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Alan Hollinghurst - A Linha Da Beleza
Alan Hollinghurst - A Linha Da Beleza
ALAN HOLLINGHURST
ASA
Digitalização e Arranjo
Agostinho Costa
The Observer
"Se daqui a cem anos alguém quiser saber como é que as pessoas
eram, como falavam, como se avaliavam e julgavam a elas
próprias e aos outros, o melhor que tem a fazer é ler este
romance"
Evening Standard
"Uma leitura que é puro prazer"
New Statesman
A Linha da Beleza
Um admirável romance sobre a perda da inocência, galardoado
com o Man Booker Prize de 2004.
A LINHA DA BELEZA
TRADUZIDO DO INGLÊS
ASA
GRAFIASA,
PORTUGAL
PORTO - PORTUGAL
Tel. 22 6166C30
Fax 22 6155346
E-mail: edicoes@asa.pt
Internet: www.asa.pt
Paginação - Rodapé
A.H.
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mas que, agora, sem mangas, sem costas, sem pernas, fazia
lembrar tudo menos roupa. Nick sentou-se ao lado dela, abraçou-a
e afagou-a como que para a aquecer, embora ela estivesse tão
quente como uma criança febril. Ela deixou-se abraçar e afagar,
mas, depois, afas-tou-se um pouco. - O que é que eu posso fazer? -
perguntou Nick e apercebeu-se de que também ele queria ser
confortado. No profundo e luminoso espaço do espelho, encontrou
dois jovens mergulhados numa crise ainda obscura.
- Podes tirar as coisas do meu quarto - pediu ela. - Sim, leva tudo
lá para baixo.
- Está bem.
Nick avançou pelo corredor e entrou no quarto dela, onde, como
de costume, as cortinas estavam fechadas e o ar empestado de
tabaco. A densa gaze vermelha que envolvia o abajur desprendia
um cheiro perigoso e coava a luz por sobre um caos de roupa de
cama, roupa interior, LPs. Gavetas e armários estavam todos
revolvidos - o assalto imaginário podia ter atingido ali o seu clímax
frustrado. Nick perscrutou o espaço à sua volta e, apesar de estar
só, mimou, com algum exagero, uma presteza jovial para controlar
a situação. Embora a sua cabeça estivesse a funcionar de um
modo rápido e responsável, Nick apegava-se aos seus últimos e
escassos momentos de ignorância. Emitiu um som baixo e grave
de concentração enquanto percorria com os olhos a mesa, a
cama, o lixo que se acumulava sobre a velha e encantadora arca
de nogueira. Deu com uma bacia de rosto no armário do canto e
com uma meia dúzia de objectos que Catherine espalhara pela
tijoleira à volta do armário como se fossem instrumentos antes de
uma operação: uma pesada faca de trinchar, um cutelo recurvado
com cabo duplo, um par de facas bem amoladas para cortar filetes
e os dois pequenos e sólidos espetos que Nick vira Gerald usar
para prender e arrancar um pedaço de uma carne qualquer, quase
como se esta pudesse, ainda assim, escapar-lhe. Juntou
desajeitadamente os objectos e, armado de cuidados, levou-os
para baixo, com um novo e deprimido respeito por eles.
Quanto a ligar para quem quer que fosse, Catherine mostrou-se
categórica: sugeriu que aconteceriam coisas muito piores se ele o
fizesse. A incerteza de Nick quanto a esta ameaça deixou-o sem
rumo certo. Limitava-se a deambular. A sua ignorância quanto ao
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que havia de fazer era sinal de uma ignorância muito mais vasta
acerca do mundo a que recentemente chegara. Imaginou o choque
e a aflição dos pais quando descobrissem e viu a mancha no
cadastro da sua vida, ainda incipiente, com os Fedden. No fim de
contas, Nick não era digno de confiança: coisa que ele sempre
suspeitara, mas eles não. Temia estar a proceder mal, mas, ao
mesmo tempo, receava agir. E se tentasse encontrar Toby? Mas
Toby, para Catherine, era uma nulidade, alguém que, quando
muito, ela tratava com uma polidez desatenta. Nick estava a
moldar a história na sua cabeça. Persuadiu-se de que o desastre
fora uma possibilidade, ou mesmo quase uma certeza, mas que
acabara por ser rejeitado. Houvera um ritual de confrontação que
durara uma hora, um minuto, toda a tarde - e talvez tivesse sido
apenas isso, um ritual. Agora que Catherine caíra num silêncio e
numa passividade quase totais (limitava-se a bocejar, e o que ela
bocejava), Nick perguntava-se se o episódio não teria já sido
levado para longe e escondido e isolado por um qualquer
mecanismo particularmente eficaz. Era possível que o seu próprio
regresso a casa tivesse, desde o primeiro instante, desempenhado
um papel de relevo na trama que ela urdira. Do que não havia
dúvida era que, agora que estava de volta, ser-lhe-ia muito difícil
rejeitar os pedidos dela. - Por amor de Deus, não me deixes só. -
Ao que retorquiu - Claro que não - e sentiu a ocasião a fechar-se
sobre ele, como quatro paredes que, vindas de muito longe, se
contraíam cada vez mais, ameaçando sufocá-lo. E isso por causa
de uma outra coisa de que Toby lhe falara, naquele dia junto ao
lago: há alturas em que ela não pode estar só, em que ela tem de
ter alguém a seu lado. Nessa altura, Nick não desejara outra coisa
senão partilhar os deveres fraternais de Toby, mergulhar a fundo
no difícil romance da família. E, agora, ali estava ele, com o seu
romance pessoal prestes a desenrolar-se no bar das traseiras do
Chepstow Castle, e não é que ela o escolhera precisamente a ele
para lhe fazer companhia? Catherine não era capaz de explicar
porquê, mas a verdade é que só ele é que servia.
Nick levou-a para a sala de estar e ela escolheu uma música. Ou
melhor, foi até ao armário do gira-discos, tirou um disco sem ver o
que era e pôs o disco no prato. Parecia querer dizer que era capaz
de agir, mas que ainda não estava em condições de reflectir e
decidir. A música surgiu com um desagradável rangido. O braço
descera no
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*2. Para variar, Gerald cita Kipling, The Cat Who Walks by Himself.
(N. do T.)
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para isso que ali estava, e Nick sorriu e corou, o que fez com que
Leo sorrisse também, por um momento.
- Vejo que estás a deixar crescer a barba - disse Nick.
- E... peles sensíveis... é um banho de sangue sempre que me
barbeio. Literalmente - disse Leo, com um rápido relance que
mostrava a Nick que ele gostava de deixar as coisas bem claras. -
Depois, quando não me barbeio, fico com pêlos encravados, e
então é que é uma porra que só visto, tenho de puxar as pontas
dos malditos pêlos com um alfinete. - Com a sua mão pequena e
fina, afagou o restolho que lhe cobria o queixo e Nick viu que ele
tinha aquelas minúsculas espinhas provocadas pelo
escanhoamento diário e que já havia entrevisto noutros homens
negros. - Normalmente, não faço a barba durante uns dias, durante
quatro dias, por exemplo, ou, digamos, cinco, e só depois é que me
barbeio como deve ser: sempre é uma maneira de uma pessoa
evitar problemas.
- Pois... - disse Nick, e sorriu, em parte porque estava a aprender
algo de interessante.
- Mesmo assim, a maior parte dos homens ainda me reconhece -
disse Leo, e piscou-lhe o olho.
- Não, não era disso que eu estava a falar - disse Nick, que era
demasiado tímido para explicar a sua própria timidez. O seu olhar
deslizava num vaivém entre a braguilha folgada de Leo e a
impecável almofada rasa do cabelo e tendia a evitar o seu
atraente rosto. Dava toda a razão a Leo quando dizia que era
atraente, mas a palavra não cobria, não, de modo nenhum, o
contínuo choque provocado por aquilo que nele havia de belo, de
estranho, e até de feio. No espírito de Nick, a expressão «a maior
parte dos homens» foi ganhando lentamente sentido. - De qualquer
modo... - disse, e bebeu um gole rápido que lhe deixou na boca
uma tranquilizante sensação de ardor. - De qualquer modo,
imagino que tenhas recebido montes de respostas. - Por vezes,
quando estava nervoso, fazia perguntas cujas respostas preferiria
não conhecer.
Leo deu um pequeno e cómico assopro de exaustão. - E... pois,
mas sucede que eu não respondo a algumas delas. Para certas
pessoas, isto não passa de uma brincadeira. Não mandam foto ou,
se mandam, têm um ar horrível. Ou então têm noventa e nove
anos. Recebi mesmo uma carta de uma mulher, lésbica, sem
dúvida, pro-pondo-me que fosse o pai do filho dela. - Leo franziu o
sobrolho,
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A sua coragem não dava para tanto, para aquela noite, chegaria;
para falar do deputado, é que nunca. Um deputado Tory
ensombraria o encontro como um pau-de-cabeleira indesejado e
Leo pegaria na sua bicicleta e deixá-los-ia, a ele e ao pau-de-
cabeleira, pespegados no passeio. Talvez pudesse dizer qualquer
coisa sobre a família de Rachel, caso fosse necessário dar alguma
explicação. Na realidade, porém, Leo esvaziou o seu copo e disse:
- Posso oferecer-te outra?
Nick acabou apressadamente a sua bebida e disse: - Obrigado.
Outra Coca-Cola, talvez não. Se calhar, vou pedir para misturarem
um pouco de rum.
Meia hora depois, Nick caíra numa espécie de transe desinquieto,
provocado não só pela presença do seu novo amigo, mas também
pelo sentimento, enquanto o céu escurecia e os candeeiros da rua
passavam do rosa ao ouro, de que a noite ia ser um êxito. Sentia-
se nervoso, um tanto esbaforido, mas, ao mesmo tempo, eufórico,
como se lhe tivessem tirado de cima dos ombros uma
responsabilidade solitária. Uns quantos lugares ficaram livres na
ponta de uma mesa de piquenique com bancos fixos e eles
sentaram-se, inclinados um para o outro como se estivessem a
jogar a um qualquer jogo invisível de que se tinham em parte
esquecido. Para Nick, o à-vontade e o conforto que o rum lhe
proporcionava eram elementos indissociáveis da intimidade que,
sentia, estava a tornar-se tão profunda como a penumbra.
Deu por si a perguntar-se como é que eles pareceriam e soariam
aos olhos e ouvidos das pessoas à sua volta, do casal ao lado
deles, por exemplo. Com a chegada da noite, tudo estava a ficar
mais barulhento, com uma vaga sensação de ameaça
heterossexual. Nick imaginava que os outros encontros de Leo
teriam decorrido em bares gays, mas ele rejeitara
categoricamente uma tal hipótese - seria uma batalha, uma
provação mais. Agora, lamentava não dispor da liberdade que teria
tido num sítio desses. Queria acariciar o rosto de Leo e beijá-lo,
com um suspiro de rendição.
Não disseram nada de muito pessoal. Nick sentiu que as suas
actividades não interessariam a Leo, o qual também não pegou
nas diversas e discretas pistas que ele foi lançando acerca da sua
família e antecedentes.
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ainda que a discrição e o espírito naturalmente crítico de Nick o
impedissem de retorquir no mesmo estilo («Eu sou aquele género
de pessoa que gosta mais de Pope do que Words-worth», «Sou
louco por sexo, mas ainda não provei»). Era um elemento que, se
possível, contribuía ainda mais para a excitação da noite. Ele não
estava ali para partilhar intuições, rapidamente ecoadas, com um
amigo de Oxford. Adorava a vigorosa autoconfiança do homem que
tinha engatado; e, ao mesmo tempo, no seu jeito silencioso e
superior, parecia-lhe encontrar em cada pequeno excesso, em
cada pequena bravata, a denegação exterior de uma dúvida
íntima.
Com a terceira bebida, Nick sentiu-se ainda mais quente e meio
entesado e desatou a olhar descaradamente para os lábios e o
pescoço de Leo e imaginou-se a desabotoar-lhe a reluzente camisa
azul de mangas curtas que, de tão justa, toda se arrepiava sob os
seus braços. Com a mão a fazer de pala, Leo protegeu os olhos por
um segundo, um sinal secreto e irónico, e Nick perguntou-se se
aquilo significava que Leo já se tinha apercebido da sua
bebedeira. Não tinha a certeza se devia responder de algum modo
ao sinal, de maneira que pôs um sorriso arreganhado e bebeu mais
um gole rápido. Tinha a sensação de que Leo bebia Coca-Cola
desde criança e de que, para ele, beber Coca-Cola era
simplesmente um facto da vida - um dos muitos factos da vida que
passam praticamente despercebidos e que são impermeáveis à
escolha e à crítica. Em contrapartida, na sua família, beber Coca-
Cola era uma das mil e uma coisas que suscitavam uma veemente
reprovação - nunca naquela casa houvera uma lata ou uma garrafa
de Coca-Cola. Leo nunca poderia ter adivinhado, mas o copo na
mão de Nick era um sinal secreto de submissão e, ao fim de algum
tempo, a doçura acidulada da bebida, como um sabor artificial
num medicamento, parecia fundir-se com as outras experiências
da noite numa complexa impressão de escuridão e liberdade. Leo
bocejou e Nick olhou de relance para aquela boca, para aqueles
dentes brancos cintilantes que nenhuma sacarina conseguiria
corromper e que marcavam - imaginava humildemente Nick - um
desdém quase racial pelos seus chumbos e dentes demasiado
inclinados. Por um momento, pousou a mão no antebraço de Leo e,
depois, desejou não o ter feito - o gesto levou Leo a olhar para o
seu relógio.
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- Está a fazer-se tarde - disse ele. - Não posso voltar muito tarde.
Nick baixou os olhos e murmurou: - E tens de voltar? - Tentou
sorrir, mas sabia que uma súbita ansiedade se cravara no seu
rosto. Pôs-se a mexer no copo húmido, a movê-lo em círculos
sobre o tampo grosseiramente aplainado da mesa. Quando ergueu
de novo os olhos, verificou que Leo o fitava com um ar céptico,
uma sobrancelha arqueada.
- Queria dizer, voltar para a tua casa, claro - disse.
Nick sorriu e enrubesceu com a perfeição da emenda, como uma
criança que, depois de muito implicarem com ela, se vê de súbito
livre de tormentos e premiada. Mas, depois, teve de dizer:
- Não creio que possamos...
Leo olhou-o bem nos olhos. - Não tens espaço que chegue lá em
casa?
Nick estremeceu e aguardou, a verdade é que não se atrevia, não,
não podia fazer isso a Rachel e Gerald, além de inseguro era
ordinário, as consequências desfilavam já à sua frente, toda
aquela feliz rotina, assente numa consonância risonha, efusiva,
definharia para sempre. - Não creio que seja possível. Não me
importo de ir para a tua casa.
Leo encolheu os ombros. - Não é prático - disse.
- Eu posso apanhar o autocarro - disse Nick, que estudara o A-X de
Londres em absortas conjecturas sobre a rua de Leo, o bairro, as
igrejas históricas, os acessos aos transportes públicos.
- Não... - Leo desviou o olhar com um sorriso relutante e Nick viu
que ele estava embaraçado. - A minha velha está em casa. - Este
primeiro toque de timidez e vergonha, e a ironia que tentava
encobri-lo, claramente londrina, mas também antilhana, fizeram
com que Nick desejasse atirar-se a ele e enchê-lo de beijos.
- Ela é profundamente religiosa - disse Leo, com um breve risinho
desolado.
- Estou a ver... - disse Nick. De maneira que para ali estavam eles,
dois homens numa noite de Verão sem sítio nenhum a que
pudessem chamar seu. Havia nisso uma espécie de romance. -
Tive uma ideia - disse ele, hesitante. - Se não te importares...
hum... de passar um bocado ao ar livre...
- Não estou interessado - disse Leo, olhando, num jeito indolente,
por cima do ombro.
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à volta do pescoço de Nick, para o puxar mais para si. - Seja como
for... - Enquanto sussurrava as palavras, o seu rosto foi-se
encostando de lado ao rosto de Nick e a inimaginável macieza dos
seus lábios roçou as faces e o pescoço de Nick enquanto este
suspirava violentamente e percorria com uma mão as costas de
Leo, para cima e para baixo, para cima e para baixo. A sua boca
procurou a boca de Leo e as duas bocas encontraram-se e
precipitaram-se num beijo. Nick sentiu o beijo simplesmente como
a desamparada confissão de uma necessidade e, para ele, o que
havia realmente de incrível naquilo tudo era a revelação da
necessidade de Leo, bem evidente na força e na perfeição com
que o manobrava. Afastaram-se, Leo com um vago sorriso nos
lábios, Nick arquejante e atormentado apenas pela esperança de
que voltassem a unir-se e a beijar-se.
Beijaram-se por mais um minuto, dois minutos. Nick não estava a
contar o tempo, meio hipnotizado pelo luxuriante ritmo, pela seda
generosa dos lábios de Leo e pela espessa insistência da sua
língua. Se estava tão ofegante era por causa daquela torrente de
reciprocidade, pelo facto de aquele homem estar a acariciá-lo, a
beijá-lo, a amá-lo. Nada no bar, naquela conversa sem jeito,
chegara sequer a sugerir que tal pudesse acontecer. Nick nunca
vira aquilo descrito num livro. Sentia-se dolorosamente pronto e
completa-mente impreparado. Sentiu a persuasiva carícia de Leo
na sua nuca, os dedos deambulando pelos caracóis, e, depois,
ergueu a sua outra mão para afagar a cabeça de Leo, tão
esplendidamente estranha nos seus duros e ásperos ângulos e na
seca e densa firmeza do cabelo. Pensou ter captado todo o sentido
do beijo, mas também as suas limitações - era um instinto, um
meio de expressão, de clamar uma paixão, mas não de a
satisfazer. De modo que a sua mão direita, que prendia levemente
a cintura de Leo, libertou-se e, ainda cheia de dúvidas acerca da
sua liberdade, desceu e deambulou pelas nádegas cheias de Leo e
apalpou-as e apertou-as através da ganga, macia de tão usada. A
erecção de Leo, um nada enviesada, espetava-se contra as virilhas
de Nick e parecia dizer-lhe, de uma forma cada vez mais clara,
para ele fazer o que queria, para meter a mão dentro das calças e
dentro dos pequenos slips. O dedo do meio avançou pelo fundo
vale, tão macio como o de um rapazinho, a ponta do dedo forçou e
abriu mesmo um pequeno caminho entre as pregas secas
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- Se Lionel está à nossa espera para almoçar - disse Gerald -, será
melhor pararmos num sítio qualquer para lhe telefonarmos. Vamos
chegar atrasados.
- Oh, Lionel não vai importar-se - disse Rachel. - Não é nenhum
almoço formal, vamos só comer umas coisas simples e mais nada.
- Hum... - disse Gerald. - Por norma, o nome «Lionel» e a expressão
«comer umas coisas simples» nunca se encontram na mesma
frase. - O tom era irónico, mas sugeria uma certa ansiedade em
relação ao cunhado, uma qualquer noção de dever. Rachel
recostou-se no seu banco com um ar satisfeito.
- Vai tudo correr bem - disse ela. E, de facto, o trânsito mexeu um
pouco e, ainda que com alguma cautela, os passageiros do Range
Rover permitiram-se uma atitude optimista, o único género de
atitude que Gerald era capaz de suportar. Nick pensou naquele
nome antiquado, Lionel. Claro que havia uma relação entre Lionel
e Leo; mas Lionel era um pequeno leão heráldico, ao passo que
Leo era um enorme animal vivo.
Cinco minutos depois, estavam de novo parados.
- Mas que porra de trânsito! - disse Gerald; ao ouvir tal comentário,
Elena pareceu ficar um pouco aturdida.
- Estou ansioso por ver a casa, bem como tudo o mais - disse Nick,
num tom decididamente animado.
- Bom... e vai ter mesmo de vê-la - disse Gerald.
- Ah, a casa... - disse Rachel, com um risinho suspiroso.
- Se calhar não gosta da casa - disse Nick. - Deve ser diferente
para si, visto que foi lá que cresceu. - Sentiu que havia no seu tom
uma excessiva adulação.
- Não sei - confessou Rachel. - Nem sei muito bem se gosto dela ou
não.
- Parece-me indiscutível, creio - disse Gerald - que, em
Hawkeswood, aquilo que conta é o conteúdo. A casa propriamente
dita é uma verdadeira monstruosidade vitoriana.
- Mmm... - No discurso de Rachel, um «mmm» murmurado ou um
«Eu sei...» ironicamente prolongado podiam veicular uma nota de
surpreendente cepticismo. Nick adorava a economia tipicamente
classe alta do seu discurso, o seu jeito de se pronunciar sobre as
coisas recorrendo tão-somente a matizes muito diluídos
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Kessler tinha uns sessenta anos, era mais baixo e robusto que
Rachel, calvo, com um rosto vivo e não propriamente simétrico.
Vestia um fato cinzento-escuro que não fazia a menor concessão à
moda, nem tão-pouco à estação; com aquele fato vestido, tinha
todo o ar de sofrer com o calor, mas, ao mesmo tempo, parecia
dizer que não havia outra maneira de uma pessoa se vestir. Comeu
o seu salmão e bebeu o seu vinho branco do Reno,
particularmente doce, com um indefinível ar de prazerosa rotina,
que apontava para toda uma vida de almoços em salas de
conselhos de administração e casas de campo e festivos
restaurantes por toda a Europa. - Então quando é que Tobias e
Catherine vêm? - perguntou ele a certa altura.
- Preferiria não indicar uma hora demasiado precisa - disse Gerald.
- Toby vem com uma namorada, Sophie Tipper, que por acaso é
filha de Maurice Tipper e uma jovem actriz muito prometedora. -
Olhou para Rachel, que logo retorquiu:
- Não, ela é de facto uma grande, uma imensa promessa... - um
comentário que hesitava em incluir algo que ela parecia ver num
futuro não muito distante, mas que, como tantas vezes sucedia,
tinha a amabilidade de calar. Por vezes, Nick sentia que o facto de
serem «filhos de» era o único trunfo de que alguns dos seus
amigos dispunham para atraírem as atenções da distraída geração
dos seus pais. Observou a reacção de Lord Kessler ao ouvir o
nome de Maurice Tipper, uma fungadela e um murmúrio, não mais
que a expressão de uma ironia, uma entre as inúmeras ironias com
que as diferentes categorias de pessoas ricas se brindavam.
Aquele caso com Sophie Tipper vinha-se arrastando sem o menor
sentido desde o segundo ano em Oxford, como se Toby, ao sair
com a filha de um magnata, estivesse, muito docilmente, a
satisfazer as expectativas alheias.
- Quanto a Catherine - prosseguiu Gerald -, vem com um suposto
namorado de cujo nome não me lembro e que, disso estou certo,
nunca vi nem mais gordo nem mais magro. - Sorriu generosamente
do seu próprio comentário. - Mas estou à espera de que cheguem
bastante tarde e a toda a velocidade. Na realidade, Nick deve
conhecer esse capítulo melhor do que nós.
Nick não sabia quase nada. - Está a falar de Russell? - disse. - Sim,
é muito simpático. E um fotógrafo muito promissor - numa
imitação bem-sucedida dos modos e pontos de vista do meio em
que se encontrava.
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- Para ser franco, há imensas coisas dele que ainda não li.
- Mas deve conhecer esse - disse Lord Kessler.
- Não, este é muito bom - disse Nick, fitando a lombada com um ar
de discreta condescendência. Por vezes, devido a um qualquer
fértil processo de auto-sugestão, a sua memória dos livros que
alegava ter lido tornava-se quase tão nítida como a memória dos
livros que lera e de que, em parte, já se tinha esquecido. Voltou a
pôr o livro no lugar e fechou o armário dourado. Tinha a sensação,
ou talvez fosse apenas uma consequência do seu próprio
constrangimento, de que, sob o afável disfarce da sociabilidade,
estava a ser levada a cabo uma qualquer diligência formal, e isso
era algo de novo para ele, embora profundamente familiar para o
seu anfitrião.
- Em criança, frequentou a mesma escola que Tobias?
- Oh... não, sir. - Nick deu-se conta de que decidira não mencionar
a escola primária de Barwick. - Estivemos juntos em Oxford, no
Worcester College... Embora eu tivesse estudado Inglês e Toby
PPE(1).
