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jornal das miudezas

o presente é um recém-nascido com séculos de vida

desde 2018 edição 4

reportagem editorial

uma noite e na escadaria


mil temporais um cafuné é
o ano novo uma colisão
prestes bem-vinda
a chegar como
descalço e quando
pontual na uma estrela
meia-noite cadente
da nossa naufraga
porta meio dentro de
aberta uma pessoa
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correspondentes flagrante
pedido em forma de manifesto:
me ensina a força do furacão página4 sem
luvas nas
a lenta
exaltação
mãos e no
do bailado paladar
silencioso para
alcançar o
o mundo diamante
como um na terra
extenso página3

salão de extra! extra!


dança o mistério está tão perto de nós
página2 quanto nossos ossos

breve entrevista quadrinha eclipses peixes descanso

sobre permanecer no eixo o sal os horários a dignidade tudo


e o pesado da vida da música raros sem palavras embaralhado
página2 página2 página3 página4 página4
2 miudezí edição 4 jornal das miudezas

q u a d r i n h a

o presente é um recém-nascido com séculos de vida

publicado desde 2018 - criação de sorver versos


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www.sorverversos.com / prosa@sorverversos.com
@sorverversos em mim
diretor de redação: andré gravatá o sal
diretora de arte: serena labate
conselho editorial e revisão: aline oliveira, elidia novaes e luis ludmer
correspondentes desta edição: ana paula navarro, anderson kubiaki,
da música
andreza sousa, elcy lopes da silva, liliane oraggio, luciana cardoso,
mariana mattar, matheus salustiano, paula ferreira, ray monteiro e guardar
tatiana vilarinho franco
uma homenagem: dedicamos este jornal para caetano veloso e joão
gilberto, por incitarem em nós a força estranha que revela o caminho
em mim
dica de leitura: procure poemas da alda do espírito santo a lágrima
agradecemos pelo apoio da “diálogos – viagens pedagógicas”, por
confiar na força das miudezas (www.dialogosviagenspedagogicas.com.br)
do peixe
agradecemos a rayssa oliveira por colaborar no fechamento desta edição

concreto escorre pela escadaria


guardar
no meio da escadaria, um cafuné de duas em mim
pessoas sentadas num dos degraus das
dezenas e centenas e milhares de degraus que o delírio
se empilhavam na cidade dos raros cafunés,
um cafuné possível de se ver lá de saturno, dos girassóis
um cafuné que tinha um relevo maior que os
próprios degraus das escadas, um cafuné é uma
mão ou duas mãos numa cabeça com cabelos guardar
brancos ou pretos ou loiros ou ruivos ou sem
fios, e um cafuné é uma colisão bem-vinda em mim
como quando uma estrela cadente naufraga
dentro de uma pessoa e daí nasce um poema.
o cafuné no meio da cidade, às onze da manhã
o rigor
da quarta-feira: sinuoso, suntuoso, um cafuné
pacífico e perolado, um cafuné na cidade dos
da semente
paletós sem chaves nem pulmões, um cafuné
que entrelaçava uma mão e calos e uma cabeça ato poético
de cabelos ralos, um cafuné de uma mão cujo lenta exaltação
sangue num ímpeto esquentava as fogueiras
todas ao redor, abria portas e escancarava as
chaves, e ver o cafuné mesmo de longe era já
receber um afago.
o concreto das cidades é covarde e escorre
pela escadaria se a gente arrisca destruí-lo
com mãos quentes de intimidade.

breve entrevista sobre a própria vida


nosso jornal muitas vezes é confundido com um panfleto de coisas
belas e fofas, mas o eixo aqui é outro: revelar a pulsação da vida e o
peso no caminho, nos aproximar de algo mais forte que a esperança.
conversamos com o poeta rainer maria rilke para provocá-lo: fale um o mundo como um extenso salão de dança:
um salão com a confirmação de bilhões de
pouco sobre o leve e o pesado.
convidados hoje à tarde e amanhã também.
num determinado ponto do salão, onde dê
rainer maria rilke: você acha que não teria sido mais fácil para a semente a impressão que nunca ninguém dançou,
permanecer na terra? não há um leve e um pesado. a própria vida é o chame alguém para te acompanhar num
pesado. e você não quer viver? bailado silencioso, como a lenta exaltação da
[as palavras de rilke fazem parte do livro cartas do poeta sobre a vida] coreografia das nuvens.
jornal das miudezas edição 4 firmamento 3

reportagem em dois atos 2.


