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A

VEGETARIANA
A VEGETARIANA

Han Gang
Título Original: 채식주의자 (Chaesik-juija)
Copyright © 2013 by Han Gang
Capa:
Tradução: Yun Jung Im
Revisão: Devir Livraria
Diagramação Eletrônica: Tino Chagas
DEV333130
ISBN: 978-85-7532-572-6
1ª Edição: publicada em novembro/2013
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
——————————————————————————————————————
Gang, Han
A Vegetariana / Han Gang; [tradução: Yun Jung Im] —
São Paulo : Devir. 2013

Título original: 채식주의자 (Chaesik-juija)
ISBN: 978-85-7532-572-6
1. Ficção Coreana I. Título.

13-11319 CDD-895-73
——————————————————————————————————————
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura Coreana 895-73

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Sumário

Prefácio: Novela–Novelas
Moacir Amâncio 7

A Vegetariana 13

A Mancha Mongólica 59

Árvores-flamas 119

Posfácio: Tríptico Canibal: Vegetarianismo, Desejo e Morte


Jorge de Almeida 175

Sobre a Autora 185


novela-novelas
Moacir Amâncio

C
onta-se que nos tempos da faculdade a futura escri-
tora coreana Han Gang, nascida em 1970, foi atingida
fatalmente por um verso do poeta Yi Sang* no qual o
eu lírico dizia acreditar “que os seres humanos deveriam ser
plantas”. Talvez por isso, em vez de escolher um animal qual-
quer em que sua personagem poderia se transformar, como
estratégia desesperada na tentativa de recuperar o humano em
seu limite, a ficcionista surpreende o leitor ao descrever, com
precisão alucinatória, a mutação de uma mulher numa planta.
O primeiro sintoma desse impulso que se tornará o motivo de
sua vida — e morte da razão — é a necessidade irrevogável de
se tornar vegetariana — daí o título da novela que se aplica ao
conjunto de textos incluído no volume, seguindo-se “Mancha
Mongólica” e “Árvores-flamas”. O processo torna-se irreversível
e o estupor do marido e da família em torno da personagem que
recusa qualquer alimento próximo à carne, parece desencadear
um raio de loucura generalizado. O mundo perde a sustentação
óbvia. Todos se envolvem na luta pela salvação dela. Coloca-se,
claro, um problema clínico, de maneira alegórica, ou seja, o
senso comum ao lidar com quaisquer questões, inclusive aque-
las que, mesmo dadas na fisicalidade, transcendem-na, pois é
esse o objetivo mais negado e reprimido do que ignorado.

* Yi Sang (1910-1936) é um dos mais importantes escritores cult da literatura coreana, já


traduzido para o português na obra Olho-de-corvo e Outras Obras de Yi Sang (tradução
de Yun Jung Im, Perspectiva, 1999).
Na segunda novela, sua obsessão cruza com a do cunhado,
que se fixa na mancha mongólica da moça como uma pista
erótica, e é então que a autora, com perícia, promove o encontro
das paixões em função de Eros e da morte. Um caso de amor
demente, de rompimento dos limites do bom comportamento,
do juízo, dos bons costumes, do bom gosto, das normas que nos
sustentam e prendem. Dois corpos que são e ao mesmo tempo
não são. Um poema lírico e trágico como expressão contempo-
rânea e universal, de Seul a Tóquio, de Tóquio a Tegucigalpa. A
loucura da moça expressa-se em sua própria pele na forma da
mancha, quem sabe a imagem de uma folha, ou uma pétala, vista
pelo cunhado videomaker e que se perde nessa brincadeira de
compromissos secretos. Num jogo de ilusões e realidade (sendo
esta apenas a sombra daquelas), abre-se o caminho sem volta:
ao decorar o corpo nu da cunhada com motivos vegetais, para
rodar um vídeo, tudo será possível entre os dois. A carapaça da
contenção se rompe. Não é somente a moça que caminha rumo
ao sem volta. Seu cunhado faz a contrapartida da viagem, que
depois de tudo será sempre solitária, a passagem custa o preço
da vida ou da razão: após a experiência do transcendente, só
resta a morte, ou a loucura plena, um tipo de morte enfim, pois
nada mais faz sentido e o sentido não tem a menor importância,
o sentido não existe simplesmente. Eles atravessaram a linha
proibida e já não poderão se reintegrar ao comum dos mortais.
Daí a belíssima metáfora estática de tonalidade e linhas vango-
ghianas, “Árvores-flamas”, título da última parte do livro, ou
da última novela, surpreendente pela força de sugestão da nar-
rativa construída com perícia e aquele talento poético ao qual a
tradutora Yun Jung Im se manteve rigorosamente atenta, e que
está no cerne das melhores prosas.
Este é um livro sobre o ser e o excesso, na acepção de
Georges Bataille.* Um fenômeno que, segundo o pensador
francês, “não se pode fundamentar filosoficamente, já que o
excesso excede ao fundamento: o excesso é aquilo que faz com
que o ser seja, antes de qualquer outra coisa, algo que escapa a

* Georges Bataille. Notas do Prefácio de História do Olho. São Paulo: Editora e Livraria Es-
crita Ltda., 1981, p. 14.

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todos os limites”. É uma superação de si mesmo que se dá na
erótica, na morte, na mística. Ao reduzir as personagens ao
elemental, ou à busca do elemental, a escritora recupera algo
que se tornou o grande problema da ficção contemporânea, que
é a recuperação do pacto entre a narrativa e o leitor. Porque
na zona obscura, valores que justificam a vida se desfazem,
ideologias não resistem, revelam-se postiças, e até mesmo o
corpo, que experimenta o limite, se desarticula, pois também
é uma máquina de produzir sentidos já inexistentes. Restam
a carne, as folhas incendiadas e portanto consumidas no único
elemento que as anima, o fogo. No aspecto da técnica literária,
considere-se ainda o apuro da escritora ao produzir três novelas
interligadas que configuram na verdade uma só novela, ou um
romance breve, como fez Graciliano Ramos em Vidas Secas, um
romance-contos. Ou Luiz Ruffato, que levou o método a outras
consequências, na clave do fragmento, em Eles Eram Muitos
Cavalos. É o que se espera de uma literatura que se questiona
a si mesma e portanto ao próprio ser humano como história e
existência.

Moacir Amâncio é autor de Ata (reunião de coletâneas de poemas,


Record), Yona e o Andrógino: Notas sobre Poesia e Cabala
(Nankin/Edusp) e tradutor e organizador de Gol de Esquerda, de
Ronny Someck (Annablume). É professor de Literatura Hebraica
da usp.

9
A VEGETARIANA
a vegetariana

N
unca achei nada especial na minha esposa até que se
tornasse uma vegetariana. Para ser franco, nem me
senti atraído quando a vi pela primeira vez. Nem alta
nem baixa. Cabelo aparadinho nem longo nem curto, pele ama-
relada devido ao acúmulo de células mortas, pálpebras lisas que
faziam afinar os olhos e as maçãs do rosto ligeiramente saltadas.
Seu traje era sem cor, como se temesse passar uma imagem de
estilo e personalidade. Aproximou-se da mesa onde eu esperava
calçando um sapato preto simples, o mais básico possível. Com
um andar nem rápido, nem lento, nem vigoroso, nem frágil.
Acabei me casando, talvez pelo fato dela me parecer não
ter nenhum defeito em especial, assim como não possuir
qualquer charme especial. Era-me confortável o seu tempe-
ramento sem arestas, sem originalidade ou espirituosidade,
sem qualquer traço de sofisticação. Eu não precisava fingir ser
bem-informado para conquistá-la, nem precisava me ataba-
lhoar para não atrasar nos compromissos e nem havia motivo
para me sentir diminuído diante de modelos que apareciam em
catálogos de moda. Na verdade, eu alimentava um sentimento
inconfessável de inferioridade pela barriguinha que começara
a aparecer depois dos vinte e cinco anos, pelas pernas e braços
finos que não ganhavam músculos apesar dos esforços, além do
meu membro pequeno, mas nada disso me incomodava quando
se tratava dela.
Han Gang

Via de regra eu não era de gostar de exageros. Quando


criança, banquei o chefinho da rua subjugando uns peque-
ninos dois a três anos mais novos que eu e, quando crescido,
candidatei-me a uma universidade que me oferecesse uma bolsa
razoável e agora me satisfazia com um salário nada propalável,
mas infalível todo mês, numa empresa pequena que prezava a
minha nada extraordinária competência. Sendo assim, casar
com uma que parecia ser a mais comum dentre todas as mulheres
do mundo seria talvez uma escolha natural. Mulher que fosse
bonita, ou inteligente, ou sensual a ponto de chamar atenção,
ou filha de família abastada era, para mim, de cara, nada além de
um ente incômodo.
Correspondendo às minhas expectativas, ela cumpriu sem
contratempos o seu papel de esposa comum. Acordava todos
os dias às seis da manhã e preparava-me a mesa com arroz,
sopa e um pedaço de peixe, e ainda ajudava nos ganhos da casa,
mesmo que parcamente, com bicos que fazia desde os tempos
de solteira. Foi assistente de professor num curso de compu-
tação gráfica onde chegou a trabalhar por um ano antes de se
casar e pegava trabalhos de enfiar falas nos balões de histórias
em quadrinhos para fazer em casa.
Ela era de falar pouco. Era raro que me pedisse alguma coisa
e não me indagava nada, por mais que eu me atrasasse. Quando,
por vezes, ficávamos juntos porque era feriado, nem pedia
para passear. Enquanto eu rolava no chão a tarde inteira com
o controle remoto da televisão nas mãos, ela ficava enfurnada
no seu quarto. Devia trabalhar ou ler — ler livros era o que se
podia dizer o seu passatempo, mas estes livros, na sua maioria,
pareciam tão enfastiosos que não dava nem vontade de levantar
as capas — e abria a porta somente na hora das refeições, para
preparar, em silêncio, a comida. Na realidade, viver com uma
esposa assim não haveria de ser particularmente divertido. Mas
as esposas de amigos ou colegas de trabalho que faziam soar os
celulares várias vezes ao dia ou que provocavam barulhentas
brigas de casal eram cansativas só de pensar e, por isso, eu a
aceitava agradecido.

14
A Vegetariana

A única coisa que se poderia dizer diferente nela era que


não gostava de usar sutiã. Nosso tempo de namoro fora curto e
sem graça. Certa vez, casualmente, coloquei a minha mão sobre
as suas costas e fiquei um tanto excitado ao me dar conta da
falta do sutiã por baixo do seu suéter. Passei a observar o seu
comportamento com novos olhos para ver se havia algum sinal
tácito sendo enviado para mim. O resultado da minha obser-
vação foi que ela não estava mandando sinal algum. Se não era
sinal, seria preguiça? Ou seria tão desligada assim? Eu não podia
entender. Era verdade que o sutiã não combinava nada com o
seu peito, xoxo. Se ao menos usasse um sutiã com enchimento
farto, teria salvo a minha cara perante os amigos.
Depois de casar, ela deixou de usar o sutiã de vez, pelo
menos dentro de casa. Quando dava uma saidinha no verão,
tinha que colocá-lo para que o bico do seio não ficasse apare-
cendo, mas acabava soltando os ganchinhos em menos de um
minuto. Quando usava uma blusa fina e clara, ou uma roupa
um pouco apertadinha, o ganchinho solto ficava bem evidente,
mas ela não se importava. Depois da minha bronca, passou a
disfarçar usando um colete por cima, mesmo quando estava um
calor de assar. Justificava-se dizendo que não suportava o sutiã
pois ele a sufocava e apertava-lhe o peito. Quanto a mim, como
nunca tive de usá-lo, não tinha como saber o quão sufocante era
a sensação. Mas, com certeza, as outras mulheres não pareciam
odiar o sutiã tanto quanto ela, de modo que a sua hipersensibi-
lidade me era intrigante.
De resto, tudo corria dentro dos conformes. Estávamos
no quinto ano de casamento, mas não havia motivo para nos
sentirmos particularmente entediados, uma vez que nunca nos
amamos com paixão. Apenas que eu começava a me perguntar se
já não seria hora de ser chamado de pai, pois vínhamos adiando
a gravidez até comprarmos este apartamento no outono do
ano passado. Jamais imaginei que haveria qualquer mudança
no nosso cotidiano até eu descobri-la de pijamas e de pé na
cozinha, numa madrugada de fevereiro.

15
Han Gang

œ
— O que está você fazendo?
Perguntei, sem completar o movimento de acender a luz do
banheiro. Seria talvez umas quatro horas? Acordara sentindo
sede e vontade de urinar por causa da garrafa e meia de soju*
que tomara no jantar de negócios.
— Hein? O que é que você está fazendo aí?
Olhei em sua direção, tomado por um súbito calafrio.
O sono e a embriaguez se dissiparam. A esposa estava de pé
completamente imóvel, frente a frente com a geladeira. Com o
rosto de perfil imerso na escuridão, eu não conseguia distinguir
a sua expressão, mas havia algo de assustador nela. Seus cabelos
pretos, fartos e sem tintura, estavam avolumados e ressecados.
A saia da camisola branca batendo no tornozelo estava com a
borda ligeiramente enrolada para cima, como sempre.
Diferentemente do quarto, fazia um friozinho gelado
na cozinha. Se estivesse se comportando como de costume,
sendo friorenta como era, a esposa teria se apressado em pôr
um cardigan nas costas e ir atrás do chinelo de lã. No entanto,
não se sabe desde quando, ela estava descalça trajando uma
camisola fina de meia-estação, de pé imóvel como se não tivesse
ouvido coisa alguma. Era como se no lugar da geladeira alguém
se postasse ali, inarredável, invisível aos meus olhos — uma
assombração talvez.
O que será? Será o tal do sonambulismo?
Aproximei-me da esposa de perfil, rígida como uma estátua
de pedra.
— O que foi? O que você está fazendo a essa hora…
Pus a mão sobre o seu ombro, mas supreendentemente ela
não se assustou. Não que estivesse desligada, pelo visto, estava
ciente de tudo que acontecera desde que eu saí do quarto, das
minhas indagações e da minha aproximação. É que ela simples-
mente ignorou. Assim como faz quando volto tarde enquanto
está absorta na última novela da noite. Mas o que é que haveria

* G????????

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A Vegetariana

para ela se concentrar na frente da porta esbranquiçada da


geladeira de quatrocentos litros, na cozinha escura das quatro
horas da madrugada?
— Ei!
Olhei para o seu rosto de perfil que se revelou no meio da
escuridão. Ela estava com os lábios duramente cerrados e com
os olhos friamente cintilantes como eu nunca vira antes.
— …Tive um sonho.
Sua voz era bem definida.
— Sonho? O que está dizendo? Sabe que horas são agora?
Ela se virou para o outro lado e foi caminhando devagar em
direção ao quarto que estava com a porta aberta. Assim que
transpôs a soleira, estendeu o braço para trás e fechou a porta
sem fazer barulho. Deixado sozinho na cozinha escura, fiquei
olhando para a porta que acabara de engolir sua figura branca
de costas.
Acendi a luz do banheiro e entrei. O frio estava se demorando
já há alguns dias na casa dos dez graus negativos. Como havia
tomado uma ducha algumas horas antes, o chinelo respingado
de água ainda estava frio por causa da umidade. Podia sentir
o desolamento da estação cruelmente fria no buraco escuro do
exaustor aberto por cima da banheira e nos azulejos brancos do
piso e da parede.
Ao entrar no quarto, não consegui ouvir nada no lado da
cama onde ela estava deitada toda encolhida. Eu parecia estar
sozinho no quarto. Obviamente isso era uma falsa impressão.
Quando agucei os ouvidos, consegui ouvir uma respiração bem
discreta. Não parecia ser de alguém que estivesse dormindo.
Se estendesse a mão, poderia tocar a sua pele quentinha. Mas
não sei por que, eu não podia tocá-la. Nem tinha vontade de
conversar com ela.
œ
Ainda deitado sob as cobertas, perdi por um instante o
senso de realidade e fiquei olhando bobamente a luz do sol da

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Han Gang

manhã de inverno que jorrava e enchia todo o quarto através das


cortinas brancas. No momento em que ergui um pouco a cabeça
e vi o relógio da parede, levantei-me num pulo e saí quase chu-
tando a porta do quarto. A esposa estava em frente da geladeira.
— Está louca? Por que não me acordou? Veja que horas são…
Parei de falar pois o meu pé havia pisado em algo úmido e
consistente. Não podia acreditar nos meus olhos.
Vestindo a mesma camisola da noite anterior, ela estava
agachada, fazendo pender os cabelos ressecados e desalinhados.
Seu corpo jazia no centro de uma nuvem de saquinhos de
plástico, brancos e pretos, e potes de plástico que se espalhavam
pelo piso da cozinha sem deixar qualquer lugar onde botar os
pés: carne de boi para shabu-shabu,* bacon fresco fatiado, duas
peças grandes de pé de boi, lulas acondicionadas numa bolsa
hermética, uma enguia já limpinha que a sogra mandara há
alguns dias, corvinas secas amarradas com um cordão amarelo,
uma embalagem fechada de mandu** congelado e tantos outros
saquinhos de conteúdos ignorados. E ela estava catando-os um
a um e jogando para dentro de um grande saco de lixo.
— Mas o que é que você está fazendo?!
Finalmente perdi a razão e dei um grito. Ignorando a minha
existência exatamente como na noite anterior, ela continuou
colocando todas aquelas trouxas de carne dentro do saco de
lixo. Carnes de boi e de porco, frango em pedaços, uma enguia
que, por baixo, valeria uns duzentos mil wons.
— Você está com a cabeça no lugar? Por que é que está
jogando tudo isso fora?
Corri até ela afastando os saquinhos e arrebatei-lhe o pulso.
Para meu espanto, seu pulso era forte e só consegui fazê-la
soltar o saquinho depois de um esforço tão grande a ponto de
deixar o meu rosto quente. Enquanto massageava o pulso ireito

* Prato composto por carnes (bovina, suína, frango, camarão), verduras (agrião, acelga,
alho poró, cebolinha, broto de feijão, etc.), cogumelos (shiitake e shimeji) e outros (macar-
rão, massa de peixe etc.). Os comensais devem segurar esses ingredientes com os hashi e
mergulh­á-los num caldo de carne previamente preparado, o qual serve apenas para cozi-
nhar, rapidamente, tais ingredientes. Em seguida, são servidos com um molho.
** Espécie de pastel tipo guioza recheado de verduras e carne.

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A Vegetariana

avermelhado com a mão esquerda, a esposa disse, num tom


calmo, igualzinho ao de costume.
— Eu sonhei.
Era de novo aquele papo. Olhou-me de frente sem um tico
de desalinho na expressão. Nesse momento o celular tocou.
— Droga!
Comecei a vasculhar o casaco que ficara jogado no sofá da
sala durante a noite. Somente no último bolso interno é que o
celular, todo histérico, deixou-se encontrar.
— Desculpe-me. É que aconteceu um acidente em casa…
Desculpe mesmo. Chegarei o mais rápido que puder. Não, posso
ir já… já. É só um minutinho… Não, não faça isso, por favor.
Espere só um pouco, por favor. Desculpe mesmo. Sim, não tenho
o que dizer…
Fechei o celular e entrei correndo no banheiro. Fiz a barba
às pressas e acabei me cortando em dois lugares.
— Não tem camisa passada?
Nenhuma resposta. Aos xingos, vasculhei o cesto de roupa
suja em frente ao banheiro e encontrei a camisa que jogara ali
ontem. Por sorte não estava tão amassada. Pendurei a gravata no
pescoço como se fosse um cachecol, calcei as meias e fui atrás da
agenda e da carteira. Durante todo esse tempo ela nem sequer
saiu da cozinha. Pela primeira vez em cinco anos de casado eu
era obrigado a sair para o trabalho sem receber os cuidados e o
acompanhamento da esposa.
— Enlouqueceu. Pirou completamente.
Amassei os pés dentro do sapato, que estava bem apertado,
pois ainda era novo. Saí chutando a porta da frente e, ao ver
que o elevador estava parado no último andar, desci correndo
os três lances de escada. Somente quando subi no trem do
metrô já partindo é que vi o meu rosto refletido no vidro escuro.
Alisei o cabelo com os dedos, dei um nó na gravata e esfreguei
o amassado da camisa com a palma da mão. Foi somente em
seguida que me vieram à mente o rosto sereno de dar calafrios e
a voz endurecida da esposa.

19
Han Gang

Eu sonhei, foi o que ela disse duas vezes. Seu rosto passou de
relance além do vidro do trem que corria e por sobre a escuridão
do túnel. Parecia ser um rosto estranho, de alguém que eu via
pela primeira vez. Mas não havia mais tempo para pensar sobre
o comportamento estranho da esposa, pois eu tinha apenas
trinta minutos para bolar uma desculpa e ainda elaborar a pro-
posta a ser apresentada ao cliente naquele dia. Hoje vou ter
que voltar cedo para casa de qualquer jeito, faz meses que não
volto antes da meia noite, desde que mudei de departamento,
balbuciei para mim mesmo.
œ
Era um bosque escuro. Não havia ninguém. Eu havia me
ferido no rosto e nos braços tentando abrir caminho por entre as
árvores de folhagens pontiagudas. Com certeza eu estava junto
com outros, mas acho que me perdi sozinha. Estava com medo.
Com frio. Atravessei um pequeno vale de riacho congelado e
encontrei uma construção clara que parecia um galpão. Quando
afastei os trapos que cobriam a entrada e adentrei, pude ver:
pedaços grandes de carne vermelha, centenas deles, pendurados
na ponta de longos paus. De alguns deles ainda pingava sangue
vermelho. Fui avançando, afastando as carnes sem fim, sem con-
seguir chegar à saída do outro lado. A roupa branca ficou toda
molhada de sangue.
Não sei como consegui escapar de lá. Atravessei de volta o
vale e corri sem parar. De repente, o bosque ficou claro e as árvores
de primavera encheram-no de verde. Havia crianças por todos
os lados e cheiro de coisas gostosas. Eram muitas famílias em
piquenique. A cena era indescritivelmente esplêndida. Ouvia-se
a água corrente do riacho, pessoas sentadas nas margens, gente
comendo guimbap,* churrasco sendo assado num canto, som de
gente cantando e risos de alegria.
Mas eu tinha medo. A roupa ainda estava manchada de
sangue. Aproveitei que ninguém ainda me vira e me escondi
atrás de uma árvore. Tinha sangue nas minhas mãos. Tinha
sangue na minha boca. Eu comera um naco de carne que estava
caído naquele galpão. Esfreguei a carne fresca gotejante na
* Arroz enrolado em folha seca de alga com recheio de verduras e carne.

20
A Vegetariana

minha gengiva e no céu da boca tingindo-os de sangue vermelho.


Dos meus olhos refletidos na poça de sangue daquele galpão
faiscavam luzes.
Não poderia ser mais vívida. A sensação da carne fresca sendo
mastigada por meus dentes. Meu rosto, meu olhar. Parecia vê-lo
pela primeira vez, mas era com certeza o meu rosto. Não, pelo
contrário, parecia tê-lo visto inúmeras vezes, mas não era o meu
rosto. Não sei explicar. Aquela sensação familiar, mas estranha…
tão vívida e tão estranha, assombrosamente estranha.
œ
Na mesa posta do jantar tinha alface e pasta de soja, sopa
rala de algas feita sem carne ou marisco, e gimchi,* só.
— O que é isso? E aí, está me dizendo que jogou fora todas
as carnes por causa de uma porcaria de sonho? Sabe quanto
custa tudo aquilo?**
Levantei-me da cadeira e abri o freezer. Estava vazio. Havia
pó de grãos moídos, pó de pimenta vermelha, pimenta verde
congelada e um pacotinho de alho picado, só.
— Frita um ovo pelo menos. Hoje estou cansado de verdade.
Nem almocei direito.
— Joguei fora os ovos.
— O quê?
— Cortei o leite também.
— Que absurdo. Está dizendo para eu também deixar de
comer carne?
— Não consigo deixar aquelas coisas na geladeira. Não con-
sigo suportar.
Como é que ela podia ser tão egocêntrica [egoísta?]. Olhei
bem de frente para o seu rosto. Com o olhar dirigido para baixo,
sua expressão estava tranquila como nunca. Era inesperado.
Que houvesse nela um lado tão egoísta e arbitrário. Que fosse
uma mulher tão pouco racional.

* Acompanhamento obrigatório em mesas coreanas feito de acelga que, após ser salgada,
passa por um processo de fermentação com pimenta e temperos diversos.
**

21
Han Gang

— Então, está dizendo que não se pode mais comer carne


nesta casa?
— Afinal, normalmente você só faz a refeição da manhã em
casa. Deve comer carne com frequência no almoço, no jantar…
Não vai morrer se não comer carne na refeição da manhã.
Ela respondeu pausada e articuladamente, como se a sua es-
colha fosse lógica e adequada.
— Ok, que seja, e quanto a você? Está dizendo que a partir
de agora não vai mais comer carne?
Ela acenou com a cabeça.
— Ah é? Até quando?
— …Até o fim.
Fiquei sem fala. Que o vegetarianismo estava em voga eu
também estava sabendo, de ver e de ouvir falar. Pessoas se
tornam vegetarianas atrás de uma vida longa e com saúde, para
fortalecer o organismo contra alergias e dermatites atópicas, ou
ainda para proteger o meio ambiente. Obviamente os monges
encampariam a grande causa de não matar seres vivos, mas o
que era aquilo, se ela nem era mais uma adolescente? Se não
era regime, nem tratatamento, e nem estava possuída por um
espírito, como assim, mudar de hábito alimentar por causa de
um pesadelo? Que teimosia era aquela, desconsiderando com-
pletamente a dissuasão do marido?
Isso ainda seria compreensível se, desde o início, ela tivesse
demonstrado repulsa à carne. Sempre tivera um bom apetite,
desde antes de casar, e aquilo havia sido para mim um atrativo
especial. Ela sabia virar com destreza a costela sobre a grelha
da churrasqueira e a sua pose ao segurar o pegador com uma
das mãos e com a outra ir desbastando a carne com uma
grande tesoura culinária até transmitia confiança. Depois de
casar, elaborava pratos bem decentes aos domingos: bacon
frito aromático e docinho, marinado com gengibre picado e

* Sal natural acondicionado dentro do oco do bambu e fechado com terra vermelha, e de-
pois queimado em fornalha de lenha de pinheiro, repetindo-se o processo por nove vezes.
Nesse processo, as toxinas e as impurezas contidas no sal são eliminadas e as propriedades
do bambu e da terra vermelha são absorvidas. O sal de bambu é prezado por suas proprie-
dades medicinais.

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A Vegetariana

glucose; o prato especial dela de carne fatiada para shabu-shabu


temperada com pimenta do reino e sal de bambu,* que, passada
na farinha de arroz moti* e frita, ficava parecendo um bolinho
de arroz ou jeon;** o risoto de broto de feijão, feito com carne
moída e arroz deixado de molho refogados no óleo de gergelim
e depois cozido com uma camada de broto de feijão por cima;
e o que dizer do ensopado de frango com pedaços grandes de
batata? Eu costumava esvaziar três pratadas de uma sentada
daquela carne de frango embebida com o caldo apimentadinho
até o osso.
No entanto, veja só a cara da mesinha posta por ela agora.
Sentada obliquamente na cadeira, estava colocando na boca, às
colheradas, a sopa de algas que só de olhar se via não ter gosto
nenhum. Fizera uma trouxinha de alface com arroz e pasta de
soja e mastigava-a com a bochecha inchada.
Eu não sabia. Quem era essa mulher. Não estava sabendo de
nada — pensei, repentinamente.
— Não vai comer? — ela perguntou displicente, parecendo
uma mulher de meia-idade que já criara uns quatro filhos.
Sem dar a mínima para o fato de eu estar parado à toa ob-
servando-a, ficou mastigando o gimchi por um longo tempo, o
barulho da acelga sendo esmagada.
œ
Nada mudou na esposa até a primavera chegar. Acabei tendo
que comer apenas mato todas as manhãs, mas não reclamei
mais. Quando uma pessoa se transforma tão completamente,
não resta opção à outra senão acompanhar.
Ela foi emagrecendo dia a dia. A maçã do rosto, que já
era saltada, ficou pontuda e até irritante de se ver. Se não se
maquiasse, a pele dela ficava pálida como a de uma enferma.
Se todos emagrecessem como ela só cortando a carne da dieta
ninguém mais precisaria se afligir para perder peso. Eu sabia.
* Variedade de arroz mais branco e quebradiço, do qual se faz a farinha para bolinhos de
arroz.
** Classe de comida coreana em formato achatado e próprio para uma mordida, feito co-
mumente de peixe ou verdura, o qual é passado em farinha de trigo seguido de ovo, e depois
frito na frigideira.

23
Han Gang

Que ela não estava definhando por causa da dieta vegetariana.


Era por causa dos sonhos. Não, na prática, ela quase não dormia
mais.
Ela não era, de modo algum, uma pessoa trabalhadora. Mui-
tas vezes já estava dormindo quando eu voltava tarde da noite.
Mas agora, não vinha para o quarto nem mesmo depois de eu
voltar após a meia noite, lavar-me e deitar-me. Não era porque
ela ficava lendo ou em alguma sala de bate-papo de internet,
também não ficava vendo tv a cabo a noite inteira. Nem haveria
de ter tanto trabalho de enfiar falas nos balões também.
Ela vinha para a cama só lá pelas cinco horas da madrugada,
ficava mais ou menos uma hora num sono que não se podia dizer
sono e acordava soltando um breve gemido. Com os cabelos
despenteados, o rosto ressecado e os olhos raiados de vermelho,
ficava a guardar a mesa com a minha refeição matutina. Sem
nem levantar a sua primeira colherada.
O que mais me incomodava era o fato que ela não queria
mais fazer sexo comigo. Ela sempre fora de responder sem
resmungos aos meus desejos e, de vez em quando, até tomava a
iniciativa de me apalpar. Mas agora, esquivava-se de fininho só
de eu tocar em seu ombro. Um dia, perguntei o motivo.
— Qual é o problema?
— Estou cansada.
— Pois coma carne. Sem carne vai se sentir fraca mesmo.
Não era assim antes, era?
— Na verdade…
— O quê?
— …É porque eu sinto o cheiro.
— Cheiro?
— Cheiro de carne. Sinto cheiro de carne no seu corpo.
Soltei uma risada.
— Não viu agorinha? Acabei de tomar banho. Onde é que
está cheirando?
Ela respondeu num tom sério.

24
A Vegetariana

— …Em cada um de seus poros.


De vez em quando eu tinha pensamentos nefastos. E se isso
não passasse de um estágio inicial? E se isso fosse o início de
um desarranjo psicológico, um transtorno psicótico ou uma
paranóia, de que só ouvira falar?
Mas era difícil crer que ela estivesse tomada por alguma
loucura. Como sempre, falava pouco e arrumava bem a casa.
Nos finais de semana, preparava dois ou três mexidos de ver-
duras e até jabchae,* usando cogumelos em vez de carne. Não
havia nada que se estranhar considerando que o vegetarianismo
estava na moda. Só que ela não conseguia dormir à noite. Nas
manhãs em que ela se levantava com a expressão especialmente
vã como se estivesse sendo esmagada por alguma coisa, eu
perguntava o motivo e ela respondia “tive um sonho”. Eu não
perguntava que sonho era. Não tinha vontade de ouvir falar
novamente do galpão num bosque escuro ou do rosto refletido
na poça de sangue.
Ela foi definhando na dor e no sonho no qual eu nunca
consegui entrar, do qual não tinha como saber e não queria
saber. Foi ficando magrela como uma dançarina e, por fim,
sobraram apenas os ossos esquálidos de uma enferma. Sempre
que era tomado por ideias negativas, eu pensava: a ver pelo
sogro e pela sogra, que tinham uma madeireira e uma vendinha
numa cidade pequena, pela simpática cunhada e pelo casal do
cunhado caçula, uma linhagem genética de desvio psicológico
não combinava com ela.
Quando os familiares dela me vinham à cabeça, sempre se
sobrepunha a imagem de um ambiente todo esfumaçado e com
cheiro de alho queimando sobre a chapa. Entre o vai-e-vem de
copos de soju** e a gordura da carne queimando no fogo, as mu-
lheres papeavam barulhentamente na cozinha. Todos eles —
especialmente o sogro — apreciavam o carpaccio de carne; a
sogra sabia preparar sushi a partir de um peixe vivo; a cunhada

* Prato feito com macarrão de batata-doce, de aspecto translúcido, misturado com legu-
mes e carne.
** Bebida destilada típica coreana que pode ser feita de arroz, batata-doce, batata ou outra
fonte de amido.

25
Han Gang

e a esposa eram o tipo de mulher que cortava um frango em


cubinhos brandindo a faca grande e retangular de açougueiro.
Eu gostava das habilidades cotidianas da esposa, capaz de matar
algumas baratas a palmadas. Não era ela a mais comum de todas
as mulheres do mundo, escolhida a dedo?
Ainda que eu suspeitasse verdadeiramente do seu estado,
não estaria disposto a considerar uma análise ou tratamento de
que tanto falam. Ainda que eu ficasse falando por aí que “essas
coisas são apenas doenças, não defeitos”, isso se referia, em to-
dos os sentidos, somente aos outros. Na verdade, eu não tinha a
menor tolerência para coisas estranhas.
œ
Na manhã anterior à noite em que tive aquele sonho, eu
estava cortando uma carne congelada. Você me apressou, bravo.
— Droga, vai ficar nesse lenga-lenga?
Você sabe, fico toda afoita quando você se afoba. Fico agitada
como se fosse outra pessoa e as coisas acabam se embaralhando
ainda mais. Rápido, mais rápido. A mão que segurava a faca se
movimentava tão rápido que a minha nuca ficou quente. De
repente, a tábua escorregou para a frente. Foi num átimo que
cortei o dedo e a faca desdentou-se.
Ao erguer o indicador, vi uma gota de sangue vermelho
crescer rapidamente. Redonda, mais redonda. Coloquei o dedo
na boca e aquilo me tranquilizou. Estranhamente, o gosto
meio agridoce, juntamente com o vermelho vivo do sangue, me
acalmava.
Você estava mastigando o segundo pedaço de bulgogui*
quando botou-o para fora. Catou nele algo que brilhava e gritou.
— O que é isso?! Não é um pedaço da faca?!
Fiquei olhando com cara de boba enquanto você se enrai-
vecia com o rosto todo desfigurado.
— Já pensou se eu tivesse engolido?! Quase que morro, né?!
Por que será que não me assustei com aquilo? Fiquei ainda
mais calma. Parecia que uma mão gelada havia sido colocada

* Carne fatiada e marinada com molho de soja, alho, açúcar e outros temperos, e assada
na grelha ou frigideira.

26
A Vegetariana

sobre a minha testa. Repentinamente, tudo que me rodeava


se afastou de mim, escorregando como numa vazante. A mesa,
você, todos os móveis da cozinha. Parecia que só haviam restado
eu e a cadeira onde eu me sentava no meio de um espaço infinito.
Foi na madrugada seguinte. Que vi a poça de sangue dentro
daquele galpão e, pela primeira vez, o meu rosto refletido nela.
œ
— Veja só os seus lábios! Não se maquiou?
Vestindo um trench coat preto, ela parou perplexa, sem sa-
ber o que fazer. Tirei os sapatos, peguei-a pelo braço e a levei
para o quarto.
— Está pensando em sair desse jeito, é?
Eu e ela aparecemos refletidos no espelho da penteadeira.
— Maqueie-se de novo.
Ela se desvencilhou discretamente da minha mão. Abriu a
caixinha de pó de arroz e deu alguns tapinhas no rosto com o
pufe. O pó esbranquiçado, mal assentado sobre a pele, fez o seu
rosto parecer um boneco de pano que levara um banho de poeira.
Assim que passou o batom de sempre, de cor coral escura, sobre
os lábios cor de cinza, seu rosto se livrou da palidez doentia,
ainda que deixasse a desejar. Fiquei aliviado.
— É tarde. Corra.
Tomei a dianteira e abri a porta. Enquanto pressionava o
botão do elevador com uma das mãos, fiquei olhando apreensivo
a esposa que se contorcia tentando enfiar o pé no tênis azul ma-
rinho. Trench coat com tênis! Não combinava nada, mas não
tinha jeito. Ela não tinha mais sapatos. Jogara fora tudo que era
produto de couro.
Dei a partida para esquentar o motor e logo que me sentei ao
volante liguei o rádio na estação do trânsito. Agucei a atenção
para checar a situação na região central próxima ao restau-
rante de cozinha tradicional coreana que o diretor-presidente
reservara, afivelei o cinto de segurança e arriei o freio de mão.

27
Han Gang

— Tem que causar boa impressão hoje. Eu sou o primeiro


gerente a ser chamado pelo diretor-presidente num jantar de
casais. É sinal de que ele tem um bom conceito sobre mim.
Apressei-me o máximo valendo-me de quebradas e atalhos e
conseguimos chegar no local bem em cima da hora. Já à primeira
vista, via-se que era um sobrado luxuoso, com um estaciona-
mento bem amplo.
O frio tardio da estação era intenso. Parada num canto
da garagem em meio ao vento da noite num trech coat fino, a
esposa dava impressão de estar com frio só de olhar. Ela perma-
necera calada durante todo o trajeto mas não me preocupei com
isso pois ela sempre se comportara assim. É bom falar pouco, os
mais velhos costumam gostar de mulheres assim, disse a mim
mesmo, afastando de forma fácil a sensação incômoda.
O casal do diretor-presidente e os casais do diretor-execu-
tivo e do diretor-sênior já haviam chegado. O casal do diretor-
-gerente veio logo atrás de nós. Depois de nos cumprimentarmos
com sorrisos e pequenas mesuras, eu e a esposa tiramos os casa-
cos e penduramos no cabide. Postamo-nos de pé em frente à
mesa comprida de ceia conforme guiou a esposa do diretor-
-presidente, que tinha as sobrancelhas finamente aparadas
e usava um grande colar de jade. Todos pareciam à vontade
como se frequentassem o lugar costumeiramente. Sentei-me,
reparando no teto decorado como o beiral de telhado e olhando
de soslaio para os peixes-dourados que brincavam num aquário
de pedra. Mas, ao me virar casualmente para a esposa, o seu
peito encheu os meus olhos.
Ela vestia uma blusa preta um tanto agarrada, de onde dois
biquinhos de seio mostravam claramente seus contornos. Sem
sombra de dúvida, ela estava sem o sutiã. Virei a cabeça para
observar os olhares, e os meus olhos se encontraram com os
da esposa do diretor-sênior. Pude entrever no seu olhar que
disfarçava naturalidade um misto de curiosidade, suspeita e
hesitante desprezo.

28
A Vegetariana

Senti o rosto enrubecer. Consciente da esposa sentada apá-


tica, sem participar do diálogo sociável entre as mulheres, bem
como dos olhares de esguelha em sua direção, tentei manter a
compostura interna. Pareceu-me que o melhor a se fazer naquele
momento era comportar-me da forma mais natural possível.
— Não foi difícil encontrar o restaurante? — perguntou-me
a esposa do diretor-presidente.
— Já passei em frente uma vez. Achei o jardim tão bonito,
estava mesmo com vontade de conhecer.
— Ah, é verdade… o jardim é bem cuidado mesmo. À luz do
dia é ainda melhor. Dá para ver as flores através daquele vidro.
Mas quando os pratos começaram a ser servidos, partiu-se o
cordão do meu esforço que mal e mal conseguia manter.
O primeiro prato posto à nossa frente foi tangpyeongchae.*
Era um prato bem vistoso com mukcheongpo** cortado bem
fininho, cogumelo shiitake e carne de vaca. Ela, que até então
estava apenas a guardar o seu lugar na cadeira sem uma única
palavra, disse baixinho, no momento em que o garçom levantava
o pegador para servi-la:
— Não, obrigada.
Embora tivesse dito baixinho, a movimentação ao redor pa-
rou. Ela que agora era alvo de olhares intrigados disse um pouco
mais alto desta vez:
— Eu, eu não como carne.
— Então, é vegetariana? — perguntou o diretor-presidente,
num tom magnânimo.
— No exterior, existem alguns vegetarianos rigorosos. Na
Coreia, parece que está começando a se formar aos poucos.
Principalmente agora que a mídia vem atacando em peso a
carne da nossa dieta… Não é à toa que se pensa em cortá-la para
poder viver mais.

* Prato tradicional da corte real coreana feito de gelatina de ervilha, carne e verduras va-
riadas misturadas, temperado com óleo de gerge-lim, vinagre e molho de soja.
** Gelatina de ervilha.

