Você está na página 1de 176

Felype Furtado

Romance
MIRANTE
MIRANTE Felype Furtado
Marcador de página.

Alexandre o amigo poeta, relembra saudosamente os tempos de


colégio quando morava na Capital São Paulo. Junto com os seus melhores
amigos Vanesca, Naiara, Bruninho, Jaqueline e Élido, passam por diversas
aventuras, momentos inesquecíveis e grandes histórias de amor. Nem a
distância da adolescência para a vida adulta, e os quilômetros que os
separavam, foi capaz de ruir a amizade entre esses seis amigos.

Durante o último ano da faculdade de engenharia, Alexandre narra


algumas de suas vivências do tempo de escola e vive uma linda história de
amor com uma de suas amigas que depois de anos, reaparece em sua vida.
Em MIRANTE, o leitor pode transformar-se em um desses amigos, e deliciar-se
em mistérios, viagens, amizades e romances. Baseado em histórias verídicas,
MIRANTE é contado entre o presente e o passado do narrador, que junto com
seus melhores amigos de colégio, descobrem o amor e outros sentimentos
vitais.
Ao Pai Celestial pela inspiração diária.
A Professora Maria de Jesus Furtado, minha querida Mãe por
insistentemente ter me obrigado a fazer leituras, caligrafias e
redações desde os sete anos de idade, despertando-me o talento
pela literatura, e por me proporcionar a melhor educação desde o
pré-escolar.
A mim mesmo pela superação e reconhecimento pessoal pelo talento
com as palavras.
Carta ao Leitor
Todos têm amigos, um que seja engraçado, extrovertido, o introvertido, o
palhaço, o tímido, a amiga que dança, o que canta, a que encanta. Tem o
amigo da bola, o da pelada, a bonita, aquele que só sendo amigo pra aturar.
Temos amigos chatos e legais, verdadeiros, falsos, até colegas que se
disfarçam de amigos. São muitos amigos, até amigos ocultos, secretos e
imaginários. Sinta saudade desse seu amigo, daquele do colégio, do de
infância, daquele que te conhece mais que você mesmo. Ligue para ele, façam
uma viagem juntos, visite-o, abrace-o e vale até dizer que você o ama, porque
é verdade, você o ama, e provavelmente ele também.
Brigamos, nos desentendemos, nos separamos, ficamos com raiva
daquele amigo, mas uma horinha ou outra a ira passa, arrependimento. Faça
as pazes, peça perdão, leve flores, chocolate, não perca seu amigo. Pode se
apaixonar por ele, pela amiga, ela é linda, sim, é, e vocês só querem a
companhia um do outro, a reciprocidade, o carinho, o colo, o abraço, os
conselhos, vá atrás dele.
O Nosso melhor amigo não é aquele carnal, é o amigo que temos em
comum, Ele vive nos céus, Ele é Deus, o seu melhor amigo. Sabes tudo sobre
você e te ama como um pai, te quer como um filho, seja íntimo Dele, o busque,
o procure, o aceite como Melhor Amigo.

Tenha um Melhor amigo.


Santarém, Pará- 18 de Março de 2017.
Contra capa
Amigos descritos
Amigos que vem, amigos que vão, amigos que voltam
Amigos que pensávamos que eram amigos
Amigos que não são amigos
Amigos que se perdem, amigos que se encontram
Amigos do peito, amigos da onça
Amigos de libra, amigos de escorpião
Velhos amigos, novos amigos
Amigos que morrem, amigos que nascem
Amigos de anos, amigos de segundos
Meus bons amigos, meus maus amigos
Amigos de escola, amigos de rua
Amigos verdadeiros, amigos falsos
Um só amigo, mil amigos, não importa
Se tiver um amigo que seja, não estarás só no mundo.
Sumário
Um dia, cheguei à faculdade, ou melhor, não era uma manhã, era noite,
vou recomeçar. Uma noite, cheguei na faculdade, minha sala era no segundo
andar, então, dependendo do lugar que se sentava, dava para ver a cidade.
Pequenas luzinhas, um mirante aquela sala, onde eu sentia várias emoções,
desejo, tédio, muito mais tédio que nostalgia, desejo de sair mais cedo, desejo
pelo intervalo, ou desejo de levantar no meio da aula e ir embora.
Em uma noite, a que eu citei no começo, aula de cálculos, a sala estava
praticamente vazia, final de semestre, dez pessoas, contei onze com a
professora. Alguns alunos estavam fora, matando aula, e eu nem me lembrei,
mas naquele dia ia ter um debate na aula, poucas e boas para mim, não tinha
estudado, e consequentemente não fazia ideia do que debater e opinar. A
professora estava séria, brava, despejava sermão e ladainha em dois alunos
que faziam uma prova de segunda chamada oral. Eles não sabiam responder
nenhuma das questões. Os dois completamente viajaram na maionese, não
diziam nada com nada.
Eu olhava para aquelas luzinhas, olhava e olhava lá do meu
mirantezinho, então me lembrei de alguns amigos, romances, e que romances,
meu melhor amigo Élido. Folheei a apostila de uma colega, fiz uma pequena
tese, e quando finalmente chegou a minha vez, a professora simplesmente
mudou de assunto, acabou a aula e nos liberou.
Tinha acabado de me mudar de Belo Horizonte para São Paulo, Élido
sempre foi um cara muito intenso, o conheci no colégio novo. Era o primeiro dia
de aula, estava acabando de chegar, atrasado como todos os dias da minha
vida, até no parto, nasci um dia depois do previsto. Eu o vi perto da caixa de
segurança de incêndio, ele quebrou o vidro, tirou a mangueira, e transformou o
corredor em uma imensa piscina. Eu fiquei incrédulo, maluco, foi a coisa mais
eletrizante e surreal que eu tinha visto na vida até então, o carinha ser expulso
no primeiro dia de aula, não era um amador certamente.
Depois de ser expulso foi estudar no colégio público e eu continuei no
colégio particular, todo regrado a ordens, me sentia em casa. Nossa amizade
fincou raízes na turma do futebol, eu era um ótimo goleiro, e ele mal sabia
amarrar os cadarços da chuteira. Ele era realmente ruim no futebol, como em
qualquer esporte que tivesse bola, mas fazia parte de todos os times, de todas
as modalidades. Não era uma espécie de mascote, mas sempre tinha boas
piadas, e mesmo que fizesse um gol contra, ou faltas no vôlei, ele sempre nos
divertia com suas piadas, sobre seu braço torto, resultado de um salto
ornamental improvisado.
Voltamos a estudar juntos no curso de violão, eu queria impressionar
uma garota no sarau da escola, e como eu era bem tímido, ele foi um ótimo
professor. Não aprendi a tocar violão, até hoje, sempre nos esquecíamos do
foco principal, o violão, e passávamos o dia no vídeo game. Ele sempre
ganhava, era fera, eu não o ganhava nem no jogo da velha.
Durante o 7º ano, o Élido tentou novamente estudar no meu colégio,
mas no primeiro dia do ano letivo, pegou um extintor de incêndio e entrou na
sala o descarregando, sim, mais uma vez ele foi expulso, no primeiro dia, nem
eu acredito que a mesma pessoa foi expulsa duas vezes do mesmo colégio.
Ele tinha 15 anos, eu 13, foi passar uns tempos na minha casa, os seus
pais ficariam fora por duas semanas, e depois da oitava semana sem dar
notícias, chegou um postal, de uma capelinha em Vegas, dizendo que estavam
em uma lua de mel pelo mundo sem data de volta prevista. E pediam para os
meus pais que cuidassem dele, levaram exatamente dez meses até o processo
de adoção ser finalizado, eu já não seria filho único, ganhei um irmão mais
velho.
Ele não cresceu um homem revoltado, egoísta e muito menos rebelde,
mas um grande companheiro, cabeça, e nunca deixou de ser bom em games,
péssimo nos esportes e o meu melhor amigo, até hoje brincalhão. Seus pais
biológicos sempre sumiam e mandavam postais duas ou três vezes ao ano.
Hora na China ou nas pirâmides no Egito, da última vez que soube deles,
alimentavam pinguins na Antártida. Com certeza estão na lista de espera para
a primeira viagem à lua.
Sempre amaram viagens, e com toda a loucura, contribuíam com uma
pensão mensal para o Élido, meu pai sempre recusou essa ajuda, quando
Élido entrou para a escola de Teatro, tinha uma gorda poupança. Ele ama os
pais biológicos mesmo com o pouco contato, isso sempre afirmou e toda a
distância e saudade, ele transformou em trolagens, brincadeiras e gargalhadas,
boas piadas.
Morando na minha casa e um pouco mais disciplinado, Élido conseguiu
estudar no mesmo colégio que eu, finalmente, dessa vez não foi expulso, só
pegou uma suspensão e uns puxões de orelha. Ele não se cansava de fazer
brincadeiras.
Conheci Jaqueline ainda no ensino fundamental, eu a amava, todos os
dias, horas, o tempo inteiro, e Élido sempre me dizia que eu deveria convidá-la
para sair, mas eu era bastante tímido. Ele era louco para conhecê-la, dizia
brincando que um dia poderia se apaixonar por ela, de tanto me ouvir ao seu
respeito, eu ficava muito sério. Jaqueline deixou de ser o centro das minhas
atenções quando eu conheci o Messias.
Messias um cara muito legal, do 3º ano, eu fazia o 9º, ele, presidente do
grêmio estudantil, artilheiro do time de futebol do colégio, bonito. O bom partido
para qualquer garota perfeita que tivesse um belo par de peitos e desfilasse
com sua mini saia acima dos joelhos. O super popular, o cara, passou no
vestibular para Direito, todos sabiam que amava fotografar, era a sua arte, o
que ele realmente queria fazer da vida.
Maiana vivia atrás dele, fazia de tudo para chamar sua atenção, e que
belo par de peitos ela tinha, e eu nem descrevi suas cochas grossas que caiam
muito bem na sainha do colégio, estava mais para ninfetinha de conto pornô.
Soube que ela tinha um caso com o professor de matemática. No discurso do
veterano, no baile, o Messias apareceu com um terno azul royal, e uma câmera
antiga que ganhou do avô aos 10 anos de idade, saiu de trás do púlpito,
sentou-se em uma das bordas do palco, e pronunciou as seguintes palavras:
“...eu tenho o super poder de congelar o tempo, e qual o seu super
poder?”
A vaca da Maiana, já bêbada, o tomou o microfone, e falou várias
besteiras, do tipo que enche a cara para se declarar, ele a pegou no colo e saiu
do baile. Eu fiquei com aquela pergunta na cabeça, “Qual o seu super
poder...qual o meu super poder?”. Eu queria ser invisível, para pegar os
brigadeiros da cantina sem pagar, ou dar um beijo na Jaqueline sem que ela
me visse, mas naquela noite, mudou, eu mudaria.
Nem Marin Monroe era tão intensa quanto meu amigo Élido, único,
daquelas pessoas raras na Terra, sem réplicas, cópias ou protótipos, apenas
um, apenas ele. O Baile de fim de ano dos Veteranos se aproximava, fomos
com a mamãe em uma loja de alta-costura comprar ternos novos, encantei-me
com o primeiro pretinho básico e uma camisa branca de bolinhas que
encontrei. Élido, indeciso até pra escolher entre sorvete de chocolate e sorvete,
experimentou todos aqueles que o cabiam, nada o agradava e já na 5ª loja
mamãe perdia a paciência, nos dava as costas e voltava para casa, me deixou
de babá do meu irmão mais velho. Decidimos fazer uma pausa para um
lanche, e ao saímos da loja, Élido deu-se de um grande esbarrão em uma drag
queen, foi um atropelamento de paetês e purpurina.
Élido não conteve as gargalhadas, muito menos Madame Deslize, esse
era o nome da drag, acabamos os três sentados em uma mesa de um
mexicano que não sabíamos se era baiano, ou um mexicano com sotaque
nordestino. Fui para comer nachos apenas, juro, e depois das paletas de
caipirinha, foi um passo para as dose de tequila, em uma birosca mexicana
meio que paraguaia, na companhia do meu melhor amigo e de uma drag. Foi o
melhor porre de todos, enquanto me intimidava na terceira tequila, não sabia se
era imaginação, ou se realmente o meu irmão estava em cima de uma mesa
fazendo cover da Joelma.
As horas só passavam, e em plena segundona furiosa de São Paulo, já
tinha perdido as contas das tequilas, quando dei por mim, já eram seis da
manhã de terça, eu estava fazendo o Chimbinha, meu Irmão a Joelma e
Madame Deslize já tinha trocado 500 figurinos, agora ela estava meio gótica.
Uma batida do conselho tutelar acabou com a nossa saideira, eu estava
pensando quais argumentos usar com o delegado Feshina, o mais linha dura
de toda São Paulo, onde no meu registro civil, constava como meu pai.
Que confusão a vista, arrastei Élido para o banheiro, tinha uma pequena
janela, apertada, que já dava para ver o sol acordando, era tudo ou nada, eu
pularia, para fugir de um baita castigo do Delegado Feshina e do Conselho
Tutelar. Teria pulado na hora se não fosse por um bebum que só falava em
cavalo manco e pensava estar em Belém do Pará. Estávamos os dois fritos
aparentemente, eu não o deixaria ali, sozinho e bêbado, ele não me deixaria.
De alguma forma as aulas dos escoteiros me serviram, consegui jogar o meu
irmão pela janela do banheiro do bar, ele quase ficou entalado pelo seu físico,
e caiu dentro de uma lixeira, como naqueles filmes que alguém foge da polícia
da maneira mais engraçada e absurda possível. Quando me preparava para
saltar, fui pego no flagra, sempre tinha alguém nos banheiros se preparando
para fugir.
Havia um rodo bem grande perto da janela, o banheiro estava imundo,
inundado de vômito, urina e água de infiltração, eu sempre mereci um óscar
por ser um bom ator, peguei o rodo, e me pus a limpar o banheiro, disse que
era menor aprendiz, um disfarce bem bolado. Eu devo ter atuado muito bem ou
eu não sei o que aconteceu, a conselheira apenas abriu, olhou e fechou a porta
novamente. O menor aprendiz pulou a janela e caiu de cara nos papéis
higiênicos, foi horrível. Meu irmão já estava voltando em si, aos poucos,
descemos uma ladeirinha, subimos por uma viela e na esquina de cima
encontramos a Madame com o meu terninho preto, impecável para ser usado
no baile.
Pegamos um táxi, demos uma carona a Madame que morava a alguns
quarteirões na frente de uma padaria, desci comprei doces e pão, seguimos
para casa, chegamos quase 10 da manhã. Delegado Feshina de plantão,
Mamãe no trabalho, entramos de fininho em casa com a sacolinha dos pães e
doces, um garoto de 14 anos e um maluco de 16, com o porte atlético e alto.
Ele muitas vezes antes dos 18 se passava não como irmão mais velho, mas
dizia ser o meu tio recém-chegado do Sul, me livrou de várias enrascadas.
Dormimos como se fosse à última coisa a se fazer na vida, acordamos
na hora do jantar, parecia que tínhamos acordado na ceia do Natal, ainda era
novembro, mas a casa já estava decorada e muitas gargalhadas vinham da
sala de jantar, dessa vez, era realmente o meu tio recém-chegado do Sul, o tio
mais chato de todos.
Delegado Feshina e minha mãe chegaram em casa sussurrando, e na
cozinha submeteram Joaninha, a mulher mais doce de todas, que trabalhou a
vida inteira pra minha família, muito antes de eu nascer, a um verdadeiro
interrogatório. “Cadê nossos meninos? Como eles chegaram, que hora
chegaram?”. Ela soluçava, nos livrou de inúmeras confusões na vida, disse que
assim que minha mãe saiu para o trabalho, chegamos. Se ela tivesse
demorado 5 minutinhos, teria a chance de puxar nossas orelhas.
Meu pai apertou os olhos e perguntou novamente onde estávamos, eu
os espionava, voltei correndo para o quarto e tranquei a porta. Em seguida,
meu pai ameaçou arrombá-la, decidi abrir e minha mãe insistentemente,
perguntava-me o que tinha acontecido, e eu respondi que só falaria em juízo.
Meu avô era juiz, e ele estava em casa aquela noite, pensei rapidamente na
possibilidade dele também entrar na discursão, aí eu estaria perdido,
completamente frito e sentenciado, dele ninguém escapava, fiquei mudo, meu
irmão fingia ronco, meu pai perguntou-me:
-Onde estavam?
-Perdendo a virgindade. Respondi gaguejando, papai calou-se e mamãe
interrogou-me:
-Usou camisinha?
-Sim, usou, sim, com toda certeza ele usou, dei uma das minhas para
ele. Élido respondia com uma risada sacana.
Delegado Feshina, fechava a porta dizendo:
-Ainda bem, não posso ser avô antes dos quarenta.
-Você não vai fazer nada?
-Ué, eles são homens agora.
Foi um troféu, um alívio papai saber que eu tinha perdido a virgindade,
eu nem por um decreto ia dizer a verdade, que passamos a noite em um
mexicano virando tequilas, um bar mexicano gay, ele enfartaria na certa. Eu
nunca acreditei que o Delegado nunca nos castigaria, mas enfim aquele dia
chegou.
Eu morava a alguns minutos da faculdade, começava a me arrumar as
17h00min, a aula começava às 18h25min, mas eu sempre chegava entre
19h00min e 19h30min, em algumas vezes eu nem chegava, ia para o shopping
assistir filme ou me encontrar com algum amigo e ficar até o shopping fechar,
batendo papo.
Durante o trajeto sempre aproveitava para refletir, pensava na minha
vida nova, morando longe de São Paulo, o mais difícil foi ficar longe do meu
companheiro, do meu irmão mais velho, que no ensino médio se passava por
meu tio recém-chegado do Sul. Tínhamos sonhos parecidos, queríamos ser
atores, éramos do grupo de teatro do colégio e fazíamos peças espetaculares.
Era bem divertido.
-x-
Era tradicionalmente, ao fim do ano, acontecer um grande sarau e logo
em seguida um baile para todos os veteranos a partir do 7° ano, e em um
desses sarais, a minha turma estava nervosíssima, éramos já do ensino médio,
seria uma temática diferente aquele ano, sobre a violência e o preconceito
LGBT. Havia pouquíssimos personagens, uma drag, a própria Madame Deslize
interpretou, a convidamos, um homofóbico, interpretado por Élido, por ter um
porte físico que favorecia, e um outro personagem, uma pessoa neutra que
seria o namorado de Madame.
A drag andava por uma rua escura, quando se deparava com um
homofóbico, discutiam, e ele a agredia fisicamente, logo depois, todos os
alunos do grupo entravam em cena e gritavam palavras de repúdio, as cortinas
fechavam-se e em seguida os meninos se vestiam de meninas, e as meninas
de meninos, dançavam no palco e no fim dávamos as mãos e todos
cantávamos uma música contra o preconceito de gênero.
Foram muitos ensaios, eu fiquei responsável pelo roteiro e direção, era
muito importante para mim. Pela primeira vez o Delegado Feshina estaria na
plateia e não em seus intermináveis plantões. Embora eu não iria atuar aquela
noite, um pedacinho de mim estaria ali, nas cenas, nos atores, no cenário, em
todos os lugares. Meu pai sempre soube o quanto eu era envolvido em cada
detalhe.
Choveu o dia inteiro, São Paulo submergia em suas vias e
engarrafamentos que não tinham fim, raios iluminavam os céus, estes todo
escuro pelas nuvens negras de chuva que se aproximavam. Trovões eram
como trombetas, tremiam as paredes, parecia o anúncio da volta do Salvador,
os ventos traziam pedras de granizo, dilúvio, imaginei onde estaria a arca de
Noé nesse instante para entrar.
Tínhamos um sarau tão esperado para apresentar, eu e Élido estávamos
no colégio desde cedo, passando som, texto, luz, ensaio geral, paramos para o
almoço e para iniciar a caracterização dos atores. Élido estava estranho,
fechado, estávamos fazendo as fotos antes de o espetáculo começar e ele do
nada saiu correndo, em direção à chuva, sem destino, parecia um louco
disfarçado de uma criança que queria brincar na chuva até pegar uma gripe.
Sumiu.
A chuva nada de dar uma trégua, prestes a abrir as cortinas e sem um
dos atores principais, meu telefone toca, era ele, sussurrou algumas palavras
do outro lado da linha:
-Entra no palco, dá a vida ao nosso personagem, por mim, tem alguém
muito especial na plateia que veio te ver.
Não esperou eu respondê-lo, eu ouvia o barulho da chuva ao fundo e o
telefone desligou. Respirei fundo, pela cortina entre aberta olhei para a plateia.
Um cara durão, expressão forte, ombros largos, grisalho, um delegado
autoritário, um homem com quem convivi a vida inteira, que pela primeira vez
assistia uma apresentação minha no colégio. Desta vez não estava com arma
em punho e distintivo, era apenas o meu pai, sentado, mãos nos bolsos,
olhando para os lados e conversando com a minha mãe.
Fechei os olhos, orei com os colegas, as cortinas se abriram,
começamos, meu pai me olhava fixamente, atento a todos os meus
movimentos, era intimidador. Fiz como o pedido de meu irmão, dei vida, a
minha própria vida ao nosso personagem. No último ato teve um grande
improviso, depois de agredir e insultar Madame Deslize, ela levanta
cambaleando, passa por trás de mim, me observa, me segura por trás, sou
levado subitamente pela arte, viro, ela me agarra, beija-me por 10 segundos
que pareciam ter durado a noite inteira. Com a emoção, a empurro e dou-lhe
um grande soco de verdade, ela cai bruscamente no chão, percebo que o seu
nariz sangra, e me dou conta que naquele momento, por um instante eu tinha
me transformado em um homofóbico.
Cuspi nela, irada me encara, olhava-me com medo, insegurança.
Limpando a cusparada, a plateia em silencio, Madame sai do palco, a sigo, os
figurantes entram, gritam palavras de ordem, paz, tolerância, vida...cortinas
fecham-se e reabrem trazendo um divertido e colorido musical onde meninos e
meninas trocavam de papel.
Nos bastidores, Madame Deslize enxugava o nariz com um lenço, vou
desculpar-me pelo excesso, ela bate palmas, um momento calada, em seguida
me diz:
-O óscar vai para...
A interrompo com um abraço, ela passa as mãos nos meus cabelos:
-Você precisa seguir o seu sonho, atuar é o seu destino.
Saindo da coxia vi meu pai em pé, aplaudindo o nosso espetáculo que
estava encerrando, eu não voltei ao palco com a turma, corri até ele, freei
bruscamente, ele me tomou em um demorado abraço e beijou-me a face.
Mamãe sorria com o canto da boca, e escorria-lhe uma tímida lágrima.
Do outro lado, na entrada do salão de eventos da escola, vi um garoto
alto, vinha até mim, era Élido completamente encharcado, roupas rasgadas e
chinelos de dedo, um de cada cor, se não fosse pelo seu braço torto, não o
reconheceria, me molhou em seu abraço. E fixamente me olhando, disse que
eu era o seu orgulho, lagrimei. Jaqueline era a apresentadora da noite, nos
olhou de cima do palco, e surpresa para mim anunciou:
-Encerrando as apresentações, Élido Feshina com o monólogo Dor e
Esperança.
Ele subiu ao palco, sentou-se, abaixou a cabeça, começou a gargalhar,
gargalhava do Dó ao Si, parou e despiu-se.
-Abandonado, abandonado. Começou a chorar, chorava, chorava como
bezerro desmamado, eu e meus pais íntimos de sua história de vida, sabíamos
que o motivo de seu choro interpretado, era a ausência dos pais biológicos,
nunca estiveram presentes, raramente.
Élido chorou como um desconhecido, nunca tinha visto antes, pegou
suas roupas, fez menção que sairia do palco, deu meia volta, encarou a plateia
e dizia sem sentido:
-Eu, eu. Gargalhava como antes, as cortinas fecharam, aplausos. A
melhor interpretação da noite, o melhor ator, nem precisou de texto, de direção,
de nada. Mostrou-nos um pouco de sua emoção escondida em relação a
ausência dos pais. Um menino, criança por dentro, amadurecendo, um homem,
meu irmão, meu melhor amigo, sendo ele mesmo. Voltou do palco sorridente,
perguntando-nos se tínhamos gostado. Mamãe, Papai e eu o abraçamos, foi
um forte abraço em família, cinco corações simultaneamente que batiam.
Mal sabíamos, mas aquela noite só estava começando, desfrutaríamos
de outras emoções. Saímos do colégio e fomos jantar com nossos pais na
paulista, pedi escondidinho de queijo e presunto, meu prato preferido e sempre
me lembrava das viagens a Minas Gerais, a minha vida por lá. Não sei se era
todas as pessoas que estavam estranhas aquela noite, ou se era algo comigo
mesmo, mas a minha mãe também estava bem estranha, há dias. Ela enjoou
só de me ouvir pronunciar a palavra queijo, e boa mineira jamais faria aquilo.
Durante a sobremesa nos pediu que déssemos as mãos, ela sorriu,
entendi toda a situação.
-Sério?
-Sério.
-Quantas semanas?
- Oito.
Fiquei eufórico, levantei-me e abracei-a, os dois não estavam
entendendo nada, até ela revelar que estava grávida, ganhamos um super
presente de natal. O jantar não acabou em uma bela cena de família feliz de
comercial de seguro de vida, o restaurante estava lotado e o meu pai teve a
ousadia de falar:
- Esse filho não é meu.
- Tem razão, é de um vibrador.
Todas as atenções do restaurante se viraram para nossa mesa.
Aquela foi a única vez que o meu pai tentou fazer uma piada e ser
engraçado, quase dormiu em nosso quarto aquela noite, já que não tínhamos
cachorro e consequentemente uma casinha. Ao chegarmos em casa, tarde da
noite, já início de madrugada, mamãe preparou um panelão de brigadeiro e
resolveu assistir uma porrada de filmes.
-Meninos vamos assistir filme?
O papai querendo fazer as pazes, disse “vamos”, mas ela respondeu-lhe
que não estava convidado, o que o deixou ainda mais sem graça.
Vanesca era para ser a cara metade perfeita para o Élido, pelo menos
todos pensavam assim, menos os dois. Ela era a menina mais louca de todo o
colégio, fazia muitas trolagens, tinha muitas suspensões no histórico, e ainda
aparentava ser lésbica em certos momentos, ela tinha cabelos enormes, ruiva
e sarnas. Uma manhã chegou à escola com os cabelos cortados bem baixinho,
quase raspados, impactando todo o colégio, todos queriam saber o motivo. E
até descobrirem o que estava acontecendo, ela fazia piadas e auto-buling com
ela mesma, mas nós, seus amigos sabíamos realmente o que se passava, e
por ela também mudamos os nossos visuais. No último ano ela tinha ficado de
recuperação em matemática, e no dia da prova final, resolveu matar aula e ir
acampar conosco em Ilha Bela
Ela fazia parte do seleto grupo, composto por mim, Élido, Bruninho,
Naiara e Jaqueline. Éramos animados e completamente diferentes. Nossas
férias e feriados eram baseados em acampamentos, trilhas, montanha, viagens
divertidas, a maioria eram feitas de carro, com nossos pais, pais de amigos, ou
algum amigo mais velho desde que tivesse carteira de motorista e um
pouquinho que fosse de maturidade. Servia se não tivesse maturidade, o que
contava mesmo era a carteira de motorista.
Em especial, era pra ser a nossa primeira viagem, de carro e
independentes, assim nos achávamos, pelo litoral. Mas em uma noite,
decidimos pegar a estrada sem nenhum de nós ser maior de idade, ter carteira
de motorista, e pior, sem avisar a ninguém. Foi a maior rebeldia e
irresponsabilidade que fizemos juntos na vida. Coisas da juventude.
Foi uma viagem especial, tão terna, iriam apenas, Eu, Élido, Bruninho,
Naiara e Jaqueline. Vanesca não iria, pois teria que fazer a prova de
recuperação no sábado pela manhã, e nós sairíamos bem cedinho, para evitar
congestionamentos, jovens intensos e inconsequentes. O pessoal dormiu na
minha casa, e na manhã da viajem, tomávamos aquele delicioso café
preparado pela Joaninha, conversávamos e contávamos nossos planos para
quando o 3° ano fosse acabar, as loucuras que faríamos, estávamos
inteiramente felizes.
Com a grana que os pais do Élido mandavam mensalmente, ele juntou e
comprou uma bela 4x4 branca. Saíamos da garagem quando ele quase
atropela Vanesca. Para aquela hora ou ela estava completamente atrasada, ou
enrascada, muito enrascada, grávida pensei.
-Vanesca sua louca, está querendo morrer ou abortar? Élido sempre
teve senso de humor.
-Eu vou com vocês, vou com vocês.
Ela estava vestida no uniforme da escola, maquiagem borrada, cabelo
desalinhado e cara de ontem, óculos escuros.
- Você está vindo da festa da Alícia, aposto posso sentir o bafo de
álcool. Falei. E a prova?
-Ah, dane-se a prova.
-Vai perder o ano?
-Vou perder o ano, mas não uma baita de uma história pra contar pros
meus filhos, muito menos perder essa viagem que promete, ah e como
promete. Ela entrou no carro dizendo. Vamos gente, vamos Élido, espero que
não atropele nenhuma senhorinha atravessando a rua.
Bruninho bateu palmas, e ficou nitidamente feliz, em saber que estudaria
com Vanesca no ano seguinte. Como ele era gordinho, tivemos que apertar
bem para caber todo mundo no carro. Agora realmente a trupe estava
completa, ligamos o som do carro e íamos cantando nossas músicas
preferidas.
-x-
As 01h30min, Vanesca me liga, com certeza aquelas alturas já estava
na dose numero 51, melancólica por terminar com o 10° namorado do ano.
Chamava eu e Élido para uma contravenção penal, invasão a domicílio. Todas
as vezes que estava se aproximando o fim do ano letivo, logo depois do sarau,
nos encontrávamos todos na ruinha atrás do colégio. Entrávamos na escola
deserta por uma casa abandonada que ficava do ladinho do colégio, era a casa
do fundador, ninguém sabia de seu paradeiro, existiam muitas histórias e
estórias a seu respeito, sobre seu desaparecimento repentino.
Todos nós nos conhecemos no 6° ano, no colégio, menos Élido e
Jaqueline que só se conheceram já na 7ª série, crescemos juntos. Eu e Élido
saímos a francesa de casa, papai e mamãe já estavam se entendendo, e
aproveitamos para dar uma fugidinha, e eles para ver filmes e comer
brigadeiros.
Meu irmão teve a brilhante ideia de pegar o carro do meu pai sem avisar.
Logo o carro do delegado
Encontramo-nos em frente o casarão branco abandonado, escalamos
um murinho e subimos até uma pequena sacadinha, depois entrávamos em um
pequeno quarto de bagunça, cheio de trecos e velharias, mal dava pra passar
uma pessoa, imagine o Bruninho, gordinho da turma, e descobríamos uma
passagem secreta que dava direto no vestiário masculino. O cheiro não era
muito agradável, adolescentes na puberdade tem o cheiro forte, haja
desodorante, nos apertávamos em uma casinha que havia no parquinho.
A cada ano aquela casinha do parquinho ganhava uma cor diferente, no
turno da manhã era só nossa, desde sempre, 1.70, 1.83, 1.95, o mais baixinho
era o Bruninho que tinha 1.68m, todos nós crescemos menos a casinha, então
realmente tínhamos que nos apertar e dividir o espaço com algumas
cervejinhas, e potes de brigadeiro, e nem pensar que a nossa casinha era
aberta a pirralhinhos. Era a nossa casinha, os únicos grandalhões no meio do
parquinho com as crianças, e todos respeitavam. Ali foi palco de muitas
historinhas, primeiro beijo, brigas, invenções e até a primeira vez da Vanesca
com o Bruninho. Saiu até no jornalzinho da escola, era uma boa história para
não ser contada no jornal escolar.
Era uma madrugada fria em São Paulo, chovia, o que contribuiu para a
temperatura despencar, mas estávamos lá, na nossa casinha, bem apertados,
contando piadinhas sujas, imundas, cerveja, brigadeiro e goteira.
- Estou grávida. Afirmou Vanesca. Tomei-lhe a cerveja de suas mãos e
ficamos calados por 5 segundos, mas logo desencadeamos em risos.
-Eu sou o padrinho. Exclamei.
-Eu sou o padrinho. Bruninho disputou comigo.
- Você não vai ser o padrinho, vai ser o pai.
- Caraca, pensei que a ultima vez de vocês foi na 8ª série.
-Não, nem me lembre dessa história.
-Ouvi essa frase hoje, mamãe está grávida. Você não, só está bêbada.
Disse Élido.
-Amiga tenho um teste de gravidez aqui comigo, se você quiser...
Pensei o que Jaqueline fazia com aquele teste, eu não queria ser titio
ainda. Já havíamos feito de tudo naquela casinha, menos teste de gravidez, já
estava imaginando até o parto, quando confirmamos que Vanesca estava
apenas bêbada.
-Gente, vamos acampar? Pegar a estrada e ir para Ilha Bela, ver o
nascer do sol. Vai ser lindo. Élido e suas loucuras.
-Ilha Bela ás 4 da manhã?
-Litoral?
-Vai ser muito divertido.
-Ilha Bela as 4 da manhã? Élido você bebeu muito, não vai conseguir
dirigir até a esquina. O alertei.
-Tem razão, você dirige, é irmãozinho, está na hora de você dirigir essa
belezura;
Ri, pensei comigo mesmo que apenas era papo, ou ideia descabida
aquela de ir até Ilha bela às 04h00min da manhã, na chuva. Quando dei por
mim estávamos todos nós, as 06h00min horas da manhã, ao amanhecer,
contemplando um lindo e inesquecível nascer do sol.
Quanta loucura minha, pegar a estrada às 4 da manhã a caminho do
litoral, sem carteira, irresponsabilidade, amigos bêbados, mas eram meus
amigos, e suas companhias eram tudo que eu tinha. Ainda bem que não surgiu
nenhuma blitz pela frente, e lá estávamos todos nós, admirando mais um sol a
nascer.
Cada sol que nascia parecia único, renovado, uns fracos, outros mais
fortes, bem rosados, tímidos ou extrovertidos. Aquele sol era realmente uma
belezura, daqueles que bronzeiam até a alma, Vanesca não largava aquele
bendito diário, rabiscava, fechou e abraçou o diário grande, capa de couro e
uma grande fivela que fechava seu mundinho, seus mistérios, sua vida que não
conhecíamos, e nunca conheceríamos aquela Vanesca do Diário, só pertencia
a ela.
Depois do sol a nascer, o pessoal resolveu dar um mergulho na praia,
aproveitar, já que logo tínhamos que voltar. Eu permaneci ali no Mirante,
fazendo companhia para Vanesca, ela já tinha curado a ressaca, ríamos da
falsa gravidez. Ela era uma amiga muito divertida, mas sempre ficava séria e
introvertida quando interrogada sobre o seu diário. Ela o abriu, e pela primeira
vez mostrou um pouco de si para alguém, para mim, me senti privilegiado em
ser a pessoa que ela confiou. Não mostrou-me muitas páginas, em uma era um
grande desenho, abaixo tinha uma fotografia nossa, éramos nós 6 em uma
fotografia para o colégio, e o desenho era uma caricatura nossa, muito
engraçada.
Ela folheou, parou. Olhei para aquele pedaço de papel, a encarei.
Apertei bem forte suas mãos, foi o suficiente para eu abraçá-la, ela deitou a
cabeça no meu colo e chorou o quanto podia.
-Vai ficar tudo bem, todos nós compartilharemos esse momento com
você.
-Obrigada.
O pessoal voltou da praia, fizemos uma rodinha no Mirante, Élido Violão,
Naiara voz, canções, ao final Vanesca abriu o seu diário e compartilhou
conosco.

