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Diálogos sobre Formação e Transmissão em

Psicanálise
Ernesto Duvidovich (org.)
 Psicanalista, analista institucional.
 Diretor do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP).
 Fundador e diretor-presidente da ONG Núcleo de Psicanálise e Ação Social
(NuPAS).
 Organizador dos livros “Maternagem – Uma Intervenção Preventiva em Saúde” e “A
Supervisão na Clínica Psicanalítica”.

A ESCOLA DA RUA
Radmila Zygouris

Uma resposta intempestiva

Um antigo analisando veio me ver quinze anos após seu final de analise para
me falar de um problema atual. Quando me procurou pela primeira vez, ainda
era muito jovem e fez uma análise bastante longa.

Em seu retorno, ao evocar alguns momentos fortes de sua análise anterior,


lembra-se da vez em que, jovem analisando um tanto ingênuo, ousou me
perguntar qual era a minha formação. Naquela época áurea da psicanálise na
França, os analisandos se sentiam na obrigação de saber a qual escola ou
instituição pertenciam seus analistas. E foi por isso que, um belo dia, se armou
de coragem e, no final da sessão me perguntou: "A qual escola a senhora
pertence? Meus amigos que estão em análise me fizeram essa pergunta e eu
não soube responder". Parece que lhe respondi num tom que não admitia
discussão: "Pois bem, diga a eles que venho da escola da rua!" Bang, uma
verdadeira bomba!, me disse ele.

Passaram-se quinze anos, e ele ainda se lembrava dessa história que, por
mais que o tivesse surpreendido, não o desagradara.

Também me lembrei dela, assim como me lembrei de minha própria


perplexidade face à rapidez com a qual lhe respondera. Ele se foi perplexo, e
eu lá permaneci, também perplexa. Não tivera nenhuma intenção de ser
provocante ou brutal, minha reação foi enigmática para mim mesma. Podia não
ter lhe respondido, ou simplesmente perguntado porque sabê-lo era importante
para ele. Ou mesmo, deixando de lado a santo sacra lei da não resposta
imaginaria, respondido que era da Escola Freudiana de Paris, Escola de Lacan,
já bem cotada e em voga na época. Mas não foi isso que fiz, ao responder a
esse jovem curioso foi a rua que se impôs a mim.
Tento, hoje, entender isso. Uma palavra espontânea e rápida do analista que
vem em resposta a uma questão do analisando deve ser sempre entendida na
dinâmica da transferência. Da transferência que fala pela boca do analista.
Poderíamos chamar isso de contra-transferência? Porque não. Esclareço, no
entanto que, ao contrário de alguns outros, não entendo a contra transferência
como sendo uma reação, um acting do analista, tão pouco como uma
manifestação defensiva que faria resistência ao processo.

Essa resposta foi uma resposta interpretante e não uma mera reação defensiva
de minha parte. A reação contra-transferencial deve, a meu ver, ser sempre
relacionada a uma indução inconsciente vinda do paciente, devendo ser
entendida como parte integrante da transferência dos dois protagonistas. Mas
é, frequentemente, bem mais que isso. E foi o que me implicou ainda que,
naquele exato momento, eu não tivesse consciência disso.

Lembrei-me que esse jovem, ao longo de sua analise, me falara longamente da


angústia materna, do excesso de proteção amorosa de sua mãe que chegava
ao ponto de proibi-lo de ir jogar futebol na rua com seus amigos. A rua lhe era
vetada. Por demais perigosa …. porque excessivamente prazerosa, prazer
esse que sua mãe, muito justamente, supunha ir além da pelada. Tinha de
tudo, na rua tinha sexo, uma mistura de humanos, na rua tem política que não
diz seu nome, a rua era o significante de uma liberdade angustiante, demais,
para essa mãe. Sua mãe lhe proibia a rua, e eu sua analista, lhe respondi que
meu saber de psicanalista me vinha da rua. Eu "interpretei", sem que tivesse
consciência disso, muitos anos depois o que visava a proibição materna: o
gozo de um saber que não se adquire no seio familiar. Tínhamos, recém,
deixado para trás os anos 60, época em que se pudéramos pensar que o futuro
se decidiria na rua. À proibição materna da rua, enquanto perigo sexual, eu
respondia pela autorização da rua enquanto lugar de saber. A relação entre o
sexual e o político foi assim estabelecida sem que o tivéssemos pensado
claramente.

E para mim, o que é mesmo que a rua representava? Houve a da minha


infância, e há a atual, o espaço comum de um e do outro.

No que diz respeito à minha infância, uma lembrança muito antiga retornou:
quando criança eu brincava na rua. Naquele tempo as crianças podiam brincar
na rua sem perigo, o que hoje em dia, não é mais possível. Mas, eis que um
belo dia, minha mãe me proibiu de ir brincar na rua. Foi um dia peculiar. Os
adultos, estavam todos em volta do rádio, ouvindo as informações, e me dei
conta do fato, ainda que não soubesse do que se tratava. Eles esperavam a
declaração da guerra que, de fato, veio e fez com que as mães passassem a
proibir as crianças de brincar na rua. Logo depois começaram os bombardeios
e foi quando entendi. Na rua havia o prazer, mas também, surgiu subitamente o
perigo da morte. A rua é o mundo tal qual ele é e não como os analistas o
descrevem.

Através de minha resposta intempestiva, eu desqualificava, de certo modo,


todas as escolas de psicanálise e abolia a interdição materna abusiva que
marcara toda sua infância e adolescência e que ia muito além do simples fato
de não jogar futebol. Com isso eu interpretei, sem sabê-lo, minha forte ligação
com esse lugar coletivo, no qual circula um saber diferente daquele dispensado
pelo instituição. Algo exterior à proteção das famílias, naturais e analíticas. O
para além do Édipo.