- Exacto... - disse Lord Kessler, que talvez não tivesse grandes
certezas quanto ao assunto. - Foram contemporâneos.
- Sim, precisamente - disse Nick, e pareceu-lhe que a palavra
«contemporâneos» lançava uma luz histórica sobre os singelos
três anos que haviam passado desde que vira Toby pela primeira
vez; Toby estava na portaria e, mal o viu, foi como se tudo o mais
se tivesse evaporado.
- E teve um First?(2)
Nick adorava a confiança agressiva - expressa num murmúrio - da
pergunta, porque podia responder «Sim». Sentia que, se tivesse
sido «Não», se tivesse obtido um Second como Toby, tudo teria
sido diferente - e, dado o contexto, uma mentira seria, por certo,
muitíssimo imprudente.
- E como é que avalia as possibilidades do meu sobrinho? -
perguntou Lord Kessler com um sorriso, embora Nick não
soubesse ao certo
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- Neste momento, anda a fazer montes de coisas para a The Face.
É um fotógrafo brilhante.
- Também lhes falei disso. É claro que todos eles assinam a The
Face.
Catherine resmungou. - Imagino o que Gerald não terá dito dele.
- Não, disse apenas que não tem uma opinião formada porque não
o conhece.
- Mm... Normalmente, o facto de não conhecer alguém não o
impede de dizer os maiores horrores acerca dessa pessoa. De
facto, isso nem parece dele, não, de maneira nenhuma. - Acendeu
o isqueiro e puxou uma primeira e profunda fumaça, quando
soprou o fumo, meneou um nada a cabeça e recostou-se,
confortada. - De maneira nenhuma, de maneira nenhuma, de
maneira nenhuma - continuou ela, agora com um acento irlandês
que não fazia o mínimo sentido.
- Bom... - Nick queria que toda a gente se desse bem, mas, por uma
vez, considerou que não estava em condições de se dar a esse
fatigante trabalho. Adoraria poder falar de Leo tão livremente
como ela falava de Russell, considerava que, se trouxesse Leo à
baila, Catherine acabaria por fazer algum comentário inquietante e
possivelmente verdadeiro.
- A minha mãe mostrou-te a casa? - perguntou ela.
- Não, de facto, quem me mostrou a casa foi o teu tio. Senti-me
muito honrado.
Catherine fez uma pausa e soprou o fumo com um ar não isento de
admiração. - E o que é que achas dele?
- Pareceu-me muito simpático.
- Mm. Mas o que é que achas, ele não é gay, pois não?
- Não, não me apercebi de nada que apontasse nesse sentido -
retorquiu Nick num tom algo solene. Sabia que esperavam dele
que fosse capaz de dizer se determinado homem era ou não gay;
de facto, tendia a pensar que eram gays quando na realidade não
eram; daí que experimentasse um recorrente sentimento de
decepção perante os homens em causa e os seus inadequados
sensores. Não disse nada a Catherine, mas, durante a volta pela
casa, as suas incertezas tinham girado, não em torno de Kessler,
mas em torno de si mesmo. A sua homossexualidade teria de
algum modo afugentado Lord Kessler?
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Nick tinha mais objecções a pôr aos comentários de Paul, mas não
quis parecer destituído de humor. - Não. Nem Ken - disse.
Paul inalou generosamente e soprou o fumo num longo e sibilante
jacto. - Devo dizer que Gerald está uma verdadeira delícia
esta noite.
- GeraldFedden...?
- Absolutamente...
- Estás a gozar comigo.
- Está visto que te choquei - disse Paul, sem a menor nota de
desculpa.
- De modo nenhum - disse Nick, para quem a vida era uma série de
choques, mais ou menos bem aparados. - Não, eu sei que
ele está...
- Claro que agora vives na casa dele... É natural que já te tenhas
acostumado ao seu imaculado esplendor.
Nick riu-se e, juntos, observaram o deputado. Gerald concluía uma
história qualquer (toda feita de risonha tagarelice, entremeada de
retumbantes ênfases) e as mulheres à sua volta, uma verdadeira
mancha de azul, ondeavam e cambaleavam um pouco nas finas
pedrinhas do átrio. - Não vou negar que é um homem com muitos
encantos - disse Nick.
- Aha... Mas diz-me, quem é que está lá em casa agora, só tu e eles
e a Bela Adormecida?
Nick adorava ouvi-lo chamar «Bela Adormecida» a Toby, o
sarcasmo encobrindo a glorificação. - Infelizmente, a Bela
Adormecida agora não pára muito por lá. Como sabes, os pais
deram-lhe um apartamento. Mas tenho Catherine, claro.
- Ah, sim, eu adoro a Catherine. Ainda agora a apanhei a fumar um
charro com quase um metro de comprido. O sujeito que estava
com ela tinha um ar de patifório a toda a prova. É uma rapariga
notável.
- É seguramente uma rapariga muito infeliz - disse Nick, por um
momento todo inchado com o secreto e portentoso conhecimento
que tinha dela.
A sobrancelha de Paul sugeria que Nick tocara na nota errada. -
Deveras? Sempre que a vejo, tem um namorado novo. Quer dizer,
não vejo razão nenhuma para que seja infeliz... Pois se deve ter
tudo, mas tudo, o que uma rapariga pode desejar...!
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A luz do sol, agora que se despedia, tornava-se mais incisiva e
teatral e desenhava intrigantes sombras.
Paul virou-se para ele e disse-lhe: - Tenho de te avisar, meu caro.
Wani Ouradi anunciou o seu noivado.
- Oh, não - disse Nick. Que coisa mais humilhante, um noivado! -
Podia ter pensado um pouco mais antes de dar um passo desses. -
Imaginava um futuro alternativo, tão feliz, tão feliz, para ele e
Wani, um rapaz naturalmente encantador, e tão rico, e tão belo
como um João Baptista pintado para um Papa com uma
pronunciada inclinação por rapazes. O pai de Wani tinha uma
cadeia de supermercados, de seu nome Mira, e, sempre que ia a
um Mira Mart comprar uma garrafa de leite ou uma tablete de
chocolate, Nick tinha a vaga sensação, sem dúvida erótica, de que
estava a meter o dinheiro no bolso de Wani. - Creio que ele
também vai cá
estar.
- Pois vai, essa rameira velha também vai cá estar. Eu vi o carro
dele, um horror, de tão rasca, no caminho da casa. - Rameira era o
termo que Paul usava para designar qualquer homem que tivesse
acedido a ir para a cama com ele; ainda que, tanto quanto Nick
sabia, Paul nunca tivesse ido para sítio nenhum com Wani. Tal
como Toby, Wani permanecia na longínqua e pura região da
fantasia, um reino que, perante a inacessibilidade dos seus
habitantes, designadamente de Wani, se tornava cada vez mais
ardente e criativo. Nick sentia a perda de Wani como se tivesse
realmente tido alguma hipótese como ele; sozinho na sua cama,
deixara que a sua imaginação o levasse longe, muito longe, com
ele. Via o grande Expresso heterossexual arrancando da gare à
hora certa e todos os seus amigos iam lá dentro, na carruagem da
primeira classe, nos vagões-camas! Aferrava-se ao que tinha,
enquanto o comboio ganhava velocidade: aquele quarto de hora
com Leo junto ao monte de adubo, a primeira vez em que sentira o
pungente sabor da união carnal. - Tu e eu somos as únicas bichas
nesta festa? - disse.
- Duvido - retorquiu Paul, que não parecia muito entusiasmado com
a perspectiva de passar o resto da noite com Nick, só porque o
acaso os tinha juntado. - Deus do céu, lá vem o filho da mãe do
Ministro da Administração Interna! Tenho de me rebolar daqui para
fora, meu caro. Que tal estou?
- Fantástico - disse Nick.
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a antigos desastres, e, a certa altura, começou a maçar os
deputados. Nick sentiu uma tocante nostalgia pelos tempos de
Oxford, sobre os quais uma porta, talvez de carvalho, parecia ter-
se fechado suave, mas firmemente. Toby não mencionou o seu
nome; mas Nick interpretou isso como um sinal de intimidade. O
seu olhar abraçava Toby e, por detrás do seu irremediável sorriso
e das mãos que se perdiam em aplausos, viu o Nick dos seus
sonhos correndo disparado para abraçar Toby e para lhe beijar o
rosto vermelho de tão quente.
Já no seu quarto, Nick despiu o casaco e, com um ar de
resignação, cheirou-o bem cheirado: estava na hora de um novo
banho de Je Promets. Foi para a sua casa de banho e abriu a
pequena trapeira da pequena torre; borrifou as faces com água
fria. Os brindes tinham acabado com ele - havia sempre um copo
que o fazia cair, injusta e abruptamente, na embriaguez. E a noite
não passava ainda de uma criança... Era um grande ritual de
diversão, uma tradição, uma convenção, uma cerimónia que toda a
gente estava a adorar porque nela tudo era abundância e porque
correspondia plenamente às expectativas. Agora, iam passar à
pista de dança e todos os pares poderiam render-se ao prazer de
ancas e coxas que se roçavam e colavam, de mãos que deslizavam
por onde queriam. Nick fitou o espelho e viu alguém
periclitantemente só. O amor que sentira por Toby dez minutos
antes migrou para uma súbita e sôfrega fantasia envolvendo Leo,
os seus beijos transfiguradores, os seus problemas com os
folículos pilosos, e a maravilhosa fundura, imaculadamente
rapada, entre as bochechas do seu cu. A precisão da memória, a
ardente realidade daquilo que acontecera, cegou-o e paralisou-o
por um bocado. Quando regressou, talvez não mais que uns
segundos depois, à imagem no espelho, viu o rubor nas suas faces
e a sua boca aberta numa rendição revivida. Voltou a fazer o nó da
gravata, com toda a perfeição, e passou a mão pelo cabelo. Havia
uma espécie de ternura por si mesmo no movimento da mão por
entre os caracóis, como se a mão houvesse sido adestrada por
Leo. O espelho era uma casta elipse numa moldura de madeira de
bordo-doce. O lavatório uma cómoda Luís XVI verdadeira,
esventrada e perfurada para receber uma bacia e um par de altas
e elegantes torneiras
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para analisar pela sua generosidade, pela sua inocência, pela sua
cautela.
Rachel encolheu-se um pouco, mas, de facto, não havia lugar para
ele no sofá. O magnífico vestido de seda cor de alfazema, com
uma armação algo rígida, espalhava-se, como que drapejado,
sobre o sofá; e Rachel fazia lembrar um retrato que Sargent
pintara oitenta anos antes, no tempo em que Henry James passara
por aquela casa. Nick plantou-se diante delas, um sorriso nos
lábios.
- Que bem que você cheira, Nick - disse Rachel, num tom que
roçava o flirt, no mesmo jeito com que, por vezes, uma mãe fala
com um filho todo embonecado.
- O cheiro dos charutos é absolutamente insuportável - disse Lady
Partridge. - Não lhe parece, Rachel?
- Lionel também o odeia - murmurou Rachel. Tal como Nick, para
quem o fedor áspero dos charutos, com uma nota de retrete muito
evidente, significava a inexplicável segurança dos gostos e
hábitos dos outros homens, bem como a desenvoltura com que os
impunham aos seus semelhantes. Porém, como o próprio Gerald
estava a fumar charuto, com o sobrolho e o olho esquerdo sujeitos
a um constante franzimento, Nick nada disse.
- Não faço ideia onde é que ele terá apanhado tal vício - disse Lady
Partridge; e Rachel suspirou e abanou a cabeça, num bem-
humorado reconhecimento das decepções que esposa e mãe
partilhavam. - Tobias e Catherine também fumam?
- Oh, não, graças a Deus, foi coisa de que nunca gostaram - disse
Rachel. E, uma vez mais, Nick não disse nada. Aquilo que acabava
sempre por prendê-lo era o romance que a família construía em
torno de si mesma, com as suas pequenas asperezas e
conspirações, que possuíam um encanto e uma graça muito
superiores às da sua própria família, um romance que, agora,
ganhava uma nova dimensão na pessoa da mãe de Gerald. O seu
porte era indolente mas vigilante, o rosto densamente empoado,
os lábios pintados de um ousado vermelho. Havia nela qualquer
coisa de autocrático que suscitava em Nick uma vontade de
agradar. Tinha uma aparência mais nobre, mais grandiosa, do que
Gerald, pelas mesmas razões que levavam Gerald a parecer mais
elegante, mais chique, do que Toby.
- Não seria má ideia arejarmos um pouco a sala - disse ela,
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- nada - disse Nick num tom jovial, já que a bebida o deixara meio
anestesiado e quase cego perante o novo fracasso que se
avizinhava.
- Tenho de ir. - Tristão tirou o lacinho do bolso e, por um momento,
entreteve-se a mexer no elástico e no clipe. Nick aguardou que ele
despisse o avental. - Olha, OK, eu vejo-te, junto escadas principais,
três horas.
- Oh... OK, óptimo! - disse Nick, e encontrou um feliz alívio tanto na
combinação como no ligeiro deferimento. - Três horas...
- Em ponto - disse Tristão, com uma carranca severa.
Acercou-se da porta do quarto de Toby e espreitou lá para dentro.
Alguns dos seus amigos tinham-se instalado no quarto depois de a
música ter acabado às duas, e, agora, pareciam avaliá-lo num jeito
indolente. - Chiça, Nick, entra e fecha a porta - disse Toby,
acenando-lhe da ampla cama onde ele se sentara no meio de
vários amigos que tinham preferido estirar-se ao comprido. Lord
Kessler dera-lhe o Quarto do Rei, onde Eduardo VII dormira; os
drapeados de seda azul por sobre a cabeceira convergiam numa
coroa dourada que era vagamente cómica. Na parede oposta,
dominava um confortável nu de Renoir. Nick abriu caminho por
entre grupos sentados no chão, diante de um enorme sofá onde o
gordo Lord Shepton se deitara com a gravata desfeita e a cabeça
nas coxas de uma atraente rapariga bêbeda. Tinham afastado os
cortinados e aberto uma janela para que o fedor da marijuana não
chegasse, nem de longe, ao nariz do Ministro da Administração
Interna. De algum modo, haviam recriado o ambiente de um quarto
de universidade a altas horas da noite, os pés das raparigas, ainda
com as meias, estirados em cima dos joelhos dos namorados, o
fumo no ar, duas ou três vozes dominantes. Nick sentiu o encanto,
bem como a ameaça do grupo. Gareth Lane arengava acerca de
Hitler e Goebbels e o tom arrastado e monótono da sua prelecção
e as ruidosas gargalhadas com que os outros saudavam os seus
trocadilhos traziam de volta qualquer coisa de deprimente dos
tempos de Oxford. Gareth Lane fora considerado «o mais
competente historiador do seu ano», mas não conseguira obter um
First, e, agora,
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*1. Termo afectuoso que, a par de Cat (gata), Gerald utiliza com a
filha; traduzível por «Bichana». (N. do E.)
2. A personagem usa a expressão God-dammery por colagem ao
Gótterdámmerung (O Crepúsculo dos Deuses, de Richard Wagner).
É um engenhoso trocadilho (facilitado pela proximidade entre o
alemão e o inglês) que, obviamente, não passa na tradução. A
personagem distorce o título de Wagner e, em vez de «crepúsculo
dos Deuses» temos algo que, caricaturalmente, se aproxima de
«danação do Deus». No entanto, God-dammery também aponta
para «Goddam» ou «Goddamn», um termo que exprime
normalmente raiva ou frustração (isolada, é traduzível por «Raios
(me) partam!», «Porra!», etc, etc). (N. do T.)
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*1. No original, the man witb the Face é «o homem» que trabalha
na revista Face, mas também pode ser entendido como uma
referência à «desfaçatez» ou ao «descaramento» do fotógrafo. (N.
do T.)
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se desse conta de que aquela poderia ser uma meia hora muito
constrangedora para todos eles. Para começar, Nick seria muito
sensível a toda e qualquer coisa que pudesse ser dita. Como
tantas vezes sentira já, ele possuía o tipo de ironia errado, os
conhecimentos errados, para a vida gay. A ideia de um casal de
homens, entre outras emoções que envolviam interesse e
excitação, ainda provocava nele algum choque. Ele e Leo faziam
um par, à sua maneira, é certo, uma maneira peculiar e transitória,
mas a verdade é que ainda não formavam um casal.
- Então o que é que temos por cá? - perguntou Pete, voltando para
a loja atrás de Leo.
- Pete, Nick - disse Leo com um sorriso largo e uma mímica que
traduzia o profundo desejo de os juntar. O esforço que fazia para
cativar e tranquilizar era uma faceta dele que Nick ainda não
conhecia; parecia tornar possível, a longo prazo, toda a sorte de
outras coisas. - Pete é o melhor dos meus velhos amigos - disse
ele, com a sua voz cockney, a voz das concessões. - Não és,
querido? - Nick e Pete cumprimentaram-se e Pete retraiu-se, como
que confrontado com qualquer coisa que não seria muito do seu
agrado, e, um segundo depois, virou-se para Leo e disse-lhe:
- Pelos vistos, andaste outra vez a rondar os portões das escolas...
Seu velho safado...
Leo ergueu uma sobrancelha e disse: - Bom, não te vou lembrar
que idade é que eu tinha quando me rapinaste do meu carrinho de
bebé.
Nick riu-se animadamente, ainda que aquele fosse um género de
burlesco camp a que não achava naturalmente graça; além do que
era surpreendentemente doloroso ter algum acesso, ainda que
muito superficial, ao passado daqueles dois. Deu por si a imaginar,
e meio a acreditar, a história de Leo no seu carrinho de bebé. O
facto de se ser muito jovem e de se ter uma cara fresca e viçosa
era, por norma, uma vantagem, mas se havia coisa que ele não
queria era que o vissem como uma criança. - A verdade é que
tenho vinte e um anos - disse ele num tom fingidamente ríspido.
- Mas que modos de falar...! - comentou Pete.
- Nick vive aqui perto - disse Leo. - Kensington Park Gardens.
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e verificar que, desta feita, não havia nenhum elástico azul, não,
havia apenas o macio Leo, o rapado e cheio, tão cheio, Leo. Um
segundo ou dois e Nick ergueu-se e pôs as suas mãos,
delicadamente, à volta do pescoço de Leo, que se encostou às
pernas dele para se apoiar e roçou o ombro umas quantas vezes
no sexo erecto de Nick.
- Mm, tu gostas mesmo disto - disse Leo.
- Adoro - disse Nick.
Quando Pete voltou, deambulavam os dois pela loja com as mãos
nas algibeiras. - Não vão acreditar - disse ele. - Acho que vendi a
cama.
- Ah sim? - disse Leo. - Ainda agora Nick estava a dizer que era
uma bela peça. Mas ele acha que ainda precisa de ser muito
trabalhada, não é, Nick?
Os últimos minutos na loja caracterizaram-se por uma atmosfera
de ridícula estranheza. Era difícil captar o que os outros dois
estavam a dizer - Nick sentia-se radiantemente egoísta e
desatento e deixou a Leo a tarefa de despachar as coisas. O
mobiliário e os objectos ganharam um brilho mais intenso, mas, ao
mesmo tempo, pareciam furiosamente irrelevantes. Pete devia ter-
se apercebido de que se estava a passar qualquer coisa, de que o
ar cintilava e estremecia; e não seria de espantar que fizesse
algum comentário mais ácido. Mas não fez. Nick teve a impressão
de que Pete, realista e resignado, desistira já de Leo, e deu-se
conta de que lamentava - um pouco, pelo menos - que as coisas
fossem assim, pois queria que Pete sentisse ciúmes.
- Bom, temos de ir almoçar - disse Leo. - Já tenho alguma fome. E
tu, Nick?
- Estou a morrer de fome - disse Nick, numa espécie de grito feliz.
Todos se riram e se cumprimentaram e, depois de Pete ter
abraçado Leo, Nick apressou-o com uma palmadinha rápida.
E ali estavam eles, na rua, suportando as cotoveladas da multidão,
rodeados de gente por todos os lados, dois empecilhos distraídos,
imersos no seu lento passeio, o qual se ia espraiando colina
abaixo ao ritmo do suave e esbatido tiquetique das rodas da
bicicleta.
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Tudo aquilo era novo para Nick, o facto de estar com outro
homem, de se deixar levar pela mansa e ondulante corrente de um
sentimento mútuo - com os seus remoinhos, por vezes, nas
entradas das lojas ou sob os toldos das tendas de bricabraque. Já
não falavam do almoço, o que era um bom sinal. Para dizer a
verdade, já nem diziam grande coisa, mas, de vez em quando,
trocavam olhares que floresciam em maravilhosos sorrisos
derretidos. O desejo formigava nas coxas de Nick e comprimia-lhe
o estômago e a garganta e quase o fazia gemer entre sorrisos,
como se, pura e simplesmente, não fosse justo que alguém lhe
prometesse tanto. Deixou-se ficar para trás um ou dois passos e,
enquanto caminhava, abanava a cabeça. Queria ser os jeans de
Leo, que lhe acariciavam as pernas naquele jeito rítmico,
descontraído, queria ser aqueles jeans que ora cingiam, ora
largavam. As suas mãos estremeciam contra o corpo de Leo vezes
sem conta, para lhe chamar a atenção para isto e mais aquilo, uma
cadeira, um prato, a cabeça, cheia de cristas azuis, de um punk
que passava. Ele devia ter ficado em primeiro lugar nas audições
de Leo. Tocava a toda a hora no rabo de Leo, rendido ao simples
prazer da permissão. Não se podia dizer que Leo retribuísse as
suas carícias; estava de olho na rua, um olho hábil, matreiro,
chegou mesmo a erguer uma sobrancelha maliciosa perante a
iminente, e certamente sensual, colisão com outros rapazes que
passaram por eles, mas isso não importava porque os outros
rapazes eram qualquer coisa de supérfluo, a fugaz gota derramada
do seu transbordante desejo por Nick. Enquanto deambulavam por
entre a multidão, Nick viu-se a si mesmo correndo disparado pelos
negligenciados anos da sua educação moral. Tantas vezes se
perguntara como seria aquilo; pois ali tinha a resposta - aquilo era
assim!
Sob o toldo franjado de uma tenda, viu o perfil curvado de Sophie
Tipper, examinando uma série de velhos anéis e braceletes numa
placa forrada a veludo preto. A sua primeira ideia foi ignorada ou
evitá-la. A inveja que sentia daquela mulher reemergiu de repente.
Porém, um momento depois, Toby apareceu atrás de Sophie,
debruçando-se para ela com um pequeno, murcho e distraído
sorriso de interesse, tal e qual um marido. Pousou o queixo no
ombro dela por um momento e ela murmurou-lhe qualquer coisa,
de modo que Nick teve a desconfortável sensação de estar
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a espiar duas pessoas que, descuidadamente, revelavam uma
complacente satisfação consigo mesmas. Formavam um casal
forçosamente belo, de algum modo luminoso contra o pano de
fundo da sombria confusão do mercado, como modelos sob uma
luz subtil, mas artificial. Nick virou-se e pôs-se a procurar qualquer
coisa que pudesse comprar para Leo; desejava loucamente fazer
isso. Via todas as razões para que o iminente encontro social não
fosse um êxito. - Eh, Guest! - chamou Toby, dando a volta à tenda,
agarrando nele e dando-lhe um beijo bem firme na face.
- Olá, Toby... - O beijo era uma coisa nova (tudo começara na
festa), de algum modo facilitado e protegido pela presença de
Sophie. E, para Toby, quase parecia um alívio, como se o beijo
apagasse um qualquer velho constrangimento de baixo nível em
torno do facto de não se beijarem. Para Nick, era maravilhoso,
todo o calor de Toby por um momento colado a ele, mas também
era triste, de uma tristeza impossível de ignorar, visto que o beijo
marcava claramente o limite das concessões, visto que o beijo era
concedido na certeza de que, depois dele, não haveria nada de
mais íntimo.
- Olá, Nick - disse Sophie, aproximando-se e beijando-o em ambas
as faces com uma radiosa boa vontade, que Nick atribuiu ao facto
de ela ser uma actriz tão promissora. Queria apresentar-lhes Leo,
mas temia que eles dissessem alguma coisa de errado, baseada,
obviamente, no seu excitado palavrório em Hawkeswood, quando
estava pedrado. Era um daqueles momentos inevitáveis, mas ainda
surpreendentes, em que o mero «quem me dera» era posto em
causa pela verdade. Nick disse:
- Vão chegar atrasados ao almoço - e pareceu-lhe que soara
particularmente rude.
