías 58. Em Atos 23:10 a
12:18; 30:11; Jr 40:4; Sl 102:20; a conotação de soltar, porque tradução é “espedaçar” - Lu-
116:16. Somente no livro de para eles só essa palavra não cas informa ao leitor que o
Isaías ele ocorre mais de 18 bastaria. Buscaram dar a im- comandante, temendo que
vezes (14:17; 22:22; 26:2; 41:8; pressão que era necessário Paulo fosse espedaçado pe-
45:1,8; 50:5; 53:7; 58:6, etc). dissolver por completo aqui- los presentes no Sinédrio, en-
A LXX usa o verbo lo que prendia o necessitado. caminha-o com a sua guarda
λύω (lyō) para traduzir o ver- O verbo ( ַנֵּתקnateq – para a fortaleza com intuito de
bo “( ַּפֵּתַחsoltes”). De acordo “arranques”) pode significar preservar sua integridade físi-
com o software de pesquisa “tirar”, “arrancar”, “quebrar”, ca. Isso demonstra a atitude
bíblica e-Sword, essa pala- “erguer” e “desarraigar” (HAR- que Deus espera dos que pro-
vra aparece 46 vezes em 41 RIS, 1998). Diferentemente curam segui-lo em Isaías 58.
versos do Novo Testamento, de ( ָנַתרnâtar – “desfazer”), O verbo “ – ִכִּסיתֹו( ָּכָסהo
e geralmente é aplicada no o verbo ( ָנַתקnâtaq) sugere cubras”) significa “cobrir”, ge-
sentido de “desligar”, desatar, que o receptor da mensa- ralmente relacionado a roupas
soltar alguma coisa. A mes- gem de Isaías 58 não apenas ou a segredos (HARRIS, 1998).
ma conotação do hebraico). tire as cadeias que prendem Como também está no grau
O verbo ( ַׁשַּלחshalah as pessoas, mas que as des- Piel, uma palavra sozinha no
– “libertes”), de acordo com trua para que não aprisionem português tem dificuldades
e-Sword, aparece 848 vezes mais ninguém. Mais uma vez em expressar o que o autor
no Antigo Testamento, e o Di- a ênfase do grau Piel aparece desejou transmitir, e a tradu-
cionário Brown, Driver e Bri- na tradução. Uma tradução ção livre dessa palavra seria:
ggs (doravante, mencionado livre desse verbo para o ver- “cubras nesse momento!”.
pela sigla BDB) comenta que so, acrescentando palavras De acordo com o e-Sword,
266 destas ocorrências es- para representar a intensida- esse verbo está presente no
tão no grau Piel. O verbo ַׁשַּלח de do Piel, poderia ser “arran- Antigo Testamento em 149
(shalah) também conota uma ques de uma vez por todas” versos, com 152 ocorrências,
ordem para libertar com ên- o jugo. Ele aparece 27 ve- e tem aplicações como “so-
fase e pedido de urgência. Tal zes no Antigo Testamento de brecarregar”, “cobrir”, “encher
S
A palavra corres- tes e prósperas. No entanto
pondente na versão LXX é egundo Ridderbos a prosperidade material le-
περιβάλλω (peribállō). Ela (1986, p. 9), o nome vou a decadência espiritual”.
ocorre 24 vezes no Novo de Isaías tem como Champlin (2001, p. 2780) co-
Testamento, e o versículo significado a expressão “Jeo- menta que “de tão próspera
de destaque é Mateus 25:36, vá deu salvação”, e “talvez os e elevada a situação, Israel e
onde Jesus expressa “es- pais lhe deram esse nome Judá em breve caíram. A As-
tava nu, e me vestistes [...]”. para expressar a sua gratidão síria deu início à derrubada
Nota-se que as ações pela bênção experimentada e Babilônia a terminou”. Ele
requeridas em Is 58:6-7 atra- por ocasião do nascimento também diz que “historica-
vés dos verbos destes versí- do seu filho”. Esse autor tam- mente, Isaías acompanhou
culos têm total relação com bém comenta que, de acor- Amos e Oséias, que ministra-
o tema da beneficência so- do com a tradição, rabínica o ram na nação do norte, Israel.
cial. De acordo com Lobo pai de Isaías, Amos, era irmão Miquéias foi contemporâneo
(2011), no texto analisado do rei Amasias, por isso ele de Isaías e também trabalhou
fica explícito que a supera- tinha descendência nobre e no reino do Sul, Judá” (CHAM-
ção verdadeira da fome, de- possivelmente gozava de in- PLIN, 2001, p. 2779). Nesse
sabrigo e da nudez só será fluência na corte real. Cham- mesmo comentário, encon-
possível com solidariedade. plin (2001, p. 2779) afirma tra-se um resumo do minis-
Após analisar o sig- que “calcula-se que, durante tério de Isaías, segundo ele:
nificado, as aplicações no quarenta anos, Isaías atuou “enfatizava os fatores espiri-
Antigo e Novo Testamen- ativamente como profeta do tuais e sociais. Ele feriu as di-
to sugere-se aqui uma nova Senhor em Judá. Se, afinal ficuldades da nação em suas
tradução livre de Is 58:6-7: de contas, Isaías não perten- raízes – sua apostasia e ido-
cia à aristocracia, pelo menos latria - e procurou salvar Judá
6 Não é este o je- sua habilidade literária confir- da corrupção moral, política
jum que escolhi? Soltes ime- ma sua excelente educação”. e social” (CHAMPLIN, 2001,
diatamente as correntes DILLENBURG, 2016, p. 24). p. 2780). Champlin (2001, p.
da iniquidade, libertes já as O profeta Isaías situa, 2785) diz que esse profe-
ataduras das cangas e li- de acordo com Champlin ta esteve ativo do ano 742
bertes o maltratado. Liber- (2001, p. 2779), sua atuação ao ano 683 antes de Cristo.
tador, arranques de uma vez profética durante os reina-
por todas o jugo de todos. dos de Uzias, Jotão, Acaz e
7 Não é que parti- Ezequias, reis de Judá. Nes-
lhes o alimento com o fa- se comentário, afirma-se
D
meiros capítulos de Isaías, ção espiritual, política e social.
e acordo com Ni- encontra-se, no capítulo 2, Nesse contexto está
chol (1995), o povo mais uma denúncia da parte a mensagem principal do li-
de Deus havia deixa- de Deus. Por causa de dinhei- vro de Isaías, que é libertação.
do seus caminhos de justiça, ro, “os judeus humilharam a Por isso, Jesus Cristo, quando
sendo que a condição so- si mesmos, [...] tornaram-se leu uma passagem do livro de
cial e moral de Judá e Israel menores que os homens fei- Isaías, enfatizou essa mensa-
era idêntica. Ele diz que nas tos à imagem de Deus. [...] gem lendo o capítulo 61. Esse
duas nações havia prática de Eles tinham ultrapassado a texto enfatiza que a missão
injustiça nos tribunais, sim- necessidade de depender de do Messias era pregar boas
plesmente porque os ma- Deus [...]” (CHAMPLIN, 2001, p. novas aos quebrantados, aos
gistrados eram subornados 2797). O texto apresenta que sem esperança por ocasião
facilmente. Também afirma a maior preocupação daque- das desilusões que a nação
que os prazeres e o desfrute le povo se tornou acumular enfrentava. Também era pro-
das ganâncias pessoais eram riquezas. Já no próximo capí- clamar libertação aos cativos
a principal dedicação dos go- tulo, as mulheres são denun- que estavam presos por con-
vernantes. Nesse contexto, ciadas por buscarem a vaida- ta dos laços da impiedade e,
“muitos abandonaram o culto de, pois elas eram soberbas além disso, pôr em liberdade
de Jeová e seguiram aos deu- e altivas. Por conta disso, os algemados. Percebe-se
ses pagãos” e “outros manti- Nichol (1995, p. 131) comen- que a missão de Deus não
nham as formas exteriores da ta que “a nação foi advertida se limita apenas ao aspec-
religião, mas não conheciam de que se continuasse nos to evangelístico, Ele procura
seu poder e significado verda- seus caminhos de impieda- proporcionar liberdade em
deiros” (NICHOL (1995, p. 131). de, imediatamente seria des- todos os aspectos. Dada essa
Em Is 1:27 se encon- truída.” Devido ao pecado o contextualização, fica evi-
tra uma promessa de Deus povo se corrompeu e até os dente que tipo de problema
afirmando que Judá seria governantes preocupavam- espiritual, político e social o
redimida pelo direito e aos -se somente consigo mes- povo de Deus estava enfren-
que se arrependessem pela mos. Deus queria libertar Seu tando, e como o capítulo 58
justiça de Deus. Esse verso povo, e essa libertação tam- de Isaías surge como res-
conota a libertação do peca- bém era no âmbito político. posta para uma das liberta-
do pela justiça de Cristo. Ni- Com a opressão polí- ções que o Senhor queria que
chol (1995, p. 143) diz que a tica dos líderes do povo, agra- desfrutassem imediatamente.
salvação inclui tanto a justiça vada com a ganância e opres-
imputada com a finalidade são dos ricos em relação aos
de expiar os pecados já co- pobres (Is 58:3), a nação caiu
metidos, bem como a justiça ainda mais em uma falsa re-
transmitida com o objetivo de ligiosidade, e, para Nichol
capacitar o ser humano para (1995, p. 131-132), Deus envia-
viver acima do pecado. Para ria o juízo através dos assírios
ele, essa ocasião de liberta- sobre essa nação hipócrita
ção completa, que se dará que dava decretos injustos e
pelo regresso de Cristo ao não fazia justiça aos pobres,
É
possível verificar que assistindo as necessidades mentários reforçam a relevân-
outros textos da Bíblia dos desfavorecidos, ao invés cia desse tema. Price (2006, p.
falam da beneficên- disso, oprimindo e escravi- 181) afirma que o profeta não
cia social. Nichol (1995) traz zando seus irmãos, o povo estava dizendo nada a res-
passagens paralelas à subu- de Deus não mudou. Após o peito de mortificação corpo-
nidade estudada que tratam exílio, Zc 7:8-10 vai relembrá- ral com jejum, pois, segundo
do mesmo assunto, como Êx -los de que este foi um dos ele, “sua preocupação é com
22:22-24; Dt 10:18-19; Jr 7:5- motivos de Deus ter disper- as obras de justiça em relação
6; Zc 7:8-10; Mt 25:34-40 e sado o povo de Israel e Judá. aos oprimidos e a benevolên-
Tg 1:27. Os comentários dos Eles estavam negligencian- cia com os necessitados”. Ele
contextos destas passagens do um ensinamento bási- ainda esclarece que o profe-
aqui analisadas são baseados co da Torah, dada a Moisés. ta pede para que os verda-
na própria mensagem bíbli- No livro de Mt 25:34- deiros adoradores de Deus
ca, através do método Clo- 40, Jesus Cristo narra sua se- mostrem “a verdadeira bene-
se Reading (Leitura Atentiva). gunda vinda e enfatiza que volência aos pobres, alimente
Êx 22:22-24 mostra leis os seres humanos que assis- o faminto e vista o nu (7). Li-
civis e religiosas propostas por tiram os menos favorecidos vre a pessoa quebrantada da
Deus ao seu povo ainda en- demonstraram genuína trans- prisão.” E diz mais: “Abrigar o
quanto estavam peregrinando formação realizada pelo Es- sem teto, prover aos neces-
no deserto. Nelas, se alguém pírito Santo e por tal tinham sitados (mesmo os da famí-
oprimisse os necessitados agradado ao Senhor. Não que lia da fé), envolve sacrifício”.
receberiam juízo da parte de tivessem sido salvos por fazer Champlin (2001, p.