Quanto à rua enquanto espaço comum, uma surpresa esperava por mim:

Lacan na rua
No momento em que comecei a escrever esse texto, de repente surgiu uma
lembrança relacionada à resposta que dei ao meu analisando. Pude verificar
sua exatidão.

No dia 13 de maio de 1968, o local no qual Lacan dava seu seminário foi
ocupado pelos alunos em revolta. Seu seminário tendo sido anulado em função
dos acontecimentos de Maio de 68, eis que Lacan se vê na rua com algumas
pessoas de seu seminário, onde começam a debater. Esse bate papo nas
escadarias do Panthéon, assim como o contexto no qual ele se deu, está
descrito no Seminário XVII:

" A faculdade de direito da rua St. Jacques tendo sido fechada, um bate papo
se estabeleceu com alguns poucos participantes, nas escadarias do Pantheon.
"Respondendo a uma questão inaudível, Lacan fala, e aborda por conta própria
sua concepção dos afetos. Indignado com o fato de ser acusado de deixar o
afeto em segundo plano, de negligenciá-lo, eis o que diz: "todo meu seminário
daquele ano (62) foi pelo contrário articulado em torno da angústia, uma vez
que é o afeto central, aquele em torno do qual tudo se ordena. Na medida em
que pude trazer a angústia enquanto afeto fundamental….”. E um pouco mais
além: "O que traduzo comporta que o afeto, em função do recalque, é
efetivamente deslocado, não identificado, não reconhecido em suas raízes -
ele se furta. É o que constitui a essência do recalque. Não é que o afeto seja
suprimido, ele é deslocado e se torna irreconhecível. ( O avesso da psicanálise
p.168, Seminário 1968-70)

De uma rua à outra …. o afeto se furta dizia Lacan. E dessa vez o afeto
convocado por Lacan, soava de outro jeito, diferente daquele do espaço
fechado do anfiteatro.

Eis do que eu tinha " me esquecido" quando dei essa resposta intempestiva.

O fora e o dentro, espaços partilhados


Os analisandos chegam sempre da rua. Ela é a passagem obrigatória entre a
vida privada e o mundo exterior. Para chegar no analista, todos passam pela
rua. Em todo caso por hora. Quem sabe um dia eles virão de helicóptero? Por
hora ainda é possível vir diretamente da rua, ainda que as crianças não
possam mais brincar nela.
Alguns analisandos trazem para a sessão o que viram no caminho. Falam
desse espaço comum. Dos sem teto, dos mendigos, cada vez mais numerosos
em Paris, mesmo nos bairros que, antigamente, não frequentavam. Pode
acontecer que os analisandos cheguem atrasados, porque foram retardados
por uma manifestação ou uma greve. Outros, nunca abordam essas coisas,
ainda que também sejam confrontados com o espetáculo da pobreza que não
cessa de crescer, tornando-se cada vez mais visível e maciça. Estes falam de
suas angústias, de suas inibições, procurando a explicação exclusivamente do
lado de mamãe e papai, quando não do marido que deixou de ser como era, ou
das crianças que dão trabalho. Permanecem na esfera do privado porque
imaginam que é isso, e apenas isso que interessa o analista e que é o que se
deve falar em analise, enquanto o resto, ou seja a rua, não tem lugar numa
sessão de analise. De certo modo estão certos. Basta ler o que se escreve
sobre a transferência, textos nos quais jamais se aborda esse espetáculo da
vida dos outros que, no entanto, pode nos transtornar. As teorias sobre a
transferência são um revelador daquilo que interessa aos psicanalistas. Nem
por isso, em certas ocasiões, a rua deixa de tomar o poder, impondo-se ao
nosso imaginário e a nosso afeto, e nessas situações é preciso que o analista
não seja surdo. A rua é a metáfora onde se mistura o político e o sexual, onde
as pulsões são solicitadas e se lançam numa desordem amorosa, de uma
espécie não repertoriada pelo discurso familiar e psicanalítico.

No dia em que retruquei que eu me formara na escola da rua, apontei para o


que parecia excluído do suposto saber do analista, seu saber sobre o
inconsciente. Como se o inconsciente derivasse exclusivamente da cama dos
pais, mesmo sabendo que o inconsciente não pode ser limitado ao individual e
que ele está em todos os campos onde se manifesta o desejo dos humanos,
logo, no encontro com qualquer desconhecido. Constatamos diariamente que o
inconsciente não reside unicamente na língua e nas palavras que
pronunciamos, assim como ele não se revela exclusivamente nos lapsos ou
atos falhos. O inconsciente é nosso corpo que carrega todas suas
potencialidades, inclusive a linguagem. Nosso corpo na rua é seu navio
fantasma. O inconsciente não é, portanto, um negócio estritamente domestico.
Já dizia Deleuze que os analistas falam muito da lei, mas nunca do poder.

É quando mais nada funciona e que as coisas vão mal que as pessoas descem
para manifestar na rua. E isso só pode ter consequências sobre nossos
investimentos e nossa libido. Na rua nós nos reunimos, ficamos juntos e isso
pode produzir efeitos que não podem ser excluídos do discurso da psicanálise.
O encontro com esse real produz algo novo, subjetivamente.

