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Suplemento

literário do
Jornal A União

Abril - 2019
Ano LXX - Nº 2
R$ 6,00
Exemplar encartado no jornal A União apenas para assinantes. Nas bancas e representantes, R$ 6,00

Augusto dos Anjos


“Cismas do Destino” ou, Diálogo entretecido
entre o Eu-lírico e o Fado
Texto: Milton Marques Júnior
Ilustração: Flávio Tavares e Domingos Sávio
6 editorial

Augusto, aos 135 anos


No dia 20 deste abril co- O Correio das trado pelos artistas Flávio
memorou-se os 135 anos de Tavares e Domingos Sávio –
nascimento de Augusto dos Artes participa acerca do poema “As Cismas
Anjos, um dos mais impor- das homenagens do Destino”, que o autor da
tantes poetas de língua por- análise considera “um dos
tuguesa. Autor bastante lido a Augusto dos poemas seminais do EU”.
e estudado, felizmente, mas Milton afirma que há
Anjos com um
ao qual o Brasil ainda é de- grandes linhas no EU, que
vedor, diante de celebração ensaio exclusivo não podem ser contorna-
relativamente pequena, para das, uma vez que são res-
tão superlativa grandeza. do professor Milton ponsáveis pela firmeza do
O professor e poeta Au- Marques Júnior livro: “Monólogo de uma
gusto de Carvalho Rodri- Sombra”, “Os Doentes”,
gues dos Anjos nasceu no – ilustrado pelos “Gemidos da Arte” e... “As
Engenho Pau d’Arco, então artistas Flávio Cismas do Destino”. Os de-
localizado no município de mais poemas, na avaliação
Espírito Santo, Paraíba, no Tavares e Domingos do mestre, “são o reflexo
dia 20 de abril de 1884. Mu- desses grandes eixos”.
dou-se para o Rio de Janeiro
Sávio – acerca do Acrescenta, o ensaísta,
em 1910 e, em 1914, transfe- poema “As Cismas que é possível encontrar,
riu-se para Leopoldina (MG), nas 105 estrofes de “As Cis-
mesmo ano em que, no dia 12 do Destino”. mas do Destino”, “essa bus-
de novembro, viria a falecer. ca pela vida, mais do que a
Em 1912, portanto apenas representação da morte, que
dois anos antes de morrer, está na poesia de Augusto
Augusto dos Anjos publicou a imperecível vitalidade de dos Anjos”. Sendo assim,
seu único livro de poesia, EU, seus poemas. seu estudo é um excelente
de qualidade excepcional, O Correio das Artes partici- motivo para ler - ou voltar
suficiente para guindá-lo ao pa das homenagens a Augus- a ler - o nosso poeta, “alma
panteão dos poetas maiores to dos Anjos com um ensaio plena que continua”.
não só do Brasil, mas de lín- exclusivo do professor Mil-
gua portuguesa, como atesta ton Marques Júnior – ilus- O Editor

6 índice

, 4 @ 12 2 14 D 24
poesia crítica cinema música
Milton Marques Júnior Hildeberto Barbosa Filho Francisco Gil Messias Maria Aparecida L.
analisa o poema "As aponta equívocos na comenta o lançamento, Francisco aprecia o CD
Cismas do Destino", que crítica de José Aderaldo no Brasil, do filme Anna Citizen 18, de Washington
considera uma das linhas Castello e Flávio R. Kothe Karenina: A História de Espínola, e explica por
de sustentação do EU, de à obra de Augusto dos Vronsky, do diretor Karen que o artista atingiu a
Augusto dos Anjos. Anjos. Shakhnazarov. maioridade musical.

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6 ensaio ilustração: domingos sávio

Recife. Ponte Buarque de Macedo.


Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!
Augusto dos Anjos (1884-1914)

Teleologia
e as significações se camuflando
sob a linguagem aparente que se
lê. A linguagem literária, mais do
que qualquer outra, tem dobras e
mais dobras, sob as quais se re-

sem fugiam os segredos do interdito,


nos dois sentidos: do que não foi
dito e daquilo que é proibido de

princípios ser dito, ficando nas entrelinhas.


Quando nos debruçamos so-
bre a poesia de Augusto dos
Anjos (1884-1914), sentimos mais
explicitamente esse jogo da lin-
Milton Marques Junior guagem em fuga, de modo que
marquesjr45@hotmail.com passamos a considerar e a refletir
como se deve dar o enfrentamen-
to desse poeta. De uma coisa, eu

U
m dos grandes problemas da humanidade é a lingua- tenho certeza: dicionários, léxi-
gem. Embora tenhamos sido programados para falar, cos, glossários, mesmo os espe-
isso não significa que nossa expressão linguística nos cializados, se ajudam não são su-
isenta de erros e de equívocos. Se no dia a dia temos ficientes para o desvendamento
problemas de entendimento, as nossas dificuldades do léxico de Augusto dos Anjos.
aumentam exponencialmente, quando a linguagem É preciso que estejamos sintoni-
é utilizada com significações particulares. Digo isto zados com as suas leituras e bus-
porque sei o quanto o adensamento da linguagem no car nos autores especializados o
campo filosófico afasta o vulgo da apreensão da filoso- sentido da sua linguagem estra-
fia. No que diz respeito à linguagem artística, na nar- nha ao cotidiano e, ainda mais,
rativa ou na poesia, o adensamento tem ainda como à poesia. Além do vocabulário
aliado o não-dito ou o interdito, com o pensamento filosófico ou do léxico explicita- c

4 | João Pessoa, abril de 2019 Correio das Artes – A UNIÃO


c mente budista ou de doutrina pátria difusora de uma nova
religiosa oriental, precisamos religião, que fazia adeptos no
esclarecer com mais cuidado o mundo ocidental rapidamente
vocabulário científico atinente à – o Espiritismo. O mesmo não
teoria evolucionista, caso contrá- acontecia com o Budismo. Não
rio, procurando desfazer as do- podemos dizer com certeza se
bras inquietantes de sua poesia, Augusto dos Anjos leu ou não
ficaremos repetindo mesmices e as obras de Kardec, mas como
não adentraremos o problema e não supor que isto possa ter
permaneceremos, conforme diz acontecido se as suas obras são
o poeta, como “a alma embrioná- contemporâneas das de Darwin
ria que não continua”. e de Marx, além de escritas em
É preciso ficar claro que o des- uma língua de cultura, o fran-
vendamento da compreensão da cês, uma espécie de coiné para
teoria evolucionista em Augusto os intelectuais do século XIX?
vai além de uma possível curio- Lembremos que a Federação Es-
sidade do poeta com essa teoria. pírita Brasileira é de 1884, ano
É fundamental que compreenda- do nascimento do poeta. Para
mos existir uma relação intrínse- existir uma federação já em 1884
ca entre a evolução darwiniana e significa que o movimento dos
evolução espiritual, que se recla- centros espíritas começou bem
mam e se imbricam na poesia do antes. A título de informação, a
autor do Eu. Para usar um clichê Federação Espírita da Paraíba é
que todos entendem, evolução fundada em 1916, dois anos de-
darwiniana e evolução espiri- pois da morte do poeta.
tual, na poesia de Augusto dos Acreditamos ser plausível
Anjos, são as duas faces da mes- conceber que Augusto dos Anjos
ma moeda, uma não existe sem a estava tão afinado com a doutri-
outra. E penso, então, após muita na espírita, via franceses, quan-
reflexão, em determinados poe- to com a budista, via alemães. É
mas, como “Monólogo de uma verdade que Budismo e Espiritis-
Sombra”, “As Cismas do Desti- mo têm pontos de contato entre
no”, “Os Doentes” e “Gemidos si, como a reencarnação, que só
de Arte”, em que se encontram deixará de acontecer quando o
as possíveis chaves de decifração espírito encontrar a iluminação.
de sua poesia. Além disso, o karma budista en-
Por outro lado, percebemos contra guarida na Lei do Retor-
haver um procedimento crítico no, da Lei da Ação e da Reação,
até certo ponto comum, de se fa- tornando-nos responsáveis pelo
zer a ligação da espiritualidade que fazemos e dizemos. Seria,
da poesia de Augusto dos Anjos no entanto, muito arriscado ao
apenas com o Budismo, mas não escritor veicular tais conceitos na
com o Espiritismo, tendo em sua poesia abertamente. Aceita-
vista as referências ali existen- -se com facilidade o cientificismo
tes, bem mais claras do que com e a utilização das palavras esdrú-
relação ao Espiritismo. Haveria xulas das ciências físicas e bioló-
alguma razão, da parte do poe- gicas, pois o mundo está entre
ta, para a clareza de umas refe- maravilhado e atônito com tais
rências e o obscurecimento de descobertas, e a ciência sempre
outras? Talvez, sim. O Budismo teve guarida na mente dos inte-
já era conhecido e, como religião lectuais. Como veicular as ideias
oriental, sem uma massa de se- espiritualistas, as do Espiritismo,
guidores no mundo ocidental, mais especificamente, senão as
não rivalizava com o Cristianis- encobrindo com as ideias mais
mo. O Espiritismo começa a se aceitáveis de uma religião que
desenvolver no mundo ociden- não concorria com o Cristianis-
tal europeu, já cindido anterior- mo? Por outro lado, o esdrúxulo
mente por uma guerra religiosa de se fazer relações com o Budis-
entre católicos e protestantes, mo se adequava perfeitamente ao
cujo ápice foi a Noite de São Bar- esdrúxulo do vocabulário cientí-
tolomeu, em 1572. A França ca- fico e com a exposição cruenta de
tólica, que trazia em si a mancha uma matéria em decomposição.
da morte por religião, aparecia, Falar de Budismo ou usar de
em meados do século XIX, como modo explícito o léxico budista, c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2019 | 5


c aqui e acolá, pareceria estranhe-
za e excentricidade tanto quan-
to o léxico das ciências naturais
em poesia. Mas pensemos que
a arte se faz no interdito. Neste
aspecto, a poesia de Augusto dos
Anjos se aproximaria da lingua-
gem barroca, que se utilizava de
rebuscamentos para esconder o
que queria dizer, por ser proi-
bido dizer. O Budismo seria,
então, uma excentricidade; o Es-
piritismo, uma heresia, ambos
apresentados em poesia em um
Brasil católico... O melhor modo
de esconder isto seria através da
linguagem científica abundante
e das visões de degradação da
matéria. Antes de finalizar este
introito, reafirmamos o que dis-
semos em outros artigos: o fato
de Augusto dos Anjos, em sua
poesia, utilizar-se de uma clara
espiritualidade, não nos autori-
za dizer que o poeta era adepto
desta ou daquela religião, o que
pouco importa para a excelência
de sua poesia.
Escolhemos para tentar com-
preender um pouco mais da poe-
sia de Augusto dos Anjos, o poe-
ma “As Cismas do Destino”, por
constituir-se um dos textos que
fazem a espinha dorsal do Eu.
Trata-se de longo poema de 105
estrofes, dividido em quatro par-
tes, já delineadas pelo próprio
poeta: a Parte I é constituída de instinto faz o eu reconhecer-se Parte II
28 estrofes (1-28); a Parte II de 34 como produto da “fábrica ter- Na parte II, a visão do delírio
(29-62); a Parte III de 35 (63-97), rível” (10, 40), o sexo, essa “fa- do eu se agudiza, tem “a força
e a Parte IV de 8 (98-105). É um talidade igualitária” (10, 38). O visualística do lince” (29, 115), a
poema dialogal, como outros de resultado é a aflição do eu, in- ponto de ver que a matéria não
Augusto dos Anjos, sendo, neste compreendido, diante de uma é una. A acuidade visual que o
caso, o diálogo entretecido entre população doente – “Na ascen- delírio provoca abre espaço para
o Eu-lírico e o Destino. Façamos são barométrica da calma,/Eu a visão da morte, de crimes e de
uma breve explanação do que bem sabia, ansiado e contrafei- atos funestos, com o eu perceben-
existe em cada uma das partes: to,/Que uma população doente do a inexistência de uma evolu-
do peito/Tossia sem remédio na ção – “Em tudo, então, meus
Parte I minha alma!” (19, 73-76). olhos distinguiram,/Da miniatu-
As três primeiras estrofes Sendo “peito” metáfora para ra singular de uma aspa/À anato-
definem a localização e des- designar o coração ou a alma, vê- mia mínima da caspa,/Embriões
crevem o ambiente. O início do -se que a doença é da alma, não de mundo que não progrediram”
poema começa na quarta estro- física, doença resultante da vio- (35, 137-140).
fe, prologando-se até a estrofe lação das “leis da Natureza!” (21, A partir dessa visão, o eu per-
28. É a observação inicial do eu, 84). A aflição do eu é descobrir cebe a “alma embrionária que
ponto de partida para a reflexão a razão da dor e do sofrimento, não continua” (36, 144), tomando
sobre a animalidade, o sexo e a nessa violação. Alucinado – “na o cachorro como exemplo, mas já
lubricidade instintiva, na alma alta alucinação de minhas cis- começa a formulação da morte
da cidade, em que “a matilha mas” (24, 93) –, o eu chega ao como abandono da matéria, “a
espantada dos instintos” (5, 20), “estado máximo da mágoa” (25, putrescível forma tosca” (38, 149),
como “uma besta solta” (6, 23) 97), demonstrando um “asco não como um fim. Na aflição, o
solta “o berro da animalidade” acérrimo” contra os que viola- eu continua ao dar-se conta de
(6, 24). A lubricidade dos ho- ram a natureza – “os canalhas sua incapacidade de expressão.
mens levados pela torrente do do mundo” (28, 111-112). Assim como o cachorro está fa- c

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c dado a “Ganir incompreendidos/ do Universo” (61, 243). É o dese- do ludíbrio”; o homem material,
Verbos” (37, 145-146), o eu se afli- jo de imersão “na vida univer- “árvores sem fruto” (105, 418
ge com “uma expressão que não sal” (61, 242), que não poderá e 420). Eis uma sistematização
chegou à língua!” (39, 156). ocorrer sem dor, o que lhe será possível do poema.
A constatação de um proces- dito, em mais uma agudização Procuremos analisar os ele-
so evolutivo, que sai do inorgâ- do delírio, pela voz do Destino. mentos levantados na siste-
nico para o orgânico, revela a matização das quatro partes,
criação de uma “humanidade Parte III iniciando com a elucidação do
parasita” (48, 190) e que a maté- A fala do Destino faz o ho- título deste ensaio. Acreditar
ria, a que o homem se encontra mem conhecer a dor e as suas na materialidade e cultivá-la,
preso, leva-o a agir pelos instin- causas. A vida material é “dor a ponto de ver a morte como
tos, jogando-o num atraso fatí- infrene” (65, 258) e para conhe- um fim, é “uma teleologia sem
dico. A degradação do homem cer a Dor é preciso refleti-la, princípios” (103, 412). Se a fi-
através dos vícios é um atraso pois a Dor é essência da vida nalidade a ser atingida é uma
da evolução, com o alcoolismo – “Ah! Como o ar imortal a vida material, que se acaba com
e a luxúria produzindo “uma Dor não finda!” (68, 269). Se o a morte, não há princípios a ser
progênie idiota de palermas” homem civilizado é um ser co- defendidos. Tudo é permitido.
(54, 216). A prostituição, como lérico, o mundo é “orbe feraz” Partindo desse ponto, constata-
um dos vícios, é também um (72, 285), produzindo guerras e -se que a morte do Estado está
atraso, levando o homem a massacres. A principal guerra ligada a “um mecanismo mori-
pensar na morte como um fim. é entre “o dragão do orgulho bundo” (103, 411) já na partida
Mas o eu condena essa teleolo- humano/e as forças inorgâ- de sua construção. Para que a
gia – “Meu raciocínio enorme nicas da terra!” (84, 335-336). teleologia (de te/leioj, fim, aca-
te condena” (58, 232), além de Apegado à forma tosca, o ser bado, terminado, cumprido, que
condenar os homens que, em humano é dúbio, se trabalha o nada falta) tenha um princípio
lugar de se preparar para a espírito rumo à perfeição, nos é preciso fazer diferente do que
morte, combatem-na, como se detalhes de sua vida mostra a o homem fez, até então, pois ao
não fossem morrer. O equilí- sua podridão – “Hás de mos- homem falta tudo, tendo em
brio só virá com o afastamento trar a cárie dos teus dentes/Na vista que a sociedade que ele
da alma de seu corpo, quando a anatomia horrenda dos deta- construiu é a sociedade da de-
alma integrar a “parte abstrata lhes!” (89, 353-356). gradação e a sua evolução está
Só as estrelas “são verdades atrasada. Vemos, então, que o
de luz” (91, 363), em contraponto poema fala do sofrimento e da
à “fadiga feroz” (93, 369) a que o dor do homem, tendo o próprio
homem se entrega, que não lhe homem como causador desse
permite compreendê-las. A mor- sofrimento e de tudo o que o
te deverá ser “a hora tranquila” aflige, pelas injustiças cometi-
(95, 377), que o levará à unidade das ao se voltar contra as forças
do espírito. Trata-se, portanto, da natureza. O mais importante
não só do conhecimento da dor e é a constatação de que o homem
Acreditar na de suas causas e consequências, é denunciado a si mesmo pelo
mas sobretudo da condenação Destino, aqui uma simbologia
materialidade e do homem material. de sua própria consciência, pa-
lavra de suma importância no
cultivá-la, a ponto de Parte IV poema, apesar de aparecer sob
O eu sofre ao conhecer a ver- duas formas apenas: “sem cons-
ver a morte como um dade, pois o homem é o provo- ciência” (53, 211) e “inconsciên-
cador do sofrimento, através das cia” (60, 239), evidenciando-se,
fim, é “uma teleologia leis e dos códigos que produ- portanto, pela falta. Falar da
ziu. O delírio chega ao seu pa- dor e do sofrimento que aflige o
roxismo – “Minha imaginação homem, no entanto, não exaure
sem princípios” (103, atormentada/paria absurdos...” o poema. O poema se abre para
(100, 397-398) – e o eu constata a uma possibilidade de redenção,
412). Se a finalidade resignação do mundo, cuja força através desse sofrimento.
principal encontra-se invertida: Aprender com o sofrimento
a ser atingida é uma o que deveria ser energia para não é conselho ou caminho novo.
a paz e a justiça, se dissipava e Está no cerne de várias correntes
vida material, que se provocava a falência do mun- religiosas do mundo, desde sem-
do, baseado na materialidade, pre. Até na religiosidade grega,
acaba com a morte, “uma teleologia sem princípios” como se pode ver na fala do Coro,
(103, 412). O homem apegado à no Párodo lírico do Agamêmnon,
não há princípios a matéria não pode ter equilíbrio. de Ésquilo, versos 176-183, em
O progresso, matando a espiri- tradução nossa (poupo-vos do
ser defendidos. tualidade, é “a canção prostituta original, em grego): c

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c (Zeus) ensina aos mortais a reflexão.
Com autoridade, ele estabeleceu
Obter o conhecimento pelo sofrimento.
Em lugar do sonho, a pena distila
O remorso diante do coração.
E, malgrado quem se recusa, vem a prudência.
A Graça das divindades é violenta,
Sentados no trono celeste.

