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aos
Romanos
de Karl Bart
Carta
aos
Romanos
de Karl Bart
Segundo a
(impressão de 1967)
1ª Parte
CAPÍTULOS DE I À VII
São Paulo
2008
Copyright Fonte Editorial Comércio de Livros Religiosos Ltda 5a Edição - 2008
- formato 14x21 cm - 854 páginas
“Der Römerbrief”
ISBN: 85-86671-03-7
Cep 01042-000
www.fonteeditorial.com.br
email fe.ltda@uol.com.br
EXPLICAÇÕES PRELIMINARES
Querida Eline:
Você sugeriu que eu escrevesse alguma coisa, por exemplo, algo sobre teologia.
Eu respondi-lhe que não valeria a pena e expliquei porque.
Porém, assim como as palavras são frutos de pensamento, elas são sementes de
futuras ações e, quiçá, de novas idéias. E as suas palavras de filha amiga,
levaram-me a enfrentar a tarefa de registrar ruminações minhas sobre o estudo
da Epístola aos Romanos, de Karl Barth.
Novamente o fruto das palavras: Você me disse que achava difícil “de-glutir”
Paulo; e Barth disse que ficou radioso quando descobriu o grande apóstolo dos
gentios na Epístola.
Preciso contar-lhe primeiramente como conheci Barth: foi nos idos quando Jorge
Cesar Mota era meu pastor; ele gostava de citar Barth em seus sermões, e era
grande a celeuma! E este seu pai, ingênuo ancião da Igreja, nem sabia quem era
o tal Barth.
Não me foi difícil descobrir que os outros também não sabiam. Alguns nem lhe
soletravam certo o nome e os outros diziam que era um ecumenista. Já os
doutores citavam passagens mas, inquiridos mais de perto — não para
investigação mas para minha instrução — deixaram patente que falavam de
oitiva ou, quando muito, haviam lido comentários de segunda mão ou até da
enésima.
Explicações Preliminares
Depois, mandei vir a grande dogmática. São 12 alentados volumes (quatro livros
- 7731 págs.). Quantas revelações! O evangelho passou a ser de fato boa nova, e
não “disangelho”. Tornou-se, para mim, clara e cristã a doutrina da
predestinação; ficou irrelevante a teoria da evolução; racionalizou-se a explica-
Ora, a primeira obra de Barth foi o seu comentário à Epístola aos Romanos —
“DER ROEMER BRIEF” — que levantou um mundo de admiradores e
detratores. Alguns o combatem e outros o enaltecem. (Li algures que os mais
eminentes pensadores católicos consideram Barth o Tomás de Aquino,
protestante). A revista Times de New York, em seu necrológio a Barth, o
classificou como o mais significativo pensador religioso do século. Outros há
que, apoiando-o, o aviltam, do que o próprio Barth se queixava.
Quis conhecer sua primeira obra; encontrei-a em alemão e inglês e eis que esta
veio como 6ª edição, em 7ª impressão feita em 1965 e aquela como a 10ª
impressão da “nova revisão”, datada de 1967.
Essa diferença verifica-se até nas traduções dos prefácios do Autor às várias
edições (1ª à 5ª). No meu entender falta à tradução inglesa o vigor da análise, a
explosão do argumento, a semântica quase onomatopaica das expressões alemãs;
em inglês, o livro ficou mais polido, mais diplomático, mais suave; desapareceu
a angulosidade germânica mas as estruturas ficaram menos encaixadas; os
planos de apoio e as arestas de engaste foram convertidos em suaves pontos de
tangência e a muralha quase monolítica da estrutura original parece, traduzida,
estar em equilíbrio precário, sujeita a ruir se alguma força externa, não prevista,
a solicitar...
O próprio Barth talvez tenha tido uma impressão algo duvidosa da obra
traduzida, quando no prefácio à edição inglesa diz “... partly owing to my
insufficient familiarity with the English language”... “I have, unfortunately not
been able to go through the whole of the translation in detail. Sir Edwyn (o
tradutor senhor) has, however, led before me a fairly long section of his work
and, after comparing it with the original German I am persuaded that he has 2
Explicações Preliminares
performed his task with great skill. He has combined fidelity to the text with a
considerable freedom of presentation and that is surely the mark of a good
translator. Though a translation, however skillfully made, must be in some
degree a transformation of the original, yet I feel certain that those who think
and speak in English will have before them what I wished to say”.
O mesmo aconteceu com a 4ª edição (1924) mas no seu prefácio dessa edição o
Autor confessa que muita coisa deveria ser re-escrita e pontos obscuros
deveriam ser esclarecidos; “mas não vejo, ainda, como resolver essas passagens
mais difíceis, por isso, mais uma vez, preciso mandar o livro sem modificá-lo”.
Finalmente, em 1926, saiu a 5ª edição, revista, que foi repetida pela 6ª e última
em 1928, todavia com reimpressões posteriores.
E por que somente TENTAR? Em primeiro lugar por que não sou teólo-go;
nunca fui nem pretendo vir a ser! Em segundo lugar porque o original é em
alemão; e em terceiro porque Barth é quase intraduzível. Faz jogos de palavras e
de idéias que não teriam sentido em português e cria expressões simples com
significados sutis que exigem circunlóquios extensos para serem explicados.
Como traduzir, por exemplo, “das Da-sem und Wie-sein”, ou então, como
atribuir significação precisa, correta, ao título que o Autor dá à exegese de todo o
capitulo XIV e metade do capítulo XV, da Epístola: “Die Krisis des freien
Lebensversuchs”?
Todavia, o que você vai ler é a expressão mais fiel do que entendi; onde me
pareceu que a exposição talvez ficasse mais compreensível com observa-3
Explicações Preliminares
Maio,1977
Entretanto, a Carta aos Romanos (Rdnzerbrief; 1919; 2ª ed. 1922) de Karl Barth
não é somente “mais um comentário”. Trata-se de um dos mais influentes livros
de teologia do século XX, o título que marca uma ruptura com 1 Veja, além dos
comentários de Barth e Lutero, os de João Calvino, J. A. Bengel, Charles Hodge,
Robert Haldane, D. G. Barnhouse, C. H. Dodd, E. Kaseman, M.Lloyd-Jones, C.
E. B. Cranfield, Douglas Moo, entre outros que marcaram e/ou têm tido uma
longa influência de determinados círculos.
2 Cf. Eugene F. Peterson, Take and Read (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1996),
79.
Quando escreveu o Romerbrief pela primeira vez (ca. 1916-19), Barth era
meramente o pastor socialista da igreja de uma pequena cidade Suíça, Safenwil.
A primeira edição do Romerbrief dava claro testemunho do marxismo
entusiasmado do jovem Barth.4 Da quieta Safenwil Barth acompanhou a 1ª
- 1855), cuja obra estava sendo publicada em alemão nesta época,6 Albert 3 Cf.
Clifford Green, “Karl Barth’s Life and Theology” em Karl Barth: Theologian of
Freedom, ed. Clifford Green (Minneapolis, MN: Fortress Press, 1991), 16.
4 Barth afirma, por exemplo, que um tempo virá em que “os dogmas marxistas
agora em decadência irão se reavivar como verdades, no tempo em que a igreja
socialista se levantará em um mundo tornado socialista”. A frase foi eliminada
pelo próprio Barth das edições subseqüentes. Veja o comentário de Eberhard
Jüngel sobre essa frase em Karl Barih:
Karl Barth (1886 - 1968) foi, por isso mesmo, o mais importante teólo-go do
século XX, a mais importante figura na teologia desde Friedrich Schleiermacher
(1768 -1834), teólogo que Barth procurou superar mas a quem, 7 Sobre
Schweitzer veja, por exemplo, Charles R. Joy, “A Modern Man’s Quest for the
HoIy Graal” in Albert Schwitzer: An Anrhology, ed. Charles R. Joy (New York,
NY: Harper & Brothers, 1947), xix-xxviii; e Frederick Franck, Days with Albert
Schweitzer (New York, NY: Henry Holt & Co., 1959).
entra em firme divergência com Emil Brunner. Esta terceira fase do pensamento
barthiano foi marcada também pelo confronto com o nazismo que levaria Barth a
perder sua cátedra e a ser expulso da Alemanha em 1935, e a fixar-se para o
resto de seus dias em Basiléia, sua cidade natal. Barth opôs-se à neutralidade
suíça e deu seu apoio às forças aliadas. Acima de tudo, Barth opunha-se à
associa-
grande guerra, teve início a quarta e mais importante fase da teologia de Barth.
E nesta época que Barth escreveu a maior parte da Dogmática Eclesiástica, além
de vários títulos menores de grande popularidade. À medida em que tra-balhava
nesta sua obra-prima, a Dogmática Eclesiástica, Barth acentuava de modo
implícito a descontinuidade de sua produção com seu trabalho da segunda fase,
da teologia da crise, da Carta aos Romanos. Muitos críticos têm sugerido que o
tipo de teologia que Barth desenvolveu na Eclesiástica não é consistente com a
Carta aos Romanos e sua insistência na absoluta alteridade divina, e não teria
sido legitimada pelo autor do Rõmerbrief. Barth, todavia, nunca aceitou que
tivesse havido uma total ruptura em seu pensamento, e via a Eclesiástica em
grande parte como o desenvolvimento natural da teologia apresentada no
Romerbrief em que o único ponto-de-contato entre o Criador e suas criaturas é
Jesus Cristo. Percebe-se que a intenção de Barth passou a ser um trabalho de
reconstrução da tradição protestante reformada conservadora, um
empreendimento que recebeu o epíteto de “neo-ortodoxia”, ainda que o termo
tenha sido sempre rechaçado pelo próprio Barth. É possível destacar ainda uma
quinta e última fase do pensamento barthiano, fase esta que marca o final da
caminhada progressiva de Barth em direção de uma posição cada vez mais
evangelical e que teve início após sua aposentadoria, tempo em que viajou a
diversos países, inclusive os Estados Unidos, aumentando consideravelmente sua
influência nos círculos teológicos mais conservadores, precisamente quando sua
influência nos círculos mais progressistas e neo-liberais gradualmente
desaparecia.
Como acontece com toda mente genial, Barth cometeu alguns excessos e deuse o
direito de fomentar algumas “heresias”. Ainda que alguns se esforcem, parece-
me quase impossível duvidar, por exemplo, do universalismo de Barth.9
ção, que centra na pessoa de Jesus Cristo tanto a rejeição quanto a eleição
divinas, mais uma indicação desse universalismo. Além disso, sugere-se com
freqüência que a rejeição da teologia natural em Barth aponta para uma forma de
fideísmo. Outras acusações ao pensamento de Barth têm sido feitas e tornaram-
se populares, por exemplo, que o trinitarianismo de Barth é de caráter modalista
(o Revelador, a Revelação, e a Revelacionalidade), apesar de Barth
explicitamente condenar o modalismo e afirmar a distinção irredutível entre Pai,
Filho e Espírito Santo na Dogmática Eclesiástica. Diz-se também que sua
arquitetura triádica da Palavra de Deus (Jesus Cristo, o Logos Theou; a Escritura,
a Palavra de Deus escrita; e o Evangelho proclamado pela igreja, a Palavra de
Deus pregada) implica em uma atitude de menosprezo para com a Bíblia, que a
aceitação do método histórico-crítico sugere a rejeição da doutrina da inspiração
e da infalibilidade da Bíblia (ainda que Barth, em toda a Dogmática Eclesiástica,
trate a Bíblia como verbalmente inspirada e doutrinariamente infalível, e tenha
insistido que a utilização do método histórico-crítico não implica
necessariamente na rejeição das doutrinas da inspiração e infalibilidade da
Bíblia). Muitas das posições polêmicas de Barth podem ser explicadas, sugere G.
C. Berkouwer (n. l903),10 por seu insistente cristocentrismo (que para alguns
chega a ser um cristomonismo) e pela arquitetura trinitariana (para alguns,
forçada) que Barth imprime nas suas exposições doutrinárias. Nem por isso
deixou Berkouwer de sugerir que o absoluto triunfo da graça na teologia de Karl
Barth torna vaga a seriedade da decisão humana na mesma medida em que o
kerygma corre o risco de tornar-se um mero aviso feito pela igreja ao mundo,
despido da admoestação vital de reconciliação com Deus e vida em santidade
que sempre o caracterizou.
A esta altura já está claro ao leitor que este prefácio não visa dar-lhe uma síntese
do pensamento de Barth,11 nem visa oferecer extenso tratamento 10 G C.
Berkouwer é um dos mais influentes teólogos reformados do século XX.
Professor da Free University de Amsterdam, Berkouwer produziu uma coleção
de estudos dogmáticos de 18 volumes. Além de ocupar-se com outros temas, era
também um especialista em Karl Barth, sobre quem escreveu três livros, dois
deles tendo-se tornado clássicos dos estudos barthianos, a saber, Karl Barth
(1936) e The Triumph of Grace in the Theology of Karl Barth (1954).
10
11 Para este fim, sugiro a leitura de David Mueller, Karl Barth (Peabody, MA:
Hendrickson, 1972); ou Colin Brown, Karl Barth and the Cristian Message
(Chicago, IL: Intervarsity Press, 1969); ou ainda Hans Urs von Balthazar, The
Theology of Karl Barth, trans.
John Drury (New York, NY: Holt, Rinehart and Winston, 1971) 12 A melhor
biografia de Karl Barth é a de Eberhard Busch, Karl Barth: His Life from Letters
and Autobiographical Texts, trans. John Bowden (Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1994).
11
Paulo falou aos seus contemporâneos como filho de sua época. Porém, a verdade
muito mais importante é que como profeta e apóstolo do reino de Deus, ele fala a
todos os homens de todos os tempos.
As diferenças entre outrora e hoje, lá e aqui, devem ser observadas com o único
objetivo de constatar que essas diferenças não têm o mínimo significado na
essência das coisas. O método histórico-crítico aplicado ao estudo da Bíblia,
prepara a mente o que é sempre útil; porém, se eu fora constrangido a optar entre
esse método e a arcaica doutrina da inspiração eu, decididamente, escolheria por
esta, pois ela é, de direito, maior, mais profunda e mais importante; porque a
inspiração visa ao próprio processo do entendimento sem o que toda e qualquer
estruturação do raciocínio se torna vã.
Sinto-me feliz por não precisar escolher entre essas duas formas. No entanto
apliquei toda a minha atenção para observar os fatos através da histó-
O que outrora foi sério, ainda hoje o é. E o que modernamente é sério e não
mero acaso ou extravagância, está, também, diretamente integrado com o que,
em tempos remotos, foi importante.
Porém, ao chegar ao fim da obra ficou claro para mim que muito resta por dizer
e por descobrir. Portanto, trata-se de trabalho iniciador que pede a cooperação de
outros. Oxalá muitos, melhor preparados, se apresentem para também cavarem
poços.
14
Teria eu, ao escrever o livro, dito tanto a ponto de fazer arder as ore-lhas das
gentes? Ou teria eu dito aquilo que depois da guerra e especialmente na
Alemanha estava, por assim dizer, no ar, e que foi agradável a certos senhores do
mundo de nossos dias, para que eu fosse castigado, a ponto de ser erigido em
moda bastante em voga e, ainda mais, fosse puni-do com o surgimento de um
verdadeiro “Barthianismo” qual o
“Ritchlianismo” no tempo de Bismark? Parece até que tudo o que escrevi contra
a presunção humana — e por demais humana — sobretudo sobre a vanglória
religiosa, sua causa, sua roupagem, seu efeito, aplica-se agora a mim mesmo,
quando na realidade, ao escrever o livro, tencionei nadar contra a correnteza;
bater contra portas cerradas; não fazer favor a quem quer que fosse, ou a muito
poucos. Será que me enganei? Quem conhece os seus contemporâneos e quem
conhece bem a si mesmo? Não é para ficar ressabiado ao ver quais os livros
teológicos que têm, junto com o nosso, repercussão semelhante? Acaso me
equivoquei a respeito do mundo e de mim mesmo, tendo sido o servo do público
como mau teólogo, NOLENS VOLENS e engana-se porventura o leitor amigo
que toma por espiritual aquilo que para Paulo, Lutero e Calvino seria apenas um
produto dos tempos e para Nietzsche, Kirkegaard e Cohen, seria apenas
decocção? Se este for o caso, não me resta senão reconhecer o juízo que de mim
se faz pelo próprio sucesso da obra, que é de conhecimento público. E por que
não seria esta a interpretação verdadeira?
15
No prefácio à primeira edição eu escrevi que este livro poderia esperar e isto me
foi atribuído por vanglória; então agora, talvez, tire-se vingança dessa prosápia
no fato de que o livro, cm contraste com muitos outros melhores, não precisou
esperar antes foi julgado com os aplausos que lhe foram dados junto com outros,
(o que também é vaidade).
No mundo toda a carne é como a erva; esta é uma verdade mais evidente nos
sucessos estrondosos que nos casos de relativo insucesso.
Aí ficou exposta a primeira questão do meu dilema e eu bem gostaria que meus
leitores mais generosos, juntamente comigo, tomassem consciência dela e
participassem de sua carga; quando mais não seja, para que eles, como também
eu, não se admirem se, algum dia, ficar evidente que a erva murchou e a flor
caiu.
ções, conseqüências, aplicações e até pela simples reiteração do que aqui foi
exposto à luz.
Como se, para isto, fora eu o homem! O almirante Tirpitz escreve em suas
memórias que é fácil içar uma bandeirinha no topo de um mas-tro mas difícil é
mantê-la depois com honra. Eu juntaria: é ainda mais difícil mantê-la honrada no
alto da haste — mesmo que não se cogite de trazê-la para baixo.
16
Este é o meu caso; muitas vezes, quando volto a me compenetrar que tendo
escrito o livro, preciso elaborá-lo mais, chego a pensar que talvez fosse melhor
que nunca o tivesse escrito, especialmente agora quando, da noite para o dia, o
livro me trouxe, mal armado que estou, a responsabilidade da cátedra
universitária onde é muito concreto o desafio diário de levar o arado
cuidadosamente para frente, mas onde, também, de dia para dia, e de forma
igualmente concreta, é nos lembrado quão infinitamente pesado é arar sozinho
para cultivar no campo do ensino cristão a necessária amarga “inovação”.
Se for lícito ver o “sucesso” da minha “Carta aos Romanos” deste lado mais
favorável e se apesar de tudo quanto, com razão, se disser contra o livro, o êxito
significar que uma brecha, ainda que muito modesta, foi aberta na muralha da
aflição interna e externa do protestantismo moderno, quão vergonhoso e
opressivo é para mim e para meu leitor, especialmente o leitor amigo,
compreensivo, companheiro, que não sejamos, neste instante, gente
completamente diferente para dizer e agir conforme agora deveria ser dito e
feito, com golpe contra golpe, para fazer jus à necessidade e à esperança da
Igreja, a menos que tudo tenha sido uma Fata Morgana.
o odor da eternidade,
Sim, Deus precisa ...! E um tal DOMINI CANIS gostaria de ser; oxalá pudesse
eu conquistar para a “ordem” todos os meus leitores! Crítica mais perfeita do
que esta não posso imaginar para meus livros. Mas também nenhuma outra mais
crítica! Pois quem pode acrescentar um côvado à sua estatura? E assim, também
visto deste lado, o “sucesso” é de fato um julgamento ao qual estamos sujeitos.
17
Para aqueles que não querem deixar de ser a Igreja Militante do século 20, não
será possível contornar qualquer ameaça ou aflição semelhante à que pesou
sobre os cristãos protestantes e teólogos do século 16. Quanto a mim, é bastante
lembrar-me da dialética do conceito de “sucesso” para sentir uma forma dessa
aflição. MONITI DISCAMUS!
Munster, Westphalia
fevereiro, 1926
18
Todavia não quero que o livro seja publicado mais uma vez sem dizer que se eu
tivesse que expor novamente a Epístola e estivesse eu resolvido a fazer a mesma
coisa, eu haveria de expressá-la de forma bem diferente. Eu descobri no decorrer
do tempo, que existe em Paulo, de um lado, muito maior variedade e de outro
muito maior monotonia do que lhe atribuí então. Por isso muito teria que ser
drasticamente reduzido e muito teria que ser expandi-do. Muito teria que ser dito
com mais cuidado e mais reserva; contudo, muito deveria ser expresso com
maior clareza e maior ênfase. Grande parte da estruturação do livro se deveu à
minha situação particular e também à situa-
ção geral da época. Isto teria que ser removido. Por outro lado, muitos meandros
da Epístola, que então eu não notara, deveriam ser trazidos à luz. Os que lerem o
livro devem lembrar-se também do fato simples que hoje estou sete anos mais
velho, e todos nossos cadernos de exercício precisam, obviamente, ser
corrigidos.
Ainda mais; depois que saiu a 5ª edição embarquei na publicação dos meus
“Prolegomena da Dogmática Cristã”. Isto significa que se aliviou a
responsabilidade que pesava sobre o primeiro livro e também que uma crítica
séria do primeiro deve ter em conta o que está dito no segundo, um livro mais
completo, ao qual tentei dar um tratamento mais amplo e maior precisão.
queiram notar que a segunda obra, bem como os outros livros meus, são adita-
mento ao primeiro trabalho.
Outro dia apareceu a seguinte nota, em Neuendettelsau: “De Karl Barth, pode-se
dizer que ele está deslizando para a posição de um homem de ontem”.
rio antes de que se prove que aquilo que escrevi está esgotado e que o ontem
existente SUB-SPECIE AETERNI também se manifestou no tempo devido.
Munster, Westfalia
* “Boca-livre”
20
AB EXTRA, AD REM
lica Romana.
Ora, não tenho a mínima intenção de fazer a defesa de Barth como não tenho
qualquer inclinação para o comunismo; (você o sabe muito bem.). Todavia, a
acusação que, assim, é assacada a Barth vem de homem culto; teólogo como
Barth o foi; fez altos estudos não só em Varsóvia como também em Roma; é
professor universitário e, fora de dúvida, revela erudição, cultura teológica e
muita familiarização com os pensadores modernos, notadamente os europeus.
Por isto, e com as devidas reservas, quero aqui registrar o fato para dizer o que
penso a respeito.
Não se pode julgar a crítica sem saber de onde ela procede, e isto vale tanto para
o louvor como para a detração, (foi, aliás o que Barth escreveu em um de seus
prefácios). Miguel Poradowski, o autor do artigo, é católico tradicionalista e
polonês; são duas qualidades quase redundantes. Houve tempos em que me
parecia que, “embora todo católico não fosse polonês, todo polonês era
católico”; e católico extremado, intransigente, indo às raias do fanatismo. Esta
foi a minha impressão na juventude e hoje me parece que, embora essa maneira
de dizer seja caricata ela serve para acentuar verdade incontestável: O
catolicismo está profundamente arraigado nas tradições do povo polonês.
21
Ab Extra, Ad Rem
A Polônia conservou-se por longos séculos uma fiel seguidora da Igreja Romana
e sob o reinado de Wladislaw II (Jaciello) no ano de 1400 obteve o feito glorioso
da “conversão pacífica” da última grande massa de pagãos remanescentes na
Europa.
Este surto protestante foi extremamente vigoroso e sob sua influência a Polônia
gozou do seu primeiro apogeu poético (Apud Enciclopédia Britânica). Todavia, a
aceitação do protestantismo teve cunho popular e raros foram os membros da
nobreza e da “alta” sociedade que a ele aderiram.
Em 1565, com o advento dos Jesuítas, a Polônia foi reconduzida à Santa Sé. O
rei aceitou os postulados do Concílio de Trento; os “hereges”
Ab Extra, Ad Rem
Ab Extra, Ad Rem
Tenho para mim que aquilo que Barth escreveu vale em si mesmo, qualquer que
seja a posição que haja tomado ulteriormente, ou qualquer que tenha sido a sua
tendência política; todavia, essa posição, ainda que futura com relação a obra,
pode ter as suas raízes lançadas já, na obra que a antecedeu e a sua inclinação
política há de ter influência na obra ou vice-versa, a obra pode ter levado a ela.
Portanto, tomando ciência da acusação que seriamente se faz a Barth (ainda que
a pureza de origem dessa acusação possa ser posta em dúvida) convém que a
leitura de sua obra e a sua interpretação sejam feitas com a sensibilidade aguçada
para esse aspecto, a fim de que não nos tornemos inocentes úteis, nem mesmo
inúteis, eventualmente promovendo ou favorecendo uma causa que não é nossa.
novembro, 1977.
24
APRESENTAÇÃO
— Capítulo I —
“A NOITE”.
• A Noite
25
Capítulo I
Introdução (1 - 17)
Paulo a seus Leitores (1, 1 - 7)
Vs. 1 - 7 Paulo, servo de Cristo Jesus, chamado para Apóstolo e escolhido para
o evangelho de Deus, o qual há muito fez anunciar através de seus profetas, nas
Escrituras Sagradas, tratando de seu Filho, nascido da estirpe de Davi segundo
a carne, poderosamente estabelecido como Filho de Deus, segundo o Santo
Espírito, pela sua ressurreição de entre os mortos
conteúdo de sua mensagem não está nele mas vem de lugares estranhos,
longínquos, inconquistáveis, inatingíveis.
Paulo não pode considerar a sua vocação para o Apostolado como uma
ocorrência casual, momentânea, de sua vida; ela é fato paradoxal que o
acompanha desde o primeiro momento de sua existência e permanecerá com ele
até o fim, à parte de sua identidade pessoal (Kierkegaard).
27
1, 1-3
O recado que Paulo tem para entregar é o “Evangelho de Deus”; é transmitir aos
homens a inaudita, boa e alegre verdade de Deus! Justamente de Deus! Não se
trata de mensagem religiosa, ou de notícia ou instrução sobre a divindade ou a
divinização do homem, mas da mensagem de um Deus totalmente diferente do
qual o homem, como tal, nunca virá a ter conhecimento, ou ter parte, mas de
quem, por isso mesmo, vem a salvação; não é algo a ser entendido diretamente,
uma coisa a ser compreendida, de uma vez, entre as demais coisas, mas é a
Palavra sempre nova que precisa ser percebida sempre de novo, com temor e
tremor; é a Palavra sempre reiterada, da origem de todas as coisas.
Não se trata de vivência, experiência ou descoberta; porém, ainda que fosse algo
disso, seria então simples conhecimento objetivo daquilo que nenhum olho viu e
ouvido algum jamais ouviu. Trata-se de comunicação que não demanda, apenas,
que dela se tome conhecimento, mas impõe que dela se participe; ela não requer
mero entendimento, mas compreensão; não somente compaixão mas
cooperação; é comunicação que pressupõe a existência da fé da qual é também
geratriz. E a mensagem de Deus “de há muito anunciada” e não uma idéia
repentina de agora; essa mensagem é o sentido, o pomo amadurecido, da própria
história; é o fruto dos tempos e qual semente da eternidade é o cumprimento da
profecia. É a palavra pronunciada pelos profetas de antigamente que agora se
torna perceptível e percebida.
Esta é a essência da mensagem confiada ao apóstolo; ela é a garantia do seu
discurso e a sua crítica. Falam, agora, as palavras dos profetas, que há muito
estavam fechadas sob chave: ouve-se hoje o que foi anunciado há séculos por
Jeremias, por Jó, pelo pregador Salomão; pode-se pois ver e entender o que está
escrito. Temos agora “um acesso a todo Antigo Testamento”.
(Lutero).
28
1, 3-4
Este plano conhecido é cortado por outro, desconhecido dos homens, que é o
mundo do Pai, o mundo da criação original e da redenção final.
A relação entre nós e Deus, entre o nosso mundo e o mundo de Deus, entre os
dois planos que se interceptam, não é evidente por si só, porém se revela no
ponto de destaque da linha de interseção: Jesus! [É Jesus que torna visível a
relação entre nós e Deus; é apenas em Jesus que esse relacionamento pode ser
visto]. É o Jesus de Nazaré; o Jesus “histórico” que nasceu da linhagem de Davi,
segundo a carne, e que, em sua função histórica, significa o ponto de divisão [o
ponto de tangência] entre um mundo nosso conhecido e outro, nosso
desconhecido.
1, 3-4
nhecido de Deus, não deve ser confundido com esse mundo desconhecido, ainda
que seja identificado ou identificável com a vida de Jesus.
À medida que o nosso mundo [temporal] for tocado pelo outro mundo
[de Deus] através de Jesus, deixa ele de ser histórico, temporal, material,
diretamente perceptível: Jesus é “poderosamente estabelecido como Filho de
Deus, pelo Espírito Santo, através da sua ressurreição de entre os mortos”.
Jesus, como o Cristo, o Messias, é o final dos tempos. Ele só pode ser entendido
[compreendido], como paradoxo— (Kierkegaard), como vencedor
— (Blunhardt), como pré-história. (Overbeck).
Na ressurreição o novo mundo do Espírito Santo toca o velho mundo carnal qual
tangente roçando o círculo, não o tocando mas tangenciando apenas; chega ao
ponto de tangência como o limite entre os dois mundos.
30
Naquilo que ele foi, ele é; mas naquilo que ele é, está subjacente o que ele foi.
Não há, aqui, enlace entre Deus e o homem — [O Filho do Homem e o Filho de
Deus]. O homem não é guindado à divindade nem esta se derrama no ser
humano. Mas, o que nos tangencia sem tocar-nos [sem se confundir conosco]
O Reino de Deus tornou-se atual; ele chegou próximo. (Cap. 3 vs. 21 e 22). Este
Jesus Cristo é “Nosso Senhor”. Por sua presença neste mundo e em nossa vida,
somos anulados como homens e alicerçados em Deus. Com os olhos postos nele,
somos retidos e impelidos; os nossos passos são retardados e apressados. E
porque ele, como Senhor, está acima de Paulo e dos Romanos, Deus, na Epístola,
não é uma palavra vazia.
Graça é o fato real, embora incompreensível, que Deus se agrada do ser humano
e que este pode alegrar-se em Deus. Mas a graça somente é graça quando ela for
reconhecida como inexplicável [sem razão de ser], incompreensível. E por isso
que só há graça sob o reflexo da ressurreição, como dádiva de Cristo, que
eliminou a distância entre Deus e os homens, tirando-a violentamente [quiçá,
vencendo o afastamento que a morte implicitamente encerra, com o rompimento
violento do túmulo para o surgimento triunfante da vida].
“Uma coação está sobre mim: Ai de mim se eu não pregar o Evangelho”. (1 Cor.
9,16).
31
1, 6-7
O mesmo Deus que fez de Paulo o Apóstolo dos Gentios, pensou também nos
cristãos de Roma para trazê-los ao seu reino, próximo a vir. Assim, chamados
para a santidade, não pertencem mais a si mesmos nem ao velho mundo que
passa mas a quem os chamou. Também para os romanos foi o Filho do Homem
estabelecido, investido, como Filho de Deus, por força da ressurreição. Também
eles estão agora cativos da grande carência que têm e da grande esperança que
sentem. Também eles foram escolhidos e particularizados por Deus, de alguma
maneira. Também para eles existe uma nova condição “na graça e paz de Deus,
nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo” [desta forma irmanando os Cristãos
Romanos ao Senhor Jesus — este e eles, filhos do mesmo pai].
Comentários: 1, 1-7
Aí ficou o que eu entendi estar escrito no original sobre os versos 1
a 7 do Capítulo1.
...ele (Paulo) é apenas “possível como exceção, ou melhor, ele é uma exceção
impossível.”
b) Gosta de matemática.
c) Usa de vocabulário farto, quase redundante, para melhor vestir suas imagens.
2. Por falar em imagens o autor parece estar, logo no início, preocupado com o
combate à idolatria. Esta me parece ser a tecla mais sonora de sua introdução.
Paulo não é santo, nem gênio; apenas servo, ministro de seu rei; mensageiro.
32
Não há privilégio na escolha do homem por Deus; é dever a cumprir que cabe a
todos, ainda que o mensageiro tenha o mérito de ser o escolhido do Senhor.
Ninguém pode dizer que conhece a Deus ou que Deus lhe concedeu favores
especiais: uma só é a graça e essa está na ressurreição de Cristo e não na vontade
dos crentes.
A fé, porém, vale pela capacidade que tiver em aceitar, e numa espécie de poder
regenerativo, vale pela fé que ela mesma criar, através da cabal aceitação.
3. Da apresentação do texto:
33
1, 8-10
V. 8 Antes de tudo dou graças a meu Deus, através de Jesus Cristo, pois em todo
o mundo fala-se da vossa fé.
Os cristãos, por toda parte, escutaram, estiveram atentos à notícia. (16, 19).
Ainda que seja apenas parábola, é pelo menos parábola.
Paulo não agradece a seu Deus pela devoção ou outra vantagem que se pudesse
notar nos cristãos da grande cidade, porém pela existência deles como cristãos.
Vs. 9 e 10 Pois o Deus a quem eu honro em meu espírito, visto que anuncio o
evangelho de seu filho, é minha testemunha como sem cessar intercedo 34
1, 9-10
por vós em minha adoração, não sem rogar que, enfim, me seja concedido, pela
vontade de Deus, ir ter convosco.
Mas será um tal encontro possível? Será necessário? Realmente, não será
imprescindível. Tal desejo nada tem a ver, diretamente com o Reino de Deus. A
vontade de Deus tem a primazia; a realização do desejo humano tanto pode ser
como deixar de ser concedida.
O que deverá acontecer em conformidade com a vontade de Deus virá quando
essa vontade for cumprida. E enquanto ou se Deus não conceder segundo o
desejo dos corações de seus servos, a estes compete cultivar a confiança mútua e
buscar a vontade de Deus com singeleza de coração; quando a situação interna e
a externa coincidirem genuinamente com a vi-são cristã do que seja reto; então o
cristão compreenderá qual seja a vontade de Deus. (12. 2).
[Se a situação interna for auferida e aferida pela comunhão do Crente com Deus,
por intermédio de Jesus Cristo, e a situação externa for aquela que o Reino dos
Céus propicia à medida e na medida que seja estabelecido entre os homens,
então a visão do que seja reto será alcançada pela renovação da mente para que
cada cristão possa compreender qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de
Deus].
35
1, 11-13
Esse anseio tem sua razão de ser. Peregrinos que se encontram na estrada que
leva a Deus, têm sobre o que trocar idéias. Um pode significar algo para o outro,
não porque assim o queira; não, exatamente, por sua riqueza interior, não pelo
que seja, mas por aquilo que não é; por sua pobreza, por seu suspirar e por sua
esperança; por sua vagarosidade e por sua pressa; por tudo que, em seu ser,
aponta para outro ser que esta além do horizonte e acima de suas forças.
O Espírito distribui graça por ele, justamente porque ele nada tem de si, de
positivo, que possa ter algum valor. E neste processo o distribuidor se transforma
em receptáculo; quanto mais dá, mais recebe e quanto mais for recebendo mais
terá para dar.
É bastante que acima de nós, atrás de nós, além de nós, exista a fé, a mensagem
da fé, o conteúdo da fé, a fidelidade de Deus, que consola o superior e o
principiante nas suas tentações e fraquezas, tanto externas como internas.
V. 1 3 Deveis porém saber irmãos, que já muitas vezes tencionei chegar até vós
para que também entre vós, como entre os demais gentios, eu produza frutos,
mas até aqui fui impedido de fazê-lo.
Muitas vezes teve Paulo o propósito de visitar Roma satisfazendo o seu próprio
desejo e, evidentemente, o dos cristãos que lá se achavam. Mas é dema-36
1, 13-15
siado grande o número de localidades que não tiveram ainda o início da prega-
Também é certo que o preceito de pregar apenas onde o evangelho ainda não foi
anunciado não é nenhuma lei dos Medas e Persas pois, em última aná-
Também os romanos pertencem ao rebanho de povos pelos quais Paulo sabe que
é responsável como o escolhido por Deus para levar-lhes o evangelho.
Ele quer falar-lhes das coisas antigas e novas. O que é conhecido, neste caso,
para todos e sempre, é o não conhecido, do qual nunca se será lembrado em
demasia.
(15, 15) [“Porque tudo quanto outrora foi escrito, o foi para nosso ensino, a fim
de que pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança”].
Contudo, por enquanto, faça-se a tentativa de, por meio da palavra escrita, reunir
os cristãos da comunidade romana para, em uníssono, baterem à porta com o fim
de produzirem o movimento.
Comentários: 1, 8-15
1. O que aqui foi apresentado como questões de fôro pessoal é designado apenas
como “pessoal”, pelo autor.
Paulo, depois de haver dado aos romanos a razão (ou as razões) de ser de sua
carta, conta-lhes de seus problemas íntimos; por que ainda não foi visitá-los e
como se sente feliz porque os romanos tomaram conhecimento do nome de Jesus
Cristo, e o aceitaram na sinceridade de sua fé.
37
1, 15-16
3. Somente pode ser testemunha e mensageiro de Deus, quem recebe a graça que
vem do alto e, para recebê-la, é preciso que o homem se esvazie, que renuncie a
si mesmo.
lica, diz: “O justo viverá pela fé”, portanto APUD nossa versão de Almeida; a
nossa (hoje já quase esquecida) versão de Figueiredo diz: “O justo viverá da fé”.
Acha o Autor que a sua tradução se harmoniza melhor com o texto original e por
ela orienta a sua análise, entendendo-se porém que em Hab. 2,4, é Deus quem
fala. O possessivo refere-se a Deus; parafraseando, poderíamos dizer, segundo o
Autor, “o justo viverá pela fidelidade de Deus”]
mica com as religiões e filosofias do mundo, nem tão pouco precisa temê-las ou
fugir delas. O evangelho persiste e subsiste por si, como a mensagem que vem
da linha de interseção do plano deste mundo como plano do mundo do 38
O Tema da Epístola
1, 16
ções do mundo em seu século], está livre [e acima] de toda e qualquer contenda;
não há apologética nem preocupação com a vitória do evangelho, pois ele é a
própria base de todas as coisas; o seu sustentáculo é também a sua consuma-
ção, o seu fim; e assim sendo, o evangelho é a vitória que vence o mundo.
Deus não necessita de nós, e teria mesmo que se envergonhar de nós, não fora
ele Deus e precisasse de nossos préstimos. Antes, somos nós que dele
carecemos.
E assim é o seu Poder, a sua força: não a força da natureza, nem da alma, nem
outra força qualquer, mais alta ou uma super-força que acaso conheçamos ou
alguma outra que pudéssemos vir a conhecer. O Poder, ou a força de Deus não
pode ser considerado, nem mesmo, como a força suprema do mundo, ou a
somatória de todas as forças ou ainda a origem delas, mas é a crise de todas e de
39
1, 16
O Tema da Epístola
As forças que o mundo possui, ou que imagina que tenha ou que possa vir a ter,
são necessariamente condicionadas [limitadas].
Ora, o Poder de Deus não pode ser intercambiado ou alinhado com tais forças,
nem podem estas ser comparadas com ele, senão com o mais absoluto cuidado e
a máxima prudência.
A comunidade [cristã] não conhece palavras, obras, ou coisas que sejam santas
em si mesmas; conhece apenas palavras, obras e coisas que, como nega-
ções, [isto é como sinais e evidência de tudo quanto o homem não é, ou melhor,
de tudo quanto ele é em oposição a Deus] apontam ao que é Santo.
O Tema da Epístola
1, 16
homem que se nega a si mesmo, que se anula em sua soberba pretensão e sua
vontade egoísta e vaidosa, para dar lugar a Deus], teria conteúdo [ainda que
fátuo]; em vez de côncavo seria convexo [isto é, em vez de fazer convergir e
concentrar a mensagem recebida a dispersaria]; em vez de negativo, seria
positivo; em vez de ser a expressão da sua própria insuficiência, toda voltada
para a esperança na promessa do evangelho, teria a pretensão da auto-
suficiência, de mostrar-se intrinsecamente rico em qualidades.
Nestas condições deixariam os cristãos de ser uma comunidade cristã para serem
uma cristandade compromissada com a oscilante realidade mundial, de aquém
ressurreição [portanto sem o Cristo vivo, ressurrecto]. Tal cristandade,
praticando com o mundo um pacífico e cômodo MODUS-VIVENDI, não pode
ter parte com o Poder de Deus.
41
1, 16
O Tema da Epístola
— “Existe um Deus”?
Pretender entender este mundo em sua unidade com Deus será, ou condenável
arrogância religiosa ou, a última [a mais profunda] visão [ou perspectiva] da
verdade que existe para além do berço e do túmulo: uma visão vinda do lado de
Deus.
Fala do Criador que se torna nosso Redentor e do Redentor que é nosso Criador.
O mundo, porém, não deixa de ser mundo e o ser humano continua sendo um ser
humano; cabe-lhe suportar toda a carga do pecado e arcar com a total maldição
da morte, [a despeito de haver percebido os sinais da graça de Deus].
Que não haja qualquer auto-ilusão sobre o estado de fato da nossa existência e de
nosso modo de ser.
O não que veio a nosso encontro, o NÃO de Deus: o que nos falta é também o
que nos socorre; o que nos cerceia [o que barra a nossa saída] é a nova terra [a
porta que nos enclausura é também o umbral que nos leva ao reino dos céus].
42
O Tema da Epístola
1, 16
(Hab. 2, 1-3).
[não é palpável]. Cristo foi estabelecido o Filho de Deus, “pelo Espírito”, (1, 4) .
Ora, “o espírito é a negação do que é reconhecível diretamente, [que é a
matéria]. Se Cristo for verdadeiro Deus, então ele será necessariamente
irreconhecível. O conhecimento direto é uma característica inerente aos ídolos”.
(Kierkegaard).
O “Poder de Deus para a Salvação” é algo tão novo, tão inaudito, tão inesperado,
neste mundo, que só pode surgir, ser percebido e ser aceito como contradição. É
assim que o evangelho não porfia por esclarecer-se nem procura tornar-se
conveniente [cômodo e agradável aos interesses terrenos]; não solicita e não
transige; não ameaça e não promete. Ele se retrai por toda parte onde não for
ouvido pela própria força de sua proclamação.
1, 16
O Tema da Epístola
isso não pode ser apreendido senão pela fé e, portanto, para ser aceito é preciso
que se creia nele. A única alternativa à sua aceitação pela fé. é a sua rejeição].
ção e quiçá, até uma verdade entre muitas outras alternativas, filosofias, cren-
ças e religiões].
Aquele que não estiver à altura da contradição, que não se conformar com ela,
[que não estiver pronto a perseverar na esperança da boa nova qual o evangelho
a apresenta, não quiser esvaziar-se a si mesmo para dar lugar à plenitude de
Deus] para esse, o evangelho será motivo de escândalo. Todavia, a todos os que
não fugirem da evidência da contradição [antes perseverarem na aceitação da
graça paradoxal e inaudita, e estiverem prontos para morrer para a vida material
(a fim de ganharem a vida espiritual), de se esvaziarem completamente (para se
encherem dos dons do espírito), que nada pretenderem, nem mesmo ousarem
desejar herdar a vida eterna ou se locupletar de dons celestiais, que não
imaginarem uma transação de vacuidade calculada para dar lugar ao
preenchimento que viria qual recompensa, os que voltarem suas vistas,
sinceramente, para a Cruz e a Ressurreição] para esses tais abrir-se-á o caminho
da fé.
Todo aquele que reconhece que os limites do mundo estão demarcados por uma
verdade que o contradiz; todo aquele que vê a sua própria limitação marcada
pela vontade divina que contraria sua própria vontade; quem acaricia o espinho
que esse cerceamento representa em seu ser e seu modo de ser, ainda que isto lhe
seja extremamente difícil, por conhecer demasiadamente bem a extensão dessa
contradição e que, embora por essas razões todas tenha anseios de escapar dela,
obriga-se a viver com ela (Overbeck) e que, em resumo, se confessa sujeito a
essa contradição, vencendo a si mesmo ao ponto de nela [e por dai apoiar e
orientar a sua vida, — esse tal crê!
O Tema da Epístola
1, 16
a sua própria fidelidade, quem ficar com Deus, a despeito de todos os “ainda
que” e “apesar de” [que as contingências da vida possam trazer], este CRÊ!
É por isso que a fé não é, jamais, idêntica à “religiosidade” ainda que esta seja a
mais fina, a mais pura, pois a religiosidade é um marco da fé, e como tal anula
outras realidades do mundo e junto com estas, notoriamente, a si mesma. A fé,
porém, vive por si própria, porque vive de Deus! Este e o CENTRUM
PAULINUM. (Bengel).
Todo indivíduo pode e deve crer. Com o direito de opção [a crer e a escandalizar-
se] estão “o judeu e o grego”.
1, 17
O Tema da Epístola
cegos e luz nas trevas; tem pois obrigação de achegar-se primeiro a seu Senhor e
Redentor.
A pergunta “se é religioso, ou não”, já não tem mais razão de ser, e da outra
interrogação: “Se é eclesiástico ou mundano”, nem se fala. [Se é clérigo ou
leigo].
O clamor revoltoso dos que se insurgem contra tal Deus está mais perto da
verdade do que as artificialidades levantadas pelos que o querem justificar.
Porém, em Cristo, Deus fala; fustiga o NÃO-DEUS das mentiras deste mundo e
confirma a si mesmo ao negar-nos quais somos e ao rejeitar o mundo, qual é.
Ele dá-se a conhecer como Deus, Deus além da nossa queda, além do tempo, da
matéria e dos homens: como libertador dos cativos e assim, em seu conjunto,
como Criador.
46
O Tema da Epístola
1, 17
Ele se declara nosso Deus enquanto cria e resguarda a distância que vai de nós a
ele; ele se compadece de nós convidando [provocando] a nossa crise e trazendo-
nos a juízo. Ele garante a nossa salvação querendo ser Deus e ser reconhecido
como Deus, em Cristo. Ele nos justifica, justificando-se a si mesmo.
[Submetendo-se, ele mesmo, à sua justiça].
“Pela fidelidade” revela-se a nós a justiça de Deus: pela sua fidelidade para
conosco. O verdadeiro Deus não se esqueceu do homem. O criador não
abandonou a criatura.
À fé revela-se o que Deus revela por sua fidelidade. Aqueles que pres-cindiram
da comunicação direta, recebem-na; àqueles que ousam arriscar-se com Deus
[que entregam a própria sorte em suas mãos, sem indagar sobre a natureza de
Deus] fala Deus como ele é; aos que tomam sobre si o fardo do divino NÃO, ele
suporta com o divino SIM, que é infinitamente maior. Os que sofrem a
contradição, sem dela fugir, são sobrecarregados, mas aliviados; aqueles que
perseveram na esperança, nela mesmo reconhecem que estão autorizados a tê-la:
que podem e devem esperar pela fidelidade de Deus.
47
1, 17
O Tema da Epístola
É pela sua fidelidade que Deus, como o total outro, o Santo, com seu inevitável
NÃO, veio ao nosso encontro, em nosso encalço.
A fé, pela parte do homem, é a adoração que este NÃO divino aceita
o justo viverá!
Comentários: 1, 16-17
1. Paulo fala como servo e arauto. Submisso e sem diretriz própria, mas
altaneiro, firmemente decidido a cumprir o mandado (mas não man-dato) que
recebera.
Igual aos demais homens e até abaixo deles, pois vem servi-los, e também, pela
investidura que recebeu de seu Rei e Senhor, superior a eles todos pois vem
revestido de munus mais excelente que outro qualquer, o de anunciar-lhes as
boas novas de salvação, isto é, do restabelecimento do vínculo entre Deus e os
homens, trazendo-os de volta à sua posição original e que lhes foi concedida
desde antes dos tempos por eleição divina: a de Filhos de Deus.
Mas é absolutamente fiel, até mesmo na gratidão. (Era de têmpera bem diferente
da de Jonas...).
“Incessantemente dou graças a Deus, por vós, pois em todo mundo fala-se de
vossa fé”.
Era a alegria de ver o evangelho que ele pregava, já anunciado e crido em Roma.
48
1, 18
A NOITE
49
1, 18
Origem da Noite
A ira de Deus é o julgamento sob o qual estamos enquanto não amamos o juiz.
[E a sentença que pesa sobre nós enquanto não aceitamos a graça de Deus em
Jesus Cristo, que nos leva a amá-lo; enquanto não afastamos a ira de Deus
submetendo-nos ao seu Poder]. A ira divina é o NÃO que permanece diante de
nós enquanto não o aceitamos [isto é, enquanto não nos colocarmos também do
lado do NÃO, vale dizer, do lado de Deus]. A ira de Deus é o protesto contra a
existência e o modo de ser do mundo, e está inscrita em toda parte e acima de
tudo e persiste contra nós enquanto esse protesto não for também nosso próprio
protesto. Essa ira é a problemática de nossa vida enquanto não a entendermos [à
luz da revelação divina manifesta na ressurreição de Cristo], e é a nossa
limitação e transitoriedade [do berço ao túmulo] enquanto não reconhecermos a
necessidade [ou a graça] dessa condição.
Mesmo que a porta que nos encerra na prisão não se transforme em portal de
saída, o nosso tempo material continua sendo nada quando comparado (e
medido) em termos da eternidade; as coisas materiais são meras semelhanças
quando postas em termos de sua origem e fim; continuamos sendo pecadores
destinados à morte. Tudo isso prevalece. A vida continua o seu curso com todas
suas incertezas mesmo que não percebamos o grande ponto de interrogação que
está posto diante de nós. O homem está perdido ainda que nada saiba da
salvação; e a porta que cena o vão continua fechada: não se transforma em
atalaia; a espera [ansiosa pelo alvorecer] deixa de ser jubilosa, radiosa, para ser
uma acre-doce capitulação ante o inevitável. A reação não é mais de esperança
porém de penosa obstinação. O frutífero paradoxo de nossa existência 50
Origem da Noite
1, 18
51
1, 18
Origem da Noite
O que quer dizer “fora de Cristo” e “sem Cristo”? “A ira de Deus revela-se
contra toda a impiedade e insubordinação dos homens”. Estas são as marcas
características de nossa relação com Deus aquém da ressurreição.
Para nós não se trata de Deus porém das nossas necessidades [de nossos desejos
e conveniências] pelas quais queremos que Deus se oriente.
Além de tudo isso, a nossa petulância pede ainda que nos seja dado a conhecer
um “super-mundo” e que tenhamos acesso a ele. Pedimos uma motivação
profunda, um louvor ou uma recompensa, vinda do além.
Origem da Noite
1, 18
[quando o homem quis ser igual a Deus. O ser humano perde-se primeiro em si
mesmo, presa de sua própria conduta, [retendo a verdade] e depois pela criação
(e adoração) do NÃO DEUS.
Ouvimos, primeiro, a profecia: “Sereis como Deus!” Depois perdemos o senso
do eterno. Primeiramente sobre-elevamos o homem e, em seguida,
menosprezamos a distância que nos separa de Deus.
Esta é a resistência que nos torna impossível olhar a planície da nova dimensão e
nela ver a limitação de nosso mundo e a nossa salvação.
A situação é esta:
53
1, 19
Origem da Noite
Vs. 19-21 A idéia de Deus lhes é conhecida, Deus a deu ao conhecimento deles
pois as coisas invisíveis estão manifestas, desde a criação do mundo, nas suas
obras, se forem observadas sensatamente, (e este é Justamente o seu Poder
Eterno, a sua divindade!) que não haja desculpa, porém, a despeito do
conhecimento que tiveram de Deus eles não lhe tributaram honra nem lhe
renderam gratidão, antes, esvaziou-se o seu pensamento e obscureceu-se-lhes o
coração insensato.
Ao deparar com a nossa limitação e com o fato de que quem nos cerceia é
também quem suprime esse cerceamento, o raciocínio humano, desde a sua
forma mais primitiva até a sua forma mais elaborada, cairá, repetidamente, em
Sabemos que Deus é o Deus que não conhecemos, e que esta ignorância é,
simultaneamente, o nosso problema e a origem de nosso conhecimento.
Sabemos que Deus é a personalidade que não somos e que justamente este
NÃO-SER anula e também estabelece nossa personalidade.
Origem da Noite
1, 20
mos ante a sua face quer como acusadores, quer como queixosos, arrazoando
com ele conforme o fazemos com nossos semelhantes.
O que são as obras de Deus em suas formas as mais enigmáticas (um jardim
zoológico, por exemplo) se não perguntas que não têm respostas diretas e das
quais só Deus, Deus mesmo, é a resposta?
O NÃO divino que aponta à nossa limitação e, nela, para a nossa saída dela,
pode ser percebido e compreendido pela contemplação sensata, calma, objetiva e
sem religiosidade preconcebida, das obras de Deus, desde a criação do mundo.
Nada e ninguém, senão nós mesmos, pode impedir que a idéia de Deus nos faça
entrar na mais salutar das crises que, na realidade, começa a manifestar-se desde
o momento quando nos dispomos a ver sensatamente.
Esta é a sua preeminência sobre todas as divindades e é isto que o aponta como
Deus, Redentor e Criador. (1, 16).
Se tivermos encapsulado a verdade de Deus e, assim, atraído sobre nós a sua ira,
não foi porque não tivemos outra alternativa pois “Deus, em quem 55
1, 21
Origem da Noite
vivemos, nos movemos e existimos não está longe de cada um de nós” (Atos 17,
27-28). Portanto, no que concerne a Deus, a situação poderia ser diferente.
O conhecimento de Deus que nos é dado com um simples relance de olhos sobre
a inexplicabilidade, a imperfeição e a insignificância de nossa vida, não foi
levado a proveito.
Em vez de vermos a luz na sua luz que é a luz eterna que ninguém pode apagar,
fazemo-la apenas uma luz entre outras ainda que a reputemos a maior, a mais
fantástica, sobrenatural; achamos lógico acender a nossa luz nessa luz
sobrenatural e, com a mesma lógica procuramos a luz nas coisas concretas que
nos cercam.
Onde fica, pois, a tributação da honra que lhe devemos quando Deus já não é
mais o Desconhecido? Onde a gratidão que lhe pertence quando, para nós, ele já
não é mais do que aquilo que nós mesmos somos?
Conseqüentemente, a luz que há em nós são trevas e a ira de Deus sobre nós é
inevitável. “Esvaziou-se o seu pensamento e obscureceu-se o seu coração
insensato”, e a nossa limitação é verdadeiro emprisionamento e o NÃO divino
significa realmente NÃO, para nós.
Esta orientação para Deus, este relacionamento, precisa ser estabelecido para que
a nossa mente e nosso coração, contemplando com sensatez, sejam quebrantados
com a lembrança da eternidade — [ou, em outras palavras, para que a lembrança
da eternidade de Deus, proclamada por suas obras, seja percebida por nós,
invada nossa mente e nosso coração, e nos oriente, nos aproxime do Deus eterno,
em Cristo Jesus.]
Outra relação com Deus que não aquela do caminho de Jó, não existe.
Se não houver o rompimento [da casca externa, criada pela nossa resistência 56
Origem da Noite
1, 18-21
pessoal] então o pensamento continua vazio, formal, analista e crítico, infrutí-
Comentários: 1, 18-21
Sim, esta é, segundo o Autor, a origem da ira de Deus e das trevas espirituais que
sob a dispensação dessa ira nos envolvem.
1. Sob o pálio desta ira divina, há uma noite sem esperança, sem aurora, sem
novo dia, sem nova vida. É a própria morte, sem a ressurreição, que “o salário do
pecado é a morte”.
Ela advém sobre aqueles que obstruem a verdade. Ela se origina pela negação e
sonegação da verdade por parte de homens ímpios e rebeldes a Deus. Ímpios
porque agem desrespeitosamente para com Deus e rebeldes porque, cedendo à
primitiva e milenar tentação que ruge em torno da raça humana desde os dias
edênicos, rejeitam o temor e optam pela promessa da profecia satânica: “Sereis
iguais a Deus”.
57
1, 18-21
Origem da Noite
1, 22
Sem o paradoxo de ser uma só a fonte de onde emanam o eterno NÃO e o eterno
SIM de Deus] sim, o panorama do mundo sem esse paradoxo, e sem as
implicações da Eternidade; sem o pano de fundo do “Não” conhecido que
acompanha o conhecimento; com religião [ou religiões] sem referência ao Deus
59
1, 22
A Atuação da Noite
A Atuação da Noite
1, 22-24
Levanta-se a meio caminho entre “cá e lá” entre nós e o totalmente outro, a
neblina a opacidade religiosa [quando essa religiosidade tem por centro a
imagem do próprio homem, assentada sobre o trono divino] na qual, com os
mais variados processos de identificação e mistura e com coloridos sexuais
menos ou mais carregados, ora se erigem acontecimentos humanos e
animalescos em experiência divina, ora a existência e a ação de Deus são
experimentadas como vivências humanas e de animais.
ção) segundo a qual seria possível existir qualquer unidade [qualquer coisa em
comum] ou, ao menos, qualquer possibilidade de ligação entre Deus e os homens
[aquém ressurreição], sem que se anulasse toda a realidade conhecida e sem que
desaparecesse a verdade que existe para antes do berço e além do túmulo. [Esta
ligação], todavia, faz-se pelo milagre que vem perpendicular-mente do alto, [O
milagre da entronização de Jesus, como o Cristo].
Toda experiência religiosa que se apresentar como sendo mais do que um vazio,
que pretender ter conteúdo e traduzir a posse ou o gozo de Deus, qualquer que
seja o nível em que se situe, é uma desavergonhada e, já de antemão, 61
1, 24
A Atuação da Noite
106. 20).
“Quem sou eu?” disse (Ex. 3, 6 e 11); Isaías, só viu a vacuidade, a parte
negativa, extremamente negativa de sua situação: “Ai de mim, que vou
perecendo, porque sou homem de lábios impuros e habito no meio de povo de
impuros lábios”. (Is. 6, 5); Paulo caiu por terra, cego e, atônito e trêmulo,
esvaziou-se completamente, deixou de dirigir para ser dirigido, para perguntar,
“quem és?”,
“que queres que eu faça?” (At. 9, 5 e 6). No encontro verdadeiro do homem com
Deus, desaparecem a pretensão e a arrogância, a auto-suficiência, a piedade, a
religiosidade, a ortodoxia, a fé jactanciosa, a alegada retidão, o valor pró-
prio; tudo que a alma aufere para seu eventual conforto, transforma-se em mera
indicação do muito que falta, em origem de nova compreensão, novos deveres e
novos ideais; a “experiência do encontro” é, em si mesma, um valor negativo
que aponta para o lado direito da escala, em cuja direção os valores são menos
negativos e hão de chegar gradativamente ao ZERO, para só então começarem a
ser positivos; é assim que a experiência do encontro verdadeiro é de
esvaziamento, de vacuidade, que de certa forma se anula na própria dádiva,
realçando 62
A Atuação da Noite
1, 24
o mais, o muito mais que existe. Mas não é assim o falso encontro com Deus, ou
o encontro com o NÃO-DEUS; deste encontro sai o homem cheio de
convencimento, pleno de gozo, repleto, satisfeito, jactancloso. Será preciso
exemplificar os encontros desse teor, que por aí polulam sob os mais variados
nomes, protestantes, católicos, espíritas e “espiritualistas”, macumbeiros e
quejandos, “curadores” e “curandeiros”, recebedores de “Espírito Santo” e de
espíritos, milagreiros, videntes, iogas...?].
Desse suposto encontro com Deus brotam por deduções mediatas e por ilações,
divindades imaginárias, poderes, principados, potestades (8, 38) que mudam o
colorido e obscurecem a luz do Deus verdadeiro. (Em nenhuma parte do mundo
existe maior número de “comunicações indiretas” que no romântico reino da
“comunicação direta” India!).
pois ele ignorou que Deus é o Senhor de todas as coisas e tem o poder de
sustentá-las e suprimi-las. Já agora não tem o homem alguém superior que o
proteja das coisas e criaturas que ele mesmo elevou ao ponto mais alto acima
dele, e a impureza de seu relacionamento com Deus, lança a sua vida na
imundície. Se Deus foi destituído de sua glória pelo homem, [por força maior]
perde o homem a sua. Junto com o interior envergonha-se o exterior; com a
alma, também o corpo, pois o homem é uma unidade.
63
1, 24-25
A Atuação da Noite
[Isto é, o corpo do homem, criado em unidade com o espírito, passa a ser avil-
tado e aviltante]. Líbido, a sexualidade em seu sentido mais restrito e também
mais lato, passa a ser a motivação de toda sua conduta e seu lidar, força perigosa
e suspeita no mais alto grau.
64
A Atuação da Noite
1, 25-27
O mundo, porém, não fica apenas em posição de igualdade com Deus, mas
toma-lhe o lugar; e usurpando o lugar divino passa a exigir para si a mesma
piedade [o mesmo fervor e o mesmo louvor] que o devoto do estilo antigo
tributava a seu Deus. (D. Fr. Strauss).
65
1, 27-28
A Atuação da Noite
A natureza não quebrantada [não sujeita, não submissa a Deus] não é pura. Nada
lhe adianta ser transfigurada [sublimada] religiosamente [sem entregar-se
verdadeiramente a Deus, e sem aceitar o NÃO divino e o paradoxo da fé]. Nela
está sempre jacente, [oculto, espreitando a oportunidade para se impor] o
antinatural que despontará na primeira ocasião que tiver a menos que seja
dominado pelo Poder de Deus].
A troca de Deus pelo mundo significa dar livre curso à natureza, e isso acarreta a
inevitável, a fatalmente necessária substituição de Deus pela sua caricatura
demoníaca, [pois se Deus foi tirado do trono divino para nele se entronizar outro
deus, este só pode ser o príncipe das trevas que tentará imitar Deus, em
caricatura].
O que já é, de per si, duvidoso, corre ao encontro do absurdo. Líbido passa a ser
tudo; a vida erótica deixa de ter freios, pois a muralha entre o “normal” e o
perverso rui por terra quando deixa de haver entre o homem e Deus, uma
barreira fechada, um cerceamento final, uma limitação.
[Quando uma caricatura demoníaca de Deus passa a ser o deus que rege os
destinos humanos a lamentável situação chega depressa às raias do absurdo.
Vs. 28-31 Há ainda um detalhe importante, real e final dessa situação, que
precisa ser analisado: até mesmo no relacionamento errado com Deus, existe um
“resto” de “observação sensata” uma última sensação de advertência, mostrando
o mistério de Deus que se opõe à arrogância religiosa. [Atrás, e para além do
procedimento desarvorado do homem que modela sua conduta no deus que
erigiu para si e ao qual atribui grosseira ou subrepticiamente suas qualidades e
seus vícios e os recopia diluindo uns e ampliando os 66
A Atuação da Noite
1, 28-32
outros, existe ainda para o homem uma certa percepção da glória do Deus
verdadeiro que lhe diz NÃO!].
Ora, isto também poderá cessar. O olho doente pode cegar; a falta de
conhecimento pode levar à ignorância total do homem com relação a Deus, à
agnosia (1 Cor. 15, 34).
O caos se desfez em seus elementos e tudo se torna possível. [Este não é o vácuo
negativo com relação a Deus, que abre o caminho, que limpa o cora-
ção para entrar o sol da verdade mas é o vazio absoluto, final e fatal, do coração
e da mente, que persiste em desprezar o Deus e Criador, substituindo-O pelo
deus de sua criação].
Surge um mundo cheio de caprichos pessoais e injustiças sociais que não é uma
característica restrita à Roma dos Césares.
67
1, 32
A Atuação da Noite
Esta é a sabedoria da noite que a si mesma faz néscia. (1. 22). Louca é ela
porquanto se coloca firmemente num ponto de vista superficial das coisas
humanas, que os fatos continuada e reiteradamente desdizem e negam. Todavia
esta sabedoria vê aonde leva o caminho da insubmissão do homem, e seu alvo
não lhe está oculto. Ela conhece a origem de sua noite e a sua ação, todavia não
ousa gritar-lhe: PARE!
A surpreendente queixa da fraqueza da existência terrena e a quase
incompreensível queixa da pecaminosidade da raça acompanham sempre o
caminho do homem que esqueceu o seu Criador.
Por que será tão difícil lembrar-se o homem do que esqueceu, quando o
resultado desse esquecimento e tão claro, quando é tão evidente que a nossa
perambulação pela “Noite” leva a morte?!
Comentários: 1, 22-32
2. Seria por mero acaso que Barth escolheu a Epístola aos “Romanos”, os
tradicionais forjadores de uma nova verdade estruturada sobre os sofismas
confirmados pela “tradição”, incapazes de perceber, por exemplo, que a salvação
é pela graça sem qualquer mérito das obras; ou então, que o único intermediário
entre Deus e os homens é Cristo, 68
A Atuação da Noite
1, 22-32
que só ele é Salvador, que não existe a mínima corroboração bíblica para atribuir
à Virgem Mãe o munus de Corredentora, etc. etc.?
Barth diz apenas que se impressionou profundamente com a voz de Paulo e que,
talvez houvesse nela mensagem para a igreja de nossos dias.
Nada nos autoriza a pensar que assim fosse mas a análise de Barth aponta com
muita firmeza para a privação do raciocínio que, adotan-do sofismas, redunda na
criação de imagens satanicamente caricatas que conduzem a execrandas
abominações.
Olhemos para as comunidades que pretendem ser ou são tidas como sendo do
ramo protestante:
69
1, 22-32
A Atuação da Noite
É sempre a velha e reiterada prática de o homem trazer Deus para junto de si,
para fazer-se igual a Deus e pontificar; para decidir sobre as coisas deste mundo
e do mundo de além túmulo, arranjando-as como ele mesmo entende que devem
ser.
Para uns, fora de uma “Santa Igreja” não há salvação porque a igreja foi erigida
em seu deus. Para outros, só o punhado de eleitos será aquinhoado com a vida
eterna, por que tal deus confirma suãs elucubrações. Que diferença há perante
Deus’!
“Retêm a verdade presa aos grilhões de sua própria rebeldia” ou, para usar a
versão que nos é tão familiar: “Detêm a verdade pela injustiça”.
5. Cabe então a pergunta, segundo Barth: Teria Deus abandonado aos que assim
escondem a verdade?
A Atuação da Noite
1, 22-32
Esta transformação, este milagre, dá-se apenas após a opção livre que, desde a
criação do homem no paraíso edênico, o distingue dos demais animais e o eleva
à posição de criatura criada à imagem e semelhança de Deus, se a opção for pela
fé! Se for pelo escândalo, será para sua perdição.
Deverá o homem escolher entre perder a sua vida, morrer, para ganhá-la e
reviver, ou viver para gozá-la e morrer.
71
Capítulo II
A RETIDÃO HUMANA
ção inglesa usa a palavra — Rightcousness para o título dos dois capítulos.
Parece-me que, de acordo com o texto, seria mais próprio intitular o capítulo II
com “RETIDÃO HUMANA” e o capítulo III com “JUSTIÇA DIVINA”.
•O Juiz
- Vs. 1 a 13
•O Julgamento - Vs. 14 a 29
Quem é irreverente [ímpio] e rebelde [perverso] e foi, por isso, abandonado por
Deus?
73
2, 1
O Juiz
Não existem, dentro da noite da ira de Deus, batalhadores do exército da luz que,
como tais, já não estão mais em trevas?
Não existirá, ao lado dos ímpios e insubmissos, também uma retidão humana?
[Isto é, uma eqüidade, uma expressão das qualidades que o mundo considere
como sublimes e elevadas, dignas de serem aceitas por Deus?]
“psicológicas” [ao lado, e no mesmo nível das coisas sujeitas a essa ira divina?].
[Ou então] não se achará o crente na situação de libertar-se, por força da fé,
daquilo que nos ata a todos, e assim alijar a carga originada no alheamento a
Deus e que [tão opressivamente] pesa sobre o mundo? E desvencilhando-se
desse fardo, não poderá um crente fiel galgar uma base no areal movediço que o
circunda donde possa, e lhe seja consentido, lançar um olhar sobre OS que
ficaram para traz, aqueles que ainda não perceberam como poderão também,
pela força da fé, [ganhar um ponto de apoio, seguro]? Seria, talvez, um olhar
comovido e pesaroso, mas já não seria o relance de um companheiro, um
coparticipante das trevas da ira!
74
O Juiz
2, 1
[Não seria ilícito esperar que] pelo poder do evangelho já há tanto tempo
anunciado e pregado, se houvesse reunido um grupo, ainda que minúsculo, que
fosse qual ilha de bem-aventurados no meio de um mar de desdita?
Não se abriria uma exceção possível, para urna pessoa que se inserisse
sinceramente na crise divina de nossa existência e de nosso modo de ser e que,
dessa maneira, tomasse posição ao lado de Deus na crítica ao mundo e que, por
isso, lhe fosse concedido o privilégio de sair das trevas para a luz?