Foi assim que um dia, as mães da praça de Maio, em Buenos Aires, foram para
a rua dizer que seus filhos tinham desaparecido, que uma ditadura sanguinária
matava inocentes impunemente. Elas continuaram indo para rua, dia após dia,
mês após mês, ano após ano, até que conseguiram se fazer ouvir pelo mundo
todo. Elas se recusaram a ficar isoladas, cada qual chorando sua criança
sozinha, numa casa enlutada. E o que elas disseram era de um real
insuportável. Temos aí mamãe que saiu de seu recinto tradicional, e o mundo
foi obrigado a relacionar a palavra mãe a outra coisa que não ao Édipo. E isso
interessou aos psicanalistas. Ainda que não todos.
A psicanálise não tem como sobreviver se ficar alojada nas narrativas dos
mitos antigos. Fabricam-se narrativas todos os dias e algumas acabam
transcendendo os fatos históricos e se tornam mitos fundadores. Acabam,
assim, entrando nas universidades e passam a ser ensinados nos livros, mas
depois tudo recomeça, porque os livros estão sempre atrasados para descrever
o impacto do real sobre o vivente. Ora, é justamente nesse ponto de
intersecção do social e do privado, do político e do sexual que o ensino da
psicanálise se depara com dificuldades evidentes. Se minha resposta ao meu
jovem analisando foi intempestiva, é porque provavelmente naquele dia, "a
teoria" analítica não me foi suficiente.

Cultura e Práticas
Lacan dizia: A psicanálise não se transmite. Ela se reinventa a cada vez. Ao
dizer isso Lacan se situa resolutamente do lado da praxis. Num outro momento,
ele afirmou que existia um ensino da psicanálise. O ensino de Lacan. Freud,
quanto a ele, disse que governar, educar e psicanalisar eram três profissões
impossíveis. Ainda que se situem em planos diferentes, ambos falam de uma
mesma dificuldade.

Isso posto, será que podemos abrir mão de toda e qualquer forma de
aprendizagem? Não creio. A condição de introduzirmos aí uma diferenciação
entre cultura e prática, conhecimento e saber. Até porque ensinar e transmitir
não querem dizer a mesma coisa e confundir tudo, é perigoso. A cultura faz o
recenseamento do conjunto de conhecimentos que cada um de nós pode
adquirir porque está nos textos, nos livros que constituem o corpo teórico do
campo da psicanálise. Isso depende de um ensino e alguns pensam que, em
psicanalise, o ensino pertence a um mestre. Ora, o ensino em psicanálise não
pode, evidentemente, se limitar ao conhecimento livresco. Quando Lacan
falava de seu "ensino" era para dizer que ensinava a psicanálise segundo
Lacan. É um caso particular. A análise enquanto conjunto de conhecimentos
pode ser ensinada nas faculdades, nas academias, nas escolas de todos os
tipos. Diferentes interpretações e leituras dos textos podem acontecer sem
envolver a capacidade de uma prática analítica. Nos tempos de Freud a
psicanálise se resumia aos textos freudianos, hoje em dia a cultura analítica é
constituída por todas as tendências que se desenvolveram desde então.

A prática, aquilo que chamamos de clínica, requer um saber totalmente outro e


que se adquire sempre de modo singular, sempre diferente de um ao outro, e
não é cumulativo. Sua transmissão é bem mais delicada, o lugar de seu saber
sendo o próprio corpo do analista, lá onde se enraízam suas bases
inconscientes. Ele pode ser partilhado, mas é sempre atravessado por uma
subjetividade, um estilo. Nem por isso está sempre disponível.

No entanto, é justamente um saber sobre o inconsciente que o analisando


supõe ao analista segundo a famosa definição de Lacan.

Então, como ensinar aquilo que não se transmite?


Nem por isso a psicanálise deixa de ser transmitida em lugares especializados.
Existem associações, institutos, escolas de psicanálise onde se formam
analistas, dispositivos foram inventados, supervisões mais ou menos
sofisticadas, onde analistas experientes tentam transmitir.

No que reside, então, a principal dificuldade? Será que o mesmo não acontece
em outras tantas disciplinas que requerem conhecimentos acadêmicos de um
lado e genialidade pessoal do outro? É o que acontece com todas as artes e,
também, com algumas ciências. Mas a psicanálise tem algo que lhe é próprio,
sua hipótese fundadora, a hipótese do inconsciente.

Os dois fundamentais: o inconsciente e a transferência

A singularidade da psicanálise reside na hipótese do inconsciente e que por


natureza o inconsciente é in-conhecível, enquanto tal. Em nossos dias, até
esse axioma vem sendo colocado em dúvida por alguns. Podemos, no entanto,
comprovar a existência de processos de pensamento inconscientes e,
paradoxalmente, são as neurociências que vem aqui acudir a psicanálise, o
que nem por isso resolve a difícil relação entre teoria e clínica psicanalítica. Se
a teoria pode ser ensinada, incluindo aí o conceito de inconsciente, a clínica
nos coloca problemas bem mais difíceis. E eles são difíceis pelo simples fato
de que a relação entre teoria e clinica na analise, não é uma relação estável
que possa ser escrita de uma vez por todas. Lembro aqui que Freud
comparava o inconsciente ao edifício e a teoria ao andaime que permite se
aproximar do edifício. Advertiu os jovens analistas para que não confundissem
o andaime com o edifício, preconizando o questionamento da teoria, na
eventualidade de um único caso clinico contradizê-la. Estamos bem longe
disso...

Frequentemente, os analistas se esquecem dessa diferença. É mais


tranquilizador acreditar na verdade das teorias, ainda que nada garante que
aceitem sua pluralidade.

