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Psicanálise
Ernesto Duvidovich (org.)
Psicanalista, analista institucional.
Diretor do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP).
Fundador e diretor-presidente da ONG Núcleo de Psicanálise e Ação Social
(NuPAS).
Organizador dos livros “Maternagem – Uma Intervenção Preventiva em Saúde” e “A
Supervisão na Clínica Psicanalítica”.
A ESCOLA DA RUA
Radmila Zygouris
Um antigo analisando veio me ver quinze anos após seu final de analise para
me falar de um problema atual. Quando me procurou pela primeira vez, ainda
era muito jovem e fez uma análise bastante longa.
Passaram-se quinze anos, e ele ainda se lembrava dessa história que, por
mais que o tivesse surpreendido, não o desagradara.
Essa resposta foi uma resposta interpretante e não uma mera reação defensiva
de minha parte. A reação contra-transferencial deve, a meu ver, ser sempre
relacionada a uma indução inconsciente vinda do paciente, devendo ser
entendida como parte integrante da transferência dos dois protagonistas. Mas
é, frequentemente, bem mais que isso. E foi o que me implicou ainda que,
naquele exato momento, eu não tivesse consciência disso.
No que diz respeito à minha infância, uma lembrança muito antiga retornou:
quando criança eu brincava na rua. Naquele tempo as crianças podiam brincar
na rua sem perigo, o que hoje em dia, não é mais possível. Mas, eis que um
belo dia, minha mãe me proibiu de ir brincar na rua. Foi um dia peculiar. Os
adultos, estavam todos em volta do rádio, ouvindo as informações, e me dei
conta do fato, ainda que não soubesse do que se tratava. Eles esperavam a
declaração da guerra que, de fato, veio e fez com que as mães passassem a
proibir as crianças de brincar na rua. Logo depois começaram os bombardeios
e foi quando entendi. Na rua havia o prazer, mas também, surgiu subitamente o
perigo da morte. A rua é o mundo tal qual ele é e não como os analistas o
descrevem.
Quanto à rua enquanto espaço comum, uma surpresa esperava por mim:
Lacan na rua
No momento em que comecei a escrever esse texto, de repente surgiu uma
lembrança relacionada à resposta que dei ao meu analisando. Pude verificar
sua exatidão.
No dia 13 de maio de 1968, o local no qual Lacan dava seu seminário foi
ocupado pelos alunos em revolta. Seu seminário tendo sido anulado em função
dos acontecimentos de Maio de 68, eis que Lacan se vê na rua com algumas
pessoas de seu seminário, onde começam a debater. Esse bate papo nas
escadarias do Panthéon, assim como o contexto no qual ele se deu, está
descrito no Seminário XVII:
" A faculdade de direito da rua St. Jacques tendo sido fechada, um bate papo
se estabeleceu com alguns poucos participantes, nas escadarias do Pantheon.
"Respondendo a uma questão inaudível, Lacan fala, e aborda por conta própria
sua concepção dos afetos. Indignado com o fato de ser acusado de deixar o
afeto em segundo plano, de negligenciá-lo, eis o que diz: "todo meu seminário
daquele ano (62) foi pelo contrário articulado em torno da angústia, uma vez
que é o afeto central, aquele em torno do qual tudo se ordena. Na medida em
que pude trazer a angústia enquanto afeto fundamental….”. E um pouco mais
além: "O que traduzo comporta que o afeto, em função do recalque, é
efetivamente deslocado, não identificado, não reconhecido em suas raízes -
ele se furta. É o que constitui a essência do recalque. Não é que o afeto seja
suprimido, ele é deslocado e se torna irreconhecível. ( O avesso da psicanálise
p.168, Seminário 1968-70)
De uma rua à outra …. o afeto se furta dizia Lacan. E dessa vez o afeto
convocado por Lacan, soava de outro jeito, diferente daquele do espaço
fechado do anfiteatro.
Eis do que eu tinha " me esquecido" quando dei essa resposta intempestiva.
É quando mais nada funciona e que as coisas vão mal que as pessoas descem
para manifestar na rua. E isso só pode ter consequências sobre nossos
investimentos e nossa libido. Na rua nós nos reunimos, ficamos juntos e isso
pode produzir efeitos que não podem ser excluídos do discurso da psicanálise.
O encontro com esse real produz algo novo, subjetivamente.
Foi assim que um dia, as mães da praça de Maio, em Buenos Aires, foram para
a rua dizer que seus filhos tinham desaparecido, que uma ditadura sanguinária
matava inocentes impunemente. Elas continuaram indo para rua, dia após dia,
mês após mês, ano após ano, até que conseguiram se fazer ouvir pelo mundo
todo. Elas se recusaram a ficar isoladas, cada qual chorando sua criança
sozinha, numa casa enlutada. E o que elas disseram era de um real
insuportável. Temos aí mamãe que saiu de seu recinto tradicional, e o mundo
foi obrigado a relacionar a palavra mãe a outra coisa que não ao Édipo. E isso
interessou aos psicanalistas. Ainda que não todos.
