Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Romance
MIRANTE
MIRANTE Felype Furtado
Marcador de página.
Ficamos em silêncio quando ela nos mostrou aquela letra, Élido botou
uma suave melodia e ajustamos conjuntamente a letra. O resultado final foi
uma linda canção onde todos cooperaram e deixaram um pedacinho de si, uma
homenagem a nós mesmos, um presente, de nós para nós.
Ao ficar pronta, a cantamos pela primeira vez, na nossa tão especial Ilha
Bela, simultaneamente veio o abraço, o beijo, o carinho, demos as mãos,
choramos, não nos contivemos, era muito especial, segundos depois o Sol
nascia diante de nossos olhos. Aproveitando aquele momento, Élido disse que
me amava, o acompanhei, e reciprocamente também disse que o amava.
Todos nós, eu, Élido, Bruninho, Vanesca, Jaqueline e Naiara, pronunciaram a
frase “Eu te amo”. Foi uma das cenas mais lindas de nossas vidas até ali, o sol
nascendo, palavras vindas de pessoas verdadeiras, falhas muitas vezes, mas
os amigos, os amigos de toda uma vida, para toda a vida, possíveis se houver
reencarnação, eternidade.
Amigos de Deus
Amigos, melhores amigos
Irmãos, melhores irmãos
Parceiros, pra sempre parceiros
6 vidas, um só coração
-x-
Enquanto o pessoal me procurava, eu desfrutava do meu primeiro beijo
no corredor perto dos armários, um cenário inconveniente, luzes piscando,
campainha tocando, garoto com garoto, mas foi o meu primeiro beijo, muito
bom por sinal. Se tivessem me procurado melhor, teriam me encontrado.
Como não se apaixonar perdidamente por aquela garota? Era
impossível isso não acontecer, ela adorava dançar, queria ser uma bailarina,
ela já era uma bailarina, bailarina de alma. Quando dançava seus braços
transformavam-se em asas, no espetáculo Cisne Negro ela alcançou toda a
escuridão da personagem e a encheu de luz. Foi impossível, impossível Élido
não amá-la, querê-la, ainda mais depois de tanto eu descrevê-la em nossas
intermináveis conversas. Conversávamos sobre qualquer coisa, sobre a vida e
o quando ela podia ser impressionante e imprevisível. Em meio aos papos de
carro, ele sempre preferiu as caminhonetes, insistia em me ensinar a tocar
violão, nunca aprendi, e em tantas falas, sempre falávamos da minha bailarina.
A descrevia com tanto amor, que horas e horas só se falava nela, dizia
que vezes seus olhos pareciam faróis, poderiam iluminar qualquer escuridão,
que o seu sorriso era irresistível como a maçã que a Branca de Neve comeu, e
aqueles lábios finos, minha bailarina era linda. Não seria minha, nunca pudera
ser, pois o seu coração não pertencia a mim. Eu tinha um espaço em sua vida,
no seu peito esquerdo, lá dentro do coração, como amigo. Todo aquele ser,
sentimentos, não foram feitos para mim, não para me amar. Jaqueline não era
para mim, apenas amiga, só me cabia sua amizade. Seu coração não fazia par
com o meu, e se tentasse, não daria certo, seu coração pertencia a Élido, ao
meu querido irmão mais velho.
Amar uma garota por anos sem dizer a ela o que eu sentia, foi a coisa
mais idiota da minha vida inteira, na minha vidinha no colégio. Eu
simplesmente deveria ter dito a ela que eu a gostava mais que um amigo. Ela
certamente me daria um fora e eu mesmo teria me poupado de muitas coisas,
como os presentes do dia dos namorados para a namorada que não sabia que
tinha um namorado. Dava para eu ter comprado o par de chuteiras novas.
Caixas e caixas de bombons que eu acabava comendo sozinho, me fazendo
ganhar peso extra, cartinhas e outras coisinhas que eu nunca cheguei a enviar.
Que idiotice, ainda bem que naquele baile fui liberto dessa paixão, seria
uma merda eu gostar de uma pessoa durante todo o ensino médio
secretamente. Foi estranho eu amá-la tanto por longos quase 1095 dias, e
deixado de gostar em segundos, como se tivesse dado uma grande descarga
naquele sentimento todo, foi libertador, um auto resgate.
-x-
-Alexandre evaporou, procuramos ele por toda parte.
- Acho que ele foi pra casa.
-Será? Vou ligar, caraca ele não atende.
-Relaxa, deve tá tudo bem.
-Puta merda, ano que vem já vamos ter 7º tempo.
-kkkkk eu não.
-Caraca, me lembro o dia em que comecei a estudar, era uma
pirralhinha.
-Uma catarrentinha.
-Obrigado pelo elogio, você é um cavalheiro.
-Eu diria cavalo.
-Coitado dos cavalos, não os ofenda Jaqueline.
-Bem que nós seis podíamos casar no mesmo dia.
-Seis casamentos no mesmo dia? Ia ser louco, bem divertido.
-É incrível a vontade das mulheres em querer casar.
-Vocês precisam entender o nosso lado.
-Vamos parar com esse papo de casamento, me assusta.
-Tou com fome.
-Véi, você vive com fome.
-E se o mundo acabasse agora?
-Se o mundo acabasse eu ia dar um beijo na sua boca. (É)
-Pois venha meu amor, venha me beijar perdidamente. (B)
O Bruninho era meio maluco, ou estava sempre com fome, ou falando
sobre suas teorias a respeito do fim do mundo, e quando ele começava a falar
a respeito, ele realmente estava com fome, aí a pessoa teria a paciência de
escutá-lo por horas sobre asteroide, big bang, fim dos tempos, arrebatamento,
e ele nem era religioso, ou daria a ele um chocolate, algo para comer.
Depois do Élido dar um beijinho técnico no Bruninho, o pessoal começou
a refletir realmente sobre as possibilidades do fim do mundo.
-Sempre soube que você me amava. (B)
-Quer namorar comigo? (É)
-Quero ter filhos com você. (B)
-Gente, gente, falando sério, e se a droga do mundo realmente acabar,
acabar agora?
Todos ficaram em silêncio.
- Se o mundo acabasse...Vanesca parou para pensar...puta que me
pariu...ia ser foda, bem foda. Para onde íamos? Espero que tenha cerveja para
onde formos.
-No céu não há cerveja, não há mesmo.
-É, aprendo a viver sem cervejas.
-O que vocês queriam fazer antes do mundo acabar, tipo um segundo
antes, uma hora antes, um dia antes, no máximo um dia antes, o que vocês
fariam? Eu faria uma dieta.
Todos riram de Bruninho.
-Eu ia desfilar nua, slow mocham, e no meu último segundo, sentir um
orgasmo.
-Pervertida. Eu queria estar exatamente aqui, me bastava um segundo,
o Alexandre, tá faltando o Alexandre, todos nós rindo, fim, tudo acabar, todos
felizes.
-Fofa.
-Eu queria dizer um último eu te amo...
Jaqueline dizia isso olhando para Élido que parecia distraído ao
assunto.
- E você Élido?
-Eu não sei, deixa acontecer naturalmente. O Fim.
-Que horas são?
-Da beata ir para casa.
Vanesca e Naiara se despediram do grupo e foram dormir na casa de
Vanesca.
-Caralho, que silêncio.
Bruninho, Jaqueline e Élido ficaram mudos depois que Naiara e Vanesca
foram para casa. O papo não fluía, Bruninho piscava de sono. Élido aproveitou
para fazer uma brincadeira com o amigo, passou um batom na boca de
Bruninho e o acordou num súbito susto, Jaqueline e Élido se estatelaram de
tanto sorrir.
-Puta merda, já até dormi, cansei de segurar vela.
Não percebendo o batom, Bruninho resolveu ir para casa, deixando
finalmente Élido e Jaqueline a sós, o que fez a garota corar as bochechas.
-Você dança muito bem.
Élido também corou e sentou-se mais perto de Jaqueline.
A dança a levava para um estado de tranze, um universo particular, um
mundo habitado apenas por ela. Era a dança, era a sua vida, o sangue, e isso
era transparente no olhar, e ficava ainda mais nítido quando ela dava seus
primeiros passos no palco. E quando o número acabava, era quando o corpo
se desaguava em exaustão, sugava-lhe todas as forças, a alma. Mas o seu
sorriso de contentamento e gratidão, levantava a plateia em aplausos, a
bailarina que eu dizia ser minha, mas não era, e nem nunca poderia ser,
acoplada a dança. Um só corpo, coração e emoção.
-Amo tudo isso.
Jaqueline encostou sua cabeça nos ombros de Élido, o que fez arrepiar
e arrancar-lhe um leve sorrisinho.
-Somos muito parecidos, porque no palco ganho uma vida extra, sou eu
mesmo, respiro mais fundo, posso até sentir sabor no respirar, somos feitos de
arte.
-Pensei que você não era tão poeta quanto o Alexandre. (Disse isso
tirando a sua cabeça dos ombros de Élido.) Na verdade eu pensava que você
queria ser bombeiro e não ator.
-Bombeiro? Porque bombeiro?
-Ué, você foi expulso do colégio no 1º dia de aula por inundar o corredor
com a mangueira de incêndio. (Jaqueline e Élido não seguraram a risada.) Pior,
duas vezes, no outro primeiro dia de aula novamente você foi expulso por
brincar com o extintor de incêndio. Como você foi capaz de fazer essas coisas?
Não, sério, se nada der certo, você pode ser bombeiro, até porte de bombeiro
você já tem. Corou.
-Quer dizer que você anda reparando no meu corpo? O Alexandre não
vai gostar.
- O que o Alexandre tem haver?
Intimidou-se e gaguejou.
-Ele, é...ele. O Alexandre é apaixonado por você, desde o 6º ano, queria
muito te levar no baile dos veteranos, ele é completamente apaixonado por
você.
-Eu sei. Eu sei, mas eu gosto dele apenas como amigo, gosto de outro
garoto, do melhor amigo dele, do irmão dele.
Élido ficou igual um verdadeiro idiota, não sabia o que dizer, não tinha
nenhuma piada, ficou sério. Eu queria ter visto a reação dele nessa hora, seria
trágico para mim saber que a garota que eu amava até então, gostava do meu
irmão, mas seria muito engraçado apesar.
-Eu gosto de você.
Jaqueline roubou um beijo dele, o beijo foi sendo correspondido, ela
ficou olhando nos olhos dele. Olhar mútuo, ele também começava a admirar
aqueles faroizinhos, ela foi até o ouvido dele e sussurrou:
-Se o mundo acabar agora, será um final feliz. Eu amo você.
Ela saiu, rindo, segurando a barra do vestido. Meu irmãozinho ficou
perambulando pelo colégio esperando o tempo passar e criando coragem para
me dizer o que tinha acontecido, foi expulso uma terceira vez do colégio, dessa
vez pelo zelador.
Era para ser uma viagem de família, mas como o aniversário do Élido
era quase no fim do ano, no mês das férias, o pessoal acabou indo passar as
férias na fazenda dos meus avós, em Minas Gerais com a minha família. Foi
uma viagem inesquecível, nem nas férias esses aborrecentes, como dizia a
minha mãe, se separavam. A função dos avós era engordar os netos, e isso a
minha avó fazia muito bem, quantas comidas gostosas. Me deu até fome
relembrando.
Élido e Jaqueline durante as férias, se aproximaram muito, e sempre
faziam as atividades do grupo em par, isso raramente quando eles estavam
disponíveis. Na maioria das vezes, estavam passeando pelo pomar, andando a
cavalo, trilhando. E tudo isso começou a ser percebido por todos nós, aquelas
alturas, o durão do meu irmão já estava apaixonado, os dois já estavam
apaixonados, mas não assumiam. E a história se inverteu literalmente, agora
era o Élido que todas as noites antes de dormir, descrevia uma certa bailarina.
Era para ser uma viagem rápida de 2 semanas para a fazenda do vovô e
vovó em Minas Gerais, consequência do trabalho do papai. Assim que as férias
de duas semanas dele acabassem, eu, mamãe e Élido viajaríamos para Nova
York, uma segunda viagem, segunda férias. Como estávamos nós seis, eu,
Élido, Bruninho, Naiara, Vanesca e Jaqueline, além dos meus pais, o Delegado
resolveu alugar uma Kombi e realizar sua vontade de moleque em pegar a
estrada em uma antiga Volkswagen, como fazia com o vovô, quando rodavam
o Brasil em um velho fusquinha.