Alguns analistas tem conhecimentos teóricos limitados, mas tem um verdadeiro


talento para sustentar analises extremamente difíceis. Nem sempre sabem
como transmitir e muitas vezes só conseguem fazer o relato de suas curas,
cabe aos outros poder ouvi-los.

Um segredo a céu aberto


Permanece uma invariante, a mesma para todas as escolas: a exigência da
análise pessoal do analista, considera como sendo a verdadeira aprendizagem
da análise. Penso que não passa de um voto piedoso. Mais de uma vez, ouvi
analistas se queixarem da mediocridade de suas próprias análises, sem que
isso os tenha impedido de clinicar. O que me leva a afirmar que a qualidade de
um analista não depende, ou depende relativamente pouco de sua analise
pessoal. Dizer uma coisa dessas, beira o sacrilégio! Mas não é raro acontecer
que alguém se forma “contra” seu analista. Creio que nossos verdadeiros
professores são alguns de nossos pacientes difíceis, são eles nossos
passadores em direção a um saber não escrito. Chegou a hora de deixarmos
de acreditar que a transmissão se dá de cima para baixo. Essa é uma ilusão
dos mestres. O que aprendemos e aquilo que nos serve, é o que cada um de
nós retira daquilo que ouve de um outro. De um analista, um professor, um
colega ou um paciente. O professor, quando crê transmitir, apenas narra, fala,
explica, mas será o aluno, ou o jovem analisando que selecionará o que lhe
serve, consciente ou inconscientemente. O saber se toma, ele é roubado nunca
outorgado. Aliás, enuncia-lo dessa forma, tão pouco é totalmente exato. O
saber da analise se desvela ao próprio sujeito no aprèscoup de um ato. O
saber na analise é como a liberdade, ela não é dada, é conquistada. Mas para
tanto são necessárias certas condições. É preciso toda uma aparelhagem, todo
um semblante, todo um dispositivo de ensino, para que o ladrão talentoso
encontre material do qual ele possa sacar suas riquezas futuras. Não se trata,
no entanto, de um mero saber, nem de conhecimentos, mas de outra coisa.

Nos quase quarenta anos em que venho praticando a psicanalise, constatei


que nem o melhor analista do mundo pode transmitir ou formar um analisando
que não leva jeito para a coisa. Para ser analista, além da formação, é preciso
ter um dom. E o dom a gente não recebe. Nenhum princípio democrático pode
regrar o tornar-se analista, o que explica o mal estar que podemos sentir face
aos fingimentos institucionais da “formação”. Em certos casos, chega a ser
trágico ver “estudantes” se esforçarem, estudarem, refazerem longas análises
e, apesar disso, continuarem tapados face o menor enigma do inconsciente.
Nem todo mundo pode se tornar psicanalista.

São, certamente necessárias, formação teórica, formação à técnica analítica,


análise pessoal e supervisão.... assim como a capacidade, na hora certa, de
questionar tudo isso, ainda que tudo isso possa ser totalmente em vão se, o
futuro analista, o jovem analista não é habitado por essa estranha paixão do
saber sobre seu próprio inconsciente e de sua relação com aquele do outro. A
vertente terapêutica vem se inserir aí enquanto efeito dessa pesquisa. Nisso o
analista se assemelha ao artista. Eis porque existem tantos psicólogos e tão
poucos analistas .

A psicanálise não é nem uma arte, nem uma ciência, ainda que se aparente às
duas. Ela quis ser ciência, mas fracassou. A psicanalise é antes de tudo uma
prática. É uma terapêutica não médica que vai além dos sintomas já
repertoriados. Convém não esquecer que ela nasceu da modificação de uma
prática terapêutica médica. E de sua subversão. Ora esse saber é de
transmissão oral e por vezes bastante muda.

Ritual de uma prática


Decorre daí uma particularidade que costuma ser esquecida e que não
encontramos nem na arte nem na ciência: o importante lugar que o ritual ocupa
enquanto modalidade de transmissão. Um ritual é feito para ser repetido, para
transmitir uma pratica tal qual.

Reencontramos isso nas religiões e nas práticas magicas. As práticas para


serem transmitidas precisam estabilizar habilidades e um saber que,
frequentemente, são mudos quanto às suas origens e que, aqueles que o
praticam, as vezes, ignoram. O ritual estabiliza um saber numa forma que
permite sua transmissão, ainda que não se entenda seus fundamentos. A
menor modificação de ritual pode gerar crise nas instituições de formação. Foi
uma crise que Lacan provocou ao modificar o tempo clássico de sessão,
introduzindo as sessões curtas, crise cuja intensidade ultrapassou qualquer
possibilidade de argumentação racional. Hoje em dia a sessão curta faz parte
do ritual lacaniano. A maioria dos rituais perdura e se transmite mesmo depois
de termos esquecido o mito ou a doutrina que eram supostos celebrar. A época
atual modificou em parte a rigidez do ritual freudiano, ainda que ele permaneça
sendo a forma de referência.

Um segredo bem guardado pelas instituições analíticas é o de que é possível


ser um grande analista mesmo sem ter feito uma análise. Vejam Freud, vejam
Lacan... Disse grande analista e não grande terapeuta. Isso porque existem os
terapeutas e os pesquisadores, e as duas competências nem sempre se
sobrepõe numa mesma pessoa.

E conheço vários outros, ainda que menos famosos, de formação para lá de


duvidosa e que, no entanto, tem estrelas nos olhos e são capazes de ouvir uma
melodia lá onde outros só ouvem barulho. De onde vem seu talento? Porque
jamais ousamos falar de talento? Medo de sermos acusados de charlatanismo?
De passar por artistas de segunda? Ou porque essa verdade ameaça a
legitimidade das instituições analíticas e tornam a teoria suspeita? A maioria
das instituições de formação não só teme não só, não ser levada a sério, como
teme o fantasma que o acompanha, o de outorgar o título de analista a
“charlatões”.

