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Universidade Federal do Paraná

História Contemporânea II - 2º semestre/2022


Análise de fonte
Discentes: Ana Lucia Rodrigues
Cristina Dietrich Machowski Martins
Fernanda Yumi Raddi Okamoto
Robertha Costa

Imperialismo, racismo e sabão

A escolha das fontes acima se deu em razão da utilização do sabão, no fim do século
XVIII até o fim do século XIX, pelo imperialismo, especialmente britânico, como ferramenta
de domínio imperial, servindo como uma metáfora para a transmissão da pureza aos
considerados selvagens. As teorias científicas racializantes serviram como instrumento de
fomento para o imperialismo, o que influenciou diretamente na ideia de que a Grã-Bretanha
possuía uma superioridade evolutiva. Dessa forma, segundo Anne McClintock, o sabão Pears
e suas campanhas propagandísticas foram um expoente dessa nova fase cultural mercantilista
do Império Britânico — que dá forma também ao racismo mercantil — e de sua “missão
civilizadora”1.
Essa nova cultura mercantil de propaganda forjou uma confusão entre o privado e o
público, trazendo o âmbito doméstico para ambientes sociais, onde passou a estampar signos
íntimos da vida (como é o caso da higiene) em quadros de anúncios. Essas campanhas
também imprimiram cenas do domínio imperial em produtos usados no ambiente do lar,
como em caixas de fósforo, sabão, garrafas de whisky, entre outros. Para além, a propaganda
vitoriana também serviu como instrumento para o antagonismo racial, o que fica explícito
quando analisamos os anúncios da marca Pears, que comunicavam muito bem a ideia de
higiene racial (trazendo o aspecto da pureza da “raça” branca em oposição à “raça” negra) e
do progresso imperial (com o comum choque visual entre “selvagem” versus “civilizado”)2.
É nesse sentido que McClintock ressalta a diferença entre o racismo científico e
racismo mercantil, no qual o primeiro ficava restrito às revistas antropológicas, médicas e
científicas, acessadas somente pela elite letrada, enquanto o segundo possibilitou expandir e

1
MCCLINTOCK, Anne. “O império do sabonete – racismo mercantil e propaganda imperial”. In: Couro
Imperial - raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas: Ed. Unicamp, 2010.
2
Ibid.
trazer maior visibilidade ao racismo evolucionista em uma escala até então inimaginada,
atingindo um público mais amplo e diverso. Dessa forma, ainda de acordo com a autora:
A história do sabão revela que o fetichismo, longe de ser uma propensão
quintessencial africana, como afirmava a antropologia do século XIX, era central
para a modernidade industrial, habitando e mediando as incertas zonas liminares
entre domesticidade e indústria, metrópole e império.3

A propaganda foi o elemento essencial utilizado pelo espetáculo mercantil do período,


considerando que antes de 1851 a prática era quase inexistente. Com o objetivo de
impulsionar o produto, surgiu uma nova espécie de publicitários/empreendedores que
exerceram um papel vital na expansão imperial do comércio exterior: eram responsáveis por
materializar a salvação moral e econômica da “grande sujeira” britânica e simbolizar a
encarnação mágica do ingrediente espiritual da própria missão imperial. Logo, a barra de
sabão não representava somente a grandeza do império britânico, mas também uma certa
iluminação espiritual4.
Como explica McClintock, o fascínio da classe média vitoriana com corpos limpos e
brancos possibilitou o fortalecimento dos domínios do ritual e do fetiche. Tendo em vista que
uma pele queimada de sol por trabalho manual era o estigma visível de uma classe marcada
pelo desfavor divino, fez-se necessário o surgimento de uma tecnologia de purificação social
intrinsecamente ligada à semiótica do racismo imperial e o enegrecimento da classe. O sabão
prometia a salvação e a regeneração espiritual através do consumo da mercadoria, por isso
tamanha importância de investir no espaço estético em prol desse culto comercial dentro do
império5.
A marca Pears, por sua vez, foi fundada em 1789 quando Andrew Pears, filho de
fazendeiro, abriu uma barbearia em Londres e começou a fabricar e vender os pós, cremes e
dentifrícios. Após sua morte, quem assumiu seu posto foi seu neto Francis, que se tornou
sócio do genro Thomas J. Barrat, figura que viria a se tornar o “pai da propaganda” após
revolucionar a marca a partir de um planejamento de uma série de campanhas e propagandas.
Esse fator, além de inaugurar uma nova era da propaganda, fez com que Barrat ganhasse
fama duradoura na iconografia familiar da descendência masculina. De acordo com
McClintock, “O sabão encontrou, assim, seu destino industrial pela mediação do parentesco
doméstico e a preocupação peculiarmente vitoriana com o patrimônio”6.

3
Ibid., p. 311.
4
Ibid.
5
Ibid.
6
Ibid., p. 314-315.
Imagem 1

“I have found PEARS’ SOAP matchless for the Hands and Complexion.”
Achei o PEARS’ SOAP incomparável para as Mãos e a Pele. (tradução nossa)
Sem autor. Anúncio da marca Pears’ Soap. Fonte:
https://apreenderhistoria.blogspot.com/2015/02/documentos-para-analise-discursos.html.