Vs. 1-2 Por isso não tens desculpa, ó homem, quem quer que sejas, quando
julgas. Porquanto, enquanto julgas aos outros, julgas a ti mesmo, pois procedes
de maneira idêntica aos que julgas naquilo que julgas. Sabemos, porém, que o
juízo de Deus é verdadeiro, contra os que assim procedem.
Bem sabemos que o juízo de Deus é segundo a verdade contra os que praticam
tais coisas”].
[ao presente século, ao mundo]; eles também são criaturas humanas e não há
retidão humana que afaste a ira de Deus.
O ser humano é humano, e está no mundo dos homens. O que nasceu da carne é
carne e todas as coisas têm o seu tempo. Os fatos e feitos gerados pela atividade
humana [ainda que alcancem destacada notoriedade] em sua existên-75
2, 1
O Juiz
cia, posição e expansão, são sempre oriundos do homem e. como tais, estão
eivados de irreverência [impiedade] e insubmissão [perversão].
Tu te separas dos teus irmãos como conhecedor dos mistérios de Deus; talvez
[até o faças] com a melhor das intenções de os ajudar depois de os haveres
ultrapassado [ou de assim pensares]; por isso mesmo nada sabes dos mistérios de
Deus [pois se soubesses não seguirias esse caminho] antes, és o menos indicado
para auxiliar o teu próximo. Tu vês a alheia estultícia como estultícia alheia,
enquanto a tua própria clama aos céus [sem que o percebas. (Mat. 7, 35)].
O Juiz
2, 1
apenas conduta, ponto de vista, método, sistema ou objeto; enquanto o homem
por meio dessas atitudes pretender destacar-se entre os demais. Mesmo a fé,
enquanto de qualquer forma e em qualquer sentido, pretender ser mais que
espaço vazio, não é fé: é descrença, pois nessas condições ela volta ao
paradigma da rebelião do escravo que tenta abafar a aurora da verdade de Deus,
o alvorecer por excelência. [O A. faz distinção entre o que habitualmente
chamamos de
É o sonho [da materialização de Deus em símbolo], das coisas diretas, com o seu
clamor: “Eis aqui o Templo do Senhor!” — (Jer. 7, 4). (É a imagina-
ção “romântica” (por ser aí), no dizer do Autor, que pretende ver, sentir, a
verdade espiritual consubstanciada materializada (e porque não a hóstia?) em
símbolos concretos, palpáveis, visíveis, semelhantemente aos israelitas do tempo
de Jeremias, esperando fazer jus à proteção de Jeová, pela exaltação e louvor do
templo: Templo do Senhor! Templo do Senhor!].
Justamente agora, ó homem, praticas a resistência humana que suscita a ira de
Deus; “enquanto julgas os outros, a ti mesmo julgas, pois praticas as próprias
coisas que condenas”.
Ora, o que se pode dizer dos homens em geral, pode-se dizer também dos
“homens de Deus” em particular.
Como homens, são iguais a todos (1, 1). Não há partículas, porções especiais, da
história divina na história geral. Todas as histórias eclesiásticas e 77
2, 1
O Juiz
das religiões transcorrem [isto é, têm seu começo e seu fim] neste mundo. A
chamada “história da redenção” é, apenas, a contínua crise de toda a história e
não uma história especial ao lado da História [ou paralela a ela].
Também não há santos entre os ímpios [não são santos, os homens de Deus],
pois é exatamente quando alguém quer ser santo que o deixa de ser.
Vale para São Francisco [e por mais justa razão] que de longe ultrapas-sou a
Jesus em “amor”, “infantilidade” [inocência] e “austeridade” e que portanto
subsiste, essencialmente como acusador; e isto para nada dizer da aniquilante
santidade de Tolstoi. [O A. quer destacar o fato extremamente sério que o
homem que pretende elevar-se para ser santo, ainda que fosse um Paulo ou um
Jeremias (que foi o profeta consagrado às nações desde o ventre de sua mãe (Jer.
1, 5), ou seja um vulto histórico como Lutero, ou contemporâneo do autor como
Kierkegaard ou Blumhardt, tal homem deixará de ser santo e separado para Deus
desde o momento quando em seu coração se aninhar a idéia de ser perfeito,
santo, pois no mais profundo do ser, tal idéia viceja com intenção da
preeminência entre os demais homens, seus próximos. E isto é tão mais vigoroso
num santo da categoria de São Francisco que a tradição orna com qualidades
sobremaneira excelentes, “superiores” às do próprio Senhor Jesus, realçando o
“amor” todo peculiar e lendário que nimba o Santo, (amor que se estende até
mesmo aos animais), a sua inocência que atinge as raias da ingenuidade pueril, e
que é também descrito como senhor de uma austeridade que, no romantismo
imaginativo, excederia à do próprio Salvador. Com tantos atributos será tanto
maior juiz e, conseqüentemente, maior escravo do pecado!
78
O Juiz
2, 1-2
[numa descida louca para o precipício] ora flutuando sobre a torrente das águas
ora dando até mesmo a impressão de querer opor-se [à imensa caudal].
Cristo de forma alguma habita entre os justos, pois justo só é Deus, e a tragédia
de todos os homens de Deus é terem de assentar-se na injustiça para lutar pela
justiça de Deus. [Têm que tomar posição de dianteira, de relevo, de destaque,
para pregar, ensinar e entregar a mensagem que Deus lhes confiou].
E tem de ser assim, pois os homens de Deus não podem ocupar o lugar do
próprio Deus, [posição que assumiriam se em justiça incorruptível minis-trassem
e se desincumbissem da missão para a qual foram vocacionados. Todavia,
humanamente e no que concerne ao relacionamento do homem com Deus, o
distanciamento do “homem de Deus”, dos seus semelhantes, é inevitável aos
olhos do mundo, mesmo que não seja nos termos de um lendário São Francisco
ou de um intelectual como Tolstoi; um Lutero, um Paulo, um Jeremias terá que
fazê-lo inda que, ao olhar para si, veja somente e genuinamente sua pequenez.
ção. Eles sabem que a fé somente vale por fé enquanto e quando não reivindica
qualquer realidade histórica, psicológica [ou mesmo espiritual] mas é [e pretende
ser] somente a “expressão inexprimível” da realidade divina.
Eles sabem que a “observação sensata” (1, 20) não é um método, um achado [ou
uma descoberta] mas a base eterna do conhecimento. Eles sabem que a fé, em si
mesma, não faz mais jus à legitimidade que qualquer outra [atividade ou]
propriedade humana. Eles não se esquivarão do paradoxo [o paradoxo que, para
os homens de Deus, toma a forma de uma contradição humanamente evidente;
põem-se sob o escuro manto da ira de Deus para anunciar o novo dia que
desponta!] e não tentarão transformá-lo em nova realidade qualquer, em alguma
coisa [que explique, suavize ou até transforme sua situação paradoxal].
Eles não enfraquecerão o NÃO divino trazendo-o para perto, [para junto] do
NÃO humano. Eles não amolecerão a têmpera do gume do julgamento divino,
encarando a flexão [a submissão] que ele produz [a crise e a problemá-
tica que ele origina] como sendo uma etapa (uma estação) no caminho da
salvação (ORDO SALUTIS) que foi ultrapassada, que ficou para trás.
2, 2-3
O Juiz
para se justificarem, para nele e com ele se protegerem perante Deus, e também
não se servirão dele para bombardear os outros com suas acusações].
Eles sabem que a Justiça de Deus é segundo a verdade e quem há que possa
resistir quando aferido com a escala da verdade divina? Quando, como e onde
seria possível que alguém. alguma [idéia] ou coisa permanecesse de pé, sob tal
julgamento?
Vs. 3-5 Acaso entendes, ó homem, que tu com o teu julgamento, praticando as
mesmas coisas, fosses, logo tu, livrar-te do julgamento de Deus? Ou não
entendes a riqueza de sua bondade, a sua contenção e a sua paciência?
Porém, com tua dureza e teu coração impenitente amontoas para ti uni tesouro
de ira, para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus.
É um Deus bem presente que não traz o paradoxo da fé; antes assegura a paz,
sossego e ilusão; é um Deus lógico e, não raro, bastante vistoso — o
NÃODEUS, conhecido e “velho amigo” dos homens].
A suposição que o homem possa ter de que, ao julgar, escapará ele pró-
80
O Juiz
2, 3-4
Como pode acontecer que nas hostes da luz existam, ainda, batalhadores com
visão e percepção, homens quais eram os judeus contemporâneos de Jesus que
perceberam alguma coisa do final dos tempos, homens que estão afeitos a
perseverarem Deus, e só nele? [Ante a inevitabilidade do julgamento divino,
ante a posição trágica do homem de Deus no seu relacionamento com Deus,
como se explica que pessoas com visão suficiente para compreender ou, ao
menos, pressentir a inexorabilidade escatológica do juízo divino formem os
inumeráveis exércitos da luz, deles participando?]
Tais homens por isso [por pertencerem às hostes da luz] não deixam de ser
homens, e o mundo no qual vivem continua sendo mundo. Mas a respeito deles,
sobre eles e por traz deles aconteceu a maravilha: receberam a graça! Ocorreu o
inacreditável: Deus falou-lhes de um torvelinho, como a Jó! (Jó 40, 6).
[Parar no caminho pelo qual vinham para decidir ante a pergunta solene, e optar
pela conversão; escolher a peregrinação pelo novo rumo que leva à porta estreita
da vereda apertada].
81
2, 4
O Juiz
NÃO! Pois outros há mais puros, mais inteligentes, mais enérgicos e mais
profundos em suas orações e Deus jamais lhes falou.
Há místicos e outras pessoas que entram em êxtase, e que jamais souberam ver
com sensatez.
É que a dádiva não está no que o homem faz e traz, pois isto é como nada
perante Deus.
O despertar e o temor perante Deus, como tais, não pertencem ao homem. Onde
se ouve e se reconhece a voz de Deus, não há lugar para o “ser” ou o “ter” ou o
“provar” do homem. Quem foi eleito por Deus nunca poderá dizer que ele
escolheu a Deus. [Nenhuma coisa pode o homem fazer, pretender ou alegar para
a sua salvação].
“Como mereci ver, eu que era cego?”. E uma inexplicável contenção de sua ira:
“Por que sou, justamente eu, uma exceção entre milhares?” E uma
incompreensível paciência de Deus para comigo: “Pois o que pode Deus esperar
de mim ao dar-me tão inaudita oportunidade”?
NADA! Absolutamente nada justifica e esclarece este “eu” e “para mim”, que
está totalmente no ar [sem aparente fundamento]; é puro e absoluto milagre,
vindo de cima.
Toda palavra que a respeito desse milagre se pronunciar [ou escrever para
explicá-lo ou relatá-lo] como se se tratasse de experiência humana, mesmo que
seja a sua simples confirmação, é imprópria [por supérflua, desnecessária,
imprecisa, excessiva e ao mesmo tempo insuficiente].
Mas isto se pode dizer da dialética do milagre: “A bondade de Deus quer levar-te
ao arrependimento”.
O que se torna verdade para o homem, vindo de Deus, jamais pode vir a ser
outra coisa se não um novo chamamento a Deus. Um apelo para o retorno; para a
reverência (o temor) e para a humildade; é a renovação do convite para
abandonar a segurança que o mundo dá; é um apelo para desprezar a honra e a
glória do mundo e tributar glória e honra ao Deus desconhecido como se, de
nossa parte, nunca houvesse existido a mínima contradição a esse louvor [pois
com o novo nascimento em Cristo, volta o homem à posição que usufruiu no
Éden, antes da queda; antes de, pela vez primeira, ter querido ser igual a Deus.
O Juiz
2, 4-5
Toda asserção a favor próprio que alguém, que tiver [pela graça] observado algo
de Deus, fizer com fundamento nessa visão, torna-o, IPSO-FACTO, novamente
igual ao que nada recebeu.
Não sabes que esta é a única observação, realmente possível? Se não o percebes,
“então com tua obstinação e teu coração impenitente amontoas para ti um
tesouro de ira”.
Da retidão divina dos profetas nasce a retidão humana dos fariseus que é a
irreverência a Deus, a impiedade, a rebelião.
ção da ira de Deus, pela conduta muito objetiva, presente, que ela impõe ao
Profeta transmudado em Fariseu no seu relacionamento com Deus, [que deixa de
ser o verdadeiro Deus para ser] na realidade, o NÃO-DEUS sob cujo domínio já
está.
esconde a sua situação real. Ele pode prosseguir na construção de sua Torre de
Babel, cada vez mais para o alto, enchendo-a com reclamos e clamores divinos,
segurança espiritual, usufruto de Deus; porém, por traz da fachada de seus dias,
já está à espreita o eterno dia da ira e do tribunal imparcial. [Aparentando estar]
Ele, o “amigo de Deus” [o original está sem aspas] e o seu mais amargo e odiado
inimigo. [A tradução inglesa diz “o amigo de Deus e seu declarado e mais
amargo inimigo”. No meu entender, o A. quis dizer que o homem, não
percebendo que a bondade de Deus quer levá-lo ao arrependimento, é incapaz de
arrepender-se genuinamente; todavia, ansioso por criar para si um
relacionamento pretensamente válido com Deus, assume um status de
religiosidade que, 83
2, 4-5
O Juiz
Esta classe de gente é para o A., sempre no meu entender, a classe que mais
retém a verdade com a injustiça e por isso, mais forte, maior, é a ira de Deus
contra ela; portanto, mais extremado, mais odiado é este inimigo].
Ele é o justo [segundo o seu próprio critério], já condenado, e ele não se deve
surpreender se subitamente for tornado público o que ele de fato é. [Luc.
12,2-31].
Vs. 6-11 Porque a medida com que os homens são medidos, não é deste mundo.
É a medida eterna como eterno é Deus: a medida é o próprio Deus!
[Parece-me que são dois os sentidos que o A. quer dar: para que o crente seja
edificado em Deus, é necessário que lhe seja fiel e sinta pessoalmente a absoluta
nulidade humana; para ser firmado em Cristo, é necessário que se negue a si
mesmo; para ganhar a vida precisa perdê-la primeiro. É preciso que a pessoa se
esvazie de todos os atributos que tenha ou que pense ter, mesmo os mais
sublimes e apurados, aqueles que a sociedade, a igreja, a família mais enaltecem
e admiram. E nesta aproximação a Deus, é preciso que o crente seja genuíno,
sincero. E a sinceridade que Deus busca! O segundo sentido é escatológico. A
redenção vem com o encontro paradoxal com Deus, mas a transformação vem
no final dos tempos. Será quando soar a última trombeta. O homem destruído
será restabelecido; o morto viverá; o remido transformar-se-á].
84
O Juiz
2, 6-7
A opressão e a perplexidade estarão sobre toda a alma que pratica o mal: sobre
o judeu primeiro, e também o grego; porém, a glória, a honra e a paz estarão
sobre todo aquele que pratica o bem: sobre o judeu primeiro e também o grego
pois, para Deus, não há acepção de pessoas.
Ele quem?
Ele, perante quem todos os homens são fúteis (nulos), mentirosos. Ele a quem o
homem, no meio de suas riquezas ilicitamente adquiridas, nunca deveria ter
esquecido. Ele que, uma vez por todas, disse ser seu o Poder e a Misericórdia.
(Sal. 62, 10-13). Ele, a quem o homem não conhece, porém, precisa reconhecer
este fato, para saber, em seguida, que ele é conhecido de Deus.
Parece-me que, a esta altura, o assunto deve ficar em aberto para eventual
consideração posterior].
Ele é o Deus que “paga” aos homens as obras nas quais lhes permite participar; é
ele quem estabelece o respectivo valor ou a desvalia segundo o seu próprio
critério de avaliação. É nele que se decide o que é bom e o que não o é; é nele
que descobrimos a nossa sensatez ou a nossa loucura; nosso céu ou o nosso
inferno!
Pode, pois, ocorrer o milagre de ele pagar aos que buscam sua glória, honra e
incorruptibilidade com a “vida eterna”; e assim, o que na limitação humana tem
a forma de temor e humildade perante Deus e que se realiza na procura, na busca
de Deus, e Deus somente, corresponda a um encontro com Deus.
Pode acontecer que o recipiente da fé, por menos que o aparente, contenha em
seu bojo a vida eterna. Pode acontecer que a perseverança humana na 85
2, 6-7
O Juiz
Tais possibilidades, porém, não podem ser concretizadas humanamente nem seu
acontecimento pode ser considerado como coisa pacífica, fato consumado; coisa
de ocorrência normal.
Jamais o crente, o praticante das boas obras, as exibirá como sendo mérito seu,
em confronto com a falta de mérito ou o merecimento menor de outrem. Ele
nunca dirá: “Eu faço” ou “Deus retribuiu”, mas “Deus faz” e
“Deus retribuirá!” (2, 13; 3, 30 e 5, 17-19). Jamais o seu temor e sua humildade
perante Deus pretenderão ser outra coisa que espaço vazio, vácuo; carência e
esperança, pois a Deus pertence a glória que o homem, neste mundo busca e
honra.
Todavia, também pode dar-se o oposto: que aconteça o milagre terrível; que aos
seguidores da rebeldia esteja reservada a ira e a indignação.
Pode acontecer que Deus “pague” a obra humana com ira e indignação.
Que aquilo que pretende ser revelação profética seja “conceituação servil”: a
atitude de um assalariado diarista que visse no soldo da etapa toda a recompensa,
e a única recompensa a receber, fazendo do salário o objetivo de seu trabalho
(Zahn). [O A. citando Zahn compara certo tipo de religiosidade com a au-sência
de motivação mais elevada que caracterizaria um assalariado que traba-lhasse
sem outro objetivo que o soldo que houvesse de receber].
O Juiz
2, 8-4
rebeldia. O que o homem faz com “boa intenção” pode ser um ato
profundamente reprovável perante Deus.
A rebeldia e o destemor a Deus serão sempre exatamente o que são, mesmo que
tomem formas altamente sofisticadas e refinadas ou se acobertem naquilo que,
material e psicologicamente, chamamos “fé”.
O juiz [supremo] não abrirá mão de julgar também o “justo”: ele julga; ele
próprio e só ele!
Não há dúvida de que isso tem certo valor, em si, mas não significa
preeminência eterna; não é nada que transponha a crise das coisas perecíveis
(corruptí-
A medida (a escala) com que Deus mede não é deste mundo; ele não atenta à
máscara; para Ele o justo não está, [só por ser assim considerado], no rol dos
justos, pois Deus o vê qual ele realmente é. Quiçá como abençoado [servo
perdoado] em busca do imperecível ou, também pode acontecer, como
amaldiçoado rebelde, examinado e exposto [à condenação].
Vs. 12 e 13 Os que pecaram sem lei, também perecerão sem lei. E aqueles que
pecaram à face da lei serão julgados segundo a lei. Porque perante Deus não
são justos os ouvintes da lei mas os que a praticam.
87
2, 12-13
O Juiz
pela proximidade e eleição de Deus, que aqui, e acolá, dispõe pessoas à fé, à
obediência e ao temor de Deus. (2, 14).
O que vem de Deus e é maravilha [é milagre] perante nossos olhos, não dá aos
homens que perceberem este milagre [que se apropriarem da graça que ele traz]
qualquer preeminência, vantagem, ou segurança: pecador é pecador e queda é
queda.
Ainda que o desnível entre aqueles que pecam longe da lei que lhes é
desconhecida e os que pecam no ambiente da lei que conhecem, seja superfici-
almente visível; ainda que possamos distinguir os degraus em que estão os
incrédulos e aqueles dos crentes, e que possamos diferençar entre o que
designamos por “alma” [espírito] e história [os fatos concretos do mundo]
todavia,
[ainda que tudo isso seja visível e que a diferença entre “uns” e “outros” seja até
gritante aos nossos olhos] a decisão do destino de cada pessoa, se para a
[Se deste e daquele lado há pessoas que se salvam], também daquele lado e deste
há pessoas que se perdem.
O que vem do homem [o que é humano], não pode salvá-lo; as coisas humanas
não são justas perante Deus!
Cumpridores da lei são os ouvintes que “realmente a ouvem”. — “os judeus que
o são em secreto” (2, 29): porém, a sua retidão consiste no fato de que “serão
declarados justos”; para ser bem entendido: eles não “são justos”; nem mesmo”
são declarados” justos. Para que não fique o menor vestígio da 88
O Juiz
2, 12-13
idéia de que o homem tenha algum direito [algum mérito para a salvação] para
que desapareça o último sinal [mesmo o mais remoto] de uma realidade humana,
ou de uma contribuição material, “eles SERAO DECLARADOS justos” (2, 6).
Onde a lei encontra tais praticantes, onde a revelação encontra semelhante fé, aí
está Cristo, “o fim da lei, para a justificação de todo aquele que crê”
(10,4-5).
Então vem ao nosso conhecimento aquele que nos conheceu primeiro.
O juiz, porém, permanece como juiz, até que venham o novo céu e a nova terra.
Comentários: 2, 1-13
2. Barth não poupa argumentos para enfatizar a nulidade da retidão humana (ou
sua justiça) que, quando ocorre, tem o condão de suscitar a ira e a indignação de
Deus, pela tendência de nivelar o homem com Deus; por isso traz ela em seu
bojo uma falsa religiosidade, uma afe-tada santidade, e o caminho para o
obscurecimento do coração e o esvaziamento da mente.
89
2, 14
O Julgamento
Vs. 14-16 Porém, se acontecer que gentios, que não têm a lei em seu estado
natural, fizerem o que manda a lei, por não terem a lei, para si mesmos são lei.
Estes tais apresentam as obras da lei inseridas em seus corações (do que as suas
consciências e seus pensamentos mútuos de acusação e de desculpa, são
testemunhas) no dia em que Deus há de julgar os segredos dos homens, por
Jesus Cristo, segundo o meu evangelho.
Gente que não recebeu a revelação comparece perante Deus, como se a houvesse
recebido. Os que dormem são vistos como se houvessem velado atentamente;
incréus são julgados como crentes e os injustos, como justos.
A lei é a revelação que foi dada por Deus e logo retirada e definitivamente
trancada. E a impressão remanescente da revelação divina deixada no tempo, na
história e na vida das gentes. E a “escória” sagrada do milagre havido; cratera
extinta da fala divina; a recordação séria da atitude timorata e humilde que certas
pessoas foram constrangidas a tomar. A lei é o canal vazio por onde, em outros
tempos, em outras circunstâncias e para outros povos, fluía a água viva da fé e
da observação sensata; canal todo feito de conceitos, pontos de vista e
mandamentos que, em seu sentido geral, fazem lembrar de certa gente diferente
que nos convida (nos intima) a guardar, a preservar esses conceitos.
Aqueles que têm a lei, moram na orla desse canal. Eles têm a impressão do Deus
verdadeiro, do Deus desconhecido, quer seja na forma de religião herdada ou
apropriada de outrem, ou segundo alguma experiência própria vivi-da no
passado. Eles têm, de uma forma ou outra, referência a Deus e à crise de nossa
existência, e têm noção do mundo do além, um mundo limítrofe ao nosso. [O
reino dos céus é limítrofe ao reino deste mundo e não é, necessariamente. o reino
de além túmulo].
Aos “gentios que não têm a lei”, falta, de alguma maneira, a referência [a Deus]
em sua vida pessoal e em sua experiência histórica; não têm a impressão da 90
O Julgamento
2, 14
revelação e, por isso, não guardam memória dela e, [logicamente], não fazem
qualquer esforço por conservá-la. Pode-se até considerá-los adormecidos pois
não mostram qualquer inquietação ou intranqüilidade [com relação à sua
situação] por for-
Porém, pode acontecer que gentios, que não têm a lei, “pratiquem o que a lei
ordena”.
Ora, sendo Deus o juiz, “praticar a lei” é algo diferente de “ter” ou “ouvir”
alei(2, 13).
Ela não fluirá, necessariamente, no leito do canal [que pode estar] vazio.
Ela pode correr por ele mas pode, também, buscar outro traçado, rasgar novo
caminho.
A revelação não está atada, não está condicionada às impressões antigas que
acaso tenham sido deixadas outrora; ela é livre; portanto é erro supor que os
gentios [que não tiveram acesso às bordas do canal ou que não o buscam]
[Em discrição].
Eles praticam a lei em “seu estado natural”. Na sua natural jovialidade e no seu
risonho mundanismo, na singela e despretenciosa objetividade de seus afazeres.
Deus os conhece, e eles, [os gentios, os homens afastados da igreja], por sua vez,
também o reconhecem; e [conseqüentemente] não ficam sem a visão da
corruptibilidade de tudo quanto é humano; e também não deixam de 91
2, 14
O Julgamento
que separa a criatura do Criador, e pelo SIM que os faz criaturas do Criador.
Também para os gentios a vida é apenas parábola, porém, talvez, uma parábola
tão completa que, por isso, já tenha a justificação [de Deus].
[Esse mundo dos gentios, assim destruído, minado, exibindo] o mais extremado
ceticismo, é totalmente incapaz de penetrar no que seja mais elevado, mais puro,
mais sublime. [Esse mundo está, de tal maneira] insensibilizado, a ponto de não
mais empolgar-se por coisa alguma; todavia pode [justamente por estar em
estado tão lastimável] ter um espírito realmente quebrantado [pronto] para
receber a Deus.
Justamente isto, que nos parece tão notável nos filhos do mundo: [a lembrança
do Deus verdadeiro, a referência a ele].
Será que eles [os gentios] praticam a lei? Será que eles estão ao pé da fonte
[donde brota o rio da vida]?
[Por acaso seria justamente] o homem que realmente conhece esta riqueza, que
descobriu que a dádiva da revelação é inteiramente gratuita, que é uma dádiva
imerecida, totalmente inexplicável (do ponto de vista humano)?
“Eles são lei para si mesmos”. Existem pessoas que praticam a lei sem a
possuírem e, ao praticá-la, efetivamente a recebem, e passam a ser lei para si
mesmos.
A água viva cavou para si um leito diferente e a vantagem aparente dos
moradores da beira do canal, desapareceu.
92
O Julgamento
2, 14-15
Que motivo poderiam ter as pessoas “que possuem a lei” para dispensar aos que
não a possuem, outra atenção que a de simples “objetos” de seus esfor-
[Por que haveriam de, aqueles que receberam a lei, tratar aos que não a
receberam, se não como principiantes religiosos, neófitos que nada entendem das
coisas transcendentais do espírito?]
93
2, 15-16
O Julgamento
“Eles são lei para si mesmos”. Se essa lei se expressa ou não em termos da
religiosidade e experiências espirituais, não vem ao caso, pois Deus pode
conceder e de fato concede, também isto aos gentios.
”Estes tais apresentam as obras exigidas pela lei gravadas em seus cora-
De que forma?
Aquilo que a justiça humana acaso encontrasse a favor dele não seria (nem foi) o
que o justificou perante Deus.
Além, para além de toda intuição, de toda objetividade; para além de tudo aquilo
que os possuidores da lei acaso ainda lhe concedam (um “bom cerne” [bom
nome, boa família] um “certo idealismo”, “bases religiosas”) além de tudo que o
europeu médio preza (posição, maturidade, raça, personalidade, agudeza de
espírito, caráter), (além de tudo isso) está o que o gentio tem para apresentar a
Deus e que Deus pagará com a vida eterna (2, 6).
Na realidade, talvez não [haja no gentio assim justificado] mais do que resquício
de religiosidade, (algo inconsciente, extra-eclesiástico). Quiçá exista nele o
homem desnudo (Dostoiewski) no seu último estádio; pode ser que ele tenha
apenas uma derradeira e grande carência, perplexidade, pobreza. Talvez na hora
extrema [quando a morte se apresentar] ele manifeste apenas espanto ante o
mistério, ou indignada revolta contra a condição de nossa existência, ou, ainda, o
amargo silêncio do ator que, contra seu querer, é forçado a abandonar o palco.
Pode também acontecer que o gentio [em julgamento] tenha coisas mais
agradáveis, mais bonitas: não vem ao caso. [O que importa] é que no céu há
regozijo, há alegria por um pecador que se arrepende, — [que faz penitência,
segundo o original]. É um regozijo maior do que por noventa e nove justos que
não precisam de arrependimento.
94
O Julgamento
2, 16
Não é o ato final, mais elevado, mais sublime, mais fino, da justiça (retidão)
humana, para Deus, porém é o primeiro ato da justiça divina, por parte do
homem: é o ato básico! É a obra inserida em seus corações [corações dos
gentios], por Deus. E por ser de Deus, e não dos homens, é vista com alegria nos
céus: é o homem lançando seus olhos para Deus e para Deus somente: olhar que,
também, somente Deus vê.
Quem há [entre os gentios] que ouça a voz da consciência? Como falaria ela aos
que estão sem lei e sem Deus? Quem, [entre eles] poderia perceber o significado
da dialética que fala de Deus e da fatalidade, [da história da reden-
Mas Deus vê; ele ouve também a voz que foi silenciada [no instante extremo];
ele entende [avalia e aceita] aquilo que foi apenas vislumbrado; “ele considera o
destino [o fado]. em seu conjunto” (Gellert). Para ele testemunham todos os
fatos que não podem testemunhar, humanamente, para os juízes deste mundo.
Ele sabe aquilo que não sabemos; daí a, [para nós], incrível e incompreensível
possibilidade de aqueles que estão sem lei, comparecerem no tribunal, sem lei, e
serem justificados.
Porque, “no dia em que Deus julgar os segredos dos homens, por Jesus Cristo”
os gentios apresentarão suas obras e serão aceitos.
Donde vem a possibilidade de serem acolhidos por Deus aqueles que estão sem
ele?
É a luz que raia no dia novo da raça humana, na hora da ressurreição; é o dia de
Jesus Cristo que traz essa luz.
95
2, 16
O Julgamento
Toda carne é como a erva e Deus quer que todos sejam socorridos. (1, 16; 3, 29;
10, 2), [O evangelho é “salvação” para todo aquele que crê pois Deus, é Deus de
judeus — de religiosos que conhecem a lei, e de gentios — de pagãos que não
conhecem a lei, pois entre uns e outros há zelo por Deus].
É por isto que Deus julga pelo que “os homens mantêm em segredo”. A
condenação sob a qual estamos, e também a misericórdia e a força do perdão que
nos retém e nos sustém, são regidos por aquilo que temos no âmbito mais secreto
de nossos corações; não são intuitivas; [não são decididas sem real fundamento]:
tanto a condenação como a graça são função das coisas ocultas dos homens. E
isto diz respeito a nós todos.
Somente então (quando for revelado o que está em segredo) é que [a condenação
e a misericórdia] se tornam reais. Esta resolução ainda não é realidade [não é
fato público e notório] enquanto, aparentemente, uns se situam do lado da luz e
outros na face da sombra, mas essa oposição [ou esse posicionamento] torna-se
irrelevante quando soa a meia-noite, ou ao meio-dia quando ambos lados estão,
ou envoltos de trevas ou imersos na luz.
Deus abrange [domina] tudo o que separa os homens. Ele formula a pergunta e
ele mesmo a responde. Deus propõe a todos os homens, qualquer que seja o
degrau em que estejam ou o tempo em que vivam, a mesma advertência e a
mesma promessa.
Deus está acima de todas as posições humanas; Cristo revela as densas trevas da
ira e indignação de Deus àqueles que detêm a verdade com sua arrogância e
justiça humana e é a luz do raiar de um novo dia àqueles que perseveram na fé;
envolve nas mesmas trevas “judeus e gregos” quando, no mais íntimo de seus
corações, não derem lugar a Deus, e banha na mesma luz abundante, também
“judeus e gregos” que no intimo de seus corações, — com lei ou sem lei,
acolherem e praticarem as obras da lei. A todos é posto o mesmo problema
eterno: a opção entre o escândalo e a fé; entre a aceitação e a rejeição; entre a
fácil glorificação segundo os padrões do mundo e a difícil renúncia de si mesmo.
(Mar. 8, 34). Esta decisão entre os dois caminhos é a crise que toda pessoa tem
de enfrentar; ela representa a linha de interseção que foi posta por Deus, e não
pode ser fletida, deslocada, pelo homem; é uma reta que não pode 96
O Julgamento
2, 16
O Deus, que é desconhecido de nós todos, pode e quer dar-se a conhecer, a todos
nós.
Este Deus, o próprio Deus, que não se deixa levar e influenciar pelas impressões
que dele tenhamos, é a esperança dos gentios no dia do juízo.
Toda retidão humana, porém, por ser Deus o juiz, deve ser, e está, sujeita à
máxima reserva. A sua zelosa crítica aos que não têm Deus, poderá ser
totalmente imprópria — [destituída de razão]; seu empenho para convertê-los
pode ser fora de propósito. [Segundo a tradução inglesa tal empenho pode ser
trivial].
Todavia, a mão de Deus está além [do nosso conceito] do que é bom e certo ou
mau e errado por isso andaria bem, a retidão humana, se não ousasse ir longe
demais.
97
2, 17
O Julgamento
Proclamas que não se deve roubar; e furtas? Falas que não se deve quebrar os
laços do matrimônio e adulteras? Abominas os ídolos mas despojas o santuá-
Pois, conto está escrito, o nome de Deus é blasfemado entre os gentios por vossa
causa.
São homens que, [segundo o testemunho do mundo] têm fé; no entanto Deus os
considera incrédulos. São justos, tidos como injustos no conceito divino.
Aqui está o partido [o grupo] de homens que têm a revelação impressa em suas
mentes e que, assim mesmo, em nada diferem do restante do mundo.
“Fias-te na lei”. Estás rodeado de sinais deixados pelo Deus vivo; esfor-
ças-te por conservar tais sinais sempre bem claros para ti. Alegras-te pela
autoridade que sobre ti tem, aquilo que sabes de Deus; [alegras-te porque tens
aceito piedosamente a autoridade das coisas divinas, segundo as aprendeste na
lei]
“Ufanas-te [e te glorias] de Deus”. E como não te ufanarias tu. que tens, de fato,
uma impressão, uma recordação dele, pois tens os olhos voltados cons-98
O Julgamento
2, 18
Estás intranqüilo porque estás convencido de que algo deve ser feito e por isto
estás tomado de zelo para fazer tudo. [O A. põe a proposição em forma negativa,
dizendo que o homem devoto — e que se intitula “judeu” não deixa de se sentir
intranqüilo por algo a fazer nem deixa de ter zelo por (de fato) —
fazer de tudo], enquanto os outros [os gentios], os irresponsáveis, [indiferentes,
apáticos] deixam-se levar pela “força do destino”.
Tens muito! O que mais querias? O que mais poderia alguém querer que tu já
não tenhas?
“E agora te atreves a ser guia de cegos”. Sentes, e com razão, que tens uma
missão. Comparas-te, dada a impressão [e noção 1 que tens da revelação, com os
muitos que não a têm e, nessa confrontação, encontras a tua vocação. Adivinhas
a existência de um plano divino, de uma “teologia” na qual tens um papel
decisivo a desempenhar. Aceitas o papel (já o aceitaste, [aliás]) confiante e
consciente de [estares cumprindo] um dever sagrado.
2, 19-21
O Julgamento
lei), também aos outros: aos cegos que perambulam nas trevas, aos ignorantes e
aos pequeninos. Gostarias de promover a lei; propagá-la, espalhá-la estendê-
Por força do que és e tens, sentes-te pressionado para agir, instalado como
cooperador de Deus.
Para que alguém tenha uma missão a cumprir é necessário haver alguém que lha
tenha confiado. Quem quiser ensinar, precisa estar preparado para isso.
O que significa ter a lei, se ela não for posta em prática, e quando Deus não se
revela a tais possuidores?
O que significa ter o olhar voltado para onde Deus estaria, se ele já não mais está
ali?
Que vantagem terá alguém na hora do julgamento, por ter morado à beira do
leito do rio [onde fluiria a água da vida] se o canal está seco? (Não se poderia ter
dado o caso de as águas terem sido cortadas?)
Quem és tu? O que tens? Donde vens? O que espalhas e derramas, pois, em
torno de ti e por todos os lados? O que é este “espírito novo” que queres
implantar em todos?
A tua impressão da revelação, a invasão que sentiste [em tua alma], teu
entusiasmo, tudo isto é carnal, é deste mundo.
Acaso, com teu religioso mundanismo, terias menos a temer da ira de Deus do
que os outros? Não é essa [tua] religiosidade o aprisionamento da verdade, a
permuta do imperecível com a figura do perecível, ocorrendo no teu caso [na
qualidade de judeu] de maneira idêntica à do outro [do gentio]?
100
O Julgamento
2, 22-33
O que és tu, se Deus não for por ti? O que és, se ele não encontrar em ti, no
recôndito do teu coração, a [boa] obra? (A oração do Coletor de Impostos, a
súplica do Filho Pródigo, o clamor da viúva perante o juiz iníquo?) Então o teu
“fazer” será o que ele é: tua legalidade, um furto (quem não furta?); tua pureza,
um adultério (quando teria a sexualidade sido pura?), tua religiosidade, vã
presunção (pois qual o religioso que não se aproxima [presun-
çosamente] de Deus?).
Se à tua vida faltar a justificação que só Deus mesmo pode dar, então falta-te
toda e qualquer justificação.
Se não tiveres mais que a tua impressão de revelação, para apresentar a Deus,
então nada tens para apresentar-lhe.
Se evocas para ti, apenas a tua fé, então nada tens a evocar. “Glorias-te da lei, e
desonras a Deus, transgredindo-a”.
Se Deus não for por ti, tudo será contra ti. Se Deus não for por ti, também não
podes ser por ele; o mundo tem vista penetrante e não deixará valer a tua
pretensa superioridade; ele logo te reconhecerá como carne de sua carne e osso
de seus ossos.
2, 23-25
O Julgamento
O mundo sente a verdade por instinto natural, e não se deixa levar por engodos;
é por isso que se recusa a seguir o Deus dos “religiosos”.
“Por causa de vós o nome de Deus é blasfemado entre os gentios”. (Isaías 52,
5)... “e o meu nome é blasfemado incessantemente”.
São, pois os eleitos, os “filhos de Deus”, [as aspas não estão no original]
Pois, onde Deus que julga e “paga” (2, 6) não encontra valor real, os pretensos
valores humanos não podem significar muita coisa.
102
O Julgamento
2, 25
Os combatentes de Deus [os seus soldados], sem Deus, são quais um andarilho
que estacionasse junto às setas da beira da estrada, indicadoras da direção a
seguir e aí permanecesse sem tomar o sentido indicado. [E o pretenso servo de
Deus que vê o que deve fazer mas não faz; é semelhante ao “moço rico” que se
achegou a Cristo, percebeu o que deveria fazer, mas não trilhou o caminho
indicado. (Marc. 10, 17-22)]
(Para esses tais [os soldados de Deus, sem Deus,] o sacramento da circuncisão
entre os judeus e todos os demais sacramentos [entre os outros — entre os
gentios] já não são mais comunhão com Deus, mas apenas se referem a essa
comunhão; são memória dela. (Zwinglio e o liberalismo têm razão, sob a ira de
Deus).
O sacrifício foi feito uma vez por todas, e não se repete. Cristo não está
morrendo constantemente mas morreu uma única vez; e os seus seguidores
comungam em memória dele. (“Fazei isto em memória de mim”). Ao comun-
garem, lembrando do sacrifício, participam da graça quando, examinando-se a si
mesmos, reconhecem a sua nulidade e, sem nada terem, se apresentam a Jesus:
(“Senhor, eu creio”; “Eu sei que tu és o Cristo, o filho do Deus vivo!”;
2, 25-26
O Julgamento
por terem vida limpa, conduta reta, serem piedosos, crentes professos,
freqüentadores regulares da igreja, cooperadores do seu sustento e manutenção.
Cor. II, 23-29) ) que eles a esse respeito, retêm ou retiveram a verdade com a sua
justiça e estão ou estavam sob a ira de Deus].
Desta maneira, a retidão humana é atacada em sua própria casa, [pois são os
legalistas, os defensores da lei e promotores de sua própria justificação, que são
recusados, como transgressores da lei, no tribunal de Cristo, que julga segundo o
que está oculto nos corações]; esta justiça (retidão) está sujeita a enganar-se
[corre esse risco], não somente em relação aos gentios que estão de fora (2, 14-
16) mas também em relação a eles próprios [os que conhecem a lei, os crentes,
os de dentro da casa dos justos].
104
O Julgamento
2, 26-29
ele poderá ser rompido, o seu efeito inexorável poderá ser suspenso, anulado,
junto com a própria causa, pela incompreensível comiseração divina. E claro que
a justiça humana, em si mesma, é presunção e não produz qualquer justificação
no mundo; porém, poderá haver uma justiça de Deus, para Deus.
É a impossível possibilidade do mundo novo que vem, sem que qualquer mérito
a justifique, sem qualquer base aparente, sem que, do lado humano, possa ser
feita a mínima coisa a favor ou contra o seu advento.
Deus ajusta as contas pela sua própria escala. Ele conduz os que, aqui, são
incrédulos, à meta da lei [à justifição]; fá-lo à luz da sua comunidade, e deixa no
mundo [sem justificação], os crentes desleixados.
Deus passa por sobre as coisas conhecidas, visíveis e materiais, para julgar em
secreto, de acordo com a sua justiça.
Deus é o espírito que habita ou deixa de habitar nos corações,
independentemente do que se haveria (ou se haverá) de esperar pelo que estiver
ou não estiver soletrado nas lousas humanas. [Nas tábuas das leis humanas.
O que diremos a favor ou contra isso? Acaso Deus, não tem razão? Acaso
conhecemos algum juízo melhor que pudéssemos contrapor ao dele?
2, 26-29
O Julgamento
dita. [Porque Deus julga segundo os corações; a mente dos que verdadeiramente
honram a Deus será aclarada e Deus os julgará pelo que guardarem no mais
íntimo de seu ser].
Deus não subsiste, [não depende] da razão que lhe atribuímos; ele é Deus em seu
próprio direito. Deus não é uma base ao lado de outras, nem é a resposta que nós
mesmos seríamos capazes de dar; daí o seu irrompimento inesperado e sem
razão aparente, e o seu julgamento segundo seus próprios juízos.
Comentários: 2, 14-29
“Dogmática” e que me parece ser uma das causas (ou origem) das acerbas
críticas que lhe são feitas por homens cultos e estudiosos do ambiente evangélico
brasileiro. Trata-se de uma certa dose de humor, mediante afirmações absurdas
que o A. faz na expectativa evidente de que o leitor perceba o sentido real das
afirmações. (E claro que somente imaginação doentia poderia criar para alguém
qualidades morais e espirituais que parecessem superiores às de Cristo).
106
O Julgamento
2, 14-29
prolixo, por índole e estilo, muitos são os leitores que consultam a obra; a
manuseiam, mas não a lêem detidamente, e passam a atribuir a Barth
interpretações e afirmações que foram registradas em sua obra, apenas para
serem refutadas de forma cabal.
Na “Dogmática” Barth é, ainda mais veemente, afirmando que, quem não houver
sido vocacionado para pregar, que se abstenha totalmente de fazê-lo, pois não
será pequeno o mal que causará se subir ao púlpito sem haver sido escolhido
para isso por Deus.
Será o caso que somente os especialmente chamados, alguns até separados desde
antes do berço, devem e podem anunciar o evangelho, ensinar e profetizar, como
o próprio Paulo, Isaías, Jeremias, Moisés, Abraão para citar alguns só?
107
2, 14-29
O Julgamento
Será, então, que aqueles que se esforçam por ajuntar, pensando que receberam
uma mensagem a entregar, estejam, na realidade, espalhando e não ajuntando,
com Cristo? (Mat. 12, 30). Este versículo parece ser o ponto central do
pensamento do A. sobre o assunto. Todos os argumentos desenvolvidos até aqui
mostram o sentido mais profundo do julgamento de Deus, segundo o que está
oculto no re-côndito da mente, ou, para usar a expressão usual, de acordo como
que está escondido em segredo no coração; segredo que o seu guardador, muitas
vezes, sequer ousa confessar a si mesmo. Nem todos pregadores, sacerdotes,
ministros, missionários, pastores, foram separados desde antes de nascerem, ou
de outra forma miraculosa, como alguns dos grandes vultos bíblicos.
Nem todos, também, terão por objeto de sua missão levar as mi-galhas que caem
da mesa para alimentar os cachorrinhos. Nem sempre podemos perceber
claramente quais os motivos humanos — ou se existe vocação divina, entre os
obreiros da seara santa; e a nós não compete o juízo. Mas examine-se cada um a
si mesmo e veja o que faz: está, acaso, aproveitando o pretexto para acomodar-se
ao “dolce fare niente”? Ou será o caso que se esforça e agita para ter maiores
recompensas, como diz aquele hino americano:
Ou então, será para pagar uma suposta dívida de gratidão, retribuindo a graça
divina com a dedicação pessoal?
E não existirão outros motivos, menos sofisticados e menos nobres, alguns até
sórdidos? (Prestígio eclesiástico, carreirismo e até bolsas de estudo!).
108
O Julgamento
2, 14-29
Sim. Há de haver um motivo em cada coração. Este motivo é julgado pelo juiz
que vê o que há de mais secreto em nós. Ele sabe se fugimos e recalcitramos
contra o aguilhão ou se, totalmente, nos auto-sugestionamos para o cumprimento
de pretensa missão ou ainda se simulamos a vocação para realizarmos nossos
intentos. Verá também a sinceridade.
109
Capítulo III
A JUSTIÇA DIVINA
(A RETIDÃO DE DEUS)
• A lei
- Vs. 1 a 20
• Jesus
- Vs. 21 a 26
Ora, não é assim com a lei divina, pois o homem é julgado não pela aparente
prática da lei mas pelo que está aninhado no recesso mais íntimo de seu coração.
E esta lei exige tudo; não se contenta com setores ou parcelas:
“Amarás o senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda tua alma e de todo o
teu entendimento (ou força) (Mat. 22, 37 e Deut. 6, 5). Ninguém tem desculpa, e
nada serve como pretexto; a relatividade humana está inserida no critério
absoluto da exigência total: todo o teu coração; toda a tua alma; todo o teu
entendimento, ou a tua força. Se o coração for grande ou pequeno, se a força 111
3, 1-30
A Justiça Divina
que houver for fraqueza, se o entendimento for minúsculo, se a alma for tímida,
tristonha, que importa? Não é a grandeza do amor em relação ao que outros, de
coração mais nobre, de alma corajosa, de entendimento superior e de forças
hercúleas, acaso tenham ou possam ter; mas é o máximo que cada um, dentro de
suas condições, pode dar. E, o supremo juiz firma a sua sentença, segundo a lei,
pelo que houver no íntimo de cada um de nós. Não há subterfúgio, porque Deus
vê em secreto. (Mat. 6, 6)
Quem há que possa satisfazer a exigência dessa lei? — Sempre nos faltará
alguma coisa e haveremos de nos retirar tristes pois a simples idéia de, por
nossas qualidades, a podermos cumprir, já é incriminativa pois envolve ou
implica o conceito do nosso valor, e endeusamento do “não-Deus”, como sendo
digno do verdadeiro Deus, e ocupante do seu trono.
O Cristo que nos liberta da ação da lei, mediante a opção pela fé.
* * *
Capítulo.
vel. E do mundo de além; do lado de lá; pertence ao reino dos céus, que está bem
próximo de nós (em Jesus); todavia, não é visível porque não é deste mundo e só
o podemos pressentir, apropriar, receber, gozar, pela fé, e somente pela fé.
* * *
A Lei
3, 1-20
Uma só gotícula de eternidade tem mais peso que todo um mar de coisas
temporais. Medidas pelo padrão de Deus, as vantagens humanas perdem sua
altura, sua seriedade [sua dignidade] e seu alcance; tornam-se relativas.
Quando este juízo (de Deus) se der [ou se dá], os vales se erguem e as colinas se
abaixam. A “guerra” entre os bons e maus chega ao fim.
Os seus segredos estão [agora, na hora do juízo] (2, 16) em julgamento perante
Deus, mas perante Deus somente.
O juízo divino é o fim da história [de forma cabal]; não é o princípio de nova
História. A História está consumada, liquidada, e jamais será continuada,
prolongada, estendida.
O que existe para além do julgamento divino não guarda, sequer, relatividade
com as coisas do lado de cá, [anteriores a ele], pois é absolutamente diferente, e
está totalmente separado destas.
Deus fala: Deus é reconhecido como juiz.
113
3, 1-20
A Lei
A tese, segundo a qual, nada que seja humano, temporal, prevalece perante Deus.
Como assim?
(Mat. 25, 14-30). Portanto o homem tem em seu acervo as obras que pratica, as
palavras que fala, os pensamentos que abriga; são seu acervo — bom ou mau
A Lei
3, 1
perecível e, portanto, parte integrante da retidão humana, sendo aceito por Deus,
se mistura inextricavelmente com a justiça divina, O que Deus aceita por válido,
deixa de ser humano para ser divino].
[E porque Deus é fiel] a impressão da revelação deixada na história não é tirada,
não é apagada, não é anulada pelo julgamento [divino] por menos que dela se
glorie a retidão humana, por menos que dela possa a retidão humana tirar para si
segurança e descanso; antes é ela (a impressão da revelação) confirmada e
fortalecida pois, na supressão radical de todas as realidades históricas e
psíquicas, na relatividade geral dos seus degraus e suas antinomias, permanece e
sobressai a sua significação verdadeira, eterna.
”O que tem pois o judeu, ainda, de especial?” [quais são as suas vantagens, se é
que tem alguma?
se tudo [e todos] estão sob a ira de Deus, e se não existe salvação e paz
preparada [e reservada] para este ou aquele, em particular? (E, mais ainda), se
não há qualquer exceção?
Existem acaso, na história, pontos altos que sejam mais que grandes vagas, em
mar transitório, de sombras apenas mais densas que outras?
Acaso existe alguma relação entre os varões ilustres que passaram [ou passam]
pelo mundo com a perseverança dos vocacionados e iluminados, que se
sobressaem como heróis e profetas [que se agigantam] como homens de boa
vontade, sim, existe alguma relação entre toda essa gente e o Reino de Deus que
está por vir e no qual tudo se fará de novo?
Por trás dessas perguntas está a outra, de ordem geral, que indaga da relação
existente entre o que sabemos ser verdadeiro (por experiência própria ou de
terceiros) e o conteúdo eterno de todos os eventos.
115
3, 2
A Lei
Quanto mais ambígua e duvidosa for a posição do homem justo que busca e
espera por Deus, tanto mais clara e necessária é ela como sintoma do que Deus
quer e faz. (2, 19-25) [Porque sendo ambígua e duvidosa, para o homem. a
posição em que se encontra, não se entregará, ou não será tão prontamente
induzido a arvorar-se na posição de superior, de líder, de guia, de mestre; não se
fiará, nem se gloriará na sua própria retidão, antes estará atento à voz de Deus, e
estará mais pronto a entregar-se à sua justiça].
O fato de tais pessoas [as que sentem a insegurança do seu valor humano]
serem o que são, no meio do mundo, é prova de sua confiança em Deus. Elas o
são porque o reino de Deus foi prometido. Enquanto elas, por experiência
própria 116
A Lei
3, 2-3
Pela manifestação de Deus que [tais homens] têm e guardam, eles são as
testemunhas palpáveis do impalpável: eles atestam que para este mundo incapaz
de receber a salvação, há salvação.
Não faz diferença se o que eles têm e guardam é Moisés ou João Batista; Platão
ou o socialismo; ou ainda, a mera prática diária de vida morigerada: é vocação.
Esse “possuir” e “guardar” é promessa, é parábola; é porta aberta e é oferta para
conhecimentos mais profundos. A posição especial que reivindi-cam, sua
demanda para serem ouvidos especialmente, não são necessariamente uma
arrogância enquanto lhes forem confiadas, de fato, manifestações de Deus.
[O A. refere-se, algumas vezes, à vida como parábola e à sua capacidade de, por
vezes assumir determinados aspectos de paralelismo e semelhanças; nas
Sagradas Escrituras as parábolas não são apenas analogias de raciocínio mas
também um provérbio, um dito notável e, ainda, emblema e protótipo visível.
Parece-me que o A. quer dizer que há justos que esperam em Deus, quer sejam
judeus, que se orientam pela lei de Moisés, gentios filósofos, materialistas
modernos ou simples plebeus (ou “burgueses”) que apenas entendem ser de seu
dever guardar a devida decência na vida cotidiana.
Tais praticantes estão na direção certa para fazerem de suas vidas (e talvez
façam) semelhança viva, uma parábola do fato de que Deus não abandona a
humanidade, porém é-lhe fiel. (Uma parábola da fidelidade de Deus).
“Ainda que alguns hajam traído essa confiança, acaso a sua infidelidade
suprimirá a fidelidade de Deus?”
A Lei
depositada é uma verdade apenas casual, acidental; a ação de alguns (ainda que
os “alguns” fossem todos!) não é refutação nem estorvo para o que Deus quer e
faz.
A fidelidade de Deus pode ser esquecida, traída, ignorada, porém não pode ser
suprimida.
A oferta de Deus pode encontrar a ingratidão, mas não será retirada. A bondade
de Deus levará o recalcitrante ajuízo mas nem por isso deixará de ser bondade.
ria contém. Não se fecham as portas, nem cessa o apelo de Deus pelo qual ele se
faz conhecer, — [pelo qual ele conduz os homens ao “Deus desconhecido”].
Onde quer que existam pessoas que perseverem em Deus, existe também a
mensagem, em CHARACTER INDELEBELIS. E ainda que esta mensagem
fique completamente oculta aos que assim perseveram, ou mesmo aos olhos de
todos, ou que adviessem as mais terríveis catástrofes psíquicas e histó-
Deus nunca, e em nenhum lugar, se revelou em vão. Onde houver lei (2, 14) inda
que sejam cinzas apagadas, aí existe também uma palavra [ao menos]
da fidelidade de Deus.
[Deus não se deixa levar pela ação humana; ele não age desta ou daquela
maneira porque (ou se) alguns de nós procedemos de uma ou de outra forma.
As portas de acesso a Deus não se fecham e, ainda que existam tempos, épocas e
regiões onde os homens, mesmo esperando nele, não sintam a graça de Deus em
suas vidas materiais, a palavra do Eterno não voltará vazia (Isaías 55, li).
Deus fala e, de alguma forma, quiçá no recesso mais íntimo de seus corações, os
seus servos ouvem].
Nenhum ser humano pode sê-lo; nem o oriental, nem o ocidental, nem o homem
germânico, nem o homem bíblico; nem o piedoso, nem o herói, nem o sábio,
nem o que espera, nem o que trabalha, nem mesmo o super-homem.
A Lei
3, 4
“Para que sejas justificado em tuas palavras e possas prevalecer quando entrares
em juízo” (Sal. 51, 4-6).
veis os mensageiros que a trazem e, muito menos, que critiquemos a Deus por
isso.
Antes, a própria fraqueza dos arautos atesta a origem divina daquilo que
anunciam. [Pois sendo pequenos os pregoeiros, como poderiam anunciar coisas
grandiosas e santas que viessem deles mesmos ou de seus iguais?].
[de sua desesperada falta de dignidade para tão grande missão] que o homem dá
azo à entrada vitoriosa de Deus.
Quando o homem se encontra na situação descrita no Salmo 51; quando ele nada
encontra em si mesmo senão a sua impureza ante a luz divina; quando o homem
já não pensa em outro sacrifício a oferecer senão o seu próprio es-pírito
atemorizado e o seu coração despedaçado, então vem Deus como vencedor
triunfal. [Então, “qual eco afastado nas quebradas a rolar, ao aflito e contristado”
(a voz de Deus) “vem consolar”].
119
3, 5-8
A Lei
Permanece, pois, a vantagem, o especial (3, 1) que o judeu [já] não tem mas
recebeu: [O sacramento do pacto com Deus — “Eu vos serei por Deus, e vós me
sereis por povo” (Lev. 26, 12 e II Cor. 6, 16) como sinal sacramental, visível,
dessa graça. (Gal. 6, 15].
Vs. 5 a 8 Mas o que diremos se a nossa rebeldia [nossa injustiça] traz a lume a
justiça de Deus? Não é, [não seria] então, Deus injusto ao aplicar a sua ira?
(Falo segundo a lógica humana).
A Revised Standard Version diz, no primeiro caso, “como poderia Deus julgar o
mundo (admitindo, portanto, um tempo presente e, no segundo, “os santos
julgarão”. A versão sinodal (francesa) acompanha a tradução de Almeida nos
dois casos. A Bíblia “de Lutero” dá, em Romanos 3, 6, o tempo presente e em 1
Cor. 6, 2, fala no julgamento que “Será feito”, pelos santos.
(Ou, para usar a tradução de Almeida, “Se a nossa injustiça traz a lume a justiça
de Deus, que ditemos? Porventura será Deus injusto ao aplicar a sua ira?”
Sim, segundo a lógica humana, parece que se nossa mentira enaltece a glória de
Deus, ele será injusto se fizer cair sobre nós os efeitos de sua própria ira,
suscitada pelo mesmo pecado que o enalteceu].
O que acabamos de ver dos versos 3, 1-4, parece lançar uma luz toda peculiar
sobre este Deus que se declara Deus justamente no ato de negar, recusar
[condenar] seus eleitos.
120
A Lei
3, 5-6
A rebeldia e o egotismo despótico e altivo dos homens (1, 18) são os males que,
também nos eleitos, retêm presa a verdade e são a causa de sua condenação.
Ora, se a rebeldia humana atesta a justiça [a retidão] de Deus, que retidão é esta?
Não passa ela, também, a ser rebeldia? [a ser injustiça?].
Não passa Deus então, a ser, em seu soberano despotismo, uma terrível
expressão do mais exaltado EGO, em toda sua monstruosidade?
Nestas condições, a ira de Deus suscitada pela nossa rendição ao NÃODEUS (1,
22-32) não testemunha contra ele mesmo, contra o próprio Deus?
Não resulta disso que a situação do mundo e dos homens, é apenas expressão fiel
dos mais íntimos sentimentos do [próprio] Deus: uma tirania capri-chosa e
impenetrável?
pria coerência, então esta coerência não passa a ser, necessariamente, um contra-
senso? [uma loucura, um disparate?].
“Segundo a lógica humana”, quer dizer: um raciocínio muito bem concatenado,
porém, na verdade, destituído de senso crítico, por demais simplista, bisonho;
em se tratando das coisas divinas um raciocínio embrutecido,
[materializado].
Não há objeto [ou circunstância] sem que nele [ou nela] se pense. Não há
distintivo que fixemos algures sem que tenhamos, pelo menos, uma idéia do que
o distintivo representa.
Ora, fôra Deus uma parte deste mundo, não haveria expressão a seu respeito
(“prepotência”, “tirania”) que não tivesse sido originada por esse conhecimento
prévio.
121
3, 6-7
A Lei
É deste Deus verdadeiro, o juiz do mundo, que nele não tem partido
“Se eu puder justificar-me por haver a verdade de Deus sido engrandecida com a
minha mentira, o que significa, pois, que eu seja julgado como pecador?”
[Todavia] trata-se de conclusão falsa. Deus não é o mundo e ante tão forte razão,
nem por sua obediência, nem por sua mentira pode o homem acrescentar ou
retirar o que quer que seja [o mínimo que fosse] da verdade e da glória de Deus.
Deus mesmo confirma e atesta a sua verdade e se glorifica. [Ele não precisa da
colaboração do homem, nem positiva nem negativa].
122
A Lei
3, 7-8
Quem temer a soberania divina ou desejar que ela cancele, suprima, dispense [ou
atenuei a responsabilidade humana, deve lembrar-se que [todo homem] é
pecador e, como tal, julgado por Deus.
Quem se sentir sob o julgamento divino sabe que o que Deus fizer, seja pró ou
contra, é para a honra de Deus e não da criatura, tão certo quanto, quem
reconhecer a Deus, como juiz, sabe que a desonra do mundo não é atribuível a
Deus.(3, 5-7) Supor que Deus aceitará o servilismo humano [que Deus seja por
ele
“Na verdade, não é segundo o dito: Façamos o mal que daí virá o bem!
Apresenta-se a afirmação justa, certa e coerente: “Deus faz o bem”. Daí é fácil
estender a verdade e dizer]: “Deus faz surgir o bem, mesmo quando praticamos o
mal” e daí, com lógica gramatical, a oração principal é seguida pela sua subordi-
nada: “Portanto pratiquemos o mal, pois o bem virá sempre”.
Parece ser de clareza meridiana porém, não passa de densa treva: “os que assim
dizem reforçam a sua condenação”.
Deus e os homens não são a mesma coisa: não podemos escriturar o mal
[que praticamos] na conta de Deus nem, tampouco, lançar o bem que do mal
possa vir, a nosso crédito.
123
3, 7-8
A Lei
O que fazemos jamais [foi] é [ou será] obra divina, e o bem que de nossas obras
houver, acaso, sido obtido, nunca veio de nós.
Se nos enganamos a respeito disto então é porque, por nossa aparente penetração
[invasão] na soberania divina, perdemos a noção da distância que medeia entre
nós e Deus. [entre o que é humano e o que é divino].
Não somos Deus, nem soberanos. O mal é o mal a despeito do bem que Deus
pode fazer surgir [mesmo que seja através desse mal ou apesar dele].
Vs. 9-18 O que se conclui? Temos alguma vantagem? De modo nenhum, antes
prevalece a acusação que fizemos; judeus e gregos estão sob pecado, conforme
está escrito:
“Não há justo, nem sequer um; não há quem entenda; não há quem busque a
Deus! Todos se extraviaram e se tornaram inúteis. Não há quem faça o bem, não
há um sequer.
A garganta deles é um sepulcro aberto; com as línguas tecem engano, peçonha
de víboras há em seus lábios; a sua boca está cheia de maldição e amargura.
124
A Lei
3, 9-10
Os seus pés são velozes para derramar sangue e nos seus caminhos há
destruição e miséria; e não conheceram o caminho da paz. Não há temor de
Deus diante de seus olhos
Considerando o fato de que Deus se conserva fiel até para aqueles que caem,
[que se afastam de Deus, que o negam], qual a nossa vantagem?
O homem não é suspenso no ar (levado à crise perante Deus) para, ato contínuo
ser reposto no solo, [reconduzido aos seus problemas rotineiros, abandonado à
pseudo-segurança de seu materialismo e de suas pretensões].
Ninguém pode esconder-se por traz da vitoriosa vontade de Deus; antes pelo
contrário, quem se defronta com essa vontade (quem a percebe, quem a sente)
entra em julgamento. Estremece perante Deus e não sai mais desse
estremecimento [porque passa a viver em presença do Deus eterno].
“Prevalece a acusação de que todos estão sob pecado”. [Não há regalias
especiais].
judeus e gregos, filhos de Deus e do mundo, por natureza’ estão, sem exceção e
sem escapatória, entregues, como filhos da ira, ao domínio estranho [espúrio]
do pecado (5,12-14).
Deus é e continua sendo desconhecido para nós; continuamos sem pátria e sem
lar no mundo. Somos e não deixamos de ser pecadores. Quem fala em
humanidade, fala de humanidade perdida, [não salva]. Quem cita a história,
refere-se à limitação, à temporalidade. Quem diz “eu”, diz “julgamento”.
3, 9-10
A Lei
Acaso é [esta absoluta anulação das supostas vantagens que vida aparentemente
bem estruturada em sua atitude religiosa e social possa ter perante Deus,] alguma
novidade?
Trata-se de algo nunca dantes ouvido? É recente, é nova, a verdade de que todos
estamos sob pecado, [que não há um sequer que pratique o bem?].
Nada disso! Esta acusação, que não gostamos de ouvir, está escrita. Ela foi
publicada há muito (1, 2). Ela é proclamada e anunciada pela própria história.
Como pretende a humanidade ter critério histórico, e por ele orientar-se se,
sistematicamente, ela insiste em ignorar a pecaminosidade [a maldade, a
perversidade, o desvio do homem no caminho que leva a Deus] que a história
mesma, tão eloqüentemente comprova?
um sequer que ateste ser o homem bom? Profetas, salmistas, filósofos, anciãos
da Igreja, reformadores, poetas, artistas, acaso um único deles, se perguntado,
afirmaria ser o homem bom ou, ao menos, apto, capaz de fazer o bem?
Poderia alguém, neste assunto, ter opiniões diversas das exaradas na Bíblia [ou
mesmo] daquelas de Agostinho e dos reformadores?
O que é, pois, que mostra e ensina a história, (tanto ativa como passiva)?
[Acaso sugere ela que] existem, ao menos, umas poucas pessoas [em toda
história da humanidade] que se pareçam [ou tenham parecido] com Deus?
Não! Antes mostra e ensina que: não há nenhum justo; nem um sequer.
[Parece-me que aqui o Autor faz pensar, não só na pretensa retidão humana, tão
generalizada entre a chamada cristandade, mas também e de forma 126
A Lei
3, 10-11
[Para acompanhar o pensamento do Autor, talvez seja útil examinar, ainda que
de passagem, qual foi a conduta dos heróis (ou de alguns heróis) que a Bíblia
registra, (para nossa edificação).
Aparentemente não, pois, se o tivesse tido, já não seria o herói da fé, que é o
único fundamento das coisas que não conhecemos, que não entendemos. —
Pelo registro bíblico, só uma vez, Abraão invocou a Deus; foi em Betel (Gen.
13, 4). Na sublime intercessão pela gente de Sodoma e Gomorra Abraão não
buscou, realmente, moto-próprio, a Deus, porém havendo Deus se dirigido a ele,
usou da oportunidade para interceder eloqüentemente pela cidade. Foi nobre,
sim. Mostrou confiança em Deus, mas não o buscou por iniciativa sua.
Lendo suas histórias vemos que o entendimento de todos foi obumbrado pelas
contingências do século em que viveram e, quando buscaram a Deus, não o
fizeram sempre de todo o seu entendimento, de toda sua alma, de todo o seu
coração, antes, não raras vezes, foram inibidos de fazê-lo, como Paulo tão
confortadoramente (para nós) o confessa: “Porque não faço o bem que prefiro,
mas o mal que não quero” (7, 19).
E quem buscou a Deus? A Bíblia registra “Enoque” que “andou com Deus”,
porém pela fé. (Heb. 11, 5).
Estaria, acaso, a busca de Deus na oração de Jonas? ou na de Davi? Não são tais
orações confissão de culpa e suplica e só ocasionalmente gratidão?
127
3, 11-12
A Lei
Onde está quem busca verdadeiramente a Deus? quem o invoca senão na hora da
angústia?
Parece que isto nos conta a história: “Não há quem busque a Deus e não há quem
entenda”!
Há, porém, que destacar a aceitação da graça, que é coisa diversa da busca de
Deus. Adão, desde que pecou, foge de Deus, mas pela graça, o homem renascido
do espírito é, mediante a fé, reconduzido a Deus.
como sendo pessoa que busque a Deus, pelas qualidades pessoais de seu caráter,
quando essas qualidades forem as mais dignas de consideração e as mais
respeitá-
veis, como por exemplo, uma conduta naturalmente sadia, autêntica, original,
agradável, idealista, de vontade forte, amorável, espiritual, singela, inteligente,
nobre?
[Será que alguém que tenha personalidade e obras as mais dignas que pudermos
imaginar, não tenha, também, entendimento de Deus e o busque?]
Ainda uma vez não: pois, “a garganta deles é sepulcro aberto; com a língua
urdem engano, veneno de víbora está em seus lábios; têm a boca cheia de
maldição e de amargura”.
— Isto é o que, afinal, se pode esperar dos pensamentos e das palavras humanas.
“Os seus pés são velozes para derramar sangue. nos seus caminhos há destruição
e miséria; não conheceram o caminho da paz”.
O verdadeiro temor do Senhor, como tal, neste mundo, jamais será visí-
128
A Lei
3, 12-18
Sem dúvida, que tinham. Eles não negam a existência dessas qualidades, [desses
valores positivos]. Poderiam até louvá-las com gratidão se se tratasse de julgar a
religião, a moral e a cultura em seu valor natural e sua significação no mundo.
Porém o tema, o verdadeiro tema da história, não é a contestação ou a
confirmação do homem, em si, mas o reconhecimento da situação problemática
em que se acha o gênero humano segundo o que o homem deixa de ser para com
Deus, sua eterna origem.