29
Han Gang

— Mesmo assim, como se pode viver sem comer nada de


carne? — disse a esposa do diretor-presidente, sorrindo.
Enquanto o prato da esposa permaneceu brancamente va-
zio, o garçom encheu os pratos de todas as outras nove pessoas
e desapareceu. O tema da conversa fluiu naturalmente para o
vegetarianismo.
— Há algum tempo, foi descoberta uma múmia humana de
quinhentos mil anos, não é mesmo? E não é que encontraram
nela indícios de caça? Comer carne é instinto. Vegetarianismo é
ir contra o instinto. Não é natural.
— Parece que hoje em dia há também pessoas que adotam
o vegetarianismo por causa da filosofia da constituição física…*
Eu também queria saber da minha e fui a alguns lugares, mas
cada um dizia uma coisa diferente. Fiquei tentando organizar
um cardápio diferente a cada vez, mas nunca me senti confor-
tável… O melhor não é comer de tudo um pouco? É assim que
penso.
— Não acha que uma pessoa saudável é aquela que come
de tudo, variado e sem restrições? É uma prova de saúde, física
e mental — disse a esposa do diretor-sênior, que estava dando
olhares furtivos na direção do peito da esposa desde o início.
Finalmente a sua flecha foi dirigida diretamente a ela.
— E qual o seu motivo para o vegetarianismo? É pela saúde…
ou é alguma coisa religiosa?
— Não.
A esposa, que parecia absolutamente não se dar conta de
quão difícil ocasião era aquela, abriu a boca calma e plácida.
Senti um calafrio repentino. Pois intuí o que ela estava prestes
a dizer.
— …Eu tive um sonho.
Rapidamente, abafei as suas palavras com as minhas.
— A minha esposa sofreu do estômago por muito tempo.
Por isso, não conseguia dormir profundamente. E depois que

* Teoria criada pelo médico coreano Lee Je-Ma no final do século XIX, classificando quatro
tipos de constituição física: Pequeno Yang, Pequeno Yin, Grande Yang e Grande Yin. Entre
outros preceitos, haveria para cada constituição física alimentos mais apropriados.

30
A Vegetariana

cortou a carne da dieta seguindo o conselho de um médico


oriental, melhorou bastante.
Somente então, as pessoas acenaram com a cabeça.
— Ainda bem. Eu ainda nunca fiz uma refeição com um
vegetariano de verdade. Já pensou, seria horrível comer com
alguém que pode achar obsceno o meu ato de mastigar carne.
Porque, seja como for, ser vegetariano por um motivo não físico
é ter aversão ao fato de comer carne, não é mesmo?
— É como você comer com gosto um mini-polvo mexendo-
-se enrolado no pauzinho,* enquanto a mulher à frente te encara
como se estivesse diante de um animal. Deve ser uma sensação
parecida.
Todos riram. Mesmo rindo com eles, eu estava consciente.
De que a esposa não estava rindo junto com todos. Que observava
o óleo de gergelim do tangpyeongchae brilhando nos lábios de
todos sem prestar atenção a qualquer diálogo que ia e vinha pelo
ar. E que isso estava incomodando a todos.
O prato seguinte era kkanpunggi** e, depois, sushi de atum.
Ela não mexeu um dedo sequer enquanto todos comiam. Esten-
dendo os mamilos que pareciam pequenas avelãs por baixo da
blusa, ficou a observar os lábios, os movimentos das pessoas ali
reunidas, minuciosamente, como se os sugasse.
Até que terminasse a sequência deslumbrante de mais de
dez pratos, tudo que ela comeu foi salada, gimchi e sopinha de
abóbora. Até mesmo a sopa de massinha de arroz, de gosto bem
peculiar, ela não comeu porque continha caldo de carne. Aos
poucos, as pessoas foram dando continuidade ao diálogo como
se ela não existisse naquela reunião. Alguns até me dirigiam
perguntas como se estivessem condoídos, mas eu era capaz de
sentir que, secretamente, eu, juntamente com ela, estávamos
sendo mantidos à distância.
Quando vieram as frutas de sobremesa, a esposa comeu um
pedaço de maçã e de laranja.

* Come-se o mini-polvo ainda vivo, geralmente por inteiro, com molho de pimenta coreana.
** Frango em pedaços pequenos, fritos e passados em molho doce-apimentado.

31
Han Gang

— Não está com fome? Quase não comeu, não é? — preo-


cupou-se a esposa do diretor-presidente, num tom efusivamen-
te sociável.
Sem responder, a esposa olhou de frente o rosto elegante
daquela mulher, sem rir, nem enrubecer ou titubear. Aquele
olhar fixo tornava todo o ambiente insuportável. Será que a
esposa estava entendendo que tipo de ocasião era essa? Será
que ela sabia quem era aquela mulher de meia-idade? Por um
instante, senti que a cabeça dela, o seu interior, aonde eu nunca
tinha entrado, era uma armadilha, profunda e sem fim.
œ
Alguma providência tinha de ser tomada.
Pensei naquela noite, dirigindo de volta para casa enquanto
sentia que tudo fora por água abaixo. Ela parecia serena. Parecia
não ter a mínima consciência do que cometera. Apenas encostara
obliquamente o rosto no vidro do carro como se estivesse com
sono ou cansada. Teria ficado muito bravo se fosse pelo meu
temperamento habitual. Quer ver o seu marido ser mandado
embora da firma? O que é que está tramando?
Mas eu entendi que nada fazia mais sentido. Nenhuma
ira ou persuasão seria capaz de demovê-la. Já não estava num
estágio em que eu mesmo poderia fazer alguma coisa.
Depois que a esposa se lavou, vestiu a camisola e foi para
o seu quarto de trabalho em vez do quarto de dormir, fiquei
andando pela sala e, então, peguei o telefone. A sogra atendeu,
numa pequena cidade distante. Sua voz estava sonolenta, ainda
que fosse cedo para se deitar.
— Estão todos bem? Faz tempo que não dão notícias.
— Desculpe-me. É que ando muito atarefado mesmo. O
sogro está bem de saúde?
— Aqui estamos tudo na mesma. Vai indo bem no seu
trabalho, seu Jeong?
Hesitei um pouco e disse:
— Eu estou bem. Mas é que a esposa…
— A Yeonghye? Por quê? Aconteceu alguma coisa?

32
A Vegetariana

A voz da sogra se tingiu de preocupação. Embora fosse


a segunda filha, para quem de costume não parecia dedicar
especial atenção, filha era filha pelo visto.
— Ela diz que não come mais carne.
— O quê?
— Ela não come nada de carne, só come vegetais. Faz vários
meses.
— Mas o que é isso? Não deve ser a tal do regime ou não sei
o quê, né?
— Pois é, ela não me ouve, por mais que eu tente desen-
corajá-la. Graças a ela, faz tempo que também não sinto mais o
gosto de carne aqui em casa.
A sogra ficou sem fala. Aproveitei a brecha e dei o golpe final:
— Nem dá para dizer como ela está fraquinha.
— Isso não pode ficar assim. Deixe-me falar com ela, se
estiver ao seu lado.
— Ela foi dormir. Direi a ela para lhe telefonar amanhã de
manhã.
— Não, deixe. Eu ligarei amanhã cedo. Mas ela nunca fez
uma coisa dessas… Fico até sem jeito por você.
Depois de desligar o telefone, revirei a agenda e disquei o
número da cunhada. O sobrinho de quatro anos atendeu aos
berros: “Alô!”
— Deixe-me falar com a sua mãe.
A cunhada, que era parecida com a esposa, mas mais bonita
por causa dos olhos maiores e, acima de tudo, mais feminina do
que ela, pegou o telefone.
— Alô?
Sempre que falava ao telefone com a sua voz anasalada, eu
sentia um leve nervosismo sexual. Dei-lhe a notícia do vegeta-
rianismo da esposa usando o mesmo método de há pouco, obti-
ve a mesma reação, o mesmo pedido de desculpas e a mesma
promessa do mesmo jeito de há pouco, e desliguei o telefone.

33
Han Gang

Por fim, pensei em ligar também para o cunhado, mas achei que
era demais e me detive.
œ
Voltei a sonhar.
Alguém matou uma pessoa, e outro alguém escondeu aquilo
completamente, mas no momento em que acordei, esqueci se
fui eu quem matou, ou se eu é que fui morta; e se fui eu quem
matou, quem morreu por minhas mãos; ou será que era você?
Era alguém muito próximo a mim… Se não, será que foi você
quem me matou? E nesse caso, quem foi que escondeu aquilo?
Isso com certeza não fui eu nem você… Foi com uma pá. Quanto
a isso tenho certeza. Um golpe na cabeça com uma grande pá.
O eco pesado e grave. O grito no momento em que o metal
se chocou com a cabeça… Lembro-me muito vividamente da
sombra tombando na escuridão.
Esta não foi a primeira. Tive esse sonho inúmeras vezes.
Dentro do sonho, lembro-me do sonho anterior, como acontece
quando a gente está embriagado e se lembra da embriaguez
anterior. Alguém matou alguém, incontáveis vezes. Bruxu-
leante, inapreensível… mas a lembrança me vem numa sensação
sólida de dar calafrios.
Você não deve entender. Sempre tive medo quando via
alguém cortar alguma coisa sobre a tábua de cozinha. Ainda
que fosse a minha irmã, não, que fosse a minha mãe. Não sei
explicar por que. Somente que é uma sensação insuportável.
Nesses momentos, costumava tratá-las ainda mais carinhosa-
mente Não quero dizer que foi a minha mãe ou a minha irmã a
ser morta ou a matar no sonho da noite passada. Mas somente
que sobrou aquela sensação, gélida, suja, horripilante e cruel.
De ter matado alguém com as próprias mãos, ou a de ser assas-
sinada por alguém. Uma sensação impossível de imaginar se não
se passa por isso… resoluta, aniquiladora. Morna como o sangue
ainda esfriando.
Por que será. Estranho tudo que está ao meu redor. Pareço
estar posta no lado avesso de alguma coisa. Pareço estar presa

34
A Vegetariana

atrás de uma porta sem maçaneta. Não, talvez, será que somente
agora me dei conta de que estive aqui desde o início? Está escuro.
Tudo está esmagado num breu.
œ
Diferentemente do que eu esperava, as tentativas da sogra
e da cunhada não surtiram qualquer efeito nos hábitos alimen-
tares da esposa. Nos finais de semana, a sogra me ligava e per-
guntava:
— A Younghye ainda não está comendo carne?
Até o sogro, que nunca telefonava, deu um pito na esposa.
Os gritos exaltados se extavasavam do telefone e chegavam aos
meus ouvidos.
— O que é que você está fazendo? Que você seja assim, mas
e o seu Jeong, que está no auge da idade?!
A esposa ficou segurando o telefone no ouvido quietamente,
sem responder nem que sim, nem que não.
— Por que não responde? Está ouvindo?
Como a panela da sopa começara a ferver, ela pôs o telefone
sobre a mesa sem dizer nada e foi até a cozinha. Foi e não voltou.
Condoído do sogro que esbravejava sem o interlocutor, peguei
o telefone.
— Desculpe, seu sogro.
— Que é isso, eu é que fico sem cara.
Fiquei surpreso pelo tom de desculpas do sogro patriarca-
lista, coisa que nunca ouvira nos cinco anos de casado. Palavras
de consideração e cuidado não combinavam com ele. O seu
maior motivo de orgulho era a condecoração pelos destacados
serviços militares prestados durante a guerra do Vietnã. Sua
voz era muito potente, e seu brio, tão intenso quanto a voz. Eu
no Vietnã, peguei uns sete vietcongs… Assim começava o seu
repertório favorito que eu, genro, já ouvira umas vezes. Segundo
a esposa, ela era castigada pelo pai com golpes de varinha na
batata da perna até os dezoito anos.

35
Han Gang

— Eu ia mesmo a Seul no mês que vem. Aí, sento-me com


ela e converso.
Junho era mês de aniversário da sogra. Como os pais mo-
ravam longe, os filhos de Seul mandavam presentes e telefo-
navam numa comemoração quebra-galho do aniversário da mãe.
Mas, por coincidência, a cunhada acabara de se mudar para um
apartamento maior, e os sogros viriam a Seul aproveitando a
ocasião para conhecer a nova casa. Assim, a reunião marcada
para o segundo domingo de junho devia ser um grande evento
familiar, difícil de voltar a acontecer em vários anos. Ninguém
dissera nada abertamente, mas parecia certo que as reprimendas
dos familiares contra a esposa estavam sendo preparadas para
esse dia.
Não sei se estava ciente ou não, mas ela passava os dias
impassível. Exceto que ela evitava deliberadamente se deitar
comigo — agora dormia logo de calça jeans —, visto de fora,
éramos ainda um casal normal. A única diferença é ela que
definhava a olhos vistos, dia após dia; e que eu a via deitada
de costas toda endurecida com os olhos estatelados no escuro
quando me levantava cedinho tateando o despertador. Depois
daquele jantar, o pessoal da firma passou a me tratar com certa
desconfiança, mas tudo parecia estar sendo deixado para trás
quando um projeto de minha iniciativa começou a gerar uma
receita de arregalar os olhos.
Não havia nenhum mal em viver desse jeito, ainda que com
uma mulher um tanto estranha, pensava comigo de vez em
quando. Como se fosse, assim, uma desconhecida. Não, uma
irmã, ou uma empregada, que punha a mesa e limpava a casa.
Mas uma abstinência prolongada era difícil de suportar para
um homem que estava no auge do vigor e vinha mantendo uma
vida de casado, apesar de um tanto insípida. Às vezes, quando
chegava tarde da noite depois de um jantar de negócios, tomava
a esposa de assalto, fiando-me no calor do álcool. Sentia uma
excitação inesperada quando imobilizava seus braços e tirava
sua calça. Soltava palavrões em voz baixa para a esposa que se
debatia violentamente e conseguia penetrá-la uma a cada três

36
A Vegetariana

vezes. Então, ela ficava deitada no escuro, olhando para o teto


com aquela expressão vã como se tivesse sido trazida de mulher
de conforto.* Assim que eu terminava, ela se virava para o outro
lado e escondia o rosto na coberta. E devia se arrumar enquanto
eu tomava uma ducha, pois, quando voltava para a cama, estava
sempre deitada reta de olhos fechados, como se nada tivesse
acontecido.
Nessas ocasiões, eu era tomado por um pressentimento
bizarro e ruim. Sempre tive um temperamento meio indife-
rente, nada dado a pressentimentos, mas a escuridão e o silêncio
daquele quarto fazia-me estremecer. Na manhã seguinte, não
podia esconder a repugnância ao ver os lábios duramente
cerrados da esposa sentada à mesa e o seu rosto de perfil que
parecia não ouvir coisa alguma com atenção. Sentia repulsa
e desgosto por aquela expressão que dava a impressão de ter
passado por todas as mazelas, erodida pela tempestade da vida.
Era noitinha, faltando três dias para a reunião familiar.
Naquele dia, havia feito um forte calor antecipado na cidade, e
todos os grandes prédios e lojas tinham ligado os condiciona-
dores de ar. Depois de ficar exposto ao ar-condicionado o dia
todo no escritório, voltei para casa cansado do arzinho frio. Mas
logo que abri a porta, virei-me afobado e fechei-a novamente.
Fiquei com medo de que alguém passasse pelo corredor naquele
momento e a visse. A esposa, vestindo uma calça fina de algodão
cinza clara e despida na parte de cima, descascava batatas
sentada no chão e encostada na estante da televisão. Já magra
demais, via-se o peito ligeiramente saliente abaixo das claví-
culas claramente saltadas.
— Por que está sem roupa? — perguntei tentando esboçar
um sorriso.
Ela respondeu sem parar de manusear a faca da batata com
a cabeça baixa.
— Está quente.
Levante a cabeça. Disse para mim mesmo cerrando os dentes,
sem emitir som algum. Levante a cabeça e sorria. Mostre-me

* Comfort Women, eufemismo utilizado para designar mulheres forçadas à prostituição e


escravidão sexual nos bordéis militares japoneses durante a 2ª Guerra Mundial.
37
Han Gang

que a sua resposta é uma brincadeira. Mas ela não sorriu. Era
oito horas da noite, a porta de vidro da sacada estava aberta, e
o interior do apartamento não estava quente. Em seus ombros,
via-se a pele arrepiada como sementinhas de gergelim. Havia
um monte de cascas de batata sobre o jornal estendido no chão.
Mais de trinta batatas formavam uma pequena colina.
— O que pretende fazer com elas? — perguntei, fingindo
indiferença.
— Vou cozinhar para comer.
— Mas tudo isso?
— É.
Soltei umas risadinhas esperando que ela risse junto comigo.
Mas, ela não riu. Nem sequer levantou o rosto em minha direção.
— Nada não, só estou com fome.
œ
Quando no sonho eu corto a cabeça de alguém; quando,
segurando a cabeça pelos cabelos, eu forço o vai-e-vem da faca
sobre o pescoço ainda não destacado totalmente; quando colo-
co o olho gelatinoso sobre a palma da mão; e quando acordo
no meio disso. Acordada, fico com vontade de matar a pomba
que caminha à minha frente cambaleante; quando fico com
vontade de esgoelar o gato do vizinho que vinha observando
por um longo tempo; quando as pernas tremem e brota um suor
frio; quando pareço ter me tornado outra pessoa; quando outro
alguém desponta de dentro de mim e me devora; e nessas horas…
É quando fico cheia de água na boca. Quando passo na frente
de um açougue tenho de tampar a boca. Por causa da saliva que
me enche a boca, desde a raiz da língua e molha os lábios. Por
causa da saliva que transborda por entre os lábios e fica a ponto
de escorrer.
œ
Se eu conseguisse dormir. Se eu pudesse largar a consciên-
cia ao menos por uma hora. Acordo inúmeras vezes durante a
noite e ando de um lado a outro descalça, com a casa já toda

38
A Vegetariana

fria. Gelada como uma comida já fria, uma sopa já fria. Não con-
sigo ver nada do outro lado da janela escura. De vez em quando
a porta de entrada escura se sacode, mas não há ninguém que
tenha batido na porta. Quando volto e experimento colocar a
mão por baixo das cobertas, tudo já está frio.
œ
Agora não consigo dormir mais do que cinco minutos. Assim
que a consciência me deixa, ainda que sorrateiramente, já estou
no sonho. Não, nem se pode dizer que se trata de um sonho.
São cenas curtas que me assaltam intermitentemente. O brilho
seboso dos olhos de um animal, um vulto de sangue, um crânio
todo revirado, e novamente os olhos de um animal feroz. Olhos
que parecem ter subido de dentro da minha barriga. Quando
acordo trêmula, certifico-me das minhas mãos. Para ver se as
unhas ainda estão sedosas, se os meus dentes ainda estão dóceis.
Meu seio é a única coisa na qual eu confio. Gosto dos meus
peitos. Pois não se pode matar nada com esses peitos. Até as
mãos, até os pés, até os dentes e a língua de três polegadas, até
mesmo o olhar, qualquer coisa é uma arma que pode matar e
ferir, não é mesmo? Mas o peito não. Enquanto tiver esses seios
redondos eu estarei bem. Eu ainda estou bem. Mas, por que
esses peitos não param de definhar? Agora, nem mais redondos
são. Por que será? Por que será que eu estou secando deste jeito?
Por que estou ficando tão afiada? Para perfurar o quê?
œ
Era o décimo sétimo andar de um prédio de apartamentos,
bem ensolarado. O bloco da frente bloqueava a paisagem, mas,
por trás dele, podia-se ver a montanha ao longe.
— Agora posso deixar de me preocupar com vocês. Estão
completamente estabelecidos! — comentou o sogro, enquanto
pegava na colher.
Era o apartamento comprado com o ganho da loja de cosmé-
ticos que a cunhada vinha tocando desde antes de se casar.
Ela fez a loja triplicar até o final da gravidez, e depois de ter a
criança, dava um pulinho na loja somente às noites. Voltou a

39
Han Gang

ficar na loja o dia inteiro somente há pouco, quando a criança


fez três anos e passou a frequentar uma escolinha.
Eu tinha inveja do esposo da cunhada. Era formado em artes
e se dizia artista, mas não era de muita ajuda no custeio da casa.
Disseram que tinha bens herdados, mas tinha de haver um limite,
só gastando sem ganhar. Como a mulher havia arregaçado as
mangas, ele agora poderia viver sossegadamente até o fim da
vida só se dedicando à arte. Além do mais, ela cozinhava bem
como a minha esposa de antigamente. Ao ver a mesa do almoço
irrepreensivelmente posta senti uma repentina fome. Olhando
o corpo da cunhada adequadamente carnuda, a sua fala afável,
os olhos grandes tipo ocidental, eu fiquei a lamentar as muitas
coisas sabe-se lá quais que eu estaria vivendo sem poder ter.
Sem pronunciar uma palavra de saudação de como era bom
o apartamento, ou do trabalho que devia ter dado para preparar
o almoço, a esposa comeu o arroz e o gimchi em silêncio. Pois,
além dessas coisas, não havia nada que ela pudesse comer.
Como não comia nem maionese, que leva ovo como ingrediente,
ela nem tocou na salada que parecia bem apetitosa.
Seu rosto parecia queimado, enegrecido pela prolongada
falta de sono. Alguém desconhecido pensaria que ela sofria de
uma doença grave. Como vestia sempre camiseta branca, sem
sutiã, os biquinhos transpareciam através da roupa como duas
manchinhas, quando vistos de perto. Há pouco, assim que
adentramos juntos no apartamento, a cunhada chamou-a para o
seu quarto, mas a julgar pela sua expressão aflita saindo sozinha
do quarto momentos depois, a esposa devia ter dito que não
colocaria o sutiã.
— Quanto foi o valor de compra?
— …Ah é? Eu vi ontem no site das imobiliárias, mas então
este apartamento já subiu uns cinquenta milhões de wons. Não
é que até o ano que vem as obras do metrô terminam?
— O cunhado aí é competente!
— Que é isso, eu não fiz nada. É a minha mulher que fez
tudo sozinha.

40
A Vegetariana

Enquanto iam e vinham palavras gentis e cerimoniosas,


e ao mesmo tempo reais e práticas, as crianças bagunçavam
e brigavam entre si, enquanto comiam até estourarem as bo-
chechas. Perguntei:
— Cunhada, você fez toda essa comida sozinha?
Ela deu um meio sorriso.
— …É… Fui fazendo um a um desde anteontem. Mas aquilo
aí, aquela ostra temperada, fui até o mercadão só para comprar,
porque a Younghye gosta… Mas, ela nem tocou nisso!
Prendi a respiração. Finalmente estava começando.
— Peraí. Você, Younghye! O papai aqui, já falei o suficiente
para você entender…
Seguindo o pito do sogro, a cunhada deu uma bronca arguta:
— Mas o que você pretende fazer? Existem nutrientes que
o organismo precisa… Se quiser ser vegetariana, devia planejar
bem o seu cardápido. Veja só o seu rosto.
A concunhada também ajudou:
— Até pensei que fosse outra pessoa. Eu tinha ouvido
falar, mas não sabia que estava praticando vegetarianismo e se
acabando desse jeito.
— A partir de agora, está terminado o tal do vegetarianismo.
Isto, isto, isto. Coma tudo, logo. O que é isso? O tempo das vacas
magras já passou! — disse a sogra, aproximando os pratos de
carne refogada, tangsuyuk,* ensopado de frango e mini-polvo
com macarrão na frente da esposa.
— O que está fazendo? Coma logo — apressou o sogro, com
uma voz troncuda, que lembrava a chaminé de um trem.
— Younghye, coma. Comendo, vai recuperar as forças. A
gente precisa ter energia enquanto estiver viva, né? Os monges
no templo conseguem viver daquele jeito porque vivem sozinhos
e praticando meditação.
A cunhada aconselhou num tom calmo e pausado. As crian-
ças ficaram observando a esposa com os olhinhos arregalados.
Enquanto isso, ela ficou olhando para os familiares com olhar

* Carne empanada em pequenos pedaços com molho agridoce.

41
Han Gang

vazio, como quem não entendia a razão de todo esse estarda-


lhaço.
Fez-se um silêncio tenso. Fiquei olhando os rostos à minha
volta, um por um: o do sogro totalmente tostado; o da sogra
toda enrugada, difícil de acreditar que algum dia fora uma moça
jovem, bem como os seus olhos cheios de cuidado; as sobran-
celhas da cunhada esticadas para cima num ar de preocupação;
a atitude de seu marido, de mero espectador; as expressões do
cunhado caçula e sua esposa, que, ainda que timidamente, eram
de desaprovação. Fiquei na expectativa de que a esposa dissesse
alguma coisa, qualquer que fosse. Mas ela se limitou a baixar o
talher que segurava em resposta a uma única mensagem, não
pronunciada, que todos os rostos lhe apontavam.
Houve um pequeno alvoroço. Desta vez, a sogra pegou um
pedaço de tangsuyuk com os pauzinhos. E estedeu-o bem na
frente da boca dela.
— Tome, agora, faça aaah… Coma.
A esposa, de boca fechada, ficou olhando para a sua mãe com
os olhos de quem continuava não endentendo o que se passava.
— Abra a boca logo. Não gosta disso? Então isto aqui.
Dessa vez a sogra pegou um pedaço de carne refogada. Como
a esposa continuasse de boca fechada, ela abaixou novamente o
pedaço de carne e pegou uma ostra temperada.
— Você gostava disso desde que era criança, né? Uma vez
até disse que tinha vontade de comer isso até não poder mais…
— É, eu também me lembro. E por isso me lembro da
Younghye toda vez que vejo ostra.
A cunhada acudiu a sogra, como se o mais grave de tudo fosse
o fato de ela não comer ostra temperada. Quando o pauzinho
carregado da ostra temperada foi se aproximando em direção
à sua boca, a esposa esticou o corpo para trás com toda a força.
— Coma logo. O braço está doendo…
De fato, o braço da sogra tremeu. A esposa finalmente se
levantou.
— Eu não como isso.

42
A Vegetariana

Pela primeira vez saiu uma voz nítida de sua boca.


— Como é que é!?
Quem gritou foram o sogro e o cunhado caçula, ao mesmo
tempo. Os dois tinham temperamentos parecidos, esquentados.
A concunhada logo segurou o braço do marido.
— Não dá mais para ficar olhando, meu coração vai explodir!
Você não leva a sério o que o papai diz, é? Se digo que é para
comer, é para comer!
Supus que a esposa fosse responder: “Desculpe, papai, mas
não consigo comer isso.” Contudo, num tom sereno, como quem
não sente nem um pouco de culpa, ela disse:
— Eu… não como carne.
A sogra desesperançada recolheu os pauzinhos. Seu rosto
envelhecido parecia que ia estourar num choro [nesse] instante.
Fez-se um silêncio prestes a explodir. O sogro pegou os pauzi-
nhos. Carregou neles um pedaço de tangsuyuk, contornou a
mesa e postou-se firme diante da esposa.
Ele estendeu o tangsuyuk na cara da esposa com o seu corpo
sólido, esculpido pelo trabalho braçal de uma vida toda, mas
com as costas inexoravelmente curvadas.
— Coma. Ouça o teu pai e coma. Tudo isso é para o teu bem.
E se você acabar ficando doente desse jeito?
Senti um nó no peito diante daquele instinto paterno, e
os meus olhos ficaram involuntariamente quentes. Acredito
que tenha sido igual para todos os que estavam ali reunidos. A
esposa levantou uma das mãos e afastou o pauzinho estendido
do sogro, que estremecia finamente no ar.
— Pai, eu não como carne.
Nesse instante, a palma dura da mão do sogro partiu o ar. A
esposa protegeu a face com a mão.
— Pai! — a cunhada deu um grito e segurou o braço do
sogro.
O treme-treme de seus lábios continuava, como se o nervo-
sismo não tivesse passado ainda. Era sabido que o sogro fora

43
Han Gang

possuidor de um gênio daqueles no passado, mas era a primeira


vez que eu o via descer a mão em alguém de verdade.
— Seu Jeong! Você, Yeongho! Venham os dois para cá!
Aproximei-me da esposa, hesitante. O golpe havia sido forte
e sua face deixava transparecer as veiazinhas estouradas por
baixo da pele. Estava ofegante, como se somente então tivesse
perdido a serenidade.
— Os dois peguem no braço da Yeonghye.
— O quê?
— Basta uma vez, que ela vai voltar a comer. Pelo amor de
Deus, quem é que vive hoje em dia sem comer carne!
O cunhado se levantou com uma expressão indignada.
— Mana, seja razoável e coma. Diga sim e finja que come, é
simples. Tem que chegar a este ponto na frente do papai?
O sogro gritou:
— Mas o que é que você está dizendo?! Pegue logo no braço
dela. Você também, seu Jeong.
— Pai, por que isso?
A cunhada pegou no braço direito do sogro. Ele largara
os pauzinhos, e agora se aproximava da esposa segurando um
pedaço de tangsuyuk na mão. Ela foi dando passinhos para trás
desengonçada, mas o cunhado caçula endireitou-a segurando-a
pelos braços.
— Mana, coma numa boa. Pegue com suas mãos e coma —
suplicou a cunhada.
— Pai, pare com isso, por favor.
Como a força dos braços do cunhado caçula segurando a
esposa era maior que os da cunhada segurando o sogro, este
se desvencilhou da cunhada e foi encostando o tangsuyuk na
boca da esposa. Ela emitiu um gemido com os lábios duramente
cerrados. Pelo visto, não conseguia nem falar, com medo de que
aquilo fosse entrar em sua boca no momento em que a abrisse
para dizer algo.

44
A Vegetariana

— Pai! — O cunhado tentou pará-lo aos gritos, mas, na


confusão do momento, não se lembrou de soltar a mão que
segurava a esposa.
— Uuumm… umm!
O sogro esmagou o tangsuyuk nos lábios da esposa que se
contorcia dolorosamente. Com os dedos endurecidos, conse-
guira abrir os lábios, mas não fora capaz de violar os dentes for-
temente cerrados.
Finalmente o sogro, explodindo de raiva, deu mais um tapa
na esposa.
— Pai!
A cunhada se atirou e se agarrou à cintura do sogro, mas
os dentes da esposa se abriram por um instante e ele enfiou o
tangsuyuk em sua boca. Quando o cunhado afrouxou o braço
diante daquela fúria, a esposa cuspiu o tangsuyuk rugindo.
Ouviu-se um grito de animal de sua boca.
— …Sai!
Ela se dobrou toda e deu a impressão de fugir em direção
à porta do apartamento, mas então voltou-se e pegou a faca de
cortar frutas que estava em cima da mesinha de apoio.
— Yeo, Yeonghye! — A voz cortante da sogra traçou um
trinco trêmulo sobre o silêncio sangrento. As crianças desataram
a chorar.
Apertando fortemente os dentes, a esposa ficou a mirar, um
por um, os olhos daqueles que a observavam, e ergueu a faca.
— Pare-a…
— Saia daí!
O sangue esguichou do seu pulso como uma fonte. Depois,
o sangue vermelho jorrou para baixo como uma chuva sobre o
prato branco. Então, ela dobrou os joelhos e desmoronou. Quem
lhe tirou a faca foi o concunhado, que, até então, estava apenas
sentado assistindo a cena.
— O que está fazendo?! Traga uma toalha qualquer!

45
Han Gang

Em seguida, fez parar o sangue do pulso dela com a habi-


lidade que somente um veterano das forças especiais como ele
poderia fazer, e a carregou em suas costas.
— Você, desce rápido e liga o carro!
Procurei o sapato todo desajeitado. Tive que trocar de sa-
pato duas vezes, por ter encontrado os pares errados, e, somente
então, pude sair pela porta.
œ
…O cachorro que arrancara um pedaço da minha perna
está sendo amarrado na moto do meu pai. Queimaram a pele
do seu rabo e grudaram na minha ferida, na batata da perna, e
depois passaram várias voltas de gaze. Eu, com nove anos de
idade, estava de pé do lado de fora do portão. Era um dia de
verão, úmido e quente. O suor escorre copiosamente, mesmo
quando se está parada. O cachorro também estava com a língua
vermelha pendendo até o queixo, com a respiração ofegante. Era
um cachorro branco e bonito, maior que eu. Até arrancar um
pedaço da perna da filha do dono, a vila inteira dizia que era um
cachorro muito esperto.
Meu pai pendurou o cachorro na árvore, e, enquanto quei-
mava o seu rabo, disse que não iria bater nele. Ouvira dizer, não
sei onde, que a carne fica mais macia quando o cachorro morre
correndo. Deu-se a partida na moto, e o papai começou a correr.
O cachorro correu junto. Deu duas, três voltas na vila percor-
rendo o mesmo caminho. Estou de pé no portão de casa sem
me mover um tico, vendo o cachorro brancão que vai ficando
cansado e ofegante, revirando o branco dos olhos. Toda vez que
os seus olhos faiscantes se encontram com os meus, esbugalho
ainda mais os olhos.
Cachorro maldito. Ousa me morder?
Depois da quinta volta, o cachorro está espumando na boca.
Corre sangue do pescoço amarrado pela corda. Ganindo de dor,
o cachorro corre arrastado. Sexta volta. O cachorro vomita um
sangue vermelho-escuro pela boca. O sangue corre do pescoço,

46
A Vegetariana

e também da boca. Parada em pé, dura e reta, fico a observar o


sangue misturado à espuma, e os dois olhos faiscantes. Quando
esperava o bicho aparecer pela sétima vez, vejo meu pai trazendo
o animal todo mole na garupa da moto. Fico olhando as quatro
pernas que balançam, as pálpebras abertas e os olhos injetados
de sangue.
Naquela noite aconteceu uma festa em casa. Reuniram-se
todos os homens conhecidos da feira.* Coloquei uma colherada
na boca pois disseram que eu tinha de comer a carne do cachorro
para sarar a ferida de sua mordida. Não, na verdade, misturei
o arroz na sopa de cachorro e comi a tigela inteira. O cheiro
enjoativo da carne de cachorro espetava o meu nariz, apesar do
aroma de gergelim selvagem.** Lembro-me dos olhos que bruxu-
leavam por cima da sopa, aquelas pupilas que me encaravam
enquanto corria vomitando sangue misturado à espuma. Não
senti nada. De verdade não senti nada.
œ
As mulheres ficaram em casa para acalmar as crianças as-
sustadas, o cunhado caçula ficou cuidando da sogra que desfale-
ceu em seguida, e eu e o concunhado carregamos a esposa para o
pronto-socorro de um hospital próximo. Somente depois que a
esposa, já superada a situação emergencial, foi transferida para
um quarto duplo de internação, é que os dois homens se deram
conta da roupa toda amarrotada e endurecida pelo sangue res-
secado.
A esposa estava adormecida com a agulha de soro espetada
no braço direito. Eu e o concunhado ficamos olhando calados
para o seu rosto adormecido. Como se nele estivesse escrito al-
guma resposta. Como se pudéssemos compreender a resposta
se ficássemos olhando daquele jeito.
— Obrigado, você já pode ir.
— …Está bem.

* Na tradição coreana, a carne de cachorro tem a fama de possuir propriedades benéficas


para a energia masculina.
** Especiaria que se coloca na sopa de cachorro para atenuar o cheiro característico de
sua carne.

47
Han Gang

O concunhado pareceu ter algo a dizer, mas foi econômico


nas palavras. Coloquei a mão no bolso e peguei uns vinte mil
wons que consegui apanhar na pressa, e lhe passei:
— Não vá desse jeito, compre uma roupa na lojinha.
— E você?… Ah, quando a minha mulher vier para cá mais
tarde eu mando umas roupas minhas.
À noitinha, vieram a cunhada, o cunhado caçula e a sua
esposa. Segundo eles, o sogro, em estado de choque, estava
ainda se tranquilizando. A sogra também queria vir de qualquer
maneira, mas não a deixaram sequer dar o primeiro passo nessa
direção, disse o cunhado.
— Mas o que é que é isso, na frente das crianças…
A concunhada devia ter chorado de susto, pois estava com a
maquiagem desfeita e os olhos inchados.
— O sogro também foi demais. Como pode bater na filha, na
frente do próprio genro? Ele era assim antes?
— É que ele já é afobado, né… É só ver pelo Youngho. Mas
ele tinha melhorado com a idade.
— O que é que eu tenho a ver?
— Ainda mais porque a Younghye sempre foi tão quietinha,
nunca deu um pio, ele deve ter estranhado mesmo.
— É demais querer obrigá-la a comer carne, mas também
o que é que há para não querer daquele jeito? E também, pegar
uma faca?… Nunca na minha vida vi uma coisa dessas. Como é
que vou olhar para ela daqui para a frente?
Enquanto a cunhada cuidava da esposa, vesti a camiseta do
concunhado e fui a um banho público ali perto. O sangue negro
endurecido foi sendo lavado na corrente de água morna. Olhares
desconfiados me examinavam furtivamente. Tive náusea. Toda
essa situação era repugnante. Não parecia ser realidade. Mais
do que susto ou perplexidade, sentia repulsa pela esposa.
Depois que a cunhada foi embora, restamos eu e a esposa no
quarto duplo de internação, além de uma colegial com ruptura
intestinal acompanhada de seus pais. Fiquei a guardar a cabe-

48
A Vegetariana

ceira da esposa, enquanto eles me olhavam de soslaio e cochi-


chavam em voz baixa. Logo este longo domingo terminará e
será segunda feira. Então, não precisarei mais ver essa mulher.
Amanhã, a cunhada ficará no meu lugar e, depois de amanhã, a
esposa terá alta. Isso significava ter de viver com essa mulher
estranha e medonha, sozinho com ela na mesma casa. Era-me
difícil aceitar isso.
Fui ao hospital às nove horas da noite do dia seguinte. A
cunhada me recebeu com um sorriso:
— Está cansado, né?
— Mas e o seu filho…
— O pai dele ficou em casa hoje.
Se tivesse qualquer outra desculpa possível, eu não teria
voltado ao hospital àquela hora. Mas, era segunda feira e não
havia nenhum jantar de negócios. Um projeto grande havia
chegado ao fim há pouco tempo e nem tinha trabalho para hora
extra.
— E ela?
— Dormiu direto. Não quis abrir a boca. Comeu direitinho…
Acho que vai ficar boa.
O seu jeito de falar, bem pesado, próprio da cunhada e que
sempre me comovia, conseguiu aplacar um pouco o meu ânimo
eriçado. Depois de deixá-la ir e passados uns trinta minutos,
pensei em desapertar o nó da gravata e me lavar um pouco,
quando alguém bateu na porta.
Para minha surpresa era a sogra.
— …Não tenho mais cara para te ver — foi a primeira coisa
que disse assim que se aproximou.
— O que é isso, não é nada. E a senhora, como está?
A sogra soltou um grande suspiro.
— Que cena para se ver, a essa altura da vida…
Ela me estendeu uma sacola que trazia nas mãos.
— O que é isso?

49
Han Gang

— Eu tinha encomendado antes de vir para Seul. Achei que


estariam precisando de um fortificante, já que estão há vários
meses sem comer carne… tomem juntos, vocês dois. É cabrito
negro.* Trouxe escondido, pois se a sua cunhada soubesse, podia
me impedir. Diga a Younghye que é um chá de ervas medicinais
e veja se consegue fazê-la tomar. Já não deve ter nem cheiro de
carne mais, de tanta erva que colocaram aí. Já está magra que
mais parece um fantasma, e perdeu tanto sangue…
Fiquei sem fala de vez, diante desse seu tenaz instinto
materno.
— Aqui não tem forno de microondas, né? Vou dar uma
olhada na sala das enfermeiras.
Ela sacou um pacotinho de dentro da sacola e saiu. Enrolei a
gravata na mão, sentindo que o ânimo, aplacado a custo graças
à cunhada, voltava a dar sobressaltos. A esposa acordou pouco
depois. Foi quando senti um alívio pela aparição da sogra, pois
pensei que era melhor assim do que estar sozinho com ela
quando ela acordasse.
Eu estava no pé da cama, mas foi a sua mãe quem ela olhou
nos olhos primeiro. A sogra, que estava entrando pela porta, teve
um arroubo de alegria, mas difícil era interpretar a expressão da
esposa. Seu rosto estava plácido, talvez por ter passado o dia
inteiro deitada dormindo, e sua tez parecia clara e tonificada,
não se sabe se pelo soro ou simplesmente inchaço.
A sogra pegou na mão da esposa, segurando o copo descar-
tável fumegante na outra.
— Minha filha… — Seus olhos ficaram a ponto de trans-
bordar de lágrimas. — Tome isto. Olha só a sua cara.
A esposa pegou no copo, obediente.
— É chá medicinal. Mandei preparar para você recuperar
as forças. Lembra, há muito tempo, você já tomou isso uma vez
antes de casar.
A esposa levou o copo ao nariz e abanou a cabeça.
— Isso não é chá medicinal.