Os pais não entendem a amizade entre garoto e garota, os meus,
sempre olhavam pelo retrovisor e perguntavam se havia alguém de nós
namorando, o que nos envergonhava. Élido sempre bom piadista, dizia que
namorava com o Bruninho e que o amava, Bruninho consentia, foi um trajeto
divertido, ríamos e paramos para trocar um pneu furado, dormi no colo de
Naiara.
O aniversário de Élido foi bem simples, um almoço, muita gente da
família do interior. Quando meus pais o adotaram, ele também foi adotado por
toda a família que é imensa. Realmente as pessoas que não nos conhecia,
achavam que ele realmente era biológico, mas independente de sangue ou
DNA, isso não importava, era o meu irmão mais velho, não tinha como discutir,
os laços afetivos eram maiores que documentos de adoção.
Depois do almoço, aproveitamos o riacho e ficamos ali até o entardecer.
Quando voltamos para a sede da fazenda, Élido ganhou um bolo com velinhas
de aniversário da vovó, já que o primeiro bolo que seria servido no almoço
sofreu um grave acidente e tivemos que cantar os parabéns para você com a
sobremesa.
Era um bolo redondo de chocolate, ficamos ali na varanda, eu e os
meninos, vô e vó, meus pais, papai tocava gaita, até ensinou Bruninho. Élido
no violão, Naiara como sempre cantando, fizemos um sarauzinho, tudo muito
simples e aconchegante. Íntimos, frio, agasalhos, bolo de chocolate, risadas,
histórias antigas do vovô, as viagens que ele fazia com o papai, aquela
varandinha mineira aconchegou-nos, demos nossos presentes ao
aniversariante.
Papai deu a Élido algo especial, uma miniatura de uma caminhonete
antiga, Marta Rocha, que a tempos tentava conseguir, o presente dos meus
avós foi um só, amor. Além de muito amor, deram a ele coisas que só os avós
dão. Eu e toda a turma de amigos nos juntamos e compramos um violão
maneiro, novo, acabamos com as nossas mesadas. Mamãe deu a ele uma
caixa vazia, e quando questionada pela sua atitude, ela foi muito sábia e disse
que aquela caixinha era para ele guardar algo de mais especial na vida de uma
pessoa, o coração.
Na verdade ela tinha esquecido o presente dele em São Paulo, e na
hora ela improvisou toda aquela cena, uma verdadeira poeta, sempre foi.
Depois dos presentes, vovó e vovô se retiraram, mamãe olhou para o meu pai
e disse-lhe que estava na hora de deixar as crianças a sós. Logo fizemos uma
rodinha, lógico que o sarauzinho se estendeu pela madrugada.
-Vamos jogar verdade ou desafio?
-Bora, bora.
Pegamos uma garrafa de bebida e começamos, eu sempre preferia
verdade, sempre. O ano acabando e eu ainda era BV, e o meu primeiro beijo
não tinha valido. Não que eu estivesse desesperado pelo primeiro beijo, mas o
pessoal enchia o meu saco para que rolasse logo, e eu tinha certeza que
naquele jogo eu perderia o meu BV.
- É hoje, é hoje. Dizia esfregando as mãos, logo o meu irmão sacou as
minhas intenções.
Começamos a jogar. Era um jogo perigoso para nós, pois nunca se
sabia o que perguntaríamos ou desafiaríamos uns aos outros. Valia de tudo. O
jogo já começou quente quando o Bruninho perguntou se Vanesca era lésbica
ou algo do tipo, aquela foi a primeira e a última vez que ela foi questionada por
ele.
-Verdades secretas ou desafio? Bruninho já foi perguntando com uma
cara de sínico.
-Vou escolher verdade só para começar.
- É verdade que você é lésbica?
Vanesca começou a mascar e encará-lo, respondeu-lhe tão delicada
quanto um coice de mula:
-É verdade, é verdade, me tornei lésbica no dia em que fiquei com você.
Todos fizemos “uuuuuuuuuuuuuuu”.
-Foi tão ruim assim?
Peguei a garrafa antes que ela o respondesse e girei. Naiara perguntou
para o Bruninho e ele escolheu desafio, tinha que dar um beijo em uma vaca,
não valia selinho, tinha que ser de língua, beijão, coitada da vaca, ele quase
levou um coice. Jaqueline girou a garrafa e Naiara escolheu desafio também,
Élido cochichou para Jaqueline, riram e ela a desafiou:
-Eu desafio você tirar o BV do Alexandre.
Naiara olhou-me e não esperou nem cinco segundos, quando lembrei de
respirar, ela já estava com a boca grudada na minha, estava tudo normal,
grilos, estrelas, os meninos gritando, eu estava gostando, estávamos gostando,
até nossos aparelhos ortodônticos resolverem se beijar também.
-Ai, ai.
-O que houve?
-Não se mecha, nossos aparelhos grudaram.
-Ai meu Deus.
-Puta que pariu.
Foi uma situação realmente embaraçosa, eu queria rir, mas ao mesmo
tempo desenrolar os aparelhos, principalmente desenrolar os aparelhos. Todos
tentaram ajudar, mas só piorava e nos enrolávamos mais ainda. Foi quando
tive a ideia de continuar beijando para tentar desenrolar, e quando a boca
começava a adormecer, dávamos uma pausa. Depois de longos 20 minutos
que pareciam que não passariam, engolindo saliva, finalmente os aparelhos se
soltaram. Sangrou.
-Nossa, uma transa de boca.
-Atrapalhamos? Se preferirem podemos deixar vocês a sós.
-Aleluia, aleluia, finalmente.
Girei a garrafa, seria a minha doce vingança.
-Verdades secretas ou consequências?
-Posso pensar? Verdade, verdade. É verdade, próximo, podem girar a
garrafa. Élido já ia girando a garrafa quando o interrompi.
-Nananinanão. Eu vou perguntar se é verdade que você gosta da
Jaqueline, você tem certeza que quer verdade? Eu deixo você escolher
desafio.
-Tá, tá, desafio.
-Desafio você a pedir Jaqueline em namoro.
Bruninho rufio os tambores, Élido foi até a jardineira e pegou uma flor, eu
juro que era apenas uma brincadeira. Pensei que Élido ia fazer uma piada, mas
ele levou a sério, foi ele mesmo e seguiu o meu conselho. Ajoelhou-se na
frente de Jaqueline, deu a ela a flor e a pediu em namoro.
-Quer, quer, quer namorar comigo?
-Tá falando sério?
-Responde rápido senão eu peço o Bruninho, aposto que ele aceita.
-É, eu aceito mesmo.
-Você tem que pedir direito, ser mais romântico.
Élido posicionou a garrafa na frente de Jaqueline e perguntou:
-Verdade ou desafio?
-Verdade.
-É verdade que você quer namorar comigo? Você quer namorar comigo?
-Sim, é verdade.
Senti fome e comi o resto do bolo de aniversário dele.
-Chega de segurar vela, a Senhorita Vanesca me acompanha?
-A última vez que te acompanhei acabei perdendo o meu cabaço.
Resolveram dormir e eu fui para a cozinha atrás de mais bolo. Naiara e
Vanesca foram para o quarto, e Bruninho dormir, não dormia, roncava. Élido e
Jaqueline, agora namorados, permaneceram na varanda.
Os dias passavam-se na fazenda, Élido e Jaqueline namorando,
grudadinhos, pra cima e pra baixo. Meu irmão todas as noites, quando
finalmente aparecia tardão no quarto, enchia-me os ouvidos, resumindo o que
tinha acontecido no romance deles aquele dia. A vida no campo era monótona,
mas sempre estávamos fazendo alguma coisa, tomando banho de riacho,
bebendo cervejinhas escondidas, pescaria, trilhas pela mata que rodeava a
fazenda, foi uma viagem bem legal e divertidíssima.
-x-
Em uma dessas trilhas acabamos nos perdendo, não foi desesperador,
tínhamos mantimentos o suficiente para esperar o dia amanhecer, e achar a
trilha de volta. Comidas, cervejas, cervejas quentes, lanterna. Pessoas normais
não levariam um peso extra de um violão para uma trilha, mas não éramos
normais, ainda bem.
Realmente não estávamos preocupados ou desesperados, foi até legal
aquilo acontecer, uma trilha que acabou virando acampamento.
Gargalhávamos, comíamos os últimos biscoitinhos, e tomávamos as cervejas
quentes. Deu dor de barriga depois. Vanesca começou a contar histórias de
terror. Coisas estranhas e barulhos, começaram a acontecer, eram apenas
animais e galhos secos que gritavam com o vento.
Bruninho era o medroso, o pessoal adormeceu, cochilei, quando
despertei, Naiara estava sentada perto do restinho da fogueira, que lentamente
suas cinzas eram levadas pelo vento. Ela estava linda, cabelos voavam, sentia
a sua respiração, percebi que ela estava com frio, tirei o meu casaco e a
agasalhei, a fazendo olhar para trás. Sorriu, agradeceu e bocejou.
-Você está com frio.
-Sim.
Ela permanecia com frio, a abracei por trás, seu coração faltava pular,
mas para mim era apenas proteção de amigo. Ela se desabraçou de mim, nos
beijamos, um longo beijo, seus olhos brilhavam, abraçamo-nos novamente,
pegou em minhas mãos e entramos na escuridão da mata. Achamos uma
clareira onde dava para ver o céu limpo, estrelas, lua gigante, parecia que nos
observava. Admiramos o céu deitados na relva, fazia frio, bastante frio que saia
fumacinha de nossos narizes e beijos gelados. Admirava as estrelas que
refletia através dos olhos de Naiara, nossos corações pareciam duas baterias
sincronizadas.
Transamos pela primeira vez, as curvas de seu corpo eram lindas, era
como se fossem pintadas a dedo, como uma obra que não podia ser tocada de
tão delicada que era. Lágrimas, dor, inexperiência, felicidade, prazer, amor,
muitos sentimentos. Não imaginaria que tudo seria tão natural e perfeito. Foi
lindo, especial, o nosso momento, como se nossas vidas se fundissem em
apenas uma.
Eu conseguia enxergar além da alma dela. Uma sensibilidade, pureza,
entrega mútua, garoa nua. A mágica, nada de contos de fadas, histórias em
quadrinhos ou novelas. Era a vida real, a libido, o toque, um laço, no mato, sem
plumas ou algodão de tecidos brancos. Eu respirava a ponto de quase morrer,
e se ela gritasse seria de prazer, de deleite.
Ela confiava em mim, eu tão menino, me fazendo de homem, congelado
pela neblina, aquecido pelo sol dos cabelos dela, dos olhos dela, dos lábios
dela, da alma dela, que se desfazia na minha mão em um doce devaneio. A
minha boca secou, e eu finalmente me desfiz em gozo, ela me acompanhou
num leve sussurro, num alto gemido, como alguém que se joga de um
precipício, pra chegar aos pés do amor, ou num chão de algodão doce.
Dormimos abraçados, acordamos com os primeiros raios de sol do dia,
que nos revelava ser aquele lugar a trilha de volta para a sede da fazenda.
Acordamos o pessoal e voltamos para sede da fazenda. Tinha um maravilhoso
café da manhã mineiro nos esperando. Todas as vezes que Naiara me olhava,
ela corava, eu ficava todo sem graça, o que pode despertar certa curiosidade
no pessoal. Não revelamos a ninguém, o momento era nosso, e deveria ser
guardado apenas em nossos corações.
Chegou o dia de voltar para a cidade grande, as duas semanas do papai
acabaram, e ele tinha que voltar para a delegacia, foi apertado me despedir da
vovó, do vovô, de Minas.
Voltamos para São Paulo e ficamos por uma semana até chegar o dia
da viagem para Nova York. Antes fizemos algumas trilhas, caminhadas e
passeios pelo Ibirapuera. Élido e Jaqueline estavam de buenas, curtindo o
início de namoro, sempre grudados, nos faziam segurar velas. Viajaríamos
para Nova York as 09:00hrs da Manhã, e um dia antes estávamos na casa de
Vanesca em uma festa do pijama.