[Ao citar Jó, os Salmos e Isaías o Autor reitera aquilo que Paulo escreveu nos
versículos 10 a 18 do Capítulo 3 de sua carta aos fiéis de Roma: a pequenez e o
desvalor do homem para argüir e argumentar perante Deus (Jó); a característica
perversa da humanidade: não há quem entenda; não há quem busque a Deus; não
há um sequer que faça o bem (Salmos); seus pés correm velozes para derramar
sangue, são venenosos quais serpentes, desconheceram os caminhos da Paz
(Isaías)....
Ele nada tem a ver com a crítica relativa, aplicável a todas religiões, todas as
formas de moral [ou ética] e a todas culturas e, por isso mesmo, esse radicalismo
não pode [suavizar-se, moderar-se] limitar-se e se satisfazer com a aprovação
relativa que é devida a todas as realizações humanas quando situadas em sua
própria conjuntura.
O “NÃO” divino (que gera a posição radical) é universal porque ele jorra de um
“SIM”, também universal.
Por isso, a essência do pensamento dos extraordinários vultos que com tanto
radicalismo se expressaram, não é o pessimismo, a autoflagelação. não é uma
alegria, quiçá doentia, de negativismo, mas é feroz aversão às ilusões; decidida
recusa a curvar-se perante “tabernáculos vazios”.
129
3, 12-18
A Lei
31) e conclui:
e a ousadia — com que trataria com um juiz, originário de entre pares seus.
130
A Lei
3, 18-19
Eis que o mais jovem de seus visitantes, Eliu, toma-se de ira sagrada: repreende
a Jó; acusa-o de falta de entendimento. Defende e justifica a Deus dizendo que
ele faz sofrer para produzir o bem. Lembra o quão majestoso é Deus.
Eliu fala em linguagem humana, porém fala do Deus Desconhecido deste mundo
e acusa seus três amigos idosos cujas palavras considera rasteiras, humanas e,
portanto, não chegam aos céus. (Retêm a verdade com a sua própria retidão, por
isso suscitam a ira de Deus (42, 7)). Com seu discurso Eliu prepara o caminho
para que Jó entenda e, só então Deus intervém e interpela Jó: o que sabia, ele Jó?
“Acaso quem usa de censuras, contenderá com o Todo-Poderoso?”
(Cap. 38).
“Quem assim argüi a Deus, que responda”. (Cap. 40).
Mas Deus não aceitou o súdito servil; não aceitou o escravo: “Cinge agora os
teus lombos como HOMEM; eu te perguntarei e tu me responderás”
(40, 7)... E Jó respondeu: “Eu te conhecia, só de ouvir, mas agora os meus olhos
te vêem. Por isso me abomino e me arrependo no pó e na cinza”.
...E o Senhor aceitou a oração de Jó; oração de intercessão pelos seus três
“amigos retos”!
Vs. 19 e 20 Porém sabemos que: o que a Lei diz, para os que seguem a Lei o diz.
Para que toda boca seja silenciada e todos sejam culpáveis perante Deus; pois
ninguém será justificado perante ele pelas obras da Lei, pelo que é carnal, pois
a Lei, em si, serve apenas para trazer o conhecimento do pecado.
Os que têm a lei, anunciam a Deus e dão testemunho dele e da impressão que
têm da revelação. Falam da sua religião e da sua piedade; são orientados para
Deus e por isso julgados por ele. [O Autor faz jogo de palavras e diz, eles se
“julgam” orientados para Deus e, por isso, são “julgados” por ele].
131
3, 19
A Lei
São eles, [os que têm a lei], que menos que qualquer outra pessoa podem ignorar
qual a situação entre Deus e os homens e são os que menos podem incorrer no
engano de supor segundo alguns (eles próprios, por exemplo) que, à vista de
suas vantagens “espirituais” [ou psicológicas] estejam garantidos e sejam
desculpáveis perante Deus (2, 1); são estes tais os que menos podem negar, “pela
lógica humana”, que Deus é Deus. (3, 5). São eles os que menos podem fugir da
tensão e da inquietude, da falta de paz, da constante incerteza e infirmeza de suas
bases, da dúvida [a que está sujeito o homem quando colocado na presença de
Deus, ou, no dizer literal do Autor] cm que Deus coloca o homem.
perante quem jamais será mundo ou homem, [a quem jamais será parte do
mundo ou igual ao homem], a não ser que o fosse na supressão do mundo que
ora conhecemos, na redenção, na ressurreição de tudo quanto aqui e agora
conhecemos por humanidade e mundo.
O canal vazio fala da água que não o percorre; a seta direcional da estrada
aponta para o local que não é aquele onde a seta está fincada. A gravação (a
“cunhagem”, 2, 20) fala de um sinete que não está onde a cunhagem foi feita,
mas aí deixou apenas a sua forma negativa em baixo relevo.
[São os próprios pontos altos, as ações sublimes, que a história registra que
mostram como a seqüência dos pensamentos, palavras e obras do homem estão
abaixo do padrão divino não só abaixo mas fora dele e até contra ele; é por isso
que a própria história se acusa; os que falam da lei, já não têm a mensagem e por
isso são qual o canal seco, qual o molde vazio, negativo do sinete que deixou o
decalque mas que aí não está; são qual o marco da estrada que se refere a uma
localização que não é a dele].
“Para que toda boca se cale, e todos sejam culpáveis perante Deus”.
O judeu (o homem de igreja) goza de uma posição especial (3, 1). Ele pode
“saber” que “nada sabemos” de Deus. Ele pode “fazer alto” [pode parar]
perante o que nenhum olho viu, nenhum ouvido ouviu; perante o que não entrou
em qualquer coração humano. Ele pode temer a Deus.
132
A Lei
3, 19-20
[Finalmente], o veredito da história dirige-se aos que a ela se atêm e pode levá-
los a se calarem perante Deus, em [uma espécie de] renúncia extrema, [pois são
justamente os que buscam a história que ouvirão e perceberão o julgamento que
ela faz do mundo e da própria história: se forem consciencio-sos, se estiverem
realmente atentos à voz das crônicas, ficarão perplexos e emudecerão perante
Deus, renunciando ao direito ou ao desejo de dar o seu testemunho ou de
levantar a sua voz, conforme silenciou Jó. (Jó 40, 4)]
Quando isto acontecer, quando os que se ativerem à lei ouvirem o que a lei diz;
quando reconhecerem que Deus e somente ele tem razão [que só Deus é justo];
quando a sua religião suprimir esta mesma religião; quando a sua piedade revelar
a inexistência dessa mesma piedade; quando sua sobranceria psicológica [ou
espiritual] e intelectual descer ao nível a que são rebaixadas todas as
preeminências humanas [quando essa sobranceria estiver totalmente anulada];
quando os homens que galgaram os mais altos píncaros [da glória e reputação
humanas] perceberem que todos, [eles também] são culpáveis [e culpados]
perante Deus, — então se manifestará o sentido eterno da história; só então, se
confirmará, comprovar-se-á e se reforçará a posição especial, [a vantagem
particular do judeu ou do homem de igreja]. — Só então Deus confirmará sua
fidelidade ao homem que não se deixou iludir, [que não foi induzido ao erro]
pela infidelidade humana.
“Pois ninguém será justificado perante ele pelas obras da lei, pelo que é carnal”.
“Não entres em juízo com teu servo pois perante ti não há nenhum vivente
justo”. (Sal. 143, 2).
[É o Salmista rogando a Deus que não entre em juízo com ele — Davi]
[ou então], “Na verdade sei que é assim [eu conheço a situação]: como pode o
mortal ser justo perante Deus? Se quiser entrar em juízo com ele, não pode
subsistir, pois em mil questões nem sequer uma poderá responder-lhe” (Jó 9, 2-
3).
133
3, 20
A Lei
O vivente do Salmista (Sal. 143) pode ser também o mortal de Jó (Jó, 9); é o ser
humano entre o nascimento e a morte, preso na luta pela existência, comendo,
bebendo e, acima de tudo, dormindo; ora libertando (aos outros) ora libertando-
se, é o homem temporal, o homem histórico, o homem carnal. Este homem não é
justo perante Deus.
Nada que seja carne ou se chame carnal, encontra justificação perante Deus, pois
as obras da lei que Deus inscreve no coração dos homens (2, 15) falam contra e
não a favor do homem carnal. Tais obras não proporcionam nem segurança, nem
paz, nem desculpa. Elas são o desmantelamento, não a edificação da justiça
humana.
Observadas do nosso ponto de vista na esfera carnal, humana, tais obras são
negação e não [asseguram qualquer] posição.
[Se algum valor tiverem, este ser-lhes-á atribuído por Deus]. Somente vistas por
Deus (e só por ele julgadas) podem nossas obras conter algo de apreciável, de
útil, de notável.
Nada há, em todas [e na totalidade das] obras humanas, que possa ser propício a
Deus que retribui a cada um “segundo as suas obras” (2, 6).
O que o homem considera “reto” (ou justo) “e “de valor”, se-lo-á [para o
mundo], segundo a carne, mas será “sem mérito” e “injustiça” perante Deus.
Porém o que Deus considera “justo” [e reto], e paga segundo a sua avaliação,
como tal, não é carnal; portanto já não é nossa propriedade [foi apreçado e pago
por Deus] e não pode ser considerado como grandeza e peso válidos [para nós ou
em nosso benefício] neste mundo.
Só Deus é a resposta. Ele é o auxilio na aflição que nos acomete [e que nos está
preparada] pela distância que nos separa de Deus.
Tem razão o lamento: “Meu espírito está atribulado em mim; meu cora-
ção está abalado. Rememoro os dias passados e medito sobre todas as tuas
palavras; estendi a ti as minhas mãos e meu coração anseia por ti qual terra árida
pela chuva” (Sal. 143, 4-6); e também perfeitamente compreensível é a 134
A Lei
3, 20
queixa: “Quando ele passa por mim, não o vejo; quando ele se metamorfoseia,
quem o trará de volta à sua forma primitiva? Ou quem lhe dirá: O que fizeste?
Perante ele são humilhados os poderosos sobre a terra. Quem pois sou eu para
que me escute e perceba as minhas palavras? Ainda que eu esteja certo, mesmo
assim ele não me ouvirá e só posso dirigir-lhe súplicas como a um juiz que me
julga. E ainda que o invoque e ele me ouça, não posso crer que ele tenha escu-
tado a minha voz. Não me aniquilará ele nas trevas’? Repetidas vezes feriu-me
com chagas; quem sabe a razão? Não me deixa tomar fôlego; enche-me de
amargura; é mais forte que minha força. Quem resistirá ao seu julgamento?
Pois quando, para mim, sou reto, então a minha boca me condenará como um
“sem Deus”. Quando eu me considero irrepreensível, revelo-me falso; ainda que
eu me julgue piedoso, minha alma o ignora e sabe apenas que a minha vida será
ceifada. (Jó, 9, 11-21 (apud) LXX).
Perguntávamos: “Qual pois a vantagem do judeu?” (3, 1). Aí está a resposta: ele
tem a lei; a impressão da revelação; vivência; religião; piedade; vi-são,
perspectiva; postura bíblica. [Entre esses dons] é a dádiva da lei que deveria
arrancar, os que a possuem, de todo e qualquer sentimentalismo, do romantismo,
para colocá-los ante a brecha aberta que existe entre a criatura e o Criador; entre
o que é carnal e o que é espiritual. É a lei que os acusa e os declara pecadores; é
a lei [que os esvazia] que lhes tira tudo o que possuem e os entrega, [quais são
em si mesmos, sem máscaras, sem disfarces, sem desculpas e sem justificações,
sem roupagens que os enfeitem], a Deus, para receberem ou a condenação, ou
misericórdia.
É com vistas a tal “ouvir” e “entender” que podemos dizer: há pontos altos na
história que podem ser encontrados onde ela testemunha contra si mesma com
espanto e horror.
[Parece-me que o Autor quer dizer que a história só é realmente sublime quando
dá lugar a que venha o reino de Deus e isto só ocorre quando (e toda 135
3, 20
A Lei
vez que) abstraindo da sua jactância e pretensão, se expõe à luz que vem de
Deus, revelando a hediondez da crônica dos feitos humanos. Quando isto
acontece, a história sobrepuja a si mesma].
[Ainda uma vez, parece-me, quer o Autor deixar bem patente que toda
valorização própria que o homem queira dar às coisas espirituais, toda conotação
de aptidão, valor pessoal, atributos e dons, mesmo as graças e bênçãos recebidas,
desqualificam a “retidão” humana perante Deus.
136
Jesus
3, 21
O mundo é mundo, e sabemos o que isso significa. (1, 18; 3, 20). [Um mundo
idólatra, depravado e pleno de sentimentos vis, (homens do mundo e homens de
igreja, todos igualmente reprováveis), retendo a verdade divina com a sua
pretensa retidão; um mundo onde não há sequer um justo, não há quem entenda,
não há quem busque a Deus; um mundo que não conhece o caminho da paz].
Mas de onde procede, de onde vem a crise que envolve tudo e todos? De onde
nos vem a consciência dela, a viabilidade de a termos em mira? De onde nos
vem a possibilidade [a noção] de chamarmos o mundo como tal e de o
diferençarmos de um outro mundo, nosso desconhecido, contrapondo-o a ele?
De que alturas superiores nos vêm essas idéias criticas? E de que profundidades
abismais tiramos o nosso conhecimento das coisas que acontecerão
137
3, 21
Jesus
É desse ponto que viemos e é dele que o mundo e nós somos contemplados [e
observados], delimitados, suprimidos, desenvolvidos e julgados.
Esse ponto não é um qualquer entre outros, nem essa origem (ou essa
pressuposição), idêntica às origens de outras coisas.
traz-nos a recordação do lar junto ao Senhor dos céus e da terra e, quando isso
acontece, rompem-se os céus e abrem-se os túmulos; o sol interrompe o seu
curso em Gibeon, e a lua para no vale de Aijalon [Jos. 10, 12].
[Essa origem] esse ponto, para onde nos levam as indagações sobre a
procedência do critério de nossa avaliação e de nosso julgamento do mundo e
sua história, que fundamenta, por si só, o “tempo extemporâneo”, o local sem
espaço, [o ponto sem lugar geométrico], é a impossível possibilidade.
É esse ponto que fundamenta a luminosidade da luz não gerada [não produzida
por processos científicos, materiais ou humanos, nem cósmicos, nem criativos].
É essa origem que alicerça o “porém agora”; a mudança de rumo [da história]; a
proximidade do Reino de Deus; o “SIM” de Deus contido em o
Deus fala:
O fato de que “Deus fala” é um acontecimento que vai além [de toda
expectativa] de todo o “ter”, ou “ter em parte” ou mesmo “não ter”, que se possa
considerar no mundo. Isto é a verdade de toda a religião, mas, por isso mesmo,
não é, jamais, a sua realidade.
[O fato de que Deus fala coloca-nos sob sua própria luz, e nela passamos a
contemplar o mundo; essa luz atravessa todo nosso ser, o nosso sentimento de
suficiência, ou de pouca suficiência, e até da nossa nenhuma suficiência; é ela
que dá sentido a toda noção de religião mas, por ser a luz divina, ela jamais é
idêntica a essa ou àquela religião.
138
Jesus
3, 21
Deus fala, e a sua palavra (que é a luz para o nosso caminho), é eterna, divina
imutável].
ria, não estará ela isenta das dúvidas [e indagações] que acompanham e a que
submetemos toda a história humana).
A palavra de Deus, [o fato de que Deus fala] é o fundamento de tudo quanto for
perceptível histórica e espiritual mente, como sendo revelação, adoração e fé,
(no mais amplo sentido).
Este fundamento, porém, não pode ser confundido com as coisas que
fundamenta; ele não se torna materialmente perceptível, visível.
Ele apenas é perceptível como o que não é. [Ele constitui o firme fundamento
espiritual, invisível, que em realidade nos aponta os sinais perceptíveis,
materiais, histórica e psicologicamente visíveis, e que são marcos de nossa vida
espiritual, a saber: A revelação de Deus; a nossa comunhão com ele; é a fé que
nele depositamos].
A voz de Deus que é o seu poder (1, 16) (o evangelho é, e permanece sendo, a
sua voz. Se assim não fosse e não permanecesse para além de todo clamor
humano, não seria a voz de Deus.
Deus fala onde “há lei”, porém fala também onde “não há lei”. Ele fala
“onde há lei” [ou “onde não há”] não porque aí exista a lei [ou não exista] mas
porque ele quer. Deus é livre.
“A retidão de Deus”. Deus diz que ele é o que é... [Ex. 3, 14].
139
3, 21-22
Jesus
Este é o SIM que Deus anuncia. [É o SIM que sua palavra — “o verbo que se fez
carne”, traz aos homens]. É o “SIM” que Deus convalida na reivindicação: [Não
terás outros Deuses diante de mim; eu sou o Senhor teu Deus...].
Para além das limitações da muralha que nos encerra e perante a qual nos
achamos, é sempre ele — [a sua palavra] o conteúdo de sua sentença.
Quanto mais as coisas humanas, tudo o que for nosso tanto nosso bem quanto
nosso mal, nossa fé e nossa incredulidade — se tornarem transparentes como o
cristal, tão mais certamente somos vistos e reconhecidos por Deus, quais somos;
então estamos mais ao alcance de seu domínio, e mais sob a ação do seu poder.
Deus, através de Cristo Jesus, proclama o seu SIM, não obstante o NÃO
que nos falava, outrora, tão fortemente através da lei].
140
Jesus
3, 21-22
As coisas são como ele diz que são e não como, acaso, poderiam ser.
Ele se dirige a nós, seus inimigos, como sendo [ou como se fôssemos]
seus amigos.
“É por isto que se trata de mui alta pregação e de sabedoria divina, para que
creiamos que a nossa justificação, nossa salvação e nosso consolo, estão fora de
nosso alcance; que vêm de fora; que [embora] justificados, aceitos, santificados
e tornados sábios perante Deus, em nós habita o pecado vil, a injustiça e a
loucura”. (Lutero).
[O Autor parece atribuir ao homem histórico a idade que situa a sua origem na
última quinta parte do pleistoceno, na era glacial, antes ainda do homem de
“Cro-Magnon”, talvez nas origens do homem de Neandertal, o que poderia (ou
poderá) ser justificável com referência à busca consciente de Deus que o homem
tem praticado desde as mais remotas eras, mesmo antes do chamado “Homo-
sapiens”, pois os remanescentes fósseis do homem de Neandertal parecem
indicar que ele cria numa existência além-túmulo].
141
3, 22
Jesus
Que Deus é reto [e justo] “está manifesto”. E esse fato é o nosso “de onde” e “de
lá” e “agora porém”.
1, 18) — E o eterno “convite da graça”; é “de lá” que nos provém não só a vida
abundante mas também o entendimento dos fatos que hão de sobrevir na
consumação dos séculos].
Anunciamos o que por ele é dado aos homens, e lhes é concedido para que o
busquem, pois não está longe de cada um de nós; é nele, em quem vivemos, nos
movemos e existimos e [ainda mais do que isso,] é ele que está também para
além de nossa vida, nossa agitação, nossa existência de modo que ele permanece
fiel a despeito [de nossa decrepitude], de nossa degenerescência (de nossa
morte].
É justamente por isso, porque permanece imutável e fiel para sempre, que
proclamamos que ele não pode ser representado por qualquer semelhança
humana, nem comparado a figuras (representações) e descobertas da arte [e
ciência] dos homens; que “agora” Deus, já não mais considera os tempos de 142
Jesus
3, 22
nossa ignorância, “porém” manda pregar aos homens de toda e qualquer condi-
Anunciamos a aurora do dia em que Deus julgará o mundo dos homens, com
justiça — com a sua justiça! (Atos 17, 23-3 1).
Não mais? — Sim; não mais, se, pela fé, aceitarmos o que nos foi manifesto!
Se crermos, veremos o homem anulado por Deus. [Isto é, o homem deste mundo
suprimido em sua arrogância, sua pretensão, para dar lugar à nova criatura,
nascida em Jesus Cristo] e por isso restabelecida com Deus.
Vemos o homem [deste século] rodeado, limitado, cercado, mas esse
cerceamento, esta limitação é também, para o homem, o princípio e o fim, [o
Esta revelação da justiça de Deus é “testemunhada pela lei e pelos profetas”. Ela
foi anunciada “há muito” (1, 2). Abraão viu o dia quando Deus julgará o mundo;
também Moisés e os profetas; também Jó e os Salmistas.
Temos ao redor de nós uma nuvem de testemunhas que estiveram todas elas sob
a luz desse dia, pois o sentido de todos os tempos leras e épocas] está voltado
diretamente a Deus, [e, portanto, ao grande dia do Senhor].
3, 22
Jesus
sentido será tanto mais certo quanto mais genuína for a expectativa, [mais
confiante a esperança, mais humilde a luta e mais firme a perseverança].
Onde houver a noção da revelação de Deus — (e onde não existe essa noção?)
— aí haverá sempre testemunho, referência ao Deus desconhecido, ainda que
essa noção se oculte ou se revista com práticas [de todo abomináveis, vindas de
desvairada superstição] ditadas pelo mais perigoso respeito à ignorância (Atos
17, 22-23). Já não o disseram, também “alguns dos vossos poetas”? (Atos 17,
28).
Não anunciamos novidades mas a verdade essencial [que existe] desde toda a
antiguidade; o incorruptível do qual as coisas corruptíveis são [meras
semelhanças]; quais parábolas.
Fidelidade de Deus é aquela perseverança divina por fora da qual surgem sempre
de novo,[em toda parte e em todos os tempos,] em inúmeros pontos da história,
as oportunidades do aparecimento de testemunhas da justiça divina.
Jesus de Nazaré é, entre todos esses muitos pontos, aquele no qual todos os
demais, no seu sentido conjunto, são reconhecidos como o “fio carmesim”
144
Jesus
3, 22
É por isso que podemos perceber a possibilidade de chegar a Deus nas múltiplas
e esparsas manifestações da história, a despeito da nossa insuficiência.
[Por isso, quer dizer, pela fidelidade de Deus que reconhecemos quando
encontramos o Cristo, o Messias prometido, o Redentor, na pessoa de Jesus de
Nazaré].
É por isso que podemos encontrar mais que mero acaso [mais que coincidência
apenas] nos vestígios terrenos [e universais] da revelação de Deus: Encontramos
a verdade para nosso consolo no tempo que é o nosso e no lugar onde estamos,
como a verdade que foi revelada em outro tempo e em outro local — tempo e
local de transparente luminosidade, e que veio a nosso encontro como a sublime
realidade, como a suprema resposta de Deus, a eterna verdade [Cristo é a
verdade]. Veio-nos a verdade de uma nova ordem.
O dia de Jesus, como o Cristo, é o dia por excelência; o DIA de todos os dias. A
luz revelada e vista em Jesus, como o Cristo, é a luz invisível de toda parte.
O poder oculto da lei e dos profetas, é o Cristo que vem até nós, na pessoa de
Jesus.
— Que o poder oculto da lei e dos profetas encerrado na pessoa de Jesus; que o
sentido de toda a religião, conforme Jesus o consubstancia; e que o valor
intrínseco dos acontecimentos humanos conforme resumido no perdão que Jesus
anuncia e materializa, possam ser encontrados algures, sem ser em 145
3, 22
Jesus
E só cm Jesus [e por meio de Jesus] que se entende e se descobre que Deus pode
ser encontrado em toda parte e que Deus veio ao encontro dos homens tanto
antes, como depois de Cristo.
ção. Que nós os vejamos seguir nessa trilha, que tenhamos olhos para ver,
devemolo a um só! E em sua luz, que vemos a luz: [Ele é a luz do mundo].
Que é realmente o Cristo, que encontramos em Jesus, comprova-se nisto: Jesus é
a última, a mais aguda, (a mais definida) expressão da fidelidade de Deus
[conforme foi] testemunhada pela lei e pelos profetas. Ele é a PALAVRA que
aclara todas as demais.
Não é nem herói, nem líder, nem poeta, nem pensador, e nesta absoluta negação
(meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?) ele apresenta o impossível
“mais”.
É exatamente por isto, [por esta renúncia], que se cumprem nele as mais altas
possibilidades do desenvolvimento humano, conforme a seu respeito está escrito
na Lei e nos Profetas.
146
Jesus
3, 22
É por isto que Deus o exaltou; nisto reconhece-se nele o Cristo; ele se torna a luz
das coisas derradeiras, que brilha sobre todos e sobre tudo.
Nele — [em Jesus, o Cristo], vemos a fidelidade de Deus, até nas profundezas
do inferno. O Messias é o fim do homem, e é justamente aí que Deus é fiel.
[Esta realidade é perceptível pela fé, e somente pela fé]. [Ter fé e crer]; fé é a
própria fidelidade de Deus, ainda e sempre reiteradamente escondida por traz e
por sobre todas as afirmações, intenções e conquistas humanas perante Deus. Por
isso a fé jamais é integral, completa, pronta; nunca é dada, assegurada, garantida.
Do ponto de vista psicológico a fé é um salto no incerto, no escuro, no espaço
vazio.
Não é a carne nem o sangue quem nô-la revela. (Mat. 16, 17). Nenhuma pessoa
pode dizê-lo a outra pessoa, nem a si mesma, O que ouvi ontem, preciso ouvir de
novo hoje, e terei que ouvi-lo novamente amanhã. O revelador é sempre o Pai de
Jesus que está no céu. Somente ele!
[A fé vem pela pregação (ou pelo ouvir) (Rom. 10, 17) e tem sua origem,
inspiração e sustentáculo em Jesus Cristo que é o autor e consumador da fé
(Heb. 12, 2). Todavia, CRISTO nos é revelado única e exclusivamente por Deus
Pai, que nô-lo enviou (João 3, 16).
Cristo só é “apropriado” pelos homens, mediante fé, pois ele é a personificação
da fidelidade de Deus e como tal, não é perceptível por deduções,
demonstrações, filosofia, dialética, ou qualquer outro recurso humano, nem 147
3, 22
Jesus
mesmo árvore genealógica. Não é a carne e o sangue, que nô-lo revelam, antes, é
ele conhecido e reconhecível, nos termos do evangelho de João: “No princípio
era o verbo... todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e sem ele nada do
que foi feito se fez... e o verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e
de verdade e vimos a sua glória, glória como a do unigênito do Pai”!]
Em Jesus, a revelação de Deus se inicia com uma repulsa; com o rasgar de hiante
abismo; com a consciente apresentação do maior dos escândalos.
(Kierkegaard).
Este “apesar de”, este [absurdo] inaudito, este risco, é o caminho que apontamos.
Exigimos fé, não em nosso nome, mas em nome de Jesus em quem, também nós,
sentimos a inescapável exigência de crer.
Não exigimos fé em nossa fé pois sabemos que aquilo que existir de nosso, em
nossa fé, é indigno de fé.
148
Jesus
3, 22
A fé pode ser exercida, praticada, por todos, sejam judeus ou gregos, crianças ou
anciãos, cultos ou incultos, homens simples ou complexos; ela pode ser
praticada na tormenta e na calmaria, em qualquer situação que o homem esteja
ou imagine que possa estar.
Vs. 22-24 Porque não há distinção, pois todos pecaram e carentes estão da
glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a
redenção que há em Cristo Jesus.
3, 22
Jesus
confissão e da extrema unção, o batismo e a incorporação à própria igreja,
segundo o aforismo “Fora da Santa Igreja Católica não há salvação”...].
Não é por mero acaso que justamente Paulo. tendo recebido de Jesus o ânimo de
confiar na graça, somente, também tenha visto em Jesus a eliminação de toda e
qualquer diferença entre os homens [perante Deus]. Paulo tem [em Jesus], o
ânimo [de confiar na graça] porque, [entre os homens], ele vê [a eliminação das
diferenças].
Ele é o profeta do Reino de Deus, porque é o Apóstolo dos gentios; e nisto ele
difere do que mais tarde, quando essa correlação [entre profecia e apostolado] se
torna confusa, passa a ser designado por missão.
[Parece-me que o Autor quer dar ênfase ao fato de que Paulo considera os
gentios seus iguais; não há nem judeu nem grego; todos estão destituídos da
glória de Deus, cuja posse Paulo lhes prega e anuncia no Evangelho “que é o
poder de Deus para a salvação de todo aquele que crer”.
A missão de Paulo não cria diferenciação, antes, destrói as diferenças que acaso
existam.
Jesus
3, 22
[Porque Deus não e igual aos homens, antes é infinita a distância que medeia
entre “os céus” e a “terra”; por isso desaparece a separação infinitamente
pequenina, desprezível, que possa. aparentemente, existir entre os homens].
É necessário que o paradoxo absoluto [da revelação de Deus] seja sentido; que o
abismo existente entre Deus e o homem seja totalmente aberto; que o
“escândalo” seja evidente; que o cristianismo seja exposto exatamente qual ele o
é: como “um problema fundamental, de natureza misteriosa, que põe em dúvida
[a legitimidade, a honestidade. o mérito real de] todos os latos da histó-
ria”. (Overbeck).
Todavia, não haverá (ou não haveria) alguma forma de contornar o paradoxo?
Será que seres [pessoas]. de alguma forma privilegiados por Deus [povo eleito,
predestinados, missionários, mestres, pregadores.. membros e correligionários
desta ou daquela religião ou seita] não poderiam considerar como justa, como
válida, como real, a idéia (ou aparente ilusão) de que os dons que receberam, [ou
as qualidades que possuem] poderão influir ou contribuir para a sua salvação?
Ou que a salvação possa resultar desses dons, quiçá por alguma prática
puramente religiosa, [ioga, jejum, penitência, oração] alguma experiência
pessoal, na vida, [algum testemunho], algo imaterial, ou então, pela eleva-
“NÃO HÁ DIFERENÇA”!
É preciso que toda a carne se cale ante o Deus invisível, para que toda carne
possa ver a salvação de Deus.
É sob esta verdade que desaparece toda e qualquer diferença: esta correlação,
este relacionamento entre as criaturas, “esta ligação invulgar” [entre os homens
que esquecem as diferenças que, no mundo, os separariam, e separam 151
3, 23
Jesus
Não se trata de alguma ação positiva do ponto de vista humano, pela qual nossa
solidariedade se estabeleça de um para outro em reação mútua, pois qualquer
que seja a ação de iniciativa humana — ação positiva, nela existem sempre os
germens da separação social; [isto se verifica em qualquer atividade ou posição,
seja situação religiosa, consciência ética, humanitarismo, etc.]. O
que há, ou o que possa ser considerado de positivo, nestas coisas positivas, é a
diferenciação [de grandezas, qualidades ou valores] que de per si fundamenta as
diferenças humanas e está na origem delas.
[É por isso que] a comunhão real entre os homens se realiza no negativo, naquilo
que lhes falta (e não naquilo que alguns acaso tenham (ou pensem ter) a mais
para dar ou repartir, ou ensinar].
CONSPICUA) (Bengel).
Esta evidência [esta conspicuidade] nos falta, e é isto que nos iguala. É
por isso que os que estão em evidência precisam descer [eclipsar-se]; são bem-
aventurados os que já estão muito embaixo pois onde não houver a evidência de
Deus, aí tem lugar a fé. (“Não ver, mas crer”.) [João 20, 29 — seg. parte].
Então tem sentido o perdão, a única salvação com que se pode contar.
ção da glória de Deus e o “NÃO” divino, e o seu “NÃO” é negação tanto para a
mais alta rejeição da vida como para a sua mais cabal aceitação.
É um “NÃO” que submete judeus e gregos a um mesmo julgamento.
Jesus
3, 24
terística pura do ser humano, que o homem é posto nas mãos misericordiosas de
Deus.
Que estamos na presença de Deus nos é comprovado quando nada mais podemos
ouvir além da palavra do JUIZ com a qual ele confirma a si mesmo (Heb. 1, 3) e
com a qual ele sustenta todas as coisas; quando o nosso ouvir nada mais pode ser
que fé em Deus; fé que ele é, porque é.
É justamente por isso que temos que voltar até às origens, para antes [do tempo
quando começaram a surgir as nossas] diferenças humanas.
Deus “declara”. Ele declara sua justiça como sendo a verdade [que de fato é] por
trás e por sobre toda a justiça e injustiça humanas.
Ele declara que nos aceita e que lhe pertencemos. Ele declara que nós, seus
inimigos, somos seus filhos amados.
coisas humanas,
Esta criação é uma criação nova: (“Um novo céu e uma nova terra”).
153
3, 24
Jesus
Entre esta criação nova e a antiga, está o término de nossos dias, o fim desta
humanidade e desta terra.
Este “algo” novo, [criado do nada por Deus], pertence a outra ordem; uma
ordem nova que não é a das coisas que conhecemos, pois não sai delas mas é (e
foi) criada por Deus.
Esta criação nova [um novo céu e uma nova terra] não se alinha [nem se
compara] com a criação [o céu e a terra] que conhecemos e se comparássemos
esta criação nova com a existente, a nova nada seria pois a carne e o sangue não
podem herdar o Reino de Deus; [para o advento do Reino de Deus] é preciso que
o mortal se revista da imortalidade e o corruptível da incorruptibilidade.
O revestimento de que tratamos acima é obra divina e não de homens; por isso o
mortal e o corruptível estão e permanecem no aguardo dessa mudan-
É por isso que a justiça de Deus, em nós e no mundo, não é justiça humana nem
entra em concorrência com esta justiça, pois “a vossa vida está oculta com
Cristo, em Deus” (Col. 3, 3). Se não estiver oculta não é vida! O
Reino de Deus ainda não despontou na terra nem mesmo uma mínima parcela
dele. Anunciado, sim! Mas não “chegado” nem mesmo do modo o mais sublime;
porém, “vindo próximo”.
O Reino de Deus precisa ser aceito pela fé, conforme revelado por Jesus.
[o prolongamento] da velha.
A “nossa” justiça somente pode ser real e permanente na medida que for a justiça
de Deus. Nova terra é e permanece sendo somente a eterna, em cujo reflexo
agora e aqui estamos.
[Pelo contexto geral, concluo que o Autor quer dizer que a nossa justiça só pode
ser genuína, duradoura, válida, se abrirmos mão dela para nos entregarmos
inteiramente a Deus; isto é, se de nossa parte não nos arvorarmos a fazer justiça
e a julgar mas, sem qualquer pretensão, preconceito ou pré-julgamento, nos
apresentarmos quais somos perante Deus, o Deus desconhecido do qual nos
acercamos somente quando o fazemos em nome de Jesus, pois de outra forma
seria (ou será) sacrílega a nossa pretensão; será néscia e, se tentarmos fazê-la,
teremos que reconhecer semelhantemente a Jó, que falávamos do que não
entendíamos, abominando-nos então a nós mesmos, e arrependendo-nos da
nossa estultícia no pó e na cinza. (Jó, 42, 3 e 6).
Esta justiça de Deus só e perceptível pela fé, pois ela pertence ao Reino de Deus,
que está próximo mas ainda não é!].
154
Jesus
3, 24
“dádiva de sua misericórdia”; [que somos justificados por Deus] somente pela
graça.
ção limpo anseiam por sua glória: eles me verão face a face!
A misericórdia divina não é uma força psíquica no homem, nem uma força física
na natureza, nem uma força cósmica no mundo: ela é e permanece sendo o Poder
de Deus (1, 16), a proclamação do Homem novo, da nova natureza, da nova
terra, do Reino de Deus.
Pela destruição do homem exterior, o homem interior se renova, dia a dia. Isto se
deve crer pela palavra do Deus Criador, com os olhos voltados para o dia do
cumprimento, anunciado por Jesus.
Esta palavra do Deus — Criador, foi enunciada pela redenção que há em Cristo
Jesus.
3, 24
Jesus
“Santificado seja o teu nome! Venha o teu reino! Tua vontade seja feita na terra.
como no céu!”
Jesus de Nazaré é uma possibilidade entre outras, mas é uma possibilidade que
traz em si todos os sintomas do impossível. Este é o Cristo, segundo a carne:
uma história dentro da história; um fato material dentro do mundo da matéria;
uma expressão transitória dentro da temporalidade; uma vida humana, dentro da
espécie humana. Mas é uma história cheia de significado [transcendental]; é
Jesus
3, 24
novo esplendor, que resplende nas trevas da noite: “Glória a Deus nas alturas e
paz na terra aos homens de boa vontade!”
É o próprio Deus que quer atrair o mundo a si; que quer criar um novo céu e uma
nova terra.
Agora vemos a figura monstruosa deste nosso mundo: estátua forjada em ouro e
prata, bronze, ferro e argila, mui luzente, alta e forte; de aspecto terrificante.
Porém, na vida oculta de Jesus podemos divisar a pedra que se desprende e que
rolará para despedaçar os pés de barro e pulverizar a estátua sem interferência de
mão humana e o vento espalhará a poeira como a moinha, na eira. “Mas a pedra
que feriu a estátua transformou-se em grande montanha que encheu a terra”.
(Dan. 2, 24-35).
Satanás caiu dos céus como relâmpago; seu reino terminou. O reino de Deus
vem, tão certo quanto seus prenúncios já aí estão: “Os cegos vêem; os cochos
andam; os leprosos são limpos; os surdos ouvem; os mortos ressuscitam; aos
pobres anuncia-se-lhes o evangelho”! “Bem-aventurado aquele que não se
escandalizar em mim”.
Bem-aventurado aquele que crê nisto que só pela fé pode ser apropriado; pela fé
que há em Cristo Jesus.
3, 24-25 (e 26)
Jesus
As várias traduções da Bíblia que têm sido citadas mais atrás parecem oscilar
entre as duas formas de dizer: (a do Autor e a de Almeida). Todavia pendem
mais para esta. Talvez a tradução que conserva uma exposição de aparência mais
coerente seja a versão sinodal francesa, que diz: Vs. 24... “São justificados
gratuitamente, por sua graça por intermédio da redenção realizada em Jesus —
Cristo”.
Vs. 25 e 26 “Ao qual Deus estabeleceu por vítima expiatória, pela fé em seu
sangue. Assim, Deus manifestou a sua justiça porque ele havia deixado impunes
os pecados cometidos antigamente, durante o tempo de sua paciência.
Ele manifestou, digo eu, a sua justiça no tempo presente, fazendo ver que ele é
justo, e que justifica aquele que crê em Jesus”.
Há ainda um outro ponto a que o Autor chama a atenção, logo a seguir, referente
à “propiciação”. Ele diz que Deus destinou a Jesus como “cobertura de
reconciliação”. Conforme vemos na transcrição da tradução de Almeida, este diz
simplesmente por propiciação”. O Autor justifica a forma dele baseado na
palavra “Kapporeth”.
Esta figura tem papel relevante no culto do Antigo Testamento. Nesse ritual o
“Kapporeth” designava o local da arca onde estavam depositadas as tábuas da
lei; era uma abertura ladeada por duas figuras de querubins que sim-bolizavam a
guarda do local e indicavam a sua posição com as faces voltadas para o lugar;
todavia, velavam e escondiam-no também, estendendo sobre ele suas asas].
No culto do antigo testamento, a “reconciliação” e o “Kapporeth”, (na versão
LXX o “Hilasterion”) a placa de ouro que duas figuras de anjo (querubins)
sombreavam com suas asas e assim, concomitantemente, indicavam e escondiam
a mensagem de Deus guardada na arca da Aliança. (Ex. 25.
17-21 [e 22]).
Este é (no culto do Antigo Testamento) o local sobre o qual o próprio Deus
habita (I Sam. 4, 4; II Sam. 6, 2; Sal. 80, 1 [e 2]); é o lugar de onde Deus fala
com Moisés (Ex, 25, 22; Num. 7, 89); porém, acima de tudo, este é o lugar onde,
no grande dia da reconciliação, se dá a reconciliação do povo com seu Deus
mediante a aspersão de sangue (Lev. 16, 14-15). Por se tratar de lugar com
conotação imaterial e não mais um local restrito físico-topográfico, é que ele é
sobremaneira comparável a Jesus.
158
Jesus
3, 25
Jesus, desde a eternidade, foi destinado pela deliberação de Deus, como o lugar
sobre o qual Deus habita; de onde ele fala; o lugar da expiação [e da
reconciliação]; e agora, no cumprimento dos tempos, [este local-Jesus] foi
fixado, instalado, na história e perante os homens.
“Propitiatoire”.
Neste lugar, [a vida de Jesus], o Reino de Deus está tão próximo, tão junto, que o
seu advento, sua força redentora e sua significação, são notadas justamente aqui;
está tão próximo que seria impossível não reconhecer a presença de Deus entre
os homens, [Cristo é Emanuel, que quer dizer Deus conosco].
Seria impossível que não ouvíssemos a voz de Deus; [Cristo é o verbo, que se
fez carne]. Seria impossível que os homens não percebessem a vontade de Deus
chamando-os de volta para o lar, para a paz: [“Vinde a mim, e achareis descanso
para as vossas almas” e “a minha paz vos deixo, a minha paz vos dou”.]
Sim, tão perto chegou o Reino de Deus dos homens que, nesse lugar, a fé se
impõe como imperiosa necessidade.
Está anunciada porque é fato evidente e não pode ser ignorada. A realidade de
que Jesus é o Cristo se impõe poderosamente. Todavia, aqui está o mais agudo
paradoxo: essa realidade somente pode ser absorvida, assimilada, 159
3, 25-26
Jesus
apropriada pelos homens, mediante a fé! [É nesta característica que se esconde a
realidade da reconciliação].
“Em seu sangue” quer dizer: no inferno que representou [e representa] a mais
plena solidariedade com todo o pecado; [ele tomou sobre si o nosso pecado];
toda a fraqueza e todos os ais da carne; [levou sobre si as nossas enfermidades e
as nossas dores]; no sofrimento secreto de todas as privações; no obscurecimento
e na extinção de todas as luzes que mitigam a dureza da existência humana
(herói, profeta, poderoso em obras e feitos) — grandezas e bênçãos que
iluminam a vida dos homens e que também luziram para ele enquanto foi
homem entre os homens; e no fim, no absoluto escândalo da morte vergonhosa
na cruz.
[É nesta forma] em seu sangue, que Jesus comprova ser o Cristo; comprova ser a
primeira e a última expressão da fidelidade de Deus à espécie humana;
comprova ser a revelação da “impossível possibilidade” da nossa salvação; ele
comprova ser [a verdadeira luz do mundo] a luz não criada; ele comprova ser o
arauto do “Reino de Deus”.
“Sangue é a cor de fundo do quadro do Redentor” (Ph. Fr. Hiller), pois foi no
caminho para a cruz, na dádiva de sua vida, na sua morte, que veio a luz pela vez
primeira a radicalidade da redenção que ele traz ao nosso alcance, e a novidade
da nova terra que ele anuncia.
Traz a luz dizemos ou, talvez, devêssemos dizer que ele traz sombra, se não
estivermos à altura dessa radicalidade, dessa nova terra e novo céu, do novo
homem. “Porque este foi colocado tanto para a queda como para o levantamento
de muitos em Israel e para um sinal de contradição — e uma espada atravessará
tua alma para que se manifestem os pensamentos secretos de muitos corações”.
(Luc. 2, 34-35).
160
Jesus
3, 25-26
Estamos pois, aqui, já sob o reflexo das coisas do porvir. Não sem perplexidade,
mas também não desesperançados; feridos de Deus; contudo, durante a crise, sob
o seu poder restaurador.
“É por isso que temos que abrigar-nos sob as asas da galinha, não saindo a voar
atrevidamente, confiados em nossa própria fé, pois certamente o ga-vião
depressa nos devoraria”. (Lutero).
Perdão dos pecados houve sempre e por toda a parte; também por toda parte e
sempre foram usufruídas as riquezas da bondade divina, de sua paciência e da
contenção da ira de Deus. (2, 4). Sempre e por toda parte os feridos por Deus
foram, também, por ele curados. Todavia, foi através de Jesus que nossos olhos
se abriram para que víssemos que assim é. Foi nele que a justiça de Deus tornou-
se patente aos nossos olhos.
Pela premissa que recebemos de Jesus já não vemos, por toda parte e sempre,
somente o homem carnal, o pecado (com a lei, 3, 20), porém, além e acima,
vemos o juiz que julga e absolve, porquanto ele encontra no secreto dos homens
(2, 16) a motivação da fé.
Ele é justo e é o justificador dos que ousam dar o salto [da fé], para o vazio.
É desta pressuposição que vemos a nós mesmos e nos aproximamos das pessoas.
É por esta pressuposição que ousamos confiar (e crer) em nós e nos outros,
enquanto que, sem ela, (sem a crença em Jesus), em ninguém podemos confiar
ou crer; nem em nós mesmos.
161
3, 27-28
Somente pela Fé
Porque Deus é justo e é quem justifica, temos paz com Deus! (5, 1).
[A nossa tradução de Almeida, diz “pela fé”, onde, Barth traduz “pela fidelidade
de Deus”]
Tudo o que acontece ou existe originado pelo homem, (ou oriundo dele), é
medido em Jesus, por Deus, que atribui mérito ou demérito a esses
acontecimentos ou eventos, na conformidade de seu agrado. Tudo o que é, tudo
o que existe, está sujeito a esse “desconforto”, [a essa condição de insegurança];
precisa ser colocado no prato da balança e precisa resistir à prova.
Todavia, há uma coisa que essa atitude [assim inspirada pela retidão divina]
veda, impossibilita; há uma coisa que é incompatível com essa posição: é a auto-
importância, auto-suficiência ou o valor próprio; é a presunção que alguém possa
ter, de se arvorar em grande e importante perante Deus, não se curvando à sua
justiça e, portanto, sem esperar pela sua justificação. E pretender alguém exibir,
de alguma forma, qualidades que sejam (ou pudessem ser) aceitáveis para Deus.
162
Somente pela Fé
3, 27
Isto essa posição crítica não admite e, partindo dela, não se pode entender, ou
aceitar, que coisas, acontecimentos e até seres humanos possam receber ou
pretender ter atribuições e méritos divinos ou divinais; que se confundam coisas
temporais com a eternidade; que se alcandorem eventos materiais, irrompendo,
emer-gindo neste mundo como partes do mundo celestial; (e o mundo no qual
irrompem essas pretensões é o mundo ao qual pertencemos segundo a nossa
esfera e ao qual pertencem todos os homens em todas as camadas da sociedade,
desde as sociedades mais primitivas, atrasadas e incultas, até às do mais alto
coturno).
Esta visão crítica, vinda da retidão de Deus, não aceita a pretensão de quem quer
que seja, de estar “além”, porquanto os que assim se situam nada mais são, (se
forem alguma coisa), que uma porção apenas ligeiramente melhorada dos que
estão “aquém”. O que essa visão crítica não considera válido são as ilegítimas
imanências de toda espécie que pretendem tomar a posição de transcendentais e
radicais. Essa visão crítica não compartilha do estabelecimento do relativismo
entre os homens e Deus: divindades que, de alguma forma, surgem com
características humanas no seu modo de ser e agir, e humanitarismos que se
apresentam com características divinas! Toda essa gama de atitudes [que vai de
um a outro extremo] precisa tirar a máscara e consentir na revelação de sua
verdadeira natureza, pois quem não se situar nem sob o
“NÃO” nem sob o “SIM” de Deus, quem não estiver no caminho que leva da
reconciliação (pelo sangue” 3, 25) para a redenção, da cruz para a ressurreição,
isto é, quem não tiver coração contrito e tomar o divino, o próprio, o eterno
como sendo material, imaginário, passageiro, esse tal, precisa morrer em Cristo.
Precisa morrer em Cristo o homem que tenha qualquer outro pretexto para se
apoiar, que não seja “esperança” (4, 18; 5, 2; 15, 17).
163
3, 27
Somente pela Fé
ção a priori ou a posteriori. [(A priori, pelas obras piedosas, a posteriori, pelas
orações e missas por intenção de pessoas falecidas e também “a priori” pela
predisposição favorável de Deus e “a posteriori” pela resposta de Deus e
“mudança” de seus desígnios)]. Essa impossibilidade não pode ser esquecida.
[ou de seu engenho, sua arte, sua imaginação] que exista antes ou de que [seus
sobreviventes] se socorram após o instante— (que não é um instante no tempo),
em que soar a última trombeta, quando o homem, em sua nudez espiritual,
estiver na presença de Deus e for revestido da justificação divina.
Em Jesus, nada do que o ser humano seja, possua, ou faça, tem algum valor se
não houver sido submetido, subordinado, ao “NÃO” divino, como também não
tem valor o que não estiver aguardando o “SIM” divino, ainda pela esperança em
Cristo. [Isto é, perde o valor tudo o que se apresentar (e quem se apresentar) na
pressuposição de já estar aprovado por Deus e não precisar mais da purificação e
da redenção que há em Cristo].
Nenhuma retidão humana que não tenha deixado de ser humana pela condenação
e absolvição de Deus, representa qualquer fator real, tanto perante Deus quanto
perante os homens.
Como se explica o perecimento do homem, que ainda tem algo de que valer-se,
ou que ainda procura por essa coisa, que o salvasse?
Que “lei” é essa, ou que religião, piedade ou vivência conduzem a tal situação?
Quem diz “religião”, “piedade”, “vivência” diz experiência, conhecimento,
sentimento, ação do mundo, “obra” do ser humano. Existe alguma outra lei, além
da “lei das obras”? O que conhecemos nós da ação e das obras de Deus?
Somente pela Fé
3, 27
escatologia; ou então, o emudecimento perante o próprio Deus, como se (V. G.)
as máximas de Angelus Silesius ∗ fossem tidas ou devessem ser lidas como
receitas psicológicas! Ou que se tomasse como sendo o mais ousado impulso da
piedade humana permanecer na contemplação, na visualização (ou imaginando)
como seria sua própria experiência no instante derradeiro da vida, (o que aliás já
não seria “um instante”, se o agente “permanecer” na contemplação...); ou ainda,
para alguns, poderia a “sabedoria da morte” (Overbeck) ser tomada como a mais
recente [e mais engrandecida expressão] da “sabedoria de viver”.
[Penso que o Autor quer dizer que a submissão ao “NÃO” divino e a esperança
ao “SIM” que há em Jesus (e que poderiam externar-se numa expressão de
excelência perante Deus), quando adotadas por astúcia, expediente, ou com o
fim de alcançar a justificação de Deus, não são o meio de alcançar essa
justificação].
Sob a égide da “lei das obras” não cessa a jactância humana, nem se processa a
justiça divina.
Quem quiser gloriar-se e quiser ter, como ser humano, razão perante os homens
e perante Deus, este gloriar-se-á até mesmo da mais profunda negação de si
mesmo e na mais sofrida auto-renúncia; (se possível, jactar-se-á de sua
insegurança e sua consternação); e será justificado e considerado reto, como
homem (e somente como homem).
É preciso que o alicerce da “lei das obras” se esfacele sob nossos pés.
165
3, 27
Somente pela Fé
Nossa experiência é a que não é; nossa religião subsiste na sua supressão; nossa
lei consiste na anulação, [na desvalorização, na “despotencialização”]
Nada que seja mais do que vacuidade, carência, indicação, mera possibilidade,
permanece [perante o “NÃO” divino]; [o que o ser humano tem ou é]
não passa de cinza ou pó perante Deus, como todas as coisas deste mundo.
prio, (até isenta do valor da negação de si mesma); persiste se ela for indene à
pressuposição de “Poder”, (inclusive do poder de humildade).
A fé permanece enquanto ela não pretender ser uma grandeza nem perante Deus
nem perante os homens.
Todavia, não nos podemos estabelecer e firmar nessa rocha, nesse alicerce: [já
seria uma forma de “obra” humana]. Não podemos seguir essa ordem
[não nos podemos guiar nessa luz] nem podemos respirar esse ar.
O que se chama religião, convicção, lei, do ponto de vista humano, é antes o
caos, a anarquia, o abismo.
[Mas a atitude humana que abre mão de tudo o que o homem, segundo o mundo,
possui ou possa ter, sendo genuína, (sem intenções egoístas, mesmo as mais
“santas”)] é o lugar onde só Deus nos pode manter; é o lugar onde tudo mais,
que não seja Deus, perde o valor; é o lugar que sobremaneira, não é lugar. E a
“Lei da fidelidade de Deus” ou, o que é a mesma coisa, é a “Lei da fé”! Esta lei
da fé é o momento [quiçá o binário] do movimento do homem acionado e
movido por Deus, o Deus fiel, que é o Criador e é tudo do ser humano; é o seu
Redentor.
É aí, (no firme fundamento dessa atitude de submissão integral a Deus e firme
esperança em Cristo] que o homem se entrega a Deus, juntamente com tudo
quanto diz respeito ao mundo em que vivemos.
Este “momento” da movimentação do ser humano, por Deus, está além das
possibilidades humanas e não pode, de forma alguma, ser erigido em ‘caminho”.
“método” ou “sistema”. Ele repousa, exclusivamente na vontade, no beneplácito,
no aprazimento de Deus, cuja razão deve ser buscada e só pode ser encontrada
no próprio Deus.
166
Somente pela Fé
3, 27-28
“temos” pois. (So halten wir...) A VSF diz “consideramos” (nous estimons); a
RSV escreveu “For we hold”].
A religião considera que Deus agiu “Antes” [e] ou agirá “Depois” do instante em
que o pecador se apresenta descoberto, desnudo, perante Deus, para dele receber
novas vestes, como que prescindindo desse momento supremo, quando o
pecador se encontra com o seu remidor, quando Deus movimenta [e conduzi o
homem. Para a religião, esse período anterior ou posterior é tão importante ou
quase tão importante quanto o instante crítico, assemelhando-se a ele em
dignidade e significação.
167
3, 28
Somente pela Fé
Uma coisa é e será “o que Deus é e faz” e outra coisa [completamente diversa à
primeira e em nada comparável a ela] é e será “o que o homem é e faz” (ou
houve no íntimo de seu coração).
A linha divisória que existe entre o que aqui está e o além, é intransponível: é a
linha da morte que, na verdade, é a linha da vida; é a linha do término (desta
vida e deste mundo] que, na realidade é a linha do início [da nova vida, do reino
dos céus]; é a linha do “NÃO” que verdadeiramente é o “SIM”.
Ora, a obra de Deus é a sua criatura e, portanto, esta é uma nova criatura.
Aquilo pelo que Deus pagou o preço, pertence a ele e não mais ao homem; para
Deus, tem valor o que ele valoriza e, por isto essa valorização não se firma neste
mundo. A sua fidelidade é glorificada pela justificação dos homens: o homem
novo se ergue surge a nova terra; rompe o dia novo [e glorioso] sob o poder da
fidelidade de Deus; mas o homem do presente século, neste mundo, não é
glorificado na luz desse dia. Primeiramente a atual mortalidade precisa ser
revestida de imortalidade e a presente corruptibilidade, por incorruptibilidade.
168
Somente pela Fé
3, 28
O “momento” [pelo qual Deus move o homem para sua apresentação ao tribunal
divino, quando o ser humano se apresenta qual é, perante o seu Criador]
“APÓS” nem tem suas raízes no “ANTES”: não está em qualquer conjuntura
temporal, original ou lógica; esse “momento” é sempre e simplesmente “novo”;
é sempre o “ser”, o “possuir”, o “fazer” de Deus, que só ele possui a
imortalidade, CREDO QUIA ABSURDUM! [Esse “momento” é o produto do
Poder de Deus pela graça da fé].
[Talvez convenha notar aqui, mais uma vez, o acirrado combate que o Autor faz
a toda forma de idolatria, aliás, bem fundamentado na carta de Paulo aos
romanos, e na Bíblia em geral. Todavia, a exegese que Barth faz, da epístola,
insiste nas formas mais requintadas de idolatria; entre estas, a idolatração da
própria lei — (da Bíblia entre o ambiente evangélico particularmente do
brasileiro) e das instituições; (da igreja entre os católicos). O Autor cita a
“RELIGIÃO” que, segundo ele, ou veria na prédica (na catequese) um valor
importante para a conversão, ou consideraria a conversão como uma
conseqüência dessa prédica, desse esforço missionário. No entanto qualquer das
duas posi-
O homem só é absolvido se for julgado por Deus; a vida vem sempre da morte, o
princípio chega apenas no fim; o “SIM” vem pelo “NÃO”!
169
3, 29
Somente pela Fé
Entre nós e Deus estará sempre o “Dia da Cruz”, é o dia que une mas também
estabelece a separação; é o dia cheio de promessas e pleno de advertências.
Não, mas é também o Deus dos gentios! Verdadeiramente também dos gentios!
Tão certo quanto existe um só Deus, ele justificará o circunciso pela fidelidade e
o incircunciso mediante a fidelidade.
Maior certeza, mais segurança, maior garantia para a verdade das palavras
divinas seria, de fato, menos convincente. A evidência humana obnubilaria o que
aqui se pode contemplar.
A certeza humana não conheceria o que aqui se pode conhecer. Deus só pode ser
compreendido através de Deus; a sua fidelidade, somente pela fé.
170
Somente pela Fé
3, 29-30
Deus poderia, então, ser o “Deus dos judeus”, apenas; ou o Deus de gente
conduzida desta ou daquela maneira; Deus seria, qual a religião: uma
especialidade de determinados círculos sociais, épocas e disposições de espíri-to
ou de ambiente.
Se assim fora, [se Deus fizesse acepção de pessoas], Deus seria alcançá-
vel por preço relativamente baixo e também seria dispensável [descartável], com
relativa facilidade.
Talvez, então, a palavra “Deus” significasse muito para o mundo, po-rém, jamais
[sequer lembraria] justificação e ressurreição. Não seria a “última palavra”; não
seria tudo, não seria o eterno.
É por isto que no “menos” [que a Bíblia diz, quando afirma que Deus o é de
judeus e gentios] — [3, 30] ela diz, realmente, muito mais [e se mais dissera
seria redundante e explicaria menos, ...].
“DEUS” é a palavra eterna, final, quando com ela, exclusivamente pela fé,
indicamos a impossível possibilidade de sua fidelidade.
com ele, ou de que tenhamos parte com ele, como se a divindade fosse, ao
menos parcialmente, imanente em nós. [Já não poderemos supor que de alguma
forma transcendental, quem sabe se por aproximações sucessivas, ainda que nela
agregássemos feitos infinitamente pequenos numa espécie de integração
matemática, pudéssemos identificar-nos com ele, tornando-nos “Santos” e “sem
pecado”]. O reconhecimento deste fato. [o reconhecimento de que, por obras
deste mundo ninguém se achegará a Deus], torna meridianamente claro que
Deus é Deus de todos os homens — gentios e judeus [ateus e crentes].
Também se torna evidente que Deus não é alguma grandeza psíquica nem
histórica, porém, é a essência e a origem de todas as grandezas, absolutamente
diferente de tudo mais que, para nós, seja luz, poder e bem e, nessa evidência,
ficam absolutamente claros o poder eterno e a divindade de Deus. (1, 20).
171
3, 30
Somente pela Fé
A multiplicidade das coisas que pretendem ter valor em si mesmas [ou às quais
pretendamos atribuir tal valor] e toda divindade que neste mundo se pretender
derivar de Deus ou usurpar dele, ressaltam a manifestação da unidade de Jesus
com Deus que, na justiça de Deus, somente é reconhecível mediante a fé que se
fundamenta na realidade do “Deus vivo” e na personalidade do único Criador e
Redentor, [Jesus Cristo].
ças que ordinariamente se repelem: um ser humano com outro ser humano.
É à luz dessa crise que o homem reconhece a Deus e passa a honrá-lo e a amá-lo.
E aqui como acolá [na separação entre os homens e Deus, na distinção entre o
que é humano e o que é divino, e na irmanação da humanidade], se repete em
Jesus o que a religião quer dizer com o seu “atar” e “desatar”.
[Parece-me que o Autor se refere a expressão “o que ligardes na terra será ligado
nos céus e o que desligardes na terra será desligado nos céus”
(Mat. 16, 19). Se esta interpretação for lícita, então surge (ou surgirá) uma visão
inteiramente nova, (talvez mais racional) da afirmação que Jesus fez após a
confissão de Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”! Então já não é um
poder especial que Pedro recebeu (e que seria transferido (e transferível) aos
papas (segundo a I. Católica), mas seria a ligação geral dos homens entre si, e a
distinção entre os caminhos dos homens dos caminhos de Deus, separada na
resposta de Pedro em confronto com as demais respostas: “Uns dizem que és
João Batista, outros Elias, outros Jeremias, ou algum dos profetas” (Aliás, sobre
a extensão da qualidade de “ligar” e “desligar” a todos os verdadeiros cristãos e
não só ao “Santo Padre” ou aos apóstolos, ou sacerdotes) ver Mat. 18, 18].
A maior distinção entre o ser humano e Deus (a sua mais alta “separa-
Somente pela Fé
3, 30
nas, se nelas não houver sido (ou não for) enxertado qualquer “mérito” humano,
então sobre elas [e por trás delas] raiará a luz da fidelidade de Deus que absolve
quando julga, e vivifica quando faz morrer.
Outrossim, a mais profunda irmanação entre os seres humanos nada mais é que a
verdade intrínseca, histórica e pessoal de cada indivíduo; a sua verdadeira
vantagem, (3,1).
“não mais”.
Comentários: 3, 1-30
173
3, 1-30
Somente pela Fé
Muitos Cristãos piedosos e cultos não só em passado distante mas também mais
recentemente, têm tentado demonstrar e provar que Jesus é efetivamente o
Cristo, o ungido de Deus, o “Cordeiro Pascal”
Parece-me, pois, mais coerente aceitar que Jesus seja o Cristo, pela fé: fé que
toma alento na historicidade de Jesus; que se compraz em ver que nele se
cumpriram desde as mais antigas até as mais recentes profecias; fé que se sente
esclarecida com o relato inspirado que encontramos nas Sagradas Escrituras;
porém, o germe, a raiz, a origem primeira dessa fé, não resultou de experiências
empíricas, nem de aprendizado, nem de elucubrações intelectuais.
Este aspecto será, sem dúvida, chocante para uns e até inteiramente inaceitável
para outros.
174
Somente pela Fé
3, 1-30
O que exige maior fé; e o que revela melhor compreensão do infinito poder
divino: a idéia de que Deus modelou um boneco em barro, e a seguir assoprou
vida pelas suas narinas (etc.) —ou esta outra idéia de que Deus, pela sua eterna e
incomensurável sabedoria, dotou o mundo (e o universo imenso) de leis,
estabelecidas e firmadas por seu decreto —
(leis que os homens desde os milênios intermináveis do passado têm procurado
apreender, captar, e utilizar para o seu próprio bem estar, embora algumas vezes
tenham construído “Torres de Babel...“ e consoante estas suas leis, do pó criou
todos os seres vivos e a um deles, ao nosso
“Adão” no tempo que lhe aprouve, (tempo no calendário dos homens) deu o dom
supremo de “sua imagem” e “semelhança” — o homem espiritual, porquanto
Deus é Espírito (e não barro, costela ou pó...).
Qual delas enfeita a Deus com atributos humanos e qual atribui mais glória ao
Criador?
3. Barth fala da “memória do lar” como inspiradora de nossos anseios mais altos;
nossa sede de justiça; nosso anelo por paz; diz que essa
“memória” é a fonte donde provém nosso conceito do que seja justo, puro,
elevado, santo e agradável a Deus.
O contexto das obras de Barth parece não autorizar que se lhe atribuam
concepções platônicas sobre a origem da alma ou dos sentimentos nobres que a
alma pudesse abrigar.
Prefiro pensar que o ideal divino que viceja nas almas se origina da inspiração
divina e da contemplação da infinita grandeza de Deus 175
3, 1-30
Somente pela Fé
revelada tanto nas tormentas como nas calmarias; à luz do sol, à luz da lua, ao
brilho das estrelas e na escuridão da noite. Na regularidade das estações e na
harmonia universal; na planta que brota e no relâmpago que estilhaça e fulmina.
A voz de Deus!
Para os “homens que sabem ver” Deus fala “claramente desde o princípio do
mundo”.
Esta verdade também foi vista por Sócrates, registrada por Platão, e foi outrora,
meio milênio antes, proclamada com mais graça, mais sabedoria e mais unção
pelo Salmista bíblico:
176
Capítulo IV
A VOZ DA HISTÓRIA
• Começo
- Vs. 9 a 12
• Fé é Criação
- Vs. 13 a 17
ça espiritual, para concluir que o caminho para a posse dessa herança começa
pela fé, que é milagre divino e contém o germe regenerador, quiçá criativo, pelo
qual tudo se faz novo; e termina a exegese do capítulo expondo que o valor
duradouro da história consiste em destacar, revelar, apontar as realidades
espirituais que a dominam, quer aprovando, quer rejeitando os fenômenos
materiais, passageiros, transitórios; assim é que Abraão — o herói da fé — entra
para a história, dando-lhe sentido duradouro e eterno, trazendo a nós — a todas
gerações que lhe seguiram — a promessa e o ulterior cumprimento: a formação
de uma geração de verdadeiros filhos de Abraão — pela graça, em Cristo Jesus.
177
3, 31
Fé é Milagre
[sem, todavia, anulá-lo] não seria uma negativa genuína, legítima, de caráter
178
Fé é Milagre
3, 31
(O objetivo do A. é mostrar que a lei não pode ser ab-rogada pela fé.
A ressurreição não daria vida nova se fora apenas uma ocorrência anormal do
mundo, (ou várias ocorrências que fossem), mas a possibilidade da vitória sobre
a morte é (em Cristo) uma possibilidade universal. (“Eu sou a ressurreição e a
vida; quem crer em mim, ainda que esteja morto, viverá”!).
Ora, fosse a lei anulada, já não haveria conceituação do pecado e nem da morte
que é o seu produto natural. Seria então de esperar que pelo menos algumas
pessoas (não sujeitas ao pecado nem à morte), estivessem providas da glória de
Deus.
Acontece, porém, que não se afirma que a lei é anulada pela fé. “antes
confirmamos a lei”.
179
3, 31
Fé é Milagre
É por isso que exigimos que todo ser humano, tudo o que possui e toda sua obra,
se curvem ante o tribunal divino; é por isso que demandamos que sempre, e em
tudo, se espere pela justificação divina, pois, (visto por Deus e para Deus) nada
está perdido.
É por isso que não consideramos existir (que suprimimos) qualquer semelhança
entre o que há antes de soar a última trombeta e o que houver nesse instante e
também o que houver depois dele.
Não abrogamos a lei, antes deixamo-la falar, junto com a Bíblia, com a religião
em sua realidade, e com a história, testemunhando (3, 21) por seu próprio
sentido e sua percepção, que a fé é o sentido da lei; é um milagre radical (4, 1-8);
é o verdadeiro início (4, 9-12); a fé é a criação fundamental (4, 13-17a).
180
Fé é Milagre
4, 1-2
Ninguém poderá dizer que, com essa opção, facilitamos a nossa tarefa.
A situação histórica de Abraão é tão diversa daquela em que estamos que, logo
de saída, fica completamente excluída a possibilidade de traçar uma linha reta
dos acontecimentos psico-históricos, desde Abraão até nós.
4, 1-2
Fé é Milagre
recebeu o chamado divino: “Sai de tua terra e da tua parentela, e da casa de teu
pai, para a terra que eu te mostrarei”.
Homem para homem; igual por igual, para ver o que subsiste de um ou de outro
lado. Qual dos dois será engrandecido e qual diminuído? Humanamente,
historicamente, a posição de Abraão está definitivamente formada e servirá de
pedra de toque para a avaliação de Jesus.
E o que resulta?
É este confronto que destaca com nitidez a divindade de Cristo, a sua mensagem
que vem desde a cruz, e o seu Poder que vem pela ressurreição].
Jesus não seria o Cristo se vultos como Abraão, Jeremias, Sócrates, Gruenewald,
Lutero, Kierkegaard, Dostoiewski, confrontados com Jesus, pre-valecessem
definitivamente como figuras da longínqua história, e não fossem, antes,
unificados nele mediante a supressão de suas posições individuais pela
proclamação da negação da cruz que, ao suprimí-las, também as alicerça e
fundamenta.
182
Fé é Milagre
4, 1-2
É disto que se trata: Jesus revela-se o Cristo por meio da luz que dele irradia; por
essa luz ser a mesma, no Antigo Testamento, na história da religião e na
revelação da verdade; ser a mesma luz que brilha no milagre do Natal. Ele é a
luz para a qual se volvem os olhares de toda a natureza e de toda a história; a luz
para a qual se dirigem todas as criaturas, visíveis e invisíveis, na esperan-
É isto o que dizemos de Abraão, e agora temos que o demonstrar; [temos que
prová-lo].