uma noite e mil temporais era de noite e nos preparamos para o fim
de um dia de setembro como um canário se
prepara para um silêncio. nossa noite daquele
1.
dia de setembro tinha um nome: ano novo. não
era de noite e nos encontramos para uma roda de leitura de pessoas.
sabemos quando se iniciou essa prática de nós
uma leitura com o timbre da novidade: quase ninguém no grupo se
dois, mas começou em algum momento entre
conhecia e a pouca luz na sala era proposital para o estranhamento,
um beijo nosso numa rua e um dia em que
para ficar claro que o ato de ler alguém será sempre uma tentativa de
andamos pelo deserto onde uma montanha nos
aproximação, para ficar claro que a vida é ilegível, e esse segredo é o
fez lembrar: o mistério está tão perto de nós
mesmo que move o sangue nas veias das palavras.
quanto nossos ossos.
numa roda de leitura de pessoas, a gente escolhe quem vai ser lido por
nosso ano novo pode acontecer em qualquer
meio de um sorteio, porque o aleatório tem parentesco com os ventos
dia, basta que acordemos e nos demos conta
e vem daí a precisão da sua pontaria. todas as pessoas escreviam o
que no ar a atmosfera é de ritual. como amar
nome num pedacinho de papel. sempre uma fresta aberta: se alguém
o tempo novo se não escutarmos os seus
não quisesse participar do sorteio, bastava fingir que estava escrevendo
cochichos? era noite e nos preparamos para
o nome e dobrar um papel em branco.
o fim do dia com a expectativa de um ano
yara, a sorteada, se posicionou no centro. começou a contar um pouco
novo prestes a chegar descalço e pontual na
dela como um livro que é corpo e palavra em viva voz e música. começava
meia-noite da nossa porta meio aberta. como
ali a leitura de uma pessoa. suas histórias eram a agulha e a linha que
anfitriões do novo ano, nos vestimos com
bordavam em cada ouvido: “uma pessoa é um povo”. nossas perguntas
palavras bem aquecidas e cobrimos a mesa
abriam capítulos e capítulos do livro.
com uma toalha amarela e uma torta feita com
aquela leitura de pessoa durou uma noite e mil temporais.
legumes e apetite. usamos aquelas taças que
ficam guardadas numa caixa azul dentro do
armário, ligamos um pisca-pisca que não é só
lembrado no natal e por isso é íntimo de outras
estações do ano, e olhamos um ao outro muito
melhor nesse escuro entrecortado por luzes
coloridas, porque no escuro a pouca luz ganha
mais importância.
a tristeza de um fim de ano está na palavra
fim, a alegria de um fim de ano está na palavra
fim. um fim de ano como que suspende tudo
num varal para a gente passar e olhar. e o varal
é longo. imagine um varal bem longo onde
penduram sua vida e você tem uns minutos
pra correr e olhar e gritar: como descobrir o
que está escondido no ventre do vagalume?
foi depois de ver um vagalume que alguém
inventou as estrelas.
aquele ano novo durou uma noite
e mil temporais.

flagrante
hoje, o amendoim. classificados
um ramo de amendoim recém-colhido. rev e l o :
abri uma casca e dentro eram brancas as duas
os horários dos
bolinhas. brancas com manchas rosadas.
raramente notados
na boca, as bolinhas se partiam num sabor
eclipses
vago, como uma água sólida e antiga. abrir uma
que acontecem
casca de amendoim é invadi-la de sol – aquele
todos os dias
amendoim nunca tinha visto a luz. mastigar um
todos dispersos
amendoim é agir uma alquimia para que sua
no pensamento
espessura faça parte da nossa carne. o sabor
do amendoim recém-colhido: bruto, como um
diamante é bruto, como um prato de arroz int e rrompo:
e feijão é bruto na boca de quem tem fome. seu cotidiano
aquele amendoim é bruto como o tronco de com palavras e
árvore em que talharam um coração. era de um imagens
gosto antigo e recente, como pode? tinha um repentinas
sabor sem sal, sem açúcar, uma crueza sincera. como um leão
o amendoim queria de mim mais nitidez dos que boceja
sentidos para que eu pudesse alcançá-lo. depois
aquele amendoim me pedia: seja bruto como de um cochilo
um torrão úmido de terra.
jornal das miudezas edição 4 tramas 4

correspondentes

criatura voadora pousa para banquete três fases de um ciclo reunidas mulher se encanta e presenteia
pompons agitam-se (ana paula navarro) lagartixa com a liberdade
(ray monteiro e elcy lopes da silva)
– assim, há milênios, existe
(liliane oraggio)

manifesto ao vento

me arrasta com você


para outros lados, cantos e quadros
faz de mim corrente para os pássaros
alívio para os sufocados

vento ouça o meu pedido


me ensina a força do furacão
que nada pode conter
e às vezes sequer prever
você é o que é

querido vento
eu posso dar o primeiro salto
se você prometer
me encontrar lá embaixo

vento
permita-me ser levada por ti
e assim tudo vai passar,
pois eu passarei por tudo (paula ferreira) tudo é casa para poesia (andreza sousa) vozes e línguas,
algumas incompreensíveis aos ouvidos nus.
abro o forno e em ondas quentes o alecrim, o vulto branco, esfumaçado, todo desfocado –
manjericão e o alho, aquecidos pelo azeite, invadem neblina, vapor d’água, tudo embaralhado.
meu corpo e me trazem uma memória ancestral. os
um dia, assim, parado.
bosques verde-escuros, as casas de pedra, o fogo. me
lembram do frio e do aquecimento, do acolhimento as coisas também tiram um tempo de
que o odor da comida dá à minha fome ancestral. e é descanso, e repousam no flutuar do ar
verdade. eu como hoje as mesmas plantas que meus gelado. (tatiana vilarinho franco)
ancestrais comiam. o alecrim, o alho… é o mesmo
alho! ou quase? é o mesmo fogo, a mesma batata,
o mesmo ser humano que come, no entanto, está
tudo diferente. na estrutura das células mora nossa
memória ancestral. no cheiro do alecrim eu percebo
que minhas células são antigas, tão antigas quanto a
humanidade. (mariana mattar)

poeminha aleatório 16 plantão miudezas


o peixe nos olha
hoje, aquela música tocou com a dignidade
o dia todo de quem não tem palavras
estava uma verdadeira
sinfonia
ou bloco de carnaval que tal se tornar
uma mistura de desejo correspondente na
próxima edição?
alberto chilensis com passo fininho
e realidade e apressado atravessa a rua com
em busca de novos passe em casa, se quiser envie fotos
e versos para
segurança, quer chegar do outro
horizontes só não deixe aquela música lado para achar o seu ninho que
prosa@sorverversos.com
(luciana cardoso) acabar. (matheus salustiano) está enterrado (anderson kubiaki)

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