A diferença existente dessa


concepção que encontramos no
mundo grego antigo é que, na es-
sência da poesia de Augusto dos
Anjos, há uma busca da espiri-
tualidade, só conseguida pela
iluminação da alma. Na sua poe-
sia, luz, elevação e desejo de reinte-
gração à unidade do Cosmos é mais
relevante do que a morte apre-
sentada como um dos instru-
mentos para essa transformação.
A morte é meio, não é fim, nem
punição. A não ser para os que
não aprenderam e continuam
apegados à materialidade.
Há, indiscutivelmente, na
estrutura do poema, uma cons-
trução antitética que opõe terra
a espaço; materialidade a espiri-
tualidade, mas também luz a tre- trela luzia...”, 2, 5-6), referências substância etérea do universo.
vas. A situação trevosa, funesta a Trevas (“A noite fecundava o Quando lemos a estrofe 11 – “A
e funérea em que o homem se ovo dos vícios/Animais. Do car- corrente atmosférica mais forte/
encontra, na sua cegueira ma- vão da treva imensa/Caía um ar Zunia. E, na ígnea crosta do Cru-
terial, entra em confronto com danado de doença/Sobre a cara zeiro,/Julgava eu ver o fúnebre
a sua necessidade de despertar geral dos edifícios!”, 4, 13-16), e candieiro/Que há de me alumiar
para a luz. Enquanto não houver oposição entre Luz e Trevas, em na hora da morte.” (11, 41-44) –
o desapego da matéria, enquanto um mesmo verso ou uma mes- ela nos parece incompreensível,
o homem não se preparar para ma estrofe (“E aprofundando o mas adquire significado quan-
a morte, e aí nos remetemos ao raciocínio obscuro,/Eu vi, então, do confrontada com as estrofes
Fédon de Platão, a sua vida será à luz de áureos reflexos,/O traba- 2 e 91. O Cruzeiro é a constela-
de trevas e a própria nature- lho genésico dos sexos,/Fazendo ção do Cruzeiro do Sul, que está
za irá negar-lhe o equilíbrio. A à noite os homens do futuro.”, contida, na nossa visão da terra,
morte e o desapego da matéria 7, 25-28). Ao todo, conseguimos na constelação do Centauro. A
é que deverão proporcionar um elencar 13 referências à Luz (2, maneira como vemos estas duas
movimento evolutivo que sairá 5-6; 24, 93-96; 11, 41-44; 15, 58; 33, constelações a olho nu, nos pa-
do novo em direção ao velho, do 129-132; 34, 133-136; 46, 181; 64, rece uma cruz, envolta por um
homogêneo em direção ao hete- 254; 70, 277-280; 77, 308; 78, 309; ponto de interrogação virado
rogêneo (96, 383-384). 79, 315; 91, 361-364); 5 referências para a direita. Essa visão pareceu
Nesta estruturação, as referên- a Trevas (4, 13-16; 18, 69-72; 32, ao poeta um candeeiro (atenção,
cias à luz e às trevas são inúme- 125-128; 65, 257-258; 75, 299) e 3 o poeta utiliza candieiro!), cuja
ras dentro do poema, marcando referências em que estas situa- luz é a constelação do Cruzeiro
a condenação das trevas e da ções se opõem (7, 25-28; 30, 117- do Sul. A mesma luz que vem
falsa luz, que impõem o homem 120; 104, 413-416). É possível que “dos mundos astronômicos”, em
a uma situação de degradação, existam outras. forma de vingança, para cindir
em oposição à necessidade de A busca da luz é patente no o eu, em seus “elementos anatô-
buscar a verdade da luz, que se poema, embora o homem mate- micos” (13, 49-52), como a reve-
encontra no etéreo do universo, rial não seja capaz de compreen- lação de que só a consciência le-
no caso as estrelas (91, 361-364), der “as verdades de Luz” (91, 363- vará o homem a separar a alma
e reafirmando a oposição espa- 364) que são as Estrelas. Como já da matéria, de modo a cumprir
cial já referida. Essa oposição se afirmamos, há uma antítese es- as leis da natureza, o que se po-
evidencia de três formas: refe- pacial, que opõe o homem apega- derá ver adiante.
rências à Luz (“Na austera abó- do à terra e à matéria, ao homem O poema é visual, plástico,
bada alta o fósforo alvo/Das es- em busca da espiritualidade e da permitindo-nos a formação das c

8 | João Pessoa, abril de 2019 Correio das Artes – A UNIÃO


c imagens criadas pelo poeta, mas ci, que nem precisaria de olhos a evolução começa a tomar for-
não se restringe à plasticidade para ver. Mas é visão aterradora. ma no grande encontro históri-
sugerida. O próprio eu começa a Se a escuridão ou as trevas são co, há 2 bilhões de anos, entre
reconhecer a degradação por vi- propícias aos vícios, as trevas um organismo unicelular e uma
sões que tem, através da alucina- reais ou as trevas da ignorância bactéria. Dali se criaria a vida, a
ção de que é cometido – “Na alta que obnubilam o espírito, o luar partir de alguns “truques”, sen-
alucinação de minhas cismas,/O as denuncia (estrofes 32-33). Se do os dois mais representativos
microcosmos líquido da gota/Ti- ninguém espia o eu, – e aqui me a fotossíntese e o metabolismo
nha a abundância de uma artéria parece haver um contato com oxidativo. O primeiro truque
rota,/Arrebentada pelos aneu- a alegoria do Anel de Giges, na “usa a energia solar para sinteti-
rismas.” (24, 93-96). Pensemos República de Platão (Livro III, zar compostos orgânicos e, como
no sentido de “alucinação” e de 359b-360d) –, há, no entanto, um subproduto, oxigena o ar”; o se-
“microcosmos líquido”. A aluci- lampião a hipnotizá-lo, que bem gundo truque “usa o oxigênio
nação é perturbação mental, que poderia ser o lampião da alu- para queimar lentamente com-
leva alguém a ter visões ou ou- cinação que o leva à tomada de postos orgânicos e reutilizar a
vir vozes, muitas vezes definida consciência (estrofe 34), com ele energia originalmente vinda do
como delírio, como um estado próprio a se denunciar, através Sol” (A grande história da evolução:
fora da realidade, portanto. O do delírio, a mani/a, de que fala na trilha dos nossos ancestrais;
verbo alucinar, que é depoente Platão no Fedro, e a que se refe- tradução de Laura Teixeira Mot-
em latim – hallucĭnor, hallucināri re o poeta – “mania mística” (82, ta. São Paulo: Companhia das Le-
– não só significa enganar-se, ter 326). Alguém poderia objetar e tras, 2009, p. 617).
alucinações, mas também diva- dizer que o luar amarelo, “da cor Nada disso seria possível, se
gar, sonhar. Ao que nos parece a de um doente de icterícia” (33, não houvesse a química da sopa
alucinação do eu está mais para 130), ilumina e ri de modo impu- primordial, pois como diz Daw-
o sonho e para a divagação, coa- dico os incestos. Mas o luar não kins, “No nível mais profundo,
dunando-se perfeitamente com está aprovando a ação, o que ele a diversidade da vida é química.
o sentido de “cismar”, cujo subs- faz é mostrar a impudicícia do [...] As bactérias são as mestras
tantivo, em derivação regressiva ato. É, antes, uma reprovação. É da química em nosso planeta.
integra a citada estrofe e dá nome diante destas visões do vício que [...] Quimicamente, somos mais
ao poema. Já “líquido” designa a a percepção do eu começa a se semelhantes a certas bactérias do
qualidade do que é transparen- apurar e seus olhos começam a que algumas bactérias são seme-
te, permitindo-nos compreender distinguir as formas mínimas de lhantes a outras. [...] se eliminás-
que as visões provocadas pela todas as coisas, “os embriões de semos todas as formas de vida
alucinação e, mais tarde, pelo mundo que não progrediram!” com exceção das bactérias, ainda
Destino são claras, importantes e (35, 140). Como exprimir tal de- restaria a maior parte da coleção
definitivas para o despertamento gradação? A aflição atinge o eu, dos seres vivos” (id. Ibid., p. 635).
do eu. Se não há despertamento diante de sua incapacidade de No caos que gerou a vida, passa-
pela luz das estrelas, a luz do exprimir tamanha degradação. mos por um processo de catálise,
alto, o sábio fogo do Orco (ignis ‘Aparecendo uma sequência so- que acelerou a reação química e
sapiens, 15, 58), aqui como meto- bre a necessidade da evolução e proporcionou a replicação. Como
nímia de inferno, poderá ser o da morte, esta como um processo diz Dawkins, “O primeiro repli-
actante. Fogo não como punição, que ajuda a evoluir, desde o mo- cador funcionou ineditamente,
mas como luz que proporciona a mento em que a alma se decida a ab initio, sem precedentes e sem
purificação. “Despir a putrescível forma tos- outra ajuda que não as leis da
Toda a primeira parte do poe- ca,/Na atra dissolução que tudo química” (id. Ibid., p. 647). A ci-
ma (da estrofe 1 à 28) prepara inverte,” (38, 149-150). tação de um outro biólogo, Hal-
a consciência para perceber a A evolução é um fato para o dane, por Dawkins, nos dá uma
degradação. A tomada de cons- eu na sua aflição, fenômeno que ideia de como a vida se proces-
ciência inicia na estrofe 29, que se revela a partir da transforma- sou em uma atmosfera redutora:
abre a segunda parte do poema ção química operada pelas bac-
– “Foi no horror dessa noite tão térias, expressa numa estrofe de “Pois bem, quando a luz ultra-
funérea/Que eu descobri, maior magistral beleza – “Nessa época violeta age sobre uma mistura
talvez que Vinci,/Com a força vi- que os sábios não ensinam,/A de água, dióxido de carbono e
sualística do lince,/A falta de uni- pedra dura, os montes argilo- amônia, produz-se uma imensa
dade da matéria!” (30, 117-120) –, sos/Criaram feixes de cordões variedade de substâncias orgâni-
seguindo-se, então, as visões da nervosos/E o neuroplasma dos cas, entre elas açúcares e aparen-
morte, dos crimes, dos vícios, do que raciocinam!” (42, 165-168). temente alguns dos elementos de
homem em atraso com o proces- Esta estrofe nos remete ao “caos que são feitas as proteínas. Esse
so de evolução. A visão é a mais telúrico” de que procede a som- fato foi demonstrado em labo-
acurada possível, aliando a acui- bra, em “Monólogo de uma ratório por Baly de Liverpool e
dade visual do lince, que, como Sombra”, à sopa primordial de seus colegas. No mundo presen-
felino, vê à noite, à acuidade de que procedem todos os seres vi- te, tais substâncias, se deixadas à
percepção do artista, no caso um vos, segundo a teoria da evolu- solta, entram em decomposição
gênio como Leonardo da Vin- ção. Segundo Richard Dawkins, – ou seja, são destruídas por mi- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2019 | 9


c crorganismos. Mas antes de ori- de máquina da vida, é quase inferior que urra nos bosques é
ginar-se a vida elas devem ter-se idêntico em todos os seres vi- o meu irmão mais velho, a dura
acumulado até que os oceanos vos já examinados. É muito im- pedra e os montes argilosos tam-
primitivos atingissem a consis- provável que o mesmo código bém. Por isto, “A simbiose das
tência de uma rala sopa quente” de 64 tripletos tenha, por coin- coisas me equilibra” (Monólogo
(id. Ibid., p. 650). cidência, evoluído indepen- de uma Sombra, 2,1).
dentemente mais de uma vez, e A série seguinte de estrofes
Ao mesmo tempo, é impossí- essa é a principal evidência de em que se fala de vícios, de lu-
vel não conectarmos a estrofe 42 que todos nós somos parentes xúria, de prostituição, criando
de “As Cismas do Destino” com e temos em comum um único “uma progênie idiota de paler-
o soneto “Psicologia de um Ven- ancestral, que provavelmen- mas.” (54, 216) é a representa-
cido”. A aflição que domina o eu te viveu entre 3 e 4 bilhões de ção e a explicação do porquê
é por perceber que há um atraso anos atrás. Se a vida se origi- do atraso, estendendo-se da es-
na evolução e, embora em pro- nou mais de uma vez neste trofe 51 à 62 e apontando para
cesso, o estágio reduz-se a uma planeta, apena uma forma de uma solução que é a preparação
“humanidade parasita” (48, 190), vida sobrevive: o nosso tipo de para a morte, a rejeição da mor-
numa “intercessão fatídica do vida, caracterizado pelo nosso te como fim – “meu raciocínio
atraso!” (49, 196). O apego à ma- código de DNA” (p. 251-252). também te condena!” (58, 232).
téria é a razão do atraso da hu- É mais fácil não ter consciên-
manidade, que, no delírio reve- Como se pode ver, Augusto cia, ser consciente pesa e faz so-
lador do eu ainda se encontra no utiliza a concepção evolucio- frer. Melhor ainda seria ter, “A
estágio dos “amniotas” (49, 194), nista, para a construção de sua inconsciência das máscaras de
quando há 340 milhões de anos, metáfora, de modo que “o sapo” cera/Que a gente prega, com um
os mamíferos se uniram às aves e e “animal inferior que urra nos cordão na cara!” (60, 239-240).
aos répteis, fazendo com que nos bosques” cabem perfeitamente Mas ser inconsciente é roubar-
tornássemos, segundo Richard dentro da construção do verso. -se a enfrentar a realidade – “O
Dawkins, “peixes pulmonados Nestes tempos modernos de ati- sonho ladrão de submergir-me/
transformados” (id. Ibid., p. 247). vismo de todos por tudo, a cria- Na vida universal” (61, 241-242).
Em outra parte, Dawkins afirma ção de hashtags inócuas, do tipo Nenhum ser retorna à “parte
que “um grande avanço na evo- #somostodosalgumacoisaoual- abstrata do Universo,/morada
lução dos vertebrados terrestres guém, é de uma falsidade que equilibrada e firme” (61, 243-
foi o âmnio, uma membrana que não tem tamanho. Deveríamos 244), sem ter a consciência des-
envolve o embrião, impermeável, criar uma hashtag como #so- pertada. A consciência que vem
mas que permite a respiração.” mostodoscaramujos. Esta é uma de um “fundo de caverna” (62,
(id. Ibid., p. 304). verdade que contempla, a um só 246) é a voz do Destino a mos-
Descobrir a verdade incômo- tempo, a Teoria da Evolução e o trar-lhe o sofrimento e dor como
da do atraso evolucional traz a Espiritismo. Em suma, o animal meios de despertamento. Cabe
sensação de o eu sentir-se “como ao homem conhecer a dor para
um sapo/Que tem um peso incô- sair dali para a luz.
modo por cima!” (50, 199-200). Nem sempre, no entanto, a
São impressionantes as metá- luz aparece como metáfora de
foras utilizadas, de modo a ex- despertar, a ciência pode ser
pressar o desconforto diante do Assim como o uma luz inócua, uma “ciência
atraso evolucional e espiritual louca” (64, 255) se se ocupar de
em que vivemos. Assim como sapo, que é réptil explicar ou de conhecer apenas
o sapo, que é réptil e se encaixa a matéria – “hialina lâmpa-
na classificação de amniota, não da oca” (64, 254). No orbe que
pode pular com um peso incô-
e se encaixa na ocupamos, “a dor” é “infre-
modo por cima, o homem não ne” (65, 258), e para conhecer a
pode evoluir estando preso à
classificação de Dor é preciso refletir a Dor. O
degradação da matéria. A asso- eu tem que assumir o papel da
ciação do estágio evolutivo em amniota, não pode “própria humanidade sofredo-
que o homem se encontra, na ra” (66, 264), vez que a Dor é a
perspectiva do eu, com os rép- pular com um peso essência da vida, repetindo-se,
teis, remete-nos a “E o animal indo e vindo no tempo, Dor que
inferior que urra nos bosques/É incômodo por cima, não finda, como o ar imortal
com certeza meu irmão mais (68, 269). É saber reconhecer a
velho!”, de “Monólogo de uma o homem não pode Dor como elemento transforma-
Sombra” (5, 29-30). Em Ciência dor que poderá dirigir o eu para
na alma (Companhia das Letras, evoluir estando preso a luz. A metáfora do “cordeiro
2018), Dawkins nos esclarece so- simbólico da Páscoa” (70, 280),
bre esse parentesco: à degradação da remete para o Êxodos, no episó-
dio do anjo vingador, que trará
“O código do DNA, o código matéria. dor aos egípcios, com a morte c