A psicanálise não tem como sobreviver se ficar alojada nas narrativas dos
mitos antigos. Fabricam-se narrativas todos os dias e algumas acabam
transcendendo os fatos históricos e se tornam mitos fundadores. Acabam,
assim, entrando nas universidades e passam a ser ensinados nos livros, mas
depois tudo recomeça, porque os livros estão sempre atrasados para descrever
o impacto do real sobre o vivente. Ora, é justamente nesse ponto de
intersecção do social e do privado, do político e do sexual que o ensino da
psicanálise se depara com dificuldades evidentes. Se minha resposta ao meu
jovem analisando foi intempestiva, é porque provavelmente naquele dia, "a
teoria" analítica não me foi suficiente.
Cultura e Práticas
Lacan dizia: A psicanálise não se transmite. Ela se reinventa a cada vez. Ao
dizer isso Lacan se situa resolutamente do lado da praxis. Num outro momento,
ele afirmou que existia um ensino da psicanálise. O ensino de Lacan. Freud,
quanto a ele, disse que governar, educar e psicanalisar eram três profissões
impossíveis. Ainda que se situem em planos diferentes, ambos falam de uma
mesma dificuldade.
Isso posto, será que podemos abrir mão de toda e qualquer forma de
aprendizagem? Não creio. A condição de introduzirmos aí uma diferenciação
entre cultura e prática, conhecimento e saber. Até porque ensinar e transmitir
não querem dizer a mesma coisa e confundir tudo, é perigoso. A cultura faz o
recenseamento do conjunto de conhecimentos que cada um de nós pode
adquirir porque está nos textos, nos livros que constituem o corpo teórico do
campo da psicanálise. Isso depende de um ensino e alguns pensam que, em
psicanalise, o ensino pertence a um mestre. Ora, o ensino em psicanálise não
pode, evidentemente, se limitar ao conhecimento livresco. Quando Lacan
falava de seu "ensino" era para dizer que ensinava a psicanálise segundo
Lacan. É um caso particular. A análise enquanto conjunto de conhecimentos
pode ser ensinada nas faculdades, nas academias, nas escolas de todos os
tipos. Diferentes interpretações e leituras dos textos podem acontecer sem
envolver a capacidade de uma prática analítica. Nos tempos de Freud a
psicanálise se resumia aos textos freudianos, hoje em dia a cultura analítica é
constituída por todas as tendências que se desenvolveram desde então.
No que reside, então, a principal dificuldade? Será que o mesmo não acontece
em outras tantas disciplinas que requerem conhecimentos acadêmicos de um
lado e genialidade pessoal do outro? É o que acontece com todas as artes e,
também, com algumas ciências. Mas a psicanálise tem algo que lhe é próprio,
sua hipótese fundadora, a hipótese do inconsciente.
A psicanálise não é nem uma arte, nem uma ciência, ainda que se aparente às
duas. Ela quis ser ciência, mas fracassou. A psicanalise é antes de tudo uma
prática. É uma terapêutica não médica que vai além dos sintomas já
repertoriados. Convém não esquecer que ela nasceu da modificação de uma
prática terapêutica médica. E de sua subversão. Ora esse saber é de
transmissão oral e por vezes bastante muda.
Foi então que surgiu a idéia – extremamente burocrática sob seus ares
democráticos – que para se tornar analista, bastaria uma sólida formação, a
necessidade da didática escalonada e das supervisões. Resumindo, foi assim
que a transferência começou a ser usada como instrumento de poder
institucional.
Cada vez que chega um novo paciente, uma nova vida vem até nós e isso
independentemente da demanda, sintoma ou pretexto invocado para marcar a
entrevista. A cada vez uma vida se oferece a nós, na esperança de se tornar
mais vivível. E a cada vez uma demanda de amor embasa essa espera.
É isso que se chama transferência. Essa espera e essa esperança. A partir daí
as singularidades lhe imprimem destinos diferentes. Eis aí a grande palavra,
aquela que faz dissimetria entre saber e conhecimento, entre analisando e
analista. Ambos são tomados na transferência mas a responsabilidade que
lhes cabe não é a mesma. Lacan teve o mérito de impor a palavra analisando
para designar o paciente em análise, de modo a realçar o aspecto ativo de sua
participação, mas no que diz respeito à transferência, é ao analista que
incumbe o trabalho de análise.