-x-
Nos conhecemos no banheiro errado. Sim, no banheiro errado, eram
umas 04h00min da manhã, fim de festa, recepção dos calouros, fui tirar a água
do joelho, bebi pouco. No dia seguinte tinha muitos relatórios para entregar no
estágio. Estava quase me borrando nas calças, estava meio escuro, comecei a
esvaziar a bexiga, ouvi gemidos. Do nada ela surge, parece que tinha aberto
um buraco negro na minha frente de onde ela tinha saído.
-Está chovendo?
Eu dei um salto, levei um baita susto quando ela surgiu na minha frente,
acabei me mijando no susto.
-Está chovendo? Está chovendo salgado, ual, que grande, eita meninão.
Corei e a ajudei a levantar-se, ela estava super bêbada no banheiro
masculino. Faltava-lhe um dos lados do sapato, procuramos e não achamos,
acabou faltando luz, meu celular estava descarregado, e não tinha nenhuma
lanterna por perto. Fomos esbarrando até o salão principal da boate, a
escuridão não afastou os calouros e veteranos insanos, pelo contrário, ficaram
ainda mais loucos e acabaram improvisando coro de voz.
Estava um clima perfeito para um início de romance, mas distrai-me e
me perdi da estranha do banheiro, que eu mal tinha visto o rosto. Tropecei em
algo, percebi que era um sapato, e trazendo para mais perto de uma escarça
luz de telefone alheio, vi que era um sapato idêntico ao que ela tinha perdido.
Procurei, procurei, e não a encontrei, quando a luz voltou, fui para a saída, e
quase tropeçando, ela entrava em um táxi. Foi embora da minha vista, deixou-
me apenas um de seus sapatos, sorri, pensei:
-Lá vai minha cinderela.
-x-
Estava afogado nos cálculos o dia inteiro, de manhã no estágio
entregando os relatórios, e a tarde na construtora, sem contar o dever de casa
para fazer. Tantos anos estudando no colégio e tendo diariamente tarefas de
casa, quando cheguei à faculdade imaginava que finalmente me livraria deles,
mas estava enganado. Até a formatura eu estava pedindo prazos extras para
entregar “as tarefas de casa”, projetos, relatórios, seminários.
Eu tinha que contar ao meu amigo Salvadore as ondas que aconteceram
na festinha dos calouros. Achei-o perto da biblioteca, entramos, pegamos
alguns livros e sentamos em uma mesa.
-Cara, me perdi de você, fui ao banheiro na hora do apagão e não te
encontrei mais.
-Você se perdeu de mim? Eu que fui o cara do “Esqueceram de Mim”, fui
a pés para casa, não passava nenhum ônibus depois das 4h00min da manhã.
- Putz, foi mal, é que...
-Nem precisa falar, você estava com alguma caloura, entendi.
Gaguejei.
-O trem foi bom pelo visto.
-Eu tenho uma resenha sinistra para te contar. Nem me interrompeu, já
foi arregalando os olhos e começou a me ouvir. Conheci a garota mais linda de
todas ontem, no banheiro, fui tirar a água do joelho e ela estava caída perto do
mictório. Eu sei que ela é linda, eu sei que é, embora eu não me lembre muito
bem do seu rosto, foi bem na hora que faltou energia, só sei que tem cabelos
longos e loiros. Misturei as coisas, acho que foi a bebida.
Salvadore estava atento, escutando-me, ele sempre gostava de minhas
histórias, e dizia-me que eu deveria dedicar-lhe um livro inteiro, só pelo fato
dele ser meu ouvinte preferido. Ele achou muito interessante nos dias de hoje
ainda existirem cinderelas, esses contos de fadas reais. Para mim, eram
apenas acasos, destino ou fatos que aconteciam para eu poder contar á ele.
-Salvadore, então ela entrou num táxi e sumiu, e eu fiquei apenas com
um de seus sapatinhos.
-Sapatinhos não, é uma princesa que caça 41.
Ele queria saber dos mínimos detalhes, ver o sapato, se a garota tinha
chulé, então tirei o sapato da mochila e mostrei-lhe. Ele falou que estava
cheirando a cerveja, foi muito engraçado a sua entonação. Tomei-lhe o sapato
e coloquei novamente na mochila, eu não tinha entendido o porque eu ainda
não tinha me desfeito daquele sapato. Me faltava tempo com tantos afazeres
diários, só poderia ser isso.
-Bora, bora pra aula.
-É, quem sabe você não devolva esse sapato um dia, bem Cinderela.
Pensei que seria ator, ou diretor, quando me vi na faculdade de
engenharia, submergido em números e projetos para entregar, eu não tinha a
mínima noção de como eu tinha conseguido chegar até ali. Os números nunca
me encantaram antes, e no meu boletim, nas matérias de cálculos, eu sempre
passava na média, e foi assim também na universidade.
Talvez a minha admiração viesse da minha mãe arquiteta, o jeito, o
amor que ela exibia quando tinha projetos para entregar, e eu no meio de tudo
aquilo, fui crescendo. Um ano depois cursando a escola de teatro em Nova
York, sem a oportunidade para grandes espetáculos, e a pressão de um
delegado, acabei guardando o meu sonho em uma gaveta. Mas sabia que um
dia a abriria, então voltei ao Brasil, passei no vestibular, e quando pisquei os
olhos eu já estava me formando em engenharia.
O último ano foi nostálgico, estudava na Universidade Federal do Ceará,
e a distância e rotinas de estudante, não me permitiam que eu viajasse com
frequência para visitar minha família em São Paulo, nos víamos nos natais e
em ocasiões quando vinham em Fortaleza.
Era o último ano da faculdade, eu engenheiro, do teatro para a
engenharia, um grande abismo, e naquele último ano, despertei. Vi o que eu
tinha deixado para trás nos últimos cinco anos, a adolescência, a casa dos
pais, cabaço, São Paulo, amores, o teatro. Parecia um coma de que eu tinha
acordado. Todos esses anos sem ver o meu melhor amigo, o meu irmão Élido,
anos sem os amigos do colégio, estava ocupado demais fazendo cursos,
conferências, estágios, tudo que se tratava de engenharia. Andava ocupado
nas férias, fiz novas amizades, mudei de endereço, telefone.
Sempre que ia em São Paulo o Élido tinha acabado de voltar para Nova
York ou chegaria no dia seguinte a minha partida, desencontros, anos sem nos
vermos, raras conversas pela internet. Transformei-me em um cara adulto, o
que eu jamais imaginava que aconteceria, mas foi bom tudo o que aconteceu.
Toda essa distância nos amadureceu muito, só sentia falta das palhaçadas,
das viagens à Ilha Bela, dos conselhos do meu irmão, e principalmente
daqueles ouvidos paciente.
-x-
Estava na minha, tentando não olhar os peitos enormes da professora,
só queria prestar atenção na aula, sem contar o decote. De repente, a porta
abre com um vento forte e todos se assustam, parecia uma premonição.
Minutos depois a porta abre novamente sem que ninguém chegasse perto, eu
juro que se ela abrisse uma terceira vez eu chamaria um padre para fazer um
exorcismo naquele lugar. E na terceira vez que a porta abriu-se sem avisar, a
professora deu um baita grito.
-Sangue de Jesus tem poder.
Mas era apenas o reitor dessa vez, dando as boas vindas, foi um mico
daqueles, uma quarta vez a porta abriu-se sozinha. Não me contive com uma
sequência de sustos da professora, ri, o reitor sentou na pontinha da mesa e
começou a nos relatar uma historinha.
-Essa sala há anos que não a abríamos, um fato lamentável ocorreu
aqui, uma caloura de medicina veterinária foi encontrada sem vida. E o caso foi
um grande mistério, e é um grande mistério até hoje já que o fato nunca foi
solucionado.
-E as câmeras?
-Não registraram nada, só a entrada da garota, logo em seguida elas
pararam com uma falha no sistema já bastante deteriorado, e quando voltou a
gravar, ela já estava caída morta no chão. Mas hoje é um dia lindo, resolvemos
seguir a diante, e esse é um caso para a justiça.
Pensei com os meus botões, se o meu pessoal, os amigos do colégio
estivessem por aqui, resolveríamos numa boa esse mistério, levantei-me e
caminhei até a porta.
-É claro que a porta vai continuar abrindo sozinha, a trinca está frouxa,
tem que ser trocada, não existem fantasmas aqui.
Voltamos normalmente para a aula, e depois de muitas vezes sermos
surpreendidos pela porta que inesperadamente abria-se, ela ficou finalmente
aberta. Eu estava sentado próximo, perdi a vista numa garota que cruzava o
corredor, era alta, loira, cabelos longos, parecida com a da boate, mas eu
jamais teria certeza, já que não me lembrava e nem tinha visto o seu rosto
direito.
-Necessito de um habeas corpus para sair dessa prisão, faculdade!
Ouvi isso do Salvadore, ele se entediava nos primeiros minutos da aula,
talvez por isso que ele se tornou o meu amigo na faculdade. Se eu estava
focado em ser um bom veterano, estagiando desde o primeiro semestre, e
tirando boas notas, ele detestava tudo aquilo, toda aquela técnica, os blablabás
sobre como asfaltar vias, ele simplesmente não tinha nada haver com
engenharia. Eu teria receio de morar em qualquer lugar construído por ele.
Me convidou para matar aula, aproveitamos a hora do intervalo para
sair, para todos os lados haviam loiras de cabelos compridos, e elas realmente
se pareciam. Eu estava começando a ficar paranoico, me instiguei quando vi
uma menina no segundo andar com saia branca e camisa preta, e depois no
estacionamento a mesma garota com saia preta e camisa branca. Não
aguentei, pensava estar delirando, mas eram apenas gêmeas, deixei a
paranoia de lado e voltei a focar nas aulas.
Quanta indisposição, foi o que me restou depois do feriado prolongado
de carnaval, não viajei, nem sai em nenhum bloquinho, fiquei em casa, cama,
cobertor, filmes, eu e o meu eu. Dormi, dormi horrores, um pouco de redes
sociais, não visitei e nem fui visitado por ninguém, peguei vários livros na
faculdade para ler no feriado, tinha até um trabalho para fazer, simplesmente
joguei tudo para um lado da cama, eu merecia aquele descanso, celular off-
line.
A quarta após o meio dia, queria que eu fosse para o estágio, fui para
cama, e logo na quinta eu tinha uma aula no turno da tarde, e se eu não tivesse
matado todo o mês de fevereiro naquela disciplina, eu teria ficado em casa. A
minha vontade era matar, matar aquela aula insuportável, não aguentei e fui
para a biblioteca. Lá tinha uns puffs, não resisti e cai em sono em cima deles.
Eu não acordei simplesmente, fui acordado por uma pessoa distraída,
que foi escalar a estante para pegar um livro na prateleira mais alta,
desiquilibrou-se e acabou caindo em cima de mim.
-Caramba, sério?
-Oi? Perguntei ainda sonolento, com a garota em cima de mim.
-Sério que você ainda usa essa camisa?
-Camisa? Eu não estou entendendo.
-Você realmente continua o mesmo. Abraçou-me, veio um filme retrô em
minha mente, reconheci o abraço, o cheiro.
-Você está linda, não acredito como está linda.
- Você virou um gatão.
-Caramba Naiara,
-Alexandre.
Nos abraçamos por um bom tempo.
-O que você faz aqui?
-Estou tentando pegar um livro sobre tubulação.
-É, isso percebi. Como eu era mais alto, peguei o livro e dei a ela.
-Me transferi pra cá.
-Como assim?
-Caramba Alexandre.
Pegou-me no braço e abraçou-me novamente. Estávamos com muitas
saudades um do outro. Pude sentir o mesmo respirar em meu pescoço,
ofegante, os mesmos batimentos corridos de uma noite especial, a nossa. Era
ela, era ela ali, abraçando-me novamente.
-Quanto tempo, estou muito feliz, muito. Vamos tomar um suco?
-Claro.