- Eu sei - disse Toby. - A avó queria uma das suas sessões com
Sophie. De modo que decidimos torná-la tão breve quanto possível.
- Bom, eu adoro a tua avó - disse Sophie, fingindo um ar petulante.
- Não, a avó é uma velha rapariga maravilhosa - disse Toby; e Nick
lembrou-se das coisas em segunda mão que ele costumava dizer
em Oxford, sagazes observações acerca dos amigos famosos dos
pais. Sorriu vagamente para Leo. Se Sophie não estivesse ali,
pensou Nick, poderia exibir Toby perante Leo como um glamoroso
acessório
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- Oh, ele vai dar uma festa dos anos 70... - disse Toby num tom de
irremediável desalento.
- Não, não vou, não fui convidado - disse Nick com um sorriso
superior, pensando na amorosa intimidade que sentira com Nat em
Hawkeswood, quando estavam os dois pedrados e sentados no
chão. - É em Londres?
- O problema é esse. É lá para cima, naquele maldito castelo -
disse Toby.
- Sim... Mas é ridículo, não é? É demasiado cedo para dar uma
festa dos anos 70, não é? - disse Nick. - Quer dizer, os anos 70
foram uma época medonha... Não vejo razão nenhuma para se
querer voltar a esses tempos... - Há muito que ansiava por uma
oportunidade para ver o castelo, uma fortaleza fronteiriça(1), com
interiores concebidos por Wyatt(2).
- Bom, os rapazes das public schools adoram reviver a puberdade,
não é, Soph? - disse Catherine, voltando com um copo bem cheio.
- Eu sei - disse Sophie, num tom mal-humorado.
- Há até quem passe a vida inteira a fazer isso - prosseguiu
Catherine. Parou em frente da lareira, com uma mão na anca, e
parecia estar já a mexer-se ao sabor da música de um futuro que
ficava a anos-luz de todos aqueles disparates.
Toby deu de ombros, num pedido de desculpas pela irmã, e disse: -
Só espero que aquelas calças disco ainda existam!
Nick por pouco não dizia: «Ah... as calças púrpura...?» - sabendo,
como sabia, o sítio exacto onde se encontravam, visto que
vasculhara de alto a baixo o quarto de Toby e lera o seu diário de
rapaz e cheirara o fino forro dos seus calções de banho, já
demasiado pequenos para aquelas pernas, e chegara mesmo a
experimentar as calças à boca de sino (a figura ridícula que fizera,
enfiado naquelas pernas tão compridas). Mas não, não disse nada,
limitou-se a dar à cabeça e a beber de um gole o resto do seu gin
tónico.
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não sei se estás a ver, uma daquelas raparigas que estão à porta
dos bares de strip a aliciar clientes.
- Parece uma strippergram(1) - disse Sophie.
Lady Partridge entrou com aquele ar de enfado que Nick já lhe
conhecia: queria dar a impressão de que se sentia totalmente à
vontade naquele ambiente e também queria que a sua chegada
fosse um acontecimento; a surdez de que padecia acrescentava
uma quérula incerteza quanto ao efeito que poderia estar a
provocar. Badger foi buscar-lhe uma bebida e dispôs-se a flertar
com ela, no que não foi contrariado. Lady Partridge gostava de
Badger, pois conhecia-o desde criança e, certa vez, numas férias,
chegara mesmo a cuidar dele quando tivera papeira - um episódio
que continuava a ser referido como uma pedra de toque da sua
amizade, e de um modo vagamente picante, já que, pelos vistos,
os tomates de Badger tinham ficado tão grandes como toranjas.
Uns dias antes, Nick ouvira-os gracejar a esse respeito, e aquilo
soara-lhe como as brincadeiras que tinha com os seus pais,
pequenos pontos de referência irreverentes num passado distante,
antes de tudo ter mudado e de se ter tornado indescritível.
Nick pensava em Leo a toda a hora, de tal forma que Leo parecia
ser o elemento, o contexto invisível, em que aquelas intimidantes
criaturas, tão diversas entre si, se encontravam e saudavam e
discutiam e se congratulavam umas às outras. Misturou os
ingredientes para um novo gin tónico, ao estilo de Gerald, o
quinino perdido no meio do zimbro, e deambulou pela sala sem se
importar com o facto de não lhe dirigirem a palavra. Apreciou os
quadros com uma nova acuidade, como se estivesse a explicá-los
a Leo, o seu aluno reconhecido. O outro deputado e a sua mulher,
John e Greta Timms, estavam plantados diante do Guardi, com o
ar de quem tinha ido parar à festa errada, de quem desejava algo
de mais estimulante, ele num fato cinzento, ela no desamparado
arrojo de um vestido de mamã azul com um laçarote branco
rondando-lhe o pescoço: era como se a primeira-ministra, ela
mesma, estivesse grávida. John Timms assumira um cargo menor
no Ministério da Administração Interna; devia ser vários anos mais
novo do que Gerald,
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Nick olhou para Toby num pedido de ajuda, mas Toby estava a
tratar da caixa de charutos e do corta-charutos; Gerald, por seu
lado, dava a ordem de partida para o circuito das garrafas ao
longo de meia mesa. Nick reviu Leo no instante em que o deixara,
poucas horas antes; viu-o afastando-se, conduzindo a bicicleta
com uma mão, e o tema amoroso voltou a soar, prudentemente
agora, não, não queria que os outros o ouvissem. Como poderia ele
descrever aquilo, inclusive para si mesmo, aquele jeito que Leo
tinha de andar, aquele requebro, aquela mobilização, meio
consciente, meio inconsciente, dos seus próprios efeitos? - Vou
dar-lhe um conselho - disse Barry Groom, escolhendo, num
movimento imperioso, entre as garrafas de cristal, obviamente não
assinaladas, de Porto e de Bordeaux.
- Ah, sim, claro - disse Nick, e sentiu a sua erecção começar a
esbater-se.
- Nunca especule com mais de doze por cento do seu capital -
proferiu Groom.
- Ah... - disse Nick, num tom de jocosa surpresa; porém, ao ver a
expressão quase raivosamente séria do outro, tratou de
acrescentar: - Doze por cento. Certo... Vou tentar não me
esquecer. Não, sinceramente, parece-me um bom conselho.
- Doze por cento - repetiu Barry Groom. - É o melhor conselho que
lhe posso dar. - E fez deslizar as garrafas na direcção de Nick; por
serem os convidados mais distantes de Gerald, formavam uma
espécie de ponte no circuito das bebidas. Nick serviu-se do Porto
e passou a garrafa a Morden Lipscomb, numa inofensiva exibição
de eficiência e charme. Lipscomb estava a cortar um charuto, e a
sua boca fina, repuxada para baixo graças a uma total
concentração, parecia remoer um qualquer desdém, não pelo
charuto, mas pela companhia em que se encontrava. Na solene,
mas desinibidora, ausência das mulheres, aquele seria talvez o
momento certo para que ele brilhasse entre os demais; contudo,
Lipscomb mostrava-se cauteloso, ou então estava francamente
mal-humorado. Nick sentiu pena de Gerald, mas não via de que
modo é que poderia ajudá-lo. Só conhecia uma maneira de se
envolver com as pessoas: através da súbita intimidade de uma
conversa sobre arte e música, de uma manifestação de
sensibilidade; sentia, porém, que Lipscomb o rejeitaria, como se
repelisse uma intimidade de um outro tipo.
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Perguntou-se uma vez mais o que Leo teria dito e feito: ah, ele
tinha opiniões tão claras e tão sarcásticas acerca das coisas...!
- Então, Derek - disse Barry Gordon, no seu tom gelidamente
informal -, quanto tempo é que vais ficar em casa de Gerald?
Badger puxou esforçadamente uma fumaça, após o que soprou
uma turbulenta nuvem. - Enquanto o velho Banger me deixar ficar -
disse ele, empinando a cabeça na direcção de Gerald.
- Ah, então é por esse nome que tu o tratas? - disse Barry, num
acesso de rivalidade.
Badger resmungou, deu um rápido chupão no charuto e disse:
- Vem dos tempos de Oxford... - sabendo que era muito fácil
provocar Barry. - Não, eu estou à espera de que acabem as obras
na minha futura casa, por isso é que estou aqui.
- Ah, sim? E onde é que fica essa casa? - perguntou Barry num tom
dubitativo.
Badger mostrou-se surdo a esta pergunta, de modo que Barry
repetiu-a e Badger retorquiu lentamente, como que dando uma
pista a alguém que tivesse uma extrema dificuldade em decifrar
mesmo a mais simples das adivinhas: - Bom, para dizer a verdade,
até fica muito perto do sítio onde tu trabalhas. - Com esta meia
resposta, era muito provável que pretendesse apenas provocar
ainda mais Groom, embora uma tal reserva combinasse na
perfeição com qualquer coisa de sordidamente secreto que havia
em Badger.
- É só um pequeno apartamento, um pequeno apartamento
temporário.
- Por outras palavras: um apartamento para foder - retorquiu Barry
com óbvia rispidez, pois queria ter a certeza de que a brutal
expressão que escolhera, e o modo ofensivo como a usara,
atingiam em cheio o alvo. Até mesmo Badger pareceu um pouco
desconcertado. Gerald limitou-se a um «Ah...» depreciativo, e
mergulhou, de um modo quase confidencial, numa nova conversa
com John Timms e o seu velho mentor acerca do génio da
primeira-ministra. Nick olhou num relance para Toby, que
semicerrou os olhos para ele como que a garantir-lhe uma
solidariedade que, sendo geral, não tinha nenhuma consequência
prática.
- Cheguei a pensar que a primeira-ministra talvez pudesse estar
connosco esta noite - disse Lipscomb. - Mas é evidente que este
não é o género de festa adequado.
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- Sim, cale-se já, sua punheta mal batida! - berrou Catherine, por
entre lágrimas.
- Eh pá, calminha aí! - disse Barry, e, nesse instante, qualquer
coisa de horrendo, um sorriso malicioso, insinuou-se no seu
rosto.
- Santo Deus... Sinto muito, sinceramente... - disse Nick
para Brentford.
- Por que raio é que estamos todos aqui parados? - disse Gerald.
- Vem para cima, querida - disse Rachel.
- Vamos mas é acabar o nosso Porto e os nossos charutos - disse
Gerald, virando costas a Brentford. Tinha de mostrar, a festa
exigia-o, que encarava cenas daquelas com o seu habitual bom
humor. - Leva-la para cima, querida? - perguntou, como se
houvesse realmente alguma hipótese de ser ele a fazê-lo.
Catherine afastou-se e começou a subir as escadas e Rachel
tentou pôr-lhe um braço por cima dos ombros, mas ela repeliu-a.
Nick acompanhou Brentford à porta. - Tem a certeza de que não
quer que lhe paguemos? - disse ele, embora duvidando que o seu
dinheiro chegasse para pagar uma viagem de Stoke Newington a
Kensington Park Gardens. Queria que Brentford soubesse que ele
não era culpado da coisa de que toda a casa era acusada.
- Aquele homem não presta - disse Brentford, nos degraus da
porta.
- Oh... - disse Nick - sim... - Não sabia ao certo a que homem se
referia o taxista e o modo como este abanava a cabeça e agitava
o braço parecia indicar que a acusação abarcava todos aqueles
homens.
Nick deixou-se ficar no passeio por um bocado, depois de o Sierra
ter partido, e, através de uma janela aberta, chegaram-lhe os risos
das mulheres. Era bom estar fora de casa, saboreando o ar da
noite. Se tremia um pouco, era porque insultara aos berros uma
pessoa que odiava. Pensou em Leo e sorriu e aconchegou as mãos
sob as axilas. Perguntou-se o que é que Leo estaria a fazer
naquele preciso instante, e a tarde acendeu-se de novo e aqueceu-
o de espanto; depois, lembrou-se de Pete e Pete abateu-se sobre a
tarde quente como a friagem de uma nuvem. Voltou para dentro e,
já perto da porta meio aberta da sala de estar, abrandou o passo:
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com o fogo da traição, se bem que, um segundo depois, e uma vez
mais, parecesse desistir das suas intenções.
Quando a fruta e o gelado já estavam na mesa, Mrs. Charles disse
para Nick: - Reparei que tem estado a apreciar o meu quadro,
aquele ali, com Nosso Senhor Jesus Cristo na carpintaria.
- Ah... sim - disse Nick, o qual, na verdade, fizera tudo o que estava
ao seu alcance para o evitar; no entanto, as circunstâncias
tinham-no levado a um exame muito cauteloso do quadro, já que
este estava uns escassos centímetros acima do ombro de Leo, e
mesmo em frente dele.
- Sabe, é um quadro antigo muito famoso.
- Pois é. Sabe, eu vi o original há muito pouco tempo, está em
Manchester.
- Pois, eu sabia que este não era o original, pois há um igualzinho
na Church House.
Nick sorriu e pestanejou, sem saber ao certo se a mãe de Leo
estava a troçar dele. - O original é enorme, é em tamanho natural -
disse. - É de Holman Hunt, claro...
- Aha - murmurou Mrs. Charles ao mesmo tempo que abanava a
cabeça, como se uma explicação vagamente improvável lhe
tivesse sido dada a uma luz nova e plausível. Era precisamente o
género de pintura, tenazmente literal e morbidamente simbólico,
de que Nick menos gostava; pior ainda, o quadro de Hunt era em
tamanho natural, o que implicava uma literalidade que a todo
custo clamava por admiração. - Ouvi dizer que é o mesmo sujeito
que pintou The Light of the World, aquele com Nosso Senhor Jesus
Cristo a bater à porta.
- Ah sim, é verdade - disse Nick, como um professor satisfeito pelo
simples facto de o seu aluno se mostrar interessado, e deixando
as questões de gosto para muito mais tarde. - Bom, para ver esse,
só tem de ir à Saint Paul's Cathedral.
Mrs. Charles pegou logo na sugestão. - Ouviste o que o nosso
convidado disse, Rosemary? Um dia destes, vamos as duas à Saint
Paul's Cathedral para apreciarmos o quadro com os nossos
próprios olhos. - E Nick viu-a com uns sapatos reluzentes de
engraxados e o pequeno chapéu preto, idêntico aos das
hospedeiras de bordo, que estava aninhado numa cadeira a um
canto, fazendo a sua longa viagem até à Saint Paul's Cathedral,
com longas esperas
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talvez pensasse que ele era uma pessoa falsa, um fingido... Bom,
do que não havia dúvida é que ele assumira um ar superior perante
a senhora, sim, até certo ponto era verdade... Estas ansiedades
iam ardendo surdamente no seu coração. A certa altura, chegou
mesmo a sentir-se ofendido por Mrs. Charles pensar que ele se
achava superior.
Leo avançava num passo rápido, como se já tivessem combinado
para onde iam, mas não dizia nem uma palavra. Nick não
conseguia decifrar o que se passava com ele, não sabia se ele
estava aborrecido ou furioso ou envergonhado ou se,
simplesmente, optara pela provocação... mas sabia que todas
essas emoções podiam subir e engrossar como um rio e invadir as
margens para logo se evaporarem e se metaformosearem noutras
emoções, e também que era mais sensato deixá-lo acalmar-se do
que pôr-se a adivinhar o seu estado de espírito e arriscar-se a
tocar no botão errado. Essa consciência da necessidade de
sensatez era um pequeno refúgio sempre que Leo se mostrava
difícil ou distante. Concentrou a sua atenção no arrefecimento que
acompanhava o pôr-do-sol, nos farrapos de uma nuvem negra que
rondava os telhados da cidade e que os ventos varriam na
direcção dos céus, no álgido azul-cobalto para lá da nuvem. Ao
longo daquelas quatro semanas juntos, estes passeios ao
entardecer, com a bicicleta tiquetaqueando ao lado deles ou entre
eles, tinham ganho uma cor de romance cada vez mais intensa.
Inquietava-o que o próprio silêncio fosse uma espécie de
comentário, e, ao chegarem ao fim da estrada, puxou Leo para si
num rápido e impaciente abraço e disse-lhe: - Mmm, obrigado por
tudo, querido.
Leo resmungou brandamente. - Por tudo o quê?
- Oh, por me teres levado à tua casa. Por me teres apresentado à
tua família. Isso tem um grande significado para mim. - E deu-se
conta de que a sua pequena confissão libertara um sentimento
que, antes de a ter feito, era completamente ignorado. Sentiu-se
muito comovido.
- Portanto agora já sabes como elas são - disse Leo, parando e
fitando (e semicerrava os olhos tal e qual a mãe) a estrada
principal que se estendia diante deles. O trânsito do fim do dia
teve luz verde para avançar e acelerou colina abaixo, na direcção
deles e para lá deles, e depois começou a rarear até que, uma vez
mais, veio aquele vazio que marcava uma nova espera.
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- Mm... - e Nick estava a ncar vermelno, mas, submissa^ mente,
não desviava os seus olhos dos olhos de Leo.
- Tu preocupas-te demasiado. Sabias disso?
- Sabia...
- Ah sim? Mas tu confias no teu tio Leo, não confias?
- Claro que confio em ti - ripostou calmamente Nick, como se lhe
tivessem feito uma pergunta mais simples.
- Bom, então não te preocupes tanto... Fazes isso por mim? Fazes?
- E, de novo, todo ele era aquela brandura cockney.
- Sim - disse Nick, espreitando todavia para a esquerda e para a
direita com alguma preocupação, visto que Leo o encostara à
parede como um assaltante tanto como um amante, estava com
medo do que as pessoas pudessem pensar. Esta breve cena, logo
após o profundo alívio que sentira, provocava nele uma vaga
insatisfação.
- Nunca te esqueças disto.
- Eu não me esqueço - murmurou Nick, e Leo afastou-se. Não
estava lá muito certo do que é que não devia esquecer, tinha um
ouvido demasiado desconcentrado para pormenores sintácticos,
mas sorriu do sentido geral daquela inofensiva e apaziguadora
sessão de catequese. Era delicioso que Leo se tivesse apercebido
imediatamente do que estava mal, ainda que o seu tom avuncular
não contribuísse, bem pelo contrário, para pôr o caso em pratos
completamente limpos. Não obstante o coração acelerado, Nick
achou que já se sentia suficientemente confiante para referir os
seus planos.
- Tens mesmo a certeza de que eles não estão cá?
- Absoluta. Bom, pode ser que Catherine esteja, não sei.
- Catherine... Certo... É a tua irmã, não é? - E Leo piscou-lhe o olho.
A sólida e aguçada chave da fechadura blindada abrira já um
buraco no bolso das calças de Nick; quando levou a mão ao bolso,
verificou que o pesado molho de chaves se emaranhara todo nos
fios rasgados, acabando por ficar dependurado do buraco; sentia-o
roçando-lhe a coxa, não muito longe das virilhas. Quando puxou
pelo molho de chaves, umas quantas moedas de libra, de
circulação recente, deslizaram tilintantes pela sua perna e
rolaram pelo chão
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- Queres um whisky?
por uma vez, Leo disse: - Não digo que não! É, seria agradável.
Muito obrigado, Nick. - Deu uma volta rápida pela cozinha, como
se, afinal, tudo aquilo lhe passasse despercebido, até que parou
para examinar a parede das fotografias. A família comprara uma
das fotos da Tatler relativa ao vigésimo-primeiro aniversário de
Toby e mandara-a ampliar e emoldurar: um grupo de familiares
sorrindo freneticamente; o Ministro da Administração Interna
também lá estava, mas parecia ter alguma consciência da sua
condição de intruso. Mesmo por cima deles, o estudante Gerald,
de fraque, cumprimentava Harold Macmillan(1) na sede da
associação de estudantes de Oxford. Uma vez mais, Leo não fez
nenhum comentário, mas, quando lhe passou o copo frio, Nick viu
nos seus olhos
e no seu sorriso muito esbatido que ele estava a tomar nota dos
dados e a arquivá-los. Talvez estivesse a calcular o grau de
afronta representado por todo aquele dinheiro e conservadorismo
Tory. Nick sentia que o seu renomado estatuto de amigo da
família, de detentor da chave da casa, possuía um peso muito
incerto. - Vamos para cima - disse.
Subiu os degraus dois a dois, demasiado apressado, e, quando
parou no patamar e olhou para trás, viu que Leo se arrastava pela
mesma razão que o levava a ele a correr; entrou na sala de estar e
carregou em interruptores que acendiam luzes nas mesinhas e por
sobre os quadros - de tal forma que, quando entrou com toda a
calma na sala, Leo viu-a exactamente como Nick a vira dois anos
antes, com todos os seus reflexos e sombras e o brilho dos
dourados. Nick parou diante da lareira, desejando ansiosamente
que tudo aquilo redundasse num triunfo para ele, mas pautando as
suas reacções pela curiosidade reprimida que encontrava no rosto
de Leo.
- Não estou acostumado a isto - disse Leo. -Oh...
- Não bebo whisky.
- Ah, não, bom...
- Sabe-se lá o efeito que este copo de whisky pode ter em mim...
Posso tornar-me perigoso.
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para mostrar até que ponto era fácil, e sentiu o choque da água
fria um nadinha abaixo da fina película quente da superfície.
Deixou-se ficar na água, boiando apenas e acenando para Wani,
que parara todo curvado como um esquiador, mas com uma mão
apertando as narinas; e que, um momento depois, se atirou - de
cabeça - para as águas do lago. Emergiu ofegante, numa agitação
de braços e, por um segundo, Nick pôde ler no seu rosto um medo
impossível de disfarçar. A água desfizera os caracóis negros, que
lhe caíam agora sobre os olhos e as orelhas. Nick, sempre a boiar,
abeirou-se de Wani, e sentiu a mão dele cravando-se no seu braço;
deixou que as suas pernas errassem e deslizassem
consoladoramente entre as pernas dele, e, com a mão que tinha
livre, afastou-lhe o cabelo para trás, e isso, pelos vistos, acalmou
Wani, que, um instante depois, desatou a nadar num bruços
apressado, o corpo muito direito, como se nada tivesse
acontecido.
Por uns breves minutos, nadaram num círculo imperfeito, seguindo
os cabos brancos entre as bóias que marcavam os limites da área
reservada à natação. Para lá dessa fronteira, supunha Nick, a
água devia ser demasiado rasa por sobre a lama funda e macia.
Para dizer a verdade, Wani até nadava bastante bem, com a
cabeça sempre erguida e a expressão cómica de alguém que é
forçado a ser um tipo simpático, apesar das partidas que lhe
pregam; parou numa das bóias e agarrou-se a ela para descansar,
com um sorriso ofegante, e um aceno da cabeça que parecia dizer
«Eu sou capaz!», bem como «Hás-de pagar-me por isto». Nick
pegou nos óculos de protecção que balouçavam lassos à volta do
pescoço, ajustou-os bem ajustados e mergulhou. Sob a cintilação
amarelada da superfície, a água ganhava um tom verde lodoso que
logo escurecia num castanho sujo, um mundo de cores de vidro de
garrafa. Rodopiou, matutando na partida que ia pregar a Wani.
Bolhas, a reverberação que vinha das dóceis ondinhas à
superfície, restos de folhas negras revolvidos pelos seus
movimentos, giravam e escapavam-se em torno das pernas de
Wani, que permaneciam suspensas, condenadas a um indolente
cbassé, na régia presunção de que não haveria nenhum ataque
subaquático. E talvez fosse demasiado infantil, com Wani
completamente à sua mercê; em vez de se agarrar a ele ou de
desatar a fazer-lhe cócegas, Nick disparou rumo à superfície,
numa ânsia de ar e de riso. Tê-lo-ia beijado se, nesse momento, um
velho
e vigilante cavalheiro não andasse a rondar, engatador, tão perto
deles.
Largaram de novo a bóia e Nick depressa tomou a dianteira e foi o
primeiro a voltar à bóia, triunfando sobre Wani, decorando com
arabescos o seu firme curso, e, ao mesmo tempo, espreitando
para ver quem é que andava por ali. Era difícil distinguir todas
aquelas cabeças, amaciadas e polidas pela água; porém, através
dos óculos molhados, cada figura à espera no molhe ou subindo
para a jangada ganhava o fulgor de uma nova possibilidade. Nick
nadou até perto da velha plataforma uma vez; deu a volta, sempre
de costas, enquanto ele e um casal que estava lá em cima se
perguntavam de onde é que se conheceriam.