Se Abraão foi justificado pelas obras, então basta-lhe isso para que se glorie.
183
4, 2
Fé é Milagre
Se isto se der então a crise geral da humanidade já não é mais incontornável; não
é mais inexoravelmente necessário seguir o caminho que passa pela morte para
chegar à vida: já não é indispensável o paradoxo da fé, que pensamos encontrar
em Jesus.
Se existisse um único, um só, ponto [uma só coisa, ou atitude ou o que quer que
seja] que, pelas suas características “humano-divinas” ou “divino-humanas”
tivesse por si próprio, valor tal que um homem pudesse gloriar-se dele, (e porque
não haveria de alguém gloriar-se se tal ponto [ou situação]
Ora, dizemos: sim, a justiça de Abraão basta-lhe para sua glória, “porém não
perante Deus”.
Significa isto: que nessa pessoa o invisível tornou-se visível; que naquilo que
essa pessoa é, ela nos lembra o que ela não é, que por trás e acima de seu
procedimento existe um mistério [um segredo] que a sua conduta tanto esconde
quanto ilustra e que, todavia, não é idêntico a ela.
Assim como não chamamos de “luz” a sombra nítida de algum objeto, projetada
por forte raio luminoso, também não é a justiça de Deus algo humanamente
divino, ou divinamente luminoso, que vemos nas obras de um homem nas quais
se patenteia a justiça divina; porém tais obras são testemunhas dessa Justiça, e
tanto mais vigorosas quanto mais perceptíveis forem.
Assim como não são as algemas que conduzem o homem, de pés e mãos atados,
para onde ele não quer ir, assim também, a sua obra, achada agradável por Deus,
e por isso, por ele justificada, não é a mesma coisa que a obra executada em sua
vida e registrada na história [ou nas crônicas da vida]. Tal obra, porém, é
recordação visível do invisível; e a impressão que tivermos da personalidade que
tais obras apresentam é tanto mais estranhável quanto mais forte ela for.
Fé é Milagre
4, 2-5
personalidade e de seus pares) “mas não perante Deus”, pois o que lhe serve para
“gloriar-se perante Deus” será: o arrependimento sincero de seu coração
penitente (2, 4); a sua obra conforme for aceita e “paga”, [retribuída], por Deus
(2, 6); o “judeu que o é em secreto” e a “circuncisão que está no coração” —
(2, 29). Isto está [escriturado] em livro diferente; isto é impossível ao homem em
si e por isso está oculto aos olhos humanos; para os homens, isto somente é
possível se vier de Deus e, por isso, somente pode ser visto por Deus. [O
arrependimento não vem por iniciativa ou obra humana; é graça divina, e só
Deus o pode ver e julgar].
Vs. 3 a 5 O que diz, pois, a Escritura? Abraão creu em Deus, e isto lhe foi
atribuído por justiça. Ora, a Abraão, varão de obras, aquilo que seria legítima
retribuição não lhe pode ser atribuído como graça, porém como pagamento
devido; todavia, a Abraão, varão sem obras, que apenas crê naquele que
justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada por justiça.
185
4, 2-5
Fé é Milagre
Do outro lado da linha da morte está Deus: sustentáculo, sem ser sustentado;
substancial, mas completamente isento de substância; conhecido como o
desconhecido; fala em silêncio; misericordioso [tolerante] em sua inacessível
santidade; impõe responsabilidade e tudo suporta; exige obediência e só ele é
eficaz; clemente em seu julgamento; não sendo homem e, todavia, o seu mais
puro protótipo.
Deus está sempre além do homem; sempre novo, distante, estranho, superior.
Nunca está ao alcance do homem; não é possessão sua. Quem diz “Deus”
diz “milagre”.
[Para nós, como seres humanos que somos] apenas é possível, verossímil,
visível, compreensível, a rejeição; [para nós é natural] a negação, o
adormecimento, o desconhecimento de Deus; não é de nossa natureza material
procurar discernir o incompreensível, nem ver o invisível; falta-nos o
Fé é Milagre
4, 3
ritual se orienta para Deus e, recebendo dele certeza e segurança, toma a forma
de fé.
A convicção que Abraão teve de que a palavra de Deus tem poder operante,
representa o impossível. [O absurdo do ponto de vista humano].
A certeza de que Deus se dirige às coisas que não são como se já fossem, (4, 21)
é o milagre.
A convicção de que a Deus cabe a honra (“Doxa”) (4, 20) contraria a nossa
opinião (“doxa”) e constitui o paradoxo. Esta convicção é a fé.
“Abraão creu”. Este é o fato pelo qual ele é o que é; este fato é a fonte oculta de
onde emanam as suas propaladas “obras” (4, 2). Todavia ele é o que é como
crente no poder daquilo que ele não é pois, naquilo que ele é — (o religioso
esclarecido, o herói ético, espiritual, etc.) — desponta vigorosamente a revelação
de sua fé e esta, sim, mostra o que ele não é: [mostra] o milagre; a nova terra;
Deus!
Se a vida de Abraão não estiver fundamentada em sua morte então ele deixa de
ser Abraão.
[Parece que o A. quer referir-se ao novo Abraão, pai de muitas nações, conforme
ele foi “crismado” por Deus (Gen.l7, 5)].
Abraão não creu apenas. Ele creu em Deus! (Gen. 15, 6). É isto o que diz a
Escritura.
“E isto lhe foi atribuído por justiça”.
4, 3-4
Fé é Milagre
O ser humano participa do divino através daquilo que ele não é; em sua morte,
brilha para ele a luz eterna de Deus, poderosa, real; porém, sempre naquilo que o
homem não é; sempre e somente no seu morrer.
para Abraão.
Todavia Abrão o varão de obras, embora não tendo as suas obras contabilizadas
a seu favor no “Livro da Vida” tem-nas registradas no “Livro da História da
Religião”; no “Livro” dos grandes homens e das almas nobres.
É certo que o valor histórico e espiritual de uma pessoa não lhe granjeia
credenciais para sua justificação perante Deus porém merece o reconhecimento,
a justificação do mundo, em pagamento da dívida que a humanidade houver
contraído com ela [pela legação que lhe faz de altos dotes de caráter].
188
Fé é Milagre
4, 4-5
Paga porque é a isso obrigado [por contrato, por consenso social ou, para atender
a ética], em retribuição ao serviço prestado; liquida, simplesmente, a dívida
contraída.
É pois evidente que nestas condições não se trata do verdadeiro Deus, mas do
espírito deificado do próprio homem.
Há porém outra forma de avaliar os homens: esta forma está indicada no Gênesis
e foi ensaiada por Dostoiewski.
Esta maneira [de apreciar os feitos humanos] não se limita a atribuir honra a
quem for digno dela; a sua maior preocupação não consiste na demonstração [ou
comprovação] da retidão humana; não marginaliza, não esquece a questão final
[o julgamento por Deus], antes a põe em primeiro lugar, e parte dela. Essa forma
de julgar não pensa, apenas, na escrituração dos ganhos humanos, mas lembra-se
que existe também um “Livro da Vida” de cujo teor as coisas para nós invisíveis
podem tornar-se visíveis; esse método interessa-se menos pelo que pode advir ao
homem pela sua culpa, [em conseqüência de seus pecados]; antes interessa-se
pelo que lhe pode ser atribuído por misericórdia. A este método é mais difícil
cair na tentação de arvorar-se em juiz do mundo, pois ele procede justamente
desse juiz e de seu tribunal. Esta forma alternativa de avaliar o homem vê as suas
obras contra o pano de fundo de sua carência de obras; vê sua vida à luz de seu
desfalecimento, (sua morte); vê sua ocasional grandeza humana medida [aferida]
pela majestade de Deus; vê a sua condição de criatura, como testemunha do
Criador; vê o que nele for visível, como carência, esperança, anseio pelo
invisível; vê a sua fé, à luz da fé; ela pode alegrar-se com tranqüila brandura, por
toda legítima grandeza humana, pela fé confiante, pelo heroísmo, por toda beleza
espiritual e pela projeção histórica de uma pessoa. Essa alegria pode não estar
isenta de certa dose de melancolia, pois jamais julgará o homem por seus feitos
[ou por sua boa fama].
O julgamento, em última instância, será sempre pela sua fé, visível nos seus
feitos, contra toda a aparência (ou paradoxo), atribuindo-lhe melhor justifica-
ção que lhe é concedida por aqueles que o consideram “por demais” justificado
segundo o louvor deles.
Também pode acontecer que, com a mesma tranqüila brandura, esta avaliação se
entristeça ante a lamentável situação em que o homem se encontra —
morto em seus pecados —, sua gentilidade, sua dureza, seu ateísmo, sua queda
animalesca [brutal]. Essa tristeza pode ser acompanhada de um leve sorriso, 189
4, 5
Fé é Milagre
por quanto, jamais será o homem julgado pela hediondez de seu pecado [ou por
suas más qualidades]. O julgamento, em última instância, será mesmo, e sempre,
pela fé que, novamente contra toda aparência, é visível em tudo e por tudo, ainda
uma vez lhe atribuindo melhor justificação do que lhe é concedida por aqueles
que o consideram “por demais” justificado [ou condenado] segundo a censura
deles.
Este modo de julgar considera a fé porque vê com olhos crentes e sabe o que a fé
significa:
A crítica que primeiramente questiona o modo de agir, pondo-o sob dúvida para
somente depois [de haver examinado o que, de secreto, houver por trás e por
cima dele.] confirmá-lo e fundamentá-lo.
Esta avaliação está familiarizada com a fé, porque ela também crê, e crendo sabe
distinguir a fé que há nas pessoas e que as leva para além do que efetivamente
são; é nesta região [do invisível] que a avaliação procura ver o que cada crente é
por aquilo que ele não é; esta é a razão pela qual, quem tem fé —
[fé real, viva, genuína, pura] se surpreende ao tomar conhecimento [ou ciência]
de que a sua fé lhe foi imputada por justiça, e isto em sua forma a mais severa,
acompanhado sempre de um “apesar de” e, jamais de um “por isso”; sempre
como ato de perdão e nunca confirmação daquilo que ele é.
[Um julgamento feito por aquilo que a pessoa não é, à luz do raciocínio humano,
apenas é compreensível se aquilo que o réu não for, constituir sua culpa, ou em
se tratando de eufemismo, expressar o que ele realmente é, por antítese. Mas
Deus julga por aquilo que o homem efetivamente não é; pelo invisível; para o
mundo isto é um paradoxo, um escândalo, uma loucura. Só a fidelidade de Deus
e a sua misericórdia poderiam explicar tal procedimento se necessário fosse
explicar um ato divino.
Deus vê no pecador o filho adotivo, remido em Jesus Cristo, filiação a que ele,
pecador, está livre a candidatar — se segundo os decretos eternos do próprio
Deus].
190
Fé é Milagre
4, 5
“Ele crê naquele que justifica o ímpio”. Esta sentença é a inequívoca perífrase
desta outra: “Ele crê em Deus”. Esta é a justificação divina de Abraão.
Abraão, tem Deus? — Não, nunca! Mas Deus o possui. E o possui na qualidade
de varão sem obras (4, 5), e “independentemente de suas obras” (3, 28). E em
Deus, e não em Abraão, que se fundamenta o fato de que Abraão é posse de
Deus; que Deus o “declara justificado”.
Todas as coisas que se basearem em Abraão constituem motivo para ira de Deus.
Com sua retidão humana e sua falta de retidão perante Deus, Abraão é apenas
“ímpio” (1, 18); apenas pode enquadrar-se como toda a humanidade, em o NAO
divino. Porém, pela sua fé, ele toma conhecimento [toma consciência] de sua
situação e desperta para a crise que, [ainda pela fé], ele sabe que vem de Deus.
Dentro desta crise [sempre levado pela fé] Abraão opta pelo temor do Senhor e,
dentro do “NÃO” passa a ver e a ouvir o [eterno] “SIM” de Deus.
ção, da crise com que se defronta, e da procedência dela; e por isso não pode
gloriar-se da opção que faz, pois também ele, [o venerando Abraão], o vulto
clássico da “História da Verdade”, pode gloriar-se, unicamente, na justificação
que ele alcança “pelo sangue de Jesus” (3, 25) e que, manifestamente, foi vertido
para o benefício de todos os homens.
ter de Abraão sem ser sob a perspectiva do momento em que soar a trombeta
final, com o seu grande NÃO [às coisas do mundo].
[A tradução inglesa dá, a esse trecho, uma interpretação que não me parece estar
de acordo com o que o A. diz, e tampouco me parece ser fiel ao texto bíblico,
conforme comentarei mais adiante.
4, 5-8
Fé é Milagre
tida na declaração que Deus fez à antiga serpente: “A semente da mulher ferirá a
tua cabeça” — (Gên. 3, 15).
— Em que consiste essa benção, que as famílias todas da terra poderão usufruir?
Que mérito haveria sem Cristo? Que benção para as famílias da terra, sem
ressurreição? É por isto que Abraão, se quisera gloriar-se, haveria de fazê-
Textualmente, o original diz o seguinte: “Seu SIM, sua positividade não podem
ser entendidos por si mesmos, se fizermos abstração do grande NÃO do instante
da última trombeta; antes pelo contrário: a justificação de que ele pode gloriar-
se, e que lhe foi atribuída no Gênesis, é “testemunha como um retrato”
(uma imagem) da vida de Cristo etc. (Das “abbildende Zeugnis” des Lebens des
Christus — as aspas estão no original — (pág. 99, IN FINE)).
A versão inglesa diz: “Esta grande afirmação positiva não pode ser entendida
isoladamente, mas somente no contexto da negação da última trombeta. Quando
se afirma no livro do Gênesis que Abraão tem uma justificação de que pode
gloriar-se, isto deve ser entendido como o modelo que aponta à vida de Cristo”,
etc.
Ora, o A. não diz que Abraão tem do que gloriar-se (antes diz o contrá-
rio) e o Gênesis também não diz isso que, segundo me parece, a versão inglesa
sustenta.
192
Fé é Milagre
4, 6-8
O método bíblico, a maneira indireta de observar o ser humano, que se nota ali
[no Antigo Testamento], não pode ser ocultado aqui [na Carta aos Romanos].
Também “Davi” vê, onde sob o aspecto psicológico só pode existir vacuidade, o
preenchimento adequado, o poder e o significado da individualidade, a justiça
divina que lhe é “imputada”.
Também “Davi” vê a linha da morte como sendo a linha da vida. E esta vida que
vem da morte, este [valor] invisível, isto que lhe é imputado, que vale a sua bem-
aventurança.
4, 8
Fé é Milagre
ele possa gozar (das bênçãos) da vida e justificação, é o engano que deve
desaparecer de seus lábios.
Ele quer e tenta abafar seus pecados, sua iniqüidade e sua transgressão, que são
justamente o contraste [o oposto, a antítese] de sua piedade e de tudo o que esta
piedade testifica. Ele quer fazer calar a impiedade [gritante] de seu coração (que
é a inevitável resultante de toda divinização do homem, [do culto que o homem
presta a si mesmo] ). [Com seu lamento constante] ele quer apagar o pecado;
quer perdoar-se a si mesmo [quer merecer o perdão e quer justificar-se]; na
plenitude de sua experiência [e na sua vida amplamente piedosa]
ele mesmo quer perdoar o seu pecado. [Quer ser Deus e Senhor; quer tomar o
seu julgamento em suas próprias mãos; flagelando-se, quer justificar-se; em se
acusando, quer merecer perdão; quer fazer valer a sua conduta geral de “servo
bom e fiel” para com ela, agora, pagar e apagar o pecado que lhe pesa com o
peso da própria mão divina e lhe angustia o coração]. É nessa tentativa que [ele
sente que] precisa morrer.
[Somente morrendo, somente abdicando de si mesmo, somente reconhecendo o
seu nenhum valor, é que poderá renascer, viver, ter paz com Deus, com o
próximo e consigo mesmo!].
E esse aiar se prolonga e persiste até que ele se apresente ao cativeiro e, como
cativo de Deus, abra mão de toda pretensa glória. [Até que abdique de todos os
seus supostos méritos]. Sofre e geme até se convencer que a justiça divina da
qual queria apoderar-se, é impossível aos homens; que essa justiça é um
inexorável NÃO a toda retidão humana, [que o homem nada é e nada tem
perante Deus], que a justiça divina é o julgamento a que inevitavelmente estará
sujeito todo o erro, [todo o engano, todo o ludíbrio, todo o engodo] de caráter
religioso.
[O pecador que assim suspira e chora percebe, com tremor e temor, a linha da
extinção de sua vida, em Deus; ele reconhece e já não esconde o seu pecado; e
confessa: “... então tu me perdoaste”!].
194
Fé é Milagre
4, 8
Não que os ais do justo tivessem passado mas, agora, revela-se que ele sofre por
amor a Deus a quem clama; todavia, o seu clamor, o seu gemer, o seu aiar, são
agora os brados de dor de um justo.
Há, aqui, novamente o milagre que, na qualidade de fé, torna-se visível, apenas,
além da realidade visível do mundo; É a afirmação do SIM divino, contido no
seu NÃO.
Este relacionamento do homem com Deus não pode ser objeto [nem corre o
risco] de novo erro, novo engano, ou nova ilusão. Ele está definitivamente
protegido contra o risco de ser humanizado (materializado e atribuído ao valor
alcançável pelos esforços e méritos humanos) porque a vida que ele cria é a que
procede da morte; (da renúncia, da anulação, do desaparecimento do homem
material]; sempre [é unicamente] pela morte.
ção, — para onde leva a cabal renúncia humana — este novo relacionamento
entre o homem e Deus elimina qualquer possibilidade de nova jactância ou de
alegações de retidão humana].
Portanto, o que subsiste, o que vale, com respeito a Abraão vale também para o
vulto anônimo figurado no Salmo 32: ele vive da ressurreição; ele é sua 195
4, 1-8
Fé é Milagre
Todavia, ele é o retrato da vida de Cristo [de sua vinda ao mundo e sua obra de
redenção] que rompe ao longo dos tempos.
Comentários: 4, 1-8
1. Na longa comparação que o A. faz entre Abraão e Cristo, ele demonstra que o
verdadeiro valor de Abraão está em Cristo Jesus, que sustenta a sua fé e
confirma a sua glória mundana.
É pela realidade da ressurreição de Jesus que Abraão foi levantado qual marco
na história do mundo, balizando a pista que leva à redenção.
2. Cristo não anula o vulto de Abraão, mas o fixa e situa em sua verdadeira
grandeza, contra o pano de fundo da história; semelhantemente, nenhum outro
vulto da história sacra e secular é eclipsado por Cristo pois ele não é uma
grandeza comparável às grandezas humanas, antes são elas analisadas à luz da
luz que vem da cruz, e nessa luz são reduzidas a um denominador comum que a
todos irmana, homogeniza, e revela a medida real das respectivas grandezas
perante Deus e perante o mundo.
e o seu poder criador é confirmado dia a dia pelas obras de nossas mãos. Este é o
milagre que acompanha o homem em todos os tempos de sua história terrena.
196
Fé é Começo
4, 9
A fidelidade de Deus acolhe a fé que habita no homem por que Deus se agrada
dela, que é obra divina!
- A FÉ É MILAGRE -
Deus não reage em termos da impressão que os homens têm ou possam ter da
revelação; esses fatos [lei e impressão humana] são testemunhas de sua
fidelidade.
Poderemos, acaso, provar com o que agora conhecemos sobre a fé, que não
anulamos a lei, antes a estabelecemos? (3, 31) Poderemos provar que honramos
o verdadeiro sentido de toda a proclamação histórica?
Será que o único lugar onde se encontre a revelação divina é a área religiosa e
eclesiástica que consideramos, em um sentido mais amplo, como sendo a
expressão histórico-espiritual dessa revelação?
197
4, 9-10
Fé é Começo
Ou não estará, contrariamente, implícito na religião que ela precisa e só pode ser
compreendida em sua realidade histórica, como o relacionamento que houve
originalmente entre Deus e os homens? Não reconhece a própria religião que
este relacionamento é livre, sem peias, desde a sua pura origem?
Não olha a religião para adiante, para a fundamentação do homem que, por
assim dizer, ocorre alem da própria realidade religiosa?
E acaso a religião não sabe que o lugar da possível revelação pode ser qualquer
(em imprevisível extensão) não sendo, portanto, restrito aos ambientes que,
aparentemente, “lhe pertencem”?
Não resulta, pois, evidente que a fé e a sua justiça constituem também o início [a
origem] de todo o conjunto religioso — eclesiástico, seu modo de fazer, ter e
agir?
198
Fé é Começo
4, 9-10
Ora a circuncisão não foi reconhecida por Deus como meritória de qualquer
atribuição de justificação e ela não mereceu um parecer divino, especial.
[A versão inglesa diz nem é a circuncisão que faz (de Abraão) o que ele é”].
A justificação pela fé somente pode ser aceita como sendo imputada a Abraão
ainda incircunciso, o que aliás, está de acordo com a cronologia histó-
Quando Abraão foi chamado [vocacionado] por Deus, ele não era, ainda, nem
piedoso, nem patriarca, nem teocrata.
O vocacionamento dos homens por Deus, precede aos contrastes [das situações
humanas], entre a circuncisão e a incircuncisão, a religiosidade e a
irreligiosidade, entre o pertencer e o não pertencer a uma Igreja, e essa
precedência se verifica, não raro, até cronologicamente. [Deus chama o homem
independentemente, e mesmo antes, de ele haver cumprido ou se submetido às
formalidades religiosas (batismo, profissão de fé, etc.)].
A fé que encontramos em Abraão [e que lhe foi imputada por justiça]
ções [exteriores que tornam públicos os frutos da fé]; ela é a origem comum de
todos eles, porém não é nem religiosa nem irreligiosa; nem santa, nem profana,
contudo, é sempre ambas essas coisas, tem as duas posições, simultaneamente.
A vocação de Abraão e a sua fé, são, no Gênesis, puro início, começo; coisa
preestabelecida.
4, 9-10
Fé é Começo
circunstâncias em que ele se encontra, então ele não tem com que velar sua
nudez perante o Criador, senão com o que estiver além do fenômeno religioso, o
que só Deus vê e tem valor perante ele porque vem dele: a fé.
É-lhe atribuído, imputado, (4, 5) somente aquilo que tem: a sua fé; é por ela que
Abraão ouve o que nenhum ouvido ouviu.
Mas se o texto do Gênesis evidencia que a justificação vem apenas pelo que é
invisível em Abraão, pela sua fé, então é também evidente que ela emana de
Deus, que é obra divina [que é de sua essência, de seu ser e de sua propriedade],
e que nada tem a ver com o ambiente estreito e fechado do mundo [e com o que
dele procede ou nele se faz]; portanto, também nada tem a ver com
“religião” pois também esta, em sua realidade histórica, nem é premissa nem é
condição essencial para um relacionamento positivo entre Deus e os homens.
Nada, se não a fé [e somente a fé] é imputado por Deus como justiça, e isto,
tanto ao homem piedoso como ao ímpio.
Vs. 11 e 12 E ele recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça de sua fé,
quando ainda estava na incircuncisão, para que fosse pai de todos os que crêem,
estando ainda na incircuncisão, afim de que isto, também a eles, seja imputado
por justiça; e para que fosse também a eles, circuncisão enquanto estes, não
somente como descendentes do povo da circuncisão, também andarem segundo
as pisadas da fé que teve nosso pai Abraão, na incircuncisão.
200
Fé é Começo
4, 11
Abraão também participa deste mundo de aparências — a circuncisão, a religião,
a igreja — que retratam a revelação.
[A religião e a Igreja são (ou devem ser) um sinal um testemunho, uma indicação
da graça divina, manifesta na redenção]. Se isto for esquecido; se a Igreja e a
religião não conservarem as suas vistas voltadas humildemente para o paradigma
do além, correm o risco de, [na ânsia de se sobrepujarem a si mesmas, serem
cada vez maiores, e estarem mais e mais próximas de Deus], projetarem-se às
alturas sem atingirem o seu objetivo [de santificação].
Tanto a Igreja como a religião, ainda como sinetes e símbolos, e exatamente por
serem tais, apontam para a efetivação do pacto entre Deus e os homens, que
ainda vigora, que ainda não foi cumprido e pelo qual se espera, pois, uma coisa é
a firmação e a ratificação de um contrato e outra o seu objetivo, o seu
cumprimento, a sua execução.
201
4, 11
Fé é Começo
Abraão não recebeu o sinal de circuncisão como o amigo de Deus, separado dos
gentios segundo a circuncisão, porém como o crente ainda incircunciso.
Ele não adquire personalidade especial e a condição de ser chamado por Deus
para representar a humanidade na aliança que Deus propõe, como pessoa da
Igreja, como um intermediário com prerrogativas eclesiásticas, porém, a justi-
ça lhe foi imputada quando ainda estava fora da Igreja; quando não participava
dela. A fé que lhe foi imputada por justiça é a da incircuncisão; todavia, essa fé
tem a circuncisão como seu selo, seu sinete, seu símbolo, tanto para o passado
como para o futuro.
[Abraão creu ainda antes de estar ligado à expressão religiosa de sua fé através
de experiência espiritual pessoal e por atos oficiais (públicos) simbolizadores
dessa fé. Semelhante crença foi-lhe imputada por justiça o que se manifestou
publicamente (primeiramente), agindo retroativamente confirmando no
simbolismo do sacramento a fé que existiu primeiro e, (em seguida) sobre o
futuro, como sinal, testemunho e lembrete perene dessa fé].
“Para que fosse o pai de todos os que crêem, estando ainda na incircuncisão”.
Circuncisão, religião e igreja são sinais visíveis e testemunhas, não por seu
conteúdo positivo porém pelo seu teor negativo, isto é, na medida que forem
compreendidos e confirmados na renúncia, no perecer incessante, na anulação do
homem perante Deus, que efetivamente simbolizam.
Abraão não necessita da circuncisão para ser circunciso, nem da religião para ser
piedoso ou da segregação para ser selecionado; não precisa da igreja para portar
a sua atitude teocrática. Sua preeminência histórico-espiritual não se destina a
ser modelo (padrão ou protótipo) de tradicionalismo. Porém, tudo quanto é mero
sinal, e só pode ser sinal, deve testemunhar daquilo que, 202
Fé é Começo
4, 11
Observe-se, não a religião de Abraão porém, a invisível justiça que lhe foi
imputada.
Ele não foi chamado para o judaísmo, porém para curvar-se ante o Deus
inescrutável: “Em teu nome serão benditas todas as nações da terra, porquanto
obedeceste à minha voz”. (Gen. 22, 18).
O que está velado, na circuncisão de Abraão, é também o que a torna eficaz e lhe
dá destinação: a fé do incircunciso. A fé não é a porta que traz a gentilidade ao
judaísmo ou que dê, aos filhos do mundo, o acesso à piedade; porém é o sinal, é
a indicação do portal pelo qual, tanto judeus como gentios, vencidas e anuladas
todas as diferenças [de raça], históricas e espirituais, devem passar para entrar no
reino de Deus.
4, 11-12
Fé é Começo
Quando se diz que Abraão “é também o pai dos circuncisos” ele o é, enquanto
estes também trilharem a senda da fé sem circuncisão, que nosso pai Abraão
trilhou.
Também os circuncisos são filhos de Abraão, porém não por força de sua
ascendência, não por força da tradição milenar do povo da circuncisão, [ou pela
tradição da Igreja e da religião], porém pela força da fé, que se apóia na
204
Fé é Começo
4, 12
ção ao longo dos caminhos da fé, sem levar em conta a circuncisão, conforme
também não foi considerado o estado (a situação) de Abraão, quando foi
chamado. Deus vai ao encontro do homem e o confirma sem cogitar de seu
maior ou menor acervo religioso [ou de qualquer outra realidade do mundo],
para que o homem saiba que deve dirigir-se a Deus e a Deus somente [sem nada
poder esperar de sua religião ou de seus predicados pessoais].
Genuínos filhos de Abraão são aqueles suscitados sempre de novo, das pedras
(Mat. 3, 9).
Onde isto for esquecido, os primeiros serão os últimos e aqueles que [no mundo]
sempre são os últimos, passarão a ser os primeiros.
Comentários: 4,9-12
1. Ao analisar a natureza da fé, diz o A. que ela não é, nem religiosa, nem santa
nem profana; mas é ambas as coisas. Para a intelecção certa do texto, “profano”
deve ser entendido como “oposto a religião”.
205
4, 9-12
Fé é Começo
Assim, as duas comparações “religioso e irreligioso”; “santo e profano” são
quase sinônimas. O surgimento da fé não se dá, obrigatoriamente, dentro ou fora
do ambiente religioso nem implica, essa fé, em conseqüente devoção ou sua
negação. A fé simplesmente crê, e crendo é o começo que pode levar à aceitação
de determinado caminho, à adoção de uma religião, como pode também levar ao
abandono de um caminho que esteja sendo trilhado e à rejeição de uma religião
até então professada. A fé embora contendo em seu bojo ambas as alternativas,
não é volúvel, não é incerta mas absolutamente firme (de outra forma não seria
fé), e por isso seguirá o caminho que a fonte divina determinar. Fora disso a fé
deixa de ser fé para ser superstição, crendice, carolice ou mania.
À luz do que, até aqui, o A. disse, essa crítica não é procedente pois ele defende
com muito vigor a tese de que a religião verdadeira é o símbolo, o sinete que
testifica, entre o Alfa e o Ômega, o milagre do surgimento da fé; diz que a igreja,
se for fiel, e enquanto for fiel, participará da dignidade e da glória da origem e
do fim eterno de todas as coisas.
Que igreja será essa? E novamente o A. que o diz: é aquela que não se esquecer
que a fé é graça divina; que a justificação é pela fé; é aquela que não pretender
ser nada mais que testemunha do milagre da fé; que humildemente reconhecer
sua contingência humana, sem nenhuma outra intenção ou pretensão a ser se não
simples novo marco, humano e transitório, do milagre da fé.
É a igreja que não pretende possuir a palavra mágica que abre as portas do céu;
que não pretende ser depositária da graça divina, que não diz, nem sequer pensa,
que fora dela não há salvação.
206
Fé é Criação
4, 13
V. 13 Porque a promessa de que haveria de ser herdeiro do mundo não foi feita
a Abraão, ou à sua posteridade, por força da lei mas por força da Justiça da fé.
207
4, 13
Fé é Criação
Que Abraão recebeu essa promessa é evidente; e é por isso que Israel o honra e
porfia por ser sua descendência; quer estar de seu lado, e gostaria de estar em
comunhão espiritual com ele, [participando do mesmo espírito].
Não lhe foi prometido que seria herdeiro de um mundo abençoado por Deus e
que seria o intermediário da bênção divina a esse mundo? E esta promessa,
acaso, não se estende a Israel, que não só a recebeu como a recebe e a receberá
sempre de novo?
Sim; pode bem ser, mas de que forma e até que ponto?
“filhos” de Abraão?
Será que Israel entende corretamente a sua lei quando, por força do que de fato
está explícito e implícito nessa lei, na história, e nas esperanças do povo, ele
pretende fazer jus às promessas que essa conjuntura contém?
208
Fé é Criação
4, 13
Não se dará o caso de que tudo o que pudermos dizer de Abraão e de seus filhos,
não venha diretamente deles mas seja o reflexo de uma luz que vem de outra
parte?
Não é a história de Israel a “História da Redenção” justamente porque delimita,
configura, os eventos que não são históricos e constitui a resposta audível da
inaudível voz do apelo divino? E não é justamente esta contingência, esta
realidade, que gera a esperança de Israel? Sim, e é desta forma [e segundo esta
interpretação], que se honra, que se confirma, que se estabelece a lei.
Este é o sentido da lei: que pela justiça de Deus, mediante a justificação pela fé,
independentemente da lei, os filhos de Abraão são chamados à existência e
confirmados.
[Esta é a posição justa para apreciarmos a pretensão de Israel: temos que ver na
sua história, na sua tradição e na sua esperança o testemunho audí-
vel, o marco visível da graça divina, graça que justifica pela fé. Temos que ver
na conjuntura de Israel o sinete da fidelidade de Deus que dá vida ao justo, que o
for segundo a fé. Nada mais compete a nós judeus ou gentios.
Todavia, a promessa de ser herdeira do mundo foi feita à “sua posteridade”, pela
fé. (4, 13). Podemos, pois, ver claramente que, efetivamente, ao depararmos na
história de Israel com os marcos da fé que balizam a história da redenção,
constataremos que todos estiveram (e estão) fundamentados na fé singela e firme
que habitou em Abraão, ainda antes da instituição da circuncisão.
Fé é Criação
trilhar os mesmos caminhos que o Patriarca Abraão palmilhou quando ainda era
“Abrão” quando foi chamado e creu.
Novamente a pergunta:
Deus proverá como soube e quis prover quando Abraão levantava a lâmina para
imolar Isaque. Das próprias pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão: agora,
segundo à fé!].
Diz-nos o Gênesis que Abraão aceitou a promessa pela fé e pelo poder criador da
fé tornou-se a primeira pessoa a esperar pelo reino do Messias (Gên. 15, 6).
Abraão era, então, ainda Abrão; voltara vitorioso da sua campanha contra quatro
reis para libertar seu sobrinho, e não aceitara galardão; todavia, em tributo de
honra e louvor ao Deus Altíssimo, pagara ao sacerdote Melquisedeque, o dízimo
de tudo!
E o futuro Abraão pensa em Deus, como um seu igual: “O que me hás de dar?
Não tenho filhos e quem administra (e portanto herdará) minha casa “é um
estrangeiro”...
Mas Deus, paciente, levou o velho beduíno para fora, para contemplar a vastidão
dos céus, salpicada de estrelas e lhe disse: “Conta-as, se podes: pois igualmente
incontável será a tua descendência”.
E Abrão creu.
210
Fé é Criação
4, 14
É certo que a fé tem sempre o seu lado “legal”. Ela pode ser um acontecimento,
uma situação. Todavia, no seu aspecto legal ou visível; na sua conjuntura
histórico-espiritual, como um evento imaginável ou uma situação atingível; ou
ainda como uma “possibilidade possível”, a fé redunda vazia, despojada de sua
dinâmica, e destituída da certeza que, de outra forma, a caracteriza.
A fé fica “esvaziada” se Abraão e seus filhos forem o que são por força da lei.
A fé somente vale por fé se for o passo à frente que vem de Deus e que só Deus
torna possível e compreende. A fé somente terá poder criador quando ela for a
luz da luz não gerada; a fé somente será viva, quando for a vida que vem da
morte; a fé somente será positiva se o ser humano, por ela, for fundamentado na
insondabilidade de Deus. Somente então é a fé imputada por justi-
ça e o homem será o destinatário [o receptáculo] da promessa divina.
se diz que sem fé e impossível agradar a Deus, pois é necessário que aquele que
se quiser aproximar dele, creia que ele existe].
A graça da criação, como a graça da redenção, não é uma dádiva que venha junto
com outras dádivas; ela é a relação invisível na qual estão todas as dádivas
[divinas], e o seu reconhecimento é sempre, e sobretudo, dialético.
211
4, 14-15
Fé é Criação
[A promessa feita a Abraão não encontra apoio lógico nos fatos materiais,
visíveis e, por isso mesmo, só pode ser aceita, assimilada, apropriada, pela fé;
Abraão creu sem nada saber ou entender do mundo transformado pela graça
divina e de como iria herdar esse mundo que foge inteiramente do domínio dos
homens.
No entanto, diz o Autor que a fé é poder criador e esta graça, justamente por
estar fundamentada na fé é, semelhantemente a própria fé, imponderável,
imaterial, invisível aos olhos do mundo e só é reconhecível na dialética, isto é,
pela busca da verdade e sua aceitação mediante o confronto da própria fé com a
promessa, e vice-versa. O diálogo, a “racionalização”, faz-se entre a promessa e
a fé].
[É por isso que afirmamos que] se a promessa não for recebida pela fé, jamais
será recebida. Sem fé, a promessa não passará de uma proposição “mítico-
escatológica”, semelhante a todas as demais proposições religiosas que existem
por aí.
Não há experiência, não há êxtase, não há exorcismo, nem olho, nem ouvido,
nem coração, que possa agarrar a promessa, [retê-la, beneficiar-se dela ou
entendê-la] se ela não for assimilada pela fé.
V. 15 Pois a lei, sem a fé, não traz ao homem a promessa de Deus, porém, a sua
ira. Todavia, assim como a lei não é decisiva, também não o é a sua
transgressão.
“Porque a lei opera a ira; porque onde não há lei também não há transgressão”].
Entendemos, então, que a lei propriamente dita, a lei sem fé, é um transtorno
para o homem, um obstáculo à herança do reino de Deus?
É certo que, mesmo abstraindo da fé, a lei tem sua própria positividade e pode,
na realidade, ser apreciada sem se considerar o seu papel [a sua função]
212
Fé é Criação
4, 15
rico-espiritual a lei tem, também, o seu peso específico e sua significação, pois é
certo que as experiências humanas, [os feitos e as realizações do mundo que se
processam sob a égide da lei], sempre brilham por sua própria luz. Porém não
nos devemos iludir dando a estas qualidades mundanas da fé uma importância
decisiva.
rio, o acessório, que lhe foi por testemunha, durante o tempo anterior a seu
cumprimento].
213
4, 15
Fé é Criação
Nenhuma atitude humana é mais duvidosa, mais arriscada, mais sujeita à crítica,
do que a religiosa; [também é certo que] nenhum empreendimento volta-se
contra o seu empreendedor, para o julgar, com maior rigor.
Todo esse vasto mundo, tão rico em aparência de culto a Deus, exibindo desde a
mais grosseira superstição até o mais refinado espiritualismo, e que vai do mais
honesto aclaramento até a mais suculenta prática metafísica tem, perante Deus, o
aspecto de arrogância [atrevimento, irreverência, abuso] e, perante os homens,
com mui justa razão, o aspecto de fantasmagoria: exala tanto para cima como
para baixo, um forte odor de dúvida.
Todavia, não nos enganemos: idêntico odor de suspeição envolve tudo quanto se
opõe ao mundo aparente da religião. Isto é: [estão sujeitos ao mesmo
julgamento] tanto a afirmação como a negação religiosa; tanto o construir como
o derribar templos; tanto o discursar impertinente [a pregação a tempo e fora de
tempo] como o inoportuno silêncio. De Amazias e Amós; de Martensen e
Kierkegaard. Portanto, também desde o protesto contra o mundo religioso, de
Nietzsche, até os mais vis devoradores de sacerdotes, passando pelo romantismo
totalmente antiteológico dos estetas, pelos socialistas e pelos movimentos de
juventude de todos os matizes.
ção] e isto para qualquer que seja a forma com que tais movimentos se
apresentem, seja como fé, como esperança e amor, ou [como ideal político, como
reforma da igreja, como liberdade dos povos, ou libertação de oprimidos ou en-
tão que tenham os próprios] gestos dionísicos do Anticristo.
[Todo movimento, toda pessoa, toda agremiação] que não consentir em sua
própria supressão [perante Deus], porém tentar justificar-se [seja pela sua 214
Fé é Criação
4, 15
Existe uma justificação para a atitude religiosa, tanto para [a que ao mundo
parecer] a mais legítima, como para [a que parecer ser] a menos legítima. Há
uma justificação para a religião de sentido profundo e para a de sentido não tão
profundo; para a religiosidade profética e para a farisáica.
A fé [só pode ser considerada como tal] quando ela nada é se não um
relacionamento [confiante] de todo conteúdo humano com a sua origem eterna,
em nada sendo [parecendo ser ou se candidatando a ser] uma abertura para a
vida, que viesse da morte.
215
4, 15-16
Fé é Criação
e outros livros que, fundamentalmente, não pareçam ser tão radicais e não
apresentem tão grandes protestos, todos juntos espalhando seu conteúdo [e seu
abuso]
cito divino.
Entendo que o original (pelo menos segundo a 5º edição alemã), não justifica a
versão inglesa.
Também não considero próprio: nem bíblico nem em harmonia com o contexto,
o substantivo “humor”; não com o sentido direto dessa palavra em alemão —
(humorismo) e muito menos com a conotação de “boa disposição”
que representaria um estado de ânimo mutável, quiçá uma casualidade capri-
chosa, acidental. Se o A. houvesse tido esse pensamento em mente,
provavelmente usaria a palavra alemã “Laune”, que expressa exatamente este
estado caprichoso do ânimo, para bem ou para mal, bom humor ou mau humor.
Não nos esqueçamos, porém, que esta justificação divina será sempre
“na medida” que o aspecto invisível da fé, dominar; todavia, neste domínio,
nesta aparente condescendência divina em revestir o divino com trajes humanos,
de envolver o eterno na sua semelhança temporal, não está uma possibilidade
216
Fé é Criação
4, 16-17
Sem essa fé que se manifesta em temor e tremor, a lei será sempre o imenso
obstáculo que nos impossibilitará a aspirar ao Reino dos Céus.
V. 16 a 17a É por isso que dizemos: os herdeiros são os que o são, mediante a
fé, o que de outro modo se diz: Pela graça; e a promessa é válida para toda
descendência de Abraão, não somente para quem o é pela lei, mas também para
quem o é pela fé, pois todos temos a Abraão por pai, como está escrito:
constituir-te-ei pai de muitas nações.
“Por isso, pela fé”. Sabemos o que dizemos. Nem existe qualquer outra
possibilidade, se não dizê-lo.
A lei, a história, a religião de Israel é a forma dentro da qual esse povo pode ser
aspirante, candidato à herança divina, porém não é uma força criadora que lhe
garanta o gozo dessa herança.
A certeza de ser contado entre os filhos de Abraão, a realidade do ato criador que
“das pedras pode suscitar filhos a Abraão”, não está nas “possíveis
possibilidades” da lei mas na “impossível possibilidade” da fé.
“O que, de outro modo, se diz: pela graça; e a promessa é valida para toda
descendência de Abraão”.
Mais uma vez, ante a ponderação sobre o que transforma Abrão em Abraão (4,
1), [Abrão, “pai da altura”, para Abraão, “pai de uma multidão” — Ver Gen.
17, 5] somos levados para além das coisas visíveis e chegamos ao primeiro
relacionamento, original, que não só fundamenta a alma de Abraão e torna
possível a sua existência histórica, como vai para além de sua história e de sua
alma.
217
4, 16-17
Fé é Criação
É pela graça que Abrão é Abraão. É pela graça que a lei tem significa-
Pela graça, porém, quer dizer à luz da linha da morte, que é o limite absoluto de
toda visibilidade humana, (e justamente como tal, é a linha da vida, vinda de
Deus); é o último NÃO, que também é SIM; é o último julgamento que, só ele,
pode ser também a justificação.
São herdeiros os que o são, não pela lei, mas pela fé; não são herdeiros por força
dos acontecimentos histórico-espirituais, porém pela graça, pois está claro que a
co-participação dessa herança não está ligada à filiação de um “tronco de
Abraão” constituído segundo a lei, [como se fora a filiação a alguma agremiação
ou a um clube], nem está a co-participação dessa herança condicionada à
participação de um Israel histórico, ou de alguma cultura ou tradição, com
direitos adquiridos por transferências sucessivas [de títulos, de qualidades ou
mesmo de genes da raça].
Com semelhante limitação de “herdeiros”, a herança seria mais que duvidosa. (4,
14-15).
A palavra que foi dirigida a Abraão “pela graça”, e que foi por ele ouvida
“mediante a fé”, não tolera, por princípio, nenhuma restrição esotérica 218
Fé é Criação
4, 16-17
[Em outras palavras: a graça divina e o privilégio da justificação pela fé, não se
orientam, nem se restringem, a grupos humanos, quaisquer que sejam suas
origens; antes, a palavra de Deus dissolve esses grupos e uma nova condi-
ção, um novo “status” se estabelece aos que ouvem a palavra divina mediante a
fé. Para estes tais é o próprio Deus o elemento de aglutinação].
O que está escrito? “Eu te constitui por pai de muitas nações”. (Gen. 17, 5).
Sim; uma das nações das quais Abraão é pai, é Israel. Porém, vimos que ele é o
Pai dessa nação, em Cristo; logo, ele é também o Pai das muitas nações,
Não temos motivos para temer a luz da história que nada mais fará que
testemunhar a respeito do sacrifício de um por muitos e do perdão para os
pecadores. “E ouvindo estas coisas, calaram-se, e louvaram a Deus dizendo: na
verdade, também aos gentios deu Deus o arrependimento para a vida”.
Comentários: 4, 13-17a
Overbeck, Franz — Teólogo alemão, também dos fins do século XIX, (= 1905).
Foi terrivelmente cético pondo em dúvida toda a organização das igrejas cristãs,
inclusive as protestantes; ele era ligado à Igreja Evangélica e lecionou “Teologia
do 219
4, 13-17
Fé é Criação
Abraão creu na primeira promessa: na terra que Deus ficou de lhe mostrar.
“Sai da tua terra e da terra de tua parentela,... para uma terra que eu te mostrarei,
e far-te-ei uma grande nação... e tú serás uma bênção”!
Como seria ele uma bênção? Como seriam benditas nele, todas as famílias da
terra?
Foi-lhe mais fácil crer depois: “À tua semente darei esta terra”
(Gen. 13, 16). Era uma questão de sua prole: de filhos, dos filhos dos filhos.
Porém os anos correram e “os filhos” não vieram. Quando Deus lhe garante um
“grandíssimo” galardão (Gen. 15, 1 e seguintes) Abraão não consegue calar-se
ante a enorme incongruência existente entre a promessa reiterada e a situação
real, prática.
220
Da Utilidade da História
4, 17
E deste modo que age e se conduz a fé criadora. Esta fé cria mais do que “muitas
nações”. Ela gera a imputação da justiça de Deus.
V. 17 (segunda parte) Abraão é pai de todos nós, perante Deus, em quem creu: O
qual vivifïca os mortos e fala como sendo.
Sob esta luz, a história fala como sensata mestra da vida (HISTÓRIA VITAE
MAGISTRA).
É por causa desta luz, e por ela somente, que espreitamos a voz da história.
221
4, 17
Da Utilidade da História
Fé, como milagre absoluto, como puro começo, como criação original, que é o
relacionamento desconhecido de acontecimentos e situações conhecidas com o
Deus desconhecido; este é o princípio para o acontecimento e é a força
testemunhadora da personalidade de Abraão. Semelhantemente, este
relacionamento é também a base para o conhecimento e a força testemunhadora
da história (como fato passado e como revelação e notícia do que aconteceu).
O fato de Abraão ser o pai [de alguns], segundo a carne (4, 1) não se comprova
nem se realiza outra vez, segundo a carne, naquilo que e visível, porém no
invisível, pois ele é nosso pai perante Deus.
Perante Deus, “o qual vivifica os mortos, e fala ao que não é, como sendo”.
A vida e a existência do além representam, para a fé, tudo quanto, do lado de cá,
podemos identificar apenas como sendo morte e aniquilação; semelhantemente,
a fé representa, no além, a aniquilação e a morte da vida e da existência do lado
de cá da linha divisória. Observamos a figura ímpar de Abraão à claridade desta
luz superior, da linha crítica.
222
Da Utilidade da História
4, 17
No impasse criado pelas duas negativas, resta apenas a “impossível
possibilidade” de que, também nesta situação, “menos por menos seja igual a
mais”: que do relacionamento entre essas duas negações absolutas, e da
supressão de uma pela outra, resulte, sobrepujante, a sua força original.
Perante a fé, são negativas as nossas obras, vistas por Deus; e, pela nossa
materialidade, para nós é negativo tudo quanto existe além túmulo.
E a negação divina que nos liberta da negação humana; é nessa relação que
Deus, na sua fidelidade, nos recebe segundo nossa fé.
Será sempre a despeito da fraqueza dessa fé; será sempre pela misericordiosa
graça divina, O justo viverá pela fé, porém a fé acrisolada, santificada, purificada
pela fidelidade de Deus.
É no encontro da negação do homem que a tudo renuncia porque sabe que nada
é e nada tem perante Deus, com o NÃO divino que recusa tudo o que o homem
tem, ou pretende ter, que resulta a fecunda graça divina da redenção.
“Aquilo que é” precisa ser reconhecido como “não sendo”, para que a palavra
seja dirigida ao “que não é”.
Este “impossível” foi o sentido da fé que Abraão teve, e que emerge das
entrelinhas da história do Gênesis como o impossível e o invisível em sua plena
invisibilidade. [Todavia, esse impossível surge como o único elemento que
confirma e torna possível a história, [a realidade]! E surge como crise e, por isso,
é interpretável como sendo mito ou misticismo). Esse mesmo impossível emerge
à roda da filosofia de Platão, da arte de Gruenewald e de Dostoiewski, e também
no contorno da religião de Lutero. [Gruenewald foi pintor alemão dos primeiros
anos do século XVI, considerado como expressão máxima da pintura gótica
sendo reputada como sua maior obra a cena da crucificação (Ver nota na pág.
203)].
Essa ciência, essa ressurreição, esse Deus, [não são coisas diferentes mas uma só
e esse “todo” impossível] não é mero acaso, nem se trata de uma exceção nem é
a conseqüência de uma contraposição ou de uma oposição entre 223
4, 17-18
Da Utilidade da História
o “aqui” e o “além”; Deus é a negação absoluta e por isso é “o lado de lá” tanto
do “aquém” como do “além”; ele é a negação da negação, o que significa o
V. 18 Ele, sem esperança, creu na esperança de que seria o pai de muitas nações
segundo a palavra: “Tão grande será a tua descendência (Gên. 15, 5).
onde tudo está roto; “estar erecto” onde, declaradamente, não se pode
permanecer em pé.
Esta é a sua fé: a fé “na esperança sem esperança”; é o passo à frente, saindo da
propriedade do homem para o alheamento divino; um passo que vai da
visibilidade do visível para a invisibilidade do invisível, e vai da possibilidade
subjetiva para a objetiva; um passo que o leva para onde só a palavra de Deus o
pode suster.
Vemos?
Não. Vemos apenas que todos seus outros passos, levam a este um, singular, e
dele procedem.
[Notar a redação diferente da versão de Almeida que, dizendo a mesma coisa dá,
segundo me parece, menos ênfase à qualidade consciente da fé].
224
Da Utilidade da História
4, 19-20
honesto até ao ponto de ser zombeteiramente cético: “E caiu Abraão sobre o seu
rosto e riu-se, e disse em seu coração: “Nascerá a mim, com cem anos, um filho,
e Sara conceberá, com noventa anos”? (Gên. 17, 17). Isto é o que podemos ver
em Abraão. É isto o que dele, e nele, podemos entender (e até entender bem
demais), por analogia, o que se pode deduzir pela seqüência de outros
acontecimentos.
Todavia, além de tudo que podemos ver na história de Abraão, está o fato de que
Deus se tornou “forte demais” para ele. [O que Deus lhe dizia estava totalmente
além de sua lógica e seu bom senso de homem habituado com as lides do
mundo].
“Tudo o que nos rodeia, está em contradição com a promessa de Deus: promete-
nos a imortalidade e estamos rodeados pela morte e corruptibilidade;
testemunha-nos sua misericórdia e sua boa vontade enquanto, por toda parte, nos
ameaçam os sinais de sua ira. O que faremos? Convém-nos bastante passar,
perante nós mesmos e perante nossos semelhantes, de olhos fechados para que
nada nos estorve, ou sequer dificulte, a crer na verdade de Deus”. (Calvino).
“Onde não há fé, Deus não é louvado, nem por sua divindade nem por sua
majestade. Tudo depende da fé.
“Deus não exige mais de nós senão que lhe tributemos a honra que lhe é devida e
que o tenhamos por nosso Deus, isto é, que não o tenhamos por ídolo vão e
fortuito, porém como o Deus justo e verdadeiro.
225
4, 20
Da Utilidade da História
“Quem pois, crer e confiar na palavra de Deus conforme Abraão o fez, este é
justificado por ele, porque a natureza de sua fé dá a Deus a honra que lhe
pertence, isto é, ele tributa a Deus a honra que lhe é devida, conforme é o dever
das criaturas... Diz, pois, a fé que aduz a justificação: ‘Meu Deus amado,
prazerosamente creio em todas tuas palavras!. Ora, o que diz Deus?
“Tivesse, a razão, que responder diria que Deus nos fala palavras vãs e
impossíveis, falsas, tolas, fracas e minúsculas e até horrorosas, heréticas e
diabólicas, pois o que poderia ser, para a razão, mais risível, mais louco e mais
impossível do que aquilo que Deus disse a Abraão?
“Assim são todos os artigos de nossa fé cristã, conforme Deus nô-la revelou pela
sua palavra: diretamente impossíveis, absurdos, falsos perante a razão.
“Ele se atém à palavra de Deus; aceita-a por certa e verdadeira, ainda que ela lhe
soe e pareça absolutamente tola e impossível. Portanto, Abraão emprisionou a
sua razão... e assim fazem as demais pessoas crentes que, com Abraão, penetram
na densa e recôndita escuridão da fé; sufocam a razão e dizem: “Ouves bem, ó
razão? És tola, louca e cega; nada entendes das coisas divinas; por isso, não me
venhas fazer gracejos com teu ladrar, mas fecha essa boca; cala-te; não te arvores
em juiz da palavra de Deus, antes, assenta-te e escuta o que ele tem a dizer-te: e
crê nele!.
“Assim, dominam os crentes, este monstro que o mundo todo não consegue
subjugar, e prestam a nosso Deus o mais aceitável dos cultos. Que isto aconteça
mais e mais.
V. 21 Ele estava perfeitamente convicto disto: Deus tem poder para cumprir o
que promete.
226
Da Utilidade da História
4, 21-22
Sim; talvez sim. Por que haveria de o preenchimento de um fato “não histórico”,
(não palpável, não visível) deixar de ser acompanhado de sinais visíveis,
materiais?
Todavia, pode também acontecer que não; e isto é mais provável, pois parece
mais natural que experiência desta ordem seja acompanhada de sentimento de
carência, de insegurança, de quebrantamento.
Como poderia, esse fato, ser histórico, ser visível? Como se poderia
compreendê-lo, sem ser como sendo a vida que surge da morte? (4, 13 e
seguintes).
V. 22 Pelo que, isto lhe foi imputado por justiça.
“Pelo que”!
Por isto: porque a sua fé, é fé perante Deus (4, 17 segunda parte).
Esta fé não é apenas um traço do caráter de Abraão, mas constitui o seu todo; é
ela que o configura e o delimita. Ela é o milagre absoluto que confirma e anula a
sua personalidade. Ela é o puro início; a criação original.
É por isso que Deus a qualifica para a justificação e é ainda por isto que Abraão
unicamente pela fé, tem parte com Deus na negação da negação e na morte da
morte; é por isto que a sua fé brilha com o fulgor da luz não gerada, sem que
esse brilho seja diminuído [ou prejudicado] pela experiência histórica, material,
que Abraão viveu.
V. 23 a 25 O que está escrito não concerne somente a ele mas diz também
respeito a nós, a quem também deverá ser atribuído: a nós, os que cremos
naquele que acordou o nosso Senhor Jesus, de entre os mortos, e que aí foi
entregue por causa de nossa queda e ressuscitado para a nossa justificação.
227
4, 23-24
Da Utilidade da História
A história pode ter uma utilidade: o passado pode falar ao presente, pois, o
passado e o presente têm uma contemporaneidade que pode curar a mudez do
passado e sarar a surdez do presente.
A história do Gênesis alça a sua voz para nos falar do que não é históri-co: e nos
diz que a fé que habitou em Abraão, lhe foi imputada por justiça.
Abraão, sem a luz superior do que não é histórico, nada tem a dizer-nos; não nos
interessa e não o ouvimos.
Se, independentemente do estudo dos documentos antigos, não existir, bem viva,
a percepção do significado único e constante dos eventos humanos, a história se
transforma em simples narração da seqüência de épocas e enumeração das
civilizações que se sucedem; passa a ser formada por compartimentos estanques,
justapostos, representados por indivíduos, eras, épocas, períodos, fases, situações
e instituições. São forças individuais, isoladas, que arremetem em todas direções,
irracionalmente.
Da Utilidade da História
4, 23-24
Por mais fascinantes e magistrais que sejam os fatos que a história apresenta, se
ela se limitar a fatos pretéritos, somente, ela não é história: e fotografia e análise
do caos.
História é uma obra de arte sintética que se origina dos eventos e tem um único
tema.
Quando essa arte, o [senso do] evento e a noção da unidade histórica não estão
inatos no historiador, simplesmente não há história.
“Apenas podeis interpretar o passado, pela mais alta força do presente; somente
pela máxima aplicação de vossas mais nobres qualidades podereis adivinhar o
que, do passado, é realmente grande, vale a pena ser testemunhado, e merece ser
conhecido. É igual por igual. Se não procederdes assim, rebaixareis o passado...
Quem não tiver tido alguma experiência mais alta, superior à dos demais, não
sabe ver nada de grande e de sublime na história que passou.
(Nietszche).
Ela observa a história enquanto a escreve e a escreve enquanto a faz. Ela busca
os seus conhecimentos em fontes que só se tornam tais, depois que ela as
descerra pelo seu conhecimento.
A história do Gênesis é desta natureza. Ela é uma história que escuta e que fala.
Ela é plena de contemporaneidade.
Ela é capaz de falar e de ouvir porque ela própria está encerrada na crise que
descerra ouvidos e lábios.
Ela vê e difunde a luz de cima porque ela própria está nessa luz.
229
4, 23-24
Da Utilidade da História
Ela mesma parte do que não é histórico para chegar ao que o é, e se serve do que
é histórico para testemunhar do seu fim e do seu início, como “não-história”.
É por isso que ela nos diz, de Abraão, “o que não concerne a ele somente, mas a
nós também”: “Nós, os que cremos naquele que acordou o nosso Senhor Jesus,
de entre os mortos, o qual aí foi entregue por causa de nossa queda e
ressuscitado para a nossa justificação”.
Não existem lábios que falem no tempo passado, sem ouvidos que os escutem no
presente.
É o retorno à síntese que o Gênesis apresenta, e melhor faremos se dela não nos
afastarmos.
O Gênesis conta-nos de Abraão aquilo que nos concerne, mesmo que só muito
vagamente tomemos ciência disso. Conta-nos o que temos de ouvir ainda que a
nossa consideração por Abraão seja inteiramente diversa daquela que o Gênesis
sugere:
230
Da Utilidade da História
4, 24-25
Para Abraão, como para nós, o conhecimento é impossível; a nós, como a ele,
parece impossível a ressurreição; para nós ambos é impossível a unidade entre o
“aquém” e o “além”, unidade essa que se fundamenta em Deus.
Não pretendemos [com o que acima ficou dito] denegrir a crítica analista, pois
também ela, no final, não poderá afastar o desfalecimento para a morte, em que
nos encontramos, antes terá de acelerar o seu desfecho a seu modo, pois a
análise, IN FINE, somente poderá testificar que o Abraão histórico não nos diz
respeito.
E à medida que o fizer, ela abrirá os olhos para o Abraão “não histórico”
Comentários: 4, 17-25
Nesta última parte do Capitulo IV, o Apóstolo Paulo apresenta Abraão, o herói
da fé, dentro da conjuntura e sob a perspectiva da História Universal,
primeiramente, no que diz respeito ao povo de Israel e, aí, no que se reporta à
História da Redenção; em seguida, na história geral e dentro dela, no que diz
respeito a Jesus Cristo.
Israel, como uma das muitas nações que integram o nosso presente mundo,
prefere ver na promessa do Gênesis o que pode (e com justa 231
4, 17-25
Da Utilidade da História
Se olhar ao redor dele verá um Israel escasso remanescente e, quiçá uma sobra
apenas folclórica dos samaritanos, e ainda que contasse os Ismaelitas, poucas
nações e pequenas populações encontraria.
Não seria a promessa, um mito, para expressar os fatos com bene-volência e não
usar qualificação mais forte?
E o que dirá o historiador da promessa ainda mais estranha que faz de Abraão e
da sua descendência a via da bênção divina a todas as famílias da terra?
Misticismo?
Talvez seja ainda mais constrangedor ao analista judeu por de lado o sentido
transcendental de todos os eventos da história da redenção, que ocorreram dentro
de sua própria casa: da voz profética que aponta ao Messias, apresentando o
Cristo; da esperança e tradição que falam vigorosamente do Poder de Deus.
Como pode ele explicar a própria existência de sua nação?
232
Da Utilidade da História
4, 17-25
Todavia, a todo homem, judeu ou bárbaro, assiste o direito de opção. Esse direito
é de origem divina; Deus nô-lo deu, ainda na semana da criação: “Não comereis
da árvore que está no meio do jardim”.
A opção está no centro “do jardim”. Ela é a centelha divina que distingue o
homem espiritual e o afasta, o eleva, acima do reino animal.
Essa é a voz que une as eras, os séculos, os povos, os remos, as nações; para ela
não há ontem, nem amanhã, nem hoje; ela é.
A nós, porém, presos ao corpo desta morte, só resta uma maneira de expressá-la:
233
Capítulo V
Esta paz não lhe advém de qualquer comunicação do além, nem de proteções
naturais ou sobrenaturais, porém pela certeza do amor de Deus que é derramado
abundantemente em seu coração pelo Espírito Santo, que (sendo o próprio Deus)
é o sustentáculo do homem “novo” o qual, pela fé, vê em Cristo o generoso e
poderoso “SIM” de Deus, vencendo a morte, para restaurá-lo na condição de
filho.
É por ter esta certeza que o homem “novo”, embora ainda acorrentado ao “corpo
desta morte” se regozija e se gloria na esperança em Deus, antegozando a paz
que só Deus pode dar.
V. 1 Portanto, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus
Cristo.
Diz o A. que a outra maneira de escrever seria “tenhamos” (ou deixai-nos ter)
paz com Deus. Esclarece que esta segunda maneira, embora muito antiga,
todavia, não é própria; talvez houvesse sido introduzida para chamar atenção à
235
5, 1
O Novo Homem
passagem. Segundo Lietzmann, esse engano pode ter sido cometido pelo próprio
Tércio (16, 22) a quem Paulo ditou a carta. [Lietzmann foi teólogo evangélico,
alemão, falecido em 1942. Lecionou “História Eclesiástica” e notabilizou-se,
entre outras coisas, por suas pesquisas filológicas)].
“Portanto, justificados pela fé”, — “a noite já vai longe e o dia está prestes a
raiar” (13, 12). [A tradução de Almeida diz: “A noite é passada e o dia é
chegado”].
Se contarmos com a nossa fé [se ela realmente existir], então precisamos incluir
[com o “eu”, com o “velho” homem deste mundo], também o “novo”
homem, a quem o “nós” se refere pela fé: é o novo homem do “Dia do Senhor”,
que ainda não raiou, mas esta próximo.
Visto da parte do mundo, ele poderia ser comparado ao ponto “zero” de uma
hipérbole, de onde os ramos se afastam até o infinito, e onde se encontram: o
começo e fim.
Não sou “eu” o sujeito desse predicado, pois ele é tudo quanto está além, tudo
quanto é radicalmente diferente e até em oposição a mim; no entanto, sou o
sujeito dele pela identidade que a fé estabelece entre mim — o “sujeito” de cá, e
o “sujeito” de lá.
A rigor, não serei mais “o mesmo” que sou, mas essa inaudita identidade com o
homem “novo” é verdadeira pelo poder da Palavra de Deus.
[Deus fala ao homem “novo”, (a mim) que ainda não o sou, como já o sendo].
Se o arrojo da fé, [a ousadia de crer nas coisas divinas que são absurdas à luz dos
critérios humanos] desaparecer ou falhar por um só instante, se a atitude de
confiança se transformarem dúvida, [se momentaneamente eu tomar 236
O Novo Homem
5, 1
uma posição como se eu nunca houvesse aceitado o paradoxo da fé] então essa
identidade que o relacionamento pela fé impõe entre o sujeito que sou e aquele
que não sou — mas venho [ou viria] a ser pela fé, deixa de existir, e as
considerações que se tecerem a respeito não passam de especulação religiosa,
híbrida.
A verdade de que somos novas criaturas, para nós, está exclusivamente em seu
ponto de partida. [Entendo que o A. quer dizer que estamos sempre e somente no
estado inicial, no nascedouro da nova criatura, sem podermos pretender ter
qualquer vivência, qualquer experiência, qualquer conhecimento pessoal dessa
nova condição].
Este ponto de partida significa, para nós, o fim de tudo o que é perceptí-
237
5, 1-2
O Novo Homem
“Somos quais relva na borda extrema de íngreme encosta, lá nas alturas, onde
nada mais viceja; em baixo, nos vales, frondosos carvalhos lançam suas raízes
nas profundezas do solo fértil. Nós, porém, somos vegetação fraca, pequena,
rasteira, quase invisível da planície; desabrigada dos ventos e tempestades, quase
sem raízes, quase emurchecida. É por isso que, apenas começa a raiar a aurora,
já estamos banhados em luz, enquanto lá nas profundezas do vale as franças
altaneiras das mais frondosas árvores estão ainda imersas em plena escuridão.
Vemos aquilo que ainda ninguém vê; somos os primeiros a dizer-lhe:
verdadeiramente, vem Senhor!” (Mereschkowski).
É, pois, somente pela fé, que somos os primeiros porque somos os últimos;
crescemos, porque mirramos; somos grandes, porque pequeninos; fracos: em
nossa fraqueza, somos justificados por Deus.
Deus se justifica perante nós e assim, também nos justifica perante ele.
Ele nos liberta, aprisionando-nos; ele nos rejeita, quais somos, e assim nos
confirma quais não somos.
Ele toma partido conosco e nos utiliza segundo o seu propósito, de forma que a
sua causa fica sendo a nossa, e a sua direita, a nossa direita; a sua boa obra se
inicia em nós. Ele toma conhecimento de nós, e permanece conosco; recebemos
a promessa de nossa salvação, em seu reino. Pertencemos-lhe, desde já, na
esperança.
“Temos paz com Deus”. A luz na qual penetramos pela fé, e da qual nunca
ouvíramos falar, é a paz que o homem não justificado, o único que conhecemos,
passa a ter com Deus, nosso desconhecido.
Paz com Deus significa um acordo entre o homem e Deus, tornado possível por
meio da modificação da condição humana, vinda da parte de Deus, e efetivada
por meio do estabelecimento de relações normais da criatura com o Criador, pela
fundamentação do amor a Deus no temor do Senhor, o único e verdadeiro amor
que a criatura pode dedicar a Deus. (5, 5).
Se não fomos justificados perante Deus, pela fé, estamos em estado de guerra
com ele; nesta condição, o amor que lhe professamos ignora a distância que
separa a criatura do Criador; é um amor que não se fundamenta no temor do
Senhor, como por exemplo, a “intimidade” do misticismo hindu, do romantismo,
e dos discípulos de Zinzendorf; é um endeusamento que, em sua essência, se
refere ao “NÃO-DEUS” deste mundo (1, 22 e seguintes) e que coloca os seus
seguidores sob a ira de Deus e na trincheira de seus inimigos. (5, 10).
O Novo Homem
5, 1
Zinzendorf foi pietista e, como tal, provavelmente via com simpatia a doutrina
da justificação pelas obras inspiradas no amor a Deus, e que constitu-
íam a comprovação desse amor. Esta deve ser a razão da crítica do Autor.
Porém, ter paz com Deus não significa “viver na realidade de Deus”
(Kutter).
Também o homem continua sendo aquele que aguarda e espera [que vive na
esperança] (8, 24) [sem em nada, em absolutamente nada se modificar a sua
situação material por haver alcançado sua paz com Deus]; a diferença, 239
5, 1-2
O Novo Homem
porém, é que pela fé, ele espera somente em Deus e esta é a razão, a base, de sua
paz com ele.
Onde, pois?
ça de rumo] que nos leva da vida [deste mundo] para a morte, a fim de que
vivamos em Cristo.
V. 2 Por ele também temos entrada, pela fé, a esta graça, na qual estamos
firmes, e nos gloriamos na esperança da glória de Deus.
“Por ele, [Jesus Cristo] mediante a fé, temos acesso a esta graça”.
O Apóstolo está “nesta graça”, isto é, na graça de ser o apóstolo de Jesus Cristo
(1, 5) e está na posição altamente invulgar de precisar de falar daquilo de que
não se pode falar, de ser testemunha humana de coisas que só Deus pode
testemunhar; de, como Paulo, ser também o servo do Messias, “separado para o
evangelho de Deus” (1, 1). [“Pela graça de Deus, sou o que sou”].