Posso lembrar-me de seu caloroso sorriso consentindo. Tomar um suco
no campus da universidade seria normal, e mais prático, ou em alguma padaria
por ali perto, mas eu queria ficar a sós com Naiara, colocar as conversas em
dia, saber das novidades de São Paulo. O que tornaria impossível se
Salvadore ou qualquer outro amigo aparecesse. E como eu não estava a fim de
assistir aula aquela noite, acabamos no meu apartamento em Iracema, onde
morava com o meu filho que se chamava Opereta. Eu detestava chocolate
branco, mas o nome era legal, e finalmente eu podia ter um cachorro.
-Seja bem vinda, é aqui que eu moro. Opereta veio todo alegre ao meu
encontro, e enciumado com a visita, latiu, mas logo tornou-se doce ao abanar o
rabinho.
Fiz um suco de abacaxi, enquanto esperava por mim na sacada da sala
de jantar. Eu morava sozinho com o Opereta em um apartamento que
comportava uma família enorme com suítes e salas que se perdiam em vista,
exagero de mãe. Ela estava linda, na sacada, olhando para os últimos riscos
do sol que se punha, refletiam em sua face, a bronzeando, cabelos enormes,
vento.
-Suquinho de abacaxi como você sempre gostou.
-Você ainda lembra.
Demos alguns goles e sentamos no chão. Conversamos, conversamos
horas a fio, vimos a noite surgir.
-x-
Naiara era uma garota tímida, quando a conhecemos era extremamente
tímida. Além do aparelho, usava uma franja que cobria-lhe praticamente a
visão, tinha dificuldade na leitura e redação. Quando percebi isso no colégio,
comecei a tentar uma aproximação, mas a sua timidez exagerada, maior que a
minha, a afastava de tudo e todos, tentava por meses um diálogo, até que
pouco a pouco ela foi se abrindo. O que facilitou uma abertura, era o nosso
gosto em comum pelo mesmo som, e a antipatia pelo café.
No tempo do colégio, quando todo o grupo não estava reunido, ou o
Élido não estivesse por perto, eu e Naiara convivíamos boa parte do tempo. A
casa dela ficava na rua de cima da minha, no mesmo condomínio, e nossos
pais eram amigos, nos dando a liberdade para frequentar a casa um do outro.
Logo que ficamos amigos, nas terças, depois da aula, ia para a casa
dela, brincávamos de escolinha a tarde inteira, até sentirem minha falta em
casa e irem me buscar. Ajudava a Naiara na leitura e redação, era focada,
queria melhorar, e quando cansávamos, tinha um delicioso lanche nos
esperando, ou mudávamos de brincadeira.
E as quartas-feiras a noite, nossos pais se reuniam, e eu e Naiara
depois do jantar, íamos aprender matemática, ela me ajudava nessa matéria.
Com o tempo fomos ficando íntimos, se meus pais precisassem viajar no fim de
semana, me deixavam na casa dela. Nessa época o Élido ainda não morava
conosco, mas assim que ele veio para a família, passou também a frequentar a
casa de Naiara, e logo assim, formamos o grupinho com o pessoal.
Na adolescência, as aulas de matemática continuaram sérias, realmente
estudávamos, quando vinha a exaustão, fechávamos os cadernos e
deitávamos na cama, dividíamos o fone de ouvido e ficávamos observando o
reflexo das estrelas através da água da piscina, vezes adormecíamos. Nessa
época nossos pais viviam nos envergonhando em público, sugerindo que
namorássemos, era constrangedor. Quando tivemos nossa primeira relação
sexual, já no finzinho do 9° ano, nossa convivência ficou meio estranha,
sempre que ficávamos sozinhos, corávamos, ríamos algumas vezes,
diminuíram as aulas de exatas e humanas por um tempo.
Em uma de nossas aulas, depois de exaustos com tanta leitura e
cálculos, resolvemos terminar o reforço, peguei meus fones e fomos até a
dispensa atrás de brigadeiro. Lembro-me daquele dia, ela com as bochechas
rosadas e eu tímido, coloquei o fone nela e mostrei-lhe uma música nova, som
novo, rimos a toa. Depois não trocamos palavra alguma, apenas diálogo entre
olhares, não resisti, beijei-a, rimos. A acompanhei até a sua casa, antes de
entrar ela ficou na ponta dos pés, e nos beijamos novamente.
Como ela tinha mudado desde a última vez que nos encontramos. Foi no
aeroporto durante uma ponte aérea entre São Paulo e Campinas, tinha
acabado de chegar de Nova York, e a vi de longe no balcão de embarque, não
a alcancei. Oficialmente, aquela era a última vez que eu a tinha visto, a última
vez que nos vimos reciprocamente, foi na despedida do colégio, assim que as
aulas acabaram. Naiara ia para a faculdade em Sobral no Ceará, e eu e Élido
para a escola de teatro em Nova York. Despedimo-nos calorosamente, com o
mesmo abraço do nosso recente encontro na biblioteca da faculdade.
Ir para a faculdade era um sonho antigo de Naiara, sempre amou
números, teve que adiar esse sonho durante um ano. Muita coisa aconteceu
em sua vida em um curto espaço de tempo de 366 dias. Ela foi fazer uma
escalada antes de ir para a aula inaugural, e acabou em uma queda livre de 10
metros de altura. Fraturaram as duas pernas, e seus pais ainda estavam
passando por uma crise conjugal, o que a deixava dividida entre dois lares, um
em São Paulo com a mãe e o outro em Sobral com a família do pai.
E até recuperar-se totalmente, passava-se um ano, e nesse período lá
estava eu, em Nova York com o meu irmão iniciando a carreira de ator, o que
para mim não fluiu, já que voltei ao Brasil, para trilhar um caminho mais sólido
e seguro como a vontade do meu pai. Acabamos emocionados partilhando
nossas lembranças.
-Vou pegar brigadeiro. Falei levantando-me bruscamente para disfarçar
uma lágrima inconveniente que queria caminhar, ela continuava sentada no
chão da sacada.
Que mundo pequenininho, rodamos o mundo inteiro e acabamos na
mesma sala de aula, na mesma faculdade, mesmo curso, e agora estávamos
mais uma vez a dividir um pote de brigadeiros. Ri e ela perguntou-me o motivo,
lembrava-me de nós dois na dispensa da minha casa em São Paulo nos
beijando. A deixei tímida, coloquei as mãos nos bolsos, retirei-as, e passei
meus dedos delicadamente em seus cabelos os conduzindo até a orelha, corou
sua rosácea mais ainda, beijamo-nos inesperadamente, mudamos de assunto.
-Lembra da música que fizemos?
Ela estava muito afinada, a anos não ouvia alguém cantar com tanto
amor, nostalgia e sentimento, cantamos o refrão juntos. Pouco a pouco fomos
lembrando da turma, dos tempos de teatro, quando nos demos conta do
horário, a noite já havia entrado a dentro e eu deitava sob suas pernas. Como
um amigo que era acolhido por sua amiga de infância. Olhei para ela, seus
olhos apertavam e brilhavam, pude ver que ela tremia com o friozinho
cearense. Da sacada avistamos alguns corajosos correndo pela orla, uma praia
quase deserta, descemos e molhamos nossos pés nas pequenas ondinhas que
quebravam na praia, ríamos de tanta felicidade.
-Está tarde, esqueci minha bolsa lá em cima.
Subimos, ela pegou a bolsa sobre a mesa, peguei a chave do carro para
leva-la, descemos até a garagem, entramos no carro, pneu furado, nos
encaramos sorrindo, ficamos sérios.
-Vou pegar um táxi.
Ela abriu a porta.
-Espera. Desci, acompanhei-a até a porta do prédio, entrou no táxi,
partiu, eu tinha a sensação de um dejavu, subi, ri para mim mesmo, não dormi.
-x-
-Oi
-Oi.
Sentava-se do meu lado na faculdade, logo começamos a fazer os
trabalhos juntos, deixando Salvadore enciumado. A aula tinha acabado mais
cedo, aproveitamos a aula vaga para colocar o assunto do seminário em dia,
estávamos em um grupo de quatro, Eu, Salvadore, Naiara e Mateus. Era um
trabalho simples, mas que deveria ser bem feito. Eu e Naiara sentamo-nos à
mesa, perto da porta, ela do lado esquerdo e eu na extremidade direita,
Salvadore sentado em uma das cadeiras e o Mateus com os fones de ouvidos
escrevia no quadro. Ouvimos um forte estrondo, a porta abriu-se sozinha como
de costume, desta vez violentamente, quebrando-se o vidro e assustando-nos,
exceto Mateus que distraía-se ouvindo música, rock pesado.
-Essa sala é mau assombrada.
Pude ver os arrepios em Salvadore, foi engraçado o pulo que ele deu, a
ginástica artística perdeu um grande atleta.
-Parece. Naiara esfregou as mãos.
-Teve um caso sinistro nessa sala a seis anos atrás.
Com curiosidade Naiara perguntou-nos o que havia ocorrido e Salvadore
narrou.
-Em 2009, depois da festa dos calouros que acontecia todos os anos
aqui na faculdade, na segunda feira, seguinte ao dia da festa, antes da aula
inaugural, uma aluna de veterinária foi encontrada morta aqui nessa sala. Às
investigações não fluíram, as câmeras não filmaram além da entrada da garota,
sem suspeitos, testemunhas, a perícia não encontrou nada, arma, marca de
violência sexual, nenhum arranhão.
-Nossa, em 2009, me lembro, foi o ano que vim pra cá estudar, eu
estava nessa festa, fiquei até a madrugada e depois sai com uns amigos para
uma escalada. Foi quando eu sofri o acidente e tive que voltar pra São Paulo.
Fiquei sabendo de alguns flashes, intrigante.
Naiara franzia a testa, Mateus continuava escrevendo no quadro, o cara
da limpeza entra e nos interroga a fim de saber o que aconteceu, nos alertou
que já passavam das 22h30min, ele precisava limpar a sala, tirei os fones dos
ouvidos de Mateus, juntamos os materiais e saímos da sala. Levei Salvadore e
Mateus para suas casas, eu e Naiara ficamos a sós, passamos pela orla,
tomamos água de coco, ela ficou quieta, silenciosa o tempo inteiro.
-Que intrigante. Lembra, lembra do caso do cara do colégio que
desapareceu por uma vida e solucionamos?
-Lembro, e que enrascada aquela.
-x-
Depois que o sarau acabou como de costume, eu, Élido, Bruninho,
Vanesca, Naiara e Jaqueline, reunimo-nos atrás do colégio. O ensino médio
estava acabando, e aproveitamos para nos encontrar, jogar conversa fora,
tomar uma ou duas. Era uma ruinha estreita, quase inabitada, muitas árvores e
um canteiro central. Barulho de coruja, a noite era mau iluminada, o frio de São
Paulo doía nos nervos, deparamo-nos com a imensidão daquela casa.
Abandonada, naquela noite, além da aparente depredação e pichações nas
paredes, haviam tapumes impedindo a entrada de qualquer um. Ficamos
surpresos.
Era um tapume de 2m de altura, fizemos uma escadinha, os mais altos
iam levantando os mais baixos. Naiara ficou com medo da altura e ficou por
último, Élido acabava de pular para o lado de dentro, fiquei uns 10 minutos
convencendo Naiara. Era medrosa, tinha receio de ser pega, e finalmente
quando nos preparávamos para pular, uma viatura da polícia passava na rua e
ascenderam os faróis altos na nossa direção. Naiara desesperou-se em pensar
na possibilidade de chegar em casa na carruagem da polícia, o policial desceu
do carro, Naiara vermelha, tentando acalmá-la, dou-lhe um beijo na boca,
somos abordados.
- O que os jovens fazem nesse lugar ermo e escuro a essa hora da
noite?
Gaguejamos, eu podia sentir Naiara ofegante, o pessoal ouvia-nos do
outro lado dos tapumes, calados. Élido gargalhava baixinho, tinha certeza que
era ele, faltou-me um buraco para entrar.
-Os Jovens são mudos?
Eu fazia parte do grupo de teatro, tinha que improvisar, foi a deixa,
comecei a fazer gestos, imitando a linguagem de libras, o policial começou a
irritar-se, e eu falando em linguagem de sinais. Naiara me sacou e também
improvisou, imitando uma gaga, foi uma cena comediante. O policial nos
interrogava, não entendia nada, foi a viatura e voltou com um manual de libras,
foi uma péssima tentativa, o policial que estava distante, tirando a água do
joelho, se aproximou e perguntou ao outro policial.
