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VEGETARIANA
A VEGETARIANA
Han Gang
Título Original: 채식주의자 (Chaesik-juija)
Copyright © 2013 by Han Gang
Capa:
Tradução: Yun Jung Im
Revisão: Devir Livraria
Diagramação Eletrônica: Tino Chagas
DEV333130
ISBN: 978-85-7532-572-6
1ª Edição: publicada em novembro/2013
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
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Gang, Han
A Vegetariana / Han Gang; [tradução: Yun Jung Im] —
São Paulo : Devir. 2013
Título original: 채식주의자 (Chaesik-juija)
ISBN: 978-85-7532-572-6
1. Ficção Coreana I. Título.
13-11319 CDD-895-73
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Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura Coreana 895-73
Brasil Portugal
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Cambuci Brejos de Carreteiros
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Olhos de Água
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Prefácio: Novela–Novelas
Moacir Amâncio 7
A Vegetariana 13
A Mancha Mongólica 59
Árvores-flamas 119
C
onta-se que nos tempos da faculdade a futura escri-
tora coreana Han Gang, nascida em 1970, foi atingida
fatalmente por um verso do poeta Yi Sang* no qual o
eu lírico dizia acreditar “que os seres humanos deveriam ser
plantas”. Talvez por isso, em vez de escolher um animal qual-
quer em que sua personagem poderia se transformar, como
estratégia desesperada na tentativa de recuperar o humano em
seu limite, a ficcionista surpreende o leitor ao descrever, com
precisão alucinatória, a mutação de uma mulher numa planta.
O primeiro sintoma desse impulso que se tornará o motivo de
sua vida — e morte da razão — é a necessidade irrevogável de
se tornar vegetariana — daí o título da novela que se aplica ao
conjunto de textos incluído no volume, seguindo-se “Mancha
Mongólica” e “Árvores-flamas”. O processo torna-se irreversível
e o estupor do marido e da família em torno da personagem que
recusa qualquer alimento próximo à carne, parece desencadear
um raio de loucura generalizado. O mundo perde a sustentação
óbvia. Todos se envolvem na luta pela salvação dela. Coloca-se,
claro, um problema clínico, de maneira alegórica, ou seja, o
senso comum ao lidar com quaisquer questões, inclusive aque-
las que, mesmo dadas na fisicalidade, transcendem-na, pois é
esse o objetivo mais negado e reprimido do que ignorado.
* Georges Bataille. Notas do Prefácio de História do Olho. São Paulo: Editora e Livraria Es-
crita Ltda., 1981, p. 14.
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todos os limites”. É uma superação de si mesmo que se dá na
erótica, na morte, na mística. Ao reduzir as personagens ao
elemental, ou à busca do elemental, a escritora recupera algo
que se tornou o grande problema da ficção contemporânea, que
é a recuperação do pacto entre a narrativa e o leitor. Porque
na zona obscura, valores que justificam a vida se desfazem,
ideologias não resistem, revelam-se postiças, e até mesmo o
corpo, que experimenta o limite, se desarticula, pois também
é uma máquina de produzir sentidos já inexistentes. Restam
a carne, as folhas incendiadas e portanto consumidas no único
elemento que as anima, o fogo. No aspecto da técnica literária,
considere-se ainda o apuro da escritora ao produzir três novelas
interligadas que configuram na verdade uma só novela, ou um
romance breve, como fez Graciliano Ramos em Vidas Secas, um
romance-contos. Ou Luiz Ruffato, que levou o método a outras
consequências, na clave do fragmento, em Eles Eram Muitos
Cavalos. É o que se espera de uma literatura que se questiona
a si mesma e portanto ao próprio ser humano como história e
existência.
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a vegetariana
N
unca achei nada especial na minha esposa até que se
tornasse uma vegetariana. Para ser franco, nem me
senti atraído quando a vi pela primeira vez. Nem alta
nem baixa. Cabelo aparadinho nem longo nem curto, pele ama-
relada devido ao acúmulo de células mortas, pálpebras lisas que
faziam afinar os olhos e as maçãs do rosto ligeiramente saltadas.
Seu traje era sem cor, como se temesse passar uma imagem de
estilo e personalidade. Aproximou-se da mesa onde eu esperava
calçando um sapato preto simples, o mais básico possível. Com
um andar nem rápido, nem lento, nem vigoroso, nem frágil.
Acabei me casando, talvez pelo fato dela me parecer não
ter nenhum defeito em especial, assim como não possuir
qualquer charme especial. Era-me confortável o seu tempe-
ramento sem arestas, sem originalidade ou espirituosidade,
sem qualquer traço de sofisticação. Eu não precisava fingir ser
bem-informado para conquistá-la, nem precisava me ataba-
lhoar para não atrasar nos compromissos e nem havia motivo
para me sentir diminuído diante de modelos que apareciam em
catálogos de moda. Na verdade, eu alimentava um sentimento
inconfessável de inferioridade pela barriguinha que começara
a aparecer depois dos vinte e cinco anos, pelas pernas e braços
finos que não ganhavam músculos apesar dos esforços, além do
meu membro pequeno, mas nada disso me incomodava quando
se tratava dela.
Han Gang
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— O que está você fazendo?
Perguntei, sem completar o movimento de acender a luz do
banheiro. Seria talvez umas quatro horas? Acordara sentindo
sede e vontade de urinar por causa da garrafa e meia de soju*
que tomara no jantar de negócios.
— Hein? O que é que você está fazendo aí?
Olhei em sua direção, tomado por um súbito calafrio.
O sono e a embriaguez se dissiparam. A esposa estava de pé
completamente imóvel, frente a frente com a geladeira. Com o
rosto de perfil imerso na escuridão, eu não conseguia distinguir
a sua expressão, mas havia algo de assustador nela. Seus cabelos
pretos, fartos e sem tintura, estavam avolumados e ressecados.
A saia da camisola branca batendo no tornozelo estava com a
borda ligeiramente enrolada para cima, como sempre.
Diferentemente do quarto, fazia um friozinho gelado
na cozinha. Se estivesse se comportando como de costume,
sendo friorenta como era, a esposa teria se apressado em pôr
um cardigan nas costas e ir atrás do chinelo de lã. No entanto,
não se sabe desde quando, ela estava descalça trajando uma
camisola fina de meia-estação, de pé imóvel como se não tivesse
ouvido coisa alguma. Era como se no lugar da geladeira alguém
se postasse ali, inarredável, invisível aos meus olhos — uma
assombração talvez.
O que será? Será o tal do sonambulismo?
Aproximei-me da esposa de perfil, rígida como uma estátua
de pedra.
— O que foi? O que você está fazendo a essa hora…
Pus a mão sobre o seu ombro, mas supreendentemente ela
não se assustou. Não que estivesse desligada, pelo visto, estava
ciente de tudo que acontecera desde que eu saí do quarto, das
minhas indagações e da minha aproximação. É que ela simples-
mente ignorou. Assim como faz quando volto tarde enquanto
está absorta na última novela da noite. Mas o que é que haveria
* G????????
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* Prato composto por carnes (bovina, suína, frango, camarão), verduras (agrião, acelga,
alho poró, cebolinha, broto de feijão, etc.), cogumelos (shiitake e shimeji) e outros (macar-
rão, massa de peixe etc.). Os comensais devem segurar esses ingredientes com os hashi e
mergulhá-los num caldo de carne previamente preparado, o qual serve apenas para cozi-
nhar, rapidamente, tais ingredientes. Em seguida, são servidos com um molho.
** Espécie de pastel tipo guioza recheado de verduras e carne.
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Eu sonhei, foi o que ela disse duas vezes. Seu rosto passou de
relance além do vidro do trem que corria e por sobre a escuridão
do túnel. Parecia ser um rosto estranho, de alguém que eu via
pela primeira vez. Mas não havia mais tempo para pensar sobre
o comportamento estranho da esposa, pois eu tinha apenas
trinta minutos para bolar uma desculpa e ainda elaborar a pro-
posta a ser apresentada ao cliente naquele dia. Hoje vou ter
que voltar cedo para casa de qualquer jeito, faz meses que não
volto antes da meia noite, desde que mudei de departamento,
balbuciei para mim mesmo.