Paulo não pode considerar essa sua posição se não como graça, como fato
paradoxal. (I Cor. 15, 9-10).
Esta graça faz com que Paulo — (e, quem sabe, também o leitor) compreenda
quão invisível é a paz de Deus, e o que ela significa.
240
O Novo Homem
5, 2
Quando Paulo sentiu a arrasadora santidade de Deus, a graça divina tomou conta
dele. Quando passou a esperar em Deus ele entrou na posse da paz e,
conseqüentemente, passou a correr ao lado de Deus; e eis agora a grande atenção
divina voltada para o pequenino, o fraco, sobre quem foi lançada a carga de
incomensurável missão.
Agora, por traz dele está o invisível poder de Deus. Mas Paulo é o que é: o
mensageiro daquele perante o qual todo homem é cinza e pó.
Isto significa que Paulo passa a ser “o que ele não é”, e a saber “o que ele não
sabe”; a fazer, “o que ele não pode fazer” (“Eu vivo, porém não eu,..”).
Esta é a graça em que Paulo está e, por entre todas as exaltações e humilhações,
quando tiver de falar da paz do “homem novo” com Deus, não deixará de ter em
mente o paradoxo de sua própria existência.
[Paulo fala das coisas que o mundo não pode ver nele; ele é fraco e pequeno;
(“... o mal que não quero, esse faço”.) (7, 19). Mas poderoso e grande é Deus,
cuja mensagem ele traz].
Todavia, [para o mundo] a mensagem não pode ser separada do mensageiro. [Por
isso] ele sabe o que está fazendo ao pregar (ao insistir) que SOMENTE pela fé
se abre (e se fecha) a porta à paz que anuncia, pois o acesso que ele próprio teve
a essa paz, foi exclusivamente pela fé.
Ele sabe o que diz, quando proclama que essa entrada se encontra “por ele”, a
saber: por nosso Senhor Jesus Cristo, em quem creu sem primeiro galgar
quaisquer degraus preparatórios, sem atalhos; em quem creu, exclusivamente por
obra divina nele, Paulo; ele creu, exclusivamente pela contemplação da
crucificação e da ressurreição; e crendo, pela fé, ele é o que (não) é.
Paulo sabe o que faz quando afirma que, proclamando o evangelho, ele traz
esperança aos homens; uma incomensurável esperança, plena de gozo; uma
esperança que está além de todas as esperanças: a esperança da glória de Deus.
Ela “resplandece para nós desde o evangelho que testifica que participaremos da
natureza divina, pois, quando virmos a Deus, face a face, seremos semelhantes a
ele”. (Calvino). Esta é a vida em sua realidade divina; a salvação e a redenção
dos chamados “herdeiros de Abraão” (4, 13); é o despontar do “Reino dos
Céus”; a unificação entre o “Aquém” e o “Além”, na ressurreição; é a unidade
entre o homem e Deus, em plena visibilidade (3, [22 e] 23). A unidade do “SIM”
e do 241
5, 2
O Novo Homem
Como crente, também Paulo se gloria dessa esperança, e é nessa glória que
reside o paradoxo do seu apostolado pelo contraste que apresenta com sua vida
material. Mas ele tem “esperança” somente, e é “esperança” que ele prega: Deus
o mandou para “dar assistência” ao novo “nascimento” mas lhe é defeso gerá-lo
ou criá-lo. Isto é tão proibido a Paulo como o foi a Sócrates.
Não existe um poder atual, presente, [um talismã] conhecido ou secreto que
desminta [ou faça desaparecer] o caráter esperançoso da tensão da fé, da negação
e da renúncia, pois o sentido e o poder de tudo “O QUE É” para nós
[os que cremos] tem que estar sempre “NAQUILO QUE NAO E”.
exige a incomensurável e cabal condição do “eu creio”; exige que o terrível vale
da morte seja transposto pela fé.
Sim, nós nos gloriamos porque estamos cientes de nosso sustentáculo, de nosso
apoio, de nosso consolo final; estamos também certos [da justifica-
Nunca podemos exibir esse final, nem fazê-lo valer como se fora nossa posse (2,
17 e 22; 3, 27; 4, 2); jamais poderemos apregoar que esse “final” vem [ou virá]
de nossa experiência [de nossa vida], como sendo uma “possível” possibilidade
[histórica ou pessoal].
Vs. 3-5 Não somente isto — gloriamo-nos também nas aflições, porque sabemos
que: a aflição gera a perseverança, a perseverança traz a experiência e a
experiência produz a esperança; ora, a esperança não envergonha, pois o amor
de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi
outorgado.
242
O Novo Homem
5, 3
que a paz do homem com Deus, a graça em que o Apóstolo está, seja refletida no
seu estado interior ou exterior, como “felicidade”, satisfação, “ataraxia” estóica
do, da mesma forma que o “NÃO” da fé permanece sendo “não” mesmo quando,
por acaso, a vida diga “sim”, pois este “NÃO” também vem de Deus.
Também aqui vale: somente pela fé; pela fé, sim, que certamente, se esforça por
ver e que, na realidade, leva a ver, mas não espera por isto, para que seja fé
mesmo nas trevas, isto é, fé durante as aflições e na hora do aperto e não
somente depois de haver a provação sido, felizmente, vencida interna ou
externamente, depois de o sofrimento estar atenuado ou de haver sido
galhardamen-te suportado.
“Isto significa que não devemos dar ouvidos aos tais parladores que querem
apenas cristãos fortes e não toleram os fracos; [na verdade] porém, 243
5, 3
O Novo Homem
e “ser estraçalhado”.
“Abraão flutua entre o céu e a terra; luta com Deus e o seu coração se parte. De
um lado lhe é dito: ‘Isaque será a tua semente’; de outro ‘ele deverá morrer’. Aí
prevalece a base da fé, que a ninguém deixará envergonhado [confundido]; é ela
que suporta o golpe”. (Lutero).
(Lutero).
Crer na salvação não é crer em qualquer salvamento, em qualquer certeza
proléptica, tranqüilidade, benignidade (ou mesmo ingenuidade) e contenta-
mento; antes, é crer no meio do tumulto, no centro da mais íntima convulsão da
humanidade, do mundo não redimido; [esta crença] “se verifica na esperança;
está por acontecer. Agora é preciso resistir, lutar e golpear; não retroceder
perante o inimigo. Os desertores serão estrangulados”. (Lutero).
Ter alegria em Deus quando nada justifica essa alegria, é a glória dos que estão
justificados pela fé.
Não nos gloriamos apenas nas aflições, mas também das aflições. [O
que, todavia, não significa que louvemos a Deus pelos males que nos afligem
segundo algumas pessoas pretendem].
Podemos dizer “sim” a negações de nossa vida como também, e muitas vezes,
podemos e devemos dizer “não” a afirmações que ela contém.
Sabemo-lo mesmo?
244
O Novo Homem
5, 4
A negação no sofrimento de Cristo (5, 6), e que é a nossa posição, muda o sinal
matemático inscrito na frente de nossa tribulação. O que parece ser mero
sofrimento humano, transforma-se em obra de Deus, o Criador e Redentor; os
empecilhos da vida transformam-se em degraus para a vitória; o derribar dá
lugar a nova edificação; a desilusão e o revés aguçam a esperança e o anseio pela
volta do Senhor. O prisioneiro passa a sentinela (1, 16). “As trevas são como a
luz”. (Sal. 139, 12).
Amamos o Juiz porque, como juiz não julga com critério idêntico ao do
“NÃO-DEUS” deste mundo; porque ele, como juiz, revela-se como sendo
totalmente diferente de nós e do teor de nossa vida.
Todavia, a nossa aflição não deixa de ser aflição, e sempre a sofreremos como
tal. Sofremos agora tanto quanto antes; mas já não mais a aflição, o desespero
passivo, venenoso, perigoso, destrutivo, que sobrevem à alma do homem que
não ama a seu juiz (2, 9), porém a aflição e a perplexidade regenerativa,
frutífera, [fecunda] plena de vigor e de promessa, conforme só o pode sentir o
homem que sabe que foi suprimido [aniquilado] por Deus; que foi lançado ao
chão, aperreado, apertado contra as paredes, posto em cativeiro por Deus!
245
5, 4
O Novo Homem
O original diz:
Assim é a criatura que ama a Deus; em seu desespero luta e, talvez até blasfeme,
conforme Jó. Porém, pelo amor a Deus, permanece nele. Foi por isto que Jó, a
despeito da insensatez de seu arrazoado, falou o que era reto perante Deus, pois,
no íntimo de seu coração, estava límpida e bem viva a chama do amor a Deus.
A pressão sob a qual ficamos [em nossas atribulações] revela, à medida que a
aceitarmos como divina, a contra-pressão de Deus que nos traz o seu consolo
tirando da morte o seu aguilhão e desviando contra o próprio inimigo as armas
com que nos ataca.
246
O Novo Homem
5, 5
“aflição”.
Semelhantemente à fé, o seu nervo vital não está numa contingência humana,
porém no alvo que lhe é apresentado por Deus, e dele tira o seu conteúdo.
A esperança, como conteúdo e alvo, não traz vergonha (Sal. 22, 5-6 e 25.
20) ainda que falhe [e fracasse] tudo o mais que estiver baseado em esperanças,
pois esta esperança (superior e divina) permanece, mesmo que fraquejemos.
O Espírito Santo é o eterno “SIM” da fé que, vista do lado humano, apenas pode
ser descrita como negação e vácuo; ele é o milagre inicial e criativo desta fé.
O Espírito Santo é igual a Deus e por ele Deus tributa justiça ao que crê.
Ele é invisível para nós pois está além de toda continuidade psicológica humana;
ele cria o “novo” EGO que se apresenta a Deus, e que [com o “eu” do homem
“velho”] constitui o “nós” que subsiste pela fé, sempre pensado e sempre
procurado nas “experiências” religiosas do mundo e a que se referem
incompreensíveis expressões; “para que (nós) alcancemos paz com Deus”, ou,
“acesso a ESSA graça” ou ainda, “para que (nós) nos gloriemos na esperança da
glória de Deus”. (5, 1-2).
247
5, 5
O Novo Homem
É por isto que ele [o Espírito Santo] foi “outorgado” por Deus, como antecipação
a todas realidades humanas, porém para nós, [no mundo], apenas é
compreensível, perceptível, naquilo que não é material.
O Espírito Santo, fundamento eficaz da vida santificada, não nos foi dado pela
natureza; porém agora, por ele, temos o amor a Deus em nossos corações”.
(Hofmann).
Existe, pois, um “eu”, um “nós”, um coração humano, que Deus pode amar.
Dentro da contingência que Deus oferece ao homem, suprimindo-o para o
estabelecer, está a realidade dita da revelação de Deus por seus atributos
invisíveis (1, 20) os quais o homem tanto gosta de obnubilar e que, efetivamente,
com tanta leviandade obscurece.
Este amor se manifesta apenas porque no juiz, no inimigo, no algoz, está Deus e,
ainda mais impossível do que a existência desse amor a Deus, é não o amar!
A âncora de nossa esperança está firmada nesse invisível, que é o nosso amor a
Deus (e que não existiria se ele não nos houvesse amado primeiro!) (5, 8).
[A tradução inglesa, para a frase “o que vale em nossa valia” escreve “o que é
provado em nossa provação”... (“which is proved in our probation”).
Embora eu entenda que não foi isto que o A. disse, parece-me que a afirmação é
perfeitamente cabível].
É na força [deste amor a Deus], que a esperança não envergonha [não confunde,
não desampara ao que espera, nem o deixa descoberto]; é por ela que nos
gloriamos da esperança; e das tribulações.
248
O Novo Homem
5, 6
V. 6 Porque Cristo, quando ainda éramos fracos, morreu a seu tempo pelos
ímpios.
A paz da “nova criatura” com Deus (5, 1) está acima de qualquer entendimento;
e não só esta paz, mas também o seu amor ao que é inescrutável, a sua esperança
fundada nesse amor e a glória de que goza por ter essa esperança.
O homem “novo” vive pela fé, pois vive do Espírito Santo, que lhe foi dado
mediante a fé. Portanto, ele vive do Cristo que morre e cuja vida se revela
exclusivamente pela ressurreição — a fonte donde jorra a fé (5, 10); todavia,
essa vida foi de OBEDIÊNCIA PASSIVA, culminando com a morte na cruz.
Nenhum destes aspectos tem luz própria, pois todos brilham refletindo a luz que
vem de sua morte.
Não há uma só linha dos [evangelhos] sinópticos que pudesse ser entendida sem
a cruz.
[Além da cruz] é além de tudo “isso e aquilo”, de tudo [o que o homem possa
criar ou imaginar].
A carreira de Jesus foi uma revista, uma passagem ao longo de todas essas
possibilidades humanas, [como um comandante inspeciona as tropas per-
filadas]. Foi como uma saudação a todas coisas deste mundo, sujeitas a morte,
passando ao lado delas; foi um distanciamento de todas possíveis negações e
posições do mundo, de suas teses e antíteses, de toda agitação e de todo repouso
humanos — exceto da morte!
A vida de Jesus brilha por força desse “não envolvimento”, desse afastamento, e
as coisas do mundo refletem esse brilho, revelando sua relatividade, 249
5, 6
O Novo Homem
Cristo morreu “por nós”. “Por nós” quer dizer à medida que sua morte for o
“princípio de reconhecimento” de nossa morte; à medida que, na morte de
Cristo, o Deus invisível se torna visível para nós; à medida que a morte de Cristo
passa a ser o ponto de nossa filiação a Deus, [a nossa reconciliação]
(3, 25 e 5, 9).
“Por nós” se, como criaturas transviadas, [porém agora] amando o Criador,
formos recambiados a ele pela morte da cruz; “por nós”, à medida que, nessa
morte, o paradoxo da justiça de Deus (a identidade entre sua ira santa e sua
graciosa misericórdia) se tornar verdadeiro para nós.
Nunca foi, e jamais será, o teor da vida humana [que influirá na criação do
“homem novo”], pois, em sua essência, este é a negação crítica de tudo o que é
humano.
O que Cristo fez, fê-lo, de fora a fora, sem nós, como homens deste mundo. Por
isso os quadrantes da terra e as gerações afastadas (temporalmente falando!)
ausentes à cena da cruz, não se ressentem de qualquer restrição ou discriminação
à sua inclusão do coletivo “nós” pois essa participação não se restringe a
quaisquer determinados setores ou circunscrições históricas.
Aqueles que não conheceram a Cristo segundo a carne que não têm em suas
vidas qualquer experiência concreta, [semelhante à dos que estiveram ao 250
O Novo Homem
5, 6-8
Ele morreu por nós (naquilo que somos, temos e fazemos), quando ainda éramos
fracos e andávamos sem Deus; por que haveria de modificar-se, basicamente,
este relacionamento entre ele e nós, entre a sua morte redentora e as duvidosas
possibilidades de nossa vida, ainda não iluminada pela sua morte, e na qual nos
movemos (quais somos!)?
É justamente esta morte em Cristo que nos transforma naquilo que ainda não
somos e nela se funda a vida da nova criatura.
Vs. 7 e 8 Dificilmente alguém morrerá por um justo, todavia, poderá ser que
pelo bom alguém se anime a morrer. Mas Deus prova o seu amor para conosco
pelo fato de haver Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores.
Ele não vive de eventuais “valores da vida” que lhe sejam comunicados e,
portanto. não vive de sua capacidade, ou aptidão, de canalizar para si tais alores
ainda que lesse envolvimento], essa comunicação ocorresse pela morte de
outrem ou dele mesmo.
5, 7
O Novo Homem
Apesar do mais profundo respeito que devemos a tudo que a grandeza humana
nos possa oferecer no campo do despreendimento e do sacrifício pessoal, não
nos podemos entregar ao sentimentalismo, atribuindo às obras humanas, — (e a
morte, quer seja voluntária quer seja imposta a alguém, está entre as obras deste
mundo), — significado que elas não têm. Nada disso pode ser mais do que
analogia, semelhança ou parábola da realidade que fundamenta a nova criatura.
É sempre questionável até que ponto o bem que se comunica com semelhante
morte é realmente um bem e até que ponto as pessoas que devam receber o
benefício do sacrifício estão realmente em condições de aprender ou aprovei-tar
dele.
Não existe a criação de outro (novo) âmbito, além daquele rotineiro, de cada dia;
nenhum novo nível de segurança, acima das vicissitudes do mundo; nenhuma
passagem do pequeno [do natural] para o grande [o sobrenatural]; do que é
viável para o inviável.
Não há [no sacrifício de vidas por obra humana] qualquer definição precisa do
que seja “PRÓ” ou “CONTRA” o teor da vida verdadeira [entendida como a que
existe] além da vida e da morte [neste mundo].
252
O Novo Homem
5, 8-11
Com esta morte, “Deus comprova o seu amor para conosco”. Ela é a mais radical
supressão e, nesta supressão, é a síntese e o fundamento de todos os valores da
vida.
vel, e oferece também a solução. Eis aqui “Emanuel”, Deus conosco. E Deus
testemunhou “o seu amor para conosco, quando éramos ainda pecadores”.
Deus porém, nos prova aquilo que não nos poderia ser provado. Ele se dirige a
nós dentro de uma condição, um contexto, uma característica, quiçá numa
ambiência, que não é nossa, da qual não fazemos parte: AMORE NON
PROVOCATUS SPONTE NOS PRIOR DILEXIT. (“Sem ser levado por nosso
amor, Deus nos amou primeiro” - Calvino).
Este novo “sujeito” é o “homem novo” que pela fé (e somente pela fé), se
identifica comigo, o pecador!
Este “novo” homem sabe, com superabundante certeza, que é amado por Deus,
em Cristo.
Vs. 9 a 11 Logo, muito mais agora, sendo justificados pelo seu sangue, seremos
por ele salvos da ira. Porquanto, se como inimigos fomos reconciliados com
Deus pela morte de seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos
salvos pela sua vida; e não somente como tais, porém como aqueles que se
gloriam em Deus, por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo, por quem,
agora, alcançamos a reconciliação.
253
5, 9-11
O Novo Homem
Enquanto, e na medida que vivermos desta fonte, desta origem, e ousarmos ter
fé, somos o que não somos: a nova criatura; o novo sujeito, com referência ao
novo objeto; os amados de Deus e, por isso, aqueles que o amam; os agraciados
com a esperança e, por isso, os que esperam; os eleitos de Deus, e por isso os
que se gloriam nele.
“agora pois... “ (3, 21), sob a parede, prestes a ruir, da crise do homem em Deus.
Estamos sob aquele “de onde?” que é a indagação de todas as indagações e cuja
resposta é também a única entre todas. Somos aqueles que foram declarados
justificados por Deus, e somos aqueles que Deus reivindicou para a sua justiça e
para o seu reino.
Somos aqueles que estão sob perdão e sob o abrigo de sua sentença livre
(forense); aqueles que Deus levantou e colocou lá, bem alto, onde só ele nos
pode suster, e efetivamente nos sustém.
Somos reconciliados com Deus; temos paz com ele. Nossa atitude para com
Deus modificou-se; agora temos o coração aberto e predisposto para receber e
ouvir; estamos prontos a servir e a obedecer.
Amados por Deus, não podemos, se não amá-lo de nossa parte; na aurora de sua
glória não podemos, senão gloriar-nos nele.
“Deus toma a iniciativa e traz de volta, para si, o mundo e a humanidade que, em
inimizade e tomados de pavor, se afastaram dele”. (Weinel).
É “de lá” que voltamos. (3, 21). Somos? Temos? Podemos? Voltamos?
Sim. (Bem entendido e repetindo sempre): se nós não formos “nós mesmos”; se
crermos; se, pela morte de Cristo, nossa vida for atravessada pela linha da morte
que nos leva a reconhecer em cada momento, com temor e tremor: “Eu? — Não
eu”; porém com adoração e gratidão, “Cristo em mim”!
Não há outra forma de sermos este “homem novo”, se não pelo nosso
254
O Novo Homem
5, 9-11
Enquanto formos qualquer outra coisa que não “nós” [quer dizer, o homem velho
e o homem novo], enquanto não crermos, enquanto a morte de Cristo não lançar
a sua luz sobre a nossa vida, estamos neste mundo e somos participantes dele;
não temos parte na paz com Deus, não fomos tocados pela plena reconciliação e
não participamos dela.
Tudo quanto nós mesmos vemos, sabemos e tocamos, pertence a este mundo;
não existe uma ponte “material-espiritual “ que interligue as velhas
possibilidades da vida com as novas. [Uma ponte pela qual possamos, por nossos
méritos, transpor a linha divisória entre o “aquém” e o “além”].
Quando a criatura entra para a luz da morte de Jesus, surge a “nova criatura” e,
inevitavelmente, o “eu” do “homem velho” entra na penumbra.
A redenção se aproxima “seremos salvos da ira” que agora e aqui ainda pesa
sobre nós, pois a vida que vem à luz pela morte de Cristo, é a salvação daqueles
que, por essa morte, são reconciliados com Deus.
Estar reconciliado significa poder esperar em Deus. Como não nos haveríamos
de gloriar desta esperança, por nosso Senhor Jesus Cristo?
“Ao louvarmos a Deus como o nosso Deus, abre-se-nos a fonte de todos os bens
imagináveis e desejáveis, pois Deus não é somente o maior dos bens, porém o
seu teor e a plenitude do ‘BEM’. Porém, ele só se torna nosso Deus, por Cristo”.
(Calvino).
Ele tem?
Sim, ele tem, porque pela morte de Cristo, o presente do homem é o futuro de
Deus. SPES ERIT RES — “Esta esperança é possuir”. (Bengel).
255
5, 12-21
O Mundo Novo
está na vida que emerge da morte de Cristo (5, 1-1 1), podemos agora avan-
çar mais a nossa análise, pois:) — Assim como por um só homem o pecado
entrou no mundo (como poder) e, pelo pecado, a morte que (como lei suprema
do mundo) alcançou todos homens como tais, pois todos pecaram, assim
também este homem “vindouro” — Cristo — o qual o primeiro prefigura —
(5, 14), inaugura uma conjuntura mundial, inteiramente oposta. (5, 18-19).
O Mundo Novo
5, 12
a toda humanidade. Este é o homem qual o conhecemos e qual somos: o homem
que está sob a ira de Deus.
Mas também o homem “novo”, o que não é, e aquele que eu sou, o homem
justificado por Deus, está sob a ira divina.
Está alguém “em Adão”, é “velha” criatura, decaída, cativa; está alguém
“em Cristo” é “nova” criatura, reconciliada com Deus e redimida (II Cor. 5, 17).
Ali está alguém caminhando para a morte; aqui, alguém entrando para a vida (II
Cor.4, 12 (e I Cor. 15, 22]).
Porém, não é como se dois mundos estivessem lado a lado (como também o
homem “novo” e o “velho” não são duas pessoas) pois, sempre, a possibilidade
de um é a impossibilidade do outro e a impossibilidade daquele é a possibilidade
deste.
Se for “em Adão”, diz respeito ao homem “velho”. Foi e é e será sempre velho e
jamais foi, é, ou será novo.
Se for “em Cristo”, o que é “velho” passou. “Eis que se fizeram novas todas as
coisas”. (II Cor. 5, 17).
mundo; ambos estão sob o mesmo julgamento: aquele para a condenação; este,
para a vida.
Não há reencontro com Deus, em Cristo, não há entrada para a nova vida, que
não esteja vinculada à queda em Adão e sem que o homem esteja sob
condenação divina. E podemos juntar: não há queda em Adão, nem há
condenação final, que não tenha a sua origem no ponto onde o ser humano
recebe a promessa da vida, mediante a reconciliação com Deus, em Cristo.
257
5, 12
O Mundo Novo
imortais. Eles vivem sua morte, alternadamente; eles morrem sua vida,
alternadamente”.
Mas esse acompanhamento teria que ser feito com reservas, pois essa unidade
entre o mundo de Adão e Cristo não significa o equilíbrio entre duas grandezas;
não é uma gangorra nem um carrossel, como se a queda e o julgamento, a morte
e a vida, ocorressem em alternância ou num rodízio contínuo; antes, esta
passagem se manifesta como graça do segundo para o primeiro, e volvimento,
retorno, do primeiro para o segundo.
Como tudo isto pode .acontecer, como é que Cristo é o segundo e último Adão (I
Cor. 15, 45), como o “novo” mundo é mais do que mera variante do primeiro,
como — depois da justificação — não há retorno possível ao estado de
afastamento de Deus, como a vida que emerge da morte é absolutamente
superior à vida que gera a morte e está cerceada por ela, e como existe uma
“morte” que é a “morte” da presente morte — tudo isto é o conteúdo [a boa nova
e o tema] do evangelho (1, 1 e 16), que é o Poder de Deus; é o poder da
ressurreição, o teor da nossa vida (todavia não é seu conteúdo!); é a “miraculosa
guerra” (Lutero), o paradoxo e a genialidade da fé.
Onde, pelo poder de Deus, houver fé, aí está o ser humano como aquele que ele
não é: como a “nova criatura” em pé no limiar do mundo “novo”, o mundo da
vida.
E, quando aí postados, ponderamos que este “novo” mundo não pode ser outro
se não o “velho” que foi suprimido, que teve sua rota invertida mediante a
vitória de Cristo, torna-se evidente que o pragmatismo invisível deste mundo, e
que começamos a divisar nessa supressão e reversão, vai ao encontro da
pragmática do mundo “novo”.
258
O Mundo Novo
5, 12
“the old world dissolved and overthrown” para “aufgehobene und ungekehrte
alte welt” e cujo sentido procurei interpretar escrevendo o “velho” (mundo) que
foi suprimido, que teve sua rota invertida.
Todavia, logo adiante a tradução inglesa escreve... “reversed and set moving in a
contrary direction” para “umgekehrt und aufgehoben” e que escrevi como
“suprimidas e postas em reversão”. [Traduttore, traditore...)].
A morte é a lei suprema deste nosso mundo. Nada sabemos dela se não que é a
negação e a corrupção. Ela é o destruidor e a destrutibilidade; é a característica
da criação e da natureza; o antagonismo insolúvel e a qualidade inseparável de
nossa vida; a aflição entre todas as aflições, o conteúdo e a somatória de todo o
mal, o espanto e o enigma de nossa existência, o aviso permanente de que sobre
as pessoas deste mundo e sobre o mundo dos homens pesa a ira de Deus.
A lei da morte de tal maneira domina sobre este mundo que até (e
principalmente) aquilo que visa a sobrepujá-lo e renová-lo, toma a forma de
mortificação: a moral se expressa em termos da renegação do corpo, pelo
espírito; a filosofia mostra o seu sentido no quadro da morte de Sócrates; a vida
espiritual se apresenta em oposição a vida natural, o progresso se realiza
mediante a destruição implacável do que existe: a chama, (exceto a “chama do
Senhor” — Ex.
[Ainda mais], de tal forma é a lei da morte soberana no mundo que o próprio
Cristo, segundo a carne, não tem outra alternativa se não morrer, para ser
estabelecido como Filho de Deus. (1, 3-4).
259
5, 12
O Mundo Novo
De tal maneira se impõe a lei da morte no mundo que, para podermos tributar a
Deus a honra que lhe é devida, precisamos reconhecer que o temor do Senhor é o
princípio da sabedoria, para nos aproximarmos de sua invisibilidade.
“anuência” divina].
Estamos impotentes; estamos perdidos. Como lei de nossa vida, a morte sempre
vem primeiro. Resta-nos apenas concluir: se houver salvação, ela há de estar em
nossa libertação da morte; se houver um “SIM” precisa ser tal que suprima este
último “NÃO”; se houver uma saída ela precisa estar onde se levanta esta
terrível barreira que nos bloqueia; se Deus é Deus, ele precisa ser o vitorioso
antagonista deste “último inimigo” (I Cor. 15, 26), ele precisa ser “a morte da
morte”.
O que é a morte? de onde vem? como veio ela a ser a lei suprema do mundo?
“O pecado”. Convém agora que voltemos nossa atenção ao homem deste mundo.
Ele é o homem do pecado. Pecado é a característica inerente e o fundamento do
homem segundo o conhecemos. Nunca soubemos da existência de homens que
não fossem pecadores.
Pecado é poder, (e poder real), (5, 21); é o poder sob o qual está o ser humano
neste mundo. O pecado do indivíduo é uma demonstração mais ou menos
precisa dessa situação; ele serve para mostrar a que grau de pressão o 260
O Mundo Novo
5, 12
indivíduo em questão está sujeito, dentro da situação geral, mas não representa
qualquer alteração na característica fundamental desta situação.
É em Deus que o pecado consegue sua existência como poder, e poder mundial.
Considerando que nossa vida é delimitada pela morte que nos separa de Deus,
conquanto Deus mesmo não seja a morte mas a vida do dia vindouro, [e se,
conforme analisado mais acima, o pecado consiste em nossa aproximação
indevida a Deus,], então pode parecer-nos lógico que podemos (ou devamos)
inverter a conjuntura, afastando-nos mais de Deus.
[Esta segunda atitude pode não ser patenteada, exibida pela nossa práti-ca
religiosa, pelo nosso culto ou pelo nosso procedimento, todavia] o assalto a Deus
também se dá quando quebramos nossa unidade com ele; quando criamos para
nós uma “conveniente” autonomia, quando rompemos os laços espirituais que
unem o homem e o mundo a Deus: que unem as criaturas ao Criador.
“Acaso foi assim que Deus disse?” E um assalto que vem desde a origem [do
homem].
É o assalto no qual o ser humano se afasta, se separa de Deus como fonte de sua
vida, de uma forma sorrateira, “não filial”, não singela [sincera e pura]; uma
forma imprópria, improcedente. [E o pecado original].
ção visível que desde a primeira queda, abundantemente (5, 20) avança por 261
5, 12
O Mundo Novo
Havemos, pois, de precatar-nos para que não [demos asas a essa forma subjetiva
do pecado e] passemos ao largo da cruz (fazendo-nos iguais a Deus), procurando
[restaurar a nossa posição] o nosso retorno para junto dele, [por obras de nossas
próprias mãos, quiçá] pela adução ou adoção de refinados postulados, ou
tumultuadas exigências técnicas.
Sabemos que para nós, que estamos sob a lei da morte, não existe um instante
[um ponto, uma maneira material ou outra qualquer que dependa da nossa
iniciativa, para voltarmos a Deus] e a própria lei da morte nos aponta,
precipuamente, a VIA CRUCIS para alcançarmos uma visão retrospectiva do
nosso pecado, fazendo severa advertência contra a tentação [de buscarmos
alguma solução nossa], sob dois pontos distintos.
O que é o mundo?
“Poderes”, dos “Tronos” dos “Principados” e das “Potestades”. Este mundo é co-
prisioneiro do homem.
Sendo dos homens, este mundo participa, involuntariamente, dos seus erros, de
sua conduta displicente, da destruição do relacionamento de vida com Deus, que
os homens promovem, e da relativa divindade que os homens criam e que
constitui o motivo da sua grandeza e sua ruína.
O homem precisa descobrir, para seu próprio pesar, que este Cosmos é o seu
Cosmos.
O Mundo Novo
5, 12
A glória do Criador apenas brilha neste mundo naquilo e à medida que delimita e
define a auto-suficiência e a culpa das coisas; somente no alcance do seu
conceito crítico, portanto, na questionabilidade de tudo quanto o homem faz, na
possibilidade e na necessidade de sua supressão, na sua negação. A glória do
Criador brilha, ainda, na medida da faculdade que as coisas humanas tiverem de,
dentro do que são, testemunhar do que não são, e isto significa que esta luz vem
SUB SPECIE MORTIS.
Este mundo, por ser nosso, é aquele em que o pecado achou entrada.
Nele, sobre esta terra e debaixo deste céu, não há possibilidade de estabelecer-se,
por força dele, ligação direta do homem com Deus.
Salvamento só pode haver pela redenção, e redenção só virá com o dia vindouro
quando se farão novos, o céu e a terra.
Esta foi a primeira advertência;
Agora, a segunda: “Pelo pecado, a morte” entrou no mundo. Entrou como crise e
com duplo sentido: como lei suprema e, como referência a um legislador acima
dela.
ção. Todavia, e em qualquer hipótese, como o sinal PARE!, dado por Deus, para
que não contornemos a “Porta Estreita”, pois a passagem por ela é obrigatória, e
aqui vale a pena que sejamos sábios pois, fora da “Porta Estreita”
não há sabedoria.
Foi pelo pecado original, o pecado invisível [o desejo do homem, de ser igual a
Deus], que a morte veio ao mundo; foi a destruição do relacionamento com
Deus, que é a fonte da vida.
Como ser vivente mas destituído da vida verdadeira, o ser humano passa a ser
mortal; despregado de sua origem, [sua existência edênica em Deus,]
É por isto que agora é inevitável que o relacionamento do homem com Deus seja
caracterizado pela morte; é inevitável que a existência do ser humano 263
5, 12
O Mundo Novo
Reina o pecado? Então vive a morte e não nós. (5, 21 e 7, 10) Se é o pecado
quem dá as ordens, é também ele quem paga: o salário do pecado é a morte. (6,
23).
ção, não aponte ao “absoluto” que, na realidade, estabelece sua relatividade; não
há aparência de morte que, como tal, não testifique a nossa participação da vida,
em Deus, e que não dê testemunho de que o relacionamento de Deus conosco
não foi destruído pelo pecado.
Não pode passar desapercebido o dedo levantado que, desde a cruz de Cristo,
nos adverte de que o mundo do pecado só pode ser ultrapassado no ponto onde
ele foi alcançado.
Portanto, pelo pecado veio a morte; a morte como crise; como ruptura de nossa
vida; a morte como elemento de conhecimento da nossa miséria e da nossa
esperança.
Sim, Adão como agente daquele pecado invisível, e que, caindo, deu entrada ao
pecado no mundo.
Porém, trata-se deste Adão, não em seu carente, seu inexistente relacionamento
histórico, porém em sua relação não histórica com Cristo.
264
O Mundo Novo
5, 12
Adão subsiste como o instante que está atrás do movimento para frente, vitorioso
em Cristo; atrás desse movimento de retorno e volvimento dos homens e seu
mundo, abandonando o caminho do afastamento de Deus, para encetar a marcha
no sentido da justificação; no sentido da morte para a vida, do
Por conseguinte, Adão não subsiste como uma segunda grandeza positiva, ou
como um pólo em torno do qual se processasse o movimento de retorno da
humanidade; ele subsiste, apenas, na medida de sua supressão. Ele é confirmado
pela sua negação em Cristo.
Nem Adão, nem Cristo, a quem Deus ressuscitou dos mortos e estabeleceu como
fonte da vida, e de quem Adão é a projeção prefigurativa, — são personagens de
nossa história secular.
O pecado que Adão trouxe ao mundo está aquém da morte assim como a
justificação que Cristo trouxe, está além dela.
Assim como a justificação que Cristo trouxe ao mundo não se prende a uma data
histórica mas é perene, ubíqua e transcendental, e os homens podem se apropriar
dela a todo tempo, mediante a fé, assim também a queda em Adão não diz
respeito a um acontecimento — um determinado evento histórico do 265
5, 12
O Mundo Novo
do pecado, mas o seu “primeiro efeito”. É possível que, sob este aspecto a antiga
doutrina do “supralapsarianismo” dos tempos da reforma, segundo a qual a
predestinação retrocede até eras anteriores à “queda histórica”, possa ser ouvida
e até defendida...)
A sombra que encobre todos nós só pode ser identificada com Adão, e trazer seu
nome, na medida em que ele foi o primeiro a praticar o que todos praticamos.
Adão, o primeiro, significa o homem terreno, o homem histórico,
Contudo, parece-me conveniente salientar aqui que Barth não acompanha essa
interpretação, antes a combate com muita veemência, também plenamente
estribado na Bíblia.
Em resumo, ele diz que o Evangelho é sempre a boa nova da salvação; não seria
uma boa nova para os “destinados à perdição” se eles tivessem que tomar
conhecimento de que só os “eleitos para a salvação” mereceriam a reconciliação
com Deus. Entende Barth que ensinar desta forma é “deter a verdade pela
injustiça” (1, 18).
O Mundo Novo
5, 12
crer, sem nenhuma exceção — (e por predestinação) seja salvo; todavia, o que
não crer, (pela mesma predestinação) já está condenado.
De outra forma, como seria Deus justo? Como seria ele o Deus de amor?
Como explicar o mandamento: “Ide e pregai”? Não seria a idéia (ou doutrina) da
predestinação, nos moldes restritos da Confissão de FÉ de Westminster, uma
limitação à obra redentora de Cristo, na cruze, em última análise, até a sua anula-
ção, pois por que haveria de Jesus Cristo morrer na cruz, se uma parte do mundo
já estava separada por Deus, para a vida eterna, e outra para a perdição eterna?
É com esta opção, que Barth denomina “CRISE”, que o homem se defronta ante
a “porta larga” e a “porta estreita” dos dois caminhos da predestinação: a
perdição e a redenção. Mas não acontece MANU MILITARIS; não é por
decreto; é por opção. O decreto existe desde a eternidade e é um só; não há dois
decretos; nem há um anterior e outro posterior, um a suplementar o outro, coisa
tão comum entre certos legisladores apressados: (não prevêm tudo “de come-
Todavia alguns nomes (poucos ou talvez muitos) poderão ser apagados do “livro
da vida” (Apoc. 3, 5) e, por isso, os seus nomes não constarão dele,
A tradução inglesa do trecho que vai da referência (1, 18) até a referência (I Cor.
15, 45 e seguintes) é um pouco mais suscinta e pode ser útil para lançar luz sobre
o tema.
Ela escreve:
5, 12
O Mundo Novo
Saímos do segundo plano — o “não histórico”, de nosso “velho” mundo para seu
iluminado primeiro plano e vemos, claramente confirmado, o que há a concluir
da pragmática invisível da VIA CRUCIS: vemos a humanidade toda praticando
o que Adão fez e, por isso, sofrendo o que ele sofreu.
Sabemos que, em vez de “depois”, deveríamos dizer “por isso”; sabemo-lo, mas
não o vemos; só vemos os fatos.
(3, 10 e 23).
Também, reconhecido ou ignorado, corre por toda a história, e vai até a linha da
morte, onde está bem claro, à luz do dia e ao alcance da mão, o que quer dizer,
“Adão se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal”.
(Gen. 3, 22).
Vs. 13 e 14 Porque antes da lei já havia pecado no mundo; mas o pecado não é
levado em conta, quando não há lei. Entretanto a morte reinou desde Adão até
Moisés, mesmo sobre aqueles que não pecaram segundo o modelo de Adão o
qual, contudo, prefigura aquele que haveria de vir O que precisa ser sublinhado
refere-se ao conceito de pecado.
O pecado precisa ser entendido na plenitude de seu sentido invisível para que se
esclareça, por ele, a natureza deste nosso mundo passageiro e, também, a do
vindouro.
268
O Mundo Novo
5, 12-14
A lei é a forma pela qual o homem pode tomar conhecimento de qual seja a
vontade e a norma de Deus, tanto consciente como subconscientemente.
e 3, 2). Bem-aventurado é aquele que sabe que não será desculpável, que não
poderá esconder-se. (2, 1-2).
Onde houver lei, religião, aí surge a injustiça humana; aí desponta o homem em
sua fraqueza, em sua insuficiência, em sua carnalidade, como um estorvo a
Deus; como objeto da ira divina; e isto, na medida em que ele sabe o que a lei
exige, na medida em que a leva a sério e é seu ouvinte. (3, 14-20 e 4, 15,
primeira parte).
É então, (se não nos enganarem todas as aparências,) que ocorre o gesto atrevido
que estende a mão à árvore da ciência; é então que nos esquecemos que temos de
morrer, e procuramos iludir-nos quanto à impossibilidade de nos justificarmos
pela lei. E ai do homem de Deus que [justamente dei se enganar, esquecendo-se
que está numa zona especialmente perigosa.
(2, 17 e seguintes).
269
5, 13
O Mundo Novo
[Os olhos que vêem são os nossos próprios, porque têm perante eles a lei, e
sabem ver; sabemos distinguir entre o bem e o mal porque adquirimos
conhecimento; este é o significado da declaração: “Eis que o homem se tornou
como um de nós”; adquiriu conhecimento para discernir entre o que é bom e
mau, entre o bem e o mal que pratica (ainda que não o queira). A tragédia deste
conhecimento tem o seu ápice na linha crítica da morte, quando o nosso
“conhecimento”, longe de nos mostrar a luz que nos poderia guiar, derrama
sobre nós um rio de fogo de desespero, aflição, tormento. No dizer trágico de
Lutero,
“o homem está perdido”. — A não ser que receba a justificação, pela fé...].
Porque o homem conhece o que seja pecado, este pesa sobre os seus ombros. [É
o peso da] culpa, a sobrecarga da responsabilidade.
Então o pecado acha uma alavanca, um capital operacional (7, 8 e 11), e começa
a agir. Ele entra com o Poder; passa a ser altamente notável, grande evento
histórico. E é justamente o homem que tem a lei, (o homem que “foi
despertado”), o homem que está fascinado por Deus e que nele espera, que está
voltado para Deus, o homem religioso, sim, é justamente tal homem que é o
pecador para quem o pecado é o mais visível. — (7, 7 e seguintes; 7, 14 e
seguintes).
Foi isto o que aconteceu a Adão, por quem o pecado entrou no mundo; foi
possível porque ele tinha uma lei: a advertência de não tocar na árvore do bem e
do mal. Ele se tornou pecador, sacrificando a sua relação especial com Deus.
[Aqui vem à tona uma pergunta que pode parecer ímpia — (e o que é que
procede do homem, que não seja ímpio?) — Todavia, pode ser uma obje-
ção natural: por que foi a árvore da ciência do bem e do mal posta à disposição
do homem, dando-lhe a oportunidade de desobedecer?
270
O Mundo Novo
5, 13
Este direito de opção acompanha o homem desde o berço até o túmulo e, mesmo
depois de haver optado pelo paradoxo da fé, ainda depois de haver confessado
“Tu és o Cristo, o filho de Deus vivo”, tem que optar. Há de optar entre as
respostas que pode dar a uma criada e a um centurião. Acima de direito e
privilégio, o exercício livre da opção é o coroamento do homem espiritual que,
se de uma feita o levou a fugir de Deus, pode, a todo o tempo, recolocá-lo na
glória em que Adão esteve, antes de pecar, mediante a reconciliação com Deus
em Cristo Jesus].
Se, hipoteticamente, um tal lugar, ou tal época, ou uma tal situação existisse, e
se, ainda por hipótese, a situássemos [com bastante propriedade], no período
histórico que vai de “Adão a Moisés”, isto é, no tempo que medeia entre a “lei
particular” de Adão, e a lei nacional dada ao povo de Israel por Moisés, aí
caberia dizer: “onde não há lei, não há imputação de pecado”.
É lenha molhada que não arde. Não há “alavanca” nem “capital de giro”, por
isso não há ação, nem empresa. [Isto é, não há pecado].
Uma tal sociedade apenas vegetaria, como as plantas numa estufa, sob um
suposto austero e silencioso aprazimento divino. Nada poderíamos dizer a
respeito de tal conjuntura, pois nela não se poderia encontrar qualquer forma de
pecado individual, pessoal, nem consciente nem subconsciente, porque não
haveria imputação de pecado, dado que, “sem lei o pecado é morto” (7, 8).
Todavia, é justamente por este perdão que esperam e anseiam os povos que
viveram no lapso de tempo que vai de Adão a Moisés, porque estes
“dorminhocos canadenses” não constituem exceção à regra e também sobre eles
impera a lei da morte. Não existe a exceção que seria de tanto agrado aos
sensíveis seguidores de Rousseau.
Em nenhuma parte está dito que a lei mundial da morte não atinge aos que estão
sem lei (se é que tais existem).
5, 13-14
O Mundo Novo
mesmas daquela outra parte que, adormecida, não a tem (ou não a teria). Uns e
outros têm as mesmas qualidades de criaturas; sofrem do mesmo cerceamento e
das mesmas limitações. Uns e outros se defrontam com os mesmos enigmas do
nascimento e da morte a qual impera sobre todos e, em sua severidade, faz supor
a existência de um pecado anterior, maior do que a nossa queda histórica, visível.
Essa queda pré-existente, invisível, à qual a nossa conjuntura mortal aponta, não
pode ser identificada com os acontecimentos e as ocorrências que, em nossa vida
terrena, lamentamos e profligamos como pecado.
Todavia, também os que dormem são levados a sério por Deus; também eles são
responsabilizados e estão debaixo da ira de Deus, ainda que esta esteja oculta. O
fato de não estarem sujeitos à lei geral de Israel e, portanto, o fato de não
haverem pecado segundo o modelo histórico de Adão nem segundo a espé-
cie do erro de Israel, não lhes da paz, nem os isenta de culpa. Também eles se
defrontam com a crise da eleição e da rejeição, da justificação e da danação,
mesmo que, historicamente, sejam inculpáveis [como de fato o são].
[Justamente porque também aqueles que (aparentemente) sem lei, estão sob o
império da lei da morte, é que se confirma a pré-existência de um pecado maior,
gerador da desobediência dos nossos primeiros pais e de toda a raça que, com lei
ou sem lei, têem a inclinação terrena, natural, de voltar as costas a Deus, para
fazer-se igual a Deus].
A diferença entre “os que estão sem lei” e aqueles que “sob a lei devem morrer”,
é apenas relativa, pois “para Deus não há acepção de pessoas” e, portanto, “todos
os que pecaram sem lei, também sem lei perecerão; e todos os que com lei
pecaram, serão julgados mediante a lei”. (2, 11-12).
Um rei não é eleito por seus súditos e eles não têem meios de decidir,
individualmente, se aceitam ou não a sua suserania; o rei sobe ao trono por 272
O Mundo Novo
5, 14
direito de herança e domina “pela graça de Deus” (ou com seu desfavor...) —
Ora, a entrada do pecado no mundo, em Adão, deve ser entendida como obra de
sua soberania. [Isto é, o pecado se valeu de seu Poder para entrar no mundo].
A sombra em que Adão se acha é testemunha da luz que vem de Cristo e nos
mostra qual a significação e a natureza dessa luz.
ção e são infinitamente superiores ao pecado e à morte (embora isto seja uma
maneira imprópria de dizê-lo [porquanto justificação e vida em Deus não são
comparáveis com o pecado e a morte] ); isto é tão certo, quanto é certo que a
aparente polaridade do contraste entre Adão e Cristo desaparece à luz do instante
crítico (“quando uma morte devora a outra” — Lutero).
273
5, 15-17
O Mundo Novo
“Então, (e isto suspende o paralelismo) se pela queda de um, e por este, a morte
reinou soberana, tanto mais os que receberam a abundância da graça reinarão, na
vida, através daquele um — Jesus Cristo”.
“Todavia, não é assim o dom gratuito como a ofensa; por que, se pela ofensa de
um só morreram muitos, muito mais a graça de Deus, e o dom pela graça de um
só homem, Jesus Cristo, foi abundante sobre muitos.
“Se pela ofensa de um, e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que
recebem a abundância da graça e o dom da justiça, reinarão em vida por meio de
um só, a saber: Jesus Cristo”].
[Notar que nem a redação dada pelo A. e nem a tradução de Almeida usam
exatamente as expressões que Juelicher destaca e o Autor menciona].
274
O Mundo Novo
5, 15
Despojar a Deus é a essência do pecado, que rouba para si atributos divinos, para
exibir, [como seus], poderes semelhantes aos de Deus, no mundo (5, 12) [e 6,
12].
“NÃO” a este mundo. E com este “NÃO” o mundo de Adão vê Deus como
agressor; como aquele que nos expulsou do para(so e nos rouba a vida: “SICUT
E o mundo rodeado de uma interrogação geral para a qual não encontra resposta;
275
5, 15-16
O Mundo Novo
é um mundo que não tem saída, senão na própria muralha que o cerca; que só
encontra conhecimento na ignorância, e esperança no desespero. É o mundo que
aguarda o Juízo Final com a supressão de todas as coisas e enquanto espera sofre
os horrores do seu presente estado.
Eis, agora, Deus como Criador e Redentor; como o doador da vida e de toda
dádiva perfeita.
Em Jesus Cristo torna-se visível a realidade invisível: que Deus não deixa de
dizer-nos “SIM”.
É assim que se situa a balança dialética entre a queda e o perdão; e por que força
de lógica não haveria de estar acessível, e até muito próxima, a possibilidade de
suprimir a aparente simetria deste contraste mediante um passo à frente para,
(“com mais certeza”), conhecer o seu verdadeiro sentido? E por que não dar esse
passo?
276
O Mundo Novo
5, 16-17
Esse julgamento qualifica e identifica o homem que não pode viver porque não
pode querer; não pode querer porque não é livre; não é livre porque não tem
objetivo livre; e não tem objetivo livre, porque é mortal. Apenas mortal.
Se esta sentença de morte ainda não foi executada em nós num dado momento
físico, ela está todavia, permanentemente suspensa sobre nós qual a espada de
Dâmocles.
277
5, 17-18
O Mundo Novo
De outra parte, porém, esta sentença de Deus que condena e elege, tem outro
significado.
Ela significa que aquilo que veio ao mundo pela dádiva de Deus, por meio deste
“um justo”, o segundo Adão, Cristo Jesus, não é nada menos do que a
“PLENITUDE DA GRAÇA”, a “dádiva da Justificação” que pode ser aceita,
acolhida, recebida por todos os homens, para que sejam eles próprios, reis, em
vida.
Para que o homem passe a ser “nova” criatura é ele transportado para a
verdadeira vida, pela morte de Cristo. (6, 4-5). É a revolução contra a lei invisí-
vel do mundo que se evidencia pela morte.
[Este segundo lado do julgamento divino] significa nada mais e nada menos do
que a herança do mundo prometida a Abraão e à sua descendência segundo a fé
(4, 13); significa que o homem já não precisa estar sujeito às cadeias do cosmos
porém, o próprio cosmos, liberto, estará a seus pés. Significa que o homem, feito
escravo de todas as coisas, pelo pecado, foi transformado em senhor delas todas,
pela morte de Cristo; significa que foi destruído o aprisionamento causal, que fez
da criatura mero elo de imensa cadeia; agora, como indivíduo, pela graça em
Cristo, (que veio para apagar1 a transgressão de muitos) o homem está sob a lei
da liberdade que, como sua nova e inalienável característica, é idêntica à lei da
vida que caracteriza o reino de Deus. (5, 18).
278
O Mundo Novo
5, 18-19
tica do “mundo novo” que, todavia, aponta para a maior excelência da graça e
para a sua dádiva: a vida eterna].
Vs. 18 e 19 É neste sentido que se diz: assim como pela queda deste um, veio a
morte para todos, assim também, pela justificação deste outro, veio, para todos,
a vida, porquanto, assim como pela desobediência de um muitos pecaram,
também pela obediência de um, muitos serão justificados.
“Pois assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens, para
condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os
homens, para justificação, que dá vida. Porque, como pela desobediência de um
só homem muitos se tornaram pecadores, assim também, pela obediência de um
só, muitos se tornarão justos].
Depois de havermos tornado claro (5, 13-14) que o “pecado”, como fator
dominante da conjuntura do “velho” mundo, tem o mesmo caráter original,
invisível e objetivo da “justificação” que se lhe opõe e, após nos havermos
certificado ainda de (5, 15-17) que o conflito mundial, que assim se desvenda,
somente pode surgir como um movimento que: vindo da queda é absorvido pela
reconciliação com Deus; vindo da morte, desaparece na vida; vindo do cativeiro,
é suprimido pela redenção, — estamos em condição de, sem risco de sermos mal
compreendidos, completar a analogia que propusemos mais atrás.
Adão, é o antigo sujeito; ele é o “EU” (o Ego) do homem neste mundo; este “eu”
caiu, usurpando para si o que é de Deus, para viver em sua própria glória. Não
foi uma ação individual, (única), histórica; antes, trata-se de ação que sempre
pré-existiu; que, em última análise, emerge inevitavelmente do mistério da
rejeição divina; do desagrado de Deus, que é donde procede a determinação de
toda a história da humanidade.
279
5, 19
O Mundo Novo
Junto com esta justificação e diretamente por ela, foi criado o homem
“novo”, o eterno “sujeito” de todos os homens (5, 18) pois, “pela obediência de
um”, muitos serão justificados (5, 19).
280
O Mundo Novo
5, 20-21
Neste “um justo”, os “muitos indivíduos” são iluminados e expostos aos olhos
de quem quiser ver: tu, e eu, somos expostos como justificados perante Deus;
como contemplados e reconhecidos por Deus; como fundados em Deus; estamos
entre os que Deus chamou a si.
Não há uma pessoa sequer que, exposta à luz da obediência, em Cristo, não
esteja nele; não há um só que não seja o “novo” sujeito trajado em justiça, e por
isso libertado e confirmado por Deus.
Vejamos bem como está escrito: [“Hão de ser justificados”; “não há justo”;
“reinarão em vida”] (2, 13; 3, 10; 5, 17). Não nos esqueçamos pois que
“tu” e “eu” ainda não somos, mas seremos. A nossa relação positiva com Deus
está sob a égide da esperança; estamos apenas na soleira, mas aí estamos: este é
o mundo “novo” a cujo encontro vamos reiteradamente.
Vs. 20 e 21 Sobreveio a lei para que avultasse a ofensa; mas onde abundou o
pecado, superabundou a graça, a fim de que, como o pecado reinou, soberano,
pela morte, assim também a graça reinasse, soberanamente, pela justiça, para a
vida eterna, mediante Jesus Cri sto, nosso Senhor:
Mais uma vez recorremos à noção da lei: concluímos mais atrás que o pecado
invisível se impõe como poder, (pela morte), mesmo onde não há lei; agora
queremos mostrar que, onde há lei, o pecado se torna visível.
A lei não é uma terceira grandeza, que se poderia situar entre as duas
determinantes do mundo: “Queda” e “Justificação”, ou “Desobediência” e
5, 20
O Mundo Novo
quem sabe não teríamos até mesmo, calcado algumas evidências que acaso
surgissem?
ção, na vida; todavia, não é a lei que traz a religiosidade? Onde, pois,
colocaremos o homem religioso no contexto do ingresso ao mundo “novo”?]
Não teria o nosso relacionamento com Deus, “em Adão” ou “em Cristo”, o seu
lado subjetivo, humano?
pelo “novo”, conforme acabamos de ver, não existiria [quiçá também em Cristo,
e justamente nele] uma outra possibilidade visível neste mundo, e que se
expressasse na forma de religião?
Não há, para o crente, para o homem pleno de esperança e amor, para o homem
temente a Deus, um meio de, por sua fidelidade, postar-se também na soleira do
reino de Deus? Não poderia ser concedida semelhante graça ao homem alerta
que aguarda, que corre, que ouve, que vê, que está ativo e pronto para dar o
passo ousado, para frente; que é fiel no pouco; que medita; que trabalha “na
causa”, que ora? Não poderia ser concedida à pessoa que é aben-
çoada por Deus neste mundo e que se entrega entusiasticamente a sua obra, o
privilégio de ficar na “soleira”, junto com os que estão às portas do reino de
Deus mediante a justificação pela fé? E, se não, para que serve a religião na
história do mundo? Na verdade, onde houver religião já não deveria estar
transposta a soleira da entrada ao “novo mundo”?
Já não deveria estar, [pela religião — a mais pura, a mais sublime, a mais
perfeita] claramente definida a posição das “conchas” da ofensa e da
justificação, na balança dialética, sob o vigor de uma sadia humanização divina
ou divinização humana, que a religião proporcionasse?
Ao homem (tão santamente) religioso, não poderia ter sido dado, desde já, pura e
simplesmente, um pedacinho só, que fosse, do “novo” mundo?
É certo que o relacionamento com Deus tem também o seu lado humano,
subjetivo, histórico.
Jamais será por demais apreciado e reconhecido que existem homens religiosos
[piedosos]; que o caráter formado pela religião, o pensamento 282
O Mundo Novo
5, 20
A religião é uma das maneiras de que Deus se serve para preparar o homem para
fazer a conversão do seu caminho, e também para acompanhá-lo depois dessa
mudança de rumo; é pela religião que Deus leva o homem —
A religião [e ela é uma expressão da lei,] é uma grandeza de sentido duplo que
flutua entre o céu e a terra, tremeluzindo, furta-cor, entre a maior das promessas,
e o seu mais duvidoso cumprimento. Ela parece ter a possibilidade de cumprir o
seu intento: possuir a Deus e estar em sua presença; ela parece conter,
efetivamente, o teor que pretende e que afirma possuir; o teor que almeja e pelo
qual luta: a justificação e a vida. “Vós recebestes a lei pelo ministério dos anjos”.
(Atos 7, 53).
Portanto também a lei tem a sua origem invisível em Deus, — e a nós compete
pesquisá-la. (3, 31).
283
5, 20
O Mundo Novo
A possibilidade divina da religião jamais será uma possibilidade humana; talvez
resida aí a relativa justificação da crítica que se possa fazer à religião.
Não há como fugir dessa luz crepuscular, nem para Arão e Moisés, nem por
qualquer experiência religiosa, desde a mais elementar até a mais sublime.
Qual é a afirmação solene de que “conosco” ou que “ali” e “acolá” “não se pensa
assim”, que poderá afastar basicamente, e com autoridade, o lusco-fusco dessa
interpretação errônea? Quem pode apresentar uma forma [ou fórmula] religiosa,
segura?
O respeito e a admiração que a religião [ou uma religião] merecer neste mundo
não deve obliterar a visão real de que qualquer absolutismo, transcendentalismo,
e ligação direta com Deus, (atribuídos à religião) são ilusórios, fúteis, irreais.
O Mundo Novo
5, 20
É somente no homem religioso que vem à tona que o ser humano é carnal e
pecaminoso; que ele é um obstáculo a Deus, que está sob a ira divina.
Este é, pois, o lado subjetivo do relacionamento com Deus, conforme visto pelo
homem.
Livre do sonho de Jacó, Esaú também ficou livre da mentira dele, [Isto é, Esaú
não sonhava, todavia, também não mentia!].
Ser profeta e sacerdote, teólogo e filósofo, crente, ser caridoso e ter esperança,
visto e apreciado como possibilidade humana, significa apenas frustração ante a
impossibilidade de alcançar por esse meio a justificação divina.
Como tal é um trabalho vão e uma aplicação inútil de nossas forças, ainda que a
obra seja do Senhor e para o seu reino. (Isa. 49, 4) — São bolhas e chagas em
que irrompe o mal de todos. Quem espera por outra coisa, não sabe o que é lei,
religião, eleição e vocação; então é melhor que cuide de algo diferente.
[3, 20]. É justamente aí [onde o homem sente a presença de Deus] que o seu 285
5, 20-21
O Mundo Novo
É, pois, preciso que até a última realidade seja destruída; que a catástrofe atinja
também (e precisamente) a possibilidade mais esperançosa e promissora do
homem, a sua religião, para que o grande “NÃO” se transforme no
É nisto que consiste o direito à reivindição que a lei busca e que a religião
proclama.
“Quando ele der a sua vida em holocausto, pelo pecado, então terá posteridade, e
prolongará os seus dias, e a vontade do Senhor prosperará em suas mãos. Pelo
trabalho penoso de sua alma, ele terá prazer e satisfação; e com seu
conhecimento, o meu servo — o justo — justificará a muitos, porque as
iniquidades deles levará sobre si”. (Isa. 53, 10-11).
5, 20-21
Cristo nascido em Atenas, não teríamos a garantia tão régia da soberania da gra-
ça” (Zahn), pois o pecado precisa abundar, para que a graça seja super-
abundante; para que, “como o pecado reinou, soberano, pela morte, assim
também a gra-
O “novo” mundo, sobre cuja soleira estamos como “novas” criaturas, é o Reino
de Deus; é o seu Domínio, e a esfera de seu poder. Aqui é somente Deus quem
elege, quer, cria e redime.
Foi para tornar bem evidente a legitimidade do movimento que, desde Adão, vai
para Cristo, que, associando e confrontando igual em igual, colocamos a
possibilidade religiosa como a derradeira e a maior delas, sobre este
denominador comum: “a soberania do pecado, pela morte”, para então
confrontarmos o “todo igual” com o seu “totalmente diferente” e oposto na
graça, que “reina soberanamente, pela justiça, para a vida eterna, mediante Jesus
Cristo, nosso Senhor”.
Vimos o velho mundo como um círculo fechado, contínuo, sem brechas, por
onde pudéssemos escapulir. E por isso que compreendemos à luz que vem da
ressurreição de Cristo entre os mortos, qual (a força) e o sentido do dia que se
aproxima: o dia da “nova” criatura e da “nova” terra.
Comentários: 5, 1-21
1. Pelo extenso tratamento que o A. dispensou ao tema, pareceu-me mais
conveniente deixar para o fim um comentário que me ocorreu ao interpretar o
pensamento de Barth sobre o “pecado original”.
Talvez pudéssemos sintetizar o seu pensamento sobre este assunto como segue:
A origem do pecado, a fonte de todo o mal, e que se paga com a morte, não é,
precisamente, a exteriorização da rebeldia do homem, mas a sua primeira
inclinação de voltar as costas a Deus.
Essa inclinação não é material e, por isso, não se transmite por herança física,
mas é espiritual e teve lugar “em Adão” em quem essa inclinação está “a
disposição” do ser humano, da mesma maneira que a reconciliação com Deus
está, permanentemente “a disposição” dos homens.
287
5, 1-21
O Mundo Novo
Porém, como o ponto onde o pecado se ancorou, para que os homens pudessem
servir-se dele, como Cristo foi o ponto onde a graça se fixou para que os homens
pudessem recorrer a ela.
Adão foi o ponto onde surgiu o pecado fundamental, o pecado básico: a decisão
do homem de usurpar para si as qualidades divinas; mediante essa resolução, o
homem ficou, não apenas “psicologicamente” condicionado para praticar o
pecado, como também, e conseqüentemente, possuído do sentimento de culpa
que o leva a fugir de Deus e a esconder-se dele.
Então entra o homem em círculo vicioso: quanto mais peca, mais foge e, quanto
mais se afasta, mais transgride.
Todavia, pelo pecado, pela queda, o “homem velho” e o seu mundo tendem a
fugir — a se afastar de Deus.
Ora, são esses mesmos fatores, esses mesmos “agentes” que, pela graça, pela
justificação divina, trazem o “homem novo” e o seu mundo, de volta à presença
de Deus pela mediação de Jesus Cristo.
288
Capítulo VI
A GRAÇA
“Que mais diremos?” Numa relação dialética rigorosa vemos juntos, Adão e
Cristo, mundo velho e mundo novo, a soberania da morte e a soberania da graça;
uma em oposição à outra, garantindo-se e se legitimando nessa polarização.
289
6, 1
O Poder da Ressurreição
Tudo depende de provarmos que esta “vitória” [do segundo elemento sobre o
primeiro,] que a irreversibilidade do argumento dialético, que [o giro de cento e
oitenta graus] o retorno no curso da vida, é absolutamente necessário
[e incontornável].
[Em primeiro lugar] caracterizamos o momento crítico em que Deus, por sua
divina deliberação, faz girar a chave e abre a porta que dá acesso à soleira do
“mundo novo” com uma frase ousada: “Onde abundou a transgressão, a graça é
superabundante”. (5, 20). Com esta frase enfeixamos na mesma conjuntura
valores polarmente opostos: o cúmulo do pecado com o apogeu da graça. Saulo e
Paulo.
Esta posição se impõe forçosamente, pois “Cristo não pode ser silenciado pelo
fato de ser ‘pedra de tropeço e rocha de escândalo’ para muitos; porque as
mesmas qualidades que significam a ruína para os que não crêem, representam a
ressurreição para os que crêem” (Calvino).
e este precisa voltar sempre ao “NÃO”, pois de outra forma morreriam; que
todas as coisas podem ser valorizadas tanto como positivas quanto como
negativas, inferindo-se da afirmação tudo mais que a generalização da
proposição possa sugerir.
[Se assim fôra] então estaria certo o dito: “Permaneçamos no pecado para que a
graça seja maior!”
290
O Poder da Ressurreição
6, 1
Conseqüentemente o pecado que, para Deus, tem que ser combatido, suprimido,
cancelado imediatamente após o seu aparecimento, para o homem passa a ser um
fator positivo, um meio útil, um caminho, um trampolim [um pretexto] para dar
lugar à graça [a fim de que ela seja superabundante].
Esta é a mesma lógica humana que já encontramos em outro lugar (3, 3-5):
6, 1-2
O Poder da Ressurreição
o Deus deste mundo que retrata, como em espelho, a imagem do homem com ele
identificado!
“IMPOSSÍVEL”!
O Poder da Ressurreição
6, 3
Agora, Deus ignora o que realmente somos no mundo! Se entramos para a graça,
então Deus nos conhece como “não pecadores”. O pecado, como condição
obrigatória de nosso saber e querer é assunto passado, ultrapassado, liquidado.
“Morremos para o pecado”. Já não brotamos dessa antiga raiz; não inalamos
mais o seu ar, e não estamos mais sujeitos ao seu poder. “Como poderemos
ainda, viver no pecado?”
O que é feito do invisível condicionamento de nosso saber e querer? [Se ele foi
suprimido, se foi “devorado” pela graça], como nos prestaríamos a ser agora, em
nossa existência, o teatro do pecado visível? Sim, como?
6, 2-5
O Poder da Ressurreição
Ora, tanto a graça como o pecado são grandezas incomensuráveis que não
podem ser aproximadas uma da outra, como se fossem duas estações ferro-
viárias, ou dois elementos de uma série causal: não podem ser comparadas como
os dois focos de uma elípse, dois conceitos de um argumento, ou dois predicados
de um mesmo sujeito. Matematicamente falando, nem sequer são quais pontos
em planos diferentes, mas são quais pontos situados em espaços estranhos entre
si, nos quais um exclui a existência do outro.
Quem goza da graça não conhece o pecado e não o quer; quem goza da graça
não é o pecador, pois entre os dois [entre o pecador e o não-pecador]
“Justificação é o ato divino que não deixa o homem conforme ele é, porém, o
transforma completamente” (Fr. Barth).
Vs. 3 a 5 Acaso não percebeis que se fomos batizados em Cristo Jesus, fomos
batizados em sua morte? Fomos, pois sepultados com ele pelo batismo da morte
para que, assim como Cristo foi ressuscitado entre os mortos, pela glória do
Pai, também nós andemos em novidade de vida. Porquanto, se formos
aparentados com ele na semelhança de sua morte, (a sabe, em nossa morte),
também o seremos na ressurreição.
294
O Poder da Ressurreição
6, 3
Também a redenção em Jesus Cristo (3, 24) é um fato que pertence à realidade
do mundo. Esta realidade histórica, (para todos os que crêem! (3, 22, primeira
parte)) é a testemunha da existência do seu conteúdo eterno: — [A obra
redentora de Deus!]
Assim também o batismo, como ato que não se repete, (e justamente por isso) é
um sinal.
Um sinal e simplesmente um sinal; bem o sabemos. Mas por que não teria ele
algo a nos dizer? “Os sinais somente são vazios e inoperantes quando a nossa
ingratidão e a nossa malignidade obstruem o fluxo da verdade divina” (Calvino)
isto é, quando nos privamos de sua verdade, identificando-os com alguma coisa
material, quiçá diluindo-os em atividades eclesiásticas vazias (piedade não tem
conteúdo!) ou então, quem sabe, dando à verdade do sinal a conotação de
alguma experiência religiosa — a ser associada com ele: por exemplo, “a
experiência do batismo”! Ou então, poderia alguém atribuir ao sinal, um poder
mágico ou, mais racionalmente ainda, emprestar-lhe valor ou sentido mais
profundo de mito cristão no caos da vida, a ser guardado para nosso bem, [para
nossa proteção].
O A., parece-me ainda, quer dizer que assim como a fidelidade de Deus é a
geratriz da fé, de tal forma que o justo, que vive pela fé, vive pela fidelidade de
Deus, assim também a obra de Deus na morte sacrificial de Jesus Cristo, é a 295
6, 3
O Poder da Ressurreição
Cristo morreu por nós e ressurgiu para que nós, morrendo em Cristo, ressurja-
mos para Deus.