Deus. No livro de Dt 10:18-19, essas obras, mas por tê-las 2953) também fala que “obras
Moisés, ressaltando a justiça realizado demonstraram a fé gerais de amor e caridade ti-
de Deus, expressa que Ele verdadeira que os salvou, e nham de estar envolvidas no
auxilia a viúva e o órfão, e dá glorificaram a Deus pela mu- dia de jejum, bem como em
pão e vestes para aqueles que dança de vida proporcionada todos os outros dos dias. Re-
precisam. Percebe-se que, pela justiça de Cristo neles. partir o alimento com os fa-
desde o início, Deus deixou Percebe-se também mintos; dar abrigo aos desti-
orientações sobre o tratamen- que Tg 1:27 trabalha o tema tuídos; prover roupas; ajudar
to com os menos favorecidos. da beneficência social. Nes- os parentes necessitados, [...]”.
Em Jr 7:5-6, o cativeiro ta passagem, a religião ver- Nota-se que a religião está
estava para acontecer e Deus, dadeira atende os necessi- intimamente ligada à prá-
através do profeta, lembra tados nas suas dificuldades. tica da beneficência social.
que se eles corrigissem suas O autor trabalha em todo o Ridderbos (1986, p.
obras teriam a oportunidade livro o fim da dicotomia exis- 474) explica que, para o Se-
de habitar na sua terra eterna- tente entre fé e obras. Para nhor de Israel, o jejum que é
mente. Dentro das correções o apóstolo, fé e obras nun- válido é o que pratica justiça
solicitadas por Deus, estava ca devem andar separadas. e misericórdia. Ele ainda co-
também a beneficência social. A Bíblia fala da bene- menta que geralmente o jejum
Apesar da mensagem volência para com o seme- tinha o interesse de receber o
dos profetas do pré-exílio de lhante, e ao retornar para o favor de Deus. Nas palavras
repreensão por não estarem texto estudado, diversos co- dele: “A sua demonstração de
“
tristeza tencionava mover Não por motivação meritória, O verda-
Deus à compaixão e era tam- mas por estar sendo moldado deiro pro-
bém uma expressão de falsa conforme a Palavra de Deus
auto humilhação devido ao para ser um agente do Reino pósito da
pecado”. Para esse autor, Deus de Deus onde estiver inserido. religião é
está disposto a conceder a Notou-se que a men- libertar os
atenção que a pessoa está sagem da beneficência so-
requisitando desde que seu cial não está reclusa ao livro
homens
jejum não seja externo, mas de Isaías, mas vem ecoan- de sua
fruto de uma mente e vida do desde o princípio, quan- carga de
convertida. Deus espera que do Deus proveu para Adão
pecado
o adorador não rasgue suas e Eva vestes para cobrirem
roupas e sim o seu coração. a nudez. Em Mt 26:11, Jesus
No Comentário Bíbli- afirma que os pobres sempre
co Adventista do Sétimo Dia, estarão conosco, justamen-
o sentido mais coerente do te porque o pecado propor-
texto é que a verdadeira reli- cionou egoísmo e desigual-
gião é prática. Ele reitera que dade social à humanidade.
“a piedade prática é a única Após essa breve análi-
classe de religião que se re- se teológica destacou-se que
conhecerá no juízo divino (Mt o capítulo 58 de Isaías corro-
25:34-46) [...] o verdadeiro pro- bora com a relevância da be-
pósito da religião é libertar neficência social para o cum-
os homens de sua carga de primento da missão de Deus
pecado, eliminar a intolerân- executada pela igreja, tendo
cia e a opressão, promover a em vista que ela não está
justiça, a liberdade e a paz” dissociada da proclamação.
(NICHOL, 1995, p. 344). Os
cristãos genuínos, após com-
preenderem esta mensagem,
não podem deixar de auxiliar
aqueles que não estão em
boas condições financeiras,
espirituais ou sociais. Como
seguidores de Deus, é ne-
cessário praticar Sua Palavra,
auxiliando seu semelhante
e não se escondendo para
não ajudar os que precisam.
Kuhn (2013, p. 162)
comenta que “a responsabi-
lidade social é, em primeiro
lugar, uma responsabilidade
individual e, consequente-
mente, uma responsabilida-
de da igreja cristã como um
todo.” Não se trata de um op-
cional para os mais piedosos.
Se a pessoa é cristã de verda-
de ela deve amar e socorrer
os semelhantes que estejam
em situação desfavorável.
66
6.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
A Autores
libertação que Deus A bene-
“
traz é holística, e por
isso a beneficência
ficência,
social é tão relevante, pois envolve Saiba mais
através dela Ele pode propor- a religião
cionar libertação aos cativos
prática João Luiz
e oprimidos. Sua igreja foi co-
Marcon
missionada a dar continuidade que o
à obra iniciada por Cristo, e por Mestre em Teologia
isso, além de apregoar as boas
Senhor (EST, São Leopoldo-RS) e
novas, Ele a chamou para li- espera de doutorando em Teologia
bertar as pessoas de suas ma- Seu povo. (Universidad Adventis-
zelas, sejam elas espirituais, ta del Plata, Argentina).
físicas ou sociais. O verdadeiro
Diretor do Seminário
cristão é submisso à Palavra
de Deus, e desta forma não Adventista Latino Ame-
ficará indiferente a este apelo. ricano de Teologia (IAP,
Conclui-se que Isaí- Ivatuba-PR).
as 58:6-7 contribui trazendo Contato: joao.marcon7@
entendimento da relevância gmail.com
desse tema, por expressar a
vontade libertadora de Deus
como um clamor e pedido
aos Seus filhos. Por refletir as Diogo Florencio
atitudes que Ele espera de Sansalone
seus servos, a beneficência, Bacharel em teologia
envolve a religião prática que (Seminário Adventista
o Senhor espera de Seu povo. Latino Americano de Te-
Por fim, descreve a obra que
ologia, IAP, Ivatuba-PR).
Jesus realizou e comissio-
Pastor Distrital na Asso-
nou a Seus discípulos, para
continuarem sendo agentes ciação Norte Paranaense
transformadores de liberta- da IASD. Contato: diogo.
ção, paz, segurança e alívio sansalone@adventistas.
para um mundo em trevas. org
Dessa forma, esse ca-
pítulo de Isaías, juntamente
com toda a Bíblia, convida o
cristão genuíno a testemunhar
com palavras e também com
atos de bondade. Jamais atos
sem o testemunho através
de palavras, ou testemunho
através de palavras sem atos.
BÍBLIA do Obreiro. Tradução LOBO, Ronald. O verdadeiro je- WHITE, Ellen G. O Desejado de
João Ferreira de Almeida. 2 ed. jum: um estudo exegético de Is Todas as Nações. 22 ed. Tatuí:
Barueri: Sociedade Bíblica do 58, 1-12. 2011. 117f. Dissertação Casa Publicadora Brasileira,
Brasil, 2007. (Mestrado em Teologia Sis- 2018.
temática) – Pontifícia Univer-
ELLIGER, Karl; RUDOLPH; Wil- sidade Católica de São Paulo,
helm. Bíblia Hebraica Stuttgar- São Paulo, 2011.
tensia. Stuttgart: Deutsch Bibel-
gesellschaft, 1997, 1574 p. MAXWELL, C. Mervyn. História
do adventismo. Santo André:
BROWN, Francis; DRIVER, S. Casa Publicadora Brasileira,
R.; BRIGGS, Charles. A hebrew 1982.
and english lexicon of the Old
Testament whit and appendix MENDES, Paulo. Noções de
containing the Bíblical Aramaic hebraico bíblico. 2 ed. São
(BDB). Oxford: Claredon Press, Paulo: Vida Nova, 2011.
1962.
NICHOL, Francis D. (ed.).
CAIRNS. Earle E. O cristianis- Comentario bíblico adventista
mo através dos séculos: uma del séptimo dia. Buenos Aires:
história da igreja cristã. 3 ed. Asociación Casa Editora Su-
São Paulo: Vida Nova, 2008. damericana, 1995. 4 v.
Identidade e
missão na
jornada
de Jesus rumo a
Jerusalém em Lucas
su
salém. Há uma clara iden-
tificação entre Jesus e sua Evangelho
igreja, de modo que, a partir
de Lucas.
do exemplo dele, é possível
mo
extrair princípios missiológi-
cos para a igreja do século
XXI. A narrativa da jornada de
Jesus a Jerusalém é a seção
central de Lucas, e revela
uma firmeza de propósito no
*
Missão.
Identidade.
Missiologia.
cumprimento da missão, em
fidelidade às Escrituras. O
exemplo de Cristo evidencia
que a identidade da igreja e
sua missão estão interligadas,
e são definidas pelos parâme-
tros da Escritura.
tract
a clear identification betwe-
en Jesus and his church, so Gospel
that, based on his example, it
of Luke.
is possible to extract missio-
logical principles for the 21st
century church. The narrative
of Jesus' journey to Jerusa-
lem is the central section of
Luke, and reveals a firmness
of purpose in carrying out the
*
Mission.
Identity.
Missiology.
In
de Jesus rumo à Jerusalém
em Lucas fornece princípios
para um modelo de missão
para os nossos dias que man-
tro
tenha a identidade da igreja?
Que princípios missiológicos e
eclesiológicos podem ser ex-
traídos da jornada missionária
du
de Cristo rumo à Jerusalém no
evangelho Lucas?