Depois de uma volta quase completa ao lago, Wani já tinha a sua
conta; por um minuto, boiaram apenas, entretidos a conversar,
enquanto Nick olhava para a direita e para a esquerda com olhos
de ver. Adorava o lago, mas sentia-se desapontado, talvez ainda
fosse demasiado cedo, o pico do calor ainda estava para vir,
comparava a calma daquele dia e a água fria do lago com os
domingos cheios de gente do ano transacto, durante a onda de
calor, a jangada numa loucura de mãos que se agarravam à
madeira e de corpos que saltavam para cima dela, os balneários a
abarrotar de gente determinada, as bichas na relva lá fora,
apinhadas como uma cidade com uma dúzia de bairros rivais.
Havia gritos e grandes convulsões na água para os lados da
jangada, onde um novo grupo se juntara. Nick sentiu o irresistível
apelo da curiosidade e viu que tinha ali uma possibilidade de exibir
Wani e de se exibir perante Wani, o que dava duas vaidades numa
só, e ambas deliciosas. Wani tremia e Nick não resistiu a dizer-lhe:
- Não podes parar, tens de te mexer - e logo se afastou para o meio
do lago. Dois homens morenos com calções pretos estavam de pé
em cima da jangada, repelindo desajeitadamente uma corpulenta
e musculada bicha loura que tentava subir; a balsa, embora muito
guinasse e bamboleasse, não corria o risco de se virar. Dois outros
homens que estavam agachados numa ponta caíram à água,
caíram porque queriam cair, no fundo atiraram-se mais do que
caíram, brincando como miúdos, e logo desataram a nadar de volta
à jangada, a fim de participarem na batalha. Seguiram-se trinta
segundos de combates, que alguns levaram mais a sério do que
outros,
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ou com mais atenção ao seu aspecto. Nick seguiu tudo aquilo com
uma intensidade sorridente, à procura do seu lugar na cena.
Um instante depois, veio uma espécie de trégua e toda a gente
voltou para cima da plataforma, de tal forma que, quando passou,
Nick pôde passear os olhos por pernas suspensas, pichas
apertadas em estranhos ângulos, cabelos raiados de sol e peles
luzidias, um quadro vivo e flutuante de homens contra o céu. O
sexo deixava-os meio conscientes, meio esquecidos, da imagem
que davam de si; alguns eram desportistas repousando numa
entorpecida camaradagem, mas outros nem por isso, bem pelo
contrário, pois mexiam-se e bem, e davam as mãos, e respiravam
lascivamente nos rostos uns dos outros. Davam pontapés na água,
indolentes, mas intencionais. Um deles, que estava de pé na parte
de trás da jangada, curvou-se para a frente, abandonando o pano
de fundo do céu e das árvores, e Nick estendeu-lhe a mão e
elevou-se no ar e pulou para cima da plataforma, todo a escorrer
água, enquanto duas bichas se afastavam num ápice para lhe dar
espaço. Ficou de pé, ofegante e sorridente, num frouxo mas
curioso abraço com os homens que estavam no meio. Tinha a
sensação de que havia naquilo tudo qualquer coisa de
evanescente e harmónico, de ardentemente desejado e repetido -
eram talvez as árvores que tudo rodeavam, e as águas da cor da
prata, o abraço de uma infância solitária, e a necessidade de ser
puxado para o meio de um expectante círculo de homens.
- Não o vi no Bang a semana passada? - perguntou o homem ao
lado dele, que lhe pusera uma mão firme no ombro e a deixara
ficar.
- Creio que não - disse Nick, que, na realidade, nunca estivera no
Bang. No entanto, tinha na memória uma qualquer imagem
daquele homem, uma qualquer excitação não localizada. Só ao fim
de um momento se deu conta de que costumava vê-lo no ginásio Y,
no ano anterior, talvez, na zona dos duches; e um momento mais
para confirmar que, enquanto ele, de uma forma lenta, mas sem a
menor gravidade, ganhara peso, o espanhol (se é que era mesmo
ele), de cabelos negros e seco de carnes, com uns largos e
rosados mamilos, emagrecera de forma bem visível,
transformando-se numa versão inquietantemente bela, como que
desgastada, corroída, de si mesmo. Encostava-se levemente a
Nick agora
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- Chama-se Andy.
- Andy, é? - disse o homem. - Anda cá, Andy! - gritou, levantando-
se. - Mostra-nos lá esse teu cu!
- E mostra! - disse o seu velho protector. - E mostra!
A jangada abanou e, na outra ponta, um homem lustrosamente
musculado ergueu-se das águas num rodopio e aterrou nas tábuas
com um prometedor estrondo. Nick viu Wani olhando de relance
para o homem sob as suas longas pestanas, como que avaliando
um novo tipo de problema ou possibilidade; Nick lembrava-se de o
ter visto por ali no ano anterior. Tinha olhos escuros e estava a
ficar calvo; o rosto era redondo, com um belo nariz comprido e a
expressão indolente, mas concentrada, de um homem que não
pensa senão em sexo. Nick lembrava-se do seu olhar descansado,
ocioso, das enormes pupilas negras que pareciam encher-lhe os
olhos, da cheia e curvilínea massa cingida pelos calções pretos.
Quando se sentava, o estômago fazia uma suave curva para fora;
parecia condenado à obesidade, mas, para já, conseguia manter
um equilíbrio razoável entre gordura e músculo.
Wani estava sentado com os joelhos erguidos, o cabelo puxado
para trás em ondas brilhantes, que se encaracolavam de novo à
medida que ia secando. Recuperara parte da sua pose social, e,
com ela, um ar vagamente superior, como se estivesse com medo
de ser reconhecido ou de agradar a alguém. O homem mais velho
dirigiu-se a Nick com ele de permeio. - O rapaz, agora, anda com
mil cuidados...
- Aha... - disse Nick.
- Pelos vistos, o KY já não serve. Temos de ter uma outra
substância, uma coisa chamada Melisma. Só que, pelos vistos, o
Melisma também já não serve. De maneira que, agora, vamos
passar para o Crest. Mas todo o cuidado é pouco com aquelas
horríveis camisinhas. Nunca pensei que, um dia, chegássemos a
isto... O que é que você usa?
- Seja como for, tenha cuidado com a saúde do menino - disse o
homem de voz ríspida, que, não havia dúvida, começava a sentir
por Andy um interesse bem visível. - Já agora, amigo, Crestj é uma
marca de pasta para os dentes - acrescentou, e, um segundo
depois, mergulhou e disparou, com braçadas vigorosas, na
direcção do rapaz.
- A propósito, o meu nome é Leslie - disse o homem mais velho.
Wani virou a cabeça e acenou-lhe. - Olá. Antoine.
- Estava cá a pensar, de onde é que você é?
- Sou libanês - disse Wani com um rápido e irónico sorriso, no seu
mais irónico acento inglês. Nick atentou no seu perfil aquilino e
não resistiu a um sorriso malicioso. Gostava que os outros homens
reconhecessem o glamour de Wani, era como se, num rápido
acesso de ciúmes, se reacendesse a velha paixão que sentia por
ele desde Oxford, e que se confundia com um desejo ampliado e
disseminado pelo mistério. Agora, Wani baixara as suas
extraordinárias pestanas e os olhos fixavam-se de novo no chão.
Nick lembrava-se dele em certas ocasiões, depois de uma aula,
por exemplo, ou depois de uma daquelas raras noites em que não
era solicitado pelos seus outros mundos e voltava para a
residência universitária, ou, mais exactamente, para o quarto de
um qualquer estudante pobre, com a sua estante de livros de bolso
e um póster de Dylan, para conversar um pouco mais acerca de
Culture and Anarchy ou North and South, comparando e trocando
notas à volta de uma caneca de Nescafé, fazendo um esforço
docemente respeitoso para mostrar que partilhava as
preocupações dessoutros rapazes, e, como um membro da família
real de visita à residência, sem se aperceber minimamente da
atitude desajeitada e deferente dos outros. Alguns dos estudantes
mais arrogantemente snobs, como Polly Tompkins, troçavam do
seu refinamento e diziam que ele não passava de um filho de um
merceeiro, um daqueles imigrantes que vendiam limões e laranjas,
«uma rameira cockney do Levante», para usar a expressão de
Polly; segundo essas versões, Wani era um rapazinho libanês, tão
lindo, tão giro, que fora mandado para Harrow(1), onde se
transformara num fleumático e ocioso gentleman inglês.
Consideravam alguns que Wani também se transformara num
panasca só porque usava calças justas e porque era
desconcertantemente belo.
- Mas diga-me, o que é que faz na vida? - perguntou Leslie.
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- Bom, com o ar que ele tem, só se pode chamar Ricky disse Wani,
que, para tirar os calções, se sentara na relva, embrulhado numa
toalha.
- Será que estás com uma erecção? - disse Nick.
- Não sejas pueril - disse Wani. E virou-se para Nick com um olhar
que era um misto de desafio e de súplica melancólica. - E se
fosses perguntar-lhe se quer ir connosco para casa?
- O quê? Àquele «Ricky»?
- Não é para isso que servem sítios destes? Uma pessoa não vem
para aqui por causa do exercício, pois não?
Nick não resistiu a um risinho. - Não tens de ficar como louco logo
da primeira vez que te levo a passear - disse.
Wani corou um pouco, mas não desviou os olhos. - Sinto-me
tentado a pensar que podia ser muito excitante... - disse. - É um
tipo bem ordinário.
Nick espreitou uma vez mais na direcção de Ricky, que flanava
num jeito simpático, convidativo, pelo caminho dos balneários e
que, evidentemente, flanava também na memória de Nick como
um potencial inexplorado. Ao mesmo tempo, sentia um vago aviso
de perigo. Wani não sabia em que é que estava a meter-se e a
metê-los - e Nick também não.
Quando voltou a olhar para Wani, já este estava de pé, com as
cuecas vestidas, a enfiar os jeans. - Excitante, seria, sem dúvida -
disse Nick, secamente. Ao que Wani respondeu com um tremor
das sobrancelhas e um azedo franzimento dos lábios, como que a
dizer - Deixa lá... - Tirou o relógio do bolso e pô-lo no pulso.
- Se não o convidares rapidamente - disse -, não vamos ter tempo.
Lamento, mas pensava que gostavas do género.
- Sim, não há dúvida que é uma brasa - disse Nick, e reparou que
estava a descrever-se a si mesmo, pois a inesperada ansiedade
que sentia deixava-o que nem um tição. Detestava ver a bela boca
de Wani franzindo-se daquela maneira e sentir o seu desdém, que
era tão divertido e excitante quando visava os outros. Queria
apenas amor (e, hoje, talvez, uma espécie de obediência) de Wani,
que sabia que as tácticas locais de argumentação e persuasão o
deixavam confuso e perturbado. - Muito bem, eu vou lá e convenço-
o a vir connosco - disse, fazendo de conta que, também para ele,
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mas aquela sensação... Devia ser por causa de qualquer coisa que
pensara fazer, um trabalho de pesquisa, talvez, histórico, ou
emocional... Porém, enquanto perscrutava, por entre a sucessão
ininterrupta de árvores, as belas e antigas casas de tijolo por
detrás de grades altas, a casa onde Coleridge vivera e morrera, e
depois, com o carro deslizando muito de mansinho, as mansões
georgianas com escadarias e pátios para as carruagens, Nick teve
a espectral impressão de que já estivera ali, de que fora levado até
ali numa qualquer noite ilocalizável, por causa de um qualquer
evento irrecuperável. - Foi aqui que Coleridge viveu - disse, cheio
de um fulgor devocional com que pretendia também comover Wani
e que, depois, prolongou, em jeito de provocação perante a
evidente falta de interesse do amante.
- Está bem - disse Wani.
- Só quero ver a casa onde os Fedden viviam. Uns velhos amigos
meus... - explicou ele a Ricky. - Sei que é no número trinta e oito...
- Estamos no dezasseis - disse Wani.
Era uma das rotinas sentimentais dos Fedden, falarem dos seus
«tempos em Highgate», e Gerald punha-se a evocar a primeira
casa onde a família vivera num tom que combinava a nostalgia e a
auto-irrisão, como se estivesse a recordar os dias passados numa
residência estudantil. Rachel costumava dizer que era «uma casa
amorosa», fora nela que criara os filhos, e uma foto de Toby e
Catherine, com dez e oito anos, sentados nos degraus da frente,
permanecia numa moldura de prata algures no seu toucador. Para
Nick, visto que se tratava do primeiro lar da sua segunda família, a
casa possuía uma obscura aura romântica, obviamente mediada
pelos relatos que ouvira. Quando chegaram ao número trinta e
oito, depararam com um contentor a abarrotar de madeira
escaqueirada e uma casa de banho portátil azul no jardim da
frente.
- Hum - disse Wani. - OK... - E virou-se para Ricky com um olhar
encorajador, não fosse ele chatear-se de morte com aquilo tudo. -
Não resta grande coisa.
A casa estava a ser restaurada, mas o restauro era tão completo
que mais parecia uma demolição. O telhado era como uma outra
casa, feita com andaimes e o respectivo revestimento. Tinham
arrancado quase todo o estuque das paredes, de tal forma que era
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- É uma verdadeira dádiva divina, este sítio - disse ele. Nick achou
tudo aquilo muito pequeno; o ginásio, então, não chegava aos
calcanhares do Y; apercebeu-se de que, quando ia a um ginásio,
qualquer que ele fosse, o encarava como um sítio gay, só que este
ginásio específico não era gay. Um velho com um casaco branco
distribuía toalhas e, por via do hábito, parecia já não ligar às
obscenidades dos quadros superiores do banco. Nick fez um
circuito leve, descuidado, de facto só para agradar a Sam, que
pedalava numa bicicleta ao mesmo tempo que fazia as palavras
cruzadas do Times. Sentia que não conhecia Sam muito bem e
tinha a vaga sensação de que ele o tratava de uma forma
condescendente. A afável sagacidade oxfordiana de Sam ganhara
uma capa de dureza; havia nele um fulgor que ecoava o fulgor do
edifício, um vigilante meio sorriso de secreto conhecimento. Por
todo o lado, viam-se homens levantando e baixando pesos tão
impetuosamente quanto podiam. Nick não sabia ao certo se
estariam a exercitar a sua agressividade ou a descarregá-la. Nos
duches, gritavam esotéricas fanfarrices de cubículo para cubículo.
Nick imaginara um almoço num velho e murmuroso restaurante da
City com paredes divisórias de carvalho e criados de casaca. O
sítio aonde Sam o levou era tão ofuscante de luzes e tão ruidoso e
enorme que, quando se sentaram, teve de lhe explicar aos gritos
os pormenores do seu negócio com as cinco mil libras. Quando
percebeu do que se tratava, Sam recuou na sua cadeira por um
instante, para mostrar que tinha pensado que só poderia ser uma
coisa realmente importante. - Bom, que divertido - disse.
No restaurante, quase só havia homens. Nick estava contente por
ter vestido o seu melhor fato e por pouco não lamentava o facto de
não ter posto gravata. Eram homens mais velhos, de olhar
aguçado, com um ar vagamente fustigado por causa da velocidade
e do ruído, a sua dignidade ameaçada pelos ferozes jovens que já
tinham as garras cravadas num novo tipo de sucesso. Alguns dos
jovens eram belos e excitantes; uma espécie de implacável
impulso sexual - na imaginação de Nick, era assim que eles
sentiam o seu próprio poder. Outros eram os feios e
marginalizados do recreio da escola básica ou secundária, que
haviam feito do dinheiro o seu melhor amigo. Não, de facto aquele
ambiente era muito pouco public school. Como toda a gente tinha
de gritar, parecia haver no ar
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- Mas Antoine diz que também está a trabalhar com ele, na Ogee?
- Oh, o meu trabalho na Ogee não é, de facto, grande coisa...
- Mas não está a escrever um filme? Foi o que ele disse.
- Bom, gostaria de escrever um filme. Num certo sentido, sim, é
verdade... Temos algumas ideias. - Sorriu polidamente para além
da noiva, a fim de integrar a mãe de Wani na conversa. Como era
tudo o que tinha, disse: - De facto, sempre desejei muito fazer uma
adaptação ao cinema de The Spoils ofPoynton... - Ao ouvir isto,
Monique recostou-se com um aceno apreciativo e Nick sentiu-se
encorajado a prosseguir: - Creio que poderia ser verdadeiramente
maravilhoso, não lhes parece? Não sei se sabem, mas Ezra Pound
disse que The Spoils of Poynton não passava de um romance
sobre mobiliário, com o que, obviamente, pretendia depreciar a
obra de James, mas foi precisamente isso que me atraiu no
romance!
Monique sorveu o seu gin tónico e fitou-o com um ar vagamente
interessado, e, depois, como que em busca de um sentido para o
que acabara de ouvir, os seus olhos percorreram num relance as
mesas e as cadeiras. Claro que não fazia a menor ideia do que é
que ele estava a falar.
Martine disse: - Portanto, quer fazer um filme sobre mobiliário?
E Monique, levantando a voz enquanto o Ferrari passava a rasar
pelos seus tornozelos: - Fomos ver um filme que estreou há dias,
um filme tão interessante, tão bonito, O Quarto com a Vista.
- Ah sim - disse Nick.
- Passa-se quase todo em Itália, que é um país que nós adoramos,
foi uma maravilha.
Martine surpreendeu ligeiramente Nick, ao dizer-lhe: - Acho tão
maçadora, esta tendência que há agora, passa-se tudo no
passado.
- Ah... Estou a ver. Quer dizer, todos estes filmes de época...
- Sim, todas estas coisas de época. Os actores ingleses não
ficarão fartos? Passam o tempo todo vestidos a rigor... Não há uma
única cena em que não apareçam em traje de cerimónia...
- É verdade - disse Nick. - No entanto, se virmos bem as coisas...
Actualmente, toda a gente anda vestida a rigor o tempo todo, não
é? - Na realidade, era em Wani que estava a pensar: Wani que,
além de ter três casacos de smoking, aparecera no baile de
caridade
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da personagem do esteta, mesmo numa casa em que as coisas
realmente boas tinham a aparência ofuscante das reproduções.
- Também posso ir? - disse o pequeno Antoine que, de uma forma
muito óbvia, adorava, tanto como Nick, o sorriso e os afagos do
primo; mas Emile, irritado, ordenou-lhe que ficasse.
- Vamos começar por cima - anunciou Wani mal deixaram a sala e
começaram a subir os degraus dois a dois. No segundo lanço disse
baixinho: - Não me contaste onde é que estiveste a noite passada.
- Oh, fui ao Heaven - disse Nick, um nada apreensivo por estar a
dizer uma verdade inocente.
- Gostava de saber uma coisa... - disse Wani, sem olhar à sua volta.
- Fodeste com alguém?
- Claro que não fodi com ninguém. Estava com Howard e Simon.
- Suponho que uma coisa impede a outra - disse Wani, permitindo a
Nick um ínfimo sorriso. - Então o que é que fizeram?
- Bom, tu já estiveste numa discoteca, querido - disse Nick, com
uma voz cujo sarcasmo quase ansiava pela sua própria anulação. -
Foste fotografado em diversas discotecas com a tua noiva.
Fartámo-nos de dançar e de beber, foi isso que fizemos.
- Mm. Tiraste a camisa?
- Creio que vou deixar isso à tua ciumenta imaginação - disse Nick.
Atravessaram o patamar e entraram no quarto de Wani. Este
passou pelo quarto numa pressa, com um ar, quase imperceptível,
de quem estava a fazer uma concessão, de quem contava com
Nick para não examinar com demasiada atenção o conteúdo do
quarto, e entrou numa casa de banho contígua, totalmente branca.
Nick seguiu-o devagar. Tudo naquele quarto lhe interessava, era
um espaço morto e vivo ao mesmo tempo, fotografias de grupo, de
Harrow, de Oxford, os membros do Martyrs' Club com os seus
casacos cor-de-rosa, Toby e Roddy Shepton e os outros; e os
livros, o Arnold e o Shakespeare, edição Arden, e as lombadas cor
de laranja, já muito estaladas, do Middlemarch e do Tom Jones em
edições da Penguin, o tipo de letra e as cores familiares, as
colecções e as ideias de toda aquela fase das suas vidas,
encalhadas e abandonadas, murchando e definhando como num
milhar de outros quartos já demasiado pequenos
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- Ah sim...!
- Não sei se sabe, mas, de facto, ele é um pintor impressionista.
- Mm, e quase, de algum modo, um expressionista, também - disse
Nick.
- É extremamente contemporâneo - disse Monique.
- É um colorista ousado - disse Nick. - Muito ousado...
- Mas diga-me, Nick - disse Bertrand, colocando o seu guardanapo
aberto sobre a mesa, e arrumando o seu vasto sortido de facas
sobre o lustro vítreo do tampo da mesa -, então como está o nosso
amigo Gerald Fedden? - O «nosso» podia abarcá-los apenas aos
dois, ou apontar para uma amizade com a família, ou, num sentido
mais vago, que Gerald estava do lado deles.
- Oh, não poderia estar melhor - disse Nick. - Está em grande
forma. Tremendamente ocupado, como sempre...! - Havia na
expressão de Bertrand uma boa-disposição tingida de
persistência, como que se quisesse mostrar-lhe que podiam ser
francos um com o outro; depois de ter ignorado Nick durante a
primeira meia hora, virava agora para ele o foco da sua confiança,
com o instinto de um homem que, não obstante todos os
obstáculos, consegue sempre o que quer.
- Você vive na casa dele, não é?
- Sim, vivo. Era para ficar só umas semanas e já lá estou há quase
três anos!
Bertrand deu à cabeça e aos ombros, como se aquela fosse uma
situação perfeitamente normal. Quem sabe se o tio Emile não viria
a ser uma visita de três ou mais anos... - Eu sei onde fica a casa
dos Fedden. Convidaram-nos para o concerto, já não me lembro do
que é, mas é na semana que vem, e está claro que iremos, com
todo o prazer.
- Ah, óptimo - disse Nick. - Creio que vai ser muito interessante. É
um concerto de piano, com uma jovem estrela da Checoslováquia.
Bertrand franziu o sobrolho. - Sei que dizem que ele é muito boa
pessoa, um raio dum bom tipo!
- Não, para dizer a verdade, trata-se de... ah, está a falar de Gerald,
claro, absolutamente!
- Ele vai chegar ao topo da pirâmide. Ou quase ao topo. Qual é a
sua opinião acerca disso ?
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- Oh, oh, não sei - disse Nick. - Eu, de política, não percebo nada.
Havia alguma crispação no rosto de Bertrand. - Bem sei, você é o
raio do esteta...
Nick era amiúde pressionado para revelar uma visão mais íntima
da personalidade e das perspectivas de Gerald, e, por norma,
vacilava na sua lealdade. Agora, disse: - Uma coisa é certa, Gerald
está loucamente apaixonado pela primeira-ministra. Mas não há
nenhuma certeza quanto à possibilidade de uma tal paixão ser
retribuída. É possível que ela esteja a fazer-se difícil. - O pequeno
Antoine deu uma dupla espreitadela furtiva a Nick, como qualquer
criança que ouve coisas que, em princípio, não deveria ouvir, e o
rosto de Bertrand crispou-se ainda mais sobre o melão. Nick
lembrou-se de que aquela família tinha uma visão muito austera no
que tocava à propriedade sexual. Mas foi Monique quem disse:
- Oh, eles estão todos apaixonados por ela. Ela tem olhos azuis e
hipnotiza-os. - Os seus olhos escuros procuraram
estremecidamente o marido e, logo a seguir, o filho.
- É só uma espécie de amor cortês, não é verdade - disse Nick.
- Pois... - disse Wani, com um aceno da cabeça e um breve riso.
- Imagino que já tenha estado com a grande dama - disse Bertrand.
- Nunca estive - disse Nick, num tom humilde, se bem que jovial.
Bertrand pôs uma estranha cara, os lábios dilatados e, ao mesmo
tempo, franzidos, e, por um momento, olhou fixamente para um
qualquer ponto imaginário e, sem dúvida, muito distante, até que
retomou o diálogo: - Sabe com certeza que ela é muito minha
amiga.
- Ah, sim, Wani disse-me que a conhecia.
- Claro que ela é uma grande figura da nossa era. Mas também é
uma mulher muito atenciosa. - Bertrand estava com o ar piegas de
um brutamontes que louva a gentileza de outro brutamontes. - Ela
sempre foi muito atenciosa comigo, não é verdade, meu amor? E é
claro que tenciono retribuir essa amabilidade.