Era um bosque escuro. Não havia ninguém. Eu havia me
ferido no rosto e nos braços tentando abrir caminho por entre as
árvores de folhagens pontiagudas. Com certeza eu estava junto
com outros, mas acho que me perdi sozinha. Estava com medo.
Com frio. Atravessei um pequeno vale de riacho congelado e
encontrei uma construção clara que parecia um galpão. Quando
afastei os trapos que cobriam a entrada e adentrei, pude ver:
pedaços grandes de carne vermelha, centenas deles, pendurados
na ponta de longos paus. De alguns deles ainda pingava sangue
vermelho. Fui avançando, afastando as carnes sem fim, sem con-
seguir chegar à saída do outro lado. A roupa branca ficou toda
molhada de sangue.
Não sei como consegui escapar de lá. Atravessei de volta o
vale e corri sem parar. De repente, o bosque ficou claro e as árvores
de primavera encheram-no de verde. Havia crianças por todos
os lados e cheiro de coisas gostosas. Eram muitas famílias em
piquenique. A cena era indescritivelmente esplêndida. Ouvia-se
a água corrente do riacho, pessoas sentadas nas margens, gente
comendo guimbap,* churrasco sendo assado num canto, som de
gente cantando e risos de alegria.
Mas eu tinha medo. A roupa ainda estava manchada de
sangue. Aproveitei que ninguém ainda me vira e me escondi
atrás de uma árvore. Tinha sangue nas minhas mãos. Tinha
sangue na minha boca. Eu comera um naco de carne que estava
caído naquele galpão. Esfreguei a carne fresca gotejante na
* Arroz enrolado em folha seca de alga com recheio de verduras e carne.
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* Acompanhamento obrigatório em mesas coreanas feito de acelga que, após ser salgada,
passa por um processo de fermentação com pimenta e temperos diversos.
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* Sal natural acondicionado dentro do oco do bambu e fechado com terra vermelha, e de-
pois queimado em fornalha de lenha de pinheiro, repetindo-se o processo por nove vezes.
Nesse processo, as toxinas e as impurezas contidas no sal são eliminadas e as propriedades
do bambu e da terra vermelha são absorvidas. O sal de bambu é prezado por suas proprie-
dades medicinais.
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* Prato feito com macarrão de batata-doce, de aspecto translúcido, misturado com legu-
mes e carne.
** Bebida destilada típica coreana que pode ser feita de arroz, batata-doce, batata ou outra
fonte de amido.
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* Carne fatiada e marinada com molho de soja, alho, açúcar e outros temperos, e assada
na grelha ou frigideira.
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* Prato tradicional da corte real coreana feito de gelatina de ervilha, carne e verduras va-
riadas misturadas, temperado com óleo de gerge-lim, vinagre e molho de soja.
** Gelatina de ervilha.
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* Teoria criada pelo médico coreano Lee Je-Ma no final do século XIX, classificando quatro
tipos de constituição física: Pequeno Yang, Pequeno Yin, Grande Yang e Grande Yin. Entre
outros preceitos, haveria para cada constituição física alimentos mais apropriados.
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* Come-se o mini-polvo ainda vivo, geralmente por inteiro, com molho de pimenta coreana.
** Frango em pedaços pequenos, fritos e passados em molho doce-apimentado.
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Por fim, pensei em ligar também para o cunhado, mas achei que
era demais e me detive.
Voltei a sonhar.
Alguém matou uma pessoa, e outro alguém escondeu aquilo
completamente, mas no momento em que acordei, esqueci se
fui eu quem matou, ou se eu é que fui morta; e se fui eu quem
matou, quem morreu por minhas mãos; ou será que era você?
Era alguém muito próximo a mim… Se não, será que foi você
quem me matou? E nesse caso, quem foi que escondeu aquilo?
Isso com certeza não fui eu nem você… Foi com uma pá. Quanto
a isso tenho certeza. Um golpe na cabeça com uma grande pá.
O eco pesado e grave. O grito no momento em que o metal
se chocou com a cabeça… Lembro-me muito vividamente da
sombra tombando na escuridão.
Esta não foi a primeira. Tive esse sonho inúmeras vezes.
Dentro do sonho, lembro-me do sonho anterior, como acontece
quando a gente está embriagado e se lembra da embriaguez
anterior. Alguém matou alguém, incontáveis vezes. Bruxu-
leante, inapreensível… mas a lembrança me vem numa sensação
sólida de dar calafrios.
Você não deve entender. Sempre tive medo quando via
alguém cortar alguma coisa sobre a tábua de cozinha. Ainda
que fosse a minha irmã, não, que fosse a minha mãe. Não sei
explicar por que. Somente que é uma sensação insuportável.
Nesses momentos, costumava tratá-las ainda mais carinhosa-
mente Não quero dizer que foi a minha mãe ou a minha irmã a
ser morta ou a matar no sonho da noite passada. Mas somente
que sobrou aquela sensação, gélida, suja, horripilante e cruel.
De ter matado alguém com as próprias mãos, ou a de ser assas-
sinada por alguém. Uma sensação impossível de imaginar se não
se passa por isso… resoluta, aniquiladora. Morna como o sangue
ainda esfriando.
Por que será. Estranho tudo que está ao meu redor. Pareço
estar posta no lado avesso de alguma coisa. Pareço estar presa
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atrás de uma porta sem maçaneta. Não, talvez, será que somente
agora me dei conta de que estive aqui desde o início? Está escuro.
Tudo está esmagado num breu.
Diferentemente do que eu esperava, as tentativas da sogra
e da cunhada não surtiram qualquer efeito nos hábitos alimen-
tares da esposa. Nos finais de semana, a sogra me ligava e per-
guntava:
— A Younghye ainda não está comendo carne?
Até o sogro, que nunca telefonava, deu um pito na esposa.
Os gritos exaltados se extavasavam do telefone e chegavam aos
meus ouvidos.
— O que é que você está fazendo? Que você seja assim, mas
e o seu Jeong, que está no auge da idade?!
A esposa ficou segurando o telefone no ouvido quietamente,
sem responder nem que sim, nem que não.
— Por que não responde? Está ouvindo?
Como a panela da sopa começara a ferver, ela pôs o telefone
sobre a mesa sem dizer nada e foi até a cozinha. Foi e não voltou.
Condoído do sogro que esbravejava sem o interlocutor, peguei
o telefone.
— Desculpe, seu sogro.
— Que é isso, eu é que fico sem cara.
Fiquei surpreso pelo tom de desculpas do sogro patriarca-
lista, coisa que nunca ouvira nos cinco anos de casado. Palavras
de consideração e cuidado não combinavam com ele. O seu
maior motivo de orgulho era a condecoração pelos destacados
serviços militares prestados durante a guerra do Vietnã. Sua
voz era muito potente, e seu brio, tão intenso quanto a voz. Eu
no Vietnã, peguei uns sete vietcongs… Assim começava o seu
repertório favorito que eu, genro, já ouvira umas vezes. Segundo
a esposa, ela era castigada pelo pai com golpes de varinha na
batata da perna até os dezoito anos.
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que a sua resposta é uma brincadeira. Mas ela não sorriu. Era
oito horas da noite, a porta de vidro da sacada estava aberta, e
o interior do apartamento não estava quente. Em seus ombros,
via-se a pele arrepiada como sementinhas de gergelim. Havia
um monte de cascas de batata sobre o jornal estendido no chão.
Mais de trinta batatas formavam uma pequena colina.
— O que pretende fazer com elas? — perguntei, fingindo
indiferença.
— Vou cozinhar para comer.
— Mas tudo isso?
— É.
Soltei umas risadinhas esperando que ela risse junto comigo.
Mas, ela não riu. Nem sequer levantou o rosto em minha direção.
— Nada não, só estou com fome.