- O que você está fazendo?
- Eles não falam, ele é mudo e ela gaga.
- Se ele é mudo eu não sei, mas é o filho do delegado.
Eu gelei na hora, estava no personagem e não sabia como continuar, o
policial tocou-me nos ombros e iluminava-nos com uma lanterna azul.
-Juízo meninos, juízo.
Entraram na viatura e seguiram rua a cima, foi o dia em que eu mais
agradeci por ser filho do delegado, finalmente conseguimos entrar na casa.
Élido não conteve suas gargalhadas e disse que não faria melhor.
Ele nunca desapareceu, nunca esteve tão perto de todos esse tempo
inteiro.
Foi uma verdadeira dificuldade, até eu e Naiara conseguirmos entrar no
casarão branco da ruinha atrás do colégio. Primeiro pela altura dos tapumes e
também por todo o desenrolar com os policiais, mas finalmente entramos.
Provavelmente aquela seria a nossa última vez naquele lugar, pelo menos a
minha e a da maioria, já que estávamos saindo do colégio.
Era absurdamente escuro, não tinha luz, andávamos com dificuldades, e
naquela noite em especial, estava escuro ao quadrado. Tropeçávamos nas
velharias mesmo com uma falha lanterna que nos deixou na mão. Parecia um
roteiro de filme de terror, uma locação ou coisa do tipo. Bruninho tinha por que
tinha que se perder e Élido o herói, sair pra procurá-lo. Logo estávamos todos
espalhados em um casarão antigo, desabitado, frio e sem enxergar um palmo a
frente, totalmente sem luz, guiados apenas pelo tato e esbarrões em quinas de
mesa, pilhas de livros e cadeiras que assustadoramente surgiam pelo caminho.
Vanesca a mais corajosa abria caminho, esbarrou em uma caixa cheia
de velas, que convenientemente também tinha fósforos, eram velas
aromáticas. Ascendemos e saímos pela casa à procura de Bruninho que se
perdeu, já fazia uma hora desde que Élido tinha saído para procurá-lo. Eu
poderia começar a ficar preocupado, mas o medo não deixou, vinha um
barulhão enorme da cozinha de panelas caindo no chão, e em outros cômodos
da casa diversos barulhos assustadores. Naiara e Jaqueline acabaram
correndo, e agora realmente estavam todos perdidos naquela imensidão de
casarão, e ninguém tinha a brilhante ideia de ir para passagem secreta que
dava para o colégio, o medo faz dessas coisas.
Eu e Vanesca fomos até a cozinha, era o Bruninho, ele estava comendo
bolo de chocolate, mas era impossível ter bolo de chocolate naquele lugar
desabitado, e eu comecei a me indagar a respeito do desaparecimento
repentino de Élido e das meninas, certamente estavam me trolando. Subimos
para o andar superior e encontramos Jaqueline e Élido no maior amasso no
quarto do Diretor desaparecido. Havia lençóis limpos na cama antiga, e da
última vez que estivemos lá era apenas uma cama velha e desmontada.
Escutamos Naiara gritando no andar de baixo, corremos até lá, era um
rato enorme que estava revirando uma lixeira, só podia ter mais alguém
naquela casa, não tinha explicação, fantasmas não dormiam em cama e muito
menos comiam bolo de chocolate, eu particularmente nunca vi. Finalmente nos
reencontramos, foi quando Vanesca, que sempre teve uma sensibilidade
espírita apurada, resolveu brincar de tabuleiro ouija, o jogo do copo. Relutei
muito em participar daquilo, mas acabei convencido pela adrenalina, sentamos
no chão, a chama da vela fazia ondas de calor, movimentando-se e
consumindo o pavio lentamente, o que era assustador e causava-me arrepios
involuntários.
-Tem alguém aí, SIM ou NÃO?
De repente um velho, vestindo uma camisola branca, arrastando os pés
que asperavam nos nossos ouvidos, boca serrada e olheiras, apareceu. De
certa era o fantasma do velho fundador da escola:
-Tem. Tem vocês invadindo a minha propriedade. Vou chamar a polícia,
ninguém consegue fazer amor numa barulheira dessas.
O Fantasma ainda falava, causou até um desmaio em Naiara, e até
entendermos que não era um fantasma, e sim o fundador em carne e osso,
mais osso que carne, alguns de nós já tinham borrado as calças. Ele nunca
desapareceu, nunca esteve tão perto esse tempo todo. Depois de anos no
colégio, resolveu se mudar para o interior de São Paulo, onde construiu uma
nova escola para lecionar para as crianças carentes da região, e agora estava
retornando com a sua esposa, que também era professora na época do
Montessoriano.
Estavam de volta em São Paulo, e encontraram o antigo casarão
totalmente abandonado, seria uma longa reforma. Como ele demorou nos
explicando o que tinha acontecido, sua esposa foi procurá-lo, não era a cena
mais linda da vida ver uma senhorinha pelada e excitada, ela assustou-se
quando nos viu, e em seguida nos fez companhia. Comemos o resto do bolo de
chocolate e conversamos boa parte da madrugada a frente.
Ele tinha muitas aventuras, muitas histórias, estórias, e também o
atualizamos sobre as lendas urbanas que tinha se formado desde o suposto
desaparecimento. Fugiu com a professora, foram abduzidos, ele ficou louco e
se desintegrou, se aluiu a própria casa, eram muitas besteiras que contavam, e
ele não fazia questão de desmenti-las, já que a vida no interior sem publicidade
e com bastante simplicidade o fizera tão bem, pra alma, pro coração, pro
espírito e para o amor. Lá ele e sua esposa viveram outra metade de suas
vidas e agora estavam de volta para um novo recomeço.
Foi gostoso relembrar aquele dia, Naiara me deu um tapa nas costas,
dizendo que eu tinha me aproveitado da situação para olhar a sua calcinha.
Afirmei, disse que lembrava até da cor, branca, tomamos um suco de graviola,
subimos para o meu apartamento, assistimos filmes, brigadeiro, já estava tarde
e a deixei em casa.
-x-
Ela morava em uma casinha aconchegante no final da praia de Canoa
Quebrada, simples, uma varandinha, quase mineira, encantadora, até o final
daquele ano, trocamos inúmeras risadas naquela varandinha, além de
nostalgias e beijinhos de amigos.
Um dia antes da nossa colação de grau, combinamos um pequeno
jantarzinho na casa dela, queríamos comemorar nossa conquista, nosso
diploma. Ela assou um peito de frango, levei uma massa com mozzarella,
azeitonas e ervilhas além de uma sobremesa de pudim de leite. Quando
passamos a morar longe da casa dos pais, aprendemos a cozinhar ou temos
que nos alimentar de x-salada (3x10) ou miojo, e eu não gostava de nenhuma
dessas opções. Bastou o tempo em Nova York com Élido no fast food e alguns
tutoriais de como fritar um ovo, para eu ter a necessidade de procurar um
cursinho de culinária.
Depois do jantar silencioso, fomos até a varanda, dividimos a rede, entre
embalos e gargalhadas. O mar hipnotizava-nos, a cada embalo na rede,
ouvíamos o ranger das cordas, como um assovio, a água fazia toctoc bem na
nossa varanda, nos olhamos e entendemos. Tiramos as roupas e corremos de
mãos dadas, nús, nos jogamos no mar. Era divertido e nada excitante, o mar
era congelante, pinto congelado, ficamos pouco tempo na água, logo voltamos
para casa.
Ainda tinha umas sobras de brasa da churrasqueira, improvisamos uma
fogueira na areia, sentamos, peguei um violão, não sabia tocar, não tinha
aprendido, ela sabia disso e foi motivo de rir do meu desajeito com as cordas.
Pegou o violão das minhas mãos e tocou, tocou e cantou, a fogueira resistia ao
vento, raios no meio do mar anunciava uma tempestade. Choveu, desabou um
dilúvio dos céus, apagando nossa fogueira, corremos para a varanda, nos
assustávamos com os gritos dos céus, ríamos dos sustos. Entramos, fez-me
um chocolate quente e gritou.
-O que houve, quase me queimei.
-Estou sem sapatos pra amanhã, esqueci de comprar.
-Caraca, já é amanhã.
Ela começou a procurar algo pela casa, revirando tudo sem dizer nada.
-Me ajuda Alexandre.
-O que?
-Meus sapatos.
Apareceu com um sapato vermelho, apenas um lado, mostrou-me,
comecei a ajudá-la, tropecei em uma mochila preta atrás do sofá, era a minha
mochila que eu não sabia onde estava desde o semestre passado. Estava
meio aberta, tinha algo querendo sair, um solado vermelho, chuva forte, raios,
tirei o sapato da mochila e encaixei no pé de Naiara.
-É você.
-É o meu sapato.
-Cinderela.
Salvadore estava certo, encontrei a dona do sapato perdido, a garota do
banheiro, de longos cabelos loiros, era ela, estava ali na minha frente, diante
de mim, cabelos molhados, mas era ela, era ela sim.
-Você, o menino do banheiro.
Rimos como se estivéssemos recebendo cócegas. Ela ficava ainda mais
linda corada em gargalhadas, a encarei até voltar em si.
-Você é linda quando ri.
Realmente era linda quando ria, demorou muito no colégio para ela dar o
seu primeiro sorriso espontâneo, já que era tímida, tive que me armar de todas
as maneiras para conseguir o seu sorriso.
-Esse seu sorriso é o mesmo das aulas de matemática, quando ria
apenas para mim.
Ela calçou o outro lado do sapato, ficou quase da minha altura, era
engraçado como ela andava, parecia apertado, ficamos comparando nossas
alturas.
-Olha tampinha, você cresceu.
Ela riu, peguei minhas chaves, beijei sua testa, um caloroso abraço,
virei-me para a porta, não largou as minhas mãos, beijamo-nos, em meio a
sorrisos tímidos.
-O que foi?
- Ainda bem que não usamos mais aparelho.
Abri a porta, a chuva caía muito forte, corri até o carro, jaqueta sobre a
cabeça, parei, olhei para trás. Ela estava com um leve sorriso sem mostrar os
dentes, acenei, ela correspondeu, a vi entrar em casa, fechando a porta
lentamente, segundos até fechar. Entro no carro, coloco o cinto de segurança,
inclino a cabeça e ligo o para-brisa, vejo duas mãos no vidro esquerdo, era ela,
saio do carro, nos beijamos intensamente.
-Fica aqui.
Entramos correndo para dentro de casa, naquela noite fizemos amor,
uma recordação da nossa primeira vez, dessa vez, sabíamos o que estávamos
fazendo, a nossa melhor noite até aquele dia, ela soletrava palavras aos meus
ouvidos.
O tempo tinha se rasgado em nossas vidas. O corpo de menina virgem
já tinha se desfeito, agora ali, diante de mim, naqueles lençóis mudos e
quentes, era a volúpia de uma mulher. Cheia de curvas, capaz de matar,
assassinar, causar um suicídio.
Foi numa dessas curvas dela que eu perdi a direção da minha própria
vida, e entreguei na palma das suas mãos. Eutanásia de puro prazer, querer,
vontade e um sôfrego e intenso ruído de juntas, cartilagem, pele, carne e
ossos. Cabelos molhados na fronha, suor sem vergonha, a mão boba que não
sabe onde pegar, o abraço que consegue apertar, o pescoço mordido, monte
lambido, costas arranhadas, pintadas a unha, á sangue. Se fechar os olhos
escuridão, se abrir os olhos fogo e paixão. Beijo na boca, eu morri na cama
dela, pra viver pra sempre dentro dela.
-Eu te amo.
-Eu sei, também te amo. Adormecemos.
Ela estava linda, deitada ao meu lado, vestida na minha camisa de
algodão azul preferida, uma calcinha branca em medidas, sua cor preferida, a
deixando sexy. Seus cabelos longos cobria-lhe o rosto, parte espalhava-se pelo
colchão, menina linda, menina linda e sexy, desmontada em vaidades, frágil,
tão frágil, boca rosada, lábios corriam sangue, carnudos, olhos em sono.