10 | João Pessoa, abril de 2019 Correio das Artes – A UNIÃO


c dos primogênitos, para que, a natureza e a si próprio. Aten- (100, 397-398) – e o eu vê-se
assim, o faraó veja o poder de te-se para os versos seguintes como o ser que reflete “a pró-
Deus e libere os hebreus do ca- – “Teu pé mata a uberdade dos pria humanidade sofredora”
tiveiro. Do mesmo modo, a me- caminhos/E esteriliza os ventres da estrofe 66 – “Secara a clo-
táfora remete ao Evangelho, no geradores!” (87, 347-348). As es- rofila das lavouras./Igual aos
episódio do sacrifício de Jesus, tofes 86 à 91 nos mostram como sustenidos de uma endecha,/
o Cordeiro de Deus, que tira os o homem, criador da civilização, Vinha-me às cordas glóticas a
pecados do mundo, durante a o homem civilizado e colérico queixa/Das coletividades so-
Páscoa judaica, tantas vezes re- da estrofe 71, quer apresentar-se fredoras.” (101, 401-404).
petido, incessantemente repeti- como ser que cria a perfeição da O mundo que se resigna in-
do, mas cuja dor provocadora civilização, mas, quando visto vertido (102, 405), é a mesma
de luz é compreendida apenas em detalhe, mostra a sua podri- “alavanca desfiada do seu ful-
por alguns poucos. Em suma, é dão – “Ah! Por mais que, com o cro” (“Idealismo”, 11). O ho-
preciso viver a Dor, para saber espírito, trabalhes/A perfeição mem perdeu-se em produzir
o que ela é. dos seres existentes,/Hás de Dor para ele e para os outros,
Segue-se na fala do Destino, mostrar a cárie dos teus dentes/ não Amor. Assim, produz-se
uma série de estrofes (da 71 à 83), Na anatomia horrenda dos deta- fome, injustiça, prostituição,
explicitando esse mundo de dor lhes!” (89, 353-356). crimes... As leis que o homem
imposta do semelhante ao se- A podridão reside em não cria não são suficientes para
melhante, do homem civilizado compreender a luz das estrelas manter um Estado sadio, estado
que se prende à cólera (71), preso como verdades (estrofe 91). Por de que fala Platão na República.
ao “orbe feraz” em que vivemos sua vez, a corrupção pesa como A falência do Estado é o resul-
(72) – trecho que dialoga com a mão que desloca a massa cor- tado da degradação criada pelo
“Versos Íntimos” –, produzindo respondente, quando imersa na próprio homem. Não é Deus o
guerras, e onde falta Amor/Espi- água, segundo a lei do empuxo culpado. Agora, o eu entende o
ritualidade (a única vez em que de Arquimedes. A matéria cor- porquê de Deus não compreen-
o termo Amor aparece explici- rupta não pode chegar ao éter der o seu soluço (12, 46). E sabe
tamente no poema, é sinônimo – “Em vão, com a mão corrupta, mais, sabe que Deus, com cer-
de luxúria, associado à Fome, e outro éter pedes,” (92, 365) –, há teza não o castigava (14, 53). A
em consonância com o soneto que se purificar, o que significa culpa, a responsabilidade cabe
“A Fome e o Amor”, de Outras desapegar-se da matéria tosca e, ao próprio homem, apegado à
poesias), surge a Fome como fera sobretudo, desapegar-se do cul- materialidade. E este apego não
vingadora – “O Amor e a Fome, to da matéria tosca. O homem lhe permite o equilíbrio nega-
a fera ultriz que o fojo/Entra, à é fustigado por uma “fadiga fe- do pela Natureza. O progresso
espera que a mansa vítima o en- roz” (93, 369), que não o levará matando a espiritualidade é “A
tre,” (74, 293-294). E a principal senão a mais fadiga e degrada- canção prostituta do ludíbrio!”,
guerra se trava entre o orgulho ção. Na condenação do homem já o homem material é “árvores
do homem e as forças orgânicas material, apresenta-se a morte sem fruto” (105, 419-420).
da terra, conforme traduzido que o livrará dessa fadiga e lhe Na condenação do homem
na estrofe 84, aparecendo como proporcionará caminhar para a material, que, com suas leis
um aposto recapitulativo da Dor renovação (96 e 97). ruins, permite a inversão dos
humana – “Tudo isto que o ter- Na quarta e última parte do princípios fundamentais do
ráqueo abismo encerra/Forma a poema, depois que a voz do Des- trabalho do mundo, o poeta
complicação desse barulho/Tra- tino se cala, o eu se reconhece revela o Estado como um sis-
vado entre o dragão do humano como o motor da Dor e do sofri- tema que vai na contramão da
orgulho/e as forças inorgânicas mento, e sofre ainda mais, maldi- espiritualidade, daí a sua mor-
da terra!” (84, 333-336). zendo as leis humanas criadoras te, mesmo estando erigido e
Nesse processo de degrada- da civilização colérica – trata- teimando por ficar em pé, ape-
ção, a metáfora que me parece -se, pois, de um poema que gado ao material. A falência do
mais bem elaborada, porque ca- amaldiçoa a civilização como Estado como materialização de
paz de confundir, é a referente causadora do sofrimento, sofri- um sistema histórico e forma-
ao poeta, visto como “feto mal- mento maior do que o produzi- do, portanto, pelo homem, abre
são” (86, 341). Não me parece do pelas leis da natureza, pois espaço para um novo mundo
que o Destino esteja falando do reside na degradação da pró- espiritual, que poderá surgir,
poeta, aquele ser capaz de per- pria espécie e também da Natu- desde que o homem comece a
ceber a poesia e com ela criar reza – “Maldizia, com apóstro- construir o seu desapego à ma-
poemas. Poeta aqui, nos parece fes veementes,/No estertor de téria, desde que se lhe desper-
ter um sentido mais etimoló- mil línguas insurretas,/O con- te a consciência, nem que seja
gico, proveniente do grego, de vencionalismo das Pandetas/E através do delírio. I
poihth/j, “aquele que cria”, tal- os textos maus dos códigos re-
vez com o sentido do homem centes!” (99, 393-396).
que cria uma civilização, opõe- O delírio se agudiza ainda
Milton Marques Júnior é professor
-se ao estado natural, cultiva a mais – “Minha imaginação da Universidade Federal da Paraíba
matéria e está fadado a destruir atormentada/Paria absurdos...” (UFPB). Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2019 | 11


6 convivência crítica
Hildeberto Barbosa Filho
hildebertobarbosa@bol.com.br

Augusto
e mais dois historiados
A
lguns historiadores da literatura, para além dos equí- saios monográficos que recolocam
vocos e estereótipos que repetem em relação à poesia Augusto em zona literária melhor
de Augusto dos Anjos, são extremamente lacunosos, definida, auxiliaria, sem dúvida,
se considerarmos o crescimento, sempre renovável, o historiador a não recorrer a esse
de sua fortuna crítica. Visito, aqui, dois deles, impres- chavão da crítica. Um Ferreira
sionado com as impropriedades de seus argumentos Gullar, um Mário Chamie, um Zé
esvaziados de qualquer força exegética e eivados de Maria Pinto e um Henrique Duar-
preconceitos analíticos. São eles: José Aderaldo Cas- te Neto, por exemplo, direta ou in-
tello e Flávio R. Kothe. diretamente elucidam a contento
Em A literatura brasileira: origens e unidade (1999), o his- esta questão, em seus respectivos
toriador paulista insere Augusto dos Anjos no segundo estudos acerca da poesia de Au-
volume da obra, capítulo XV, sob a rubrica de “Antece- gusto dos Anjos.
dentes imediatos do modernismo – persistências e reno- Se se pode considerar o poema
vações literárias”. Acertando quando afirma que o poeta de abertura do Eu, “Monólogo de
paraibano nem é simbolista nem parnasiano, tende, no uma sombra”, uma espécie de pro-
entanto, a reduzir a amplitude e a ambiguidade de seu fissão de fé, tal assertiva mereceria
lirismo, ao defender a ideia de que o autor de “A árvore exame mais minudente, sobretu-
da serra” é o autêntico “herdeiro do no que diz respeito ao caráter
Foto: reprodução internet personalíssimo da poesia cientí- singular da “dor estética”, obvia-
fico-filosófica que, com a ‘realis- mente diversa da dor humana, e
ta’, precedeu o Parnasianismo”. cuja expressão melhor se forma-
A leitura atenta do texto poético, liza nos âmbitos da obra de arte.
associada ao exame de alguns en- Escapa, aqui, ao historiador, um
ingrediente essencial
Foto: Salomão Sousa do poema, trazido à
Flávio R. Kothe,
baila pelo agudo en-
autor de O cânone saio de Abrahão Cos-
republicano I ta Andrade, “Origem
da moderna poesia
brasileira”, publicado
no livro, em coautoria
com Hildeberto Bar-
bosa Filho, Augusto
José Aderaldo dos Anjos: origem e mo-
Castello, autor dernidade (2012). Refi-
de A Literatura ro-me ao fato de que
Brasileira: origens e predominam no poe-
unidade (1500-1960)
ma a voz e a visão da c

12 | João Pessoa, abril de 2019 Correio das Artes – A UNIÃO


6 convivência crítica
ilustração: tonio
c sombra às quais necessariamente Anjos, en passant, no capítulo geral
não adere o olhar do eu-lírico ma- sobre o simbolismo, precisamente
nifesto nas duas últimas estrofes. em “Dos nomes impróprios”, de O
O reconhecimento, por si só, do cânone republicano I (2003), refere o
vocabulário científico e filosófico, fato de que o modernismo hispa-
peculiar às duas últimas décadas no-americano não corresponde ao
do século XIX, não acrescenta nosso modernismo, mas ao mo-
grande coisa à leitura da poesia de vimento parnasiano-simbolista,
Augusto, se não se problematiza- embora, citando o poema “El de-
rem o teor oblíquo de sua energia samparo”, do uruguaio Julio Her-
semântica e a organização envie- rera y Reissig (1875-1910), veja tons
sada de sua sintaxe e métrica he- diferentes nele. No caso do Brasil,
terodoxas, tão bem analisadas por segundo o ensaísta-historiador,
M. Cavalcante Proença, no ensaio “Para encontrar esse tom (...) seria
modelar, “O artesanato em Au- preciso buscar em Augusto dos
gusto dos Anjos”. De outra parte, Anjos que, oriundo do senhorio
caberia explicar o sentido falível escravagista nordestino, parece
e irresolvido da constatação do não caber no esquema parnaso-
“Pessimismo extremo em lingua- -simbolista e parece difícil de clas-
gem que, de qualquer maneira, se sificar, embora seja marcado feito
realiza poeticamente”. O que quer boi por uma terminologia preten-
dizer o autor com “de qualquer samente científica”. De acordo
maneira”? Haveria uma maneira com Flávio, tal terminologia, não
específica e oficial de se realizar possuindo “objeto a designar”, e
poeticamente? Retomando o sub- “não tendo caráter de necessida-
título do capítulo, poderíamos de, é apenas um exibicionismo
indagar se a poesia de Augusto doentio de quem não conseguiu
estaria nas “persistências” ou nas aceitar a decadência de sua clas-
“renovações”, o que absolutamen- se”. E aqui termina o encontro do
te não fica claro. historiador com o poeta!
Em seguida, José Aderaldo Vê-se, de logo, o preconceito
Castello surpreende “momentos mento, sofrimento individual e ideológico e doutrinário que pre-
em que o poeta se liberta des- “congênito” que alcança o “arre- side a leitura de Flávio R. Kothe,
sas cogitações e de seus modelos batamento místico, não separável entrando em contradição com ele
predominantes – Baudelaire e do “sentimento de Deus”. Ora, o próprio, pois afirma, em passagem
Schopenhauer -, para exprimir-se sofrimento na poesia de Augusto anterior, que o cânone não tem a
mesmo com ternura e afeto com dos Anjos não é só individual e arte como prioridade e que a ele
relação a seus íntimos ou para re- congênito, não concerne apenas à interessa mais as relações de pro-
velar sentimento religioso com fé condição humana, mas contempla dução literária do que o “talento
na justiça e na proteção divinas”. a própria natureza e a dimensão potencial”. Ora, ao ler, ou melhor,
Ora, o que isto tem a ver com a cósmica. Por outro lado, não exis- ao não ler Augusto e sua poesia
natureza mesma do poético? Li- te nenhum interesse cognitivo, em desafiadora, esquece justamente o
bertar-se dos modelos, expressar- termos literários, em se saber se o “talento potencial” para enfatizar
-se com ternura e afeto em rela- poeta conquista a solidariedade elementos das condições de pro-
ção aos seus e demonstrar algum do historiador nem muito menos dução literária, a exemplo da clas-
sentimento religioso, fé na justiça em se saber se o historiador com se social e da personalidade su-
ainda não condizem com a lógica ele se identifica ou se com ele con- postamente doentia do poeta. No
mágica do exercício poético. Poe- corda. Tais manifestações de gos- entanto, diga-se de passagem, e
sia não é confissão de sentimentos to pessoais, circunscritos aos ape- para conclusão deste comentário,
nem doutrinação ideológica. Poe- los morais e ideológicos, passam ao caolhismo crítico-ideológico de
sia, ou melhor, o poema é sobre- ao largo do juízo estético e pouco Flávio R. Kothe, toda a literatura
maneira um artefato linguístico, contribuem para uma historiogra- brasileira é uma grande fraude,
um objeto verbal dotado de luz e fia literária mais condizente com a produto do colonialismo cultural,
rigor, com sua gramática própria, natureza de seu objeto de estudo. de que nem mesmo escapam es-
à parte ideias e emoções que por Quanto a Flávio R. Kothe, o critores como Machado de Assis,
ventura abrigar em seu universo problema me parece mais sério. Euclides da Cunha, Graciliano
lexical e estilístico. Contextualizando Augusto dos Ramos e Clarice Lispector.
E para fechar seu breve comen-
tário, o historiador ainda acentua
Hildeberto Barbosa Filho é poeta, crítico de literatura e professor da
a “esfera individual” do sofri- Universidade Federal da Paraíba. Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2019 | 13


fotos: reprodução internet Ao fundo, cena de Anna
Karenina: A História de
Vronsky, do diretor Karen
Shakhnazarov. No detalhe, Liev
Tolstói (1828-1910), autor do
romance que inspirou o filme

6 cinema

O ponto de vista do
amante
Francisco Gil Messias
gmessias@reitoria.ufpb.br

A
s possibilidades da arte são ilimitadas. te último, o que faz toda a diferença. Para
As variações em torno de um mesmo se ter uma ideia, é como se o Dom Cas-
tema são infinitas. Escrevo isto ao ler a murro de Machado de Assis fosse narrado
notícia do lançamento, aqui no Brasil, de não por Bentinho mas por Escobar. Seria
um filme que reconta a história de Anna outra coisa, inevitavelmente.
Karenina, personagem célebre do livro De forma resumida, como deve lem-
homônimo de Tolstói. Até aí nada de brar o leitor, o enredo de Anna Karenina
mais, uma vez que já foram filmadas inú- no fundo é a história de um adultério,
meras versões do livro, considerado clás- tal como Madame Bovary, de Flaubert. As
sico da literatura universal. A novidade duas histórias, inclusive, são, em suas
agora é que a trama amorosa que envolve linhas gerais e na medida do possível,
a protagonista, seu marido e seu amante, semelhantes: uma entediada esposa que
Vronsky, é contada do ponto de vista des- provavelmente casou sem amor, o apare- c

14 | João Pessoa, abril de 2019 Correio das Artes – A UNIÃO


c cimento de um atraente e volúvel que Tolstói deteve-se um pou- relacionamento se esgotam.
pretendente para ela, o romance co mais no personagem, o que Observe-se que no livro
adúltero consumado, a paixão certamente explica a aborda- de Tolstói fica evidente que o
crescente da mulher, o entusias- gem feita pelo novo filme. Este amante de Anna está inicial e
mo decrescente do homem sacia- explora uma questão também verdadeiramente apaixonado
do, o fim do caso e o consequente antiga, mas que, parece, pos- por ela, mulher ainda jovem,
suicídio da fêmea desiludida e sui menos apelo. Refiro-me à bonita e mal servida afetiva-
abandonada. Tal e qual. constatação de que, não raro mente pelo marido, homem
Pelo próprio título dos dois (ou quase sempre), o amor aca- decente mas desprovido dos
livros citados dá para se perce- ba, como já dizia Paulo Mendes arroubos capazes de satisfazer
ber que os respectivos autores, Campos em crônica famosa. E a esposa. Vronsky finalmente
Tolstói e Flaubert, concederam se o amor tem fim, muito mais a conquista e com ela vive mo-
o protagonismo às mulheres, finita é a paixão, que, sendo mentos intensos, os quais, para
Anna e Emma, nelas concentran- chama, como já escreveu Vini- ela, como para as mulheres
do o drama e a psicologia do cius, tem tão somente a dura- em geral, são, antes de tudo,
adultério, deixando os amantes ção do entusiasmo decorrente vésperas de mais intensidade.
masculinos na condição de coad- das novidades e descobertas. E Mas, como o tempo demonstra,
juvantes, sem maiores aprofun- não se esqueça o leitor: como se não para ele. Saciado, o aman-
damentos, como se eles fossem sabe, muitas vezes manifesta- te começa a entediar-se com
simples aventureiros, canalhas, -se primeiro na mulher o fim do as exigências e os sacrifícios
destruidores de lares, meros co- amor e da paixão. Para ficarmos que aquela relação lhe impõe.
lecionadores de conquistas que só no âmbito da literatura, foi o Emma exige compromisso e
pouco ou nada significavam para que provavelmente aconteceu, exclusividade, coisas que seu
eles, salvo no aspecto sexual, vis- de forma velada, com a já citada parceiro já não quer oferecer.
to em sua crueza. O mesmo se Capitu machadiana. Seus olhos (do amante) já es-
dá, diga-se, em O primo Basílio, Aqui vale fazer referência tão voltados para outras belda-
de Eça de Queirós. Também uma a um fenômeno que, até onde des, as quais praticamente se
narrativa de um adultério femi- sei, acontece predominante- oferecem facilmente ao macho
nino, o livro dá relevância à per- mente com os homens: o fastio sedutor. Ele já está nitidamente
sonagem Luísa e não ao aparen- que, muita vez, imediatamente cansado da possessividade de
tado conquistador profissional sucede à conquista. Casos não Anna e de suas cenas dramáti-
que, a despeito disso, empresta raros em que o enamorado per- cas. Quer emoções novas, expe-
seu nome ao título do livro. Mas segue loucamente o alvo de sua riências inusitadas, liberdade,
é ainda, e sempre, como se vê, a paixão e perde completamente enfim. Vê-se então que, para
psicologia, as fraquezas e o pon- o interesse uma vez alcançado Vronsky, o amor e a paixão sim-
to de vista da mulher. o triunfo. É como se todo o seu plesmente acabaram.
O crítico Cássio Starling Car- ardor se concentrasse apenas O que o filme (que ainda não
los, da Folha de S. Paulo, indaga no processo de conquistar a vi) certamente pretende mostrar
que tipo de comoção ainda se musa, e se dissipasse, como fu- é que Vronsky não é necessaria-
pode esperar do adultério nes- maça, após o êxito da sedução. mente mau. Ele tem suas razões
sa nossa época em que moralis- A psicologia deve explicar tal e carências. Gosta de Anna, as-
mo é palavra morta. Atrevo-me comportamento, o qual, ressal- sim como da maioria de suas ex-
a opinar que para o público te-se, nada tem de deliberado e -amantes; apenas aconteceu de
atual o que pode eventual- premeditado; pelo contrário, é não mais desejá-la, não mais amá-
mente interessar não é mais decepcionante e incompreen- -la. Nada extraordinária essa sua
a questão moral do adultério, sível não só para a mulher indiferença. É algo até corriqueiro
claro, mas a análise de suas inesperadamente dispensada, entre os casais. Todo mundo sabe.
origens, seu desenvolvimento como para o próprio homem, Nós sabemos. Daí ser possível,
e seu fim (geralmente trágico); aparentemente insensível e do ponto de vista humano, com-
o psiquismo dos personagens cruel, que a descarta. Este não preendê-lo, sem necessariamente
envolvidos, suas necessidades é o caso de Vronsky. Ele não se considerá-lo um canalha.
e imperfeições, ou seja, todo o enfastia de Anna tão logo con-
drama humano intrínseco às segue seus favores. O tédio só Em tempo: o título do fil-
traições afetivas, em que não se manifesta depois de algum me é Anna Karenina: A História
raro se misturam e se confun- tempo, quando, para ele, as de Vronsky, e o diretor é Karen
dem os papéis de vítima e de possibilidades e emoções do Shakhnazarov. E
algoz. É isto que faz com que
a história já conhecida e consa-
grada torne-se uma novidade
interessante quando contada Francisco Gil Messias, paraibano de João Pessoa, onde reside, é bacharel em
a partir de ângulo diverso do Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e
mestre em Direito do Estado, pela Universidade Federal de Santa Catarina
tradicional. (UFSC). É membro da Academia Paraibana de Filosofia e do Instituto de Estudos
No caso de Vronsky, o aman- Kelsenianos. Publicou os livros Olhares – poemas bissextos e A medida do possível
te da Karenina, pode-se dizer (e outros poemas da Aldeia). Contato: gmessias@reitoria.ufpb.br.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2019 | 15