* Conhecida fórmula da medicina tradicional coreana para fortalecer um corpo debilitado.

50
A Vegetariana

A esposa estendeu o braço e devolveu o copo, com uma


expressão serena, mas melancólica, e um olhar talvez de com-
paixão.
— É sim. Tampe bem o nariz e tome de uma vez.
— Não tomo isso.
— Tome. É o desejo de sua mãe. Não se diz por aí que desejo
a gente atende, até de gente morta?
A sogra levou o copo à sua boca.
— É chá medicinal mesmo?
— Tô dizendo que é!
A esposa, que estava hesitante, tampou o nariz e bebeu
um gole do líquido negro. Com a expressão transbordando de
alegria, a sogra bradou:
— Tome, tome mais.
Seus olhos cintilaram por baixo das pálpebras enrugadas.
— Deixe aí, tomo depois.
A esposa voltou a se deitar.
— Tem vontade de comer alguma coisa? Quer que eu vá
comprar alguma coisa doce para aliviar o gosto do chá?
— Tá tudo bem.
Mesmo assim, a sogra me perguntou onde ficava a lojinha
e zarpou do quarto. A esposa se levantou da cama em seguida.
— Aonde vai?
— Ao banheiro.
Peguei a bolsa do soro e fui atrás. Ela pendurou o soro num
gancho e se trancou no banheiro. Depois, vomitou tudo o que
havia entrado pela boca juntamente com uns gemidos.
Saiu do banheiro vacilante. Eu podia sentir o cheiro acre do
líquido estomacal e o azedo da comida. Como desta vez eu não
segurei o soro, ela suspendia-o com a mão esquerda enfaixada,
e numa altura que não era suficiente, de modo que o sangue
começou a refluir aos poucos. Ela deu passos cambaleantes e
pegou a sacola do cabrito negro que a sogra deixara no chão.

51
Han Gang

Com a mão direita onde estava espetada a agulha do soro, mas


não se importou. Eu não quis verificar com os meus olhos o que
ela estava querendo fazer com aquilo.
Pouco depois, a sogra correu para dentro trombando-se na
porta com um barulho de fazer franzir a testa da colegial e de
sua mãe. Segurava numa das mãos um pacotinho de biscoito e
na outra, a sacola de papel que, só de bater o olho, podia-se ver
um líquido negro escorrendo para fora.
— Como é que você pôde ficar só olhando? Era óbvio o que
ela estava tentando aprontar agorinha, não?
Eu queria mesmo era sair daquele quarto e ir embora para
casa.
— …Você, você sabe quanto custou isso? Jogar isso fora? É
dinheiro conseguido com o suor e o sangue da sua mãe e do seu
pai. Você é minha filha ainda assim?
Vi a esposa parada na porta, curvada para a frente, com seu
sangue vermelho refluindo para dentro da bolsa do soro.
— Olhe para você, agora! Se você não comer carne, o mundo
inteiro vai te devorar. Veja-se no espelho, veja só como está a
tua cara.
A voz estridente da sogra foi sendo substituída por um cho-
ro baixo.
Mas para a esposa, aquilo parecia ser choro de uma desco-
nhecida, pois passou por ela e subiu na cama. Puxou o cobertor
até o peito e fechou os olhos. Somente então eu suspendi a bolsa
do soro meio cheia com seu sangue vermelho.
œ
Não sei por que essa mulher chora. Também não sei por que
ela me encara como se fosse engolir a minha cara. Também não
sei por que ela fica alisando o meu pulso enfaixado com a mão
tremendo.
Está tudo bem com o pulso. Não sinto nada. O que dói é o
peito. Alguma coisa está parada na entrada do estômago. Não

52
A Vegetariana

sei o que é. Está sempre parada ali. Sinto uma bolota mesmo
quando estou sem o sutiã. Tento expirar o mais longamente
possível, mas a dor no peito não alivia.
Isso está incrustado ali, onde gritos e prantos se compac-
taram em camadas. É por causa da carne. Comi carne demais.
Todas aquelas vidas estão paradas ali. É isso. O sangue e a carne
foram digeridos e espalhados para todos os cantos do corpo,
os resíduos foram excretados, mas as vidas ficaram tenazmente
grudadas na entrada do estômago.
Uma vez, uma única vez, queria dar um grito forte. Queria
sair correndo em direção ao escuro. Será que dessa maneira esta
bolota será expelida para fora do corpo? Será isso possível?
Ninguém pode me ajudar.
Ninguém pode me salvar.
Ninguém pode me fazer respirar.
œ
Quando voltei, depois de colocar a sogra num táxi, o quarto
estava escuro. A colegial e a sua mãe, fartas do rebuliço, tinham
apagado a luz, desligado a tv e fechado a cortina. A esposa
estava adormecida. Deitei-me encolhido na cama auxiliar e ten-
tei dormir. Não conseguia atinar por onde, em quê e de que jeito
eu deveria dar uma ordem. Somente uma coisa era certa. Esse
tipo de coisa não podia acontecer comigo.
Adormeci e sonhei. Eu estava matando alguém. Cravei uma
faca na barriga e forcei partindo-a ao meio. Retirei o intestino,
comprido e ondulado. Separei toda a carne sumarenta e o mús-
culo deixando apenas o osso, feito um peixe. Mas acabei me es-
quecendo quem era a vítima no momento em que acordei.
Ainda era madrugada escura. Tomado por um estranho
impulso, levantei o lençol que cobria a esposa. Tateei a sua
escuridão negra. Não havia sangue empoçado nem vísceras revi-
radas. Do leito ao lado podia-se ouvir um ronco baixo e áspero,
mas a esposa estava estranhamente quieta. Sentindo um tremor
bizarro, estendi o indicador e o levei ao seu nariz. Estava viva.

53
Han Gang

œ
Voltei a dormir. Quando acordei, o quarto já estava claro.
— O senhor dormiu tão profundamente… que nem tomou
conhecimento quando trouxeram a refeição — disse a jovem
mãe da colegial, num tom de quem estava condoída.
Olhei para a bandeja posta sobre a cama. Para onde ela teria
ido, deixando a bandeja assim sem nem abrir a tampa? A agulha
do soro também estava fora, pendendo manchada de sangue na
ponta da mangueira fina e longa.
— Ela foi a algum lugar? — perguntei, enquanto limpava a
marca de saliva escorrida no canto da boca.
— Quando a gente acordou, ela já não estava aí.
— O quê? Deviam ter me acordado, então.
— É que o senhor dormia tão profundamente… Nós pen-
samos que ela tinha alguma coisa para fazer.
A jovem mãe enrubeceu, sem saber o que dizer, um tanto
irritada.
Agarrei as duas pontas da camisa desabotoada e saí corren-
do. Revirava o pescoço atabalhoadamente pelo corredor com-
prido e passei pelo elevador, mas não conseguia avistá-la. Es-
tava aflito. Tinha pedido para entrar duas horas mais tarde
naquela manhã. A ideia era terminar o procedimento de alta
nesse ínterim. No caminho de casa, diria à esposa, e também a
mim mesmo, para pensarmos por ora que tudo não passara de
um sonho.
Peguei o elevador e desci para o andar térreo. Ela também
não estava no lobby. Sôfrego e sem parar de olhar em volta, corri
para o jardim onde estavam vários pacientes que haviam saído
depois da refeição matutina. Estavam ali para saborear o ar
fresco da manhãzinha. Pareciam ser pacientes de longo prazo,
com rostos cansados e melancólicos, mas com uma expressão
de paz a seu modo. Quando me aproximei de uma fonte de on-
de não jorrava água, vi pessoas amontoadas num burburinho.
Avancei, abrindo o caminho por entre os ombros.

54
A Vegetariana

A esposa estava no banco ao lado da fonte. Despida da ca-


misa de interna* que jazia sobre o joelho, estava sentada dei-
xando mostrar toda a sua clavícula esquálida, o peito magro e
os mamilos marrom-claro. Havia desatado a faixa do pulso es-
querdo e lambia lentamente a ferida como se dela escorresse
sangue. Raios de sol envolviam o seu rosto e o corpo despido.
— Sabem desde quando ela está assim?
— Deus do céu… Parece que veio do bloco da psiquiatria,
uma mulher tão jovem.
— O que é que ela está segurando na mão?
— Não é o punho vazio?
— Não, parece que está apertando alguma coisa na mão.
— Ah, vejam, estão vindo agora.
Voltei-me e vi um enfermeiro de expressão séria e um guarda
de meia-idade que vinham correndo.
Como se fora um estranho, um dos espectadores à volta, fi-
quei olhando a cena. Vi o rosto da esposa transparecendo fatiga
e os seus lábios molhados de sangue que parecia uma mancha de
batom borrado. Seus olhos voltados vagamente para os especta-
dores, que cintilavam como se guardassem água, encontraram-
-se com os meus.
Não conheço [essa] mulher, pensei comigo. Isso era fato.
Não era mentira. Ainda assim, aproximei-me dela com as pernas
que mal saíam do lugar, movido pela inércia da inescapável res-
ponsabilidade.
— Mas o que é que você está fazendo?
Sussurrei em voz baixa. Levantei a camisa que estava sobre
o joelho e cobri o seu nada vistoso peito.
— Estava calor… — A esposa deu um sorriso débil. Era o
seu sorriso simplório característico, que eu acreditava conhecer
muito bem. — Tirei apenas porque estava calor.
Ela suspendeu a mão esquerda com a nítida marca de faca,
e se protegeu dos raios de sol que jorravam sobre a sua testa.

* Em hospitais coreanos, usa-se uma roupa específica para os internos, fornecida pelo hos-
pital.

55
Han Gang

— …Não posso?
Abri a sua mão direita duramente cerrada. Um passarinho
com o pescoço esmagado dentro do seu punho caiu sobre o
banco. Era um pequeno pássaro, um branco-olho, com as penas
arrancadas aqui e ali. Como se tivesse sido esgarçada por um
predador, via-se a marca de uma dentada grosseira e, abaixo
dela, uma mancha de sangue, vermelha e nítida.

56
A Mancha Mongólica

U
ma cortina roxa escura cerrou o palco. Os dançarinos
seminus agitaram vigorosamente as mãos até que seus
corpos não pudessem mais ser vistos. O som das pal-
mas da platéia era forte e ouvia-se gritos ocasionais de “bravo!”,
mas não houve pedido de bis. A ovação baixou em instantes, e
os espectadores se apressaram em pegar suas coisas e roupas
e buscaram as saídas. Ele também descruzou as pernas e se
levantou. Durante os cinco ou mais minutos de ovação, ele não
bateu palmas em nenhum momento. De braços cruzados, ficou
mirando quieto os olhos e os lábios dos dançarinos que se pos-
tavam sobre o palco sedentos de aclamação. Embora sentisse ao
mesmo tempo compaixão e admiração pelo esforço deles, não
desejou que suas palmas fossem dirigidas ao coreógrafo.
Atravessou o hall do teatro lançando um olhar rápido para
o cartaz do espetáculo, já perdido de sua utilidade. Quando se
deparara com o cartaz por acaso numa livraria da cidade, ele
estremecera. Apressou-se em reservar um lugar por telefone te-
mendo perder a última apresentação, que acabara de terminar.
No cartaz, homens e mulheres nus estavam sentados obliqua-
mente mostrando as costas. Havia flores e ramos em vermelho e
verde, e uma folhagem espessa pintadas da nuca às nádegas. De
frente para eles, sentiu-se amedrontado, irrequieto e sufocado.
Não podia acreditar que a imagem que o arrebatara há um ano
estava sendo emanada de uma outra pessoa — o coreógrafo —
Han Gang

totalmente desconhecida. Será mesmo que aquela imagem se


desdobraria do jeito que ele vinha sonhando? Até que as luzes se
apagassam e o espetáculo começasse, ele estivera tenso a ponto
de não poder sequer tomar um gole de água.
Mas não foi assim. Ele se esquivou daquelas figuras glamo-
rosas e extrovertidas do ramo da dança que enchiam o hall, e
seguiu em direção à saída que dava para a estação de metrô. Na
música eletrônica, nas vestes chamativas, na exposição exage-
rada do corpo e gestos erotizados que enchiam totalmente o
palco até há alguns minutos, não havia o que ele buscava. O que
ele buscava era algo mais silencioso, mais íntimo, mais fasci-
nante e profundo.
O metrô da tarde de domingo estava tranquilo. Postou-se
perto da porta deslizante segurando o programa com a foto
igual do cartaz impresso na capa. A esposa e o filho de cinco
anos esperavam em casa. Mesmo sabendo do desejo da esposa
de ficar junto pelo menos no feriado, sacrificara uma tarde em
prol desse espetáculo. Ganhara alguma coisa? Se houve era que
experimentara mais uma vez a desilusão, que compreendera que,
ao final, somente ele mesmo seria capaz de concretizar aquilo.
Como, de que jeito, um outro alguém poderia, em seu lugar,
extrair dele o que ele sonhava? Sentiu o mesmo gosto amargo
de quando, um tempo antes, viu um trabalho de vídeo parecido
numa instalação do artista japonês Y. Na fita que mostrava cenas
de orgia sexual, vários homens e mulheres de corpos nus total-
mente pintados com tinta colorida, desejavam-se mutuamente,
em meio a uma música igualmente psicodélica. Seus corpos se
debatiam sem parar como peixes sedentos jogados para fora
d’água. Obviamente, havia nele também uma sede como aquela.
Mas não era uma coisa que ele desejava exibir [dessa] forma.
Com certeza, não era [isso].
Quando viu, o vagão estava passando o condomínio de
apartamentos onde ele morava. Desde o início não tivera a in-
tenção de descer. Enfiou o programa na bolsa pendurada em
seu ombro. Enfiou os dois punhos no bolso da jaqueta e olhou
a paisagem do interior do vagão refletida no vidro. Aceitou sem

60
A Vegetariana

muita dificuldade que o homem de meia-idade, que escondia


os cabelos que já rareavam sob um boné de baseball e a barriga
caindo flácida sob a jaqueta, era ele próprio.
œ
O estúdio estava trancado. Tarde de domingo era a única
hora em que ele podia usar o espaço sozinho. Nesta sala de 26m2
no segundo subsolo da sede do grupo k, oferecido como parte
do movimento de mecenato empresarial, quatro vídeo-artistas
trabalhavam cada qual grudado em seu computador. Poder usar
equipamentos caros sem custo algum era uma grande regalia,
mas para o seu temperamento suscetível, que conseguia absor-
ver-se somente quando estava sozinho, não eram poucos os in-
convenientes.
A porta se abriu com um click leve e metálico. Tateou a pa-
rede escura e acendeu a luz. Trancou a porta, tirou o boné de
baseball, tirou a jaqueta, arriou a bolsa e se deteve hesitante por
um momento no corredor estreito com as duas mãos sobre os
lábios. Depois, sentou-se de frente ao computador e agarrou
toda a testa. Abriu a bolsa e tirou o programa do espetáculo,
um bloco de desenhos e uma fita master. A fita master, que
trazia uma etiqueta com o seu nome, o endereço e até o telefone,
continha todos os originais dos trabalhos de vídeo que ele
produzira durante mais de dez anos. Já haviam se passado dois
anos desde que finalizara o último trabalho e gravara na fita.
Dois anos não era uma pausa longa a ponto de ser fatal, mas
era uma vacância suficientemente longa para deixá-lo secreta-
mente impaciente.
Abriu o bloco de desenhos. Eram dezenas de esboços que,
embora tivessem um toque totalmente diferente do cartaz do
espetáculo, traziam uma ideia que em si era igual. Os corpos de
homens e mulheres sem roupa estavam cobertos de um body-
painting com ricas pétalas de formatos delicados e arredon-
dados, e suas posições de cópula minuciosamente retratadas.
Coxas que faziam sentir o músculo tensionado, as nádegas
bem retesadas, poderiam ser vistos simplesmente como

61
Han Gang

uma apimentada pornografia, não fossem por suas metades


superiores, magricelas como as de dançarinos. Os corpos — os
rostos não estavam desenhados — eram rígidos e silenciosos,
neutralizando os elementos provocativos da cena.
Num dado momento, essa imagem lhe viera à mente. Foi no
inverno passado, quando sentiu uma energia subir aos poucos
serpeando a partir do estômago, e fazendo-o pressentir que o
estado de esgotamento de mais de um ano terminaria de algum
modo. Mas, então, ele não suspeitara que a imagem fosse tão
perturbadora. Tudo o que ele vinha fazendo até então era em
grande medida algo realista. Para ele que retratava o cotidiano
humano, erodido e esgarçado, de uma sociedade capitalista
tardia, usando design gráfico em 3d e cenas reais documentais,
esta imagem que era sensorial, puramente sensorial, era como
um monstro.
Aquilo poderia não ter chegado até ele. Se naquela tarde
de domingo a esposa não tivesse pedido para ele dar banho no
filho. Se, depois de sair com o filho envolto numa toalha grande,
não tivesse perguntado: “A mancha mongólica continua aí, até
que grande. Quando é que isso some?”, enquanto via a esposa
colocar a cueca na criança. Se a esposa não tivesse respondido,
sem dar importância: “Sei não… também não me lembro direito.
Bom, a Yeonghye, ela ainda a tinha com vinte anos.” Se, à minha
pergunta “vinte anos?” não tivesse seguido como resposta
“hu-hum… é, assim, do tamanho de um polegar, azul. Se tinha até
aquela idade, deve tê-la ainda.” A cena de uma flor azul desabro-
chando no meio do traseiro de uma mulher me arrebatou de
pronto. O fato de que nas nádegas da cunhada ainda restava a
mancha mongólica e a cena de homens e mulheres nus copulando
com os corpos totalmente pintados de flores ficaram gravados
em sua memória, amarrados numa relação tão e incompreensi-
velmente certa e nítida de causa e efeito.
A mulher de dentro dos seus esboços estava com o rosto cor-
tado, mas era a cunhada. Não, tinha de ser ela. Ao imaginar pela
primeira vez o seu corpo despido que nunca vira, e pincelando
pontos como se fossem pétalas pequenas e azuis no meio de suas

62
A Vegetariana

nádegas, ele experimentou um leve estremecer juntamente com


uma ereção. Aquilo fora um desejo sexual poderoso, tendo um
objeto bem definido, uma sensação praticamente inédita desde
que se casara, especialmente depois dos trinta e cinco. E então,
quem será o homem sem rosto a penetrá-la sentado de frente,
apertando-a contra si como se estrangulasse? Compreendeu
que era ele próprio, que só poderia ser ele próprio. Quando o
pensamento chegou nesse ponto, a sua expressão se distorceu
numa careta.
œ
Ele esteve buscando a resposta por um longo tempo. De
como poderia fugir dessa imagem. Mas não podia ser outra
coisa. Não existia outra imagem tão forte e tão sedutora quanto
esta. Não tinha vontade de trabalhar em qualquer outra coisa
que fosse além desta. Qualquer outra exposição, filme ou espe-
táculo lhe parecia xoxo. Somente pelo fato de não ser este.
Ficava a elocubrar, como num devaneio, como poderia tor-
nar real a imagem. Tomar emprestado o ateliê de um amigo pin-
tor e instalar as luzes, preparar a tinta para o bodypainting, e
também uma colcha branca para forrar o chão… enquanto os
pensamentos se sucediam, ficava restando a parte mais difícil,
a de convencer a cunhada. Ficou a se atormentar por um longo
tempo indagando se não poderia substituí-la por outra mulher,
quando, num dado momento, sobreveio-lhe um questiona-
mento tardio, de como ele poderia produzir e rodar uma cena
pornográfica, sim, francamente pornográfica. Nenhuma mulher,
mesmo que não fosse a cunhada, aceitaria fazer aquilo. E então,
contratar uma atriz especializada pagando um alto cachê? Que
ele cedesse a esse ponto e conseguisse rodar a cena; conseguiria
mesmo expor aquilo para o público? Até então, já imaginara que
algum dia pudesse passar por uns maus bocados por uma obra
que tratasse de um assunto social polêmico, mas nunca pensara
em ser taxado como produtor de material pornográfico. Como
sempre gozara de muita liberdade ao produzir suas obras, nunca

63
Han Gang

lhe passara pela cabeça a ideia de que talvez uma liberdade


infinita poderia não ser concedida a ele.
Não fosse por aquela imagem, não seria preciso passar por
toda essa ansiedade, desconforto, insegurança, essa dolorosa
dúvida e autocensura. Não precisaria experimentar o pânico de
um passo dado por conta própria pondo a perder tudo o que
construíra até aquele momento — ainda que não fosse nada
grandioso —, até mesmo a família. Muita coisa começava a
apresentar fissuras dentro dele. Era ele uma pessoa normal? Ou
era alguém razoavelmente moral? Era alguém forte, capaz de
exercer auto-controle? Já não podia mais afirmar ter as respostas
para essas perguntas, as quais pensava saber com toda a certeza.
Tlic. O barulho da chave fez com que ele fechasse o bloco
e o puxasse para si. Não desejava que por um acaso isso fosse
aberto e descoberto por alguém. O que era também uma experi-
ência nova, para ele que não costumava ser ciumento ao mostrar
seus esboços e croquis.
— Seonbé!
Era J, hubé* com seu cabelo longo amarrado em rabo-de-
-cavalo.
— Puxa, pensei que não tivesse ninguém. — Fingiu tranqui-
lidade e esticou-se para trás, dando uma risada. — Quer tomar
café? — disse, mostrando uma moeda tirada do bolso.
Ele assentiu com a cabeça. Enquanto J saiu para pegar o
café da máquina, olhou ao redor do estúdio que já não era mais
somente dele. Apertou o boné de baseball contra a cabeça, inco-
modado com as clareiras que apareciam no topo da cabeça. Sentiu
algo como um grito reprimido há muito prestes a explodir como
uma tosse. Varreu as coisas às pressas para dentro da bolsa e
saiu do estúdio. Apressou os passos para não se deparar com J e
dirigiu-se ao elevador, no lado oposto da escada de emergência.

* Seonbé, algo como “veterano”, em contraposição a hubé, correspondente a “calouro”, é a


relação hierárquica que se estabelece entre duas pessoas em uma determinada organiza-
ção, normalmente escola, faculdade, empresa ou exército. Hubé deve uma certa submissão
a Seonbé, enquanto este deve proteção e guia para com o hubé. Na sociedade coreana é
mais comum que as pessoas sejam chamadas por esses indicativos relacionais do que pelos
seus nomes. Os nomes são utilizados quando não há uma relação mais próxima que seja
nomeada por esses marcadores.

64
A Vegetariana

Viu o seu rosto refletido na porta do elevador, brilhando como


um espelho, e pensou que os dois olhos avermelhados pareciam
ter chorado. Não se lembrava de ter vertido nenhuma lágrima
no estúdio, por mais que vasculhasse a memória. E então, teve
vontade de cuspir na direção daqueles olhos cheios de fissuras
vermelhas. Teve vontade de dar safanões nas duas faces com a
barba por fazer até estourar as veiazinhas de sangue, e de es-
magar com o sapato os lábios inchados de desejo.
œ
— Chegou tarde…
A esposa recebeu-o disfarçando a custo um ar de desapon-
tamento. O filho mal tomou conhecimento de sua chegada, e
logo voltou a se concentrar na empilhadeira de plástico.
A esposa tinha uma loja de cosméticos nos arredores de uma
universidade. Quando teve a criança, deixou a loja na mão de
funcionárias, ia somente à noite para fechar o caixa, e voltou
a tocar o negócio ela mesma depois que o menino entrou na
escolinha. Por isso, estava sempre cansada. Mas ela sempre ti-
vera um temperamento perseverante. Que ele deixasse livre o
domingo era praticamente a única exigência dela. “Também
quero descansar um pouco… Você também precisa passar um
tempo com o menino, não é?” Ele sabia que era a única pessoa
que podia diminuir o fardo da esposa. Sentia também gratidão
pelo fato dela tocar sozinha o trabalho dentro e fora de casa
sem uma palavra de resmungo. No entanto, nos últimos tempos,
não ficava à vontade um instante sequer passado em casa por
causa do rosto da cunhada que surgia toda vez que olhava para
a esposa.
— Jantou?
— Mais ou menos.
— Por que, mais ou menos? Tem que comer direito.
Ele se voltou para ela com um olhar distante, e viu a expres-
são dela, cansada, parecendo um tanto resignada com relação ao
marido. Seus olhos eram bem marcados e fundos, graças a uma
cirurgia de dobrinha da pálpebra feita com vinte e poucos anos

65
Han Gang

e que ficara bem natural. A linha do rosto, delgado, e também


do pescoço eram bonitos. Embora não pudesse afirmar com cer-
teza, a sua aparência amistosa tivera um bom papel na lojinha
de cosméticos de oito metros quadrados que abrira quando
solteira e que cresceu a olhos vistos ano após ano. Entretanto,
ele sabia desde o início que alguma coisa nela estava um tiquinho
fora do seu gosto. As suas feições, o porte e até a sua persona-
lidade cuidadosa formavam a imagem de mulher que buscava
há muito, mas se decidira pelo casamento sem ter conseguido
identificar precisamente o que é que estava faltando. E quando
foi apresentado à cunhada pela primeira vez na reunião familiar,
é que soube com certeza o que era aquilo.
A pálpebra lisa sem dobra, uma voz honesta embora um
tanto tosca, sem o toque anasalado que a esposa tinha, o traje
simples e as maçãs do rosto quase androginamente saltadas,
tudo atraiu sua atenção. Naquelas feições, que se podiam dizer
muito menos bonitas quando comparadas às da esposa, ele sen-
tiu uma força, como a de uma árvore selvagem não podada. Mas
isso não significava de modo algum que ele tivera segundas in-
tenções para com ela desde aquele momento. Simplesmente
passaram pela sua cabeça pensamentos como: ela é interessan-
te, é irmã da esposa e, mesmo sendo bastante parecida com ela,
é sutilmente diferente a impressão que ela causa.
— Ponho a mesa ou não? — perguntou a esposa, como se o
apressasse.
— Já disse que já comi.
Ele abriu a porta do banheiro sentindo uma fadiga causada
pela confusão emocional. No momento em que acendeu a luz, as
palavras da esposa falando sozinha espicaçaram o seu ouvido.
— Já estou com o coração apertado por causa da Yeonghye,
e você sem dar notícia o dia inteiro, o menino não desgruda de
mim um instante por causa da gripe…
Seguido de um suspiro, a esposa deu um berro na direção
da criança:
— O que é que está fazendo, vem tomar remédio!

66
A Vegetariana

Mas sabendo que o menino fica fazendo uma porção de hora


quando é chamado, a esposa verteu lentamente o pó do remédio
na colher e misturou-o no xarope de cor morango. Ele saiu do
banheiro e perguntou à esposa:
— A cunhada? Por que, aconteceu alguma coisa com ela?
— Não é que acabaram dando entrada na papelada do di-
vórcio? Não que eu não entenda o Jeong, mas é cruel. Vendo
assim, é muito vã essa coisa de marido e mulher.
— Será que eu… — Ele titubeou. — Será que seria bom eu
tentar falar com ela?
O rosto da esposa adquiriu um brilho repentino.
— Você faria isso? Vivo dizendo para ela vir aqui, mas ela
não vem. Mas, se você pedir para vê-la, ela não ousaria… É, se
bem que ela não é dada a esse tipo de escrúpulo. Sei lá como é
que ela acabou ficando desse jeito.
Ele ficou a olhar a expressão responsável da esposa bondosa,
e as suas costas cuidadosas, aproximando-se do filho com medo
de verter o remédio da colher. É uma boa mulher, ele pensou.
Desde o início até hoje, a esposa sempre fora uma boa mulher.
Era uma mulher que, de tão e somente boa, até lhe causava ânsia.
— Amanhã mesmo eu ligo para ela.
— Quer o número?
— Não, eu tenho.
Ele fechou a porta do banheiro secretamente consciente
do coração que estava prestes a explodir. Ficou olhando para
a água barulhenta caindo na banheira, enquanto tirava a roupa.
Sabia que havia quase dois meses que não fazia sexo com a es-
posa. Mas também sabia que o seu membro endurecido agora
não era por ela.
É que todo o sangue do corpo havia se concentrado ali no
momento em que imaginou a quitinete onde a cunhada estava
morando só e que visitara junto com a esposa já há muito tempo,
a cunhada que estaria deitada e encolhida ali, e mais do que isso,
o corpo da cunhada que há tempos atrás fora carregado sobre
as suas costas todo ensanguentado, o tato do seu peito e das

67
Han Gang

nádegas que sentiu através da roupa, e a mancha mongólica


que estaria lá estampada, azul, como um estigma, se se tirasse
apenas a camada de sua calça.
Ele se masturbou em pé, mastigando uma gosmenta frus-
tração. Depois, pulou para debaixo da ducha e, enquanto lavava
o sêmen, emitiu um gemido que não era nem riso nem choro. Era
porque a água estava muito fria.
œ
Isto é, isso foi há dois anos, no início de verão: a cunhada cor-
tou o pulso no apartamento dele. Ele, a esposa e o filho tinham
acabado de se mudar para esse apartamento, maior que o ante-
rior, e toda a família da esposa estava reunida para um almoço.
Como apreciassem especialmente a carne, a cunhada, que dizia
ter se tornado vegetariana e se recusava a comer carne, pareceu
ter deixado a todos, a começar pelo sogro, um tanto desgosto-
sos. Como ela estava magra de dar dó, não era de todo incom-
preensível que a repreendessem com veemência. Mas, por mais
que relembrasse a cena, o sogro, que era veterano da guerra do
Vietnã, dar-lhe uma bofetada no rosto enquanto ela se rebelava,
e enfiar-lhe um pedaço de carne na boca à força, fora uma coisa
inacreditável, como uma cena de um teatro do absurdo.
Mais do que isso, do que ele se lembrava mais, com nitidez e
aterramento, era o grito que ela emitira naquele instante. Depois
de cuspir o pedaço da carne, ela levantou a faca de cortar fruta e
cravou um olhar furioso em cada um dos familiares. Assim como
um animal encurralado, o branco de seus olhos brilhava incons-
tantemente.
Quando, finalmente, o sangue esguichou do pulso da cu-
nhada, ele rasgou o lençol e amarrou em seu braço e, depois,
suspendeu o corpo que parecia mais um fantasma e o carregou
sobre as suas costas.
Surpreso pelo seu próprio reflexo e poder de decisão, correu
direto em direção à garagem.
Ficou a acompanhar a cunhada desmaiada recebendo os
primeiros socorros, quando, num dado momento, pôde ouvir

68
A Vegetariana

um barulho, um estalido de algo sendo expelido para fora de


seu corpo. Até hoje não conseguia explicar exatamente que sen-
sação fora aquela. Alguém, diante de seus olhos, quisera jogar
fora a própria vida como um lixo, o seu sangue encharcara a
sua camiseta branca, e o sangue misturado ao seu suor fora, aos
poucos, secando e endurecendo numa cor marrom.
Desejou que ela vivesse, mas ao mesmo tempo, perguntava-
-se o que isso significava. O instante quando ela quis jogar a
vida para o alto devia ter sido algo como um escanteio da vida.
Ninguém podia ajudá-la. Ainda que ela voltasse a si nesse mo-
mento, a situação não haveria de estar mudada. Ainda que essa
tentativa tenha sido um impulso, ela poderia fazê-lo novamente.
E poderia conduzir tudo de uma forma mais meticulosa, não
deixando brechas a permitir interferências como da outra vez.
De repente, ele se deu conta que não desejava que ela voltasse
a si, e que isso poderia, pelo contrário, causar-lhe a sensação de
um fastio e de uma vagueza, que talvez ficasse com vontade de
jogá-la pela janela.
Depois que a cunhada saiu do perigo iminente, ele foi até a
lojinha para comprar uma camisa com o dinheiro que o concu-
nhado lhe botara na mão. Em vez de jogar a roupa cheirando a
sangue, enrolou-a como uma bola e subiu num táxi, enquanto
relembrava as imagens do último trabalho que finalizara. As-
sustou-se quando percebeu que a memória delas provocava
nele uma agonia insuportável. Era uma sequência de cenas
— coisas que ele odiava por considerar mentirosas, inúmeras
propagandas e novelas, notícias, rostos de políticos, pontes e
shopping-centers desmoronando, homens de rua e lágrimas
de crianças com doenças incuráveis — editadas de uma forma
contundente e finalizada com trilha sonora e legendas gráficas.
Teve uma repentina ânsia de vômito, isso porque o ódio, a
desilusão e a dor que sentira por aquelas imagens e, ao mesmo
tempo, os dias e noites passados digladiando-se, tentando
olhar diretamente no fundo daqueles sentimentos, estavam
sendo agora sentidos como uma espécie de violência. [Nesse]
instante, a sua mente rompeu uma fronteira e teve vontade de

69
Han Gang

abrir a porta do táxi que corria com uma certa rudeza e rolar
pelo asfalto. Ele não podia mais suportar aquelas imagens da
realidade. Em outras palavras, parecia que ele não tinha odiado
aquelas coisas com intensidade suficiente quando pôde lidar
com elas. Ou ainda, sentado dentro de um táxi numa tarde de
verão quente e abafada com o cheiro de sangue da cunhada
espicaçando as narinas, todas aquelas coisas ameaçavam-no,
causavam-lhe náusea e o sufocavam. Pensou então que talvez
não fosse mais capaz de fazer qualquer trabalho daí para frente
por um longo tempo. Numa só tacada, ele se cansara, fartara-se
da vida, e não era capaz de suportar nada que abarcasse a vida.
Todos os trabalhos que executara em mais de dez anos
estavam silenciosamente lhe dando as costas. Aquelas coisas
já não eram mais dele. Eram de alguém que ele conhecia, ou
acreditava conhecer.
œ
Do outro lado do telefone, a cunhada estava calada. Ela cer-
tamente atendeu o telefone, e dava para ouvir debilmente algo
como uma respiração, sobre a qual se sobrepôs um barulho de
tac-tac desconhecido.
— Alô — pesadamente, ele abriu a boca. — Cunhada, sou
eu. Está ouvindo? É porque a sua irmã… — prosseguiu, despre-
zando-se a si mesmo, experimentando asquerosamente a sua
própria hipocrisia e artimanha — ...anda preocupada demais.
Deu um suspiro curto em direção ao outro lado do telefone,
de onde não vinha resposta alguma. Como sempre, a cunhada
devia estar descalça. Quando teve alta depois de vários meses
internada na ala psiquiátrica do hospital, ela passou um tempo
na sua casa, enquanto a família toda tentava acalmar o concu-
nhado que dizia preferir ele mesmo se internar a voltar a viver
com ela. Até que, finalmente, saiu da sua casa para uma quitine-
te, o mês que passara com ela não fora especialmente difícil,
nem incômodo. Como até então ele nem tinha ouvido falar da
mancha, ficava somente a olhá-la com pena e incredulidade.

70
A Vegetariana

A cunhada, que já era de poucas palavras, ficava o dia inteiro


na sacada tomando o sol do outono tardio. Ficava esfarelando
as folhas secas caídas dos vasos ou fazendo sombras no chão
com a mão totalmente aberta. Quando a esposa estava atarefada
demais, levava o Jiu ao banheiro para lavar o seu rosto, pisando
descalça sobre o azulejo frio do banheiro.
Era-lhe difícil acreditar que aquela mulher um dia tentara se
matar e que chegara a ficar solenemente sentada de topless em
público — isso parecia ter sido uma espécie de delírio mental
após a tentativa de suicídio. Fora ele próprio quem correra
para o hospital, levando-a toda ensanguentada em suas costas,
experiência esta que lhe causara um enorme impacto, mas agora
tinha a impressão de que se tratava de uma outra mulher, ou que
aquilo fora uma experiência num outro nível temporal.
A única coisa que se podia dizer especial dela era que conti-
nuava a não comer carne. Como desde o início houvera uma
rusga com a família por causa disso e todos os atos estranhos
— incluindo o topless — se seguiram àquele fato, isso era, para
o concunhado, a prova de que ela não voltara nem um pouco à
normalidade.
— Ela ficou um pouco mansa vista de fora, é só isso. A
mulher já era meio abobada, e agora tomando remédio todo dia,
ficou ainda mais. Pois digo que nada deve estar mudado nela —
foram as suas palavras.
O que o deixou perplexo foi que o concunhado queria, como
se fosse algo absolutamente natural, jogá-la fora como quem
joga um relógio ou um eletrodoméstico quebrado.
— Não me tome por infame. O mundo inteiro sabe que a
maior vítima nessa história sou eu.
Como não podia dizer que ele estava de todo errado, preferiu
se manter neutro, diferentemente da esposa. Pois ela suplicou-
-lhe que pelo menos adiasse um divórcio formal, e que fôssemos
acompanhando sua evolução, mas o concunhado mostrara-se
frio e indiferente.

71
Han Gang

Ele tornou a chamar pela cunhada, enquanto tentava apagar


o rosto do concunhado, que não lhe agradara desde a primeira
vez, com a sua testa acentuadamente estreita e o queixo pon-
tudo, fazendo-o parecer enjoado e teimoso.
— Cunhada, vê se responde. Diga qualquer coisa que seja.
Será que devo desligar… pensou, quando respirou aliviado.
— …A água está fervendo.
A voz da cunhada não tinha peso nenhum, como se fosse
uma pena. Não era sombria, nem abobada como a de uma en-
ferma. Nem por isso era leve ou alegre. Era uma voz amainada
de alguém que não pertencia a lugar algum, alguém postado na
fronteira.
— Preciso ir apagar o fogo.
— Cunhada, eu… — afobou-se, pois ela estava prestes a
desligar o telefone. — Será que eu posso dar um pulo aí agora?
Não vai sair de casa hoje, né?
Depois de um breve silêncio, o telefone desligou-se. Ele
abaixou o fone. A mão estava enxarcada de suor.
œ
Foi certamente depois de ouvir da esposa sobre a mancha
mongólica que ele passou a ter um pensamento diferente sobre
a cunhada. Isto é, antes disso, ele nunca havia tido nenhuma
intenção diferente com relação a ela. O desejo que subia pelo seu
corpo ao se lembrar dos gestos da cunhada enquanto estava em
sua casa não passava de uma experiência por transferência. Seu
corpo ficava quente sempre que se recordava do jeito mesmeri-
zado dela de estender totalmente a mão e fazer sombras no chão
da sacada, o tornozelo branco que se deixava ver por baixo da
calça folgada de moleton enquando lavava o seu filho, o jeito de
ficar olhando para a televisão sentada obliquamente em postura
desguardada, as pernas meio abertas e os cabelos desalinhados.
E por sobre todas essas lembranças, estava estampada a man-
cha mongólica azul. Mancha que, se já se atrofiara na evolução,
desaparecida de todas as pessoas e que cobria tão somente as
bundinhas e as costas dos bebês. Sobreposto à lembrança do

72
A Vegetariana

êxtase provocado pela maciez sentida ao tocar pela primeira


vez na bundinha de seu filho recém-nascido, a bunda dela que
jamais vira emanava um brilho translúcido dentro dele.
Agora, até o fato de ela não comer carne — e comer apenas
grãos, legumes e verduras cruas — dava-lhe a impressão de
combinar, de modo inseparável, com a imagem da mancha
parecendo uma grande pétala azul, e até sentia que ter a ca-
misa branca encharcada pelo sangue jorrado de sua artéria
e endurecida na cor de feijão pudesse ser um sinal chocante,
ininterpretável, sobre o seu destino.
Ela estava morando numa ruazinha tranquila com muitas
quitinetes de aluguel nos arredores da Universidade Feminina
d. Conforme as instruções veementes da esposa, ele se postou
em frente a um dos prédios de quitinetes segurando vários sa-
quinhos de frutas nas mãos. Mini-laranjas da Ilha de Jeju, maçã
e pera asiática, e até morangos fora de época. Os braços e os
dedos já estavam doendo, mas ficou ali hesitante, percebendo
que a ideia de entrar no quarto dela e ficar de cara a cara com ela
lhe provocava uma espécie de pânico.
Por fim, colocou as frutas no chão, abriu a agenda do celular
e apertou o número dela. Não houve resposta até que soassem
exatamente dez toques. Então, pegou as frutas e começou a
subir as escadas. Ao fim do terceiro lance apertou a campainha
onde estava desenhada uma semicolcheia. Nada de resposta,
como previra. Experimentou girar a maçaneta. Inesperadamen-
te, estava aberta. Tirou o boné de baseball para limpar o suor
frio do cabelo e o colocou novamente. Deu uma ajeitada na gola
da camisa, respirou fundo, e finalmente abriu a porta.
œ
O interior da quitinete com a janela dando para o sul* estava
iluminada com o sol de outono do início de outubro que ia até a
cozinha e dava uma sensação de aconchego. Roupas familiares
aos seus olhos, provavelmente dadas pela esposa, estavam espa-

* Uma janela dando para o sul corresponde a uma janela dando para o norte no Brasil,
isto é, aquela que permite uma boa ensolação, uma vez que a Coreia está localicada no
hemisfério norte.