Não queria despertá-la nem por um beijo, jamais esqueceria a
lembrança daquela madrugada de amor, meu relógio de pulso despertava as
06h00min, mas há algum tempo, eu a admirava, submisso àquela beleza até o
despertar do relógio. Levantei-me, preparei duas canecas de chá, quente, saia
vapor. Da janela do quarto o amanhecer invadia nossa privacidade com os
primeiros raios de sol, ondas calmas, chuva do dia anterior não existia mais.
Abaixei-me, fui despertando-a lentamente, ela acordou com um sorriso
tímido e um hálito metralhador, mesmo assim beijamo-nos, dei-lhe um abraço e
sai para a varanda com a caneca de chá na mão, ela levanta-se e acompanha-
me, sentamos na rede, e contemplamos a maravilha daquele sol que nascia
em Fortaleza, ficamos agarradinhos até o sol clarear toda a manhã. Estávamos
muito felizes.
A cerimônia de outorga aconteceria no finzinho da tarde, almoçamos,
deixei Naiara no salão, fui para casa, mamãe, papai e Luisa chegaram a pouco.
Minha irmã caçula cresceu bastante, eu tinha preparado uma caixa cheia de
doces para ela, mas a espertinha já tinha a encontrado e estava se deliciando.
Foi um abraço cheio de saudades e com as mãos sujas de doces.
Até o meu tio chato do sul veio, o apartamento estava lotado, meus pais
estavam tão felizes com a minha formação. Meus velhos, quanto amor sinto
por eles, a casa estava uma zona, vovó e vovô apaixonados como sempre,
primos que eu não via há anos, tios, tias, preferia que tivessem ido para um
hotel, mas a minha família sempre foi unida. Vezes exageradamente.
-Cadê ele?
Perguntei na esperança de encontrá-lo, sai correndo pelo apartamento a
sua procura. Não o encontrava, não o encontrei, entristeci-me, fui para o meu
quarto me arrumar. Sobre a cama, um terno preto, camisa em seda, linda
gravata azul, totalmente diferente do modelo que eu tinha escolhido antes.
Existia um bilhete, este perdido sobre o carpete, devia ter voado com o vento.
Dizia:
“O cara mais legal desse mundo me enche de orgulho... logo nas
primeiras palavras, nas primeiras linhas, pensei que fosse um bilhete do meu
pai, mas ele não era bom com textos, talvez mamãe, mas ela não se
expressava por meio de palavras pinceladas em linhas, reconheci a letra, sorri
pela metade e continuei a leitura...há cinco anos atrás o via partir, eu fiquei,
você me tornou um homem. Meu irmão e amigo, muito obrigado. Sua partida
foi fundamental para eu ser quem sou hoje, muito obrigado, te amo, saudades.
Ah, mandei fazer um terno igualzinho ao do baile do 9° ano, lembra? Tive que
beijar um cara no teatro, estou morrendo de saudades, acredita que eu fui
expulso do colégio de teatro? Mas eles reconsideraram, eu disse que estava
atuando, o que eu aprontei dá uma comédia daquelas na Broadway, perdão
pela minha ausência, estou em cartaz por toda a américa, nos veremos em
breve.”
Como eu queria abraçá-lo, vê-lo, ver aquele homem que se descrevia no
bilhete. O Élido que eu conhecia agora brilhava em Nova York, telinhas e
musicais da Broadway. Eu não poderia me entristecer pela sua ausência, fiquei
feliz com tantas lembranças, e curioso para saber o que ele tinha aprontado
dessa vez. Tive dificuldades com a gravata, do espelho, pude ver o reflexo dos
meus pais entrando em meu quarto.
-Que lindo, deixa eu te ajudar.
Mamãe alinhou-me a gravata e sentou-se na cama, papai veio abraçar-
me, trouxe-me um lindo anel de formatura, desenhado pela minha irmãzinha,
fomos os dois a sacada e fechamos a portinha de vidro.
-Meu filho eu estou muito feliz por você, pela sua obediência, eu sei o
quanto você queria estar em Nova York com o seu irmão, fazendo da sua arte
a maior felicidade da sua vida. Tremulou a voz e lagrimou. Obrigado por fazer
esse velho pai feliz.
Abracei-lhe, foram essas poucas vezes em que pude ver a emoção em
sua face arrancando-lhe lágrimas. Papai saiu, fiquei olhando o infinito mar,
mamãe entrou, fazia-me carinho, delicada, que saudades eu estava daquele
perfume, único. Mesmo que eu revirasse todo o mundo em busca daquela
fragrância, eu não encontraria, era única, cheiro de mãe é único.
-Olha a imensidão desse mar meu filho, ele é como o que você tem em
seu coração, uma imensidão de sonhos a serem realizados, eu sei, sei que
engenharia não é um peixe em seu mar, não são ondas, e nem desaguam em
correntes, é como uma velha barragem, travessão, ponte. Meu filho, você
cresceu, agora é homem, agora é você, a vida é sua, vá, vá, faça como esse
mar, desague, vá e corra em imensidão, mergulhe no seu mar de sonhos e os
pesque.
Choramos.
-Perdoe o Élido, ele queria estar aqui, você sabe.
-Eu sei mãe, eu entendo. Enxugou minhas lágrimas.
Meus convidados já estavam no local da cerimônia, todos assentados,
eu, papai, mamãe e Luisa, chegamos atrasados, bem atrasados. Estacionamos
e saltei, corri. A cerimônia já estava iniciando, eu ia ser um dos primeiros pela
ordem alfabética, gritei.
-Mãe, vamos, tenho que entrar.
Na porta do auditório da faculdade, tinha um cara encarando-me, alto,
forte, terno idêntico ao meu. Gritei novamente para minha mãe, ela sorriu,
parou, ficou parada, Luisa soltou da mão dela, correu, passou por mim e
abraçou o estranho.
-Não acredito, sussurrei.
Só haviam se passado cinco anos, 1865 dias exatos, era como se o
tempo não tivesse corrido tanto assim, só me toquei que o tempo realmente
tinha passado quando não reconheci o meu próprio irmão. Veio até mim com
Luisa no colo, colocou-a no chão e me deu um forte abraço. Analisou-me dos
pés a cabeça.
-O caçula cresceu, que homem heim cara, agora engenheiro.
-Sabia, sabia que estava aprontando alguma.
Totalmente emocionado com a surpresa chegada de Élido, fiz-lhe um
convite.
-Me acompanha?
-Claro que sim.
-Mib?
-Mib mais uma vez, vamos lá homem de preto.
Posicionamo-nos na porta do salão, iniciamos a marcha, todos em pé e
uma suave melodia, avistei meus pais e avós emocionados, continuei em
frente, seguindo. No meio da passarela uma mão bate em meus ombros, paro,
olho para o lado, imóvel, não estava acreditando. Era Bruninho, continuava o
gordinho da turma, Jaqueline do seu lado, sorria como nos tempos do colégio.
Vanesca também presente, perdi o equilíbrio das pernas, tremulei as
pálpebras, piscava freneticamente, tentando acreditar que realmente estavam
ali presentes, suor frio, minha pressão, quebrei o protocolo e fui abraçar meus
velhos e melhores amigos. Como tinham mudado, mas a amizade e o abraço
eram os mesmos. Naiara saiu de seu lugar e também tomou-se do nosso
abraço coletivo. A cerimonialista chamou-nos a atenção e voltamos para as
formalidades do evento.
Ao subir no palco para receber meu diploma, pude ver a felicidade dos
meus amigos, e como eram lindos. Não falo só pelo fato de serem meus
amigos, mas eram lindos, realmente, todos. Mandei um grande beijo de lá de
cima enquanto me saldavam em palmas. Ao fim da cerimônia, subi novamente
ao palco para fazer o discurso do orador, falei sobre caminhos, caminhos de
nossas vidas.
“Temos vários caminhos nas mãos, apenas um é o certo, apenas um
nos leva a felicidade. Ao abrir as mãos percebemos 3 caminhos principais, em
forma de M. Um nos leva para o errado, para o sem saída, o outro caminho
para o bem, para o amor. O 3º caminho que fica no meio dos dois é um atalho,
este pode ser usado para se chegar mais rápido ao caminho certo ou ao
errado. E existe também inúmeros outros caminhos paralelos, esses nos
conduz ao novo, novas emoções, novas diversões, vidas, novos lugares,
horizontes, novos ventos, acalentos, amores, novas aventuras, emoções,
confusões, novas pessoas, religiões, conceitos, o novo, o novo a ser
desbravado. Nesses caminhos paralelos, existem também os caminhos velhos,
que nos dirige ao passado, á saudade, nostalgia, pretérito perfeito ou
imperfeito. Nos leva a infância, juventude, nos leva a velhice, aos cabelos
brancos, aos velhos amigos, ao museu, velhas trilhas empoeiradas, com limo,
lisas, azedo como limões, doces como laranjas, caminhos que nos levam ao
mesmo lugar, ao início.
-x-
Meu apartamento estava cheio, fizemos uma comemoração, reunimos
as duas famílias, a minha e a de Naiara, eram cerca de 70 pessoas. Faziam
planos para o meu futuro e de Naiara, indagando-nos se estávamos
namorando, que carreira seguiríamos, se íamos montar a nossa construtora,
aquele papo chato, cheio de perguntas de pessoas mais velhas. Simplesmente
saíamos de todas essas conversas, afinal, eu e meus amigos estávamos
reunidos novamente depois de anos.
-Que frio.
-Quanto tempo.
-Quanto tempo.
-Eu? Meu voo é cedinho amanhã de manhã, não posso ficar fora muito
tempo, cheia de responsabilidades, afazeres, dei uma escapadinha.
-Não acredito, poxa. Me esforcei toda para reunir todos nós, fica mais
um dia.
-x-
Estávamos na minha casa, conversávamos coisas aleatórias, eu sendo
zoado por estar vestido em um terninho roxo. Estava sentado, fazia cafuné em
Naiara que estava próxima de mim, Bruninho brincava na cadeira giratória, e o
resto do pessoal estava no carpete. Pedimos pizza, era comum ter todos os
anos pegadinhas, na verdade, brincadeiras bem pesadas no baile dos
veteranos, não arriscaríamos, no ano anterior colocaram laxante nas bebidas,
quase ninguém escapou. Ainda na minha casa, durante o pit stop, começamos
a falar de coisas bizarras que já tínhamos feito, ou de coisas que tínhamos
curiosidade em fazer. Coisas tão simples.
-Agora?
-Posso levá-los.
-Mas como?
-Ué, na carroça.
-Vocês fazem belos casais, obrigado filhos pela companhia dessa noite.
Aquele baile tinha sido tão especial. Vanesca tinha vencido a guerra e
foram tantas batalhas na vida dela, cada uma superada, uma grande guerreira.
Nossa maior vontade era aproveitar cada instante ao lado de nossos amigos,
celebrar a vida. Celebrar a ressureição. De fato, Vanesca tinha ressuscitado.
Foi cômico, diferente ter que dividir a pista de dança com a minha mãe,
e foi difícil saber quem de nóis dois dançava de forma mais ridícula. Ela me
desafiou, digamos que deu empate técnico, até hoje ela se gaba pela
performance.
Vanesca estava tão linda, bailando pelo salão de mãos dadas com o
Bruninho. Era inacreditável, eles discutiam pelas mais variadas besteiras, e no
mesmo instante estavam aos beijos. Subiram juntos para receberem o título de
veteranos daquele ano. Foi tão merecido. O quanto Bruninho se empenhou pra
que Vanesca estivesse alí, na sua frente, com um sorriso no rosto, brilho de
certeza no olhar. E tudo, tudo o que ele tinha feito por ela, por todos nós, valeu
a pena.
“Eu não preciso de uma coroa de princesa pra me sentir tão especial. Eu
não preciso de um título de veterana do ano pra me sentir amada e querida. Eu
já tenho tantas coisas, eu tenho tudo, eu tenho todos vocês. E agora eu tenho
o amor do meu lado”.
“Você tem razão, coroa nenhuma te fará especial. Você nem combina
com coroas. Mas tenho algo que te deixará mais linda, muito mais linda.”
