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Robson Mendes

Brincando de
Escrivinhar

Sorocaba, SP, Brasil


Copyright © by Robson Mendes, 2022.
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida
sem autorização. Mentira, pode sim. Como se alguééém
fosse mesmo fazer isso.

ISBN com números fictícios


Primeira (e única) edição, 2022

Revisão: Danubia Mendes


Capa: Robson Mendes

Impresso no Brasil
Sumário

1
Contar uma coisa triste de
um jeito engraçado

M
inha vó morreu. Assim, num belo dia ela
caiu na cozinha e partiu. #partiuvó.
Pouco antes, almoçamos juntos. Será que
foi alguma coisa que ela comeu? Tudo bem, não fui eu
quem preparou mesmo.

A sobremesa foi um pudim de pão, que por


acaso, também caiu naquela mesma cozinha horas antes
dela mesma desabar ali. Minha vó morreu como um
pudim. Como um pudim.

Eu comi, minha vó também. Eu poderia dizer


que o pudim não caiu bem? Embora ele tenha caído
duas vezes. Fora da minha vó e depois dentro dela, que
comeu o tal pudim.

Mais uma teoria: um pudim tem a capacidade de


cair num mesmo lugar. Diferente do raio.
Mas o raio, assim como a minha vó também
parte. Ou deveria ir para o raio que os parta. Estou
certo? Teria minha vó ido para o mesmo destino? Não
sei, necessariamente.

O caso é que minha vó morreu e não vou dizer


que não foi trágico. Pelo contrário, a coisa só piorou.
Após uma semana de angústia, na esperança que ela
saísse da UTI, ela saiu! Mas, morta. Mas saiu. Todo
mundo queria que ela saísse e assim foi feito.

- Deus, tira minha vó da UTI.


Tirou.
- Não, Deus, não era bem isso... Tudo bem.
Tá legal.

Agora já era. Ninguém vai pedir pra ela voltar,


de jeito nenhum. Gostamos muito dela, mas não
gostamos muito de fantasma. Então, descansou.
Mas a coisa ainda não acabou, como já disse.
Durante o período UTI, arrumei um emprego. Ou pelo
menos estava em teste.

Passei a semana trabalhando horrores. Deu até


para esquecer um pouco da vó. Mas justamente no dia
derradeiro, na resposta do teste, quando eu saberia
finalmente se seria ou não contratado, o celular toca:

- A vó morreu!

Justo hoje? Logo agora que eu precisava


mostrar motivação, alegria. Tive que solenemente
comunicar ao futuro chefe o incidente. Um pequeno
detalhe: perdi a minha vó.

E o pior, precisava sair mais cedo. Certamente


ele também já teve uma vó que um dia desabou como
um pudim. Todo mundo tem ou já teve. Uma vó que, se
não caiu, ainda haverá de cair.

Sem muita volta, abordei o diretor da empresa,


que foi muito solidário.
- Minha vó morreu.
- Meus pêsames.

Antes que eu saísse, completou:


- E meus parabéns!

Parabéns? Mas que insensí...


- Você passou no teste.

Naquela madrugada choramos muito a morte e


de certa forma celebramos a vida.

2
Contar uma coincidência
inusitada

J úlio César, famoso general romano, célebre


pela invasão e domínio da Gália, narrada
detalhadamente em sua brilhantíssima “As
Guerras Gálicas”, obra prima da prosa latina, que relata
as campanhas iniciadas em abril de 58 a.C., finalizadas
durante a primavera de 52 a.C., quando, após um cerco
de dois meses, aprisionou Vercingetórix, que depôs as
armas aos pés do audacioso conquistador do mundo
antigo.

Amante da poesia e exímio na arte bélica, esse


César foi o mesmo que perdeu a batalha pelo coração de
Cleópatra e anos depois traído por senadores num
triunvirato, comandando pelo seu filho adotivo Brutus.
O bom e velho César também era figurinha
recorrente nas aventuras de Asterix, o Gaulês, em
constantes investidas para conquistar a irredutível vila
que resistia bravamente ao invasor, graças a poção
mágica produzida pelo venerável druida Panoramix.

E a vida não era nada fácil para as guarnições de


legionários dos campos fortificados de Babaorum,
Aquarium, Laudanum e Petibonum.