73
Han Gang

lhadas de qualquer jeito por todos os cantos, e uns amontoados


de poeira do tamanho de um dedão estavam rolando pelo chão,
sem dar estranhamente, uma impressão de sujeira. Talvez por-
que quase não houvesse mobília no apartamento.
Ele arriou as frutas na entrada, tirou o sapato e entrou.
Não havia sinal de gente. Aonde ela terá ido? Será que saiu já
sabendo que ele viria? Como não tinha tv, a parede expunha
duas tomadas e um buraco de antena numa cena de desolação.
Na sala que também era quarto tinha somente um telefone
que a esposa instalara e ao fundo o colchão, e, por cima dele, o
edredom que estava languidamente amontoado em formato de
caverna, dando a impressão que alguém acabara de sair de lá.
Entreabriu a porta de vidro da sacada pois sentiu que o ar
estava um tanto pesado. Nesse momento, ele se voltou apavorado
devido a um sinal repentino de gente. Parou de respirar.
Ela estava saindo do banheiro. Como não ouvira nenhum
barulho de água, não imaginou que ela estivesse ali dentro. Mas
o que o assustou mesmo foi o fato dela estar sem roupa. Ela se
deteve em pé abobada, com o corpo despido sem nenhum traço
de água, parecendo também estar um pouco assustada. E então,
arrastou algumas roupas que estavam espalhados pelo quarto e
se cobriu. Não porque estivesse envergonhada ou atrapalhada,
mas numa atitude tranquila, como se dissesse: é porque é assim
que a gente tem de fazer numa situação dessas…
Enquanto ela se vestia calmamente, sem nem lhe dar as cos-
tas, ele certamente deveria ter virado o olhar ou se apressado
para fora do quarto. Entretanto, ficou ali, estancado, olhando
para ela como se a furasse. Ela já não estava tão magricela como
quando começou a não comer carne. Foi ganhando peso desde
os dias de hospital, e, tendo comido bem enquanto ficou em sua
casa, o peito estava com uma carninha macia. A linha da cintura
era envergada numa curva assustadoramente cavada e o pelo
do púbis pouco volumoso. E, fora o fato de que lhe faltava um
pouco de volume na linha que descia da coxa até a panturrilha,
seu corpo era sedutor sem floreios. Mais do que atiçar um desejo
sexual, era um corpo que dava vontade de ficar contemplando

74
A Vegetariana

em silêncio. A percepção de que não pudera ver a mancha


mongólica da sua nádega lhe veio somente depois de ela ter se
vestido por completo.
— Me desculpe — somente então gaguejou uma justifi-
cativa. — É que a porta estava aberta, pensei que tivesse dado
uma saidinha.
— …Não tem problema — mais uma vez ela disse, como
quem tivesse que dar tal resposta. — É que, quando estou so-
zinha, assim é mais confortável.
Se for assim… ele pôs ordem nos seus pensamentos que re-
pentinamente abriram uma clareira. Isto quer dizer que ela fica
sem roupa sempre quando está dentro de casa. E então, o seu
corpo, que passara incólume diante da nudez dela há pouco,
começou a crescer. Aturdido, ele tirou o boné de baseball. Aga-
chou-se desajeitadamente para esconder a ereção.
— Não tenho o que servir…
Ela foi caminhando em direção à cozinha com a calça de
moleton cinza escuro que, conforme ele bem vira pouco antes,
ela vestira sem a calcinha. Quando viu a sua nem tão grande
nem tão volumosa bunda balançar discretamente, sem querer,
engoliu a saliva fazendo tremer o pomo-de-Adão.
— Deixe… Se não, podemos comer aquelas frutas — disse,
para ganhar tempo enquanto tentava aplacar o excitamento.
— Tá, vamos?
Ela se voltou, pegou as maçãs e as peras e foi até a pia. En-
quanto ouvia a água correr e o tilintar de pratos, ele tentou se
concentrar na cena desolada dos buraquinhos das tomadas e
dos botões quadrados do telefone. Mas o púbis dela lhe vinha à
cabeça ainda mais nitidamente, e se somava à imagem da bunda
dela pintada de pétalas e da posição sexual do casal em cópula
que ele desenhara repetidas vezes, remexendo violentamente a
sua cabeça.
Quando ela se sentou à sua frente trazendo um prato com as
maçãs e as peras, ele abaixou a cabeça para esconder os olhos,
que deveriam estar ardentes.
* Uma janela dando para o sul corresponde a uma janela dando para o norte no Brasil,
isto é, aquela que permite uma boa ensolação, uma vez que a Coreia está localicada no
hemisfério norte.
75
Han Gang

— …Não sei se a maçã está boa.


Ela se manteve em silêncio por um tempo, depois disse:
— Não precisa vir até aqui.
— Ãn?
Ela continuou, com uma voz bem branda:
— Não precisa se importunar. Voltei a procurar trabalho.
O médico disse para eu não fazer nada que eu tenha de me
concentrar sozinha, e por isso estou pensando em trabalhar
numa loja de departamentos ou algo assim. Até fiz uma entre-
vista na semana passada.
— …Ah é?
Isso era inesperado. “Você aturaria uma esposa que vai
passar a vida inteira daquele jeito dela, tomando remédio pra
cabeça todo dia, deixando o ganho de vida inteiramente para
o marido?”, foi o que o concunhado disse uma vez ao telefone,
com voz bêbada. A suposição dele estava errada. Ela não estava
louca a esse ponto.
— Em vez disso, que tal trabalhar na loja da sua irmã? — Ele
finalmente revelou o assunto a que viera, com os olhos baixos.;
— É o que a sua irmã mais quer, ela acha melhor assim do que
pagar um salário que nem é pouco para uma outra pessoa. Po-
deriam confiar uma na outra, ela se sentiria mais tranquila ven-
do-a de perto e até o trabalho seria menos duro do que numa
loja de departamentos — continuou ele, sentindo a excitação
arrefecer aos poucos.
Paulatinamente, voltava a conseguir olhar para ela de
frente. Só então ele compreendeu que a expressão dela era
serena como a de um monge. De tão exageradamente serena, o
seu olhar dava até medo, fazendo imaginar que coisas terríveis
teriam sido digeridas ou sedimentadas por baixo daquela su-
perfície. Ele se culpou pelo fato de tê-la olhado como se visse
uma gravura erótica só pelo fato dela estar sem roupa. Mas não
conseguia negar que aquela breve imagem ficara gravada em sua
mente como se tivesse sido marcada a fogo, podendo a qualquer
momento se incendiar e ir queimando para dentro.

76
A Vegetariana

— Coma também a pera.


Ela empurrou o prato para ele.
— Coma você também.
Ela levou à boca um pedaço da pera com a mão em vez de
usar o garfo. Ele virou o rosto temendo o ímpeto de abraçar
os ombros mansos dela absorta em pensamentos, de chupar o
dedão dela sujo com o sumo pegajogo da pera, de lamber até a
última gota doce dos seus lábios e da língua, temendo o ímpeto
de arriar com força a sua calça folgada de moleton.
œ
— Só um instante — disse ele, enquanto calçava o sapato.
— Não quer sair comigo?
— …Para onde?
— Vamos conversar um pouco, caminhando.
— Vou pensar sobre o que você disse.
— Não, não isso… É que eu tenho uma coisa para te pedir.
Ele olhou diretamente no rosto dela, que hesitava. Se pudes-
se escapar desse doloroso desejo e ímpeto que assomava a cada
instante, se não fosse um lugar fechado como este, perigoso que
só, podia ser qualquer lugar.
— Fale aqui.
— Não, é que eu queria caminhar um pouco. Você também,
não fica cheia de passar o dia inteiro em casa?
Parecendo finalmente vencida, ela calçou o chinelo e o se-
guiu. Os dois saíram pela ruela e foram caminhando na avenida
sem dizer palavra. Quando avistou o letreiro de uma franquia de
sorveterias, ele perguntou:
— Gosta de sorvete?
Ela deu um meio sorriso, qual uma namorada empertigada.
Os dois se sentaram numa mesa à janela da sorveteria. Ele
ficou a olhá-la silenciosamente, enquanto ela pegava o sorvete
com uma colher de madeira e lambia com a língua. Descobriu
o seu corpo num treme-treme, como se levasse choque elétrico

77
Han Gang

cada vez que a ponta da língua saía para fora da boca, como se a
língua dela e o seu corpo estivessem ligados por um fio elétrico.
Ele pensou: Talvez só haja um jeito. Talvez o único jeito de
escapar desse inferno seja realizando esse desejo.
— O que eu tenho para te pedir…
Ela arregalou os olhos com a ponta de língua branca de sor-
vete. Dentro daqueles olhos, de linhas simples e pálpebras lisas
como cabe a uma mongoliana, as pupilas, nem pequenas nem
grandes, brilhavam tenuemente.
— Estou pedindo para que seja minha modelo.
Ela não sorriu nem se assustou. Ficou mirando-o silenciosa-
mente como se atravessasse o seu interior.
— Já esteve em uma exposição minha, né?
— Sim.
— É um trabalho de vídeo parecido. Não vai levar muito
tempo. Só que… precisa tirar a roupa.
Sentiu que nesse instante estava ficando ousado, o suor
já não estava escorrendo e nem as mãos tremendo. A cabeça
também esfriara, como se tivesse colocado um saco de gelo
sobre ela.
— Você vai tirar a roupa, e eu vou pintar o seu corpo.
Ainda mirando-o silenciosamente, ela abriu a boca.
— …E que mais?
— Basta ficar assim. Até eu terminar de filmar.
— Disse que vai pintar… o meu corpo?
— Vou desenhar flores.
Os olhos dela pareceram ter dado uma tremida. Mas talvez
fosse apenas impressão.
— Não vai ser difícil. De uma a duas horas, não mais que
isso. Pode ser a qualquer hora, quando for conveniente para
você.
Aparentando ter dito tudo o que tinha a dizer, ele abaixou
a cabeça quase resignado e ficou olhando para o seu sorvete.

78
A Vegetariana

Salpicado de amendoim picado e amêndoa ralada, estava derre-


tendo e escorrendo lenta e suavemente.
— Onde?
A pergunta chegou até ele quando este já estava totalmente
absorto no sorvete que derretia formando uma espuma. Ela
estava colocando a última colherada na boca. Os lábios pálidos
se tingiram de creme branco.
— Estou pensando em usar o estúdio de um amigo.
A expressão dela era impassível a ponto de parecer desolada,
impossível de entrever o seu interior.
— É que para a sua… irmã. — Mesmo pensando que nem
seria bom falar, mas também que não tinha outro jeito, disse ele,
exasperado com a sua repentina gagueira: — É… segredo.
Ela não assentiu nem recusou as suas palavras. Ele prendeu
a respiração e ficou a mirá-la como se engolisse o seu rosto
na tentativa de entender o que ela estava respondendo com o
silêncio.
œ
Graças ao sol que entrava pela janela grande, o estúdio de
M estava quentinho. Era um espaço com pouco mais de trinta
metros quadrados, que mais parecia um ateliê do que estúdio.
As pinturas de M estavam penduradas em lugares apropriados e
os apetrechos de pintura estavam espantosamente bem arruma-
dos. Ele trouxera tudo que precisava para o seu trabalho, mas
dava até vontade de usar aqueles materiais bem ordenados.
Na busca por um estúdio que recebesse luz natural, acabara
escolhendo o do M, colega de faculdade, de quem não podia se
dizer muito íntimo. Com apenas trinta e dois anos, M tinha
conseguido um lugar como professor em tempo integral numa
faculdade na capital com a menor idade da turma, e dele já
se podia sentir, tanto na expressão, quanto nos trajes e nas
atitudes, o ar de um experiente docente.
— Foi uma surpresa, você me pedir alguma coisa.
Uma hora antes, M fizera um chá e lhe passara a chave.

79
Han Gang

— Se for coisa parecida, pode me pedir sempre que quiser.


Acabo passando muito tempo na escola durante o dia.
Ele recebeu a chave reparando na barriga de M que estava
mais arredondada e saltada que a dele. Ainda que não os exter-
nasse, M também devia ter os seus desejos e tormentas. Sentiu
uma espécie de consolo mesquinho pela deficiência oculta de
M sendo denunciada pela linha arredondada de sua barriga. No
mínimo, M devia se afligir pela barriga grande, envergonhar-se e
sentir saudade do corpo da juventude que desmoronara.
Ele moveu as pinturas de M que estavam tampando um
pedaço da janela — ele as achou um tanto convencionais — e
forrou o chão de taco de madeira maciça iluminado de sol com
um lençol branco. Deitou-se por um instante sobre o lençol para
ver o que ela iria ver e sentir quando se deitasse. A sensação
nas costas de um chão um tanto frio, mas suportável, duro, mas
atenuado pela leveza do lençol. Desta vez deitou-se de bruços e
checou o que entrava no seu campo de visão, como as pinturas
de M e a sombra fria daquele lado do piso, a lareira de parede
enegrecida sem uso, etc.
Espalhou os apetrechos de pintura que trouxera, tirou
a camcorder pd100 e checou as baterias, postou a lâmpada de
iluminação num canto do estúdio caso a filmagem se estendesse,
abriu e fechou o bloco de desenhos e o guardou novamente na
bolsa, tirou a jaqueta, até arregaçou as mangas e esperou. Perto
das três horas da tarde, quando ela chegaria à estação do metrô,
ele pendurou a jaqueta no braço e calçou o sapato. Foi andando
em direção à estação respirando um ar bastante limpo por
aquela ser uma área suburbana.
O celular tocou enquanto caminhava.
— Sou eu. — Era a esposa. — Acho que hoje vou me atrasar.
A menina que faz bico aqui faltou de novo. É que tem que buscar
o Jiu na creche até às sete horas.
Ele respondeu, categórico:
— Também não posso. É impossível antes das nove horas.
Ouviu-se um suspiro.

80
A Vegetariana

— Entendi. Vou pedir para a vizinha do 709. Só até as nove


horas então.
O telefonema terminou sem mais palavras. Uma relação
apenas ligada pela criança, sem floreios, uma espécie de sócios,
esta era a relação atual entre ele e a esposa.
Alguns dias antes, na noite em que estivera no apartamento
da cunhada, ele abraçou a esposa dentro da escuridão com a
força de um ímpeto insuportável. Ele próprio surpreso com o
desejo intenso que nunca sentira pela esposa nem no início do
casamento, fez com que ela também se assustasse.
— O que é que há com você?
Tapou a boca dela, pois não queria ouvir seu tom de voz
anasalado. Foi se projetando violentamente, impelido pela ima-
gem que fazia lembrar a linha do nariz e dos lábios da esposa
debilmente visíveis no escuro, bem como a linha do pescoço
parecendo de mocinha. Tirou as suas roupas de baixo, enquanto
mordia o bico do seio duramente ereto. Cada vez que as imagens
das pétalas pequenas e azuis se abriam e fechavam, cerrava os
olhos e apagava o rosto da esposa.
Quando tudo acabou, a esposa chorava. Não tinha como
saber se era pela forte comoção ou por algum outro sentimento
desconhecido dele.
“Tenho medo”, murmurou ela, de costas viradas para ele. Não,
assim pareceu ter dito. Tenho medo de você. Nesse momento,
ele já estava caindo num sono tão mortal que não podia ter
certeza se essas palavras realmente haviam saído da boca dela.
Tampouco ouviu por quanto tempo se estenderam os soluços.
Mas a atitude da esposa na manhã seguinte não diferiu em
nada do costumeiro. A mesma coisa acontecera com a voz do te-
lefonema há pouco. Ali não se notava nenhuma contrariedade
em especial, muito menos algum resquício daquele incidente.
Apenas o incomodara o jeito paciente dela de falar, que por
vezes até soava anti-humano e o suspirar, sempre igual. Apertou
os passos para se desfazer do incômodo.

81
Han Gang

Para sua surpresa, a cunhada já o esperava na saída do metrô.


Estava sentada na ponta da escada de um jeito desleixado, como
se já estivesse ali há um bom tempo. De calça jeans surrada e
suéter grosso marrom, parecia alguém que saíra sozinha do
inverno, caminhando. Sem conseguir chamá-la de pronto, como
que enfeitiçado, ficou a observar o rosto dela limpando o suor
da testa, o contorno de seu corpo onde os raios de sol haviam
se acumulado.
œ
— Tire a roupa — disse baixinho.
Ela estava de pé olhando para os choupos através da janela. O
sol, lânguido e tristonho, fazia a colcha brilhar. Ela não se virou.
E quando ele ia dizê-lo novamente, em dúvida se ela o havia
escutado, ela levantou os dois braços e tirou o suéter. Ao tirar
a camiseta branca que vestia por baixo, apareceram as costas
sem o sutiã. Quando tirou a calça jeans velha, mostraram-se por
inteiro as duas nádegas brancas.
Ele parou de respirar e olhou para elas. Por cima das duas
lombadas gordinhas, havia duas covinhas afundadas, frequente-
mente chamadas de sorriso-de-anjo. E, de fato, a mancha estava
estampada na parte superior da nádega esquerda, do tamanho
de um polegar. Como é que uma coisa dessas permaneceu ali? Ele
não conseguia entender. De cor esverdeada, parecendo até um
leve hematoma, era com certeza a mancha mongólica. Compre-
endeu então que aquilo lhe trazia lembranças de algo muito
remoto, algo anterior à evolução, ou talvez um resquício de
fotossíntese, e que, surpreendentemente, causava a impressão
de alguma coisa vegetal, nada tendo a ver com sensações eróticas.
Somente depois de um bom tempo ele levantou o olhar da
mancha e viu o corpo dela inteiramente despido. Era impres-
sionante a sua atitude tranquila, para quem estava se fazendo
de modelo pela primeira vez, ainda mais se se considerasse que
eles eram cunhados. De repente, lembrou-se que ela fora encon-
trada em frente à fonte do hospital, sem as roupas de cima no dia
seguinte em que cortou o pulso; e que esse fora o motivo de sua

82
A Vegetariana

internação na ala fechada do hospital; e que a sua alta demorou


porque a toda hora ela queria tirar a roupa para tomar sol.
— Quer que eu me sente? — perguntou ela.
— Não, deite-se de bruços — respondeu ele, com uma voz
tão baixa, quase não pronunciada.
Ela se deitou de bruços sobre a colcha. Parado imóvel, ele
franziu as sobrancelhas tentando interpretar a verdade daquele
sentimento assustador que assomou dentro de si ao vê-la deita-
da de bruços.
— Espere, fique assim mesmo.
Fixou a filmadora no tripé e ajustou a altura do suporte.
Posicionou-a de modo a conter o corpo dela de bruços num só
quadro, e pegou a paleta e o pincel. Queria começar gravando o
trabalho de bodypainting.
Inicialmente afastou para cima os cabelos dela que pendiam
pelos ombros, e começou a desenhar flores a partir da nuca.
Botões de flor meio abertos de cor vinho e vermelho foram se
espalhando pelos ombros e costas, e ramos delgados foram
escorrendo pelos flancos das costas. Chegando à lombada da
nádega direita, flores de cor bordô se abriram totalmente, esten-
dendo os pistilos amarelos e inchados. Deixou em claro a nádega
esquerda onde estava a mancha. Em seu lugar, pegou um pincel
grosso e pintou uma base verde clarinho no entorno da mancha
azul-esverdeada, fazendo ressaltar a mancha de modo que ela
parecesse a sombra de uma pétala clara.
Estremeceu, sentindo o corpo dela tremer levemente como
se sentisse cócegas a cada pincelada. Isso não era um simples
desejo sexual, e sim uma emoção que se compararia a um choque
elétrico contínuo de milhares de volts.
Finalmente, quando completou o longo ramo e as folhas que
foram descendo, passando pela coxa direita e chegando ao fino
tornozelo, o seu corpo estava totalmente encharcado de suor.
— Terminei — disse ele.
— Fique assim um pouco.

83
Han Gang

Ele destacou a filmadora do tripé e começou a filmá-la de


perto. Puxou os detalhes de cada uma das flores por zoom, e
deu closes na linha do pescoço dela, os cabelos desalinhados,
as duas mãos que pareciam apertar tensamente a colcha para
baixo e, mais longamente, a nádega com a mancha mongólica.
Depois de guardar o corpo dela inteiro na fita, ele desligou a
filmadora.
— Agora, pode se levantar.
Sentindo-se um pouco cansado, sentou-se no sofá que havia
em frente à lareira. Ela parecia estar com os braços e as pernas
adormecidas, e apoiou-se nos cotovelos para se levantar.
— Não está com frio? — Ele se levantou, limpando o suor e
cobriu os ombros dela com a sua jaqueta. — Foi cansativo?
Nesse momento, ela olhou para ele e sorriu. Era um sorriso
tênue, mas que transparecia força, como quem não se recusaria
a nada e por nada se assustaria.
Somente então ele compreendeu o que é que o chocara tanto
quando ela se debruçara sobre a colcha. Um corpo de onde todo
o desejo fora removido, e o paradoxo de ser um belo corpo de
uma jovem mulher, a sensação vã e bizarra que emanava desse
paradoxo, não, não somente uma efemeridade, mas uma que es-
condia força. O sol que jorrava como grãos de areia através da
larga janela e a beleza desse corpo que, embora não fosse visível,
também se desfazia sem parar como uma chuva de areia… Tais
sentimentos, inefáveis em poucas palavras, invadiram-no a um
só tempo, aplacando até o desejo sexual que o atormentara obs-
cessivamente durante um ano inteiro.
œ
Ela vestiu a calça com a jaqueta dele sobre as costas, e agora
agarrava com as duas mãos a caneca de onde subia um vapor-
zinho. Sem chinelo, o seu pé descalço se apoiava levemente no
chão.
— Não sentiu frio?
Ela abanou a cabeça, para ele que insistia em perguntar.

84
A Vegetariana

— …Não foi cansativo?


— Fiquei só parada… O chão estava quentinho.
Ela era surpreendentemente desinteressada e parecia
manter o seu equilíbrio em qualquer situação graças a isso.
Não houvera exploração de um espaço novo, nem expressão
de sentimentos que seriam de se esperar. Parecia-lhe bastar
observar tudo o que acontecia a si mesma. Não, talvez dentro
dela estivessem acontecendo coisas muito terríveis, coisas que
ninguém poderia imaginar, e que fosse já demais para ela lidar
com isso parelalemente ao cotidiano. E talvez por isso não lhe
restasse energia suficiente para se intrigar ou explorar ou reagir
ponto a ponto ao cotidiano em todos os seus detalhes. O que o
levava a fazer tal suposição era que, de vez em quando, os seus
olhos pareciam guardar uma serenidade que não era somente
passiva ou simplória, mas que tinha uma ferocidade e, ao mes-
mo tempo, uma força que reprimia isso. Nesse momento, ela
agarrava a caneca quente com as duas mãos e olhava para o
seu próprio pé encolhida feito um pintinho com frio, mas a sua
postura, longe de provocar compaixão, lançava a sombra de
uma solidão tão dura a ponto de incomodar quem a olhasse.
Ele relembrou o rosto do ex-esposo dela a quem já nem
mais precisava chamar de concunhado e com quem não simpa-
tizara desde o início. Sentiu uma espécie de vergonha somente
por imaginar que aquele rosto árido, parecendo desacreditar
qualquer coisa além dos valores e sensações cotidianas, e aqueles
lábios mundanos, que jamais deveriam ter cuspido qualquer
palavra que não fosse lugar-comum, possuíram o corpo dela.
Ele que era tão apático, será que soube ao menos da mancha
mongólica dela? No momento em que imaginou os dois nus, ele
sentiu que isso era uma humilhação, uma conspurcação, uma
violência.
Ela se levantou carregando a caneca vazia e ele se levantou
atrás. Pegou na mão a caneca estendida por ela e a colocou sobre
a mesa. Trocou a fita da filmadora e reposicionou o tripé.
— Que tal recomeçarmos?

85
Han Gang

Ela acenou com a cabeça e foi andando em direção à colcha.


Como a luz do sol já amainara um tanto, ele instalou uma
lâmpada de tungstênio perto dos pés dela.
Ela tirou novamente a roupa e desta vez deitou-se olhando
para o teto. Por causa da iluminação localizada, ele entrecerrou
finamente os olhos ofuscados, apesar de a parte superior do
corpo dela estar sombreada. Era a mesma imagem frontal que
vira uma vez acidentalmente no apartamento dela, mas a figura
dela, deitada sem resistência, numa beleza vã, da mesma forma
de quando estava de bruços, era intensa a ponto de mexer-lhe
com as glândulas lacrimais. As clavículas magras, o peito que,
pelo fato dela estar deitada, parecia liso como o de um rapaz, as
costelas aparecendo, as coxas entreabertas sem sensualidade e
até o rosto que parecia um deserto como se tivesse adormecido
de olhos abertos. Aquilo era um corpo de onde todo e qualquer
detalhe de cada um dos cantos havia sido eliminado. Pela pri-
meira vez ele via um corpo assim, um que falava tanta coisa so-
mente por si só.
Desta vez pintou uma flor bem grande cobrindo a clavícula
e os peitos, em amarelo e branco. Se nas costas as flores eram
noturnas, as do peito eram formosas flores de pleno dia. O lí-
rio cor de laranja forte desabrochava da sua barriga cavada, e
pétalas douradas, grandes e pequenas, quedavam a esmo pelas
coxas.
Dentro do silêncio, ele sentiu um êxtase resplandescente
que jamais experimentara em seus quase quarenta anos fluir
silenciosamente de um lugar desconhecido do seu corpo e se
acumular na ponta do pincel. Queria prolongar esse êxtase por
quanto fosse possível. O rosto dela estava escuro porque a ilumi-
nação chegava somente até o pescoço dando até a impressão
dela estar adormecida. Mas, a ver pelo estremecimento a ele
transmitido quando a ponta do pincel roçava a parte interna da
coxa, ela estava sensivelmente acordada. A ela que aceitava tudo
isso em silêncio, ele sentia como algo sagrado, algo que não se
podia dizer humano nem por isso animal, um vegetal ao mesmo

86
A Vegetariana

tempo um animal e um ser humano, ou ainda uma existência


forasteira algo intermediária entre essas coisas.
Finalmente largou o pincel e, esquecido da ideia de filmar,
ficou olhando para o corpo dela deitada e as flores desabro-
chadas nele. Mas o sol estava se exaurindo e o rosto dela se
apagando na sombra do fim de tarde, e assim, ele se recompôs
e se levantou.
— …Deite-se de lado.
Ela se virou lentamente, dobrando os braços, as pernas e
a anca, como se movesse o corpo ao som de uma música silen-
ciosa. Ele filmou as linhas da cintura e da nádega que lembravam
a curva suave de uma montanha e focou intercaladamente as
flores da noite das costas e as de dia da frente. Focou por fim a
mancha, já parecendo reminiscência de uma sombra azul, sob
a luz que ia ficando cada vez mais escura. Depois, hesitou um
pouco, mas embora tivesse prometido não filmar, deu um close
no rosto dela que mirava a janela já totalmente escura. Passou
para a telinha os lábios apagados, a sombra das maçãs do rosto
saltadas, a testa lisa aparecendo por entre os fios dasalinhados
de seu cabelo, e os dois olhos vãos e vazios.
œ
Ela ficou parada em frente à porta de braços cruzados até
ele terminar de colocar todo o equipamento no porta-malas.
Como M enfatizara, ele empurrou a chave para dentro das botas
de montanhismo no intermédio da escada e disse:
— Já deu. Vamos agora.
Mesmo com a jaqueta dele por sobre o suéter, ela tremia de
frio.
— Quer ir até perto de sua casa e comer por lá? Ou senão,
você deve estar com fome, vamos comer alguma coisa por aqui?
— Não estou com fome… Mas isso aqui, isso apaga quando
se lava? — perguntou ela, como se essa fosse a única coisa que
interessava. Apontava com uma das mãos para a região de seu
peito.

87
Han Gang

— Não vai sair fácil. Tem que lavar várias vezes até…
Ela disse, cortando-o:
— Queria que não se apagassem.
Por um instante, ele ficou estupefato olhando para o rosto
dela encerrado pela metade na escuridão.
œ
Foram até o centro e procuraram por uma rua de restau-
rantes. Ele escolheu um com a placa que dizia servir comida de
templos, em consideração a ela que não comia carne. Ele pediu
uma refeição completa, e mais de vinte pequenas guarnições
bem arrumadinhas foram postas sobre a mesa, e veio um arroz
na panela de pedra cozido com castanhas portuguesas e uma
raiz de ginseng. Ele a observava erguendo a colher, quando de
repente se deu conta de que não tocara em um fio de cabelo dela
durante as quase quatro horas em que estivera nua. É certo que,
desde o início, só pretendia filmá-la nua, mas era surpreendente
que não tivesse experimentado qualquer desejo sexual.
Entretanto, ao vê-la agora vestida com um suéter grosso de
lã e colocando a colher na boca, ele pôde certificar-se de que o
milagre daquela tarde — em que cessara o desejo obcecado e
doloroso de um ano inteiro — estava terminado. A imagem de
avançar nos lábios dela que se remexiam e de deitá-la violen-
tamente a ponto de fazer todos que estavam no restaurante
gritarem lhe passou pela mente como a cena de um inferno
familiar. Ele baixou o olhar, engoliu o arroz e perguntou:
— Por que motivo você não come carne? Sempre tive curio-
sidade, mas não pude perguntar.
Ela parou com os pauzinhos segurando o broto de soja e
olhou para ele.
— Se for muito difícil não precisa responder — disse, en-
quanto lutava com as imagens eróticas que continuavam se de-
senrolando num canto de sua cabeça.
— Não. Não é difícil. Mas é que você não entenderia — ela
respondeu, serenamente mastigando os vegetais.

88
A Vegetariana

— …É por causa dos sonhos.


— Sonhos? — ele perguntou de volta
— É porque eu sonho… por isso é que não como carne.
— Que tipo… de sonhos você tem?
— Rostos.
— Rostos?
Ela riu baixinho para ele, que se mostrava perturbado. Era
um riso que por algum motivo parecia sombrio.
— Falei que não entenderia.
Mas ele não conseguiu perguntar: “Então, por que expôs o
peito no sol, como se fosse um animal mutante a fazer fotos-
síntese. Isso também foi por causa de sonho?”
œ
Depois de estacionar o carro na frente do prédio dela, ele
desceu junto.
— Muito obrigado por hoje.
Ela respondeu com um sorriso. Era uma expressão quieta,
que a fazia parecer ponderada, algo parecida com a esposa.
Parecia uma mulher normal. Não, ela é uma mulher normal, na
verdade, pensou ele. O louco aqui sou eu.
Ela o cumprimentou com um leve aceno e desapareceu pela
entrada do prédio. Ele esperou até que a luz do quarto dela se
acendesse, mas a janela dela não se acendeu até o fim. Ao dar a
partida, ficou a imaginá-la entrando debaixo do edredom nua,
sem nem se lavar no quarto escuro. O corpo com esplêndidas
flores em profusão, que estivera com ele até há poucos minutos,
o corpo em que ele não encostara um dedo.
Ele sentiu dor.
œ
Eram exatamente nove horas e vinte minutos, quando ele
apertou a campainha do 709. A mulher abriu a porta e disse
baixinho: “O Jiu ficou até agora pouco chamando pela mãe e
dormiu.” Uma menina, de segundo ou terceiro ano do primário,

89
Han Gang

estendeu a ele a empilhadeira de plástico. Ele agradeceu com a


cabeça e colocou primeiro o brinquedo na bolsa. Deixou aberta
a porta do 710, que era a dele, e abraçou cuidadosamente o filho
adormecido. O caminho do corredor frio até a cama do quarto
do menino pareceu-lhe longo. O filho que tinha cinco anos
ainda chupava o dedo. Talvez o sono tenha ficado leve durante
o trajeto, pois, depois que o deitou na cama, o tchuk-tchuk ficou
soando desolado no meio do quarto escuro.
Ele saiu para a sala e acendeu a luz. Trancou a porta e se
sentou no sofá. Ficou absorto em pensamentos por uns ins-
tantes, levantou-se e voltou a sair. Pegou o elevador, desceu até
o térreo, entrou no carro que estacionara, e sentou-se no banco
do motorista. Ficou abraçado à bolsa que continha duas fitas de
6 milímetros e um bloco de desenhos, e abriu o celular.
— E a criança?
A voz da esposa estava grave e abatida.
— Dormiu.
— Sabe se ele jantou?
— Deve ter jantado. Quando eu cheguei, já estava dormindo.
— Tá. Vou chegar por volta das onze horas.
— Eu… digo isso porque ele está dormindo profundamente.
— Sim?
— Vou até o estúdio. Tem uma coisa que não consegui
terminar.
Ela não respondeu.
— Não acho que o Jiu vá acordar. Dormiu bem profun-
damente. Nos últimos tempos, depois que dorme, ele vai até
amanhecer, não é?
—…
— Está ouvindo?
— …Querido.

90
A Vegetariana

Inesperadamente, ela parecia estar chorando. Será que a lo-


ja estava vazia? Era algo raro para a esposa, que sempre estava
atenta ao olhar dos outros.
— …Vá se quiser. — Daí a pouco, o que emanou dela depois
de se acalmar foi uma voz de sentimentos mistos, que nunca ou-
vira antes. — Vou fechar a loja agora e ir para a casa.
E desligou o telefone. Ela era cuidadosa a ponto de jamais
desligar o telefone antes dele, por mais que estivesse correndo.
Ele ficou desconcertado, e hesitou por um instante com o
celular na mão levado por um repentino sentimento de culpa.
Pensou em voltar e esperar pela esposa, mas logo se decidiu
e deu a partida. Como já não havia congestionamento, ela
chegaria em vinte minutos. A criança não haveria de acordar ou
coisa parecida nesse ínterim. Acima de tudo, não queria ficar no
silêncio da casa até ela voltar, nem queria enfrentar a cara dela
que com certeza estaria fechada.
Quando chegou ao estúdio, estava lá somente o J.
— Veio tarde hoje. Eu estou de saída agora.
Pensou então que fizera bem em vir correndo. Pois, como
aquele era um espaço compartilhado por quatro pessoas no-
turnas, não era frequente poder usar o estúdio sozinho a noite
inteira.
Enquanto J juntava suas coisas e vestia o sobretudo, ele
ligou o computador. J olhou, como que surpreso, para as duas
fitas que ele segurava nas mãos.
— Vejo que andou trabalhando.
— …É.
Em vez de esboçar qualquer comentário, J deu um sorriso.
— Não deixe de me mostrar depois.
— Tá bom.
J fez uma continência brincalhona, e, como quem diz que o
seu dever é de vazar logo dali, deu uma forte e larga braçada no
ar como se preparasse para uma grande corrida, abriu a porta e

91
Han Gang

saiu. Ele riu. Depois que o riso se extinguiu, lembrou que havia
muito tempo que não ria.
œ
Depois de varar completamente a noite, tirou a fita master e
desligou o computador.
As fitas com as imagens dela estavam melhores do que ele
esperava. As luzes e a atmosfera, e os movimentos dela tinham
um magnetismo de tirar o fôlego. Pensou por instantes que
música deveria colocar como trilha, mas era melhor o silêncio,
sugerindo o vácuo. Os movimentos do corpo ao se virar lenta e
suavemente, as flores exuberantes preenchendo todo o corpo
nu e a mancha mongólica — uma harmonia do silêncio que tra-
zia a memória de algo eterno, fundamental.
Ele se entregou ao trabalho como há muito não fazia, lutando
com a espera tediosa do tratamento de imagem e detonando
um maço inteiro de cigarro. Finalmente, o tempo do trabalho
acabado ficou em 4 minutos e 55 segundos. Começando com
a sua mão fazendo o bodypainting sobre o corpo dela deitado
de bruços e acabando num fade out sobre a mancha mongólica;
mostrando o rosto dela desértico, sombreado com os traços já
quase indistinguíveis e acabando novamente em fade out.
Experimentando, após muito tempo, o cansaço depois da
noite varada, a sensação pinicante como se houvesse grãos de
areia cravados em todo seu corpo e a irritação com que todas
as coisas lhe eram percebidas, escreveu com uma caneta preta
sobre a etiqueta: “Mancha Mongólica 1 — As Flores da Noite e
as Flores de Dia.”
E então uma imagem o cegou, tão intensa quanto o rosto
de alguém ardentemente desejado, a imagem que na verdade
representava tão e somente tudo no começo, aquela que ele não
ousara tentar e que se fosse possível seria intitulada “Mancha
Mongólica 2”.

92
A Vegetariana

A cena em que um homem e uma mulher, com os corpos


pintados de flores, copulam dentro de um silêncio semelhante
a um vácuo. Os corpos totalmentes absortos e os movimentos
honestos dessa imersão. Uma sequência que se desenrolasse ora
violenta ora suave, e até focando os próprios genitais. Aquele
ponto em que, apesar de escancarado, mas justamente por causa
desse escancaramento, desse extremo, purificava-se silenciosa-
mente.
Mexendo com a fita máster nas mãos, pensou. Se tivesse que
escolher um homem a filmar junto com a cunhada, não poderia
ser ele. Bem sabia da sua barriga vincada, dos pneuzinhos sal-
tados, e da bunda e da linha das coxas se arriando.
Em vez de seguir para casa, fez o trajeto para uma sauna ali
perto. Enquanto colocava a camiseta branca e a bermuda forne-
cidas no balcão, ficou olhando para a sua imagem no espelho
com olhos cheios de desilusão. É, ele não poderia. E então,
quem? Quem ele iria por para fazer sexo com ela? Como não era
nenhum filme erótico, não poderia ser uma cena de sexo fingido.
Teria de ser uma penetração real e registraria os genitais em
cópula. Mas então, quem? Quem iria assentir a isso? E como a
cunhada iria receber tal coisa?
Compreendeu que se encontrava numa linha limítrofe. Mas
não era possível parar. Não queria parar.
Dentro da sauna cheia de vapor quente, ele tentou dormir.
Ali, parecendo uma noite de verão que voltara no tempo, ele
ficou deitado com os quatro membros estirados. Totalmente
exaurido, somente aquela imagem que não pôde realizar
envolveu o seu corpo cansado como um brilho ofuscante.
œ
Ele a viu imediatamente antes de acordar do breve sono.
Sua pele era um verde claro apagado. Estava deitada à sua
frente, o corpo parecendo uma folha que acabara de se destacar
do ramo, em outras palavras, que começara agorinha a murchar.

93
Han Gang

Na sua nádega não havia a mancha mongólica, e sim, em vez


disso, o corpo todo estava manchado daquele verde claro.
Ele virou o corpo dela para a frente. Não podia vê-la dos
peitos para cima por causa de uma luz ofuscante que emanava
da parte superior do corpo — a fonte da luz parecia ser o rosto
dela. Abriu as pernas dela com as duas mãos, e pôde perceber
que ela não dormia pela elasticidade durinha das coxas. Quando
ele entrou nela, um sumo verde começou a escorrer de sua parte
íntima como o que escorre das folhas quando são esmagadas. O
cheiro de mato, aromático, mas ao mesmo tempo amargo, ficou
cada vez mais forte, e ele respirava com dificuldade. Quando
saiu dela, a custo, imediatamente antes do clímax, viu que o seu
membro estava totalmente tingido por um verde escurecido. O
sumo verde fresco que não sabia se era dela ou dele manchava
toda a sua parte inferior até as coxas.
œ
Do outro lado do telefone ela estava novamente calada.
— …Cunhada.
— Sim.
Felizmente, ela respondeu sem um longo silêncio. Será este
um sinal de que ela estava ao menos um pouco contente em re-
ceber o telefonema? Ele não conseguia discernir.
— Descansou bem ontem?
— Sim.
— É que… tenho algo para te perguntar.
— Fale.
— Aquelas coisas do corpo, por acaso, já as apagou?
— Não.
Ele deu um suspiro.
— Será que… poderia não apagar aquilo? Pelo menos até
amanhã. É que ficou faltando algo. Acho que preciso filmar mais
uma vez.