Quando no sonho eu corto a cabeça de alguém; quando,
segurando a cabeça pelos cabelos, eu forço o vai-e-vem da faca
sobre o pescoço ainda não destacado totalmente; quando colo-
co o olho gelatinoso sobre a palma da mão; e quando acordo
no meio disso. Acordada, fico com vontade de matar a pomba
que caminha à minha frente cambaleante; quando fico com
vontade de esgoelar o gato do vizinho que vinha observando
por um longo tempo; quando as pernas tremem e brota um suor
frio; quando pareço ter me tornado outra pessoa; quando outro
alguém desponta de dentro de mim e me devora; e nessas horas…
É quando fico cheia de água na boca. Quando passo na frente
de um açougue tenho de tampar a boca. Por causa da saliva que
me enche a boca, desde a raiz da língua e molha os lábios. Por
causa da saliva que transborda por entre os lábios e fica a ponto
de escorrer.
Se eu conseguisse dormir. Se eu pudesse largar a consciên-
cia ao menos por uma hora. Acordo inúmeras vezes durante a
noite e ando de um lado a outro descalça, com a casa já toda
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fria. Gelada como uma comida já fria, uma sopa já fria. Não con-
sigo ver nada do outro lado da janela escura. De vez em quando
a porta de entrada escura se sacode, mas não há ninguém que
tenha batido na porta. Quando volto e experimento colocar a
mão por baixo das cobertas, tudo já está frio.
Agora não consigo dormir mais do que cinco minutos. Assim
que a consciência me deixa, ainda que sorrateiramente, já estou
no sonho. Não, nem se pode dizer que se trata de um sonho.
São cenas curtas que me assaltam intermitentemente. O brilho
seboso dos olhos de um animal, um vulto de sangue, um crânio
todo revirado, e novamente os olhos de um animal feroz. Olhos
que parecem ter subido de dentro da minha barriga. Quando
acordo trêmula, certifico-me das minhas mãos. Para ver se as
unhas ainda estão sedosas, se os meus dentes ainda estão dóceis.
Meu seio é a única coisa na qual eu confio. Gosto dos meus
peitos. Pois não se pode matar nada com esses peitos. Até as
mãos, até os pés, até os dentes e a língua de três polegadas, até
mesmo o olhar, qualquer coisa é uma arma que pode matar e
ferir, não é mesmo? Mas o peito não. Enquanto tiver esses seios
redondos eu estarei bem. Eu ainda estou bem. Mas, por que
esses peitos não param de definhar? Agora, nem mais redondos
são. Por que será? Por que será que eu estou secando deste jeito?
Por que estou ficando tão afiada? Para perfurar o quê?
Era o décimo sétimo andar de um prédio de apartamentos,
bem ensolarado. O bloco da frente bloqueava a paisagem, mas,
por trás dele, podia-se ver a montanha ao longe.
— Agora posso deixar de me preocupar com vocês. Estão
completamente estabelecidos! — comentou o sogro, enquanto
pegava na colher.
Era o apartamento comprado com o ganho da loja de cosmé-
ticos que a cunhada vinha tocando desde antes de se casar.
Ela fez a loja triplicar até o final da gravidez, e depois de ter a
criança, dava um pulinho na loja somente às noites. Voltou a
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sei o que é. Está sempre parada ali. Sinto uma bolota mesmo
quando estou sem o sutiã. Tento expirar o mais longamente
possível, mas a dor no peito não alivia.
Isso está incrustado ali, onde gritos e prantos se compac-
taram em camadas. É por causa da carne. Comi carne demais.
Todas aquelas vidas estão paradas ali. É isso. O sangue e a carne
foram digeridos e espalhados para todos os cantos do corpo,
os resíduos foram excretados, mas as vidas ficaram tenazmente
grudadas na entrada do estômago.
Uma vez, uma única vez, queria dar um grito forte. Queria
sair correndo em direção ao escuro. Será que dessa maneira esta
bolota será expelida para fora do corpo? Será isso possível?
Ninguém pode me ajudar.
Ninguém pode me salvar.
Ninguém pode me fazer respirar.
Quando voltei, depois de colocar a sogra num táxi, o quarto
estava escuro. A colegial e a sua mãe, fartas do rebuliço, tinham
apagado a luz, desligado a tv e fechado a cortina. A esposa
estava adormecida. Deitei-me encolhido na cama auxiliar e ten-
tei dormir. Não conseguia atinar por onde, em quê e de que jeito
eu deveria dar uma ordem. Somente uma coisa era certa. Esse
tipo de coisa não podia acontecer comigo.
Adormeci e sonhei. Eu estava matando alguém. Cravei uma
faca na barriga e forcei partindo-a ao meio. Retirei o intestino,
comprido e ondulado. Separei toda a carne sumarenta e o mús-
culo deixando apenas o osso, feito um peixe. Mas acabei me es-
quecendo quem era a vítima no momento em que acordei.
Ainda era madrugada escura. Tomado por um estranho
impulso, levantei o lençol que cobria a esposa. Tateei a sua
escuridão negra. Não havia sangue empoçado nem vísceras revi-
radas. Do leito ao lado podia-se ouvir um ronco baixo e áspero,
mas a esposa estava estranhamente quieta. Sentindo um tremor
bizarro, estendi o indicador e o levei ao seu nariz. Estava viva.
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Voltei a dormir. Quando acordei, o quarto já estava claro.
— O senhor dormiu tão profundamente… que nem tomou
conhecimento quando trouxeram a refeição — disse a jovem
mãe da colegial, num tom de quem estava condoída.
Olhei para a bandeja posta sobre a cama. Para onde ela teria
ido, deixando a bandeja assim sem nem abrir a tampa? A agulha
do soro também estava fora, pendendo manchada de sangue na
ponta da mangueira fina e longa.
— Ela foi a algum lugar? — perguntei, enquanto limpava a
marca de saliva escorrida no canto da boca.
— Quando a gente acordou, ela já não estava aí.
— O quê? Deviam ter me acordado, então.
— É que o senhor dormia tão profundamente… Nós pen-
samos que ela tinha alguma coisa para fazer.
A jovem mãe enrubeceu, sem saber o que dizer, um tanto
irritada.
Agarrei as duas pontas da camisa desabotoada e saí corren-
do. Revirava o pescoço atabalhoadamente pelo corredor com-
prido e passei pelo elevador, mas não conseguia avistá-la. Es-
tava aflito. Tinha pedido para entrar duas horas mais tarde
naquela manhã. A ideia era terminar o procedimento de alta
nesse ínterim. No caminho de casa, diria à esposa, e também a
mim mesmo, para pensarmos por ora que tudo não passara de
um sonho.
Peguei o elevador e desci para o andar térreo. Ela também
não estava no lobby. Sôfrego e sem parar de olhar em volta, corri
para o jardim onde estavam vários pacientes que haviam saído
depois da refeição matutina. Estavam ali para saborear o ar
fresco da manhãzinha. Pareciam ser pacientes de longo prazo,
com rostos cansados e melancólicos, mas com uma expressão
de paz a seu modo. Quando me aproximei de uma fonte de on-
de não jorrava água, vi pessoas amontoadas num burburinho.
Avancei, abrindo o caminho por entre os ombros.
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* Em hospitais coreanos, usa-se uma roupa específica para os internos, fornecida pelo hos-
pital.
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— …Não posso?
Abri a sua mão direita duramente cerrada. Um passarinho
com o pescoço esmagado dentro do seu punho caiu sobre o
banco. Era um pequeno pássaro, um branco-olho, com as penas
arrancadas aqui e ali. Como se tivesse sido esgarçada por um
predador, via-se a marca de uma dentada grosseira e, abaixo
dela, uma mancha de sangue, vermelha e nítida.