Fidelidade e fé; morte e ressurreição de Cristo; nossa morte para o mundo e vida
para Deus].
Se o batismo for tudo isso para nós, por que não haveria de ser ele o bastião de
onde arranquemos para a nossa primeira sortida contra o mundo temporal e
material?
Ora, sabemos que se trata efetivamente da graça divina quando vemos sensatez
na insensatez (4, 16); [é a graça de Deus que concede o teor sensato a nossa
insensatez]. Sabemos também que [a percepção], o acolhimento e a aceitação da
sensatez na insensatez do mundo religioso visível somente é possível pela fé,
[pois Deus não se comunica com o homem “diretamente”, (mas apenas pela fé)].
Sabemos ainda que esta dupla delimitação [a saber: a certeza de que somente
“pela graça” e “pela fé” podemos discernir o que é sensato na insensatez] é
também a crítica imanente e o cerceamento inevitável de nossa vocação
Quem sai da água do batismo já não é aquele que nela entrou; não é o mesmo.
296
O Poder da Ressurreição
6, 3
O que entrou, morreu; o que saiu, nasceu. O “batizado já não é idêntico ao que
está morto, pois o batismo testifica a morte de Cristo na qual triunfa a inexorável
vindicação de Deus sobre o homem.
Quem foi batizado em Cristo é “incorporado” nesse evento; quem foi batizado
em Cristo desaparece, é extinto nessa morte; é tragado e absorvido pela
reivindicação divina. Por isso o “batizado” fica desapegado, livre, cortado fora
da ilusão e da insolente tendência de fazer-se semelhante a Deus, pois o que resta
ao homem, em face da cruz? Ele perdeu a sua identidade como indivíduo que
“quer e conhece” o pecado pois “aquele sobre quem o pecado tem poder”,
morreu, (6, 2 e 7). Por isso ele está livre desse poder e de sua fatalidade.
A morte de Cristo suspende [anula] — a queda; ela cria o vácuo onde não medra
a pretenciosa auto-suficiência humana.A morte de Cristo ataca a oculta raiz do
pecado invisível; ela transforma Adão — o homem do “Não-Deus” — em um
ser do passado; portanto, o homem interessado em persistir no pecado (6, 2),
desejoso de fazer-se igual a Deus, já não vive mais para além da morte batismal.
Não há lugar para o “idealismo de ganhar o céu por assalto” (H. Holtzmann)
pois o resultado do batismo é justamente o fim de qualquer entusiasmo
semelhante. (No batismo o homem inicia “oficialmente” a sua carreira cristã;
pode e deve fazer dele a base de partida para o “bom combate”; todavia, o
“combate”
será feito com humildade, com “temor e tremor”; não será, nunca, um combate,
ainda que idealista, para ganhar o céu, porém será combate esperançoso e pleno
de fé para buscar o reino de Deus e a sua justiça. A participação do crente, nesse
combate, será acompanhada, ou melhor, será precedida por sua genuína auto-
renúncia, no esvaziamento de si mesmo.
“criatura nova”, é o “homem velho” que imergiu e foi sepultado com Cristo].
297
6, 3-4
O Poder da Ressurreição
“Fomos sepultados com ele pelo batismo da morte para que, assim como Cristo
ressurgiu de entre os mortos pela glória do Pai, também nós andemos em
novidade de vida”.
[Esta morte que vem de Deus ameaça, solapa, destrói a morte — moeda do
pecado; ela é dirigida contra todas as negações humanas, negando-as pela
redenção em Cristo].
O poder de negação que a morte de Cristo representa, vem desde a eternidade. A
morte de Cristo é a última palavra dirigida ao ser humano; é anjo
Esta morte, porém, não será Graça se ela tiver um significado apenas relativo [e
não radical, total, absoluto]; não será Graça enquanto representar apenas crítica
ao nosso mundo, ou mesmo oposição, revolta contra ele. Esta morte não será
Graça se ela for [apenas pretexto] para a ampliação das possibilidades
(negativas!) do mundo como, por exemplo, pelo ascetismo, o “retorno à
natureza”, a “adoração silenciosa”, a “morte mística”, o nirvana budista, o
bolchevismo, o “dadismo” [apelo ao subconsciente segundo Tristan Tzara, poeta
de 1916] e coisas semelhantes. Esta morte não será a Graça enquanto ela não
alcançar, não atingir o homem, fundamentalmente, em todas suas ações e
atividades; enquanto ela não promover e efetivar a negação do homem terreno e
de todas suas possibilidades. (“Sepultados com ele!”).
Quando a morte [em Cristo, expressa no batismo] tiver este sentido radical,
então ela se torna verdadeiramente eficaz; então a crise, o fim, o som da 298
O Poder da Ressurreição
6, 4
Não é precisamente o apelo patético do poeta: “Morri, morri, na Cruz por ti, que
fazes tu por mim?” que desperta o sentimento de carência, mas é a opção
tica da existência e a crise que esvazia o conteúdo material da vida que vivemos
“em Adão” a cujos valores e interesses, como homens terrenos, nos apegamos
com tanto carinho. Contudo, o despojamento, a privação que a opção da Cruz
impõe ao homem velho não se transfere ao homem novo, antes é exatamente esta
299
6, 4
O Poder da Ressurreição
Por outro lado, também está absolutamente claro que a necessidade coercitiva
que sinto de “andarem novidade de vida” é uma realidade motivada pelo poder
da ressurreição, e que nada tem a ver com qualquer acontecimento histórico,
nem tem qualquer relação com acontecimentos passados, presentes ou futuros de
minha vida. Antes, essa força coerciva é a licença, a autorização, a obrigação e a
vontade do meu novo “eu”, criado em Cristo; é a confirmação da minha
“cidadania no céu” — (Filip. 3, 20); é a minha vida oculta em Deus (Col. 3, 3),
rediviva em Cristo Jesus. Este “andar em novidade de vida” é o meu panorama
invisível, o meu alvo, a crise que o meu ser finito percebe por aquilo 300
O Poder da Ressurreição
6, 4-5
Este “andar em novidade de vida” passa a ser o sentido da minha vida temporal,
do meu pensamento e da minha vontade e, concomitantemente, é o elemento de
crítica a essa conduta.
À medida que o impossível se torna possível e sou sepultado com Cristo então,
como aquele que não sou, consigo me apropriar do sentido dessa nova vida e da
crítica, nela implícita, ao meu presente modo de sentir, querer e viver, (e isto em
contradição a tudo quanto [neste mundo] de fato sou;) então estou
verdadeiramente “morto para o pecado” (6, 2). Na invisível “novidade de vida”
na qual, para honra de Deus, agora peregrina a “nova criatura”, já não há mais
lugar, nem luz, nem ar para a permanência do pecado, assim como a morte já não
pode subsistir ante a glória do Pai, manifesta no despertamento de Cristo, de
entre os mortos.
Sempre há de arder de novo em nossos corações a pergunta se, de fato, podemos
ousar e se realmente ousamos (5, 1 e 6, 11) contar com esta impossí-
vel possibilidade da “nova criatura”. Porém, não resta a menor dúvida de que
esta impossível possibilidade exclui a possível possibilidade do pecado.
[Muitas são as formas pelas quais podemos contribuir para nossas pró-
301
6, 5
O Poder da Ressurreição
É por tudo isto que o sinal do batismo é uma recordação de nossa comunhão
invisível com Deus (6, 3).
Qualquer outro relacionamento com Cristo [fora da morte com ele, sim-bolizada
no batismo], qualquer forma de união com ele, qualquer maneira de seguir a
Cristo, que não seja carregando a cruz, não existe no campo das realidades
histórico-espirituais. Não existe qualquer maneira positiva de alguém se amoldar
a Jesus, de andar em conformidade com ele, sem ser pela aceitação da sua cruz.
A nossa união visível com Cristo (e que se manifesta e é visível ao reflexo de sua
morte na cruz) está na condição e na situação do ser humano no mundo; é
idêntica, acima de tudo, à incurável problemática da existência humana. Estamos
(e quem não estaria conosco?) sob os umbrais da porta estreita onde se descerra
a verdade de que, quem nos julga, é um juiz bondoso, santo, misericordioso.
Olhamos, (e quem não olharia também?) desde a nossa união com Cristo, em
corruptibilidade, desonra e fraqueza, para a nossa união invisí-
6, 5-7
A conformidade positiva com Jesus é dada pela nossa vida abrigada em Deus,
com Cristo, a qual agora e aqui [neste mundo] só pode ser encarada como o
“futuro eterno”, e nada afora isto. Mas, isto basta; a saber: a graça de Deus nos
basta. (II Cor. 12, 9). O “homem novo” SERÁ e é criado por obra divina, e [este
homem], como “nova criatura” que é, está livre do pecado.
Vs. 6 e 7 Sabemos isto: Nosso homem velho foi crucificado com Cristo para que
fosse suprimido o corpo do pecado, para que não precisássemos mais servir o
pecado. Porquanto, quem morreu foi declarado livre do pecado.
[Ou, segundo Almeida: “Sabendo isto, que foi crucificado com ele o nosso velho
homem, para que o corpo do pecado seja destruído e não sirvamos o pecado
como escravos; porquanto, quem morreu, justificado está do pecado”].
Vemos a nossa união com Cristo na semelhança da morte na cruz com a nossa
fraqueza, com nossa relatividade, e com a profundidade de nossa crise (6, 3-5).
Esta introspecção transforma-se em visão panorâmica.
303
6, 6-7
O Poder da Ressurreição
Vemos esse “homem velho” e contamos com ele da mesma maneira na qual
contamos com o mundo temporal, o mundo das coisas e dos homens; aceitamo-
lo tão naturalmente quanto a existência de nossa vida terrena, com toda a
somatória dos elementos que a compõem. E que neste mundo não existe senão o
“homem velho”. Todo pronunciamento que se fizer, toda ponderação e toda a
consideração sobre a existência e o valor do homem, tratarão sempre e,
exclusivamente, do “homem velho”.
Todo sujeito “eu” (se o “eu” não for suprimido e cancelado com a ressalva: “não
eu, mas Cristo que vive em mim”... será sempre o “homem velho”, por mais
amplos que sejam os predicados que forem atribuídos a esse sujeito, quer sejam
eles entraves, nobilitações, rebaixamentos ou exaltações.
Que posição é esta? Que dinâmica é esta, que me situa tão irresistivelmente, tão
imperiosamente, em círculo fechado? Que movimentação é esta que me permite
apreciar este “Ego”, separado, estranho, como um “X” posto em evidência,
como grandeza separada da “expressão” do “homem velho” para ser transposta e
isolada do outro lado da igualdade?
A resposta é: nosso “homem velho” está crucificado com Cristo.
Eu vejo o homem velho, o único que conhecemos, julgado em Cristo e, por mais
alto que seja o seu valor ou a sua possibilidade, vejo-o abandonado à morte e
inequivocamente destruído; posto, desde a sua origem, em nítido contraste com
o “homem novo” justificado por Deus e por ele vivificado. E, pois, neste
julgamento, neste abandono, nesta supressão e contraposição em que me vejo,
que deparo (com o que é invisível!), com o outro lado, com este “X” que
também me identifica. Este “X” é o ponto de onde sou conhecido e rejeitado
como o “homem velho” e que, por isso, é para mim um ponto favorável;
portanto o “X” tem que ser [só pode ser], positivo.
Este “X” invisível e positivo, relacionado com a morte que Cristo sofreu por
mim, na cruz, na qual eu morro com ele, é, pois, o ponto no qual se dá a excelsa
passagem do “homem velho” para o “homem novo”.
O Poder da Ressurreição
6, 6
de [alguma coisa dinâmica] uma ave em pleno vôo: um movimento que não
aparece em determinada fotografia nem em qualquer delas [porém está em seu
conjunto]. [Assim, comparando-se as posições sucessivas, pode-se observar o
movimento que leva ao “X”].
“Para que fosse suprimido o corpo do pecado”. Corpo quer dizer também “vida”,
“pecaminosidade”, “pessoa”, “indivíduo”, “escravo”.
O pecado tem corpo, isto é, ele tem existência concreta, esfera de influência,
base de ação, tem substrato. O pecado tem existencialidade, expansão,
autosuficiência, substância e atividade no mundo temporal das coisas e dos
homens.
por isto que foi feita a pergunta se haveremos de continuar vivendo em pecado,
isto é, se podemos continuar a viver querendo essa materialização do pecado e
participando dela (6, 1).
Enquanto eu viver no corpo, portanto, enquanto eu for quem sou, sou também
pecador, e a minha permanência no pecado, (6, 1) a minha vida nele (6, 2) é,
basicamente, natural e necessária.
material e — humano. Contudo, é por isto, e nisto, que sou o “homem velho”
6, 6
O Poder da Ressurreição
“nova criatura”, não sou mais eu quem vive neste “ser” caracterizado pelo que é
temporal, material, humano.
A supressão invisível deste corpo que se tornou perceptível para nós com a
crucificação do “homem velho” (também aqui com o sentido de FUTURUM
Desaparece o elemento o qual dava vida ao pecado que, agora, fica fora de seu
ambiente como “peixe fora d’água”; o pecado passa a ser nota dissonante na
sinfonia nova.
(Como aquele que ainda não sou), fui posto em liberdade pois, sobre a
“nova criatura” o pecado não tem poder! E não tem poder porque o corpo desta
O Poder da Ressurreição
6, 7
unido com Cristo pela ressurreição (6, 5), não é aquele “qual eu sou”, que sabe o
que eu sei, e quer o que eu quero; este novo homem [que acaba de ingressar no
mundo material em substituição ao que morreu para o pecado, junto com Cristo,
na cruz], é incapaz de divinizar o homem ou de humanizar a Deus, coisas de que
fui, sou e serei, inevitavelmente, culpado, tanto no passado, como no presente e
no futuro.
O “homem novo” (que veio do “homem velho”), vive do perdão do pecado; vive
da persistente libertação forense pronunciada por Deus; ele vive da própria
possibilidade de vida dada por Deus (o que nos parece impossível).
Deste homem novo que entra transformado para a história, (e também de mim na
medida que, pela graça de Deus, ele e eu somos um) sim, de “nós”, o pecado não
receberá alento. A nossa existência, o nosso comportamento, o nosso intelecto,
não dará lugar ao pecado; não o alimentará; antes, no que depender de nós, ele
morrerá à mingua, ficará desnutrido, solapado, será encarado com ceticismo.
Por ele e por mim, a página do livro pode ser virada para o início [de um novo
capítulo, quiçá], de uma nova história.
[já agora] eu não sou, isto é, na qualidade do “homem novo”, não posso sequer
contar com a possibilidade dessa “inevitabilidade”.
6, 7-11
O Poder da Ressurreição
É pela graça da minha redenção, pelo fato de eu haver sido reinstalado, pela
adoção divina, no estado pré-pecaminoso da raça, graça pela qual sou um
“homem novo” que vive para Deus, não posso sequer admitir a possibilidade de
“novamente” pecar, conforme era meu comportamento quando eu vivia em
Adão.
Todavia, ainda não estou liberto do “corpo desta morte” e continuo peregrinando
na forma de “homem velho” e pratico o pecado que não quero. Sou os
Estou na soleira do reino dos céus; talvez não esteja mais com um pé para fora,
mas também não estou com um pé para dentro. Antevejo o Reino dos Céus e, na
esperança, espiritualmente, gozo (ou antegozo) de sua cidadania; mas estou
carnalmente atado ao reino deste mundo e, portanto, estou materialmente sujeito
ao seu soberano: — O pecado!].
Vs. 8 a 11 Se morremos com Cristo cremos que também viveremos com Ele.
Sabemos que Cristo , havendo ressuscitado entre os mortos, não morre mais; a
morte já não tem poder sobre ele, pois sua morte foi a morte para o pecado, que
ocorreu uma vez por todas. Sua vida, porém, é vida para Deus. Assim,
considerai-vos, a vós, também mortos para o pecado e vivos para Deus, em
Cristo Jesus.
“Se morremos com Cristo cremos que também viveremos com ele”.
308
O Poder da Ressurreição
6, 8-11
Contudo, é preciso ficar muito claro que a negação que a crucificação a morte e
o sepultamento do pecador representam é uma conseqüência do divino
“SIM”, para que não compreendamos mal o que ficou dito sob 6, 4. A força viva
que domina essa negação — [e que se fundamenta no “SIM” de Deus, na sua
aceitação do homem para reconciliá-lo com ele, em Cristo] é um poder que
cancela todo o “SIM” e todo o “NÃO” do mundo; ela extingue a diferença
existente entre “aquém” e “além”; ela faz desaparecer a correlação “tanto...
A fé é o passo inigualável que, uma vez dado, é irreversível; não pode mais ser
desfeito; é o passo com o qual o crente transpõe a linha da divisa existente entre
a velha e a nova criatura, entre o mundo velho e o mundo novo.
Para quem crê acontece o passo inigualável, dá-se o retorno que já não pode 309
6, 8-9
O Poder da Ressurreição
mais ser desfeito e que, mais do que essa irreversibilidade, sequer permite que o
ser [assim reconciliado com Deus], volva os olhos para traz.
— Em que cremos, pois, se a nossa fé, à luz do momento crítico, à luz da cruz de
Cristo, não for apenas aparência, mas realidade; não for apenas vacuidade,
porém fidelidade divina?
— Cremos que Cristo morreu em nosso lugar e, portanto, nós morremos com
ele. Cremos em nossa identidade com o “homem novo” que surge além da morte
na cruz; cremos em nossa existência eterna, baseados no conhecimento que
temos da morte, sabendo que nossa vida está fundamentada em Deus, pela
ressurreição. Cremos que “viveremos com Ele”! Cremos também em nós
mesmos, como sendo o “sujeito” invisível deste “FUTURUM
RESSURRECTIONIS”.
Esta fé, com todos os entraves que lhe são inerentes, com todas as reservas e
com todos os sinais de interrogação e exclamação que comporta, é a
“nossa”fé!
Esta nossa fé, inteiramente estranha à psicologia usual, é justamente o que torna
impossível admitir a existência do pecado junto com a graça. “Se crês, tens”! se
cremos estamos desvinculados do pecado.
“Sabemos que Cristo, havendo ressuscitado de entre os mortos, não morre mais;
“a morte já não tem poder sobre ele”.
ência perante Ele; a distância intransponível que nos separa de Deus; a nossa
situação não apenas lastimável mas totalmente perdida pela suserania do pecado
em nossa vida e pela nossa sujeição irrecorrível à lei da morte. E isto o que
ousamos saber, juntamente com Deus e “ousamos” apenas pela fé; nunca
diretamente, pois de outra forma seria arrogância nossa, a manifestação da
milenar tendência da raça de se comparar com Deus, de se igualar a ele.
Todavia, mediante nossa reconciliação com Deus, em Jesus Cristo, Ele nos
perdoou cabalmente; transformou nossos pecados, vermelhos como o escarlate,
na alvura da mais branca lã; perdoou, transformou, esqueceu! (Heb.
10, 17). “De nenhum modo me lembrarei de seus pecados”. Ainda pela fé, 310
O Poder da Ressurreição
6, 9
reconciliado com Deus, o homem “ousa” ignorar os seus pecados, como Deus,
SPONTE SUA, resolveu ignorá-los e de fato os ignora].
Crer significa parar, calar, adorar, ignorar. [Pela fé], a diferença qualitativa entre
Deus e os homens torna-se inconfundível.
É evidente que tudo isto não foi imaginado, nem pode ser interpretado, como
resultante de obras, recursos ou possibilidades humanas.
Este sentido peculiar, visível, da vida de Jesus, que só pode ser definido e
descrito pela supressão de todas as possibilidades humanas, estabelece
declaradamente um ponto central invisível do qual irradia esta crise — [a da
supressão de todas as possibilidades humanas]: é um “impossível” — [uma
O sentido visível da vida de Jesus não pode ser apreendido sem a manifestação e
a contemplação da glória de Deus, que se consumou em Jesus, no despertamento
de Cristo de entre os mortos.
O juízo que Cristo toma sobre si, é justificação; a morte que ele padece, é vida; o
“NAO” que ele anuncia, é “SIM”; a reação para com Deus, que Cristo
desencadeia, é a redenção.
311
6, 9
O Poder da Ressurreição
que envolve, delimita e para o qual apontam todos os demais eventos nela
havidos, quer tenham ocorrido antes, durante ou após a culminância pascal.
Se assim fôra, então, evidentemente, já não seria mais Deus somente, que entra
em cena e tem a palavra na inversão do caminho de Cristo para a cruz; na
instauração do Jesus invisível em contraposição ao crucificado. Nesta hipó-
6, 9
Todavia, não é isto o que acontece, nem é hipótese que se possa imaginar com
seriedade.
Mas não há porque nos preocupemos com este aspecto que se poderia dar à
ressurreição, pois toda a ameaça que o mundo faz ao Cristianismo através da
história, ocorre, indubitavelmente, quando o Cristianismo passa a ser parte da
história; quando ele se transforma em temporal, mundano; quando graças a
traição dos teólogos, pelos mais extensos e ínvios rincões, ele perdeu a noção de
que a sua verdade não deve ser buscada apenas além do NÃO, além da morte,
além do homem, porém para além da possibilidade de, sequer, contrastar o
“SIM” e o “NÃO”, vida e morte, Deus e o homem; para além de qualquer
possibilidade de colocar Deus e o homem lado a lado ou de jogar um contra o
outro, pois este é o significado da ressurreição de entre os mortos: “Por que
buscais entre os mortos, ao que vive’?” [Mat. 24, 5].
313
6, 9
O Poder da Ressurreição
neste mundo, ele deixou para trás a relatividade das coisas materiais, históricas;
ele deixou [para o passado] a ameaça permanente da temporalidade. Deixou para
trás a morte! “Ressuscitado de entre os mortos, ele já não morre mais”.
rico, não é material “a morte não tem mais poder sobre ele.
[A vida nova, a vida para Deus] não é desatável; ela é irrevogável; é a vida
[vinda] de Deus, é a vida dos homens, reconhecida por Deus.
Pela fé ousamos apropriar-nos desta aceitação de nossa vida, por Deus.
É claro que esse “nós” (do “viveremos”) e ao designarmos esta [nova] vida
como sendo “nossa”, não somos [ainda] nós pois o reconhecimento da nossa
vida
[por Deus] e da qual nos podemos apropriar [mediante a fé], só vem pela morte
[do
“homem velho”] e é por meio desta morte em Cristo que se torna real a fé que
nos permite a ousadia de nos apropriarmos desta vida reconhecida por Deus.
A fé que conhece esta [nova] vida, apenas se torna realidade mediante a nossa
piedosa, humilde e amorável morte em Cristo; porém, será ainda em ignorância
dessa vida, que morreremos. [Essa morte em Cristo nunca será com o
conhecimento prévio da vida que vem de Deus da qual apenas tomamos
conhecimento pela fé que a morte em Cristo nos proporciona].
— se, e na medida que, o conhecimento objetivo que nos foi revelado nas coisas
invisíveis do caminho de Cristo para a cruz se identificar com o conhecimento
subjetivo igualmente “impossível” e invisível, da vida que está além da linha que
separa e une a “morte” e a “vida”; somos “novas criaturas” à medida que o
“FUTURUM RESSURRECTIONIS” — (“vive-314
O Poder da Ressurreição
6, 9-10
remos”) — como sendo o “outro lado” além do ponto de retorno marcado pela
morte de Cristo, for a premissa (ou melhor, tiver por implícita) a existência de
um novo “nós”.
“Pois sua morte foi a morte para o pecado, e que ocorreu uma vez por todas. Sua
vida, porém, é vida para Deus”.
[Segundo a tradução de Almeida: “Pois, quanto a ter morrido, de uma vez para
sempre morreu para o pecado; mas, quanto a viver, vive para Deus”].
“outro ser”, ao qual estou ligado invisivelmente, ao qual fui unido e com o qual
fui unificado, passando a constituir, com ele, uma só pessoa.
Este ser novo, o ser ressurrecto, o ser que morreu para o pecado e que foi
vivificado em Deus, é o indivíduo, a alma, o corpo que está em meu lugar: este
ser, sou eu mesmo.
Com a morte de Cristo finaliza a vida que pode e que precisa morrer; a morte de
Cristo é a vitória que proclama a “ausência do pecado”: é o triunfo sobre a
“possibilidade de pecar”. É isto o que está contido na afirmação: “Os teus
pecados estão perdoados”. [Mat. 9, 2 e 5].
315
6, 11
O Poder da Ressurreição
Logo, se vivo para Deus, em Cristo, morri para o pecado; não posso ser,
simultaneamente, bem-aventurado [agraciado pela reconciliação em Cristo] e,
também, pecador, mas, estarei, necessariamente, na esfera da conversão — do
retorno [de quem vem] do pecado para a graça, que é a inversão, o retorno que já
não tem regresso.
Ter fé, é crer: é ver o que Deus vê; saber o que Deus sabe; é avaliar e contar
como Deus o faz.
Deus conta com o homem (3, 28 e 4, 3) que morreu para o pecado e vive para
ele, Deus! (6, 10).
pois a frase não pode significar outra coisa se não a realidade da verdade — o
“Com Cristo ressurgiste em vida para Deus: vive, pois, para Ele.
316
O Poder da Ressurreição
6, 1-11
RESSURRECTIONIS”) não podemos perguntar por aquilo que Deus não sabe
mais. [Em outras palavras, aquilo que Deus “já não sabe mais” também já não
interessa a nós].
Comentários: 6, 1-11
O homem se “identifica” com Cristo a fim de com ele morrer, para o pecado;
morto para o pecado, este já não tem poder sobre a criatura e ela ressurge (nasce
de novo—João 3, 1-15), agora identificada como Cristo ressurrecto, a fim de
viver para Deus.
1. Que o “homem velho”, havendo morrido para o pecado, já não pode pecar,
embora ainda peque milhares de vezes até ser liberado do corpo terreno.
2. Que o “homem velho” havendo dado o passo da fé, já não pode mais voltar
para traz, embora tenha que enfrentar constantemente (e, qui-
çá, mui especialmente agora) a crise da opção entre o paradoxo que a fé propõe e
o escândalo que ela representa na vida terrena.
A primeira tese tem, humanamente falando, caráter mais objetivo e sua aparente
falácia, facilita a análise. Basta que nos reportemos ao versículo 20 do capítulo
7, da Epístola: “Se faço o que não quero, não sou eu quem o faz, e sim, o pecado
que habita em mim”.
Esta é a verdade singela; a nova criatura já não pode pecar porque, efetivamente,
morreu para o pecado. Porém o ser humano “vive”
“homem velho”, tão certo quanto este corpo morrerá; porém o “homem novo” o
espiritual, o homem recriado pela fé à imagem e semelhança de Deus, o homem
qual existiu nas eras pré-adâmicas, este ressurgiu com Cristo depois de haver
morrido com ele e, agora vive, sempiterno para Deus.
Já não é ele quem peca, mas o pecado que mora, no seu corpo, esse pratica o
mal.
317
6, 1-11
O Poder da Ressurreição
Será não, se quisermos ver como Deus vê; se dermos asas à fé avan-
Ela precisa enfrentar constantemente a crise que a cruz levanta e impõe. Aquela
criatura que foi reconciliada com Deus, e foi por ele justificada, mediante a fé, é
nova Criatura e não pode voltar a ser a velha; ela agora sabe o que quer e como
quer.
Ela sabe a seu respeito o que Deus sabe e conhece o que ele conhece. Por isso,
sabe o que é reto e justo. Sabe-o com humildade; sabe-o com tremor e temor.
Sabe que veio a ter esse impossível conhecimento pela graça de Deus, e somente
através de sua graça, como uma decisão “forense”, espontânea, da iniciativa de
Deus, sem que a criatura, de qualquer forma, contribuísse para isso: nem por sua
bondade, nem por sua maldade; nem pelo seu conhecimento da lei, nem pelo
desconhecimento dela; nem pelo seu preparo, pela vontade, pela súplica, por
nada. É graça divina. Todavia “conhece” e, em Cristo, ousa conhecer. (Ele veio
para que conhecêssemos a verdade e tivéssemos vida abundante).
Por tudo isto, a nova criatura, o ser humano ressuscitado com Cristo, não quer
optar pelo mal; ela já nem sequer conhece o caminho do pecado pois o olvidou
como Deus o quis olvidar.
ção negativa, ele não pode optar mal: não porque já não seja livre conforme foi
criado por Deus, mas porque, agora, o amor de Cristo o constrange, o cativa, o
segura pelos laços do amor divino.
Então acaso não é patente que não há um só que faça o bem, e portanto, que
todos optam mal? E, nesta hipótese, (aliás verdadeira) não há salvos? Não há,
neste mundo, homens reconciliados com Deus?
318
O Poder da Obediência
6, 12-23
Há sim! Mas é o pecado que detém (ainda) em seu poder o cetro deste mundo, e
reside no corpo do “homem velho” induzindo-o à opção que o “homem novo”
não quer.
Parece-me que outra vez a resposta será sim e não. Essa dupla personalidade
espiritual só desaparece à plena luz do meio-dia, ou à plena escuridão da meia-
noite.
Na completa negação, o homem não buscará a Deus e, assim gozará a paz que o
mundo oferece: a falsa paz; a paz enganosa, a paz do
“NÃO-DEUS”.
O homem que põe a sua confiança em Deus não será dilacerado pelo mal; ele
não se afligirá, antes repousará seguro em Deus, por Cristo Jesus.
Quem tiver fé gozará da paz que Deus tem para dar, pode e quer dar: “A minha
paz vos deixo, a minha paz vos dou”.
“Poder” de obedecer à ordem divina que lhe manda aborrecer o mal e amar o
bem.
319
6, 12-13
O Poder da Obediência
A graça transcende a tudo quanto os homens possam criar e produzir porque ela
vem de Deus!
É por isto que o A. diz que mesmo a religião, como expressão da mais sublime
possibilidade humana, em si mesma, não subsiste perante a graça divina que há
em Cristo Jesus e. quando intentarmos fazer do evangelho de Cristo uma
religião, isto é, quando tentarmos enquadrar o evangelho em normas e preceitos,
condicionando a sua aceitação a critérios eclesiásticos estaremos, na realidade,
traindo a Cristo.
É pela graça que o homem reconhece a sua origem divina e aceita o sacrifício
expiatório de Cristo para lhe abrir a porta do lar paterno; é pelo poder que é
outorgado pela ressurreição de Cristo que a criatura humana tem forças para
obedecer à ordem de colocar-se integralmente, existencialmente, à disposição de
Deus, e de Deus, somente.
Vs. 12-14 Assim, não reine o pecado que habita em vosso corpo, de maneira que
obedeçais às suas paixões; não ofereçais os vossos membros quais instrumentos
para a iniqüidade do pecado porém, ponde-vos à disposição de Deus, como
ressurrectos de entre os mortos, e oferecei os vossos membros a Deus quais
instrumentos da justiça! Porque o pecado não terá do-mínio sobre vós, pois não
estais debaixo da lei, e sim, da graça.
“Assim, não reine o pecado que habita em vosso corpo mortal, de maneira que
obedeçais às suas paixões”.
O Poder da Obediência
6, 12-14
É altamente significativa esta demanda: “Querer o que Deus quer!” Todavia, esta
exigência é imposta a mim, como “nova criatura” que sou pelo poder da
ressurreição, por cujo poder passo pela crise da morte, entrando no gozo da vida,
mediante a fé. Este novo ser existe; ele é da casa dos homens que Deus quer, e
que vivem de Deus.
Agora, quem tem de atacar este mundo sou eu e, atacar este mundo significa
atacar a mim mesmo; sou o agente deste ataque; sou quem o conduz; sou eu,
essa arma!
Para mim, como criatura que recebeu a graça, o pecado é um problema absoluto.
Ele não é apenas relativo, nem mesmo uma possibilidade fatal em contraposição
a outras possibilidades da vida, porém, ele é a “possibilidade”.
Todavia, ainda como a criatura que recebeu a graça [e justamente por isto], não
posso reconhecer esta soberania. Não posso tratar a pretensa realidade desse
domínio, a sua presunção de ser um fato consumado, se não com o mais absoluto
ceticismo.
É bem verdade que vejo o pecado (e sei que ele é um elemento inerente a todas
possibilidades humanas) mas não posso considerá-lo se não como uma
impossibilidade. [Como algo que não subsiste perante Deus e que, portanto, não
existe para a nova criatura que está em Deus].
6, 12
O Poder da Obediência
Este corpo, não pode ser um corpo “naturalmente puro”, isto é, sem pecado; se
assim fôra, então o que é mortal e corruptível ter-se-ia revestido da vida e da
incorruptibilidade. Porém, enquanto o corpo [deste século não for sepultado para
ressuscitar em corpo espiritual e] não estiver revestido da glória celestial, ele se
caracterizará como o corpo do pecado. Mas esta caracterização não nos autoriza
a permanecer no dualismo da graça e do pecado, numa contraposição entre o
“SIM” e o “NÃO” pois a caracterização do corpo como mortal e pecaminoso
ficou suspensa com a crucificação do “homem velho” (6, 6), ela foi posta em
dúvida, foi atacada, foi “fechada”, “de modo que já não somos mais obrigados a
servir ao pecado”.
Este meu corpo não constitui, para mim, um domínio indisputado do pecado,
nem mesmo a base de onde o pecado possa operar, porém e arena onde o pecado
precisa lutar.
O combatente que luta contra o pecado e contra sua soberania sobre mim e sobre
o meu corpo mortal, que luta contra o domínio do pecado na conjuntura da vida
e sobre a história; o batalhador que se bate contra o império do pecado sobre
todo o reino dos objetivos finitos, inclusive sobre os do meu mundo exterior —
(sim, justamente exterior, pois, existencialmente falando, o que há que seja
“exterior” que não seja, também, “interior”?) — este lutador, sou eu!
Sou eu, que não posso aceitar nem reconhecer o pecado e sua domina-
ção; sou eu que não o posso justificar, nem admitir: eu, como aquele que recebeu
a graça; eu, a “nova criatura”.
Eu sou o revolucionário que põe este reinado em dúvida. Portanto, não posso ser
espectador; não posso ser neutro entre a graça e o pecado. Não 322
O Poder da Obediência
6, 12
posso ver o pecado como uma possibilidade ao lado da graça, se não como sendo
uma possibilidade que a “impossível” possibilidade da graça torna “impossível”
para mim.
É explicável que o pecado, sendo uma possibilidade humana, exista até onde
nossa observação possa alcançar; não seria explicável, porém, que eu contasse
com essa possibilidade como sendo minha.
É explicável que o pecado habite em meu corpo mortal, mas não seria explicável
que eu fizesse “um arranjo” com ele; que eu, com ele, estabelecesse uma sorte de
compromisso, um MODUS VIVENDI.
É explicável que as “paixões” do meu corpo mortal sejam realidade, que sejam a
característica impetuosa, a irrupção da pecaminosidade e mortalidade do meu
corpo — Todas elas: minha fome e minha necessidade de dormir; minha
sexualidade e minha ânsia de auto-afirmação; meu temperamento e minhas
originalidades; a voracidade do meu desejo de saber, a exibição de minha arte, a
agitação cega de minha força de vontade e por fim, e acima de tudo, por certo, a
minha “necessidade religiosa”, mais todas as “paixões” da “camarada-gem” que
envolvem todo o macro-cosmos e que se revelam pelo seu arraigamento na
temporalidade, na casualidade, na materialidade da minha existência cósmica;
elas vêm à tona por sua incansável implicação na corruptibilidade do meu corpo;
elas se manifestam como a força vital da minha pecaminosidade.
6, 12-13
O Poder da Obediência
divina diretamente, isto é, sem ser através da morte em Cristo, pois não há outro
modo de chegar a Deus; esta morte, portanto, quebra a linha natural da ligação
direta da criatura com o Criador e do Criador com a criatura, porque ela anula
toda a pretensão humana de ter, em si, qualidades suficientes para chegar a Deus
ou para recebê-lo. A criatura que houver recebido a graça divina sabe que é
assim e portanto lhe é impossível procurar essa ligação. Já não acontece assim
com o “homem velho”; a tendência natural da criatura não redimida é procurar
essa ligação com Deus através de suas qualidades ou possibilidades
Seria desabrida estultícia não utilizar essa força, no combate. [Não usar esta
arma de ataque, apud versão inglesa]. “Seremos reis, em vida” (5, 17); seria uma
loucura entregarmo-nos à escravidão da morte [quando podemos reinar, em
vida].
[Todavia], “note bem: os santos também têm más paixões na carne, paixões que
eles não obedecem”. (Lutero).
O Poder da Obediência
6, 13
“Será então possível estar, muitas vezes, com todo o seu ser envolvido até a
morte em rebelião mais ou menos aberta contra Deus, bater na face de Deus com
a mão que ele mesmo deu e, ainda, pretender colocar a esperança em Cristo?” (J.
Chr. Blumhardt).
ção humana possa alcançar; todavia [a sua prevalência, a conseqüência que dela
pode advir] é minada, solapada, instabilizada, derribada, pela invisível graça
[divina] outorgada ao ser humano.
está minada, está ocada e entra em ação possibilidade de outra ordem, levando a
primeira à ruína.
Esta é uma possibilidade que está excluída: “Viestes da morte para a vida!”
Entre a morte e a vida não há uma terceira alternativa; nesta guerra não há
traidores [que passem de uma trincheira para outra]; também não há
intermediários, nem neutros.
Onde há, realmente, rocha, aí não há buraco, nem vazio, e onde houver
O Poder da Obediência
divina e pela realidade criativa do perdão, esse perdão que Deus nos concede
“não obstante” [o que somos] e pelo qual ele se revela a nós, aceita-nos e nos
toma para si, a fim de que o nosso corpo mortal, em toda sua dubiedade, sua
desvalia, glorifique a Deus, seja um vaso de honra e arma da retidão divina.
Quem, que não tenha vindo da morte para vida, poderia sequer perceber essa
exigência?
“O pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, e sim da
graça”.
A pessoa não deve ser considerada como religiosa, mas como quem recebeu a
graça de Deus. Portanto, não pode ser considerada em termos da lei, (sob a qual
provavelmente está), nem pela experiência divina que acaso tenha
“experimentado”, de alguma forma, em seu entendimento (ou em sua convicção
religiosa nem pelo seu comportamento que pode mostrar sinais do “invisível”,
(impressões deixadas, preservadas, testemunhando um encontro com a graça).
Não se pode, nem mesmo, considerar ou cogitar, se essa pessoa (que recebeu a
graça) habita ou não às margens do canal por onde a água viva pode fluir.
O poder da obediência que sobrepuja o pecado, não está [em qualquer das mais
variadas possibilidades humanas], nem resulta de decisão, ou de inclinação, de
comoção (por mais sublime que fosse); não resulta de entusiasmo, nem mesmo
de transformação.
É bem provável que a pessoa que recebeu a graça tenha tido alguma (ou
algumas) ou, ainda, um pouco de todas essas experiências. Ela terá uma religião
e pertencerá, até mesmo, ao rol de alguma igreja; ela crerá “nisto” e “naquilo”;
terá também vida de oração e comportamento ético-religioso, corres-326
O Poder da Obediência
6, 14
O homem religioso, também, sente a luta entre os ditames de sua vida espiritual
e a fixação pecaminosa das demais virtudes e características [ou paixões] de sua
existência cotidiana; todavia, o que ocorre [quando se trata simplesmente de
religião] é que a luta se trava entre “possibilidades humanas”.
Não se pode, pois, neste caso e a bem da verdade, falar em “vitória da graça”
pois as forças que se combatem são, na melhor das hipóteses, iguais entre si;
327
6, 14
O Poder da Obediência
Vós, “porém, não estais debaixo da lei” mas além desta última e maior
possibilidade humana, onde somente o perdão entra em consideração (4, 15 e 5,
13): “Vós estais sob a graça”.
justamente isto que a graça não é! Graça é império, é o poder real de Deus.
[Estar sob a graça “segundo a fórmula” (ou o preceito) “de um otimismo ético”,
parece insinuar a existência de um raciocínio “desiderativo” segundo o qual a
criatura se imaginasse além de certas contingências menos amenas; qui-
çá, fora do alcance das asperezas e limitações normais à nossa vida cotidiana.
328
O Poder da Obediência
6, 15
Diz o A. que não é assim. Estar sob a graça divina não significa haver
ultrapassado a luta terrena e estar livre de aflições e também não significa que
não nos seja lícito esperar por consolo na hora do sofrimento: portanto, nem é
otimismo nem pessimismo. Estar sob a graça divina é gozar desta graça aqui, no
mundo terreno, onde a criatura não tem outra alternativa a não ser a de obedecer
a alguém: ao mundo ou a Deus. É nesta alternativa crítica que a criatura
renascida para Deus, em Cristo Jesus, encontra na graça divina o poder para
obedecer a Deus].
[neste mundo] e, consciente de que a religião [em si mesma], não pode alcançar
a vitória sobre o pecado — se resignasse e até, com um leve sorriso, consentisse
que sua vida, neste mundo, seguisse o curso determinado pelo pecado?
[Ou então], será que gozar da graça de Deus traz tranqüilidade com respeito às
paixões do corpo mortal e às violências que reinam no mundo não redimido?
Dar-se-ia o caso de ser a pessoa que recebeu a graça, justamente aquela que, —
em contraposição à desesperada “criatura da lei”, que exasperada, aflita, se
consome na luta contra o pecado — escolha para si, como a posição mais sábia
entre Deus e o mundo, entre o “além” e o “aquém”, entre a criatura redimida e a
condenada, a pacificadora tranqüilidade da burguesia mundana, 329
6, 15-16
O Poder da Obediência
Quem, diferentemente de Paulo e dos reformadores (do século XVI), quiser ver a
graça divina exclusivamente do ponto de vista da lei, quiser ver Deus
unicamente sob o enfoque da religião e da moral humana, do que os homens
fazem ou não fazem, quem não puder encarar com serenidade o “impossível”
que se torna possível por obra divina, quem não puder cultivar a idéia da
eternidade, esse sempre há de confundir a graça divina com a possibilidade
extrema dos homens, [a religião] cujo poder de negação é apenas relativo e, ao
fazer esta confusão, aceitando-a e nela caindo entusiasticamente, ou mesmo a
rejeitando e investindo contra ela numa polêmica barata, criará em torno de si
um mar de agitação.
Ora, se entendermos que gozando da graça divina nada devemos nem podemos
fazer porque Deus fará tudo, então evidentemente só nos resta escolher uma de
três alternativas.
O Poder da Obediência
6, 16
Contudo, não é a isto que chamamos “graça divina”, O que se tira ou se nega
nessas alternativas [o que resulta se considerarmos a graça divina como
possibilidade ou dom que a criatura humana possa alcançar por seu próprio
empenho], não é, em hipótese alguma, o que proclamamos [isto é, o que Paulo
proclama] como sendo a graça divina. “De modo nenhum”!
“Não sabeis que se vos ofereceis como servos, para obedecer, sois servos
daquele a quem vos ofereceis e tendes que obedecer-lhe?”
A “Graça Divina” não significa que o ser humano possa ou deva fazer alguma
coisa, nem tampouco que ele nada deva ou possa fazer.
Graça divina, significa que Deus faz alguma coisa, porém não tudo.
Deus faz algo especifico, não de maneira geral, nem erraticamente, ora aqui ora
acolá, mas faz algo para o indivíduo: Deus o perdoa! Graça é
autoconscientização da nova criatura. A graça divina é a resposta à interrogação
de nossa existência.
331
6, 16
O Poder da Obediência
Ter a graça divina não significa, por assim dizer, “ser isto” ou “não ser aquilo”
(estar passivamente parado, ou agir ativamente), fazer isto ou deixar de fazer
aquilo. Ter a graça divina significa submeter à refutação de Deus, inteiramente,
existencialmente, tudo o que somos ou não somos; tudo o que fazemos ou
deixamos de fazer. Ter a graça divina significa “prestar obediência” a essa
refutação, e nos “oferecermos” para seu “servo”.
Ter a graça divina dessa maneira, está além de todas nossas possibilidades
humanas e só acontece como a impossível possibilidade de Deus. É a liberdade
que Deus toma, em nós; ele toma essa liberdade, porém a toma em nós; somos
nós que recebemos a graça. O nosso “ego”, atacado pela graça, não pode
esquivar-se deste ataque mas, também, não pode permanecer como espectador,
quiçá para ver como o ataque terminará; antes, ele precisa também atacar, à
medida que a criatura terrena morre, — (é crucificada — 6, 6) — para,
ressurgindo, descobrir a sua unidade com aquele que apresenta ao mundo a
refutação divina.
“de graça salvos”, descobrindo a nossa união indissolúvel com Cristo Jesus].
O teor da refutação divina está no fato de que não somos nós [cidadãos do
mundo dos homens] que nos apresentamos como sendo a “nova criatura”, mas é
o indivíduo criado e redimido por Deus, que se apresenta como a realidade de
nossa nova existência e nosso modo de ser e, mediante essa nova realidade, a
presente existência [se desvanece, desaparece no passado], é mentirosa.
divino que se levanta contra o pecado e contra vós [naquilo que sois idênticos ao
homem da queda]. Já não tendes mais em vossa consciência, condições para
dizer “SIM” ao pecado [a menos que queirais servir ao pecado pois, de qualquer
maneira], “sois servos”: ou sereis servos do pecado, para a morte ou, da
obediência, para a justificação.
Examinemos, agora, como tanto para o pecado quanto para a graça, se trata de
uma questão existencial em que todavia, uma exclui a outra e ambas excluem a
possibilidade de uma posição intermediária. [Tanto o pecado quanto a graça são
absolutamente dominadores e exclusivistas]. Verificaremos que o 332
O Poder da Obediência
6, 16
É por isto que eles se excluem mutuamente [“ninguém pode servir a dois
senhores” (Luc. 16, 13)]; é por isto que [segundo o conceito do mundo], estão
em oposição; é por isto que, quem houver recebido a graça, já não pode mais
sentir-se sossegado na companhia do pecado, não pode tolerá-lo nem pode
admiti-lo como possível. Nem tampouco, pode o pecador “jogar” com a graça
como se ela fosse possibilidade sua.
Ambos, [pecado e graça] são partidos [são facções radicais] legítimos, genuínos
e exclusivos de tal forma que o pecador não tem olhos para quem recebeu a
graça e este absolutamente, de forma alguma, os tem para o pecador em quem só
encontrará o que é impossível [o que é absurdo].
Também o pecado tem o seu “poder de obediência”. Todavia, esse poder não é
equivalente ao “poder da obediência” que há na graça; nem as duas forças se
equilibram. Se essas duas forças fossem idênticas, então quem estivesse sob o
poder do pecado [e quem não estaria?] repudiaria a graça e jamais a aceitaria,
assim como quem está sob o poder da graça nem sequer admite a possibilidade
do pecado.
É de se notar que toda a sanhuda severidade com que a lei, a religião e a moral
lançam o homem contra o pecado, não é suficiente para mostrar-lhe a
incompatibilidade entre o pecado e a graça; não consegue romper os liames de
suas aparentes garantias mútuas — [a graça tolerando o pecado, e o pecado
dando aso à graça] — nem desperta [na consciência humana] o desassossego que
a presença do pecado gera nos corações que estão sob a graça divina. Parece
mesmo que o impacto da lei, da religião e da moral, age como elemento
conciliador entre Deus e o homem, tranqüilizando o pecador, apagando a dife-
333
6, 16
O Poder da Obediência
Não temos liberdade para pecar porque “não estamos debaixo da lei, porém sob
a graça” e por isso não temos senão dois caminhos a escolher, sem atalhos e sem
desvios.
Já não parece ser tão pacífica a posição com respeito aos ataques que a lei, a
religião e a moral lançam ao pecado. As reservas que o A. tem (ou faz) a toda
forma de legalização, moralização e espiritualização (ou santificação) do indiví-
Perante o mundo, porém, ela pode ter como conseqüência duas posições opostas:
uma, é pacífica, benigna, tolerante; é a da conveniência social: seria espécie de
trégua entre a virtude e o pecado; é a cessação da luta em defesa de princí-
O Poder da Obediência
6, 16
Vs. 17-19 Mas graças a Deus porque, outrora escravos do pecado, viestes a
obedecer de coração à forma de doutrina a que fostes entre que e, unia vez
libertados do pecado, fostes feitos servos da justiça.
Falo como homem, com vistas à fraqueza da vossa carne! Pois, assim como
pusestes os vossos membros quais instrumentos à disposição da impureza e da
iniqüidade, para criar a iniqüidade, ponde agora os vossos membros quais
instrumentos da justiça, à sua disposição para criar a santificação.
[pois os cristãos de Roma já não são mais escravos do pecado] mas dá também
“graças a Deus” porque esses cristãos estão livres das possibilidades humanas
[pois estão sob a graça de Deus], e gozam do “poder da obediência!”. É por isto
que, agora, pode e deve ser feita a ofensiva decisiva; agora pode-se ousar dar o
impulso para frente que é a arrancada e a invasão que transforma a comunica-
No caso, é a empresa de se dirigir aos fieis de Roma, como àquela gente que
recebeu a graça, conclamando-os a vencer o pecado por essa graça debaixo 335
6, 17
O Poder da Obediência
Eles são instados para se considerarem vivendo sob a graça divina, como
pertencentes a Deus, incluídos no poder da ressurreição e que, com os olhos fitos
no crucificado, creiam no poder da obediência, que receberam.
DE” todas as fraquezas que tem [corno pecador que é], Deus o recebe?
Como haveria alguém de crer que a graça divina é a vitória sobre o pecado, por
força da obediência invisível, se a graça, antecedendo a fé, não 336
O Poder da Obediência
6, 17
transpuser firmemente a escravidão do indivíduo, (de cada um em particular!),
para que cada um nela acredite de antemão e dentro de si mesmo?
ção”]. “Pressupõe” não para patentear a existência da graça, mas para crer nela.
Por que haveria de ser somente essa gente [— o grupo cristão de Roma
— que se tornaria obediente “de coração” tendo por base a doutrina recebida]?
“dar graças a Deus” (ao Deus desconhecido!) que veio ao encontro dos homens e
os achou, antes que eles o procurassem, e do qual eles, que já estão convertidos,
precisam apenas ser lembrados.
“cristãos” ser estímulo e razão para, dando por ela graças a Deus, falar
justamente a eles, como beneficiários dessa graça?
337
6, 17-18
O Poder da Obediência
Essa eventual diferença [de formal é irrelevante e Paulo se serve dela para
indicação, sinal e testemunho daquilo que ele quer lembrar-lhes.
Ele não julga enganar-se quando se utiliza do que é típico, contingencial, visível,
para, com estas coisas, lembrar-lhes do que é primordial, invisível e existencial;
para recordar-lhes que Deus os achou; que eles têm o perdão; que receberam a
graça; para relembrar-lhes que são nova criatura em Cristo; para trazer-lhes à
lembrança o poder da ressurreição, que é o poder da obediência.
Esta é a “graça” de que Paulo fala aos cristãos de Roma. Ela envolve um
rompimento, um desassossego, a impossibilidade de reajustamento. É o ataque
que o “homem novo”, a criatura redimida em Cristo, move ao “homem velho”,
ao homem segundo Adão.
ção; este passo decisivo que eles deram, esta conversão, é indubitável,
irreversível e irretratável.
338
O Poder da Obediência
6, 18-19
“Falo como homem, considerando a fraqueza de vossa carne”. Digo
“estais” e “sois”; aqui, digo que estais livres; acolá que sois servos. Isto é falar
“como homem”! Sabemos que falando nesta forma dialética, inflexível, direta,
inevitavelmente dizemos algo que não podemos [não queremos e nem devemos]
[com Deus]. Sabemos que ao nos atrevermos a empregar tais expressões, damos
lugar a certa imprecisão que caracteriza a maneira de falar dos religiosos e ro-
mânticos, em cujos discursos o pecado e a graça, ou então a crença e a
descrença, aparecem como fatos materiais que o homem “tem” ou “não tem” e
onde a pessoa tanto pode ser “isto” como “aquilo “ e, também, — “não ser
nada”.
Sabemos que onde e quando se trata da “graça divina” não subsistem as questões
de “ser” ou “não ser”, nem de “ter” ou “não ter”, desta ou daquela pessoa, [não
há faixas etárias, classes, categorias ou grupos que possam, em razão dessas
arregimentações, merecer ou desmerecer a bênção da graça] (como por exemplo,
as criancinhas, ou os socialistas, ou o povo alemão, ou a nação russa ou
Dostoievski! ou Kutter!).
[que não as humanas], para expressar a obra do perdão divino; é por isso que o
apresentamos por meio de analogia humana, pois o discurso objetivo sem a
devida atenção ao “ser” e ao “ter” da “fraqueza carnal” seria menos perceptí-
6, 18-19
O Poder da Obediência
então, falamos “como homens”, por analogias; que aquilo que dizemos pela fé,
deve ser ouvido segundo a fé. Não pode deixar de estar presente, e bem vivo, em
nossa mente o fato de que a graça divina precisa ser proclamada e aceita como
graça, isto é, como o real fundamento invisível do homem, em Deus.
Graça significa que Deus conta com a existência do ser humano em sua
totalidade, reivindicando-a para si.
A graça não pode aquietar-se, acalmar-se; não pode calar, nem transigir, nem
mesmo ante a parede cru que separa o invisível do visível, o infinito do finito.
A graça não pode abandonar a presente vida visível, ao pecado, para distanciar-
se, para encastelar-se na vida do além, na vida da nova criatura, justificada por
Deus. Isto é exatamente o que a graça não faz, pois seria a admissão do
dualismo, da existência paralela e simultânea da graça e do pecado, cuja
supressão a graça não só assegura, mas efetiva.
da pessoa que recebeu a graça divina, consiste em que “aquilo que é mortal se
revista da imortalidade”.
A graça divina não seria graça se ela fosse simplesmente algo a ser contrastado
com o conteúdo de nossa vida material, segundo a sua determinação pelo
pecado.
Não há promessa de um melhor porvir que possa conter o apelo íntimo, o ataque,
a crise a que está sujeita a nossa vida deste mundo, a vida de
O Poder da Obediência
6, 19
vida terrena é posta em dúvida pela vida melhor do além; então esta nossa vida
material torna-se questionável quer seja pela evidente ausência de Deus, quer
seja pela insistência divina, pressionando, batendo à nossa porta, inva-dindo o
nosso coração.
A graça, a invisível verdade, não pode senão estender suas mãos para, na sua
possibilidade que nos parece impossível, amparar esta criatura que em seu
comportamento, na expressão de sua vontade e em seus empreendimentos, foi e
será caracterizada pelo pecado até o final de seus dias [sobre a terra].
A graça [por seus efeitos em nossa vida] quer ser realmente vista, ouvida,
sentida; ela quer revelar-se e quer ser observada, pois a própria ressurreição de
Cristo de entre os mortos, é a revelação e a manifestação da invisível graça
divina (historicamente na periferia do imaterial, e imaterialmente na cercadura
do que é histórico) (6, 9). Portanto eu, [reconciliado com Deus], como nova
criatura, não sou SOMENTE aquele que não sou mas, TAMBÉM aquele que não
sou. (5,1 e 5,9 a 11).
Graça divina quer dizer: “Seja feita a tua vontade, na terra como nos céus”! [Esta
posição da criatura, desejando que a vontade de Deus seja feita na 341
6, 19
O Poder da Obediência
Servi-o agora, na retidão, com a mesma ostentação, com o mesmo denodo, com
os mesmos “membros” com que até agora servistes à impureza e ao desrespeito
à lei!
A graça divina não seria graça se pudéssemos suportar a vida [ou admitir a nossa
existência] sem satisfazer a plenitude das exigências que a graça apresenta; se
tivéssemos suficiente capacidade de moderação para nos conten-tarmos com
menos que a plenitude das possibilidades que a graça proporciona, e pudéssemos
viver numa espécie de compensação entre as possibilidades que a graça divina
oferece e outras quaisquer [morais, intelectuais e psíquicas], e então pudéssemos
libertar-nos da inquietude, do desassossego natural e inerente à alma firmada em
Cristo (em Deus.).
las e abri-las para receber a justiça de Deus; se não porfiássemos por colocar
nossas vidas em paralelo com a vontade divina, tornando esse paralelismo
visível 342
O Poder da Obediência
6, 19
ção é a contemplação do que é invisível; este novo [modo de] “ser”, “ter” e
“fazer” do ente humano, é o milagre; é a existência da “nova criatura” e portanto
é de outra ordem (realmente diversa), diferente da existência do ser, do “EGO”
Entendo que essa maneira de traduzir está estribada na exposição que o A. faz
logo a seguir; contudo, quer me parecer que a observação um tanto enigmática,
quem sabe se dialética, sobre o “PORÉM” e o “PORTANTO” se pren-343
6, 19
O Poder da Obediência
de mais ao que o A. acaba de expor do que ao que se segue ao “ponto”, com que
ele separa os dois períodos no mesmo parágrafo.
aqui gozamos dessa vida, pela graça, mediante a fé, como em espelho.
“PORTANTO”, também pela graça mediante a fé, em nosso espírito, já não
damos mais lugar ao pecado em cujo reino o nosso corpo mortal ainda peregrina;
e porque o homem aqui peregrina, Deus, em sua fidelidade divina, lhe dá a graça
da justificação, sempre mediante a fé; (Abrão creu, e isso lhe foi imputado por
justiça”. (Tiago 2, 23).
A velha criatura — quando, pela fé, aceitou a Cristo como seu Salvador,
— foi crucificada e morreu com ele, e nele; “PORÉM” continua, ainda por
algum tempo “forasteira aqui, em terra estranha” ligada ao “corpo desta morte”
tudo quando a nova “qualificação” da vida revoga e impõe. Esta conduta nova
precisa ser reconhecida imediatamente (em nossos membros!) no que a
exigência 344
O Poder da Obediência
6, 19-23
difere daquilo que ocorreu com Cristo e na páscoa, pois os fatos não foram
claramente inteligíveis, havendo ficado aberta a possibilidade de opção entre o
escândalo e a fé.
É a isto que se chama “falar segundo os homens”: exigir dos homens, por meio
da parábola do discurso direto, aquilo que somente é compreensível como
inerente ao “ser”, ao “ter” e ao “agir” de Deus.
deste imperativo, que tanto impulsiona como detém, for ignorada; quando,
esquecendo essa condicionalidade, olvidamos que a força para obedecer esse
imperativo [vem do poder da ressurreição e] é o Poder de Deus, então estamos
no meio das prolepses do moralismo religioso, envolvidos nas mais selvagens
ilusões do romantismo; no meio das doces substituições e misturas da justiça
divina com toda sorte de retidão humana; confundimos a redenção em Cristo
com todas as formas de salvação que os homens inventam; e achamos que, de
qualquer forma, haveremos de gozar da vida eterna.
É à graça que cabe dar a palavra que diz respeito à santificação de nosso corpo
mortal para transformá-lo em instrumento da justiça, pois há sempre o risco de
que tal palavra, em nossos lábios, seja mera banalidade ou fantasia. É
esta palavra final que torna impossível o pecado; ela é o juízo de Deus para a
justificação; ela é o Poder de Deus para o perdão: é a palavra criativa de Deus!
Coisas de que agora vos enojais, pois o seu fim é a morte. Agora, po-rém,
libertados do pecado e transformados em servos de Deus, tendes o vosso fruto
naquilo que conduz à santificação e que tem por fim a vida eterna, porque o
salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em
Cristo Jesus, nosso Senhor
Graça é a crise da morte para a vida. É por isto que a graça divina com relação
ao pecado é, simultaneamente, a exigência absoluta e o absoluto poder 345
6, 20-21
O Poder da Obediência
da obediência; é também por isto que não pode existir tensão ou polarização
entre graça e pecado, nem pode haver equilíbrio, soluções intermediárias,
composições ou compensações entre este e aquela. É ainda por isto que, como
A pessoa que recebeu a graça divina passa, necessariamente, a ter partido. Ela se
encontra envolvida na luta de vida e morte na qual não há paz, nem trégua nem
acordos.
346
O Poder da Obediência
6, 20-21
Acaso existe alguma “iniqüidade” visível que não possa, nunca, [em nenhuma
hipótese] ser tida como sendo “santificação” ou, então, existe alguma
É claro que nada sabemos sobre a ceifa que Deus, o Senhor da seara, recolherá
aos seus celeiros, juntando aos seus frutos o produto da semeadura de nossa
vida.
347
6, 20-21
O Poder da Obediência
O raio de luz que incandesce nossa existência não cintila em vão, pois o nosso
ser, nosso saber, pensar e falar, nosso querer e aquilo que realizamos, nossa vida
espiritual e histórica, nossos anseios e nossos objetivos, serão iluminados por
ele. Serão iluminados, quem sabe, para resistirem incólumes ou, quem sabe, para
serem fundidos ou acrisolados; quiçá serão carbonizados, ou então,
transmudados em outra substância e, pode também acontecer, sejam totalmente
consumidos e aniquilados (todavia não totalmente pois, “NON
OMNIS MORIAR”!).
Em qualquer hipótese, [este raio de luzi submete a nossa existência a uma prova
radical, relacionando o que ela “foi” com o que, agora, “é”; pelo lugar que ela
passa a ter, deste ou daquele lado do abismo que a graça revelou; este raio de luz
mostra qual será o salário: a vida ou a morte!
As duas condições não são concomitantes, como também a morte e a vida não
podem ocorrer Juntas. Contudo, convém que sempre nos lembremos de que o
sentido do que seja esta “morte”, deve ser procurado naquilo que designamos
por “vida” e que o sentido do que seja esta “vida” deve ser procurado naquilo
que identificamos por “morte”.
348
O Poder da Obediência
6, 22-23
Existe, pois, uma iniqüidade absoluta, clara, inequívoca; existe um mal que o ser
humano não deve pensar [imaginar], nem querer, nem praticar. “Há coisas das
quais, agora, vos enojais”. Há coisas que, embora possíveis, quando iluminadas
ao raio de luz que tudo aclarou, resultaram, por assim dizer, como excluídas,
proibidas. Proibidas, por que? Porque o seu destino é a “morte”; porque elas
provêm da vitalidade daquilo que é mortal; porque elas espalham apenasmente a
morte; porque essas coisas só têm o beneplácito da morte; porque tais coisas não
podem resistir ao fogo consumidor do qual sobressai a vida que vem da morte. O
critério é claro para quem possui a [verdadeira] vida: “O salário do pecado, é a
morte”.
Há uma colheita, que é para a santificação. Existem, naquilo que o ser humano é,
ou tem, ou faz, possibilidades que, por assim dizer, são classificadas como
necessárias e convenientes, por Deus. Existe um “bem” em que o ser humano
deve pensar; que deve querer e deve praticar, e isto porque esse bem tem o seu
início e o seu fim na vida; porque este bem que o ser humano deve querer
determina uma existência, um comportamento, um conjunto de ideais,
propósitos, obras, ambiente, condições e movimentação que tem a sua origem e
o seu fim no rio da vida; não é só o começo e o término deste bem que estão
ligados ao rio da vida, mas também o seu ponto intermediário [passageiro,
efêmero,] no mundo temporal, onde reina a morte, pois as coisas do mundo não
podem obscurecer totalmente os frutos do “bem”, porquanto estes resistem ao
fogo consumidor da morte que traz a vida.
Assim como a vida e a morte não podem existir juntas, coexistindo uma ao lado
da outra, ou interligadas como uma série, ou em cadeia, também a graça e o
pecado não podem ser relacionados entre si [nem pode haver intercâmbio entre
eles]; não há ponte que transponha o precipício aberto entre os dois; a claridade
que a graça traz não tolera qualquer confusão.
[Todavia, há os que se libam] na luz apenas crepuscular que pode ser divisada no
interior do abismo profundo que existe entre o “bem” e o “mal”, entre o “valor”
e o “desvalor”, entre o que é “santo” e o que é “ímpio”.
Essa luz não ilumina suficientemente a criatura que não tenha recebido a graça
divina e por isso ela não chega a reconhecer a fissura, nem toma cons-349
6, 23
O Poder da Obediência
ciência da separação existente [entre ela e Deus] e não percebe que o único e
inequívoco meio de sair do abismo [que a separa da vida] — é aceitar a “nova
ordem” [que a graça oferece].
Aqueles que assim vivem, iluminados por essa luz mortiça, buscam uma moral,
tentam fazer um rol dos que são pecadores e dos que são justos; farão uma tábua
do que é proibido e permitido, pois os objetivos da vida impõem sempre a
criação de uma ética, como sendo inexorável necessidade; e cada tentativa [de
produzir esse padrão moral] deveria ser a última, a final. No entanto, falham
todas, uma após outra, pois é somente mediante o conhecimento de Deus que se
atinge a plenitude do valor ético. É então que se percebe nitidamente o que
sejam “pecadores” e “justos”.
Comentários: 6, 1-23
350
O Poder da Obediência
6, 1-23
É justamente esta pretensão que a Igreja tem (ou pode ser tentada a assumir) de
ser ela a promotora da salvação, que Barth critica tão incansavelmente! É esta
pretensão que, de certa forma, iguala todas as religiões como se fora um
denominador comum, assaltando a divindade pela materialização de Deus ou
pela divinização do homem.
Fazendo da Igreja (ou da religião) um meio de chegar a Deus, (a união direta que
Schleiermacher pretendia, e a comunhão direta que tanto anima os fiéis crentes
evangélicos) oculta a verdadeira graça que nos vem desde a cruz, ou melhor,
desde a ressurreição de Cristo.
— “Crê no Senhor Jesus, e serás salvo, tu e a tua casa!” (At. 16, 30-31).
A pessoa que recebeu a graça, também terá normas e preceitos a obedecer; terá
religião porque se sentiu constrangida a tomar posição bem definida e definitiva
no combate do pecado em si mesma, na personalidade da criatura antiga, do
“homem-velho”; ela já não pode aceitar o domínio do pecado, nem conformar-se
com ele, embora saiba que não pode arrancar o joio, nem o saberá distinguir com
segurança. Todavia, ela sabe o que Deus quer, e isto ela quer também!
Porque não a querem; porque preferem achar soluções que lhes parecem mais
sonoras, mais sábias, mais cultas, mais liberais, mais tolerantes, mais
ecumênicas; menos antigas, menos “bitoladas”, menos fanáticas. Dizem que,
afinal. “todas as religiões são iguais”; Deus sendo amor, não condenará os
homens, com penas eternas... Ou en-tão, porque as religiões são “invenções”
humanas, não vale a pena procurá-las ou ensiná-las.
351
6, 1-23
O Poder da Obediência
Nesse sem número de arrazoados e justificativas que o ser humano encontra para
não se render a Deus há, freqüentemente, uma parcela de verdade, algumas
vezes imediata e outras por inferência remota; é esta parcela que difunde alguma
luz: luz crepuscular diferente da luz da aurora, porque não antecede o sol
radioso, não dissipa as trevas, mas prenuncia a noite.
É nesta meia luz que os homens retêm a verdade com a sua justiça e a
humanidade se ilude com a mentira diabólica, — a “mentira perfeita” que
Satanás sempre usou: a mistura satanicamente dosada de fragmentos da verdade
com a falsidade total.
“— Queres ir andando,
Ignorando todo
— Abre o coração
352
Capítulo VII
LIBERDADE
Neste capítulo o Autor analisa a absoluta liberdade que Deus tem para julgar e
perdoar a criatura humana; para aplicar a ira divina e para dispensar a sua graça.
Esta independência é um atributo da soberania do Criador, que não depende do
homem nem se deixa influenciar por atitudes humanas, porém age na criatura
conforme lhe aprouver na sua infinita sabedoria, sua incomensurá-
- Vs.
1 a 6
• O Sentido da Religião
- Vs. 7 a 13
353
7, 1-25
O Limite da Religião
354
O Limite da Religião
7, 1-6
Receber a graça é estar exposto a toda essa urgência, a esta solicitação, a esta
veemência, a esta abordagem [e também] a esta promessa [implícita], pois
significa que o Evangelho de Cristo foi ouvido.
Fizemos mais atrás amplas considerações sobre a religião, como sendo a última
possibilidade humana. (Ver 2, 1-13; 2, 14-19; 3, 1-20; 3, 27-30 e 31; 4, 9-12; 4,
13-17; 5, 13-20 e 6. 14-15).
Temos, agora, que demonstrar que, sendo humana, a religião é também uma
possibilidade restrita, limitada e que, mais ainda, em sua estreiteza e ineficácia, a
religião assegura e autentica a liberdade de Deus para conceder a graça.