94
A Vegetariana

Será que ela estaria rindo? Será que estaria esboçando um


sorriso do outro lado do telefone onde ele não podia ver?
— …Não me lavei porque não queria apagar — disse ela,
serenamente. — Com o corpo assim, não tenho sonhos. Queria
que me pintasse novamente, mesmo depois que venham a se
apagar.
Ele não conseguiu entender exatamente as palavras, mas
apertou forte a mão que segurava o fone. “Deu certo!”, foi o que
balbuciou por dentro. Sendo alguém assim, talvez permita.
Talvez venha a permitir o que quer que seja.
— Amanhã, poderia ir mais uma vez para aquele lugar no
mesmo horário? No estúdio Pedra Erguida.
— …Está bem.
— Mas… vai vir mais uma pessoa. É homem.
—…
— Ele também vai tirar a roupa e vou pintar flores nele.
Tudo bem mesmo assim?
Ele esperou. Pela experiência até agora, podia inferir que o
silêncio dela significava em geral consentimento, e não se sentiu
mais apreensivo.
— …Está bem.
Ele abaixou o fone e ficou dando voltas dentro da sala com
as mãos fortemente entrelaçadas. A criança estava na creche, a
esposa na loja, e a casa estava vazia desde as três horas quando
chegou. Na verdade, ficara hesitando em como dizer isso à espo-
sa e acabara telefonando primeiro para a cunhada.
Mas não havia como se esquivar, e finalmente ligou para a
esposa.
— …Onde você está?
A voz da esposa tinha um tom de perplexidade, mais do que
de frieza.
— Estou em casa.
— Deu tudo certo?

95
Han Gang

— Não ainda. Acho que vou estar ocupado até amanhã à


noite.
— Está bem… Então, descanse.
Ela desligou o telefone. Antes gritasse e se zangasse, falasse
um monte e o maldissesse como as outras esposas, ele até se
sentiria mais confortável. A personalidade dela, de resignar-
-se tão facilmente, e essa resignação a sedimentar-se em mágoa
o sufocou. Não ignorava que este era justamente o seu lado
bondoso e tenro, um esforço mortal de tentar compreender e
se importar com o outro. Não ignorava que era ele, antes, um
egocêntrico e irresponsável. Mas queria, pelo menos neste
instante, alegar veementemente que a perseverança e a bondade
da esposa eram sufocantes e que isso acabava deixando-o ainda
mais perverso.
Assim que passou o redemoinho de sentimentos emara-
nhados de culpa, remorso e hesitação, teclou o número do ce-
lular de J, como planejara.
— É você, seonbé? Vai vir hoje à noite?
— Não — respondeu ele.
— Madruguei ontem. Vou descansar um pouco hoje.
— Ah é?
Era um J que transparecia tranquilidade, autoconfiança e
juventude, como cabe a um jovem chegando perto dos trinta.
Em pensamentos, tirou a roupa de J com seu corpo magro e
durinho mais do que robusto. Vai servir, pensou.
— Vai ter que fazer um favor para mim.
— Que favor?
— Tem tempo amanhã?
— Amanhã, tenho um compromisso para o jantar.
Deu instruções de como chegar ao estúdio de M para um J
que não estava entendendo nada.
Dissera apenas, “bastam umas duas horas no meio da tarde.
Não vai levar até a noite”, mas logo mudou de ideia.

96
A Vegetariana

— Ei, você queria ver o trabalho de ontem, não é?


— É claro! — respondeu J abertamente.
— Vou aí agora.
Esperava que a fita editada durante a noite agradasse e
suscitasse o interesse de J, que era um estilista meticuloso. E,
por ser um pedido de alguém que divide o estúdio, será difícil re-
cusar de pronto, pois J tinha um temperamento dócil. Embora
incerto, ele tinha um pressentimento otimista.
œ
J chegou antes da hora marcada. J que era sempre tranquilo,
condizente com a sua mania de dizer “take it easy”, pareceu in-
quieto ao menos neste dia.
— Estou nervoso.
Enquanto preparava café para J, ele novamente tirou a sua
roupa em pensamentos. A sensação era boa. Iria combinar bem
com ela.
Ao assistir o vídeo, J ficou entusiasmadíssimo.
— Não consigo acreditar…. é quase mágico! Como é que
uma coisa dessas saiu de você? Sinceramente, vinha te achando
um tanto simplório… ah, mas, peço desculpas agora… — Nos
olhos e na voz de J podia-se ver um interesse genuíno que até
então nunca sentira. — Como é possível transformar-se tanto
assim? Como é que eu posso dizer… É como se um ser gigante o
tivesse levantado de uma vez e o transportado para um mundo
totalmente diferente… Veja só essas cores!
Ele estava certo, embora o incomodasse um pouco o senti-
mentalismo e o alvoroço de suas palavras, próprios de um jovem
como J. Nunca tantas e inúmeras cores haviam sido expelidas
de si como desta vez — ainda que, certamente, era possível
notar uma beleza em suas cores. Era como se o corpo tivesse se
enchido por dentro de fortes cores até que, sem poder mais se
conter, a ferocidade se extravasara. Ele estava existindo muito

97
Han Gang

ferozmente agora. Era uma sensação nova, que ele jamais sentira
em qualquer momento anterior àquele.
Eu era escuro, assim ele se sentia por vezes. Ele era escuro.
Ele se encontrava num lugar escuro. Aquele mundo em preto e
branco onde inexistiam essas cores que experienciava agora era
bonito, quieto e aconchegante, mas ele não era mais capaz de
voltar para lá. Ele parecia ter perdido para sempre a felicidade
proporcionada por aquela pacífica quietude. Mas não havia o
sentimento de perda. Já era demais para ele suportar a dor e o
golpe que o mundo feroz do momento lhe impingia.
Encorajado pela instigação de J, pôde finalmente dizer, en-
rubecido, as palavras tão aguardadas. Mostrou o programa do
espetáculo de dança e o seu bloco de desenhos, e pediu que ele
servisse de modelo masculino. J se mostrou momentaneamente
perplexo. “Por que logo eu? Tem tanto modelo profissional por
aí, um ator de teatro…” “Gosto do seu corpo. Um corpo muito
bem feito não combina. Você é a pessoa certa.” “Então, você está
dizendo para eu fazer essa pose com essa mulher! Eu não posso.”
Na tentativa de convencer J, que tinha dado um pulo, ele
suplicou, ameaçou e aliciou.
— Ninguém vai saber. O rosto nem vai aparecer. E esta mu-
lher, não tem vontade de conhecê-la? Vai ser um trabalho que
vai também te inspirar.
J, que pediu uma noite ao menos para pensar, ligou na
manhã seguinte aceitando. Mas, como ele não havia comentado,
J nem sequer imaginava que o que ele queria mesmo era uma
verdadeira cena de sexo.
— …Está um pouco atrasada, né? — perguntou J, olhando
pela janela.
Na verdade, ele também estava começando a ficar apreensivo.
Como ela dissera que conseguiria vir sozinha, esperava-a sem ir
buscá-la no metrô.
— Pois é, talvez eu vá dar uma olhada lá fora.

98
A Vegetariana

Quando ele pegou a jaqueta e se levantou, alguém bateu na


porta de vidro fosco.
— Ah, chegou agora.
J baixou a xícara de café.
Ela estava com a mesma calça jeans do outro dia, mas desta
vez vestia um suéter grosso preto. Os cabelos longos e pretos
sem tintura estavam molhados, como se os tivesse lavado. Ela
o viu primeiro e depois o J, e então deu uma risadinha. E disse,
mexendo nos cabelos:
— Fiquei com medo que a flor do pescoço se apagasse… la-
vei com cuidado.
J sorriu. A aparência simples dela, talvez diferente do que
ele supunha, deve tê-lo deixado menos tenso.
— Tire a roupa.
— Eu?
J arregalou os olhos.
— Ela já está com o corpo todo pintado, só falta pintar no
seu.
J se virou e tirou a roupa, tentando disfarçar um riso en-
cabulado.
— Tem que tirar a cueca também.
Hesitante, J tirou a cueca e as meias. Apareceu, então,
um corpo esguio nem musculoso, nem [gordo], conforme ele
previra. Tirando os pelos abundantes que iam do umbigo até a
parte superior das coxas, a pele era branca e lisa. Sentiu inveja
do corpo de J.
Do mesmo modo que fizera com ela, fez J se deitar de bru-
ços e começou a desenhar flores a partir da nuca. Desta vez
escolheu as matizes de azul. Com um ar de hortênsias lilases
caindo pelo corpo e com as linhas parecendo rajadas de vento,
foi desenhando com um pincel grande, no tempo mais breve que
pôde.
— Deite-se de frente.

99
Han Gang

Pintou uma flor gigantesta em vermelho forte como sangue


fresco centrado no órgão genital de J. Era para que os pelos
pubianos ficassem parecendo uma sépala negra e o genital, um
pistilo. Sentada no sofá e sorvendo chá aos pouquinhos, ela ficou
a observar o trabalho. Quando o seu pincel finalmente parou, ele
descobriu o genital de J um pouco enrijecido.
Deu uma respirada funda, levantou-se e trocou a fita por
uma nova, ainda que restasse um bom tanto antes de precisar
por uma nova. Virou-se na direção dela.
— Tire a roupa.
Ela tirou a roupa. O dia não estava tão ensolarado quanto o
outro, mas a corola dourada desenhada no meio do seio ainda
brilhava esplendidamente. Em contraste com J, estava imper-
turbável. Era como se dissesse: “Tirar a roupa é tão mais natural
do que vestir.” Não deixou escapar a expressão de J, sentado
no chão com os joelhos dobrados para cima, que, num átimo,
endureceu estupefato.
Nem foi preciso pedir, pois ela se achegou de J. Sentou-se
sobre a colcha branca com os joelhos dobrados para cima como
que imitando a pose de J. O rosto dela sem palavras e o seu corpo
ofuscante formavam um contraste melancólico.
— Como a gente faz agora? — perguntou J.
Talvez se sentisse pressionado a liderar a situação de algu-
ma maneira, o seu rosto continuava enrubecido, mas o genital
voltara a murchar.
— Sente a mulher sobre o seu joelho. — Como J não sabia
que eram cunhados, referiu-se a ela de um jeito mais confor-
tável. Ele agora se aproximava com a filmadora em mãos. E
gritou baixinho assim que ela se sentou no joelho de J. — Puxe
ela para perto.
J aproximou-se do ombro dela com a mão tremendo.
— Droga, nunca fez isso antes? Atue! Pegue no peito ao
menos.

100
A Vegetariana

J limpou a testa com as costas da mão. Nesse momento, ela


foi se virando devagar e se sentou de frente para J. Com um dos
braços, enlaçou o pescoço do rapaz, e com a outra mão começou
a acariciar a flor vermelha pintada no peito dele. Passou-se um
tempo assim, não se sabe quanto, em que se ouviam somente
a respiração dos três. Os mamilos de J foram se contraindo e o
genital endurecendo. Como se tivesse visto os esboços dele, ela
entrelaçou o seu pescoço no de J como fazem os passarinhos.
— Bom. Muito bom.
Ele gravou a cena de diversos lados. E, finalmente, encontrou
o melhor ângulo.
— Bom… continue. Desse jeito, deite-se sobre ele.
Ela empurrou gentilmente o peito de J e fê-lo deitar sobre
a colcha. Estendeu as duas mãos e foi alisando cada uma das
pétalas vermelhas, descendo até o abdomen inferior de J. Ele
deu a volta por trás dela e gravou as flores vermelho-escuras e
a mancha mongólica que se remexiam de acordo com o movi-
mento do corpo dela. É isso aí, pensou ele apertando os dentes.
Ah, se pudesse ir mais além.
O membro de J já estava intumescido até onde era possível
e ele estava com o rosto todo contorcido, talvez pelo embaraço.
Ela se deitou lentamente de bruços e encostou o seu peito no
de J. Sua nádega ficou erguida para o ar. Ele filmou os corpos na
lateral. As costas dela encurvadas feito um gato, a fresta branca
no espaço do umbigo de J e o genital erguido por sobre ele
provocavam uma sensação grotesca, parecendo uma cópula de
plantas gigantescas. Quando ela se levantou devagar e se sentou
ereta sobre o abdomen inferior de J, ele gaguejou para dizer:
— Será… será que… — E ficou olhando alternadamente para
os dois. — …Será que poderiam fazer, de verdade?
O rosto dela não mostrava qualquer comoção, mas J empur-
rou-a como se algo quente o tivesse queimado e recuou. Le-
vantou os joelhos para esconder o membro e disse:
— Mas o que é isso. Está querendo filmar pornografia?

101
Han Gang

— Se não tiver vontade, não precisa fazer. Mas se for pos-


sível, de um jeito natural…
— Eu, eu vou parar.
J se levantou.
— Espera, espera um pouco. Não pedirei mais do que isto.
Somente como estava fazendo agora.
E agarrou o ombro de J. Talvez tivesse aplicado força demais
na afobação, pois J deu um grito e se desvencilhou com violência.
— Ei… não faça assim.
A voz desesperada e ardente dele parece ter feito J aplacar
um pouco a sua ira.
— Eu compreendo… afinal, eu também trabalho com arte.
Mas isso não dá. Quem é essa mulher. Não parece ser uma pros-
tituta ou algo parecido. E ainda que fosse uma prostituta, isso
é algo cabível?
— Entendi. Entendi de verdade. Desculpe-me.
J voltou para a colcha, mas aquele ar de excitamento e de
erotismo já estava totalmente dissipado do seu corpo. Com a
expressão de quem estava recebendo um castigo, J abraçou-a e
a deitou. Quando os dois corpos se juntaram como duas pétalas,
ela fechou os olhos. Se J tivesse dado ok, ela teria assentido em
silêncio. Ele sabia disso.
— Movimente o corpo desse jeito.
Debilmente, J foi mexendo o corpo para frente e para trás
meio contrariado, fingindo uma cena de sexo. Ele viu a planta
do pé dela toda contraída, e as duas mãos apertarem desejo-
samente as costas de J. O corpo dela estava vívido, ardendo, a
ponto de compensar com folga a apatia corporal de J. Durante
uns dez minutos naquela posição, que lhe pareceram tão curtos,
mas que para J deveria ter sido infinitamente penoso, ele pôde
colher imagens muito boas sob vários ângulos que queria.
— Acabou agora? — perguntou J, que estava com a testa
vermelha, não de excitação mas de pesar.

102
A Vegetariana

— Só mais uma vez… Desta vez é o último. — Ele engoliu em


seco. — Por trás. Deite a mulher de bruços. É a última coisa, de
verdade. É a cena mais importante. Não diga que não dá.
J soltou uma risada que mais pareceu um choro.
— Chega. Chega mesmo. Vamos parar antes que eu me sinta
ainda mais miserável. Para mim já foi inspiração suficiente. Ago-
ra entendo, entendo mesmo, o que os atores de pornografia sen-
tiriam. É mesmo humilhante.
J se desvencilhou das mãos que tentavam impedi-lo e come-
çou a se vestir. Ele apertou os dentes. Ficou vendo a sua obra,
o furacão de flores das quais nem pudera se despedir direito,
sendo enterrado por baixo de uma camisa sem cor.
— …Não me chame de tapado, não é que eu não entenda.
Percebi hoje que sou um cara mais conservador do que pensava.
Aceitei fazer por curiosidade, mas isso vai além do que eu sou
capaz de suportar. Talvez seja uma mensagem de que eu tenho
ainda muito a sofrer… No momento preciso de tempo. Me
desculpe.
Havia uma verdade irrefutável nas palavras jorradas por
J, que parecia estar mesmo de algum modo ferido. J cumpri-
mentou-o com a cabeça, dirigiu um olhar protocolar para ela
que estava de pé junto à janela, e foi caminhando atabalhoada-
mente em direção à porta.
œ
— Desculpe.
Desculpou-se para ela, que ia vestindo o suéter. O carro de J
acabara de zarpar do pátio com um estrondo. Ela não respondeu.
Enfiava as pernas na calça jeans, mas parou, levantou o rosto
para um lado e deu uma risada vazia sem conseguir levantar
mais o zíper.
— Por que está rindo?
— É que estou toda molhada…

103
Han Gang

Ele fitou-a sentindo a cabeça zonza como se tivesse recebido


uma pancada. Ela estava mesmo com uma expressão de apuros,
meio desengonçada, sem conseguir subir nem abaixar o zíper.
Somente então ele se deu conta de que ainda estava com a fil-
madora nas mãos. Largou o equipamento no chão, deu passos
largos até a porta por onde J acabara de sair e trancou-a. Não
contente, passou até o trinco de corrente. Depois, avançou em
direção a ela quase correndo, abraçou-a e a derrubou sobre o
lençol. Mas quando abaixou a calça jeans dela até os joelhos,
ouviu:
— Não.
Ela não estava se negando apenas com palavras, pois em-
purrou-o com violência, levantou-se e acabou de vestir a calça.
Ele ficou olhando o zíper sendo erguido e o colchete fechado.
Levantou-se, aproximou-se dela e empurrou o seu corpo ainda
quente contra a parede. Apertou os lábios contra os dela, e
quando forçou a língua para dentro de sua boca, ela o empurrou-
-o novamente com rudeza.
— Por que não pode? Porque sou seu cunhado?
— Não é isso.
— Disse que estava toda molhada.
—…
— Você gostou daquele cara, é isso?
— Não é isso. É que a flor…
— A flor?
De repente, o rosto dela ficou assustadoramente pálido. O
lábio inferior, que já estava avermelhado de morder, estremeceu
quase que imperceptivelmente. E então, explicou-se pausada-
mente.
— Eu estava mesmo com vontade… Nunca tive tanta von-
tade assim. As flores cobrindo o corpo dele… Aquilo me fez per-
der o controle. Foi apenas isso.

104
A Vegetariana

Ele ficou a observá-la enquanto ela dava as costas e ca-


minhava a passos decididos em direção à entrada. Bradou para
ela que enfiava o pé no tênis amassando-o.
— Se é assim… — Sentiu que a sua voz era praticamente
um berro. — Se eu desenhasse flores no meu corpo, aí você me
aceitaria?
Ela se virou e o fitou. Mas é claro. Não há motivos para ne-
gar, não é mesmo? Assim pareciam dizer os seus olhos. Pelo me-
nos, foi assim que ele sentiu.
— E… poderia filmar isso?
Ela sorriu. Tenuemente, como se não fosse negar nada, como
quem diz não sentir qualquer necessidade para tal. Ou então,
como se quietamente escarnecesse de algo.
œ
Eu queria morrer.
Queria morrer.
Então morra.
Morra.
Sem saber por que lágrimas corriam-lhe dos olhos, ele se
agarrava à direção e ligava o limpador de para-brisa repetida-
mente, e entendia que não era o vidro que estava embaçado e sim
os seus olhos. “Eu quero morrer”, não conseguia compreender
por que essas palavras escapuliam sem parar da sua cabeça,
como se fossem palavras encantatórias. E como se outra pessoa
de dentro dele ouvisse aquilo e respondesse. Também não
entendia por que a resposta “Então morra” avançava para cima
dele sem parar. Tampouco atinava por que [essas] palavras, que
mais pareciam um diálogo de estranhos, acalmava o seu corpo
todo trêmulo como se fossem palavras mágicas.
Com o peito, não, todo o corpo parecendo queimar de fora
para dentro, ele abriu as janelas dos dois lados. Em meio ao vento
da noite e o estrondo dos carros, correu pela avenida principal
escura. O tremor começara nas mãos, espalhando-se pelo corpo

105
Han Gang

todo, e agora pisava no acelerador já batendo os dentes. Levava


um susto cada vez que olhava no velocímetro, esfregando os
olhos com os dedos nervosamente trementes.
œ
P saiu pela porta do prédio com um cardigan branco sobre
um vestido preto. Depois de romper com ele ao final de quatro
anos de namoro, P se casara com um colega do tempo do primá-
rio que havia passado num concurso do judiciário. Certamente
graças a esta retaguarda financeira do marido, ela conseguiu
conciliar bem a vida de casada com a profissional. Com um cur-
rículo de várias mostras individuais, já conquistara certa fama
entre os colecionadores do bairro nobre de Gangnam, além da
inveja e difamação que sempre a acompanhavam como se fosse
um megafone pendurado.
P reconheceu prontamente o carro que estava com as lanter-
nas dianteiras e traseiras acesas. Ele baixou o vidro do carro e
gritou:
— Entra.
— Tem muita gente que me conhece aqui. Até o segurança.
Mas o que é que está acontecendo, a essa hora da noite?
— Entra. Tenho uma coisa para te falar.
Relutante, P subiu no banco do passageiro.
— Faz tempo, né. Desculpe por tê-la chamado tão de
repente.
— É, faz tempo mesmo. Mas isso não é do seu feitio. Não
deve ter vindo aqui por saudades minhas.
— Preciso de um favor — disse ele, enquanto alisava nervo-
samente a própria testa.
— Diga.
— É muito longo para explicar aqui. Vamos até o seu ateliê.
É perto daqui, não é?
— É, cinco minutos, mesmo a pé… Mas por quê?!

106
A Vegetariana

P, que sempre fora esquentada, subiu o tom como se ti-


vesse que ouvir a resposta imediatamente. Ele sentiu, com um
inesperado e bem vindo prazer, a vivacidade característica de
uma mulher forte, que por vezes lhe era difícil de suportar. Ele
teve vontade de abraçá-la. Mas de qualquer modo aquilo não
passava de um surto de sentimentos antigos. Pois o seu corpo
estava queimando em brasa tão somente de desejo pela cunhada
que acabara de deixar, como se tivesse despejado gasolina.
Espere, disse ele enquanto ela se virava para entrar no prédio.
“Espere aqui, voltarei logo.” E foi correndo para lá. Em busca de
alguém que pudesse desenhar no nível por ele desejado, alguém
que já conhecesse o seu corpo nu, alguém que pudesse atender
um pedido urgente dele, ao menos uma vez.
œ
— Ainda bem que o meu marido vai trabalhar até tarde hoje.
Como é que seria se ele levasse a mal? — disse P, acendendo a
luz do ateliê.
— Veja o esboço de que falei há pouco.
P ficou observando atentamente os esboços que ele estendeu,
com uma expressão séria.
— …Muito interessante. É surpreendente. Não sabia que
você manejava as cores dessa maneira. Pois é... — P continuou,
coçando o seu queixo pontudo. — Mas isso não parece você.
Vai conseguir mesmo expor isso? Seu apelido era noiva de maio,
não era? Uma noiva conscientizada, a imagem de um clérigo
correto… e era disso que eu gostava.
P ficou mirando-o fixamente através dos óculos com arma-
ção de marfim.
— Está querendo dar uma guinada? Mas isso aqui não é uma
guinada forte demais? Bem, não sou eu quem deve dizer isso ou
aquilo, mas…
Como não queria se envolver numa discussão com a P, ele
começou a tirar a roupa em silêncio. P pareceu um pouco as-

107
Han Gang

sustada, mas logo começou a diluir a tinta na paleta como se


resignasse. E acrescentou, enquanto escolhia o pincel:
— Há quanto tempo não vejo o seu corpo?…
Felizmente, P não riu. Pois mesmo se ela tivesse dado uma
risada sem nenhum significado, ele a teria recebido como um
cruel escárnio.
P passou a manusear o pincel sobre o corpo dele lentamente,
concentradamente. O pincel era frio, e a sensação causava ao
mesmo tempo cócegas e calafrios, parecendo uma carícia obces-
siva e eficaz.
— Vou fazer com que o meu estilo não se revele. Sabe, eu
também desenhei muitas flores porque gosto da imagem delas…
mas o que você desenhou tem muita força. Vou ressaltar isso.
Quando finalmente ela disse “acho que acabei”, já passava
bem da meia-noite.
— Obrigado.
Como ficara despido por um longo tempo, ele disse [isso]
tremendo de frio.
— Queria te mostrar, se tivesse um espelho. Mas não trouxe
nenhum espelho para cá.
Ele ficou olhando para baixo, no seu peito e barriga todo
arrepiado, as pernas, e as flores enormes e vermelhas ali de-
senhadas.
— Gostei. Desenhou melhou que eu.
— Não sei o que você vai dizer das costas. Os seus esboços
pareciam dar mais ênfase às costas.
— Deve estar bom. Quem é você, afinal?
— Tentei o máximo que pude imitar o seu toque. Mas acho
que não teve jeito de não ficar com um toque meu.
— Obrigado mesmo.
Então, finalmente, ela sorriu.
— Na verdade, quando você tirou a roupa há pouco, eu fi-
quei um pouco excitada…

108
A Vegetariana

— E? — perguntou ele com desleixo, enquanto se vestia às


pressas.
Quando fechou o zíper do casaco, o frio diminuiu um pouco,
mas o corpo estava ainda endurecido.
— Mas agora, não sei por que…
— O que há?
— Me deu pena. A sua figura, o seu corpo todo desenhado de
flores… me deu pena. Nunca tive essa impressão de você antes.
P se achegou e abotoou para ele o último botão da camisa.
— Vai me dar pelo menos um beijo, né? Afinal, me fez sair
de casa a essa hora da noite.
P apertou os lábios sobre os dele antes de ouvir qualquer
resposta. Os lábios dele se cobriram de memória das centenas
de beijos trocados. Quase foi às lágrimas, mas sem saber bem se
era por causa das lembranças, se por causa da amizade, ou se
por causa do medo do limite que estava prestes a ultrapassar.
œ
Como era muito tarde, ele bateu baixinho na porta em vez
de tocar a campainha. E abriu a porta sem esperar pela resposta.
A porta abriu, como ele esperava.
Entrou na sala escura. A luz da rua penetrava pelo vidro
da sacada e por isso não estava escuro a ponto dele não poder
distinguir os objetos. Mas seu pé chutou de leve a sapateira.
— …Está dormindo?
De pé na entrada, colocou no chão os equipamentos de fil-
magem que trazia nas duas mãos e nos dois ombros. Tirou o sa-
pato e, quando avançou alguns passos em direção ao colchão,
viu um vulto apagado erguer o corpo na escuridão. Estava escu-
ro, mas dava para perceber que ela estava sem roupa. Ela se le-
vantou completamente e se aproximou.
— A luz, quer que eu acenda? — Ele sentiu que sua voz
estava rachada de rouquidão. Uma resposta baixinha voltou
para ele. — …Cheiro bom. Cheiro de tinta.

109
Han Gang

Gemendo, ele correu na direção dela. A iluminação, a fil-


magem, tudo havia sido esquecido. Engolia-o tão somente o im-
pulso que irrompia por dentro.
Ele a deitou aos urros. Agarrou o peito dela com uma das
mãos, chupou os lábios e o nariz do jeito que foi encontrando,
enquanto desabotoava a própria camisa. Os últimos botões fo-
ram praticamente arrancados.
Despido, escancarou as pernas da mulher e entrou nela. Não
se sabia de onde, mas ele ouvia o som contínuo de um animal
arquejando, um gemido que parecia um guincho, e estremeceu
ao se dar conta de que fora ele quem produzira aqueles sons.
Até então, nunca havia soltado qualquer som quando fazia
sexo. Pois sempre pensou que os gemidos eram para mulheres.
Dentro do corpo dela já totalmente molhado, dentro daquele
corpo que o apertava com uma força medonha de contração, ele
jorrou o seu esperma como quem desmaia.
œ
— Desculpe — disse ele, acariciando o rosto dela envolto
na escuridão.
Ela perguntou, em vez de responder:
— Tudo bem se eu acender a luz?
A voz estava calma.
— …Por quê?
— Queria ver direito.
Ela se levantou e caminhou em direção ao interruptor. Como
havia sido um sexo unilateral, que mal levara cinco minutos, ela
não parecia nada cansada.
Ele tapou os olhos com as duas mãos por causa da claridão
repentina. Somente pouco depois, com os olhos já ambientados,
abaixou as mãos. Viu-a de pé, encostada na parede. As flores es-
palhadas pelo corpo continuavam lindas.
Subitamente, tomado por um surto de autoconsciência,
apertou a sua barriga flácida com a palma da mão.

110
A Vegetariana

— Não esconda… eu gosto. Parece que a flor tem pregas.


Ela se aproximou lentamente e se agachou. Estendeu a mão
e começou a acariciar as flores do peito dele como fizera com J.
— Espere. — Ele se levantou e foi até a entrada. Nu, montou
o tripé numa posição baixa e fixou a filmadora. Levantou o
colchão e o encostou perto da sacada e forrou o chão com o
lençol branco que trouxera. Montou a iluminação perto dos pés
como fizera no estúdio de M. — Deite-se um pouco.
Quando ela se deitou, [ele] ajustou a direção da filmadora
mais ou menos para o ponto onde os dois corpos entrelaçados
se posicionariam.
Ela ficou deitada longamente sob a iluminação ofuscante.
Cuidadosamente, pressionou o seu corpo sobre o dela. Será
que os dois corpos agora unidos pareceriam flores, assim como
parecera o corpo dela e o de J? Pareceria um único corpo em que
se misturavam flores, animais e humanos?
Cada vez que mudava de posição na cópula, ajustava nova-
mente a posição da filmadora. Ao penetrá-la por trás, o que J se
negara a fazer, deu, antes, um close bem longo nas nádegas dela
deitada de bruços. Depois de penetrá-la, verificou ele mesmo as
imagens que apareciam no visor externo.
Tudo foi perfeito. Do modo como idealizara. O movimento
da sua flor vermelha se abrindo e se fechando sobre a mancha
mongólica dela ficou se repetindo, e o seu membro entrava e
saía do corpo dela como se fosse um imenso pistilo. Ele estre-
meceu. Era uma fusão terrível da mais feia e ao mesmo tempo
da mais bela imagem. Cada vez que fechava os olhos, ele via a
luz verde da seiva pegajosa tingindo as partes de baixo dele e
molhando até a barriga e as coxas.
Na última posição, ele se deitou com ela montada por cima.
Novamente, ajustou o ângulo para pegar bem a mancha.
Quando o corpo dele estremeceu tomado de um insupor-
tável prazer, e ele ficou repetindo-se: “Eternamente, tudo isso
eternamente…”, ela se desmanchou em prantos. Durante quase

111
Han Gang

trinta minutos ela não havia gemido uma única vez, tremendo
os lábios de vez em quando e de olhos fechados o tempo todo,
transmitindo a ele um prazer sensível e discreto somente através
de seu corpo. Agora, finalmente, ele havia feito. Ele ergueu o
corpo. Abraçou-a e, assim, esticou-se até a filmadora, estendeu
uma das mãos e a desligou.
Essa imagem tinha de ser repetida sem que fosse permitido
um clímax, um fim. Eternamente, dentro do silêncio, dentro
desse prazer. E por isso, a filmagem tinha que terminar aqui.
Ele esperou que o choro dela aplacasse e a deitou. Os últimos
minutos de sexo fizeram com que ela batesse os dentes, soltasse
gritos agudos e ásperos, e arquejasse um “chega…” e fizeram-na
chorar novamente.
E tudo ficou em silêncio.
œ
Dentro da luz azul negra da madrugada, ele lambeu longa-
mente as nádegas dela.
— Eu queria transferir isto para a minha língua.
— …O quê?
— Esta mancha mongólica.
Ela virou o corpo como se tivesse se assustado um pouco e
olhou para ele.
— Como será que isto ainda continua aqui? — continuou
ele.
— …Não sei. Pensei que fosse assim com todo mundo. Mas
um dia, quando fui a um banho público… vi que só eu tinha isso.
Ele acariciou a mancha com a mão que abraçava a cintura
dela. Quero dividir com ela esta mancha que mais parece um
estigma, pensou. Queria te engolir, te derreter e te fazer correr
por dentro das minhas veias.
— …Será que agora vou parar de sonhar? — balbuciou ela,
numa voz quase inaudível.

112
A Vegetariana

— Sonho? Ah, rosto… é, você disse que era um rosto — res-


pondeu ele, sentindo que o sono o invadia lentamente.
— Que rosto é? De quem é o rosto?
— …É sempre diferente. Às vezes, é de alguém bem familiar,
e outras, um rosto totalmente desconhecido. Tem vezes que es-
tá todo ensanguentado… às vezes até parece ser de um cadáver
desfigurado de podre.
Ele arregalou as pálpebras já pesadas e olhou diretamente
para ela. Os olhos dela estavam irrequietos dentro do crepúsculo
como se ela não estivesse nem um pouco cansada.
— Pensei que era por causa da carne — disse ela.
— Achei que bastaria eu não comer carne que aqueles rostos
não apareceriam mais. Mas não era.
Ele pensou que deveria se concentrar nas palavras dela, mas
os seus olhos foram se fechando alheios à sua vontade.
— Então… agora eu entendo. Que aquele era o rosto das mi-
nhas entranhas. Rosto que subiu de dentro da minha barriga.
Ele foi adormecendo como se despencasse verticalmente
numa queda sem fim, embalado pela cantiga de ninar das pala-
vras dela sem nexo.
— Agora não tenho mais medo… Não terei mais medo.
œ
Ela ainda dormia quando ele acordou.
O sol estava claro. Os cabelos dela estavam desalinhados
como as garras de um animal, e o lençol amassado envolvia a
metade inferior do seu corpo. O cheiro do corpo dela, que pa-
recia o de um bebê recém-nascido, misturava-se a um cheiro
apimentado e azedo, um cheiro adocicado, mas ao mesmo tem-
po nauseante e amargo, que enchia todo o apartamento.
Que horas serão? Tirou o celular do bolso da jaqueta, que
estava jogada de qualquer jeito. Era uma hora da tarde. Como
dormira por volta das seis da manhã, esteve adormecido por
sete horas inteiras, como se estivesse morto. Ele vestiu primeiro

113
Han Gang

a cueca e a calça, e começou a desmontar a iluminação e o tripé,


pois isso seria a primeira coisa a fazer. Mas não via onde estava
a filmadora. Lembrava que após a filmagem deixara-a separada
perto da entrada para que não tombasse, mas ela tinha desapa-
recido.
Pensando que talvez ela tivesse acordado cedo e colocado
aquilo num outro lugar, ele se voltou em direção à cozinha.
Antes de virar para a pia que ficava atrás da parede falsa,
avistou um negócio esbranquiçado caído no chão. Era a fita de
6 milímetros. Que estranho, pensou, apanhou a fita e virou a
parede falsa, quando descobriu uma mulher debruçada sobre a
mesa da cozinha. Era a esposa.
Havia tupperwares embrulhados num pano, empilhados ao
lado de sua cabeça, e ela tinha um celular numa das mãos. A
filmadora estava virada embaixo da mesa com a tampa aberta.
Ela devia ter ouvido o barulho dele se aproximando, mas não fez
o menor movimento.
— Que… — Incrédulo com a situação, disse ele, sentindo
uma tontura: — Querida.
Somente então ela ergueu a cabeça e se levantou. Logo ele
percebeu que aquele não fora um gesto de quem queria se apro-
ximar dele, e sim de impedir que ele se aproximasse dela. Ela
começou a falar baixinho:
— Fazia tanto tempo que a Yeonghye não dava notícias…
que passei aqui antes de ir para a loja. É que hoje de manhã fiz
umas comidinhas. — A sua voz estava bem tensa, mas mantinha
a calma a muito custo. Era como se ela se justificasse para ele. Ele
conhecia esse tom dela. Era uma voz lenta e baixinha, com um
sutil tremor, de quando tentava esconder uma emoção extrema.
— …Entrei porque a porta não estava trancada, e achei muito
estranho o corpo dela todo pintado… Até então você estava
com a cabeça voltada para a parede e com o corpo enterrado no
cobertor, eu não o reconheci.

114
A Vegetariana

A esposa passou os dedos no cabelo com a mão segurando o


celular. As duas mãos tremiam fortemente.
— Ela deve ter arrumado um namorado, a julgar pelo corpo
daquele jeito, pensei, e em segundo lugar, achei que tivesse
tido um surto. Também pensei que era melhor eu ir embora…
mas, pensei, não sei quem é este homem, achei que eu deveria
proteger a Yeonghye... A filmadora na entrada me era familiar, e,
como você me ensinou há um tempo atrás, voltei a fita… — Ela
continuou a falar num tom calmo, uma palavra após a outra,
deixando transparecer que todo esse autocontrole só lhe era
possível espremendo toda a sua coragem. — E aí eu vi você.
Nos olhos dela havia um inexprimível choque e medo, e
ao mesmo tempo desespero, mas a expressão do rosto em si
parecia, antes, quase apática. Somente então ele se deu conta
que estava sem camisa, o que poderia causar-lhe repugnância.
Olhou para os lados afoito, à procura de sua camisa.
E, enfiando o braço na camisa que estava jogada perto do
banheiro, disse:
— Querida. Vou explicar. Não deve ser fácil de entender,
mas…
A esposa o interrompeu, exaltando repentinamente a voz.
— Chamei um resgate.
— O quê?
Com uma cara lívida de pânico, ela deu um passo para trás,
esquivando-se dele, que se aproximava.
— Tanto a Yeonghye quanto você precisam de tratamento.
Ele levou vários segundos até compreender o verdadeiro
significado de suas palavras.
— …Está dizendo para eu entrar prum sanatório?
Nesse momento, ouviu-se um ruído sobre o colchão. Tanto
ele quanto a esposa pararam de respirar. Ela estava se desvenci-
lhando do lençol e se levantando, sem nem um fio sobre o corpo.
Ele viu lágrimas escorrendo dos olhos da esposa.

115
Han Gang

— Seu cafajeste — balbuciou ela baixinho, engolindo as lá-


grimas. — Ela… ela que nem está ainda boa da cabeça.
Os lábios molhados dela tremeram.
Somente então, a cunhada que agora parecia ter entendido
que a esposa estava ali, postou-se a fitar na direção deles com
uma cara abobada. Era um olhar que não transparecia nada. Pela
primeira vez, ele achou que os olhos dela pareciam os de um
bebê. Eram olhos que transmitiam tudo, mas ao mesmo tempo
esvaziados de tudo, os quais não seriam possíveis senão a um
bebê. Não, talvez, fosse um olhar que jamais tivesse contido algo
dentro de suas pupilas, antes mesmo de se tornar um bebê.
Lentamente, ela deu as costas para eles e foi para a sacada.
Abriu a porta de correr deixando o vento frio invadir o aposento
de uma vez. Ele viu a mancha mongólica dela, verde clara, e viu
marcas de sua saliva e sêmen ressecados sobre a mancha como
se fosse a seiva de uma planta. De repente, sentiu que ele passara
por tudo, que envelhecera de vez, que não temeria nem mesmo
morrer nesse instante.
Ela estendeu os peitos brilhando em cor de ouro para fora do
parapeito e escancarou bem as pernas incrustadas de copiosas
petalas vermelhas. Era como se quisesse copular com os raios de
sol ou com o vento. Ele ouviu a sirene da ambulância se aproxi-
mando, os gritos e as exclamações, a gritaria das crianças, os
buxixos se juntando na frente do prédio. Vários passos apres-
sados se aproximavam ecoando pelas escadas.
Se corresse até a sacada agora, poderia pular para cima do
parapeito onde ela estava parada e sair voando. Poderia espatifar
a sua cabeça no chão caindo do segundo andar. Poderia fazê-lo.
Somente isso daria um fim limpo. Mas ele continuava pregado
no lugar, fitando o corpo dela que parecia uma flor em chamas
ardentes, cintilando numa imagem tão forte, mais forte do que
qualquer cena que ele filmara na noite passada, como se esse
fosse o primeiro e o último momento de sua vida.