A partir de Lucas 9, a
identidade e a missão de Je-
A
narrativa da viagem nados (LEE, 1999, p. 194). (Lc 3:23), indicando, assim,
de Jesus a Jerusa- O tamanho da se- de modo indireto, que Jesus
lém é a seção cen- ção dedicada à jornada para também já havia comple-
tral de Lucas, e começa em Jerusalém demonstra sua tado a idade do serviço pú-
9:51. Ao contrário de Mar- importância dentro da nar- blico (GREEN, 1997, p. 188).
cos (10:1-52) e Mateus (19:1- rativa: este ato compreende No relato de Lucas,
20:34), que fornecem rela- 40,2% do evangelho, e é de Jesus subiu até Jerusalém
tos mais curtos, Lucas inclui importância central para Lu- para encontrar seu destino
uma extensa narrativa de cas (LEE, 1999, p. 194-195). O (Lc 9:51-19:44, especialmente
viagem que abrange um ter- tema da jornada para Jeru- 13:31-35), mas em Atos a di-
ço do seu evangelho (BEA- salém termina em Lc 19:44, reção se inverte, e a missão
LE; CARSON, 2007, p. 588). pois em 19:45 Jesus já está sai de Jerusalém (At 1:8). O
Os lugares geográ- no Templo em Jerusalém. tempo de viajar pela Galileia
ficos mencionados não for- Este artigo se limi- havia passado (Lc 4:14-15). A
mam uma sequência lógica tará a discutir a questão da ida a Jerusalém fazia parte do
para uma simples viagem a identidade de Jesus (9:1-50), divino propósito (cf. Lc 9:31).
Jerusalém (KLOPPENBORG, e a jornada para Jerusalém Em Lucas, a missão aponta
2017, p. 102-107). Samaria (9:51 – 19:44), e não é uma para a morte e ressurreição
está entre a Galileia e Jeru- exposição ou avaliação de de Jesus, e, em Atos, chega
salém, seguindo a rota través toda a seção. O texto diz: o momento de os benefícios
das montanhas (MCCOWN, da morte e ressurreição de
1938, p. 59). Mas, após oito E aconteceu que, ao Jesus serem proclamados
capítulos, Jesus ainda está se completarem [συμπληρόω] a todos (BOCK, 2011, p. 133).
próximo da Galileia: “De ca- os dias em que devia ele ser Essa narrativa da via-
minho para Jerusalém, pas- assunto ao céu, manifestou, gem de Jesus a Jerusalém é
sava Jesus pelo meio de [ou no semblante, a intrépida re- peculiar a Lucas, pois Mateus
entre, grego μέσος] Sama- solução de ir para Jerusalém a conta em apenas dois ca-
ria e da Galiléia” (Lc 17:11). e enviou mensageiros que o pítulos (19-20) e Marcos em
Jerusalém é men- antecedessem. Indo eles, en- apenas um (10). Certamen-
cionada como o destino traram numa aldeia de sa- te, a viagem demorou vários
pelo narrador em 9:51 e 53 maritanos para lhe preparar meses, e Lucas parece di-
(o começo da seção), 13:22 (o pousada. Mas não o recebe- vidir a viagem em três fases
meio da seção) e 17:11, 18:31, ram, porque o aspecto dele (Lc 9:51; Lc 13:22; Lc 17:11).
19:28, 41 (o fim da seção). Je- era de quem, decisivamente, Possivelmente, essas fases
sus fala de ir a Jerusalém no ia para Jerusalém (Lc 9:51-53). estavam separadas por di-
meio da seção (13:33-34) e ferentes visitas a Jerusalém,
no final (19:11). Jericó é a úni- O verbo completar já que João relata Jesus em
ca outra cidade mencionada (συμπληρόω) é usado por Jerusalém pelo menos em
(18:35 e 19:10). Samaria e Ga- Lucas para descrever o bar- duas ocasiões durante este
liléia são mencionadas em co que se encheu de água período, antes da última pás-
17:11 e os samaritanos são (Lc 8:23), e para referir-se ao coa (Jo 7:2-10, 37; 10:22-23)
mencionados em 9:52, 10:33 cumprimento do dia do Pen- (DAVIDSON, 1995, p. 1903).
e 17:6. Os galileus são men- tecostes (At 2:1). Lucas já ha- Lucas usa bastan-
cionados em 13:1, e os judeus via mencionado que Jesus te o verbo “ir”, “caminhar”
e a Judéia não são mencio- tinha “cerca de trinta anos” (πορεύομαι).
1. Salvo indicação contrária, as citações de textos bíblicos neste artigo utilizarão a versão Almeida Revista Teologia em Revista I SALT IAP Página 74
e Atualizada, 2ª edição.
O tema da caminhada ocupa
toda a estrutura da narrativa
da jornada para Jerusalém
teológica do Evangelho (Lc
9:51, 52, 53, 56, 57; 10:37-38;
11:5, 26; 13:31-33; 14:10, 19, 31;
15:4, 15, 18; 16:30; 17:11, 14, 19;
19:12, 28, 36). É se movendo
para Jerusalém que Jesus es-
tabelece os critérios para os
seus discípulos-missionários
(Lc 9:57-62; 10:4). Seus discí-
pulos são missionários que
se movem como ele (Lc 10:1),
e são treinados e formados
na experiência missionária,
em movimento (Lc 10:17-20).
O movimento conti-
nua após a ressurreição de
Jesus, e os discípulos rece-
bem o Espírito para teste-
munhar na Judéia, em Sama-
ria e até os confins da terra
(At 1:8). Jesus caminha com
(συμπορεύομαι) os discípu-
los em direção a Emaús e
lhes expõe as Escrituras (Lc
24:13-35). Com o tempo, “o ca-
minho” se torna sinônimo de
doutrina (At 18:26), e também
designa o grupo de discípu-
los de Jesus (At 9:2; 19:9; 22:4).
O tamanho
da seção
“
dedicada à
jornada para
Jerusalém
demonstra
sua impor-
tância dentro
da narrati-
va: este ato
compreende
40,2% do
evangelho.
75
Dr. Isaac Malheiros Jefferson Ribeiro Café Jonny D. A. Hernández
3.
A IDENTIDADE DE
JESUS EM LUCAS
A
identidade de Jesus Nos dois eventos, no ba- ventos e às ondas repreen-
é um tema muito re- tismo e na transfiguração, de, e lhe obedecem?” [8:25]).
levante no evangelho Lucas relata que a revela- Herodes perguntou:
de Lucas. A questão sobre ção divina da identidade de “quem é, pois, este a respei-
quem ele é aparece desde o Jesus se deu em momen- to do qual tenho ouvido tais
anúncio de seu nascimento tos de oração (Lc 3:21; 9:29). coisas?” (9:9). E o próprio Je-
(“[...] será chamado Filho do O próprio Jesus fez sus perguntou a respeito de
Altíssimo” [1:32]; “[...] o ente declarações a respeito de sua sua identidade: “Quem di-
santo que há de nascer será identidade (por exemplo, “O zem as multidões que sou
chamado Filho de Deus” 1:35]). Espírito do Senhor está sobre eu? [...] E vós quem dizeis
A identidade de Jesus foi de- mim [...]. Hoje, se cumpriu a que eu sou?” (9:18-20 ARC).
clarada por anjos, em seu Escritura que acabais de ou- A cristologia de Lu-
nascimento (“hoje vos nasceu, vir” [4:21]). Pessoas que co- cas-Atos é rica e variada, e
na cidade de Davi, o Salvador, nheciam Jesus perguntavam: vários títulos são atribuídos a
que é Cristo, o Senhor” [2:11]), “Não é este o filho de José?” Jesus: Jesus é Profeta, Cristo/
e por Deus, no batismo de Je- (4:22). Jesus também vinculou Messias, Filho de Deus, Filho,
sus (“Tu és o meu Filho ama- sua identidade à questão do Senhor, Filho do Homem, Ser-
do, em ti me comprazo” [3:22]). sábado: “O Filho do Homem vo (At 3:13, 26; 4:30), Rei dos
A voz divina no ba- é senhor do sábado” (Lc 6:5). Judeus, Filho de Davi, Santo,
tismo de Jesus (Lc 3:22) san- A identidade de Jesus Justo, Autor da Vida (At 3:15),
ciona sua identidade e sua foi afirmada pelos demônios: Príncipe (At 5:31), Salvador e
missão. Esta afirmação divina “Bem sei quem és: o Santo de Juiz (At 10:42; 17:31). Aparen-
apresenta o papel de Jesus Deus!” (4:34), e “Tu és o Filho temente, Lucas não fez ne-
como agente divino de re- de Deus!” (4:41; cf. 8:28). Os de- nhuma referência específica
denção, como representan- mônios “sabiam ser ele o Cris- e explícita à preexistência e
te de Deus, e demonstra a to” (4:41). Na opinião de muitos à divindade de Jesus em sua
natureza de sua missão. Sua do povo, Jesus era um “gran- descrição cristológica. Pode
missão e identidade são des- de profeta” (7:16). João Batis- ser, no entanto, que a designa-
critos em relação a Deus e ta questionou: “És tu aquele ção “Deus” seja aplicada a Je-
às Escrituras, como o Servo que estava para vir ou have- sus em Lucas 8:39; 9:43; Atos
e Filho de Deus que cumpre mos de esperar outro?” (7:19). 20:28, embora isso seja dis-
sua missão de redenção em A questão da sua cutível (STEIN, 2001, p 48-49).
obediência inflexível a Deus. identidade levou seu dis-
“
É essa noção dos limites de- curso a ser questionado
terminados pela obediência (“Que palavra é esta?” [4:36]; Bem sei
ao propósito de Deus que o “Quem é este que diz blas-
diabo testará em Lc 4:1-13, no fêmias?” [5:21]), e suas ações quem és:
deserto (GREEN, 1997, p. 187). também (“Se este fora pro- o Santo
E o Pai reafirmou, no feta, bem saberia quem e de Deus!
monte da transfiguração, o qual é a mulher que lhe to-
que tinha revelado no batis- cou” [7:39]; “Quem é este que
(Lucas
mo de Jesus: “Este é o meu até perdoa pecados?” [7:49]; 4:34)
Filho, o meu eleito” (9:35). “Quem é este que até aos
A
e é revelada aos homens. messiânica de Jesus é refor-
Ela não é definida pelos ho- pós a declaração de çada na declaração do Pai:
mens, não é fruto de opiniões Pedro (“és o Cristo de “Este é o meu Filho, o meu
e sínteses de pensamentos. Deus”), Jesus passa eleito” (Lc 9:35). Depois da
Após ressuscitar, Je- a referir-se a si mesmo como confissão messiânica de Pe-
sus apareceu no meio dos “o Filho do Homem” (9:22), e dro, a declaração divina na
discípulos e saudou-os com esse título passa a ser usado transfiguração é a confirma-
uma saudação de paz. A fim com mais frequência em Lu- ção de Deus para essa con-
de provar a Sua identidade, cas (4 vezes antes do capítulo fissão (BOCK, 2011, p. 165). Ele
ele lhes mostrou suas mãos 9, e 22 vezes a partir de 9:22, era Jesus de Nazaré, o filho de
e pés feridos (Lc 24:36-40). enquanto “Cristo” é usado Maria, mas era o Filho de Deus
Ou seja, para provar sua apenas 12 vezes em Lucas). (foi anunciado assim a Maria).