A burocracia contra o incesto?

É de notoriedade pública que o pior inimigo da psicanalise é a burocracia de


suas instituições. Além do medo de passar por gente pouco séria, existe a
angustia de dever reconhecer que a transmissão se faz pelas vias do amor. E
mais conveniente dizer da Transferência, ainda que não mude nada! Outrora
chamei isso de “amor paradoxal”... E quem diz transferência, fala ao mesmo
tempo de resistência.

O que, claramente, se transmite são as resistências às novas desordens


amorosas. O amor é sempre de transferência, essa não é uma peculiaridade
do amor de transferência. O que é transferido em análise, são as proibições de
passagem ao ato, na medida em que elas são necessárias para a possibilidade
de uma cura. Esses interditos não são leis, e sim regras de trabalho
necessárias à manutenção de duas cenas separadas, delimitando desse modo
um espaço especifico para um pensamento livre dos entraves da realidade. É o
interdito assim transferido que provoca o amor de transferência. Costuma-se
lidar com isso “como se” se tratasse da transgressão de uma lei, quando nos
deparamos com o desrespeito de uma regra de trabalho. Respeito no entanto
indispensável para manter um espaço preservado do jogo das pulsões e sua
violência. Pulsões do analista e dos analisandos, cujo livre agir pode ser
doloroso para ambos os protagonistas. O amor é transferido de um lugar ao
outro, e é sempre verdadeiro. O que é transferido são os interditos necessários
ao desenrolar de uma cura. É o caso das transferências de interdição de
passagem ao ato, para que o analista possa trabalhar num espaço protegido
das pulsões, as suas e as de seus analisandos. É aqui que podemos almejar
que uma reflexão inteligente nos possibilite diferenciar a burocracia institucional
da ética de uma prática a alto risco.

Tanto a instituição psicanalítica, quanto a burocracia que a acompanha,


nasceram a partir do momento em que a análise não pode mais se transmitir
exclusivamente pela via do afeto que uniu os primeiros analistas entre si e
todos eles a Freud.

Convém, lembrarmos, aqui, o papel desempenhado pela Policlínica de Berlim


(1920-1933), berço da burocracia analítica. Foi lá que se promulgou tanto a
obrigação de uma análise pessoal para todo aquele que queria se tornar
analista, quanto a de uma supervisão. Foi uma belíssima idéia e ainda por cima
muito generosa. A turma de Viena, a turma de Freud, foi obrigada a sair da
endogamia original do tempo em que todos se conheciam. A Policlínica foi
criada na louvável intenção de oferecer, a pacientes pobres, a possibilidade de
se analisarem e receberem uma formação dispensada por analistas de
primeira. Foi um projeto extremamente interessante, que acarretou a ampliação
do circulo inicial de discípulos e o fim do pequeno grupo de íntimos, formado
pelos primeiros analistas. Surgiram os primeiros os estrangeiros, e a partir daí
se tornou necessário legislar, “formar”, ensinar e se burocratizar. Os
estrangeiros vieram para rachar o circulo de iniciados.

Foi então que surgiu a idéia – extremamente burocrática sob seus ares
democráticos – que para se tornar analista, bastaria uma sólida formação, a
necessidade da didática escalonada e das supervisões. Resumindo, foi assim
que a transferência começou a ser usada como instrumento de poder
institucional.

A implicação do analista na transferência

Cada vez que chega um novo paciente, uma nova vida vem até nós e isso
independentemente da demanda, sintoma ou pretexto invocado para marcar a
entrevista. A cada vez uma vida se oferece a nós, na esperança de se tornar
mais vivível. E a cada vez uma demanda de amor embasa essa espera.

É isso que se chama transferência. Essa espera e essa esperança. A partir daí
as singularidades lhe imprimem destinos diferentes. Eis aí a grande palavra,
aquela que faz dissimetria entre saber e conhecimento, entre analisando e
analista. Ambos são tomados na transferência mas a responsabilidade que
lhes cabe não é a mesma. Lacan teve o mérito de impor a palavra analisando
para designar o paciente em análise, de modo a realçar o aspecto ativo de sua
participação, mas no que diz respeito à transferência, é ao analista que
incumbe o trabalho de análise.

A transferência é o pivô de uma análise, seu motor e seu freio, local de todas
as resistências quando não são reconhecidas e analisadas. Desde o inicio
Freud a colocou no centro, mas foi com menos entusiasmo que enfrentou a
contra transferência. Não conseguiu escamoteá-la, no entanto, porque era
honesto. Conferiu-lhe um sentido muito limitado, o de mera reação do analista
que reage à transferência, vindo de certo modo, parasitá-la. Resumindo, uma
resistência. Hoje em dia temos uma visão bem mais ampla desse fenômeno,
visto que foi em seu tratamento e compreensão que se deram os maiores
avanços desde os primórdios da psicanálise. É, sem dúvida alguma, uma
resposta do analista à transferência do analisando, que é inconsciente e
inconscientemente induzida pelo paciente. A resposta inconsciente do analista
tem a ver, não apenas, com o que se refere à história do analisando, mas
também, aquilo que diz respeito à historia pessoal, desconhecida ou recalcada
do próprio analista. Numa certa ótica, poderíamos afirmar que a contra-
transferência precede a transferência. Levar em conta a transferência do
analista é o instrumento mais precioso de uma análise. Tal qual uma bussola, é
ela que o informa sobre sua relação com seu analisando em determinado
momento. É nesse sentido que a frase de Ferenczi, “o analista repete o crime”
é tão esclarecedora, pois chama a atenção para o fato que o analista é tomado
na repetição da historia de seu paciente e que atua um recalcado desta. Vemos
claramente aqui, que estamos perante algo radicalmente diferente daquilo que
se pode “ensinar. É a contra-transferência que impõe seus limites à
transmissão “erudita”.