116
Árvores-flamas

E
la está de pé olhando para a estrada molhada de chuva.
É o ponto de ônibus no lado oposto do Terminal da Vila
Maseok. Enormes caminhões de carga passam rugindo
pela primeira faixa. As rajadas de chuva batem fortes como se
fossem furar o guarda-chuva.
Ela não é muito jovem. Tampouco se pode dizer que seja exa-
tamente bonita. Apenas que tem a linha do pescoço bastante
delicada e os olhos grandes e claros. Usa uma maquiagem leve
e natural, e a camisa branca de meia manga é límpida, sem um
amassado sequer. Graças à aparência asseada capaz de causar
boa impressão a qualquer um, a sombra que, de leve, mancha a
sua expressão acaba não ficando tão evidente.
Seus olhos brilham por um instante. O ônibus que esperava
mostra a cara de longe. Ela desce à via e estende o braço. O
ônibus que vinha correndo à toda desacelera.
— Esse ônibus vai até o Hospital Psiquiátrico de Chukseong?
O motorista de meia-idade assente com a cabeça, fazendo um
gesto com a mão para ela subir. Os olhos, que agora buscam um
lugar para sentar depois de ela ter pago a passagem, encontram-
-se com os rostos dos passageiros. Todos a observam. Será ela
paciente, ou será a responsável? Será que não há nenhum canto
esquisito nela? Ela se esquiva habilidosamente dos olhares em
que se misturam desconfiança e vigilância, repulsa e curio-
sidade.
Han Gang

Escorre água do guarda-chuva fechado. O chão do ônibus,


já molhado, emite um brilho negro. Por não ter sido capaz de
se proteger completamente da chuva, a camisa e a metade da
sua calça estão molhadas. O ônibus segue veloz pela estrada
chuvosa. Ela vai caminhando para dentro do ônibus, esforçando-
-se para se equilibrar. Encontra um lugar com os dois assentos
vagos e se senta junto à janela. Saca um lenço de papel da bolsa e
limpa o vidro esbranquiçado pelo vapor. Põe-se a fitar as rajadas
fortes de chuva batendo no vidro com um olhar duro que só se
vê em alguém que foi solitário por muito tempo. Assim que sai
da Vila Maseok, a mata de verão de fim de junho se estende pela
beira da estrada. A mata, imersa no temporal, fica parecendo um
animal enorme segurando o rugido. À medida que se aproxima
do Monte Chukseong, a estrada vai ficando estreita e sinuosa,
e, na mesma medida, a mata parece avançar sobre o seu corpo
úmido. Qual terá sido o pé da montanha onde há três meses
encontraram a sua irmã? Tenta esboçar os espaços escuros es-
condidos debaixo de cada árvore que balança sob as rajadas de
chuva e, então, desvia o rosto do vidro.
Disseram que foi no horário do passeio, entre duas e três da
tarde, quando a Yeonghye desapareceu do hospital. Até então,
nuvens escuras enchiam o céu, mas não chovia, de modo que
os pacientes com sintomas moderados haviam saído para o
passeio no mesmo horário de outros dias. Quando, às três horas,
os enfermeiros conferiam os pacientes, verificou-se que ela não
havia voltado. Disseram que as primeiras gotas do temporal
começaram a cair por volta desse horário. A equipe inteira do
hospital entrou em emergência. Os funcionários e a equipe
médica bloquearam rapidamente as vias por onde passavam
ônibus e táxis. Em caso de sumiço de paciente, uma possibili-
-dade era que ele descesse logo a montanha e escapasse em di-
reção à vila, mas havia ainda a possibilidade contrária, a dele
entrar mais fundo na floresta.
Com o dia avançando para o final da tarde, as rajadas foram
ficando mais grossas. O sol de início de primavera se pôs mais
rapidamente devido ao mau tempo. Foi uma grande sorte, não,

120
A Vegetariana

quase um milagre, que um dos auxiliares tenha encontrado a


Yeonghye depois de buscas por todos os cantos das montanhas
próximas, dissera o médico responsável. Disseram tê-la encon-
trado num lugar bem retirado no fundo da montanha, em pé
numa encosta escarpada sem esboçar o menor movimento,
como se fosse uma árvore em meio às árvores molhadas pela
chuva.
Ela estava junto de seu filho Jiu de seis anos quando, por
volta das quatro da tarde, atendeu a ligação avisando que a
Yeonghye desaparecera. A febre do menino estava rondando os
quarenta graus há cinco dias e ela o levara para fazer uma radio-
grafia do pulmão. Jiu ficou de pé sozinho em frente à máquina
olhando alternadamente para a mãe e o maquinista com um ar
intranquilo.
A senhora é a Kim Inhye?
Sim, sou eu, por quê?
É a responsável pela Kim Yeonghye, não é?
Havia sido a primeira ligação vinda do Hospital para o ce-
lular dela. Os telefonemas eram sempre ela ligando para reservar
o horário da visita ou para perguntar se não havia nada errado
com a irmã. A enfermeira transmitiu a notícia do desapareci-
mento num tom calmo disfarçando a urgência.
Estamos fazendo o máximo para encontrá-la, mas, se por
um acaso ela aparecer em sua casa, ligue para nós prontamente,
por favor. Antes de desligar, a enfermeira perguntou: Será que
não há a possibilidade de ela ter ido para algum outro lugar?
Talvez a casa dos pais?
Mas a casa dos nossos pais é longe… Se precisarem, eu
mesma ligarei para lá.
Ela fechou o celular, guardou-o na bolsa, saiu da sala de
raio-x e abraçou o filho. O corpo do menino, que ficara mais
leve nos últimos dias, estava quente.
Mamãe, eu fiz bem, né?
Talvez fosse somente por causa da febre, mas o rosto da
criança estava ansioso pela expectativa de um elogio.

121
Han Gang

É, você conseguiu ficar sem se mexer nenhum pouquinho.


Após ouvir o parecer do médico de que não se tratava de
pneumonia, ela carregou Jiu nos braços e voltou para casa
num táxi. Lavou-o às pressas, deu uma sopinha e o remédio, e
o colocou para dormir cedo. Não havia espaço para ficar com
o coração apertado pensando na irmã desaparecida. Com a
criança doente, ela também não dormira direito durante cinco
dias. Se a febre não baixasse naquela noite, teria de interná-lo
num hospital grande. Começou a arrumar uma sacola com a
carteira do convênio médico e algumas roupinhas do menino,
preparando-se para uma eventualidade, quando o celular tocou
novamente. Já batia nove horas da noite.
Ah, encontraram ela?
Nossa, que sorte.
Vou visitá-la na semana que vem, conforme está reservado.
Proferira palavras de profundo e sincero agradecimento,
mas a voz estava embaçada e grave por causa do cansaço. Entre-
tanto, foi somente depois de desligar o telefone que se deu conta
de que naquele dia chovera forte no país inteiro, e que a chuva
deveria estar jorrando também na montanha em que a Yeonghye
fora encontrada.
Não sabia dizer como aquela paisagem se esboçara em sua
mente de forma tão nítida, ainda que não tivesse visto a cena
pessoalmente. Enquanto trocava o lenço úmido da testa do fi-
lho, que fungava forte durante a noite inteira, e caía no sono de
tempos em tempos como se desmaiasse, ela viu a mata submersa
na chuva bruxuleando como um espírito. A chuva negra, a mata
negra. O uniforme esbranquiçado de paciente, todo ensopado.
Os cabelos molhados. A encosta totalmente escura. A Yeonghye
reta em pé como um fantasma, transformada numa massa de
escuridão e água. Finalmente, chegada a madrugada, tranqui-
lizou-se com a frescura sentida na palma da mão ao tocar na
testa da criança. Saiu do quarto e ficou olhando vagamente para
o crepúsculo azulado que invadia a sacada da sala.

122
A Vegetariana

Enrolou-se como uma bola, deitou-se de lado no sofá, e ten-


tou chamar o sono. Tinha de dormir, nem que fosse por uma
hora, antes de Jiu acordar.
Mana, eu estava plantando bananeira e vi folhas crescendo
do meu corpo, das minhas mãos brotaram raízes… que foram
se enfiando terra abaixo. Sem fim, sem fim… É, flores queriam
brotar da minha virilha, e abri as pernas, abri bem as pernas…
e então…
A voz da Yeonghye, ouvida em meio ao sono, era baixinha e
carinhosa no início, e depois, cândida como uma criança, mas, ao
final, não conseguia mais compreender porque estava borrada
como o som de um animal. Abriu os olhos num relance por causa
de uma forte repugnância que jamais sentira na vigília, e então
adormeceu novamente. Desta vez, era ela mesma que estava de
pé em frente ao espelho do banheiro. Escorria sangue do olho
esquerdo da sua imagem refletida no espelho. Ergueu rapida-
mente a mão e limpou o sangue, mas a sua imagem no espelho
não moveu a mão e ficou olhando inexpressivamente para o seu
olho de onde escorria sangue fresco e vermelho.
E então, acordada pela tosse do filho, levantou-se e se diri-
giu atabalhoadamente para o quarto. Pegou na mão pequena
da criança erguida para o alto como se fosse numa competição,
tentando apagar a figura da Yeonghye que ficara encolhida no
canto daquele quarto há muito tempo… Agora está tudo bem,
murmurou baixinho, mas sem saber claramente se aquilo era
para acalmar a criança ou se a ela mesma.
œ
O ônibus contorna a ladeira e para numa bifurcação. A porta
da frente se abre, ela desce os degraus a passos largos e abre o
guarda-chuva. Foi a única pessoa a descer neste ponto. Sem se
demorar, o ônibus se afasta correndo pela estrada chuvosa.
A estradinha estreita que começa nessa bifurcação segue
por uma colina escarpada e sai num túnel de pouco mais de
cinquenta metros, e, passando por ele, dá para ver o pequeno
hospital situado no meio da montanha. Ainda que a chuva tenha

123
Han Gang

diminuído, as rajadas continuam fortes. Ela se curva. Enquanto


dobra a barra da calça, seus olhos capturam as margaridinhas-
-do-campo derrubadas sobre o asfalto. Ela ajeita a alça da bol-
sa pesada sobre o ombro. Ergue o guarda-chuva e começa a ca-
minhar em direção ao hospital.
Agora ela vinha toda quarta-feira para verificar a evolução
da Yeonghye, mas antes de ela desaparecer e ser descoberta
naquele dia chuvoso, ela passava por este caminho uma vez
por mês. Este caminho por onde ela carregava trouxas de fruta,
bolinhos de arroz ou enrolados de arroz, estava sempre deserto,
e era raro ela cruzar com pessoas ou carros. Quando se sentava
de frente com a irmã na sala de visitas, espalhava as comidinhas
sobre a mesa e a Yeonghye botava aquelas coisas na boca sem
dizer palavra, como uma criança fazendo a lição de casa. Quando
passava os dedos nos cabelos da Yeonghye aparando os fios para
trás da orelha, ela levantava o olhar e até dava um leve sorriso.
Nesses momentos ela se perguntava: será que não está tudo
bem, assim desse jeito? Será que não daria para viver assim, até
o fim? Aqui dentro, a Yeonghye falaria somente quando tivesse
vontade de falar, e não comeria carne se não tivesse vontade, não
era? E ela viria ver a irmã assim de vez em quando, não poderia?
A Yeonghye era quatro anos mais nova que ela. Talvez
por causa dessa diferença não tão pequena, as duas cresceram
sem aquelas rixas e briguinhas tão comuns entre irmãs. Desde
os dias de infância quando as duas levavam, alternadamente,
tapões na orelha, do pai que tinha a mão pesada, Yeonghye era
alguém que lhe incutia um senso de responsabilidade, assim
como um instinto materno, alguém de quem ela deveria cuidar
até o fim. O calcanhar da irmãzinha estava sempre preto de
sujo e, no verão, a ponta do nariz ficava vermelha de brotoeja.
Observara com incredulidade essa irmãzinha crescer e se casar.
Só que se afligia secretamente ao ver que com o passar dos anos
a irmãzinha falava cada vez menos. Bem sabia da sua própria
personalidade, escrupulosa e cuidadosa, embora pudesse ser
afável e alegre dependendo da ocasião. Mas, muito mais do que
isso, o interior da Yeonghye era difícil de entrever, indepente-

124
A Vegetariana

mente da ocasião. Tão difícil que, de vez em quando, sentia a


irmã como uma estranha.
Por exemplo, no dia em que Jiu nasceu, a Yeonghye, que veio
ver o seu primeiro sobrinho, em vez de felicitá-la, limitou-se a
perguntar quase murmurando: “É a primeira vez que vejo uma
criança assim tão pequena… É assim mesmo quando é recém-
-nascido?”
Vai conseguir levá-lo sozinha nos braços até onde mora a
mamãe? Sei que o cunhado vai dirigir, mas… se achar bom, posso
ir junto, quer?
Apesar dessa proposta tão gentil, merecedora de agradeci-
mento, o sorriso tênue que a irmã esboçou pelo canto dos lá-
bios lhe causou uma estranheza incompreensível. Era como se
Yeonghye estivesse demonstrando estranhar a sua irmã, tanto
quanto ela a estranhava. Perdera a fala diante daquele rosto que
transmitia quase uma desolação, mais do que calma. Aquilo
não se assemelhava em nada ao comportamento deprimido do
marido, mas, num certo sentido, fazia com que ela se sentisse
igualmente frustrada. Terá sido porque os dois falavam, igual-
mente, pouco?
œ
Ela adentra o túnel. Devido ao tempo, o interior do túnel
está mais escuro do que o normal. Ela fecha o guarda-chuva.
Segue em frente ouvindo o som de seus passos que ecoam alto.
No meio da parede de onde a escuridão parece transbordar umi-
damente, uma mariposa grande de estampa manchada, de um
tipo que ela via pela primeira vez, voa para cima. Ela para por
um instante e fica olhando o movimento de suas asas. A borbo-
leta, que pousou num outro canto do teto escuro não se mexe
mais, como se estivesse consciente de algum observador.
O marido gostava de fotografar tudo que tivesse asas. Co-
meçando por pássaros, borboletas e aviões, até mariposas e
moscas. As cenas de voo dessas coisas, que não pareciam ter
muita relação com o conteúdo de seus trabalhos, deixavam-na
aturdida, ela, que já era tão ignorante em artes plásticas. Uma

125
Han Gang

vez ela perguntou: Por que aquela cena entrou naquele ponto?
Ao final de uma sequência de uma ponte desmoronada e pessoas
desfalecendo aos prantos num enterro, do nada apareceu a som-
bra negra de um pássaro, que foi subindo lentamente para o céu
durante uns dois segundos.
Por nada — foi o que ele respondeu.
É, acabo colocando uma coisa assim, sem motivo. Depois
que coloco, sinto-me mais confortável.
E depois disso, foi aquele silêncio, tão habitual.
Será que alguma vez ela conseguiu, de fato, encontrar-
-se com a verdadeira natureza do marido, sempre envolto
num silêncio que parecia que jamais poderia ser atravessado?
Houve um tempo em que pensava que talvez os seus trabalhos
acabariam por revelá-lo. Ele costumava expor trabalhos em ví-
deo que, quando curtos, duravam dois minutos, e quase uma
hora quando longos, mas, na verdade, antes de conhecê-lo, ela
nem sabia que existia tal área das artes. Apesar dos esforços,
não conseguia nem compreender as suas obras.
Ela se lembra do final da tarde em que o viu pela primeira
vez. Com um corpo magricelo como um palito, o rosto com
uma barba por fazer de vários dias, e carregando uma mala de
filmadora que mesmo à primeira vista parecia pesada, ele foi ao
encontro dela na loja. Procurava uma loção pós-barba. Enquanto
descansava os dois braços sobre o balcão-expositor de vidro,
aparentava cansaço. A ponto de ela sentir que o balcão de vidro
ia desmoronar junto com ele. Foi praticamente um milagre para
ela que quase não tivera experiências de namoro perguntar a
ele de forma tão espontânea “já almoçou?” Ele olhou para ela
parecendo um pouco surpreso, mas com um olhar cansado, como
se não lhe restasse força nem mesmo para expressar surpresa.
Se ela trancou a porta da loja para um almoço bem tardio com
ele, era porque ela também estava sem almoçar naquele dia, mas
era também porque o jeito peculiar dele, aparentemente sem re-
servas, fez com que até ela baixasse a guarda.

126
A Vegetariana

Depois daquele dia, o que ela desejava era que com a sua
força pudesse fazê-lo descansar. No entanto, apesar de todos
os cuidados que ela dedicava com esforço, ele parecia igual-
mente cansado mesmo após casar. Estava sempre ocupado com
as coisas dele, e quando por vezes permanecia em casa, parecia
distante como um viajante que estava num motel de estrada.
Especialmente quando o trabalho não avançava a contento, o
seu silêncio era tenaz como borracha, pesado como rocha.
Não muito tempo depois, ela compreendeu uma verdade, a
de que talvez não fosse ele, e sim ela própria quem queria, com
tanta intensidade, fazê-lo descansar. Não teria ela simplesmente
refletido a própria imagem por meio da fisionomia cansada dele,
a sua imagem do passado de uma moça que saiu de casa aos de-
zenove anos e foi vencendo a vida na capital sozinha sem tomar
emprestada força de ninguém?
Assim como ela não tivera certeza da própria paixão,
também nunca tivera certeza da paixão dele por ela. De vez
em quando, sentia que ele se fiava nela por ser tão inábil, por
natureza, com a vida cotidiana. Era possuidor de uma persona-
lidade correta a ponto de parecer tapado, e era incapaz de dizer
palavras exageradas ou de bajulação a quem quer que fosse. Mas
fora sempre gentil com ela, jamais usara palavras rudes e, por
vezes, dirigia-lhe um olhar carregado de respeito.
Você é muito para mim — disse uma vez, antes de casar.
A sua bondade, a estabilidade, a calma, a sua atitude de al-
guém para quem viver parece ser tão e somente natural… essas
coisas me tocam.
Tais palavras soaram plausíveis porque difíceis de entender,
mas não teriam sido, pelo contrário, uma confissão que demons-
trava que ele não estava tomado por sentimentos como o amor?
Talvez o que ele amava de verdade na vida fossem as imagens
que filmara, ou aquelas que estavam por filmar. No dia em que
foi à exposição dele pela primeira vez depois do casamento, ela
levou um susto, pois não conseguia acreditar que esse homem,
que sempre pareceu em perigo iminente de cair pelas tabelas,

127
Han Gang

tivesse perambulado por tantos lugares na companhia da sua


filmadora. Era-lhe difícil imaginar a negociação que ele deveria
ter feito em certos locais de filmagem complicada, a cara e a
coragem que ele deveria ter demonstrado em certas situações,
além da tremenda e tenaz perseverança. Pareceu-lhe que havia,
claramente, uma distância entre as obras dele, apaixonadas, e
o seu cotidiano, que não diferia de um peixe aprisionado num
aquário, a ponto de não ser possível, de modo algum, chamá-lo
de uma única pessoa.
Houve uma única ocasião em que viu os olhos dele brilharem
dentro de casa. Foi quando Jiu, com um ano completo, começava
a dar os primeiros passinhos. Ele pegou a máquina e filmou Jiu,
que caminhava cambaleando pelo meio da sala toda ensolarada.
Também filmou a cena em que Jiu caía nos braços da mãe, e ela
dando um beijo no topo da sua cabeça. E ele disse, com os olhos
cintilando de uma inapreensível vivacidade:
Será que coloco uma animação de uma flor se abrindo das
pegadinhas cada vez que Jiu dá um passinho, como num filme
de Miyazaki Hayao? Não, acho melhor fazer subir um bando
de borboletas. Ah, para isso, seria melhor filmar de novo num
gramado.
Ele ensinou a ela como funcionava a filmadora, reprodu-
zindo as cenas gravadas, e disse num tom de voz exaltado:
Ele, e também você, têm que vestir roupa branca. Não, não
é. Talvez seja melhor mesmo uma roupa bem esfarrapada. É,
acho isso melhor. O piquenique de uma mãe pobre e seu filho.
O bando de borboletas coloridas que sobe a cada passinho
desajeitado do bebê, como um milagre…
Mas eles não chegaram a ir a um gramado, e Jiu logo cresceu
e não andou mais cambaleando. O vídeo com bandos de borbo-
letas subindo dos passinhos da criança acabou ficando somente
na imaginação dela.
Não se sabe desde quando, mas ele passou a demonstrar um
cansaço muito maior. Ficava enfurnado no estúdio sem voltar
para casa, fosse noite ou fim de semana, mas não parecia pro-

128
A Vegetariana

duzir qualquer resultado. E era a mesma coisa quando voltava


para casa depois de ter perambulado pelas ruas até o tênis ficar
preto. Quando, por vezes, ela acordava de madrugada e entrava
no banheiro com a luz acesa, levava um baita susto. Pois ele, não
se sabe quando voltara, dormia vestido e todo encolhido dentro
da banheira sem água.
O papai está em casa? — Jiu costumava perguntar depois
que ele foi embora, mas essa pergunta era feita pela criança
todas as manhãs mesmo quando ele não havia deixado a casa.
Não — costumava ser sua resposta curta. E acrescentava,
com palavras inaudíveis: Não há ninguém. Somos só você e a
mamãe. Vai ser assim para sempre.
œ
O prédio do hospital sob chuva era a própria desolação. A
parede de concreto cinza escuro molhada de chuva parece mais
escura e pesada do que o corriqueiro. As janelas dos quartos
enfileiradas no primeiro e segundo andares tem grades de ferro.
Em dias claros, é difícil ver pacientes com a cara estendida por
entre as frestas, mas num dia desses dá para ver rostos de tez
cinza olhando a chuva cair. Ela ficou olhando o segundo andar
do prédio anexo onde estaria o quarto da Yeonghye, e depois
caminhou para a secretaria que dava para a sala de visitas e a
lojinha.
— Marquei de me encontrar com o Dr. Park Inho.
A funcionária da secretaria a reconhece a cumprimenta. Ela
fecha o guarda-chuva que está pingando, amarra-o e senta no
banco comprido de madeira. Enquanto espera o médico descer
para a sala de orientações, ela vira a cabeça e fita a zelkova no
pátio interno do hospital, como sempre faz. É uma árvore velha
que parece ter uns quatrocentos anos. A árvore, que em dias
claros parecia dizer algo a ela, refletindo os raios de sol com seus
inúmeros galhos espalhados para todos os lados, hoje, submersa
em chuva, parece uma pessoa taciturna escondendo para si o
que quer falar. A casca velha na base da árvore está encharcada
e escura como a noite, e as folhas dos ramos tremem silenciosa-

129
Han Gang

mente sob as gotas de chuva. Quietamente, ela lança um olhar


raivoso na figura de Yeonghye que se sobrepunha à da árvore
feito um fantasma.
E então, fecha longamente os olhos avermelhados e volta a
abri-los. A árvore, que continua calada, enche a vista. Depois
daquela noite, Jiu se recuperou e voltou a ir para a escolinha,
mas ela continuava sem conseguir dormir profundamente. Ou
seja, já faz três meses completos que não consegue dormir mais
de uma hora seguida. Somente a voz da Yeonghye e o bosque
sob uma chuva negra, e o seu próprio rosto com o sangue fresco
fluindo dos olhos ficavam despedaçando as longas noites em
pequenos cacos, como se fosse uma porcelana.
Quando se levanta, tendo finalmente desistido de qualquer
sono a mais, já é por volta das três horas. Lava o rosto, escova os
dentes, prepara a comida e arruma a casa canto por canto, mas
o ponteiro do relógio não se digna a girar mais rápido, dando
a impressão de ter um grande peso amarrado nele. Por fim,
entra no quarto dele e fica ouvindo os discos que ele deixou,
ou fica girando pelo quarto com as mãos na cintura como ele
costumava fazer, e depois se deita de roupa, toda encolhida na
banheira vazia, e mergulha na sensação de que pela primeira vez
conseguia entendê-lo. Talvez para ele não restasse forças nem
para tirar a roupa. Muito menos teria forças para tomar banho
controlando a temperatura da ducha. Ela agora compreende
que aquele espaço cavado e apertado é, por incrível que pareça,
o lugar mais aconchegante de todo o apartamento de uns cem
metros quadrados.
A partir de onde será que tudo desandou? Ela se perguntava
nesses momentos: Quando tudo isso começou? Ou melhor,
quando tudo desmoronou?
Foi uns três anos atrás que a Yeonghye ficou estranha pela
primeira vez, quando virou vegetariana de repente. Ser vegeta-
riana hoje é uma coisa comum, mas o que era diferente nesse
caso era que a motivação não estava clara. Ficou magra de dar dó
só de olhar, quase não dormia e a Yeonghye, que já era de poucas
palavras, perdeu a fala a ponto de se tornar incomunicável. Não

130
A Vegetariana

somente o cunhado, mas todos da família estavam preocu-


pados com o seu comportamento. Foi justamente na época em
que ela havia se mudado para o novo apartamento. A família
estava reunida para um jantar de inauguração do apartamento
quando o papai deu um tapa no rosto da Yeonghye e enfiou um
naco de carne depois de abir-lhe a boca à força. Yeonghye estre-
meceu como se tivesse sido esmurrada. Com o corpo enrijecido,
ela ficou a observar a Yeonghye cuspir o pedaço de carne com
um ganido animalesco, pegar a faca de cortar frutas e riscar o
próprio pulso.
Será que isso não podia ter sido evitado? perguntou-se vez
após vez depois disso. Será que a mão do papai não poderia ter
sido parada naquela noite? Será que a faca da Yeonghye não
poderia ter sido parada? Será que não poderia ter sido evitado
que o marido corresse até o hospital carregando a Yeonghye
ensanguentada nas costas? Será que não poderia ter sido evitado
que o cunhado a deixasse friamente depois da alta do hospital
psiquiátrico? E será que não teria tido um modo de desfazer
aquilo que o marido cometera com a Yeonghye, aquilo de que
ela não queria mais se lembrar, aquilo que acabou resvalando
num escândalo barato? Será que não poderia ter sido evitado
que tudo acabasse daquela maneira, com as vidas de todos que
a rodeavam desmoronando como montanhas de areia?
Ela não estava disposta a tomar conhecimento da inspi-
ração que a pequena e azulada mancha mongólica na nádega
da Yeonghye teria provocado nele. A cena que ela presenciou
naquela manhã de outono quando foi levar umas comidinhas
até a quitinete da Yeonghye ultrapassava o limite do seu senso
comum e da compreensão. Ele havia gravado cenas da noite
anterior em que ele e a Yeonghye misturavam os corpos inteira-
mente pintados de flores coloridas.
Será que aquilo não poderia ter sido evitado? Será que ela
não deixou escapar uma pista que a fizesse antever tal atitude
dele? Será que não teria tido como incutir nele, com mais força,
que ela era uma doente que ainda tomava remédios?

131
Han Gang

Naquela manhã, ela jamais poderia sonhar que fosse ele


o homem deitado metido nas cobertas ao lado da Yeonghye
nua, toda pintada de flores vermelhas e amarelas. Vencer a
luta contra o medo profundo que a impelia a sair correndo dali
foi possível somente graças à ideia de que deveria proteger a
irmã. Segurando-se naquele irrefutável senso de responsabili-
dade, pegou a filmadora no hall de entrada e viu as coisas que
estavam gravadas, tentando se lembrar o modo de funciona-
mento daquela máquina que aprendera justamente com ele.
Deixou cair a fita quando a tirava da máquina como se fosse
um objeto em chamas, e, mesmo enquanto tateava os botões
do celular para pedir que levassem dois doentes mentais, ela
não conseguia aceitar que tudo aquilo fosse realidade. Nem se-
quer podia acreditar em seus olhos. Estava claro apenas que o
comportamento do marido não poderia ser perdoado por nada.
Foi somente depois do meio-dia que ele acordou, e a Yeong-
hye também, e em seguida chegaram três agentes do corpo
de resgate munidos de camisas de força e equipamentos de
proteção. Como a Yeonghye estivesse perigosamente em pé
na sacada, dois deles correram para lá antes de qualquer coisa.
Yeonghye resistiu violentamente enquanto tentavam vestir
a camisa de força sobre seu corpo nu e colorido. Mordeu com
força o braço do agente e soltou ganidos ininteligíveis. Uma
agulha foi espetada no braço da Yeonghye, que se debatia. Nesse
meio tempo, o marido tentou escapar, esquivando-se do agente
que estava no hall de entrada, mas foi pego por um dos braços.
Ele se desvencilhou com toda a força, virou-se e, num piscar de
olhos, correu para a sacada. Tentou dar um salto por sobre o
parapeito como se fosse um pássaro. Mas quando o agente de
bons reflexos abraçou a sua perna, parou de resistir.
Ela ficou a tremer por inteiro, enquanto acompanhava a cena
até o fim. Quando os seus olhos se encontraram com os dele,
enquanto era finalmente levado para fora do apartamento, ela
tentou, com toda a força, lançar um olhar cortante. Mas o que
os olhos dele transpareciam não era nem lascívia, nem loucura.
Mas nem por isso era arrependimento ou ressentimento. Era

132
A Vegetariana

apenas pânico, igualzinho ao que ela sentia naquele exato mo-


mento, apenas isso.
E terminou assim. Depois desse dia, suas vidas nunca mais
poderiam voltar a ser o que era antes.
O hospital considerou-o normal e ele foi levado para uma
casa de detenção. Foi liberado após vários meses de processo
judicial e um moroso movimento de amigos em prol de sua sol-
tura. Depois, sumiu e nunca mais deu as caras. Mas a Yeonghye
não pôde mais sair da ala fechada do hospital. Abriu a boca
por um tempinho após o primeiro surto, mas voltou a se calar.
Não falava com ninguém, e ficava agachadinha ao sol onde não
havia ninguém e ficava murmurando algo. Continuava a não
comer carne, e quando vinha carne na comida, fugia aos gritos.
Em dias de sol forte, colava o corpo à janela, desabotoava o
uniforme de interna e deixava o peito à mostra. Os pais, que
adoeceram repentinamente, não mais queriam ver a segunda fi-
lha e também cortaram relações com a filha primogênita, que os
fazia lembrar do genro, que era pior que um animal. A mesma
coisa fez o casal do irmão caçula. Mas ela não podia abandonar
a Yeonghye. Alguém tinha de pagar a internação, alguém tinha
de ser responsável por ela.
Ela continuou vivendo. Foi tocando a loja com o escândalo
tenazmente pendurado nas costas. As horas passavam qual
uma correnteza, imparcial a ponto de ser cruel, avançando em
direção à embocadura e empurrando junto a vida dela que era
um compacto sólido feito só de perseverança. Jiu, que naquele
outono tinha cinco anos, agora estava com seis e a Yeonghye
deu a impressão de ter melhorado bastante quando foi trans-
ferida para esta clínica que tinha um bom ambiente e a mensa-
lidade era acessível.
Ela sempre teve uma personalidade forte desde a infância,
comum entre aquelas pessoas que se fazem sozinhas na vida.
Sabia lidar sozinha com os acontecimentos da vida; seu zelo e
honestidade eram-lhe simplesmente naturais. Dava o máximo
de si fosse como filha ou irmã, como esposa e mãe, como uma
cidadã que tocava uma loja, e até mesmo em relação a um tran-

133
Han Gang

seunte com quem cruzava no metrô. Com a inércia desse zelo e


honestidade, poderia ter bem superado tudo, com o passar do
tempo. Se a Yeonghye não tivesse sumido de repente em março
passado. Se a Yeonghye não tivesse sido encontrada no meio do
mato numa noite chuvosa. Se os sintomas não tivessem se agra-
vado rapidamente depois daquele dia.
œ
Tak tak tak tak, o jovem médico de avental branco vem
caminhando do lado de lá do corredor, produzindo um som
vivaz com a sola dos sapatos. Ela se levanta e o cumprimenta, e
o médico lança-lhe um leve cumprimento de cabeça. Estende o
braço num movimento largo e aponta para a sala de consultas.
Ela entra atrás do médico sem dizer palavra.
O médico, no final de seus trinta, tem um porte saudável,
forte na medida certa. Era um homem com uma expressão e um
andar que transbordava autoconfiança, mas, quando se sentou
à mesa, ficou olhando para ela com uma careta. Ela sentiu um
peso no coração, percebendo que essa consulta não lhe era nada
agradável.
— Quanto à minha irmã…
— Fizemos tudo que era possível, mas ela continua igual.
Então, hoje…
Ela enrubesce como quem cometeu um pecado. Ele continua
a falar no lugar dela:
— Hoje, vamos tentar introduzir papinha através de um
tubo, e teremos sorte se com isso o estado dela melhorar, um
pouco que seja, mas, se isso não acontecer, só teremos a alter-
nativa de transferi-la para uma uti de um hospital.
Ela pergunta ao médico:
— Será que eu poderia tentar convencê-la novamente, só
por um instante, antes disso?
Ele a fita com um olhar de quem não alimenta esperanças.
Pareceu cansado. Pareceu até esconder raiva por um paciente
que não obedece aos seus desejos. Olha o relógio de pulso e diz:

134
A Vegetariana

— Daremos a você então cerca de meia hora. Se conseguir,


por favor, avise a sala de enfermeiras. Se não, vejo-a novamente
às duas horas. — Talvez condoído por terminar a conversa
desse jeito, o médico que até então parecia estar prestes a sair
correndo, prolonga um pouco o diálogo. — Como comentei da
última vez, no caso de bulimia de origem nervosa, quinze a vinte
por cento das pessoas morrem de inanição. A paciente acha que
está gorda mesmo que esteja só osso. A principal causa psico-
lógica costuma ser o conflito com uma mãe dominadora… mas
Kim Yeonghye é um caso especial, pois é uma esquizofrênica
e, ao mesmo tempo, recusa-se a comer. Eu estava confiante de
que não se tratava de uma esquizofrenia profunda, mas, since-
ramente, não fui capaz de prever que daria nisso. Se fosse uma
síndrome de envenenamento, ainda daria para convencê-la, com
o médico comendo junto com ela ou algo assim. Mas não está
claro para ela o próprio motivo para se recusar a comer, e os
remédios também não surtem efeito. Para nós também não é
fácil dizer-lhe isso, mas não há outro jeito. É preciso antes de
tudo preservar a vida… mas aqui na clínica não podemos garantir
isso. — Antes de se levantar, o médico faz uma pergunta. Era
uma pergunta que demonstrava a sua sensibilidade profis-
sional: — A senhora não está com uma cara boa. Não consegue
dormir direito?
Ela não consegue responder de pronto.
— A responsável tem que ter saúde para cuidar da paciente.
Após trocarem cumprimentos com a cabeça, o médico sai
da sala de consultas fazendo soar os passos — tak tak tak — do
mesmo modo que fizera ao chegar. Ela saiu atrás, mas o médico
já está lá do outro lado do corredor.
Quando ela volta para o banco comprido em frente à secre-
taria, vê uma mulher de meia-idade luxuosamente vestida en-
trar pelo hall segurando o braço de um homem também de
meia-idade. Será que vieram visitar algum paciente? Entretanto,
no momento seguinte, um praguejar intrépido jorra da boca da
mulher. Sem ligar para isso, como se estivesse já habituado, o

135
Han Gang

homem saca o cartão do seguro médico e o estende no guichê


da secretaria.
— Malvados! Se eu sugasse todas as suas entranhas e devo-
rasse, ainda seria pouco! Eu vou é me mudar para outro país.
Não passo nem mais um dia com gente como vocês!
Não parece ser o marido. Talvez seja o irmão, mais velho
ou mais moço. Se aquela mulher fosse internada hoje, provavel-
mente passaria a noite na sala de repouso. Existe uma grande
chance dela ter os braços e as pernas amarrados e receber uma
injeção de calmante. Ela olha o chapéu com estampa de for-
mosas flores enquanto a mulher grita aos berros. E percebe de
repente que já não se perturba com pessoas com esse grau de
insanidade. Depois que passou a frequentar a clínica, às vezes
uma rua pacífica cheia de gente normal lhe causava uma certa
estranheza.
Ela se lembra do primeiro dia em que trouxe a Yeonghye
para a clínica. Era uma tarde límpida e cristalina do início do
inverno. As alas fechadas dos grandes hospitais de Seul eram
mais próximas, mas não tinha como pagar a mensalidade da
internação, e, depois de muita pesquisa, transferiu a Yeonghye
para esta clínica, que tinha fama de tratar os pacientes relati-
vamente bem. Mas quando se consultou com o médico respon-
sável daquele outro hospital para tirar a irmã de lá, recebeu a
recomendação de um tratamento domiciliar.
Pelo que observamos até agora, a progressão é boa. Não po-
derá ainda recomeçar uma vida social, mas o apoio da família
ajudará na recuperação.
E ela respondera:
Foi com sua recomendação que da outra vez tiramos ela do
hospital. E pensamos que teria sido melhor se não tivéssemos
feito isso então.
Já na época, ela sabia. Que o receio de uma eventual recaída
era apenas um motivo superficial e que o próprio fato de ter
a Yeonghye perto lhe parecia uma coisa impossível. Que não
conseguia suportar tudo aquilo que a Yeonghye fazia lembrar.

136
A Vegetariana

Que, na verdade, ela a odiava secretamente. Que não era capaz


de perdoar a irmã, a sua irresponsabilidade de ter passado para
o outro lado da fronteira sozinha, deixando para ela essa vida
lamacenta.
Felizmente a Yeonghye também preferiu a internação. A
irmã, vestindo roupas comuns, e que dizia ao médico “a clínica
é mais confortável para mim” com todas as letras, pareceu tran-
quila. O seu olhar estava claro e os lábios também firmes. Era
quase difícil distingui-la de alguém normal, tirando o fato dela
estar abaixo do peso devido à quantidade reduzida de comida
que ingeria e que o corpo, que já era magro, estava mais acentu-
adamente esguio. Mesmo dentro do táxi ficou apenas olhando
pela janela em silêncio sem mostrar qualquer traço de insegu-
rança e, depois, seguiu docilmente os passos da irmã, como
quem tinha saído para um passeio. A funcionária da secretaria
precisou até perguntar qual das duas era paciente.
Enquanto esperava o procedimento de internação, disse à
Yeonghye:
O seu apetite vai melhorar aqui, pois o ar é melhor. Agora,
você tem que comer mais e ganhar um pouco de peso.
A Yeonghye que então começara a abrir a boca, disse,
olhando para a zelkova através da janela:
Hum… aqui tem árvores grandes.
Atendendo ao chamado da secretaria, um paramédico de
meia-idade e de compleição forte aproximou-se para verificar
o conteúdo da mala de internação. Roupas e peças íntimas,
chinelo, apetrechos de higiene pessoal etc. O paramédico abriu
as roupas uma a uma, minuciosamente. Pareceu checar se não
havia cordão ou alfinetes. Tirou o longo cinto de lã que servia
para fechar o sobretudo e disse para as duas seguirem atrás dele.
O homem abriu a porta da ala de internação com a chave e
foi entrando, enquanto as duas caminhavam atrás. Durante todo
o tempo em que ela cumprimentava as enfermeiras, Yeonghye se
manteve calma. Por fim, foram levadas ao quarto de internação
que comportaria seis pacientes. Quando ela foi colocar a mala de

137
Han Gang

internação no chão, a janela com uma grade vertical de barrotes


bem próximos um do outro encheram os seus olhos. Instanta-
neamente, ela se sentiu aturdida, pois um sentimento de culpa
que não tivera a oportunidade de sentir até então se fez palpável
em seu peito como um peso massudo. Foi quando a Yeonghye se
aproximou sem fazer barulho e se postou ao seu lado.
…Daqui também dá para ver as árvores.
Apertando firmemente os lábios, ela disse para si mesma:
Não amoleça. Não é um fardo que você consiga carregar, de
qualquer modo que seja. Ninguém te criticará. Já está fazendo
muito bem o que está suportando agora.
Ela não olhou para o rosto de perfil da irmã que se postava
a seu lado. Ficou apenas mirando os raios de sol do início de
inverno espatifando-se sobre os lariços que ainda não haviam
perdido todas as folhas. Yeonghye chamou-a com uma voz
baixinha e tranquila, como se a consolasse:
Mana…
Dava para sentir um cheiro tênue de naftalina exalando do
seu suéter preto e roto. Como ela não respondesse, sussurrou
mais uma vez:
Mana…
Mana… Todas as árvores do mundo parecem ser irmãs.
œ
Ela passa pelo Bloco 2 do prédio anexo, onde são abriga-
dos os perdidos e pacientes com deficiências mentais, e para
em frente ao hall do Bloco 1. Veem-se alguns internos colados
à porta de vidro tentando olhar para fora. Na certa sentiam-se
sufocados por causa de vários dias de chuva que os teriam impe-
dido de sair para passear. Ao som da campainha um paramédico
no final de seus quarenta sai da sala de enfermagem do lobby
térreo com a chave na mão. Ele havia descido do segundo andar
onde Yeonghye estava internada, pois a secretaria avisara de sua
chegada.