identidade, ele mostrou as Curiosamente, o títu- No entanto, o tema da
marcas do que ele fez. Os lo “Filho do Homem” é usado conversa entre Jesus, Moisés
resultados de sua missão por Jesus para designar sua e Elias foi a “sua partida, que
evidenciaram quem ele é. própria identidade, e não por ele estava para cumprir em
Em seguida, Je- Lucas como narrador. “Filho Jerusalém” (Lc 9:30-31), ou
sus mostrou as evidências do Homem” é uma autorre- seja, a sua missão. Novamen-
de sua identidade e mis- ferência que distingue Jesus te, identidade e missão apa-
são através das Escrituras: em sua singularidade, aque- recem juntas. A ordem divina
le que tem legitimação divi- é para “ouvi-lo” (v. 35), ele que,
[...] importava se cum- na e que sofre oposição da embora seja o Cristo, deve ir
prisse tudo o que de mim está liderança judaica (por exem- para o sofrimento e rejeição,
escrito na Lei de Moisés, nos plo, 5:24), especialmente antes que seja glorificado e
Profetas e nos Salmos. En- quando essa liderança está entronizado (NOLLAND, 2002,
tão, lhes abriu o entendimen- associada a Jerusalém (cf. p 448-449). Por causa desse
to para compreenderem as 5:17, 21) (GREEN, 1997, p. 242). sofrimento vicário, com boas
Escrituras; e lhes disse: Assim Jesus usou o título razões, tem sido alegado que
N
o evangelho de Lu- (Lc 19:10). O texto bizantino expulsar demônios, “a pregar
cas, Jesus define traz uma variante textual que o reino de Deus e a curar os
sua missão citando afirma que Jesus “não veio enfermos” (Lc 9:1-2). No mes-
o profeta Isaías (61:1-2): “O [verbo ἔρχομαι] para destruir mo contexto, Jesus e os dis-
Espírito do Senhor está so- as almas dos homens, mas cípulos alimentam a multidão
bre mim, pelo que me ungiu para salvá-las” (Lc 9:56). E, (9:12-17), e surge novamente
para evangelizar os pobres; usando o verbo παραγίνομαι, um questionamento a res-
enviou-me para proclamar li- Jesus afirma que não veio peito da identidade do Cristo.
bertação aos cativos e restau- “para dar paz à terra”, mas di- Dessa vez, a pergunta ante-
ração da vista aos cegos, para visão (Lc 12:51). Essas decla- riormente feita no episódio da
pôr em liberdade os oprimi- rações evidenciam a nature- tempestade (“Quem é este?”)
dos, e apregoar o ano acei- za soteriológica da atividade é respondida pelos próprios
tável do Senhor” (Lc 4:18-19). de Cristo, bem como suas discípulos, através de Pedro:
Após citar Isaias para consequências colaterais. “És o Cristo de Deus” (Lc 9:18-
definir sua missão, Jesus afir- Além da autoidentifi- 20). Essa resposta vem após a
ma: “Hoje, se cumpriu a Es- cação de Jesus, a narrativa de exposição da opinião equivo-
critura que acabais de ouvir” Lucas traz a opinião de outros cada das multidões (“João Ba-
(Lc 4:21). A sua identidade e a sobre quem ele é. O homem tista, mas outros, Elias; e ainda
sua missão são definidas com possuído por demônios em outros dizem que ressurgiu
base nas antigas promessas Gerasa prostrou-se diante um dos antigos profetas” [Lc
registradas no Antigo Testa- de Jesus o identificou como 9:19]), e só após o envio dos
mento. Ele é e faz o que a Es- “Filho do Deus Altíssimo” (Lc discípulos à missão. Ou seja,
critura diz que ele é e faz. A 8:28). Esse episódio é antece- é possível deduzir que, no
apresentação de Lucas des- dido pela parábola do seme- cumprimento da missão, am-
te discurso na sinagoga (Lc ador (v. 4-15), o ensino sobre a plia-se a visão dos discípulos
4:16-30) inclui mais do que é candeia (v. 16), e sobre a reve- sobre a identidade de Jesus.
encontrado nos outros evan- lação (v. 17), conteúdos estrei- Muitos estudiosos
gelhos (cf. Mc 6:1-6). Jesus tamente relacionados à mis- têm debatido a respeito do
afirma que o tempo do Jubileu são de Cristo e de sua igreja. conhecimento (ou do suposto
havia chegado, e indica que Após Jesus acalmar desconhecimento) geográfi-
o Messias havia aparecido. uma tempestade, a pergun- co de Lucas (CONZELMANN,
Ao explicar o propó- ta dos discípulos é sobre sua 1960, p. 18-94; HENGEL,
sito de sua vinda, usando o identidade: “Quem é este que 1995, p. 27-78). Lucas retrata
verbo ἔρχομαι, Jesus afirma até aos ventos e às ondas re- uma progressão geográfica
que não veio “chamar justos, preende, e lhe obedecem?” no cumprimento do plano
e sim pecadores, ao arre- (Lc 8:25). Ou seja, uma ação de Deus tanto no evangelho
pendimento” (Lc 5:32); e diz de Jesus levantou uma dis- quanto em Atos. Na missão
também que veio “para lan- cussão sobre quem ele era. inicial de Jesus, o ministé-
çar fogo sobre a terra” (Lc O que ele faz e quem ele é: rio se move da Galiléia para
12:49). A missão de Jesus é o tema da identidade está re- Jerusalém (Lc 4:14-15; 9:51).
resumida na sentença: “o Fi- lacionado ao tema da missão. Dentre os evangelistas, Lucas
lho do Homem veio [ἔρχομαι] Jesus então envia os é o que mais enfatiza que Je-
buscar e salvar o perdido” discípulos em missão, para sus está indo para Jerusalém
(Lc 9:51; 13:33; 17:11; 18:31). ta. Isaías já tinha usado esses O Reino
“
Essa progressão geográfi- milagres como sinal escato-
ca é revista em At 10:36-39: lógico (Is 29:18-19; 35:5; 42:6;
de Deus
“Esta é a palavra que Deus 61:1). Portanto, os milagres de veio ao
enviou aos filhos de Israel [...]. Jesus são evidência de que mundo na
[...] a palavra que se divulgou essa escatologia havia co- pessoa e
por toda a Judéia, tendo co- meçado (Lc 10:18; 11:14-23).
meçado desde a Galiléia, [...] na obra de
[Jesus] andou por toda par- Cristo para
te, [...] e nós somos testemu- redimir o
nhas de tudo o que ele fez
na terra dos judeus e em Je-
homem do
rusalém”. O avanço da igre- reino de
ja é semelhante, mas vai na Satanás
direção oposta. Atos 1:8 fala
do movimento de Jerusalém
para a Judéia e Samaria, e de-
pois para os confins da terra.
A missão de Jesus
está intimamente atrelada à
sua identidade. Os milagres
de Jesus servem como sinais
que atestam a reivindica-
ção divina de sua identidade
(At 2:22; 10:38). A irrupção do
Reino presente é evidencia-
da pelas curas e libertações
realizadas por Jesus: “Mas se
é pelo dedo de Deus que eu
expulso os demônios, logo
é chegado a vós o reino de
Deus” (Lc 11:20). O Reino de
Deus veio ao mundo na pes-
soa e na obra de Cristo para
redimir o homem do reino de
Satanás (SCHNELLE, 2010,
p. 115). O poder de sujeitar
os demônios é um sinal da
presença do Reino Deus (Lc
10:18). Jesus não afirmou que
o Reino se tratava de uma
experiência meramente inte-
rior, mas se manifestava em
sinais exteriores que acom-
panhavam a pregação do Rei-
no (CARSON, 2009, p. 1516).
Quando questionado
se ele era “aquele que estava
para vir” (Lc 7:20), uma alusão
à sua posição messiânica, Je-
sus aponta para uma série de
milagres (v. 22) como respos-
80
6.
A IDENTIDADE E A MISSÃO
DEFINIDAS PELAS ESCRITURAS
L
ucas mostra a iden- identidade como Filho de identidade messiânica por
tidade e a missão de Deus vai sendo desenvolvida enquanto (Lc 9:21). O moti-
Jesus como um cum- (3:21-22, 38; 4:1, 3, 9, 14, 18). vo é que eles estão certos a
primento do divino propósito, Jesus foi designado “Filho de respeito de sua identidade,
declarado pelo próprio Deus Deus” (1:35), uma identidade mas ainda estão enganados
de maneira audível (3:21-22), que foi afirmada por Deus sobre sua missão. A declara-
Jesus já havia sido designado (3:21-22), confirmada genea- ção de Pedro dá a entender
pelos anjos (2:11), pelo nar- logicamente (3:38), questio- que os apóstolos reconhe-
rador (2:26), pelos demônios nada pelo diabo (4:3, 9), mas cem Jesus como o Messias
(4:41) e indiretamente pelo assumida por Jesus (4:1-13). esperado, mas não dá a en-
próprio Jesus (4:18); através Os leitores de Lucas já são tender que eles sabiam em
de anjos (1:26-33- 2_11), mas, introduzidos à messianidade que sentido Jesus era o Cristo
principalmente, através das de Jesus em 1:32–33, 69; e (HENDRIKSEN, 2002, p. 475-
Escrituras (4:17-21; 18:31; 20:17; 2:11. Mas a declaração de Pe- 476). Eles não sabem ainda
21:22; 22:37; 24:27, 32, 44-46). dro em Lc 9:20 (“és o Cristo”) que tipo de Messias Jesus é.