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U
ma cortina roxa escura cerrou o palco. Os dançarinos
seminus agitaram vigorosamente as mãos até que seus
corpos não pudessem mais ser vistos. O som das pal-
mas da platéia era forte e ouvia-se gritos ocasionais de “bravo!”,
mas não houve pedido de bis. A ovação baixou em instantes, e
os espectadores se apressaram em pegar suas coisas e roupas
e buscaram as saídas. Ele também descruzou as pernas e se
levantou. Durante os cinco ou mais minutos de ovação, ele não
bateu palmas em nenhum momento. De braços cruzados, ficou
mirando quieto os olhos e os lábios dos dançarinos que se pos-
tavam sobre o palco sedentos de aclamação. Embora sentisse ao
mesmo tempo compaixão e admiração pelo esforço deles, não
desejou que suas palmas fossem dirigidas ao coreógrafo.
Atravessou o hall do teatro lançando um olhar rápido para
o cartaz do espetáculo, já perdido de sua utilidade. Quando se
deparara com o cartaz por acaso numa livraria da cidade, ele
estremecera. Apressou-se em reservar um lugar por telefone te-
mendo perder a última apresentação, que acabara de terminar.
No cartaz, homens e mulheres nus estavam sentados obliqua-
mente mostrando as costas. Havia flores e ramos em vermelho e
verde, e uma folhagem espessa pintadas da nuca às nádegas. De
frente para eles, sentiu-se amedrontado, irrequieto e sufocado.
Não podia acreditar que a imagem que o arrebatara há um ano
estava sendo emanada de uma outra pessoa — o coreógrafo —
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abrir a porta do táxi que corria com uma certa rudeza e rolar
pelo asfalto. Ele não podia mais suportar aquelas imagens da
realidade. Em outras palavras, parecia que ele não tinha odiado
aquelas coisas com intensidade suficiente quando pôde lidar
com elas. Ou ainda, sentado dentro de um táxi numa tarde de
verão quente e abafada com o cheiro de sangue da cunhada
espicaçando as narinas, todas aquelas coisas ameaçavam-no,
causavam-lhe náusea e o sufocavam. Pensou então que talvez
não fosse mais capaz de fazer qualquer trabalho daí para frente
por um longo tempo. Numa só tacada, ele se cansara, fartara-se
da vida, e não era capaz de suportar nada que abarcasse a vida.
Todos os trabalhos que executara em mais de dez anos
estavam silenciosamente lhe dando as costas. Aquelas coisas
já não eram mais dele. Eram de alguém que ele conhecia, ou
acreditava conhecer.
Do outro lado do telefone, a cunhada estava calada. Ela cer-
tamente atendeu o telefone, e dava para ouvir debilmente algo
como uma respiração, sobre a qual se sobrepôs um barulho de
tac-tac desconhecido.
— Alô — pesadamente, ele abriu a boca. — Cunhada, sou
eu. Está ouvindo? É porque a sua irmã… — prosseguiu, despre-
zando-se a si mesmo, experimentando asquerosamente a sua
própria hipocrisia e artimanha — ...anda preocupada demais.
Deu um suspiro curto em direção ao outro lado do telefone,
de onde não vinha resposta alguma. Como sempre, a cunhada
devia estar descalça. Quando teve alta depois de vários meses
internada na ala psiquiátrica do hospital, ela passou um tempo
na sua casa, enquanto a família toda tentava acalmar o concu-
nhado que dizia preferir ele mesmo se internar a voltar a viver
com ela. Até que, finalmente, saiu da sua casa para uma quitine-
te, o mês que passara com ela não fora especialmente difícil,
nem incômodo. Como até então ele nem tinha ouvido falar da
mancha, ficava somente a olhá-la com pena e incredulidade.
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* Uma janela dando para o sul corresponde a uma janela dando para o norte no Brasil,
isto é, aquela que permite uma boa ensolação, uma vez que a Coreia está localicada no
hemisfério norte.
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cada vez que a ponta da língua saía para fora da boca, como se a
língua dela e o seu corpo estivessem ligados por um fio elétrico.
Ele pensou: Talvez só haja um jeito. Talvez o único jeito de
escapar desse inferno seja realizando esse desejo.
— O que eu tenho para te pedir…
Ela arregalou os olhos com a ponta de língua branca de sor-
vete. Dentro daqueles olhos, de linhas simples e pálpebras lisas
como cabe a uma mongoliana, as pupilas, nem pequenas nem
grandes, brilhavam tenuemente.
— Estou pedindo para que seja minha modelo.
Ela não sorriu nem se assustou. Ficou mirando-o silenciosa-
mente como se atravessasse o seu interior.
— Já esteve em uma exposição minha, né?
— Sim.
— É um trabalho de vídeo parecido. Não vai levar muito
tempo. Só que… precisa tirar a roupa.
Sentiu que nesse instante estava ficando ousado, o suor
já não estava escorrendo e nem as mãos tremendo. A cabeça
também esfriara, como se tivesse colocado um saco de gelo
sobre ela.
— Você vai tirar a roupa, e eu vou pintar o seu corpo.
Ainda mirando-o silenciosamente, ela abriu a boca.
— …E que mais?
— Basta ficar assim. Até eu terminar de filmar.
— Disse que vai pintar… o meu corpo?
— Vou desenhar flores.
Os olhos dela pareceram ter dado uma tremida. Mas talvez
fosse apenas impressão.
— Não vai ser difícil. De uma a duas horas, não mais que
isso. Pode ser a qualquer hora, quando for conveniente para
você.
Aparentando ter dito tudo o que tinha a dizer, ele abaixou
a cabeça quase resignado e ficou olhando para o seu sorvete.
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— Não vai sair fácil. Tem que lavar várias vezes até…
Ela disse, cortando-o:
— Queria que não se apagassem.
Por um instante, ele ficou estupefato olhando para o rosto
dela encerrado pela metade na escuridão.
Foram até o centro e procuraram por uma rua de restau-
rantes. Ele escolheu um com a placa que dizia servir comida de
templos, em consideração a ela que não comia carne. Ele pediu
uma refeição completa, e mais de vinte pequenas guarnições
bem arrumadinhas foram postas sobre a mesa, e veio um arroz
na panela de pedra cozido com castanhas portuguesas e uma
raiz de ginseng. Ele a observava erguendo a colher, quando de
repente se deu conta de que não tocara em um fio de cabelo dela
durante as quase quatro horas em que estivera nua. É certo que,
desde o início, só pretendia filmá-la nua, mas era surpreendente
que não tivesse experimentado qualquer desejo sexual.
Entretanto, ao vê-la agora vestida com um suéter grosso de
lã e colocando a colher na boca, ele pôde certificar-se de que o
milagre daquela tarde — em que cessara o desejo obcecado e
doloroso de um ano inteiro — estava terminado. A imagem de
avançar nos lábios dela que se remexiam e de deitá-la violen-
tamente a ponto de fazer todos que estavam no restaurante
gritarem lhe passou pela mente como a cena de um inferno
familiar. Ele baixou o olhar, engoliu o arroz e perguntou:
— Por que motivo você não come carne? Sempre tive curio-
sidade, mas não pude perguntar.
Ela parou com os pauzinhos segurando o broto de soja e
olhou para ele.
— Se for muito difícil não precisa responder — disse, en-
quanto lutava com as imagens eróticas que continuavam se de-
senrolando num canto de sua cabeça.
— Não. Não é difícil. Mas é que você não entenderia — ela
respondeu, serenamente mastigando os vegetais.
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saiu. Ele riu. Depois que o riso se extinguiu, lembrou que havia
muito tempo que não ria.
Depois de varar completamente a noite, tirou a fita master e
desligou o computador.
As fitas com as imagens dela estavam melhores do que ele
esperava. As luzes e a atmosfera, e os movimentos dela tinham
um magnetismo de tirar o fôlego. Pensou por instantes que
música deveria colocar como trilha, mas era melhor o silêncio,
sugerindo o vácuo. Os movimentos do corpo ao se virar lenta e
suavemente, as flores exuberantes preenchendo todo o corpo
nu e a mancha mongólica — uma harmonia do silêncio que tra-
zia a memória de algo eterno, fundamental.