Fotos: Evandro Pereira

6 poesia

Da esquerda para a direita,


Expedito Ferraz Jr., Sérgio de
Castro Pinto, William Costa e
Amador Ribeiro Neto

Poetas, professores e estudantes Além de Expedito Ferraz Jr.

participam de Sarau na UFPB em


(“O enforcado” e o “O labirinto”)
e Amador Ribeiro Neto (“adeus”
e “deu dará”), participaram da
homenagem aos 70 anos do rodada de leituras de textos os
poetas Sérgio de Castro Pinto

Correio das Artes (“esta lua”, “sobre o medo”, “o


gato e o poeta” e “1979: o ano I
da criança brasileira”), Vitória
Lima (“Cigano desejo” e “Vege-
tal/Quase animal”) e Quelyno
Souza (“Sem você tudo é men-
Da Redação tira” e “Coração com esparadra-
editor.correiodasartes@gmail.com po”). Outro ponto alto do evento
foi a participação de estudantes
e de autores e autoras conside-

A
s comemorações dos 70 anos de criação do Correio das Artes rados da novíssima geração da
tiveram continuidade, na manhã do dia 29 de março, com o poesia paraibana, a exemplo de
Sarau Poesia da Paraíba, realizado na Praça da Alegria, no Jon Moreira, autor deste
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade poema sem título:
Federal da Paraíba (CCHLA/UFPB), Campus I, João Pessoa. O
encontro, organizado pelos professores e poetas Amador Ri- louvado seja deus
beiro Neto e Expedito Ferraz Jr., ambos da UFPB e colunistas que nunca pegou uma fila
do suplemento de literatura e artes do Jornal A União, reuniu nunca maldisse
autores de várias gerações, numa demonstração de força es- uma reunião de condomínio
tética e diversidade da poesia paraibana. de departamento, de pais, do sindicato...
Na ocasião, o jornalista e escritor William Costa, editor do louvado seja por nunca ter recebido
Correio das Artes, fez um resumo dos 70 anos do suplemen- visita de parente distante
to, destacando sua importância na divulgação da literatura e nunca ter andado
das artes não só paraibanas, mas brasileiras, de modo geral. de chinelos em dia de chuva
Explicou, também, o processo de edição e, após sua explana- por nem saber o que é um ônibus
ção, convidou os estudantes que estão se iniciando em artes às seis da tarde
visuais ou literatura, por exemplo, a enviarem colaborações nem acordar às seis
para o Correio das Artes, como forma não só de divulgarem
seus trabalhos, mas também no sentido de participarem da bendito deus
sempre necessária renovação editorial do suplemento. que nunca desgraçou
Expedito Ferraz Jr. e Amador Ribeiro Neto também fize- o dedo mindinho na quina dos móveis
ram referências ao papel que, historicamente, vem sendo de- que não tem um vizinho sequer
sempenhado pelo Correio das Artes, não só na promoção da que escuta amado batista
literatura, por exemplo, como também na avaliação crítica louvado seja deus
de uma produção cultural brasileira. Ambos se reportaram que nunca pagou um boleto
ainda ao significado de serem colunistas do suplemento, que do contrário
adicionou pontos positivos a trajetória de ambos na poesia e o inferno seria uma eterna fila de banco
no magistério. Amador e Expedito exercitam, prioritariamen-
te, a crítica literária, em suas colunas no Correio das Artes.

16 | João Pessoa, abril de 2019 Correio das Artes – A UNIÃO


P O E M A S
De Márcio Leitão, autor do poema:

Expedito I(mar)gem 1
Ferraz Jr. lê
poemas de seu
livro O visgo
Sou rio caudaloso
das coisas... Multidão vermelha
Espreguiçando-se na navalha
Explorando o desejo encardido e medieval
Languidamente tenho as direções possíveis
E o controle da carne em minha fronteira
... Vitória Lima Percebo nitidamente o fluxo da vontade
recita versos Desde a eletricidade gerada até a cerca que a protege
de seu livro
Fúcsia... Desde o disparate e a loucura desenfreada até o arreio turvo
Que, em muitos casos, só é plateia
E, em outros, é muro.
Sou vertical
Encorajo o sul motor feito de tempo e coleira
... e Sérgio de E persigo o norte em suas conexões de luz e de precipício.
Castro Pinto
declama textos
Sou dente e flanco ao mesmo tempo
de seu livro anoiteço a cada mordida
Folha corrida e a cada capa que me cobre de línguas.

De Renálide Carvalho,
autora deste poema De Weslley Barbosa Rosendo,
sem título: que assina o poema sem título:
meu orixá hightech
O amor é a única rosa que nasce e brota sem o auxílio das estações.
cansou de cinema
A natureza enviara a primavera como noiva ao filho da poesia.
e de festival
Com a descida do eu lírico matinal,
quer voltar agora a ser tribal
encobertou-se a terra de ervas e flores as alturas e o véu dourado dos
morar no mato
segredos dos anjos se fez conhecido às leis desumanas.
perto do rio
Meu orixá hightech
cansou de stella artois
quer beber coisa artesanal De Ana Amélia, autora E de Israela Rana
ficar rindo de papo pra cima do poema sem título: Araújo Lacerda,
meu orixá só gosta de coisa fina.
autora do poema:
Devora-me com teus lábios
De Francisco Calado, Dança tua língua em meu ventre Noite
autor do poema: Prova. Suspirei pra noite
William Costa
apresenta o
Toca-me com teus dedos Olhei
o velório dos vivos Marca com tuas mãos
Correio das
Agraciei Artes para
o celular Sente. e disse: estudantes da
túmulo de atento Adentra-me com teu corpo N(oi)te,
UFPB

de fúnebre tem Invada meus cômodos Gratidão.


o sepultar do amado E faz cantar
olvido
nalinhadiretadoutrolado. ao teu ouvido
baixo
a lápide como quem te nina
e seu fone sem fio ofegante
conecta morto-vivo como quem te socorre
na inter rompida te olhando
chamada muda como quem te ama
(por) oito dígitos.
ambos: cara no muro
[vidro e cimento]
de quem segura a barra
da ligação perdida
à mão ou sentimento…

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2019 | 17


6 livros

Fidélia
solta o pássaro azul Capa do
em novo livro de poemas novo livro da
poeta Fidélia
Cassandra
(Arribaçã, 2019)

Linaldo Guedes sabe que esse tributo não é à toa. Fidélia é uma das
linaldo.guedes@gmail.com mais belas vozes da música paraibana, com shows
antológicos realizados em Campina Grande, sua terra
natal. Nada mais natural, portanto, que resolvesse fa-
zer uma homenagem ao universo musical e a artistas

A
relação entre poesia e música é antiga e remon- que tanto influenciaram sua carreira como cantora.
ta aos gregos. Qualquer aprendiz de Mas Fidélia também é poeta. E das melhores vozes
poeta sabe bem disso, sabe bem que a lírica paraibana produziu nos últimos anos.
que o ritmo, a rima e as figuras de lin- Vários poemas desse livro mostram sua habili-
guagem ou estilo moldam o poema dade e talento na tessitura do verso. Além do
de forma musical, por mais que que homenageia Sarah Vaughan (que lem-
o autor – a exemplo de um João bra o poema “As Cigarras”, de Sérgio de
Cabral de Melo Neto – renegue Castro Pinto), há poemas outros, como
a música. Mas o que Fidélia “Águas”, “Reclame”, “Abandono I”,
Cassandra faz em Antes de “Lobo”, “Dicksoniana II”, “Lei-
ser blues (Arribaçã, 2019) te derramado”, “Quintaniana”,
não são apenas poemas “Bilhete”, “Doído”, “Escon-
com ritmo. Fidélia vai derijo” e “Mrs Dalloway”
além e presta uma ho- (numa bela homenagem a
menagem a um dos Virginia Woolf). Todos es-
ritmos mais mar- ses poemas citados, além
cantes da música de outros que estão no li-
mundial: o blues. vro, são responsáveis por ver-
A começar da epí- sos dos mais líricos da poesia
grafe com trechos de na Paraíba.
célebre canção de Billie Em Antes de ser blues, Fi-
Holliday e do poema de délia Cassandra se apre-
Bukowski, Fidélia não senta aos seus leitores
foge aos tributos que em seu melhor momen-
esse ritmo merece. to na poesia. Depois de
Daí, surgem poemas alguns livros publica-
dedicados a Bessie dos, Fidélia chega com
Smith, Nina Simo- uma poesia madura,
ne, Elza Soares, lírica, bem construí-
Louis Armstrong, da, valorizando, so-
Robert Johnson, bretudo, a imagem e
Ella Fitzgerald, o ritmo, que é o que
Chet Baker, Sa- move todo bom poe-
rah Vaughan e, ma. No poema de
claro, a Billie Ho- Bukowski citado por
liday. Em seus tributos, Fidélia na epígrafe, o
Fidélia não se prende ao autor diz que “há um
mundo do blues. Djavan, pássaro azul em meu
Maria Callas e Belchior peito que quer sair”.
são outros artistas da mú- Fidélia solta o pássaro
sica homenageados nas pági- azul preso em seu peito e se
nas de Antes de ser blues. impõe como uma das melho-
Quem conhece a autora, res vozes poéticas da Paraíba. c

18 | João Pessoa, abril de 2019 Correio das Artes – A UNIÃO


c P O E M A S
Leite derramado
A melancolia dos domingos
é de cortar o coração
e seu sol
queima soleiras saudosas de inverno.

A melancolia dos domingos


é de encher de silêncios
quarteirões,
de enfiar o dedo goela adentro.

A melancolia dos domingos


é fel
uma fisgada no fígado,
Sassy um soco na libido.
Sarah
voa A melancolia dos domingos
voa é o cavalo do carrossel
e ao redor do suicídio.
vira
Jazz. A melancolia dos domingos
é a vida que tarda.
O leite derramado
Águas no ouvido de quem se queria amar.
Entre as coxas
folias de girassóis
sépalas e pétalas
úmidasúmidasúmidas
ora abertas
ora unidas
por ânsias
por açúcares
por sais
nas folhas do teu dorso
orvalho morno
orvalho morno.
ilustração: tônio

Déjà vu
O frio
traz-me saudades
de coisas que ainda
não vivi.

Lobo
Ao sentir
o sequestro iminente
o carneiro
enovela-se
em sua cerca.
Sequer ousa
balir.

Esconderijo
Menina bonita
é hora de vestir Linaldo Guedes é jornalista e poeta. Nasceu em Cajazeiras e mora em João
a couraça. Pessoa (PB). Como jornalista, atuou nos principais órgãos de comunicação da
Paraíba e foi editor do Correio das Artes. Lançou, entre outros livros, Os zumbis
A matilha também escutam blues e outros poemas, Tara e outros otimismos (poesia) e O
se aproxima. nirvana do Eu (ensaio). E-mail: linaldo.guedes@gmail.com.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2019 | 19


6 livros

O eterno
ro (Fernando Gabeira), O amor de
Pedro e João (Tabajara Ruas), É tar-
de para saber (Josué Guimarães),
Os que bebem como os cães (Assis
Brasil), Cabo de guerra (Ivone Be-
inverno de nosso nedetti), O fantasma de Luís Buñuel
(Maria José Silveira), Não falei

desassossego
(Beatriz Bracher), Não és tu, Brasil
(Marcelo Rubens Paiva), A noite
da espera (Milton Hatoum), O in-
dizível sentido do amor (Rosângela
Vieira Rocha), dentre outros.
The past is not dead. A representação da ditadura
It is not even past. na literatura acaba de ganhar
mais uma obra que vem ao en-
(William Faulkner) contro de uma necessidade cada
vez mais urgente, a de retomar a
verdade do passado (que a histó-
Ronaldo Cagiano ria oficial sempre quis manipu-
Especial para o Correio das Artes
lar, esconder ou negar) para que
ele seja lembrado não em clave

N
a literatura brasileira não são poucas as obras, seja de revanchismo, mas como im-
no cunho jornalístico ou ficcional, que abordam o periosa ordem moral e ética que
período da ditadura, percursos narrativos que aju- nos imponha a obrigação íntima
dam a lançar um olhar crítico sobre os anos que cul- de revidar toda tentativa de não
minaram na morte da democracia, na negação das repeti-lo, não nos esquecendo do
liberdades individuais e coletivas, no engessamento horror que representou.
das instituições e extinção de garantias constitucio- Outono, de Lucília Garcez (Ou-
nais, além do atraso político, moral e social que pe- tubro, 2017), um dos mais recen-
sam sobre gerações. tes e indispensáveis livros para a
Apenas para não eludir a memória, que nesses tem- compreensão desse período, per-
pos de ressurreição do obscurantismo e de assanha- corre com maestria e faro jorna-
mento saudosista dos insones arquitetos dos golpes, lístico, mas sem cair na tentação
vale lembrar livros que mapearam e continuam a lan- do didatismo ou da panfletagem,
essa triste e inesquecível quadra
çar luzes sobre a noite e as catástrofes que se segui-
de nossa aviltada República. A
ram ao golpe militar de 1964: Zero (Ignácio de Loyola
história é contada sob o prisma
Brandão), Reflexos do baile e Quarup (Antonio Callado),
de uma vítima do regime mili-
Os carbonários (Alfredo Sirkis), O que é isso, companhei-
tar, Ângela, que perdeu o mari-
do para o aparato de repressão e
fotos: reprodução internet
explora o temor vivido por uma
personagem que passou sua exis-
tência na esperança de encontrar
um corpo e consumar um luto.
A figura emblemática de Dani-
Lucília Garcez,
lo, o companheiro desaparecido,
autora de
Outono, leitura como de tantos outros militantes
indispensável contra a opressão, criou a terrí-
para entender o vel sensação de impotência das
Brasil atual famílias que buscavam seus pa-
rentes tragados pelo buraco ne-
gro do terrorismo de estado.
Ângela é símbolo dessa luta
e remete-nos a 1977, à memória
dos discursos inflamados dos
deputados Marcos Tito (MG),
Chico Pinto (BA), Lisâneas Ma-
ciel (RJ) e Alencar Furtado (PR),
da ala autêntica do MDB, que c

20 | João Pessoa, abril de 2019 Correio das Artes – A UNIÃO


c denunciaram no parlamento e mais longa noite, à sua mais do- recida pela barbárie e contingên-
num programa eleitoral de tevê lorosa agonia. cias vividas, impossibilitada de
as atrocidades do regime, epi- A densa e tensa narrativa de resgatar o marido tragado pela
sódio que culminou em uma Outono, na esteira da memória violência ditatorial, passa a viver
reação da ala radical do Exérci- como um verdadeiro encontro outra vida, segue as exigências
to, vingando-os com suas ime- de contas com a história, para do tempo, se apaixona pelo li-
diatas cassações. O pavor foi ex- que possamos evitar que o pas- vreiro Francisco, e vai des(a)fian-
posto em rede nacional, quando sado volte com seus guantes de do seu novelo de inquietações,
o parlamentar paranaense, em aço, o que nos remete a Wal- traumas, bloqueios, novos confli-
contundente e antológica acusa- ter Benjamim, para quem “um tos e dilemas que a impedem de
ção, tocou nas feridas do regime, acontecimento vivido é finito. sentir, viver e amar novamente,
abriu suas vísceras e acusou o Um acontecimento lembrado é expondo a sua a humanidade e a
sistema por esconder essa cha- ilimitado”. Nessa perspectiva os tragicidade poética de uma vida
ga dos desaparecidos: “Para que personagens fictícios, caudatá- sempre exposta aos passivos e
não haja esposas que enviúvem rios dos que viveram ou agiram revezes da caminhada.
com maridos vivos, talvez; ou naquele período, são aqui recria- Obra de inegável qualidade
mortos, quem sabe? Viúvas do dos em sua dimensão humana. estética, tanto pela profundida-
quem sabe ou do talvez”. Era o Mas os fatos, tais quais relatados, de temática quanto pela força
princípio da pá de cal na era da embora fruto da imaginação, dramática, além de uma lingua-
exceção, que iria tempos depois são reverberações especulares gem permeada de sensibilidade
tomar vulto no brado nacional, da verdade dolorosa: o terror da e sutilezas estilísticas, Outono
até ruir com o advento do clamor repressão que impôs silêncio, firma em caixa alta a estreia de
pela anistia e pelas Diretas-Já, algemas, torturas, expulsões, Lucília Garcez no romance. Um
movimentos que a autora disse- banimentos, mortos, cadáveres tento alvissareiro em sua car-
cou em sua integridade e vera- insepultos, nascidos nos po- reira, sobretudo marcando po-
cidade no decorrer do romance, rões do DOI-CODI, pelas mãos sição e coerência num momento
lembrando-nos sempre a lição de Fleurys, Brilhantes Ustras, em que é preciso refletir e ques-
de Octavio Paz: “se a memória se Curiós e outros vermes assassi- tionar a fase crucial da vida bra-
dissolve, o homem se dissolve.” nos do regime, que a autora deu sileira, o que nos faz relembrar
Lucília Garcez, professora da voz e lhes conferiu autenticidade um personagem de José Eduar-
UnB e com uma carreira literária e verossimilhança. do Agualusa em Manual Prático
vitoriosa e premiada com uma Outono traz um caleidoscópio de Levitação: “O passado é como
vasta bibliografia infanto-juve- bem estruturado de circuns- o mar: nunca sossega.” Mais do
nil, viveu na pele esses tempos tâncias, sensações, apreensões que nunca, Lucília Garcez deu
conflagrados, inserida no olho e marcas indeléveis na vida da voz a seus viventes e nos ajuda
do furacão social, acadêmico, protagonista Ângela, na alma da a navegar nesse imenso ocea-
político e histórico de seu tem- autora, na consciência do narra- no de perplexidades, em meio
po, numa Brasília inviabilizada dor. Lucília escreve adotando o à escuridão que ameaça rever-
pelos coturnos. Sua experiência recurso dos flashbacks, o trânsito berar e esqueletos que insistem
pessoal e de frontalidade com entre passado e presente. Estabe- em renascer dos escaninhos do
esse período ajudou a construir, lecendo um diálogo entre o sofri- imaginário e nos assustar, tra-
por meio da ficção, uma persona- mento da esposa que tenta deses- zendo-nos o perigo novamente,
gem que encarnasse o pesadelo peradamente encontrar o corpo de um inverno de nossa deses-
de então e metaforizasse o clima do marido e, saltando no tempo, perança, descontentamento e
vivido pelo país. já como mãe de Vitória, amadu- desassossego. I
Em Outono mesclam-se a nar-
rativa em primeira e terceira pes-
soas e fluxos de consciência em TRECHO DE OUTONO
meio aos registros, referenciali- Eu contava os segundos, os minutos, as horas, os dias
dades e memória da época, como numa impotência sem limites. Sentia-me inútil, indefesa,
a literatura, a música, o cinema, mergulhada no ódio aos militares que tinham transformado
o teatro – as artes, em geral – que minha vida e a do país naquele inferno. O absurdo do arbítrio,
emulavam os gritos de revolta e da perseguição, da repressão estava ali diante de mim de
resistência e fomentavam pro- forma concreta. Não eram apenas alusões, insinuações,
testos de estudantes e diversas relatos vagos ou comentários superficiais dos quais eu
classes da sociedade civil. O in- pudesse me distanciar. Era a crua verdade. Danilo estava
consciente da autora teve papel preso e corria o risco de morrer, como sabíamos que outros
preponderante na tessitura des- companheiros tinham terminado, eliminados sem piedade.
sa trama, dando-lhe contornos
fieis e funcionando como repo-
sição, “in totum”, das tintas que
construíram o imenso painel do O escritor Ronaldo Cagiano, mineiro
totalitarismo que amedrontou e de Cataguases, vive em Lisboa,
submeteu o país e a nação à sua Portugal.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2019 | 21