A ênfase no propósi- marca a primeira vez que os Refletindo o senso
to divino registrado nas Es- discípulos reconhecem Jesus comum da época, os discípu-
crituras serve aos interesses como o Messias de forma ex- los esperavam um Messias-
eclesiológicos de Lucas, pois plícita. Essa declaração fora -Rei como um conquistador
a comunidade cristã primitiva amadurecida pelos milagres militar. O Messias deveria iria
está moldando sua própria de cura, seu domínio sobre sofrer e morrer, e convida
identidade, em meio a outra a natureza, e por seus ensi- seus seguidores a tomarem
comunidade (dos judeus) que namentos. Jesus não apenas também a sua cruz (Lc 9:23-
também lê as Escrituras, mas é identificado como o Cristo, 27). O conceito de um Messias
que não vê em Jesus o cum- mas ele é “o Cristo de Deus” sofredor ia contra a expectati-
primento messiânico das pro- (Lc 9:20). Essa qualificação va judaica majoritária de uma
messas divinas (GREEN, 1997, evidencia que Jesus é o Ungi- figura gloriosa, estritamente
p. 22). Por isso, para Lucas, é do que Deus havia prometido vitoriosa e poderosa. Para os
importante destacar a conver- enviar. É, portanto, uma alu- judeus, um messias sofredor
gência entre as antigas pro- são ao cumprimento das Es- era incongruente, uma im-
messas de Deus e o ministé- crituras (STEIN, 2001, p. 277). possibilidade (BOCK, 2011, p.
rio de Jesus. A vinda de Jesus Jesus é claramente 186). O embasamento escritu-
está profundamente enrai- identificado como o Cristo (o rístico da identidade de Jesus
zada na antiga aliança, e sua Messias) na declaração de transparece também no fato
missão está plenamente de Pedro em Cesaréia de Filipe de Lucas 9:35 aparentemente
acordo com o intento divino. (Lc 9:20). Lucas indica que derivar sua declaração (“Este
Jesus é quem Deus havia dito a declaração de Pedro está é o meu Filho, o meu eleito
que enviaria, e faz o que Deus correta, embora não tão en- [ὁ ἐκλελεγμένος]”) de Isaías
prometeu que o Messias faria. faticamente quanto Mateus 42:1 (“Eis aqui o meu servo, a
À medida que a nar- (ver a confirmação de Jesus quem sustenho; o meu esco-
rativa de Lucas vai se desen- em Mt 16:17). Jesus pede que lhido [ἐκλεκτός]”). A LXX usa
volvendo, a relação de Jesus os discípulos mantenham um substantivo, enquanto Lu-
com o Espírito Santo e a sua silêncio a respeito de sua cas usa um particípio perfeito,
U
divina: “Este é o meu Filho, o salém, mas ir a Jerusalém em
meu eleito; a ele ouvi” (αὐτοῦ ma futura pesquisa cumprimento da missão, fiel
ἀκούετε; Lc 9:35). Ao contrá- relacionada a esta à definição de sua identida-
rio de Mateus (ἀκούετε αὐτοῦ; pode ser a avaliação de e de sua missão, encon-
17:5) e Marcos (ἀκούετε αὐτοῦ; mais detalhada da eclesiolo- trada nas Escrituras. A tenta-
Mc 9:7), a ordem das pala- gia de Lucas e a identidade ção tinha a ver com colocar
vras de Lucas coincide com da igreja em relação a Israel em dúvida a sua identidade,
a versão LXX de Deuteronô- (BOCK, 2011, p. 371), a iden- a sua missão e as Escrituras.
mio. Essa alusão a Dt 18:15 é tificação distinta como “cris- A orientação obstinada de
importante pois aponta Jesus tãos” em Antioquia (At 11:26), Jesus, ao iniciar a jornada di-
como o Profeta-Líder prome- e como uma “seita” dos na- vinamente ordenada a Jeru-
tido na época de Moisés (At zarenos (At 24:5; cf. 5:17; 15:5; salém, é a mesma que seus
3:19-24). A voz de Deus, no 26:5), e como a igreja com- seguidores devem comparti-
batismo e na transfiguração, partilha a missão e a identi- lhar (GREEN, 1997, p. 402-403).
concorda tanto com as Es- dade de Jesus. Lucas procura A firme resolução de
crituras quanto com as vozes alcançar um senso de solida- Cristo ao ir para Jerusalém
anteriores (de Gabriel, Isabel, riedade, conexão e identifica- em cumprimento de sua mis-
etc), o que acentua sua credi- ção com Jesus através do que são é um princípio missioló-
bilidade (GREEN, 1997, p. 186). ele fez (BOCK, 2011, p. 449). gico básico para a igreja do
A identidade de Jesus Esta pesquisa não dis- século XXI. De acordo com a
como Messias-Rei também cutirá a fundo tais temas por narrativa de Lucas, assumir
foi uma questão fundamental uma questão de espaço, mas assim a sua identidade e a
no julgamento de Jesus (Lc levantará aqui alguns princí- sua missão tem consequên-
22:67), e em seu movimento pios que podem ser úteis à sis- cias perigosas para a igreja, o
em direção à cruz (Lc 23:2, 35, tematização da identidade e que pode incluir rejeição, per-
39). E o sofrimento do Messias da missão da igreja em Lucas. seguição, sofrimento e morte.
na narrativa de Lucas é um Lucas organiza sua Mas, na narrativa de Lucas,
sofrimento necessário (δεῖ, narrativa de forma que tudo o Jesus não deixou alternativas
24:26) e predito nas Escritu- que vem depois de 9:51 deve para seus seguidores: é preci-
ras (24:46). Algumas semanas ser lido tendo em conside- so tomar a sua cruz, estar pre-
depois de pedir que os discí- ração a resolução de Cris- parados para perder a própria
pulos mantivessem silêncio to de ir para Jerusalém para vida por sua causa, e não se
a respeito de quem ele era, morrer em uma cruz. Lc 9:51 envergonhar dele (9:23-27)
após corrigir as distorções, representa uma reviravol- (DAVIDSON, 1995, p. 1901).
Jesus os autorizaria a dizer ao ta no roteiro, como At 19:21. Há uma identifi-
mundo inteiro sobre sua iden- Jesus revelou uma resoluta cação de Jesus com sua
tidade e missão (Lc 24:47). determinação, lembrando a igreja (Lc 9:48; 10:16; cf. Mt
do profeta Ezequiel (Ez 21:2), 25:40; Jo 13:20). A conver-
uma linguagem que implica são de Paulo, a caminho de
o enfrentamento de hostili- Damasco, evidencia isso:
dades (KEENER, 2014, p. 204). Jesus se identifica com a
2. Curiosamente, a referência a Dt 18:15 não aparece na declaração divina no batismo de Jesus (Lc 3:22). A declaração Teologia em Revista I SALT IAP Página 82
na transfiguração (Lc 9:35) expande o que foi dito no batismo (Lc 3:22).
“
igreja, e se considera pesso- uma identificação entre o a ati- A igre-
almente atingido pela perse- tude de Jesus e a atitude que
guição movida contra ela (At ele exige de seus seguidores.
ja não é
9:4-5). Assim, a missão de Je- Após sua ressurrei- uma tes-
sus é a missão da igreja, e, nos ção, ao aparecer aos discí- temunha
evangelhos, Jesus se apre- pulos, Jesus explicou sua
senta como modelo e exem- identidade e sua missão a à margem
plo para a comunidade de partir das Escrituras, e decla- das Escri-
seus seguidores (Jo 13: 13-16). rou que seus discípulos são
O que Jesus ofere- “testemunhas destas coisas”
turas, ou
ce aos seus discípulos é um (Lc 24:44-48). Jesus, portan- em oposi-
caminho mais convincente e to, estabelece um parâmetro ção a elas.
perigoso (Lucas 6:40). É uma para a identidade e missão
reorientação da vida, envol- da igreja: ser testemunha do
vendo sofrimento e talvez que ele é e do que ele fez
morte. Se alguém for aonde segundo as Escrituras, o que
quer que Jesus vá, deve es- foi previsto e narrado sobre
tar pronto para a rejeição (9:51 ele. A igreja não é uma teste-
- 56). Um discípulo de Jesus munha à margem das Escri-
deve perceber que o seguir turas, ou em oposição a elas.
significa viver como um es-
tranho no mundo, porque a
escolha por Jesus é uma es-
colha rejeitada por muitos
(BOCK, 2011, p. 318). Boa parte
de Lc 9:51-19:44 é dedicada a
explicar como os discípulos
devem viver à luz da realida-
de da partida de Jesus (9:51,
58; 13:33; 17:11, 25; 18:31-34;
19:41-42) (BOCK, 2011, p. 330).
A intrépida resolução
de Jesus de ir a Jerusalém
revela um foco, uma firmeza
de propósito que ele exige de
seus seguidores. Ao enviar os
setenta, Jesus disse que os
enviava “como cordeiros para
o meio de lobos” (Lc 10:3), e
os advertiu: “a ninguém sau-
deis pelo caminho” (Lc 10:4).
Essa advertência é justificada
pela urgência de sua missão.
Eles não deveriam perder
tempo em longas e complica-
das saudações pelo caminho,
e nem mudando de casa em
casa (Lc 10:7) - outra adver-
tência contra a perda de tem-
po na aceitação de inúmeros
convites (DAVIDSON, 1995,
p. 1904). Novamente, aqui há
83
8.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
N Autores
a narrativa de Lucas, ser distorcida ou perdida.
a identidade de Jesus Da mesma forma, a
é definida pelo Pai, e igreja faz o que foi divina-
é revelada aos homens prin- mente designado como sua
Saiba mais
cipalmente através das Escri- missão. A igreja não se de-
turas. Como Corpo de Cristo, dica a fazer apenas o que
a igreja deve buscar sua iden- gosta, o que é fácil ou o que Isaac Malheiros
tidade nas mesmas fontes. é popular, tomando atalhos Doutor em Teologia
Se há alguma conexão en- ao sabor das circunstâncias (EST, São Leopoldo-RS).
tre Cristo e sua igreja, então e da pressão sociocultural.
Docente do Seminário
o que a igreja é, e o que ela A autoidentificação da igre-
Adventista Latino-ame-
deve ser, não é algo a ser de- ja, e as definições de suas
finido apenas pelos homens, prioridades missionárias têm ricano de Teologia (IAP,
pela cultura, como fruto de como ponto de partida as Es- Ivatuba-PR).
sínteses de pensamentos. crituras. E, como no caso de Contato: pr_isaac@
Assim como Cris- Cristo, a identificação feita por yahoo.com
to não buscou ser o Messias terceiros é irrelevante para a
que o senso comum judaico consciência que a igreja tem
esperava, a igreja não deve de si mesma, e nenhuma in-
ter como meta primária pre- fluência exerce sobre as suas
Jefferson Ribeiro
encher a expectativa da so- prioridades missionárias. Café
ciedade a seu respeito. O Na narrativa de Lu- Graduando em Teologia
motivo é que as expectativas cas, identidade e missão são no Seminário Adventista
das pessoas sobre a igreja temas interrelacionados, e, Latino-americano de Te-
podem consistir numa distor- por vezes, sobrepostos. O que ologia (IAP, Ivatuba-PR).
ção da identidade divinamen- Jesus faz define quem ele é,
Contato: jefferson.salt7@
te estabelecida e revelada. e o que ele é orienta o que
gmail.com
Mesmo uma avalia- ele faz. Da mesma maneira, a
ção interna, feita a partir dos identidade da igreja contem-
próprios cristãos, pode trazer porânea, conforme definida
o risco de perda da identida- pela Escritura, vai na mes- Jonny David Amaral
de. Quando a igreja é definida ma direção do que ela faz, e Hernández
essencialmente em termos sua missão (praticada, não Graduando em Teologia
históricos ou culturais, a par- apenas declarada) evidencia no Seminário Adventista
tir de práticas e costumes que tipo de instituição ela é.