São Paulo, 18 de Novembro de 2006.


“A minha vida.
Para a minha vida.
Vida, você tem se mostrado uma grande surpresa para mim, um enigma,
um mistério, ao mesmo tempo tem sido tão transparente que parece uma
metáfora, é quem sabe eu seja uma metáfora. A Juventude acelerada, quando
se quer correr do mundo para o mundo, a juventude elétrica que choca a
sociedade, a juventude emponderada, que protesta, exclama, afirma, interroga,
a juventude que ama, odeia, a minha juventude.
Passarela, ando, desfilo, Moto Cross, baladinha, o colégio e os amigos,
aos amigos, meus amigos, o gordinho sem noção, o atleta, a beata, o amigão,
eu, quem sou eu, apenas eu. Vida, que fardo tu me trás, que sina, veio em
caixinha de presente, buh!!!! Apaguei as velinhas do meu aniversário, veio até
mim um pacote, um presentinho anônimo, mas era teu vida, tu me deste isso.
Roleta russa, contemplada, marcada, estou eu, assustada, medrosa,
vendas nos olhos, mãos atadas, pernas bambas, dores, sono e fadiga, fraca,
mas não sou assim. Sou forte, amigos fortes, porque trouxestes isso para mim
vida, o que te fiz, só porque bebo e mato aula, só porque me divirto como se
não existisse o dia seguinte, tens inveja de mim vida?
Mas tu me respondeu assim: “Te dou esse fardo para seres forte,
independente e MULHER!”
Oh, vida, te agradeço, obrigada por esse presente, eu aceito, eu aceito
tu vida, não aceito a tristeza, não aceito a mesmice, aceito experiências, aceito
superação, aceito brigadeiros também, não aceito o medo e a pena, que
ninguém tenha pena de mim. Eles não saberão, não saberão o que é viver com
esse presente, então não mostrarei o meu presente a eles, só aos meus
amigos, aos meus amigos vida. Vida, obrigada, eu sei que tu vais me deixar
Forte, Independente e Mulher, e essa palavra tão escrota, tão seca e árida não
vai me intimidar.
Vida amanhã vou raspar os cabelos.
Vida, vou ficar linda, tu me trouxe o câncer, mas a cura eu buscarei.”
Tudo era tão divertido que eu queria ser novamente adolescente. Não
para simplesmente voltar no tempo e evitar cometer erros, sem erros não
existe aprendizado. Queria eu ter 16 anos novamente, só pra viver sem
censura e sem pudores que a maturidade trás.
A volta pra São Paulo não foi tão tranquila. Aquelas alturas o meu pai já
tinha sentido falta do carro dele, a quem sentia muito mais ciúmes que a
própria esposa. A polícia de toda capital e região do ABC estava atrás do carro,
e ele nem se lembrou que podíamos estar sequestrados, mortos ou
simplesmente termos pego o carro escondido. Assim eu pensava, que mente
infantil. Se eu tivesse imaginado uma grama do desespero do meu pai com o
nosso sumiço.
Élido vinha dirigindo na volta, já na saída de Ilha Bela, cruzamos com
uma senhora apaixonada por carros, claro que o meu irmão ficou trocando
figurinhas com ela por um tempão. Ela tinha uma velha Toyota Bandeirante,
mais amassada que as rugas de seu rosto. Teve a audácia de chamar o Élido
pra um racha, caramba, que louco o meu irmão. Disputamos uma corrida com
uma idosa de 85 anos sem ao menos nos dar conta do perigo que corríamos,
perigo de vida inclusive.
E o pior de tudo, ela estava a nossa frente. Pra tentar alcança-la,
pegamos um atalho. Saímos da estrada e entramos em uma estradinha de
chão, deserta. Estávamos completamente perdidos, o meu medo não era uma
surra do delegado ou seus castigos severos. Tinha a impressão que a qualquer
minuto um serial killer apareceria com um machado a nossa frente e mataria
todos. Talvez não fosse uma má ideia, melhor que o castigo do delegado que
viria, será? Rodamos por mais de 30 km por essa estradinha, e nada de casas,
ou qualquer sinal de vida, além de intermináveis campos. Depois de andarmos
em círculo, o carro morreu. Acabou-se o combustível. No meio do nada,
absolutamente nada.
A esse instante, a senhora que nos venceu no racha, cantava vitória por
ter nos deixado pra trás a tempos. Devia estar tomando um delicioso xá e
biscoitos, quem sabe tricotando. Acho que não, ela era descolada demais para
um balanço e tricô. Deveria nem saber o que é crochê. Eu imaginei ouvir a sua
risada de bruxa velha a quilômetros de distância.
Depois de certo tempo em desespero, discutindo dentro do carro,
resolvemos caminhar até encontrar ajuda. Ou chegar à estrada principal pra ir
a algum lugar de carona. Como eu queria um escalda pés, meus pés
formigavam. O tempo fechado, muito frio e tudo muito escuro. Não se
enxergava nada a um palmo de distância sem ser o brilho dos vagalumes.
Roubamos o carro do meu pai, dirigimos de madrugada até Ilha Bela,
descobrimos que Vanesca estava com câncer, participamos de um racha,
abandonamos o carro no meio de um nada, depois de um nada cheio de
muitos nadas, e agora estávamos com fome, caminhando horas sem chegar a
lugar nenhum. Noite a dentro, só se escuta os grilos e os sapos. Todos nós em
silencio, a procura de qualquer tipo de ajuda.
Senti uma câimbra terrível no tornozelo, que dor. E ainda não tínhamos
saído do lugar praticamente. Ainda assim continuamos a caminhada. Andamos
tanto aquela noite, que eu nunca mais teria coragem ou vontade pra fazer a
maratona da São Silvestre que sempre fazíamos com o meu pai e o Vovô.
Gritei “Graças a Deus!” quando finalmente conseguimos pisar na estrada
asfaltada. Mais uma hora e meia de espera até algum motorista corajoso e
destemido parar para nos dar uma carona. Ouvíamos uma espécie de rádio
dos caminhoneiros, só se tocava sertanejo raiz e modão.
O cara mudou de estação e parou na notícia do desaparecimento de 6
jovens, 2 deles filhos de um delegado. Qualquer informação seria bem
recompensada. Até eu entender que se tratava de nós as descrições no
noticiário, um frio enorme me percorreu pela espinha. Lembrei das queixas da
artrite da minha avó.
-Estamos encrencados.
-Procurados feito fugitivos.
-Quanto será a recompensa?
-Estamos fudidos, eu estou fudido, meu pai vai me matar.
-Foi um prazer ter conhecido vocês. Você também meu amigo
caminhoneiro. Se prepara que a recompensa será ótima. Divide?
-Nossa, como vocês são melodramáticos e gostam de cena.
O caminhoneiro nos deixou em uma velha oficina, de onde finalmente
pude entrar em contato com meus pais e dizer pelo menos onde estávamos.
Meus pais, nossos pais estavam furiosos, e ao mesmo tempo aliviados de ter
nos encontrado vivos. E tudo que queríamos era um bom chuveiro e uma cama
quentinha pra dormir.
Meu pai e mais 4 viaturas foram nos buscar. Ele chegou muito bravo,
muito mesmo. E tinha toda a razão. Tínhamos feito uma grande besteira. Ele
mandou os policiais nos algemar e nos colocar no porta malas das viaturas,
como se trata verdadeiros criminosos. Eu pensei por um segundo ser
brincadeira. Nunca tinha visto meu pai tão sério e bravo. Não queria ter
encontrado o delegado, só queria ir direto pros braços do meu pai que me
ensinou a andar de bicicleta e me levou pro hospital por ter ganho um corte no
queixo no dia das crianças, junto com a bicicleta, depois de descer uma ladeira
enorme em Belo Horizonte. Ser abraçado por ele e ouvir que ficaria tudo bem,
como naquela tarde de infância. Ou até mesmo um puxão de orelhas da minha
mãe. Seria menos dolorido.
Nos levaram para a delegacia, direto pra sala do Delegado Feshina. Nos
despejou um enorme sermão. Me desmontou inteiro com suas palavras.
Naquele dia eu soube o quanto um pai ama um filho de verdade. Muito mais
quando o corrige. Fomos levados para a carceragem e passamos ali o resto da
noite, a madrugada e boa parte da manhã. Fiquei em claro, pensando em tudo
que tinha acontecido. Ouvindo o roncado do Bruninho.
-Me desculpa por ter metido você e todo mundo nessa Alexandre. Falou
tocando-me os ombros, Élido.
Fiquei em silencio, sai de perto dele e fiquei abaixado. Estávamos
inteiramente exaustos e cansados. Com muita fome. Depois do maior castigo
que levei na vida, nossos pais nos levaram pra casa. Parecia que tinha perdido
a voz, a fome. Que tinha sido violado, me sentia desrespeitado. Mas eu tinha
errado, tinha sido inconsequente e merecia castigo como todos os outros. Pra
mim nada justificava o excesso do meu pai. Ele parou o carro, virou e nos
olhou.
-Ontem morreram 5 jovens da mesma idade de vocês. Numa troca de
tiros, roubaram um carro. 4 amigos, sendo três irmãos, perderam a vida em um
grave acidente. Pegaram o carro do pai pra ir par uma festa. Vocês tem noção
de quantas famílias se quebraram e enterraram as pessoas que mais
amavam? Eu amo muito vocês dois para perde-los pra uma cadeira de rodas,
pra um presídio. Não suportaria sepultá-los. Minha maior dor foi pensar em
nunca mais vê-los.
-Me perdoe pai, nos perdoe.
Minha mãe queria chorar, suportou, fingiu rigidez. Eu continuava sem
voz. Chegamos em casa. Passava pela sala de estar, tão vazia. Avistei uma
enorme fotografia da nossa família na parede branca. Não aguentei, virei pro
meu pai, o abracei tão forte pra nunca mais o soltar, pra ter a certeza que ele
sempre estaria nesse mundo pra me proteger, e pra ele sentir que eu nunca
mais o escaparia, que não me perderia em seus pesadelos. Pedi perdão a ele,
a minha mãe e a Joaninha, com muita dor. E ao meu irmão também.
Meus amigos e eu nos afastamos por dias. Estava com saudades. A
dias sem ir pro colégio, quase uma semana. Me recuperando dos calos e das
feridas das caminhadas exaustivas, pra completar um resfriado forte. Depois do
susto e tribulação, nos reunimos novamente. Fomos a uma sorveteria. Só o
Élido para nos arrancar sorrisos espontâneos e generosos. Seria engraçado de
verdade se não fosse trágico. Algumas pessoas nos paravam pra saber se
éramos os jovens da tv.
Acompanhamos Vanesca no cabeleireiro, ela se desfazia de seus longos
cabelos, como eles brilhavam, Jaqueline e Naiara emocionaram-se, Vanesca
sorriu a elas e disse:
- Meninas não chorem, cabelo cresce, e os meus agora servirão para
fazer outras meninas sorrirem. Vou doar.
Jaqueline enxugou as lágrimas, sentou-se em uma das cadeiras.
-Eu também, eu também vou cortar e doar os meus cabelos.
Naiara fez a mesma coisa, ao fim daquele longo dia no salão todos nós
estávamos com o visual diferente, Vanesca com o visual Maria João, Jaqueline
Chanel e Naiara acima dos ombros, eu, Élido e Bruninho, optamos pela
máquina número um. Fez muito bem para a Vanesca, saber que sempre,
sempre estaríamos por perto, toda aquela atitude, nos renovou, nos avivou,
além de nos deixar ainda mais bonitos.
Foi um longo período de adaptação entre as seções de quimioterapia.
Nós sempre a acompanhava nas seções, todas as vezes que Vanesca ia ao
hospital, ela entrava sorridente e esperançosa, deixando um pedacinho de si
por aqueles corredores e salas de espera. Todos nós vivenciamos de perto a
sua luta contra o câncer, foi um período de muita renúncia, exaustão e
cansaço, amigos para todas as horas.
Um vestido rosa, rasgado, decotado, make forte, expressão viva, ela
estava tão linda, tão divertida como sempre, Vanesca, ganhou o título de
Veterana daquele ano, e em julho de 2007 ela recebia a notícia que o câncer
tinha ido embora de sua vida, todos ficamos felizes.
Nunca soube qual dos dois era o mais inconsequente, como diziam
nossos pais, se era Élido que foi expulso duas vezes do mesmo colégio no
primeiro dia de aula, ou Vanesca que repetiu de ano, perdendo todo um ano
escolar para acampar com os amigos, provavelmente estariam os dois
tecnicamente empatados. Cada um de nós tínhamos nossas particularidades,
vidas, gostos, loucuras. Vanesca sempre foi uma das meninas mais lindas do
colégio, alta, trabalhava como modelo desde os 12 anos de idade, sua vida era
um constante cassino, bem agitada, cheia de apostas e emoções.
Não era o tipo de garota convencional, metida ou que vivia em mundo
cor de rosa, pelo contrário, tinha a maioria dos amigos homens, gostava de
motocross e esportes radicais. Festas, só ela dava as melhores e maiores,
tinha uma amiga gringa que estudava no 3ºb da tarde. Essa garota vivia dando
em cima de mim, mas como sempre fui seleto em meus poucos
relacionamentos, ela estava fora do meu tipo.
Alícia faria 18 anos, e Vanesca boa amiga e anfitriã, organizou uma
festona de aniversário, mas sem a tradicionalidade de familiares e discursos de
amigos. A princípio seria uma pequena comemoração para poucas pessoas, as
mais próximas de Alícia, uma festa íntima e misteriosa. Os convidados só
souberam do local, uma hora antes da festa. Confesso que nunca estive em
um lugar como aquele, e quando descobri que se tratava de um motel, logo
presumi que seria uma festinha sem regras, rótulos e hora para terminar.
Era tudo muito grande, uma suíte enorme, cama redonda, muitos
espelhos, mesa de sinuca, muita gente bêbada, só de peças íntimas,
camisolas, ou roupas do tipo. Muita gente de sunga disputando o ofurô,
meninas de top less, eu de shorts moleton. Decoração feita com um infinito de
camisinhas simulando balões, bonecas infláveis e um grande bolo em formato
de pênis.
Não tinha exatamente apenas pessoas íntimas ou tipo melhores amigos
de Alícia, o boca a boca correu solto, e apareceu o amigo da amiga, a colega
da academia do amigo da amiga do convidado, muitos penetras, era mais
gente que metro quadrado. A aniversariante estava numa camisola amarela
bem sexy, veio na minha direção, e agarrada ao meu pescoço me deu um baita
de um beijo, quase me engoliu, daqueles beijos bem molhados, e com gosto de
wisck, recuei.
O Bolo realmente era um grande pênis de 1,5m de comprimento e 50cm
de largura, não tinha como não ser notado, era de chocolate, e eu confesso
que ainda estava ali somente esperando a hora do bolo. Nunca gostei de beber
além da conta, ou dois, três chopps a mais. Então os meus porres sempre
foram poucos e no final das festas eu sempre servia de motorista para os
amigos.
Bruninho, Vanesca, Élido e Naiara, já estavam além de várias doses, o
Bruninho já estava até nudes àquela hora, certamente de tão bêbado, pensou
estar em uma praia de nudismo. Élido como sempre foi o mais ativo e palhaço,
pediu para discursar e aproveitou para dizer que eu não tirava os olhos do
pênis gigante.
Foi o exato momento, depois dos parabéns, com doses a mais na
garganta, que Élido me imobilizou e junto com Bruninho me fizeram mergulhar
naquele bolo. Não me contive e comecei a jogar glacê nos convidados,
começou a chover chocolates eróticos e salgadinhos, estávamos literalmente
gozados de tanto glacê, mas ainda consegui salvar um pedaço do bolo para
comer. Jaqueline sempre se safava quando tinha guerras de comida. Sentimos
falta dela e fomos até a cobertura onde havia uma outra festinha mais
particular, com um pessoal mais animadinho, assim quando nos viram,
desceram para o quarto.
Jaqueline estava limpinha, conversando com Vanesca perto do
parapeito, riam e bebiam. Nos juntamos a elas e ficamos ali um tempão,
jogando conversa fora, bebendo, fazendo confissões, até lembrarmos que
tínhamos que pegar a estrada cedinho, e dessa vez seria só nós de verdade.
Para Vanesca a festinha só estava no começo, ficou na companhia do
namorado novo, terminaram 24 horas depois. Começaram o namoro na
educação física, nos despedimos, e joguei nela um pouco do glacê que eu
tinha guardado propositalmente nos bolsos.
Quando descíamos, do terraço para o quarto onde estava rolando a
festa de Alícia, dei de cara com ela, estava irresistivelmente linda e sexy com
os cabelos encharcados de glacê. A encostei na parede e a roubei um
grudento beijo, e antes que transássemos, eu e o pessoal fomos para minha
casa dormir, restava apenas poucas horas de sono.
Lógico que Vanesca não ligava muito para os estudos, sempre estava
com a sua bolsa recheada, preservativos, até spray de pimenta, pílulas do dia
seguinte e roupas extras para uma festinha ou uma social depois da aula, e ela
nem estava na faculdade ainda. Raramente levava o caderno e os livros da
aula do dia, apenas um diário que nunca ninguém ousava tocar. Sempre
arrumava desculpas para faltar, matar aula ou não fazer o trabalho e colocar o
seu nome. Em qualquer dia da semana ela estava pronta para festar, era só ter
a oportunidade, mesmo se tivesse prova no dia seguinte, seja na segunda ou
no final de semana.
-x-
Ainda dava para ver o glacê que eu tinha colocado no cabelo dela,
depois de um tempo dirigindo, Élido parou num postinho, na beira da estrada.
-Vanesca cadê sua roupa extra?
-Você sujou de glacê não lembra? Amiga...
-Não, não vou te emprestar. (Naiara)
- Tire seus olhinhos de mim, você ainda não me devolveu aquele vestido
que te emprestei na 7ª série. (Jaqueline)
-Credo escorpiana rancorosa e vingativa. (Vanesca)
-Fica tranquila, eu tenho algo que sirva em você.
Emprestei a ela um shorts e uma camiseta da minha banda preferida.
Ela ficou bem lésbica e sexy ao mesmo tempo. Voltamos para estrada, e algum
tempo depois, percebi Vanesca na dela pelo retrovisor, olhando a paisagem
pela janela, e quando eu a interroguei sobre o porque de uma lágrima que
escorria em sua face, ela riu e disse que era o vento. Finalmente chegamos em
Ilha Bela, fomos a uma lojinha fazer compras, compramos umas roupas para
Vanesca, fizemos uma parada na casa de praia, e finalmente seguimos até a
trilha que nos levava ao nosso mirante secreto.
Aquele velho mirante, assim como nossa casinha branca do colégio, era
mais um de nossos portos seguro, não sabíamos quantos verões pela frente
ele suportaria, estava cansado pelo tempo, o vento o castigava, era velho e
sábio, sabia muito a nosso respeito. Fazíamos piqueniques, contemplávamos o
nascer ou o por do sol ali, e seguíamos caminhada mata adentro, que
desbocava em uma trilha, dando numa praiazinha bela e segura, longe do
mundo, do universo. Fazíamos uma fogueira, contávamos besteiras, histórias,
Élido tocava violão, cantávamos em coral, éramos irmãos nascidos de pais
diferentes, certamente que sim, quase gêmeos, a não ser pelos gostos e
aparências diferentes.
Sempre dizíamos que jamais nos separaríamos, dávamos boas
gargalhadas, altas horas da madrugada , quando a água do mar parecia nos
chamar, tomávamos banho pelados, parecia estarmos dentro de um freezer, ou
frigorífico, era divertidíssimo. Nosso mundinho, adolescentes que logo
descobririam seus destinos, novas vidas e relacionamentos, um dia teríamos
que crescer, mas a todo custo queríamos retardar esse momento, ser adultos
não estava em nossos planos, nunca esteve.
Na mansidão daquele lugar, fazíamos nosso próprio sarau, cantávamos,
os meninos tocavam violão, aqueles que sabiam é claro, fazíamos monólogos,
era bem divertido, gostoso, cada vez que íamos á aquele lugar, era diferente e
único. Percebíamos o quanto éramos unidos e amigos. Pouco a pouco, como
as árvores daquele lugar, íamos crescendo, boas canções fizemos ali, poesias.
Era o nosso refúgio, válvula de escape, recarregávamos as baterias, e só
naquele lugar, sem a fúria da grande capital, sem bebidas para porre, víamos o
quanto éramos frágeis, vivos e amigos verdadeiros para toda a vida.
Dormíamos vendo as estrelas rasgando os céus, ouvindo as ondas do
mar marcando notas musicais, a brisa, brisa gelada, que paraíso, que natureza.
Lugar incrível, mesmo com tantas descrições e índices que apontavam Ilha
Bela como um lugar mau desenvolvido ou inapropriado, não ligávamos. Aquele
mundo, nosso mundinho sagrado, gosto de usar o diminutivo, é bem mais
saudoso, aquela nossa Ilha Bela, pertencia só a nós, só nós e o Criador
conhecíamos. Aquela Ilha Bela desconhecida, um pedacinho de amor no
mundo.
Estava fria, muito fria a madrugada, uma fogueira alta que estalava
crocrantemente suas faíscas, levadas pelo vento, mar rugia nas pedras,
palmas, violão em calmaria, largo sorriso que dividia uma caneca de chocolate
quente, aquecida pela fogueira e por um agasalho com capuz, Jaqueline,
sentava ao meu lado, olhava-me e sorria, eu batia palmas sincronizando com a
música e admirava a sua beleza. Ria, outrora tentava acompanhar a canção
que Naiara tinha sob os lábios, voz suave, calma e doce como sua
personalidade, apertava as mãozinhas como sinal de frio, queria ser aquecida.
Do outro lado, sentado tocando violão, Élido sério, um sério sorridente,
observava-nos e conversava conosco através do olhar, era poeta, menino
artista. Bruninho e sua caneca de chá cantava em rouquidão, talvez a fala que
estava mudando, dessas mudanças trazidas pela adolescência, admirava-se
com Vanesca, esta mexia em seus longos cabelos, já crescidos com o tempo
de paz e alívio. Era tão bom saber que ela estava bem. Escrevia no seu diário.
Cantamos um longo repertório, tão agradável, não controlávamos o
tempo, nem relógios foram feitos para aquele lugar, deixávamos ser levados.
Vanesca parou de escrever em seu diário, lagrimou e levantou-se pedindo
atenção, mostrou-nos uma canção que acabava de compor. O refrão era o
seguinte:

“Paizinho que moras nos céus


Quis o Senhor me criar
Te agradeço pela vida, pela luz, por me amar
Paizinho que moras nos céus
Me destes amigos a me guiar
Vinheram com o nome de Amigo
Para minhas mãos segurar.”

Ficamos em silêncio quando ela nos mostrou aquela letra, Élido botou
uma suave melodia e ajustamos conjuntamente a letra. O resultado final foi
uma linda canção onde todos cooperaram e deixaram um pedacinho de si, uma
homenagem a nós mesmos, um presente, de nós para nós.
Ao ficar pronta, a cantamos pela primeira vez, na nossa tão especial Ilha
Bela, simultaneamente veio o abraço, o beijo, o carinho, demos as mãos,
choramos, não nos contivemos, era muito especial, segundos depois o Sol
nascia diante de nossos olhos. Aproveitando aquele momento, Élido disse que
me amava, o acompanhei, e reciprocamente também disse que o amava.
Todos nós, eu, Élido, Bruninho, Vanesca, Jaqueline e Naiara, pronunciaram a
frase “Eu te amo”. Foi uma das cenas mais lindas de nossas vidas até ali, o sol
nascendo, palavras vindas de pessoas verdadeiras, falhas muitas vezes, mas
os amigos, os amigos de toda uma vida, para toda a vida, possíveis se houver
reencarnação, eternidade.
Amigos de Deus
Amigos, melhores amigos
Irmãos, melhores irmãos
Parceiros, pra sempre parceiros
6 vidas, um só coração

Tem a bailarina, amigo poeta


Amigo gordinho, amigo atleta
Amiga parceira, amigos de cola
Amigos de Deus, amigos de escola

Amigos de anos, amigos de segundo


Verdadeiros amigos em qualquer lugar do mundo
Amiga chorosa, amigo medroso
Tem o atrapalhado, amigo nervoso

Amigos de sangue, amigo adotado


Já é da família o amigo agregado
Amigos de infância, amigos de adolescência
Amigos adultos até na gaguência
Amigos dos céus, presente dos céus
Amigos de Deus, amigo de papel

Paizinho que moras nos céus


Quis o Senhor me criar
Te agradeço pela vida, pela luz, por me amar
Paizinho que moras nos céus
Me destes amigos a me guiar
Vieram com o nome de Amigo
Para minhas mãos segurar

Amigos de Deus, amigos seus


Amigo nosso, amigos de colo
Amigos de Deus, amigos de Luz
Amigos de chocolate, Amigo da cruz
Amigos de Deus, amigos de claridade
Amigo Deus para eternidade.

Ilha Bela, São Paulo 2007.