- Ah a...
- Quer dizer, em termos práticos, em termos financeiros. Vi-a um
dia destes e... - Bertrand deteve-se, agitando impacientemente
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a mão esquerda para mostrar que não ia revelar o que fora dito;
mas logo prosseguiu, com bizarra candura: - Vou fazer um
importante donativo para os fundos do Partido, e... quem sabe o
que virá depois, - Trespassou e engoliu um gomo de laranja. - Os
meus princípios são estes, meu amigo, quando alguém nos ajuda,
nós temos a obrigação de retribuir essa ajuda, de compensar essa
pessoa - e trespassou o ar com o garfo vazio.
- Ah, com certeza - disse Nick. - Não, não tenho a menor dúvida
quanto a isso. - Sentia que, inadvertidamente, se tornara o foco de
uma intensa animosidade por parte de Bertrand.
- Nesta casa, não ouvirá uma única queixa acerca dessa grande
senhora!
- Bom, e na minha também não, posso garantir-lhe!
Nick lançou um olhar rápido aos rostos submissos dos outros, e
pensou que, na realidade, em Kensington Park Gardens, a
veneração de que a «senhora» era objecto, aquele estado de
mesmerizada cogitação em que Gerald mergulhava por obra e
graça da «grande dama», encontrava pelo menos um contrapeso
nos monólogos de Catherine acerca dos sem-tecto e nas irónicas
alusões de Rachel à «outra mulher» na vida do marido.
- Pelos vistos, está a subir cada vez mais alto, o nosso amigo
Gerald - disse Bertrand, num tom mais sereno. - Diga-me, Nick,
quais são exactamente as funções dele agora?
- Faz parte da equipa do Ministério da Administração Interna -
disse Nick.
- Isso é bom. Foi rápido como um raio, o nosso amigo.
- Bom, Gerald é ambicioso. E conta com... o apreço dela.
- Vou ter uma conversa com ele quando for lá a casa. Claro que já
o vi noutras ocasiões, mas você pode apresentar-nos de novo.
- Seria uma honra - disse Nick -; absolutamente. - O homem de
casaco preto começou a remover os pratos e, nesse preciso
momento, Nick sentiu que o poder constante da coca começava a
esbater-se, era uma outra coisa que também estava a ser
removida, a exultação de meia hora antes estava a tornar-se cada
vez mais irregular e dúbia. Dentro de quatro ou cinco minutos,
daria lugar a uma insipidez ainda mais desolada do que aquela que
substituíra. Contudo, pouco depois, os criados começaram a servir
o vinho, o que provocou nele uma divertida sensação de alívio e
dependência.
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- Hum...
- O segredo foi aquilo que eu vi, foi aquilo que vocês tinham em
Londres, naqueles tempos, já lá vão vinte anos. Vocês tinham os
supermercados e tinham as velhas lojas locais, as lojas de esquina
que é uma coisa que existe há centenas de anos. De maneira que,
o que é que eu faço? Junto o raio das duas coisas, o
supermercado e a loja de esquina, e faço o mini-mart, com todo o
tipo de coisas que você pode comprar no Tesco ou num raio de um
supermercado qualquer, mas mantendo aquele ambiente local,
aquele ambiente de loja de esquina. - Ergueu o seu copo e bebeu
como que fazendo um brinde ao seu próprio engenho. - E sabe qual
é a outra coisa, claro?
- Oh!,hum...
- As horas.
- As horas, claro...
- Abrir cedo e fechar tarde, apanhar as pessoas antes do trabalho
e apanhar as pessoas depois do trabalho, não apenas o raio das
simpáticas donas de casa que saem para comprar um maço de
cigarros e dar dois dedos de conversa.
Nick não estava certo se aquele seria o tom especial de Bertrand
para falar com um idiota ou se a simplicidade do tom reflectiria a
sua visão, muito própria, das coisas. Disse, com uma nota crítica: -
Mas algumas das lojas não são nada assim, pois não? Aquela que
existe em Notting Hill, por exemplo, onde nós vamos sempre. É
verdadeiramente magnífica - e deu aos ombros, em sinal de
respeito, ainda que um respeito algo entorpecido.
- Bom, agora você está a falar dos Food Halls! O que dá o raio de
duas coisas diferentes: os Mira Marts e os Mira Food Halls... Sendo
que estes últimos, os Food Halls, são para o raio das zonas ricas,
dos bairros finos. Temos uma loja dessas aqui perto. Você sabe de
onde é que isso vem.
- Do Harrods - disse Wani.
Bertrand lançou-lhe um rápido olhar furibundo. - Claro que vem do
Harrods. A mãe do raio de todos os Food Halls em todo o mundo!
- Adoro ir ao Harrods Food Hall - disse Monique -, e ver as
grandes... homards...
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que pegou no dinheiro e logo o fez desaparecer uma vez mais sem
olhar.
Pararam nas traseiras da igreja que ficava no cimo de Ladbroke
Grove, no umbroso quarto-crescente de plátanos. - Muito obrigado
- disse Nick. Tinha mesmo de se apressar, mas não queria parecer
desagradável. Com um ar pensativo, Ronnie contemplava a vista
através do pára-brisas.
- Isto aqui é uma igreja antiga, Nick - disse ele. - Deve ser antiga.
- É, bom, é uma igreja vitoriana, suponho eu, não é? - disse Nick,
que, de facto, sabia tudo o que havia para saber acerca da
igreja.
- Ai é? - disse Ronnie e pôs-se a dar à cabeça. - Fogo, a quantidade
de coisas antigas que há por aqui.
Nick não estava a perceber aonde é que ele queria chegar. Disse: -
Não serão assim tão antigas, talvez de 1840 ou à volta disso? -
Sabia que nem toda a gente tinha uma noção precisa do que era a
história, uma imagem útil, como ele tinha, dos séculos como uma
sucessão de salas, um sem-número de salas numa enfiada.
Durante meio segundo, passou em revista aquilo que sabia acerca
da igreja, o retábulo do altar tinha sido concebido por Aston Webb,
a igreja fora construída no local onde, muito tempo antes, se
erguera a tribuna de honra de um hipódromo. Era uma curiosidade
pertinazmente gótica numa rua de estuque.
- Podes crer, pá, vou mudar-me para aqui, caralhos me fodam se
não me mudo para aqui - disse Ronnie, no seu murmúrio queixoso.
- Mm, devias mudar-te - disse Nick, sem saber por que raio é que
Ronnie estaria a dizer-lhe aquilo. Seria para lhe ser agradável? Ou
seria alguma piada, enfim, francamente tortuosa? Ainda assim,
excitava-o a ideia de o ter como vizinho. Ronnie era um tipo sexy, à
sua maneira, uma maneira desfigurada, espectral...
- Podes crer, tenho mesmo de me afastar daquela mulher - e
abanou a cabeça, rendendo-se a um riso sem ilusões. - Oh pá,
espero que não estejas com problemas destes, com mulheres, ou
estás, Rick?
- Oh... não... não estou - disse Nick. - As coisas estão
assim tão mal?
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mas ao contrário, limpar o tampo da secretária com um dedo e o
dedo nas gengivas. Por fim, enfiou o casaco, atacou os sapatos,
correu para a sala de estar e conversou brilhantemente com Sir
Maurice Tipper a propósito do test match(1).
Nick sentou-se no extremo de uma fila, como se fora um
arrumador. Do sítio onde estava, conseguia ver o patamar do
primeiro piso, onde a pequena Nina Glaserova, com o seu longo
cabelo ruivo apanhado numa trança que lhe descia pelas costas,
estava de pé e de olhos fixos, não na sala, mas num ponto muito
concreto da escura madeira de carvalho da soleira da porta. Os
olhos dela pareciam trespassar o ponto que fixavam e embrenhar-
se num espaço onde Chopin, Schubert e Beethoven aguardavam
que lhes fosse feita justiça. Escutou a história que Gerald estava a
contar - o pai, um famoso dissidente - preso - bolsa para estudar
no estrangeiro recusada - sem que parecesse reconhecer nela a
sua própria história, e sem saber (como poderia ela saber?) que
dissidente, de um modo geral, não era um termo apreciativo no
léxico de Gerald, o qual evocou - sem grande ênfase - a liberdade
artística, para logo passar a uma piada, que ela não percebeu,
ainda que a tenha levado a erguer os olhos, na direcção da sala,
das filas, daqueles absolutos desconhecidos que se riam da piada,
daquelas pessoas - talvez muito importantes - que ela tinha por
missão encantar. As palmas começaram, Nick acenou-lhe num
jeito encorajador, ela fez uma breve pausa e logo avançou
rapidamente por entre o público, com um ar de criança
desamparada, é certo, mas tão resoluta, tão decidida, que um
suspiro de ternura chocada pareceu soar como um tom de fundo,
brando, suave, sob os aplausos. A pequena Nina fez uma vénia
rápida, sentou-se e começou de imediato - e foi quase divertido,
bem como excitante, quando a invocação inicial do Scherzo de
Chopin ressoou na sala como uma mota a arrancar.
Estavam cerca de cinquenta pessoas na sala, uma frouxa
agregação de família, colegas e amigos. Nina Glaserova equivalia
a uma quantidade desconhecida e as pretensões de Gerald em
relação a ela
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Na multidão à volta do buffet (uma avalanche de cortesia trocista
e crueldade furtiva), a pequena Nina misturava-se com o seu
público, o qual, salvo raríssimas excepções, era simpático o
bastante para a saudar com um «Muito bem!», logo seguido da
pergunta: «Mas onde é que a menina aprendeu a tocar tão bem?»
Nina falava um inglês simples, inexpressivo, e o público, inglês,
falava com ela do mesmo jeito, ainda que num tom francamente
mais alto: «Então o seu pai, está na prisão"! Pobre menina!»
Mesmo em frente de Nick, Lady Kimbolton cumprimentava os
Tipper. O primeiro nome de Lady Kimbolton era Dolly, e mesmo os
seus amigos mais chegados arranjavam maneiras de evitar a
saudação que seria mais
natural(1).
- Boa-noite, Dolly - disse Sir Maurice, com uma pequena e satírica
vénia.
- Olá! - disse Sally Tipper. - Bom, foi muito agradável, o recital.
- Eu sei, verdadeiramente comovedor, não foi - disse Lady
Kimbolton. - Imagino que tenha lido o Telegraph esta manhã?
- Claro que li - disse Sir Maurice. - Os meus parabéns!
- Não há dúvida, gosto mesmo de recitais em casa - disse Lady
Tipper. - É como nos tempos de Beethoven e Schubert.
- Pois é... - disse Lady Kimbolton, inclinando para a direita e para a
esquerda o rosto quadrado, onde brilhava uma expressão
eminentemente prática, na esperança de abarcar tudo o que a
mesa oferecia.
- Nigel deve estar radiante - disse Sir Maurice.
- Ultimamente, Maurice e eu temos ido a uma série de concertos
em casas de amigos, acho uma excelente ideia - disse Lady Tipper,
que passava por ter uma pronunciada inclinação para as artes.
- Eu sei, parece que há uma verdadeira loucura por concertos -
disse Lady Kimbolton. - Este é o segundo a que assisto este ano.
- Ouvi dizer que Lionel Kessler, conhece-o, não é verdade?, teve o
Mediei Quartet em Hawkeswood para uma maravilhosa soirée
musical com Giscard d'Estaing.
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por via de alguma sugestão ainda mais terrível. Agora é que Nick
entendia as razões de Catherine.
Bertrand fez-lhe algumas perguntas acerca do recital e prestou
toda a atenção às respostas, como se estivesse num briefing para
profissionais que lhe poderia ser muito útil. «Técnica espantosa»
repetia. «Ainda muito jovem», dizia, e abanava a cabeça enquanto
retalhava o seu salmão. Não obstante toda a sua erudição e
capacidade, Nick hesitava em desempenhar plenamente o papel
de esteta, hesitava em ser ele mesmo, não fosse o seu tom tornar-
se demasiado íntimo e revelador. A influência de Bertrand era, à
sua maneira, tão forte como a da coca; de tal forma que Nick deu
por si a falar com o pai de Wani num tom francamente ríspido. Na
realidade, perguntava-se se a pequena Nina, apesar da intensidade
dos seus sentimentos, seria de facto grande coisa como pianista.
O facto de ela ser tão jovem tendia a enviesar as reacções. Fez de
conta que era Dolly Kimbolton e disse: - O Beethoven foi
verdadeiramente comovedor - mas Bertrand não via grande uso
nessa frase. Olhou para ele fixamente e disse: - O raio da última
coisa que ela tocou era mesmo boa.
Nick deu uma olhadela para a sala à procura de Wani, que estava
sentado a uma mesa com a mãe e uma mulher de meia-idade, a
qual emitia todos os sinais de uma extrema susceptibilidade e
confusão ao ver-se percorrida por aquele olhar velado por tão
longas pestanas. Da parte de Wani, era quase um engodo
irresistível, deixar que o seu olhar pousasse, vazio mas sedutor,
numa mulher. Não trocara ainda uma palavra com Nick desde que
chegara; virara-se para ele, acenara-lhe e suspirara, como que a
dizer: «Ah, estas multidões, estes deveres», no momento em que
ocupavam os seus lugares na sala. Se se sentia constrangido por
ver o pai e o amante num tête-à-tête, era demasiado inteligente
para o mostrar. Bertrand disse: - Este meu filho... A quem é que ele
está a fazer-se agora?
Nick riu-se facilmente e respondeu: - Oh, não sei. À mulher de
algum deputado, imagino eu.
- O raio do rapaz, a única coisa que sabe fazer é fazer-se às
mulheres! Todo ele é flerte! - disse Bertrand, dando muito às
pestanas, num jeito obviamente sarcástico. Cultivava uma
aparência tão esmerada, tão primorosa, tão embonecada, que
quase corria o risco de parecer camp. Nick imaginou as canseiras
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«assumindo-se» como um esteta com um nadinha de poeta, «o
homem que gosta de Bruckner!», mas cheio de medo de si mesmo.
E, agora, ali estava ele com Wani, posando para aquele efémero
retrato, numa atitude que era quase de desafio, de desafio no
espelho - e tudo voltava a ser como na primeira semana em
Oxford: o pavor de que ele pudesse desaparecer.
Disse: - Alguma vez foste para a cama com Martine? - Doía-lhe
fazer uma pergunta dessas; o seu rosto crispou-se ciumento à
espera da resposta.
Wani olhou à sua volta à procura da carteira. - Mas que pergunta
mais extraordinária.
- Bom, mas tu és uma pessoa absolutamente extraordinária,
querido - disse Nick, pensando ele, que abominava a discórdia, que
fora demasiado brusco, e passando com a mão pelos dóceis
caracóis negros de Wani.
- Olha, serve-te e cala-te - disse Wani, e apalpou-lhe o entre-pernas
quando se levantou e contornou a cadeira, como se fossem dois
miúdos no recreio da escola, e talvez com a mesma avidez e
confusão de um miúdo. Nick não resistiu. Snifou a sua linha e
afastou-se. Depois, Wani voltou a enrolar a nota e, no preciso
momento em que baixava a cabeça para atacar o pó, ouviram um
vago ruído de passos, muito perto, já na volta das escadas; e uma
voz, ofegante, indistinguível. Wani virou-se num ápice e lançou um
olhar dardejante para a fechadura da porta, e Nick, com o coração
numa disparada, reviu na sua memória o momento em que dera a
volta à chave. Wani snifou a sua linha, só por uma narina, meteu ao
bolso a nota e o pacote e virou o livro, tudo num segundo ou dois. -
O que é que nós estamos a fazer? - sussurrou.
Nick abanou a cabeça. - O que é que nós estamos a fazer...?!
Estamos só a discutir o argumento do filme, nada mais...
Wani soltou um suspiro absurdo, como que a dizer: - Enfim, pode
ser que passe... - Nick nunca o vira tão ansioso; e, de algum modo,
enquanto o olhava nos olhos, Nick sabia que Wani acabaria por
puni-lo pelo simples facto de ele ter presenciado aquele momento
de pânico. O problema era menos a droga do que a sugestão de
uma intimidade culpada. E, agora que a coisa estava feita, o único
elemento que poderia levantar suspeitas era o facto de a porta
estar fechada à chave. «Não, só dez minutos, amor», disse a
mesma
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seria o mais feliz dos homens. Tu sabes que ele odeia Barwick,
não sabes.» Nick rira-se disto, mas perguntava-se se os seus
«queridos mãe e pai» escapariam, de facto, a esse ódio. «Este é
um dia inglês clássico», estava Gerald a dizer, «e este é um
cenário inglês clássico». E Nick achou que devia recorrer da
sentença de Catherine. De certeza que, sob esta bem-disposta
impostura, há outra coisa qualquer que está a acontecer: isto não
pode deixar de ter alguma importância para ele - enquanto diz
estas banalidades todas, vai-se convencendo de que, afinal, até
está a fazer um belo discurso, deixa-se levar numa onda de
retórica e auto-estima. Saiu-se com uma graça sobre um francês
que resolveu fazer um daqueles programas de férias de bicicleta -
não correu nada mal; e, ao aproximar-se do desfecho - mesmo,
mesmo, no momento exacto - cometeu a proeza de sugerir que,
longe de ser um abastado homem de negócios que viera de
Londres para exercitar o seu ódio em relação àquela gente, ele
era, de facto, o espírito de Barwick, o Pick-wick(1) de Barwick,
abrindo a festa para o povo como se fosse a sua própria casa.
Numa investida decisiva, cortou a fita, que não delimitava nada: o
microfone espalhou pelo parque o deslizante estalido da tesoura.
Depois disto, Gerald foi conduzido numa volta quase régia pelo
recinto da festa, tolhido, no que tocava ao seu estilo, pela
presidente da Câmara, que se encaixava com toda a naturalidade
no papel de consorte. Nick queria ficar de olho nos frequentadores
dos urinóis, mas sentia também a atracção do grupo de Londres e
acabou por se juntar a Penny. - Correu bem, o discurso - disse.
- Gerald foi excelente, claro - disse Penny. - Não estamos nada
satisfeitos com a presidente da Câmara. - Observaram a
presidente, que parara na tenda das geleias e examinava os
preços como se estivessem a tentar ludibriá-la, pelo que talvez
fosse necessário regateá-los; perante o que, movido por um súbito
impulso, o deputado por Barwick, que não sabia o preço de coisa
nenhuma, tirando os do barbeiro e das várias marcas de
champanhe, pegou em cinco libras e comprou dois frascos de
geleia,
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- Vai ser uma experiência maravilhosa para ti, meu rapaz - disse
Don. E Nick pensou: Coitados dos velhos, realmente fazem o
melhor que podem; mas, por um minuto, quase os censurava por
não saberem que ele ia dar uma volta pela Europa com Wani, e por
o obrigarem a contar-lhes um projecto tão prenhe de significados
ocultos. Claro que eles não tinham culpa de não saberem, Nick
não podia contar-lhe aquelas e outras coisas, e, por isso, tudo o
que dizia e fazia transformava-se numa surpresa, grande ou
pequena mas, de algum modo, nunca inteiramente benigna, visto
que eram réplicas do terramoto, da surpresa, original, a saber, o
facto de que ele era, como dizia a mãe, um não-sei-quê.
- Porque, normalmente, é Nick quem fica a cuidar da casa, não é -
disse ela. - Quando vão de férias. - Dot agarrava-se a este facto
como uma prova de que havia pessoas importantes que
consideravam o filho um indivíduo digno de confiança, pessoas
que, pelos vistos, se estavam borrifando para o facto de ele ser,
para todos os efeitos, um não-sei-quê.
- É verdade, coitado do Nick, foi tão sacrificado com isso no
passado... Mas este ano, a nossa governanta e a filha vão ficar lá
em casa, de maneira que até podem fazer uma limpeza de alto a
baixo sem ninguém a atrapalhá-las... No fundo, para elas, acaba
por ser uma espécie de férias. - E Gerald gesticulou
generosamente com o seu copo vazio.
- Parece mesmo o género de férias a que eu estou habituada! -
disse Dott, que ansiava pelos regalos e mimos de um bom hotel,
mas que era obrigada a passar o mês de Setembro na casa da
cunhada, em Holkham(1).
Don voltou à cozinha, de onde trouxe um segundo gin tónico para
Gerald, e não mais que um dedal para ele; os pais de Nick não
estavam habituados a um ritmo tão desenfreado. - É um bom tipo,
esse Ouradi, não é? - disse.
- Não o conhecem... não... Oh, é um encanto de pessoa,
absolutamente. O meu filho Tobias e ele eram muito amigos em
Oxford, bom, vocês eram todos muito amigos, não é verdade,
Nick?
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- Quer dizer, na Tatler?
- Ah, sim...
- Claro que Nick também apareceu na Tatler, por causa daquela
maravilhosa festa que o senhor deu. Durante meses, só por causa
disso, tivemos um sucesso social que nem imagina. - Esta era uma
das gabarolices favoritas da mãe, e não passava de facto de uma
figura de estilo, visto que os pais só jantavam fora umas três vezes
ao ano. - Quem é o outro que aparece muito? Aquele muito gordo e
grande, que Nick conhece? Lord Shepton: é rara a revista em que
não aparece.
- E o que me diz do pequeno utilitário de Nick? - disse Don com um
entusiasmo ansioso.
- Mm, é um belo carrinho, de facto - disse Gerald.
- Tu disseste que ele te tinha dado o carro, meu querido, eu não
percebi muito bem...
- Eu expliquei-lhe, mãe - disse Nick -, é como um carro da empresa.
Posso usá-lo desde que esteja a trabalhar para ele.
- Ele deve ter-te em muito boa conta - disse Dot, num tom
dubitativo. - Bom, é um mundo completamente diferente do nosso,
não é? - Não encontrando nenhum sinal de assentimento por parte
dos outros, Dot, passado um instante, prosseguiu: - E como é que
está o seu filho?
- Oh, Toby está em grande forma. Criou a sua própria empresa,
uma coisa pequena, vamos ver como é que ele se sai.
- Víamos tantas vezes o nome dele no jornal! - disse Don, como se
os parágrafos de Toby sobre as perspectivas do mercado
accionista, perdidos numa remota página do jornal, tivessem
constituído os momentos culminantes das suas vidas.
- Mm, penso que aí houve um certo equívoco na direcção que ele
tomou... Sabem, é que Toby é aquele tipo de pessoa que só se
sente bem nos grandes espaços, as quatro paredes do jornal, para
ele, eram uma prisão... Bom, a coisa não durou mais que cinco
minutos; mas foi bom para ele, ter feito a experiência...
- Oh, sem dúvida...
- Foi um pouco mais que cinco minutos - disse Nick.
- Mm? Sim, Nick é capaz de ter razão - disse Gerald. - Quanto
tempo foi... Seis meses no Guardian, onde, creio,
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- Temos tantas casas dessas por aqui... Nick está farto de ouvir
isto, mas é a pura verdade: entre os meus clientes, tenho dois
condes, um visconde, um barão e dois baronetes!
- Uma lista notável - disse Gerald. - Temos de ver se conseguimos
arranjar-lhe um duque.
- Claro, o que é realmente fabuloso - disse Nick, num acesso de
vergonha -, é a qualidade do mobiliário em todas essas casas.
Coisas que estão lá há séculos.
- Sem dúvida... - aquiesceu Gerald, como se ele próprio levasse
muito a sério a questão. Ergueu e baixou as sobrancelhas, num
sinal de perplexidade perante o seu copo vazio.
Don disse: - Nick contou-me que tem algumas belas peças na sua
casa de Londres. -Oh...
- Uma boa parte são coisas francesas, não é?
- Bastantes coisas francesas, sim - disse Gerald, que não fazia a
menor ideia quanto à proveniência da esmagadora maioria do seu
mobiliário.
- E também algumas belas pinturas.
Gerald brindou os pais de Nick com um amável olhar de caridade,
colorido com um nada de impaciência, e mesmo com uma espécie
de desdém, pelo menos foi o que pareceu a Nick, que tomava o
partido de ambas as partes, como se estivesse a assistir a uma
discussão consigo mesmo. - Sabem, um dia destes deviam fazer-
nos uma visita, não lhe parece, Nick?, ou então podiam aparecer
quando nós estivéssemos fora. Olhem, apareçam em Kensington
Park Gardens enquanto nós estivermos em França e façam de
conta que estão na vossa casa. Podem servir-se da casa à
vontade. E, enquanto lá estiverem, podem apreciar todo o
conteúdo, e depois dizem-nos de onde é que veio tal peça, quais as
influências de determinado móvel, enfim, essas coisas todas...