7, 1
O Limite da Religião
“estreitos”, e mostramos também que não ficamos agarrados sempre ao mesmo
ponto de vista.
Todavia, não podemos impedir que nossos pés estejam sempre em contato com o
chão. Como seres humanos que somos, vivendo neste mundo, não podemos estar
indenes à influência religiosa.
Vemos [na restrição das possibilidades religiosas] que a liberdade na qual nos é
dada a graça está justamente do outro lado da culminância da humanidade, isto
é, além da religião.
A liberdade [que Deus tem para distribuir a sua graça, sem levarem conta
conceitos e preconceitos humanos] não é uma possibilidade adicional [que se
oferece à humanidade] porém é uma impossibilidade [absoluta para os homens]
que só se torna possível em Deus, sem ser tangida pela dubiedade da religião,
pois, “o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna,
em Cristo Jesus.” (6, 23).
“Compreendeis isto? Ou não percebeis que a lei tem domínio sobre vós, durante
toda a vida?”
356
O Limite da Religião
7, 1
“não”; todavia não é a alternativa que exclui e suprime todas as outras; não é a
alternativa decisiva [que nem seria alternativa por ser exclusiva, sem paralelos, a
única que realmente conta].
“Estar debaixo da lei é estar sob pecado” (Kuehl) e o homem está debaixo da lei
“enquanto viver”; isto é, enquanto a sua existência, o seu ser, estiver encerrado
entre os limites do berço e do túmulo. É com esta vida [delimitada entre os dias
do nascimento e da morte], que concomitantemente se inicia e termina o
domínio da lei.
357
7, 1-4
O Limite da Religião
que, por sua vez, retrata com grande maestria, o próprio Torquemada, o feroz
“defensor da fé”.
Vs. 2-4 Ora, a mulher casada está ligada ao marido pela lei, enquanto ele viver;
mas, se ele morrer ficará desobrigada da lei conjugal. De sorte que se ela se
unir a outro homem enquanto o marido for vivo, será considerada adúltera;
porém morrendo o marido, estará livre dessa lei.
Assim também vós, meus irmãos, fostes arrancados, pela morte, da vida em que
domina a lei, a saber pela morte do corpo de Cristo, afim de que fôsseis unidos
a outro, isto é, àquele que ressurgiu dos mortos, para que constituíssemos fruto
para Deus.
358
O Limite da Religião
7, 2-4
A prescrição das coisas que são válidas nesta vida, depende da morte.
Assim, estando vivo, o marido caracteriza sua mulher como sua esposa e a
obriga para com ele; se na vigência dessa condição ela se unir a outro homem,
será considerada infiel e adúltera. Porém, com a morte do marido fica a esposa
livre [da primitiva obrigação legal] e, se então ela se unir a outro homem, já não
será tida por infiel ou adúltera. Portanto, na legítima ordenança da lei moral do
matrimônio [cada cônjuge] está preso à contingência da sobrevivência da outra
parte contraente. [Paulo baseia seus exemplos materiais na prá-
Agora, vejamos a aplicação: “Assim, também vós fostes libertados da lei, pela
morte do corpo de Cristo”.
Sim, sois vós que recebestes a graça, que estais sujeitos ao jugo e à libertação
que a morte encerra. Sois vós a criatura que é sujeita a lei, enquanto viver;
porém, apenas “enquanto viver”.
359
7, 4
O Limite da Religião
Sim. Tudo isto acontece pela graça de Cristo pois, assimilando a Cristo sois
assimilados pela sua morte — ceifados pela morte com o seu corpo material.
Morre aquele que estava sujeito à lei (Gál. 4, 4), o Cristo que, com todo o Israel
reto e piedoso de seu tempo, se submeteu ao batismo do arrependimento
ministrado por João; ele, o Profeta, o Sábio, o Mestre, o Amigo da humanidade,
o Messias Rei, morre, para que viva o Filho de Deus.
— a despeito de tudo que ela seja, quanto tenha, ou faça — ao próprio Deus, e
somente a Deus, tributa honra, louvor e glória.
Juntamente com o corpo humano de Cristo, também nós morremos para a lei, e
somos arrancados, pela morte, da vida onde a lei impera.
(Col. 2, 14). [As ordenanças foram removidas, encravadas por Cristo, na cruz...].
A criatura humana não comparece perante Deus como criatura religiosa, nem em
qualquer outra qualidade ou qualificação humana, porém mediante aquela
natureza divina com a qual também Cristo se apresentou ao Pai, quando sua
“percepção religiosa” o levou ao reconhecimento de que estava abandonado por
Deus.
Da morte, a vida! A morte quer dizer “esta” morte. Portanto, enquanto vivermos,
enquanto formos quais aqui somos (7, 1), sujeitos à lei, envolvidos na
problemática da religião e arrolados no seu jogo promissor e perigoso de
Porém, se estivermos mortos com Cristo, sepultados com ele, se, vistos desde a
cruz, já não pertencermos a este mundo mas “formos o que não somos”, isto é,
se houvermos, realmente, sido arrancados do jugo da lei, então já não estamos
presos às possibilidades [restritas] que a religião oferece, nem às suas
exigências; então já estamos livres de toda e qualquer imposição humana e,
assim como a esposa mediante a morte do marido se libertou dos laços que a 360
O Limite da Religião
7, 4-6
prendiam a ele, assim como a viúva ficou livre para se unir a outro marido,
também nós [pela morte com Cristo] obtivemos a liberdade para seguir o
caminho onde não há dualismo:
“Para pertencermos a outro, àquele que ressurgiu dos mortos, para que
frutifiquemos para Deus”.
Este “outro” é o que fica em contraste àquilo que representa o ponto máximo das
possibilidades humanas.
Nesta limpeza de fronteiras é necessário que primeiramente fique claro para nós
o que é a liberdade de Deus na qual se fundamenta a dádiva da graça,
considerando o fato de que a graça está para a religião assim como a vida está
para a morte.
Não será como pessoas religiosas que haveremos de conseguir [cumprir ou]
obedecer a estranha ordem de, na qualidade de “libertos do pecado”, e como
“servos de Deus” santificarmos os nossos frutos por meio dos nossos
pensamentos, nosso querer e nossas obras (6, 22); esses frutos, que Deus juntará
em seus celeiros, somente poderão ser produzidos por aqueles que receberam a
graça divina da paz que está acima de todo entendimento; são frutos supernos
que só aqueles que vieram da morte para a vida, podem produzir.
Eis que Paulo ousa dirigir-se aos que, como ele próprio, “conhecem a lei” (7, 1)
— (e a conhecem muito bem) tratando-os por “meus irmãos” e escrevendo-lhes
como a pessoas que também conhecem a invisível fundamentação em Deus que
há na passagem de Cristo da crucificação para a ressurreição, e que está além do
limite das possibilidades conhecidas da religião.
Agora, porém, mortos para aquilo que nos mantinha presos, escapamos do
alcance da lei, de modo que somos servos segundo o novo sentido do espírito e
não do antigo sentido da letra.
361
7, 5
O Limite da Religião
Agora porém, libertados da lei, estamos mortos para aquilo a que está-
O ser humano como tal e portanto também a pessoa religiosa, é carnal, isto é, seu
pensamento, sua vontade e suas obras pertencem ao mundo e não alcançam
qualificação [perante Deus] ou, mais apropriadamente, são da mais alta
impiedade e pecaminosidade; são características que afastam a criatura de Deus
e a conduzem para a morte, tanto mais assim quanto maior for o seu sonho de se
assemelhar a Deus.
O homem senhor de si mesmo; o homem que se considera reto, que não tem o
espírito quebrantado, que considera estar firme sobre seus pés, que ainda não
saiu coxo, trôpego, nem caolho das escaramuças e lutas com o escândalo, este
sim, é um homem, existencialmente, sem Deus. O seu vigor e a energia das
paixões pecaminosas e seus apetites são os do corpo mortal (6, 12) no qual as
paixões mais elevadas [as superiores], como por exemplo a animação religiosa,
se distinguem das inferiores (digamos da indolência), apenas por questão de
graduação.
ção. Ora, como as paixões do pecado se originam do vigor da carne mortal, o seu
impulso, a sua energia intrínseca, o seu vapor, não podem produzir senão frutos
para a morte, se [esta corrida] não for salva pela ressurreição.
As paixões humanas [vis ou nobres] objetivam fins, ideais e realizações que têm
apenas expressão e sentido temporal e não se projetam para a eternidade; são
paixões que não podem sobreviver à crise de vida e morte a que são submetidas
todas as coisas.
362
O Limite da Religião
7, 5-6
A religião é uma atividade (ou possibilidade) humana que, sem dúvida, se opõe
às paixões, mas também ela está contida no mundo do pecado.
Haverá, acaso, um exemplo mais forte dessa paixão [da criatura em igualar-se ao
Criador] do que a lenda de Prometeu, roubando o fogo de Zeus?
É evidente que esse fogo, que foi furtado, em nada se aproxima do fogo
consumidor de Deus; é apenas um lume do qual se ergue determinada fumaça,
que vai juntar-se a outras muitas névoas, vapores, nuvens, algumas mais espes-
sas e coloridas, outras mais tênues e pálidas, todas estendendo o seu manto sobre
a planura humana; diversas, porém não totalmente diferentes entre si; todavia
nenhuma sequer parecida com o calor abrasador [com a coluna de fogo]
que impulsiona o passo que vai da vida para a morte e consome todas as paixões
do mundo; antes, esses sinais de fogo são expressões da pretensão de todos: o
desejo de coroar as emoções e paixões terrenas com a auréola da eternidade; ou
são, talvez, a manifestação da própria paixão pela eternidade, da qual recebem o
seu verdadeiro sustentáculo e a mais alta consagração.
Esse raciocínio leva a uma conclusão impressionante, muito lógica e por isso,
por assim dizer, inevitável: em primeiro lugar a pessoa conclui que tanto pode ter
como deixar de ter vida religiosa; e então deduz que, se tiver, fará uma coisa boa
para si e, portanto, será justificada [por Deus], fortalecida, confirmada em si
mesma; será amparada para seu próprio benefício, [aperfeiçoa-da] em suas
aptidões, [exaltada e melhor aproveitada] em suas atribuições e
Verifica-se assim, mais uma vez, que a possibilidade religiosa, muito longe de
revogar a existência do homem, de desataviá-lo das vestes mundanas e de o
colocar contra a parede [para um encontro direto com Deus] transformando-o
[em nova criatura], age sobre o indivíduo como droga prudentemente
administrada para a preservação das ilusões que são mui caras ao homem sem
Deus.
363
7, 5-6
O Limite da Religião
Qual a outra atividade humana que, em seu desdobramento externo, tenha maior
semelhança com a morte, do que a religião? Qual tem vida mais breve? [Qual é
mais efêmera?]
Esta evidência não pode ser esmagada: “A lei suscita a ira”! (4, 15). É
mediante esta evidência que pode, e precisa ficar esclarecido qual é o limite da
religião.
(Kuehl).
Dizemos isto com plena consciência da nossa ousadia pois estamos rompendo as
barreiras que nós mesmos havíamos reconhecido (7, 1); no entanto, somos
constrangidos a isso.
O fato de estarmos debaixo da graça de Deus (6, 14) não significa que
haveremos de ter um determinado padrão de comportamento, ou uma certa
conduta espiritual, ou ainda tal ou qual atividade no mundo [que nos fosse
imposta pela graça ou que dela nos adviesse como sua conseqüência lógica];
nem tampouco significa que haveremos de gozar de certas experiências
especiais.
Todavia, por estarmos debaixo da graça divina “somos” quais “ainda não
somos”, e isto não porque sejamos livres para tanto, mas pela liberdade de Deus.
O Limite da Religião
7, 6
É verdade que, [depois desse Instante], continuamos ainda sob a sombra da lei;
“agora porém” (3, 21) volvemos os olhos para traz e ao clarão dessa luz
Libertados?! Sem dúvida, falando como homem (6. 19). já dissemos demais! O
que quer dizer libertados? e “ finalmente libertados”? Se com tais expressões
quisermos indicar qualquer qualidade ou característica visível em nós ou em
nossos semelhantes, então estamos de novo no âmbito da religião e é “religião” o
que tais expressões passam a significar: é a lei, sempre a lei, em formas e
possibilidades sempre novas.
Quem há, nascido de mulher, que não seja sujeito à lei enquanto viver, como
Cristo o foi? Quem seria tal “super-homem”?
Não sabemos o que dizemos e dizemos o que não sabemos quando afirmamos
que o lugar onde estamos, em que nos achamos, não é território sujeito à lei, ou
então, se dissermos que a religião é uma possibilidade superada, ultrapassada,
liquidada.
Contudo, o afirmamos!
365
7, 6
O Limite da Religião
Todavia, falar deste modo é falar muito além do [modo e tom] que convém aos
lábios e ouvidos humanos; falamos movidos pela verdade que nos atinge, qual
flecha desferida da outra margem do rio que nós [como criaturas deste mundo]
não haveremos de pisar. É a verdade que vem do outro lado da divisa que não
podemos transpor; todavia, de lá ela nos fala e ai de nós se nos calarmos e não
proclamarmos o que precisa ser dito, se não falarmos daquilo cuja invisibilidade,
apenas, pressentimos!
O que nos mantinha presos ao jugo da lei era o desejo de esquecer que temos de
morrer, era o anseio de nos esquivarmos do “MEMENTO MORI”! (E
Ainda bem que a religião tem de morrer. É em Deus que nos libertamos dela.
Ainda bem que por toda parte, e acima de tudo, vemos a religião cerceada
O Limite da Religião
7, 6
Se nesta sombra da morte que nos envolve reconhecermos nossa afinidade com
Cristo (6, 5), então sabemos (na qualidade de quem não sabe!) o que fazemos e o
que dizemos quando afirmamos que estamos fora do alcance da lei.
Podemos estar, ainda, debaixo da lei, como convém, porém estamos, muito mais,
debaixo da graça.
Então teremos condições para olhar um pouco por cima de nós mesmos, por
cima daquilo que existe em nós, que venha de nós e por nosso intermédio, vendo
um pouco mais longe, talvez com um leve sorriso e também um pouco de pesar.
[Quiçá um leve sorriso pelo gozo da inefável paz de Deus e o leve pesar por
ainda estarmos presos ao corpo sujeito à lei].
Pode ser que então compreendamos, pela própria religião, a sua fundamental
insignificância, sua irrelevância, sua falta de solenidade apropriada, sua
consciente limitação. Também pode ser que não. Todavia, quer sim, quer não, ela
já não será trágica [fatalista, aterradora] nem triunfante [arrogante e pretenciosa];
nem sequer pretenderá ter razão, mas apontará para além de si mesma dando
testemunho de sua transcendentalidade onde quer que se encontre o homem
sujeito à lei.
Um caminho?
Não! de modo nenhum, pois não é visível; não pode ser tomado; não pode ser
palmilhado, nem percorrido.
“Mortos para aquilo que nos mantinha cativos”: isto é, mortos para a carne. Seja-
nos invisivelmente perceptível que aqui se trata da indubitável, da segura, da
vitoriosa liberdade de Deus, que nos contém, nos move e nos dirige, e que diz
“basta” às imensas vagas do pecado — que encobrem as mais altas montanhas
da sentimentalidade humana.
367
7, 6
O Limite da Religião
“De modo que somos, agora, servos segundo o novo sentido do Espírito e não no
antigo sentido da letra”.
Santificai-vos! Sede servos de Deus! É assim que ordena o imperativo da graça
(6, 22).
Comentários: 7, 1-6
7, 1-6
porém é o Deus que criou o céu e a terra, o Deus em quem nos movemos,
existimos e vivemos: (Atos 17. 23-28).
lo para si; a se apropriar com violência do reino dos céus; todavia, não com
violência sobre seus apetites sobre a cobiça de toda espécie, sempre presente,
mas com violência perante Deus. (“Dá-me a parte que me pertence”.). É assim
que a criatura religiosa estende as suas mãos para tomar o que não lhe pertence e
tocar no que não lhe compete; quer chegar a Deus e se esquece do Mediador; em
sua conduta ignora o sacrifício de Cristo, embora o louve com os lábios. Ainda
que tal religião se diga cristã, nela se ignora a Cristo e se olvida a ressurreição;
nessa religião não há obediência, porque a obediência vem do Poder da
Ressurreição e nela não há Deus porque o Deus que o homem adora para
alcançar a graça, para conquistar o Reino dos Céus, para fazer jus à atenção
divina (nem falaremos sequer do Deus que buscamos para nossas vitórias no
mundo), esse Deus, não é o
7, 7
seu próprio benefício; que nada valem suas lutas, seus ais, seus sacrifícios, suas
obras, suas renúncias, se não renunciar a si mesmo; a religião é, humanamente,
perigosa, porque questiona o ser e o ter da criatura humana e põe a nu a
infelicidade de quem pratica o mal que não quer, e não consegue fazer o bem que
deseja: é por tudo isto que tantos são os pensadores ilustres e ignaros plebeus
que dela fogem e a combatem. Todavia, é também na religião que a criatura
aprende que há um Remidor, um Salvador, um Mediador. Esta é a sublime
realidade da religião que se supera a si mesma quando o ser humano, por ela, vê
a fidelidade de Deus e aceita a Cristo pela fé.
V. 7 (primeira parte) O que queremos, pois, dizer? Que a própria lei seja o
pecado? — Impossível!
De um lado está a graça invisível pela qual Deus, na sua liberdade, reivindica o
ser humano para si o qual, assim tomado por Deus, e em vista da realidade
histórico-espiritual da humanidade, só pode ter o sentimento de nulidade, de
vazio, de vacuidade, peculiar à criatura que transpôs o abismo. Do lado de cá
está a lei, a religião que, aparentemente, oferece à criatura o mesmo
relacionamento que a graça proporciona, todavia, ela determina tal conduta, tal
atitude, que não só torna evidente que a religião é apenas uma possibilidade a
mais no mundo, além de todas as outras que aqui existem, como também
evidencia que a criatura a ela sujeita está [ainda] do lado de cá do abismo.
conquista dessa graça; é um esforço sublime, porém apenas válido como roteiro,
caminho, marco, seta indicadora do rumo que a criatura precisa seguir para se
entregar incondicionalmente a Jesus Cristo; a religião só terá valor humano
(talvez reconhecido por Deus, ou talvez não), na medida que contiver os
atributos de testemunho acima referidos, sem nada mais pretender [perante os
homens e perante Deus].
não há um caminho gradativo, uma escada que pudesse ser galgada de degrau
em degrau, ou ainda, uma rampa que pudéssemos seguir com passo seguro,
avançando paulatinamente.
O que significa para nós a enorme distância que separa a graça da Religião? O
que significa o fato de corrermos, neste mundo, em paralelo [junto] com a
religião embora nela seja absolutamente intransponível o hiato que nos separa da
graça? Por que, [em nossa vida terrena], estamos tão próximos da religião e tão
longe da graça? Por que temos tanta afinidade com a religião e estamos em
estado de inimizade permanente com Deus [a própria fonte da graça]?
Por que não dizer [desde logo] o que está evidente, embora seja um tanto
surpreendente [e até chocante]? Dizer que exatamente a religião — a 371
7, 7
PECCATUM!” (Anselmo).
pria obra.
este trecho, desde a referência a Marcion, até ao “idealismo vazio”, como sendo
um trecho intraduzível que, no entanto, colocam aproximadamente assim:
“Por que não haveríamos de seguir Lhotzky, jogando o “Reino de Deus” contra a
“Religião”, ou então Johannes Mueller, transportando os homens do reino da
observação indireta para os abandonar no reino perdido da observação direta
que, contudo, ainda pode ser encontrado?
[ou semelhante e comparável a ela] e por isso ele não pode ser contornado por
alguma forma de religião; isto é, o pecado não pode ser vencido, aniquilado,
sobrepujado por práticas religiosas ou por qualquer religião. Porém o pecado é
uma possibilidade que existe em toda e qualquer possibilidade humana.
373
7, 7
Quem quer que seja que havendo compreendido, com acerto, que a lei
A lei não é idêntica ao pecado e a abrogação parcial ou total da lei não significa
que, (por isso ou dessa forma) haveremos de emigrar do reino do pecado para
ingressar no reino da graça.
V. 7 (Segunda parte) Eu não teria experiência do pecado se não fora pela lei;
pois eu nada saberia da cobiça se a lei não dissesse. Não cobiçarás!
374
O ser humano é pecador por força de sua própria vocação, de sua elei-
Se não considerarmos a religião, então o ser humano, como uma criatura entre as
demais, apenas é pecador no secreto de Deus de maneira invisível, não histórica.
[Esta maneira de dizer do A., afirmando que o “ser humano é pecador por força
de sua eleição” se me afigura como a proposição de silogismo, entendendo-se
por “eleição”, ou vocação, a criação do homem à imagem e semelhança de Deus,
com capacidade de optar entre a obediência e a desobediência e portanto eleito”
(ou destinado) à salvação ou à danação. Poderíamos pois, dizer que o homem foi
eleito para ser perfeito perante Deus; todavia, exercendo a liberdade que recebeu
pela eleição divina, desobedeceu, cometendo pecado; logo, o homem é pecador
por força da própria eleição...
É a lei que revela este contraste; não houvera a lei, e o homem não saberia de sua
situação. (Por isso é que a lei é santa e boa, pois chama o homem à realidade).
Quando desconsideramos a religião (como se a lei não existisse), então o pecado
já não tem destaque; a sua silhueta se perde por falta de pano de fundo, e sua
memória desaparece por falta de historicidade.
meno similar: a criatura é posta pela segunda vez perante Deus, agora, porém, do
lado oposto; o homem é justificado por Deus [por força da graça divina]; ele é
justificado de forma invisível, de forma não registrável na história; portanto, sem
a lei, o homem é justificado de forma abstrata [tão abstrata quanto, sem a 375
7, 7
A Significação (o sentido) da Religião
SER” que lhe é oposto; entre a realidade e a verdade. Levanta-se uma dúvida
mais ou menos forte sobre se “o possível” não poderia ser o impossível ou, se
Um pouco desta crise está contido em toda religião e quanto mais fortemente
esta crise se fizer sentir, tanto mais claro fica que, no fenômeno em que a
observamos, estamos de fato nos confrontando com um problema religioso.
Na realidade, cabe agora dizer que a “revolta dos escravos” levantada contra
Deus, pelos homens, tem expressão e se torna visível justamente no fenômeno
religioso.
“men who by their wickedness suppress the truth”. Entendo que “pecamino-376
sidade” expressa bem o pensamento que o A. parece querer ligar ao texto: a idéia
de maldade, de vileza, de caráter ruim, de ausência de virtude e santidade; de
disposição depravada e corrupta; impiedade.
A tradução de Almeida refere-se aos que “detêm a verdade com a injustiça (1,
18)].
DEUS”!
O ser humano passou a ser para si mesmo o que Deus deveria ser para ele!
Passou a confundir [a trocar] o que é temporâneo pelo que é eterno e, portanto,
também o que é eterno com o que é efêmero. O homem passou a ousar o que
jamais poderia ousar: estendeu a sua mão para além da linha da morte que lhe é
imposta [por Deus como limite] para dirigir-se ao Deus imortal e
“desconhecido”, [as aspas não são do A.] e assim [tentar] roubar para si o que só
a Deus pertence, colocando-se no nível de Deus ou, trazendo Deus para junto de
si [isto é, para o nível das coisas materiais e humanas].
Assim procedendo a criatura humana faz de Deus mais uma coisa entre as
demais coisas deste mundo, e tal procedimento é claramente perceptível na
atividade religiosa; a conseqüência de semelhante conduta são as crises
[inerentes à vida religiosa], que acompanham o indivíduo nesta sua mais alta,
última e arriscada possibilidade.
tica do seu mundo, analisando-se no mais profundo de seu ser, corre o risco de
É certo que “do lado de lá” (entre a Igreja Romana), Deus ficou de tal maneira
inacessível que houve necessidade de recorrer à mediação dos “Santos”, da
Virgem Mãe...
377
7, 7
Não se dará o caso de, em assim procedendo, estarmos detendo a glória divina e
a “verdade” de Deus com a pretensiosa piedade que, talvez, não seja mais que a
nossa própria impiedade e nossa injustiça?
Não teria sido justamente por isto tudo que Cristo mandou que pedíssemos em
seu nome? (João 14, 13).
É verdade que não sabemos orar e muito menos pedir o que convém. Se,
conscientes disto, nos aproximarmos reverentemente de Deus, de todo nosso
coração, de todo nosso entendimento, lembrando que poucas (e quão poucas,
quiçá nenhuma) serão as nossas razões, pois Deus está nos céus e nós na terra; e
se nos lembrarmos que somente podemos aproximar-nos do trono da graça
valendo-nos da intercessão de quem levou sobre si as nossas culpas, é
inegavelmente certo que, independentemente da forma pronominal, da nossa
sintaxe e do nosso palavreado, o próprio Espírito nos assistirá, pois “intercede
por nós sobremaneira, em gemidos inexprimíveis” (8, 26)].
A luz do que significa, para o homem, a sua mais alta atividade, revela-se
também o significado das demais possibilidades menos sublimes do que a
religião.
Com a exposição da ilusão a que está sujeita a mais sublime atividade humana,
fica realçada a condição ilusória de todas as demais atividades que o ser humano,
como tal, possa ter.
Por que haveria de ser mau o que é natural? “Eu nada saberia da cobi-
Todavia, a minha cobiça [as minhas inclinações] e a minha vitalidade tais quais
aqui as conheço, não podem deixar de se expor a essa luz.
A problemática da existência neste mundo, ainda que oculta, faz com que, de
uma ou de outra forma, a religião me sobrevenha como o ataque de um homem
armado; ou, por outras palavras, o problema da existência de Deus, ainda que
oculto [ou subconsciente], impõe que eu faça o que não posso, não devo, fazer:
preciso buscar a eternidade de Deus (por assim dizer), na forma inadequada e
indigna de um “relacionamento religioso” relacionando a eternidade divina com
a minha temporalidade e a minha temporalidade com a eternidade de Deus.
[Essa negação vem da] iluminação intensa [de minha conduta], ainda que
indireta, (através da Igreja) que interpela a minha cobiça [os meus desejos e
meus anseios], as minhas tendências naturais, com extrema energia, ainda que
não de forma definitiva.
7, 7
chegou muito mais longe na sua atividade religiosa do que o mundo gentílico, do
que o mundo indiferente à religião]; [havendo avançado tanto], a sua
impressionante queda vertical, em toda sua nitidez, pode servir-nos como
advertência contra a aproximação indevida a um alcantil ainda mais íngreme e
mais agudo, que separa de Deus tudo o que é humano, todo conteúdo e todas as
realidades do mundo. (3, 1-20).
De que maneira se dá, como ocorre, como se desenrola, com que nitidez se pode
observar esta crise da “vitalidade” humana este contraste entre a possibilidade
extrema da criatura e as possibilidades divinas, são questões de desenvolvimento
histórico que agora não nos interessam. Investigamos apenas o significado
básico do fenômeno religioso ao lado das demais experiências da vida;
indagamos a respeito do sentido da religião.
Vs. 8-11 Mas o pecado, fazendo da lei um meio, despertou em mim toda sorte de
concupicências. Porquanto, se tirarmos a lei, está morto o pecado, outrora eu
vivia sem lei, porém, chegando o mandamento, entrou o pecado na minha vida;
eu, todavia morri.
380
E o mandamento que me fora para vida, verifiquei que este mesmo se tornou
para morte.
ção que o crente fiel brilha em seu viver, não porque irradie algo de seu, mas
refletindo a luz que lhe chega desde a cruz; nesse reflexo destacam-se as
sombras da materialidade, da mundaneidade, da temporalidade e da história e
esse destaque, na forma de contraste qual o rebaixo de um sinete, em sua
negatividade, é testemunha e testifica a glória de Deus. Todavia, é um
testemunho humano e, portanto, efêmero e corruptível.
Ora, o homem tem, em Deus (pois foi criado à sua imagem e semelhança), a
liberdade de escolher o seu próprio caminho: tanto pode optar pelo escândalo da
fé como seguir outras alternativas, quiçá mais racionais do ponto de vista
humano procurando, entre outras possibilidades, roubar para si o brilho que vem
da “luz não gerada”, atribuindo valores transcendentais e eternos ao destaque
negativo de suas próprias qualidades; então cria para si um Deus segundo o
desejo de seu coração, segundo a sua cobiça. Cria o Deus deste 381
7, 8-9
Assim como a água retida numa eclusa se precipita, pela comporta aberta, para o
nível inferior e aí permanece como convém a sua própria natureza, assim
também o pecado avança no mundo das coisas, no mundo visível da
temporalidade e aí se alastra em contraposição ao que não é material, ao que é
invisível e eterno. Isto se dá segundo a sua natureza que, tratando-se de água do
canal, a impele “para baixo”, e não “para o alto”; é da natureza do pecado, correr
para o que é relativo, para o que está separado [de Deus], para aquilo que pode
ser observado e visto diretamente, [materialmente], para o que está em oposição
[a Deus].
[Na analogia do A., assim como a água na parte alta da eclusa tem energia
potencial para, através da comporta aberta, alagar os baixios do canal, assim o
pecado, originalmente, existia em potencial e, aparentemente, nada justifica que
a “eclusa” houvesse sido aberta e o pecado fluísse].
A criatura humana estava no paraíso onde não havia “em cima” e “em baixo”;
onde não havia absoluto e “também” relativo, nem aquém e “também”
O homem não deveria ser, para si mesmo, o que ele [efetivamente] é, perante
Deus: a criatura como um “segundo” [um subalterno] ao lado do Criador.
O homem não deveria ter conhecimento daquilo que Deus sabe dele e,
misericordiosamente, dele oculta, que a criatura é apenas um ser humano.
382
[A Bíblia não nos diz que Deus criou o homem para ser seu igual, po-rém, fê-lo à
sua imagem e semelhança. (Anotemos desde logo que Deus é Es-pírito e,
portanto, essa semelhança — semelhança e não igualdade — terá sido
espiritual). Apenas para melhor conceituação da significação de semelhança,
lembremos que dois triângulos podem ser semelhantes e, contudo, bastante
diferentes entre si: um pode ser infinitamente pequeno e outro infinitamente
grande... Semelhança não é congruência; ser semelhante não é ser idêntico, não é
ser cópia ou réplica fiel.
será conveniente ter em mente a advertência que ele faz quando afirma que ao
tratar da mitologia, para desmascará-la, é mister empregar palavreado mitoló-
gico; é o seu ponto de vista. Portanto, é de esperar que, quando Barth analisa
aquele aspecto do pecado que transforma Deus em ente mitológico, o seu
linguajar tenha esta forma mediante a qual visa a mostrar a hedionda
impropriedade da humanização de Deus; é um método expositivo, característica
notória de seu estilo, que choca pelo absurdo.
Seria este um Deus algo comparável aos deuses da mitologia grega, onde um
cria o risco e o outro, generosamente, desvenda aos olhos dos interessados, o
perigo iminente. É Circe advertindo Odisseu para que não se deixe enganar pelo
canto mavioso das sereias. Deus seria, assim: teria, quiçá, poupado piedosamente
o “seu segundo” do conhecimento “da posição” que desde a eternidade estaria
escondida no próprio Deus, “bondosamente” nada contando dessa situação que,
para desgraça do gênero humano, “a serpente” veio revelar.
Parece que o A. considera tão clara a evidência dos fatos (pois escreve para
teólogos) que não se dá, sequer, o cuidado de reiterar que fala “por parábola”.
Também é certo que o Deus que a Bíblia nos apresenta é justo e reto em todos os
seus caminhos e não se deixa levar de respeitos humanos. Todavia, 383
7, 8
O homem foi feito do pó, carne e sangue à semelhança material dos animais da
terra — mais próximo de uns e mais distante de outros. A rigor, em que se
caracterizou a diferença entre o “HOMO ERECTUS” e outros seres?
Outros havia que também andavam erectos; outros havia que também emitiam
sons, quiçá inteligíveis entre eles; outros havia que recorriam a variados graus de
recursos intelectuais. Todavia à criatura humana, ao chamado “HOMO
SAPIENS” foi dado o dom sobremaneira excelente entre os demais dons: o dom
de optar! Só o homem decide.
Houvesse o ser humano sido posto no Éden sem ter como exercer o dom de
optar, já não estaria aí como o ser criado à imagem e semelhança de Deus. Já não
seria “Filho de Deus” mas apenasmente uma criatura material.
384
Havendo o homem optado mal, ainda pelo decreto eterno de Deus-Pai, deu-lhe
este a oportunidade de nova opção: agora, já não mais a ordem de não comer do
fruto da árvore proibida, mas o direito de optar pela fé. Não é mérito para o
homem: é privilégio! Não é obra humana: é graça divina.
Adão, antes de pecar, viveria pela obediência (optando!); depois da queda o justo
vive pela fé, — (ainda optando!).
Esta é, parece-me, a posição do homem perante Deus; pôde e pode optar entre
ser semelhante a Deus, conservando-se unido a ele: antigamente — na origem da
raça, como ser espiritual através da obediência: hoje e na consuma-
ção dos séculos, pela fé. Como alternativa, pôde e pode optar também, na origem
da raça e hoje, até a consumação dos séculos, pela autopromoção de sua
igualdade com Deus, quer seja ouvindo a pregação da “serpente”, ou construindo
suas “Torres de Babel”, ou fazendo para si bezerros de ouro...].
Ante o homem “não conhecedor” passeia o Senhor pelo jardim, na tarde amena,
como entre seus iguais [por concessão divina e jamais por presunção dos
moradores do Éden!].
Voltemos, por um instante, o nosso olhar ao quadro de Miguel Angelo (no teto
da Capela Sixtina) representando a criação de Eva e prestemos atenção ao gesto
fatal de adoração com o qual a mulher entra no palco, em pleno esplendor de sua
sensualidade; observemos a mão de Deus levantada em advertência, e a
expressão altamente preocupada de sua face, com que ele responde a este gesto
adorativo da mulher. [Novamente a linguagem “mitológica”. As considerações
do A. dizem qual a sua interpretação da representação do grande artista;
poderiam ser, no máximo, a expressão do pensamento de Miguel Ângelo, sobre a
cria-
385
7, 8
Quando a árvore de centro do jardim for tocada, quando o ser humano tocar
naquilo que o une a Deus, e que o separará dele no instante em que for tocado,
(quando o homem roçar no que ele jamais deveria!), então ele encostou no arame
farpado e eletrizado da linha da morte; então o homem, ao estender sua mão em
busca daquele que ele não é, encontrou a sua própria limitação, e achou-se qual
realmente é; então abrem-se-lhe os olhos para ver o que o separa de Deus: ver
que está nu! Ver que está inteiramente sujeito a seus instintos, dominado pelo
sentimento de cobiça e pelas suas paixões; que está inteiramente inclinado ao
que é efêmero e passageiro e que, portanto, também ele é perecível.
Por que será que [embora] esta questão — representada pela conjuntura de Deus,
como Criador, de uma parte, e do homem, como criatura, de outra, —
sendo, quando vista de nossa perspectiva, tão imperativa, tão categórica, tão
premente, sequer possa ser abordada? (Por que não podemos formular esta
questão?)
386
Nunca tivemos notícia de um só ser humano que deixasse de praticar o que Adão
perpetrou. Nem podemos admirar-nos de que Adão tenha feito o que não
deveria: tocamos [constantemente] a árvore e levantamos a questão; a
contradição que ela contém, cujo conhecimento e cuja carga Deus, para nossa
salvação, reservara a si mesmo, tornou-se o conteúdo de nossa vida; agora a
nossa vida é dominada pela exigência que o conhecimento do bem e do mal
impõe, e o paraíso passou a ser — o “Paraíso Perdido”!
[Isto se dá porque] a determinação daquilo que será “o bem”, daquilo que “deve
ser” [ou que se deve buscar], desacredita aquilo “que já é”; pelo menos, “o que
é” passa a ficar sob suspeição, e talvez já tenha sido denunciado, ou até mesmo
julgado, como sendo o mal.
Justamente a religião serve de alavanca, [de meio] ao pecado; serve como seu
capital operacional, como ponto de apoio, na empresa que visa a afastar o ser
humano de sua união direta, original e verdadeira, com Deus, e conduzi-lo 387
7, 9
“Porquanto, sem lei está morto o pecado. Outrora eu vivia sem lei”.
Este passado, referido às origens do ser humano, assim como o futuro que se
refere a fatos escatológicos, não trata de um “viver” histórico, como se apontasse
a uma data ou era assinalada relacionada a algum, ou alguns ou mesmo a todos
seres humanos; não se trata de determinada qualificação da cronologia humana,
antes são “um passado” e “um futuro” independentes dessa cronologia.
“Eu vivia” e o pecado estava morto, porquanto eu vivia “sem contar com a lei”.
Sem a lei, o pecado está morto e o homem vive.
Na vida original, invisível, não histórica, a linha da morte que separa o homem
de Deus, não foi tocada; a mão que tangeria a árvore fatal do centro do jardim,
não foi estendida; nessa vida a simultaneidade da união e da separação entre
Deus e o homem ainda não tem a conotação trágica que lhe advém
imediatamente através da religião.
“criação de Adão”, de Miguel Ângelo, a alegre liberdade com que as duas mãos
se buscam, a expressão triunfante da mais profunda e, também, mais comovida
paz, reinante no instante da criação, parece coroar o homem [protegendo-o
contra aquilo que lhe roubaria o direito de conviver com o Criador], protegendo-
o da queda após a qual ele passaria a ser o “homem velho”, a criatura que
ansiaria pelo “homem novo” desejando ardentemente a restauração da perdida
comunicabilidade. Sim, de tudo isso parece falar a soberba pintura, porquanto
388
ela nos fala da comunicação direta ainda não perdida, da comunicação que não
tem nenhuma conotação religiosa.
Neste estado de comunhão direta vive o ser humano: não este ou aquele, mas o
ser que Deus criou a sua própria imagem e semelhança, na qual também o
restaurará: esta união jamais e nenhures “foi” e nunca e em parte alguma
“será”. Dela viemos e para ela iremos! [O ser criado à imagem e semelhança de
Deus não “foi” nem “será”: “é”!].
Esta união é feitura e obra exclusiva de Deus; ela é o relacionamento que Deus
tem conosco, que o pecado não destruiu. O que Marcion descreveu
“como, por assim dizer”, sendo “terra estranha”, é a nossa pátria; pátria que não
podemos esquecer; pátria cuja realidade, proximidade e glória o Evangelho nos
revela com as candentes palavras Perdão e Ressurreição, Amor, Deus!
“O mandamento veio”; veio porque tinha de vir para o ser humano que, com seu
conhecimento do bem e do mal, da eleição e da rejeição, do sim e do não,
tornou-se “qual Deus” e se fez participante do segredo divino, ficando obrigado
a suportar essa condição. [“Iguais a Deus” apenas no conhecimento do Bem e do
Mal].
389
7, 9-10
então esboçou o gesto de adoração, vale dizer a religião, como forma possível de
voltar a gozar da comunhão direta com Deus. Ora, é este próprio gesto que
evidencia e denuncia a materialidade e a perecibilidade de tudo quanto o
homem, como tal, faz; quer e pensa].
Se, pois, o ser humano pode e tem que se conduzir [através da religião]
“Porém eu morri”. E o passado primevo (não temporal), está claro. Esta morte
assinala a passagem da eternidade para a temporalidade.
Agora, tudo se tornou indireto. Nossa vida ficou em insolúvel oposição à vida
divina e por isso está sob o inevitável estigma da morte, em toda sua extensão.
Cabe-nos, apenas, lembrarmo-nos de que temos de morrer; convém pois que nos
tornemos sábios, para não sermos tolos (no sentido mais infeliz da palavra!). É
na morte que nos confrontamos com a interrogação da vida, a interrogação
divina. A interrogação sobre o “SIM” se impõe inexoravelmente dentro do
“NÃO”; ela está no contraste entre o visível e o invisível — está na figura do
tempo que só pode ser passado ou futuro, porém, jamais presente; está no
conteúdo da história que só é história e nunca atualidade; está na representação
da natureza, que só pode ser o Cosmos, porém jamais será criação.
ência básica de todas as demais, resume-se nesta frase: “Eu, porém, morri”!
390
Isto se dá, exatamente, com o homem religioso; aliás, é uma peculiaridade dele:
“E então exclamei: Ai de mim que pereço! Eis que vi o Rei, o Senhor Jeová,
com os meus próprios olhos. (Isa. 6, 5). [A tradução de Almeida, escreve: “Estou
perdido!... os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos”!]
[Em outras palavras, talvez pudéssemos dizer que o maior absurdo de nossa
queda, é que justamente a aspiração que a motivou, — o desejo de sermos iguais
a Deus, é agora o que temos absoluta necessidade de recuperar].
Acaso existe algum outro meio pelo qual possamos perceber o invisível (1, 20)
para, como homens sensatos, sabermos o que se pode conhecer de Deus, sem
que seja pelo caminho estreito e apertado da morte?
391
7, 10
O mandamento que a isto nos constrange visa à vida, e sabêmo-lo muito bem;
nem poderíamos, aqui, saber outra coisa.
392
Religião significa a morte. Para provar esta analogia, é bastante lembrar que toda
relativa inocência, ingenuidade e paz interior desaparecem quando a religião [ou
para quem a religião] se torna aguda.
O pecado torna possível aquilo que agora, neste mundo, é a nossa carência, a
nossa necessidade: a mais alta mediação do conhecimento do “Bem” e do
“Mal”.
Esse logro se perfaz cegando o ser humano para que ele não veja que a sua
própria carência e sua necessidade, puramente humanas, são coisas que não
devem, como tais, existir perante Deus.
O logro é bem sucedido porque o ser humano, que toma essas características [de
conhecimento] perante Deus, revela-se como simples criatura.
[A tradução inglesa diz: “Ele (o logro) tem bom resultado porque a determinação
humana de reter a possibilidade de independência diante de Deus, revela que os
homens são apenas homens”.]
pria; é uma adoração que não sabe calar perante Deus; que deixa tombar os
braços que se levantaram em prece para novamente incitá-los a que se ergam,
deixando-os, porém, cair sempre de novo. Esta é a situação humana!
ção que não sabe silenciar perante Deus, designa tal adoração por “religião”;
oculta do adorador [do crente], não somente a situação duvidosa do mundo, mas
também quão terrivelmente duvidosa é a religião; ele [o mandamento] o anima a
erguer as mãos em prece e deixa-as cair em aflição, e nesta aflição o induz
novamente à prece. Esta é, afinal, a situação em que os homens se encontram,
sob a lei”].
393
7, 10-13
Pergunte-se sempre!
Que essa pergunta nos chegue de toda parte, de todos os lados, e nos cerque
inteiramente!
Que Deus nos negue qualquer resposta que não seja outra pergunta; que ele nos
impeça de contornar o problema, de buscar contemporizações; que essa pergunta
seja o aro da roda de cujo cubo já falou Láo-Tse, com muita precisão.
(Em outras palavras, na alegoria da roda, a própria pergunta aflita do ser humano
aponta para o centro que é Deus. Se o homem já não perguntar será, ou 394
A pergunta não pode deixar de existir pois em seu âmbito (como dentro da área
que o lugar geométrico da circunferência delimita) está o próprio relacionamento
lícito do homem para com Deus).
“A lei é santa”.
[ou capacidade] humana o seja, pois pecado é muito mais que uma possibilidade.
Antes, pelo contrário: A “Religião” marca o ponto onde todas as possibilidades
humanas entram e ficam expostas à luz divina. [Ou para usar a maneira de dizer
da tradução inglesa: “A religião é o lugar onde toda capacidade humana é
iluminada pela luz divina”].
É a religião que, ao longo dos caminhos do mundo testifica o que é divino; fala
da retidão; é a religião que repele as coisas humanas e aponta a Deus. A religião
é correlata, paralela à vontade divina, e a própria semelhança dessa vontade. A
religião é o bem que mostra o desenvolvimento e a situação [do homem],
testemunhando da perdida ligação direta com Deus por meio da ligação indireta
[que ela representa].
[em Deus] e o buscando de toda nossa alma, de todo nosso coração e com todas
395
7, 12-13
Todavia, quanto mais conseqüente for a nossa religiosidade, quanto mais nos
aprofundarmos nela, mais densa e mais profunda será, sobre nós, a sombra da
morte.
Esta pergunta coincide com a outra, (da qual partimos para nossa análi-se) e que
indagava se a lei era pecado (7, 7); o conteúdo dessas duas perguntas poderia
levar a quem quer que busque a lei, a evitá-la, a fugir dessa luz mortiça, do
lusco-fusco, do perigo da Religião.
poderia fazer e, desta maneira nos livrarmos, pelo menos em parte, da maldição
e da miséria da mediação [em nossa ligação com Deus, que a religião nos
impõe]?
Não seria forte a tentação de nos libertarmos dessa possibilidade [ou atividade]?
Não seria razoável procurar diminuir ou evitar até certo ponto, os efeitos desta
possibilidade que é apenas humana, que é tanto relativa quanto alternativa,
própria à existência neste mundo, e que a ninguém sobrecarrega mais do que à
criatura religiosa?
— “Impossível”!, respondemos.
Custe o que custar, temos de suportar este fardo. Temos de sorver o cálice até a
última gota. O bom não deixa de ser bom [nem o bem deixa de ser o bem] pelo
fato de não ser a coisa simples ou fácil, por não ser o que está diretamente à
mão, por não ser o logicamente aceitável, nem deixa de ser bom (ou o bem)
porque, indubitavelmente, nos conduz à porta da morte. Temos de tomar sobre
nós o paradoxo cabal da situação da criatura neste mundo, e que consiste nisto:
quando tomamos consciência do que somos e qual é a nossa situação neste
mundo, quando nos confrontamos com a problemática desta vida, o mandamento
de Deus vem a nosso encontro e nos conduz, passo a passo, à nossa última e
maior possibilidade [leva-nos à religião]; então, suspirando, des-falecendo,
implorando, clamando, estendemos as mãos súplices ao grande desconhecido, ao
SIM invisível, oculto dentro do “NÃO” que nos aprisionou; somos obrigados a
reconhecer que todo esse suspirar, esse desfalecer, esse implo-rar, esse clamar,
não nos justifica, não nos redime, não nos salva, antes, com o nosso aiar, nossa
súplica, nosso desfalecimento, nosso clamor, apenas confirmamos e
comprovamos que somos criaturas humanas — [apenas criaturas e nada mais]!
Preciso obedecer à cobiça [ao desejo] que está acima de todas as cobi-
ças, ao desejo de voltar à vida de ligação [comunhão] direta com Deus, que foi
perdida e, enquanto eu o escuto [e o acalento], este desejo qualifica todos os
desejos [do meu coração] — também a si mesmo, e não em último lugar —
Para alcançar a “semelhança com Deus”, para usufruir do “instante eterno” que é
o ponto central visado por todas minhas atividades preciso, a despeito 397
7, 13
[Fê-lo] pelo que é bom! Pelo que é necessário! Pelo inevitável! [Fê-lo]
por meio daquilo a que, para sermos honestos, afinal, nos agarramos qual náu-
frago ao graveto que passa. [O pecado nos prepara e nos condiciona para revelar-
se] pela possibilidade [sublimei que, ao ser descoberta, surge para nós como luz
na escuridão. Prepara-nos pela mais pura, mais esperançosa, pela mais desejável
das possibilidades humanas.
Este é o sentido, o significado da lei; ela aguça a nossa vista [abre a nossa
inteligência, o nosso entendimento] para compreendermos que esta libertação da
398
lei, essa servidão segundo a nova lei do Espírito, pela qual já olhávamos para
além dos limites da religião (7, 6), é de todo impossível à criatura humana, neste
mundo.
Comentários: 7, 7-13
Essa posição extremada, essa incursão e pesquisa ao longo dos aspectos mais
difíceis (e até mais escabrosos) do tema é uma característica do Autor; tem-se a
impressão que a indagação surge espontâ-
nea e, intimorato, ele a persegue e disseca sob todos os ângulos e aspectos sem
endereço certo; sem encaminhar o raciocínio para uma tese preconcebida; indaga
e analisa sem destino prévio e forçoso é reconhecer que ao nos aproximarmos do
final da exposição, conclu-
ímos por antecipação pela tese que logo a seguir resulta demonstrada.
“O que faremos?”
Parece que esta resposta não condiz com a que recebeu o car-cereiro de Filipos
quando perguntou a Paulo o que deveria fazer para salvar-se, nem com aquela
que o próprio Paulo, (ainda como Saulo), recebeu quando viajava ao longo da
estrada para Damasco.
Todavia, a pergunta de que o A. trata (na exegese de 7, 12) refere-se não ao que
fazer para salvar-se mas, ao que fazer com a religião que, de uma parte se impõe
como inexorável necessidade humana —
399
7, 14-25
A Realidade da Religião
Ora, somente indaga, se aflige e pergunta quem sente a grandeza divina da lei; a
fatalidade do pecado que ela revela e condena.
É por causa desta sensibilidade e em virtude do anseio pela graça divina que ela
evidencia, que o A. faz votos de que Deus conserve e preserve o nosso ânimo de
perguntar.
Quem, pela graça de Deus, vir o pecado, pela mesma graça verá a fidelidade de
Deus. Não se cansará, nem se fatigará de perguntar, antes, renovar-se-ão suas
forças de dia a dia e sobreviverá pela fé.
Porém, antes que voltemos novamente nossa atenção ao ponto de vista geral
dessas nossas cogitações, [sobre a liberdade de Deus, no homem], convém que
nos precatemos contra a conclusão (que possam tirar os teoristas) da nossa
dedução teórica de que a religião é a última pergunta do homem, e que venham
dizer-nos que a resposta a essa pergunta está, exatamente, na chamada
“realidade religiosa”; que esta realidade já não é questionável e que ela está além
do que seja culpa e destino.
Para tanto, precisamos dar a palavra a essa “realidade religiosa”, isto é, Homem
Religioso naquilo que ele tem de peculiar: [dar a palavra à] — “Psicologia da
Religião”!
Acaso sabe o homem religioso algo mais além do fato de que o pecado celebra o
seu triunfo marcando-o [a ele, o religioso] com a marca de escravo seu
[ferrando-o a fogo], (e que, para fazê-lo), serve-se do que é bom, serve-se
[Na realidade], nada mais que isso conhece ou sabe o homem religioso.
Por mais que a psicologia romântica procure esconder este fato, exaltando a
religião como o meio de dignificar todos “os conhecimentos do mun-400
A Realidade da Religião
7, 14-25
do” apresentando-os como “obras de Deus que acompanham todos os atos
humanos qual música divina” (Schleiermacher), a religião propriamente dita, a
religião ativa, combativa, devidamente lastrada, não estética (isto é, sem
preocupação com o artístico, o belo, o agradável aos sentidos], a religião não
retó-
rica, não devota, a religião qual a retrata o Salmo 39 ( “tu és a minha esperança
livra-me desvia de mim o teu olhar para que eu tome alento”!], ou [então a
religião] de Jó, de Lutero, de Kierkegaard, a religião de Paulo — tal religião
reagirá tenazmente, sempre e de novo contra a religiosidade inócua e insossa
[do romantismo].
[Entendo que o A. quer dizer que a religião vigorosa, a religião que tem
consciência da posição da criatura perante Deus, na realidade envolve e enfecha
todas as possibilidades humanas, todavia também as anula, as esvazia do valor
que possam pretender ter perante Deus e dessa forma prepara o caminho para a
graça de Deus, que testifica].
401
7, 14-17
A Realidade da Religião
A religião não traz a solução nem a resposta à pergunta vital da criatura neste
mundo, antes apresenta-lhe, por assim dizer, um enigma insolúvel.
A religião não se propõe a ser usufruída nem exaltada; ela quer, apenas, ser
suportada como jugo obrigatório.
Religião é a infelicidade sob cuja pressão João, — o batista — sai para o deserto,
a pregar o arrependimento e a lei. É sob o pressionamento da religião que vem a
lume um tão estremecido e profundo gemido qual o da segunda carta aos
Coríntios. É esta mesma pressão que transmudou a face de Calvino, marcando-a
com a expressão que ele apresentou nos seus últimos dias.
Vs. 14-17 (Primeira constatação): Pois eu sei muito bem que a lei vem do
Espírito; eu, porém, sou carnal, vendido ao pecado. Portanto o que faço, isto
não reconheço; pois não faço o que quero mas o que odeio, isso faço. Enquanto,
porém, faço o que não quero, confirmo a lei como sendo justa; porém não sou
eu que faço tal coisa, mas o pecado que está em mim.
Parece que ambas as redações deixam bem claro que ao fazermos o que não
queremos, por não querê-lo, estamos confirmando a boa qualidade da lei.
Todavia o A. chama atenção à primeira parte do versículo, onde ele escreve “eu
sei muito bem que a lei vem do Espírito” — (ou, é espiritual) enquanto Almeida,
e as demais traduções escrevem, “bem sabemos que a lei é espiritual”.
402
A Realidade da Religião
7, 14
Saber isto, é o primeiro requisito de uma criatura religiosa. Ela está sob a
impressão compulsiva do Espírito, que é compulsivo por ser o “de onde” que se
opõe diretamente à pergunta “para onde” que a morte apresenta. A criatura fica
situada entre a aflição e a esperança de uma batalha da qual não pode esquivar-se
por se tratar da luta pela própria existência. Ela está perante uma solicitação que
precisa satisfazer a todo preço, pois todas as insuficiências de sua vida e de seu
modo de ser testificam a necessidade e a justiça dessa exigência. Pergunta-se-
lhe, e ela precisa responder; ela é chamada, e deve obedecer. A existência de
Deus sobressai e se eleva qual um muro, qual uma fortaleza que bloqueia o
horizonte e invade a vida do ser humano qual punho cerrado e ameaçador.
Nesta situação o ser humano precisa tomar posição, precisa definir-se, precisa
submeter-se. Paulo sabe o que diz quando, escrevendo algures, se considera
“prisioneiro e encarcerado.” (Efésios 3, 1 e 4, 1; II Timóteo 1, 8 e Filemon 1, 9).
“Senhor, tu me persuadiste e eu me deixei persuadir; tu foste mais forte que eu, e
prevaleceste”! (Jer. 20, 7).
[Mediante semelhante condição], se Deus for Deus, quem sou eu? [Como ser
carnal e pecaminoso) estou preso e acorrentado por ele?
Que espécie de existência seria essa que, recebendo o impacto da lei que vem do
Espírito, tivesse de orientar-se pela aflição e pela esperança que ela provoca e
tivesse de submeter-se a sua solicitação?
Em qualquer hipótese, não seria a minha, nem qualquer existência humana que
eu conheça.
Como haverei de responder [carnal que sou], se for interrogado? Como haverei
de escutar, se for chamado? “Eu sou carnal”. A carne jamais será Espírito!
vel [ou anulável], senão pelo perdão dos pecados. Ora, eu sou um ser humano
403
7, 14-15
A Realidade da Religião
[Como homem do presente século], para que me serve o Espírito? Para que me
serve a lei que dele procede? Para que me serve minha “religiosidade”?
“Deus”, não condiz, não vai bem com o homem que sou. [A trad. inglesa
escreve: “Não há elo de ligação entre mim, qual sou, e Deus”].
“Porquanto o que faço, isto não reconheço, pois não faço o que quero, mas o que
odeio, isso faço”.
A Realidade da Religião
7, 15
fosse, seria a expressão que procuro para exprimir com propriedade a minha
grande ansiedade e imensa esperança? Acaso posso falar de outra forma se não
de maneira que uma palavra suprima e cancele a outra?
Acaso algum pensador, poeta, estadista ou artista, que mereça ser levado a sério,
realizou alguma obra que lhe satisfizesse plenamente, na qual ele se considerasse
plenamente realizado?
Eu não entendo tais obras e feitos, nem os aprecio e quero; antes quisera renegá-
los quando me fixam quais monstrengos repelentes.
Eis que conhecemos em parte e sabemos em parte (I Cor. 13, 9). Por isso não
reconheço [não sei] o que faço. Aquilo que quero não faço, porém o que odeio,
isso faço.
Quem sou eu, porém, — aquele que fica despedaçado entre este “não fazer o que
quer” e o “fazer o que não quer”?
“Enquanto, porém, faço o que não quero, confirmo a lei como sendo justa”.
7, 15-17
A Realidade da Religião
nho minha própria passagem pelo mundo; o fato de eu não querer aquilo que
pratico.
Não estarei [quando mais não seja] ao menos por força dessa minha negação, em
harmonia comigo mesmo? Acaso não sou praticante da lei, pelo menos na
medida em que tenho profunda consciência da minha pecaminosidade e me
oponho a ela, decididamente?
Não posso, ao menos me acalmar [me consolar, justamente] pelo fato de estar
tão inquieto?
Arnd).
Frases perigosas essas. Quem não conhece esse subterfúgio da dialética pietista
ou a rósea suavidade crepuscular do compromisso, do apaziguamento e da
resignação que mansa, mui mansamente, tinge o horizonte após toda sorte de
tempestades de consciência, sempre quando nos deparamos com semelhantes
lutas?
“Porém não sou eu que faço tal coisa, mas o pecado que existe em mim”.
O que significa, pois, que eu odeie aquilo que faço e que proteste contra mim
mesmo? Evidentemente apenas isto: que estou abrindo o valo que me separa de
mim mesmo.
Será assim que encontrarei a resposta à pergunta: “Quem sou, se Deus existe”?
Eu, — aquele que “faz estas coisas” e cujos feitos e obras [também] eu (o outro
“eu”) observo com acerbo desgosto — [esse primeiro “eu”] evidentemente não é
o que há de subsistir ante aquela pergunta.
Quem é este outro eu? Acaso não é ele esse nobre observador impotente, esse
coitado expatriado que nada mais pode fazer do que menear a cabeça para dizer
“Não” ao que o outro faz, enquanto este outro continua agindo e fazendo o que
bem quer, até mesmo em nome daquele que o desaprova?
aquilo que faço; que “não mando” em minha casa; que é um outro que aí “faz e
acontece”, sob meu protesto; que é um outro que (na minha casa) “pensa, fala,
sente e negocia, enquanto “eu” somente cedo “a praça” e o nome [a razão social]
para realizar aquilo com que nada tenho a ver?
406
A Realidade da Religião
7, 17-20
Contudo, o que mais significa esta justificação [que alego], esta minha
concordância com a lei, se não o juízo que faço de mim mesmo, admitindo que o
pecado existe em mim? E semelhante julgamento acaso garantirá um seguro
ponto de apoio para os meus pés?
Quem me garante que “aquele eu” que faz aquilo que lhe apraz, e “este outro”
que não quer aquilo que aquele faz, não sejam, basicamente, idênticos?
Quem sabe se a minha sanhuda oposição contra mim mesmo, não é mais do que
bravata do estilo do “Barão de Muenchhausen” [celebre personagem, “con-tador
de lorotas” da literatura alemã] que se desenvolve [em torno do meu ego]
que de fato existe além do pecado que habita em mim. A religião fala apenas da
dupla personalidade segundo a qual, constantemente, mediante uma faço o que
não quero e, mediante outra não quero o que faço.
A religião fala-nos apenas da discordância que há entre aquilo que o ser humano
sabe [que deve fazer] e aquilo que ele pratica; ela nos fala unicamente de uma só
realidade: a realidade do pecado.
Vs. 18-20 (Segunda constatação): Porquanto eu sei que o bem não habita em
mim, isto é, na minha carne; eu consigo querer o bem mas não está em mim
realizar o que é reto, pois não faço o bem que quero, mas o mal, que não quero,
não sou eu quem o faz, porém o pecado que habita em mim.
“Eu sei que o bem não habita em mim, isto é, na minha carne”.
Aqui, ainda uma vez, nos deparamos com a situação especial em que se
encontram aqueles que anunciam o evangelho (3, 1-20): eles podem e precisam
saber [e reconhecer que em nós, — e neles — não existe bem nenhum]; logo
eles! Nem tampouco a revelação de Deus em Jesus Cristo se faz sem a iniciação
da criatura neste terrível segredo e isto porque a revelação de Jesus Cristo é a
revelação de todas as revelações!
“O mui caro Paulo bem que gostaria de não estar em pecado; eu e outros muitos
estimaríamos, também, do pecado estar isentos; mas não pode ser assim; caímos
em pecado e o exsudamos por todos os poros; levantamo-nos de novo,
martirizamo-nos e nos debatemos com ele dia e noite sem descanso.
Porém, enquanto estivermos ligados a esta carne, enquanto carregarmos este 407
7, 18-20
A Realidade da Religião
mal cheiroso invólucro atado ao nosso pescoço, a luta não há de cessar, nem
poderemos ensurdecê-la, por mais que nos esforcemos para conseguí-lo. O
antigo Adão também quer ter a sua vida até que chegue à sepultura. Em resumo:
o Reino de Deus é um reino peculiar: nenhum santo pode aqui dizer outra coisa
se não: — Oh Deus, Todo-Poderoso, eu me confesso um pobre pecador; não me
imputes a antiga culpa!...
“Não é cristão quem não tem pecado nem sente culpa, e se encontrares um tal,
esse é um Anticristo e não um verdadeiro cristão. Portanto, o Reino de Cristo
está onde há pecado, por entre o qual existe. Cristo destacou o pecado na Casa
de Davi”. (Lutero)
Este “porém” [eu, “todavia”] (7, 14) não representa uma ressalva, uma
atenuante, uma concessão a favor do homem religioso com respeito ao que ele
sabe de si mesmo, pois a expressão “em minha carne” não é condescendência
que se lhe faz, antes é reforço à acusação [à desqualificação] que ele, justamente
o homem religioso, precisa levantar contra si mesmo.
“Por que me chamas bom? Não há ninguém bom, senão só Deus”! (Marc.
Portanto, a afirmação de que “Deus e ‘o homem que sou’ não vão juntos” [não se
coadunam] e que se tornou clara para nós imediatamente quando tomamos
conhecimento do que é espiritual (7, 14), não foi deduzida sob um impulso
pessimista, antes o que então concluímos por experiência se confirma pela
própria lógica. Este conhecimento do ser humano se baseia, exclusivamente, no
conhecimento de Deus. [O homem sabe que não é bom, em virtude de seu
conhecimento de Deus].
“Porquanto eu consigo querer o bem, mas não consigo realizar o que é reto, pois
não faço o bem que prefiro mas o mal, que não quero, esse pratico”.
408
A Realidade da Religião
7, 18-20
A minha vontade lembra-me do bem que não está em mim, porém é apenas
minha vontade que se identifica com o meu conhecimento do caráter divino da
lei (7, 14), pois sem querer o que é divino, não poderei sequer tomar
conhecimento do que esse divino seja.
Fica, pois, claro e fora de dúvida que o mais honesto, o mais profundo, o mais
fundamental desejo de fazer o bem, nem sempre é coroado com a realização do
que é reto.
Contemplemos ainda uma vez o vasto cemitério que abriga a história de tantas
igrejas cristãs. Examinando o teor de espiritualidade dessas igrejas todas
veremos que, certamente, não lhes faltou um mui sincero “querer”.
409
7, 19-20
A Realidade da Religião
Em que se diferençava a ação de Jeremias daquela dos falsos profetas que se lhe
opunham? Qual a diferença entre o sucesso da cristandade antiga que teve o seu
apogeu com Constantino (historiadores não interessados em teologia, por favor,
entendam) e o sucesso de seus contemporâneos, adoradores de Mitras e Cybele?
Donde procede o contraste da piedade interior que emana dos olhos da virgem,
pintada na Capela Sistina, admirada por tantos, quando comparada com a
enorme hipocrisia que fala dos olhos das “virgens” de El Greco?
Acaso não são as realizações [e os feitos] dos homens apenas degraus de uma
mesma escada e todas juntas, na melhor das hipóteses, apenas analogia
Não é evidente que a sinceridade que o Senhor faz prosperar não é exatamente a
mesma coisa que o querer honesto que podemos desejar e do qual,
ocasionalmente, podemos tirar consolo ou conforto? [Não é certo que] nada
sabemos do caminho que desse honesto desejar leva à sinceridade que o Senhor
acolhe? Não é verdade que apenas sabemos que esse caminho é linha que se
rompe sempre e sempre e que jamais nos leva ao nosso alvo?
“Pois não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço”.
Como homem religioso, à minha própria indagação sobre o que poderei fazer de
bom por força do meu amor ao bem, terei que responder “NADA”.
Terei que admitir que não posso permutar a minha vontade de praticar o bem
pelo próprio bem. O bem tem a peculiaridade de insistir na realidade, [na sua
efetivação]; o bem não quer ser somente desejado mas precisa ser realizado e
praticado. Porém eu não o pratico; por isso, ainda uma vez, preciso indagar:
quem sou eu que de forma intolerável preciso ser “os dois”, concomitantemente:
aquele que quer e aquele que não pratica o que quer e que, pelo desejo sincero de
seu coração, é apenas conscientizado de que o bem...
“Contudo, quando pratico aquilo que não quero, não sou eu quem o faz, mas o
pecado que habita em mim”.
A Realidade da Religião
7, 20-23
(7, 16 -17) possa justificar-me, antes, pela segunda vez se confirma a minha
própria conclusão a meu respeito: não sou eu que faço.
Excluído e premido contra a parede, preciso assistir ao que acontece, de fato, em
minha própria casa.
De que adianta o apelo, o meu apego, ao bem, se não para confessar que o
pecado habita em mim? Sim, ele habita, e é ele quem faz e realiza. Porém, o fato
de ser o pecado quem pratica o mal, não me serve de desculpa; antes, é minha
autocondenação pois, que bases tenho para dizer que o “eu” que não quer, e o
outro “eu” que faz, não sejam os dois o mesmo “eu”?
Vs. 21-23 (Conclusão): Descubro, pois a realidade da lei evidenciada para mim
no fato de que, ao querer fazer o que é reto, pratico o mal pois, segundo o
homem interior me regozijo na lei de Deus; porém, vejo em meus membros uma
outra lei, guerreando contra aquela que está na minha ra-zão [no meu senso, na
minha “mente”], e me levando ao cativeiro sob a lei do pecado, [que está] em
meus membros
[Almeida escreve assim: “Então, ao querer fazer o bem, encontro a lei de que o
mal reside em mim. Porque no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de
Deus; mas vejo nos meus membros outra lei que, guerreando contra a lei da
minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que está em meus membros”].
Somente poderá estar em harmonia consigo mesma a criatura que ainda não
acordou para a grande interrogação sobre sua unidade com Deus.
Todos traímos com suficiente clareza, por nossos atos e pelo nosso
comportamento, que de maneira alguma estamos de acordo com nós mesmos e
mostramos, assim, o quanto Deus nos inquieta.
(Felizes [do ponto de vista do mundo], aqueles que podem iludir o cora-
ção que esmorece; possam eles [prolongar por longo tempo essa insensibilidade]
adiar de muito o seu despertamento.)
411
7, 21
A Realidade da Religião
Por força da lei através da qual conheço a Deus, quero “praticar o que é reto”;
todavia, também por força da lei mediante a qual sou conhecido por Deus, [isto
é, pela qual Deus me analisa ou através da qual me vê], “pratico o mal”.
[Ora a lei é a religião e] esta mais alta possibilidade, [o conhecimento que tenho
de Deus pela religião], transforma-se para mim na mais alta perplexidade [pois a
religião me expõe perante Deus, qual sou]. A maior dádiva e também a maior
ameaça; a mais alta promessa se transmuda na mais alta aflição.
A Realidade da Religião
7, 21-23
Todavia, todo esforço [e clamor] que alguém faça contra o sentimento religioso
não surtirá qualquer êxito pois a criatura humana tem este sentimento tão
profundamente arraigado em seu coração que não pode afastar-se dele; nem
mesmo a cultura do hodierno mundo ocidental tem capacidade para proteger o
homem contra a incursão da religião. [O A. escreveu isto entre os anos de 1918
A religião, sob a capa de mais fiel amiga do ser humano, é adversária de gregos e
bárbaros; ela tanto é a crise da cultura como da falta de cultura. Ela é o mais
perigoso adversário que a criatura humana tem deste lado do mundo (depois de
Deus), pois é ela que leva o homem a cogitar sobre a certeza de sua morte e a
considerar a possibilidade que Deus oferece.