-x-
Já tinha 14 anos naquela época, e na 8ª série a maioria dos meninos já
tinha perdido a virgindade, e por mais que todos os meus melhores amigos
fossem malucos o suficiente para já terem descoberto tantas coisas, eu ainda
era o virjão da turma, virjão e BV. Ficava horas na frente do espelho,
imaginando trocar beijos com Jaqueline, e por mais que as meninas do colégio
me achassem bonito o suficiente para desejarem ficar comigo, elas nunca me
interessavam, nenhuma delas tinha os lábios de Jaqueline, aquele sorriso
apertado e o olhar que vezes pareciam faróis.
Para Jaqueline eu sempre fui o seu amigo, e sempre me enxergaria
assim, durante o colégio e depois dele. Não era nenhum tipo galanteador, mas
quando se aproximou o baile dos veteranos, várias garotas me convidaram, até
a Vanesca, mas foi somente para tirar onda com a minha cara. Ela todos os
anos ia com o Bruninho, era conveniente para ela, e até engraçado, por mais
que eles não tivessem absolutamente nada, eles iam juntos, dançavam,
comiam e bebiam a noite inteira, se divertiam mais que todo mundo na festa,
em qualquer festa.
Eu estava decidido a faltar no baile aquele ano. O maior sonho da minha
adolescência era levar a Jaqueline ao baile, e tê-la como minha parceira de
primeiro beijo, mas eu era extremamente tímido nos primeiros anos do colégio,
e desde o 6° ano, passava pela minha cabeça a ideia de que um dia eu a
levaria no baile.
Meu primeiro baile foi o pior de todos, um desastre, o baile era para os
alunos do 7º ano do fundamental até o 3° ano do médio, as demais turmas
tinham uma festinha pela manhã, lúdica e até divertida. Uma garotinha do 6º
ano queria por que queria ver como era o baile dos veteranos, o tão falado e
aguardado baile, então como eu não tinha par, fui com ela. Uma tal de
Andressa, eu era espinhento, ainda não era tão alto, pouco mais de 1.60, meus
cabelos não era o dos melhores, então não era a companhia perfeita para
qualquer garota que sonhava em ser popular no colégio.
Meu par no baile, uma garotinha do 6° ano, pirralha, aparelhos coloridos
nos dentes, gordinha, roliça, foi em um vestido roxo, e durante o ensino
fundamental inteiro foi perseguida por modelos e padrões de beleza que não
cabiam muito bem nela, alvo perfeito para bulling. Andressa era o tipo invisível,
fora de moda, nada social, não que fosse tímida, mas excluída. Isolou-se de
todos, e ninguém a percebia, aquele tinha sido o primeiro e provavelmente
seria o último baile que ela tinha ido até o fim do colégio.
Eu imaginava que o baile dos veteranos era tipo para apenas dar o
primeiro beijo, falar umas merdas e dançar com a garota de seus sonhos, mas
depois das 23:00hrs, quando o diretor ia embora, “o verdadeiro baile”
começava. Bebidas, alguém saia vomitando, pessoas dormindo no banheiro, a
piscina de natação virava uma pool party.
Andressa queria me beijar, perder o BV dela comigo, então a empurrei
na piscina, ela quase se afoga e tive que resgatá-la, fingiu não saber nadar,
essa sim era uma boa atriz, ainda queria respiração boca a boca. Meu BV não
sairia numa respiração boca a boca. Jaqueline estava linda, linda como sempre
foi, voltei molhado para casa.
No 8° ano, fui com uma evangélica para o baile, cheia de mandamentos
foi para casa antes das 23:00hrs, fiquei na festa sozinho e tive o meu primeiro
porre, parecia que flutuava, minha boca borbulhava e o céu da boca parecia
uma gelatina, até hoje é um mistério saber como eu cheguei em casa.
No 9° ano, eu ainda não tinha coragem para convidar a Jaqueline. E
pensar que era apenas um convite simples, chegar nela e dizer “oi Jaqueline,
quer ser meu par no baile?’’, mas para mim era o mesmo que chegar na morte
e pedir pra viver mais um pouquinho. Era difícil, e por mais que eu treinasse no
espelho, nunca saia as palavras, me enrolava. Quando finalmente Élido me
encorajou, já era tarde, o André capitão do time já tinha a convidado e eu não
tinha nenhum por cento de chances de competir com ele, eu era apenas um
goleiro, goleiro reserva.
Até recebi alguns convites, mas eu estava decidido a ficar em casa a
noite inteira comendo pipoca e assistindo filmes horríveis. Élido tinha saído
cedo com uns amigos para uma pelada, chegou em casa tarde, entrou no
quarto, me olhou, jogou as tralhas de futebol no chão e pulou em cima de mim,
suado.
-Você não vai ao baile?
-Não.
-Prefere ficar em casa assistindo essas drogas de filmes?
-Droga? American Pie não é droga, é tudo que eu queria ser.
-Espera.
Élido abriu o closet e começou a jogar todas as roupas para fora.
-Que merda é essa que você está fazendo?
Não me deixava falar, sempre jogando alguma peça na minha cara,
meias, camisas, cuecas, por fim uma de suas meias com chulé.
-O que você está procurando?
-Hum...Espera;
-O quê?
-Achei.
Jogou-me o terno que mamãe tinha comprado para mim. E disse:
-Você tem cinco minutos para se arrumar. E continuou a procurar algo
no closet.
-Hanrrã, achei o terno que usei no casamento daquela sua tia... cara
como você tem parentes.
-Élido, não sei qual a sua intenção, mas seja lá qual for, eu não vou sair
da frente dessa TV, acabei de fazer mais pipoca, você quer?
Derrubou furiosamente a minha vasilha de pipocas e atravessou-se na
frente da TV:
- Olha, tá na hora de você saber umas coisinhas sobre relacionamentos.
Você nunca vai ter coragem de chamar a garota mais linda do colégio para
sair. Muito menos para ser seu par no baile dos veteranos, não com esse seu
visual de ******* no começo de carreira e sendo goleiro reserva do time. A
Jaqueline é tipo tímida que se faz para chamar a atenção dos caras mais
populares, tá na cara que você é o melhor amigo dela, ela sempre vai te
enxergar assim o ensino médio inteiro e provavelmente depois dele.
-Porra, quanta sinceridade.
-Você vai ser o padrinho de casamento dela, o padrinho dos filhos dela,
não chora, homem não chora, homem soluça, então meu irmão mais novo,
trate de colocar esse terninho, você tem cinco minutos para se aprontar e ter o
seu primeiro beijo hoje. Esquece a Jaqueline, amiguinhos não se beijam,
cansei de mimimi, o que mais tem naquele colégio são Jaquelines afim de
você.
-Caralho, mais alguma coisa? Quando vai pegar uma faca e me arrancar
o coração de vez?
-Dramático, agora você tem apenas quatro minutos.
Meu irmão me despejou de uma vez só, um monte de coisas, já eram
23h30min e eu ainda estava de pijamas, e o Élido totalmente pronto.
-Eu não vou a essa droga de baile.
-Vai sim.
Eu não tinha nem levado um fora da Jaqueline, mas chorava, choro
intenso, e meu irmão ali, ao meu lado, totalmente o oposto a mim. Bonito, alto,
forte, 16 anos com voz de locutor de rádio, daqueles programas amorosos de
madrugada, cansei de ouvir quando não conseguia dormir, tinha barba,
transado e muitas namoradas, e mesmo que fosse péssimo nos esportes,
sempre, sempre que eu precisava estava me dando a mão.
Foi muito engraçado, eu recordando agora, eu chorando e ele tentando
me vestir, quando conseguiu, nos abraçamos, e ao ouvido dele eu falei:
- Quando eu crescer quero ser como você.
- E eu quero aprender esportes como você.
- Um dia te ganho no jogo da velha.
Abraço forte, fomos ao tãotão baile dos veteranos. Mamãe saiu no carro
dela, papai no dele e o motorista tinha saído com o carro para lavar e só
voltaria no dia seguinte, eu gastei toda a minha mesada na locadora, e Élido a
dele provavelmente com cervejinhas. Tinha no condomínio, um segurança de
uma vizinha. Waldemar, simpático, tinha um Del Rey, bem conservado do
tempo da sua juventude, queria ser policial, mas não conseguiu e tornou-se
vigilante. Anos depois segurança de famosos, certa vez levou a empregada de
uma casa da vizinhança para a maternidade, mas como a bolsa estourou
antes, não aguentou e o parto foi feito dentro de seu Del Rey.
Lembramos de Waldemar, pedimos uma carona. Era um segurança um
tanto “inseguro”, sempre saia durante os plantões para jogar baralho na
portaria, fazer partos ou levar adolescentes atrasados ao baile do colégio. No
meio do caminho, o carro deu prego e tivemos que o empurrar em plena
marginal, e faltava poucos minutos para meia noite, chegamos.
Me senti como o Will Smith e o Tommy Lee Jones do filme Mib Homens
de Preto, eu e o meu par do baile dos veteranos, prontos para matar qualquer
alienígena, em outras palavras, pronto para perder o BV. Chegamos,
estávamos os dois em ternos idênticos, bem na hora que Jaqueline e André
beijavam-se em câmera lenta. Senti o frio na espinha, nessa hora eu precisava
de um neuralyser para esquecer aquela cena, quis ir embora, dar meia volta,
voltar para as minhas pipocas e filmes. Élido não permitiu.
-Olha, a Andressinha é afim de você, a Carla quer te beijar, aquelas
outras duas ali do canto estão de olho em você e a Roberta quer ficar contigo,
já me pediu até para fazer os papos.
-Impossível. Ri. Foi ai que descobri que quando estamos apaixonados,
não enxergamos um palmo a diante, e só quando deixamos a paixão ir embora
do peito, as escamas dos olhos são retiradas.
-Aproveite a festa irmãozinho.
Foi constrangedor o meu irmão mais velho me beijar no rosto no meio da
festa, já tínhamos chegado juntos como par, e não era o suficiente para ele,
ainda tinha que me sacanear. Sumiu no meio da festa.
- “Posso congelar o mundo, um momento, uma vida, um instante, um
olhar, um sorriso. Posso congelar sentimentos, expressões. Congelo o hoje, o
agora, guardo para o futuro, faço arte. Congelar, congelo, transformo em verbo,
posso congelar tudo com um clic. De tudo que posso congelar, mato a vida
quando congelo um sonho, torno-me assassino, mas a morte não posso
congelar. Qual o seu super poder?”
Discursava, encarava-me, fixei o olhar nele, hipnose por aquelas
palavras, até Maiana roubar a cena e interromper o discurso. Sai da festa em
direção aos armários, no meu tinha uma lata de brigadeiro, eu sempre estava
com fome, e também queria ficar só, sem ninguém, apenas a minha companhia
e a meia luz acessa do corredor para pensar. Sentei-me no chão, deixei ela ir,
deixei Jaqueline partir o meu coração e partir do meu coração. Lembrei-me das
duras e diretas palavras do meu irmão mais cedo, como foram libertadoras. Vi
o flash back do beijo de Jaqueline e André, vontade de chorar, rir, nostálgico.
As palavras do Messias passavam pela minha mente, eu permanecia
com a cabeça curvado, olhando para a lata de brigadeiro, sentado no chão, até
deparar-me com pensamentos aleatórios se a janela tinha ficado aberta ou
fechada, o que tinha para o almoço do dia seguinte, o que o papai estava
fazendo, o que o Messias estava fazendo com a Maiana, a despindo, dando
banho e a colocando para dormir, estariam transando? Pensamentos
estranhos. Ria.
-Ei cara...
Alguém acabava de sentar-se ao meu lado, rindo, puxando papo,
assustei-me, era o Veterano do ano, o Messias, o ignorei e não respondi.
-E a festa está um saco mesmo, tá na hora de você agarrar.
-Agarrar? Não estou agarrando nem as gordinhas da 5ª série.
- (Achou engraçado e sorriu) Eu falo da bola, tá na hora de você agarrar,
sair da reserva, quero te ver jogando, dizem que é bom nos pênaltis.
Em pouco tempo de conversa estávamos bem amigos, dividindo o
brigadeiro, rindo, falando banalidades. As luzes do corredor dos armários,
começaram a piscar, dando-me certo medo, involuntariamente, apertei a mão
dele.
Um aperto correspondente, frio na barriga, arrepio nos braços e até nas
pernas, percorrendo a espinha atingindo cada vértebra do meu corpo. Nos
encaramos, eu no ápice da timidez, e ele dando uma daquelas risadinhas
amarelas, alguns minutos. A campa do colégio tocou inesperadamente, certo
que seria algum retardado, o corredor parecia uma pista de dança, piscando,
piscando, as luzes ascendiam e apagavam-se, dei um sorriso bobo, ele tirou a
câmera do pescoço e me fotografou, aumentando minha timidez.
-Congelei você.
A fotografia saiu na hora daquela pequena e antiga máquina fotográfica
polaroide.
-Deixa eu tentar ser fotógrafo por um dia.
Me deu a câmera com todo cuidado, tinha um sorriso engraçado,
espontâneo, cliquei, o fotografei.
-Congelei você.
Tomou-me a câmera em seguida e fotografou-nos, quando vi a foto, meu
coração apertou, acelerou. Aproveitou o pisca-pisca do corredor e colocou uma
música ruim. Desafiou-me para uma competição de dança, por um longo
período de tempo as luzes se apagaram, senti um largo abraço me
completando, fui levado por uma valsa.
Não sentia o chão, o mundo, o dia, as horas, no meu peito dizia que
aquela era a hora certa, o par certo. Foi um longo beijo, o primeiro beijo de
minha vida. A língua dele era como o borbulhar no céu da minha boca na
experiência de um primeiro porro, anestesiando os meus lábios, despertando
em mim descargas elétricas de um prazer que eu não entendia. O ranger dos
dentes, uma mão descontrolada, o suor da axilia e o calor de duas pessoas,
uma lata de brigadeiro esquecida, inerte e à espera de uma colherada. Era
baba, era doce, era brigadeiro, era álcool. Era briga dentro de mim, era fogo
dentro de mim, que queimava a minha mente, feito a chama em um papel que
está virando cinzas, pó. Os meus olhos fechados que enxergavam a claridão
de um exagero, de um desespero, de um beijo.
Quando nossos lábios se separaram, parecia um parto, a vida real sem
música, sem cor, só fome, só medo, só desespero. O que parece ser longo,
acontece em segundos, as luzes ascenderam-se, ficamos mudos, olhei
assustado, perguntas começaram a passar na minha mente, sai correndo,
corri, corri, corri o quanto podia, olhava para trás e o perdia de vista, para
sempre, foi a última vez que eu o vi. Até um dia desses, ao abrir uma certa
gaveta e encontrar um polaroide amarelado.
Havia muito o que se contar, muitas histórias naquele colégio, e se
aqueles corredores falassem, presenciaram beijos, agarrações, rapidinhas
atrás de algum armário, principalmente no baile dos veteranos. Para muitos,
aquela festinha só estava no começo, eu só queria ir para o meu quarto, meu
mundo, dormir até mais que a Bela Adormecida. O que tinha acabado de viver
naquele corredor era perturbador, mas ao mesmo tempo me trazia felicidade,
prazer. E ao tempo em que queria dormir eternamente e esquecer tudo aquilo,
queria ter a certeza de que realmente tudo tinha acontecido, tudo me percorreu
por toda a madrugada e não preguei os olhos um segundo.
Eu beijei um garoto? Como assim? Como assim um garoto? Não pode
ser. Me tornei Gay? Eu era gay? O que eu explicaria ao delegado, o delegado
me mataria. Mas foi bom? O beijo foi bom, eu gostei? Gostei. E Jaqueline,
porque não com ela, porque o beijo não aconteceu com ela, ou com qualquer
outra garota, seria mais aceitável. Inúmeras perguntas até o amanhecer.
Élido chegou em casa, já com o dia claro, encontrou-me em pé, olhando
pela janela. Eu ainda estava de terno, distraído, pensando no meu primeiro
beijo. Chegou com um mata leão e uma gravatada em mim, esse palhaço, me
fez companhia na janela, encarou-me e sorriu.
-Tenho uma coisa monstra para te contar.
-Certeza que não é mais monstro o que eu tenho pra te falar.
-Ai, não acredito, perdeu a virgindade? O BV? Gente, perdeu o BV?
Com quem, com quem foi?
- Sim, perdi o BV.
-Conta tudo.
- Não, conta você primeiro,
-Conta você primeiro.
Tiramos a sorte no palitinho e ele teve que começar.
-Conheci uma pessoa diferente na festa, alguém que eu já conhecia,
mas a conheci de verdade. Linda, como é linda.
Começou a descrever a pessoa e relatar-me o que tinha acontecido, e
em meio as suas palavras, perdia-me pensando no meu beijo, na maneira
como eu contaria a ele.
-Amigo...suspirou, tomou fôlego e continuou. A muito tempo ele não me
chamava de amigo, e naquele instante ele não queria conversar com o irmão.
Queria o amigo, o melhor amigo dele.
-Amigo algo aconteceu na festa, de repente lembrei-me de meus pais,
pensando onde estariam, se felizes, dormindo, vivos. Entristeci, saudade me
bateu na cara, um grande soco, perdi a vontade da festa, de beijar, beber, fui
para a quadra respirar, olhar pro nada, passar o tempo. Fiquei lá refletindo, o
pessoal apareceu, Vanesca, Bruninho, Nayara e Jaqueline, pensamos que
você tinha voltado para casa, não te acharam em lugar nenhum. Vanesca e
Nayara foram logo para casa, Bruninho demorou um pouco mais até ir em
bora, fiquei papeando com a Jaqueline. Ela estava diferente, olhar que eu não
conhecia, não sabia como agir, fiquei meio idiota e disse que você era
apaixonado por ela.
-Como assim? Não acredito.
-Disse que você era apaixonado por ela, ela ficou parada calada, disse
que já sabia, gostava de você apenas como amigo, gostava mesmo era do
melhor amigo, do seu melhor amigo. Fiquei imaginando de quem ela estava
falando, quem seria esse seu melhor amigo, e beijou-me de surpresa.
-Oque? Como se não bastasse o André? Seu filho da puta.
Voei no Élido, fiquei puto. Foi a primeira vez que briguei com ele,
comecei a gargalhar, sem motivos aparentemente, sentei na cama e ele
continuou no chão.
-Perdi meu BV, com um garoto. Sou gay, sou gay? Não sei se sou gay,
não sei se gosto da Jaqueline mais. Não gosto mais de Jaqueline. Puta merda,
beijei um garoto, se o delegado sonhar é a minha morte, puta que pariu. Sou
gay Élido? Você acha que eu sou gay agora?
-Você é gay? Puta merda, eae?
...
Respirei um tempo, pra pensar em alguma coisa, mas nem consegui
mau abrir a boca.
-Beija de novo, se foi bom beija ele de novo.
Rimos, tivemos uma longa e séria conversa, tipo de homem pra homem,
de irmão mais velho, de amigos.
Ele tinha que chegar em casa fazendo alguma brincadeira sem graça, se
não o conhecesse bem e soubesse que vez ou outra ele tinha brincadeiras
mais pesadas, acharia que aquele mata leão seria uma lesão corporal, e não
deixava de ser de certa forma, mas era só o meu irmão. Foi estranho ele me
dizer o que tinha acontecido com a Jaqueline, eu não sabia se ficava feliz por
ele, porque eu pude ver dentro dele que estava começando a descobrir o amor
de verdade, ou se acertava a cara dele por ter furado o meu olho.
Dei na cara dele, nos embolamos no chão, comecei a rir, rimos, então o
confessei sobre o meu primeiro beijo. Eu deveria esquecer, esquecer aquilo
que dentro da minha casa era fora dos padrões. Sentamos na beira da cama e
tivemos uma conversa mais séria, deu leves batidinhas na minha costa.
Perguntou-me se eu estava bem, não sabia, estava cheio de dúvidas, claro que
eu não estava bem, a minha cabeça estava cheia de dúvidas, e eu já não sabia
quem eu era de verdade.
-Eu não sei. Na verdade eu nem me conheço, nem sei quem eu sou de
verdade.
-Eu sei quem é você. O cara mais maneiro do mundo, o meu amigo, o
meu irmão que gosta de churrasco e viagens, tem o coração maior que o
corpo. É o Alexandre que eu conheço.
-Você acha que eu sou gay por ter beijado outro cara?
-Isso só você tem a resposta. Foi apenas um beijo qualquer ou você
gostou do cara?
-Eu não sei, mas toda vez que eu me lembro fico feliz.
-Independente da pessoa que você se tornar, das suas escolhas, eu
sempre serei o seu irmão mais velho, sempre terá meus braços para abraços,
ouvidos para te escutar, posso te dar uns tapas as vezes, mas sempre terá o
meu apoio e eu nunca vou te diminuir, nem diminuir o amor de irmão que eu
sinto por você. Cara nós crescemos tanto, que nem cabemos mais na casinha
do colégio. Se você for gay será muito divertido.
Eu tive que rir.
-Ah foi só a droga de um beijo.
-Com quem? Ele estava curioso para saber.
E eu novamente repeti que tinha sido apenas um beijo sem importância,
uma droga de beijo, e aquele assunto acabou ali, assim que Élido saiu do
quarto peguei a minha foto com o Messias e guardei em uma das minhas
gavetas.

