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All content following this page was uploaded by Maria Angelica Zubaran on 15 July 2022.
Resumo
O presente artigo analisa a construção do pertencimento étnico-racial na sociedade brasileira e sua
articulação com as memórias negras e o patrimônio cultural afro-brasileiro, a partir da perspectiva
teórica dos Estudos Culturais em Educação e dos Estudos Afro-Brasileiros. Examina-se a
centralidade de alguns discursos, tais como: o discurso da democracia racial, do branqueamento e
da diáspora negra e suas múltitplas implicações na construção do pertencimento étnico-racial e na
produção de sujeitos e subjetividades na sociedade brasileira contemporânea.
Palavras-chave: pertencimento étnico-racial, memórias negras, patrimônio cultural afro-brasileiro
Abstract
The current article analyzes the construction of ethnic-racial belonging in contemporary Brazilian
society and its articulation with black memories and black cultural heritage from the theoretical
perspective of Cultural Studies and Afro-Brazilian Studies. It also examines the main discourses in
Brazilian ethnic relations such as the discourse of racial democracy, whitening, and black diaspora,
and its multiple implications in the construction of ethnic-racial belonging and in the production of
subjects and subjectivities in contemporary Brazilian society.
Key-words: ethnic-racial belonging, black memories, Afro-Brazilian heritage
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étnico-raciais que constituem a humanidade" (SILVA, 2010, p. 37-38). Vale lembrar que o
estudo da história da África, da história e da cultura afro-brasileiras foram reivindicações
que sempre estiveram presentes na pauta das discussões do Movimento Negro (Alberti e
Pereira, 2007, p. 429-432).
Não obstante, a política educacional proposta pelas diretrizes curriculares requer o
aprofundamento dos conceitos de raça, etnia, cultura afro-brasileira e identidades negras e
sua contextualização no processo histórico em que se constituiu a nação. De acordo com
Márcia Abreu (2005) esses conceitos, assim como outros, precisam ser entendidos
enquanto categorias politicamente construídas ao longo da história. Assumir a existência
natural de identidades negras ou de uma cultura afro-brasileira é perder a dimensão política
"das lutas travadas em torno da construção das identidades indígenas e negras, ao longo da
história do Brasil" (Abreu, 2005, p. 424). Nesta direção, Hall (2003) destaca que é somente
através da maneira como o termo "negro" é representado e imaginado nos discursos em
situações históricas específicas que os seus significados flutuantes podem ser examinados.
A construção das identidades negras passa, pois, necessariamente, pela forma como os
negros são representados e como representam a si próprios nos mais variados locais da
cultura.
No âmbito da educação escolarizada, em seus diferentes níveis, da educação infantil ao
ensino superior, uma das questões sobre a qual é preciso refletir diz respeito à construção
de currículos que não silenciem sobre a diversidade étnico-cultural e que expressem, sem
estereótipos e preconceitos, as contribuições e visões de mundo dos diferentes grupos
étnico-raciais que compõem a nação brasileira. Afinal, na escola não aprendemos somente
Português, Matemática ou Estudos Sociais, o currículo não envolve apenas questões
técnicas, relativas a conteúdos, mas transmite visões sociais particulares, que estão
envolvidas com a produção de identidades específicas. Tomaz Tadeu da Silva sublinha que
as narrativas dos currículos escolares e de outras instâncias culturais contam histórias que
fixam noções particulares dos diferentes grupos sociais e étnico-raciais; enquanto alguns
são valorizados e instituídos como cânones, outros são desvalorizados, negados e omitidos.
Como afirma Nilma Nilo Gomes, "(...) não podemos continuar nos escondendo atrás de um
currículo escolar que silencia, impõe estereótipos e lida de maneira desigual,
preconceituosa e discriminatória com as diferenças presentes na escola" (Gomes, 2006, p.