Ora, Lacan, ainda que mais prudente que Ferenczi, não está muito longe dessa
acepção, ao afirmar que “a contra-transferência é a implicação do analista na
transferência do analisando”. Mas não avançou muito nessa direção. O

fato da transferência (e portanto a contra-transferência ) permanecer sendo a


bússola de um tratamento, é entre outras coisas o que distingue a psicanalise
das demais psicoterapias, fazendo sua especificidade. É sempre possível
glosar sobre os conceitos, mas nem por isso a análise deixa de ser, antes de
mais nada, uma experiência vivida a dois, com dois corpos em presença. Ela
implica o analista no mais desconhecido de sua própria história e faz com que
se depare com aquilo que, muitas vezes, permaneceu não analisado de seu
lado. Isso porque cada paciente estabelece uma transferência singular, assim
como, cada uma delas restaura o mais singular e desconhecido da historia de
um sujeito. Muitas análises fracassam justamente pelo desconhecimento da
implicação do analista na transferência. Isso posto, qual seria, então. A
formação que permitiria ao analista reconhecer a maneira pela qual seu
analisando o afeta? Uma vez que seu desconhecimento torna o analista
estupido. Penso que os professores pelo menos insistir quanto a necessidade
do analista permanecer em contato com suas próprias zonas de conflito, suas
próprias angustias, sem jamais considerar sua “analise pessoal” finda. O
psicanalista é justamente o sintoma ambulante de uma analise interminável.

Se a psicanalise não se transmite, a resistência se transfere


É na transferência ( contra transferência) que residem todos os perigos, todos
os deslizes, e todas as resistências. Eis porque a questão da resistência
continua sendo de extrema atualidade. A esse respeito, subscrevo,
integralmente a formulação de Lacan de que “ a resistência em análise é
resistência do analista”. Ressalto que ninguém está a salvo dela, nenhum
psicanalista escapa dela. Freud e Lacan não fogem, portanto, à regra.
Evidentemente, nada posso dizer de suas análises, assim como de suas
transferências particulares. Freud não fez uma análise pessoal, por razões
evidentes, e Lacan muito pouca, basta ler o que ele diz a esse respeito. Ora,
sendo ambos, antes de mais nada teóricos, suas resistências ao próprio
inconsciente não pode se manifestar e ser analisada em suas analises
pessoais, ainda que possa ser lida naquilo que fez limite em suas teorias e
técnica. E, principalmente, na maneira de evacuar da sessão aquilo que lhes
era pessoalmente doloroso. Limito-me a esses dois, o primeiro porque foi o
fundador, e o segundo por ter sido o que mais marcas deixou no ritual analítico,
além de ter proposto uma leitura muito pessoal e heterodoxa de Freud. Mas o
argumento vale para todos.

Onde reside a resistência maior de Freud ? Na transferência


materna e na telepatia.

Toda a resistência de Freud pode ser lida em sua recusa (expressa à Ferenczi)
de ser objeto de uma transferência materna. Na transferência, ele só podia se
imaginar como pai e o afirmava alto e bom tom! Conseguia dessa forma,
manter mais facilmente, o primado da sexualidade infantil. Sua outra
resistência que fez limite a seu saber, foi sua recusa em tratar a questão da
telepatia. « Gedankenübertragung », textualmente isso significa “transferência
de pensamentos”. A palavra telepatia dava, e ainda dá medo: ainda que haja
outras maneiras de abordá-la. Mas, e a transferência de pensamentos? Porque
ele não pode desenvolvê-la? Freud acreditava nela, acreditava porque a
constatava em sua clínica, ainda que tenha se recusado a constatála
publicamente, recusando-se a integra-la, no corpo de sua teoria. A telepatia,
esse pathos à distancia é um pensamento transferido. É frequente, que os dois
protagonistas tenham a impressão de terem pensado a mesma coisa no
mesmo momento. Do que se trata aqui, de uma simultaneidade ou da
passagem de um ao outro? Transferência de pensamentos que não envereda
pela via comum da linguagem, ainda que no final das contas se sirva da
palavra para ser dita. Não há como ignorá-la. É o espaço do “entre”, a cuja
importância já me referi em outras ocasiões e poderia ser chamado de espaço
psíquico partilhado. Ele, não só é operante na transferência numa analise,
como também desempenha um papel importante na “formação”.

Freud a viu em ato, mas não conseguiu levá-la em conta em sua teoria, esse
era seu limite. Pois bem, é justamente na transferência materna que essa
transferência de pensamentos é mais facilmente apreensível, naquilo que pode
se reproduzir, pontualmente, na transferência, da relação precoce mãe-criança.
Constato, pois, certa coerência na resistência de Freud. Tal coerência une sua
clinica e sua teoria pela mesma resistência. Em sua clinica, resiste em sua
implicação na transferência materna, enquanto que em sua teoria resiste a dar
lugar à transferência de pensamentos que se liga diretamente a essa
transferência materna. Lógica da resistência. A teoria de Freud é limitada por
suas resistências que, atribuo, tanto aos limites de sua auto-análise, quanto ao
seu desejo de fazer da psicanalise uma ciência respeitável.