-x-
Enquanto o pessoal me procurava, eu desfrutava do meu primeiro beijo
no corredor perto dos armários, um cenário inconveniente, luzes piscando,
campainha tocando, garoto com garoto, mas foi o meu primeiro beijo, muito
bom por sinal. Se tivessem me procurado melhor, teriam me encontrado.
Como não se apaixonar perdidamente por aquela garota? Era
impossível isso não acontecer, ela adorava dançar, queria ser uma bailarina,
ela já era uma bailarina, bailarina de alma. Quando dançava seus braços
transformavam-se em asas, no espetáculo Cisne Negro ela alcançou toda a
escuridão da personagem e a encheu de luz. Foi impossível, impossível Élido
não amá-la, querê-la, ainda mais depois de tanto eu descrevê-la em nossas
intermináveis conversas. Conversávamos sobre qualquer coisa, sobre a vida e
o quando ela podia ser impressionante e imprevisível. Em meio aos papos de
carro, ele sempre preferiu as caminhonetes, insistia em me ensinar a tocar
violão, nunca aprendi, e em tantas falas, sempre falávamos da minha bailarina.
A descrevia com tanto amor, que horas e horas só se falava nela, dizia
que vezes seus olhos pareciam faróis, poderiam iluminar qualquer escuridão,
que o seu sorriso era irresistível como a maçã que a Branca de Neve comeu, e
aqueles lábios finos, minha bailarina era linda. Não seria minha, nunca pudera
ser, pois o seu coração não pertencia a mim. Eu tinha um espaço em sua vida,
no seu peito esquerdo, lá dentro do coração, como amigo. Todo aquele ser,
sentimentos, não foram feitos para mim, não para me amar. Jaqueline não era
para mim, apenas amiga, só me cabia sua amizade. Seu coração não fazia par
com o meu, e se tentasse, não daria certo, seu coração pertencia a Élido, ao
meu querido irmão mais velho.
Amar uma garota por anos sem dizer a ela o que eu sentia, foi a coisa
mais idiota da minha vida inteira, na minha vidinha no colégio. Eu
simplesmente deveria ter dito a ela que eu a gostava mais que um amigo. Ela
certamente me daria um fora e eu mesmo teria me poupado de muitas coisas,
como os presentes do dia dos namorados para a namorada que não sabia que
tinha um namorado. Dava para eu ter comprado o par de chuteiras novas.
Caixas e caixas de bombons que eu acabava comendo sozinho, me fazendo
ganhar peso extra, cartinhas e outras coisinhas que eu nunca cheguei a enviar.
Que idiotice, ainda bem que naquele baile fui liberto dessa paixão, seria
uma merda eu gostar de uma pessoa durante todo o ensino médio
secretamente. Foi estranho eu amá-la tanto por longos quase 1095 dias, e
deixado de gostar em segundos, como se tivesse dado uma grande descarga
naquele sentimento todo, foi libertador, um auto resgate.
-x-
-Alexandre evaporou, procuramos ele por toda parte.
- Acho que ele foi pra casa.
-Será? Vou ligar, caraca ele não atende.
-Relaxa, deve tá tudo bem.
-Puta merda, ano que vem já vamos ter 7º tempo.
-kkkkk eu não.
-Caraca, me lembro o dia em que comecei a estudar, era uma
pirralhinha.
-Uma catarrentinha.
-Obrigado pelo elogio, você é um cavalheiro.
-Eu diria cavalo.
-Coitado dos cavalos, não os ofenda Jaqueline.
-Bem que nós seis podíamos casar no mesmo dia.
-Seis casamentos no mesmo dia? Ia ser louco, bem divertido.
-É incrível a vontade das mulheres em querer casar.
-Vocês precisam entender o nosso lado.
-Vamos parar com esse papo de casamento, me assusta.
-Tou com fome.
-Véi, você vive com fome.
-E se o mundo acabasse agora?
-Se o mundo acabasse eu ia dar um beijo na sua boca. (É)
-Pois venha meu amor, venha me beijar perdidamente. (B)
O Bruninho era meio maluco, ou estava sempre com fome, ou falando
sobre suas teorias a respeito do fim do mundo, e quando ele começava a falar
a respeito, ele realmente estava com fome, aí a pessoa teria a paciência de
escutá-lo por horas sobre asteroide, big bang, fim dos tempos, arrebatamento,
e ele nem era religioso, ou daria a ele um chocolate, algo para comer.
Depois do Élido dar um beijinho técnico no Bruninho, o pessoal começou
a refletir realmente sobre as possibilidades do fim do mundo.
-Sempre soube que você me amava. (B)
-Quer namorar comigo? (É)
-Quero ter filhos com você. (B)
-Gente, gente, falando sério, e se a droga do mundo realmente acabar,
acabar agora?
Todos ficaram em silêncio.
- Se o mundo acabasse...Vanesca parou para pensar...puta que me
pariu...ia ser foda, bem foda. Para onde íamos? Espero que tenha cerveja para
onde formos.
-No céu não há cerveja, não há mesmo.
-É, aprendo a viver sem cervejas.
-O que vocês queriam fazer antes do mundo acabar, tipo um segundo
antes, uma hora antes, um dia antes, no máximo um dia antes, o que vocês
fariam? Eu faria uma dieta.
Todos riram de Bruninho.
-Eu ia desfilar nua, slow mocham, e no meu último segundo, sentir um
orgasmo.
-Pervertida. Eu queria estar exatamente aqui, me bastava um segundo,
o Alexandre, tá faltando o Alexandre, todos nós rindo, fim, tudo acabar, todos
felizes.
-Fofa.
-Eu queria dizer um último eu te amo...
Jaqueline dizia isso olhando para Élido que parecia distraído ao
assunto.
- E você Élido?
-Eu não sei, deixa acontecer naturalmente. O Fim.
-Que horas são?
-Da beata ir para casa.
Vanesca e Naiara se despediram do grupo e foram dormir na casa de
Vanesca.
-Caralho, que silêncio.
Bruninho, Jaqueline e Élido ficaram mudos depois que Naiara e Vanesca
foram para casa. O papo não fluía, Bruninho piscava de sono. Élido aproveitou
para fazer uma brincadeira com o amigo, passou um batom na boca de
Bruninho e o acordou num súbito susto, Jaqueline e Élido se estatelaram de
tanto sorrir.
-Puta merda, já até dormi, cansei de segurar vela.
Não percebendo o batom, Bruninho resolveu ir para casa, deixando
finalmente Élido e Jaqueline a sós, o que fez a garota corar as bochechas.
-Você dança muito bem.
Élido também corou e sentou-se mais perto de Jaqueline.
A dança a levava para um estado de tranze, um universo particular, um
mundo habitado apenas por ela. Era a dança, era a sua vida, o sangue, e isso
era transparente no olhar, e ficava ainda mais nítido quando ela dava seus
primeiros passos no palco. E quando o número acabava, era quando o corpo
se desaguava em exaustão, sugava-lhe todas as forças, a alma. Mas o seu
sorriso de contentamento e gratidão, levantava a plateia em aplausos, a
bailarina que eu dizia ser minha, mas não era, e nem nunca poderia ser,
acoplada a dança. Um só corpo, coração e emoção.
-Amo tudo isso.
Jaqueline encostou sua cabeça nos ombros de Élido, o que fez arrepiar
e arrancar-lhe um leve sorrisinho.
-Somos muito parecidos, porque no palco ganho uma vida extra, sou eu
mesmo, respiro mais fundo, posso até sentir sabor no respirar, somos feitos de
arte.
-Pensei que você não era tão poeta quanto o Alexandre. (Disse isso
tirando a sua cabeça dos ombros de Élido.) Na verdade eu pensava que você
queria ser bombeiro e não ator.
-Bombeiro? Porque bombeiro?
-Ué, você foi expulso do colégio no 1º dia de aula por inundar o corredor
com a mangueira de incêndio. (Jaqueline e Élido não seguraram a risada.) Pior,
duas vezes, no outro primeiro dia de aula novamente você foi expulso por
brincar com o extintor de incêndio. Como você foi capaz de fazer essas coisas?
Não, sério, se nada der certo, você pode ser bombeiro, até porte de bombeiro
você já tem. Corou.
-Quer dizer que você anda reparando no meu corpo? O Alexandre não
vai gostar.
- O que o Alexandre tem haver?
Intimidou-se e gaguejou.
-Ele, é...ele. O Alexandre é apaixonado por você, desde o 6º ano, queria
muito te levar no baile dos veteranos, ele é completamente apaixonado por
você.
-Eu sei. Eu sei, mas eu gosto dele apenas como amigo, gosto de outro
garoto, do melhor amigo dele, do irmão dele.
Élido ficou igual um verdadeiro idiota, não sabia o que dizer, não tinha
nenhuma piada, ficou sério. Eu queria ter visto a reação dele nessa hora, seria
trágico para mim saber que a garota que eu amava até então, gostava do meu
irmão, mas seria muito engraçado apesar.
-Eu gosto de você.
Jaqueline roubou um beijo dele, o beijo foi sendo correspondido, ela
ficou olhando nos olhos dele. Olhar mútuo, ele também começava a admirar
aqueles faroizinhos, ela foi até o ouvido dele e sussurrou:
-Se o mundo acabar agora, será um final feliz. Eu amo você.
Ela saiu, rindo, segurando a barra do vestido. Meu irmãozinho ficou
perambulando pelo colégio esperando o tempo passar e criando coragem para
me dizer o que tinha acontecido, foi expulso uma terceira vez do colégio, dessa
vez pelo zelador.
Era para ser uma viagem de família, mas como o aniversário do Élido
era quase no fim do ano, no mês das férias, o pessoal acabou indo passar as
férias na fazenda dos meus avós, em Minas Gerais com a minha família. Foi
uma viagem inesquecível, nem nas férias esses aborrecentes, como dizia a
minha mãe, se separavam. A função dos avós era engordar os netos, e isso a
minha avó fazia muito bem, quantas comidas gostosas. Me deu até fome
relembrando.
Élido e Jaqueline durante as férias, se aproximaram muito, e sempre
faziam as atividades do grupo em par, isso raramente quando eles estavam
disponíveis. Na maioria das vezes, estavam passeando pelo pomar, andando a
cavalo, trilhando. E tudo isso começou a ser percebido por todos nós, aquelas
alturas, o durão do meu irmão já estava apaixonado, os dois já estavam
apaixonados, mas não assumiam. E a história se inverteu literalmente, agora
era o Élido que todas as noites antes de dormir, descrevia uma certa bailarina.
Era para ser uma viagem rápida de 2 semanas para a fazenda do vovô e
vovó em Minas Gerais, consequência do trabalho do papai. Assim que as férias
de duas semanas dele acabassem, eu, mamãe e Élido viajaríamos para Nova
York, uma segunda viagem, segunda férias. Como estávamos nós seis, eu,
Élido, Bruninho, Naiara, Vanesca e Jaqueline, além dos meus pais, o Delegado
resolveu alugar uma Kombi e realizar sua vontade de moleque em pegar a
estrada em uma antiga Volkswagen, como fazia com o vovô, quando rodavam
o Brasil em um velho fusquinha.
Os pais não entendem a amizade entre garoto e garota, os meus,
sempre olhavam pelo retrovisor e perguntavam se havia alguém de nós
namorando, o que nos envergonhava. Élido sempre bom piadista, dizia que
namorava com o Bruninho e que o amava, Bruninho consentia, foi um trajeto
divertido, ríamos e paramos para trocar um pneu furado, dormi no colo de
Naiara.
O aniversário de Élido foi bem simples, um almoço, muita gente da
família do interior. Quando meus pais o adotaram, ele também foi adotado por
toda a família que é imensa. Realmente as pessoas que não nos conhecia,
achavam que ele realmente era biológico, mas independente de sangue ou
DNA, isso não importava, era o meu irmão mais velho, não tinha como discutir,
os laços afetivos eram maiores que documentos de adoção.
Depois do almoço, aproveitamos o riacho e ficamos ali até o entardecer.
Quando voltamos para a sede da fazenda, Élido ganhou um bolo com velinhas
de aniversário da vovó, já que o primeiro bolo que seria servido no almoço
sofreu um grave acidente e tivemos que cantar os parabéns para você com a
sobremesa.
Era um bolo redondo de chocolate, ficamos ali na varanda, eu e os
meninos, vô e vó, meus pais, papai tocava gaita, até ensinou Bruninho. Élido
no violão, Naiara como sempre cantando, fizemos um sarauzinho, tudo muito
simples e aconchegante. Íntimos, frio, agasalhos, bolo de chocolate, risadas,
histórias antigas do vovô, as viagens que ele fazia com o papai, aquela
varandinha mineira aconchegou-nos, demos nossos presentes ao
aniversariante.
Papai deu a Élido algo especial, uma miniatura de uma caminhonete
antiga, Marta Rocha, que a tempos tentava conseguir, o presente dos meus
avós foi um só, amor. Além de muito amor, deram a ele coisas que só os avós
dão. Eu e toda a turma de amigos nos juntamos e compramos um violão
maneiro, novo, acabamos com as nossas mesadas. Mamãe deu a ele uma
caixa vazia, e quando questionada pela sua atitude, ela foi muito sábia e disse
que aquela caixinha era para ele guardar algo de mais especial na vida de uma
pessoa, o coração.
Na verdade ela tinha esquecido o presente dele em São Paulo, e na
hora ela improvisou toda aquela cena, uma verdadeira poeta, sempre foi.
Depois dos presentes, vovó e vovô se retiraram, mamãe olhou para o meu pai
e disse-lhe que estava na hora de deixar as crianças a sós. Logo fizemos uma
rodinha, lógico que o sarauzinho se estendeu pela madrugada.
-Vamos jogar verdade ou desafio?
-Bora, bora.
Pegamos uma garrafa de bebida e começamos, eu sempre preferia
verdade, sempre. O ano acabando e eu ainda era BV, e o meu primeiro beijo
não tinha valido. Não que eu estivesse desesperado pelo primeiro beijo, mas o
pessoal enchia o meu saco para que rolasse logo, e eu tinha certeza que
naquele jogo eu perderia o meu BV.
- É hoje, é hoje. Dizia esfregando as mãos, logo o meu irmão sacou as
minhas intenções.
Começamos a jogar. Era um jogo perigoso para nós, pois nunca se
sabia o que perguntaríamos ou desafiaríamos uns aos outros. Valia de tudo. O
jogo já começou quente quando o Bruninho perguntou se Vanesca era lésbica
ou algo do tipo, aquela foi a primeira e a última vez que ela foi questionada por
ele.
-Verdades secretas ou desafio? Bruninho já foi perguntando com uma
cara de sínico.
-Vou escolher verdade só para começar.
- É verdade que você é lésbica?
Vanesca começou a mascar e encará-lo, respondeu-lhe tão delicada
quanto um coice de mula:
-É verdade, é verdade, me tornei lésbica no dia em que fiquei com você.
Todos fizemos “uuuuuuuuuuuuuuu”.
-Foi tão ruim assim?
Peguei a garrafa antes que ela o respondesse e girei. Naiara perguntou
para o Bruninho e ele escolheu desafio, tinha que dar um beijo em uma vaca,
não valia selinho, tinha que ser de língua, beijão, coitada da vaca, ele quase
levou um coice. Jaqueline girou a garrafa e Naiara escolheu desafio também,
Élido cochichou para Jaqueline, riram e ela a desafiou:
-Eu desafio você tirar o BV do Alexandre.
Naiara olhou-me e não esperou nem cinco segundos, quando lembrei de
respirar, ela já estava com a boca grudada na minha, estava tudo normal,
grilos, estrelas, os meninos gritando, eu estava gostando, estávamos gostando,
até nossos aparelhos ortodônticos resolverem se beijar também.
-Ai, ai.
-O que houve?
-Não se mecha, nossos aparelhos grudaram.
-Ai meu Deus.
-Puta que pariu.
Foi uma situação realmente embaraçosa, eu queria rir, mas ao mesmo
tempo desenrolar os aparelhos, principalmente desenrolar os aparelhos. Todos
tentaram ajudar, mas só piorava e nos enrolávamos mais ainda. Foi quando
tive a ideia de continuar beijando para tentar desenrolar, e quando a boca
começava a adormecer, dávamos uma pausa. Depois de longos 20 minutos
que pareciam que não passariam, engolindo saliva, finalmente os aparelhos se
soltaram. Sangrou.
-Nossa, uma transa de boca.
-Atrapalhamos? Se preferirem podemos deixar vocês a sós.
-Aleluia, aleluia, finalmente.
Girei a garrafa, seria a minha doce vingança.
-Verdades secretas ou consequências?
-Posso pensar? Verdade, verdade. É verdade, próximo, podem girar a
garrafa. Élido já ia girando a garrafa quando o interrompi.
-Nananinanão. Eu vou perguntar se é verdade que você gosta da
Jaqueline, você tem certeza que quer verdade? Eu deixo você escolher
desafio.
-Tá, tá, desafio.
-Desafio você a pedir Jaqueline em namoro.
Bruninho rufio os tambores, Élido foi até a jardineira e pegou uma flor, eu
juro que era apenas uma brincadeira. Pensei que Élido ia fazer uma piada, mas
ele levou a sério, foi ele mesmo e seguiu o meu conselho. Ajoelhou-se na
frente de Jaqueline, deu a ela a flor e a pediu em namoro.
-Quer, quer, quer namorar comigo?
-Tá falando sério?
-Responde rápido senão eu peço o Bruninho, aposto que ele aceita.
-É, eu aceito mesmo.
-Você tem que pedir direito, ser mais romântico.
Élido posicionou a garrafa na frente de Jaqueline e perguntou:
-Verdade ou desafio?
-Verdade.
-É verdade que você quer namorar comigo? Você quer namorar comigo?
-Sim, é verdade.
Senti fome e comi o resto do bolo de aniversário dele.
-Chega de segurar vela, a Senhorita Vanesca me acompanha?
-A última vez que te acompanhei acabei perdendo o meu cabaço.
Resolveram dormir e eu fui para a cozinha atrás de mais bolo. Naiara e
Vanesca foram para o quarto, e Bruninho dormir, não dormia, roncava. Élido e
Jaqueline, agora namorados, permaneceram na varanda.
Os dias passavam-se na fazenda, Élido e Jaqueline namorando,
grudadinhos, pra cima e pra baixo. Meu irmão todas as noites, quando
finalmente aparecia tardão no quarto, enchia-me os ouvidos, resumindo o que
tinha acontecido no romance deles aquele dia. A vida no campo era monótona,
mas sempre estávamos fazendo alguma coisa, tomando banho de riacho,
bebendo cervejinhas escondidas, pescaria, trilhas pela mata que rodeava a
fazenda, foi uma viagem bem legal e divertidíssima.
-x-
Em uma dessas trilhas acabamos nos perdendo, não foi desesperador,
tínhamos mantimentos o suficiente para esperar o dia amanhecer, e achar a
trilha de volta. Comidas, cervejas, cervejas quentes, lanterna. Pessoas normais
não levariam um peso extra de um violão para uma trilha, mas não éramos
normais, ainda bem.
Realmente não estávamos preocupados ou desesperados, foi até legal
aquilo acontecer, uma trilha que acabou virando acampamento.
Gargalhávamos, comíamos os últimos biscoitinhos, e tomávamos as cervejas
quentes. Deu dor de barriga depois. Vanesca começou a contar histórias de
terror. Coisas estranhas e barulhos, começaram a acontecer, eram apenas
animais e galhos secos que gritavam com o vento.
Bruninho era o medroso, o pessoal adormeceu, cochilei, quando
despertei, Naiara estava sentada perto do restinho da fogueira, que lentamente
suas cinzas eram levadas pelo vento. Ela estava linda, cabelos voavam, sentia
a sua respiração, percebi que ela estava com frio, tirei o meu casaco e a
agasalhei, a fazendo olhar para trás. Sorriu, agradeceu e bocejou.
-Você está com frio.
-Sim.
Ela permanecia com frio, a abracei por trás, seu coração faltava pular,
mas para mim era apenas proteção de amigo. Ela se desabraçou de mim, nos
beijamos, um longo beijo, seus olhos brilhavam, abraçamo-nos novamente,
pegou em minhas mãos e entramos na escuridão da mata. Achamos uma
clareira onde dava para ver o céu limpo, estrelas, lua gigante, parecia que nos
observava. Admiramos o céu deitados na relva, fazia frio, bastante frio que saia
fumacinha de nossos narizes e beijos gelados. Admirava as estrelas que
refletia através dos olhos de Naiara, nossos corações pareciam duas baterias
sincronizadas.
Transamos pela primeira vez, as curvas de seu corpo eram lindas, era
como se fossem pintadas a dedo, como uma obra que não podia ser tocada de
tão delicada que era. Lágrimas, dor, inexperiência, felicidade, prazer, amor,
muitos sentimentos. Não imaginaria que tudo seria tão natural e perfeito. Foi
lindo, especial, o nosso momento, como se nossas vidas se fundissem em
apenas uma.
Eu conseguia enxergar além da alma dela. Uma sensibilidade, pureza,
entrega mútua, garoa nua. A mágica, nada de contos de fadas, histórias em
quadrinhos ou novelas. Era a vida real, a libido, o toque, um laço, no mato, sem
plumas ou algodão de tecidos brancos. Eu respirava a ponto de quase morrer,
e se ela gritasse seria de prazer, de deleite.
Ela confiava em mim, eu tão menino, me fazendo de homem, congelado
pela neblina, aquecido pelo sol dos cabelos dela, dos olhos dela, dos lábios
dela, da alma dela, que se desfazia na minha mão em um doce devaneio. A
minha boca secou, e eu finalmente me desfiz em gozo, ela me acompanhou
num leve sussurro, num alto gemido, como alguém que se joga de um
precipício, pra chegar aos pés do amor, ou num chão de algodão doce.
Dormimos abraçados, acordamos com os primeiros raios de sol do dia,
que nos revelava ser aquele lugar a trilha de volta para a sede da fazenda.
Acordamos o pessoal e voltamos para sede da fazenda. Tinha um maravilhoso
café da manhã mineiro nos esperando. Todas as vezes que Naiara me olhava,
ela corava, eu ficava todo sem graça, o que pode despertar certa curiosidade
no pessoal. Não revelamos a ninguém, o momento era nosso, e deveria ser
guardado apenas em nossos corações.
Chegou o dia de voltar para a cidade grande, as duas semanas do papai
acabaram, e ele tinha que voltar para a delegacia, foi apertado me despedir da
vovó, do vovô, de Minas.
Voltamos para São Paulo e ficamos por uma semana até chegar o dia
da viagem para Nova York. Antes fizemos algumas trilhas, caminhadas e
passeios pelo Ibirapuera. Élido e Jaqueline estavam de buenas, curtindo o
início de namoro, sempre grudados, nos faziam segurar velas. Viajaríamos
para Nova York as 09:00hrs da Manhã, e um dia antes estávamos na casa de
Vanesca em uma festa do pijama.
-x-
Nos conhecemos no banheiro errado. Sim, no banheiro errado, eram
umas 04h00min da manhã, fim de festa, recepção dos calouros, fui tirar a água
do joelho, bebi pouco. No dia seguinte tinha muitos relatórios para entregar no
estágio. Estava quase me borrando nas calças, estava meio escuro, comecei a
esvaziar a bexiga, ouvi gemidos. Do nada ela surge, parece que tinha aberto
um buraco negro na minha frente de onde ela tinha saído.
-Está chovendo?
Eu dei um salto, levei um baita susto quando ela surgiu na minha frente,
acabei me mijando no susto.
-Está chovendo? Está chovendo salgado, ual, que grande, eita meninão.
Corei e a ajudei a levantar-se, ela estava super bêbada no banheiro
masculino. Faltava-lhe um dos lados do sapato, procuramos e não achamos,
acabou faltando luz, meu celular estava descarregado, e não tinha nenhuma
lanterna por perto. Fomos esbarrando até o salão principal da boate, a
escuridão não afastou os calouros e veteranos insanos, pelo contrário, ficaram
ainda mais loucos e acabaram improvisando coro de voz.
Estava um clima perfeito para um início de romance, mas distrai-me e
me perdi da estranha do banheiro, que eu mal tinha visto o rosto. Tropecei em
algo, percebi que era um sapato, e trazendo para mais perto de uma escarça
luz de telefone alheio, vi que era um sapato idêntico ao que ela tinha perdido.
Procurei, procurei, e não a encontrei, quando a luz voltou, fui para a saída, e
quase tropeçando, ela entrava em um táxi. Foi embora da minha vista, deixou-
me apenas um de seus sapatos, sorri, pensei:
-Lá vai minha cinderela.
-x-
Estava afogado nos cálculos o dia inteiro, de manhã no estágio
entregando os relatórios, e a tarde na construtora, sem contar o dever de casa
para fazer. Tantos anos estudando no colégio e tendo diariamente tarefas de
casa, quando cheguei à faculdade imaginava que finalmente me livraria deles,
mas estava enganado. Até a formatura eu estava pedindo prazos extras para
entregar “as tarefas de casa”, projetos, relatórios, seminários.
Eu tinha que contar ao meu amigo Salvadore as ondas que aconteceram
na festinha dos calouros. Achei-o perto da biblioteca, entramos, pegamos
alguns livros e sentamos em uma mesa.
-Cara, me perdi de você, fui ao banheiro na hora do apagão e não te
encontrei mais.
-Você se perdeu de mim? Eu que fui o cara do “Esqueceram de Mim”, fui
a pés para casa, não passava nenhum ônibus depois das 4h00min da manhã.
- Putz, foi mal, é que...
-Nem precisa falar, você estava com alguma caloura, entendi.
Gaguejei.
-O trem foi bom pelo visto.
-Eu tenho uma resenha sinistra para te contar. Nem me interrompeu, já
foi arregalando os olhos e começou a me ouvir. Conheci a garota mais linda de
todas ontem, no banheiro, fui tirar a água do joelho e ela estava caída perto do
mictório. Eu sei que ela é linda, eu sei que é, embora eu não me lembre muito
bem do seu rosto, foi bem na hora que faltou energia, só sei que tem cabelos
longos e loiros. Misturei as coisas, acho que foi a bebida.
Salvadore estava atento, escutando-me, ele sempre gostava de minhas
histórias, e dizia-me que eu deveria dedicar-lhe um livro inteiro, só pelo fato
dele ser meu ouvinte preferido. Ele achou muito interessante nos dias de hoje
ainda existirem cinderelas, esses contos de fadas reais. Para mim, eram
apenas acasos, destino ou fatos que aconteciam para eu poder contar á ele.
-Salvadore, então ela entrou num táxi e sumiu, e eu fiquei apenas com
um de seus sapatinhos.
-Sapatinhos não, é uma princesa que caça 41.
Ele queria saber dos mínimos detalhes, ver o sapato, se a garota tinha
chulé, então tirei o sapato da mochila e mostrei-lhe. Ele falou que estava
cheirando a cerveja, foi muito engraçado a sua entonação. Tomei-lhe o sapato
e coloquei novamente na mochila, eu não tinha entendido o porque eu ainda
não tinha me desfeito daquele sapato. Me faltava tempo com tantos afazeres
diários, só poderia ser isso.
-Bora, bora pra aula.
-É, quem sabe você não devolva esse sapato um dia, bem Cinderela.
Pensei que seria ator, ou diretor, quando me vi na faculdade de
engenharia, submergido em números e projetos para entregar, eu não tinha a
mínima noção de como eu tinha conseguido chegar até ali. Os números nunca
me encantaram antes, e no meu boletim, nas matérias de cálculos, eu sempre
passava na média, e foi assim também na universidade.
Talvez a minha admiração viesse da minha mãe arquiteta, o jeito, o
amor que ela exibia quando tinha projetos para entregar, e eu no meio de tudo
aquilo, fui crescendo. Um ano depois cursando a escola de teatro em Nova
York, sem a oportunidade para grandes espetáculos, e a pressão de um
delegado, acabei guardando o meu sonho em uma gaveta. Mas sabia que um
dia a abriria, então voltei ao Brasil, passei no vestibular, e quando pisquei os
olhos eu já estava me formando em engenharia.
O último ano foi nostálgico, estudava na Universidade Federal do Ceará,
e a distância e rotinas de estudante, não me permitiam que eu viajasse com
frequência para visitar minha família em São Paulo, nos víamos nos natais e
em ocasiões quando vinham em Fortaleza.
Era o último ano da faculdade, eu engenheiro, do teatro para a
engenharia, um grande abismo, e naquele último ano, despertei. Vi o que eu
tinha deixado para trás nos últimos cinco anos, a adolescência, a casa dos
pais, cabaço, São Paulo, amores, o teatro. Parecia um coma de que eu tinha
acordado. Todos esses anos sem ver o meu melhor amigo, o meu irmão Élido,
anos sem os amigos do colégio, estava ocupado demais fazendo cursos,
conferências, estágios, tudo que se tratava de engenharia. Andava ocupado
nas férias, fiz novas amizades, mudei de endereço, telefone.
Sempre que ia em São Paulo o Élido tinha acabado de voltar para Nova
York ou chegaria no dia seguinte a minha partida, desencontros, anos sem nos
vermos, raras conversas pela internet. Transformei-me em um cara adulto, o
que eu jamais imaginava que aconteceria, mas foi bom tudo o que aconteceu.
Toda essa distância nos amadureceu muito, só sentia falta das palhaçadas,
das viagens à Ilha Bela, dos conselhos do meu irmão, e principalmente
daqueles ouvidos paciente.
-x-
Estava na minha, tentando não olhar os peitos enormes da professora,
só queria prestar atenção na aula, sem contar o decote. De repente, a porta
abre com um vento forte e todos se assustam, parecia uma premonição.
Minutos depois a porta abre novamente sem que ninguém chegasse perto, eu
juro que se ela abrisse uma terceira vez eu chamaria um padre para fazer um
exorcismo naquele lugar. E na terceira vez que a porta abriu-se sem avisar, a
professora deu um baita grito.
-Sangue de Jesus tem poder.
Mas era apenas o reitor dessa vez, dando as boas vindas, foi um mico
daqueles, uma quarta vez a porta abriu-se sozinha. Não me contive com uma
sequência de sustos da professora, ri, o reitor sentou na pontinha da mesa e
começou a nos relatar uma historinha.
-Essa sala há anos que não a abríamos, um fato lamentável ocorreu
aqui, uma caloura de medicina veterinária foi encontrada sem vida. E o caso foi
um grande mistério, e é um grande mistério até hoje já que o fato nunca foi
solucionado.
-E as câmeras?
-Não registraram nada, só a entrada da garota, logo em seguida elas
pararam com uma falha no sistema já bastante deteriorado, e quando voltou a
gravar, ela já estava caída morta no chão. Mas hoje é um dia lindo, resolvemos
seguir a diante, e esse é um caso para a justiça.
Pensei com os meus botões, se o meu pessoal, os amigos do colégio
estivessem por aqui, resolveríamos numa boa esse mistério, levantei-me e
caminhei até a porta.
-É claro que a porta vai continuar abrindo sozinha, a trinca está frouxa,
tem que ser trocada, não existem fantasmas aqui.
Voltamos normalmente para a aula, e depois de muitas vezes sermos
surpreendidos pela porta que inesperadamente abria-se, ela ficou finalmente
aberta. Eu estava sentado próximo, perdi a vista numa garota que cruzava o
corredor, era alta, loira, cabelos longos, parecida com a da boate, mas eu
jamais teria certeza, já que não me lembrava e nem tinha visto o seu rosto
direito.
-Necessito de um habeas corpus para sair dessa prisão, faculdade!
Ouvi isso do Salvadore, ele se entediava nos primeiros minutos da aula,
talvez por isso que ele se tornou o meu amigo na faculdade. Se eu estava
focado em ser um bom veterano, estagiando desde o primeiro semestre, e
tirando boas notas, ele detestava tudo aquilo, toda aquela técnica, os blablabás
sobre como asfaltar vias, ele simplesmente não tinha nada haver com
engenharia. Eu teria receio de morar em qualquer lugar construído por ele.
Me convidou para matar aula, aproveitamos a hora do intervalo para
sair, para todos os lados haviam loiras de cabelos compridos, e elas realmente
se pareciam. Eu estava começando a ficar paranoico, me instiguei quando vi
uma menina no segundo andar com saia branca e camisa preta, e depois no
estacionamento a mesma garota com saia preta e camisa branca. Não
aguentei, pensava estar delirando, mas eram apenas gêmeas, deixei a
paranoia de lado e voltei a focar nas aulas.
Quanta indisposição, foi o que me restou depois do feriado prolongado
de carnaval, não viajei, nem sai em nenhum bloquinho, fiquei em casa, cama,
cobertor, filmes, eu e o meu eu. Dormi, dormi horrores, um pouco de redes
sociais, não visitei e nem fui visitado por ninguém, peguei vários livros na
faculdade para ler no feriado, tinha até um trabalho para fazer, simplesmente
joguei tudo para um lado da cama, eu merecia aquele descanso, celular off-
line.
A quarta após o meio dia, queria que eu fosse para o estágio, fui para
cama, e logo na quinta eu tinha uma aula no turno da tarde, e se eu não tivesse
matado todo o mês de fevereiro naquela disciplina, eu teria ficado em casa. A
minha vontade era matar, matar aquela aula insuportável, não aguentei e fui
para a biblioteca. Lá tinha uns puffs, não resisti e cai em sono em cima deles.
Eu não acordei simplesmente, fui acordado por uma pessoa distraída,
que foi escalar a estante para pegar um livro na prateleira mais alta,
desiquilibrou-se e acabou caindo em cima de mim.
-Caramba, sério?
-Oi? Perguntei ainda sonolento, com a garota em cima de mim.
-Sério que você ainda usa essa camisa?
-Camisa? Eu não estou entendendo.
-Você realmente continua o mesmo. Abraçou-me, veio um filme retrô em
minha mente, reconheci o abraço, o cheiro.
-Você está linda, não acredito como está linda.
- Você virou um gatão.
-Caramba Naiara,
-Alexandre.
Nos abraçamos por um bom tempo.
-O que você faz aqui?
-Estou tentando pegar um livro sobre tubulação.
-É, isso percebi. Como eu era mais alto, peguei o livro e dei a ela.
-Me transferi pra cá.
-Como assim?
-Caramba Alexandre.
Pegou-me no braço e abraçou-me novamente. Estávamos com muitas
saudades um do outro. Pude sentir o mesmo respirar em meu pescoço,
ofegante, os mesmos batimentos corridos de uma noite especial, a nossa. Era
ela, era ela ali, abraçando-me novamente.
-Quanto tempo, estou muito feliz, muito. Vamos tomar um suco?
-Claro.
Posso lembrar-me de seu caloroso sorriso consentindo. Tomar um suco
no campus da universidade seria normal, e mais prático, ou em alguma padaria
por ali perto, mas eu queria ficar a sós com Naiara, colocar as conversas em
dia, saber das novidades de São Paulo. O que tornaria impossível se
Salvadore ou qualquer outro amigo aparecesse. E como eu não estava a fim de
assistir aula aquela noite, acabamos no meu apartamento em Iracema, onde
morava com o meu filho que se chamava Opereta. Eu detestava chocolate
branco, mas o nome era legal, e finalmente eu podia ter um cachorro.
-Seja bem vinda, é aqui que eu moro. Opereta veio todo alegre ao meu
encontro, e enciumado com a visita, latiu, mas logo tornou-se doce ao abanar o
rabinho.
Fiz um suco de abacaxi, enquanto esperava por mim na sacada da sala
de jantar. Eu morava sozinho com o Opereta em um apartamento que
comportava uma família enorme com suítes e salas que se perdiam em vista,
exagero de mãe. Ela estava linda, na sacada, olhando para os últimos riscos
do sol que se punha, refletiam em sua face, a bronzeando, cabelos enormes,
vento.
-Suquinho de abacaxi como você sempre gostou.
-Você ainda lembra.
Demos alguns goles e sentamos no chão. Conversamos, conversamos
horas a fio, vimos a noite surgir.
-x-
Naiara era uma garota tímida, quando a conhecemos era extremamente
tímida. Além do aparelho, usava uma franja que cobria-lhe praticamente a
visão, tinha dificuldade na leitura e redação. Quando percebi isso no colégio,
comecei a tentar uma aproximação, mas a sua timidez exagerada, maior que a
minha, a afastava de tudo e todos, tentava por meses um diálogo, até que
pouco a pouco ela foi se abrindo. O que facilitou uma abertura, era o nosso
gosto em comum pelo mesmo som, e a antipatia pelo café.
No tempo do colégio, quando todo o grupo não estava reunido, ou o
Élido não estivesse por perto, eu e Naiara convivíamos boa parte do tempo. A
casa dela ficava na rua de cima da minha, no mesmo condomínio, e nossos
pais eram amigos, nos dando a liberdade para frequentar a casa um do outro.
Logo que ficamos amigos, nas terças, depois da aula, ia para a casa
dela, brincávamos de escolinha a tarde inteira, até sentirem minha falta em
casa e irem me buscar. Ajudava a Naiara na leitura e redação, era focada,
queria melhorar, e quando cansávamos, tinha um delicioso lanche nos
esperando, ou mudávamos de brincadeira.
E as quartas-feiras a noite, nossos pais se reuniam, e eu e Naiara
depois do jantar, íamos aprender matemática, ela me ajudava nessa matéria.
Com o tempo fomos ficando íntimos, se meus pais precisassem viajar no fim de
semana, me deixavam na casa dela. Nessa época o Élido ainda não morava
conosco, mas assim que ele veio para a família, passou também a frequentar a
casa de Naiara, e logo assim, formamos o grupinho com o pessoal.
Na adolescência, as aulas de matemática continuaram sérias, realmente
estudávamos, quando vinha a exaustão, fechávamos os cadernos e
deitávamos na cama, dividíamos o fone de ouvido e ficávamos observando o
reflexo das estrelas através da água da piscina, vezes adormecíamos. Nessa
época nossos pais viviam nos envergonhando em público, sugerindo que
namorássemos, era constrangedor. Quando tivemos nossa primeira relação
sexual, já no finzinho do 9° ano, nossa convivência ficou meio estranha,
sempre que ficávamos sozinhos, corávamos, ríamos algumas vezes,
diminuíram as aulas de exatas e humanas por um tempo.
Em uma de nossas aulas, depois de exaustos com tanta leitura e
cálculos, resolvemos terminar o reforço, peguei meus fones e fomos até a
dispensa atrás de brigadeiro. Lembro-me daquele dia, ela com as bochechas
rosadas e eu tímido, coloquei o fone nela e mostrei-lhe uma música nova, som
novo, rimos a toa. Depois não trocamos palavra alguma, apenas diálogo entre
olhares, não resisti, beijei-a, rimos. A acompanhei até a sua casa, antes de
entrar ela ficou na ponta dos pés, e nos beijamos novamente.
Como ela tinha mudado desde a última vez que nos encontramos. Foi no
aeroporto durante uma ponte aérea entre São Paulo e Campinas, tinha
acabado de chegar de Nova York, e a vi de longe no balcão de embarque, não
a alcancei. Oficialmente, aquela era a última vez que eu a tinha visto, a última
vez que nos vimos reciprocamente, foi na despedida do colégio, assim que as
aulas acabaram. Naiara ia para a faculdade em Sobral no Ceará, e eu e Élido
para a escola de teatro em Nova York. Despedimo-nos calorosamente, com o
mesmo abraço do nosso recente encontro na biblioteca da faculdade.
Ir para a faculdade era um sonho antigo de Naiara, sempre amou
números, teve que adiar esse sonho durante um ano. Muita coisa aconteceu
em sua vida em um curto espaço de tempo de 366 dias. Ela foi fazer uma
escalada antes de ir para a aula inaugural, e acabou em uma queda livre de 10
metros de altura. Fraturaram as duas pernas, e seus pais ainda estavam
passando por uma crise conjugal, o que a deixava dividida entre dois lares, um
em São Paulo com a mãe e o outro em Sobral com a família do pai.
E até recuperar-se totalmente, passava-se um ano, e nesse período lá
estava eu, em Nova York com o meu irmão iniciando a carreira de ator, o que
para mim não fluiu, já que voltei ao Brasil, para trilhar um caminho mais sólido
e seguro como a vontade do meu pai. Acabamos emocionados partilhando
nossas lembranças.
-Vou pegar brigadeiro. Falei levantando-me bruscamente para disfarçar
uma lágrima inconveniente que queria caminhar, ela continuava sentada no
chão da sacada.
Que mundo pequenininho, rodamos o mundo inteiro e acabamos na
mesma sala de aula, na mesma faculdade, mesmo curso, e agora estávamos
mais uma vez a dividir um pote de brigadeiros. Ri e ela perguntou-me o motivo,
lembrava-me de nós dois na dispensa da minha casa em São Paulo nos
beijando. A deixei tímida, coloquei as mãos nos bolsos, retirei-as, e passei
meus dedos delicadamente em seus cabelos os conduzindo até a orelha, corou
sua rosácea mais ainda, beijamo-nos inesperadamente, mudamos de assunto.
-Lembra da música que fizemos?
Ela estava muito afinada, a anos não ouvia alguém cantar com tanto
amor, nostalgia e sentimento, cantamos o refrão juntos. Pouco a pouco fomos
lembrando da turma, dos tempos de teatro, quando nos demos conta do
horário, a noite já havia entrado a dentro e eu deitava sob suas pernas. Como
um amigo que era acolhido por sua amiga de infância. Olhei para ela, seus
olhos apertavam e brilhavam, pude ver que ela tremia com o friozinho
cearense. Da sacada avistamos alguns corajosos correndo pela orla, uma praia
quase deserta, descemos e molhamos nossos pés nas pequenas ondinhas que
quebravam na praia, ríamos de tanta felicidade.
-Está tarde, esqueci minha bolsa lá em cima.
Subimos, ela pegou a bolsa sobre a mesa, peguei a chave do carro para
leva-la, descemos até a garagem, entramos no carro, pneu furado, nos
encaramos sorrindo, ficamos sérios.
-Vou pegar um táxi.
Ela abriu a porta.
-Espera. Desci, acompanhei-a até a porta do prédio, entrou no táxi,
partiu, eu tinha a sensação de um dejavu, subi, ri para mim mesmo, não dormi.
-x-
-Oi
-Oi.
Sentava-se do meu lado na faculdade, logo começamos a fazer os
trabalhos juntos, deixando Salvadore enciumado. A aula tinha acabado mais
cedo, aproveitamos a aula vaga para colocar o assunto do seminário em dia,
estávamos em um grupo de quatro, Eu, Salvadore, Naiara e Mateus. Era um
trabalho simples, mas que deveria ser bem feito. Eu e Naiara sentamo-nos à
mesa, perto da porta, ela do lado esquerdo e eu na extremidade direita,
Salvadore sentado em uma das cadeiras e o Mateus com os fones de ouvidos
escrevia no quadro. Ouvimos um forte estrondo, a porta abriu-se sozinha como
de costume, desta vez violentamente, quebrando-se o vidro e assustando-nos,
exceto Mateus que distraía-se ouvindo música, rock pesado.
-Essa sala é mau assombrada.
Pude ver os arrepios em Salvadore, foi engraçado o pulo que ele deu, a
ginástica artística perdeu um grande atleta.
-Parece. Naiara esfregou as mãos.
-Teve um caso sinistro nessa sala a seis anos atrás.
Com curiosidade Naiara perguntou-nos o que havia ocorrido e Salvadore
narrou.
-Em 2009, depois da festa dos calouros que acontecia todos os anos
aqui na faculdade, na segunda feira, seguinte ao dia da festa, antes da aula
inaugural, uma aluna de veterinária foi encontrada morta aqui nessa sala. Às
investigações não fluíram, as câmeras não filmaram além da entrada da garota,
sem suspeitos, testemunhas, a perícia não encontrou nada, arma, marca de
violência sexual, nenhum arranhão.
-Nossa, em 2009, me lembro, foi o ano que vim pra cá estudar, eu
estava nessa festa, fiquei até a madrugada e depois sai com uns amigos para
uma escalada. Foi quando eu sofri o acidente e tive que voltar pra São Paulo.
Fiquei sabendo de alguns flashes, intrigante.
Naiara franzia a testa, Mateus continuava escrevendo no quadro, o cara
da limpeza entra e nos interroga a fim de saber o que aconteceu, nos alertou
que já passavam das 22h30min, ele precisava limpar a sala, tirei os fones dos
ouvidos de Mateus, juntamos os materiais e saímos da sala. Levei Salvadore e
Mateus para suas casas, eu e Naiara ficamos a sós, passamos pela orla,
tomamos água de coco, ela ficou quieta, silenciosa o tempo inteiro.
-Que intrigante. Lembra, lembra do caso do cara do colégio que
desapareceu por uma vida e solucionamos?
-Lembro, e que enrascada aquela.
-x-
Depois que o sarau acabou como de costume, eu, Élido, Bruninho,
Vanesca, Naiara e Jaqueline, reunimo-nos atrás do colégio. O ensino médio
estava acabando, e aproveitamos para nos encontrar, jogar conversa fora,
tomar uma ou duas. Era uma ruinha estreita, quase inabitada, muitas árvores e
um canteiro central. Barulho de coruja, a noite era mau iluminada, o frio de São
Paulo doía nos nervos, deparamo-nos com a imensidão daquela casa.
Abandonada, naquela noite, além da aparente depredação e pichações nas
paredes, haviam tapumes impedindo a entrada de qualquer um. Ficamos
surpresos.
Era um tapume de 2m de altura, fizemos uma escadinha, os mais altos
iam levantando os mais baixos. Naiara ficou com medo da altura e ficou por
último, Élido acabava de pular para o lado de dentro, fiquei uns 10 minutos
convencendo Naiara. Era medrosa, tinha receio de ser pega, e finalmente
quando nos preparávamos para pular, uma viatura da polícia passava na rua e
ascenderam os faróis altos na nossa direção. Naiara desesperou-se em pensar
na possibilidade de chegar em casa na carruagem da polícia, o policial desceu
do carro, Naiara vermelha, tentando acalmá-la, dou-lhe um beijo na boca,
somos abordados.
- O que os jovens fazem nesse lugar ermo e escuro a essa hora da
noite?
Gaguejamos, eu podia sentir Naiara ofegante, o pessoal ouvia-nos do
outro lado dos tapumes, calados. Élido gargalhava baixinho, tinha certeza que
era ele, faltou-me um buraco para entrar.
-Os Jovens são mudos?
Eu fazia parte do grupo de teatro, tinha que improvisar, foi a deixa,
comecei a fazer gestos, imitando a linguagem de libras, o policial começou a
irritar-se, e eu falando em linguagem de sinais. Naiara me sacou e também
improvisou, imitando uma gaga, foi uma cena comediante. O policial nos
interrogava, não entendia nada, foi a viatura e voltou com um manual de libras,
foi uma péssima tentativa, o policial que estava distante, tirando a água do
joelho, se aproximou e perguntou ao outro policial.
- O que você está fazendo?
- Eles não falam, ele é mudo e ela gaga.
- Se ele é mudo eu não sei, mas é o filho do delegado.
Eu gelei na hora, estava no personagem e não sabia como continuar, o
policial tocou-me nos ombros e iluminava-nos com uma lanterna azul.
-Juízo meninos, juízo.
Entraram na viatura e seguiram rua a cima, foi o dia em que eu mais
agradeci por ser filho do delegado, finalmente conseguimos entrar na casa.
Élido não conteve suas gargalhadas e disse que não faria melhor.
Ele nunca desapareceu, nunca esteve tão perto de todos esse tempo
inteiro.
Foi uma verdadeira dificuldade, até eu e Naiara conseguirmos entrar no
casarão branco da ruinha atrás do colégio. Primeiro pela altura dos tapumes e
também por todo o desenrolar com os policiais, mas finalmente entramos.
Provavelmente aquela seria a nossa última vez naquele lugar, pelo menos a
minha e a da maioria, já que estávamos saindo do colégio.
Era absurdamente escuro, não tinha luz, andávamos com dificuldades, e
naquela noite em especial, estava escuro ao quadrado. Tropeçávamos nas
velharias mesmo com uma falha lanterna que nos deixou na mão. Parecia um
roteiro de filme de terror, uma locação ou coisa do tipo. Bruninho tinha por que
tinha que se perder e Élido o herói, sair pra procurá-lo. Logo estávamos todos
espalhados em um casarão antigo, desabitado, frio e sem enxergar um palmo a
frente, totalmente sem luz, guiados apenas pelo tato e esbarrões em quinas de
mesa, pilhas de livros e cadeiras que assustadoramente surgiam pelo caminho.
Vanesca a mais corajosa abria caminho, esbarrou em uma caixa cheia
de velas, que convenientemente também tinha fósforos, eram velas
aromáticas. Ascendemos e saímos pela casa à procura de Bruninho que se
perdeu, já fazia uma hora desde que Élido tinha saído para procurá-lo. Eu
poderia começar a ficar preocupado, mas o medo não deixou, vinha um
barulhão enorme da cozinha de panelas caindo no chão, e em outros cômodos
da casa diversos barulhos assustadores. Naiara e Jaqueline acabaram
correndo, e agora realmente estavam todos perdidos naquela imensidão de
casarão, e ninguém tinha a brilhante ideia de ir para passagem secreta que
dava para o colégio, o medo faz dessas coisas.
Eu e Vanesca fomos até a cozinha, era o Bruninho, ele estava comendo
bolo de chocolate, mas era impossível ter bolo de chocolate naquele lugar
desabitado, e eu comecei a me indagar a respeito do desaparecimento
repentino de Élido e das meninas, certamente estavam me trolando. Subimos
para o andar superior e encontramos Jaqueline e Élido no maior amasso no
quarto do Diretor desaparecido. Havia lençóis limpos na cama antiga, e da
última vez que estivemos lá era apenas uma cama velha e desmontada.
Escutamos Naiara gritando no andar de baixo, corremos até lá, era um
rato enorme que estava revirando uma lixeira, só podia ter mais alguém
naquela casa, não tinha explicação, fantasmas não dormiam em cama e muito
menos comiam bolo de chocolate, eu particularmente nunca vi. Finalmente nos
reencontramos, foi quando Vanesca, que sempre teve uma sensibilidade
espírita apurada, resolveu brincar de tabuleiro ouija, o jogo do copo. Relutei
muito em participar daquilo, mas acabei convencido pela adrenalina, sentamos
no chão, a chama da vela fazia ondas de calor, movimentando-se e
consumindo o pavio lentamente, o que era assustador e causava-me arrepios
involuntários.
-Tem alguém aí, SIM ou NÃO?
De repente um velho, vestindo uma camisola branca, arrastando os pés
que asperavam nos nossos ouvidos, boca serrada e olheiras, apareceu. De
certa era o fantasma do velho fundador da escola:
-Tem. Tem vocês invadindo a minha propriedade. Vou chamar a polícia,
ninguém consegue fazer amor numa barulheira dessas.
O Fantasma ainda falava, causou até um desmaio em Naiara, e até
entendermos que não era um fantasma, e sim o fundador em carne e osso,
mais osso que carne, alguns de nós já tinham borrado as calças. Ele nunca
desapareceu, nunca esteve tão perto esse tempo todo. Depois de anos no
colégio, resolveu se mudar para o interior de São Paulo, onde construiu uma
nova escola para lecionar para as crianças carentes da região, e agora estava
retornando com a sua esposa, que também era professora na época do
Montessoriano.
Estavam de volta em São Paulo, e encontraram o antigo casarão
totalmente abandonado, seria uma longa reforma. Como ele demorou nos
explicando o que tinha acontecido, sua esposa foi procurá-lo, não era a cena
mais linda da vida ver uma senhorinha pelada e excitada, ela assustou-se
quando nos viu, e em seguida nos fez companhia. Comemos o resto do bolo de
chocolate e conversamos boa parte da madrugada a frente.
Ele tinha muitas aventuras, muitas histórias, estórias, e também o
atualizamos sobre as lendas urbanas que tinha se formado desde o suposto
desaparecimento. Fugiu com a professora, foram abduzidos, ele ficou louco e
se desintegrou, se aluiu a própria casa, eram muitas besteiras que contavam, e
ele não fazia questão de desmenti-las, já que a vida no interior sem publicidade
e com bastante simplicidade o fizera tão bem, pra alma, pro coração, pro
espírito e para o amor. Lá ele e sua esposa viveram outra metade de suas
vidas e agora estavam de volta para um novo recomeço.
Foi gostoso relembrar aquele dia, Naiara me deu um tapa nas costas,
dizendo que eu tinha me aproveitado da situação para olhar a sua calcinha.
Afirmei, disse que lembrava até da cor, branca, tomamos um suco de graviola,
subimos para o meu apartamento, assistimos filmes, brigadeiro, já estava tarde
e a deixei em casa.
-x-
Ela morava em uma casinha aconchegante no final da praia de Canoa
Quebrada, simples, uma varandinha, quase mineira, encantadora, até o final
daquele ano, trocamos inúmeras risadas naquela varandinha, além de
nostalgias e beijinhos de amigos.
Um dia antes da nossa colação de grau, combinamos um pequeno
jantarzinho na casa dela, queríamos comemorar nossa conquista, nosso
diploma. Ela assou um peito de frango, levei uma massa com mozzarella,
azeitonas e ervilhas além de uma sobremesa de pudim de leite. Quando
passamos a morar longe da casa dos pais, aprendemos a cozinhar ou temos
que nos alimentar de x-salada (3x10) ou miojo, e eu não gostava de nenhuma
dessas opções. Bastou o tempo em Nova York com Élido no fast food e alguns
tutoriais de como fritar um ovo, para eu ter a necessidade de procurar um
cursinho de culinária.
Depois do jantar silencioso, fomos até a varanda, dividimos a rede, entre
embalos e gargalhadas. O mar hipnotizava-nos, a cada embalo na rede,
ouvíamos o ranger das cordas, como um assovio, a água fazia toctoc bem na
nossa varanda, nos olhamos e entendemos. Tiramos as roupas e corremos de
mãos dadas, nús, nos jogamos no mar. Era divertido e nada excitante, o mar
era congelante, pinto congelado, ficamos pouco tempo na água, logo voltamos
para casa.
Ainda tinha umas sobras de brasa da churrasqueira, improvisamos uma
fogueira na areia, sentamos, peguei um violão, não sabia tocar, não tinha
aprendido, ela sabia disso e foi motivo de rir do meu desajeito com as cordas.
Pegou o violão das minhas mãos e tocou, tocou e cantou, a fogueira resistia ao
vento, raios no meio do mar anunciava uma tempestade. Choveu, desabou um
dilúvio dos céus, apagando nossa fogueira, corremos para a varanda, nos
assustávamos com os gritos dos céus, ríamos dos sustos. Entramos, fez-me
um chocolate quente e gritou.
-O que houve, quase me queimei.
-Estou sem sapatos pra amanhã, esqueci de comprar.
-Caraca, já é amanhã.
Ela começou a procurar algo pela casa, revirando tudo sem dizer nada.
-Me ajuda Alexandre.
-O que?
-Meus sapatos.
Apareceu com um sapato vermelho, apenas um lado, mostrou-me,
comecei a ajudá-la, tropecei em uma mochila preta atrás do sofá, era a minha
mochila que eu não sabia onde estava desde o semestre passado. Estava
meio aberta, tinha algo querendo sair, um solado vermelho, chuva forte, raios,
tirei o sapato da mochila e encaixei no pé de Naiara.
-É você.
-É o meu sapato.
-Cinderela.
Salvadore estava certo, encontrei a dona do sapato perdido, a garota do
banheiro, de longos cabelos loiros, era ela, estava ali na minha frente, diante
de mim, cabelos molhados, mas era ela, era ela sim.
-Você, o menino do banheiro.
Rimos como se estivéssemos recebendo cócegas. Ela ficava ainda mais
linda corada em gargalhadas, a encarei até voltar em si.
-Você é linda quando ri.
Realmente era linda quando ria, demorou muito no colégio para ela dar o
seu primeiro sorriso espontâneo, já que era tímida, tive que me armar de todas
as maneiras para conseguir o seu sorriso.
-Esse seu sorriso é o mesmo das aulas de matemática, quando ria
apenas para mim.
Ela calçou o outro lado do sapato, ficou quase da minha altura, era
engraçado como ela andava, parecia apertado, ficamos comparando nossas
alturas.
-Olha tampinha, você cresceu.
Ela riu, peguei minhas chaves, beijei sua testa, um caloroso abraço,
virei-me para a porta, não largou as minhas mãos, beijamo-nos, em meio a
sorrisos tímidos.
-O que foi?
- Ainda bem que não usamos mais aparelho.
Abri a porta, a chuva caía muito forte, corri até o carro, jaqueta sobre a
cabeça, parei, olhei para trás. Ela estava com um leve sorriso sem mostrar os
dentes, acenei, ela correspondeu, a vi entrar em casa, fechando a porta
lentamente, segundos até fechar. Entro no carro, coloco o cinto de segurança,
inclino a cabeça e ligo o para-brisa, vejo duas mãos no vidro esquerdo, era ela,
saio do carro, nos beijamos intensamente.
-Fica aqui.
Entramos correndo para dentro de casa, naquela noite fizemos amor,
uma recordação da nossa primeira vez, dessa vez, sabíamos o que estávamos
fazendo, a nossa melhor noite até aquele dia, ela soletrava palavras aos meus
ouvidos.
O tempo tinha se rasgado em nossas vidas. O corpo de menina virgem
já tinha se desfeito, agora ali, diante de mim, naqueles lençóis mudos e
quentes, era a volúpia de uma mulher. Cheia de curvas, capaz de matar,
assassinar, causar um suicídio.
Foi numa dessas curvas dela que eu perdi a direção da minha própria
vida, e entreguei na palma das suas mãos. Eutanásia de puro prazer, querer,
vontade e um sôfrego e intenso ruído de juntas, cartilagem, pele, carne e
ossos. Cabelos molhados na fronha, suor sem vergonha, a mão boba que não
sabe onde pegar, o abraço que consegue apertar, o pescoço mordido, monte
lambido, costas arranhadas, pintadas a unha, á sangue. Se fechar os olhos
escuridão, se abrir os olhos fogo e paixão. Beijo na boca, eu morri na cama
dela, pra viver pra sempre dentro dela.
-Eu te amo.
-Eu sei, também te amo. Adormecemos.
Ela estava linda, deitada ao meu lado, vestida na minha camisa de
algodão azul preferida, uma calcinha branca em medidas, sua cor preferida, a
deixando sexy. Seus cabelos longos cobria-lhe o rosto, parte espalhava-se pelo
colchão, menina linda, menina linda e sexy, desmontada em vaidades, frágil,
tão frágil, boca rosada, lábios corriam sangue, carnudos, olhos em sono.
Não queria despertá-la nem por um beijo, jamais esqueceria a
lembrança daquela madrugada de amor, meu relógio de pulso despertava as
06h00min, mas há algum tempo, eu a admirava, submisso àquela beleza até o
despertar do relógio. Levantei-me, preparei duas canecas de chá, quente, saia
vapor. Da janela do quarto o amanhecer invadia nossa privacidade com os
primeiros raios de sol, ondas calmas, chuva do dia anterior não existia mais.
Abaixei-me, fui despertando-a lentamente, ela acordou com um sorriso
tímido e um hálito metralhador, mesmo assim beijamo-nos, dei-lhe um abraço e
sai para a varanda com a caneca de chá na mão, ela levanta-se e acompanha-
me, sentamos na rede, e contemplamos a maravilha daquele sol que nascia
em Fortaleza, ficamos agarradinhos até o sol clarear toda a manhã. Estávamos
muito felizes.
A cerimônia de outorga aconteceria no finzinho da tarde, almoçamos,
deixei Naiara no salão, fui para casa, mamãe, papai e Luisa chegaram a pouco.
Minha irmã caçula cresceu bastante, eu tinha preparado uma caixa cheia de
doces para ela, mas a espertinha já tinha a encontrado e estava se deliciando.
Foi um abraço cheio de saudades e com as mãos sujas de doces.
Até o meu tio chato do sul veio, o apartamento estava lotado, meus pais
estavam tão felizes com a minha formação. Meus velhos, quanto amor sinto
por eles, a casa estava uma zona, vovó e vovô apaixonados como sempre,
primos que eu não via há anos, tios, tias, preferia que tivessem ido para um
hotel, mas a minha família sempre foi unida. Vezes exageradamente.
-Cadê ele?
Perguntei na esperança de encontrá-lo, sai correndo pelo apartamento a
sua procura. Não o encontrava, não o encontrei, entristeci-me, fui para o meu
quarto me arrumar. Sobre a cama, um terno preto, camisa em seda, linda
gravata azul, totalmente diferente do modelo que eu tinha escolhido antes.
Existia um bilhete, este perdido sobre o carpete, devia ter voado com o vento.
Dizia:
“O cara mais legal desse mundo me enche de orgulho... logo nas
primeiras palavras, nas primeiras linhas, pensei que fosse um bilhete do meu
pai, mas ele não era bom com textos, talvez mamãe, mas ela não se
expressava por meio de palavras pinceladas em linhas, reconheci a letra, sorri
pela metade e continuei a leitura...há cinco anos atrás o via partir, eu fiquei,
você me tornou um homem. Meu irmão e amigo, muito obrigado. Sua partida
foi fundamental para eu ser quem sou hoje, muito obrigado, te amo, saudades.
Ah, mandei fazer um terno igualzinho ao do baile do 9° ano, lembra? Tive que
beijar um cara no teatro, estou morrendo de saudades, acredita que eu fui
expulso do colégio de teatro? Mas eles reconsideraram, eu disse que estava
atuando, o que eu aprontei dá uma comédia daquelas na Broadway, perdão
pela minha ausência, estou em cartaz por toda a américa, nos veremos em
breve.”
Como eu queria abraçá-lo, vê-lo, ver aquele homem que se descrevia no
bilhete. O Élido que eu conhecia agora brilhava em Nova York, telinhas e
musicais da Broadway. Eu não poderia me entristecer pela sua ausência, fiquei
feliz com tantas lembranças, e curioso para saber o que ele tinha aprontado
dessa vez. Tive dificuldades com a gravata, do espelho, pude ver o reflexo dos
meus pais entrando em meu quarto.
-Que lindo, deixa eu te ajudar.
Mamãe alinhou-me a gravata e sentou-se na cama, papai veio abraçar-
me, trouxe-me um lindo anel de formatura, desenhado pela minha irmãzinha,
fomos os dois a sacada e fechamos a portinha de vidro.
-Meu filho eu estou muito feliz por você, pela sua obediência, eu sei o
quanto você queria estar em Nova York com o seu irmão, fazendo da sua arte
a maior felicidade da sua vida. Tremulou a voz e lagrimou. Obrigado por fazer
esse velho pai feliz.
Abracei-lhe, foram essas poucas vezes em que pude ver a emoção em
sua face arrancando-lhe lágrimas. Papai saiu, fiquei olhando o infinito mar,
mamãe entrou, fazia-me carinho, delicada, que saudades eu estava daquele
perfume, único. Mesmo que eu revirasse todo o mundo em busca daquela
fragrância, eu não encontraria, era única, cheiro de mãe é único.
-Olha a imensidão desse mar meu filho, ele é como o que você tem em
seu coração, uma imensidão de sonhos a serem realizados, eu sei, sei que
engenharia não é um peixe em seu mar, não são ondas, e nem desaguam em
correntes, é como uma velha barragem, travessão, ponte. Meu filho, você
cresceu, agora é homem, agora é você, a vida é sua, vá, vá, faça como esse
mar, desague, vá e corra em imensidão, mergulhe no seu mar de sonhos e os
pesque.
Choramos.
-Perdoe o Élido, ele queria estar aqui, você sabe.
-Eu sei mãe, eu entendo. Enxugou minhas lágrimas.
Meus convidados já estavam no local da cerimônia, todos assentados,
eu, papai, mamãe e Luisa, chegamos atrasados, bem atrasados. Estacionamos
e saltei, corri. A cerimônia já estava iniciando, eu ia ser um dos primeiros pela
ordem alfabética, gritei.
-Mãe, vamos, tenho que entrar.
Na porta do auditório da faculdade, tinha um cara encarando-me, alto,
forte, terno idêntico ao meu. Gritei novamente para minha mãe, ela sorriu,
parou, ficou parada, Luisa soltou da mão dela, correu, passou por mim e
abraçou o estranho.
-Não acredito, sussurrei.
Só haviam se passado cinco anos, 1865 dias exatos, era como se o
tempo não tivesse corrido tanto assim, só me toquei que o tempo realmente
tinha passado quando não reconheci o meu próprio irmão. Veio até mim com
Luisa no colo, colocou-a no chão e me deu um forte abraço. Analisou-me dos
pés a cabeça.
-O caçula cresceu, que homem heim cara, agora engenheiro.
-Sabia, sabia que estava aprontando alguma.
Totalmente emocionado com a surpresa chegada de Élido, fiz-lhe um
convite.
-Me acompanha?
-Claro que sim.
-Mib?
-Mib mais uma vez, vamos lá homem de preto.
Posicionamo-nos na porta do salão, iniciamos a marcha, todos em pé e
uma suave melodia, avistei meus pais e avós emocionados, continuei em
frente, seguindo. No meio da passarela uma mão bate em meus ombros, paro,
olho para o lado, imóvel, não estava acreditando. Era Bruninho, continuava o
gordinho da turma, Jaqueline do seu lado, sorria como nos tempos do colégio.
Vanesca também presente, perdi o equilíbrio das pernas, tremulei as
pálpebras, piscava freneticamente, tentando acreditar que realmente estavam
ali presentes, suor frio, minha pressão, quebrei o protocolo e fui abraçar meus
velhos e melhores amigos. Como tinham mudado, mas a amizade e o abraço
eram os mesmos. Naiara saiu de seu lugar e também tomou-se do nosso
abraço coletivo. A cerimonialista chamou-nos a atenção e voltamos para as
formalidades do evento.
Ao subir no palco para receber meu diploma, pude ver a felicidade dos
meus amigos, e como eram lindos. Não falo só pelo fato de serem meus
amigos, mas eram lindos, realmente, todos. Mandei um grande beijo de lá de
cima enquanto me saldavam em palmas. Ao fim da cerimônia, subi novamente
ao palco para fazer o discurso do orador, falei sobre caminhos, caminhos de
nossas vidas.
“Temos vários caminhos nas mãos, apenas um é o certo, apenas um
nos leva a felicidade. Ao abrir as mãos percebemos 3 caminhos principais, em
forma de M. Um nos leva para o errado, para o sem saída, o outro caminho
para o bem, para o amor. O 3º caminho que fica no meio dos dois é um atalho,
este pode ser usado para se chegar mais rápido ao caminho certo ou ao
errado. E existe também inúmeros outros caminhos paralelos, esses nos
conduz ao novo, novas emoções, novas diversões, vidas, novos lugares,
horizontes, novos ventos, acalentos, amores, novas aventuras, emoções,
confusões, novas pessoas, religiões, conceitos, o novo, o novo a ser
desbravado. Nesses caminhos paralelos, existem também os caminhos velhos,
que nos dirige ao passado, á saudade, nostalgia, pretérito perfeito ou
imperfeito. Nos leva a infância, juventude, nos leva a velhice, aos cabelos
brancos, aos velhos amigos, ao museu, velhas trilhas empoeiradas, com limo,
lisas, azedo como limões, doces como laranjas, caminhos que nos levam ao
mesmo lugar, ao início.