- Bom, é extremamente amável da sua parte - disse Don, sorrindo
de uma ideia tão sedutora.
- Oh, não creio que possamos... - disse Dot, cujo medo das
liberdades em geral incluía até aquelas que poderiam ser-lhe
permitidas. - Quer dizer, é muitíssimo amável da sua parte, claro...
- Parecia esmagada pela oferta, e mascava em seco enquanto
espiava a reacção de Don. Nick, por vezes, considerava a mãe
obtusa e tacanha,
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11.
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com o gelo derretido de uma longa bebida num copo ao seu lado,
os óculos escuros postos, a cabeça curvada sobre um livro no
colo, mas sem dúvida a dormir, visto que as páginas do livro se
erguiam numa crista trémula. Para lá deles, Jasper estava
estirado na água, de barriga para baixo, agarrado aos ladrilhos
azuis da borda da piscina, o olhar perdido na paisagem, e dando
uma impressão de tédio adolescente. Vestia uns calções folgados,
enormes, multicoloridos, e, enquanto pontapeava indolente a
água, os calções cintilavam e entufavam-se, desinchavam e
colavam-se às nádegas, uma rosa, a outra verde-lima. Nick
surpreendeu Wani a olhar para ele. Nesse instante, Toby saiu do
vestiário no seu passo decidido e Catherine, como que competindo
por imaginários louros, gritou - Aqui estão eles! - e acordou-os a
todos. - Parecem mesmo uns destroços que vieram dar à piscina -
disse e rompeu num riso cacarejado, aquele estilo «amalucado»
que ela agora se permitia. Gerald desatou de imediato a falar,
Rachel toda se contorceu enquanto se espreguiçava e sentava e
os dois rapazes se curvavam, como dois rivais, para a beijarem.
Jasper atravessou a piscina num estilo tumultuoso. Havia já algum
tempo que Nick não estava com eles e, ao encontrá-los ali, no
torpor quase nu do seu mundo privado, deu-se conta de tudo o que
eles tinham de maravilhoso, e de algo mais, como numa das
fulgurantes intuições de Catherine - a prontidão com que, sem a
menor suspeita, se ofereciam ao sofrimento.
Ao jantar, sob o toldo, Nick e Wani foram obsequiados com o
segundo e último capítulo da recepção, o qual tinha por objectivo
fazê-los sentir até que ponto a vida sem eles fora monótona e
desinteressante e até que ponto ia ser agradável agora que eles
tinham chegado. Todos revelaram as suas frustrações e incitaram
os recém-chegados a fazer as coisas que haviam desejado fazer
mas não tinham feito. Ao fim de uma semana de impasse familiar,
ou de tédios que se entrosavam tão bem como os fios de um
tecido, anunciava-se uma explosão de actividade, um pico
sustentado de realizações. Wani concordava polidamente com
tudo o que lhes era proposto, embora parecesse um pouco
confrangido ao ouvir os planos de Toby para descobrir um lago
subterrâneo. Gerald disse a certa altura: - Temos mesmo de voltar
a fazer a caminhada até Hautefort,
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(II)
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A sua personagem era o do Tio Nick, adulto e céptico, uma
personagem que deixava Jasper desconcertado, mas que o
tornava cada vez mais provocante. Pensou que, se quisesse, talvez
não fosse difícil fazê-lo, mas Nick não lhe queria dar essa
satisfação. Um minuto depois, saíram da água com um ar
decididamente descontraído, a compacta e grossa erecção de
Jasper espetando-se enviesada, e foram para a casinha da piscina
e fecharam a porta. Edgar Allan Poe, dizia James, apesar de ter
sido um vulto na sua infância, não estivera «pessoalmente
presente» - de facto, «a extremidade da ausência pessoal tinha
acabado de alcançá-lo». Um minuto passou e outro e outros mais,
agora podia ouvir-se o assobio do duche do vestiário, e Nick
deixou-se ficar na sua cadeira e enxotou uma mosca que andava
de volta da sua perna e sentiu o descontentamento da manhã
crescer e transformar-se em inveja e impaciência. «A extremidade
da ausência pessoal»: por vezes, o Mestre mostrava tanto tacto
que quase se tornava brutal. Lembrou-se do que Rachel dissera
acerca do casamento de Wani e a imagem de Wani fazendo com
Martine aquilo que Jasper estava a fazer com Catherine encheu-o
de um ciúme amargo - bom, era um disparate, sem dúvida, era
uma... waffle(1). As palavras deslizavam e encalhavam sem o
menor sentido diante dos seus olhos.
(III)
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*1. Abreviando muito, Michael Foot (n. 1913) foi líder do Partido
Trabalhista britânico entre 1980 e 1983, depois de, nos anos 70,
ter passado pelo governo Wilson. Dentro do seu partido, assumiu
sempre posições claramente de esquerda. (N. do T.)
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nem se dava conta de que Sally Tipper, a seu lado na água, estava
a inquiri-la acerca da cirurgia à anca a que se submetera: de
quando em quando, a mãe de Gerald olhava de relance para Sally
com moderada apreensão. Maurice Tipper mandara pôr uma mesa
e uma cadeira sob um guarda-sol e sentou-se, com uns calções de
um tom castanho-claro bastante justos, lendo e anotando um
molho de faxes. Os lábios dele tremiam e contraíam-se com aquela
vigilância sarcástica que era a sua variedade muito peculiar de
felicidade. Desapossado da piscina, Nick foi para o seu recanto
favorito num terraço mais baixo e leu A Small Boy and Others na
companhia de uma lagartixa.
Ao meio-dia surgiram vozes e chamamentos vindos das alturas do
pátio, enquanto um grupo se reunia para o almoço. Nick subiu para
se despedir deles. Toby armara os bancos sobressalentes na
traseira do Range Rover e procedia agora a uma diligente vistoria
de segurança; ou seja, dedicava-se àquele tipo de trabalhos extra
que atrasam uma partida e disfarçam o alívio da pessoa que fica. -
Não queremos que a senhora saia disparada pelo pára-brisas -
disse ele a Lady Tipper.
- Creio que vão achar este restaurante aceitável - balbuciou Gerald
num jeito brincalhão, indicando a Maurice Tipper o lugar do
passageiro.
- O problema é que ele não pode comer coisas demasiado
condimentadas - disse Sally. - Ah, as úlceras... Um horror... - E o
seu rosto todo se contraiu numa expressão de profundo desânimo.
- Temo que o jantar de ontem quase tenha acabado com ele.
- Oh, eles vão ter todos os cuidados com vocês, vão fazer tudo o
que puderem - disse Rachel, com uma doçura inexorável. Gerald,
melancolicamente frustrado com o facto de os seus novos
convidados não repararem nas belezas do manoir, ia levá-los ao
Chez Claude, em Périgueux, por norma a prenda da última noite de
férias, na esperança de lhes arrancar uma palavra elogiosa.
- Nós achamos que o Chez Claude merecia uma terceira estrela
Michelin - disse Gerald. - Vamos a ver se concordam connosco.
- Oh, nós ao almoço pouco comemos - disse Sally Tipper. Catherine
e Jasper apareceram finalmente e Wani espremeu-se
todo excitado com eles na terceira fila. Toby fechou as portas
como se fosse um segurança, e lá foram eles, como um suave
rugido de superioridade,
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*1. No original, opera queen, uma expressão que pode ser lida
como «bicha da ópera» (e é conhecida a ligação entre gays e
ópera). (N. do T.)
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parecia - aos olhos de Nick - cada vez mais magro e aquilino. Toby
voltou a sentar-se, olhou para Nick e bebeu uns goles rápidos da
garrafa, numa exibição de timidez por causa do queria dizer. - É, tu
agora estás numa forma bestial - disse ele por fim. - Estava a
reparar nisso.
Nick meteu o peito para fora e contraiu a barriga. - É - disse, e
bebeu um rápido e orgulhoso gole.
- Não andas com ninguém agora, pois não?
Nick não podia deixar de se sentir comovido com estes pequenos
passos no sentido de uma intimidade, com a sensação de que falar
francamente com um amigo era, para Toby, uma espécie de
novidade, um luxo intrigante. Aquilo era um eco dos tempos de
Oxford, quando Nick inventava ocasiões, forjava conversas e
conseguia pôr Toby a falar, num jeito solene e ligeiramente
aturdido, dos seus sentimentos e da sua família. Era uma pena
que, agora, tivesse de lhe responder, num tom tão espontâneo
quanto possível: - Não, de facto não. - Suspirou. - Mas tu tens toda
a razão, Toby! - prosseguiu. - Por que raio é que eu não ando com
alguém? É um escândalo! - E depois, incauto: - E tu, já agora?
Andas de olho nalguma pessoa?
- Não - disse Toby -, ainda não. - Ofereceu a Nick um sorriso triste
e disse: - Tu sabes, aquela maldita história com Sophie... - Abanou
lentamente a cabeça, invocando o choque do caso. - Quer dizer, o
que é que houve de errado na nossa relação, Nick? Nós íamos
casar-nos e tudo...
- Eu sei... - disse Nick -, eu sei... - pressentindo uma oportunidade
para pôr tudo preto no branco, o que, por vezes, era um prazer
questionável.
- Quer dizer, trocar-me por um dos meus melhores amigos!
- Creio que acabarás por encarar tudo isso como uma saída feliz
para um problema sério - disse Nick, ciente de que já tinha dito a
mesma frase a Toby umas quatro ou cinco vezes.
- O sacana do Jamie - disse Toby.
- Claro que ela foi uma idiota - disse Nick, com rectidão fraternal e
uma secreta ternura. - Mas imagina só a seca: teres de passar
todas as tuas férias de Verão com Maurice e Sally!
- Claro que Maurice me critica por não ter insistido com ela, por
não ter lutado por ela. Ele achava que era um bom casamento.
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- Bom, claro que não são liras, minha cara jovem, isso posso
garantir-lhe. Nem bolivianos da Bolívia.
Houve uma pausa enquanto Catherine lhes permitia que
desfrutassem da sua confusão. Toby aproveitou para dizer
qualquer coisa de tolerável acerca dos mercados; Sir Maurice
limitou-se a encolher os ombros, para mostrar que uma pessoa
como ele não falaria de tais coisas com pessoas de tão baixo
nível.
Catherine pôs-se a remexer num pedaço de pepino que boiava na
sua bebida e, a certa altura, disse: - Reparei que o senhor deu
algum dinheiro para o peditório na igreja de Podier.
- Oh, nós contribuímos para um sem-número de igrejas e
peditórios.
- Quanto é que deu?
- Não me recordo do montante exacto.
- Conhecendo Maurice como eu conheço - disse a mulher -, só pode
ter dado muito! - Sir Maurice pusera o ar enfatuado de alguém que
estava a ser alvo de críticas.
- Deu cinco francos - disse Catherine. - O que anda à volta de
cinquenta pence novos. Mas podia ter dado - e ergueu o seu copo e
fê-lo girar, como uma espécie de telescópio, de modo a abarcar
toda a vista, incluindo os montes e a distante linha do rio -, podia
ter dado um milhão de francos e nem sequer daria pela falta do
dinheiro... E esse gesto bastaria para salvar o nártex românico!
Aí estavam duas palavras com que Maurice Tipper nunca tivera de
lidar isoladamente, quanto mais juntas. - Quanto a não dar pela
falta do dinheiro, tenho as minhas dúvidas - disse ele, num tom
francamente tolerante.
- O problema é que uma pessoa não pode contribuir para tudo -
disse Sally. - Como sabem, nós temos o Covent Garden...
- Não, com certeza - disse Catherine, tacticamente, como se, até
então, não tivesse feito outra coisa senão dizer patetices.
- O que é que se passa...? - disse Gerald, aparecendo finalmente,
de calções e sapatos de lona e com uma toalha ao ombro.
- A jovem Catherine tem estado a brindar-me com as suas críticas.
Pelos vistos, sou uma pessoa muito mesquinha.
- Não o disse de uma forma tão explícita... - corrigiu Catherine.
- Sejamos realistas - propôs Sally. - O que se passa é que algumas
pessoas são, pura e simplesmente, muito ricas.
Gerald, claramente farto dos seus convidados, olhou num tenso
relance para os degraus da piscina e disse: - A minha filha tende a
pensar que nós deveríamos repartir tudo aquilo que ganhámos
graças ao nosso trabalho.
- Nem tudo, é óbvio. Mas seria sem dúvida simpático se ajudassem
sempre que possível. - E ofereceu-lhes um sorriso de orelha a
orelha.
- Mas diga-me uma coisa, minha cara jovem: pôs alguma coisa na
caixa? - disse Sir Maurice.
- Não tinha nenhum dinheiro comigo - disse Catherine. Gerald
prosseguiu: - A minha filha vive na estranha ilusão de
que é uma indigente, em vez de... enfim, daquilo que realmente é.
Infelizmente, é impossível discutir com ela. Por muitas voltas que
a discussão dê, acaba sempre a dizer o mesmo.
- Não é isso - disse Catherine num tom vago e irritado. - O que se
passa é que eu não percebo por que raio é que uma pessoa,
quando já arrecadou, digamos, quarenta milhões, tem
forçosamente de os transformar em oitenta milhões.
- Oh...! - disse Sir Maurice, como se tivesse acabado de ouvir um
disparate absurdamente juvenil.
- Na verdade, o dinheiro, de certo modo, acaba por crescer sozinho
- disse Toby.
- O que eu quero dizer é isto: há alguém que precise de ter tanto
dinheiro? É tal e qual como o poder, não é? Porque é que as
pessoas querem o poder? Quer dizer, qual é o interesse de se ter
poder?
- O interesse de se ter poder - disse Gerald -, é que o poder permite
melhorar o mundo.
- Precisamente - disse Sir Maurice.
- Portanto, uma pessoa começa a acumular dinheiro porque quer
fazer coisas específicas, concretas, ou é só para ter a sensação
do poder, para saber que, se quiser, poderá fazer coisas?
- É a questão do ovo e da galinha, não é - disse Sally com
manifesta convicção.
- É uma óptima questão - disse Toby, apercebendo-se de que
Maurice estava a ficar pelos cabelos.
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- É uma dura e amarga aprendizagem... - disse Nick. - Mas sim, nós
estamos a aprender a comportar-nos de uma forma segura.
Sally Tipper ficou de olhos pregados nele. - Certo... - disse.
Sir Maurice pareceu não dar por nada, mas, em Sally, havia um
pequeno espectáculo de ingestão. Nick queria pôr as coisas na
linguagem dela, mas não encontrava o léxico adequado. - Sabe, há
coisas muito simples que têm de ser feitas. Por exemplo, as
pessoas têm de usar protecção... está a ver, quando estão a...
quando dão... as suas voltas.
- Claro - disse Sally, com nova sacudidela da cabeça. Nick não
tinha a certeza de que ela estivesse a entender. Aquelas palavras,
tão gentilmente polidas, serviriam para alguma coisa? Sally tinha
um ar de quem estava disposta a assimilar as coisas, e,
simultaneamente, um ar de perplexa e atemorizada indignação. -
Era isso que ele costumava fazer, não era, enfim, imagino eu, o
vosso amigo, o actor? Dar as suas voltas?
- Isso quase sem dúvida - disse Nick. Sir Maurice emitiu um ruído
áspero, dispéptico, como se estivesse a mascar um bombom de
menta. - Mas, como todos nós sabemos - prosseguiu Nick num
jeito insinuante, e com uma espécie de zelo enfastiado, agora que
o momento chegara -, há outras coisas que podem ser feitas. Por
exemplo, há o sexo oral, que pode ser perigoso, mas que é
seguramente menos perigoso.
Sally aparou isto estoicamente. - Está a falar de beijos, não é?
Sir Maurice fuzilou Nick com o olhar. - Francamente - disse -, aquilo
que você está a dizer provoca em mim uma profunda repugnância
física - e parecia estar a rir-se, de tão enojado que se sentia. - Se
há coisa que não entendo é que as pessoas fiquem surpreendidas.
Não há razão nenhuma para surpresas Toda essa história tinha
ficado completamente fora de controlo. Eles tiveram o que
mereciam.
Sally, por um instante iluminada pela sua invulgar conversa com
Nick, disse, indomável: - Oh, Maurice, no que toca a esta questão,
é perfeitamente medieval! Tal e qual a rainha Vitória! - Era uma
pequena experiência de liberdade, a tontice do seu tom quase
convidava à repreensão.
- Eu não me envergonho daquilo que penso - disse Sir Maurice.
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- Não faz sentido usar-se umas vezes e outras não. Não sabes por
onde é que ele anda.
- Oh, Nick, ele é a inocência em pessoa. Jasper nunca esteve com
mais ninguém.
- Não, enfim...
Catherine ficou por um segundo embasbacada. - Portanto, se não
fomos nós...
- Podia ter ficado na sanita desde a noite anterior... É uma
hipótese... - disse Nick com uma despreocupação condenada,
observando a amiga enquanto ela, ao jeito de uma Agatha Christie,
passava em revista todos os suspeitos, tanto os possíveis como os
francamente impossíveis. Pensou que talvez Catherine, como Poi-
rot, conhecesse já a solução antes de ter entrado no seu quarto;
porém, quando ela se levantou e se encaminhou para a janela e,
por fim, se virou, Nick encontrou no rosto dela o choque, ou
mesmo a repulsa, da descoberta.
- Santo Deus, que estúpida que eu sou - disse ela.
Nick olhou para ela e ela olhou para ele. Sentiu, também ele, a
dolorosa estupidez da descoberta, e também uma espécie de
orgulho, rondando ainda apenas, aguardando por um aceno de
permissão para se consubstanciar num sorriso. Catherine não
conseguia encobrir a natureza e a escala do logro em que caíra.
Julgou ver nela uma rápida recuperação, o reemergir da sua
simpatia por todo o tipo de libertinagem. - Sim - disse Nick -, talvez
ele seja, de facto, verdadeiramente brilhante.
Catherine deixou a janela e voltou para a sua poltrona, envergando
um ar tão digno quanto lhe era possível. - Já não o acho nada
brilhante - disse.
Nick retorquiu cuidadosamente: - Quer dizer, ele era brilhante
quando pensavas que me enganava... Mas deixa de ser brilhante
quando descobres que é a ti que ele engana. - Sentiu, sem tempo
para aprofundar a questão, que podia haver uma ocultação
brilhante de uma coisa simples ou mesmo sórdida; e que podia
haver uma ocultação simples e pateta de algo fulgurantemente
inesperado. Enredado naquela ocultação específica, acostumado a
ela, não sabia em que categoria integrá-la. - Claro que isto é tudo
ideia dele - disse.
- Quer dizer, como é que ele consegue aguentar?
- O secretismo? Ou a minha pessoa?
- Deixa-me rir.
- Bom, o secretismo... - Ao longo da sua vida, Nick sentira-se
amiúde um advogado incapaz de desenvolver eficazmente as suas
alegações; dificilmente conseguiria defender a sua própria causa,
quanto mais a de outra pessoa; porém, neste caso específico,
mostrava-se categórico, nem que fosse pela necessidade regular
de se convencer a si mesmo. Conferiu, erguendo os dedos de uma
mão, os cinco pontos da sua defesa: - Wani é um milionário, é
libanês, é filho único, vai casar-se, o pai é um psicopata.
- Mas como é que tudo isso começou? - disse Catherine,
considerando os cinco pontos ou demasiado óbvios ou demasiado
complicados para que merecessem a sua atenção. - Há quanto
tempo é que isso dura? Quer dizer, meu Deus, francamente, Nick!
- Ooh, há cerca de seis meses.
- Seis meses?! - e, uma vez mais, Nick ficou sem saber se seria
demasiado tempo ou se, pelo contrário, não seria tempo bastante.
Catherine olhava-o fixamente. - Vou escrever uma carta àquela
rapariga francesa! Coitada, o sofrimento em que ela vive... e há um
ror de tempo!
- Não vais fazer isso nem nada que se pareça. Daqui a um ano,
essa pobre rapariga francesa será uma ditosa mulher casada.
- Com uma bicha libanesa que tem um pai psicopata...
- Não, querida, com um jovem muito belo e muito rico que a fará
muito feliz e lhe dará montes de belas e ricas crianças. - Era uma
perspectiva penosamente ampla.
- Então e tu?
- Oh, eu vou ficar bem.
- Não vais continuar a comê-lo depois de ele se casar com a pobre
rapariga francesa, espero...
- Claro que não - disse Nick, considerando com um sorriso
cristalino a única coisa em que não queria pensar. - Não, nessa
altura, arranjo outro!
Catherine fitava-o e não parava de abanar a cabeça; já podia tirar
a conclusão moral que mais lhe agradava: - Santo Deus, os
homens...! - disse. Nick riu-se com algum constrangimento; sentia-
se objecto tanto de compaixão como de ataque.
- Mas agora a sério, tens de me jurar que não dizes nem uma
palavra a ninguém.
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- Está descansada que nós não te vamos propor um ménage a
trois.
Ela pôs um sorriso sarcástico. - E quem é que costumam levar
para a cama?
- Oh, só estranhos. Ele pede-me que eu engate tipos para ele. Ou
então arranjamos um prostituto, sabes como é. Um stricher.
- Um quê?
- É como lhes chamam em Munique.
- Estou a ver - disse Catherine. - E isso não é um bocado arriscado,
quer dizer, para quem quer manter tudo no mais absoluto segredo?
- Oh, creio que o risco é o grande atractivo da coisa - disse Nick. -
Ele gosta do perigo. E gosta de se submeter. Eu próprio não
entendo muito bem a coisa, mas ele gosta de ter uma testemunha.
Gosta de todas as coisas que são o oposto daquilo que parecem.
- Não sei explicar bem, mas tudo isso me parece perfeitamente
patético - disse Catherine.
Nick prosseguiu, sem saber se a prova que ia apresentar
interessava à defesa ou à acusação. - E farta-se de gritar, lá isso é
verdade.
- O quê? É uma daquelas bichas que anda sempre aos gritinhos?
- Não, grita muito, mas é na cama, faz uma barulheira tremenda. -
Talvez fosse melhor não lhe contar o que se passara naquela
manhã em Munique. - Uma manhã, em Munique, foi hilariante... -
disse. - Fez tanto barulho no quarto, creio que ele não deu por isso
que, quando saímos, as criadas estavam todas a rir-se no corredor.
Catherine fungou. - Russell ficava sempre todo satisfeito quando
eu gritava - disse.
Uma vez mais, Nick permitiu a alusão; ouviu-a com um vago
sorriso, pensou e, por fim, disse, com um estremecimento de
desagrado: - Bom, acontece que ele tem uma pancada horrível por
pornografia.
-Oh...?
- Quer dizer, não vejo problema nenhum na pornografia, mas, por
vezes, uma pessoa sente que a pornografia é a verdadeira bitola, a
bitola profunda, para a sua vida.
Catherine ergueu as sobrancelhas e soltou um suspiro profundo. -
Santo Deus... - disse.
Nick desviou o olhar, para a janela aberta, primeiro,
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(VI)
Os Tipper partiram no dia seguinte. Secretos sorrisos de alívio
admitiam também um vago sentimento de culpa, do que resultava
uma tendência para a intransigência e o confronto.
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12.
Por ocasião das bodas de prata dos Fedden, Lionel Kessler deu
duas prendas a Gerald e Rachel. A primeira apareceu de manhã,
no banco de trás do seu Bentley, e foi o próprio chauffeur quem
levou para a cozinha a robusta caixa de madeira.
- O tio Lionel é mesmo um querido - disse Toby, ainda antes de
saberem o que vinha lá dentro.
- Espero que seja prata - disse Gerald, com uma chave de
parafusos na mão e um ar que associava a cupidez a algum
enfado.
Lá dentro, encaixado num suporte metálico e protegido por vários
anéis de espuma de borracha, estava um jarro de prata roco-có. O
corpo da coisa tinha a forma de uma concha e o bico era
suportado por um tritão barbado. «Santo Deus, Nick...», disse
Gerald e com tal ênfase que Nick assumiu de imediato o seu papel
de intérprete - disse que, em sua opinião, o jarro devia ser obra de
um dos prateiros huguenotes que tinham trabalhado na capital
britânica em meados do século XVIII, provavelmente Paul de
Lamerie, já que o artista mais importante nessa área era também
o único que lhe ocorria, e, com Lionel, tudo parecia possível. «É
maravilhoso», disse Gerald: «uma obra de raro engenho.»