A Figura 1 é uma das propagandas produzidas pela Pears, que reúne diversos dos
elementos acima discutidos. Na imagem, vê-se duas cenas sequenciais, ambientadas em um
banheiro e protagonizadas por duas crianças: um menino branco e um menino negro. Na
primeira imagem, o menino negro está despido, dentro da banheira, olhando impressionado
para a água. Ao seu lado, o garoto branco, que usa roupas coloridas e um avental branco,
limpo, apresenta-lhe uma barra de sabonete. Na sequência, o menino negro está sentado ao
lado da banheira, parcialmente coberto por uma toalha, e, à sua frente, o menino branco
segura um espelho. Com uma expressão de feliz surpresa, o menino negro vê que somente a
pele de seu rosto agora é escura: o restante de seu corpo, que fora lavado na banheira, tem
agora a mesma pele clara do menino que lhe acompanha.
As frases ao redor completam a propaganda do sabonete que, além de “puro,
perfumado, e durável”, é “vendido em todo lugar”. Sem as frases, a propaganda talvez não
fosse tão clara, afinal, o produto ali anunciado aparece em somente uma das imagens, sem
grande destaque. Não se vê o menino lavando-se, nem mesmo a espuma do sabão na água da
banheira. O que está mais evidentemente expresso ali é o processo de embranquecimento e,
conjuntamente, de civilização. O menino branco, gentilmente, entrega ao ingênuo menino
negro a pequena barra de sabão, oferecendo-lhe a oportunidade de “limpar-se” e, assim,
igualar-se, de corpo e espírito, ao ideal: sua pele branca, seus cabelos cuidadosamene
penteados, suas roupas imaculadas. O menino negro, por sua vez, participa com
espontaneidade e admiração, surpreendendo-se alegremente ao ver sua nova aparência — sua
porta de entrada à civilização ocidental.
Ambas as figuras carregam contradições em sua representação. O menino negro que,
mesmo “limpo” pelo sabão imperial, continua com a pele do rosto escura, com seus cabelos
crespos e seus traços faciais caricatos. Seu embranquecimento não é — e nunca será —
completo, pois sua origem, sua “selvageria”, jamais será plenamente corrigida. O menino
branco, por outro lado, é o ideal irreal da Inglaterra imperialista, que ocupa uma posição de
trabalhador, reiterada por seu avental, mas mantém, também, a aparência de meticulosa
perfeição, limpa e alinhada.
Uma versão similar desta propaganda foi analisada por McClintock, junto a outras
imagens de marcas diferentes de sabão. Sobre a manutenção da pele escura do rosto do
menino negro, a autora afirma: “No espelho vitoriano, o menino negro testemunha seu
destino predeterminado de metamorfose imperial, mas continua um híbrido racial passivo,
parte branco, parte negro, levado à beira da civilização pelos fetiches mercantis gêmeos do
sabão e do espelho.”7. Entre estes fetiches mencionados por McClintock, que eram
mobilizados cotidianamente na publicidade das marcas de sabão, estavam, além do espelho e
do sabão, o avental branco — também presente na imagem abordada — e o macaco.

7
Ibid. pp. 316-318.
Aplicação didática

Procurando estimular uma análise crítica de fontes históricas, especialmente


imagéticas (nesse caso, propagandas), a compreensão do contexto histórico do Imperialismo,
bem como seus reflexos e o entendimento do caráter econômico que envolve este processo,
seriam propostas aulas práticas em que ocorresse, primeiramente, a circulação das fontes
entre os alunos. Eles seriam orientados a anotar elementos que mais chamaram sua atenção e,
em seguida, seria feita uma breve discussão a partir de questionamentos como “Quem está
sendo representado nestas imagens?”, “Qual o objetivo delas?”, entre outras, que abordam o
entendimento tido com o primeiro contato. Tendo sido feita esta primeira conversa, o
professor pode introduzir a discussão sobre Imperialismo e contextualizar as fontes.
Em seguida, seria feita uma exposição do tema, tendo como norte a discussão
estabelecida por Eric Hobsbawm, objetivando a compreensão dos alunos no que tange às
motivações e características do processo imperialista, tendo em vista que o autor o define
enquanto “uma nova fase de desenvolvimento capitalista”8. Este tema é de fundamental
importância para compreender características sociais, políticas, culturais e econômicas que a
expansão neocolonial introduziu em todo o globo, mais especificamente nos locais tidos
como “subdesenvolvidos”.
Ressaltamos que seria importante que a exposição também apresente e discuta as
ideias eugenistas que surgiram no período e contribuíram para a prerrogativa imperial. A
partir disso, seria feita uma análise mais aprofundada das propagandas dando destaque a
elementos como o sabão, símbolo proporcionador de “civilização”; a utilização de ambientes
domésticos como ferramentas de pureza; o destaque para a cor branca; o retrato dos povos
subalternizados de maneira inferior e animalesca, etc.
Por fim, seria reservado um período mais longo da próxima aula para que o debate
com os alunos seja retomado e seja dada a eles a oportunidade de compartilharem, agora
tendo conhecimento do contexto das fontes, suas percepções a respeito delas. Também é
esperado que os alunos demonstrem percepções relacionadas à importância do uso da
propaganda como ferramenta de construção e fortalecimento de ideias e crenças, sejam elas
positivas ou negativas.

8
HOBSBAWM, E. “A Era dos Impérios” In: A Era dos Impérios. RJ: Paz e Terra, 1989. pp. 87-124.
Referências Bibliográficas

HOBSBAWM, Eric. “A Era dos Impérios” In: A Era dos Impérios. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1989. pp. 87-124.

MCCLINTOCK, Anne. “O império do sabonete – racismo mercantil e propaganda imperial”;


In: Couro Imperial - raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas:
Ed.Unicamp, 2010.

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