POE

Josafá de
A palavra lavra
Que tempo enorme uma palavra encerra!
(W. Sheakespeare - 1564-1616. Ricardo II, Ato I. Tradução Carlos Alberto Nunes)

Dize a tua palavra e segue o teu caminho, deixando que a roam até o osso.
(Miguel de Unamuno - 1864-1936)

A palavra A pá A palavra é poderosa!


Por si mesma (Lavra) a terra A palavra excita...
É trabalho. Encerra o código. A palavra goza.

A palavra também é ócio, e A palavra é alimento Palavra é arma!


Por si mesma Que sai da boca Combate! Salva argumentos
É cio. Cimento e verbo. Molda. Estica. Erística.

A palavra é til A palavra é livro A palavra sai!


Assento agudo A palavra é espelho ambíguo Da boca, de bonde...
A palavra é grave. De imagem e transparência Vai pra onde?
De abismo!
A palavra
É suada A palavra é buraco
Molha a língua. Buraco no vazio
De autor desconhecido.
A palavra é suave
No pentagrama A palavra
Não da a mínima: pausa de tempo infindo. Lavra e trava.

A palavra é brava
A palavra Não tem limite
É obtusa Não tem cava.
Se se mastiga
É oclusa. A palavra escrava
Se aperta incisiva
A palavra é reclusa Entre um amor canino e uma mordida.
Entre dentes
Enamora língua e silencia. A palavra induz
Ela flexiona
A palavra recusa Avessa a língua, traduz.
Entre lábios
Outras línguas. A palavra engendra
Aficciona-se hermafrodita
Entre dentros Seduz.
A palavra
Só se mostra no escuro. A palavra
individualiza...
A palavra Dar forma. Deforma.
É lavra desconhecida
Aventura dizeres A palavra fala
A palavra falo: como filha de Zeus,
como filha de mnemósine
É estátua de lira e rosas: É Érato.

22 | João Pessoa, abril de 2019 Correio das Artes – A UNIÃO


SIA

á de Orós
A outra carta a Ilse Blumenthal-Weiss
.
.
a R.M. Rilke e aos ciganos
(nômades do pensamento e da imaginação)
.
Hoje novamente eu
assediado e aos pés das mil páginas da poesia
olho pros olhos de Wera Ouckama Knoop
e me penso chama
flâmula cigana
de vermelho e sangue
.
chama doida me chama
entre o vestido e os seios
sopros de seda e mel
avoantes mouros
.
bebo a imaginação e o caos
onda de crista e sal, mar de púbis
nas entranhas do mistério
.
vou me perder em sua boca
naufragar em palavras inventadas
voar, corcel negro
os seus flancos vazios
os alados pensamentos
de patas fincadas no infinito.
.
nos meus olhos
névoas mornas são imagens
e são grânulos do deserto
e são viveres sob os pés de viandantes berberes
a perderem entre cheiros
e paredes
outros ares, suas asas
noutra torre do castelo de Duíno.

ilustração: domingos sávio


Josafá de Orós é escritor e artista plástico. Nasceu em Orós (CE), em
1965. Veio para a Paraíba nos anos 70, e mora em Campina Grande, onde
desenvolve ações nos campos da cultura e das artes. É sociólogo formado
pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Já participou de de mostras
coletivas e individuais no Brasil, Cuba, França, Portugal e Espanha, entre
outros países. Tem publicado em diversas coletâneas em nível nacional. Sua
mais recente participação em antologia foi no livro Homenagem ao cente-
nário de nascimento do escritor Jorge Amado. Em 2017 obteve o título de
Embaixador da Palavra do Museo de la Palabra, de Madrid, Espanha.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2019 | 23


6 música

Citizen 18
A maioridade musical do
paraibano Washington Espínola

Maria Aparecida de Lima Francisco


Especial para o Correio das Artes

O
cantor, compositor e multi-instrumentista Washing- já ultrapassou, e muito, o limite
ton Espínola atingiu sua maioridade musical. Eis a dos “80 por hora”, inicialmente
proposição de seu mais recente CD, já disponibili- prognosticados.
zado, em conteúdo integral, por alguns serviços de Desde então, Espínola não
streaming de música, podcast e vídeo, tais quais Dee- apenas produz com regularida-
zer, Spotify e YouTube. de, mas, sobretudo, com paixão,
Desde seu début no cenário fonográfico, em 1992, profissionalismo e de forma bas-
com Manaíra, que, segundo a definição do apresen- tante eclética. Repudia a repeti-
tador do disco e crítico de música Ricardo Anísio, é ção. Estuda, experimenta ritmos
“praia de guitarra” ou “guitarra de praia”, o artista e produz sob múltiplas influên-
cias musicais e artísticas. Com-
põe e canta em português, em
inglês, em italiano, em francês
o
çã

e, até mesmo, em grego.


ga
ul

Brinda seu público com


ivd
s:

blues, rock, reggae e baião,


to
fo

como também com uma in-


finidade de grooves. Alterna
o puramente instrumen-
tal com o vocal, acompa-
nhado de variados ins-
trumentos. É antenado
no tradicional brasileiro,
desde o chorinho, o sam-
ba e suas ricas nuances,
inclusive a bossa nova;
bebe na fonte da
MPB em suas flora-
ções mais refina-
Washington Espínola das, do jazz, do
não arrefeceu o ímpeto
criativo, desde que
rock ocidental
se lançou à música, de forma ge- c
em 1992, na capital
paraibana

24 | João Pessoa, abril de 2019 Correio das Artes – A UNIÃO


surprise that Washington was a vários lugares, a depender do
born in Brazil, lives in Genebra ponto de vista da persona poé-
and holidays in Holland”. tica, de seu nomadismo, de sua
Beatlemaníaco desde os tem- saudade e da sua momentânea
pos de aluno secundarista, no fixidez, como em “Longe”:
Colégio Pio X, em João Pessoa,
WE (conforme ele mesmo se Com os olhos no horizonte
subscreve) mantém-se roqueiro vejo longe, me sinto longe
- a guitar man, embora não se res- que vou muito longe daqui
trinja a esse instrumento musi- observando o céu,
cal nem a um gênero de música a noite, estrelas e aviões
específico. Demonstra virtuosis- que me dizem
mo nas cordas, em especial no pra ir longe daqui
violão e na guitarra, como tam- sentado à tarde
bém nos teclados. Exercita-se vejo o sol vermelho
Glenn Miller figura na percussão, além de conceber, lentamente desaparecer
entre as influências meticulosamente, os arranjos de pra renascer
assumidas de suas composições, e de produzir bem longe daqui
Washington Espínola seus discos, sempre com a par- é claro, escuro
ticipação de velhos e/ou novos cedo, tarde, fim de tarde
amigos de fé. tudo isso me dá vontade
A música de Washington Es- de ir longe daqui
pínola traz o bafejo de bandas, me deito
artistas e roqueiros eternizados, durmo, sonho e,
principalmente, a partir da dé- quando acordo,
c ral, da música oriental, sempre cada de 60, com seus traços de claramente me recordo
sob influência assumida, reve- estilo irrepetíveis, suas modu- de estar longe daqui
renciando, por vezes, ícones e lações melódicas inovadoras, de estar longe daqui
virtuoses, a exemplo de Glenn seus temas inéditos e outras de estar longe daqui
Miller e sua orquestra, Jaqueline idiossincrasias. Mas há fontes
du Pré, Bob Marley, Pat Metheny, outras, muitas, regionais, nacio- Já em outras composições com
como também toda uma plêiade nais, além das internacionais, letra, a recordação transfigura-se
de artistas brasileiros e estran- afinal de contas, a própria loca- em festa, como em “Arriving” e
geiros, de diferentes épocas. lização geográfica do país onde “Assustado”, a representarem
A criatividade e a abundante atualmente reside o artista e as momentos alegres do reencontro
inspiração de Washington Es- inúmeras rotas por ele percorri- com conterrâneos, e do convívio
pínola têm, com certeza, hoje, das, durante todos esses anos, no familiar e afetivo, daí os seguin-
relação direta com sua ativida- Brasil e na Europa, franqueiam- tes versos desta última canção,
de de professor de música na -lhe possibilidades interculturais os quais são pura evocação da
École Internationale de Genève, inimagináveis. mais extrema juventude:
visto que, desde a década de 90, Nas canções, o lirismo se faz
fixou residência na Suíça. Lá ini- presente desde os primeiros dis- Assustado
ciou carreira internacional após cos, refletindo-se no romantismo A luz negra
parcerias e convergências com das baladas e na nostalgia deste Rock your baby
músicos consagrados, o que se paraibano, cujas memórias do Solto agarrado
evidencia, por exemplo, na bossa Brasil e de uma João Pessoa já Pensando bem
revisitada “Sensatez”, gravada longínqua se impõem em ter- Dançando bem
em dueto com Roberto Lyra e mos de reflexão e rememoração. Macaco não faz
pertencente ao CD Afinidades, o Dessa forma, em algumas com- Mal a ninguém
quarto produzido por Espínola. posições, ressurgem folguedos, Sábado à noite vai chegar
É, pois, sem dúvida, um citoyen eventos culturais, personagens Chama a menina pra dançar
du monde. Ainda assim, conser- emblemáticos da capital parai-
va, de maneira admirável, quase bana, a exemplo da lendária Vas- Alternam-se a estas canções
intacta sua alma brasileira, evi- soura, do padre José Coutinho, belas faixas instrumentais, a
denciada na variedade musical de Macaxeira, entre outros, con- exemplo de “Sand Storm”, “Fale
característica do conjunto de sua forme se vê em “Procissão” e em baixo”, “Not so Far West” e “Just
obra. Relativamente a esse aspec- “Saudade”. a second”. Em cada uma delas,
to, David Randal já observara, ao Em Citizen 18, o lirismo ganha WE exercita uma modulação
apresentar Virgo, o nono álbum, nova dimensão. Diferentemente sentimental diferenciada e su-
lançado em 2000: “Washington’s do que se pode observar nos dis- gerida nesses títulos, a saber:
tunes will transport you across cos anteriores, o “eu” lírico não se certa intensidade emotiva asso-
several continents in the process. prende necessariamente a uma ciada ao fenômeno natural da
This is a very ecletic, cosmopoli- pátria, podendo suas referências tempestade; a sutileza do baixo
tan music and it will come as no topográficas estar relacionadas e seu timbre particular, análogo c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2019 | 25


c à voz humana; o tom nostálgico
de recordações melodicamente
plasmadas; certo intermezzo antes
de um mergulho mais profundo
nas águas profundas de um rock
mais heavy, em especial a partir
da segunda faixa do CD, a qual
nomeia este novo trabalho.
Por vezes, o instrumental
atualiza títulos de discos ante-
riores, como em “Caliel Pt. III”,
que retoma o sexto CD de WE,
igualmente intitulado Caliel. Re-
vela-se, dessa maneira, o aspecto
inesgotável da concepção criati-
va do músico, sempre a revelar
novas leituras de si mesmo e a
reacender a brasa de inspirações
jamais extintas.
Consórcio tradicional e frutí-
fero, em termos de lirismo, é o
estabelecido com a poesia do ita-
liano Daniele Morresi, que par-
ticipa da quinta faixa do último
CD, “L’aria Del Tempo”, com a re-
citação de um seu texto poético.
Neste caso específico, WE lembra O caldeirão musical,
Vinicius de Moraes em algumas de cujo caldo
de suas composições, nas quais WE bebeu, tem o
ingrediente regional
o restabelecimento do elo entre do Quinteto Violado
poesia e música restitui o cará-
ter original e ontológico desses all you have to do
elementos, hoje definitivamente is just to look around
apartados. feel the sound
Um aspecto particular, e que that you make
é índice de maturidade artísti- each vibration has
ca, merece consideração: a re- a serious meaning now
flexão metalinguística contida just fly around
em “Composer”, nona faixa de enjoy your day
Citizen 18. Nela o artista revela
aspectos da sua imaginação cria-
tiva, composta de ingredientes Mas é em “Anão” que WE forte como um leão
vitais, como o desejo e a neces- reafirma, definitivamente, sua me lembrou Lampião
sidade de experimentar novas versatilidade de profissional mas que situação
fórmulas, conforme atestam os maduro, eclético, embora brasi- o anão e seu irmão
seguintes versos: leiríssimo. Ainda na esteira das
reflexões sobre a performance um irmão
straight and higher artística, Espínola expande-se do danado do anão
feel the desire à riqueza rítmica do sertão nor- tá no Afeganistão
try to create something new destino, com seus aboios, baiões, mudando pro Japão
don’t look back xaxados, suas bandas de pífa- haja sushi com pão
find the ways nos, sem se esquecer de evocar com medo de avião
imagination free again a memória do bandido justiceiro não mais vai ver sertão
Lampião, símbolo inconteste da me lembrou Lampião
Assim poeticamente descri- região Nordeste, da sua cultura e mas que situação
ta, a atividade da composição de seus valores: o anão e seu irmão
soa fluida, uma vez que é re-
sultante de energias positivas um anão Não se trata, no entanto, de
aliadas a bastante leveza de es- tocando violão um mero xote ou forró. “Anão”
pírito, o que torna possível não me chamou a atenção se inicia com refrão instrumen-
apenas traçar esse processo em sua transpiração tal acompanhado de um sol-
suas linhas gerais, como tam- cheia de inspiração fejo melodiosamente exótico,
bém lançar luzes para quem oriental, a serpentear, depois,
queira nele se aventurar: batendo o pé no chão sensualmente, entre as estro- c

26 | João Pessoa, abril de 2019 Correio das Artes – A UNIÃO


Mais uma vez, trata-se de
uma composição lírica. Sim, por-
que há, em “Anão”, disposição
anímica no sentido de recuperar
uma cena trivial, passível de ser
registrada em qualquer lugar
público do mundo, via recorda-
ção. Nesse sentido, convém re-
tomar a lição de Emil STAIGER
(1969), para quem ‘recordar’ é o
termo que denota a falta de dis-
tância entre sujeito e objeto, ou
seja, o um-no-outro lírico, já que
acontecimentos presentes, pas-
sados e até futuros podem ser O encarte de Citizen
recordados na criação lírica. 18 é revelador, na
Observando músicos em suas diversidade clomática
performances artísticas, o cito- e formal, do ecletismo
músical de WE
yen WE rememora seu país e re-
verencia a musicalidade do Nor-
deste Brasileiro, o que, por sua
vez, desencadeia memórias cul-
turais e musicais outras. Nesse
processo, evidenciam-se seme-
lhanças e dessemelhanças esté- Conforme se vê, o roqueiro
ticas, ligadas, as artes nacionais paraibano amadureceu, ganhou
às de outras nações, inclusive, experiência profissional e pes-
pela força motriz graças à qual soal, adquiriu conhecimento e
improvisadores e instrumentis- atingiu a sabedoria. O resultado
tas, como é o caso do próprio Es- desta nova fase se converterá,
pínola, lançam-se mundo afora certamente, em trabalhos cada
e estabelecem comunicação com vez mais apurados e de inequí-
os mais variados públicos. voca qualidade estética.
A musicalidade de “Anão”
decorre, ainda, fortemente do O mundo
uso ostensivo de rimas nasais ao
final de cada verso e do predo- como palco
mínio do hexâmetro nas estro- Fundador integrante da Banda
fes desta composição. Prisma, em 1983, e do Washing-
WE mostra, neste último ton Espínola Trio, em 1986, WE
trabalho, amadurecimento, dedicou-se ao violão a partir dos
ao mesmo tempo em que rea- 14 anos de idade. Mais tarde, já
Outras duas
majestades firma o virtuosismo que lhe é em consórcio com outros músi-
nordestinas também característico, numa postura cos, acompanhou artistas como
reverenciadas por contemplativa (não necessa- Lis, Madruga, Sérgio Túlio, Ta-
WE: Jackson do
riamente passiva!) diante das deu Mathias, Gracinha Telles,
Pandeiro e Luiz
Gonzaga múltiplas realidades das quais Capilé, Diana Miranda e a Ban-
sua arte se nutre. da Limusine 58, entre outros. Na
Certa tez serena e de leve sa- qualidade de guitarrista, atuou
bor místico (Influência de Geor- junto a Emílio Santiago, Renata
ge Harrison? Do contato com Arruda, Rosinha de Valença e
alunos de diferentes origens e Arnaud Rodrigues.
c fes, de modo enigmático, sob a culturas? De sua personalida- Aqui na Paraíba, teve partici-
rítmica de palmas e a marcação de artística? De aspectos de sua pação ativa em vários projetos e
do agogô. vida privada?) está sugerida no festivais de música, a exemplo do
O dedilhado das cordas encarte deste mais recente ál- Projeto Pixinguinha, do Projeto
atualiza, na memória de qual- bum, no qual o jogo de palavras Boca da Noite, do Projeto Pôr do
quer brasileiro que se preze, permite que sejam identificados Sol, do Projeto Terça no Arena,
a musicalidade de Jackson do os vocábulos “zen”, “tea”, “seat”, do Projeto Glória Vasconcelos,
Pandeiro, de Luiz Gonzaga, na “sea”, “see”, entre outros, a con- do Festival de Arte de Areia, do
releitura refinada de um Quin- tornarem a imagem de um indi- Festival de Inverno de Campina
teto Violado, por exemplo. É, víduo em posição meditativa. Grande, do Festival de Música
pois, local e universal a um só Instrumental da Paraíba (MIP),
tempo. do Festival de Música do Lyceu c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2019 | 27