Onde reside a resistência principal de Lacan ? Na sessão curta


e no afeto.

Em teoria Lacan falou de sessões a tempo variável, mas em sua pratica efetiva
as sessões eram quase sempre invariavelmente curtas. Ora, a manifestação de
muitas modalidades transferenciais que não se dirigem exclusivamente ao
sujeito suposto saber e não são redutíveis a esse tipo de endereçamento,
supõem uma dinâmica totalmente diferente da cura. Elas escapam e se
perdem totalmente quando não se dá um tempo suficiente para que elas se
manifestem. Quanto ao analista, ele é preservado de uma implicação afetiva e
a bela definição de Lacan acaba amordaçada pela pratica instaurada. Penso
que a resistência de Lacan no plano clínico se manifestava através dessa
limitação do tempo do estar juntos. O espaço-tempo comum é aí reduzido a
sua mais simples expressão: a articulação de alguns significantes... Sua prática
da sessão curta que foi a causa oficial de sua exclusão da IPA, tornou-se hoje
em dia o emblema de uma prática e de um ritual incontestáveis para aqueles
que se reclamam exclusivamente de seu ensino. Na sessão curta, não há lugar
( já que não há tempo) para o desenrolar de uma narrativa, de um imaginário
carregado de afetos. O afeto, em contrapartida, é produzido, principalmente
angustia, quando o analisando se vê na rua. Uma ou duas palavras, um
significante agarrado, e hop, a porta, a rua. Se Lacan confere esse lugar tão
requintado à angustia, enquanto representante de todos os afetos, é porque o
afeto angustia era provavelmente aquele que ele melhor conhecia, e o único
que não conseguia expulsar.

Aliás, Freud, já havia dito que a angustia era o equivalente geral de todos os
afetos. Parênteses: Marx nomeara o dinheiro de “equivalente geral” de todos os
valores! Isso foi num tempo em que se procuravam “ equivalentes gerais”....

A justificação da sessão curta pela escansão é muito fraca do ponto de vista


teórico. De início o argumento consistiu em dizer que seu objetivo era evitar a
eterna repetição do obsessivo, de modo que todos os analisandos de Lacan se
beneficiaram de uma técnica concebida especificamente para o obsessivo. Isso
leva a pensar que a resistência de Lacan à transferência pôde se inserir numa
técnica cuja essência residia em evitar o tempo de presença. Evitando, assim,
ser afetado pelo outro.

Do ponto de vista da teoria e dos conceitos tão inovadores de Lacan, há um


ponto onde ele resiste de modo visível e sintomático, no afeto. Lacan até que
topou se debruçar sobre o significado afeto, a condição de surgir mascarado
atrás do significante “angustia”. O que ele disse do afeto, no dia em que falou
na rua? Disse que se “furtava ” O afeto-Lacan se furta. E como em Freud a
resistência clinica reencontra a teoria, a sessão curta suscita a angustia mas
não dá nenhum lugar a um outro afeto nomeável e vivível no aqui e agora da
sessão. A coerência da resistência em Lacan, eu diria que é tão forte, tão boa
quanto a de Freud. A resistência do analista faz borda teórica e fechamento
semântico a seu campo de investigação.

Mas há falhas e, felizmente, elas também se transmitem. Eis Lacan em plena


contradição simpática no seminário anteriormente citado, apenas um mês
depois (junho 68): “ O pensamento não é uma categoria. Eu quase diria que ele
é um afeto.”

Então como é que isso se transmitiu de Freud a Lacan, na transmissão de suas


resistências? A “transferência de pensamento” pode se tornar uma
transferência de afetos, já que o pensamento é quase um afeto? E se o afeto
por excelência é a angustia, será que a transferência de pensamento, no final
das contas, não passa de uma transferência de angustia? Pois é disso mesmo
que se trata, em muitas análises o que nos permite avançar é o fato da
angustia passar de um ao outro. É quando a teoria se torna a melhor defesa.

A resistência dos fundadores da psicanalise se transmitiu sob o manto da teoria


e na teoria pela sequência de suas resistências. A teoria se ensina, ela tem
posição de conhecimento. A resistência dos fundadores se esgueira no corpo
dos conhecimentos teóricos: curto circuita a singularidade do saber e, depois,
disfarçada de conhecimento entra na Universidade! E pronto!

Quanto mais o analista investe um saber “teórico” enquanto verdade, mais ele
corre o risco de afetar seu analisando de maneira silenciosa e inconsciente. E
de influenciá-lo no plano do pensamento, sem que os dois se deem conta.
Estamos enganados ao acreditar que com o abandono da hipnose o analista
deixou de influenciar seus analisandos. É preciso restituir a cada teórico tanto
sua parte de subjetividade, quanto de resistência que, tal qual um passageiro
clandestino, se insere em sua teoria. Cabe tanto aos que ensinam quanto aos
que são ensinados, permanecer atentos a essas zonas mudas dos discursos
ensinados. Os fragmentos dos traumas e interdições de pensamento acabam
integrados no grande corpo teórico, enganadoramente coerente. Os eruditos
podem ou não se ocupar disso, mas os analistas não podem se permitir tais
ingenuidades, pois são seus pacientes e seus estudantes que acabam
pagando o preço.

Os mais importantes teóricos nos legaram suas resistências junto com suas
mais geniais descobertas, na mesma maleta. A neutralidade, tal qual
preconizada pelos manuais, não existe. Aliás, o analista influencia seu
analisando que quer se tornar analista, queira ele ou não. Então, como se safar
dessa? Aceitando o principio de incompletude e sabendo que separação jamais
está bem feita. Ela é, no entanto, indispensável na formação para que o jovem
analista possa viver a experiência da solidão na situação analítica.