Se fecharmos as mãos todos os caminhos se cruzam, formam uma


rede, um tráfego, tornam-se únicas. Feche suas mãos, guarde nos bolsos, a
esquente, proteja o seu mapa do tesouro, dê uma espiadinha entre os dedos e
veja só você o seus caminhos, sua rota, sua trilha, estrada de mão única, sem
acostamentos e sinalizações. Talvez você encontre alguns obstáculos nesses
caminhos, mas respire fundo e seja um UL (Ultrapassador de Limites), poderá
encontrar outros nessa estrada, acene e continue sua rota, desprenda-se do
mundo e seja lá qual for o caminho da sua vida a ser seguido, vá de corpo e
alma. Ande, corra, pula, vá, leve a esperança para encontrar na chegada a
felicidade, o amor para cultivar, sementes e semeie, leve sorrisos para
distribuir, palavras para serem ditas, palavras verdadeiras, leve força para não
desistir, e jamais solte das mãos DELE. Jamais, seja lá qual for o caminho
escolhido, que seja um que caiba um passageiro, um amigo, pois um caminho
para um é vazio, uma viajem sozinha é solitária, com duas pessoas você é
avivado. Vá, vá com Deus pelo seu caminho, chegue á Luz, á vida, á Salvação,
á Felicidade. Vá. Escolha o caminho certo e vá, você tem um lugar para
chegar.”
Todos ouviram silenciosamente, com atenção, alguns emocionados,
olho para os olhos de um a um de meus amigos, dos meus pais, avós e
colegas de universidade. Fico um tempo os observando, dou um largo sorriso
direcionado ao público, fecho a caderneta. A plateia levanta-se e
simultaneamente quase me ensurdeço com as palmas do público, me senti de
volta ao teatro. Desço os degraus, Luisa desce do colo do meu pai e agarra-me
até a altura das pernas. A coloco em meus ombros, tiro meu capelo e coloco
em sua cabecinha, volto com Luisa para o meu lugar, bem na hora da
tradicional chuva de capelo, Luisa divertiu-se, ela que jogou por mim o mais
alto que pôde. Cerimonia longa, seria um tédio se os meus amigos não
estivessem presentes, aparecido de surpresa, finalmente me formei.

-x-
Meu apartamento estava cheio, fizemos uma comemoração, reunimos
as duas famílias, a minha e a de Naiara, eram cerca de 70 pessoas. Faziam
planos para o meu futuro e de Naiara, indagando-nos se estávamos
namorando, que carreira seguiríamos, se íamos montar a nossa construtora,
aquele papo chato, cheio de perguntas de pessoas mais velhas. Simplesmente
saíamos de todas essas conversas, afinal, eu e meus amigos estávamos
reunidos novamente depois de anos.

Corre corre de crianças pela casa, felicitações de parentes e amigos,


casa cheia. Era impossível um lugar sossegado para nos reunir e ficarmos sós.
Depois de o agradabilíssimo jantar, conseguimos fugir levando a sobremesa
conosco. Sempre gostamos de terraços, lugares altos de onde pudéssemos ver
as estrelas, o céu, sentir as pontadas do frio e jogar conversa fora, adorávamos
mirantes.
Fomos para o terraço do prédio, de lá dava para ver a imensidão de
Fortaleza que brilhava como pisca-piscas com as luzes de seus arranha-céus e
residências. Davam para ver o mar quebrando nas pedras, formando uma
pequena nuvem de espuma, dava para ouvir o som, o som do vento, naquelas
alturas de 25 andares, o silêncio reinava com o frio, meia luz da torre de TV do
prédio, um banquinho, umas plantinhas, um grande descampado de concreto,
bem longe e diferente dos nossos gramados em Ilha Bela, onde nos sentamos
e ficamos parados, esperando alguém iniciar qualquer assunto.

-Que frio.

-Quanto tempo.

-Quanto tempo.

-Qual a última vez que nos reunimos?


Eu busquei á mente a lembrança de quando foi à última vez que nos
reunimos todos juntos. Foi na última semana do colégio, uma semana cheia,
baile dos veteranos, sarau, viagem para Nova York, falava aos céus, como se
falasse as nuvens e não aos meus amigos ali presentes.

-Falando em formatura, vocês vão né? Perguntou Naiara.

-Até parece que eu sai de São Paulo, deixei o escritório de publicidade


pegando fogo para não ir nessa festinha. Claro que vamos.

-Boca livre é comigo mesmo.

-Tenho um ótimo ator no elenco de apoio, se não chegar a tempo ele me


substitui, aliás, estamos apenas nos ensaios.

-E você Jaqueline, vai ficar para o baile? Jaqueline parecia distraída.

-Eu? Meu voo é cedinho amanhã de manhã, não posso ficar fora muito
tempo, cheia de responsabilidades, afazeres, dei uma escapadinha.

-Não acredito, poxa. Me esforcei toda para reunir todos nós, fica mais
um dia.

-Não posso realmente.

Seu celular tocou, ela levantou-se e foi atender no reservado,


apreensiva, veio até nós e sentou-se conosco novamente.

-Vai ser um festão, vai ter até show.

-Lembra do nosso último baile dos veteranos? Aquele foi o baile. Ri


comigo mesmo.

-x-
Estávamos na minha casa, conversávamos coisas aleatórias, eu sendo
zoado por estar vestido em um terninho roxo. Estava sentado, fazia cafuné em
Naiara que estava próxima de mim, Bruninho brincava na cadeira giratória, e o
resto do pessoal estava no carpete. Pedimos pizza, era comum ter todos os
anos pegadinhas, na verdade, brincadeiras bem pesadas no baile dos
veteranos, não arriscaríamos, no ano anterior colocaram laxante nas bebidas,
quase ninguém escapou. Ainda na minha casa, durante o pit stop, começamos
a falar de coisas bizarras que já tínhamos feito, ou de coisas que tínhamos
curiosidade em fazer. Coisas tão simples.

-Tenho vontade em aprender a cozinhar.

-Estou lavando as minhas próprias calcinhas, castigos da minha mãe.

-Vocês já andaram de ônibus?

Todos respondemos que não, e era curioso, nunca ter entrado em um


ônibus antes, sempre tivemos nossos pais ou motoristas para nos levar para o
colégio ou qualquer lugar da cidade. Era engraçado ouvir tanto perrengue que
as tias da cantina nos contavam.

-Vamos andar de ônibus? Agora?

-Agora?

-E, chegar de busão no baile.

-Você deve estar maluco.

-Vamos, vai ser divertido.


Depois de um pouco de resistência, topamos, pegamos algumas
instruções com o segurança do condomínio. Ainda andamos por cinco quadras
até o ponto de ônibus. Mesmo assim nos perdemos, pegamos o ônibus errado
e paramos no outro lado da cidade.

-Uma péssima ideia essa sua.

-E agora, quem poderá nos salvar?

-Eu, Chapolin Colorado.

Estávamos em desvantagem, até aparecer um senhorzinho catador de


lixo em uma carroça, assustou-nos. Dando alguns tapas em Élido, Vanesca
começava a irar-se. Não gostei de conhecer o ponto final da linha de ônibus.

-Que ideia mais idiota.

-Posso levá-los.

-Mas como?

-Ué, na carroça.

-Não espere que eu vá subir ai.

-Já estou subindo.

Élido foi o primeiro, Bruninho o acompanhou e já subiu em seguida de


Jaqueline e Naiara, também subi e Vanesca ficou nos olhando batendo os pés
e com os braços cruzados.

-Vamos amiga, vai ser diferente.

-Fazer oque? Ela foi convencida e logo juntou-se a nós.


Finalmente conseguimos chegar à bendita festa, viramos a atração na
entrada, já que chegamos em uma carruagem nada convencional, diferente a
da cinderela. Era uma carroça estreita, o jumento era um mascote para o dono,
logo fomos ouvinte de sua história de vida. Um nordestino em busca do
progresso na cidade grande, perdeu as contas dos dias que passou na estrada
com o amigo de quatro patas, um velho vira lata que se chamava Lula e o
jumento, vieram do sertão solitários.

-Vocês fazem belos casais, obrigado filhos pela companhia dessa noite.
Aquele baile tinha sido tão especial. Vanesca tinha vencido a guerra e
foram tantas batalhas na vida dela, cada uma superada, uma grande guerreira.
Nossa maior vontade era aproveitar cada instante ao lado de nossos amigos,
celebrar a vida. Celebrar a ressureição. De fato, Vanesca tinha ressuscitado.

Tantas meninas estavam engravidando, os jovens se descobrindo


sexualmente, de forma tão abusiva e imatura, que o colégio resolveu utilizar o
baile daquele ano pra fazer uma grande abordagem sobre o tema
“sexualidade”. Os pais pela primeira vez organizaram a festa, cada detalhe,
milimetricamente pensado.

Foi cômico, diferente ter que dividir a pista de dança com a minha mãe,
e foi difícil saber quem de nóis dois dançava de forma mais ridícula. Ela me
desafiou, digamos que deu empate técnico, até hoje ela se gaba pela
performance.

Vanesca estava tão linda, bailando pelo salão de mãos dadas com o
Bruninho. Era inacreditável, eles discutiam pelas mais variadas besteiras, e no
mesmo instante estavam aos beijos. Subiram juntos para receberem o título de
veteranos daquele ano. Foi tão merecido. O quanto Bruninho se empenhou pra
que Vanesca estivesse alí, na sua frente, com um sorriso no rosto, brilho de
certeza no olhar. E tudo, tudo o que ele tinha feito por ela, por todos nós, valeu
a pena.

“Eu não preciso de uma coroa de princesa pra me sentir tão especial. Eu
não preciso de um título de veterana do ano pra me sentir amada e querida. Eu
já tenho tantas coisas, eu tenho tudo, eu tenho todos vocês. E agora eu tenho
o amor do meu lado”.

Vanesca rejeitou a coroa, pegou na mão de Bruninho e os dois


desceram do palco. Todas as luzes aquele dia se voltaram para eles, para os
seus pés, gestos. E eram tão sincronizados, tudo tão recíproco, que nem
parecia que os dois viviam pelos corredores se desentendendo até pra decidir
quem dava a primeira mordida na coxinha.

“Você tem razão, coroa nenhuma te fará especial. Você nem combina
com coroas. Mas tenho algo que te deixará mais linda, muito mais linda.”
Bruninho tirou um lenço do bolso, delicadamente ornou a cabeça de
Vanesca. Era um lenço de cetim preto, cheio de florezinhas. Tinha até cheiro
de jardim. Vanesca o olhou nos olhos, coçou o nariz, ajeitou-lhe a gravata
borboleta, que tinha o mesmo tom de seu lenço de florezinhas e o beijou.

O beijou para nunca mais o deixar sair de seu beijo.


Descemos da carruagem, Élido e Jaqueline empancaram, sussurravam
entre si.

-Naiara se você não se importa, eu posso levar este cavalheiro ao Baile


dos Veteranos?

Fiquei imensamente surpreso, Naiara franziu a testa, demorou dez


segundos para responder, riu, soltou as minhas mãos e disse sim.

-Bruninho seu nojento. Eu também quero trocar de par.