Bruninho tirou um lenço do bolso, delicadamente ornou a cabeça de
Vanesca. Era um lenço de cetim preto, cheio de florezinhas. Tinha até cheiro
de jardim. Vanesca o olhou nos olhos, coçou o nariz, ajeitou-lhe a gravata
borboleta, que tinha o mesmo tom de seu lenço de florezinhas e o beijou.
-Sei.
Vanesca usou a cor mais improvável de todas, era um laranja
florescente. Um croped de mangas ciganinha e uma calça baloné, toda em
laranja, imensas argolas, pulseiras e anéis por todos os dedos. No cabelo um
lenço branco em flores. Continuava com a sua beleza de sempre, ainda mais
viva, brincalhona e resmungona com o Bruninho.
- Você parece uma abóbora falante
- E você um abacate estragado.
- Um abacate estiloso.
Nos posicionamos pra nossa tradicional fotografia na porta do colégio.
Quanta emoção ainda nos aguardava. Nossas vestes tinha um significado
particular. Único. Revelava nossas essências, nossos sentimentos e
personalidades. Nos descrevia como a sinopse de um filme, claro que uma
ótima comédia. Era além de um cardápio de pizzaria ou letras pequenas de
bula de remédio.
Cada cor retratava quem éramos de verdade, éramos como papéis a
serem escritos, quadros a serem pintados. Um lindo arco íris pra unir todas as
diferenças do mundo. Para a igualdade se sobressair, a liberdade ser a grande
estrela da noite, de sempre. Nossa amizade era uma lição de vida, sempre foi,
pra cada dia de vida nessa terra. Se eu pudesse escolher, viveria pra sempre
em forma de cor, só pra colorir as pessoas, marcar. Ser história contada, pra
sempre. Mas só valeria a pena se fosse aquarela com os meus amigos mais
coloridos do universo.
Cheios de espírito, desejo de vontade, força, amor pelas artes e pelo
artístico, pela natureza. Reluzentes da luz e do sol, vida, cheios de cura e
poder transpirando em cada poro, fogo e vivacidade na alma. Essa sim, seria a
aquarela perfeita pra colorir o mundo inteiro, tirar as pessoas da prisão do preto
e branco. Do básico de sempre.
Minutos antes da escolha dos Veteranos anos 70, a festa parou, todos
pararam, o som e o pisca frenético da iluminação. Da porta de entrada descia
alguns degraus até o salão principal alguém surpreendente, vinha lentamente
com um olhar de vingança, sorriso malicioso. Alguém que jamais tinha sido
notada antes, e a medida em que aproximava-se, abria-se um grande corredor
humano para que ela pudesse desfilar, ser notada, vestia azul celeste, a
encarnação do próprio céu em nosso meio. Como era fabulosa, digna,
deslumbrante. Alguns se pisoteavam para chegar mais próximo, ouviam –se
sussurros e cochichos de “Nossa...quem é ela?”.
Quem era aquela, alguém não estranho. Chegou até o centro do salão
com o seu imponente vestido azul celeste, aquele tinha cheiro, doce como
baunilha. O refletor a iluminava, ela sorria sem ao menos abrir a boca, as luzes
começaram a tremular, iluminação de boate, som, todos voltaram a dançar
conforme as músicas. Tempos depois alguém falava ao microfone cortando a
música, era o anúncio dos Veteranos do ano, dois refletores maiores bailavam
pelo salão e focava nas pessoas, uma luz baixa e música de suspense,
estavam todos ansiosos. A luz focou em mim, quase me cega, eu não tirava os
olhos daquela garota tão linda, cabelos Chanel, negros, me cutucavam.
-O quê?
-Você, é você.
-x-
-E o Balé?
Bailarina refém, a cada nota mais grave seu corpo contorcia-se, parecia
vezes que poderia dar-se um nó, nas notas mais baixas, uma graça soberba, o
make lavava com as lágrimas toda a sua face, chegava a ser assustador. Ao
final três batidas fortes de um tambor reproduzia o seu coração, um enfarte,
seguida de outras pequenas batidas, num piscar ou dois, as cortinas fechavam-
se, foi exausto aquele balé. Como ela poderia ousar abandonar o balé, era o
balé que não poderia viver sem ela.
-Lembro.
-Eu lembro.
-Não dá, não dá, tenho que estar no Rio amanhã cedo.
-Para onde?
-Pra qualquer lugar, desde que seja com você.
-X-
Ao experimentar narguilé, na festa do pijama, na casa de Vanesca,
engasguei-me na primeira tragada, decidi naquela hora nunca mais colocar um
cigarro na boca. Élido, Vanesca e Bruninho continuaram, reversavam-se e até
chegavam a disputar o narguilé. Só pararam quando a mãe de Vanesca entrou
de surpresa no quarto os flagrando, pensei que viria uma bronca, talvez esse o
motivo de Vanesca ser uma pessoa sem limites.
-Eu?
-Sim, aliás, vocês podem vir, vai fazer um bem enorme em cada um,
garanto.
-Tio, tio, olha, consegui mais voluntários para essa noite, olha quanta
gente, conseguimos alguns cobertores também. Pães, podemos servir com a
sopa.
Não tinha a menor ideia de onde iríamos, passou pela minha cabeça
algum hospital público, rodoviária, ou viaduto. Naiara sempre me falava desses
lugares com amor e não com nojo ou desprezo. A face dela dentro da van
corada, fazia um frio significante, e ainda estávamos de pijamas, estávamos
tão empolgados com a novidade do voluntariado, que nem percebemos nossas
roupas.
Ainda dentro daquela van, eu observava pelo vidro diversas faces, sujas,
olhos vermelhos, rostos sem expressões e expectativas, apenas rostos
contatos em planilhas ou estatísticas. O que eu fazia ali, o porquê de eu estar
ali, eu tinha conforto, casa, pais, colégio, eu tinha tudo, mais que eles, que
contentavam-se com um pedaço de papelão, eu tinha tudo, muito mais,
aparentemente, mas eles tinham mais. Anjos como Naiara que os amava, que
não os via como escuridão, tinham, o amor de pouquíssimas pessoas, raras,
escarças, até aquele dia eu não tinha o amor ao próximo.
-Preparado?
-Não.
-Pão?
-Mãe.
Fomos levados por ela até uma estreita portinha, dando direto nos
bastidores. Passos a esquerda estávamos a frente dos camarins principais,
como me deu vontade de girar aquela maçaneta e entrar. Escandalosamente a
porta abre-se, o diretor do espetáculo passa desesperado, a senhorinha o
segue sempre sorridente e pergunta o que houve. O ator principal estava sem
voz, rouco e o cara do elenco de apoio tinha sido dispensado e disse aos
berros ao telefone que não voltaria mais para aquele palco, azar o dele. Já
estávamos no camarim, Élido sendo maquiado e eu o ajudando passando o
texto, aconteceu tudo de uma hora pra outra, Élido estava substituindo o ator
da companhia.
-Aconteceu.
-Claro.
-Sim podemos.
Meu pai nunca gostou da ideia do filho seguir a carreira artística, algo
tão instável, inseguro e sem garantias, mas mesmo assim lá fomos nós. Aquela
tarde no aeroporto, eu podia ver o olhar de preocupação, reprovação do meu
pai, mas eu tinha que ir, tinha que descobrir o que o mundo tinha a me
oferecer. Élido não desgrudava de Jaqueline, tinham muitos sonhos juntos, e
uma saudade enorme que começava a despertar a cada minuto que o
embarque aproximava-se.
-Vamos.
-Aqui estamos. Suspirei e calei-me. Meu telefone toca, era papai, escutei
tudo silenciosamente, desliguei, meu olhar perdeu o foco, queria mais que
chocolate quente, quem sabe aqueles aconchegos de uma varanda mineira no
meio do mundo, colo de mãe, colo de mãe resolveria.
-Obrigado filho.
-Fica?
-Olha a chuva.
-X-
-Você ainda não contou a ele?
-Não.
-Apenas escove.
-Não entendo.
-Nem eu.
-Onde?
-Eu estava lá, ele abraçava uma garota com tanta intimidade, desejo, dei
meia volta, fui fazer o meu teste. Estava muito assustada, confusa e enjoada.
Subi no palco pra me apresentar, o número da bailarina esquisofrênica, meus
pés gritavam no assoalho do palco, os scooters se levantaram, antes deu
terminar, e fui para o hotel. No dia posterior ele estava lá, não me viu, com a
mesma garota, saiam de um bar.
Sorridentes, alegres e felizes, enjoei, vomitei, meu celular tocou e eu
atendi, era o pessoal do teste, me chamavam. Queriam que eu repetisse o
número, tentei e não consegui, só chorava e gritava por dentro, senti-me traída,
sozinha, corri e saí dali. Voltei para o Brasil, queria sumir dentro de mim. Aí
começaram os desmaios, enjoos, sono, fome. “Jaqueline você está gravida?”
“Eu grávida?”.
Sim, descobri a gravidez aos 17 anos, meu namorado no exterior, pais
conservadores, como seria, balé, aborto? Não, chorei em semanas seguidas.
Conheci o Rodrigo, foi tudo rápido, o casamento, o parto, dei a luz, mudança
para o Rio de Janeiro, deixei o balé, a dança, a vida planejada. A minha vida
agora era Mariá, toda dela. Ele jamais vai me perdoar, nunca vai me perdoar.
-Ele vai te perdoar, a vida é injusta minha querida, você é tão jovem e
linda, tão bela, não borre sua maquiagem por favor.
-X-
Cheguei de Nova York exausto, tudo que eu precisava era de um bom
banho, cama aconchegante e horas e horas de sono pela frente. Meus pais e
Luisa foram me buscar em Congonhas, como eu estava com saudades.
Parecia que eu estava a gerações, em outras épocas, e não que tinha passado
apenas um ano, era muita saudade. Nem desfiz as malas, entrei na ducha
ligeiro e fui descansar, dormi a manhã inteira. Mamãe entrou em meu quarto e
desperto-me para o almoço, comidinha caseira, cheirava de longe, vi a infância
metros de distância. Procurava meus chinelos, meus antigos chinelos, olhei
para baixo da cama.
“Partir? Partir para onde? Para um novo lugar? Partir para quê? Para se
conhecer? Renascer, para renascer, partir para poder viver? Partindo foi feliz?
Conheceu a quem? Novos amigos? Amores? Partir...partiu...Quando partimos
deixamos alguém, que terá dentro de si o sentimento da espera, da volta,
alguém que se alegrará ao lembrar de algo bom, alguém em choro ao
relembrar a partida, a alguém a se perguntar o porquê da partida. Partidas são
sempre dolorosas, queimam, nunca cicatrizam, deixam um grande vazio,
partidas são inimigas da vida.
Não dancei com ele a valsa de 15 anos, não pode ser meu porto seguro,
porto inseguro, sem porto, sem cás, sem marina ou aeroporto, seja lá o que for.
Anônimo, desconhecido, por onde andava todos esses anos, o que fazia, quem
era ele? Uma fotografia antiga, era como ele resumia-se na minha vida. Minha
formatura na faculdade, meu casamento, será que ele vai estar lá? Pelo menos
dessa vez. Eu não sei.
Ele poderia fechar a porta, abraçá-la com o barrigão e ficar, ficar para a
vida dele, criar a filha, ele poderia ficar, ficar pra o natal, para o aniversário da
filha, quantas lembranças e histórias teriam, mas decidiu partir, partiu.
Eu o encontrei, era ele, magro, grisalho, rouco, quase sem voz, era ele,
claro que era, mesmo olhar e expressão da fotografia, era ele. Aquele “Você
cresceu” foi revelador, a entrega, redenção, a volta. Vi ele acamado, acabado.
Precisando de ajuda, da ajuda da filha dele. Ele é o meu pai, é ele. Finalmente
o encontrei, finalmente.”
-Oi.
-Oi.
-Estava com saudades. Ele mudo, ela tocou-lhe nos cabelos dele.
Ele abriu largamente o sorriso e perguntou quem era Mariá, ela calou-se
e o deixou sozinho novamente, corria em fuga, o salto quebra, tropeça, rala os
joelhos e ele a ajuda levantar.
-Quem é Mariá?