138
A Vegetariana

O paramédico abre a porta, sai e se vira com movimentos


muito ligeiros, enfia a chave e tranca a porta. Ressalta aos olhos
uma interna jovem que olha para ela com a face esmagada contra
o vidro fechado. São dois olhos vazios que a observam como se a
perfurassem. Um olhar obscessivo que uma pessoa sadia jamais
poderia lançar a outrem.
— O que a minha irmã está fazendo agora? — pergunta,
enquanto sobem as escadas.
O paramédico se volta e meneia a cabeça.
— Nem me fale. Agora quer até tirar a agulha do soro. A
gente tem que amarrá-la na sala de repouso para injetar calmante
e colocar soro. Nem sei de onde vem tanta força para se debater
daquele corpinho…
— Então, ela está na sala de repouso agora?
— Não, acordou agorinha e a levamos para o quarto. Não
disseram que às duas horas vão colocar sonda pelo nariz?
Ela chega ao lobby do segundo andar atrás do paramédico.
Em dias claros, esse era um espaço que transmitia energia, com
internos idosos tomando sol no banco comprido ao lado da janela,
internos concentrados em jogar tênis-de-mesa e música alegre
saindo da sala de enfermagem. Mas a chuva parecia ter engolido
toda aquela vitalidade. Está bem tranquilo, talvez porque a
maioria dos internos estivesse em seus quartos. Pacientes com
Alzheimer de ombros encolhidos mordem as unhas ou olham
para os próprios pés, e alguns internos se postam em silêncio
grudados nas janelas. A mesa de ping-pong também está vazia.
Ela olha para um ponto no final do corredor oeste, onde o
sol da tarde costumava jorrar forte através de uma janela bem
grande. Ela se lembra de quando veio visitá-la em março, logo
antes de ela desaparecer no bosque chuvoso. Yeonghye não veio
vê-la na sala de visitas daquela vez. Do outro lado do telefone, a
enfermeira responsável dissera que, estranhamente e por vários
dias, ela não estava querendo sair do bloco. Mesmo na hora do
passeio livre, de que os internos mais gostam, ela permanecia lá
dentro. Como ela suplicou para apenas vê-la, de qualquer jeito

139
Han Gang

que fosse, pois havia viajado uma distância grande, o paramédico


descera à secretaria para levá-la até a irmã.
Ao descobrir a figura de uma mulher bizarra plantando
bananeira naquele ponto do corredor oeste, não podia imaginar
que fosse a Yeonghye. Somente quando a enfermeira com quem
falara há pouco no telefone a guiou para lá é que pode certificar-
-se dos cabelos longos e fartos da Yeonghye. O rosto estava todo
vermelho devido ao sangue acumulado, pois estava de ponta
cabeça com os ombros apoiados no chão.
Ela está assim já há trinta minutos, disse a enfermeira como
se estivesse aflita.
Começou há dois dias. E não é que esteja inconsciente, e
nem é que tenha perdido a fala… É diferente de outros pacientes
de esquizofrenia catatônica. Ontem inclusive, botamos ela
no quarto à força, e nem adiantou, porque ficou plantando
bananeira dentro do quarto… E nem por isso podemos deixá-la
imobilizada.
E, antes de voltar para a sala de enfermagem, deixando-as
sozinhas, acrescentou:
Se empurrar um pouquinho forte ela cai. Se não conseguir
convencê-la com palavras, experimente empurrar. Estávamos
mesmo prestes a empurrá-la para dentro.
Deixada sozinha, ela se agachou e tentou fazer com que os
seus olhos se encontrassem com os da Yeonghye. O rosto das
pessoas, não importa quem sejam, parece ser diferente de ponta
cabeça. O rosto da irmã, pouco volumoso, estava com a pele
puxada para baixo, deixando-a esquisita. Os olhos, brilhando
vivamente, miravam algum ponto do vazio. Nem parecia ter
percebido que a irmã chegara.
…Ei, Yeonghye.
Como não houvesse resposta, chamou mais uma vez num
tom um pouco mais alto:
Yeonghye! O que está fazendo? Fique de pé. Deitou a mão
sobre a sua face quente e enrubecida. Fica de pé, Yeonghye. Não
dói a cabeça? Veja, o rosto está todo vermelho!

140
A Vegetariana

Finalmente ela empurrou-a com força. E, de fato, a irmã


desmoronou de uma vez começando pelas pernas. Então, passou
o braço sob o pescoço dela e ergueu o rosto.
…Mana…
Um sorriso se esboçou no rosto de Yeonghye:
Quando chegou?
O rosto brilhava como se tivesse acordado de um sonho
bom.
O paramédico que as observava aproximou-se e levou-as
para uma sala de visitas que ficava num canto do lobby, e era
destinada a pacientes graves a ponto de não conseguirem descer
até o térreo. Parecia também servir para consultas médicas.
Quando ela ia abrindo as trouxas de comida sobre a mesa,
Yeonghye disse:
Mana. Agora não precisa mais trazer essas coisas. E sorriu:
Eu, eu não preciso mais comer.
Mas o que é que você está dizendo?
Ela encarou a irmã como que enfeitiçada. Fazia muito tempo,
ou melhor, era talvez a primeira vez que via uma expressão tão
jovial no rosto da irmã. E perguntou:
Afinal de contas, o que é que estava fazendo àquela hora?
…Mana, você sabia? perguntou Yeonghye, em vez de
responder.
…O quê?
É que eu não sabia. Pensava apenas que as árvores ficavam
em pé, retinhas, e só isso… Só agora é que pude ver. Na verdade,
estavam todas se apoiando na terra com os dois braços. Veja,
veja aquilo, não é incrível? Levantou-se bruscamente e apontou
para a janela: Todas, todas elas estão plantando bananeira.
Yeonghye deu uma risada. Somente então, ela percebeu que
a expressão da irmã estava parecida com a de um certo momento
de sua infância. Os olhos, com a pálpebra sem dobra, ficavam
fininhos e todo pretinhos, e era quando desatava da boca uma
risada que não tinha fim.

141
Han Gang

Sabe como foi que eu entendi isso? Foi em um sonho, sabe,


eu estava plantando bananeira… Do meu corpo cresceram folhas
e das minhas mãos brotaram raízes… que foram se enfiando
dentro da terra. Sem fim, sem fim… Abri a perna porque as flores
queriam brotar da minha virilha, abri as pernas bem abertas…
Ela fitou estupefata os dois olhos de uma Yeonghye eufórica.
œ
— Obrigada pelo trabalho de vocês — ela cumprimenta a
enfermeira-chefe.
Estende os bolinhos de arroz doce e cumprimenta também
as outras enfermeiras, uma a uma. Enquanto troca perguntas e
respostas sobre o estado da Yeonghye como de costume, uma
interna na casa dos cinquenta, que sempre a confunde com
uma enfermeira, aproxima-se com passos curtos e ligeiros e
cumprimenta-a com a cabeça.
— Estou com dor de cabeça, por favor, peça ao médico para
trocar o remédio.
— Não sou enfermeira. Vim visitar a minha irmã.
Os olhos da mulher cravam nos dela, suplicantes:
— Por favor, me ajude… Não dá para viver com esta dor de
cabeça. Como vou viver desse jeito?
Nesse momento, um interno com uns vinte e poucos anos
se posta bem atrás dela, quase grudando em suas costas. É
uma coisa corriqueira na clínica, mas ela começa a se sentir
ameaçada. Os internos ignoram o distanciamento adequado a
ser guardado entre corpos, e ignoram o tempo apropriado de
fixar o olhar em algum ponto. Há o grupo daqueles que possuem
o olhar vago, enfiados em mundos que são só deles, mas também
há outros internos com olhares bem focados a ponto de serem
confundidos com a equipe médica. Do modo como havia sido
sua irmã durante um tempo.
— Enfermeira, por que é que o deixam impune? Ele não para
de bater em mim — gritou uma interna na casa dos trinta com
uma voz cortante, para a enfermeira-chefe.

142
A Vegetariana

A síndrome de perseguição daquela interna parecia estar


piorando a cada vez que ela voltava.
Ela cumprimenta mais uma vez as enfermeiras com um
aceno de cabeça.
— Vou tentar, em primeiro lugar, falar com a minha irmã.
Pela expressão das enfermeiras, podia-se sentir que esta-
vam já cansadas da Yeonghye. Ninguém acreditava que uma
reles tentativa de convencimento por parte da irmã mais velha
surtisse algum efeito. Mas ela se afasta, esquivando-se de fininho
dos outros internos e tomando cuidado para não roçar o corpo
de ninguém. Segue pelo corredor leste. Quando põe os pés no
quarto que estava aberto, uma mulher de cabelos curtinhos
salta, reconhecendo-a:
— Olá, tudo bem?
É Hiju, que está se tratando de hipomania juntamente com o
alcoolismo. Apesar do seu corpo atarracado e voz rouquenha, é
uma mulher um tanto graciosa por causa dos olhinhos arredon-
dados. Uma ação promovida pela clínica consistia em mobilizar
internos com um bom grau de funcionalidade para cuidar de
doentes de Alzheimer, em troca de uma mesada, e, como a
Yeonghye não conseguia se movimentar bem porque não comia
há um bom tempo, estava recebendo cuidados da Hiju.
— Obrigada pelo trabalho que você tem tido…
No momento em que ela deu um sorriso, a mão suada da
Hiju pegou a sua mão. Lágrimas se formaram dentro dos olhos
arredondados da Hiju.
— …Como ela está?
— Agorinha mesmo vomitou um pouco de sangue. Como
não come, dizem que o ácido estomacal corroe o estômago e
provoca convulsão estomacal. Mas isso pode provocar sangra-
mento também?
O choro da Hiju começa a ficar mais perturbado.
— Não era assim quando comecei a cuidar dela… Será que se
eu tivesse cuidado melhor dela, ela estaria melhor? Não pensei

143
Han Gang

que chegaria a este ponto. Era melhor eu não ter aceitado cuidar
dela, não sofreria tanto assim.
Ela largou a mão da Hiju, cuja voz ficava cada vez mais
exaltada, e se aproximou da cama, passo a passo. Preferia que os
seus olhos não enxergassem. Desejava que alguém lhe tapasse
os olhos.
Yeonghye está deitada bem retinha. O olhar parecia estar
direcionado para fora da janela, mas, se se reparasse bem, ela
não estava olhando para nada. A figura lembrava mais uma
refugiada esfaimada de uma catástrofe, sem nenhuma carne no
rosto, pescoço e ombros, nos braços e nas pernas. Nota-se uma
longa penugem crescida nas faces e nos braços. Uma penugem
do tipo que cresce no corpo de bebês. O médico explicou que
isso se devia a um desequilíbrio hormonal causado pela longa
abstinência da comida.
Será que estaria voltando a ser uma criança? A menstruação
já há muito cessara, e, como o peso do corpo não chegava nem
a trinta quilos, não haveria de restar seios. Estava deitada como
a figura de uma menina bizarra em quem todo o crescimento
secundário desaparecera.
Ela descobre o lençol branco. Vira o corpo da irmã que não
esboça o menor movimento, e verifica se não surgiu alguma
inflamação nas costas ou na região do cóccix causada pela
pressão. A região que inflamara na última vez não piorou.
Seu olhar se detém na mancha mongólica nítida e verde clara
estampada no meio da nádega onde restaram apenas ossos. A
imagem das flores, que se espalhavam pelo corpo todo como
se dali partissem, cobre repentinamente os seus olhos e logo
desaparecem.
— Obrigada, Hiju.
— …Limpo todo dia com lenço molhado e bato um talco aí,
mas é que o tempo anda muito úmido e não sara logo.
— Obrigada mesmo.
— Antes era difícil dar banho nela, mesmo com ajuda da
enfermeira, mas agora nem é trabalho de tão leve que está.

144
A Vegetariana

Parece que estou voltando a cuidar de uma criança. Hoje mesmo


estava pensando em dar banho nela. Não queria deixar de dar
esse banho pela última vez, já que parece que vão transferi-la
para outro hospital…
Os olhos grandes da Hiju ficaram novamente vermelhos.
— Tá bom. Vamos dar banho juntas mais tarde.
— Sim, disseram que às quatro vai ter água quente…
Hiju limpa repetidamente os olhos avermelhados.
— Então, até mais tarde.
Ela segue com a cabeça a saída de Hiju e volta a cobrir a
irmã com o lençol. Quando foi embrulhar os pés com o lençol
para que não ficassem para fora, nota as marcas das veias estou-
radas. Os braços e os pés, e até mesmo as veias dos calcanhares,
nada estava inteiro. Pois injeção intravenosa era o único meio de
fornecer proteínas e glicose, mas já não havia mais onde espetar
a agulha. O último recurso seria fazer uma ligação na veia
cava pelo ombro, mas o médico responsável telefonara ontem
dizendo que seria preciso transferi-la para um hospital grande,
pois se tratava de um procedimento perigoso. Disse que tentou
várias vezes introduzir uma longa sonda pelo nariz para passar
mingau para o esôfago, mas não conseguiu porque a Yeonghye
fechava a garganta. Por isso, a equipe médica da clínica estava
para desistir do caso depois da última tentativa de hoje.
Quando ela visitou a clínica no dia agendado, pouco
depois da irmã ser descoberta no bosque, uns três meses atrás,
disseram-lhe que o médico responsável queria lhe falar. Ela ficou
perturbada, pois nunca mais o vira depois da primeira consulta
quando foi feita a internção.
…Aqui na clínica tomamos cuidado a cada refeição, pois
sabíamos que ela se sentia insegura emocionalmente quando via
carne. Mas agora, ela nem vem até o lobby na hora da refeição,
e não come nem quando a gente leva a bandeja no quarto. Já faz
quatro dias. Está começando a ficar desidratada. E reage violen-
tamente quando a gente tenta lhe dar soro… Além disso, tenho
minhas dúvidas se ela toma os remédios.

145
Han Gang

O médico suspeitava que talvez a Yeonghye não tivesse


tomado nenhum dos remédios durante todo aquele período.
Também recriminou a si mesma por ter relaxado ao ver que a
evolução da irmã era boa. A enfermeira tentava certificar-se de
que a Yeonghye tomara o remédio pedindo para ela levantar
a língua, mas não era obedecida. Quando levantaram-lhe a
língua à força e iluminaram a boca com uma lanterna de mão, os
comprimidos estavam lá.
Naquele dia, ela perguntou a Yeonghye deitada no quarto
com a agulha espetada nas costas da mão:
Por que fez isso? O que estava fazendo no bosque escuro?
Não ficou com frio? E se você pega uma doença grave?
O rosto estava bem magro, e os cabelos não penteados
estavam desalinhados como uma touceira de alga marinha.
Tem que comer. Digamos que eu entenda que você não goste
de carne. E por que não quer comer até outras coisas?
Yeonghye moveu a boca silenciosamente. “Estou com sede.
Me dá água.” Ela foi até o lobby e trouxe água. Depois de tomá-la,
perguntou com uma certa falta de ar:
Conversou com o médico, mana?
Sim, conversei. Mas então, por que não?…
A Yeonghye interrompeu-a:
Ele disse que eu, que as minhas entranhas já regrediram, né?
Ela perdeu a fala. O rosto magro se aproximou dela.
Mana, eu já não sou um animal.
Disse olhando ao redor no quarto em que não havia ninguém
mais, como se contasse um grave segredo:
Não preciso mais comer comida ou coisas do gênero. Eu
posso viver. Basta ter sol.
O que você está dizendo? Está pensando mesmo que virou
uma árvore? Como é que uma planta fala? Como é que uma
planta pensa?
Yeonghye fez brilhar os olhos. Um sorriso indecifrável
iluminou claramente o rosto:

146
A Vegetariana

Você está certa, mana… logo logo, tudo vai desaparecer, a


fala, os pensamentos. Já, já.
Soltou uma risada, e respirou ofegante:
Vai ser já, já mesmo. Espere só um pouquinho, mana.
œ
O tempo corre.
Os trinta minutos dados a ela não eram um tempo longo. Do
lado de fora, a chuva parece estar ficando mais copiosa. A ver
pelas gotas de chuva penduradas na tela de proteção, a chuva
devia ter parado por um tempo antes de recomeçar.
Ela se senta na cadeira posta na cabeceira da Yeonghye. Abre
a sacola e tira vários frascos grandes e pequenos. Fica obser-
vando os olhos vazios da irmã que não olham para nada, depois
abre, primeiro o frasco menor, quadrado. Um aroma gostoso se
espalha pelo ar do quarto úmido.
— Ei, Yeonghye, é pêssego. É pêssego-ouro em conserva.
Você gosta desse. Você comprava isso para comer mesmo no
tempo do pêssego. Parecia criança.
Espeta com o garfo um pedaço do pêssego macio e aproxima-
-o do nariz da Yeonghye.
— Cheire… Não dá vontade de comer?
O frasco seguinte contém pedaços de melancia cortada em
cubos, num tamanho bom de se comer.
— Não se lembra que quando era criança, você queria sem-
pre cheirar a melancia quando eu partia uma ao meio? Tinha
melancia que se partia por inteiro, só de dar um pequeno corte,
e o cheiro doce se espalhava pela casa.
A irmã não esboça qualquer movimento. Será que é assim
que a gente fica quando não come por três meses? Até a cabeça
estava pequena, e o rosto estava tão miúdo a ponto de não se
poder dizer que se tratava de um rosto de adulto.
Cuidadosamente ela esfrega o pedaço de melancia nos
lábios da irmã. Tenta abrir a boca usando dois dedos, mas ela
está fechada firmemente.

147
Han Gang

— …Ei, Yeonghye — chama-a baixinho.


— Responda, Yeonghye.
Ela segura o impulso de sacudir os ombros duros e de
abrir-lhe a boca à força. Tem vontade de dar um grito no ouvido
da irmã até estourar-lhe os tímpanos. O que é que você está
fazendo? Está ouvindo o que eu digo? Quer morrer? Quer mesmo
morrer? E fica a mirar em vão a própria ira que sobe fervendo
como uma espuma quente dentro de si.
œ
O tempo corre.
Vira o pescoço e olha pela janela. A chuva parece ter parado
mesmo. Mas o céu continua nublado e as árvores molhadas estão
caladas. Por ser o segundo andar, dava para avistar o Monte
Chukseong até bem longe encosta abaixo, com a sua floresta
bem densa, conhecida por seus poderes terapêuticos. A floresta
enorme da encosta também está calada.
Ela tira a garrafa térmica da sacola. Verte o chá de marmelo
no copo de aço que trouxe de casa.
— Experimente, Yeonghye. Está fortinho.
Aproxima os próprios lábios do copo e toma um golezinho.
Um sabor doce e cheiroso fica-lhe na ponta da língua. Então,
verte o chá no lencinho de mão e umedece os lábios da irmã com
ele. Como era de se esperar, não há qualquer reação.
— Está querendo morrer desse jeito? Não é isso, né? Se quer
simplesmente virar uma árvore, você tem que comer. Tem que
viver — diz.
Para de falar e prende a respiração. Pois dentro de si uma
suspeita que não queria admitir mostrara a cabecinha. Será que
ela estava errada? Não será que desde o início a Yeonghye estava
querendo justamente isso, a morte?
Não é, assim ela repete para si mesma. Não é que você está
querendo morrer.
Antes de fechar definitivamente a boca, isto é, mais ou
menos um mês atrás, Yeonghye dissera a ela:

148
A Vegetariana

Mana, me tira daqui, sussurou com uma cara parecendo


outra pessoa de tão completamente magra que estava. A fala
ficava entrecortada toda hora como se lhe custasse falar longa-
mente, e uma respiração ofegante se misturava asperamente às
palavras:
As pessoas, elas não param de falar para eu comer… me
obrigam a comer, mas não tenho vontade. Da outra vez, comi e
vomitei… Ontem me deram injeção para dormir logo depois de
comer. Mana, eu não gosto dessa injeção, não gosto mesmo… Me
tira daqui. Eu, eu não quero ficar aqui.
E ela respondera segurando a sua mão esquálida:
Agora você não está nem conseguindo andar direito. Pelo
menos, é o soro que está te segurando… Se você vier para casa,
vai comer? Se prometer que comerá, eu peço alta.
E então ela não deixara de notar que nos olhos da Yeonghye
uma luz se apagou naquele momento.
Responda. Só se você prometer.
Yeonghye virou a cabeça para um lado esquivando-se dela e
disse com uma voz quase inaudível:
…Mana, você também é igual.
O que está dizendo? Eu…
Ninguém consegue me entender… O médico, a enfermeira,
são todos iguais… E nem tentam entender… Só dão remédios e
injeção.
A voz era lenta e baixa, mas decidida. Num tom que não
poderia ser mais frio. Por fim, ela acabou soltando o grito que
vinha segurando:
É porque você! Pode morrer!
Yeonghye desvirou a cabeça e ficou fitando-a como se olhas-
se para uma estranha. E, finalmente, a Yeonghye fechou de vez
a boca com a última pergunta:
…Por que não posso morrer?
œ
Por que não posso morrer?

149
Han Gang

Qual teria sido a resposta certa para essa pergunta? Será que
ela deveria ter se zangado com todas as forças, indagando se
aquilo era coisa que se dissesse?
Uma vez, há muito tempo, ela se perdeu numa montanha
junto com a irmã. A Yeonghye que então tinha nove anos disse:
Mana, não vamos voltar, não. E ela não conseguira compreender
aquelas palavras então.
O que está dizendo? Vai escurecer logo. Temos que encontrar
o caminho rápido.
Somente passados muitos e muitos anos é que ela entendeu
a Yeonghye de então. As surras do papai eram dirigidas somente
à irmã. O irmãozinho também apanhava, mas também saía ba-
tendo nas crianças do bairro no mesmo tanto e por isso devia
sofrer menos. E ela era a filha mais velha que preparava a sopa
cura-ressaca para o papai no lugar da mãe sempre cansada, de
modo que ele era cuidadoso com ela de um jeito ou de outro. A
Yeonghye, que era dócil, mas incomplacente, e por isso não con-
seguia se curvar aos caprichos do pai, nunca mostrara qualquer
resistência e devia ter simplesmente absorvido tudo aquilo até
os ossos. Agora ela sabia. Que o zelo praticado por ela como fi-
lha mais velha não era maturidade precoce e sim covardia. Que
era apenas um modo de sobrevivência.
Será que não teria havido como evitar? Que se impregnas-
sem nos ossos da Yeonghye coisas que ninguém poderia suspei-
tar? A figura de costas da Yeonghye menina que ficava no portão
sozinha olhando para fora quando estava para escurecer?
Ao final, conseguiram descer por uma rua no outro lado da
montanha, pegaram carona com um camponês que ia para um
vilarejo e correram por uma rua desconhecida ao entardecer.
Ela se sentiu aliviada, mas a irmã não ficou feliz. Ficou apenas
olhando os álamos que pareciam se incendiar ao por do sol, sem
dizer palavra.
œ
Será que tudo teria sido diferente se naquela noitinha elas
tivessem fugido de casa para sempre, como queria Yeonghye?

150
A Vegetariana

Será que tudo teria sido diferente se naquela reunião de


família ela tivesse segurado o braço do pai com mais força, antes
que ele a esbofeteasse?
Quando a irmã trouxe o cunhado para conhecê-la, ela não
tinha simpatizado muito com ele por causa de um certo ar de
frieza. Será que tudo teria sido diferente, se ela tivesse sido
contra o casamento seguindo o seu sexto sentido?
Tinha vezes em que ela ficava assim, absorta em rememorar
as váriaveis que poderiam ter influenciado no destino da irmã.
Mas ficar analisando as pedrinhas do tabuleiro postas na vida
dela, de trás para diante, uma por uma, não era útil e nem pos-
sível. Mas não conseguia parar de pensar naquilo.
Se ela mesma não tivesse se casado com ele.
E finalmente, quando o pensamento chegava a esse ponto, a
cabeça ficava pesada e paralisada.
œ
Ela não tinha certeza de que o amava. Casou com ele mesmo
sabendo disso subconscientemente. Será talvez que ela estava
precisando de algo que a alçasse para mais alto? Ainda que o
que ele fazia não acrescentasse economicamente, ela gostava do
ambiente da família dele formada em sua maioria por educa-
dores e médicos. Ela se esforçou para acompanhar o seu jeito
de falar, os seus gostos, o seu paladar e a sua cama. Durante
um certo tempo, no início, ela até teve algumas discussões com
ele, pequenas e grandes, do mesmo modo que outros casais, mas
em pouco tempo ela acabou desistindo de coisas de que podia
desistir. Mas será que isso realmente foi pelo bem dele? Durante
os oito anos que viveu junto dele, será que ela não o frustrou
tanto quanto ele a frustrara?
Ele telefonou para ela uma única vez, há uns nove meses. Era
perto da meia-noite. Talvez estivesse no interior, pois as fichas
iam caindo em intervalos curtos.
Estou com saudades de Jiu.

151
Han Gang

A voz dele, familiar, baixa e tensa de quando tentava aparen-


tar tranquilidade a custo, apunhalou o seu peito como uma faca
cega.
…Será que não pode me deixar vê-lo, só uma única vez?
Era bem próprio dele. As palavras se referiam somente à
criança, pulando qualquer confissão de desculpas, qualquer
súplica de perdão. Nem ao menos perguntou o que acontecera
com a Yeonghye.
Ela sabia quão sensível ele era. Quão fácil era para ele ter
o orgulho ferido e quão facilmente ele era capaz de desistir
de tudo. Que por causa de uma única negativa dela ele levaria
muito tempo para ligar novamente.
Mesmo sabendo, não, por saber disso, é que desligou o tele-
fone sem dar resposta.
Cabine de telefone público no meio da noite. Tênis roto,
roupa surrada, o rosto de um homem de meia-idade em de-
sespero. Balançou a cabeça para apagar essas imagens da sua
imaginação. A pose dele querendo voar como um pássaro por
cima do parapeito da sacada no apartamento da Yeonghye se
sobrepôs levemente àquelas imagens. Ele havia colocado tantas
coisas com asas dentro de seus vídeos, mas ele mesmo não con-
seguiu sair voando quando mais precisava.
Ela se lembrou nitidamente dos olhos dele da última vez.
Aquele rosto endurecido de pânico era estranho para ela. Não
era o rosto de alguém que ela se esforçara tanto para admirar,
perseverara e despedaçara o próprio corpo para cuidar. Ele que
ela pensava conhecer não passava de uma mera sombra.
Eu não o conheço — disse ela, pressionando com força o
telefone que acabara de desligar.
Não há necessidade de pedir perdão ou ser perdoado. Pois
não o conheço.
Quando o telefone começou a tocar novamente, tirou a
tomada do aparelho. Voltou a plugar o telefone na manhã se-
guinte, mas como previu, ele não voltou a ligar.
œ

152
A Vegetariana

O tempo corre, como sempre.


Yeonghye está agora de olhos fechados. Será que adormeceu?
Será que sentiu o cheiro das coisas que ela encostara em seus
lábios agora há pouco?
Ela vê as maçãs do rosto saltadas, os olhos fundos e as faces
bem cavadas. Sente a própria respiração ficar curta. Levanta-se
e vai até a janela. Aos poucos o cinza escuro do céu vai afinando
e o ar clareando. A floresta de verão do Monte Chukseong está
começando a se avivar reencontrando a sua luz. O local onde
Yeonghye foi descoberta naquela noite deve ser em algum ponto
daquela encosta.
Ouvi um som — respondera a irmã com o soro espetado na
mão.
Só fui lá porque ouvi um som me chamando… E como o som
parou… Fiquei esperando, só isso.
Os olhos da Yeonghye de repente brilharam quando ela
perguntou:
Mas o que é que você ficou esperando? — estendeu a mão
que estava livre da agulha e agarrou a mão dela com tanta força
que a desconcertou.
Eu ia derreter na chuva… derreter totalmente… e entrar
para dentro da terra. Era o único jeito, de eu brotar de novo, ao
contrário.
A voz exaltada da Hiju assalta subitamente a sua memória.
— E agora? A Yeonghye, disseram que ela pode morrer, né?
O seu ouvido entope como quando o avião decola veloz-
mente.

Ela guarda uma lembrança inconfessável. Talvez seja assim,


mesmo daqui para frente.
Há dois anos, mês de abril, isto é, primavera do ano em
que ele filmou o vídeo da Yeonghye. Ela teve um sangramento
vaginal durante quase um mês. Cada vez que lavava a roupa de
baixo molhada de sangue, ela não entendia o motivo porque

153
Han Gang

vinha-lhe à mente o sangue fresco que esguichara para cima do


pulso da irmã vários meses atrás. Com medo de ir ao hospital,
ficou adiando a consulta dia após dia, enquanto pensava: “Se
for uma doença grave, quanto tempo me restará? Um ano? Seis
meses? Ou três meses?” Na época, a primeira coisa de que ela se
deu conta, pela primeira vez e vividamente, foi o longo tempo
que viveu junto dele. Um tempo em que a alegria e a espon-
taneidade haviam sido eliminadas. Um tempo que se sucedeu
somente pela perseverança e solicitude dela com todo o zelo que
podia. Este tinha sido o tempo que ela mesmo havia escolhido.
Finalmente, na manhã em que ia à clínica onde havia ganhado
Jiu, ela esperava um trem excepcionalmente demorado na pla-
taforma descoberta da estação Wangsimni da linha federal. Do
outro lado viam-se prédios temporários de armação de ferro
muito decaídos, e, por entre as vigas de madeira ao seu redor,
por onde não passam carros, um mato não podado já estava bem
alto. De repente ela se perturbou com a sensação de que jamais
havia vivido neste mundo. Era verdade. Ela nunca havia vivido.
Desde os tempos remotos de criança de que podia se lembrar,
havia somente suportado. Ela se acreditava um ser humano
bondoso, e nunca prejudicou ninguém seguindo essa crença.
Era honesta e zelosa, bem sucedida a seu modo, e haveria de ser
assim até o fim. Mas não conseguia entender. Diante daqueles
prédios temporários decaídos e o mato crescido, ela não passava
de uma criança que nunca vivera uma única vez que fosse.
Ao se deitar na maca da clínica escondendo o tremor e a
vergonha, o médico de meia-idade enfiou um laparoscópio frio
bem no fundo de sua vagina e retirou um pólipo grudado ali em
formato de uma pequena língua. Ela se contorceu por causa da
dor lancinante.
Isso era a causa a hemorragia. Agora eu o tirei completa-
mente, de modo que por alguns dias a hemorragia deve piorar,
mas depois vai parar. Não precisa se preocupar, pois não há
nada de errado no ovário.
Naquele momento, sentiu uma inesperada dor. Restava
ainda um tempo indeterminado que ela teria de viver e aquilo

154
A Vegetariana

não lhe era nem um pouco prazeroso. Compreendeu que a possi-


bilidade de uma doença grave com a qual se preocupara durante
um mês não passava de uma angústia trivial. Quando se postou
novamente na plataforma da estação Wangsimni no caminho
de volta, as pernas vacilavam, e não era somente por causa da
dor onde ela acabara de passar por um procedimento. Quando
finalmente o trem avançou para dentro da plataforma junto com
um estrondo, ela deu passinhos claudicantes se escondendo
atrás do banco de ferro. Sentira medo de que alguém de dentro
dela a lançasse na frente daquela carroceria dura.
Como explicar o tempo que ela suportou durante os quatro
meses que se seguiram? O sangramento continuou por umas
duas semanas e depois parou com a cicatrização. Mas sentia
que a ferida no corpo continuava aberta. Parecia que a ferida se
tornara maior do que o próprio corpo, e o corpo inteiro parecia
estar sendo sugado para dentro daquele buraco escuro.
Ela ficou olhando em silêncio a primavera partir e o verão
chegar. As roupas das moças que saíam da loja com sacolas
de cosméticos foram ficando mais coloridas e curtas. Como
sempre, ela sorria para as clientes, recomendava produtos extro-
vertidamente, dava descontos adequados e oferecia generosos
brindes e amostras grátis. Colava cartazes de produtos novos
em lugares bem visíveis e substituía esteticistas com reputação
ruim entre as clientes sem provocar transtornos. Mas, quando
deixava a loja na mão das funcionárias ao entardecer e saía para
pegar Jiu, estava cansada feito um túmulo. Caminhando por um
canto da avenida numa noite de verão repleta de música e casais
enamorados, sentia que o buraco escuro de antes continuava ali
de boca aberta querendo sugá-la. Atravessava ruas arrastando o
corpo molhado de suor.
Foi quando aquele verão tão quente e úmido começou a
amainar pelas manhãs e às noitinhas. Mais uma vez ele entrou
em casa de madrugada depois de vários dias fora e a abraçou
como um ladrão, e ela o empurrou.
Estou cansada.
Estou cansada mesmo.

155
Han Gang

E ele dissera baixinho:


Aguente só uns instantes.
Nesse instante ela se lembrou. Que ouvira essas palavras
inúmeras vezes em meio-sono. Que aguentara aquilo graças
à ideia em meio-sono de que, passados aqueles instantes, ela
ficaria em paz por algum tempo. Que procurava apagar a dor e
até mesmo a humilhação com um sono pesado. E que à mesa no
dia seguinte era tomada por uma vontade irrefletida de furar o
próprio olho, ou de despejar a água fervente da chaleira sobre a
própria cabeça.
Depois que ele adormeceu o quarto ficou em silêncio.
Deitou de frente o corpo da criança que estava de lado, e viu
que os perfis do pai e do filho tenuemente visíveis no escuro
eram lamentavelmente assemelhados.
Não havia nada que tivesse que ser problema. Era fato.
Bastava ir vivendo até o fim, como vivera até agora. Não havia
nenhum outro caminho a não ser aquele.
O sono fugira por completo, mas em seu lugar um cansaço
pesado apertava-lhe a nuca. Sentia que a umidade do corpo
havia secado totalmente. A carne ressecada dessa maneira
parecia estar em farrapos.
Saiu do quarto, ficou olhando pela janela da sacada azul-
-negra. Olhou ao redor como se tivesse entrado na casa pela
primeira vez, como se os brinquedos que Jiu largara no chão, o
sofá e a televisão, as portinhas pretas fechadas da pia da cozinha
e as manchas de sujeira no forno de microondas fossem objetos
que via pela primeira vez. Sentiu uma estranha dor no peito,
uma pressão como se a casa estivesse aos poucos se encolhendo
e se apertando contra o seu corpo.
Abriu o guarda-roupa. Tirou uma camiseta roxa de algodão
desbotada até não poder mais. Vestia-a dentro de casa com
frequência porque o filho gostava dela desde os tempos em que
o amamentava. Gostava de vesti-la quando estava um pouco
adoentada, por causa da sensação de conforto proporcionado
pelo cheiro de leite materno e abdômen que conseguia sentir

156
A Vegetariana

nela, ainda que tivesse sido lavada tantas vezes. Mas, desta vez
não surtiu efeito. A dor no peito foi piorando. Teve de respirar
fundo repetidas vezes sentindo falta de ar.
Sentou-se meio de lado na ponta do sofá. Tentou acalmar
a respiração seguindo com os olhos o ponteiro do relógio que
girava. Mas isso não foi possível como queria a sua vontade.
De repente, teve um déjà-vu como se tivesse experimentado
este momento inúmeras vezes. Uma certeza cheia de dores se
postava à frente dela como se tivesse sido preparada desde há
muito, como se estivesse esperando apenas por este momento.
Todas essas coisas são sem sentido.
Mais do que isso, não posso mais aguentar.
Não posso ir mais adiante.
Não quero ir.
Olhou ao redor para os objetos da casa mais uma vez.
Aquelas coisas não eram suas. Do mesmo jeitinho que a sua vida
não era sua.
Quando, parada na plataforma da linha federal numa tarde
de primavera, sentiu que a morte havia se aproximado para
alguns dias à frente, quando acreditou que o sangue fresco
vazando sem fim do seu corpo provava isso, ela já havia compre-
endido. Que estava morta havia muito tempo. Que a sua vida
fatigante não passava de um teatro ou algo como um fantasma.
O rosto da morte que se postava ali ao seu lado era-lhe familiar
como um parente que voltava depois de ter ficado perdido por
muito tempo.
Levantou o corpo que começava a tremer parecendo
sentir frio e aproximou-se da porta do quarto onde deixava os
brinquedos. Retirou o móbile com enfeites que tinha pendurado
junto com o Jiu, num trabalho que consumira todas as noites
da semana anterior, e começou a desatar os nós. Como os nós
estivessem bem apertados, a ponta de seus dedos doía, mas
continuou desatando até o ultimo nó pacientemente. Empilhou
os enfeites de papel colorido e de celofane em forma de estrela

157
Han Gang

arrumando-os dentro da cesta, enrolou o barbante e colocou-o


no bolso da calça.
Enfiou a sandália no pé sem meia. Empurrou a porta pesada
do apartamento e saiu. Desceu do quinto andar até o térreo pelas
escadas. Estava ainda escuro. O enorme prédio de apartamentos
tinha apenas umas duas ou três janelas iluminadas. Continuou a
caminhar. Passou pela portinhola detrás do prédio e foi pisando
por uma ruela escura e estreita que subia em direção a uma
pequena montanha.
Por causa da escuridão azul-negra, a pequena montanha
detrás do prédio pareceu-lhe mais profunda. Era cedo, e até
os velhinhos diligentes que subiam nas primeiras horas da
madrugada para buscar água mineral da montanha estavam
dormindo. De cabeça baixa, caminhou, e caminhou mais.
Esfregou silenciosamente com as costas da mão o rosto que
estava encharcado por algo que não sabia se era suor ou lágrimas.
Sentiu uma dor que parecia mais um buraco a engoli-la por
inteiro, um medo violento, e uma estranha paz que se infiltrava
ao mesmo tempo.
œ
O tempo não para.
Ela volta para a cadeira. Abre a tampa do último frasco. Puxa
à força a mão endurecida da irmã e a faz acariciar a casca lisinha
das ameixas. Curva os dedos esquálidos e a faz pegar uma delas.
Ela não se esquecera que ameixa também era outra fruta de
que a Yeonghye gostava. Quando foi? Lembrava-se dela criança
fazendo rolar a ameixa dentro da boca sem morder, dizendo que
era boa a sensação da casca lisa. Mas agora a sua mão não mostra
reação. Vê que até as unhas ficaram finas, parecendo papel.
— Ei, Yeonghye.
A voz que ecoa pelo quarto silencioso está seca. Não se ouve
qualquer resposta. Encosta o rosto bem pertinho dela. Nesse
instante, as pálpebras se abriram como numa mentira.
— Yeonghye!

158
A Vegetariana

Olha para dentro dos olhos negros e vazios da irmã. Ali


havia somente o seu rosto refletido. Cai em desolação, tão
decepcionada quanto assustada.
— …Você enlouqueceu? Você enlouqueceu mesmo?
Pela primeira vez, joga a pergunta daquilo que não conse-
guira acreditar de jeito nenhum nesses últimos anos.
— …Você enlouqueceu mesmo?
Recua vacilante, sentindo um medo que lhe era desco-
nhecido. O silêncio do quarto onde não se ouve nem a respi-
ração tampa o seu ouvido como um algodão embebido em água.
— É, talvez… — murmura quebrando o silêncio.
— …Seja algo mais simples do que se pensa.
Hesitante, para de falar um instante:
— Enlouquecer. Ou seja…
Não continua. Em vez disso estende o braço e encosta o
polegar na depressão infranasal da irmã. Uma respiração fina
e quente faz cócegas no dedo dela, lenta e uniformemente. Os
lábios estremecem finamente.
Será que Yeonghye teria passado, já há muito, pela dor e
insônia pelas quais ela passa agora sem ninguém saber, e numa
velocidade maior que todos, avançado então um passo em
direção do além? Será que num dado momento naqueles dias
ela teria solto o fiozinho que a ligava ao cotidiano? De vez em
quando, nos três últimos meses de insônia, vinha pensando
dentro de sua confusão. Se não fosse por Jiu — se não fosse
pela responsabilidade que ele representava — talvez também
pudesse deixar escapar esse fio.
O único momento em que a dor para, como um milagre, é
depois de ela rir. Quando Jiu a faz rir por alguma palavra ou
gesto, ela fica repentinamente boba. Às vezes, até ri mais por
não conseguir acreditar que rira de verdade. Nessas horas, o seu
riso está mais próximo de confusão do que de alegria, mas Jiu
gosta quando ela ri desse jeito.
Assim? Mamãe riu porque eu fiz assim?