Mas atravessemos o oceano do tempo chegando


ao iluminado século 21, que hoje sofre um novo tipo de
dominação: a invasão imobiliária. E vejam que
coincidência.

Conheci certa vez um outro César. Não era


general, mas vivia às voltas com suas estratégias.
Também precisava anexar novas terras ao seu pequeno
império: uma construtora em franca expansão.
César entrava em batalhas para aprovação de projetos na
prefeitura, lidava com a burocracia, precisa treinar a
tropa imensa de corretores e partir em intermináveis
campanhas.

Nas ruas, bandeiras e estandartes eram erguidos,


tremulando nas mãos de promotoras que respigavam
suor e cansaço, resistindo ao calor escaldante de um
novembro qualquer.

César seguia com os planos, vencendo suas


pequenas lutas diárias. Acrescentando uma nova porção
de terra que, depois de alguns meses, se transformaria
em um novo condomínio clube, perto de tudo e com
acesso às principais rodovias, equipado com lazer
completo.

Até aí tudo bem, tudo certo. Seria apenas uma


história comum, de um empresário chamado César, que
nada tem a ver com o imperador, não fosse mais um fato
curioso.

A esposa do César chamava-se nada mais, nada


menos, que Gália. Era ela quem cuidava de toda a
papelada mais chata, lidava com os fornecedores
História não se passa no Maine de Stephen King, com
suas paisagens

rochosas e desérticas. Muito menos em hotéis


abandonados ou cemitérios indígenas. Mesmo assim,
carrega sua mística levando-nos às margens do absurdo,
flertando com o bizarro.

A estranha criança sinistra acordou de


madrugada, desperto de um pesadelo, que ainda estava
por vir. Um sonho premunitivo.

O menino do Reino Unido não sabia, mas algo


muito ruim estava para acontecer. Um pequeno
acidente, uma dor lancinante. O monstro adormecido
dentro de si despertou. E queria sair, desesperado.
Pálido e trêmulo, o garoto acompanhara a mãe para
aquela loja de materiais para construção.

Nunca pensou que ali, forças ocultas se


levantariam para levá-lo a um estado de extremo terror.
A boca roxa, dedos rígidos. Quase como um
contorcionista, ele se movia devagar, olhos brancos fora
da órbita.

O aspecto era como se tivesse sido tomado por


alguma entidade milenar. As luzes acendiam e
apagavam, um cheiro de podridão e morte espalhou-se
aos poucos pelo corredor, tomou todas as seções.

Abutres pousavam nos postes e uma cigana do


outro lado da calçada maldizia a vida enquanto gritava:

- Eles estão entre nós. Eles já chegaram e estão


entre nós.

O bêbado na praça, tomado por um súbito


frenesi, repetia baixo:

- Arrependam-se, arrependam-se, o dia do juízo


está próximo.

Janelas se fechavam nas vielas, o céu escureceu.


Um pequeno nevoeiro tomou conta das avenidas
causando certo transtorno no trânsito. Soube-se que
alguns aviões desapareceram naquele dia, sem nunca
mais dar sinal ou emitir qualquer contato com a torre.

O serviço de meteorologia registrou alguns


pontos de tremor na terra e pessoas juravam terem visto
parentes mortos andando como outrora.

Mesmo sendo as testemunhas mãe e vendedor, a


notícia não tardou a tomar a internet, viralizando como
uma doença.

BIZARRO
1
Criança confunde privadadomostruário de loja efaz 'número 2'

Ummeninoconfundiua privada do mostruáriodeuma loja de decoração, no


Reino Unido,e fezo "número2"em um momentodedistração dospais.Amãe,
CazAkhtar, divulgouo casonasredessociaisnosábado(11)eviralizou na
internet.

Cazrelata quese distraiu porummomento para ver umvaral e,quandovirou


para olhar seusfilhos, viu omenino,apelidadodeJ,sentado na privada do
mostruário."Nãoconsigo nem acreditarnoqueaconteceu.J fez um baita cocô
em uma dasprivadasde mostruáriodalojaB&Q.Eucorriparadizer 'saiadaí',
masjá era tardedemais", dizo post. Amãefoi procuraralgo para limpara sujeira
causada pelofilho e, quandovoltou,elepermanecianaprivadaporque"tinha
queterminar".
Ojeito encontradopelo pai,AronAkhtar, para solucionar oproblemafoi pegar o
'presente' deixadopor J.