Ele se entregou ao trabalho como há muito não fazia, lutando
com a espera tediosa do tratamento de imagem e detonando
um maço inteiro de cigarro. Finalmente, o tempo do trabalho
acabado ficou em 4 minutos e 55 segundos. Começando com
a sua mão fazendo o bodypainting sobre o corpo dela deitado
de bruços e acabando num fade out sobre a mancha mongólica;
mostrando o rosto dela desértico, sombreado com os traços já
quase indistinguíveis e acabando novamente em fade out.
Experimentando, após muito tempo, o cansaço depois da
noite varada, a sensação pinicante como se houvesse grãos de
areia cravados em todo seu corpo e a irritação com que todas
as coisas lhe eram percebidas, escreveu com uma caneta preta
sobre a etiqueta: “Mancha Mongólica 1 — As Flores da Noite e
as Flores de Dia.”
E então uma imagem o cegou, tão intensa quanto o rosto
de alguém ardentemente desejado, a imagem que na verdade
representava tão e somente tudo no começo, aquela que ele não
ousara tentar e que se fosse possível seria intitulada “Mancha
Mongólica 2”.
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ferozmente agora. Era uma sensação nova, que ele jamais sentira
em qualquer momento anterior àquele.
Eu era escuro, assim ele se sentia por vezes. Ele era escuro.
Ele se encontrava num lugar escuro. Aquele mundo em preto e
branco onde inexistiam essas cores que experienciava agora era
bonito, quieto e aconchegante, mas ele não era mais capaz de
voltar para lá. Ele parecia ter perdido para sempre a felicidade
proporcionada por aquela pacífica quietude. Mas não havia o
sentimento de perda. Já era demais para ele suportar a dor e o
golpe que o mundo feroz do momento lhe impingia.
Encorajado pela instigação de J, pôde finalmente dizer, en-
rubecido, as palavras tão aguardadas. Mostrou o programa do
espetáculo de dança e o seu bloco de desenhos, e pediu que ele
servisse de modelo masculino. J se mostrou momentaneamente
perplexo. “Por que logo eu? Tem tanto modelo profissional por
aí, um ator de teatro…” “Gosto do seu corpo. Um corpo muito
bem feito não combina. Você é a pessoa certa.” “Então, você está
dizendo para eu fazer essa pose com essa mulher! Eu não posso.”
Na tentativa de convencer J, que tinha dado um pulo, ele
suplicou, ameaçou e aliciou.
— Ninguém vai saber. O rosto nem vai aparecer. E esta mu-
lher, não tem vontade de conhecê-la? Vai ser um trabalho que
vai também te inspirar.
J, que pediu uma noite ao menos para pensar, ligou na
manhã seguinte aceitando. Mas, como ele não havia comentado,
J nem sequer imaginava que o que ele queria mesmo era uma
verdadeira cena de sexo.
— …Está um pouco atrasada, né? — perguntou J, olhando
pela janela.
Na verdade, ele também estava começando a ficar apreensivo.
Como ela dissera que conseguiria vir sozinha, esperava-a sem ir
buscá-la no metrô.
— Pois é, talvez eu vá dar uma olhada lá fora.
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trinta minutos ela não havia gemido uma única vez, tremendo
os lábios de vez em quando e de olhos fechados o tempo todo,
transmitindo a ele um prazer sensível e discreto somente através
de seu corpo. Agora, finalmente, ele havia feito. Ele ergueu o
corpo. Abraçou-a e, assim, esticou-se até a filmadora, estendeu
uma das mãos e a desligou.
Essa imagem tinha de ser repetida sem que fosse permitido
um clímax, um fim. Eternamente, dentro do silêncio, dentro
desse prazer. E por isso, a filmagem tinha que terminar aqui.
Ele esperou que o choro dela aplacasse e a deitou. Os últimos
minutos de sexo fizeram com que ela batesse os dentes, soltasse
gritos agudos e ásperos, e arquejasse um “chega…” e fizeram-na
chorar novamente.
E tudo ficou em silêncio.
Dentro da luz azul negra da madrugada, ele lambeu longa-
mente as nádegas dela.
— Eu queria transferir isto para a minha língua.
— …O quê?
— Esta mancha mongólica.
Ela virou o corpo como se tivesse se assustado um pouco e
olhou para ele.
— Como será que isto ainda continua aqui? — continuou
ele.
— …Não sei. Pensei que fosse assim com todo mundo. Mas
um dia, quando fui a um banho público… vi que só eu tinha isso.
Ele acariciou a mancha com a mão que abraçava a cintura
dela. Quero dividir com ela esta mancha que mais parece um
estigma, pensou. Queria te engolir, te derreter e te fazer correr
por dentro das minhas veias.
— …Será que agora vou parar de sonhar? — balbuciou ela,
numa voz quase inaudível.
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Árvores-flamas
E
la está de pé olhando para a estrada molhada de chuva.
É o ponto de ônibus no lado oposto do Terminal da Vila
Maseok. Enormes caminhões de carga passam rugindo
pela primeira faixa. As rajadas de chuva batem fortes como se
fossem furar o guarda-chuva.
Ela não é muito jovem. Tampouco se pode dizer que seja exa-
tamente bonita. Apenas que tem a linha do pescoço bastante
delicada e os olhos grandes e claros. Usa uma maquiagem leve
e natural, e a camisa branca de meia manga é límpida, sem um
amassado sequer. Graças à aparência asseada capaz de causar
boa impressão a qualquer um, a sombra que, de leve, mancha a
sua expressão acaba não ficando tão evidente.
Seus olhos brilham por um instante. O ônibus que esperava
mostra a cara de longe. Ela desce à via e estende o braço. O
ônibus que vinha correndo à toda desacelera.
— Esse ônibus vai até o Hospital Psiquiátrico de Chukseong?
O motorista de meia-idade assente com a cabeça, fazendo um
gesto com a mão para ela subir. Os olhos, que agora buscam um
lugar para sentar depois de ela ter pago a passagem, encontram-
-se com os rostos dos passageiros. Todos a observam. Será ela
paciente, ou será a responsável? Será que não há nenhum canto
esquisito nela? Ela se esquiva habilidosamente dos olhares em
que se misturam desconfiança e vigilância, repulsa e curio-
sidade.
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vez ela perguntou: Por que aquela cena entrou naquele ponto?
Ao final de uma sequência de uma ponte desmoronada e pessoas
desfalecendo aos prantos num enterro, do nada apareceu a som-
bra negra de um pássaro, que foi subindo lentamente para o céu
durante uns dois segundos.
Por nada — foi o que ele respondeu.
É, acabo colocando uma coisa assim, sem motivo. Depois
que coloco, sinto-me mais confortável.
E depois disso, foi aquele silêncio, tão habitual.
Será que alguma vez ela conseguiu, de fato, encontrar-
-se com a verdadeira natureza do marido, sempre envolto
num silêncio que parecia que jamais poderia ser atravessado?
Houve um tempo em que pensava que talvez os seus trabalhos
acabariam por revelá-lo. Ele costumava expor trabalhos em ví-
deo que, quando curtos, duravam dois minutos, e quase uma
hora quando longos, mas, na verdade, antes de conhecê-lo, ela
nem sabia que existia tal área das artes. Apesar dos esforços,
não conseguia nem compreender as suas obras.
Ela se lembra do final da tarde em que o viu pela primeira
vez. Com um corpo magricelo como um palito, o rosto com
uma barba por fazer de vários dias, e carregando uma mala de
filmadora que mesmo à primeira vista parecia pesada, ele foi ao
encontro dela na loja. Procurava uma loção pós-barba. Enquanto
descansava os dois braços sobre o balcão-expositor de vidro,
aparentava cansaço. A ponto de ela sentir que o balcão de vidro
ia desmoronar junto com ele. Foi praticamente um milagre para
ela que quase não tivera experiências de namoro perguntar a
ele de forma tão espontânea “já almoçou?” Ele olhou para ela
parecendo um pouco surpreso, mas com um olhar cansado, como
se não lhe restasse força nem mesmo para expressar surpresa.
Se ela trancou a porta da loja para um almoço bem tardio com
ele, era porque ela também estava sem almoçar naquele dia, mas
era também porque o jeito peculiar dele, aparentemente sem re-
servas, fez com que até ela baixasse a guarda.