Vanesca agarrou Élido, não aguentou o peido de Bruninho, ninguém


aguentou. Fizemos nosso primeiro troca-troca aquela noite. Élido fez par com
Vanesca, Naiara com Bruninho e eu com Jaqueline. Finalmente depois de anos
eu estava levando a garota mais linda do colégio para o baile, a bailarina que
um dia eu amei.
No 3° ano, o colégio estava completando 70 anos. E fizeram o baile
anual com o tema “Saudosos anos 70”. Um infinito de poá por todos os lados,
toda a decoração se resumia em bolinhas brancas, pretas, bolinhas coloridas.
Muito brilho, muitas cores, muitas flores. Até aromatizantes e fumaças
coloridas. Tudo muito delicado, romântico e hippster.
Velas coloridas, pensei que alguém estava fazendo um despacho para
arrumar um grande amor, voltar com a pessoa amada em 7 dias ou algo do
tipo. O certo é que se aquelas velas causassem algum incidente o bombeiro
Elido estaria alí para resolver o problema. Eu e meus amigos nos inspiramos
nas energia das cores para montar nossos figurinos.
Muitos meninos usando calças boca de sino, camisas florais, colares de
conta, ternos bufantes. As meninas e suas longas saias de poá, vestidos
escandalosos, argolas. Eram os mais diferentes e impressionantes looks. Que
charme foram os anos 70, coloridos, vividos, corajosos e destemidos. Foi uma
geração forte, militante contra censura e a favor da cultura, do respeito, das
igualdades.
As amizades eram valorosas, honradas e fiés, a música protestante,
religião abalada pelos novos costumes, o governo cruel, no lapso de suas
ruinas. Juventude de paz e amor, de artistas, sua maior causa era ser feliz. Era
a busca pelo respeito e pela verdade. Quem me dera ter um dia pelo menos
vivido nos anos 70.
Poderia dançar livremente toda a play list do baile aquela noite. Mas era
dificílimo manter o pic daqueles flash back pesados, dances, soltaram até forró.
Eu fui com um terno roxo, nas mangas e nos bolsos sobressaiam
detalhes em neom, nas costas trazia o rosto dos jogadores da seleção
brasileira tetra campeã em 70, bordado em alto relevo, a calça era lisa,
camiseta branca com a bandeira do Brasil pintada a mão.
Bruninho usava verde, as mangas de seu paletó super alinhado, tinha
inúmeras folhas bem pequenas, costuradas uma a uma, nas costas estava
escrito com gliter “Salve a Amazônia, Viva a Natureza!”
Èlido foi de azul, no peito existia uma pergunta simbólica em lantejoulas
coloridas “Ordem e Progresso?” e 27 estrelinhas branca ao redor.
Jaqueline ousou ir inteiramente de vermelho. Escarlate nas unhas, mate
beterraba nos lábios. Ela sempre amou vermelho, e para uma adolescente de
17 anos, parecia uma mulher experiente, madura, tão confiante. Uma grande
bailarina que todas as vezes que saia de casa de vermelho, chamava a
atenção. Parava o mundo, paralisava o coração daqueles que diziam a amar.
Vezes me perguntei se ela teria inventado, descoberto as chamas do fogo, e as
transformado no vermelho mais vivo, quente e real.
O vestido do meu Sol. Nem se todos os girassóis do mundo inteiro se
juntassem, teriam o mesmo brilho do vestido de Naiara. Como era delicada.
Adornos na barra, uma verdadeira obra de arte, leigos e até mesmo
especialistas, pensavam que era uma grande pepita de ouro. Tão preciosa
quanto a sua voz, tão frágil quanto um véu tecido por aranhas.
Suas mãos enquanto dançávamos “love of my life” pareciam veludos
finos. Minha respiração ficou tão ofegante, certamente tive uma queda de
pressão. Quando a vi pela primeira vez com aquele vestido, fiquei com o
coração reprimido de tanta timidez, sorri da forma mais boba, idiota que se
pode imaginar. Meus olhos quiseram se fartar de lágrimas, virei o rosto e disse
o quanto ela estava linda, o quanto era linda.
E em um provador qualquer do Bairro da Liberdade, tive a sensação de
que ela era a pessoa certa a quem meu coração queria se doar. Eu, um
menino de 17 anos, cheio de planos, já com saudades daquela moça, e ela
estava ali na minha frente, desfilando pra mim, mostrando o quanto ficava bela
de amarelo.
Como pude esquece-la tanto tempo dentro de mim? Como os meus
ouvidos puderam se acostumar com o silencio da sua voz? Como meus olhos
ainda poderiam enxergar se não a sua beleza? Como não me ressequei por
dentro sem o seu abraço?
Me abraçou tão forte, com tanto amor e me preencheu os lábios com o
seu beijo naquele baile, que até o nosso reencontro na biblioteca da faculdade,
anos depois, eu ainda tinha vida.
Era como se ela soubesse que um dia nossos braços ficariam longe.
Ainda bem que não foi pra sempre. Ela sorriu só pra mim, que privilégio. Se o
mundo pudesse desfrutar seu sorriso, claramente em todas as manhãs o sol
não arderia. Não haveria escuridão. E mesmo que existisse a lua, a sua luz
seria muito maior a iluminar as noites. Talvez o eclipse não fizesse sentido. E o
romance dos dois seria tão clichê, sem graça. È uma graça o seu sorriso, uma
dádiva. Não se trata de egoísmo, se trata de amor. Quando eu sinto saudades,
eu fecho os meus olhos, e vejo ela sorrindo, enquanto canta pra mim qualquer
canção de amor, em especial a nossa.
“Back, hurry back.
Please, bring it back home to me.
Because you don't know
What it means to me.
Love of my life.
Love of my life.”

E de onde eu estiver, o meu anseio é voltar correndo, só pra lembra-la...

“To remind you how, I still love you.


I still love you
Love of my life.”
Me diverti, dancei com Jaqueline por um bom tempo até voltarmos para
os nossos pares iniciais.

-Está bom, quero a devolução da minha bailarina, já estou ficando com


ciúmes e imaginando que você ainda gosta dela.

-Não, claro que não, aqui é irmandade, fique tranquilo.

-Sei.
Vanesca usou a cor mais improvável de todas, era um laranja
florescente. Um croped de mangas ciganinha e uma calça baloné, toda em
laranja, imensas argolas, pulseiras e anéis por todos os dedos. No cabelo um
lenço branco em flores. Continuava com a sua beleza de sempre, ainda mais
viva, brincalhona e resmungona com o Bruninho.
- Você parece uma abóbora falante
- E você um abacate estragado.
- Um abacate estiloso.
Nos posicionamos pra nossa tradicional fotografia na porta do colégio.
Quanta emoção ainda nos aguardava. Nossas vestes tinha um significado
particular. Único. Revelava nossas essências, nossos sentimentos e
personalidades. Nos descrevia como a sinopse de um filme, claro que uma
ótima comédia. Era além de um cardápio de pizzaria ou letras pequenas de
bula de remédio.
Cada cor retratava quem éramos de verdade, éramos como papéis a
serem escritos, quadros a serem pintados. Um lindo arco íris pra unir todas as
diferenças do mundo. Para a igualdade se sobressair, a liberdade ser a grande
estrela da noite, de sempre. Nossa amizade era uma lição de vida, sempre foi,
pra cada dia de vida nessa terra. Se eu pudesse escolher, viveria pra sempre
em forma de cor, só pra colorir as pessoas, marcar. Ser história contada, pra
sempre. Mas só valeria a pena se fosse aquarela com os meus amigos mais
coloridos do universo.
Cheios de espírito, desejo de vontade, força, amor pelas artes e pelo
artístico, pela natureza. Reluzentes da luz e do sol, vida, cheios de cura e
poder transpirando em cada poro, fogo e vivacidade na alma. Essa sim, seria a
aquarela perfeita pra colorir o mundo inteiro, tirar as pessoas da prisão do preto
e branco. Do básico de sempre.
Minutos antes da escolha dos Veteranos anos 70, a festa parou, todos
pararam, o som e o pisca frenético da iluminação. Da porta de entrada descia
alguns degraus até o salão principal alguém surpreendente, vinha lentamente
com um olhar de vingança, sorriso malicioso. Alguém que jamais tinha sido
notada antes, e a medida em que aproximava-se, abria-se um grande corredor
humano para que ela pudesse desfilar, ser notada, vestia azul celeste, a
encarnação do próprio céu em nosso meio. Como era fabulosa, digna,
deslumbrante. Alguns se pisoteavam para chegar mais próximo, ouviam –se
sussurros e cochichos de “Nossa...quem é ela?”.

Quem era aquela, alguém não estranho. Chegou até o centro do salão
com o seu imponente vestido azul celeste, aquele tinha cheiro, doce como
baunilha. O refletor a iluminava, ela sorria sem ao menos abrir a boca, as luzes
começaram a tremular, iluminação de boate, som, todos voltaram a dançar
conforme as músicas. Tempos depois alguém falava ao microfone cortando a
música, era o anúncio dos Veteranos do ano, dois refletores maiores bailavam
pelo salão e focava nas pessoas, uma luz baixa e música de suspense,
estavam todos ansiosos. A luz focou em mim, quase me cega, eu não tirava os
olhos daquela garota tão linda, cabelos Chanel, negros, me cutucavam.

-Você não tá ouvindo?

-O quê?

-Você, é você.

-Alexandre Helmss Feshina, Veterano anos 70.

Foi engraçado, com tantos garotos fortes, mais bonitos e simpáticos,


logo eu eleito. As meninas enfureciam-se, a estranha garota de vestido azul
celeste que ninguém a viu antes no colégio, dava meia volta quando
anunciavam a Veterana ano 70. Ninguém sabia quem era Andressa de Moraes
Almeida, as meninas procuravam entre si para saberem quem era Andressa, a
busca de qualquer gesto que a denunciasse. Na terceira chamada, ao ouvir
aquele nome, fui ao passado, vi que a garota misteriosa continuava a andar em
direção a saída, apressada, olhava para trás e pude ver nos olhos dela um
olhar de dever cumprido, a reconheci, quanto tempo.

-Vamos anunciar a segunda colocada, já que Andressa não manifestou-


se. A nova Veterana anos 70... Interrompi o anúncio do diretor, tomei-lhe o
microfone, fui descendo do palco e falando, comecei a discursar, ela parou na
porta, ouvia-me.

-Assim que eu entrei no Montessoriano a seis anos atrás, me apaixonei


por uma grande amiga de classe, uma bailarina, e tudo que eu queria era poder
levá-la ao Baile dos Veteranos. Por essa mesma bailarina o meu melhor amigo
e irmão também se apaixonou, não nos tornamos Caim e Abel. Pelo contrário,
só nos fortaleceu ainda mais, hoje essa bailarina namora o cara mais maneiro
que eu conheço, tão maneiro que emprestou a bailarina dele para me
acompanhar ao baile. Vocês dois sempre serão importantes para mim, assim
como todos os outros amigos, sabem de quem eu falo. Já que fui eleito por
vocês essa noite, me sinto encarregado de fazer o discurso de Veterano.

Respirei fundo. Quando eu participei do meu primeiro Baile de veterano,


tudo era novo, as únicas festas que eu já tinha ido eram aniversários infantis.
Usava aparelhos, espinhento, sem par, nenhuma garota queria segurar a
minha mão durante a valsa. Mas uma garotinha, gordinha, engraçadinha, ela
naquela noite, usava um vestido roxo, aceitou ser meu par, até caiu na piscina
ao tentar beijar-me.
Essa garotinha todos os dias, aqui neste colégio, passou a ser caçoada,
humilhada, vítima de preconceitos por não estar na moda, não ter um
manequim 90 60 90, ríamos de sua cara, de seu jeito. Era invisível para todos
nós, ninguém a dava valor, ela se recluiu passou todos os dias nesse colégio
estudando dia e noite, tirando notas altas, enfiada na biblioteca, poucos “ois”
ela recebia, do zelador, da faxineira ou da tia da cantina.

Aquela garota que nunca andou na moda, a moda era o nosso


preconceito? Quanta arrogância, quantos erros, vamos aplaudi-la, hoje, agora.
Andressa de Moraes Almeida, você é a Veterana dos anos 70, perdoe-nos.”

A garota olhava para mim e para todos que a observava calados,


inclinou-se e eu a coroei. Aquela coroa deixou a menina de azul celeste ainda
mais linda, foi feita para ela, não falou nada, apenas passou os dedos nas
pedrinhas da coroa e sumiu além da porta. Foi aplaudida pela primeira vez, ela
merecia, sempre mereceu os aplausos.

Saiu do salão de festas, outra vez desapareceu, sumiu.

-x-

-Você deu-nos uma lição aquela noite sobre preconceito.

Jaqueline emocionou-se ao recordar aquele momento depois de anos.

-É, reagimos. O que você está fazendo da vida?

-É...corou...atarefada, atarefada, ando atarefada.

-E o Balé?

-A última apresentação foi no sarau, uma das últimas.

E como esquecer-se daquele sarau, ela mesmo abriu as apresentações,


rabo de cavalo, tutu preto, maquiagem pesada, jaqueta de couro, bailarina
diferente. Dançava uma ópera rasgante, ao fundo um coral que vestia-se de
branco, a destacando no palco. Desaguava todas as suas emoções em
lágrimas sobre o palco, interpretava, esquizofrenia, uma roqueira presa, que
queria a liberdade.

Bailarina refém, a cada nota mais grave seu corpo contorcia-se, parecia
vezes que poderia dar-se um nó, nas notas mais baixas, uma graça soberba, o
make lavava com as lágrimas toda a sua face, chegava a ser assustador. Ao
final três batidas fortes de um tambor reproduzia o seu coração, um enfarte,
seguida de outras pequenas batidas, num piscar ou dois, as cortinas fechavam-
se, foi exausto aquele balé. Como ela poderia ousar abandonar o balé, era o
balé que não poderia viver sem ela.

-Vocês ainda se lembram da nossa música que fizemos em Ilha Bela?

-A que cantamos no sarau?

-Lembro.

-Eu lembro.

Eu nunca tinha ouvido a nossa canção em gaita, Bruninho me


surpreendeu. Era a última apresentação do Sarau do 3° ano, estávamos de
uniforme, apenas o Élido sentado num banquinho ao violão, Naiara em pé,
atrás dele, ele inicia as primeiras notas, eu, Vanesca, Bruninho e Jaqueline,
ansiosos na coxia, aguardando nossa entrada. Naiara levanta a voz, Jaqueline
e Vanesca entram simultaneamente em coro.
Na segunda parte da canção, no intervalo entre a letra e o instrumental,
Bruninho salta uma gaita do bolso, entra no palco, uma ritimização
inesquecível, todos olhavam para ele. Entro no último verso da música, o
restante dos alunos do 3° ano apoia-nos em coral, todos ficamos lado a lado
em um abraço coletivo, esquecemos a gaita, o violão, a banda do colégio, e
usamos apenas o vocal, um grande coro. Apenas um ensaio e vários
improvisos na hora, não tinha ocasião melhor para terminar o nosso ano
escolar.
-Foi a melhor interpretação de uma música autoral que vi.

-Eu amo tanto vocês, quanta falta eu senti.

-Naiara que nos reuniu novamente.

-Eu sabia que tinha os dedinhos dela.

-Não foi nada fácil, confesso.

-Já tá tarde, meu voo é amanhã cedinho. Jaqueline levanta-se.

-Não, fica só mais um dia, remarco o teu voo.

-Não dá, não dá, tenho que estar no Rio amanhã cedo.

-Amanhã é domingo Jaqueline, o que você vai fazer em pleno domingo?

Não respondeu, estávamos tentando de diversas maneiras fazer com


que ela permanecesse mais um dia em Fortaleza. Estava muito estranha desde
a hora que encontrou-se com Élido, ela queria afastar-se dele, o evitar, era
nítido. E ele por sua vez, estava desconfortável naquela noite, pouco interagia
nas conversas, tínhamos ainda muito a saber sobre os últimos anos em que
passamos longe.

Vanesca e Bruninho também concordaram em ir para o hotel, Élido não


queria ficar em casa, nem dividir o quarto comigo, algo sério aconteceu entre
ele e Jaqueline durante esse tempo, mal se falavam. Ele hospedou-se em outro
hotel, os acompanhamos até a portaria. Bruninho e Vanesca entravam no táxi
de trás, Élido no da frente. Jaqueline conversava comigo e Naiara antes de
entrar no carro. Jaqueline o observava, ambos trocaram olhares, sorriso leve,
acenaram, Jaqueline entrou no táxi, foram embora.
Naiara sentia formiga nos pés, eram os sapatos apertados, tentou tirá-
los não conseguiu, sentamos no sofázinho da portaria, arranquei-lhe os
sapatos, pediu-me uma massagem, não satisfeita perguntou-me:

-Quando vai me pedir em namoro?

Não a respondi, mordi um de seus pés, a convidei para ver o mar,


desconversei, mudei de assunto.

-Não sai daí.

Peguei os sapatos dela, subi ao apartamento, peguei dois pares de


chinelos, ela estava em pé conversando com o porteiro que não tinha nome de
porteiro tipo Severino. Tinha cara jovem, na verdade era muito novo pra ser
chamado de Severino. Tinha muito mais perfil de modelo fotográfico, devia se
chamar Eitor, Alberto, Plínio, pensei. Agarrei-a pelos braços e saímos correndo,
um motoqueiro freia e buzina em cima de nós, na faixa de pedestres.
Continuamos correndo até a areia sentir nossos pés, não resistimos, a água
estava atraente, beijei-a e a abracei forte dentro da água.
Saiu lentamente, subitamente do mar, feito uma sereia, hipnotizando-
me. Meu coração sentiu um forte aperto, que mulher mais linda, como ela era
capaz de deixar o mar ainda mais belo, calmo. Ainda com as roupas que
cobriam-lhe o corpo, suas curvas, seus trejeitos, eram todos desenhados.
Seduzia-me com pouco, bastava mexer nos cabelos ou sorrir timidamente.
Saio atrás dela e a agarro, caímos na areia, onde permanecemos um
bom tempo em conversas, sobre o que iríamos fazer agora que a faculdade
tinha acabado, montar um escritório de engenharia, regressar a São Paulo ou
ficar no Ceará, mas eram assuntos chatos, e não era o momento a ser
discutido.

-Uma viagem, quem sabe uma viagem.

-Para onde?
-Pra qualquer lugar, desde que seja com você.

Permanecemos algum tempo na areia, ela acariciando-me, eu


delicadamente segurando uma de suas mãos. Que fragilidade, sempre tão
delicada, tão menina, e ao mesmo tempo, uma grande mulher. Agora ali,
deitada ao meu lado, fazendo planos e cansando os dedos para me dar um
pouquinho de amor que carregava no peito. Ser amado e desejado por ela, era
um privilégio, e eu ainda não tinha a pedido em namoro. Por conveniência que
fosse, o importante é que éramos amigos e sempre tivemos um ao outro.

-Você está ouvindo?


-Um caraoquê, vamos lá?
-Que música perfeita.

Minha Sereia olhou-me contente, ela sempre gostou de cantar. Qualquer


oportunidade ela subia no palco, mesmo tímida, ou permanecendo vezes
escondidinha em um cantinho, reservada. Demonstrava vivacidade ao cantar,
seu canto, realmente parecia sedutor, certamente pertencia a uma sereia,
certamente seria uma sereia.
Naiara subiu em um caixote de cerveja, pegou o microfone e pôs-se a
cantar. Haviam três pessoas no quiosque, o vendedor, e dois garis que
tomavam água de coco. Já era um pouquinho tarde, assim que começou a
cantar, meu coração retraiu-se, ficando do tamanho de uma ervilha, e
inesperadamente inchava feito um baiacu assustado. Como essa garota
dispunha de poder sobre meus sentimentos, o quanto me deixava vivo, me
fazia sentir amado. Um super herói por ter a mocinha mais encantadora perto
de mim.
Assisti pacientemente, observando seus lábios tão carnudos e
volumosos que cantavam para mim. Escorado em um pé de coco, as pessoas
se aproximando, para verem quem era a jovem que cantava com tanto querer,
com tanta vontade, com tanta vida, acordando quem queria dormir.
Um homenzinho falou:
-Se eu tivesse mais 20cm, eu teria coragem de fazer uma declaração
para essa jovem. Claro que já é amada por algum homem que a corteja, em
segredo como eu, como muitos. Deve ser um grande homem, ela merece
alguém à altura. Queria ser esse sortudo e a fazer feliz.
Confesso que fiquei enciumado, quanto atrevimento. Me fez refletir
realmente o quanto ela era uma grande mulher, e merecia ser muito feliz, ser
feliz de verdade. Eu era um grande imbecil por não ter dado o valor que ela
sempre mereceu. Porque ainda não a pedi em namoro? Que burrice. Quanta
ignorância.
Sai de onde eu estava, parecia um adolescente novamente. Minhas
mãos começaram a suar frio, meus pés afundavam numa areia movediça, na
minha imaginação. Meu estomago burbulhava. Meus batimentos eram quentes,
um vulcão prestes a explodir. Feito um adolescente de 15 anos prestes a se
declarar pra sua amada, na quadra do colégio, na hora do recreio.
E a cada segundo que eu me aproximava dela, a coragem de antes
tentava me abandonar. Quando Naiara terminou de cantar. Ela correu até mim,
antes que eu a alcançasse, ela me alcançou primeiro. Eu queria que ela nunca
mais desprendesse do meu pescoço. Tomei-lhe o microfone, sentei-me no
caixote, e dessa vez era ela quem me admirava.
Pus a cantar pra ela, como um delinquente embriagado de tão nervoso
que eu estava. Cantava-lhe engolindo algumas notas e atropelando o tempo da
música. Mas ainda assim me amava com olhar de contentamento. Como eu
queria saber tocar violão só pra impressioná-la. Só pra ter mais um segundo
que fosse de sua atenção. Que besteira, eu já tinha muito mais que a sua
atenção em minhas mãos. Tratava de seu amor, sua vida por completo. E eu,
imaturo, não tinha percebido tamanha importância.
Pela primeira vez estava sendo bombardeado pela timidez, e ao mesmo
tempo por diversas emoções. Era o peso de um prédio comprimindo os
músculos do meu coração. Era amor, era amor nas minhas veias, pela sereia
mais sedutora, pela mulher mais incrível de todas, por Naiara.
“Quer namorar comigo?
Balance a cabeça e diz que sim
Abre um sorriso e vem pra mim
Me dê um sinal, me chama que eu vou
Quer namorar comigo?
Vou me dar com loucura pra você
Hoje eu criei coragem pra dizer
Que o que eu sinto por você é amor
Faz algum tempo que você vive em meus sonhos
E eu esperando esse momento chegar
Você tem um minuto pra pensar
Apenas um segundo pra falar
E a vida inteira pra mostrar que me quer
Você tem um minuto pra pensar
Apenas um segundo, eu te digo
O que eu mais quero é te fazer feliz

Quer namorar comigo?”

Ela me olhava com tanta sensualidade e ternura, que era impossível eu


não tremular a voz, gaguejar. Eu não sabia se a minha vontade era que a
canção terminasse pra eu sair dali. Ou se era pra acabar logo e correr, sair
gritando até Naiara, só pra saber qual seria a sua resposta. Simplesmente
beijá-la, amá-la.
Todas as vezes que estava perto dela, me sentia mais corajoso, vivo e
protegido. Foi a única que me aplaudiu após eu terminar de cantar, eu entendo
os outros espectadores. Não estava tão afinado para cantar, graças ao amor.
Ela aplaudiu mais pela minha coragem que entonação. Finalmente, de certeza,
ela tinha toda a minha atenção. E eu se quisesse, todo o seu amor por toda a
minha vida.
-Desculpa pessoal se eu não cantei tão bem. É que eu estou nervoso,
muito nervoso. Mas muito obrigado.
-Libera o microfone. Gritava alguém.
-Pera, rapidinho, já já eu libero. Eu estou muito nervoso, mas mesmo
assim me restou um pouco de coragem. Eu estou completamente apaixonado,
de verdade. E somente hoje eu vi a importância, o tamanho do significado do
que é amar de verdade.
Vai muito além de companhia, ser presente ou verdadeiro. É muito mais
que cantar desafinado em um caraoquê ou oferecer um buquê de flores. Amar
de verdade é simplesmente amar. Amar não tem explicação, simplesmente se
ama, e quando percebemos já é amor.
E eu estou falando tudo isso, paguei o maior mico, cantando aqui, no
meio de todos vocês, mas tudo isso foi para uma garota especial. Uma que tem
voz de sereia, os olhos mais brilhantes, a boca mais carnuda. A garota que
pode fazer qualquer pessoa feliz. Mas decidiu me fazer feliz. É pra você. É pra
você essa canção e essas palavras.
Naiara não se privou de chorar em público, emocionada. Segurei em
suas mãos e a única reação foi beijá-la até quase perder o fôlego. Morreria os
dois sem ar. Mas felizes. Foi o nosso melhor beijo. Substituiu todas as nossas
palavras.
Sorri, voltamos pro prédio, subimos molhando todo o saguão, entramos
em casa, todos já tinham ido em bora, e os que ficaram estavam acomodados
dormindo. Fomos para o quarto, tomamos um delicioso banho juntos, o vidro
embaçava-se com nosso respirar em fadiga, enquanto fazíamos amor. Nossos
corpos interligavam-se, era como se o nosso suor tocasse a água, encontro de
mar e rio, fogo e água, nos tornamos únicos, apenas um, água gelada do mar,
água quente de ducha, espuma, mãos trêmulas, box, risadas silenciosas de
modo a não acordar as visitas, arrepios, corpos molhados, corpos quentes,
aquecidos, êxtase de amor, exaustão, cama, madrugada e sono profundo,
dormimos e acordamos abraçados.

-X-
Ao experimentar narguilé, na festa do pijama, na casa de Vanesca,
engasguei-me na primeira tragada, decidi naquela hora nunca mais colocar um
cigarro na boca. Élido, Vanesca e Bruninho continuaram, reversavam-se e até
chegavam a disputar o narguilé. Só pararam quando a mãe de Vanesca entrou
de surpresa no quarto os flagrando, pensei que viria uma bronca, talvez esse o
motivo de Vanesca ser uma pessoa sem limites.

-Tia quer fumar com a gente?

Ela simplesmente sentou-se do lado de Élido e começou a fumar, eu não


acreditava naquilo, ela já estava mais maluca que qualquer um de nós. A
fumaça começou a tomar conta do ambiente, o cheiro era insuportável.
Bruninho ascendeu uma espécie de tocha feita de tecidos, embebida de
perfume. O que não foi muito legal. Na real, ele tocou fogo na pilha de roupas
sujas da Vanesca. Foi assustador, o fogo se espalhou rápido.
-Chama o bombeiro, chama o bombeiro.
-Eu sou o bombeiro.
Élido conseguiu apagar o fogo, depois do incidente, fomos lanchar na
cozinha, tia mesmo chapada tinha preparado, e ali ficou conversando. Até
parecia que fazia parte do nosso grupinho, que também era uma adolescente.
Os papos que ela tinha eram sobre noitadas, baladas, essas coisas, e ainda
era humorada, contou-nos parte de sua adolescência, rebeldia, gravidez
prematura aos 14 anos de idade, era uma mulher realmente humorada, demos
várias risadas.

Naiara estava impaciente com as horas, aguardava o tio ir buscá-la para


uma ação social que faziam frequentemente com o grupo da igreja. Era
bastante envolvida em projetos sociais, e naquela noite havia nos contado o
quanto era gratificante, o quanto fazer bem ao próximo estaria fazendo o
melhor para si mesmo. Eu ainda não tinha pensado no tanto de coisas que eu
poderia estar fazendo em benefício do meu próximo, mas o tempo que eu
dispunha era somente meu, egoísta, tive uma grande necessidade de começar
a fazer o bem aquela noite.
-Você pode vir conosco.

-Eu?

-Sim, aliás, vocês podem vir, vai fazer um bem enorme em cada um,
garanto.

Nos entreolhamos, fui o primeiro a aceitar, em seguida os demais


também nos acompanharam. O tio de Naiara chegou para buscá-la, e ela foi
até ele bastante sorridente.

-Tio, tio, olha, consegui mais voluntários para essa noite, olha quanta
gente, conseguimos alguns cobertores também. Pães, podemos servir com a
sopa.

-Glória a Deus, sejam bem vindo, todos.

Não tinha a menor ideia de onde iríamos, passou pela minha cabeça
algum hospital público, rodoviária, ou viaduto. Naiara sempre me falava desses
lugares com amor e não com nojo ou desprezo. A face dela dentro da van
corada, fazia um frio significante, e ainda estávamos de pijamas, estávamos
tão empolgados com a novidade do voluntariado, que nem percebemos nossas
roupas.

Quando entramos no perímetro de acesso para a Avenida Rio Branco e


Rua Mauá, próximo à Estação Júlio Prestes, meu coração começou a disparar,
meu pai sempre nos falava daquele lugar com certa fúria e descontentamento.
Cheio de pessoas perdidas, pessoas que não existiam para a política, não
serviam nem para votar, pessoas inúteis e abandonadas por uma sociedade
soberba.

Como eu era soberbo, via aquele espaço como um grande buraco.


Mulheres escravizadas pela prostituição, adolescentes, crianças, famílias
inteiras ali, na escuridão, no lixo, na lama. Como foram parar ali, quantas
histórias de vida, romances que aconteciam naquele lugar, se é que caberia
um romance aquele lugar. Quantas amizades e laços afetivos desfeitos,
estraçalhados, ratos, pulgas, baratas, doenças, pessoas feias, esquecidas,
maltrapilhas, mortos de fome, mortos de esperança, sem esperanças, não
conheciam a fé, nudez de mente, de vida, nudez devida.

Ainda dentro daquela van, eu observava pelo vidro diversas faces, sujas,
olhos vermelhos, rostos sem expressões e expectativas, apenas rostos
contatos em planilhas ou estatísticas. O que eu fazia ali, o porquê de eu estar
ali, eu tinha conforto, casa, pais, colégio, eu tinha tudo, mais que eles, que
contentavam-se com um pedaço de papelão, eu tinha tudo, muito mais,
aparentemente, mas eles tinham mais. Anjos como Naiara que os amava, que
não os via como escuridão, tinham, o amor de pouquíssimas pessoas, raras,
escarças, até aquele dia eu não tinha o amor ao próximo.

-Preparado?

-Não.

Aquelas pessoas começaram a vir em nossa direção, distribuíamos pão


e sopa, agasalhos aos que não estavam anestesiados pela droga, esses
sentiam frio. Os pastores davam mais que alimentos e cobertas, levavam a
eles a palavra, de conforto, era difícil eles entenderem e escutarem, morfina no
corpo e na mente, surdez.
Comiam a sopa e o pão como se aquilo fosse algo novo, como se fosse
o último momento deles, o pão e a sopa eram tão confortantes quanto
palavras. Não sabiam rir, perderam a alegria, a felicidade e as próprias vidas
diariamente ali naquele lugar, alguns mostravam receio, rangiam os dentes,
pouco amigáveis, outros que já eram conhecidos do grupo de evangelização,
aceitavam ajuda.

-Pão?

-Não, só quero um abraço.


Instintivamente aquela moça abraçou-me, olhando-me profundamente
disse:

-Viva para o bem. Sumiu na multidão.

Eram tantas histórias, a moça abusada sexualmente pelo próprio irmão,


encontrou nas drogas a libertação das lembranças de dor, aprisionou-se,
aprisionou a alma. A senhora espancada até fazer um aborto já no 8° mês de
gestação, o senhor traído, o garoto fugitivo, a cada relato um dor em mim.

Um homem enrugado, cheio de cicatrizes, cabelos embolados, dentes


desgastados, entre 40 e 55 anos, cabeça baixa. Vanesca segurava o pão e a
sopa, estendeu a mão para o homem, ele tinha olhos azuis, eram bonitos.
Pegou a sopa, viu a pulseirinha dela, acariciou-a, Vanesca não mostrou
reação. O Homem imóvel a admirava, sussurrou:

-Como você cresceu. Tossia.

Vanesca lagrimou, se esquivou do homem e entrou na van, ali ficou em


silêncio, sozinha. A equipe de pastores o conhecia, era um senhor de meia
idade que nunca aceitava receber ajuda, recusava sempre, mas naquela noite
chegou até um dos pastores, abatido, pálido, franja de cabelos grisalhos,
trêmulo, ossos e pele.

-Hoje eu quero escutá-lo.

-Vem conosco, Jesus tem um lugar para você.

-Eu quero ir para esse lugar.

Entrou com dificuldade na ambulância, Vanesca acompanhava tudo,


cada movimento com o seu olhar de dentro da van.
Terminamos, tinha algumas pessoas que aceitaram ajuda, estavam
conosco dentro da van, a caminho do hospital, para atendimentos médicos,
umas cinco pessoas. Vanesca foi o trajeto inteiro até o hospital sem dizer nada,
visitamos algumas alas, e ao passar pela enfermaria masculina, Vanesca
parou, chegou perto do vidro e apoiou as suas mãos, chorou.

-O que está acontecendo? Virou-se e olhou para mim em lágrimas.

-Eu já estive naquele lugar.

Abraçou-me, meus olhos correram através do vidro da enfermaria, era o


Senhorzinho de mais cedo, aparentemente dormia. Apertei Vanesca em meus
braços, já eram quase seis da manhã, eu e Élido viajaríamos para Nova York
as nove, estávamos de pijama, em um hospital no centro de São Paulo, nem
nossas malas estavam feitas, mordi os lábios.

-Vai ficar tudo bem.