24). Neste sentido, a cultura negra estigmatizada e estereotipada, como frequentemente é
apresentada pela mídia e também pelos livros didáticos, é a forma como a sociedade branca
representa a população negra, são os lugares que pretende lhe reservar na sociedade, espaço
onde os negros são representados para o público lá fora e também para si mesmos.
Se, como já foi dito, as identidades dos negros brasileiros vêm sendo construídas no
contexto do racismo biológico, da ideologia do branqueamento e da democracia racial é
fundamental, ainda, não perder de vista a formação diaspórica das culturas negras,
particularmente as suas raízes africanas. Na perspectiva do sociólogo britânico Paul Gilroy
(1993), as identidades negras são criadas e redefinidas através de uma troca triangular de
símbolos e ideias entre a África, Américas e a Europa, numa área cultural transnacional,
multilinguística e multirreligiosa, de convergência das culturas de matriz africana, chamada
"Atlântico Negro". Também René Depestre (1998) aponta que estamos diante de processos
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matriz africana, que se expressa por meio da oralidade nas diversas formas de festejar, nas
religiosidades, na culinária, nos ervanários, na música negra, nas danças e em todas as
formas de expressão dos corpos negros nas cidades, no campo, nos quilombos tradicionais
e urbanos. No entanto, vale à pena lembrar, como apontou Guimarães (2003), que até o
final dos anos 1960 o termo "negro" continha um valor semântico pejorativo que talvez
resultasse "da sua associação com "africanos", ou "escravos", pensados como estrangeiros à
nação e a cultura que essa nação queria reivindicar para si" (Guimarães, 2003, p. 267).
Recentemente, crescem as demandas dos novos atores sociais para a construção de
seus próprios lugares de memória. Nessa direção, cabe destacar um conceito que se revela
interessante para refletir sobre as articulações entre memória, patrimônio cultural e
identidades negras na contemporaneidade, o conceito de territórios negros. Os territórios
negros marcam os lugares de memórias negras, desde os diversos espaços de trabalho do
negro nas cidades aos espaços destinados às suas manifestações culturais, que incluem,
além das práticas culturais cotidianas, as práticas de resistência negra à escravidão e ao
racismo. Os territórios negros são os espaços onde se preservaram as práticas culturais de
matriz africana e onde se construíram identidades negras positivas.
Em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, o Movimento Negro e o Programa
Monumenta, com base na definição de territórios negros, implantaram o Museu de Percurso
do Negro. Como afirma a antropóloga Ilma Vilasboas (2010), o Museu visa dar visibilidade
ao patrimônio material e imaterial dos negros e promover, no Centro Histórico da cidade, a
visualização dos territórios negros. Cada local receberá um marco simbólico representativo,
produzido em oficinas por artistas da própria comunidade negra. De acordo com a autora, o
Museu de Percurso do Negro implica na re-leitura de uma história e de uma cidade negra
que foram esquecidas e no incentivo à apropriação e re-apropriação do patrimônio cultural
negro, permitindo a preservação das memórias negras e contribuindo para construção de
identidades negras positivas. Nesse sentido, pode-se perguntar: O que se pretende com o
estudo das memórias negras no Brasil? De acordo com Emanoel Araújo:
O estudo das memórias negras pretende resgatar entre os negros uma certa auto-
estima e uma imagem que nos sirva de orgulho de nossos heróis, que
pretendemos que sejam devolvidos em carne e osso, em sangue e espírito (...)
Não mais como lendas perdidas numa nebulosa história. Precisamos ter orgulho
dos feitos de nossos homens e mulheres que, a despeito do estigma herdado da
escravidão, marcaram seu lugar na história, como cientistas, engenheiros, poetas,
escritores, doutores, escultores, pintores, historiadores. Queremos que os nossos
sejam reconhecidos (Araújo, 2004, p. 247).
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Correspondência
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva – Professora Titular da Universidade Federal de São Carlos -
UFSCAR, Mestre e Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Pós-
Doutora em educação pela Universidade da África do Sul.
Email: pbgs@terra.com.br
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