Espreitou para dentro da caixa, a ver se trazia alguma nota, como
as instruções de rega que acompanham uma planta mais frágil,
mas não havia nota nenhuma. Nick explicou que a pequena cena
em relevo, com Eros brincando com a espada da Justiça,
significava Omnia Vincit Amor. «Ah, absolutamente adequado»,
disse Gerald, timidamente pomposo,
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quase com uma sensação de que estava na igreja, ou, pelo menos,
de algo que se confundia com a recordação de uma solenidade. No
espelho da sala de entrada, Nick era lustre e sombra no seu novo
fato de cerimónia e nos sapatos reluzentes. Saudou Rachel e
Catherine na sala de estar e desataram a tagarelar como se
fossem convidados, numa alegre inversão de papéis,
transformados pela seda e pelo veludo, pelas jóias e maquilhagem,
em criaturas de sala de estar. Os estrondos do fogo de artifício
provocavam neles um apetite pelo frívolo. Da cozinha, vinham
repetidas explosões abafadas das rolhas do champanhe, sinal de
que os criados estavam prontos para a função. - Querem que vá
buscar uma bebida? - disse Nick.
- Sim, sim, vá. E, já agora, veja se encontra o meu marido - disse
Rachel.
Espreitou para a sala de jantar, tão cheia de mesas separadas
como um restaurante; Toby, de pé, junto a uma mesa, parecia ler
um cartão. Estava a ensaiar o seu discurso, silenciosamente. -
Abrevia o mais possível, querido - disse Nick.
- Nick... Que porra...! - disse Toby, com um arreganho preocupado. -
Sabes que uma coisa é fazer um discurso para as tias e para os
tios e, estás a ver, camaradas da universidade, mas outra coisa,
completamente diferente, é fazer um discurso para o raio da
primeira-ministra.
- Não entres em pânico - disse Nick. - Nós vamos todos gritar:
«Muito bem! Muito bem!»
Toby ofereceu-lhe um sorriso triste. - Não achas que ela é capaz
de ter de ir a uma cimeira ou qualquer coisa do género à última
hora?
- Quer-me parecer que a cimeira vai ser aqui. Para o teu papá, de
certeza que é. - Nick contornou as mesas, cada lugar com o seu
guardanapo em forma de mitra e o seu cartão com o nome a tinta
preta. Nada de títulos, claro. Curvou-se sobre aquela que iria ser a
cadeira de Sharon Flintshire. - Adoro estas imagens do feliz casal.
- Pois é - disse Toby. - A Cat fez mesmo arte, hã? Catherine
encostara ao aparador uma coisa que se assemelhava
a um trabalho escolar; fotografias ampliadas de Gerald e Rachel
antes de se casarem ladeavam uma foto formal de casamento,
com imagens, obviamente posteriores, da família, por baixo. Fazia
lembrar
um cartaz com as fotos do elenco de um qualquer teatro do West
End que exibia a mesma farsa há um ror de anos.
- A tua mãe era tão bela... - disse Nick.
- Pois era. E o pai também.
- Tão jovens...
- É... Para dizer a verdade, o pai não gosta muito dessas fotos. Não
queria que a Dama o visse na sua fase hippy. - A julgar pelas
fotografias, a fase hippy de Gerald atingira o seu clímax contra-
cultural quando ele usara suíças e uma gravata com motivos
florais.
- Não consigo fazer uma ideia da idade que eles teriam aqui...
- Bom, o pai vai fazer cinquenta anos no próximo ano, de maneira
que tinha... vinte e quatro; e a mãe tem mais alguns anos do que
ele, claro.
- Nestas fotos, têm a nossa idade - disse Nick.
- Não perderam tempo, foi sempre a andar... - disse Toby com um
pequeno sorriso triste.
- Contigo é que eles não perderam tempo nenhum, meu querido -
disse Nick, fazendo, divertido, as suas contas. - Deves ter sido
concebido durante a lua-de-mel.
- Creio que sim - disse Toby, simultaneamente orgulhoso e
embaraçado. - Algures na África do Sul. A mãe era virgem quando
se casou, eu sei que era, e, três semanas depois, estava grávida.
Foi sempre a andar, de facto.
- Realmente... - disse Nick, pensando nos anos que os seus pais
tinham demorado para o ter a ele, ao mesmo tempo que, com um
sorriso íntimo, contemplava as suas próprias liberdades.
Toby deu mais uma olhadela ao seu discurso. Não parava de
morder o lábio. Nick observava-o afectuosamente: o casaco
desabotoado sobre a faixa carmim do smoking, os pesados
sapatos pretos, o cabelo curto, que fazia com que o rosto
parecesse mais gordo, como uma constrangida réplica do pai, mas
do pai como ele era agora, não quando tinha vinte e quatro anos.
Num impulso lento, Nick arriscou: - Talvez eu tenha precisamente
aquilo de que precisas. Isto é, caso estejas interessado numa
pequena... hum... ajuda química.
- A sério...? - disse Toby num tom que misturava espanto e
interesse.
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- Oh - disse Toby.
- Até podias fazer um discurso mais virado para a tua mãe.
- Certo... Oh pá, quem me dera que fosses tu a escrevê-lo. - Toby
errava ansioso pelo quarto, as costas curvadas, os ombros caídos.
Ouviram a campainha a tocar, sinal da chegada dos primeiros
convidados. - Quer dizer, o que é que eu posso dizer da minha
velha?
- Podes falar de tudo aquilo, e não é pouco, que ela teve de
suportar com Gerald - disse Nick, sombriamente consciente de
que Rachel não sabia da missa a metade. - Não, é melhor não
dizeres isso - acrescentou, com notória prudência -; não, o que
tens a fazer é muito simples: abrevia o discurso. - Imaginou Toby
de pé a falar para os convidados, a sua ansiedade completamente
exposta perante uma multidão que a bebida teria já estimulado no
sentido da brutalidade, mas também do enternecimento. - Não te
esqueças de uma coisa: toda a gente te ama - disse, na esperança
de que isso o ajudasse a não dar tanta importância ao sortido de
monstros que o esperava.
Toby baixou-se, snifou a sua linha e recuou; Nick aguardou e
observou-o, procurando os sinais da dissolução amorosa, sem
fazer ideia da cor que essa dissolução ganharia nele. - Há que
tempos que não experimentava... - disse Toby, meio a protestar,
meio a justificar-se. E, passado um instante: - Mm, isto é muito
bom... - E, um minuto depois, numa rendição radiante: - Isto é
mesmo material do bom, Nick, lá isso é. Onde raio é que foste
arranjá-lo?
Nick snifou vorazmente a sua linha e limpou a mesa com a ponta
do dedo. - Oh, para dizer a verdade, foi Ouradi quem mo arranjou.
- Certo - disse Toby. - É, Ouradi tem sempre material do bom.
- Tu costumavas snifar com ele, em tempos que já lá vão.
- Pois foi, isso aconteceu uma ou duas vezes. Mas pensava que tu
não consumias nada... - Toby avançou para ele num jeito
desenvolto e Nick teve de fazer um esforço sobre-humano para não
o beijar e não lhe apalpar a picha, como teria feito com Wani. Em
vez disso, disse:
- Olha, toma, leva o resto. - O resto era cerca de um terço de um
grama.
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- Oh pá, não, não posso - disse Toby, ainda que, no seu rosto, se
notasse, nesse mesmo instante, a fulguração da posse.
- Não, toma lá - disse Nick. - Eu já tenho a minha dose, mas tu,
bom, é natural que precises de mais. - E estendeu-lhe a minúscula
embalagem, quase uma cartinha, de facto, um bilhete amoroso,
bilhete esse, como sempre acontecia com Ronnie, que fora feito
com uma página de uma revista de mulheres nuas: um mamilo
enorme cobria a embalagem como se fosse um selo. Toby pegou
nela e, após um momento de reflexão, enfiou-a no bolso interior do
casaco. - Eh pá, é mesmo fantástico! - disse. - É, acho que as
coisas vão correr bem esta noite, sabes, vou fazer o que tu
disseste, abreviar o discurso - e desatou a tagarelar, movido pela
mera animação de uma primeira linha de coca. No caminho para
baixo, disse a Nick: - Claro, querido, se quiseres mais, diz-me; eu
não vou usar isto tudo.
- Não, eu não vou precisar de mais.
Avançaram num jeito descontraído, quase deslizante, pela sala de
estar, onde Lady Partridge estava a falar de ladrões com um
homem do Ministério das Finanças e Badger Brogan flertava de
uma forma controlada com Greta Timms, grávida do sétimo filho.
Nick circulou pela sala, sorridente e quase imune à ansiedade que
encontrava nos outros, àquela jovialidade exagerada, à
desatenção feita de relances, à sensação de uma lacuna que só
poderia ser preenchida pela chegada da celebridade. Mirou à sua
volta em busca de uma bebida. Aquele pingo de coca na garganta
deixava-o duplamente sequioso. Dois criados entraram com
bandejas carregadas de bebidas, uma aparição que o fez rir: eles
eram a resposta exacta a uma sede dupla. Por razões de beleza,
escolheu o criado moreno, de lábios carnudos: - Obrigado. Oh, olá -
disse Nick, por sobre o seu corpo erguido, reconhecendo o criado
antes de saber ainda quem ele era; só por um segundo, enquanto
tudo permanecia cintilante e suspenso, ele e o criado de olhos nos
olhos, as bolhas fluindo para logo se dissolverem numa dúzia de
copos altos. - Eu lembro-me de si - disse ele então, num tom
bastante seco, como se aquele criado tivesse deixado cair
qualquer coisa em cima de alguém, uma cena sem dúvida
inesquecível.
- Oh... boa-noite - retorquiu o homem com um ar de manifesto
agrado, de tal forma que Nick sentiu-se perdoado; e, logo a eguir:
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*1. O jazz das grandes bandas dos anos 30 e 40; Glenn Miller é o
exemplo mais conhecido. (N. do T.)
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O FIM DA RUA
(1987)
13.
Nick foi votar cedo e deu boleia a Catherine. Ela estava a pé desde
as seis porque quisera ver o pai no programa Good Morning
Britain. Durante o longo mês da campanha eleitoral, Catherine
recusara-se a ver televisão mas, agora que Gerald e Rachel tinham
ido para Barwick, parecia incapaz de fazer outra coisa.
- Que tal é que correu? - quis saber Nick.
- Foi só um minuto. Disse que os Tories tinham conseguido baixar
a taxa de desemprego.
- Essa é boa.
- É como Lady Tipper, quando diz que os anos 80 foram uma
década maravilhosa para a criadagem.
- Bom, já falta pouco para acabar.
- O quê? Ah, pois, as eleições. - Catherine pôs-se a fitar a chuva
miúda. - Os anos 80 vão continuar para sempre.
No longo túnel de árvores da Holland Park Avenue, era como se o
alvorecer houvesse sido adiado, apesar de estarem no pico do
Verão e de o sol ter nascido umas boas horas antes. Estava
precisamente aquele tipo de tempo que os políticos mais temiam,
visto que desencorajava a ida às urnas.
- A reeleição de Gerald é mais que certa, não é? - disse Nick. Em
Kensington Park Gardens, ninguém fora capaz de formular tão
simples pergunta.
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Claro que ela também andava à procura de Nick, ao longo daquele
túnel de quatro anos: como ele era e como ele mudara. - Esta é
Gemma.
- Olá - disse Nick num tom caloroso. - Nick.
- Espero que não se importe com a nossa visita - disse Rosemary. -
Fomos a sua casa. A mulher que nos atendeu disse-nos que estava
aqui.
- É maravilhoso vê-la de novo! - disse Nick, e apercebeu-se de que
a frase fora sentida pelas duas mulheres como uma contrariedade
inesperada. Havia nelas qualquer coisa de temível, com aquele
mutismo relativamente ao objectivo da visita, com aquele ar de
mútuo apoio face a um desafio que era muito mais tremendo do
que todos os desafios que Nick jamais poderia colocar-lhes. -
Entrem, entrem.
Gemma olhou atentamente à sua volta. - Há algum sítio mais
privado onde possamos falar? - disse. Era do Yorkshire, mais velha
que Rosemary, olhos azuis, cabelo pintado de preto, T-shirt preta e
jeans pretos e botas Doe Martens.
- Claro - disse Nick. - Talvez seja melhor subirmos... Fê-las sair do
escritório e entrar de novo no edifício e subir por
fim ao apartamento, com um sorriso responsável que ameaçava
deformar-se num sorriso falsamente satisfeito, como se se
sentisse muito orgulhoso do seu apartamento kitsch e do efeito
que eventualmente produziria nas duas mulheres. O próprio Nick
estava a ver todo o apartamento com um novo olhar. Sentaram-se
na biblioteca, que era uma experiência revivalista do revivalismo
georgiano.
- Olha-me só para isto... Tantos livros... - disse Gemma. Na
mesinha, como na sala de leitura de um clube, estavam
espalhados todos sos jornais do dia. ponham-na na rua, suplicava
o Mirror. TRÊS vezes uma dama, berrava o Sun(1).
- É por causa de Leo - disse Rosemary.
- Bom, foi o que eu pensei...
Rosemary baixou a cabeça, os olhos fixos no chão; não se sentia à
vontade na sala, na beira do sofá; depois, fitou-o durante breves
segundos. Disse: - Bom, sabe, o meu irmão morreu, foi há três
semanas.
*1. Three Times A Lady, de Lionel Richie, tinha sido, poucos anos
antes, número um no top de vendas britânico. (N. do T.)
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- Ai houve?
- De qualquer modo, Morgan casou-se com um homem chamado
Polly, de maneira que não há problema, parece-me.
Agora, os resultados estavam a chegar a uma tal velocidade que o
espectador teria a maior dificuldade em atentar num resultado
específico. A visão de uma vitória esmagadora ganhava forma em
vertiginosos diagramas. - Pensava que, da última vez, é que tinha
havido um deslizamento de terras - disse Catherine. - Nós
tínhamos aquele livro que falava disso.
- Sim, da última vez houve um deslizamento de terras, enfim, por
assim dizer - disse Nick.
Catherine não despegava os olhos do ecrã, onde o famoso
swingometer(1) estava virtualmente inactivo. - Mas não mudou
nada... - disse ela. - Quer dizer, há mais dois deputados
trabalhistas. Isto não é um deslizamento de terras.
- Oh, estou a ver - disse Nick.
- Quer dizer, um deslizamento de terras é um desastre, muda tudo
à sua volta.
- Então tu pensavas... - Parecia a Nick que Catherine, no seu jeito
desatento, mas literal, se convencera de que poderia vir aí uma
vitória esmagadora dos Trabalhistas. - É uma metáfora morta,
querida. Significa apenas uma vitória esmagadora.(1)
- Oh, Santo Deus - disse Catherine, quase chorosa.
- Quer dizer, de facto a terra desabou, e de que maneira, nas
primeiras eleições vencidas por Mrs. Thatcher, como todos nós
sabemos. E, pelos vistos, essas terras vão continuar com a mesma
configuração com que ficaram depois do desabamento.
Barwick apareceu meia hora depois. Havia um alvoroço no
estúdio, como se soubessem que qualquer coisa estava prestes a
acontecer. Nick e Catherine esticaram-se todos na direcção do
televisor. «Bem-vindos a Barwick», disse o jovem repórter
barbudo: «onde estamos no esplêndido edifício do mercado,
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por entre a multidão, apercebendo-se da vaga irritação daquela
gente por ter de se mover para lhe dar passagem; no entanto,
parou e meteu conversa com o homem do Y, de uma forma ousada,
mas desatenta. Sabia que ele tinha um pássaro - um azulão, mais
exactamente - tatuado na nádega esquerda, e vira-o com uma
apreciável erecção nos duches, mas essas agradáveis memórias
pareciam estar a perder, de uma forma constante, inflexível, todo
o sentido. Emborcou a sua bebida em goles nervosos. Depois,
desceu à casa de banho e, quando espreitou para o lado, ao longo
da fétida calha metálica do urinol, verificou que o homem fora
atrás dele; e assim ficaram por um momento, numa tensa demora,
enquanto outras pessoas entravam e saíam, até que o homem
apontou com a cabeça na direcção do cubículo vazio. Nick disse
que era demasiado arriscado, quase se sentia ofendido pelo facto
de aquilo estar a acontecer e, no entanto, estranhamente, também
se sentia tímido e grato. O homem disse que vivia no Soho, que
podiam ir para casa dele, eram cinco minutos a pé, e Nick disse
OK. Era uma espécie de abrigo, de refúgio. Vendo bem as coisas,
era um êxito rápido, notável, brilhante, uma fantasia que se
tornava realidade, mas Nick não conseguia sentir nada disso.
«Saímos pelas traseiras», disse o homem, que não perdeu tempo a
revelar-lhe o seu nome: Joe. «Oh, Ok», disse Nick. Meteram pelo
bar das traseiras, Nick com a mão pousada no ombro largo de Joe,
colando-se jovialmente a ele e passeando um olhar aturdido pela
sala para encontrar aquele sujeito franzino com um gorro de lã,
completamente desconhecido de Joe, que, em tempos, fora seu
amante.
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- Então como é que uma pessoa chama ao velho dele? - disse Brad,
abanando a cabeça enquanto se virava na cadeira.
- O pai dele é o Duque de Flintshire. Eu chamar-lhe-ia
simplesmente sir.
- Treat, santo Deus, tens razão... é Betsy!
- Eu quero que ela entre no meu filme - disse Treat. - É uma actriz
britânica fora de série!
- Não sei se terão oportunidade de conhecer o duque - prosseguiu
Nick, incerto quanto à pompa que estaria a retirar do mero uso da
palavra. Esforçava-se por falar da aristocracia num tom factual,
por causa da vergonha que aquela mania do pai, a lista de condes
e outros nobres para quem trabalhava, provocava nele. - Só estive
com ele uma vez. Nunca deixa o Castelo. Sabem, é que o duque é
aleijado.
- Ai, vocês, britânicos... - disse Treat, renunciando apenas em
parte ao seu olhar infantil apontado a Betsy Tilden. Para Treat,
Betsy possuía a grandeza de um prodígio e de um desafio, e Nick
já estava a imaginá-lo a levantar-se da mesa para ir meter
conversa com ela. Era demasiado jovem para interpretar Mrs.
Gereth; e seria uma escolha completamente errada para Fleda
Vetch. - Vocês são tão brutais!
- Mm...? - disse Nick.
- Não reparou no que disse? «O Duque é aleijado», sinceramente...
- Oh... - disse Nick, e corou como se o americano tivesse criticado
o seu dissimulado snobismo e não aquilo que realmente criticara,
fosse lá o que fosse. - Lamento imenso, mas, na realidade, o
próprio duque refere-se a si mesmo nesses termos... Ele deixou de
andar era ainda um rapaz. - Estava demasiado ansioso,
ligeiramente ofegante, até, para ser chamado à pedra numa
questão de delicadeza; e uma questão que impregnava, de uma
forma oblíqua, se bem que perceptível, aquele almoço. Pigarreou e
disse:
- Sabem, há uma coisa que tenho de lhes dizer... Ah, aí vem ele.
- Ergueu uma mão mal viu Wani aparecer na recepção junto à
porta e, quando se levantou, ouviu os dois americanos
murmurando: - Oh, meu Deus...
Avançou na direcção de Wani, sorridente e capaz, mas numa
agitação de emoções - compaixão, rebeldia, um desejo de o
apoiar,
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e um medo de que as pessoas o vissem. A rapariga pegou-lhe na
bengala enquanto o ajudava a despir o casaco. «Olá», disse Wani;
não parecia querer que Nick o beijasse. Pegou de novo na bengala,
uma elegante bengala preta com cabo de prata, e avançou pelo
chão de mármore batendo ao de leve com ela. Não se mostrava
ainda completamente convincente com a bengala; dir-se-ia um
aluno de teatro desempenhando o papel de um velho. A bengala
propriamente dita parecia atrair e, ao mesmo tempo, repelir as
atenções. As pessoas olhavam e desviavam os olhos.
Os americanos levantaram-se, Treat segurando o guardanapo
contra o peito. - Eh, Antoine, é bestial voltar a vê-lo!
- Então, como é que está? - disse Brad com uma chiadeira; claro
que estava a brincar. Por um momento, pôs a sua mão nas costas
de Wani, e Nick, do outro lado, fez o mesmo, de maneira que
pareciam estar a felicitá-lo; no entanto, aquilo que sentiam eram
as saliências da sua espinha através da lã do casaco. Wani sentou-
se, sorrindo com uma cortesia distante, como se aquela fosse uma
reunião semanal, com um formato e resultados conhecidos. Houve
uma breve pausa de silencioso ajustamento. Nick sorriu para Wani,
mas o choque logo foi renovado pela presença dos convidados e
uma bolha começou a formar-se na sua garganta.
- Então de que é que estavam a falar? - disse Wani. A sua voz, se
tal era possível, revelava uma maior exaustão do que antes,
sugerindo, ao mesmo tempo, que não podia ser forçada.
- Estava a explicar a Brad e a Treat a história da família Chirk -
disse Nick.
- Ah sim - disse Wani, como se aquela fosse uma história muito
velha e tonta. - É um título que remonta apenas ao século XIX,
claro.
- Certo... - disse Brad, dando uma espreitadela para Wani e
parecendo partilhar, simplesmente por causa dos nervos e da
desatenção, o ponto de vista segundo o qual um título do século
XIX seria uma coisa absurdamente recente.
Treat riu-se num jeito animado e disse: - Século XIX? Oh, para
mim, já é muito antigo... Serve perfeitamente.
Nick disse: - Para dizer a verdade, quem salvou o dia foi Sharon, a
duquesa... - e ofereceu a história a Wani.
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Houve uma breve pausa. Treat passou com o dedo pela franja,
Brad suspirou e disse: - É... Eu queria perguntar... - Os dois
americanos, no seu jeito assaz simpático, pareciam aliviados pelo
facto de o assunto ter sido aflorado.
Wani baixou a cabeça, o queixo quase roçando o peito. - Oh, um
desastre - disse, franzindo o sobrolho, primeiro para um, depois
para outro. - Absolutamente inacreditável. Uma das minhas
malditas companhias perdeu dois terços do seu valor entre o
almoço e o chá.
- Oh... oh, certo - disse Brad, e soltou um riso constrangido. - É, a
nós também nos correu mesmo mal.
- Cinquenta biliões voaram da Bolsa de Londres num único dia.
Treat fitou-o sem contemplações, para lhe mostrar que percebera,
mas que admitia perfeitamente a fuga ao problema. E até
ofereceu: - É verdade, o Dow desceu quinhentos pontos.
- Santo Deus, se desceu - disse Wani. - Bom, a culpa foi toda vossa.
Brad não contestou, mas disse que as perdas de empregos na Wall
Street tinham sido terríveis.
- Oh, que se lixe - disse Wani. - De qualquer modo, a Bolsa dá
sempre a volta por cima. Já começou a dar sinais disso. Recupera
sempre. Recupera sempre.
- É uma época preocupante para todos nós - disse Nick num tom
responsável.
Wani olhou-o com óbvia ironia e disse: - Estamos todos
perfeitamente bem. - Depois disso, tornou-se impossível abordá-lo
a propósito da sua doença fatal. Nick apercebeu-se de que isso
era desconcertante para os americanos, que o haviam conhecido
como um homem a um passo do matrimónio. Agora, uma
preocupação que era natural misturava-se com furtivos apelos à
memória.
Durante o almoço, Brad, tal como Wani, bebeu apenas água, e Nick
e Treat partilharam uma garrafa de Chablis. Treat mexia imenso
no braço de Nick e envolvia-o em conversas meio bichanadas em
torno de um eventual programa para mais tarde. Nick esforçou-se
por dar alguma vivacidade à conversação geral. A frieza de Wani -
o traço predominante da reunião - fazia com que todos
hesitassem. Wani parecia brincar com a ansiedade que provocava
neles.
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Wani puxou o manípulo e a porta escancarou-se para a fria tarde
azul.