A transferência é o pivô de uma análise, seu motor e seu freio, local de todas
as resistências quando não são reconhecidas e analisadas. Desde o inicio
Freud a colocou no centro, mas foi com menos entusiasmo que enfrentou a
contra transferência. Não conseguiu escamoteá-la, no entanto, porque era
honesto. Conferiu-lhe um sentido muito limitado, o de mera reação do analista
que reage à transferência, vindo de certo modo, parasitá-la. Resumindo, uma
resistência. Hoje em dia temos uma visão bem mais ampla desse fenômeno,
visto que foi em seu tratamento e compreensão que se deram os maiores
avanços desde os primórdios da psicanálise. É, sem dúvida alguma, uma
resposta do analista à transferência do analisando, que é inconsciente e
inconscientemente induzida pelo paciente. A resposta inconsciente do analista
tem a ver, não apenas, com o que se refere à história do analisando, mas
também, aquilo que diz respeito à historia pessoal, desconhecida ou recalcada
do próprio analista. Numa certa ótica, poderíamos afirmar que a contra-
transferência precede a transferência. Levar em conta a transferência do
analista é o instrumento mais precioso de uma análise. Tal qual uma bussola, é
ela que o informa sobre sua relação com seu analisando em determinado
momento. É nesse sentido que a frase de Ferenczi, “o analista repete o crime”
é tão esclarecedora, pois chama a atenção para o fato que o analista é tomado
na repetição da historia de seu paciente e que atua um recalcado desta. Vemos
claramente aqui, que estamos perante algo radicalmente diferente daquilo que
se pode “ensinar. É a contra-transferência que impõe seus limites à
transmissão “erudita”.
Ora, Lacan, ainda que mais prudente que Ferenczi, não está muito longe dessa
acepção, ao afirmar que “a contra-transferência é a implicação do analista na
transferência do analisando”. Mas não avançou muito nessa direção. O
Toda a resistência de Freud pode ser lida em sua recusa (expressa à Ferenczi)
de ser objeto de uma transferência materna. Na transferência, ele só podia se
imaginar como pai e o afirmava alto e bom tom! Conseguia dessa forma,
manter mais facilmente, o primado da sexualidade infantil. Sua outra
resistência que fez limite a seu saber, foi sua recusa em tratar a questão da
telepatia. « Gedankenübertragung », textualmente isso significa “transferência
de pensamentos”. A palavra telepatia dava, e ainda dá medo: ainda que haja
outras maneiras de abordá-la. Mas, e a transferência de pensamentos? Porque
ele não pode desenvolvê-la? Freud acreditava nela, acreditava porque a
constatava em sua clínica, ainda que tenha se recusado a constatála
publicamente, recusando-se a integra-la, no corpo de sua teoria. A telepatia,
esse pathos à distancia é um pensamento transferido. É frequente, que os dois
protagonistas tenham a impressão de terem pensado a mesma coisa no
mesmo momento. Do que se trata aqui, de uma simultaneidade ou da
passagem de um ao outro? Transferência de pensamentos que não envereda
pela via comum da linguagem, ainda que no final das contas se sirva da
palavra para ser dita. Não há como ignorá-la. É o espaço do “entre”, a cuja
importância já me referi em outras ocasiões e poderia ser chamado de espaço
psíquico partilhado. Ele, não só é operante na transferência numa analise,
como também desempenha um papel importante na “formação”.
Freud a viu em ato, mas não conseguiu levá-la em conta em sua teoria, esse
era seu limite. Pois bem, é justamente na transferência materna que essa
transferência de pensamentos é mais facilmente apreensível, naquilo que pode
se reproduzir, pontualmente, na transferência, da relação precoce mãe-criança.
Constato, pois, certa coerência na resistência de Freud. Tal coerência une sua
clinica e sua teoria pela mesma resistência. Em sua clinica, resiste em sua
implicação na transferência materna, enquanto que em sua teoria resiste a dar
lugar à transferência de pensamentos que se liga diretamente a essa
transferência materna. Lógica da resistência. A teoria de Freud é limitada por
suas resistências que, atribuo, tanto aos limites de sua auto-análise, quanto ao
seu desejo de fazer da psicanalise uma ciência respeitável.