-Vou adorar conhecer Mariá, se ela tem o meu sorriso, ela deve ter os
seus olhos. Ele tirou as sandálias dela e as segurou, a apoiou nos ombros e
começaram a andar dialogando.
-X-
Bruninho o mais idiota dos amigos, era apaixonado pela Vanesca, mas a
sua personalidade nunca a conquistaria, apesar dos dois terem perdido a
virgindade no colégio. Eu poderia resumir em poucas linhas que Bruninho
insistiu tanto, tanto que acabou conquistando Vanesca. E o que era um casal
improvável acabou rolando, diferente do que todos esperavam com Élido e
Jaqueline. Poderia contar em um parágrafo que Bruninho conquistou Vanesca,
namoraram e que viveram felizes para sempre, mas não seria interessante e
diminuiria as páginas desse livro.
As seções de quimioterapia nos deixavam ainda mais unidos, e
cansados ao final do dia, mas sempre tínhamos uma disposição extra, e era
extraordinária a energia de Élido, Vanesca e principalmente Bruninho em fazer
piadas de tudo. Nem parecíamos que lutávamos contra o câncer, acabava
contagiando a todos os outros pacientes, alguns ficavam impacientes com
tanto senso de humor. Nessa caminhada conhecemos algumas histórias, vimos
ali naqueles corredores pessoas desabarem, perderem as forças e falecer. A
autoestima de Vanesca foi fundamental para a sua recuperação.
Bruninho nesse período acabou se aproximando muito mais de Vanesca
que todos os outros, e sempre que não podíamos a acompanhar, os dois iam
sozinhos. Era bastante irritante os dois juntos no tempo do colégio, acabavam
sempre brigando, discutindo, os opostos não se atraiam no caso deles. Mas no
fundo os dois eram amigos, grandes amigos, e só aquela situação para colocar
à tona os seus laços afetivos.
Depois de uma das seções ele veio falar comigo, estava bem cansado,
saímos do colégio e viemos direto para o hospital, ele tinha um leve sorriso de
canto e me interrogou.
-Alê o que é o amor? Não, não precisa responder. Cortou-me.
Ele olhava para Vanesca e sua alma chorava, gritava de dor, ele queria
a cura para ela, queria que ela aguentasse, suportasse e superasse, ele sabia
que fazendo piadas sem graças a animava de certa forma, mas ficava
preocupado todas as vezes que as seções acabavam.
Ele ficava imaginando o depois, a continuidade, da porta pra rua, ficava
imaginando como a Vanesca estava do hospital pra fora, como ela estava na
casa dela, como ela estaria sozinha. Quando ele não estava por perto, ele não
poderia vigiá-la, ficar com ela 24 horas, eles eram apenas amigos, e muitos
jovens. Ele se preocupava, era um grande cuidado com ela diário, “como você
está?” “dormiu bem?’’. Ele sempre estava ali, por perto, sendo uma base, um
porto seguro, sendo um cara legal e não apenas o nosso amigo idiota.
Vanesca foi se acostumando com a ideia de ter sempre o Bruninho por
perto, e nem ligava mais quando ele soltava seus gazes de Iroxima, e
gargalhava até arrotar. Matavam aulas e iam ao cinema, e sempre que ela
precisava chorar quietinha, derramar suas lágrimas no colo de alguém sem que
fizessem perguntas, lá estava ele.
Lá estava ele, presente, ali, ele estava com ela, segurando a sua mão,
até nos dias que ela tinha crise respiratória. Ele fez uma grande campanha de
arrecadação de bolsas de sangue e plaquetas, desenvolvemos um grande
projeto sobre células troncos na feira de ciências. Lá estava ele, sorrindo, ele
sempre sorria, para tudo, para a vida, para a felicidade, até para dor, seu
remédio era o sorriso.
E que menino cheio de luz, era confortante estar perto dele, se ele não
tinha conselhos maduros, mas ele tinha um gostoso abraço e a mania de
apalpar a nossa bunda no final. E se ele estivesse calado um bom tempo sem
fazer alguma piadinha, pensando na vida, podia esperar dele uma grande
atitude, que cara, que amigo, o nosso mascote.
Levava chocolates escondido para Vanesca quando ela estava internada
em meio as crises, até brigava como um pai para ela alimentar-se, ele esteve
lá, presente, dando presentes, sendo presente. E todos os dias era como se
fosse o último, ele tinha medo que fosse o último, tinha medo do dia seguinte
não chegar, ou chegar e ela não estar mais com a gente, ele tinha esse medo,
da perda, do vazio, da solidão, até de bicho papão, e olha que ele já tinha 16
anos.
Tinha medo do escuro, de comerem o último pedaço de bolo da
geladeira, de acabar o pudim ou perder a hora do lanche, mas o maior medo
dele era perdê-la, perder Vanesca, perder a vida de Vanesca para o câncer,
mas ele nunca deixou o medo vencê-lo. Nunca deixou o medo perceber que
ele tinha medo, nunca deixou as pessoas perceberem, não se fez refém do
medo.
Todos os dias ele a levava uma florzinha, diferentes florezinhas, ela não
gostava, mas sabia que era um gesto tão gentil, um gesto tão nobre e cheio de
amor, que ela foi se acostumando, foi se apegando, perdendo a dureza do
coração. E a presença dele no hospital, no colégio, na vida dela tornou-se
importante, tornou-se essencial. E ela começou a interrogar-se, questionar-se
até que ponto aquele sentimento todo a levaria. Deu de ombros para si mesma,
permitiu-se, sem saber o dia de amanhã, permitiu-se cultivar pouco a pouco
dentro de si, a vida, ela estava iluminada por ele, eles sorriam juntos, e era tão
lindo e inspirador.
-Ele não vem hoje?
-Ele não pode vir.
Quando ele não aparecia na porta da clínica com uma florzinha, quando
ele não aparecia no colégio, quando ele não estava lá, ela entristecia-se, era
como um botão ao meio dia, fechava-se, virava para o outro lado do leito e
permanecia assim o dia inteiro. Ela apegou-se, relutava dentro de si por um
tempo, mas abriu-se e admitiu em segredo, em seu diário, provavelmente, que
estava o amando, que ele a fazia tão bem. Era notório, era perceptível que ele
a fazia bem, melhor, era como gotas de renovo diárias, ingredientes de cura, o
amor, o amor nascia para curar.
-Pensei que não viria hoje.
- Uma florzinha, pega.
Eles abraçavam-se, e permaneciam o dia todo de mãos dadas até o fim
da quimioterapia, e quando os cabelos dela começaram a cair em grandes
proporções ele levou um lenço florido em uma caixinha, ela detestava flores,
disse que preferia um de caveira, eles sorriram. O lenço de florezinhas
coloridas combinava mais com ela, com seus olhos claros e a pele rosadinha
frágil.
Quando ela piorou e parecia que partiria, ele andava sério, sessaram-se
os sorrisos, foi um tempo de oração, oração constante, fé, bem no inverno, ela
estava em coma, e ele sabia que ela tinha medo da chuva e de todo aquele
ritual dos relâmpagos, queria estar lá, segurando a sua mão, mas só podia ficar
até a janela, até o vidro. Ele imaginava ela em sono profundo, como a Bela que
aguardava o beijo do príncipe para despertar, ele queria que ela acordasse, e
ela também queria acordar, viver, abrir seus olhos azuis, e olhar nos dele, ela
saiu de perigo, mas não abria os olhos, não tinha expressões, imóvel, mas
escutava.
Ele ali, sem saber, sem imaginar que ela ouvia atentamente suas
histórias, sua rotina do colégio, o gol que ele fez na educação física. Ela ouvia
tudo, sentia tudo, ouviu ele dizer bem pertinho do ouvido dela que a amava,
sentiu levemente seus lábios sendo molhados pelos dele, que atrevimento,
mas ela no fundo de um coma, ele na esperança, nós na peleja, em orações.
Finalmente o renovo, a graça, o milagre, finalmente forças para viver, para
sonhar e novos dias, dias de cura e sorrisos, viagens, formaturas, festas,
finalmente ela poderia viver conosco novamente, finalmente.
-Eu sonhei enquanto estava no coma, faz tanto tempo, mas eu lembro.
- O que você sonhou?
-Eu ouvi alguém dizendo que me amava em seguida um beijo.
Ele a beijou de surpresa tinha que ser ali, naquele momento, naquela
hora, ou ele se calaria na sua timidez e jamais se declararia outra vez. Nem
precisou dizer nada, não foi necessário, foi um beijo tão correspondido, tão
verdadeiro, que dali em diante sempre juntos, juntos.
Ele a respeitava esperou ela recupera-se, foi paciente, e finalmente
quando ela se livrou do câncer, estavam prontos, prontos e livres para amar,
para outra vez, para namorarem, e namoraram, noivaram, casaram-se.
Vanesca aprendeu a conviver com a idiotice de Bruninho, Bruninho com o
temperamento dela, mas se os seus gostos eram diferentes, o amor era igual,
paciente, insistente e maior, maior que eles mesmos.
Olhando eles dançarem na minha formatura, sorridentes como sempre,
uma química, paro, olho nos olhos de minha amada Naiara e digo:
-O Amor existe, existe sim. Nos beijamos.
Eu e Naiara fomos nos despedir de nossos amigos em um delicioso café
da manhã, estávamos inteiramente felizes, muito felizes. Élido iria conhecer a
filhinha, eu ganhei uma linda sobrinha, e a presença dos meus melhores
amigos. Eles sempre estariam presentes na minha vida, mesmo que os anos
se passassem. Gargalhávamos, gargalhávamos bastante, Bruninho continuava
engraçado, um pouco de sua idiotice do tempo do colégio sobreviveu, e eu
nem vou falar da parte da gula.
Para mim foi uma grande surpresa descobrir que o Salvadore estava
consumindo drogas, e como isso tinha afetado a sua vida tão negativamente.
Um cara tão inteligente e família, não sei até que ponto o desespero pela
entrega do TCC ou outros problemas pessoais o levaram para aquele caminho.
Eu queria imputar certa culpa a mim, é certo que eu tinha me afastado dele
gradativamente assim que Naiara reapareceu na minha vida, mas eu não
percebi. Naiara não deixou aquela culpa pesar sobre minhas costas, ele era
consciente do que estava fazendo.
-Entra amor.
Naiara estava certa, era ele, era ele o cara que ela tinha visto discutindo
com uma garota durante uma festa, parecia estar cobrando um certa dívida. A
menina só conseguia chorar, dando-lhe desculpas. No dia seguinte ela
aparecia morta misteriosamente, em uma das salas da faculdade, antes da
aula inaugural, vítima de overdose.
-x-
Só podia ser mais uma piadinha, uma brincadeira para deixar o café da
manhã de 02h00min da tarde mais descontraído e divertido, mas ele falava
sério. Sempre usava brincadeiras para falar sério, gargalhei, gargalhamos, ele
cochichou nos meus ouvidos, perguntei a Bruninho:
-Eu esperava esse pedido do Srº Alexandre Feshina, mas já que ele não
se apressa, eu aceito. Bruninho cochichou nos ouvidos de Naiara, os dois riram
como adolescentes. Naiara perguntou a Vanesca:
-Quer se casar comigo?
FIM.
Agradecimentos
A amiga Jaqueline Jodan pelo incentivo a escrever esse livro.
As amigas Élida Ferreira, Jaqueline Jodan e Naiara de Castro, e ao
Professor Alexandre Scherer por me emprestarem os seus nomes para os
meus personagens.
Capa final
A chuva que caía sobre os meus ombros, gotinhas de saudade, gotinhas
de infância, gotinhas de chuva que passavam pela adolescência e paravam
aqui, na vida adulta, me nostalgiando, lembrando, causando saudades.
Aqueles amigos, aqueles saudosos amigos, o gordinho, o bombeiro, a modelo,
a bailarina e a menina que sem querer encheu os meus olhos e o meu coração
de amor.
O tempo, a distância, a convivência, a loucura, a amizade, aqueles
amigos que todo mundo tem, ou deveria ter, aqueles que vieram dos céus,
presente dos céus, amigos celestiais, amigos pra dor, para as gargalhadas.
Num nascer do sol, amigos de mãos dadas, de colégio, amigos, para sempre
meus amigos.