I
RAF A
c Paraibano, do Festival de Rock
de Serra Branca, do Fest Mar, do
Festival de Música do Colégio

D I SC OG
Pio X, entre outros, e de festivais
nacionais, como o Festival Ba-
nespa, em São Paulo, e o Festival
Nacional de Artes (Fenart).
No final da década de 90, WE
viajou para Genebra, enquanto
integrante da banda da cantora
paraibana radicada na Europa
Diana Miranda. Participou do • 1992, participação na Coletânea Aquarius
Festival de Mains (Alemanha) Vol. II, com sua composição “Fase III” e lan-
e do Festival Off de Montreux çamento do primeiro disco autoral, Manaíra,
(França). Tocou, também, na contendo oito músicas.
Áustria (Viena), na Inglaterra, • 1994, gravação do CD Quintal de Infância,
na Itália (Moncalvi e Sicília) e em com 12 composições próprias, sendo três regra-
Portugal (na Expo 98 e no Fes- vações, “Manaíra”, “Bluesão” e “A La Francesa”.
tival do Porto). Formou, nessa • 1995, gravação do CD Contemporâneo (Estú-
época, um grupo com o baterista dio SG), com texto de apresentação do amigo e
israelense Rony Man, o baixista vocalista da banda de rock Paralamas do Suces-
italiano Enzo Criscuolo e o tecla- so, Herbert Viana, contendo 15 músicas instru-
dista suíço Nicolat Currat. mentais, dentre as quais a composição “Funk II”.
Radicado, desde então, na • 1996, lançamento, em dueto com o gaitista
Suíça, vem realizando concer- Roberto Lyra, do CD Afinidades, no qual WE assi-
tos e shows pela Europa, onde na a direção musical e alguns arranjos; também
é professor da École Internacio- nesse ano, em comemoração aos 10 anos de car-
nale de Genève. reira, se deu a gravação do CD 10.
Embora tenha gravado, em • 1997, lançamento dos CDs 10 e Caliel.
1992, ainda em João Pessoa, uma • 1999, lançamento, em João Pessoa, no bar Pa-
composição em uma coletânea rahyba Café, do CD Sy’s Theme, gravado na Suíça;
produzida por Dércio Alcântara nesse mesmo ano, gravação, em Genebra, com a
e dirigida por Lis, o primeiro dis- participação do baterista Nelson Ned Júnior, do
co de WE com músicas autorais guitarrista austríaco Roman Hranitzky, dos te-
viria à luz nesse mesmo ano. cladistas italianos Nicolat Currat e Antônio Di
Leo, dos percussionistas suíços Patrick Merz e
Maico Pagano, além dos paraibanos Sérgio Gallo
I
(baixo) e Paulinho de Tarso (percussão), do CD
The 5th Change.
• 2000, lançamento do CD Virgo.
• 2003, lançamento do CD Strangers Anytime.
• 2006, lançamento do CD Grue.
• 2008, lançamento do CD Fellin’ Allright.
• 2009, lançamento do CD Le Saleve.
• 2011, lançamento do CD Ice Cream Sun e do
CD duplo Greatest Hits (este último composto
de um volume com músicas cantadas em vários
Observando idiomas e de outro com músicas instrumentais).
• 2016, lançamento do CD The King’s Dream.
• 2018, lançamento do CD Citizen 18.
músicos em suas

performances REFERÊNCIAS
http://dicionariompb.com.br/washington-es-
pinola/dados-artisticos
artísticas, o citoyen STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poé-
tica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969.
WE rememora seu

país e reverencia
Maria Aparecida de Lima Francisco leciona Língua Portuguesa e Língua Francesa
nas redes públicas estadual e municipal de ensino, com atuação no Centro de
a musicalidade do Línguas do Estado da Paraíba (CELIN) e no Centro de Línguas Estrangeiras
(CELEST) da Prefeitura Municipal de João Pessoa. Aprecia a literatura, em
especial a poesia, e a boa música nacional e estrangeira de que tem conhecimento.
Nordeste Brasileiro. Mora em João Pessoa (PB). Contato: mcidalimaf@gmail.com.

28 | João Pessoa, abril de 2019 Correio das Artes – A UNIÃO


6 clássicos Fotos: reprodução internet

A fúria de
Aquiles, de
Giovanni Battista
Tiepolo

Tradução
do proêmio da

Íliada, original, que chamaremos aqui


de “texto de partida”.
Toda a Ilíada pode ser conhe-

de Homero cida logo em seu início, o proê-


mio. Esta palavra pode ser en-
tendida como prefácio, exórdio
e/ou princípio do discurso. E
é isto que estes sete primeiros
Adriano Bezerra de Araújo versos tratam, este é o cerne de
Especial para o Correio das Artes todo o poema, tendo em vista
que o desenrolar do canto 1 e de
todo o poema acontece aqui, te-

P
ara traduzirmos um texto, devemos partir da formu- mos 1) a invocação, 2) o assunto
lação de algumas perguntas, dentre elas podemos e 3) o resultado.
destacar três, que são: 1) O quê traduzir? Como tradu- Portanto, nosso trabalho visa
zir? E para quem traduzir (qual público alvo)? uma breve análise e tradução
Essas e outras perguntas são necessárias para do proêmio da Ilíada, de Home-
darmos encaminhamento ao trabalho de tradução, ro. Salientando que se trata de
tendo em vista que não será qualquer texto, mas a uma tradução mecânica em que
minha tradução. tentaremos contemplar a essên-
É necessário também que, aqueles que se pro- cia do texto para depois cons-
põem a fazer e/ou ter esse trabalho, o conhecimento truirmos, dentro das limitações
de sua própria língua, que chamaremos de “língua da língua de chegada, uma ver-
de chegada”. Sem esse conhecimento nossa tradu- são que possa ser palatável e de
ção poderá perder um pouco da essência do texto fácil entendimento. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2019 | 29


c Vamos ao texto grego:

μῆνιν ἄειδε θεὰ Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος


οὐλομένην, ἣ μυρί᾽ Ἀχαιοῖς ἄλγε᾽ ἔθηκε,
πολλὰς δ᾽ ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν
ἡρώων, αὐτοὺς δὲ ἑλώρια τεῦχε κύνεσσιν
οἰωνοῖσί τε πᾶσι, Διὸς δ᾽ ἐτελείετο βουλή,
ἐξ οὗ δὴ τὰ πρῶτα διαστήτην ἐρίσαντε
Ἀτρεΐδης τε ἄναξ ἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύ

Nossa tradução:

Ó Kalíope, celebra a cruel ira de Aquiles Pelida,


que inúmeros sofrimentos causou aos Aqueus,
lançando ao Hades muitas almas de corajosos heróis.
Ela dispôs os mesmos como repasto aos cães e as aves de rapina,
realizando-se o desígnio de Zeus.
No momento em que, inicialmente, desentenderam-se, entrando
os dois em disputa:
o Atrida, Senhor dos heróis e o divino Aquiles.

Ao começar pela invocação instrumento pelo qual a divin- Musa Calíope, de Cesare
às Musas, Homero pretende dade irá se manifestar. Dandini (1595-1658)
mostrar que este canto não é O assunto já está marcado no
de si mesmo, mas algo que está proêmio: a ira de Aquiles. Esta
fora dele mesmo. Para estes ira é reforçada pelo adjetivo
povos antigos qualquer forma οὐλομένην, que pode ser tradu-
de arte era inspiração de algo zido por funesto, cruel, sinis-
ou alguém que estava fora do tro. No canto I será evidencia-
plano material, portanto, vindo da pela tomada do seu espólio
do mundo imaterial, que neste de guerra, Briseida. Agamêm-
caso do texto seria a musa. Te- nom irá tomá-la e o melhor dos
mos essa invocação em muitos Aqueus abandonará a guerra
outros escritos, dentre os quais (Canto 1, versos 189-192; versos
destacamos: a Odisseia, Eneida e 234-244). O canto XXI será ou-
a Teogonia. É neste último que tro momento em que veremos
vemos duas funções das musas: toda essa ira em sua forma
1) Cantar aos deuses e 2) inspi- mais cruel. Aquiles perpetra- der enumerar essas sensações.
rar no aedo um canto divino. rá uma carnificina monstruo- Traduzimos este trecho: ἣ μυρί᾽
Na nossa tradução optamos por sa ao ponto de parar o curso Ἀχαιοῖς ἄλγε᾽ ἔθηκε, por: “que
chamá-la pelo nome, Kalíope, da água do Rio Xanto, que em inúmeros sofrimentos causou
para aqueles leitores que não súplica, lhe roga que lute nas aos Aqueus”, entendendo que a
têm conhecimento prévio sobre planícies e o deixe chegar ao palavra “sofrimento” coloca-se
mitologia. Kalíope (Καλλιόπη, Oceano. Toda a consumação de forma prática e real.
em grego), era uma das nove desta ira é dada no canto XXII Estes sofrimentos não ces-
musas filhas de Zeus e Memó- com a morte de Heitor e o ul- sam enquanto os heróis estão
ria. Era esta que inspirava nos traje de seu corpo. Temos então vivos, mas transcendem para
aedos o belo canto. Isso pode o início, o meio e o fim desta um outro plano, para o Hades,
ser observado na Teogonia, de ira. Ira que causa sofrimento a região dos mortos. Pelo ver-
Hesíodo, verso 79. não só aos Aqueus, mas tam- bo utilizado, acreditamos que
É interessante notar também bém aos Troianos. Observe que nem todos chegam ao Hades,
o verbo ἄειδε, ἄειδω, que uma μυρί pode ser traduzido por mas são lançados diante das
tradução possível seria “cele- “inumeráveis”. Isto dá a ideia portas. A nossa teoria se fun-
brar”. Fiz opção por “celebrar” de que não houve uma enu- damenta no seguinte: o verbo
tendo em vista o seu caráter sa- meração fixa, mas algo incon- é προΐαψεν, que está na tercei-
cro, religioso. Isso remonta aos tável e que traz uma sensação ra pessoa do aoristo. Este é o
ritos sagrados, tais como: os ri- de dor. Neste caso poderíamos verbo προΐαπτω, formado por
tos de cura. Talvez seja essa a traduzir μυρί᾽ ἄλγε᾽, por “inu- προ+ἰάπτω. ἰάπτω pode ser
acepção que mais se aproxima meráveis sensações de dores”, traduzido por lançar, arrojar e
aqui, pois o aedo é somente o dando um sentido de não po- a preposição προ, diante de, o c

30 | João Pessoa, abril de 2019 Correio das Artes – A UNIÃO


que poderíamos traduzir por deste verbo. Se pela ação que mostra-nos duas coisas: 1) o ca-
“lançar diante de”. Estas almas está sendo praticada talvez ti- ráter do herói e 2) a investidu-
são lançadas, mas não quer di- véssemos: colocando-se os dois ra de autoridade que cada uma
zer que entram. Observamos em pé, se separam. O que soa- personagem terá no poema. A
isso no verso seguinte, quando ria estranho, pois ἐρίζω, é re- Agamêmnom é colocado o epí-
o pronome Ela retoma o sujei- nhir, rivalizar, lutar. Como en- teto de ἄναξ ἀνδρῶν, Senhor
to “ira”, deixando claro nossa tão chegar a uma conclusão? Ao dos Heróis, este epíteto somen-
argumentação. Alguns corpos meu ver, para que não se perca te é dirigido a Agamêmnom de-
não receberão as honras fúne- o sentido, traduzimos por uma vido a sua investidura divina.
bres, ficando como repasto para locução: entrando em. Logo, O cetro fora-lhe dado por seu
cachorros e aves de rapina. Op- o sentido da ação que está em pai que, se retrocedermos na
tei por traduzir ἑλώριον, como evidência nestes versos não é sua genealogia, fora concedido
“repasto” pela significação da perdida, pois os dois ficam em por Zeus. Poderia ser “dos ho-
não honraria em relação ao rito pé rivalizando-se. É estando de mens”, mas aqui talvez soasse
fúnebre. É interessante notar pé frente à frente, olho no olho. impreciso, pois no poema não
essa significação, pois a palavra Por fim, Homero já nos indi- estamos tratando de simples
ἑλώριον significa mesmo “ali- ca uma outra forma de conheci- homens, mas de heróis. Aquiles
mento”, o que corrobora com o mento de nossos heróis: os epí- aqui é o δῖος Ἀχιλλεύς, o que é
texto. Neste caso, estes corpos tetos. Essa forma de chamá-los preterido pelos deuses.
não têm as honras devidas e Ao concluirmos nosso artigo
sem essa honraria não pode- verificamos quão rica é a leitu-
riam descansar, nem chegar ao ra deste poema. Sendo um clás-
Hades e nem terem suas me- sico da literatura universal, o
mórias perpetuadas. Por conse- leitor ou aquele que deseja des-
guinte, teremos a razão de tudo vendar os “mistérios” que estão
isso estar acontecendo: os desíg- inseridos neste poema, verifi-
nios de Zeus. O verbo τελέω, que cará quão rica e prazerosa será
está na voz média, no aspecto sua leitura. Vale alertá-los que
inacabado, dá a ideia de que será necessário algumas infor-
este desígnio se desencadeará
Estes sofrimentos mações prévias, pois o poema
por todo o poema. não trata da tomada de Tróia e
O próximo verso, sendo nos- não cessam sim, da ira funesta de Aquiles.
sa conclusão, nos informará em Um episódio dentro de uma or-
qual momento se desencadeará enquanto os heróis dem que chamamos de global.
essa querela. Esses dois últimos Boa leitura! I
versos são interessantes, cha- estão vivos, mas
mo a atenção, principalmen-
te para os verbos: διαστήτην e transcendem para
ἐρίσαντε. Ao primeiro verbo
temos a construção com a pre- um outro plano, para Adriano Bezerra de Araújo é
posição διά+ἳστημι. O difícil foi graduando em Letras Clássicas –
encontrar uma palavra ou for- o Hades, a região Latim e Grego – na Universidade
Federal da Paraíba (UFPB).
ma verbal na língua de chega-
Mora em João Pessoa. Contato:
da que possa traduzir o sentido dos mortos. adrianobezerrajp@gmail.com.

O Triunfo de Aquiles por


Franz Matsch, em um
afresco do século XX

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2019 | 31


6 autores

Roth: entre
Imagine o distinto leitor ou
distinta leitora a vida de um es-
critor nascido em finais do sé-
culo XIX, cuja cidade natal, em
zona fronteiriça de Impérios ri-

a nostalgia
vais, pertenceu a um desses Im-
périos na sua infância, tornou-se
território de outro país após o fi-
nal da I Guerra Mundial – quan-
do ele contava então com 24 anos

e a vida trepidante,
de idade – passou a integrar mais
outro país logo após a II Guerra
Mundial, poucos anos após a
morte do referido escritor – fale-
um escritor de cido aos 45 anos de idade incom-
pletos, no exílio. Imagine, ainda,
várias terras e nenhuma que esse mesmo escritor, dada
a sua ascendência familiar, não
tinha uma nacionalidade plena-
mente reconhecida em nenhuma
Ângelo Emílio da Silva Pessoa dessas circunstâncias.
Especial para o Correio das Artes O que pode parecer algo fan-
tasioso é fato bem constatado
quando falamos da cidade de
Brody, situada na região da Ga-

M
ais tarde, desde que eu voltara da guerra não só mais amadure- lícia (essa não a espanhola, mas a
cido como também envelhecido, as noites vienenses tinham-se Galícia na Europa Oriental, hoje
enrugado e murchado... Era preciso agarrar essas noites fuga- dividida entre Polônia e Ucrâ-
zes e quase medrosas antes que estivessem prestes a desapa- nia). Surgida em torno do século
recer... Desterrado era eu no meio dos vivos... A manhã já se XI, após uma longa história de
acinzentava sobre as cruzes totalmente estrangeiras. Passou guerras e migrações, em finais
uma ligeira brisa balançando os velhos lampiões ainda não do século XIX integrava a vas-
apagados, naquela noite ainda não apagados. Fui andando por ta colcha de nacionalidades que
ruas vazias com um cão estranho. Ele estava decidido a me compunha o Império Austro-
seguir. Para onde? – Eu sabia tão pouco quanto ele. -Húngaro, comandado pela di-
A Cripta dos Capuchinhos, onde os meus imperadores ja- nastia dos Habsburgo. Após a
ziam sepultados em urnas de pedra, estava fechada... dissolução desse Império ao final
Para onde devo eu ir agora, eu, um Trotta?... da I Guerra Mundial, a cidade foi
(Joseph Roth. A Cripta dos Capuchinhos, 1938) palco de novas guerras, passan-
do à Polônia e posteriormente à
A primavera de Berlim é oficialmente sancionada como es- Ucrânia, cujo território integra
tação do divertimento com a abertura do enorme Luna Park... nos dias que correm.
Aqui a diversão se torna insana, o absurdo hiperbólico, a folia Em 1894 veio à luz em Brody,
a um só tempo penosa e inofensiva. Há máquinas infernais que numa família de origem judaica,
causam suor frio antes de despertarem algum prazer... O pro- Joseph Roth, cuja vida e parte da
pósito de toda essa máquina grotesca é expor em sua inadequa- produção literária apreciaremos
ção tragicômica a pessoa que se põe à sua mercê. O propósito em largas pinceladas, tentando
das outras diversões é o mesmo... entender, refratada pela sua es-
A diversão aqui consiste justamente no deboche do esfor- crita, um pouco das mudanças
ço humano. Vejo um senhor despedaçar a louça da “loja de que sacudiram esse canto do
porcelana” com bolas de borracha dura. Ele não sabe que o mundo em pouco mais de cin-
som da destruição o incita a novos arremessos, ele atira bola quenta anos, entre finais do sé-
após bola, não vê que ao seu redor muita gente se amontoa. culo XIX e meados do XX, quan-
Talvez tenham um terrível vislumbre da verdade, e a questão do a existência foi quase que
de saber se essa devastação pode conter o sentido da vida não literalmente sacudida por duas
aflora a seus lábios... guerras catastróficas que pari-
(Joseph Roth. Uma hora na agitação de prima- ram o mundo no qual vivemos
vera. Frankfurter Zeitung, 16/05/1924) nos dias que correm. c