Latino-americano de Te-
circunscritos à épocas e lu- A importância que
ologia (IAP, Ivatuba-PR).
gares, ou quando sua iden- Lucas dá à oração nos even-
tidade está atrelada a algu- tos onde a identidade de Contato: jhonny12190@
ma visão saudosista de uma Jesus foi revelada pelo Pai gmail.com
suposta época de ouro, ou (batismo e transfiguração,
quando a igreja se define a Lc 3:21; 9:29) também suge-
partir de uma superidentifica- re a importância dessa práti-
ção com o espírito da época, ca para a igreja no processo
então a identidade que lhe foi de descoberta e afirmação
divinamente atribuída pode de sua própria identidade.
A narrativa
de Ester:
Literatura como
ferramenta para o
desenvolvimento moral
su
moral de crianças. O objetivo
deste artigo é, por meio de Ester.
uma pesquisa bibliográfica
e de uma leitura atentiva do Literatura
mo *
texto bíblico, analisar a nar- infantil.
rativa de Ester como litera- Desenvolvimento
tura, com foco nos seus di-
lemas morais, destacando o
moral.
seu potencial para fomentar
o desenvolvimento moral de
crianças. Através desta pes-
quisa é possível concluir que
a história de Ester pode ser
mais explorada na educação
infantil, tanto por sua riqueza
literária quanto por seu con-
teúdo moral que provoca re-
flexões.
tract
a bibliographic search and a
close reading of the biblical Esther.
text, to analyze Esther's nar-
rative as literature, focusing
Children's
on her moral dilemmas, hi-
ghlighting its potential to fos-
ter the moral development
of children. Through this re-
search, it is possible to con-
clude that Esther's story can
*
literature.
Moral
development.
1.
a utilização de histórias que bora, a princípio, pareça re-
apresentam o conceito de forçar uma visão maniqueísta
bem e mal, e a avaliação de da vida: na mente infantil, a
como as crianças absorvem velha luta do bem contra o
In
esses conceitos. A história de mal, quando heróis e vilões
Ester foi utilizada numa das fa- estão bem definidos, pode
ses dessa pesquisa mais am- trazer uma reflexão imediata
pla (que está em andamento). por meio dessas figuras opo-
tro
O desenvolvimento sitoras, justamente por causa
moral e espiritual acontece do contraste.
através de transições para A realidade costuma
estágios sucessivos, e essas ser dual, assim como os pró-
du
transições são motivadas por prios indivíduos, assim, é im-
conflitos e crises. O uso de portante refletir com as crian-
narrativas infantis pode bene- ças a partir da personificação
ficiar esse processo, expondo de bem e mal, onde o mal é
ção
a criança a situações de con- definitivamente mal e no final
flitos morais em seu enredo – será punido e o bem é cla-
além de outros conflitos que ramente a personificação da
podem surgir posteriormente virtude, e no final será recom-
em reflexões individuais ou pensado. Tudo isso, para a
em grupo. Além disso, se a criança, tem a ver com justiça.
maturidade moral advém da Para Bruno Bettelheim (1980,
capacidade de coordenar os p. 157), a criança tem uma “ne-
diferentes pontos de vista e cessidade profunda” de que a
buscar uma solução, as his- justiça prevaleça:
tórias também podem conter
essa reestruturação no próprio No conto de fadas tra-
enredo, além da possibilida- dicional, o herói é recompen-
de da criança conseguir essa sado e a pessoa malvada re-
solução numa reflexão pos- cebe sua sorte bem-merecida,
terior, individual ou em grupo. e assim satisfaz a necessidade
O uso de literatura infantil no profunda que a criança sente
processo de desenvolvimento de que prevaleça a justiça. De
da moralidade permite a ob- que outra forma pode a crian-
servação e avaliação desses ça esperar que lhe seja feita
fenômenos. justiça, ela que se sente tantas
A história de Ester, vezes tratada injustamente?
sempre presente em Bíblias
infantis (que, na verdade, são Para o autor, só as-
seleções de histórias bíblicas), sim a criança conseguirá se
foi escolhida por ter um enre- convencer de que deve agir
do que envolve claras ques- corretamente, deve buscar a
tões morais, uma boa iden- virtude, a despeito das tenta-
tificação e forte apelo entre ções de ceder “às instâncias
1. enormemente as possibilida-
des de sentido. Grande parte
da permanência e vitalidade
dança de rota ou uma quebra
de expectativa no leitor ou
leitora. São personagens que
In
das narrativas clássicas está têm a chance de redenção,
no potencial de leitura que de receberem perdão e de
elas permitem (MACHADO, mudarem de comportamento.
2002, p. 98). Por meio dessas Esta é a esperança humana
tro
histórias, os adultos costu- em busca da virtude, oportu-
mam se surpreender com as nidades de se redimirem em
lições extraídas pelas crian- diversas áreas da vida, e algu-
ças, dada a facilidade com mas histórias “revelam que os
que elas lidam com simbolo- seres humanos são as verda-
du gias.
Chevalier e Gheer-
brant (1990, p. 17) afirmam que
o símbolo revela o mundo
deiras feras necessitadas de
redenção” (TATAR, 2013, p. 65).
Para Andersen “[...] os contos
tinham uma força compensa-
ção
percebido “tal como o sujeito tória, permitindo-lhe corrigir
o experimenta”, não num ní- os erros da vida real e equili-
vel consciente ou resultado brar os pratos da balança da
da sua razão crítica, mas “em justiça” (TATAR, 2013, p. 348).
função de todo o seu psiquis- A história de Ester
mo, afetivo e representativo, oportunizou aos alunos e alu-
principalmente no nível do nas participantes daquela fase
inconsciente”. Ou seja, a in- da pesquisa novas leituras de
terpretação dos símbolos é mundo, novas leituras de si
absolutamente subjetiva, e as mesmos, e reflexões sobre o
narrativas são ricas em simbo- bem, o mal e comportamen-
logias. A criança está em ple- tos que consideramos morais
no processo de experimen- ou imorais. A seguir, será dado
tação do mundo a sua volta, um panorama geral da narra-
entendendo cada ser huma- tiva, mesmo que nem todos
no como único e irrepetível, a os detalhes caibam dentro
imaginação e a subjetividade da história que geralmente
dá a cada narrativa contornos é contada para as crianças.
sempre novos a cada nova lei- Neste artigo, serão destaca-
tura. dos apenas os aspectos da
3) Possibilita o uso de narrativa que vieram à tona na
recursos visuais: a história de discussão a respeito do de-
Ester pode ser contada de di- senvolvimento da moralidade
ferentes formas, com o uso de das crianças.
fantoches, encenações etc.
A
história de Ester, é literário presente em todo o
incrível e recheada
de ironia. Os livros
livro” (ACOSTA, 2018, p. 216).
Ademais, sempre
3.
infantis e as Bíblias adapta- houve certo desconforto em A OMISSÃO DA
das para crianças, em geral, setores protestante por causa
não se aproximam muito do do teor fortemente judaico e
IDENTIDADE DE
tom jocoso do texto, optando nacionalista do livro de Ester. ESTER
muitas vezes em dar enfoque O episódio mais perturbador
apenas na coragem de Ester. para o leitor moderno é o pe-
A riqueza e a rele- dido de Ester por um segun-
A
vância dessa história são tão do dia de matança, e também
grandes para o povo judeu, pelo enforcamento dos ca- história de Ester con-
que eles celebram até hoje dáveres dos filhos de Hamã tém semelhanças
o livro de Ester na festa anual após a salvação dos judeus com as histórias de
de Purim, e alguns especialis- (9:13) (LANIAK, 2003, p. 182). José e Moisés: judeus que
tas afirmam que o propósito O texto não dá ne- tiveram algum vínculo com
do livro é justamente apre- nhuma justificativa para este a corte opressora, mas aca-
sentar a origem da festa do pedido de Ester, e, aparen- baram salvando o seu povo.
Purim (Et 9:18–10:3) (ACOS- temente, “um segundo mas- Como Moisés, Ester também
TA, 2018, p. 213). Apesar de sacre não foi, em nenhum foi adotada e teve sua identi-
Lutero aparentemente ter sentido, um ato de autode- dade ocultada para proteger
revelado alguma dificulda- fesa” (PATON, 1908, p. 96). sua vida (ACOSTA, 2018, p. 215).
de com Ester (ACOSTA, 2018, A pergunta que se Por orientação de
p. 229), em geral, a Reforma faz é: o caráter de Ester é um Mordecai, Ester escondeu
Protestante deu importân- modelo em questões éticas? sua nacionalidade (2:10, 20)
cia a Ester, especialmente Os comentaristas se dividem – e, nesse ponto, a compara-
em reflexões sobre a mo- entre os que defendem o ca- ção com Daniel em Babilônia
narquia, a natureza feminina ráter de Ester e os que a cri- é inevitável: Daniel não deixa
ou como enfrentar ameaças ticam. Obviamente, detalhes a menor dúvida de que não
(CARRUTHERS, 2008, p. 13). como estes não constam em está disposto a perder sua
No entanto, sempre nenhuma versão infantil da identidade judaica, e resolveu
houve reservas quanto ao história, mas é um ponto inte- “firmemente, não se contami-
conteúdo religioso e moral de ressante de se observar (pois nar com as finas iguarias do
Ester, devido à suposta am- as crianças podem perceber). rei” (Dn 1:8). Ao contrário de
biguidade moral de alguns Daniel, o livro de Ester não ex-
fatos e à ausência do nome pressa nenhuma preocupa-
Deus é o ausente
de Deus na narrativa (JOBES, ção com as leis alimentares,
1999, p. 20). Porém, apesar literário presente e não faz nenhum protesto ou
“
de não mencionar Deus, a em todo o livro. observação. Quando é leva-
narrativa traz de maneira im- da à corte do rei pagão, Ester
plícita, sua providência e so- apenas esconde sua identida-
berania. Deus é o “ausente de judaica (JOBES, 1999, p. 20).
A riqueza e
a relevân-
O ato de ocultar a Mordecai sobre Ester neste
identidade de alguém não é ponto. Não é fácil saber pelo cia dessa
“
incomum na Bíblia Hebraica. texto se Ester teria sido des- história são
Jacó vestiu as roupas de Esaú qualificada por ser judia, mas
tão grandes
e usou peles de animais para aparentemente há algum
obter a bênção de Isaque (Gn tipo de apreensão por parte para o povo
27:1-29). Tamar se disfarçou de Mordecai. O fato é que, judeu, que
de prostituta para enganar diante de todos os cenários
Judá e engravidar dele (Gn e suposições possíveis, a nar-
eles cele-
38:11 26). Abraão (em duas rativa permanece silenciosa. bram até
ocasiões) e Isaque ocultaram hoje o livro
a identidade de suas lindas
esposas, apresentando-as de Ester na
como irmãs, para evitar o que festa anual
temiam ser a morte certa nas
mãos de reis estrangeiros
de Purim
(Gn 12:10-20, 20:1-18, 26:7-11).