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Depois daquele dia, o que ela desejava era que com a sua
força pudesse fazê-lo descansar. No entanto, apesar de todos
os cuidados que ela dedicava com esforço, ele parecia igual-
mente cansado mesmo após casar. Estava sempre ocupado com
as coisas dele, e quando por vezes permanecia em casa, parecia
distante como um viajante que estava num motel de estrada.
Especialmente quando o trabalho não avançava a contento, o
seu silêncio era tenaz como borracha, pesado como rocha.
Não muito tempo depois, ela compreendeu uma verdade, a
de que talvez não fosse ele, e sim ela própria quem queria, com
tanta intensidade, fazê-lo descansar. Não teria ela simplesmente
refletido a própria imagem por meio da fisionomia cansada dele,
a sua imagem do passado de uma moça que saiu de casa aos de-
zenove anos e foi vencendo a vida na capital sozinha sem tomar
emprestada força de ninguém?
Assim como ela não tivera certeza da própria paixão,
também nunca tivera certeza da paixão dele por ela. De vez
em quando, sentia que ele se fiava nela por ser tão inábil, por
natureza, com a vida cotidiana. Era possuidor de uma persona-
lidade correta a ponto de parecer tapado, e era incapaz de dizer
palavras exageradas ou de bajulação a quem quer que fosse. Mas
fora sempre gentil com ela, jamais usara palavras rudes e, por
vezes, dirigia-lhe um olhar carregado de respeito.
Você é muito para mim — disse uma vez, antes de casar.
A sua bondade, a estabilidade, a calma, a sua atitude de al-
guém para quem viver parece ser tão e somente natural… essas
coisas me tocam.
Tais palavras soaram plausíveis porque difíceis de entender,
mas não teriam sido, pelo contrário, uma confissão que demons-
trava que ele não estava tomado por sentimentos como o amor?
Talvez o que ele amava de verdade na vida fossem as imagens
que filmara, ou aquelas que estavam por filmar. No dia em que
foi à exposição dele pela primeira vez depois do casamento, ela
levou um susto, pois não conseguia acreditar que esse homem,
que sempre pareceu em perigo iminente de cair pelas tabelas,
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que chegaria a este ponto. Era melhor eu não ter aceitado cuidar
dela, não sofreria tanto assim.
Ela largou a mão da Hiju, cuja voz ficava cada vez mais
exaltada, e se aproximou da cama, passo a passo. Preferia que os
seus olhos não enxergassem. Desejava que alguém lhe tapasse
os olhos.
Yeonghye está deitada bem retinha. O olhar parecia estar
direcionado para fora da janela, mas, se se reparasse bem, ela
não estava olhando para nada. A figura lembrava mais uma
refugiada esfaimada de uma catástrofe, sem nenhuma carne no
rosto, pescoço e ombros, nos braços e nas pernas. Nota-se uma
longa penugem crescida nas faces e nos braços. Uma penugem
do tipo que cresce no corpo de bebês. O médico explicou que
isso se devia a um desequilíbrio hormonal causado pela longa
abstinência da comida.
Será que estaria voltando a ser uma criança? A menstruação
já há muito cessara, e, como o peso do corpo não chegava nem
a trinta quilos, não haveria de restar seios. Estava deitada como
a figura de uma menina bizarra em quem todo o crescimento
secundário desaparecera.
Ela descobre o lençol branco. Vira o corpo da irmã que não
esboça o menor movimento, e verifica se não surgiu alguma
inflamação nas costas ou na região do cóccix causada pela
pressão. A região que inflamara na última vez não piorou.
Seu olhar se detém na mancha mongólica nítida e verde clara
estampada no meio da nádega onde restaram apenas ossos. A
imagem das flores, que se espalhavam pelo corpo todo como
se dali partissem, cobre repentinamente os seus olhos e logo
desaparecem.
— Obrigada, Hiju.
— …Limpo todo dia com lenço molhado e bato um talco aí,
mas é que o tempo anda muito úmido e não sara logo.
— Obrigada mesmo.
— Antes era difícil dar banho nela, mesmo com ajuda da
enfermeira, mas agora nem é trabalho de tão leve que está.
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Qual teria sido a resposta certa para essa pergunta? Será que
ela deveria ter se zangado com todas as forças, indagando se
aquilo era coisa que se dissesse?
Uma vez, há muito tempo, ela se perdeu numa montanha
junto com a irmã. A Yeonghye que então tinha nove anos disse:
Mana, não vamos voltar, não. E ela não conseguira compreender
aquelas palavras então.
O que está dizendo? Vai escurecer logo. Temos que encontrar
o caminho rápido.
Somente passados muitos e muitos anos é que ela entendeu
a Yeonghye de então. As surras do papai eram dirigidas somente
à irmã. O irmãozinho também apanhava, mas também saía ba-
tendo nas crianças do bairro no mesmo tanto e por isso devia
sofrer menos. E ela era a filha mais velha que preparava a sopa
cura-ressaca para o papai no lugar da mãe sempre cansada, de
modo que ele era cuidadoso com ela de um jeito ou de outro. A
Yeonghye, que era dócil, mas incomplacente, e por isso não con-
seguia se curvar aos caprichos do pai, nunca mostrara qualquer
resistência e devia ter simplesmente absorvido tudo aquilo até
os ossos. Agora ela sabia. Que o zelo praticado por ela como fi-
lha mais velha não era maturidade precoce e sim covardia. Que
era apenas um modo de sobrevivência.
Será que não teria havido como evitar? Que se impregnas-
sem nos ossos da Yeonghye coisas que ninguém poderia suspei-
tar? A figura de costas da Yeonghye menina que ficava no portão
sozinha olhando para fora quando estava para escurecer?
Ao final, conseguiram descer por uma rua no outro lado da
montanha, pegaram carona com um camponês que ia para um
vilarejo e correram por uma rua desconhecida ao entardecer.
Ela se sentiu aliviada, mas a irmã não ficou feliz. Ficou apenas
olhando os álamos que pareciam se incendiar ao por do sol, sem
dizer palavra.
Será que tudo teria sido diferente se naquela noitinha elas
tivessem fugido de casa para sempre, como queria Yeonghye?
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nela, ainda que tivesse sido lavada tantas vezes. Mas, desta vez
não surtiu efeito. A dor no peito foi piorando. Teve de respirar
fundo repetidas vezes sentindo falta de ar.
Sentou-se meio de lado na ponta do sofá. Tentou acalmar
a respiração seguindo com os olhos o ponteiro do relógio que
girava. Mas isso não foi possível como queria a sua vontade.
De repente, teve um déjà-vu como se tivesse experimentado
este momento inúmeras vezes. Uma certeza cheia de dores se
postava à frente dela como se tivesse sido preparada desde há
muito, como se estivesse esperando apenas por este momento.
Todas essas coisas são sem sentido.
Mais do que isso, não posso mais aguentar.
Não posso ir mais adiante.
Não quero ir.
Olhou ao redor para os objetos da casa mais uma vez.
Aquelas coisas não eram suas. Do mesmo jeitinho que a sua vida
não era sua.
Quando, parada na plataforma da linha federal numa tarde
de primavera, sentiu que a morte havia se aproximado para
alguns dias à frente, quando acreditou que o sangue fresco
vazando sem fim do seu corpo provava isso, ela já havia compre-
endido. Que estava morta havia muito tempo. Que a sua vida
fatigante não passava de um teatro ou algo como um fantasma.
O rosto da morte que se postava ali ao seu lado era-lhe familiar
como um parente que voltava depois de ter ficado perdido por
muito tempo.
