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Boletim Escolar

Escola Estadual Primeiro e Segundo Grau João Ferreira da Silva não foi a minha primeira
escola, nem o primeiro, como se chama hoje? Espaço de Bulling. Naquela época não, nada
disso existia, nem era discutido. Os próprios professores eram exímios na arte da humilhação.
Vide minha professora de educação física do primeiro ano.

- Vamo! Bando de songueira, corram em volta da quadra e façam polichinelo.

Não sei se songueira é lá muito ofensivo, talvez o tom de voz estivesse duas notas um pouco
acima. Ou a expressão facial. Pode ser isso. Ou as duas coisas juntas. Mas não, isso é só o
arranhar de uma superfície muito mais densa e tensa chamada anos 80. Tão saudosos, com
seus espetáculos sensualizantes em plena hora do almoço ou pelas tardes de sábado,
culminando em filminhos picantes na sessão das dez da noite. Quem nunca viu Férias do
Barulho... (não veja).

Foi nessa época áurea da escola, que conseguia juntar vendedores de sonhos e doces, em seus
carrinhos coloridos, fritando no sol do meio-dia, com amargas e psicóticas inspetoras de aluno.
Sem falar das mal-amadas professoras de matemática, frustradas com seus relacionamentos
amorosos. Faço um parêntesis para uma de geografia, indecifrável. Ela só ia para a sala de
aula, sentava-se confortavelmente em sua mesa, abria a bolsa, tirava uma lixa de unha e ali,
por duas horas e meia, tirava cutículas e acertava a ponta de cada dedinho daquela mãozinha
ociosa. Enquanto isso, uma aluna mais “aplicada” escrevia toda a matéria da lousa, sem saber
que estava sendo, de certo modo, manipulada. E se orgulhava de ser a escolhida.

O dedo duro também tinha orgulho de ser o cagueta da sala, sempre tinha um. Professora saia
bater papo com as outras amigas professoras no corredor e pedia pro sujeito anotar os nomes
de quem fizesse ali a sua baguncinha inocente. Ou mesmo conversasse.

As professoras do meu tempo tinham alguma coisa contra a comunicação, a conversa quase
sempre era punida. Mas, paradoxalmente, aquele sujeito muito quieto também era
repreendido.

- Seu filho é muito reprimido, não fala muito.

Não era muito fácil atender todas as exigências. E quando a gente pegava uma professora
bipolar! Meu pai do céu, essas eram as piores. Num dia, eram as melhores amigas. No outro,
explodiam do nada.

- PROVA SURPRESA! DESCOBRI QUE VOCÊS SÃO A PIOR TURMA QUE EU JÁ TRABALHEI.

E no outro.

- Eu adoro essa classe, vocês evoluem rápido, só elogio na sala dos professores.

Pelo menos na minha escola, eram raros os professores. A maioria era mulher. Mas tinha o
Lambido. Aaahh, pobre lambido. Ele sofria bulling-reverso. Em geral, os alunos é que sofriam
perseguições, mas o Lambido era vítima dos alunos. Poucos sabiam que ele, na verdade,
chamava-se Antonio Carlos. Era uma identidade perdida, assim como o respeito que tinham
por ele, esse há muito perdido. Acho que o Lambido era uma criança grande que virou
professor. Um anão, talvez. Ninguém levava o cara a sério!

Ele era uma figura estranha, passava um gel barato no cabelo, tinha um narigão comprido, um
corpo magro, mas com barriga. Não recebia tratamento digno nem entre os seus. Os
professores o evitavam. A aula do lambido era o caos, uma coisa sem nexo. Eu me lembro que
a matéria era pra ser Educação Artística. Bom tinha muita tinta e papel amassado no chão,
muito barulho, gritos, risos. Mas tudo isso formava um ambiente hostil, tóxico. Certa vez,
passaram dos limites, colocaram papel carbono na cadeira do Lambido. Ele se sentou, ficou
com a calça toda manchada de azul, um terror. Não acho graça nisso, não mesmo.

Anos mais tarde, uns dez anos depois, vi o Lambido nas ruas da minha cidade. Todo sujo, calça
meio rasgada, falando sozinho. Passou por mim como um indigente. Acho que a escola o
enlouqueceu. Os alunos, os abusos.

Dá para você ter uma ideia do que foram os 80 na escola estadual. Pode ser na João Ferreira
ou na Daniel Verano. Um pão sempre voava na sopa de alguém. E nem todos conseguiam
manter a sanidade, seja aluno ou professor.

Mas posso afirmar, existe algo pior que a escola dos anos 80. Chama-se pré-escola. Vem
comigo!

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