32 | João Pessoa, abril de 2019 Correio das Artes – A UNIÃO


como um ambiente de asfixia do de sua infância e juventude
burocrática e absurdo cotidiano. como o que poderia ter sido, em
Já Roth olhava para o mesmo Im- lugar do que se tornou.
pério com profunda nostalgia,
como um quase refúgio diante
do que veio a acontecer após sua
dissolução. Certamente, as dife-
renças temporais entre o tempo
de produção de suas obras (Kafka
faleceu em 1924, antes da ascen-
são do nazismo e Roth em 1939,
no ano da eclosão da II Guerra),
bem como as singularidades de
cada um desses autores impõem
uma ponderação necessária para
levar essa discussão a frente.
No caso de Roth, em 1932
veio a lume sua obra mais famo- Em 1938, em A Cripta
sa, Marcha de Radetzky, na qual dos Capuchinhos,
contou a história de três gera- Joseph Roth retomou a
ções de uma família de origem saga dos von Trotta
camponesa eslovena, nobilitada
após um ato heroico do Tenente
Joseph Trotta, que teria salvado
a vida do Imperador na batalha
Joseph Roth nasceu em Brody, de Solferino, em 1859. Elevado Em 1938, em A Cripta dos Capu-
atualmente parte da Ucrânia,
em 2 de setembro de 1894, e de posto militar e à condição de chinhos, retomou a saga dos von
faleceu em 1939 nobreza, o Capitão Joseph Trot- Trotta, ou melhor, a melancolia
ta von Sipolje (o último nome o de um sobrinho-neto do herói
da aldeia onde teria nascido o de Solferino, vivendo na Áustria
personagem) torna-se um nobre à época da ascensão do nazismo
um tanto deslocado dos mundos nesse pequeno país, outrora o
camponês e cortesão e servidor centro da poderosa monarquia
devoto do Imperador. As gera- dos Habsburgo. Os ultranacio-
c Na juventude, Roth passou a ções seguintes dos Trotta mante- nalismos emergentes pareciam
residir em Viena, capital desse rão essa fidelidade ao Imperador contrastar com a perda do Impé-
vasto e multinacional Império, e profundo apego ao sentido de rio que – constatava, imaginava
onde se dedicou aos estudos honra e decoro, sendo ao longo ou desejava Roth – acolhia ainda
universitários e à literatura, mo- da obra sutilmente perceptível que de forma limitada a diversi-
mento no qual a eclosão da Guer- que seu mundo parece esboroar dade de culturas que compunha
ra veio a engajá-lo no Exército e de maneira quase inexorável. In- um vasto mosaico de gentes.
permitiu-lhe acompanhar de teressante atentar que Roth não Voltando um pouco, após a dé-
perto o horror de uma guerra e indica origem judaica para os bâcle do Império Austro-Húnga-
a dissolução do Império no qual Trotta, mas através de sua con- ro, em fins de 1918, o jovem Roth
havia vivido até então. dição no Império, sugere as pos- levou uma vida um tanto erráti-
A situação das populações de sibilidades de inserção social de ca, morando em diferentes cida-
ascendência judaica e outras mi- populações de múltiplas nacio- des e hotéis, entregando-se pro-
norias étnicas no Império Aus- nalidades e origens étnicas no gressivamente ao álcool (questão
tro-Húngaro não é matéria de tecido multinacional do Império. abordada em A Lenda do Santo
fácil acordo. Se as constantes dis- Em certa medida, há segmen- Beberrão, lançado no ano de sua
criminações, constrangimentos tos de ascendência judaica entre morte, em 1939, e levado às telas
e perseguições tornavam a vida as classes médias no Império, em filme homônimo ítalo-fran-
pra lá de difícil, o que se seguiu desempenhando atividades tais cês, lançado em 1988 pelo diretor
não foi o melhor dos mundos e, como advogados, professores, Ermanno Olmi), e produzindo
depois da eclosão da II Guerra, escritores, médicos, comercian- escritos em profusão. De par com
essa região foi um dos centros tes, proprietários de fábricas e sua vida literária, que conta com
do inferno que dizimou milhões outras, que, apesar dos constran- diversos romances e novelas,
de vidas em razão da insânia gimentos reiterados associados a Roth desempenhou uma intensa
que marcou o nazismo. Para um essa origem, prenunciavam uma atividade jornalística, sendo par-
quase contemporâneo de Roth, possibilidade ou expectativa de te desses escritos publicados na
cerca de uma década mais velho, ampla integração. Roth divisava coletânea Berlim.
o tcheco de ascendência judaica, essa faceta e ao longo dos anos 20 Nesses escritos, Roth conver-
Franz Kafka (1883-1924), a vida percebeu a exacerbação do antis- teu-se num sagaz observador
no Império pode ser percebida semitismo, olhando para o mun- andarilho do cotidiano e das c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2019 | 33


c mudanças profundas de socia-
bilidade trazidas pelos novos
costumes e suas sofisticadas
maquinarias urbanas. Entre fas-
cinado, perplexo ou enojado, ele
penetrou nos meandros da Ale-
manha dos anos 20, a República
de Weimar, captando na agita-
ção nas ruas, nos bares e infer-
ninhos noturnos, nos parques e
museus, a atmosfera trepidante
de uma sociedade que parecia
romper amarras com seu pas-
sado e se jogar na vertigem de
tempos novos e aterradores, tal
como as diversões mecânicas do
parque que vimos acima. Alguns
Joseph Roth e o
sinais de comportamento pa- e entregou-se cada vez mais à be- escritor austríaco de
reciam sugerir a Roth que uma bida. Seus copiosos escritos tra- origem judaica Stefan
ameaçadora borrasca se insinua- zem a marca de um homem que Zweig (1881-1942)
va no horizonte e que desabaria viu seu mundo ruir e cuja me-
sobre a Europa e o mundo dentro lhor parte de sua geração viu os
em breve; nesse vendaval que se melhores sonhos se afundarem
avizinhava, muita gente, entre num sombrio pesadelo. O exces-
judeus, ciganos e outros sofre- so de bebida, a vida desregrada
riam a pior parte e pagariam o e a depressão ante a escalada da
mais pesado preço. violência, somada à perda de di-
letos amigos, esgotou as energias
do talentoso escritor, que faleceu
pouco antes de estourar a guerra
que se desenhava no horizonte.
Não estaríamos em condições
de dar um juízo definitivo sobre
em que medida a manutenção ou
o fim de um Estado e a destrui-
ção de certos modos de vida se-
riam benéficos ou danosos para
quem os vivenciou – realmente,
os Estados nacionais são plantas
bem estranhas –, mas, com certe-
za, viver a história quando o solo
se move embaixo dos pés e quan-
do sua cidade natal passa a ser
Em Berlim, Roth reuniu parte território de dois ou mais países
de seus artigos jornalísticos em poucos anos e você é cidadão
Marcha de Radetzky (1932)
sobre a antiga capital prussiana de todas as terras e ao mesmo conta a história de três
tempo de nenhuma, não é a mais gerações de uma família de
fácil das tarefas. ´E origem camponesa eslovena

Circulando entre Alemanha,


França e outros países europeus
nas décadas de 1920 e 30, Roth
teve uma amarga e desastrada
vida amorosa, manteve relações
intelectuais e de amizade com
escritores como Klaus Mann e Ângelo Emílio da Silva Pessoa é historiador e professor do Departamento
de História da Universidade Federal da Paraíba. Aventura-se pelas áreas
Stefan Zweig, viu seu horizonte de Teoria da História e Literatura. Tem publicado diversos artigos e os
profissional se fechar progressi- livros Conhecer Campinas numa perspectiva histórica (2005) e As ruínas da
vamente com a montante nazista tradição (2017). Mora em João Pessoa (PB).

34 | João Pessoa, abril de 2019 Correio das Artes – A UNIÃO


6 cultura popular

io
ilustr ação: tôn

La Ursas
eo
Carnaval Tradição
Lucas Santos Jatobá
Especial para o Correio das Artes

L
á vem uma imensa La Ursa acorrenta- capital paraibana, no encerramento dos
da, acompanhada de filhotes, subjugada festejos momescos.
pelo seu domador. Eis que, ao som en- As crianças, às centenas, vão ao de-
surdecedor de tambores e de outros ins- lírio, contagiando os adultos com tanta
trumentos de percussão da agremiação, excitação emanada das performances e
põe-se, a família dos ursos, a dançar fre- ritmos alucinantes das La Ursas, que se
neticamente, dirigindo-se à plateia que dirigem loucamente à garotada, onde
lota as arquibancadas e, também, espre- são fotografadas – selfies – quais astros
me-se junto aos gradis que margeiam a internacionais, seguindo seus desfiles
Avenida Duarte da Silveira, centro de irreverentes sob intenso aplauso do pú-
João Pessoa, em noite festiva e alegre na blico, e em meio aos jatos de espumas c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2019 | 35


c lançados dos sprays dos meninos que, surpreenden-
temente, não esboçam o menor pavor diante daqueles
bichos enlouquecidos, alguns com aparência feroz e
de olhos que parecem emitir faíscas.
Sucedem-se os blocos das La Ursas, com rigoroso
controle de tempo para as apresentações, nessa acir-
rada disputa que beira o surreal, promovendo a des-
pedida do Carnaval Tradição pessoense, versão 2019:
“Urso Alegria do Panda”, “Urso Amigo Batucada”,
“Urso Panda”, “Anos Dourados”, “Gavião”, “Sem Len-
ço nem Documento”, “Celebridade”, “Canibal”, “Santa
Cruz”, “Solitário” e “Reboliço”.
Trata-se, a La Ursa, de folguedo de riqueza esté-
tica, carregado de aspectos culturais e históricos de
eras e lugares longínquos, sendo de realçar, segun-
do estudiosos, sua imprecisa origem, remontando,
possivelmente, ao medievo, em que ursos reais eram
apresentados em feiras ou mafuás, ou mesmo em
rudimentares espetáculos circenses, em algumas
comunidades ciganas, sem falar nos costumes festi-
vos ou religiosos da Antiguidade, em que máscaras
representativas de animais eram comumente utiliza-
das em celebrações e rituais pagãos os mais diversifi-
cados. Nesse cadinho cultural, em que se acrescenta
a tradição ibérica, herdou o Brasil, principalmente o
Nordeste, componentes de tal manifestação artística,
que o tempo ajudou a transpor para o nosso, igual-
mente diversificado, Carnaval.
Bem ensinou o escritor Mikhail Bakhtin (in “A
Cultura Popular na Idade Média e no Renascimen-
to”), acerca da ilimitada sensação de democratização
vivenciada nessas festas carnavalescas tão antigas,
em que o povo assume, sem intermediários, o papel
de protagonista do seu tempo e lugar: “A festa con-
vertia-se na forma de que se revestia a segunda vida
do povo, o qual penetrava temporariamente no rei-
no utópico da universalidade, liberdade, igualdade e
abundância. Era o triunfo de uma espécie de libera-
ção temporária da verdade dominante e do regime
vigente, de abolição provisória de todas as relações
hierárquicas, privilégios, regras e tabus. Era a autên-
tica festa do tempo, a do futuro, das alternâncias e
renovações. O homem tornava a sim mesmo e sentia-
-se um ser humano entre seus semelhantes.”.
De forte apelo lúdico e humanista, na medida em
que fomenta, ainda, a interação entre os habitantes
de diferentes gerações dos bairros e das periferias, no
mais das vezes, de menor poder aquisitivo – unidos
desde a concepção e fabricação, sempre artesanal, dos
figurinos dos ursos e dos demais integrantes das alas,
até à realização dos ensaios e à apoteose do concurso
–, as La Ursas irmanam seus atores nesse saudável e,
até, romântico, projeto de muitas mãos, só para mos-
trar, gratuitamente, para o deleite de todos, a beleza e o
encantamento do produto dessa pluralidade artística,
ainda que por furtivos e mágicos minutos, registrados
a cada carnaval nos olhares de um povo sedento de
fantasias para encarar a dura realidade do cotidiano
brasileiro. La Ursas, patrimônio do povo! I

Lucas Santos Jatobá, articulista, é pós-graduado em Direito


Penal, e trabalha como supervisor jurídico no Tribunal
Regional Federal da 5ª Região - TRF5. Mora em Recife (PE).
Contato: jatobalsj@gmail.com.

36 | João Pessoa, abril de 2019 Correio das Artes – A UNIÃO


6 conto

ilustração: domingos sávio

Tresvario
José Caitano de Oliveira
Especial para o Correio das Artes

Ela se alojou na mente de Antônio. Subitamente. E o levou ao tresvario.


– Sinto-me atraído por misteriosa força - um cinturão imaginário; per-
guntas e respostas aprisionadas num campo magnético. Uma delas...
Como saberia eu explicar, por exemplo, que o infinito criou Deus. Como?
Ou se foi Deus o arquiteto do infinito?
Interessante! Ambos são invisíveis. Por quê?
Essa é minha dúvida: Eu também possuo algo invisível: a alma. Seria
possível ela conversar com Deus?
Antônio falava ao léu! Uma zoeira lhe obstruía a razão. Aí, no auge da
maluquice, no seu ponto axial, excêntrica ideia nasceu: encontrar Deus. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2019 | 37


c Depois de muito meditar, or- choque ou medicação agressiva. – Imagino. O mundo artístico
ganizando ideias, elaborando Boas conversas; dois antidepres- comentava.
prognósticos, horários, enfim sivos, enfim, o paciente reagia. Abel: - Eu abraçava o sol; to-
chegou à conclusão: impres- Satisfatoriamente. mava banho dentro dessa fo-
cindível descobrir a senha de Um acontecimento festivo, gueira. Música, mulheres, bebi-
acesso, ou seja: como recuperar terapêutico escrevera uma nova das e amigos.
a palavra perdida! Os maçons página em benefício da literatura – Muito show?
alquimistas a procuram; desde médica. De fato. Porque a causa Abel: - Agenda cheia!
remotos tempos. Isaac Newton originária da doença de Abel, Por um instante, reinou o si-
consumia arsênico, na esperança toda malignidade, tudo que lhe lêncio. Abel mexeu-se, ergueu os
de estagnar sua velhice. afetava o ego vinha das notas olhos, fê-los ir ao pé direito da
Antônio esboçou um plano, musicais. Do som da guitarra! sala; voltou a enfrentar o olhar
não totalmente racional; revela- A doutora escrevera na pri- de Antônio.
ções misteriosas; geralmente são meira página do livro dela: es- Abel: - A reportagem é sobre
conhecidas por meio da intuição. quizofrenia: Análise genética. minha obra literária?
Do estado de iluminação. “No mundo da loucura, tudo – Não. O mundo necessita de
Ele pensou: “Se o ser humano é festa!” conhecer sua obra religiosa, can-
foi feito à imagem e semelhança Durante a festa de confra- ções de louvores.
de Deus, deve de existir uma se- ternização natalina, um evento Abel: - Entendi! Compus vá-
nha, sim. Onde?” que reuniu funcionários, pa- rias canções. Deus é meu guia;
Passou noites torturando cientes, familiares, o pátio da amigo fiel!
seus desgovernados neurônios: colônia ficou pequeno; havia – Podemos começar a entre-
“Onde encontrar a senha?” bastante comida e refrigerante. vista?
Abriu o Novo Testamento; leu Uma banda fazia com que os Abel: - Não vai tirar nenhuma
João 8:32: “E conhecereis a ver- pacientes mostrassem seus ta- fotografia?
dade, e a verdade vos libertará”. lentos corporais. Até que... – Sim.
A verdade... Surpreendendo a plateia, Abel “Ele levantou-se; e arrumou a
“Magnifico! Por que não havia dirigiu-se ao palco; pediu para roupa, e ajeitou a posição do cin-
pensado nisso?” tocar uma música. Tocou e can- to, e desfez e refez o cadarço dos
Tornou a ideia um ponto fixo, tou uma canção de Roberto Car- sapatos, e transferiu o lenço ver-
isto é, tornando-a mais curiosa. los; disse que era o Rei, que tinha melho guardado na calça para
Lapidada... Concisa. vendido milhões de discos. E fi- o bolso da camisa, e alisou a so-
“Jesus conversara com Deus nalizou a apresentação homena- brancelha, e penteou o cabelo, e...”
no deserto. Nesse caso, a senha geando os Beatles. – Estou pronto.
estava dentro do espírito dele? Resultado: a colônia entrou em Clak; clak; clak; clak; clak;
Por que no deserto? Muito es- polvorosa; os alienados queriam clak; clak; clak; clak; clak.
tranho. Jesus tinha psicopatia? tocar, cantar, discursar. Aquela Enquanto batia as fotos, um pa-
Então...”. corporação de “artistas” pusera ciente deambulava pelo corredor
“A palavra perdida existe... fim ao evento. do hospital; conversava consigo
No homem louco?” Sim. Isso Injustamente. No mundo da mesmo: “Quanto custa a terra,
mesmo! loucura, tudo é festa! compadre? Diga o preço; pago à
Eis o testemunho de Antônio: Superado o episódio, a médica vista. Responda; não vai tumul-
– Era meio dia; cheguei ao concluiu o laudo: Egocentrismo tuar nossa amizade. Compro o
hospital psiquiátrico Juliano melomaníaco. Causa patológica: imóvel, se for porteira fechada; in-
Moreira. Fazia calor insuportá- o som das notas musicais. clusive, gaiolas e passarinhos”.
vel. Havia agendado entrevista Antônio: Ouvi da doutora Ana Antônio esboçara gesto de
com um paciente, o menos ma- Lúcia. curiosidade. Abel: - Tá na hora de
luco do complexo; baixa agres- “Deram-nos uma sala de re- ele tomar o remédio. Em seguida
sividade. Chamava-se Abel. Tez cepção; duas poltronas peque- riu, riu, escandalosamente.
alva; estatura razoável; cabelos nas, dispostas à frente da maior, “Eu pensei: Tá na hora do re-
devastados. Encontrava-se em formando um triângulo equilá- médio de Abel”.
tratamento; fazia oito meses. tero. Na parede do fundo, pendia – Como surgiu a inspiração
Abel sofria de estranhíssima uma tela; nesta, anjos passean- para compor música religiosa?
insanidade: Transtorno compul- do no paraíso. Fui apresentado Abel: - Ocorreu-me numa ma-
sivo egocêntrico; adquirido nas ao paciente; a doutora falou que drugada de inverno. Encontrava-
relações sociais; demência par- eu era jornalista, que ia publicar -me em Paris, em quarto de ho-
cial; patologia genética. uma reportagem sobre os me- tel, na Praça da Concórdia. De
Doutora Ana Lúcia acompa- lhores cantores do mundo. Ele repente, escutei uma voz que en-
nhava o paciente e estudava a olhava-me; ajeitava os cabelos; chia o ambiente de som metálico;
doença dele; redigia relatórios, aprumava o tórax; alinhava a era contundente e rouca: - Não
efetivava pesquisas, intercam- gola da camisa. Depois, falou: ‘É te assustes. Eu sou Deus! Conse-
biava informações com colegas um prazer voltar às páginas do gue me ver? Claro, apenas meus
da psiquiatria. O fato é que, dado jornal’”. Ficamos a sós. olhos. Minha matéria: Univer-
a sutileza da demência, às vezes; – Dia bastante quente! so. E continuou: jamais comen-
tênue e próxima à idiotice, não Abel: - Sim. Ideal para ir à te sobre nosso encontro. Agora,
se lhe aplicava tratamento de praia. Sinto saudade do meu iate. preste atenção: Tornar-te-ei um c