Levantou o corpo que começava a tremer parecendo
sentir frio e aproximou-se da porta do quarto onde deixava os
brinquedos. Retirou o móbile com enfeites que tinha pendurado
junto com o Jiu, num trabalho que consumira todas as noites
da semana anterior, e começou a desatar os nós. Como os nós
estivessem bem apertados, a ponta de seus dedos doía, mas
continuou desatando até o ultimo nó pacientemente. Empilhou
os enfeites de papel colorido e de celofane em forma de estrela
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posfácio
tríptico canibal:
vegetarianismo,
desejo e morte
Jorge de Almeida
H
á várias razões para acompanhar com interesse a pro-
dução literária e cinematográfica da Coreia contem-
porânea. Da guerra fratricida, que dividiu uma única
nação em dois países com estruturas políticas antagônicas, até
o rápido desenvolvimento tecnológico do Sul, transformado em
potência da nova economia capitalista, os abalos e fraturas da
história mundial recente deixaram suas marcas na obra de diver-
sos escritores e cineastas, unidos pela longa tradição coreana de
valorizar a criação artística como instância coletiva de crítica e
reflexão. Esse engajamento estético no debate público se reflete,
por exemplo, nos concursos e festivais literários que celebram a
chegada de cada nova primavera, mobilizando grande parte da
população do país.
A jovem escritora Han Gang, nascida em 1970, conquistou
prêmios em vários desses concursos, e agora é apresentada
aos leitores brasileiros por Yun Jung Im, tradutora também
premiada e professora de estudos coreanos da usp. A complexa
sociedade sul-coreana é retratada nos contos e romances de
Han Gang a partir do modo como questões históricas de amplo
alcance ressoam nos pequenos detalhes da vida cotidiana. O
interesse da autora por música e artes plásticas transparece
em uma escrita que sobrepõe perspectivas e vozes conflitantes,
configurando quadros ao mesmo tempo delicados e violentos,
sob um olhar marcadamente feminino, que reage contra o papel
tradicional da mulher na moderna sociedade coreana.
Esse projeto literário está presente na forma como se entre-
cruzam os três contos reunidos no volume A Vegetariana, pu-
blicado em 2007 e adaptado para as telas em 2010, em filme
do diretor Lim Woo-Seong. As três narrativas enfocam uma
mesma história, aparentemente banal e trágica, a partir de dife-
rentes perspectivas, enredando o leitor na complicada teia de
relações de poder que distorce o destino de todos os persona-
gens envolvidos. Han Gang busca reproduzir, na forma calei-
doscópica do livro, os processos de desagregação da identidade
psíquica de suas personagens, submetidas à constante pressão
de expectativas sociais contraditórias.
“Nunca achei nada especial na minha esposa até que se
tornasse uma vegetariana”, diz o narrador do conto que abre o
livro, casado com uma jovem “sem nenhum charme especial”, e
que justamente por isso lhe era até então “confortável”. Pouco a
pouco, esse ideal de conforto é denunciado como atroz confor-
mismo, resultado da completa submissão do personagem, fun-
cionário subalterno de um grande corporação industrial, ao
desejo de padronização que rege tanto a moderna sociedade
de consumo coreana quanto a identidade comunitária da Co-
reia tradicional. Esforçando-se em cumprir o papel que lhe foi
destinado, o marido confessa que “não era de gostar de exage-
ros”, e descreve as várias razões que o levaram a se casar com
uma mulher “que parecia ser a mais comum dentro todas as mu-
lheres do mundo”, capaz portanto de “cumprir o seu papel de
esposa comum”.
A reviravolta ocorre quando essa “mulher comum” anuncia,
para o espanto de todos, que não irá mais comer carne ou
qualquer outra comida de origem animal. Ao contrário do
que pode sugerir o título do conto, não se trata de um engaja-
mento em defesa do vegetarianismo, pois a decisão é tomada
sem nenhum compromisso de ordem ética, médica ou religiosa.
Se fosse assim, a opção da jovem Younghye poderia eventual-
mente até ser aceita como uma curiosa importação de estilos
176
de vida estrangeiros, uma preocupação exagerada com a saúde
ou a conversão a uma religião mais compassiva. As razões são,
no entanto, mais profundas e inconscientes, estão ligadas a
um sonho que subverte os papéis e expectativas, mostrando
à jovem toda a violência envolvida no ato de devorar animais:
“Aquilo está incrustado ali, onde gritos e prantos se compac-
taram em camadas. É por causa da carne. Comi carne demais.
Todas aquelas vidas estão paradas ali. É isso. O sangue e a carne
foram digeridos e espalhados para todos os cantos do corpo,
os resíduos foram excretados, mas as vidas ficaram tenazmente
grudadas na entrada do estômago.”
O vegetarianismo do livro incorpora, portanto, a denúncia
de sua contrapartida social simbólica: o “canibalismo” da so-
ciedade capitalista industrial, aliado aos hábitos da tradição
patriarcalista coreana. Yeounghye teve um pai violento, que
lutou na guerra e educou as filhas de forma rígida, castigando-
-as com vara até os dezoito anos. Das mãos do pai passou para
as do marido medíocre, que a ostentava como mero conforto
doméstico. O sonho, subvertendo os sentidos, faz com que
ela perceba finalmente que sua vida é devorada por todos os
que a cercam. A recusa à carne torna-se um ato de desespero
e uma forma de resistência, ao mesmo tempo em que expõe as
entranhas do pesadelo de seu cotidiano.
No convívio com o marido, no jantar de negócios e na
reunião familiar, a decisão de não comer carne causa cada vez
mais desconforto, culminando em uma dramática tentativa
de suicídio, cujas consequências transbordam para os outros
contos do livro. Acompanhamos na segunda narrativa o ponto
de vista do cunhado de meia-idade, vídeo-artista que retrata
em suas obras o “cotidiano humano, erodido e esgarçado, de
uma sociedade capitalista tardia, usando design gráfico em 3d
e cenas reais documentais”. Esse empenho criativo contrasta
com a rotina banal de sua vida familiar, instalada em um dos
vários blocos de condomínios que se acumulam ao longo do
texto. Apesar de um casamento também baseado em interesses
práticos, “uma relação apenas ligada pela criança, sem floreios,
177
uma espécie de sócios, esta era a relação entre ele e a esposa
nestes tempos”, o artista reage à venalidade brutal dos aconteci-
mentos: “O que o deixou perplexo foi que o concunhado queria,
como se fosse algo absolutamente natural, jogá-la fora como
quem joga um relógio ou um eletrodoméstico quebrado.”
Supreendido pelo vegetarianismo trágico da cunhada, o
artista é atraído também pela descoberta de uma outra dife-
rença, que adquire literalmente contornos eróticos em um
mundo de insuportável uniformidade: a irmã de sua esposa
mantém, mesmo adulta, a mancha mongólica herdada como
traço genético comum aos bebês asiáticos. A persistência da
mancha, resquício de pureza infantil na carne de uma mulher
feita, fascina o vídeo-artista, buscando a utopia de uma beleza
natural perdida na selva das marcas e do consumo. A dimensão
erótica, recalcada e desvalorizada no primeiro conto, alcança
aqui uma expressão real. O ato amoroso, possibilitado por rosas
e plantas sobre os corpos nus, aparece como um sucedâneo do
sonho, uma forma de dois corpos se consumirem em harmonia,
recusando a violência canibal do mundo ao redor.
Mas o mundo reage, com precisão epidemiológica: o vegeta-
rianismo sem razão e o adultério sem pudor são rapidamente
diagnosticados como ofensa e loucura. Na Coreia, país que traz
na memória coletiva a fome e a desunião, o ato de compartilhar
a comida adquire um sentido simbólico. Laços familiares e
vínculos sociais são reforçados à mesa, e o consumo de carne
representa a superação conjunta das dificuldades do passado.
“Se não era regime nem tratatamento e nem estava possuída por
um espírito, como assim, mudar de hábito alimentar por causa
de um pesadelo? Que teimosia era aquela, desconsiderando por
completo a dissuasão do marido?” Recusar o conforto é um ato
de arrogância, ser diferente é desprezar o próximo. A punição
chega, de modo exemplar, e a teimosia é tratada como doença,
pois coloca em risco não apenas a saúde de Yeounghye, como a
aparência que garante a felicidade familiar e o funcionamento
da sociedade como um todo.