Esses textos relatam
uma ocultação ativa da iden-
tidade, que pode ser caracte-
rizada como engano. No en-
tanto, o caso de Ester é mais
ambíguo, pois foi um caso de
omissão: “Ester, porém, não
declarou o seu povo e a sua
parentela” (Et 2:10 ACF). Este
pode ser um ponto observa-
do por crianças atentas, pois
é um detalhe que consta na
maioria das histórias adap-
tadas para o público infantil.
Muitos estudiosos
consideram Ester e Mordecai
responsáveis por ações que
hoje parecem moralmente
erradas. Nesse caso, como
responsável legal por Ester,
Mordecai poderia ser acusa-
do de pressionar Ester a ocul-
tar sua identidade judaica, de
maneira que seu testemunho
de fé nas cortes do rei pa-
gão ficasse comprometido.
Deve-se notar, porém,
que os motivos do pedido de
Mordecai não estão indicados
em parte alguma do texto,
e parece improvável que a
narrativa apenas queira mos-
trar o domínio patriarcal de
92
4.
AS AMBIGUIDADES DO
REI ASSUERO
E
ster contém muita iro- que havia sido criada pelo descobre um plano conspi-
nia, sátira, contraste primo, Mordecai (2:5-7). Uma ratório de dois eunucos para
(ACOSTA, 2018, p. 215), mãe normalmente seria a matar Assuero, o rei é avisa-
e zomba daqueles que estão principal autoridade e refe- do, e os eunucos são enfor-
em autoridade ou daqueles rência para uma garota judia, cados. A fidelidade de Mor-
que são responsáveis pelo so- mas não no caso de Ester. decai é registrada nos livros
frimento dos judeus (JONES, No caso dela, seu modelo foi de história da corte (2:21-23).
1977, p. 172). O livro começa um homem, Mordecai (FOX,
descrevendo a grandiosidade 2001, p. 97). Sua extrema
do império persa, de Assuero,
que oferece banquetes sun-
beleza a leva ao centro do
enredo, pois Assuero quer
5.
tuosos. Mas logo, a história as- escolher uma nova rainha HAMÃ, O ANTAGO-
sume ares cômicos, pois o rei (2:2-4), e Ester é levada como NISTA, E SUA VIN-
manda chamar a rainha Vasti uma das candidatas (2:8).
para exibi-la diante dos con- Ester vence o con- GANÇA DESPRO-
vidados, e ela o desobedece. curso, mas isso também PORCIONAL
Ou seja, apesar da grandeza envolve algumas questões
de seu império, da serieda- morais pouco exploradas na
de de suas leis, o rei não tem literatura cristã: Ester perdeu
A
autoridade sobre a esposa. a virgindade com um gentio
Assuero se mostra um incircunciso com quem ain- narrativa apresenta,
rei poderoso e ostentador, e, da não era casada, e ela o então, Hamã – um
ao mesmo tempo, um ser hu- agrada naquela noite mais do funcionário da corte
mano fraco, ignorante e ma- que todas as outras virgens que foi elevado ao mais alto
nipulável (ACOSTA, 2018, p. do harém (JOBES, 1999, p. cargo pelo rei Assuero. Ele
218). Na maioria das histórias 20). Certamente, essa não é é o grande vilão da história,
adaptadas para o público in- uma história romântica como que decide exterminar os ju-
fantil, é dado maior enfoque costuma ser retratada, e isso deus simplesmente porque
na personalidade de Vasti e não consta em nenhuma Mordecai, um judeu, não se
não em Assuero, é exaltada versão infantil. Mas prostra perante ele, reveren-
a coragem de Vasti em con- de que outra forma ela de- ciando-o. Ou seja, O proble-
trariar o Rei, porém, no de- veria agir, ou que outras de- ma entre Hamã e Mordecai
senrolar da história, é possível cisões ela deveria tomar? se torna um problema entre
perceber Assuero como um O rei Assuero se apai- Hamã e todos os judeus (3:1-6)
rei dependente e manipulá- xona por Ester, e ela se torna Dessa forma, nova-
vel. Ele chega ao ponto de rainha (Et 2:17), mas continua mente, a narrativa traz um
destituir Vasti do posto de escondendo sua nacionalida- líder da corte que é igno-
rainha, e emitir um decreto de (2:20), todas as narrativas rado e se sente ofendido
para que os homens exerçam voltadas para o público in- pela falta de submissão de
autoridade em suas casas fantil, constam essa omissão alguém. E, como Assuero,
sobre suas esposas (1:19-22). e é um ponto muito interes- Hamã tentará amenizar sua
Ester, cujo nome era sante para a pesquisa. Na se- desonra com um decreto.
Hadassa, era uma judia órfã, quência dos fatos, Mordecai A diferença entre a reação
reação dos dois é que Assuero é retratada como ignorante, vimento de Ester ao longo
não mandou matar ninguém. a ponto de editar um decreto da narrativa. No começo do
Portanto, a reação de Hamã é que coloca, inadvertidamen- livro, Vasti e Ester são re-
totalmente desproporcional. te, em risco a própria rainha. tratadas como meros orna-
O texto diz que “se O fato de anunciar o mentos do rei Assuero. No
lançou o Pur, isto é, sortes” extermínio e dar um prazo final, ela assume o prota-
(3:7), para saber o dia em que para que ele aconteça tam- gonismo ao criar um plano
o plano seria executado. Após bém é curioso: os ameaçados e executá-lo com sucesso.
isso, Hamã convence o rei As- poderiam fugir para salvar a O protótipo de mu-
suero a assinar um decreto vida. Aparentemente, Hamã lher corajosa e eficaz já exis-
autorizando o massacre dos pretende aterrorizar os judeus te nos livros mais antigos da
judeus (3:8-10). Novamente, antes de matá-los, o que tor- Bíblia Hebraica (Débora, Jael,
o rei permite que subalternos na o seu plano menos eficaz. Abigail, por exemplo). Po-
lhe digam o que fazer. E, nes- Na verdade, esse detalhe é rém, além de corajosa, Ester
se caso, ele dá o anel real a o que garante o fracasso do é apresentada como uma
Hamã, e lhe diz: “Essa prata seu plano, como ficará claro sábia (JONES, 1977, p. 177),
seja tua, como também esse no decorrer da história – Es- que ultrapassa Mordecai
povo, para fazeres dele o que ter terá tempo para elaborar nesse papel. No final, Ester
melhor for de teu agrado” uma estratégia de defesa. não é apenas um ornamen-
(3:11). Mais uma vez, Assuero to, um objeto sexual, mas
é mostrado como “um caso uma mulher corajosa e sábia.
do grande rei que não go-
verna” (ACOSTA, 2018, p. 222). 6. Mordecai informa
Ester do que está aconte-
A história enfatiza o cendo e pede que ela inter-
extremismo e a desproporcio- ESTER ASSUME ceda diante do rei, mesmo
nalidade do plano de Hamã. correndo risco de morrer:
Matar alguém que se recusou
O PROTAGONISMO
a fazer um gesto já seria um Não imagines que,
exagero, mais ainda, matar por estares na casa do rei, só
N
toda uma nação por causa de tu escaparás entre todos os
uma única pessoa. Mas há um a primeira metade judeus. Porque, se de todo te
contexto histórico subjacente da narrativa do livro, calares agora, de outra parte
à narrativa: a antiga inimizade Mordecai toma as se levantará para os judeus
entre amalequitas e benjami- decisões, orienta que Ester socorro e livramento, mas tu
tas, desde o tempo de Saul e esconda sua nacionalidade e a casa de teu pai perecereis;
Agague. Mordecai pertence judaica (2:10), e a acompanha e quem sabe se para conjun-
à família benjamita de Saul de perto (2:11). No começo tura como esta é que foste
(2:5), e Hamã é descenden- da narrativa, Ester não tem o elevada a rainha?” (4:13-14).
te do rei amalequita Agague protagonismo, é obediente
(3:1). Essa inimizade está ex- às orientações de Mordecai Ester entra na pre-
plícita no texto, que descreve (2:20, 22), e sequer é mencio- sença do rei, o rei aceita sua
Hamã como “o inimigo dos ju- nada no capítulo 3. Mas o ca- visita e assegura a Ester que
deus, filho de Hamedata, des- pítulo 4 apresenta uma virada ela pode pedir qualquer coi-
cendente de Agague” (3:10). nesse roteiro. No começo do sa, até metade do seu reino
O decreto foi editado, capítulo 4, Ester ainda ouve (5:3). Ela então convida o rei e
traduzido para diversas lín- os conselhos de Mordecai, Hamã para um banquete. Es-
guas, e espalhado pelo impé- mas, então, assume a lide- tando ali, o rei repete a pro-
rio persa, “da Índia até a Eti- rança. Ela passa a dar instru- messa de dar a ela o que quer
ópia” (ACOSTA, 2018, p. 222). ções a Mordecai, e planejar que fosse, mesmo metade do
No entanto, os leitores sabem os atos a partir desse ponto. reino (3:6). Ester então convi-
o que Hamã não sabe: Ester A história retrata o da os dois para um segundo
é judia. Assim, a corte persa crescimento e o desenvol- banquete, onde, então, ela
H
que desfile pelas ruas no ca- o plano de Hamã (7:3-6). No-
amã sai feliz do ban- valo real, usando a coroa real, vamente, Assuero é retratado
quete e se depara com alguém gritando: “As- de maneira irônica: ele é o “rei
com Mordecai na sim se faz ao homem a quem de grandes domínios, que não
porta do palácio. Mordecai o rei deseja honrar” (6:9). domina nada” (ACOSTA, 2018,
não esboça qualquer reve- O humor aqui está no p. 227), a tal ponto de ter con-
rência diante de Hamã, e fato de o leitor saber dos bas- denado sua própria esposa à
este vai furioso para casa. tidores, o que está na men- morte sem saber. O rei, indig-
Diante de sua esposa e de te de Assuero e de Hamã, nado, sai da sala e deixa Ester
seus amigos, Hamã conta mas nenhum dos dois sabe e Hamã sozinhos. E a situa-
vantagem, e se gloria de ser o que está na mente um do ção de Hamã, que já estava
o único convidado de Ester, outro. É a “comédia de er- ruim, fica ainda pior, pois ele
além do próprio rei. Mas re- ros: uma personagem inter- se joga sobre a rainha implo-
A
forçar a rainha perante mim, os moradores de Susã: “En-
na minha casa? Tendo o rei gora Ester convence tão, o rei e Hamã se assenta-
dito estas palavras, cobri- o rei a escrever outro ram a beber, mas a cidade de
ram o rosto de Hamã” (7:8). decreto, dando auto- Susã estava perplexa” (3:15).