159
Han Gang

Jiu então começa a repetir os gestos de há pouco. Faz


biquinho simulando chifres na testa, finge que leva um baita
tombo no chão, encaixa a cara por entre as duas pernas e faz
gracinha com um sotaque engraçado “Mamãe, mã-mã-mãe”.
Quanto mais ela ri, mais Jiu aumenta a intensidade dos trejeitos.
Finalmente, reúne todas as receitas de todos os risos de que se
lembra e que tenham dado certo. Não há como ele saber que
este esforço desesperado de uma criança provoca nela, antes,
um sentimento de culpa, e que, ao final, embaça o riso dela.
Viver é uma coisa estranha. Assim pensa ela ao final daquele
riso. Mesmo depois de passar o que quer que tenha passado,
mesmo depois de ter experienciado coisas tão terríveis, o ser
humano come e dorme, evacua, lava o corpo e continua vivendo.
Às vezes até ri alto. Quando pensa que ele também deve estar
vivendo da mesma maneira naquele instante, uma compaixão
esquecida sobe melancolicamente de dentro dela, como um
sono.
Mas quando aquele pequeno corpo de cheiro doce deita-se
ao seu lado e o rosto de criança que ainda não cometeu pecado
cai no sono pesado, a noite recomeça, infalível.
Madrugada ainda escura. Três a quatro horas até que Jiu
acorde. Hora em que não se ouve qualquer sinal de coisa viva.
Longa como a eternidade e sem fundo como um pântano.
Quando ela se deita toda encolhida dentro da banheira vazia e
fecha os olhos, o bosque escuro sobrevém. As rajadas negras de
chuva fincam-se no corpo da Yeonghye como se fossem lanças e
a lama cobre-lhe os pés descalços e magricelos. Quando sacode
a cabeça para apagar a imagem, não se sabe por que, árvores de
verão no meio da tarde balançam à sua frente como enormes
chamas verdes. Será por causa da ilusão que a Yeonghye contou
a ela? O marulho das inúmeras árvores que viu durante a vida e
dos bosques que cobrem o mundo como um oceano implacável
queimam em chamas cingindo o corpo cansado dela. As cidades,
os vilarejos e as estradas estão apenas flutuando sobre o corpo
dela, feito ilhas e pontes, pequenas e grandes, sendo levadas

160
A Vegetariana

lentamente para algum lugar, empurradas por aquele marulho


incandescente.
Não há como ela saber. O que afinal o marulho daquelas
coisas está dizendo. E o que estavam dizendo aquelas árvores
que se levantavam todas juntas como chamas verdes dentro do
crepúsculo ao final da trilha na montanha daquela madrugada.
Aquelas não eram, de modo algum, palavras cálidas.
Tampouco eram palavras que a consolavam e a erguiam. Eram,
antes, palavras da vida, cruéis, frias a ponto de serem medonhas.
Ela não conseguia encontrar uma árvore que acolhesse a sua vida
para onde quer que olhasse. Nenhuma árvore queria recebê-la.
Estavam ali postas em pé de corpo inteiro, obstinadas e severas,
como se fossem enormes animais vivos.
œ
O tempo não para.
Ela fecha todas as tampas dos frascos. Guarda os frascos
dentro da sacola ordenadamente, começando pela garrafa
térmica. Fecha o zíper até o fim.
Em que espaço-tempo estaria enfurnada a alma da Yeong-
hye, para além daquele corpo que parece uma casca? Ela se
recorda da figura rígida, plantando bananeira. Será que a sua
irmã pensou que ali era algum lugar do bosque e não um chão
de cimento? Será que do corpo dela brotaram ramos fortes e
das mãos nasceram raízes brancas que foram penetrando e
agarrando a terra negra? Será que as pernas se espicharam para
o ar e as mãos se esticaram em direção ao núcleo da terra? Será
que a cintura dela, estendida e retesada, estava suportando o
repuxo daquelas duas direções com todas as suas forças? Será
que a luz do céu descia e atravessava abaixo o corpo dela,
enquanto a água subia da terra nadando ao contrário, abrindo-
-se em flor pela sua genitália? Será mesmo que essas coisas
estavam acontecendo dentro de sua alma quando escancarou
totalmente o corpo de ponta cabeça?
— Mas o que é isso? — as palavras escapam de sua boca. —
Você está morrendo! — a voz fica mais forte: — Você está, na

161
Han Gang

verdade, morrendo, deitada nessa cama, não é? É somente isso,


não é?
Morde os lábios com força. A pressão dos dentes fica mais
forte a ponto de fazer coagular o sangue naquele ponto dos
lábios. Segura o impulso de arrebatar o rosto insensível da
Yeonghye, de sacudir violentamente aquele corpo que parece
um fantasma e estraçalhá-lo no chão.
œ
Agora já não resta mais tempo.
Pega a sacola e põe a cadeira de volta no lugar. Sai de fininho
do quarto meio agachada. Vira a cabeça e vê o corpo da irmã
toda rígida e tesa, que continua deitado por baixo do lençol.
Morde os dentes mais fortemente do que há pouco. E leva seus
passos em direção ao lobby.
œ
A enfermeira de cabelo aparadinho vem ao lobby e se senta
na mesa segurando uma cesta de plástico branca e pequena. Há
vários tipos de cortadores de unha dentro dela. Os internos em
fila vão pegando um cortador cada um. Levam bastante tempo
para escolher como se cada um deles tivesse seu tipo preferido.
Num canto, uma auxiliar de cabelo preso vai cortando as unhas
dos internos com Alzheimer, um após o outro.
Ela fica parada olhando a cena em silêncio. Na clínica estão
proibidos objetos pontiagudos que possam causar ferimentos,
e coisas alongadas em forma de corda com que se possa apertar
o pescoço. Teme-se que firam alguém, mas teme-se mais que
firam a si próprios. Ela vê os rostos dos internos, cada qual
absorto na sua própria mão, para poder devolver os cortadores
de unha dentro do tempo dado. O relógio pendurado na parede
está marcando duas e cinco.
Pareceu ser o avental branco do médico que balançava
atrás da porta de vidro, e, em seguida, a porta do lobby se abriu.
É o médico responsável pela Yeonghye. Ele se vira e tranca a
porta com gestos bem habituados. Devia ser igual em qualquer

162
A Vegetariana

hospital, mas a autoridade do médico responsável numa clínica


psiquiátrica parece ainda mais absoluta. Possivelmente pelo
fato de os pacientes estarem presos ali dentro. Os internos
avançam em bando e o rodeiam como se tivessem descoberto
um salvador.
— Senhor, só um instante. O senhor falou com a minha
esposa no telefone? Se o senhor puder dar uma só palavrinha,
dizendo que eu posso ter alta…
Um interno de meia-idade enfia um bilhete no bolso do
avental do médico:
— Este é o telefone da minha esposa. Ãnn… se puder dar um,
um só telefonema…
Um interno idoso aparentando Alzheimer se interpõe,
interrompendo a fala do homem de meia-idade:
— Senhor, troque o meu remédio, por favor. Não paro de
ouvir… um tipo de uivo no meu ouvido.
Nesse meio tempo, aquela interna com síndrome de perse-
guição se aproxima do médico e começa a gritar:
— Senhor, não vai conversar comigo? Não consigo viver
assim, com aquele homem me batendo. Não, mas o que é isso?
Por que está me chutando? Se quiser reclamar, fale, não chute!
O médico a conforta com um sorriso descontraído e profis-
sional:
— Mas quando foi que eu a chutei, hein? Peraí, deixa eu
falar com este senhor primeiro. Desde quando o senhor tem este
barulho no ouvido?
Enquanto espera, batendo com um dos pés no chão —
tung tung —, o seu rosto amassado transparece mais miséria e
angústia do que agressividade.
Nesse momento a porta do lobby se abre novamente e entra
um médico que ela nunca vira antes.
É o clínico geral.
Avisa Hiju, que se achegara sem que ela percebesse. Parece
ser o clínico geral da clínica. Talvez possua uma cara natural-
mente jovem, mas aparentava ser bem moço e inteligente,

163
Han Gang

apesar da imagem de frieza. O médico responsável da Yeonghye


que finalmente se desvencilhara dos internos se aproxima dela
fazendo tak tak tak com a sola do sapato. Sem se dar conta, ela
dá um passo para trás, vacilante.
— Tentou falar com ela?
— …A meu ver, ela não parece estar consciente.
— Por fora parece isso mesmo, mas todos os músculos estão
tensos e duros. Isso significa que ela não está inconsciente e sim
concentrada em alguma coisa. Pela reação dela quando a gente
tenta quebrar esse estado à força, dá para ver que ela está total-
mente desperta.
O médico está sério, e pareceu um pouco tenso:
— Pode ser difícil de presenciar, na condição de uma
familiar. Se julgar que não pode ajudar, será melhor se retirar.
— Entendi, mas… — responde ela. — Acho que tudo bem.
œ
O paramédico carrega pelo ombro a Yeonghye que se agita,
caminha pelo corredor e entra em um quarto vazio. Ela também
entra acompanhando a equipe médica. O médico estava certo:
ela está com a consciência perfeitamente desperta. Luta com
movimentos largos e grosseiros, difícil de acreditar que estava
deitada daquele jeito, tão completamente imóvel. Explodem da
sua garganta berros que são na maioria ininteligíveis.
— …Soolta! …Soooolta!
Dois paramédicos e a auxiliar avançam na direção da irmã
que se debate e a deitam na cama. Amarram-lhe os braços e as
pernas.
— Fique lá fora. — diz a enfermeira-chefe a ela que se posta
ali vacilante.
— É difícil para uma familiar assistir. Fique lá fora.
Instantaneamente, os olhos da Yeonghye brilham em sua
direção. Os gritos se exacerbam, jorrando palavras desconexas.
Contorcendo os quatro membros amarrados, parece até que
vai se desvencilhar das amarras e avançar para cima dela. Ela se

164
A Vegetariana

aproxima da irmã sem se dar conta. Os braços finos, quase só


ossos, se contorcem. Da boca começa a sair uma espuma branca:
— Nãaao… quero…! — pela primeira vez, grita pronunciando
claramente as palavras, mas parecendo mais som de animal.
— Nãaao… quero…! Nãaao… quero… comer!
Ela abraça o rosto trêmulo da irmã com as duas mãos.
— Yeonghye, Yeonghye!
O seu olhar aterrorizado parece lhe arranhar as pupilas.
— Saia. Está só atrapalhando.
Os paramédicos levantam-na agarrando-a pelas axilas e
empurram-na para fora do quarto sem lhe dar possibilidade de
resistência. Uma enfermeira que estava do lado de fora pega-a
pelo braço:
— Fique aqui. Ela está mais exaltada por sua causa.
O médico responsável põe a luva. Pega o tubo estendido pela
enfermeira-chefe e passa um gel em todo o tubo, longo e fino.
Enquanto isso, o paramédico segura o rosto da Yeonghye com
toda a força, usando as duas mãos. O rosto da irmã ficou todo
vermelho quando o tubo se aproximou e ela tentou se livrar das
mãos do paramédico. É exatamente como disse o paramédico.
Não dá para saber de onde vem tamanha força. Ela dá um passo
para a frente. A enfermeira a detém segurando-a pelo braço.
Finalmente as duas faces afundadas são pegas dentro das garras
rudes e fortes do paramédico. Nesse ínterim o médico enfia o
tubo no nariz.
— Droga, fechou de novo! — brada o médico lamentando-
-se.
Isso porque a Yeonghye fechara o esôfago com a úvula e o
tubo fora empurrado para fora, saindo por entre os lábios. O
clínico geral que esperava para introduzir um ralo mingau de
arroz com uma seringa enruga a testa. O médico retira o tubo
do nariz.
— Bom, vamos tentar mais uma vez. Desta vez, mais rápido.

165
Han Gang

Mais uma vez o gel é passado no tubo. Mais uma vez o


paramédico de compleição forte esmaga o rosto da irmã que se
debate. O tubo é enfiado pelo nariz.
— Deu. Agora deu.
Um suspiro curto escapa da boca do médico. As mãos do
clínico geral ganham velocidade. Começa a injetar o mingau.
A enfermeira que segurava o braço dela aperta mais forte e
sussurra em seu ouvido.
— Deu. Foi bem-sucedido. Agora vamos fazê-la dormir.
Pois pode vomitar.
Mas no momento em que a enfermeira-chefe sacava a injeção
de tranquilizante, um grito agudo explode da boca da auxiliar.
Ela se desvencilha da enfermeira e corre para a cama.
— Saiam, saiam todos!
Ela arrebata o ombro do médico e se posta de frente a
Yeonghye. O rosto da auxiliar que segurava o tubo está todo
ensanguentado. O sangue fresco sobe borbulhando do tubo e
da boca sem parar. O clínico geral recua com a seringa na mão.
— Tira isso. Tira esse tubo rápido!
O paramédico agarra-a pelos ombros e a puxa para trás,
enquanto ela, sem dar por si, solta um grito rouco. Aí, o médico
retira o longo tubo do nariz da Yeonghye, que se contorce.
— Quieta, fica quieta! Quieta! — berra o médico.
— O tranquilizante!
A enfermeira-chefe pega a injeção e tenta passar para ele.
— Não façam isso!…
Ela solta um grito curto e chorado.
— Chega! Não façam isso! Por favor, não façam isso!
Ela morde o braço do paramédico e avança mais uma vez.
— Mas o que é isso, merda!
Um xingamento escapa da boca do paramédico misturado
com um gemido. Ela se lança para a frente e abraça o corpo da

166
A Vegetariana

irmã. O sangue quente expelido aos borbotões molha a sua


blusa.
— Pelo amor de Deus, parem. Parem…
Ela agarra o pulso da enfermeira-chefe que segura a seringa.
Sente o corpo da Yeonghye tremer silenciosamente dentro do
seu abraço.
œ
O avental branco arregaçado do médico está cheio de res-
pingos de sangue da Yeonghye. Ela fica olhando abobada para
as marcas que fazem lembrar um redemoinho.
Precisamos transferi-la imediatamente para um grande
hospital. Vá para Seul. Quando o problema da hemorragia esto-
macal se resolver, ela precisa receber injeção de proteína pela
jugular. Isso também não pode se estender muito, mas é o único
caminho para prolongar a sua vida.
Ela coloca na bolsa a carta de encaminhamento que acabara
de ser impressa e sai da sala de enfermeiras. Entra no banheiro,
posta-se em frente ao vaso sanitário e faz desmoronar as pernas
que até então mantinha enrijecidas. Lentamente, começa a
vomitar. Junto com chá leitoso, verte um líquido estomacal
amarelo.
— Sua boba. — Lavando o rosto, ela repete com os lábios
trêmulos em frente à pia: — Sua boba. Tudo que você consegue
ferir é o seu próprio corpo, não é? Isso é a única coisa que você
pode fazer à sua vontade, não é? Mas nem isso você consegue
fazer a contento, não é?
Levanta a cabeça e vê o rosto molhado refletido no espelho.
São olhos que verteram sangue inúmeras vezes em sonhos.
Eram olhos de onde não conseguia limpar o sangue por mais que
o enxugasse. Mas agora o rosto dessa mulher não está chorando.
Como sempre, está apenas olhando de volta para ela em silêncio
sem demonstrar qualquer sentimento. Para ela, a disparidade é
tamanha a ponto de não conseguir crer que os gritos chorados
que há pouco rasgaram o seu ouvido tenham sido mesmo seus.

167
Han Gang

O corredor balança como se estivesse bêbada. Ela caminha


em direção ao lobby tentando se equilibrar com todas suas
forças. De repente abre o sol e clareia de pronto o lobby escuro.
Um sol como há muito não via. Os internos, sensíveis ao sol,
agitam-se. Enquanto eles se apressam oscilantes para as janelas,
uma interna vestindo roupa comum vem caminhando na direção
dela. Ela estreita os olhos. Tenta a custo discernir o rosto da
mulher que se posta no meio da sua visão embaçada. É a Hiju.
O branco do olho está avermelhado dando a impressão de ter
chorado novamente. Será ela afeiçoada assim por natureza? Ou
será porque sofre de mudanças muito bruscas de humor?
— E agora, a Yeonghye? Se ela for agora…
Ela pega na mão da Hiju:
— Obrigada por tudo.
Subitamente, sente impulso de estender as mãos e abraçar
os ombros robustos dessa mulher que chora. Mas não o faz. Em
vez disso, dirige o olhar para os internos que olham o lado de
fora da janela com tanta ansiedade. Seus olhares, desfocados e
tão intensamente desejosos, parecem querer sair caminhando
para além da janela. Estão aprisionados aqui, era isso. Como
estava essa mulher. Como esteve a Yeonghye. Se ela não a
abraçou foi porque não se esqueceu de que fora ela própria
quem aprisionara a irmã aqui dentro.
Ouvem-se passos apressados do corredor leste. Dois pa-
ramédicos carregam a Yeongye numa maca em marcha ligeira.
Ela e a auxiliar haviam dado um banho rápido nela e trocado
a sua roupa há pouco, de modo que o rosto limpinho de olhos
fechados está parecendo o de um bebê num sono doce depois
do banho. A mão grosseira da Hiju se estica para agarrar a mão
da Yeonghye onde restam apenas ossos. Ela vira a cabeça para
não olhar.
œ
Para além do assento do motorista do carro de resgate, um
frondoso bosque de verão se estende através do para-brisa. Sob

168
A Vegetariana

o sol da tarde que começa a cair, todas as folhas que se molha-


ram na chuva cintilam ferozmente como se nascessem de novo.
Ela arruma o cabelo da Yeonghye ainda um pouco úmido
para trás da orelha. Conforme dissera Hiju, a irmã estava leve.
A pele coberta por uma fina penugem que parecia de bebê era
branca e lisinha. Enquanto passava sabonete em cada um dos
nós saltados da espinha dorsal ela se lembrou das inúmeras
noitinhas de infância em que tomavam banho juntas, esfre-
gando as suas costas e lavando os seus cabelos.
Ela acaricia os cabelos da irmã, que está fininha e sem forças,
como se tivesse voltado para aquela época. Pensou então que
esses cabelos pareciam os de Jiu quando este estava embrulhado
num lençol de bebê, e, nesse momento, sente os dedinhos da
criança passarem raspando por sua sobrancelha.
Aturdida, tira o celular do bolso interno da sacola. Liga o
aparelho que estivera desligado o dia todo e tecla o número da
vizinha:
— Oi… sou a mãe de Jiu… É que passei no hospital por causa
de um parente… Sim, aconteceu um imprevisto… Não, às cinco e
cinquenta chega o ônibus da creche no portão do prédio… Sim,
eles deixam quase exatamente nessa hora… Não vou ficar até
muito tarde. Se acontecer de atrasar, vou ter que pegar o Jiu e
voltar para o hospital, ou algo assim. Como é que vou deixá-lo
dormir aí? Obrigada mesmo… Tem o meu telefone, né?… Eu ligo
de novo mais tarde.
Fecha o celular e percebe que há muito não deixava Jiu com
alguém. Depois que o pai dele se foi, ela vinha cumprindo a
promessa de passar as horas da noite e do final de semana com
a criança.
Enruga a testa. Sentindo o sono invadi-la subitamente, en-
costa-se no vidro do carro. De olhos fechados, ela pensa: Jiu logo
crescerá. Lerá sozinho e terá contato com outras pessoas. Como
ela poderia explicar o que aconteceu com eles e que mais cedo
ou mais tarde entrará pelos ouvidos da criança, transmitido de
boca em boca? O menino era sensível por natureza e adoecia

169
Han Gang

frequentemente, mas até aquele momento estava crescendo


com uma personalidade relativamente alegre. Será que ela
conseguiria manter isso?
Relembra a figura dos dois entrelaçados nus como se fossem
uma trepadeira. Aquilo era com certeza uma imagem chocante,
mas, estranhamente, quanto mais o tempo passava, menos a
sentia como uma coisa sexual. Os corpos cobertos de flores e
folhas e de ramos verdes eram-lhe estranhos como se não fos-
sem mais humanos. Seus movimentos pareciam-lhe mais um
contorcer-se para se livrar da condição de humanos. Com que
intenção ele teria querido fazer um vídeo daqueles? Com que
ideia ele teria apostado tudo de si naquele vídeo esdrúxulo e
grotesco, e perdido tudo?
…A sua foto saiu voando no vento, mamãe. Quando olhei
para o céu, sim, um pássaro estava voando, e ouvi do pássaro
um som que dizia “É mamãe…” E brotaram duas mãos do corpo
do pássaro.
Foi o que Jiu disse há muito tempo, com a fala ainda imatura
e com os olhos estreitos de um sono ainda não desperto. Ela se
assustou com o fino sorriso da criança, característico de quando
estava para chorar.
E o que tem isso, é um sonho triste?
Ainda deitado, Jiu esfregou os olhos com o punho cerrado.
Como era o pássaro? Que cor era?
Branco… Sim, era bem bonito.
A criança deu uma fungada e enterrou o rosto no peito da
mãe. Era um choro que a atordoava da mesma maneira que
quando ele se esforçava demais para fazê-la rir. Pois não está
chorando para ter uma exigência atendida ou pedir ajuda. Está
chorando em silêncio porque simplesmente sente tristeza. Ela
disse como se o consolasse:
Ah, então aquilo era o pássaro-mamãe.
Jiu acenou com a cabeça enterrada no peito dela. Ela aninhou
o rosto da criança com as duas mãos:

170
A Vegetariana

Veja, a mamãe está aqui. Eu não me transformei num pássaro


branco, né?
E um sorriso discreto se esboçara no rostinho molhado feito
um cachorrinho:
…Tá vendo? Foi só um sonho.
Será mesmo? Ela se perguntou naquele momento diminuindo
a respiração. Terá sido mesmo um sonho, uma coincidência?
Pois fora na manhã em que ela, vestida com uma camiseta roxa
desbotada, descera da montanha de trás do prédio recuando das
árvores que se erguiam no crepúsculo da manhã.
œ
Foi só um sonho.
Estas são as palavras que profere toda vez que o rosto de
Jiu daquele dia vem à sua mente. Quando isso acontece, sobres-
salta-se com a própria voz, abre bem os olhos e olha atabalhoada
para os lados. O carro de resgate continua descendo veloz pela
estrada sinuosa. Com a mão visivelmente tremendo, passa os
dedos pelos cabelos que estão sem serem penteados há um bom
tempo.
Ela não consegue explicar. Como é que podia ter desejado,
tão facilmente, abandonar a criança. Aquilo era uma irrespon-
sabilidade tão cruel que não poderia ser explicada nem para si
mesma, e por isso não era confessável a ninguém, e nem passível
de se pedir perdão. Havia somente a sensação de uma verdade,
tão clara a ponto de causar arrepios. Que, se ele e a Yeonghye
não tivessem arrebentado aqueles limites, se eles não tivessem
demolido tudo como se fosse um monte de areia, quem teria
desmoronado talvez fosse ela. E que, se ela tivesse desmoronado
novamente, não conseguiria mais voltar. E, se assim fosse, o
sangue que a irmã vomitara hoje teria sido o sangue a jorrar do
seu próprio peito?
— Huuumm — a Yeonghye está querendo acordar com um
gemido.

171
Han Gang

Com medo de que a irmã vomite mais sangue, ela tira um


lenço às pressas e o leva à sua boca.
— Huuummm.
Yeonghye abre os olhos. As pupilas negras olham direta-
mente para ela. O que será que estaria se agitando por trás da-
queles olhos? Que medo, que raiva, que dor, que inferno desco-
nhecido estaria de tocaia ali?
— Ei, Yeonghye — ela chama a irmã com uma voz ressecada.
— Huumm, hum.
Yeonghye vira a cabeça para um lado. Não era uma resposta
ao chamado dela, e sim uma resistência de nunca mais responder.
Ela estende a mão trêmula, mas logo a recolhe.
Morde os lábios com força. É que, num átimo, viera-lhe à
mente a trilha da montanha pela qual descera naquela madru-
gada. O orvalho que molhava sua sandália penetrava friamente
pelos pés sem meia. Ela não verteu lágrimas. Era porque não
conseguia compreender. Não conseguia compreender de jeito
nenhum o que queria dizer aquela umidade fria que molhava o
seu corpo em frangalhos e se espalhava por suas veias resseca-
das. Todas aquelas coisas simplesmente penetravam por den-
tro de seu corpo, e para dentro dos ossos.
— …Isso aqui talvez… — abre a boca depois de um tempo e
sussurra para a irmã.
Tum! A carroceria sacode quando passa por um buraco na
estrada. Ela segura os ombros da Yeonghye, pondo força nas
duas mãos.
— …Talvez seja um sonho. — Baixa a cabeça. Como alguém
que tivesse sido capturada por algo, encosta a boca ao pé do
ouvido da Yeonghye e prossegue, palavra por palavra: — Dentro
do sonho parece que o sonho é tudo, né? Mas depois que a gente
acorda, fica sabendo que aquilo não é tudo… Isto é, quando a
gente acordar, algum dia, então…
Levanta a cabeça. O carro de resgate passa pela última
curva que sai do Monte Chukseong. Um pássaro parecendo um

172
A Vegetariana

milhafre-preto sobe em direção à camada de nuvens negras. Os


raios pontiagudos do sol de verão espicaçam-lhe os olhos e ela
não consegue mais seguir o bater das asas.
Silenciosamente, inspira o ar para dentro do pulmão. Lança
um olhar enraivecido para as árvores que se incendeiam na
beira da estrada, para as chamas verdes que se levantam como
inúmeros animais e balançam. Seu olhar é escuro e tenaz como
se esperasse pela resposta, não, como se protestasse contra algo.

173
posfácio

tríptico canibal:
vegetarianismo,
desejo e morte
Jorge de Almeida

H
á várias razões para acompanhar com interesse a pro-
dução literária e cinematográfica da Coreia contem-
porânea. Da guerra fratricida, que dividiu uma única
nação em dois países com estruturas políticas antagônicas, até
o rápido desenvolvimento tecnológico do Sul, transformado em
potência da nova economia capitalista, os abalos e fraturas da
história mundial recente deixaram suas marcas na obra de diver-
sos escritores e cineastas, unidos pela longa tradição coreana de
valorizar a criação artística como instância coletiva de crítica e
reflexão. Esse engajamento estético no debate público se reflete,
por exemplo, nos concursos e festivais literários que celebram a
chegada de cada nova primavera, mobilizando grande parte da
população do país.
A jovem escritora Han Gang, nascida em 1970, conquistou
prêmios em vários desses concursos, e agora é apresentada
aos leitores brasileiros por Yun Jung Im, tradutora também
premiada e professora de estudos coreanos da usp. A complexa
sociedade sul-coreana é retratada nos contos e romances de
Han Gang a partir do modo como questões históricas de amplo
alcance ressoam nos pequenos detalhes da vida cotidiana. O
interesse da autora por música e artes plásticas transparece
em uma escrita que sobrepõe perspectivas e vozes conflitantes,
configurando quadros ao mesmo tempo delicados e violentos,
sob um olhar marcadamente feminino, que reage contra o papel
tradicional da mulher na moderna sociedade coreana.
Esse projeto literário está presente na forma como se entre-
cruzam os três contos reunidos no volume A Vegetariana, pu-
blicado em 2007 e adaptado para as telas em 2010, em filme
do diretor Lim Woo-Seong. As três narrativas enfocam uma
mesma história, aparentemente banal e trágica, a partir de dife-
rentes perspectivas, enredando o leitor na complicada teia de
relações de poder que distorce o destino de todos os persona-
gens envolvidos. Han Gang busca reproduzir, na forma calei-
doscópica do livro, os processos de desagregação da identidade
psíquica de suas personagens, submetidas à constante pressão
de expectativas sociais contraditórias.
“Nunca achei nada especial na minha esposa até que se
tornasse uma vegetariana”, diz o narrador do conto que abre o
livro, casado com uma jovem “sem nenhum charme especial”, e
que justamente por isso lhe era até então “confortável”. Pouco a
pouco, esse ideal de conforto é denunciado como atroz confor-
mismo, resultado da completa submissão do personagem, fun-
cionário subalterno de um grande corporação industrial, ao
desejo de padronização que rege tanto a moderna sociedade
de consumo coreana quanto a identidade comunitária da Co-
reia tradicional. Esforçando-se em cumprir o papel que lhe foi
destinado, o marido confessa que “não era de gostar de exage-
ros”, e descreve as várias razões que o levaram a se casar com
uma mulher “que parecia ser a mais comum dentro todas as mu-
lheres do mundo”, capaz portanto de “cumprir o seu papel de
esposa comum”.
A reviravolta ocorre quando essa “mulher comum” anuncia,
para o espanto de todos, que não irá mais comer carne ou
qualquer outra comida de origem animal. Ao contrário do
que pode sugerir o título do conto, não se trata de um engaja-
mento em defesa do vegetarianismo, pois a decisão é tomada
sem nenhum compromisso de ordem ética, médica ou religiosa.
Se fosse assim, a opção da jovem Younghye poderia eventual-
mente até ser aceita como uma curiosa importação de estilos

176
de vida estrangeiros, uma preocupação exagerada com a saúde
ou a conversão a uma religião mais compassiva. As razões são,
no entanto, mais profundas e inconscientes, estão ligadas a
um sonho que subverte os papéis e expectativas, mostrando
à jovem toda a violência envolvida no ato de devorar animais:
“Aquilo está incrustado ali, onde gritos e prantos se compac-
taram em camadas. É por causa da carne. Comi carne demais.
Todas aquelas vidas estão paradas ali. É isso. O sangue e a carne
foram digeridos e espalhados para todos os cantos do corpo,
os resíduos foram excretados, mas as vidas ficaram tenazmente
grudadas na entrada do estômago.”
O vegetarianismo do livro incorpora, portanto, a denúncia
de sua contrapartida social simbólica: o “canibalismo” da so-
ciedade capitalista industrial, aliado aos hábitos da tradição
patriarcalista coreana. Yeounghye teve um pai violento, que
lutou na guerra e educou as filhas de forma rígida, castigando-
-as com vara até os dezoito anos. Das mãos do pai passou para
as do marido medíocre, que a ostentava como mero conforto
doméstico. O sonho, subvertendo os sentidos, faz com que
ela perceba finalmente que sua vida é devorada por todos os
que a cercam. A recusa à carne torna-se um ato de desespero
e uma forma de resistência, ao mesmo tempo em que expõe as
entranhas do pesadelo de seu cotidiano.
No convívio com o marido, no jantar de negócios e na
reunião familiar, a decisão de não comer carne causa cada vez
mais desconforto, culminando em uma dramática tentativa
de suicídio, cujas consequências transbordam para os outros
contos do livro. Acompanhamos na segunda narrativa o ponto
de vista do cunhado de meia-idade, vídeo-artista que retrata
em suas obras o “cotidiano humano, erodido e esgarçado, de
uma sociedade capitalista tardia, usando design gráfico em 3d
e cenas reais documentais”. Esse empenho criativo contrasta
com a rotina banal de sua vida familiar, instalada em um dos
vários blocos de condomínios que se acumulam ao longo do
texto. Apesar de um casamento também baseado em interesses
práticos, “uma relação apenas ligada pela criança, sem floreios,

177
uma espécie de sócios, esta era a relação entre ele e a esposa
nestes tempos”, o artista reage à venalidade brutal dos aconteci-
mentos: “O que o deixou perplexo foi que o concunhado queria,
como se fosse algo absolutamente natural, jogá-la fora como
quem joga um relógio ou um eletrodoméstico quebrado.”
Supreendido pelo vegetarianismo trágico da cunhada, o
artista é atraído também pela descoberta de uma outra dife-
rença, que adquire literalmente contornos eróticos em um
mundo de insuportável uniformidade: a irmã de sua esposa
mantém, mesmo adulta, a mancha mongólica herdada como
traço genético comum aos bebês asiáticos. A persistência da
mancha, resquício de pureza infantil na carne de uma mulher
feita, fascina o vídeo-artista, buscando a utopia de uma beleza
natural perdida na selva das marcas e do consumo. A dimensão
erótica, recalcada e desvalorizada no primeiro conto, alcança
aqui uma expressão real. O ato amoroso, possibilitado por rosas
e plantas sobre os corpos nus, aparece como um sucedâneo do
sonho, uma forma de dois corpos se consumirem em harmonia,
recusando a violência canibal do mundo ao redor.
Mas o mundo reage, com precisão epidemiológica: o vegeta-
rianismo sem razão e o adultério sem pudor são rapidamente
diagnosticados como ofensa e loucura. Na Coreia, país que traz
na memória coletiva a fome e a desunião, o ato de compartilhar
a comida adquire um sentido simbólico. Laços familiares e
vínculos sociais são reforçados à mesa, e o consumo de carne
representa a superação conjunta das dificuldades do passado.
“Se não era regime nem tratatamento e nem estava possuída por
um espírito, como assim, mudar de hábito alimentar por causa
de um pesadelo? Que teimosia era aquela, desconsiderando por
completo a dissuasão do marido?” Recusar o conforto é um ato
de arrogância, ser diferente é desprezar o próximo. A punição
chega, de modo exemplar, e a teimosia é tratada como doença,
pois coloca em risco não apenas a saúde de Yeounghye, como a
aparência que garante a felicidade familiar e o funcionamento
da sociedade como um todo.

178
A ação do último conto se passa três anos depois, no hos-
pital psiquiátrico. Os pais se afastaram das filhas, culpadas
pelos casamentos desfeitos. As camisas de força da equipe de
resgate, que a irmã rapidamente convocou ao supreender os
amantes, asseguraram sua própria inocência e evitaram um des-
fecho ainda mais brusco. O julgamento dos “outros”, a defesa
da normalidade, do consumo e do conforto, pairam sobre os
sobreviventes e as vítimas. A sanidade se revela como loucura,
mas só o artista, que se perde no mundo, é capaz de perceber o
avesso das coisas: “Não, ela é uma mulher normal na verdade,
pensou ele. O louco aqui sou eu.” A irmã da vegetariana cumpre,
apesar de tudo, o seu dever de família, tornando-se responsável
pelo tratamento de Yeounghye. No hospital, o corpo definha,
a mancha empalidece, e a carne é maculada pela violência da
suposta cura: “Os dois braços e os pés, e até as veias dos calca-
nhares, nada estava inteiro. Pois injeção intravenosa era o único
meio de fornecer proteínas e glicose, mas já não havia mais onde
espetar a agulha. O último recurso seria fazer uma ligação na
veia cava pelo ombro, mas o médico responsável telefonara on-
tem dizendo que seria preciso transferi-la para um hospital
grande, pois era um procedimento perigoso. Disse que tentou
várias vezes introduzir uma longa sonda pelo nariz para passar
mingau para o esôfago, mas não conseguiu porque a Yeonghye
fechava a garganta.”
O pesadelo inicial deixa de fazer sentido, pois não há salvação
no mundo industrial da carne, onde a normalidade confortável
significa devorar e ser devorado. O destino da vegetariana se
revela então como autocrítica da sociedade coreana, no qual os
papéis sociais estão distribuidos como os lugares à mesa. Re-
sistir significa assumir uma diferença inconcebível, que enfra-
quece a saúde do corpo social. Como em Kafka, as metáforas se
tornam reais, demonstrando por absurdo a violência cotidiana
dos aparatos que deveriam garantir a felicidade comum. Talvez
influenciada por uma frase do grande poeta Yi Sang, “acredito
que os humanos deveriam ser como plantas”, Han Gang desen-
volve em sonho a imagem já antecipada pelos corpos pintados.

179
Para não canibalizar ninguém, no plano político, econômico,
amoroso e familiar, a solução é buscar a solidária autossufici-
ência das árvores: “Mana... todas as árvores do mundo parecem
ser irmãos.” A alimentação forçada, imagem final do cotidiano
massificado, é a horrível consequência do despertar simbólico, e
só resta a Yeonghye o abandono utópico de toda carne: “Dentro
do sonho, parece que o sonho é tudo, né? Mas depois que a
gente acorda, a gente fica sabendo que aquilo não é tudo... Isto
é, quando a gente acordar, algum dia, então...”

Jorge de Almeida é Doutor em Filosofia e professor de Teoria


Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo.

180
sobre a autora

Han Gang

D
e sobrenome Han e nome Gang* a autora tem o mesmo
nome do mais importante rio da península coreana: o
Rio Han — Han-gang em coreano. Nascida em 1970,
Han Gang acompanhou em toda a sua turbulência o chamado
“milagre do Rio Han”, que compreende o período entre a década
de 60 e os meados da década de 90 do século xx. Durante esse
tempo, o país passa por um processo frenético de rápida indus-
trialização e urbanização, avanço tecnológico, boom educa-
cional, aumento exponencial nos padrões de vida, moderni-
zação, democratização e globalização, ao mesmo tempo que
busca se recuperar da guerra fratricida** que deixou mais de
três milhões de mortos e o território totalmente devastado. O
país, que após a Guerra era um dos mais pobres do mundo,***
milagrosamente se transformaria numa economia globalmente
influente e conhecida pelos seus conglomerados multinacionais
como Samsung, lg e Hyundai-Kia, em apenas 50 anos.
Por isso, nas décadas 70 e 80, a literatura coreana esteve, de
um jeito ou outro, atrelada à situação política de um país em
busca pela democratização, em meio a um esforço coletivo pelo
crescimento econômico, frequentemente servindo de janela de
escape para expressar a liberdade tolhida sob regimes militares.
* É costume coreano usar o sobrenome seguido de nome.
** Guerra da Coreia (1950-1953), iniciada pela invasão da Coreia do Norte sobre a do Sul.
*** Logo após o confronto que durou três anos, o PIB per capita sul-coreano era 67 dóla-
res, índice que colocou o país no penúltimo lugar no ranking mundial somente à frente da
Etiópia.
Assim, até o início da década de 90, as “grandes questões na-
cionais” permeariam o mainstream da literatura coreana.
Nesse contexto, Han Gang é uma das representantes da
nova geração de escritores coreanos, que, afastando-se das
“grandes questões nacionais” que pesavam sobre os ombros dos
predecessores submersos em profundas sombras do passado,
tem buscado uma nova identidade, com experiências novas,
ampliando os horizontes da literatura nacional. A nova geração,
relativamente livre do passado coletivo sombrio e libertando-
-se da consciência de dívida para com a grande história, busca
agora retratar detalhes minuciosos da vida dos indivíduos e o
seu [entorno], com um estilo baseado no realismo mas que se
caracteriza também por uma imaginação sem limites. As obras
de Han Gang, que retratam com grande representatividade a
questão da feminilidade, tema caro a essa nova geração, tem
sido também reconhecida por escrutinizar a “tristeza e solidão
fundamental do ser humano” segundo os seus críticos.
Han Gang estudou Literatura Coreana na Universidade
Yonsei e estreou nas letras como poeta em 1993, ano em que se
formou, com a publicação de um poema no periódico literário
Literatura e Sociedade. Em 1994, o seu conto “A Vela Vermelha”
foi premiado no Concurso Literário do diário Seul. Desde então,
apontada como “uma das porta-estandartes da nova geração
da literatura coreana”, sua atividade literária tem sido febril, a
ponto de sofrer da ler de digitação. Em 20 anos de atividade,
já publicou 7 romances, 4 volumes de novelas/contos, 4 livros
infantis e 2 coletâneas de ensaios livres. Atualmente, leciona
no Departamento de Criação Artística da Universidade Seul de
Artes.
Recebeu o Prêmio Yi Sang — o prêmio literário coreano de
maior prestígio — em 2005, aos 35 anos, com o conto “Mancha
Mongólica”, numa votação raramente unânime dos sete jura-
dos. Ficou conhecida então como filha de Han Seung-Won,
também escritor, que recebera o mesmo prêmio em 1988, o que
ficou registrado como o primeiro caso de premiação em duas
gerações [de uma mesma família]. Tal “hereditariedade” já havia

184
se manifestado em 1999, com o Prêmio Coreano de Literatura
em Prosa.
Segundo a apreciação da banca de jurados do prêmio, a
“Mancha Mongólica” — apresentada neste volume, em que um
vídeo-artista mergulha num ímpeto artístico simultaneamente
a um desejo incontrolável, seduzido pela mancha mongólica
que permanece na nádega da cunhada — é um caso modelo de
“romance de artista” onde se misturam o bodypainting, a vídeo-
-arte, a arte e o desejo.
Sobre o conto, a autora explica: “A mancha mongólica era
para mim algo longinquamente remoto, um vestígio de origem
vegetal. Não como algo oposto ao animal, mas como um estigma
[de misoginia,] anterior à nossa existência como um organismo
superior. [...] Queria retratar uma beleza que estivesse violenta-
mente viva, que abraçasse até a morte e a sordidez.”
Além do Prêmio Coreano de Literatura em Prosa (1999) e o
Prêmio Yi Sang (2005), recebeu o Prêmio Escritor de Excelência
do diário Hanguk (1995), e o Prêmio de Jovem Artista de Hoje
do Ministério da Cultura e Turismo (2000).
Os três contos interligados, reunidos neste romance A Ve-
getariana, foi traduzido para o japonês, chinês, vietnamês e
espanhol (Argentina). Também se encontram em curso a sua
publicação na Inglaterra e na Itália.

185

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