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A ação do último conto se passa três anos depois, no hos-
pital psiquiátrico. Os pais se afastaram das filhas, culpadas
pelos casamentos desfeitos. As camisas de força da equipe de
resgate, que a irmã rapidamente convocou ao supreender os
amantes, asseguraram sua própria inocência e evitaram um des-
fecho ainda mais brusco. O julgamento dos “outros”, a defesa
da normalidade, do consumo e do conforto, pairam sobre os
sobreviventes e as vítimas. A sanidade se revela como loucura,
mas só o artista, que se perde no mundo, é capaz de perceber o
avesso das coisas: “Não, ela é uma mulher normal na verdade,
pensou ele. O louco aqui sou eu.” A irmã da vegetariana cumpre,
apesar de tudo, o seu dever de família, tornando-se responsável
pelo tratamento de Yeounghye. No hospital, o corpo definha,
a mancha empalidece, e a carne é maculada pela violência da
suposta cura: “Os dois braços e os pés, e até as veias dos calca-
nhares, nada estava inteiro. Pois injeção intravenosa era o único
meio de fornecer proteínas e glicose, mas já não havia mais onde
espetar a agulha. O último recurso seria fazer uma ligação na
veia cava pelo ombro, mas o médico responsável telefonara on-
tem dizendo que seria preciso transferi-la para um hospital
grande, pois era um procedimento perigoso. Disse que tentou
várias vezes introduzir uma longa sonda pelo nariz para passar
mingau para o esôfago, mas não conseguiu porque a Yeonghye
fechava a garganta.”
O pesadelo inicial deixa de fazer sentido, pois não há salvação
no mundo industrial da carne, onde a normalidade confortável
significa devorar e ser devorado. O destino da vegetariana se
revela então como autocrítica da sociedade coreana, no qual os
papéis sociais estão distribuidos como os lugares à mesa. Re-
sistir significa assumir uma diferença inconcebível, que enfra-
quece a saúde do corpo social. Como em Kafka, as metáforas se
tornam reais, demonstrando por absurdo a violência cotidiana
dos aparatos que deveriam garantir a felicidade comum. Talvez
influenciada por uma frase do grande poeta Yi Sang, “acredito
que os humanos deveriam ser como plantas”, Han Gang desen-
volve em sonho a imagem já antecipada pelos corpos pintados.
179
Para não canibalizar ninguém, no plano político, econômico,
amoroso e familiar, a solução é buscar a solidária autossufici-
ência das árvores: “Mana... todas as árvores do mundo parecem
ser irmãos.” A alimentação forçada, imagem final do cotidiano
massificado, é a horrível consequência do despertar simbólico, e
só resta a Yeonghye o abandono utópico de toda carne: “Dentro
do sonho, parece que o sonho é tudo, né? Mas depois que a
gente acorda, a gente fica sabendo que aquilo não é tudo... Isto
é, quando a gente acordar, algum dia, então...”
180
sobre a autora
Han Gang
D
e sobrenome Han e nome Gang* a autora tem o mesmo
nome do mais importante rio da península coreana: o
Rio Han — Han-gang em coreano. Nascida em 1970,
Han Gang acompanhou em toda a sua turbulência o chamado
“milagre do Rio Han”, que compreende o período entre a década
de 60 e os meados da década de 90 do século xx. Durante esse
tempo, o país passa por um processo frenético de rápida indus-
trialização e urbanização, avanço tecnológico, boom educa-
cional, aumento exponencial nos padrões de vida, moderni-
zação, democratização e globalização, ao mesmo tempo que
busca se recuperar da guerra fratricida** que deixou mais de
três milhões de mortos e o território totalmente devastado. O
país, que após a Guerra era um dos mais pobres do mundo,***
milagrosamente se transformaria numa economia globalmente
influente e conhecida pelos seus conglomerados multinacionais
como Samsung, lg e Hyundai-Kia, em apenas 50 anos.
Por isso, nas décadas 70 e 80, a literatura coreana esteve, de
um jeito ou outro, atrelada à situação política de um país em
busca pela democratização, em meio a um esforço coletivo pelo
crescimento econômico, frequentemente servindo de janela de
escape para expressar a liberdade tolhida sob regimes militares.
* É costume coreano usar o sobrenome seguido de nome.
** Guerra da Coreia (1950-1953), iniciada pela invasão da Coreia do Norte sobre a do Sul.
*** Logo após o confronto que durou três anos, o PIB per capita sul-coreano era 67 dóla-
res, índice que colocou o país no penúltimo lugar no ranking mundial somente à frente da
Etiópia.
Assim, até o início da década de 90, as “grandes questões na-
cionais” permeariam o mainstream da literatura coreana.
Nesse contexto, Han Gang é uma das representantes da
nova geração de escritores coreanos, que, afastando-se das
“grandes questões nacionais” que pesavam sobre os ombros dos
predecessores submersos em profundas sombras do passado,
tem buscado uma nova identidade, com experiências novas,
ampliando os horizontes da literatura nacional. A nova geração,
relativamente livre do passado coletivo sombrio e libertando-
-se da consciência de dívida para com a grande história, busca
agora retratar detalhes minuciosos da vida dos indivíduos e o
seu [entorno], com um estilo baseado no realismo mas que se
caracteriza também por uma imaginação sem limites. As obras
de Han Gang, que retratam com grande representatividade a
questão da feminilidade, tema caro a essa nova geração, tem
sido também reconhecida por escrutinizar a “tristeza e solidão
fundamental do ser humano” segundo os seus críticos.
Han Gang estudou Literatura Coreana na Universidade
Yonsei e estreou nas letras como poeta em 1993, ano em que se
formou, com a publicação de um poema no periódico literário
Literatura e Sociedade. Em 1994, o seu conto “A Vela Vermelha”
foi premiado no Concurso Literário do diário Seul. Desde então,
apontada como “uma das porta-estandartes da nova geração
da literatura coreana”, sua atividade literária tem sido febril, a
ponto de sofrer da ler de digitação. Em 20 anos de atividade,
já publicou 7 romances, 4 volumes de novelas/contos, 4 livros
infantis e 2 coletâneas de ensaios livres. Atualmente, leciona
no Departamento de Criação Artística da Universidade Seul de
Artes.
Recebeu o Prêmio Yi Sang — o prêmio literário coreano de
maior prestígio — em 2005, aos 35 anos, com o conto “Mancha
Mongólica”, numa votação raramente unânime dos sete jura-
dos. Ficou conhecida então como filha de Han Seung-Won,
também escritor, que recebera o mesmo prêmio em 1988, o que
ficou registrado como o primeiro caso de premiação em duas
gerações [de uma mesma família]. Tal “hereditariedade” já havia
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se manifestado em 1999, com o Prêmio Coreano de Literatura
em Prosa.
Segundo a apreciação da banca de jurados do prêmio, a
“Mancha Mongólica” — apresentada neste volume, em que um
vídeo-artista mergulha num ímpeto artístico simultaneamente
a um desejo incontrolável, seduzido pela mancha mongólica
que permanece na nádega da cunhada — é um caso modelo de
“romance de artista” onde se misturam o bodypainting, a vídeo-
-arte, a arte e o desejo.
Sobre o conto, a autora explica: “A mancha mongólica era
para mim algo longinquamente remoto, um vestígio de origem
vegetal. Não como algo oposto ao animal, mas como um estigma
[de misoginia,] anterior à nossa existência como um organismo
superior. [...] Queria retratar uma beleza que estivesse violenta-
mente viva, que abraçasse até a morte e a sordidez.”
Além do Prêmio Coreano de Literatura em Prosa (1999) e o
Prêmio Yi Sang (2005), recebeu o Prêmio Escritor de Excelência
do diário Hanguk (1995), e o Prêmio de Jovem Artista de Hoje
do Ministério da Cultura e Turismo (2000).
Os três contos interligados, reunidos neste romance A Ve-
getariana, foi traduzido para o japonês, chinês, vietnamês e
espanhol (Argentina). Também se encontram em curso a sua
publicação na Inglaterra e na Itália.
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