Cazaindaconta no postqueumjovem funcionário dalojanão conseguiaparar


de rir, eque 'ele ignoroucompletamente a situação.Eunãoculpo omenino!'

Alojapronunciouapenasque"trabalhamosduro para estocartudoo que


nossosclientesprecisam,quando precisam -mastudo, incluindo nossos
banheiros,geralmente éparausodoméstico!"

*Cominformaçõesdoportal The SuneSCC10

Até hoje a loja é assombrada pelo ocorrido. Às vezes,


em dias claros e alegres de sol, a louça da privada é
tomada pelo número 2, que misteriosamente aparece. E
da mesma forma, vai embora.

5
Pegue uma conversa
estranha do Grupo da
Família

A história da nossa família é longa, vem lá das


Minas Gerais. Da linhagem do lobisomem. Capitão
Mendes era dono da contenda que negociava escravos
em São Caetano da Moeda ou Moeda Velha, um
vilarejo do município de Moeda, que fica a 52 km do
centro de Belo Horizonte. Um cenário bucólico de
igrejinhas, casas simples e grandes pastos.

O lugar tinha esse nome porque lá se cunhavam


moedas falsas, para burlar o fisco imposto pela Coroa
Portuguesa, na antiga casa de fundição, hoje em ruínas.

Em 1719, foi instituída a nova lei do quinto que


determinava a instalação de Casas de Fundição nas
Minas Gerais e proibia a circulação de ouro em pó, que
era facilmente contrabandeado.
Nas Casas de Fundição o ouro seria fundido,
transformado em barras, cunhado com o selo real e
deduzido a quinta parte correspondente ao imposto. O
ouro só poderia circular após passar por todo aquele
processo fiscal.

https://entretantos.blog.br/2019/03/19/moeda-velha/

Ele foi pai da nossa bisavó Joana, que é quem conta


essas histórias.

Dizem que era homem muito ruim e cruel,


Onde ele pisou ficava um cachorro preto.

CONTAR UMA
VERGONHA
Morreu uma tal de Nica. Foi assim que eu
dei o recado para a família numa tarde comum,
enquanto minha mãe e minha vó tomavam
calmamente o café da tarde. Minha falta jeito ao
telefone quando era criança chegou ao seu ponto
mais alto.

Eu nunca atendi direito aquela coisa, até


então uma novidade. Nos anos 90, pouca gente
tinha telefone em casa, demorou para termos um.
Então, volta e meia eu confundia tudo.

Tinha um problema muito grave, eu costumava


confundir tudo bem, com tudo bom. É difícil
explica. Coisa esquisita isso. A frase ficava mais ou
menos assim.
- Bom dia, tudo buem?
- Oi, tia. Tudo beon?
Isso era algumas das minhas confusões telefônicas.
Não gostava muito de atender, era meio caipira.
E naquela tarde, fora eu quem atendera o
telefonema fatal, por assim dizer. Parentes de
Piracicaba anunciavam a morte de uma tal de Tia
Nica. Somado ao problema com minha falta de
desenvoltura ao telefone, vinha outro problema.
Minha falta de contato com parentes.

Meu universo parental se resumia no meu pai, mãe,


irmãos, poucas tias e primos, minha vó e vô.
Tirando isso, não conhecia ninguém. Quando eram
os parentes de Minas, irmãos do meu pai, a coisa
piorava um pouco. Eles mal sabiam que eu existia.

O fato é que, naquela tarde, desliguei o telefone e


fui pra cozinha, sem cerimônia. A queima-roupa
anunciei:

- Morreu uma tal de Nica!

Minha vó quase cuspiu o café, estanhou os olhos,


assustadíssima.

- O que que você falou?


- Morreu uma tal de Nica, vó.
Minha vó e minha levantaram.
- Como uma tal de Nica?? Quem falou isso?
- Não sei vó, parentes de Piracicaba ligaram e
mandaram avisar.
- NICA É A MINHA IRMÃ!
Setenta e poucos anos de vida, minha vó jamais
imaginaria que um dia ia receber a notícia da morte
da irmã assim.

Uma TAL de Nica. A minha ficha caiu na hora, que


falto de tato a minha. Ainda sou péssimo em dar
recados. Especialmente os póstumos.

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