Como ia ficar tudo bem? Pensei comigo mesmo, mamãe nos mataria,
500 ligações perdidas, retornei.

-Mãe.

-Qual o buraco que vocês estão?

-Mãe, estamos chegando.

-Espero que cheguem mesmo, se não eu...

-Beijo mãe. Desliguei.

Fomos para casa, eu e os meninos jogamos tudo o que tinha no guarda


roupas dentro da mala, até onde coube, o que sobrou tentamos vestir.
Chegamos ao aeroporto em camadas, vestidos com combinações e
sobreposições estranhas, engraçados. Élido estava calçado com dois sapatos,
um de cada lado, chegamos ao cheking, lá vinha mamãe.

-Última chamada para Nova York.

Entramos no avião, eu e Élido fomos ao banheiro, ele me emprestou


algumas de suas roupas que estava vestindo em excesso. Continuei com as
pantufas. Somente mais tarde, já em Nova York, demos faltas de coisas
essenciais, da escova de dente, as cuecas da sorte. Nossas férias foram
incríveis, fomos a Broadway ver musicais, estávamos encantados. Era tudo
grandioso, de encher os olhos, telões, espetáculo, produção, os atores, era
tudo profissional, crítico, grandes plateias e enormes cartazes.

-Olha, tá vendo? Um dia estaremos em um cartaz como esse. Dizia


Élido sonhador.
Rimos, em um desses espetáculos fizemos amizade com o diretor, era
brasileiro, levou-nos aos bastidores e a cada passo sentíamos uma emoção,
atração, haviam ímãs em nossos pés, meus olhos ardiam com tantas luzes
fortes. Élido fazia graça com os atores, improvisava duetos e monólogos. Até
fizemos um pequeno curso de teatro durante as férias, no finalzinho, íamos
apresentar uma pequena peça em uma pracinha do subúrbio, e ao final
daquela apresentação, percebi uma senhorinha com churros nas mãos, uma
espanhola, simpática, sorridente e saltitante, parecia uma criança, alma infantil.
Veio até nós e deu-nos ingressos para o espetáculo mais disputado em
toda Broadway, espetáculo que os ingressos haviam esgotados em 48 horas
quando colocaram a venda, filas enormes, quase uma Black Friday, um
aneurisma de tanta emoção. Estávamos na fila para a entrada, enorme, parecia
que não entraríamos nunca, do nada a senhorinha, a mesma dos ingressos
veio ao nosso encontro, sorridente como antes.

-Vocês vieram, venham comigo.

Fomos levados por ela até uma estreita portinha, dando direto nos
bastidores. Passos a esquerda estávamos a frente dos camarins principais,
como me deu vontade de girar aquela maçaneta e entrar. Escandalosamente a
porta abre-se, o diretor do espetáculo passa desesperado, a senhorinha o
segue sempre sorridente e pergunta o que houve. O ator principal estava sem
voz, rouco e o cara do elenco de apoio tinha sido dispensado e disse aos
berros ao telefone que não voltaria mais para aquele palco, azar o dele. Já
estávamos no camarim, Élido sendo maquiado e eu o ajudando passando o
texto, aconteceu tudo de uma hora pra outra, Élido estava substituindo o ator
da companhia.

Uma grande loucura tudo aquilo, estávamos no êxtase da felicidade, era


como se estivéssemos sonhando, dentro de uma daquelas caixinhas mágicas
fechadas. Lá estava ele, concentrado, sério, a segundos de entrar no palco,
apertei suas mãos, larguei-o, abriram-se as cortinas, o espetáculo começou.
Plateia de milhares de pessoas, telões do lado de fora, eu estava na coxia,
assistindo a tudo, auxiliando o diretor, dando ideias novas e a cada ato todos
pareciam mais íntimos. Veio o último ato, ao fechar as cortinas, o diretor fez
seus agradecimentos e deu-nos crédito, fomos apresentados ao público, todas
aquelas pessoas nos aplaudindo, pensei:

-É isto que quero para a minha vida.

Comemorávamos com gratidão.

-Meu irmão, isso aconteceu mesmo?

-Aconteceu.

Estávamos abraçados chorando, a velhinha sorridente, até hoje não


sabemos seu nome, veio até nós.

-Podem estar aqui amanhã?

No dia seguinte voltaríamos ao Brasil, eu e Élido nos entreolhamos,


cumplicidamente rimos, afirmamos em coro.

-Claro.

-Sim podemos.

Permanecemos por três semanas com a companhia, até o ator principal


recuperar-se, tinha as aulas da escola nos esperando, Jaqueline com
saudades do Élido, a nossa verdadeira vida. Ao fim daquele pequeno estágio,
ganhamos uma festinha surpresa do elenco, eram grandes atores e atrizes já
consagrados. Mas nos bastidores, na convivência daquelas semanas, pude ver
que eram normais, tornaram-se nossos professores, grandes professores,
mestres e acima de tudo, grandes amigos.
-x-

O som da chuva sempre fazia lembrar-me, coisas aleatórias, até chegar


a coisas importantes. Quando tomava banho de chuva, e gota a gota molhava-
me, era como se fosse alguém a me tocar e despertasse em mim além de
arrepios, fortes lembranças. Nova York seria tudo em minha vida e na de Élido,
e quando o ensino médio finalmente acabou, o sonho de Élido em ser ator e o
meu de dirigir, estava finalmente realizando-se. Precisávamos abrir mão de
muitas coisas, romper com pessoas, perder, ganhar e ir.

Meu pai nunca gostou da ideia do filho seguir a carreira artística, algo
tão instável, inseguro e sem garantias, mas mesmo assim lá fomos nós. Aquela
tarde no aeroporto, eu podia ver o olhar de preocupação, reprovação do meu
pai, mas eu tinha que ir, tinha que descobrir o que o mundo tinha a me
oferecer. Élido não desgrudava de Jaqueline, tinham muitos sonhos juntos, e
uma saudade enorme que começava a despertar a cada minuto que o
embarque aproximava-se.

Todos os nossos amigos estavam no saguão, a nos desejar boa sorte,


abraços e risos arranhados pelo choro, estávamos a nos separar, seguindo
nossos destinos, particular. Como crescemos, Naiara veio até mim, abraçou-
me calorosamente e repousou sua face em mim.

-Vou sentir tanto a tua falta.

Era como se ela pedisse insistentemente para eu ficar. Papai franziu a


testa, tomava um gole seco de café. Sério, só me deu duas palavras repetidas.

-Juízo, juízo. Beijou-me a nuca.

Élido estava concentrado em Jaqueline, andavam em abraços pelo


saguão, conversavam intimamente, um longo beijo, separaram-se, ele andava
de ré, a observando, virou-se para mim e falou:
-Vamos lá?

Todos acenavam para nós, sorrimos, sorríamos.

-Vamos.

O nosso sonho de Nova York, novas vidas, responsabilidades e muitas


descobertas. O começo não foi difícil como as pessoas diziam, entre a escola
de teatro e as oficinas de direção, almoçávamos fast food, ovo, muita porcaria.
Íamos ao barzinho da esquina onde tinha música boa e muitos brasileiros
amigos, parecia a boemia de São Paulo.

Estávamos a caminho da escola de teatro, começava a chover, nos


cobrimos com jornais e entramos em uma lanchonete perto de nossa casa, a tv
ligada, muitos clientes. Élido pediu um café e eu chocolate quente, ficamos
observando os táxis amarelos que corriam e molhavam os pedestres. A sineta
da porta que toda vez que alguém entrava fazia som de gemidos, mulheres de
salto, a rotina de Nova York, cheiro insuportável de café, gosto de Nova York.

-Aqui estamos. Suspirei e calei-me. Meu telefone toca, era papai, escutei
tudo silenciosamente, desliguei, meu olhar perdeu o foco, queria mais que
chocolate quente, quem sabe aqueles aconchegos de uma varanda mineira no
meio do mundo, colo de mãe, colo de mãe resolveria.

Continuava a observar a rotina, levanto-me, abro a porta, ela geme, saio


correndo no meio da chuva, tiro meu casaco e cubro um senhorzinho que
encharcava-se do outro lado da rua, ele tremia de frio. O trouxe para a
lanchonete, não nos deixaram entrar, eram preconceituosos com aquele
andarilho, pedinte, guardador de carros e morador de rua.

Era gente e a cada gota que despencava na minha cabeça, fazia-me


lembrar de o quanto uma vida era frágil, e eu não poderia fazer muita coisa.
Élido me observava de dentro da lanchonete, paga a conta e sai. O resgate
chega, já era tarde. O senhorzinho pegou todo o frio da noite anterior e a chuva
do dia seguinte, não resistiu, estava fraco, mau alimentado, assustado, frio,
hipotermia, seu coração parou, faleceu ali, segurando a minha mão e usando
suas últimas palavras comigo.

-Obrigado filho.

Seus miúdos olhos fecharam, sua mão despencou na poça d’agua,


tentaram reanimá-lo, falha tentativa. Élido sustenta-me, tira-me daquele lugar,
fomos para a escola de teatro, entramos ainda encharcados e sentamos em
pequenos degraus, frio.

-Vou voltar para o Brasil.

Ele simplesmente abraça-me, não diz nada. No dia seguinte estava eu


regressando a São Paulo, depois de um ano em Nova York. Ano em que
aprendi muitas coisas na escola de teatro, não só atuar, mas transmitir a
verdadeira emoção. Como o teatro era importante para o meu irmão, era a vida
dele e lutava por aquilo com todas as suas forças, até quando não tinha.
Quando recebíamos nãos, o que era frequente, ou quando nos diziam que não
éramos bons o suficiente para o papel, ele alegrava-se, contava piadas e dizia:

-Relaxa, um dia eles irão nos aplaudir.

Seguia em frente e não se abatia, era maduro e profissional. Aquele ano


morando a sós com ele, aprendemos a lavar nossas cuecas, quando as deles
estavam todas sujas, as minhas sempre sumiam. Entrei em um curso de
culinária, era terrível ter que comer lanche de rua todos os dias, sentíamos
saudades de comida caseira, São Paulo me fazia falta.

Nova York um mundo desconhecido, uma aventura a ser trilhada, um


começo a cada dia, aprender inglês, que os nova-iorquinos são super gelados,
correm pra lá e pra cá, sem abraços. Ali poucos tinham sentimentos.
Élido acompanhou-me no aeroporto, eu me perguntava se estava
fazendo o certo, o porquê da minha renúncia, daquela decisão. Ouvia dentro de
mim “Vai, entra nesse avião, volta para o Brasil”.

-Fica?

Abracei meu irmão.

-Esse sonho é seu, vou te aplaudir da primeira fila.

Seus olhos deixaram as lágrimas correrem livremente, nos abraçamos,


com uma mão segurava meu passaporte e com a outra o fazia cafuné.

-Meu irmão, ande com suas pernas.

Conclui a despedida, eram palavras e decisão com dureza, mas eu


precisava voltar ao Brasil. Élido precisava da aparente solidão e abandono,
precisávamos nos separar, nos tornar homens de verdade.

Voltei ao Brasil e ele continuou em Nova York, a minha rotina nova da


faculdade de engenharia e a admissão dele em uma companhia de atores
iniciantes, foi nos distanciando, anos passando, estações, primavera, inverno,
vinha o natal, a vida corria, para nós parecia lenta.

Quanta distância, mudanças, nem o reconheci outro dia, e agora chovia,


aqui em Fortaleza, lembranças dolorosas, boas, engraçadas, recordações a
cada gota de chuva, gotas de renovo, até sabor tem.

-Olha a chuva.

Olhei para ele.

-Vamos tomar banho de chuva?


-Vamos.

Nos divertimos feito crianças nas areias de Iracema, dois homenzarrões


com mais de 1.90 de altura, disputando uma pelada nas areias da praia com
crianças de 8 anos de idade. Sempre fomos crianças, apenas crescemos,
estávamos ali, felizes, como se o tempo não tivesse passado, como se não
existisse passado, se o hoje se resumisse apenas naquela pelada. Perdemos
de lavada para as crianças.

-X-
-Você ainda não contou a ele?

-Não.

-Você precisa ter coragem.

Jaqueline engoliu seco, suspirou, olhou as horas, as cabeleireiras vão


em sua direção.

-Apenas escove.

-Não entendo.

-Nem eu.

-Eu estava lá.

-Onde?

-Eu estava lá, ele abraçava uma garota com tanta intimidade, desejo, dei
meia volta, fui fazer o meu teste. Estava muito assustada, confusa e enjoada.
Subi no palco pra me apresentar, o número da bailarina esquisofrênica, meus
pés gritavam no assoalho do palco, os scooters se levantaram, antes deu
terminar, e fui para o hotel. No dia posterior ele estava lá, não me viu, com a
mesma garota, saiam de um bar.
Sorridentes, alegres e felizes, enjoei, vomitei, meu celular tocou e eu
atendi, era o pessoal do teste, me chamavam. Queriam que eu repetisse o
número, tentei e não consegui, só chorava e gritava por dentro, senti-me traída,
sozinha, corri e saí dali. Voltei para o Brasil, queria sumir dentro de mim. Aí
começaram os desmaios, enjoos, sono, fome. “Jaqueline você está gravida?”
“Eu grávida?”.
Sim, descobri a gravidez aos 17 anos, meu namorado no exterior, pais
conservadores, como seria, balé, aborto? Não, chorei em semanas seguidas.
Conheci o Rodrigo, foi tudo rápido, o casamento, o parto, dei a luz, mudança
para o Rio de Janeiro, deixei o balé, a dança, a vida planejada. A minha vida
agora era Mariá, toda dela. Ele jamais vai me perdoar, nunca vai me perdoar.

Naiara e Vanesca seguraram a mão de Jaqueline, a cabeleireira


intrometeu-se:

-Ele vai te perdoar, a vida é injusta minha querida, você é tão jovem e
linda, tão bela, não borre sua maquiagem por favor.

Desencontros, enganos, mal entendidos, palavras soltas, explicações


não ditas, sentimentos reprimidos. Quando se ama, boa parte se resume à
ciúmes e insegurança. Principalmente insegurança. De não ser o suficiente pro
outro, da pessoa deixar de amar e começar a gostar de outra pessoa, de
magoar, de perder, de se perder, de traição. Quanta dor desnecessária, quem
ama deveria apenas amar e retribuir. A vida já é cheia de tantos percalços, por
que ainda ser inseguro?
Se Jaqueline soubesse que o maior erro de sua vida foi confiar em seus
próprios olhos, certamente desejaria ser cega. Como tirar conclusões tão
rápido se ela tinha a certeza que o meu irmão a amava muito mais que a sua
arte de atuar, e que era capaz de largar os palcos pra viver ao lado dela.
Insegurança, a insegurança falou mais alto. E ela deixou seus anéis irem
embora. Anéis de brilhantes valiosíssimos. Deixou Élido cair por entre seus
dedos. Parecia nua ao sumir de sua vida por anos. Se ela se interessasse em
saber quem era a garota que o meu irmão abraçava com tanto desejo e
saudade. Veria que era ciúme bobo, ciúme de quem tem um grande e
verdadeiro amor.
Foi enganada pelos próprios olhos, uma imagem que não falava tudo,
nem traduzia toda a verdade. Mudou suas vidas, sim, com certeza. Vidas
alteradas por uma falsa realidade. Ilusão de ótica.
O orgulho. Sendo tão orgulhoso, o meu irmão odiou ser deixado mais
uma vez, sem respostas, explicações. Pelo visto, era muito mais comum todas
as pessoas a quem ele aprendia amar, o abandonar. O largar pra trás feito
animal doente, bagagem extraviada, ou um velho guarda-chuva surrado
esquecido num banco de metrô, que será jogado na lixeira de um guarda
volumes, ou no fundo dos achados e perdidos de uma estação de trem.
Os pais, o seu melhor amigo, o seu irmão. A menina dos seus olhos, o
seu amor, a sua vida. O amor da sua vida. Era o bastante. Ele ficou sozinho,
compenetrado em sua arte, seu sonho e sua vontade de ser um bom ator. Pra
preencher todo o vazio, a vala que aqueles que o diziam amar deixaram nele.
Ele não suportaria perder a sua arte, nada mais teria sentido em sua vida ou
seria motivo pra continuar vivo. Ainda bem que ele resistiu, ainda bem que ele
sempre nos amou. Ainda bem que ele sempre foi capaz de nos perdoar.

-X-
Cheguei de Nova York exausto, tudo que eu precisava era de um bom
banho, cama aconchegante e horas e horas de sono pela frente. Meus pais e
Luisa foram me buscar em Congonhas, como eu estava com saudades.
Parecia que eu estava a gerações, em outras épocas, e não que tinha passado
apenas um ano, era muita saudade. Nem desfiz as malas, entrei na ducha
ligeiro e fui descansar, dormi a manhã inteira. Mamãe entrou em meu quarto e
desperto-me para o almoço, comidinha caseira, cheirava de longe, vi a infância
metros de distância. Procurava meus chinelos, meus antigos chinelos, olhei
para baixo da cama.

Não haviam chinelos nem monstros assustadores, não encontrei o bicho


papão, não esbarrei no boi da cara preta, mas lá no finzinho, no cantinho, bem
tímido, havia um papel amassado. Quem sabe um rascunho de uma velha
poesia minha, abandonada, fui a escrivaninha, peguei uma lanterna, rastejei
para de baixo da cama, poeira, espirros.

Não era poesia, era um papel rasurado, antigo, dolorido, papel


amassado, cheio de marcas, dores. Um papel contido, reprimido, vazio, largado
na escuridão, de baixo de uma cama, onde nem a vassoura o encontraria.
Papel velho e amarelado, choroso e emocionado, papel que não era poeta,
estava morto e jogado, sujo, pus-me a ler. Somente dor.
São Paulo, 05 de Janeiro de 2008.

“Partir? Partir para onde? Para um novo lugar? Partir para quê? Para se
conhecer? Renascer, para renascer, partir para poder viver? Partindo foi feliz?
Conheceu a quem? Novos amigos? Amores? Partir...partiu...Quando partimos
deixamos alguém, que terá dentro de si o sentimento da espera, da volta,
alguém que se alegrará ao lembrar de algo bom, alguém em choro ao
relembrar a partida, a alguém a se perguntar o porquê da partida. Partidas são
sempre dolorosas, queimam, nunca cicatrizam, deixam um grande vazio,
partidas são inimigas da vida.

Partidas bruscas, inesperadas, programadas, partidas sempre serão


partidas, do verbo ir, dolorosas, amargas e chorosas. Partidas nos priva da
vida, da convivência. Partidas, ritual, a briga, uma mala, as crianças, a sala,
esposa, a briga, soleira. Porta, o abrir, o fechar, sem adeus, sem tchau, a
partida, assassina. Cruel. A esposa tão jovem, linda, a filha, o cachorro, a vida.
Então porque desistir e partir? Abandono, sair no meio da ceia de natal, antes
da sobremesa, se ele ao menos tivesse experimentado o pudim, mas ele jogou
o pudim no chão, nos pés dela e saiu, eu estava lá.

Ele partiu, eu não vi a partida. Dormia o sono da gestação, dentro da


barriga da minha mãe. Ele não estava lá, não quando eu precisei, não estava lá
para compartilhar o sorriso da felicidade da minha mãe. Partiu mesmo antes de
eu existir. Não estava lá, de madrugada para matar o meu medo de trovão, da
tempestade. Eu não tinha para quem dar as minhas cartinhas do dia dos pais,
foram tantas jogadas no lixo, ele não estava lá para me buscar no colégio
quando fui rebelde.

Não dancei com ele a valsa de 15 anos, não pode ser meu porto seguro,
porto inseguro, sem porto, sem cás, sem marina ou aeroporto, seja lá o que for.
Anônimo, desconhecido, por onde andava todos esses anos, o que fazia, quem
era ele? Uma fotografia antiga, era como ele resumia-se na minha vida. Minha
formatura na faculdade, meu casamento, será que ele vai estar lá? Pelo menos
dessa vez. Eu não sei.

As partidas tem dois caminhos, a ida e a volta, andam juntinhas,


coladas, casadas, tem certas partidas que separam-se, não há mais direito a
volta, réplica, prorrogação, só cabe a ida, a partida.

Ele poderia fechar a porta, abraçá-la com o barrigão e ficar, ficar para a
vida dele, criar a filha, ele poderia ficar, ficar pra o natal, para o aniversário da
filha, quantas lembranças e histórias teriam, mas decidiu partir, partiu.

Eu o encontrei, era ele, magro, grisalho, rouco, quase sem voz, era ele,
claro que era, mesmo olhar e expressão da fotografia, era ele. Aquele “Você
cresceu” foi revelador, a entrega, redenção, a volta. Vi ele acamado, acabado.
Precisando de ajuda, da ajuda da filha dele. Ele é o meu pai, é ele. Finalmente
o encontrei, finalmente.”

Peguei aquela folha, guardei-a comigo, desci para almoçar.


-x-

Toda essa distância entre Élido e Jaqueline os obrigou a seguir suas


vidas, escrever novas histórias, ir em frente. Jaqueline só queria os braços de
Élido. Aperto entre seus corpos, colocar seus ouvidos naquele peito de atleta e
senti-lo, tudo que ela queria era a companhia dele. Ser feliz com ele, viver com
ele, dançar para ele, ser a sua bailarina. Ainda que ela dançasse em todos os
lugares do mundo, para grandes ou pequenas plateias, até para ela mesma na
frente do espelho, ela sempre dançaria pensando nele, para ele, e cada nota
do balé, seguia o roteiro daquele amor, sentia-o.

Permaneceu dois dias em Nova York, não chegou a fazer a surpresa


que tinha planejado. Aparecer na escola de teatro e surpreende-lo com uma
dança, a sua melhor dança, fugiu, fugia dele, dela mesma e de seus
sentimentos, orgulho. Voltou ao Brasil, gravidez, não tinha mais volta, balé, só
lhe restavam lágrimas, dores, enjoos, desejos esquisitos, saudade e solidão a
sua disposição. Indisposição.

Era a sua primeira consulta do pré-natal, Doutor Rodrigo a esperava,


final de expediente. Quase seis da tarde, mãe de primeira viajem, inexperiente,
dúvidas, perguntas, estava sozinha na consulta, na vida, pensou estar sozinha
na nova vida. Chorou o que pode na frente do médico, ele era acostumado com
mães jovens, com o desespero, a busca pela “solução”, um aborto.
Muitas meninas já tinham passado por ele, com a decisão de não ir a
diante, frustação. Mulheres nos 40 desesperadas, estéreis, doloridas, meninas,
mulheres, muitas pacientes, mas aquela era diferente, Jaqueline era diferente.
Passou as mãos no rosto dela.

-Não chore, aceita água?


-Estou com sede demais para um simples copo de água, quero um
sunday de chocolate com cobertura de morango, é pedir demais? Falou
engolindo o choro e as palavras.

O médico riu consigo, para dentro, abaixou-se até a moça e a convidou


para tomarem aquele sunday. Dali em diante Drº Rodrigo e Jaqueline foram
ficando cada vez mais próximos, amigos. Ele acompanhou todo o pré-natal, e
no 7º mês de gestação, os dois casaram-se. Tudo bem simples, apenas as
famílias e os amigos mais próximos. Foi um pai para Mariá e mesmo para
Jaqueline, as pessoas podiam ver o quanto eram amigos. Amigos, amigos
acima de tudo, essa era a base da relação. Anos mais tarde, Drº Rodrigo fez
uma viajem sem volta, atendia pacientes com ebola, voluntariado na África, lhe
custou a vida, mas deixou o legado de um grande homem.

Como ela gostaria de retribuí-lhe toda a gratidão, os sundays durante a


gravidez, como ela queria poder ter se despedido melhor, um simples selinho e
“até a volta”, volta que não aconteceu. Essa era a última lembrança, queria ter
dado o “Eu te amo” de amigo que faltou, era tarde, e lá estava ela mais uma
vez, caminhando com suas próprias pernas.

Formou-se em administração e junto com Vanesca, esta formada em


publicidade, montaram uma sociedade, uma produtora em São Paulo e outra
no Rio de Janeiro, o que deu muito certo. Bruninho atendia adolescentes e
crianças em seu escritório de psicologia nos Jardins Paulista, estavam todos
formados, donos de suas vidas e independentes.

Meu irmão Élido concluiu a escola de teatro, resistiu e conseguiu mostrar


o seu talento pelos palcos de Nova York, conseguiu chegar onde queria, já era
um grande nome, referência. Jornada difícil, morando sozinho, convivia com a
saudade e a solidão de um pequeno apartamento que fazia eco. Ele costumava
gritar, para ouvir sua própria voz e ter certeza que não estava só, que tinha ele
mesmo, a sua própria companhia, seu eu. Não estava ficando louco como os
vizinhos pensavam, nem colocando fogo no apartamento, eram apenas as
torradas que passavam do ponto.
Em um dia de loucuras bebeu o quanto pode, eu não estava lá, não
estava lá para levá-lo para casa, para dizer chega, colocar o limite de irmão
mais velho, responsabilidade que cabia a ele e não a mim. Fui faltoso nesse
dia, plena manhã, bebia como se estivesse em são Paulo, para esquecer certa
bailarina. Tão jovem e já querendo preencher o coração com bebida, álcool. A
tarde tinha um grande teste, importante como todos os outros, eu não estava lá
para colocá-lo no chuveiro, fazer-lhe um café e suportar o cheiro, não estava lá
para dizer “ei cara não bebe, olha o teste da tarde”, eu não estava lá.

Ele inundou o banheiro, o apartamento, o andar, e até a casa do vizinho,


vestiu uma sunga, nadou no raso, pegou o metrô, foi do jeito que estava fazer o
teste. Nem ele mesmo sabia qual o papel, subiu no palco, ele só sabia ser ele
mesmo quando atuava, o palco era dele, sóbrio ou não, a arte de ser ator, de
representar, essa era a dele. Deu um vexame, o professor da escola de teatro
estava lá, queria enterrar-se, depois de um de seus alunos acabar a reputação
de sua escola, de todos os atores consagrados que já passaram por ali.

O Professor pediu desculpas aos presentes, pensou em expulsá-lo da


escola, mas todos os da mesa do teste levantaram-se e aplaudiram meu irmão,
aplaudiram e disseram o quanto ele era bom representando um bêbado, o
bêbado que estavam procurando para a próxima temporada da companhia,
esse meu irmão.

Fugia de notícias de Jaqueline, soube do casamento, doeu, resguardou-


se e focou totalmente no teatro, até parecia voto de castidade, mas era a sua
fuga, de seus sentimentos, e ele sabia fazer isso muito bem, conviveu a vida
toda com a ausência dos pais biológicos.

Depois de anos estava aqui, no Brasil, no mesmo lugar que os velhos


amigos, o irmão e o amor do passado. Pensava estar liberto daqueles
pensamentos, daquele sentimento, quanta enganação, parecia a primeira vez,
a primeira troca de olhares, quanto tempo. A formatura estava no finzinho,
Jaqueline estava linda, uma mulher, um longo vestido vermelho que mostrava-
lhe os ombros nus, batom vermelho, seus olhos destacavam-se. Élido cruzou
com ela, deu meia volta, ela estava parada, segurou no braço da bailarina, ela
o olhou.

-Oi.

-Oi.

Pensei que minhas pernas fossem de gelatina por alguns instantes, a


minha boca tão seca quanto o deserto, meus olhos tão doloridos, e no peito um
coração convucionando. Depois de tantos anos, tantos dias, tantos tempos. Ele
ainda me olhava com o mesmo querer, com o mesmo sentimento do nosso
primeiro beijo, desesperado e confuso, apaixonado.
Os nossos olhos conversavam, e eu sentia o coração dele querendo o
meu, o meu se pudesse, sairia pela boca. Como não correr pro colo dele, não o
abraçar perdidamente? Ainda conserva o mesmo perfume, a mesma sintonia.
Eu só queria o abraçar, como todas as vezes em que se despedia de
mim. Como se fosse o seu último abraço, como se eu fosse a última, a
primeira, a única pessoa que ele deveria abraçar pro resto da vida.
As palavras atrofiando a minha língua. Minha garganta se engasgando
com palavras não ditas, letras escondidas. Queria mergulhar em um barril de
álcool, e que uma faísca me consumisse em chamas. Assim tudo passaria,
tudo terminaria. Não sobraria nem ossos, nem dentes, as chamas são
impiedosas.
Quando se ama é fogo constante, quando é de verdade, nada apaga.
Nem mesmo os anos de distância. Dei as costas pra ele, nem olhei pra trás,
sumi na multidão.
Era como se eu conseguisse ler os pensamentos de Jaqueline, os
batimentos cardíacos ao ver Élido novamente à sua frente.
Ela soltou-se, encaminhou-se até a saída, ele ficou, parado, olhando ela
desfilar com passos que pediam a Élido para serem seguidos, ir atrás, gritar se
preciso, mas não ficar ali, parado. Ela perdeu-se de vista, ele respirou, aligeirou
os passos, a procurava pela multidão, ou o brilho de um vestido vermelho. Ela
estava sentada, olhos fechados, ele a cortejou de longe, aproximou-se nas
pontinhas dos pés, assentou-se. Ela continuava com os olhos fechados, até
repousar a cabeça nos ombros dele.

-Você ainda usa esse perfume?

-Você está linda.


Ela corou, levantou-se, ele ficou sentado, imóvel, ela abaixa-se e o olha
em seus olhos.

-Estava com saudades. Ele mudo, ela tocou-lhe nos cabelos dele.

-Você precisa me perdoar. Ele ouvi-a e repetiu lentamente o que ouviu.

-Você precisa me perdoar.

Abraçaram-se, ele sorriu.

-Mariá tem o seu sorriso.

Ele abriu largamente o sorriso e perguntou quem era Mariá, ela calou-se
e o deixou sozinho novamente, corria em fuga, o salto quebra, tropeça, rala os
joelhos e ele a ajuda levantar.

-Quem é Mariá?

Ela não precisou responder, ele entendeu.

-Vou adorar conhecer Mariá, se ela tem o meu sorriso, ela deve ter os
seus olhos. Ele tirou as sandálias dela e as segurou, a apoiou nos ombros e
começaram a andar dialogando.

-Mariá vai adorar te conhecer.


Riram, havia um pequeno salão secundário em anexo ao salão principal
de festas, Élido e Jaqueline adentraram, estava escuro, ele grita a assustando,
um enorme eco. Para Jaqueline era como se fosse o primeiro grito de eu te
amo que ela ouvia na vida. Ele liga as luzes, era uma grande pista de dança.

-Dança pra mim?

Ela dançou, a quanto tempo não dançava, e quanto tempo esperava


aquela plateia, ele, dançar para ele, intimamente, sua dança podia ser vista
através dos olhos apaixonados de Élido. Quanto amor naquela dança, estava
ali, a sua disposição, finalmente sua bailarina. Ela estende-lhe as mãos e o
chama para uma dança, os dois permitem-se, estavam a sós, no mundo deles,
música imaginária, composta e regida por batidas em seus corações, o último
passo, olhares mútuos, trocavam diálogos no olhar, no ar, no vento do eco nos
ouvidos, no tempo, pensamento.
Finalmente duas mãos dadas, goles secos, vestido costa nua,
lembranças, batom, desejo, beijo, amor, amor do passado, presente, amor do
presente, do agora, amor deles. Sem plateia e palco. Jazz, pausa, amor sem
fronteiras, cordas, falas, amor de olhares, atração, loucura, querer, amor.
Amaram-se aquela noite e o resto de suas vidas.