Em teoria Lacan falou de sessões a tempo variável, mas em sua pratica efetiva
as sessões eram quase sempre invariavelmente curtas. Ora, a manifestação de
muitas modalidades transferenciais que não se dirigem exclusivamente ao
sujeito suposto saber e não são redutíveis a esse tipo de endereçamento,
supõem uma dinâmica totalmente diferente da cura. Elas escapam e se
perdem totalmente quando não se dá um tempo suficiente para que elas se
manifestem. Quanto ao analista, ele é preservado de uma implicação afetiva e
a bela definição de Lacan acaba amordaçada pela pratica instaurada. Penso
que a resistência de Lacan no plano clínico se manifestava através dessa
limitação do tempo do estar juntos. O espaço-tempo comum é aí reduzido a
sua mais simples expressão: a articulação de alguns significantes... Sua prática
da sessão curta que foi a causa oficial de sua exclusão da IPA, tornou-se hoje
em dia o emblema de uma prática e de um ritual incontestáveis para aqueles
que se reclamam exclusivamente de seu ensino. Na sessão curta, não há lugar
( já que não há tempo) para o desenrolar de uma narrativa, de um imaginário
carregado de afetos. O afeto, em contrapartida, é produzido, principalmente
angustia, quando o analisando se vê na rua. Uma ou duas palavras, um
significante agarrado, e hop, a porta, a rua. Se Lacan confere esse lugar tão
requintado à angustia, enquanto representante de todos os afetos, é porque o
afeto angustia era provavelmente aquele que ele melhor conhecia, e o único
que não conseguia expulsar.
Aliás, Freud, já havia dito que a angustia era o equivalente geral de todos os
afetos. Parênteses: Marx nomeara o dinheiro de “equivalente geral” de todos os
valores! Isso foi num tempo em que se procuravam “ equivalentes gerais”....
Quanto mais o analista investe um saber “teórico” enquanto verdade, mais ele
corre o risco de afetar seu analisando de maneira silenciosa e inconsciente. E
de influenciá-lo no plano do pensamento, sem que os dois se deem conta.
Estamos enganados ao acreditar que com o abandono da hipnose o analista
deixou de influenciar seus analisandos. É preciso restituir a cada teórico tanto
sua parte de subjetividade, quanto de resistência que, tal qual um passageiro
clandestino, se insere em sua teoria. Cabe tanto aos que ensinam quanto aos
que são ensinados, permanecer atentos a essas zonas mudas dos discursos
ensinados. Os fragmentos dos traumas e interdições de pensamento acabam
integrados no grande corpo teórico, enganadoramente coerente. Os eruditos
podem ou não se ocupar disso, mas os analistas não podem se permitir tais
ingenuidades, pois são seus pacientes e seus estudantes que acabam
pagando o preço.
Os mais importantes teóricos nos legaram suas resistências junto com suas
mais geniais descobertas, na mesma maleta. A neutralidade, tal qual
preconizada pelos manuais, não existe. Aliás, o analista influencia seu
analisando que quer se tornar analista, queira ele ou não. Então, como se safar
dessa? Aceitando o principio de incompletude e sabendo que separação jamais
está bem feita. Ela é, no entanto, indispensável na formação para que o jovem
analista possa viver a experiência da solidão na situação analítica.
Meus caros amigos, vocês me solicitaram esse artigo mas, após quarenta anos
de pratica, não consigo mais abordar certos temas com muita seriedade. Se eu
tivesse deixado de rir, já estaria morta, definitivamente aposentada, ou
mumificada. Teria tido um destino funesto. Quarenta anos de prática e a
frequentação dos “colegas” eis a escola da psicanalise, sem esquecer a rua.
Sim, a rua.
Num livro consagrado à tradição oral dos ditos do profeta Maomé, os hadiths
que ainda que não figurem no Corão, representam um fonte de sabedoria, eis o
que podemos ler. A questão que lhe era frequentemente colocada pelos fiéis
sobre “ O que era preciso fazer quando soasse o juízo final ? O Profeta
respondeu: “ Continuem o que estavam fazendo: o lavrador deve continuar a
lavrar, o padeiro a fazer pão...” e eu acrescento: o professor a ensinar... o
psicanalista a psicanalisar.
Assim do lugar de um profeta ateu digo: face à constatação da impossibilidade
de transmitir a psicanalise – constatação que, para alguns, representa o fim do
mundo – o analista continua psicanalisando ... deixando-se roubar sempre que
crê estar transmitindo.... Isso foi algo que profeta não previu.
Na maioria das vezes o analista entra nas instituições para não ficar sozinho, e
alí encontra uns amigos com os quais pode jogar uma pelada. Isso também se
chama formação. A instituição só é aceitável se a considerarmos como uma
rua um tanto estreita. Isso porque em seu consultório, em sua pratica, o
analista está tão sozinho quanto o goleiro na hora do penalti. Quanto tomado
pela duvida, abre sua memória de trabalho e procura em seu aprendizado o
que poderia ajuda-lo a sair do embaraço, geralmente nada encontra, e é
nessas horas que sai a procura dos outros analistas, para pensarem juntos e
não permanecer sozinho. Depois, procura naquilo que a sua experiência de
vida lhe ensinou, algo que lhe permita recolocar em marcha sua maquina
pensante e desejante.