38 | João Pessoa, abril de 2019 Correio das Artes – A UNIÃO


c célebre homem. Dar-te-ei múlti- cia, convivem eles com Deus.
plos talentos: repórter; jornalista; Entrei em conflito, vítima de
músico; cantor; escritor; mestre obsessivo desejo de querer encon-
de cerimônia; político; apresen- trar Deus em algum sinal numé-
tador de televisão... Mas não se rico. Apenas acumulei decepções.
esqueça de compor canções de Mas não desisti; passei a frequen-
louvores, de louvores... tar um centro espírita; o intuito
“Os olhos dele se apagaram. era de ouvir o que diziam as “En-
Corri até à varanda; enxerguei tidades”; vozes do além! Indaguei
dois pontinhos de luz subindo, a uma delas; e a resposta foi cate-
subindo e brilhando”. górica: - Depois da morte, enfim
– Deus apareceu mais vezes? encontrará o Senhor!
Abel: - Sim. Eis a questão: A morte. Aí,
Executou um piparote com a pensei: Morrer deve de ser bom;
mão direita. Reiniciando a con- profícuo ato; extraordinária
versa, ouvi algo diferente: uma transmutação. Verdade. Dois
voz arrastada, chiada, acústica. vencedores: a terra e o cosmo. A
Uma melodia carioca! terra se alimentando da matéria
– Eu nasci em um ponto do orgânica; o cosmo ganha mais
cosmo onde existe uma mon- elasticidade, sendo a luz liberada
tanha de gás gelado, de hélio, do meu corpo. E de milhões de
hidrogênio, amônia e metano; almas desprendidas...
bilhões de trilhões de átomos de Era sexta feira, 13 de agos-
carbono; situado a 600 anos luz to. Decidira morrer, sucumbir
de Plutão. Nesse lugar, asteroi- cortando meu pulso direito. E
des bombardeiam a superfície assim o procedi. O sangue jor-
do planeta, provocando grande rava; tenuamente, minha vista
explosão de poeira de inefável escurecia, escurecia; contudo,
brilho; radiando muita luz. Ou sentia uma fraqueza saborosa,
seja: eu nasci no equador do uni- um como quando o cansaço
verso, reduto cósmico dos gênios empurrando os olhos, fechan-
da humanidade. Deus os distri- do-os para bom sono. Imagi-
buí pelos quatro cantos do mun- nei ter conseguido completar o
do. Compreendeu? suicídio; em vão!
– Lindo. Parabéns. Encontrava-me no quarto
Você adquiriu fama na Paraíba? 23, da colônia Juliano Moreira;
Abel: - Grande. O povo me ado- na ocasião, lia Maiakovski, um
ra; ama meus eventos sociais. Há poema (a Sierguei Iessiênin).
aqueles invejosos, analfabetos, “Você partiu, como se diz, para
que não sabem escrever, cantar, to- o outro mundo. Vácuo... Você
car. Isso é comum; ocorre em todo sobe, entremeado as estrelas.
lugar. E depois que fui eleito... Nem álcool, nem moedas. Só-
– Eleito? Cargo público? Pesquisei o enigma de cada nú- brio. Voo sem fundo”.
Abel: - Não. Um cargo asso- mero. Em Pitágoras, isto é, a face – Bom dia, Antônio. Trago-
ciativo. Conquista meritória. Evi- mística dos números; a sinfonia -lhe boa notícia: Alta. A depres-
dente: contei com ajuda de agen- dos números com as notas mu- são cedeu; vá para o aconchego
tes sociais. Isso não sombreia sicais; o resumo filosófico da sua da sua família.
minhas qualidades de intelec- obra: Tudo é matemática. “Estando em casa, não mais
tual. Vamos evitar esse assunto... Mas aquilo que mais me fas- saberia juntar número algum,
Algo mais deseja perguntar? cinou, muito me encheu o espí- se para somar ou multiplicar; de
– Sim. Se você fala com Deus, rito foi constatar o intercâmbio, nada serviriam diante de tantos
então interage com o infinito. o consórcio das notas musicais afagos, beijos e cuidados que re-
Como fazê-lo? com a numerologia. Incrível! cebi da minha esposa.”.
Abel: - Através dos números: 3 Eram duas visões; ambas encan- “Quão alegre meu espírito!
e 18; dissecados. Estudo criterio- tavam meu cérebro: Abel e a do Eu enxergava nos olhos de
so sobre o perneta: o 4. Ainda: O filósofo grego. Do primeiro, a Maria a luz que procurava:
e 13. Feita essa operação, decifre; expressão: - Decifre os números. uma estrela rindo; uma nuvem
encontrará a senha! Pitágoras: - Tudo é matemática. cantando; um pingo de chuva
“A conversa foi interrompi- Realmente. Porque os números lubrificava meu espírito; o uni-
da. Abel dava sinais de surto; escondem uma magia, indivi- verso regurgitando ondas de
cantava compulsivamente, mú- dualmente ou associados! Conta- amor. Enfim:
sica de louvores”. gem infinita. Em tal circunstân- Era Deus!” I
“Comecei estudar os números
sugeridos por Abel, e me dei de
interessado pelos pensadores José Caitano de Oliveira é advogado e escritor. É autor, entre outros livros, de
Delirium Tremens, Maçonaria e Esoterismo, O Pastor e o Verbo, De liberdade não
gregos: Pitágoras e Heráclito. se morre e Saga de 1930 e o Doido da Parahyba. Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2019 | 39


6 conto

A garota
do vigésimo andar
Carlos Alberto Azevedo
Especial para o Correio das Artes

Para Ignácio de Loyola Brandão

Meu nome é Humberto


Meu nome é Humberto
Meu nome é Humberto
Sou roteirista e contista.
Minhas duas paixões: Ilona e Cinema.

N
o momento, estou com um roteiro na cabeça: A garota do vigésimo
andar, com certeza será o meu último grande filme, ouviu? Me sin-
to o próprio Mick do filme Youth, de Paolo Sorrentino. Pretensioso,
eu? Ora, ora, o senhor não sabe do que eu sou capaz. Dizem as
más-línguas que sou o último erudito do Recife.
Tenho oitenta anos e estou apaixonado loucamente por uma ga-
rota de dezoito anos do vigésimo andar do prédio onde moro. Foi
tudo inesperado, aconteceu, simplesmente aconteceu — paquera-
mos quase dois anos, com flertes profundos nos elevadores, os
abraços vieram muito depois. Ouviu? c

40 | João Pessoa, abril de 2019 Correio das Artes – A UNIÃO


c Neste verão, então, a nos- Não sou pedófilo apenas na varanda do apartamento.
sa ligação amorosa se firmou. aprecio as ninfetas. Quando Olhando o mar, olhando o mar.
Afinidades eletivas brotaram. digo ninfetas, entenda não são Minha Ilo não gosta de chi-
Tudo levar a crer que houve menininhas, são garotas de nelas, gosta mesmo de expor
uma conspiração do univer- dezoito anos, todas de maior seus pezinhos nus, belos, sen-
so para que a nossa inusitada idade, senhoras de si mesmas suais, atrevidos. Me recebia
história de amor acontecesse. e de suas atitudes. Garotas que sempre assim: descalça — eu
Nem ela nem eu fizemos ne- “trincam e tragam...” ficava louco; pés e joelhos sem-
nhum esforço nesse sentido. O Mesmo assim o senhor me pre foram meu fraco.... Como?
senhor não acredita? Eu tam- considera pedófilo? Não foi Me acha fetichista!!! Velho sur-
bém não, mas desconfio das isso que o senhor disse? Ora, do não me leve a mal, mas uns
astúcias do acaso. Isso teria ora, o senhor não entende mais pés belos, uns joelhos escul-
de acontecer um dia. Digo: há o mundo, os homens mais ve- turais golpeiam o meu desejo.
uma diferença abissal de idade lhos apreciam muito as nin- Puro tesão, sabe?
entre nós dois. Ah, a idade, a fetas. Quase todos eles têm O senhor também é cinéfilo,
idade... Entenda, senhor, que uma ninfeta de verão escondi- na certa deve ter assistido ao
posso fazer com uma garota da nas suas fantasias eróticas. filme O joelho de Claire, de Éric
de dezoito anos? Amá-la plato- O quê?... Sacanagem? De fato, Rohmer. Tem uma cena anto-
nicamente!!! Talvez sim, talvez o senhor não entende mais o lógica: um diplomata abraçan-
não. Mas onde anda o demônio mundo. do o joelho de uma assanhada
da libido? Tenho ainda desejo Ah, senhor, essa minha pai- ninfeta — Claire. O quê?....
sexual. Muito tesão mesmo, xão é muito mais do que um Perverso?! Não acho isso per-
ouviu? Não acredita?... pesadelo, é um “sonho dentro verso, acho poético e erótico.
Sempre fui sensível à bele- de um sonho” — lá vem Poe Perverso foi Auschwitz, ouviu?
za — assim, o objeto do desejo perturbando os meus pensa- Tenho uma fixação por joe-
aflora facilmente em mim. A mentos. lhos e pés de ninfetas (Macha-
libido não envelhece nunca. Ah, senhor, quero esquecer do de Assis não tinha por bra-
Ouviu? Já assistiu ao filme Fa- Ilona. Não suporto mais esta ços, então?...) Que posso fazer,
tal, com Penélope Cruz e Ben paixão. Loucura, loucura, lou- é da minha natureza. O quê?
Kinsly? Ele resume a minha cura. Mas como esquecê-la? Me acha animalesco, sórdido...
história com Ilona. A beleza Como, hein? O senhor talvez vá lá, vá lá, mas não me julgue
da jovem Consuela Castillo conheça o poema de Yehuda pelos seus padrões morais vi-
cega um professor bastante Amichai em que ele diz assim: torianos.
idoso, ardendo de amor pela “Esquecer alguém é como/ Adoro os pés de Ilo, lindos,
ninfeta erótica. esquecer de apagar a luz no transpiram sensualidade, mui-
Minha Ilona tem dezoito quintal/ e deixá-la acesa tam- ta sensualidade. Não abro mão
anos, repito. “Dante apaixo- bém de dia/ mas isso também desse encanto erótico, ouviu?
nou-se loucamente por sua é lembrar/ pela luz”. Senhor, pedi a sua valiosa aju-
Beatriz quando ela tinha nove Da janela do apartamento da: ser meu confidente, porque
anos. Petrarca se apaixonou dela, no Edifício Nápoles, vejo não aguento mais viver essa
loucamente por sua peque- o mar de Boa Viagem. Mar paixão avassaladora. Necessito
na Laura, ela era uma ninfe- cheio de tubarões, devorando de luz, mais luz, para iluminar
ta loura de doze anos. Justine os banhistas, devorando os ba- as trevas ardentes da minha
de Sade tinha também doze nhistas — uma paisagem cruel paixão.
anos”. Estes são verdadeira- que poderia ser uma tela de Me diga, senhor o que devo
mente pedófilos. Hieronymus Bosch. fazer para me libertar dessa
Pensei: o velho surdo nem Ilo descalça, sempre des- obsessão por Ilona?
sabe que li tudo isso em Loli- calça, sensualmente descalça - Mate-se. I
ta, de Nabokov. Não gosto de
Nabokov. Era um conservador
de primeira linha, indiferente
a problemas sociais. Definia O Carlos Alberto Azevedo é antropólogo e escritor. Morou vários anos em Recife
Capital como “fruto da insônia PE). Conviveu com Gilberto Freyre, Mauro Mota, Alberto Cunha Melo e Amaro
e da enxaqueca”. E chamava Quintas. Em 1974 deixou o país e exilou-se voluntariamente em Berlim. Foi
docente de Literatura Brasileira na Universidade Livre de Berlim. Em 1985,
Karl Marx de “rabugento bur- publicou Tríade - Fragmentos e Histórias, com apresentação de Jorge Amado
guês”. Ele sim, que não passa- e prefácio de Lygia Fagundes Teles. Seu primeiro romance surge em 1994, os
va de um burguês rabugento Herdeiros do Medo, editado em Portugal (Lisboa). No ano seguinte publica uma
novela picaresca: Meu nome é ninguém (Lisboa). Retornou ao Brasil em 2000 e
e ocioso: caçava borboletas na fixou residência em sua cidade natal, João Pessoa. Desde 2000 é antropólogo do
Suíça. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (Iphaep).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, abril de 2019 | 41


6 conto ilustração: domingos sávio
tão esganiçadas que me deixa-
vam confuso, sem saber se era
a do tal cantor ou dos seus fãs.
Eu não aguento o barulho desses
meninos, Cláudio! Fale nova-
mente com o síndico, pedi irrita-
do. Tenha calma, seu Jonas, isso
passa. É uma fase, logo-logo eles
terminam o curso deles na uni-
versidade e vão embora. E nem
é tão alto assim, seu Jonas. Mas,
não se aperreie não, eu vou falar
novamente com o síndico, tá cer-
to? Ele falava com uma amabili-
dade tão paternal que eu mesmo
chegava a ficar com vergonha do
meu nervosismo. Um velho todo
trabalhado na rabugice, como eu
já ouvi os garotos falarem sobre
mim, certo dia. Rabugento... Ra-
bugento, eu? Essa é boa! Sou até
calmo. Mas eles bem que podiam

Pabllo
colaborar para o meu bom hu-
mor. Podiam sim, deveriam! Res-
peitar os outros saiu de moda faz
tempo, que dirá os mais velhos
como eu. Se eles ajudassem, eu

Vittar poderia até gostar deles, mesmo


sem conhecê-los. Nunca nem se-
quer nos cruzamos ou pegamos
o mesmo elevador. Não sei nem
Lizziane Negromonte Azevedo seus nomes. Antes que haja con-
Especial para o Correio das Artes
testação, digo logo, não é preci-
so conhecer alguém para gostar
dele. Simpatia e antipatia não

N
ão tinha dia que Pabllo Vittar não invadisse minha casa. pedem apresentação, vão toman-
Um apartamento pequeno, que se não era um ovo era o do logo os seus lugares e pronto.
próprio cu da galinha, onde eu morava sozinho. Eu não Fim de papo!
tinha idade nem paciência para aquele berreiro desen- Quando eu me lembro dessas
toado. Um alarido medonho! No meu tempo, música era coisas, me dá um negócio esque-
coisa mais refinada, exigente. E ainda deve ser, toda arte sito no coração. E olhe que eu
o é. Devem ser esses tempos de hoje, tudo de pernas pro não sou homem de frescura não,
ar. Sei lá. Me dá um cansaço só de tentar entender o gosto nunca fui. Mas... sei lá! Não sei
dos outros. Nem quero. Prefiro me restringir a reclamar pra que reclamei tanto deles. E já
ao porteiro do prédio, o Cláudio. Bom dia, seu Jonas!, ele faz um ano! Um ano que eles fo-
sempre me recebe sorrindo. Deve achar graça na minha ram embora e que o apartamento
implicância com os meninos do outro prédio. Ah... esque- está vazio, escuro. O silêncio frio
ci de explicar, é a idade, não leve à mal. Meu apartamento e indiferente daquelas torres de
faz parte de um conjunto de quatro prédios, um de fren- prédios ampliado. Tá na vida que
te para o outro. O que me permite ver um pedacinho de pediu a Deus, né, seu Jonas?! De-
nada da rua, entre os dois prédios que ficam na frente da pois que aqueles meninos foram
minha varanda. Quando vi o tamanho da varanda, logo embora tá um silêncio que Deus
que eu cheguei aqui, comprei uma rede. Grande merda. me livre. Agora eu vejo que o
Nunca usei. Faltava a privacidade necessária, dávamos senhor tinha razão mesmo. Isso
uns com a cara dos outros, e bem perto. É justamente em aqui agora tá mais pra cemitério.
um desses dois prédios que moram os rapazes, que são Cláudio falou enquanto se per-
verdadeiras cópias pioradas do Pabllo Vittar, que eles não signava. Não respondi, agarrado
largam nem por um dia. Eles, ao contrário de mim, não ao pacote que trazia nas mãos.
saem da varanda. Um na rede, outro no chão, passam a Oculto entre remédios e meias,
noite ouvindo música, conversando e rindo, com vozes Pabllo Vittar. Ele ficaria. E

Lizziane Negromonte Azevedo é escritora, advogada e editora do Nem Te Conto


– Jornal Literário. Mora em Monteiro (PB).

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