-X-
Bruninho o mais idiota dos amigos, era apaixonado pela Vanesca, mas a
sua personalidade nunca a conquistaria, apesar dos dois terem perdido a
virgindade no colégio. Eu poderia resumir em poucas linhas que Bruninho
insistiu tanto, tanto que acabou conquistando Vanesca. E o que era um casal
improvável acabou rolando, diferente do que todos esperavam com Élido e
Jaqueline. Poderia contar em um parágrafo que Bruninho conquistou Vanesca,
namoraram e que viveram felizes para sempre, mas não seria interessante e
diminuiria as páginas desse livro.
As seções de quimioterapia nos deixavam ainda mais unidos, e
cansados ao final do dia, mas sempre tínhamos uma disposição extra, e era
extraordinária a energia de Élido, Vanesca e principalmente Bruninho em fazer
piadas de tudo. Nem parecíamos que lutávamos contra o câncer, acabava
contagiando a todos os outros pacientes, alguns ficavam impacientes com
tanto senso de humor. Nessa caminhada conhecemos algumas histórias, vimos
ali naqueles corredores pessoas desabarem, perderem as forças e falecer. A
autoestima de Vanesca foi fundamental para a sua recuperação.
Bruninho nesse período acabou se aproximando muito mais de Vanesca
que todos os outros, e sempre que não podíamos a acompanhar, os dois iam
sozinhos. Era bastante irritante os dois juntos no tempo do colégio, acabavam
sempre brigando, discutindo, os opostos não se atraiam no caso deles. Mas no
fundo os dois eram amigos, grandes amigos, e só aquela situação para colocar
à tona os seus laços afetivos.
Depois de uma das seções ele veio falar comigo, estava bem cansado,
saímos do colégio e viemos direto para o hospital, ele tinha um leve sorriso de
canto e me interrogou.
-Alê o que é o amor? Não, não precisa responder. Cortou-me.
Ele olhava para Vanesca e sua alma chorava, gritava de dor, ele queria
a cura para ela, queria que ela aguentasse, suportasse e superasse, ele sabia
que fazendo piadas sem graças a animava de certa forma, mas ficava
preocupado todas as vezes que as seções acabavam.
Ele ficava imaginando o depois, a continuidade, da porta pra rua, ficava
imaginando como a Vanesca estava do hospital pra fora, como ela estava na
casa dela, como ela estaria sozinha. Quando ele não estava por perto, ele não
poderia vigiá-la, ficar com ela 24 horas, eles eram apenas amigos, e muitos
jovens. Ele se preocupava, era um grande cuidado com ela diário, “como você
está?” “dormiu bem?’’. Ele sempre estava ali, por perto, sendo uma base, um
porto seguro, sendo um cara legal e não apenas o nosso amigo idiota.
Vanesca foi se acostumando com a ideia de ter sempre o Bruninho por
perto, e nem ligava mais quando ele soltava seus gazes de Iroxima, e
gargalhava até arrotar. Matavam aulas e iam ao cinema, e sempre que ela
precisava chorar quietinha, derramar suas lágrimas no colo de alguém sem que
fizessem perguntas, lá estava ele.
Lá estava ele, presente, ali, ele estava com ela, segurando a sua mão,
até nos dias que ela tinha crise respiratória. Ele fez uma grande campanha de
arrecadação de bolsas de sangue e plaquetas, desenvolvemos um grande
projeto sobre células troncos na feira de ciências. Lá estava ele, sorrindo, ele
sempre sorria, para tudo, para a vida, para a felicidade, até para dor, seu
remédio era o sorriso.
E que menino cheio de luz, era confortante estar perto dele, se ele não
tinha conselhos maduros, mas ele tinha um gostoso abraço e a mania de
apalpar a nossa bunda no final. E se ele estivesse calado um bom tempo sem
fazer alguma piadinha, pensando na vida, podia esperar dele uma grande
atitude, que cara, que amigo, o nosso mascote.
Levava chocolates escondido para Vanesca quando ela estava internada
em meio as crises, até brigava como um pai para ela alimentar-se, ele esteve
lá, presente, dando presentes, sendo presente. E todos os dias era como se
fosse o último, ele tinha medo que fosse o último, tinha medo do dia seguinte
não chegar, ou chegar e ela não estar mais com a gente, ele tinha esse medo,
da perda, do vazio, da solidão, até de bicho papão, e olha que ele já tinha 16
anos.
Tinha medo do escuro, de comerem o último pedaço de bolo da
geladeira, de acabar o pudim ou perder a hora do lanche, mas o maior medo
dele era perdê-la, perder Vanesca, perder a vida de Vanesca para o câncer,
mas ele nunca deixou o medo vencê-lo. Nunca deixou o medo perceber que
ele tinha medo, nunca deixou as pessoas perceberem, não se fez refém do
medo.
Todos os dias ele a levava uma florzinha, diferentes florezinhas, ela não
gostava, mas sabia que era um gesto tão gentil, um gesto tão nobre e cheio de
amor, que ela foi se acostumando, foi se apegando, perdendo a dureza do
coração. E a presença dele no hospital, no colégio, na vida dela tornou-se
importante, tornou-se essencial. E ela começou a interrogar-se, questionar-se
até que ponto aquele sentimento todo a levaria. Deu de ombros para si mesma,
permitiu-se, sem saber o dia de amanhã, permitiu-se cultivar pouco a pouco
dentro de si, a vida, ela estava iluminada por ele, eles sorriam juntos, e era tão
lindo e inspirador.
-Ele não vem hoje?
-Ele não pode vir.
Quando ele não aparecia na porta da clínica com uma florzinha, quando
ele não aparecia no colégio, quando ele não estava lá, ela entristecia-se, era
como um botão ao meio dia, fechava-se, virava para o outro lado do leito e
permanecia assim o dia inteiro. Ela apegou-se, relutava dentro de si por um
tempo, mas abriu-se e admitiu em segredo, em seu diário, provavelmente, que
estava o amando, que ele a fazia tão bem. Era notório, era perceptível que ele
a fazia bem, melhor, era como gotas de renovo diárias, ingredientes de cura, o
amor, o amor nascia para curar.
-Pensei que não viria hoje.
- Uma florzinha, pega.
Eles abraçavam-se, e permaneciam o dia todo de mãos dadas até o fim
da quimioterapia, e quando os cabelos dela começaram a cair em grandes
proporções ele levou um lenço florido em uma caixinha, ela detestava flores,
disse que preferia um de caveira, eles sorriram. O lenço de florezinhas
coloridas combinava mais com ela, com seus olhos claros e a pele rosadinha
frágil.
Quando ela piorou e parecia que partiria, ele andava sério, sessaram-se
os sorrisos, foi um tempo de oração, oração constante, fé, bem no inverno, ela
estava em coma, e ele sabia que ela tinha medo da chuva e de todo aquele
ritual dos relâmpagos, queria estar lá, segurando a sua mão, mas só podia ficar
até a janela, até o vidro. Ele imaginava ela em sono profundo, como a Bela que
aguardava o beijo do príncipe para despertar, ele queria que ela acordasse, e
ela também queria acordar, viver, abrir seus olhos azuis, e olhar nos dele, ela
saiu de perigo, mas não abria os olhos, não tinha expressões, imóvel, mas
escutava.
Ele ali, sem saber, sem imaginar que ela ouvia atentamente suas
histórias, sua rotina do colégio, o gol que ele fez na educação física. Ela ouvia
tudo, sentia tudo, ouviu ele dizer bem pertinho do ouvido dela que a amava,
sentiu levemente seus lábios sendo molhados pelos dele, que atrevimento,
mas ela no fundo de um coma, ele na esperança, nós na peleja, em orações.
Finalmente o renovo, a graça, o milagre, finalmente forças para viver, para
sonhar e novos dias, dias de cura e sorrisos, viagens, formaturas, festas,
finalmente ela poderia viver conosco novamente, finalmente.
-Eu sonhei enquanto estava no coma, faz tanto tempo, mas eu lembro.
- O que você sonhou?
-Eu ouvi alguém dizendo que me amava em seguida um beijo.
Ele a beijou de surpresa tinha que ser ali, naquele momento, naquela
hora, ou ele se calaria na sua timidez e jamais se declararia outra vez. Nem
precisou dizer nada, não foi necessário, foi um beijo tão correspondido, tão
verdadeiro, que dali em diante sempre juntos, juntos.
Ele a respeitava esperou ela recupera-se, foi paciente, e finalmente
quando ela se livrou do câncer, estavam prontos, prontos e livres para amar,
para outra vez, para namorarem, e namoraram, noivaram, casaram-se.
Vanesca aprendeu a conviver com a idiotice de Bruninho, Bruninho com o
temperamento dela, mas se os seus gostos eram diferentes, o amor era igual,
paciente, insistente e maior, maior que eles mesmos.
Olhando eles dançarem na minha formatura, sorridentes como sempre,
uma química, paro, olho nos olhos de minha amada Naiara e digo:
-O Amor existe, existe sim. Nos beijamos.
Eu e Naiara fomos nos despedir de nossos amigos em um delicioso café
da manhã, estávamos inteiramente felizes, muito felizes. Élido iria conhecer a
filhinha, eu ganhei uma linda sobrinha, e a presença dos meus melhores
amigos. Eles sempre estariam presentes na minha vida, mesmo que os anos
se passassem. Gargalhávamos, gargalhávamos bastante, Bruninho continuava
engraçado, um pouco de sua idiotice do tempo do colégio sobreviveu, e eu
nem vou falar da parte da gula.

Uma mesa redonda, cheia de pães, doces e salgados, queijos, até


queijo minas, não podia faltar, bolos, frutas, era uma linda e apetitosa mesa de
café da manhã, tinha até cheiro, cheiro de lembranças. Conversas, gosto de
juventude, de infância, não tinha café, meus amigos sabiam o quanto eu odiava
o cheiro do café, e pelo horário, não era mais hora de café, aquele salão
enorme era só nosso, o que fazia com que nossas risadas ecoassem.

Dava para ver o mar do Ceará, quanta intimidade, nostalgiamos até


onde quisemos, estávamos todos juntos, os três casais finalmente juntos, num
grande refeitório de hotel, muitas mesas. Cadeiras sobre as mesas, e nós seis,
jovens adultos, reunidos como no tempo do colégio na cantina, uma mesa de
café da manhã, histórias de amor e amizades.

Eu ainda tinha que visitar o Salvadore no hospital, na noite da formatura,


ele estava mais animado que do costume, fora do normal, uma energia que
não era a dele, bebeu muito. E eu nunca em todos os anos de faculdade o
tinha visto assim, dançando de ragatanga a gonga lá conga. Não era o
Salvadore, claro que não era, de repente ele ficou parado no palco, desmaiou,
convulcionou.

Corri para socorrê-lo, se não tivesse sido atendido imediatamente por


uma médica, convidada da festa, teria morrido. Já no hospital descobriram que
se tratava de uma overdose. Fiquei intrigado, o Salvadore nunca tinha
experimentado drogas, não que eu soubesse, mas no último mês, com o TCC
e as provas finais, ele estava diferente, estranho e agressivo.
-Como está o seu amigo Alexandre? Entre um conversa e outra o
Bruninho tocou no assunto.

-Estável, mais tarde eu e Naiara vamos visitá-lo.

Para mim foi uma grande surpresa descobrir que o Salvadore estava
consumindo drogas, e como isso tinha afetado a sua vida tão negativamente.
Um cara tão inteligente e família, não sei até que ponto o desespero pela
entrega do TCC ou outros problemas pessoais o levaram para aquele caminho.
Eu queria imputar certa culpa a mim, é certo que eu tinha me afastado dele
gradativamente assim que Naiara reapareceu na minha vida, mas eu não
percebi. Naiara não deixou aquela culpa pesar sobre minhas costas, ele era
consciente do que estava fazendo.

Ele ficava muito tempo na biblioteca, e as vezes em que o via, estava


dormindo sobre os livros, cansado, estressado. Intimidade aparente repentina
com o bibliotecário, que era uma pessoa reservada e misteriosa. Naiara tinha
uma certa cisma com ele, como se soubesse algo a seu respeito e não
lembrasse. E durante as últimas semanas de aula, esse carinha sumiu,
ninguém sabia seu paradeiro, e o mais interessado em saber dele era o
Salvadore. No dia da festa de formatura, Élido e Jaqueline viram Salvadore
com um cara, baixinho, óculos, terno velho, bem estranho. Logo após,
Salvadore teve o desmaio e as convulsões.

Estávamos no estacionamento, a festa estava no fim, logo depois de


toda aquela confusão. Já estávamos dentro do carro, eu Jaqueline, Élido,
Bruninho e Vanesca. Naiara despedia-se de uma de nossas amigas de curso, a
garota vai embora com o namorado e Naiara fica em pé, na porta do meu
carro, abre a porta mais não entra.

-Entra amor.

Ela não responde, fecha a porta do carro e sai em direção ao fim do


estacionamento, apressa o passo, haviam dois homens de costas, eles
conversavam preucupadamente. Ascendo os faróis nas direção deles, viram-
se, um era um cara baixinho, usava um terno velho e amassado, o outro era o
cara da biblioteca, barba por fazer de semanas.

Élido e Jaqueline dizem reconhecer o senhorzinho, era o mesmo que


conversava com Salvadore antes da confusão. Naiara os observava, quieta, os
dois continuavam discutindo agressivamente, o mais velho repreendia. Tiro o
cinto de segurança e saio do carro.

-Era ele, era ele. Naiara apontava para a o cara da biblioteca.

O bibliotecário cursava educação física, era um sujeito arrogante e


estranho, e quando a caloura de medicina veterinária foi encontrada morta, ele
abandonou repentinamente a faculdade, e só reapareceu dois anos mais tarde
trabalhando na biblioteca.

Naiara estava certa, era ele, era ele o cara que ela tinha visto discutindo
com uma garota durante uma festa, parecia estar cobrando um certa dívida. A
menina só conseguia chorar, dando-lhe desculpas. No dia seguinte ela
aparecia morta misteriosamente, em uma das salas da faculdade, antes da
aula inaugural, vítima de overdose.

O cara baixinho no estacionamento, que vestia um terno apertado,


surrado, velho como o terno, prostrava-se no chão, não aceitava que o filho
que ele tinha criado, tornou-se um homem arrogante, louco e sem limites. Ligou
para polícia, ali mesmo, prostrado no chão, entregou o filho, o filho que fornecia
anabolizantes quando cursava educação física, e passou para as drogas
facilmente. Dinheiro fácil, padrão de vida a manter, aparências, destruindo, o
destruindo, destruindo o pai, a si mesmo, causando a morte da relação entre
pai e filho.

Atingindo outras famílias, como a da jovem garota que adorava animais


e sonhava em ter uma ONG para resgatar cães e gatos de rua. Salvadore, meu
amigo Salvadore quase perdeu os sonhos, a família, os amigos e a vida.
Aquele pai entregava o filho com muita dor, mas era o certo, tinha que o frear.
Por tempos, um pai que não conseguia dormir, descansar e viver com tantas
dúvidas, sobressaltos diários, preocupado em receber notícias do filho preso ou
morto.

Ele teve coragem, o filho sendo levado, completamente drogado, aquele


pai amava, chorava. Por um instante pensei no meu pai, ele certamente não
aquentaria prender o próprio filho, coloquei Naiara no carro, dei a partida,
deixamos nossos amigos no Hotel e fomos para minha casa.

-x-

Élido cochichou nos ouvidos de Jaqueline, gargalharam, ele olhou para


mim e perguntou:

-Quer casar comigo?

Só podia ser mais uma piadinha, uma brincadeira para deixar o café da
manhã de 02h00min da tarde mais descontraído e divertido, mas ele falava
sério. Sempre usava brincadeiras para falar sério, gargalhei, gargalhamos, ele
cochichou nos meus ouvidos, perguntei a Bruninho:

-Quer casar comigo?

-Ah se eu não fosse casado, ah se eu não tivesse esposa, seria um belo


casamento gay.

Cochichei nos ouvidos dele, ele achou engraçado e perguntou a Naiara:

-Quer casar comigo?

-Eu esperava esse pedido do Srº Alexandre Feshina, mas já que ele não
se apressa, eu aceito. Bruninho cochichou nos ouvidos de Naiara, os dois riram
como adolescentes. Naiara perguntou a Vanesca:
-Quer se casar comigo?

-Você Sabe que eu não sou lésbica.

Todos gargalhamos. Fizemos pedidos aleatórios de casamento uns aos


outros, nada planejado, mas era o momento, a ocasião certa, a oportunidade.
Se não fosse espontâneo, não teria sido tão especial e íntimo aquele café da
manhã.
-x-
A Candelária estava linda, perfumada com margaridas e rosas amarelas.
Arranjos monumentais despertando sonolência de tanto se admirar. Eu estava
nervoso, parecia o dia em que fui saber o resultado do vestibular. Como se a
qualquer momento o mundo se acabasse e apenas os meus olhos restariam
para ver o caos do mundo. Bruninho não parava quieto, aquelas alturas já tinha
visitado o banheiro inúmeras vezes. Élido com seus 1.95 de altura e puro
charme arrumando o cravo no botão do terno.
Eu olhava os convidados, olhava para o teto, olhava para as flores e
seus arranjos, contava cada pétala e folha. As pessoas cochichavam, riam. Os
bancos todos ocupados. Bancos falantes. Finalmente eu escuto a marcha
nupcial. Eu não senti nada naquele instante. As portas gigantes da igreja
rangem ao abrir, lá vem Francisco e Mariá.
Entre a porta da igreja e o altar, parecia milhas e milhas distante do meu
coração. Eu vi uma linha do tempo passando pela minha vista, trazendo-me
cartazes desde a infância, de momentos bons, incríveis, ruins. Momentos com
os meus melhores amigos. Dias e dias do lado do meu amor. Meu cérebro me
fazia perguntas do tipo “e agora como vai ser?”. Como seria? Só se vivendo
pra saber, e eu teria que dizer sim pra descobrir uma nova vida, um novo
Alexandre, completamente diferente do menino que eu era até aquele dia.
Era a noiva mais linda que um dia os meus olhos enxergaram, a luz dos
candelabros eram minúsculas em comparação a alma dela que reluzia naquela
igreja. A menina mais tímida do colégio, que mal se permitia sorrir. Estava ali,
rindo pra quem quisesse e pudesse ver. Era tão real que qualquer cego se
curaria. Era o êxtase de puro amor, o nosso amor.
Jaqueline e Vanesca a seguiam. As minhas melhores amigas. Os
nossos planos estavam se tornando reais. Os nossos sonhos ganhando vida.
Em 03 de Setembro de 2016 todos nós respondíamos Sim ao amor.
A nossa lua de mel foi no lugar mais aconchegante do mundo. A nossa
tão especial Ilha Bela. Faziam anos, muitos anos que não pousávamos ali para
conversar, admirar um sol a nascer, cantar. Fazer um sarau. Quanto tempo
tinha se passado, as árvores crescido, o mato tomado de conta. As águas
tinham envelhecido. As ondas eram tão silenciosas, deveriam estar com
saudade de nós. O mar já não era tão gelado. E o nosso pobre Mirante estava
jogado ao chão. Exausto, sujo, ferido. Irreconhecível.
-Vamos reconstruir nosso velho mirante?
-Vamos reconstruir.
Reconstruir dói, mas é preciso. Causa exaustão, transpiração. Mas
reconstruir é reviver, é se permitir ser feliz, aprender, experimentar. Realizar. E
quando se constrói, a consciência se limpa, é o mesmo que perdoar, que ter
coragem pra pedir perdão.
O velho Mirante, era tão bravo, era tão guerreiro, era tão sabido. Chorou
ao nos reencontrar. Nos pediu colo, era ele quem pedia abrigo desta vez.
Restava tão pouco dele, tão pouco de suas memórias. O vento o derrubou, as
águas o apodreceu. E as constantes partidas, tão doloridas, inesperadas, o
fizeram terminar de ruir. Amargar. Só o amor para reconstruí-lo. Só a
esperançosa para o manter vivo. E chegamos, chegamos a tempo de
reconstruí-lo.
Quando ficou de pé novamente, ele achava-se exuberante. Imponente.
Queria eu saltar e voar de lá de cima, pena que não teria asas. Mas o mar dizia
“não tenha medo eu te aparo”, sorte que as pedras eram minhas amigas e
diziam se afogando “não pule, eu não sou macia quanto seus travesseiros”.
Que mar traiçoeiro, era careca e não tinha cabelos para se segurar. Só o velho
Mirante para nos sentirmos seguros.
No último dia de nossa lua de mel naquele lugar, eu surpreendi a todos.
Peguei um violão tão gasto e experiente, coloquei entre as pernas, e dedilhei-o
corretamente pela primeira vez. Nota por nota. A canção de amizade mais linda
que fora feita naquele Mirante. E contemplamos o sol indo em bora, e
partiríamos. O Mirante, já teria uma nova geração para abrigar. Pena que o
mundo não se resumia aquele lugar. Aquele Mirante. Que era pura poesia,
saudade, amizade. Puro amor.
Como foi gostoso reviver os tempos do colégio, rever os melhores
amigos que qualquer pessoa deveria conhecer. Relembrar com saudade o
passado gostoso, infância, a adolescência, certo que só nos resta agora seguir
em frente. Como crescemos, mudamos, nos tornamos melhores que o dia
anterior, e sempre melhoraremos a cada dia. É a lei da vida, se você não sabe
mudar com o tempo, o tempo te muda sozinho. Mais uma despedida na minha
vida, mas aquela seria uma breve despedida, um até logo, já que íamos nos
ver com mais frequência, uma amizade como a nossa não poderia viver
apenas de lembranças ou encontros marcados de ano em ano, deveria ser
mais habitual, mais convivência, e foi maravilhoso, reaprender a conviver com
eles.
Estávamos já nos despedindo, tínhamos terminado nosso delicioso café
da manhã, trocamos alguns presentes, foi bem amigo secreto, e o período
natalino já tinha passado. Aquele março, como na canção, trazia diariamente
suas águas, que embaçavam os vitrais, vidros, janelas, levavam embora o
calor do Ceará. Trazia uma moleza, moleza de querer rede, água de coco e
boas companhias, mas estávamos em boas companhias, estávamos na
despedida.
Todos estavam descendo, pedi um tempinho a sós com Vanesca,
precisava agradecê-la, agradecer a amizade, os cuidados, as palavras.
Ficamos frente a frente, ouvindo bem longe um certo barulho que as águas de
março começavam a trazer. Respingava um sereno leve para dentro, até
gotejar em nossos ombros, precisava compartilhar uma lembrança com ela.
-Você ainda escreve no seu diário?
Tocou-me levemente no ombro, abriu os lábios.
-Eu sempre escrevi, mas aquele diário velho está gasto, cheio dos meus
sentimentos, sem folhas, sem tempo pra mim.
-Pega.
Era uma caixa azul, ela abriu, tinha um diário novo, cheio de páginas
limpas para ela recomeçar, de onde parou, do fim. Caberia uma nova Vanesca,
novas histórias, letras, poesias e segredos. Dentre todas as páginas limpas eu
coloquei uma página rabiscada, amassada e amarelada pelo tempo, uma folha
antiga de um diário antigo, que outrora encontrei ao acaso de baixo da minha
cama. Perguntei como o seu pai estava, muito emocionada ela lagrimou e em
seguida, ela abriu o seu limpo sorriso, o mais limpo de todos que ela só usava
quando realmente estava feliz.
-Salvo, ele está salvo graças a Deus. Livre, do álcool, dos jogos, da
escuridão, curado das drogas. E todos os anos, voltamos a Cracolândia, lá
onde eu o vi pela primeira vez, mas não para relembrar a dor do passado, ou
chorar pelo tempo perdido. Voltamos lá para levar atenção, esperança,
palavras de quem já vivenciou, para pessoas que ainda estão naquele lugar,
naquele abismo. O meu pai conseguiu superar, reencontrar não só a mulher
amada, a filha, a família e os amigos, mas a vida. Deus, encontrou Deus e hoje
luta, luta para salvar outras vidas.
A abracei, e enxuguei lhe as lágrimas. Vanesca era uma pessoa mais
responsável desde que o pai ressurgiu em sua vida, e tudo o que aconteceu,
além do câncer, serviu para moldá-la, transformá-la numa grande mulher e que
mulher.
-O câncer voltou, descobri durante a gravidez, mas eu não tive medo, o
médico disse que eu não suportaria a gestação, e se a criança nascesse ela
teria problemas, mas eu não tive medo daquele diagnóstico, apenas sorri para
o médico e disse que ele estava errado, e ele estava errado. Eu sabia que
aquilo era novamente uma prova, e eu tinha que passar. Cheguei em casa,
dobrei meus joelhos, e dia após dia confiei não em mim, não na medicina, sim
na minha fé, confiei no Senhor, no Pai Celestial. E quando o Francisco nasceu,
no dia do nascimento, a minha vitória chegou, o mesmo médico que me deu
aquele diagnóstico me pediu perdão, e disse que realmente ele estava errado.
Meu amigo, só DEUS, para nos reunir novamente, nos amar e nos aceitar.
Dessa vez ela quem me abraçou e enxugou as lágrimas que escorriam
até os meus ombros. Eu jamais conheci alguém tão forte e positiva como a
Vanesca, e provavelmente como ela, somente ela.
Em uma tarde de setembro, nós seis, Eu e Naiara, Bruninho e Vanesca,
Élido e Jaqueline, subíamos as escadarias da Candelária, Mariá e Francisco
abriam caminho, nos conduziam ao altar, sins mútuos, em coro,
correspondente e cheios de amor, vida, amizade, nos casamos coletivamente.
Cheguei, ela estava no sofá, assistindo um jogo, com o meu moletom
preferido. Nela parecia um vestido, dava pra ver a timidez de uma calcinha
branca, paro na porta a admirando, ela usava seu óculos de grau e vibrava
com o desenrolar daquela partida, desvia a atenção do jogo e me olha:
-O que foi amor? Dando um leve sorriso.
- Você é linda, muito linda, eu te amo.
A desejava dali, queria tê-la em meus braços, meus olhos flamejavam
nas curvas escondidas pelo moletom, hormônios, larguei a porta aberta, deixei
as flores no chão, fui ao encontro dela. Ela agarrou-me no pescoço, passeei
minhas mãos buscando sua cintura, deito por cima dela no sofá, damos
complacentes gargalhadas. O jogo continua, o controle cai no chão, me livro
daquele moletom enxerido, posso ver agora com clareza seios reluzentes, meu
desejo aumenta, nos beijamos invasivamente, cúmplices em um momento de
prazer.
Ela consegue rasgar a minha camisa, não nos contemos, arrancamos o
que sobrou das roupas, caímos nus no carpete. A TV gritava gol, mas só
escutávamos nossos corações apertados e ofegantes, respiração regrada,
mãos envolventes, corpo a corpo, me deixo ser dominado por ela, ela me deixa
dominá-la, somos dominados pelo prazer, amor. Quanto tempo passamos ali,
não prestamos atenção, a exaustão do gozo, a felicidade, a cumplicidade, a
simplicidade em gestos, atos e palavras, nós dois, só nós dois. Uma TV, um
sofá, um carpete, móveis, uma cidade, um casamento, um recomeço, o nosso
recomeço.
Ficamos logo mais ao final nos acariciando, o jogo já acabou,
comentaristas, ela se vira para mim, cheia de luz no olhar.
-Estamos esperando um visitante.
-Quem?
-Daqui a 9 meses conheceremos.
-Você...?
-Sim, estou, estamos esperando um filho ou filha.
-Como eu te amo.
-Eu te amo muito também, muito.
Virei-me para o lado, tinha uma máquina fotográfica na mesinha perto do
sofá, tímida recusava-me uma foto, fotografei-a, eternizei-a, levantamos, e nus
fomos admirar pela nossa sacada a vista exuberante de nosso novo lar, frio,
agarramo-nos em um beijo ardente.
Agora sim, o meu sonho era real, compartilhado com a pessoa certa.
Anos depois lá estava eu, olhando para o Central Park e imaginando nossos
filhos brincando. Lá estava eu, em busca do recomeço, dirigindo minha própria
vida, meus sonhos, construindo um futuro, uma família, um alicerce forte,
robusto, lá estavam nós, eu, Naiara, lembranças, pensamentos.
A nossa frente uma grande cidade, um lugar ótimo para fazer
voluntariado como Naiara me dizia, cheia de amor nos olhos. Lá estava eu,
realizado, feliz, esperando o primeiro filho, com a minha esposa. E quem diria
que seria a amiga do colégio, quem diria que nossas vidas se cruzariam de
forma tão íntima. Lá estávamos nós, sorrindo correspondente um ao outro,
amando reciprocamente. E lá vinha a chuva, saímos da sacada, fechamos a
janela, tomamos um banho, taça de vinho, massa italiana, um sofá, uma TV,
filmes, sono. Conchinha. Amor.
E assim eu descobri que o amor e a amizade são muito além de amar, é
saber esperar, aguardar, a vida é uma sala de espera. Amar é compreender,
sentir ciúmes, vale a pena, chega a doer, dar prazer, trabalho, cura, ganha,
perde as vezes, explode. Amor aviva, avisa, chega, parte, volta, se recicla,
recria, renova, amor acaba, amor nasce, morre. Amor é loucura, das boas, se
vê, se sente, se inspira, amor foge, pula, amor é imenso, como em livros, livros
continuados, escritos à mão, livros na mente, no coração, livros de lembranças,
cheias de gostos e sabores. Assim é o amor, assim é a amizade.

FIM.

Fim por enquanto...


Mirante Nostalgia DELEGADO ilha bela bailarina BOMBEIRO passado
PRESENTE DÚVIDAS casarão discurso estrada sol LUA amizade colorida
Alexandre Bruno bruninho Élido NAIARA vanesCA Jaqueline casinha pôr-
do-sol NASCER do sol Drogas Deus Fé fome tédio Faculdade TEATRO Nova
york SÃO PAULO varanda conversas passos APRESSADOS violão

TERNINHO Baile Veteranos Primeira vez Beijo


Aparelho ADOLESCÊNCIA solidão
ABORRECENCIA preconceito primeiro beijo

transa MOLETOM BOLO aniversário festa ACAMPAMENTO Trilha fogueira


DIÁRIO MADRUGADA casamento teatro espetáculo luz vida

Caminhonete valsa BALÉ música coral violão Aulas MISTÉRIO sexo


amizade AMOR superação câncer pai Minas Gerais estrada glacê fotografia
Discurso trolagem brincadeiras água distância plateia aplausos som música
Fortaleza Mar Festa gravidez VOLUNTARIADO memórias lembranças
bolo fome desespero frio madrugada NOITE bar SUCO vestido CINDERELA
Fim COMEÇO RECOMEÇO sarau BAILE novato veteranos lágrimas
caminhonete MILAGRE nascimento eu você DÚVIDAS gay sexualidade

VERDE AMARELO SOL vemelho fogo

ardente escarlate Rosa azul preto florezinhas

CANCER Branca ...


Luis Felipe Furtado, morando no interior do Pará, de uma grande e
tradicional família nordestina, sempre destacou-se com as palavras, é como se
elas fizessem parte dele. Incentivado pela mãe professora, começou a ler e a
fazer caligrafia ainda nas primeiras séries iniciais. Mais tarde, já na
adolescência, escrevia pequenas histórias para acervo pessoal, além de
atualizar seu diário e escrever cartas para amigos.
Durante as aulas, era comum Felype distrair-se e começar a rabiscar
histórias em seus cadernos de aula, o lado poeta surgiu na adolescência,
inspirado por pequenas paixões da idade. Ainda nessa fase, iniciou sua
primeira obra, que relatava a sua vida de estudante e as amizades do tempo de
colégio, obra esta não concluída, mas tarde iniciou um livro infantil para
presentear a prima Juliana no dia das crianças.
Durante as aulas na faculdade de Direito, resolveu colocar em prática o
seu talento literário e iniciar uma obra que falasse sobre o que ele vivenciou
com alguns amigos.
Amizade, superação, romances, em Mirante, Alexandre o narrador,
descreve com saudade o período mais gostoso de sua vida, os tempos de
colégio, onde vivenciou muitas aventuras com seus melhores amigos.
Curiosidade
O nome Vanesca surgiu a partir de um erro ortográfico.

Agradecimentos
A amiga Jaqueline Jodan pelo incentivo a escrever esse livro.
As amigas Élida Ferreira, Jaqueline Jodan e Naiara de Castro, e ao
Professor Alexandre Scherer por me emprestarem os seus nomes para os
meus personagens.
Capa final
A chuva que caía sobre os meus ombros, gotinhas de saudade, gotinhas
de infância, gotinhas de chuva que passavam pela adolescência e paravam
aqui, na vida adulta, me nostalgiando, lembrando, causando saudades.
Aqueles amigos, aqueles saudosos amigos, o gordinho, o bombeiro, a modelo,
a bailarina e a menina que sem querer encheu os meus olhos e o meu coração
de amor.
O tempo, a distância, a convivência, a loucura, a amizade, aqueles
amigos que todo mundo tem, ou deveria ter, aqueles que vieram dos céus,
presente dos céus, amigos celestiais, amigos pra dor, para as gargalhadas.
Num nascer do sol, amigos de mãos dadas, de colégio, amigos, para sempre
meus amigos.

Você também pode gostar