Informado de que rização para que os judeus se O segundo decre-
Hamã havia construído uma defendam de qualquer ata- to, favorável aos judeus,
forca perto da sua casa para que. O humor da situação está provocou reação diferente:
executar Mordecai (mais no fato que a narrativa acaba
uma coisa que o rei não sa- de relatar que os judeus já fo- Em cada província e
bia), Assuero ordena que en- ram “capazes de se defender em cada cidade, onde quer
forquem Hamã nessa forca sozinhos, sem decreto e sem que chegasse o decreto do
(7:9-10), e as Bíblias infantis que o próprio rei nem seus rei, havia alegria e júbilo en-
contam essa parte da his- amigos dessem conta do que tre os judeus, com banquetes
tória. Claramente, “uma das estava se passando” (ACOS- e festas. Muitos que perten-
chaves do relato de Ester é o TA, 2018, p. 229). A narrativa ciam a outros povos do rei-
revés” (ACOSTA, 2018, p. 228), continua levantando implici- no tornaram-se judeus, por-
pois tudo saiu ao contrário tamente perguntas incômo- que o temor dos judeus tinha
do que os maus planejaram. das (e engraçadas): o rei man- se apoderado deles (8:17).
Hamã caiu na própria da em seu reino? Os homens
armadilha: o rei mandou ma- mandam em suas casas? A descrição do se-
tá-lo e entregou seus bens a O plano de Hamã ha- gundo decreto inclui mais
Ester. E um detalhe curioso via sido descrito com três ver- povos e mais detalhes. O dia
é que Ester não intercedeu bos: “destruir” (shamad) (3:6); que era para ser um dia de
pela vida de Hamã e nem “sejam mortos” (‘abad) (3:9); morte e extermínio dos ju-
recusou receber seus bens “para que se destruíssem deus se transformou num
(ACOSTA, 2018, p. 228). O tex- (shamad), matassem (harag) dia de honra para Mordecai,
to justifica tudo o que acon- e aniquilassem de vez” (‘abad) e banquete e celebração
teceu com Hamã com uma (3:13). O massacre planeja- para todos os judeus (8:15-17).
sentença: “porquanto inten- do por Hamã incluiria velhos, Quando o rei explica
tara matar os judeus” (8:7). mulheres e crianças (3:13). a Ester que nada escrito em
A crítica contempo- Ironicamente, no final, Ester nome do rei e selado com seu
rânea da ética representada repete os mesmos três ver- anel pode ser revogado (8:8),
na narrativa de Ester precisa bos quando denuncia ao rei o há uma ironia. Essa explica-
levar em conta que o código plano de Hamã (7:4). E os ver- ção seria desnecessária para
moral da história é um códi- bos são usados novamente alguém da corte real, espe-
go de honra: Ester e Mordecai quando o decreto é revertido cialmente para uma rainha tão
são admirados pela lealdade a favor dos judeus (8:11; 9:12). próxima de um alto funcioná-
ao seu povo, fazendo de tudo Ou seja: literalmente, o mal rio como Mordecai. Portanto,
o que está ao seu alcance planejado contra os judeus o rei está mudando um de-
para resistir a um inimigo que voltou-se contra os inimigos. creto real (e nenhum dos dois
busca a sua destruição, agin- O prazo para que o decretos foi feito realmente
do apenas em legítima defe- decreto formulado por Hamã por ele!) ao mesmo tempo
sa (LANIAK, 2003, p. 182-183). entrasse em vigor era de em que explica que tais de-
onze meses, e as datas são cretos são imutáveis. Há aqui
“
diente de ironia e hu- acham em Susã que também
mor (JONES, 1977, p. 180). façam, amanhã, segundo o
literalmen-
Também há um exa- edito de hoje e dependurem te, o mal
gero no relato do segundo em forca os cadáveres dos planejado
decreto. Estritamente, ele dez filhos de Hamã” (9:12-13).
apenas dá aos judeus “o di- contra os
reito de reunir-se e de pro- judeus
teger-se, de destruir, matar
e aniquilar qualquer força ar-
voltou-se
mada de qualquer povo ou contra os
província que os ameaças- inimigos
se, a eles, suas mulheres e
seus filhos, e de saquear os
bens dos seus inimigos” (8:11).
Aparentemente, se ninguém
atacasse os judeus, nenhu-
ma morte ocorreria. Quem
seria tolo de querer cumprir
o decreto de Hamã saben-
do desse segundo decreto?
Apesar disso, oito-
centas pessoas de Susã (9:6,
16) e setenta e cinco mil de
outras cidades arriscaram
cumprir o primeiro decre-
to, mesmo sabendo do se-
gundo. Exagero? Hipérbole?
Certamente, o autor da nar-
rativa quer provocar alguma
reação nos leitores que se
deparam com o grande rei
Assuero tendo que se alegrar
por tantos de seus próprios
súditos terem sido mortos.
O verso 12 repe-
te a informação:
que disse à rainha Es-
ter: "Os judeus mataram e des-
truíram quinhentos homens
e os dez filhos de Hamã na
cidadela de Susã. Que terão
feito nas outras províncias do
império? Agora, diga qual é o
seu pedido, e você será aten-
dida. Tem ainda algum desejo?
Este lhe será concedido" (9:12)
97
Me. Vanessa Meira
9.
VINGANÇA OU
JUÍZO DIVINO?
O
pedido de Ester pode divino sobre os opressores, e Às vezes é
sugerir um espírito de tal juízo que pode assumir a fácil impor
vingança, especial- forma de intervenção divina
“
opiniões
mente o pedido para enforcar sobrenatural ou pode ser hu-
os filhos mortos de Hamã. Tal- manamente executado, espe- culturais de
vez os judeus temessem que cialmente pelos exércitos de hoje ao tex-
os inimigos que sobreviveram Israel (LANIAK, 2003, p. 183). to bíblico,
ao primeiro dia pudessem A promessa de Deus e avaliar as
se organizar e contra-atacar. a Abraão, no livro de Gêne-
atitudes de
Isso tornaria o segundo mas- sis, foi de que Ele abençoaria
sacre um ato preventivo de aqueles que o abençoassem Ester e Mor-
“legítima defesa”. Enforcar os e amaldiçoaria aqueles que decai como
filhos de Hamã publicamen- o amaldiçoassem (Gn 12:3). A se fossem
te pode ter sido uma medida mesma promessa que Deus cidadãos do
para lançar medo no coração fez a Abraão é vista operan-
século XXI.
dos inimigos. No entanto, to- do fielmente nas histórias
das essas explicações ficam de Israel, e no livro de Ester.
no campo da especulação, já
que o texto não explica. Assim,
é difícil julgar a moralidade de
Ester com base nesses fatos.
Às vezes é fácil impor
opiniões culturais de hoje ao
texto bíblico, e avaliar as atitu-
des de Ester e Mordecai como
se fossem cidadãos do século
XXI. Leitores contemporâneos
precisam fazer uma pergunta
sincera: o que eu faria se es-
tivesse no lugar de Ester ou
Mordecai? É necessário entrar
na realidade da situação de-
les, e refletir cuidadosamente
sobre quais opções Ester e
Mordecai realmente tinham
diante da ameaça iminente
de extermínio do seu povo.
Mas, a Bíblia Hebrai-
ca é consistente ao apresen-
tar essa ética, especialmente
nas tradições de conquista:
ameaçar o povo escolhido
de Deus sempre traz o juízo
N
o final do livro, o mes- quentemente recebe críticas quisadora com a narrativa de
mo rei, que no início por causa do massacre dos Ester em grupos de discus-
do livro havia pro- inimigos dos judeus (JONES, são com crianças detectou
mulgado um decreto segun- 1977, p. 177-178), mas as obras sinais de que elas percebem
do o qual todos os homens do infantis não mencionam ou sim os aspectos humorísti-
reino deveriam ser obedeci- enfatizam essa parte da his- cos da história, bem como
dos por suas mulheres, agora tória. No entanto, a maior diversos dilemas morais.
está “obedecendo” sua espo- parte dessas obras infantis O fato é que a nar-
sa, sem consultar os sábios, destacam o fato de Hamã rativa de Ester é uma histó-
as leis ou os livros de crônicas ter sido enforcado na própria ria muito rica, que permite
do reino. Assim, o relato já co- forca que fez para Morde- muitas reflexões úteis ao
meça mostrando como “o rei cai (7:10). E isso sim é con- desenvolvimento moral e
é inocente e quão ridículas tado com um tom de ironia. espiritual, podendo ser ana-
são as leis dos medos e per- Seria possível con- lisada a partir de diferentes
sas, supostamente inquestio- tar a narrativa de Ester para pontos de vista, e, inclusive,
náveis” (ACOSTA, 2018, p. 210). as crianças sem omitir o encenada e contada de acor-
No final da história, cumpre- massacre final? Não conta- do com o ponto de vista de
-se a vontade de uma mulher. mos às crianças a história qualquer outro personagem.
O império persa agora está re- do Êxodo, com a morte dos
cebendo as ordens que Ester primogênitos, e o afoga-
e Mordecai “escreveram, com mento de Faraó e seu exér-
toda a autoridade” (Et 9:29), cito? Não seria útil explorar
e o capítulo 9 termina com o massacre final como juízo
“o mandado de Ester” (9:32). divino em favor de seu povo?
Após a matança dos De fato, é possível
inimigos, os judeus fazem detectar algum nacionalis- Autores
uma grande festa, e a tristeza mo no livro, mas é neces-
se torna em grande alegria, sário também destacar o Saiba mais
instituindo assim a celebra- aspecto humorístico da nar-
ção anual da festa de Purim: rativa, mesmo em meio a tan- Vanessa Meira
tas ameaças e mortes. Como
Mestre em Teologia
como os dias em que se vê, Ester “é um relato cheio
(EST, São Leopoldo-RS),
os judeus tiveram sossego dos de humor” (ACOSTA, 2018, p.
seus inimigos, e o mês que 209), mas, será que esse as- doutoranda em Teologia
se lhes mudou de tristeza em pecto humorístico da história (EST, São Leopoldo-RS),
alegria, e de luto em dia de é captado pelas crianças? Ele licenciada em Pedago-
festa; para que os fizessem pode ser explorado por adul- gia, docente do curso de
dias de banquetes e de ale- tos interessados no desen- Pedagogia do Instituto
gria, e de mandarem porções volvimento moral e espiritual
Adventista Paranaense
dos banquetes uns aos outros, da criança? Pesquisas poste-
e dádivas aos pobres (9:22). riores poderiam verificar isso. (Ivatuba-PR). Bolsista da
Mas, de forma seminal, a pes- CAPES. Contato:vanes-
O livro de Ester fre- quisa realizada por esta pes- sarmeira@gmail.com