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A escolha das fontes acima se deu em razão da utilização do sabão, no fim do século
XVIII até o fim do século XIX, pelo imperialismo, especialmente britânico, como ferramenta
de domínio imperial, servindo como uma metáfora para a transmissão da pureza aos
considerados selvagens. As teorias científicas racializantes serviram como instrumento de
fomento para o imperialismo, o que influenciou diretamente na ideia de que a Grã-Bretanha
possuía uma superioridade evolutiva. Dessa forma, segundo Anne McClintock, o sabão Pears
e suas campanhas propagandísticas foram um expoente dessa nova fase cultural mercantilista
do Império Britânico — que dá forma também ao racismo mercantil — e de sua “missão
civilizadora”1.
Essa nova cultura mercantil de propaganda forjou uma confusão entre o privado e o
público, trazendo o âmbito doméstico para ambientes sociais, onde passou a estampar signos
íntimos da vida (como é o caso da higiene) em quadros de anúncios. Essas campanhas
também imprimiram cenas do domínio imperial em produtos usados no ambiente do lar,
como em caixas de fósforo, sabão, garrafas de whisky, entre outros. Para além, a propaganda
vitoriana também serviu como instrumento para o antagonismo racial, o que fica explícito
quando analisamos os anúncios da marca Pears, que comunicavam muito bem a ideia de
higiene racial (trazendo o aspecto da pureza da “raça” branca em oposição à “raça” negra) e
do progresso imperial (com o comum choque visual entre “selvagem” versus “civilizado”)2.
É nesse sentido que McClintock ressalta a diferença entre o racismo científico e
racismo mercantil, no qual o primeiro ficava restrito às revistas antropológicas, médicas e
científicas, acessadas somente pela elite letrada, enquanto o segundo possibilitou expandir e
1
MCCLINTOCK, Anne. “O império do sabonete – racismo mercantil e propaganda imperial”. In: Couro
Imperial - raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas: Ed. Unicamp, 2010.
2
Ibid.
trazer maior visibilidade ao racismo evolucionista em uma escala até então inimaginada,
atingindo um público mais amplo e diverso. Dessa forma, ainda de acordo com a autora:
A história do sabão revela que o fetichismo, longe de ser uma propensão
quintessencial africana, como afirmava a antropologia do século XIX, era central
para a modernidade industrial, habitando e mediando as incertas zonas liminares
entre domesticidade e indústria, metrópole e império.3
3
Ibid., p. 311.
4
Ibid.
5
Ibid.
6
Ibid., p. 314-315.
Imagem 1
“I have found PEARS’ SOAP matchless for the Hands and Complexion.”
Achei o PEARS’ SOAP incomparável para as Mãos e a Pele. (tradução nossa)
Sem autor. Anúncio da marca Pears’ Soap. Fonte:
https://apreenderhistoria.blogspot.com/2015/02/documentos-para-analise-discursos.html.
A Figura 1 é uma das propagandas produzidas pela Pears, que reúne diversos dos
elementos acima discutidos. Na imagem, vê-se duas cenas sequenciais, ambientadas em um
banheiro e protagonizadas por duas crianças: um menino branco e um menino negro. Na
primeira imagem, o menino negro está despido, dentro da banheira, olhando impressionado
para a água. Ao seu lado, o garoto branco, que usa roupas coloridas e um avental branco,
limpo, apresenta-lhe uma barra de sabonete. Na sequência, o menino negro está sentado ao
lado da banheira, parcialmente coberto por uma toalha, e, à sua frente, o menino branco
segura um espelho. Com uma expressão de feliz surpresa, o menino negro vê que somente a
pele de seu rosto agora é escura: o restante de seu corpo, que fora lavado na banheira, tem
agora a mesma pele clara do menino que lhe acompanha.
As frases ao redor completam a propaganda do sabonete que, além de “puro,
perfumado, e durável”, é “vendido em todo lugar”. Sem as frases, a propaganda talvez não
fosse tão clara, afinal, o produto ali anunciado aparece em somente uma das imagens, sem
grande destaque. Não se vê o menino lavando-se, nem mesmo a espuma do sabão na água da
banheira. O que está mais evidentemente expresso ali é o processo de embranquecimento e,
conjuntamente, de civilização. O menino branco, gentilmente, entrega ao ingênuo menino
negro a pequena barra de sabão, oferecendo-lhe a oportunidade de “limpar-se” e, assim,
igualar-se, de corpo e espírito, ao ideal: sua pele branca, seus cabelos cuidadosamene
penteados, suas roupas imaculadas. O menino negro, por sua vez, participa com
espontaneidade e admiração, surpreendendo-se alegremente ao ver sua nova aparência — sua
porta de entrada à civilização ocidental.
Ambas as figuras carregam contradições em sua representação. O menino negro que,
mesmo “limpo” pelo sabão imperial, continua com a pele do rosto escura, com seus cabelos
crespos e seus traços faciais caricatos. Seu embranquecimento não é — e nunca será —
completo, pois sua origem, sua “selvageria”, jamais será plenamente corrigida. O menino
branco, por outro lado, é o ideal irreal da Inglaterra imperialista, que ocupa uma posição de
trabalhador, reiterada por seu avental, mas mantém, também, a aparência de meticulosa
perfeição, limpa e alinhada.
Uma versão similar desta propaganda foi analisada por McClintock, junto a outras
imagens de marcas diferentes de sabão. Sobre a manutenção da pele escura do rosto do
menino negro, a autora afirma: “No espelho vitoriano, o menino negro testemunha seu
destino predeterminado de metamorfose imperial, mas continua um híbrido racial passivo,
parte branco, parte negro, levado à beira da civilização pelos fetiches mercantis gêmeos do
sabão e do espelho.”7. Entre estes fetiches mencionados por McClintock, que eram
mobilizados cotidianamente na publicidade das marcas de sabão, estavam, além do espelho e
do sabão, o avental branco — também presente na imagem abordada — e o macaco.
7
Ibid. pp. 316-318.
Aplicação didática
8
HOBSBAWM, E. “A Era dos Impérios” In: A Era dos Impérios. RJ: Paz e Terra, 1989. pp. 87-124.
Referências Bibliográficas
HOBSBAWM, Eric. “A Era dos Impérios” In: A Era dos Impérios. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1989. pp. 87-124.