Espera-se que uma psicanalise tenha um fim. Unida ao amor pela


transferência, distingue-se deste pela promessa implícita que a sub entende.
Enquanto o apaixonado promete amor eterno, mesmo que saiba que é ilusório,
uma analise comporta uma promessa de separação. É inerente a sua ética.
Por outro lado, não devemos confundir filiação analítica e herança familiar.
Reconhecimento e nepotismo. Todos nós temos carregamos o peso herdado
de nossa historia familiar. Nada é jamais totalmente analisado e nem tornado
consciente.

Quem quer realmente se tornar psicanalista?

Toda essa multidão feita de estudantes de psicologia, psiquiatras nostálgicos


de humanidade não medicamentosa, artistas não inteiramente artistas,
cientistas não integralmente cientistas, mulheres que criaram seus filhos e
agora se sentem prontas para cuidar dos males da alma dos outros? O que
querem, todos eles, senão se tornarem psicanalistas? A não ser que queiram
virar terapeutas compassivos, evitando desse modo, essas complicações da
transferência, contra transferência e resistência? Hoje em dia temos muita
gente nos bancos escolares, gente demais ! Por isso senhores e senhoras
psicanalistas, vocês que já estão bem instalados como professores, peguem
uma vara bem grossa e batam, batam forte, segundo o bom e velho principio
do pai fustigador. Batam sem escrúpulos! Porque querer praticar a psicanalise
é uma idéia diabólica e é bem sabido que só se espanta o diabo com pauladas.
E os que fugirem, com de medo de apanhar, não sintam falta deles, nem os
lamentem porque são frouxos e a psicanálise não pode ser confiada aos
frouxos.

E aqueles que resistiram, insistiram, quebraram vossas varas e perseveraram?


Esses, vocês podem aceitá-los, mas fiquem apenas com aqueles que, face o
espetáculo de seus mestres, ou seja vocês mesmos, caíram na gargalhada.
Para se tornar analista é preciso saber rir, ser ousado, não temer a solidão,
aceitar a orfandade, ter humor e aceitar mestres cujo inconsciente é sem fundo
e que, no melhor dos casos, são crianças talentosas, que escaparam por
pouco à loucura de suas famílias. Se vocês baterem suficientemente forte,
vocês terão alguns candidatos aptos a essa “profissão impossível” e esses, ao
menos, saberão, o que “resistir” quer dizer .

Meus caros amigos, vocês me solicitaram esse artigo mas, após quarenta anos
de pratica, não consigo mais abordar certos temas com muita seriedade. Se eu
tivesse deixado de rir, já estaria morta, definitivamente aposentada, ou
mumificada. Teria tido um destino funesto. Quarenta anos de prática e a
frequentação dos “colegas” eis a escola da psicanalise, sem esquecer a rua.
Sim, a rua.

O que fazer em caso de fim de mundo?

Num livro consagrado à tradição oral dos ditos do profeta Maomé, os hadiths
que ainda que não figurem no Corão, representam um fonte de sabedoria, eis o
que podemos ler. A questão que lhe era frequentemente colocada pelos fiéis
sobre “ O que era preciso fazer quando soasse o juízo final ? O Profeta
respondeu: “ Continuem o que estavam fazendo: o lavrador deve continuar a
lavrar, o padeiro a fazer pão...” e eu acrescento: o professor a ensinar... o
psicanalista a psicanalisar.
Assim do lugar de um profeta ateu digo: face à constatação da impossibilidade
de transmitir a psicanalise – constatação que, para alguns, representa o fim do
mundo – o analista continua psicanalisando ... deixando-se roubar sempre que
crê estar transmitindo.... Isso foi algo que profeta não previu.

Na maioria das vezes o analista entra nas instituições para não ficar sozinho, e
alí encontra uns amigos com os quais pode jogar uma pelada. Isso também se
chama formação. A instituição só é aceitável se a considerarmos como uma
rua um tanto estreita. Isso porque em seu consultório, em sua pratica, o
analista está tão sozinho quanto o goleiro na hora do penalti. Quanto tomado
pela duvida, abre sua memória de trabalho e procura em seu aprendizado o
que poderia ajuda-lo a sair do embaraço, geralmente nada encontra, e é
nessas horas que sai a procura dos outros analistas, para pensarem juntos e
não permanecer sozinho. Depois, procura naquilo que a sua experiência de
vida lhe ensinou, algo que lhe permita recolocar em marcha sua maquina
pensante e desejante.

O analista trabalha com pensamentos que são afetos. Sem seus


pensamentosafetos ele não passa de um técnico ou de um burocrata. E depois,
às vezes, ele profere uma palavra, uma frase, ou faz um relato que lhe vem de
não se sabe de onde e o analisando se diz :” isso eu jamais vou esquecer”...
mas esquece. O analista é, às vezes, tomado pela língua que o fala, a língua
que é a memória lenta da humanidade, é atravessado por um fragmento
ouvido, lido, pensado ou sofrido e é quando “ isso fala”. Quando o analista ousa
deixar o outro falar nele, seu corpo de saber. Até o saber livresco pode, num
analista apaixonado, transformar-se em palavra viva, atravessar seu coração e
sair numa língua desconhecida. E as línguas desconhecidas se transmitem:
isso de chama uma formação de um analista.

Radmila Zygouris Paris le 31 Juillet 2012

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