- Sabes que te amo muito, não sabes - disse Nick; um segundo
antes de a dizer, a frase vogara insincera na sua mente; porém, o
facto de a dizer levou-o a sentir que talvez ainda fosse verdade.
Parecia uma maneira de disfarçar a deselegância com que reagira
ao testamento de Wani, de mostrar que procurava, um tanto às
cegas, é certo, um sentido das proporções. Wani fungou, olhou
para a mãe no outro lado da rua, mas não ecoou as palavras de
Nick. Nunca lhe dissera que o amava. Mas parecia possível a Nick
que pudesse senti-lo sem o dizer. Disse:
- A propósito, tenho de te avisar duma coisa: parece que Gerald
está metido em sarilhos.
- Oh, a sério? - disse Nick.
- Não sei exactamente o que é que aconteceu, mas tem a ver com
aquela operação de controlo da Fedray, o ano passado. Um
pequeno caso de contabilidade criativa.
- A sério? O quê? Estás a referir-te àquela história com Maurice
Tipper?
- É praticamente certo, creio, que Maurice fez tudo para proteger a
sua retaguarda. E é provável que Gerald também não venha a ter
problemas. Mas é muito natural que haja algum rebuliço.
- Santo Deus... - Nick pensou antes de mais em Rachel, e depois
em Catherine, a qual, nas últimas semanas, andava numa
excitação desenfreada. - Como é que sabes disso?
- Sam Zeman ligou-me antes do almoço.
- Certo - disse Nick, um tanto ciumento. - Tenho de lhe dar uma
telefonadela.
Saíram do carro e Nick avançou pela rua num passo lento,
arrastado; verificou que não era nada fácil acompanhar o passo de
Wani. Deu um beijo a Monique e explicou-lhe que Wani tinha
vomitado o almoço; ela acenou que sim com a cabeça, franziu os
lábios e engoliu em seco, num estranho reflexo mimético.
Mostrava-se digna e reservada, mas, quando tocou no braço de
Wani, o fulgor de um poder - há muito derrotado - sobre o filho
aflorou no seu rosto, o consolo animal de uma mãe a quem era
permitido amar e proteger o filho, mesmo contra tão desesperadas
expectativas. Quanto a Wani, de braço dado às duas mulheres,
parecia
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*1. A Fleet Street é uma famosa rua de Londres que, durante muito
tempo, foi o centro da imprensa britânica. Apesar de os principais
jornais já não terem a sua sede nessa rua, Fleet Street continua a
ser sinónimo da imprensa britânica. Private Eye é uma conhecida
revista satírica britânica lançada nos anos 60. (N. do T.)
2. Romance de Henry James, de 1881. (N. do T.)
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meu caro... - disse Rachel, enquanto Nick avançava pela sala com
uma vaga mímica servil, que não foi reconhecida como uma
brincadeira. Lionel saudou-o com o olhar e prosseguiu:
- A que horas é que ele volta?
- Há uma votação a horas tardias... - murmurou Rachel.
E Nick, enquanto arrumava o tabuleiro, deu-se conta de que,
embora não tivesse apanhado nenhum segredo, havia detectado a
nota de uma amizade mais antiga, menos reservada, que nunca
encontrara antes, aquela inteligência partilhada entre irmão e
irmã.
- Muito obrigada - disse Rachel.
- Já lhe tiraram a fotografia? - disse Lionel.
- Já - disse Nick; e, por alguma razão, acrescentou: - Quer-me
parecer que não apanharam o meu melhor lado.
- Não, eles são um horror no que toca a esses pormenores - disse
Lionel, claramente decidido a mostrar, com o seu humor e com o
facto de se ter abandonado confortavelmente ao abraço da
poltrona, que não havia razão nenhuma para preocupações. - Eu fui
avisado, de maneira que entrei pelos jardins.
- Graças a Deus que existem os jardins - disse Rachel. - Com
quatro saídas, não conseguem fazer uma cobertura total da casa.
Nick sorriu e hesitou. Faltava uma chávena para ele, mas, se havia
coisa que desejava naquele momento, era que Rachel e Lionel o
integrassem na conversa. Disse, não sem algum tacto: - Há alguma
coisa que eu possa fazer?
- Oh... - Lionel e Rachel olharam um para o outro, procurando uma
resposta no meio das suas próprias conveniências e incertezas.
Para Rachel, mesmo com a imprensa lá fora, talvez fosse
demasiado humilhante falar do caso. - Andam a dizer umas coisas
francamente odiosas acerca de Gerald - disse ela, no seu jeito
reveladoramente passivo.
Nick mascava em seco, mas lá acabou por dizer: - Wani... Ouradi
disse-me qualquer coisa acerca disso.
- Ah, bom... então quer dizer que as notícias já se espalharam -
disse Rachel.
- Minha querida - disse Lionel -, as notícias acabarão sempre por
se espalhar.
Rachel serviu o chá; parecia perdida naquela sinistra ideia
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- Bom, creio que o melhor será esperar para ver, não achas - disse
Rachel, dobrando o guardanapo e afastando a cadeira para se
levantar.
Nick e Catherine subiram à sala de estar. - Querido, não te
importas de pôr um disco - disse Catherine.
- Francamente, duvido que a tua mãe...
- Oh, só uma coisa assim agradável, estás a ver. Claro que não
estou a pensar em coisas género God-dammery. Pronto, está bem,
eu escolho. - Foi até ao armário dos discos, ajoelhou-se com a
cabeça espetada de lado, cantarolando num jeito provocador
enquanto escolhia um lp e se preparava para o pôr no gira-discos.
Nick ouviu a agulha a roçar o disco, os estalidos, aquela espécie
de crepitação.
- Baixa um pouco, está bem, querida...?
Ela baixou o som e exclamou, num jeito reprovador: - Tio Nick! - As
colunas debitavam já os pequenos e sinistros saltos com que
começam as Danças Sinfónicas, de Rachmaninov. - Aí tens. Tu
gostas disto - disse ela.
- Até certo ponto - disse Nick, apesar de saber até que ponto não
queria ouvir aquilo.
- Oh, é uma música maravilhosa - disse ela, olhando do palco para
um invisível balcão nobre enquanto erguia os braços. Nick adorara
aquela peça na sua adolescência; no seu primeiro ano em Oxford,
pusera o disco vezes sem conta, já que as Danças Sinfónicas
confirmavam e intensificavam o desejo nostálgico que, agora, lhe
parecia ter sido o meio em que vivera, um meio que passava
diante dos seus olhos como aquela infindável melodia do saxofone
alto. Agora, a melancolia da peça parecia-lhe penosa, senão
mesmo mórbida. Seguia com uma atenção moderada os
movimentos rápidos de Catherine, que revelava uma desinibição
assustadora. Também ele dançara ao som daquela música, mas
sozinho, no seu quarto, bêbedo, no final de dias iluminados ou não
pelo contacto com Toby.
- É um bocadinho God-dammery - disse ele, enquanto um cântico
ortodoxo russo se fazia ouvir. Catherine agitava febrilmente os
braços. - É um bocado como ter uma discoteca na Catedral de São
Basílio em Moscovo. - Usava estes gracejos óbvios para tentar
desembaraçar-se do seu constrangimento. Catherine sorriu,
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Quem sabe o que estará a passar-se com ela agora, sem tomar o
Librium nem nada.
- Mm... olítio...
- Sabe, trata-se apenas de uma questão de responsabilidade. Quer
dizer, nós sempre partimos do princípio de que você tinha noção
das suas responsabilidades para com ela, e para connosco,
claro.
- Oh, bom, sim...! - Nick disparou um sorriso em jeito de
comentário à ferroada.
- Tínhamos imaginado que nos contaria se, por exemplo, se
passasse algo de verdadeiramente grave. - O tom firme de Rachel
e os trejeitos com que enfatizava as suas afirmações eram uma
novidade para Nick; pareciam marcar uma mudança no seu
relacionamento, uma mudança que não seria fácil reverter. Nick
estava habituado aos seus afáveis assentimentos, às suas
objecções singularmente joviais... - Por exemplo, só ontem à noite
é que nós soubemos daquele episódio tão grave que se passou há
quatro anos.
- De que está a falar? - disse Nick abanando a cabeça. O «nós» era
perfeitamente irritante, a manifesta solidariedade com Gerald.
- Creio que sabe muito bem do que estou a falar. - O olhar de
Rachel fixou-se nele; havia nesse olhar uma repugnância
complexa; que ela prolongava numa resistência a exprimi-la por
palavras. - Nós não fazíamos ideia de que ela tinha tentado... fazer
mal a si mesma... Estávamos nós de férias em França.
- Não sei o que lhe disseram. De qualquer modo, ela não fez mal
nenhum a si mesma. Pediu-me que não a deixasse só, e eu não a
deixei só, e depois ficou bem, está a ver, o que ela teve foi apenas
uma das suas crises.
- E você nem uma palavra nos disse - disse Rachel, pálida de
raiva.
- Por favor, Rachel! Ela não queria que vocês ficassem
preocupados, ela não queria estragar as vossas férias. - Nick
reencontrava os álibis que, entretanto, quase esquecera, bem
como a aflitiva sensação de que perdera o pé e não sabia nadar. -
Eu estive sempre com ela, conversei com ela enquanto a crise
durou. - Não faltava jactância à tirada, dita num tom trémulo,
embargado.
- Sim, Catherine disse que você se comportou com ela de uma
forma maravilhosa
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(II)
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- Quer dizer, repara bem: dois dos meus melhores amigos?! Sinto-
me um idiota completo, um idiota chapado.
- Meu querido, eu sempre quis contar-te. Muito. - Uma vez mais, o
rosto de Toby pareceu ganhar a consistência de uma pedra face
ao uso da terna expressão. - Mas Wani nem queria ouvir falar de
uma tal hipótese. - Olhou num jeito tímido para o seu velho amigo.
- Eu sei que as pessoas levam muito a peito estas coisas, quer
dizer, quando descobrem que houve um segredo que lhes foi
ocultado. Mas, para dizer a verdade, os segredos são qualquer
coisa de impessoal. São simplesmente coisas que não podem ser
contadas, independentemente das pessoas a quem não podem ser
contadas.
- Hm. E agora isto. - Toby arrancou o Sun da pilha de jornais em
cima da mesa. - «Forrobodó gay: sexo a rodos em casa de férias
de ministro». - E atirou-o para longe com um ar de desprezo e uma
sugestão de desafio.
- É realmente muito suave, a ideia que eles têm do que possa ser
um forrobodó - disse Nick, procurando dar a devida proporção às
coisas.
- Suave...} - disse Toby, incrédulo, mas também com um
sobressalto de mágoa, pelo facto de estar a falar assim com
alguém em quem sempre confiara a cem por cento. Levantou-se e
avançou num jeito constrangido até ao extremo da mesa. Reinava
ainda na sala aquela atmosfera de uma ressaca prolongada, com o
brilho do sol penetrando através das fasquias mais altas das
persianas e os candeeiros de parede dourados derramando uma
luz carmesim. Toby parou, de costas viradas para o retrato que
Lenbach pintara de - quem era aquele? - ah, sim, o seu bisavô: uma
robusta figura burguesa com uma jaqueta preta firmemente
abotoada. Nick, com o olho que tinha para questões de linhagem,
via já Toby convertendo-se num segundo bisavô. Quanto à
indumentária, Toby ficava-se pelo fato escuro, camisa azul,
gravata vermelha. Ia a uma reunião e aquela breve conversa
também era um pouco como uma reunião. Toby parecia partilhar
com o seu antepassado um respeito pela indiscutível importância
dos negócios, bem como uma total inépcia, não isenta de
dignidade, para prever os escândalos daquela
semana.
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que lhe poderia ser dita, mas, um segundo depois, o seu rosto
assanhou-se de novo. E disse:
- Cale já essa boca, seu panascazeco estúpido! - Era uma frase
singular e, de algum modo, ainda mais expressiva por causa disso.
- Oh...! - Nick disparou um olhar para o grande espelho da sala de
entrada, como que à procura de testemunhas. - Francamente, isso
não são...
- Cale já essa boca, seu filho da puta de merda! - disse Barry com
um cortante cerrar de dentes, após o que zarpou num ápice,
deixando Nick para trás, rumo ao gabinete de Gerald.
- Oh, vai-te foder - disse Nick; ou melhor, murmurou, visto que
pensava que Barry era muito capaz de voltar para trás e de lhe
espetar um murro na cara; Gerald abriu a porta e espreitou para o
corredor como um mestre-escola.
- Ah, Barry, ainda bem que vieste - disse, e, por um instante, fitou
Nick com uma expressão acusatória.
- Seu filho da puta ignorante, chato, ganancioso efeio... -
prosseguiu Nick para si mesmo, na chocada hilaridade de quem
fora insultado. Errou pela sala de entrada, pestanejando de
espanto para os quadrados de mármore brancos e pretos do chão.
Quando entrou na cozinha, não fazia ideia se Elena teria dado por
aquele alvoroço. Ela protestava sempre, de um modo muito
discreto, mas sentido, contra os descuidados foda-se de Gerald, e
não era por falso pudor, a sua aversão à linguagem obscena era
sincera.
- Olá, Elena! - disse Nick.
- Então, Mr. Barry Groom vem - disse Elena. Era uma mulher
pequena mas ocupava a cozinha de parede a parede. Patrulhava-a.
- Ele quer café?
- Vendo bem, ele não disse nada. Mas quer-me parecer que não.
- Ele não quer?
- Não... - Olhou para Elena com uma ternura cautelosa, incerto
quanto ao crédito que lhe restaria dos seus anos de diligente
simpatia para com ela. - A propósito, eu não janto cá esta noite. -
Elena ergueu as sobrancelhas e franziu muito os lábios. Aos seus
olhos, as novas revelações sobre Nick e Wani deviam ser
verdadeiramente assombrosas. Não era claro se ela teria sequer
percebido
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que Nick era gay. Nick disse: - É tudo uma grande confusão, não é?
Unpasticcio... un imbróglio.
- Pasticcio, si - disse ela, com um riso áspero. Ao longo dos anos,
tinham passado alguns momentos bem divertidos com o italiano
um do outro. Elena meteu-se na despensa e continuou a falar com
ele sem se virar, de modo que Nick teve de segui-la.
- Como disse?
- Quanto tempo está aqui agora? - Erguia os olhos para a prateleira
dos enlatados.
- Em Kensington Park Gardens? Oh, fez quatro anos no Verão
passado, quatro anos e... um quarto.
- Quatro anos. Um bom tempo.
- Sim, tem sido um bom tempo - intimamente, resmungou contra
aquela pequena confusão de sentidos. Elena estava a esticar-se
para chegar às latas, mas Nick, que nem sequer era muito mais
alto que ela, antecipou-se-lhe. - Quer os borlotti} - Pôs a lata nas
mãos de Elena, de modo que ela teve pelo menos de lhe acenar em
jeito de agradecimento; depois, seguiu-a de novo até à cozinha,
como que à espera de outra tarefa. Elena apertou a lata sob o
abre-latas e fez girar o manípulo; Nick vira-a fazer isso, parecia-
lhe, dezenas, centenas de vezes, com a sua polpa de tomate e os
seus fagioli e todas as coisas enlatadas que ela preferia às
frescas. E, de súbito, tudo se tornou óbvio para ele. Disse: - Elena,
decidi que chegou a hora de apresentar a minha demissão.
Ela lançou-lhe um olhar penetrante, para se certificar de que
compreendera o que ouvira; depois, acenou de novo para lhe dizer
que tinha entendido. Quase poderia ter sorrido da hábil
embalagem da frase. Voltou para a mesa; a sua azáfama exprimia
sem dúvida uma determinação prática, mas talvez escondesse
também algum tipo de pesar perante a novidade. Quanto a Nick,
sentia-se muito abalado com a decisão que acabava de tomar.
Olhou de relance para ela com um ar confiante. Atrás dela, na
parede, estavam todas as fotos da família, e Elena parecia situar-
se, curvada e eficiente, numa relação enviesada, mas íntima, com
elas - de facto, até aparecia numa das fotos, mostrando um
soberbo Toby no seu carrinho de bebé: ela estava lá desde o
princípio, desde os lendários tempos de Highgate... Começou a
cortar algumas cebolas, mas ergueu de novo os olhos e disse: -
Lembra quando primeiro veio aqui?
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Gerald pareceu ficar muito vexado com isto, ele não queria de
Nick um pedido de desculpas capaz de amortecer o impacto da
confrontação, e, em particular, um pedido de desculpas que não o
era; que, no fundo, não passava de um gesto de comiseração em
relação à sua filha. Disse, como que num parênteses: - Quer-me
parecer que você nunca compreendeu a minha filha.
Nick tratou de agradar a Gerald, encarando esta questão como
algo eminentemente intrincado. - Suponho que uma pessoa que
nunca passou por aquilo que ela tem passado terá muita
dificuldade em entender o tipo de doença que a afecta, não só
momento a momento, mas também no que respeita aos seus
padrões a longo prazo... Eu sei que o facto de ela ter provocado
todos estes... enfim, todos estes sobressaltos... sei que isso não
significa que ela o ame menos a si ou à mãe. Quando está na fase
maníaca, Catherine vive num mundo em que tudo, rigorosamente
tudo, é possível. Embora, de facto, se possa conceder que tudo o
que ela tem feito é dizer a verdade. - Pensou que talvez tivesse
conseguido chegar ao coração de Gerald, que continuava de
sobrolho franzido e nada dizia; mas que, um instante depois, tal
como fazia nas entrevistas da TV, prosseguiu com a sua própria
fala, como se, entretanto, não tivesse havido nenhuma resposta ou
objecção.
- Quer dizer, não lhe pareceu que era bastante estranho, que era
um tanto ou quanto bizarro, você ligar-se a uma família como a
nossa?
Nick achava que era invulgar, mas era isso, esse lado invulgar, que
tornava, ou tornara, a sua ligação tão bela, tão maravilhosa; no
entanto, disse: - Eu sou apenas um inquilino. Foi Toby quem
sugeriu que viesse viver convosco. - E arriscou: - Se é certo que eu
me liguei à família, também se poderia dizer que a família se ligou
a mim.
Gerald disse: - Tenho reflectido sobre tudo isto. É aquele tipo de
coisas que lemos aqui e acolá, que encontramos em artigos, em
estudos, é uma velha artimanha, típica dos invertidos. Vocês não
podem ter uma verdadeira família, de modo que acabam por se
ligar à família de outra pessoa. E suponho que, ao fim de algum
tempo, a coisa se torna insuportável para vocês, você deve ter
sentido uma inveja tremenda, creio, de tudo aquilo que nós temos,
e vindo você de onde vem, é natural que isso também conte,
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Nick sabia que nunca mais voltaria a ver aquela foto; custar-lhe-ia
muito pô-la outra vez na mesa. A fotografia brilhava àquela luz
chuvosa como um símbolo das razões que o tinham levado a viver
naquela casa. Não era claro com Toby - tal como não o era com
Leo nem com Wani - se a fantasia seria capaz de deter a usura do
tempo, se aquele alto e elegante aluno do segundo ano com as
suas pernas de desportista e o seu maravilhoso rabo continuaria a
excitá-lo, agora que conhecia a criatura gorda em que Toby, cinco
anos depois, se transformara. Bom, não na mente, talvez, mas
numa imagem, numa foto: era preciso ter uma certa coragem
estética para - perante a crueza dos factos - se deixar levar pelas
asas da fantasia. Então, fez algo que era ao mesmo tempo pateta e
solene; no vidro, ficou a leve e enevoada marca dos seus lábios e
da ponta do nariz.
No seu quarto, tirou mancheias de livros das prateleiras e atirou-
os como tijolos para dentro das caixas. Armou-se contra o seu
gosto pela nostalgia - a longa e fluida despreocupação dos velhos
tempos tinha acabado, as questões, agora, eram mais urgentes e
incertas. A semana que aí vinha estava já ensombrada pela espera
dos resultados do teste. O passo em frente, o prematuro alívio que
sentira por estar a enfrentar o caso, por ter aceitado saber a
verdade, ainda que fosse a pior das verdades, esfumara-se por
completo nos dias seguintes; agora, quando pensava nisso, sentia-
se já inacessivelmente só. Era o terceiro teste que fazia, e esse
facto - e o misterioso número três - parecia, conforme os
momentos, reduzir e aumentar as hipóteses de um resultado
positivo.
As caixas ficaram cheias imediatamente, provando, uma vez mais,
a insondável fórmula que equipara a extensão das prateleiras à
capacidade das caixas. Levou uma delas para baixo e, no preciso
momento em que a punha no chão da sala de entrada, ouviu o som
da chave na fechadura da porta das traseiras, de sapatos que
alguém limpava no tapete, de um guarda-chuva que alguém
abanava. Elena? Ou Eillen, outra vez? Fosse quem fosse, seria uma
presença francamente indesejável. Era uma coisa que o irritava, a
furtividade daquelas mulheres, bem como a confiança. Entrou na
cozinha com um ar enfastiado.
- Oh meu Deus! - disse Penny, disparando as palavras num tom
sumido, ofegante. Brandia a sombrinha cor-de-rosa, ainda por
fechar,
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- Compreendo.
- Estou-me nas tintas para o que diz o meu pai, ou Madam, ou o
chefe de redacção do Sun.
Nick fitou-a respeitosamente, mas disse: - Pensava que ele era
para si um caso praticamente perdido.
- O quê...? Oh, estou a ver... bom, publicamente, sim. É isso que
nós queremos que as pessoas pensem.
- Disse «nós».
- Nós estamos muito apaixonados.
Nick pôs-se a olhar para o chão, talvez impaciente. Parecia que o
enredo ia continuar obstinadamente na mesma: primeiro, era
Rachel que se recusava a deixar Gerald, e, agora, era Penny que
tomava idêntica atitude. Gerald tinha de ter qualquer coisa de
extraordinário, qualquer coisa que Nick fora incapaz de
compreender. Via a história projectando-se ao longo de um
obscuro futuro; um sem-número de artigos escritos pelo Analista
Cáustico. Disse: - Mas como é que você consegue suportar o
segredo, essa espécie de clandestinidade? - com uma curiosidade
genuína quanto à resposta que uma outra pessoa poderia dar a
uma tal pergunta.
- Talvez deixe de ser um segredo.
- Hmm... - A sobrancelha erguida e o risinho irónico de Nick
fizeram-na enrubescer, mas, pelos vistos, não a levaram a alterar
minimamente a sua posição.
- De qualquer modo, estou-me nas tintas - disse ela.
- Bom...
- Catherine sempre troçou e zombou de Gerald - disse Penny, como
que incapaz de suportar o rumo que dera à conversa.
Nick disse, num jeito hesitante: - Creio que Gerald faz
praticamente o mesmo com ela. - Parecia que o mundo de Penny
só fazia sentido para ela como um campo de força de ódios.
- Eu sei que Catherine sempre me odiou - disse ela com um riso
soturno que, na prática, também não poupava Nick; Penny não o
disse, mas parecia saber aquilo que ele pensara e dissera dela ao
longo dos anos.
- Sabe que isso não é verdade - disse Nick num murmúrio apenas,
já que era inútil estar a dizer-lhe aquilo. - Creio que, neste
momento, é a si mesma que Catherine mais odeia.
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« Um livro poderoso!»
Sunday Mirror
Mirror
Evening Standard
No limiar do século XVII, um jovem tocador de alaúde chamado
Peter Claire chega à corte dinamarquesa para se juntar à
orquestra do rei Cristiano IV. Após a humilhante derrota frente à
liga católica, a Dinamarca é um reino à deriva, cujo megalómano
rei vive tomado pela raiva e pelo terror, apenas encontrando algum
consolo na música. Sua mulher, Kirsten, tem um temperamento
instável e é adúltera, facto que se tornou do conhecimento
público.
Ao aperceber-se de que a orquestra real toca nas profundezas de
uma sombria e gélida adega, Peter - que vai ter um caso amoroso
com Emília, dama de companhia da rainha - questiona as suas
próprias motivações e depressa se apercebe que chegou a um
sítio onde os estados antagónicos de luz e escuridão, paixão e
ódio, bem e mal, travam uma batalha mortal.
Tendo como cenário a Dinamarca do século XVII, este é um
romance intenso e provocador, uma magistral orquestração de
ponto e contraponto: lealdade e impostura, ternura e violência,
comunhão e alienação, paz e conflito... música e silêncio.
Sunday Times
The Times
BookerPrize, 1997
Lire
Data da Digitalização