“A lei de Deus é a danação dos homens pois, enquanto estiverem sob a lei, são
escravos do pecado e devedores da morte”. (Calvino)
413
7, 21-23
A Realidade da Religião
“espírito” pois, ainda como homem religioso, tu também sabes muito bem que o
espírito quer ser natural, a todo custo. (Isto também o sabes de Deus).
“eu”, consorciada e amalgamada com ele, em um mesmo ser; pior do que isto,
quanto mais furiosamente tentares vencer essa relutância à [justaposição dos dois
“egos”, à] fusão das duas características, mais aguda e mais firme será a sua
separação e tu, sempre instigado para um ou para outro lado és ou um ou outro,
porém jamais totalmente um ou totalmente outro. Serás ora um, excluído pelo
outro, ora o outro, excluído pelo primeiro — mas nunca excluído
definitivamente, mortalmente, porém de maneira que a mais radical expulsão [de
um 414
A Realidade da Religião
7, 24-25
pelo outro] deixe aberta a possibilidade, ainda que tênue, porém visível, do mais
radical retorno [daquele que foi expulso].
Vs. 24-25 (primeira parte) Desventurado homem que sou! Quem me arrancará
do corpo desta morte? — Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor!
homem religioso é a criatura que, com o seu corpo mortal, carrega a lembrança
constante de que ele pertence à morte. A que mais nos poderiam levar todas as
afirmações sobre a realidade da religião se não à mais fundamental dúvida sobre
a possibilidade de tal criatura [a criatura religiosa]? Na realidade, ela nem pode
morrer nem viver! Com a sua religiosidade ela fica suspensa entre o céu e a
terra! Mas de que serve esta dúvida fundamental sobre as possibilidades dessa
criatura, se eu mesmo a sou? [De que valem todas essas elucubrações] se, com
todas as torções e distorções psíquicas e todas as inversões dialéticas não
consigo escapar à brutal realidade deste “eu sou”? [De que valem todas as
cogitações] se eu, justamente por obra da minha religiosidade, tomei consciência
de que não há outra possibilidade para mim se não a de personalizar este ser
humano?
“ser humano”?
Mas Jesus Cristo é o “Homem Novo” que está além do homem das
possibilidades humanas; está além do homem religioso que ele cancela e
suprime totalmente.
Jesus Cristo é a criatura que veio da morte para a vida; ele, não eu, constitui o
meu “ego” existencial, o “eu” que sou na liberdade de Deus.
415
7, 25
A Realidade da Religião
“Graças a Deus”; por Jesus Cristo, nosso Senhor, eu “não sou” o homem infeliz
que sou. [Ele me livra do “corpo desta morte”!]
Vs. 25 (segunda parte) Portanto, esta é a situação: eu, como uma única e uma só
pessoa, sirvo a lei de Deus com a mente, porém a lei do pecado com a carne.
[Ou, segundo a tradução de Almeida: “De maneira que eu, de mim mesmo, com
a mente, sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne, da lei do pecado”].
“Infeliz homem que sou.” Temos que suportar todo o peso deste “eu sou”.
Não se pode alijar esta carga. Em verdade Paulo não estava se referindo à sua
condição de “antes da conversão”. O que significaria “antes” em se tratando da
conversão e da supressão da criatura em sua totalidade?
Comentários: 7, 14-25
Essa expressão vigorosa de Lutero (e que parece coadunar-se muito bem com o
estilo do A.), serve para destacar a realidade de que Jesus Cristo veio ao mundo
para buscar e salvar a criatura humana, perdida em conseqüência do pecado. Se
alguém diz que não tem pecado esse tal é mentiroso e torna vão o sacrifício de
Cristo; não tem parte com Cristo que morreu pelos pecadores. Ora, se alguém
ensinar que ao fazermos o que não queremos, quando sentirmos em nós, bem
acesa, a luta entre a carne e o espírito, o pecado não reina em nós, esse tal nos
acalma (ou tenta acalmar-nos) com parte da verdade e, portanto.
A Realidade da Religião
7, 14-25
querer. A luta que em nós existir é o nosso não conformismo com o mal e Deus,
que julga segundo o secreto de nossos corações poderá, quiçá, não nos imputar o
mal que praticarmos. Todavia, se de antemão concluirmos que o pecado não nos
será imputado em vista de nossa relutância em praticá-lo, estamos SUB JUDICE
da nossa justi-
2. É de Deus que nos veio a ciência do bem e do mal. De Deus e não de Satanás.
Satanás induziu o homem a buscar ciência que só a Deus pertencia. (ERIT
SICUT DEUS). É por isso que ao tomarmos conhecimento da realidade da
religião e da verdadeira posição do homem em seu relacionamento com Deus,
percebemos que, sem a remissão mediante Cristo Jesus, nada pode haver entre o
homem e Deus.
“A minha paz vos deixo, a minha paz vos dou;... não se turbe o vosso coração”.
Essa religião assim anunciada não será compêndio de confissão de fé, nem livro
de doutrina, nem manual de preceitos e ritos litúrgicos. Será a permanência no
amor de Cristo pela guarda amorável de seus mandamentos. Será a Igreja contra
a qual não hão de prevalecer o mundo e o inferno; será aquela Igreja de cuja
unidade nos falam os capítulos 14 e 15 do Evangelho segundo S. João.
É Cristo, o Salvador;
Ela continuará,
“E n’Ele fortalecida,
Jamais perecerá.”
417
Carta
aos
Romanos
de Karl Bart
(impressão de 1967)
2ª Parte
QUALIS AB INCEPTO
A esta altura você já terá lido e relido a tradução inglesa e terá tomado o pulso
das diferenças no traduzir e da propriedade ou impropriedade das interpretações.
É certo que as considerações que foram apostas referentes a um ou outro tópico e
mesmo as de ordem geral, necessariamente restringem, em parte, a penetração
mais profunda do leitor no pensamento do Autor. Nem tudo está perdido, porém.
Bastará ao leitor que desejar acompanhar o pensamento do A. sem se sujeitar ao
risco de influências espúrias, prosseguir na leitura ignorando as considerações
gerais e as mais restritas enfeixadas em colchetes.
Barth diz algures que aqueles que não puderem enfrentar a inexorabilidade de
Calvino, a grandiosidade de Kierkegaard ou ainda a devoção de Overbeck, que
se contentem com religiosidade inferior. Aproveitando a sugestão direi aqui que,
talvez, as ponderações apresentadas, os comentários introduzidos e as
interpretações dadas permitam àqueles para quem a dureza de Barth é por
demais contundente, — ou a rude franqueza de sua dialética por demais
traumatizante, — uma aproxima-
ção mais suave e possam, ainda assim, travar conhecimento com o vigoroso
Autor.
Convém que se diga agora aquilo que deveria ser patente ao leitor desde as
primeiras linhas do livro: para entender Barth é preciso ter a coragem de o ler até
o fim!
Qualis Ab Incepto
Nesse ataque à idolatria o A. diz que “de certa forma constitui para nós um
‘teste’ da compreensão da encarnação do verbo o fato de, como teólogos
cristãos, não rejeitarmos a descrição de Maria como ‘mãe de Deus’; porém, a
despeito de esta expressão estar supercarregada da chamada ‘Mariologia’ da
Igreja Católica Romana, a aceitamos e confirmamos como sendo a expressão
legítima de uma verdade Cristológica. NÃO
IMPRÓPRIO QUE DELA SE FAZ, todavia, nem por isso devemos suprimir o
conhecimento que ela envolve: (‘Filho de Deus, nascido de mulher’ e
‘mãe de meu Senhor’. Gal. 4,4 e Luc. 1, 43). A frase tem fundamento bíblico e é
muito significativa no contexto Cristológico. Porém, a sua utilização como base
para a MARIOLOGIA independente (como é chamada) FOI E É UM DESSES
TÍPICOS EMPREENDIMENTOS CATÓLICO-ROMANOS CONTRA OS
QUAIS É FORÇOSO EXISTIR UM PROTESTO
422
Qualis Ab Incepto
Para entender Barth é preciso ter persistência e mente aberta para analisar, não
nos agarrando cegamente a nossos conceitos e preconceitos, antes examinando
tudo para, se for o caso, reter o que for bom. Isto é verdade com respeito à
conceituação do que seja pecado, na estigmatização da idolatria, no emprego da
“linguagem mitológica” e na análise da própria religião.
maio, 1979
423
Capítulo VIII
O ESPÍRITO
• A Decisão - Versos 1 a 10
• A Verdade - Versos 11 a 27
• O Amor
- Versos 28 a 39
Mostra como o Espírito leva a Cristo de tal forma que aquele que não tiver o
Espí-
rito também não tem Cristo e quem tiver o Espírito, está em Cristo. Voltam-se
para Deus os que tiverem o Espírito. Mostra também como o Espírito traz aos
homens o conhecimento de Deus Pai, e termina dizendo que a condição SINE
QUA NON
Mais uma vez Barth deixa bem claro que “receber o Espírito” não vem do nosso
clamor ou do nosso gemer, nem pela nossa religião, antes pode vir apesar disso
tudo. Diz mesmo, o A., que nem sequer nos é lícito anunciar que temos o
Espírito porquanto ele, por si mesmo, se anunciará e, por ventura, nos inspirará
quando e como deveremos falar sobre ele.
Vs. 1 e 2 Agora, porém, não há sentença de morte contra aqueles que estão em
Cristo Jesus! Pois a lei do Espírito da vida que foi revelada em Cristo Jesus, te
libertou da lei do pecado e da morte.
8, 1
A Decisão
Quem é este ser humano que [realmente] consegue perceber aquilo que
acabamos de entender a respeito da limitação, do significado e da realidade da
Religião? Donde vem este ser [que assim percebe]? Como pode ele ver [e
discernir]? De onde lhe vem este conhecimento? Quem lhe conta tudo isso?
[Em virtude do domínio que Sócrates exercia sobre seus interlocutores ele foi
comparado ao “peixe elétrico” que imobiliza e anula com sua descarga aqueles
que o tocam].
Ao ser humano é difícil, [e até penoso] admitir que ele seja a criatura nula e
incapaz [que é perante Deus]; esta situação o humilha [e ele, de per si, não quer
reconhecê-la]. É preciso que alguém lho diga; é preciso que a pergunta lhe seja
respondida [que a realidade lhe seja inculcada] inda antes que ele a formule.
É claro que o homem não deseja o cerceamento (que Deus, no mundo, lhe
impõe), e não o procura; nunca o imaginou, não o desejou nem preparou pois,
[alçar vôo, sair da delimitação, romper o cerco, ir além do perímetro que o
aperta] é o princípio básico, [consciente ou inconsciente] de toda atividade
humana, de todas pesquisas, análises, investigações científicas, de todos os
sonhos, de todos anseios, de todo afã das criaturas humanas neste mundo.
A criatura que não faz apenas sua autocrítica; que não fica exclusivamente a se
lamentar e a se menosprezar mas se questiona na totalidade de seu ser (7, 24),
que vê a sua própria miséria, essa criatura não sou eu — [o “eu”
deste mundo].
426
A Decisão
8, 1
Quem ou o que seja [esta criatura], pertence ao outro lado do âmbito terreno;
está além do limite de nossa vida humana. Trata-se de inversão [ou melhor, de
transformação] do sentido de nossa vida. É uma realidade nova totalmente
diferente [da realidade terrena, material]. TOTALITER ALITER.
Com a pergunta “de onde” vem o nosso conhecimento que caracteriza a nossa
existência pela perspectiva do pecado e da morte, confrontamo-nos diretamente
com a existência do “homem novo” que se opõe ao “homem velho”
desta forma que o ser humano toma conhecimento de si mesmo e de sua origem
sob a luz dessa própria origem. Conseqüentemente passam a ser subalternas
todas as possibilidades humanas, expostas na sua relatividade em confronto com
o absoluto. É assim, de fora e de cima, que é visto o “miserável homem que
sou”, (7, 24) — [miséria que se patenteia no confronto da condição humana com
o absoluto, na relativização imposta pelo conhecimento que o Espírito dá à
criatura deste mundo].
8, 1-2
A Decisão
excelência deste [meu “ALTER” EGO], totalmente outro, o qual não sou (po-
rém, paradoxalmente, é conhecido por mim).
Este “homem novo” veio da morte para a vida. Ora, se formos co-participantes
da fundamentação, do estabelecimento do “homem novo”, então a sentença de
morte que pesa sobre o homem velho já não nos alcança mais, pois ela já foi
cumprida.
Existe uma possibilidade que está acima de todas as outras e que, por isto, não é
uma possibilidade ao lado das demais porém está ligada a todas elas qual
denominador comum, de certa forma (e mal comparando), de maneira análoga à
presença do pecado do qual, todavia, é a negação e cujo lugar proeminente passa
a ocupar. Existe também a dádiva que foi feita uma única vez e que, por sua
singularidade, parece jamais ter sido dada aos homens. Existe, ainda, a lei
suprema mediante cuja constituição subsistem e são anuladas todas demais leis.
Essa possibilidade superior, essa dádiva singular, essa lei suprema é o
ESPÍRITO.
Então por que não nos calamos, por que não silenciamos a respeito dele?
Quer não podendo falar sem poder calar ou, tendo de falar quando pensamos
dever silenciar — qualquer que seja nossa atitude, estamos sempre em extremo
aperto perante o Espírito e desse aperto não há saída. Cuidemos pois, para que o
nosso falar e o nosso calar sejam em tempo certo e não olvidemos 428
A Decisão
8, 2
que, se acaso nos conduzimos acertadamente, não fomos nós que soubemos
quando devêramos falar ou calar (nem mesmo nós, como pessoas religiosas) mas
foi o Espírito que falou ou calou conforme foi oportuno.
“qual vento impetuoso” [de que fala Atos, 2,2] ou negar que vimos a Nova
Jerusalém, que tomamos a eterna decisão e que estamos “em Cristo Jesus”.
Ainda que nos seja defeso proclamar que recebemos o Espírito, na verdade o
anunciamos de uma ou de outra forma. Todavia, precisamos saber que isto não
nos é licito [pois esta posse não depende de nós, não é conquista nossa, não o
recebemos como prêmio ou recompensa]. Por isso, ao pensarmos “nós”
[ou “eu”] precisamos lembrar sempre que não somos nós [que o recebemos
segundo o que somos no mundo; semelhantemente], precisamos manter
permanentemente presente em nossa mente que se temos o Espírito (não o
recebemos como posse que enriqueça o nosso cabedal de conhecimentos ou o
nosso rol de virtudes, antes) é como não o tendo recebido [pois a sua própria
existência em nós evidencia que nada temos. De certa forma, mitologicamente
falando, esta nossa anulação absoluta é semelhante ao “buraco negro estelar” que
tudo absorve a anula, e que o físico Jean Emile Charon considera como a
possível sede do Espírito...].
Quem sabe, se, ao falarmos assim de “nós” como não sendo “nós mesmos” e ao
discorrermos sobre o que “temos”, como “não tendo”, a verdade se imponha
pelo que é defeso e então esse “nós” e esse “ter” sejam devidamente qualificados
[por Deus] e, virtualmente, encerrem em si todo o “nós” — [toda a
individualidade] — e todo o “ter” — (toda a posse) humana, sem todavia
deixarmos de submeter ambas essas formas à crítica e de as pormos em dúvida.
429
8, 2
A Decisão
Pode então acontecer que nós (não como nós mesmos), já não sejamos mais uns
quaisquer, porém os representantes e as primícias da comunidade dos espíritos
na unidade do Espírito; [pode acontecer] que o nosso “ter” [então] não seja
apenas certeza psico-histórica porém (na forma de nosso “não ter”!) seja a eterna
destinação do ser humano, seja o nosso ser em Jesus Cristo e não apenas a
existência de uma comunidade.
Talvez então aconteça que os outros, os muitos, ao redor de nós, (em função
daquilo que “não somos” e “não temos”), cessem de ser “os outros”, os que nada
têm, e nos ouçam falar em suas próprias línguas dos grandes feitos de Deus.
(Atos 2, 11).
(Mar. 3, 29)].
Contaremos com o Espírito. Sim, contamos com ele como se fora um fator, um
motivo, um agente eficaz, uma causa [uma influência material em nossa vida].
No entanto sabemos que não é assim pois [temos ciência de que o Espírito] é
“ACTUS PURUS”; que é genuína realidade [mas não é materialidade]; é evento
incontestável que não tem começo nem fim; não tem limitações nem
condicionalidade; não está sujeito à temporalidade nem ocupa lugar no espaço;
sabemos que o Espírito não é comparável a qualquer outra coisa; não é efeito
nem causa.
A Decisão
8, 2
tica, é material apenas], não podemos e nem devemos deixar de nos apropriar, a
cada momento e de alguma forma, de uma das mais sublimes realidades exis-
tenciais do Espírito, [qual seja a religião].
Portanto, repetindo ainda uma vez, entre o pecado contra o Espírito Santo e a
prática de uma religiosidade (em si mesma) indigna da justificação divina,
optamos por esta.
O Espírito fala, opera e age. Não sabes o que isto significa? [Não entendes?]. Eu
também não sei [e não entendo] o que afirmo. Todavia, ele é o “Totalmente
Outro”, que tem falado, operado e agido e isto é tão absolutamente certo quanto
a radicalidade com que ele contradiz tudo o que digo e tu ouves — (e oxalá
contradiga sempre a interrogação que tu e eu fazemos!).
Estás comigo perante os fatos consumados. A nossa perquirição pode indagar do
significado desses fatos mas não de sua realidade.
ção apenas relativa quando comparado com a lei das leis. (Marc. 12, 28 – 31).
Onde, pois, fica o teu pecado, a tua morte, o teu não, se em Cristo Jesus tu
descobres a relatividade [das coisas terrenas] quando confrontadas com este
“OUTRO”, que é o Deus “totalmente diferente”? Já não resta nada relativo que
não tenha a sua correlação; nada de concreto que não aponte para [algo
transcendental], além de si mesmo; nenhuma realidade que não seja uma
parábola.
431
8, 2-3
A Decisão
O Espírito é o achado eterno sem o qual nós, que estamos postos sob a lei do
pecado e da morte, sequer faríamos a perquirição. Ele escreve a lei de Deus em
nosso coração com fogo vivo” e, por isso, “não é ensino mas vida; não é palavra
mas existência; não é sinal mas o próprio cumprimento”. (Lutero).
Vs. 3 e 4 Porquanto aconteceu aquilo que foi impossível à lei; aquilo para o que
ela se mostrou fraca demais por causa da resistência da carne: Deus mandou
seu próprio Filho, na semelhança da carne dominada pelo pecado, para
destruição do pecado e, assim, pronunciou a sentença de morte do pecado no
meio da carne, afim de que a justiça da lei fosse cumprida em nós que não
andamos segundo a carne, porém segundo o Espírito.
vel à lei, no que estava enferma pela carne; isso fez Deus enviando o seu próprio
Filho em semelhança de carne pecaminosa e no tocante ao pecado; e, com efeito,
condenou Deus na carne o pecado. A fim de que o preceito da lei se cumprisse
em nós que não andamos segundo a carne mas segundo o Espírito.”
“Aconteceu o que foi impossível à lei: [aquilo] para o que ela se tornou fraca,
por causa da carne”. [Isto é, Deus fez o que a lei não conseguiu realizar
porquanto a carne se revelou forte demais para a lei].
O que é impossível à lei? A resposta vem logo depois: lavrar a sentença de morte
do pecado. Ou então, conforme acabamos de ouvir [a lei não teve poder
suficiente] para libertar o ser humano; para colocá-lo sobre um fundamento
[imperecível] eterno, a fim de suspender a sentença de morte a que foi
condenado.
A religião em nada pode modificar o fato de que tudo o que o homem faz neste
mundo, ele o faz sem Deus; ela pode apenas [e quando muito] desnudar e expor
a absoluta ausência de Deus porquanto a religião é determinado modo de ser, ter
e agir do homem segundo a carne. A religião participa da confusão e da 432
A Decisão
8, 3
Jamais será o ser humano convencido e renovado pelo “odor da morte”, [a morte
da qual a religião nos fala e com a qual nos ameaça] e que parece emanar dos
páramos mais altos [da pregação e ensino] religiosos. Recendem a esse aroma o
insípido e vulgar burguesismo [quiçá populismo] de Zwinglio, o venenoso
pietismo de Kierkegaard, o histerismo estraçalhante de Dostoiewski e a
excessiva condescendência que os Blumhardt (pai e filho) espalharam ao redor
de si, conforme é notório.
Carne é carne, O que resulta da carne, o que parte do homem para seguir em
direção a Deus é, necessariamente “fraco”.
“Deus enviou o seu próprio Filho”: esta é a Palavra de Deus. O “próprio Filho de
Deus” é Jesus Cristo. Trata-se da existencialidade de Deus, elucidada na sua
unicidade com Cristo.
8, 3
A Decisão
prio Filho de Deus. Foi Deus quem o enviou lá do Reino Eterno; lá do mundo
que não decaiu e que não conhecemos; do mundo que é do princípio e do fim e
portanto, — (e que nenhum “ortodoxo” se regozije, concordando.) — “gerado,
não feito”; (e isto contrariando tudo quanto conhecemos como criaturas).
“Nascido de Maria, uma virgem”, (como [se fôra] um protesto contra a nossa
pretensão de atribuir validez perene aos métodos e sistemas da humanidade, da
natureza e da história, conforme os conhecemos); [e assim nascido], verdadeiro
homem e verdadeiro Deus, qual documento da antiga e original união entre Deus
e o ser humano, unidade que foi perdida mas não definitivamente, conquanto não
perdível. Deus o mandou a este mundo temporal, perecível, decaí-
do, a este mundo por demais nosso conhecido e que, afinal, apenas podemos
explicar em categorias biológicas que designamos como natureza; que só
entendemos como sistema material-econômico que designamos história; mundo
que, portanto, conhecemos e entendemos conforme nosso conceito humano e
carnal.
Sim; o Verbo se fez carne, até mesmo carnalidade “dominada pelo pecado”,
conforme mais adiante veremos; Deus o enviou, não para aqui mudar alguma
coisa, não para melhorar a carnalidade, moralizando-a, ou para raciona-lizar o
mundo pela sabedoria, para o aclarar pela arte, ou ainda para elevá-lo pela “Fata
Morgana” da religião; [para nada disso: o Verbo veio] porém, para proclamar a
ressurreição, para [apresentar] a nova criatura na qual Deus se reconhece como
em sua própria imagem e essa criatura reconhece em Deus a sua figura original
[aquele em cuja imagem e semelhança foi criada].
[A tradução inglesa escreve assim: (Deus enviou o seu Filho ao mundo para
proclamar o homem novo que se reconhece em Deus, porque foi feito à sua
imagem e no qual Deus se reconhece a si mesmo Pois Ele é o seu modelo”.].
434
A Decisão
8, 3
[Deus enviou o seu Verbo] para anunciar o “mundo novo”, aquele no qual não se
faz necessária a vitória divina porque Deus já é VENCEDOR; trata-se do mundo
onde Deus não é um ser [quiçá superior] ao lado de outros ou algo comparável
[ou a que se possam comparar) outras coisas, porém [Deus) é tudo em todos. [O
Verbo de Deus] veio a este mundo para anunciar aquele outro, novo, no qual a
criatura e o Criador não são dois, mas um. [Sal. 82, 6].
Deus mandou seu Filho “por causa do pecado”. Por isso a Palavra de Deus, se
anunciada corretamente, precisa sempre estar pelo menos “um corpo”
à frente das demais. O envio do Filho de Deus somente pode ser descrito em
termos da mais forte negação; só pode ser proclamado como paradoxo, como
absurdo que, portanto, só pode ser crido [nunca entendido, nem racionalizado]
[que são secundárias ou] penúltimas, nem tampouco às que sejam respondíveis,
porém (só e exclusivamente) à pergunta extrema (e que neste mundo não têm
resposta).
Esta palavra é a [nossa] justificação dada pelo próprio Deus e por Deus somente
que, por isto mesmo, se sobrepõe plena e vitoriosamente à última [à maior e
única] característica [insofismável] da criatura [segundo o mundo]: sua
pecaminosidade intrínseca. E por isto que a resposta que ela contém não pode ser
uma “certeza” humana, nem é uma grandeza qualquer, ou um dado, que seja
aplicável a elucubrações que os homens façam, nem é um fator que se aplique a
seus cálculos. Antes, para nós, sempre há de ser algo que está além daquilo com
que podíamos contar, como algo ambíguo, problemático, algo
435
8, 3
A Decisão
Ora, Deus mandou o seu Filho “na semelhança da carne dominada pelo pecado”.
Portanto, não o enviou para comunicar a inocência da vida paradisíaca; nem
poderia a missão [de Jesus Cristo] ter semelhante aspecto edênico, pois ele veio
justamente por causa do pecado”. Se Deus o houvesse mandado como
confirmação [ou demonstração] franca e aberta de sua divindade, então Cristo
não seria para o mundo o que ele efetivamente é: não seria o ponto de conversão
[a transformação divina, o evento que originou a mudança de sentido que se
opera na vida da criatura]; não seria a resposta e a justiça de Deus [à eterna
pergunta humana e à sua inerente pecaminosidade]. [Fôra diferente a missão de
Cristo], ele não seria o “totalmente outro” Deus que se opõe à totalidade do reino
humano e o suprime, mas seria, neste reino, uma segunda grandeza [ou, apenas,
mais uma grandeza ao lado de outras]; seria uma das [inúmeras] realidades rudes
e prosaicas que coroam de espumas as altas ideologias e ilusões deste mundo.
Na verdade, o fato [de Deus ter enviado o seu Filho Unigênito ao mundo] é tão
extremamente diferente daquilo que existe [e que é normal entre a humanidade],
que a nada pode ser comparado; é um fenômeno que apenas pode ser
considerado como sendo sem paralelo, sem nada que lhe fique a par ou
semelhante; não pode ser imaginado ou tido como um segundo evento [similar a
algo que já tenha ocorrido], nem mesmo como um acontecimento maior, ou mais
sublime, em comparação com quaisquer outros fatos que possam ocorrer na
história. Este acontecimento é, por assim dizer, a superlativa verdade da
realidade em todas as suas mais altas manifestações e, por isso mesmo, não é
nenhuma das realidades especiais [ou não] que sejam abordáveis diretamente.
“Este é o artifício divino” (Kierkegaard).
Esta realidade divina só pode ser entendida pela revelação de Deus e jamais
como sendo realidade especial, diretamente abordável [Cristo é a Verdade!].
Precatemo-nos pois do cúmulo do disparatado clangor clerical segundo o qual “a
certeza de que Cristo é Jesus pode ser vista nele, direta e imediatamente”.
436
A Decisão
8, 3
O Filho de Deus não foi enviado [ao mundo] senão “na semelhança da carne
dominada pelo pecado”; [foi enviado] em incógnito na categoria de servo,
irreconhecível [como enviado de Deus].
— (Jesus Cristo não foi) “homem tão notoriamente sério [mas] quase tão
respeitável quanto um pároco”. (Kierkegaard).
— Isto é que não! É na semelhança dominada pelo pecado que se revela sua
verdadeira divindade e também sua verdadeira qualidade humana de modo que,
ao observador é sempre facultada a escolha livre para o enfoque que lhe
aprouver:
Poderá, por exemplo, considerá-lo como Homem e como Deus, pela força
especial da consciência de Deus que ele desperta; Poderá ver nele o herói
religioso-moralista; (esta é, evidentemente, a atitude a que [Kierkegaard] se
refere quando fala do clangor sacerdotal).
Poderá mesmo classificar Jesus como [tópico da] mitologia de antigas religiões
populares [quiçá como folclore] ou até como paranóia aguda.
ções de pecado que acaso tentássemos levantar contra aquelas pessoas que, entre
nós, são justificadamente tidas como melhores, mais dignas e mais piedosas!).
Dá-se fenômeno idêntico com o seu poder de operar milagres: ele é rejeitado
com toda sorte de arrazoamentos. Encontram-se explicações psicoló-
8, 3
A Decisão
Ante a forma de sua morte na cruz poderemos dizer dele o que disseram os
judeus no Gólgota [Luc. 23, 35; Mat. 27, 39 —43]. Pode-se dizer que aí morreu
em desespero um Sonhador; é possível [até mesmo] remover o aguilhão da
morte de Cristo estabelecendo paralelos com ocorrências da história das
religiões.
ções? O que pode impedir “aos que conhecem” [ou pretendem conhecer]
mundos [e regiões] superiores, usem o mistério da ressurreição como a água
muito necessitada para a movimentação de seus próprios engenhos? O que
haveria de impedir que o Dr. Fr. Strauss considere a ressurreição como a “asneira
da histó-
ria do mundo”?
Qual é o evento histórico que está tão indefeso ante qualquer ataque
Não há um só ponto da vida de Jesus, segundo a conhecemos, que não esteja [ou
não possa ser inserido] nessa situação ambígua. Não há um só ponto que não
provoque escândalo, antes há centenas deles onde não é possível afastá-
A Decisão
8, 3
figuras] desde as mais elevadas até as mais absurdas, por cujas peças no final,
cada um cai à sua própria maneira.
Tem que ser assim. O tropeço que todos encontramos na vida de Jesus, uns aqui
outros acolá, não é a blasfêmia mas a pretensão de nos podermos haver com ele,
falar dele e ouvir dele sem nos escandalizarmos. [Para “trope-
Foi por essa razão que Deus enviou o seu Filho para o meio da carnalidade
dominada pelo pecado para que, justamente aí, (e onde mais haveria de ser?) o
pecado e a rebelião dos homens contra Deus fossem julgados e abatidos; que
fosse exterminada à pretensão humana de ser mais do que semelhança apenas;
que o falso “absoluto”, a efetiva dissolução e a maldição da morte [que reinam
na carne dominada] pelo pecado, fossem postos de lado, [suprimidos].
8, 3
A Decisão
tomou a condição de servo; que não foi apresentado [ao mundo com poder e
glória]; que assumiu o seu próprio esvaziamento [Filip. 2, 6-7]; que ficou in-
cógnito [Mat. 4, 6-7]. Essas são qualidades essenciais e não atributos fortuitos,
casuais, do Filho de Deus.
Fôra tudo isto diferente, fôra Cristo uma dessas pessoas que são imediatamente
reconhecíveis como “filhos de Deus”; fôra sua divindade descritível por meio de
predicados humanos; fôra ele, como os sacerdotes [os pregadores]
“Ele amaldiçoou o pecado com o pecado; ele expulsou a morte com a morte;
venceu a lei com a lei. Como assim? Ele foi um pecador na cruz; teve o seu
título [sua qualificação] entre os patifes; como um arqui-malfeitor sofreu o
julgamento e o castigo que um pecador merece”. (Lutero).
Esta forma característica na qual o Filho de Deus foi enviado ao mundo tem por
objetivo (que, aliás, ele de fato alcançou) que “a justiça da lei se cumpra em nós
que não andamos segundo a carne porém conforme o Espírito”.
440
A Decisão
8, 3-4
O Filho de Deus, o Senhor, no qual nós mesmos nos reconhecemos como seu
parente [seu afim] na semelhança de sua morte, isto é, em nossa morte, (6, 5) é a
inflexão, o retorno, a decisão, a vitória divina; é o Deus absolutamente diferente:
é o Espírito. (II Cor. 3, 17).
Como poderia deixar de ser superior (por assim dizer) à vida carnal, esta nova
peregrinação “segundo o Espírito” que de uma forma [tão drástica], tão
incontrolável, tão impossível de afastar ou de fazer cessar, tão irrevogável, se
apoderou de nós?
“Que este mundo cesse e venha o teu Reino”! Esta é a verdade sob a qual
estamos — ou melhor — sob a qual estão a humanidade, a natureza e a história,
por força do envio do Filho de Deus [ao mundo].
8, 5-9
A Decisão
nidade: problema levantado pela religião e que ela, mesmo em sua expressão
mais elevada, só pode exacerbar, porém jamais resolver; sentença sobre o
pecado, cumprida em Cristo (isto é, aplicada a Cristo.). É a revelação da justiça
divina (5, 16 e 18), sempre procurada e nunca alcançada pela religião.
Vs. 5 a 9 Porquanto os que estão na carne têm o sentido da carne, porém os que
estão no Espírito têm o sentido do Espírito. Ora, o sentido da carne é a morte,
porém o do Espírito é a vida e paz, porque o sentido da carne é hostil a Deus e
não se submete à lei divina, pois não o consegue. Por isso, os que estão na
carne não conseguem agradar a Deus. Porém vós não estais na carne mas no
Espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós.
Todavia, se alguém não tiver o Espírito de Cristo, esse tal não é dele.
entra sentido na existência e a existência passa a ter sentido. O Espírito nada tem
a seu lado nem contra si. O Espírito é, a um só tempo, luta, prepotência, vitória e
ditadura; nunca, jamais, será concomitantemente, tranqüilidade, equilí-
A Decisão
8, 5-9
sua justifïcação; em seu NÃO e por isso em seu SIM; em sua morte e, portanto,
em sua vida. O Espírito é o significado e o sentido existencial; ele faz e cria o
sentido. (“He makes and creates sense”.) Com o Espírito a existência passa a ter
sentido. (“With Him sense enters into existence and existence into sense”.)
“O Espírito não tem parceiro nem oponente pois ele é, ao mesmo tempo, conflito
e conquista; ele é ditador vitorioso que não admite paz se esta representar
equilíbrio, síntese, tolerância. Espírito significa “ou um” “ou outro”, em que toda
a antítese já está destruída pela vitória do “um” sobre o “outro”. Espírito
significa aquela eleição onde não existe a possibilidade de rejei-
ção. O Espírito não admite qualquer outra possibilidade que já não tenha sido
excluída, vencida, elidida”.
Talvez seja da natureza do assunto: como falaremos com palavras perecíveis das
coisas que são eternas? Como discursaremos sobre o Espírito que jamais homem
algum viu? Que predicados lhe atribuiremos? Como o definiremos?
Também pode acontecer que, para nós, um pouco dessa dureza e penumbra
esteja na dialética anglo-saxônica quando não, e quiçá muito provavelmente, na
insuficiência da “interpretação”.
(e sem dispensar as luzes que a tradução inglesa aduz), talvez pudéssemos “re-
interpretar” mais livremente esta primeira parte da exegese que Barth faz dos Vs.
5 a 9, (sem falsear o seu pensamento), servindo-nos da semântica mais em
conformidade com a nossa lexicologia, como segue:
Escolhemos? Novamente não, pois também não está em nós saber como escolher
e optar perante Deus. Todavia, podemos optar pela fé e rejeitá-la, não em virtude
ou em conseqüência de aptidões nossas mas unicamente pela graça de Deus.
Esta graça foi dada por Deus, uma vez e por todo sempre, a todos homens; é a
fonte da vida, perene, que jorra para sempre; quem quiser pode dela beber.
443
8, 5-9
A Decisão
Nesta livre escolha está o mistério divino de nossa criação como espirituais,
feitos à imagem e semelhança de Deus, e também o mistério da eleição.
Deus criou o homem livre e dentro de sua absoluta fidelidade ELE respeita essa
liberdade. Diríamos em linguagem mais atualizada que Deus respeita os
“direitos humanos”. Respeita, mas não aprova indistintamente; por isso, na
predestinação da criatura humana existem as duas saídas finais, diametralmente
opostas: há a porta larga e a estreita. A predestinação é esta: quem aceita já está
salvo; quem não aceita já está condenado. É nisto que consiste a anulação de
uma alternativa mediante a opção por outra já determinada e isto, tanto para a
justificação como para a condenação.
É pela inspiração do Divino Espírito que “sentimos saudades da vida Edênica”
que é Deus conosco — e o é Deus Pai, o criador dos céus e da terra. Deus está
nos céus; não se deixa levar por conveniências humanas; é reto e justo. Nada há
que se lhe compare, nem no cimo da torre de Babel, nem no mais humilde pó da
terra, pois o relativo não subsiste ante o absoluto nem pode ser comparado a ele:
o Espírito é! (“Eu sou o que sou.”).
“carne dominada pelo pecado” (8, 3). Carnalidade quer dizer estar longe de
Cristo; é não ter perguntas e, portanto, não obter respostas. Tudo quanto foi dito
mais atrás sobre o Espírito aplica-se com o sinal trocado à carnalidade.
444
A Decisão
8, 5-9
natural inclinação não se submete, nem pode submeter-se, à lei divina. Este
Talvez lhe seja possível barrar o regato mas a fonte continua a lançar a sua água;
talvez lhe seja possível cortar os rebentos novos da árvore mas a raiz fica.
Tudo é feito em pura perda porquanto de nada adianta melhorar e curar por fora
se por dentro ficar o tronco, a raiz e a fonte do mal. É necessário que, antes de
tudo, a fonte seja estancada, secada e as raízes da árvore sejam extirpadas pois
de outra forma, para cada barragem ou poda surgirão dez outros pontos. É
preciso que o mal seja curado em sua origem pois, se assim não for, por mais
emplastro e pintura que se aplique, a ferida supurará e escorrerá de novo e
sempre trazendo, apenas, irritação”. (Lutero)
Não temos possibilidades de, por nós mesmos, decidir entre a carnalidade e o
Espírito, rejeitando aquela e optando por este. Os que andam “segundo o
Espírito” não são uns poucos nem são estes ou aqueles; o mesmo se dá com os
que andam “segundo a carne”.
Quem haveria de reconhecer a sua existência “na carne” que não estivesse
“no Espírito” e a quem seria permitido reconhecê-la “no Espírito, sem assim
confessar que está na carne”? Ora, está determinado que na temporalidade
estaremos todos na carne e na eternidade estaremos todos em Espírito.
[Enquanto] na carne, somos rejeitados e (quando) no Espírito somos eleitos,
ção e redenção, morte e vida são quais os focos de uma elipse que ovalizam o
perímetro que, todavia, vai se arredondando à medida que os focos se
aproximam e se transforma, afinal, em círculo perfeito quando os focos
coincidem no centro do diâmetro. Contudo, a unidade [a coincidência] dessas
duas opções 445
8, 5-10
A Decisão
V. 10 Se, porém, Cristo estiver em vós o corpo está morto por causa do pecado
condenado, porém o Espírito vive por causa da justiça que foi imputada.
“Cristo em vós”: esta é a condição da liberdade de que gozamos para além da lei,
e esta é a solução do enigma da vida posto com insuportável dureza na religião.
Esta condição de “Cristo em vós” não é para ser entendida como algo a ser ainda
preenchido, a ser realizado; esta condição não é subjetiva mas sempre objetiva; é
algo já realizado, já cumprido.
O ser humano recebe motivação e toma a iniciativa de abrir os olhos para, por si
mesmo, ver sua liberdade existencial, constrangida por esta condição: Cristo.
Não é o homem quem cria essa contingência por meio de alguma função lógica,
por algum parecer estético, ou mediante desejo ético, ou ainda por expe-446
A Decisão
8, 10
A condição [“Cristo em vós”] foi criada pela fidelidade de Deus (3, 21) com o
envio de seu Filho (8, 3); ser obediente à fidelidade de Deus (1,5) significa
curvar-se [sujeitar-se, submeter-se] à condição que, independentemente de nossa
submissão e de nossa obediência, foi estabelecida e dada para nossa liberdade.
[A Palavra de Deus que assim nos guia] é o caminho em toda parte acessível [e
visível] para aqueles que sabem ver (1, 20), isto é: Cristo revela o caminho
inscrevendo-se em expressiva exclusividade e existencialidade entre os eventos
históricos do mundo, neles se destacando como o ponto ao qual todos eles se
referem e do qual são vistos. É deste ponto de referência que o pecado é
condenado e que a justiça é imputada; é dessa condição de “Cristo em nós” que
o ser humano recebe a motivação para sua liberdade e dela toma a iniciativa.
[A tradução inglesa escreve: “Cristo em nós” não é jamais, o processo pelo qual
apreendemos a palavra divina dirigida a nós e, portanto, nunca deve ser
identificado como “nossa” percepção].
“O corpo está morto por causa do pecado porém o Espírito é vida por causa da
justificação”.
Cristo é a nossa liberdade; ele é o passo que transpõe o limite da vida humana, e
dá origem à inversão do seu sentido; ele representa a emergência —
A existência da criatura humana neste mundo, tanto em seus estágios mais altos
como nos mais baixos, precisa desaparecer e morrer em Deus. Não 447
8, 10
A Decisão
há e não pode haver qualquer saída para o suspirar do homem [mesmo] que este
alcance o ponto mais alto da religião profética, apostólica e reformada (7, 24). O
“corpo” da criatura, a totalidade de seu “Eu sou”, — tanto no passado, como no
presente e no futuro — [tudo somado] “está morto por causa do pecado”. A terra
volta à terra e o pó ao pó; as ilusões vão às ilusões.
Não fôra o homem mais livre do que todas as possibilidades humanas, como
haveria de compreender o limite, o sentido e a realidade da mais alta
possibilidade humana como sendo uma prisão?
Não estivesse já salva a criatura que suspira pela redenção, não estivesse já
redimida, como haveria de suspirar?
A vida do Espírito se inflama à mesma chama da luz que revela a morte do corpo
pois esta morte provém do pecado condenado em Cristo e a vida provém da
justificação alcançada [também] em Cristo. Ambas as contingências ocorrem
conjuntamente, uma reconhecível e mensurável pela outra, porém a segunda
predomina qualitativamente e em eternidade, superando e suprimindo a primeira;
esta é a liberdade do ser humano em Cristo.
O Espírito existe e não é sem razão que suspiramos pela redenção do corpo desta
morte.
Cristo ressurgiu, e portanto há razão para que tudo o que não seja [eternamente]
existencial seja dado à morte, em sua morte.
Comentários: 8, 1-10
Parece, portanto que a esta altura será conveniente reexaminar as duas primeiras
afirmativas e reconsiderar também a terceira questão que muito se relaciona com
as outras duas.
448
A Decisão
8, 1-10
Qual é a nossa pergunta? Ela nasce de nossa incerteza, nosso sofrimento, nossa
aflição. Afinal, quem somos? Por que sofremos? Donde viemos e para onde
vamos? Quem é Deus? Onde está? Existe?
Ora, as origens dessa indagação estão implícitas na vida de Jesus, como Filho do
Homem.
449
8, 1-10 e 11
A Verdade
A resposta eterna de Deus, dada por antecipação a Cristo, foi por Deus
confirmada chamando-o, de entre os mortos, para a vida e é confirmada para
nós, na ressurreição de Cristo.
Barth analisa a obra de Deus junto ao ser humano, operada pela multiforme
manifestação do Espírito Santo que, ora leva a criatura à indagação sobre si
mesma — sobre Deus e sobre seu relacionamento com o Criador, ora desperta no
coração humano o amor a Deus, ora conduz os homens ao Salvador Jesus Cristo,
sempre interpretando e aperfeiçoando perante Deus Pai os gemidos e as súplicas
da criatura!
Pelo Espírito nos unimos a Cristo, levando seu transitório vitupério (Heb.
450
A Verdade
8, 11
Não podemos observar a verdade objetivamente porquanto é ela que assim nos
contempla antes mesmo de havermos analisado o que quer que fosse.
A verdade não pode ser tomada levianamente; (nem como algo trágico); a
verdade põe um ponto final a toda tragédia. [De outra parte], a verdade é
também por demais jovial, alegre e por demais gloriosa, para que com ela jus-
tifiquemos a nossa existência — [a nossa razão de ser], para que digamos ao
instante que passa: “Demora-te um pouco; és tão lindo”. [Uma referência ao
poema FAUSTO, de Goethe, apud tradução inglesa]. Todavia, a verdade é
extremamente séria e terrível, de maneira que não nos é permitido, acaso
duvidando, atentar contra nossa própria existência. O cidadão que havendo lido
Não podemos perguntar a verdade por que é ela verdade, porquanto ela já se
dirigiu a nós indagando: “Quem és, pois?” Com esta pergunta ela já nos deu a
resposta tão plena de conteúdo eterno: tu és o ser humano; a criatura deste
mundo, e pertences a Deus o Deus teu Criador e Redentor.
É baseado nessa pergunta que a verdade dirige a nós e na resposta que ela
contém implícita, que se desenvolve a nossa indagação.
Nada podemos, por assim dizer, iniciar com a verdade por que ela é a nossa
origem. Por isso temos de nos conformar em deixar a verdade ser o que 451
8, 11
A Verdade
É por isto que a verdade não se mantém e não cai conosco; nem conosco vive ou
morre. Não fica com razão quando acertamos [ou por acertarmos] nem a perde
quando erramos. Não triunfa em nossas vitórias, nem fica subjugada mediante
nossas derrotas. Esta é a razão pela qual a verdade vive a sua vida tão
poderosamente; é por isto que a verdade tanto é a morte que paira sobre o berço
como é o alento de vida que respira sobre o túmulo. É por isto que a verdade
tanto pode ser a condenação de um São Francisco de Assis como o perdão de um
Cesar Bórgia. É por isto que ela expulsa do trono os poderosos e eleva os
humildes; é por isto que a verdade pode mudar todo “sim” humano em NÃO e
todo “não” em SIM. É por isso que a verdade está ante nós, quer subamos aos
céus quer façamos nosso leito nas profundezas do inferno.
É nesta infinita superioridade sobre tudo o que é humano que a verdade é nossa
esperança, nosso inquebrantável relacionamento com Deus, nossa por-
ção imortal.
O mesmo Deus que acorda Cristo Jesus de entre os mortos e assim revela a
preponderância do infinito sobre o finito, também vivificará vossos corpos
mortais.
452
A Verdade
8, 11
Somente como parábola podemos ver na morte de nosso corpo, a vida do Espí-
rito em nós.
Em invisível realidade, aquilo que é finito não se opõe ao infinito mas é, por
assim dizer, suprimido por ele e, por isso mesmo, confirmado nele de tal forma
que a própria supressão (ou revogação) do que é finito [da criatura segundo este
mundo], constitui a sua fundamentação, [a sua razão de existir].
8, 11
A Verdade
com temor e tremor ante a graça divina, tendo por fruto a santificação e, no final,
a vida eterna (6, 22)].
Também a morte natural é, dentro desta anulação total, apenas e somente uma
parábola; juntamente com a morte estão todos os atos de nossa vida que, de certa
forma, são pequenas (ou maiores) antecipações da morte e acompanham o seu
caminho, quer sejam exteriorizados ou não, na forma de mortificações, auto
humilhações, renúncias, autoflagelações e espiritualizações. Tais atos [e
atitudes], sem dúvida, vislumbram o mistério porém, depressa se afastam
[daquilo que o mistério poderia revelar], transformando-se em exercícios de
cultura espiritual e corporal, processo que a humanidade tem adotado em todos
tempos para salvar a vida deste corpo que não pode ser salvo da morte.
A Verdade
8, 11
Declaradamente, não sou eu esse ser que permanece para sempre, que é imortal:
não sou eu o sujeito incorruptível, o ser que, tudo conhecendo, é também
conhecido; o ser que não é matéria. Este ser não sou eu mas o Espírito de Deus
que habita em mim, que está além da catástrofe que me envolve totalmente e na
qual o meu ser [deste mundo] está irremediavelmente perdido.
[temporariamente falando].
455
8, 11-13
A Verdade
Isto que é corruptível, que é mortal, a saber, a carne e o sangue postos em
referência a Deus, precisa ser revestido de incorruptibilidade e da imortalidade.
Passando a ignorar a sua realidade visível, essa carnalidade [assim suprimida]
“nasce de cima”; ainda na temporalidade, aguarda a eternidade e, pelo poder
positivo dessa mesma referência a Deus que suprime o ser deste mundo, passa a
participar, invisivelmente, dos novos predicados, dos quais se apropria.
Estes novos atributos, dos quais nada sabemos porque eles não nos concernem,
dizem respeito à ressurreição do corpo. Esta ressurreição se fundamenta,
necessariamente, na habitação do Espírito, em nós; isto é, na automovimentação
da verdade que se completa [se realiza] em nós e mediante a qual tem lugar esse
relacionamento do ser humano com Deus, no qual a criatura encontra sua morte
e, por isso, a vida. Nenhum outro fundamento tem a ressurreição do corpo, mas
este único lhe basta.
[Almeida escreve: “Assim, pois, irmãos, somos devedores não à carne, como se
constrangidos a viver segundo a carne. Por que se viverdes segundo a carne,
caminhareis para a morte, mas se pelo Espírito mortificardes os feitos do corpo,
certamente vivereis].
“Não somos obrigados, na carne, a viver segundo a carne”. O Espírito ou, (o que
quer dizer a mesma coisa), a verdade que se tornou avassaladora em nós, a
verdade tomada a sério e aceita na mais absoluta agudeza como sendo a 456
A Verdade
8, 11-13
“ego” existencial.
(8, 5-9). Procedemos da morte e vamos ao encontro da vida; para isto somos
orientados de maneira bem definida: nossas costas estão voltadas para o Poente e
nossa face para o Levante; o contrário, é impossível. [O A. fala Oeste e Leste;
preferi usar os respectivos sinônimos para evitar possível conotação política
atual, que o original não sugere].
[entre a origem de onde viemos e o alvo para o qual marchamos] entre o “iní-
cio” e o “fim”, entre a morte da qual saímos e a vida para onde avançamos.
O Espírito libertou-nos definitivamente da obrigação (da inevitabilidade) de nos
apaixonarmos pelas possibilidades [pelas coisas e oportunidades] materiais
[conforme acontece quando vivemos] sem considerar que temos de morrer.
Agora estamos livres e já não precisamos andar solenemente sem dar uma
olhadela sequer à nossa pequenez; já não precisamos andar atarefados sem sentir
a moderação que a eternidade sugere; não precisamos andar diligentes, zelosos,
pois percebemos a transitoriedade de nossos feitos e obras; todavia estamos,
também, livres da indolência pois estamos conscientes da inexorabilidade do
tempo que foge sem mais voltar. Estamos livres [do risco]
de viver sem Deus (como se isto fora possível); já não precisamos viver
desesperados pois podemos elevar nosso pensamento à suprema glória de Deus.
Libertados pelo Espírito já não precisamos viver separados, dispersos,
esquecidos da única coisa que nos é necessária e na qual todo nosso
esfacelamento e nosso desmembramento já foram sarados.
457
8, 12
A Verdade
O machado está posto à raiz das árvores: gozemos da liberdade que, em Deus,
temos para além da lei, a verdade da qual não nos podemos esquivar porque é a
verdade; ela é a liberdade do próprio Deus.
Existe algo [ou alguém] que está sempre presente, acima de toda profundeza, de
toda força e de toda fraqueza, de toda razão ou falta de razão do ser humano; no
mundo [existe algo ou alguém] que constantemente livra o ser humano, que o
afasta apressadamente [desta ou daquela emergência], que por ele chora à
infinita distância e que, sorridente, está infinitamente próximo, con-fortando e
aconselhando; [existe alguém ou algo] que sempre e reiteradamente acusa a
criatura mas, também, sempre a perdoa novamente; [existe alguém ou algo] que
faz morrer mas também vivifica. [Este algo ou alguém] é invisível mas fala e dá
testemunho de si.
Este algo [ou alguém] pode ser percebido em forma caricata no pensamento que
Dostoiewski atribui ao mais questionável dos seus personagens o qual, no fundo
do lodaçal, se refere a seu patrão dizendo que este, algum dia, ainda se dirigirá
aos alcoólatras inveterados, aos pusilânimes, aos desavergonhados
condescendendo: “Sois porcos e semelhantes a animais, mas vinde a mim,
também vós”!
A Verdade
8, 12-13
de tarde amena que em alguma ocasião de nossa vida houvesse de surgir após a
tempestade; há somente a orientação que o próprio Deus, e exclusivamente ele,
dá ao ser humano: a perplexidade, a ameaça, a promessa, a insegurança e a
ulterior segurança final que, como reflexo da luz não criada envolve, por todos
os lados, as coisas criadas, anunciando o fim e também o começo da criatura,
transformando o interminável dessossego em interminável paz. Esta orientação
divina [qual roteiro de santificação], faz-nos sair de amenos abrigos ou incô-
modos esconderijos e nos compele à fé, para crermos em nossa redenção ou
nossa condenação, pois o tema da redenção somente pode ser abordado pela fé
por queda e “a paz de Deus que excede a todo entendimento”.
ções de nossa vida terrena] estão na temporalidade e portanto têm o seu futuro
pelo que, já agora, estão no passado.
Não podemos deixar de ver a mão de Deus levantada contra o que fazemos,
ainda que nos seja permitida e até ordenada a fruição da realização plena, sadia,
retilínea, vigorosa, aperfeiçoada, da inclinação de nossa vitalidade, de nosso
“Eros”, tanto em seu sentido negativo quanto positivo, em todas suas
componentes, desde as mais rasas até as mais altas.
— nosso respirar e até nossa prece, — não podemos deixar de perceber a última
459
8, 13
A Verdade
e abrangente restrição que está aposta não apenas ao que nos é proibido mas
acompanha, principalmente, o que nos é facultado e até ordenado.
Não podemos ignorar que será milagre se entre o que fizermos acaso existir
algum fruto do Espírito (Gal. 5, 22), algum fruto da luz (Efe. 5, 9) ou alguma
obra justificada por Deus.
[Esta conclusão de que será apenas por genuíno milagre que faremos algo que
seja aprovável por Deus vem do fato de que] a ética [aquilo que é moral], se
baseia exclusivamente na límpida vontade de Deus e jamais [pode ser tida] como
direito imanente à vontade humana [ou à nossa própria força de vontade], por
maior que ela seja. É por isto que, uma vez conhecida a vontade de Deus, ela se
manifesta na forma de crítica radical a tudo quanto fazemos, fizemos ou
faremos, tanto individualmente quanto coletivamente na sociedade.
Todavia não poderemos deixar de observar a mão que se levanta de fato contra a
totalidade das obras humanas; nem podemos olvidar de que é pelo Espírito que
devem cessar toda lide, todos negócios, práticas e ocupações do
“corpo”. Não se trata porém, de substituir a ética normal, positiva, por outra
negativa, de fuga ao mundo, de indiferença, de asceticismo, de revolução, ou de
espera [de contemporização?]; nem é o caso de adotar a ética de suposta
recuperação da perdida inocência paradisíaca, embora semelhante prática possa
ser permitida e, aqui ou acolá, até ordenada como sendo uma parábola expressa
no exercício e na montagem dessa semelhança.
460
A Verdade
8, 13-17
É pelo Espírito e somente pelo Espírito, que a carnalidade precisa morrer para,
nesta morte ser posta à luz da esperança e da vida.
461
8, 14
A Verdade
Vs. 14 a 17 Porquanto aqueles que são movidos pelo Espírito de Deus, esses são
filhos de Deus. Porquanto não recebestes espírito de servidão, sob o qual
novamente serviríeis, em temor porém o espírito de filiação, no qual
exclamamos Aba Pai! O próprio Espírito é testemunha junto a nosso espí-
rito de que somos filhos de Deus. Se somos filhos, somos também herdeiros.
Somos herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo, tão certo quanto sofrendo
com ele, com ele seremos glorificados.
“Os que são movidos pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus”.
A verdade é a presença daquele que nos conduziu da morte para a vida: ele quer
e nós somos obrigados; esta é a situação real. É Justamente o nosso
desvinculamento, a nossa desobrigação para com o inundo temporal das coisas e
dos homens (8, 12) que constitui a nossa liberdade em Deus. Todavia, a nossa
liberdade em Deus é também o nosso cativeiro nele; nele, Deus! Portanto,
também aqui não se trata de questão de entusiasmo, de experiência mística ou de
sentimento de dependência.
“Ser movido pelo Espírito” é ser orientado, colocado na posição de quem se
move do poente para o nascente, da morte para a vida, [e isto se dá] mediante
462
A Verdade
8, 14-15
O que eu quero dizer é que não encontro outro nome para a fonte do Poder em
cujas mãos vejo a reversão da minha existência da morte para a vida, senão
Deus. Ele é o desconhecido, o Inescrutável, o Oculto, o Estranho; Ele é o
Senhor, sobre a vida e a morte. Ele mesmo é a Verdade, que É e QUER; a
Verdade pela qual eu sou constrangido, obrigado; e eu, que simplesmente tenho
de sujeitar-me a este Senhor, nada mais quero nem sei (na verdade, não eu mas
Cristo em mim!); sei apenas que não sou seu servo, nem seu estranho mas
— SEU FILHO.
Como poderia eu ser movido pelo Espírito, como poderia experimentar a
infinitamente doce e também amarga aflição que a verdade me prepara, se o
abismo entre o aquém e o além não houvesse estado fechado na sua origem, se
eu não houvesse sido originalmente, participante da verdade, não fosse filho de
Deus? Sou do mesmo gênero do Criador do ser humano!
Nada, absolutamente nada podemos tirar dessa “célula germinal”, dessa emana-
ção de Deus, que possa prestar-se para explicar ou para permitir supor a
existência de uma continuidade, um prolongamento, entre o ser Divino e nosso
ser. Não existe uma vida que jorra borbulhante de Deus e tem continuidade em
nós.
463
8, 14-15
A Verdade
[Na servidão segundo o Espírito] foi suprimida a cruenta pressão [que pesa sobre
a servidão do pecado] porque o infinito suprimiu tudo o que é finito; também foi
suprimido o comprometimento que tudo o que é finito representa ante o que é
infinito. Cessou, desapareceu a suspeita e enfadonha aprovação da burguesia
juntamente com sua desagradável, sinuosa e venenosa desaprova-
A Verdade
8, 14-15
Este “espírito de filiação” esta nova criatura que não sou eu, é o meu EGO
À luz deste meu ego invisível vivo qual sou no presente mundo, na minha
corporalidade; vivo no reino da duplicidade, sob a porta estreita da nega-
ção crítica [total], no ambiente onde o temor do Senhor não é apenas o princí-
pio mas, tem de ser também o fim da minha sabedoria. Vivo no escuro, mas não
sem o reflexo dessa luz não gerada; como prisioneiro de Deus, todavia, também
liberto por Ele; servo, porém como filho; suspirando, contudo bem-aventurado.
Vivo clamando àquele que vejo como o Desconhecido, o Inescrutável, meu
inimigo o meu dominador; clamando àquele que vejo como o meu Juiz e minha
morte; clamando em profunda aflição e grande temor, porém, exclamando “Aba!
Pai”!
Porventura o meu clamor que, como expressão derradeira e extrema das minhas
possibilidades humanas chega perante Deus na forma de Religião, será agradável
a ele e então, por ele justificado, não seja considerado como realidade
suprimível, anulável, isto é, [pode acontecer] que minha religião seja, também,
fé?
rio? Eis agora aberta a porta da vida, através da qual podemos vê-la”
[Tersteegen].
465
8, 14-17
A Verdade
O Espírito [que assim nos dirige], não é racional nem irracional, mas é o
LOGOS, a origem e o fim, tanto da racionalidade como da irracionalidade.
Somos guiados pelo próprio Espírito — Jesus Cristo —, em sua plena unicidade
e existencialidade, conduzindo-nos da vida para a morte e da morte para a vida;
por Jesus Cristo que, abrangendo o céu e a terra, atesta de Deus perante nós e de
nós perante Deus; Jesus Cristo, que é a soberania divina que existe desde
sempre, desde antes que dela tivéssemos qualquer [noção ou] experiência e que
subsistirá, mesmo que nunca venhamos a provar dela.
rito diz. Somente como resposta pode ter força, ser verdade e vida, o que o nosso
espírito fala. Além, sempre além dessa força dessa verdade e dessa vida, fala o
próprio Espírito, fala Deus. Fala daquilo que é incomensuravelmente maior do
que o máximo que nosso espírito pode falar. Fala do que não somos: fala de
nosso ser, como filhos de Deus!
“Se somos filhos... “ Nós, filhos de Deus! Retenhamos essa frase em nossa
mente e meditemos sobre a total impossibilidade, sobre [o irreal], sobre o
paradoxo, sobre a total invisibilidade daquilo que esta proposição afirma.
estamos dando o passo inicial, maravilhoso, criativo, que Abraão deu: o passo da
fé; este passo transpõe o abismo que separa o homem velho da nova criatura e só
o podemos dar incentivados por Deus.
Nós, filhos de Deus! Isto não se pode dizer assim, tão simplesmente!
A Verdade
8, 17
É isto o que Cristo preparou para aqueles que o amam?! Quem pode enfileirar-se
entre os que amam a Deus e para os quais ele preparou [tudo] isto?
— porém existencialmente, esse tal não pergunta mais, porém ouve e vê!
— O que?
—A si mesmo!
— Não! Mil vezes não! Porém [ouve e vê] a si mesmo em face ao totalmente
impossível, ante a absoluta contradição; decididamente não se considera digno
de ser justificado por Deus e jamais pensará que poderia ser entronizado em
algum conceito divino. Vê-se em confronto com a total realidade de sua
existência [no mundo] sofredor, subjugado, perguntando sem alcançar resposta;
467
8, 17
A Verdade
sem poderio, quer seja no protesto, quer na rebelião; totalmente incapaz de fazer
qualquer outra coisa que não clamar ou calar, contudo — [e esta é a diferença],
vê-se também como OUTRO, afinal e enfim — ou melhor — de início e em
primeiro lugar, separado desse conjunto (do qual não pode, todavia, iso-lar-se!);
vê-se colocado na liberdade e na superioridade de que gozou originalmente, em
contraposição a esse conjunto (no qual está totalmente emaranhado!). Ele se vê
na inconcebível situação de dizer NÃO ao mundo, (“NÃO” que apenas pode
confirmar com seu protesto e sua rebelião!); ele se vê como filho de Deus!
O que aconteceu?
Sob o espanto e horror que a criatura sente ante si mesma nasce o homem novo,
a criatura de um mundo novo; dá-se a plenitude da teodicéia ante a qual tudo
mais é apenas escárnio e zombaria. Deus mesmo justificou-se perante nós e,
assim, justificou-nos para ele.
Falando nessa voz e luzindo nessa luz, Deus realizou o ato existencial uma vez
por todas, aceitando o ser humano como seu filho.
Se com Cristo formos filhos de Deus somos também herdeiros com ele: somos
herdeiros de Deus que está além do SIM e do NÃO, do Bem e do Mal, da Vida e
da Morte; somos vencedores porque Deus o é; a seu lado em sua vitória, estamos
nós como seus filhos, como aqueles quais [ainda] não somos.
468
A Verdade
8, 17-25
Não porque o nosso sofrimento seja maior ou menor, ou porque tenhamos mais
ou menos paciência para suportá-lo ou, por causa do grau de nossa coragem para
enfrentá-lo, como se o sofrimento ou a maneira de nele nos conduzirmos nos
tornasse, só por isso, participantes da glória eterna! “Sofrer com ele” significa
sofrer com Cristo, estar com Cristo perante Deus, conforme também estiveram
Jeremias e Jó: viram a Deus nos fenômenos da natureza; reconheceram a Deus
como sendo a luz nas trevas; amaram a Deus, embora sentissem apenas a dureza
de sua mão.
“sofrimento do tempo presente” (8, 18) que envolve os céus e a terra, ainda que
nossa aflição, nosso sofrimento, fosse originado pelo interesse em alguma causa
nobre, por amor à cristandade, por exemplo, pois nenhuma “causa boa” é causa
de Deus. [Entendo que o A. quer dizer que uma “boa causa” é sempre humana e
material, portanto, perecível e não divina.]
A vida do ser humano no “presente século” (que não é a vida eterna mas a traz
em seu bojo), está sob a sombra do sofrimento, que a envolve qual manto escuro,
que a ameaça como espada sacada da bainha, qual paredão em vias de ruir.
Nestas condições nossa vida é duvidosa e a incerteza que a acompanha é
inarredável, pois ela é o elemento constitutivo do caráter temporário da vida
humana.
O trauma que sofremos por causa das nossa limitações, e que constatamos ora
aqui ora acolá, é o sofrimento [maior] dentro de nosso multiforme sofrer.
Haverá de nos ser oculto que a própria pergunta que DEUS faz ao ser humano,
prepara a resposta que Deus tem para nós?
— No Espírito, isto não nos pode ser ocultado. No Espírito podemos conhecer o
sentido de nossa vida, anunciado pelo sofrimento. No Espírito, é possível que o
sofrimento suportado conscientemente se transforme no passo
8, 18-25
A Verdade
lo?). Porém, se esperamos por aquilo que não vemos) o esperamos com
perseverança.
“Eis que agora ele começa a consolar os cristãos em sua tão grande aflição e fala
como quem tem experiência e está seguro do que diz e o faz como se
contemplasse este nosso mundo com olhos baços ou através de um vidro pintado
porém, vendo o mundo de além com os olhos bem abertos. Vede como ele volta
as costas para este mundo e volve a face à revelação futura, como se em parte
alguma da terra houvesse infelicidade ou lamento porém somente a mais genuína
alegria. Faz da totalidade do sofrimento do mundo, uma gotícula, 470
A Verdade
8, 18
uma fagulhasinha; porém da glória do além, que devemos esperar, faz um mar
infinito, uma enorme fogueira”. (Lutero)
“Por isto precisa o Espírito Santo ser Mestre-Escola e mandar o conforto para
dentro de nosso coração”. (Lutero).
8, 18
A Verdade
AETERNI”, a apreciação vinda de Deus, que jamais pode ser descrita como obra
humana pois é obra da fé e portanto, apenas pode ser definida como obra de
Deus.
Se pretendemos cooperar com Deus ou se quisermos ver como ele vê, jamais
chegaremos ao resultado (à conclusão) de Paulo mas, inevitavelmente à posição
de Jó antes de Deus lhe haver falado “desde um remoinho”.
Se eu disser “conto com Deus”, eu escondo, nessa fórmula muito batida, o salto
absoluto [da fé]; a verdade, que não pode ser formulada deve ser procurada no
fato de que Deus conta comigo; esta realidade se dá, se permitirmos (não nós,
porém...) que a verdade seja realmente a verdade; se dermos ainda uma vez, não
nós...) testemunho do Espírito e do [seu] Poder; se apreendermos a obra de Deus
na interrogação e na resposta da cruz (8, 17, segunda parte).
Neste ponto antes do qual tudo é passado e após o qual tudo é futuro, surge o
“tempo” como negação da eternidade; a este tempo designamos por
[“presente século” ou] “tempo presente”, pelo que ele oculta e pelo que indica;
por aquilo pelo que ele é medido e sem o que ele não existiria.
[Em outras palavras: é em Cristo e por Cristo que definimos o que chamamos
“presente século”: este tempo material que oculta de nós a glória de Deus — a
eternidade — cuja existência, porém, indica ao atestar que somos mortais,
carentes dessa glória.
A Verdade
8, 18
pergunta e da resposta que nos vêm da cruz, temos nossa origem no AGORA
absoluto e presente; se Deus, aqui, manifestamente conta conosco e, assim, nos
põe em condições de [podermos] contar com ele.
Vemos o transcorrer da nossa vida à sombra do Dia de Jesus Cristo, que ainda
não raiou mas está infinitamente próximo. Vemos o desenrolar do tempo à
sombra do “momento presente”; vemos as coisas humanas tomarem o seu curso
à sombra de Deus. Se formos guiados pelo Espírito (8, 14) precisamos exclamar
Aba! Pai! (8, 15); precisamos legitimar-nos como filhos, ou melhor.
Somos legitimados como filhos de Deus (8, 16) e, portanto, herdeiros de sua
glória. (8, 17).
E agora, novamente a questão: nesta conjuntura de nossa vida temporal, como
fica o imenso e incontornável problema do sofrimento? Evidentemente ele não
impede nem mesmo perturba o nosso acesso à glória de Deus, que se abre no
instante crítico, nem poderia, para tanto, “pesar na balança”; e não pode mesmo
influir porque é justamente o sofrimento — o sofrimento consciente — que, no
Espírito e por Cristo Jesus, constitui o portal do conhecimento e da redenção. (E
se não assim, onde é que Deus conta conosco? Onde se justifica ele, perante nós?
Onde nos ensina, o seu Espírito, a clamar Aba! Pai!?
Os sofrimentos “do presente século” não pesam na balança porque eles já foram
pesados em Jesus Cristo; porque eles nem são significativos para nossa presente
vida, a não ser como sinal de suas limitações, ou melhor [eles mostram o limite,
a barreira extrema, onde se dá] a supressão do sofrimento pela vida eterna, pois o
tempo no qual vivemos e sofremos, o tempo presente, é o tempo em que se nos
revela a glória de Deus, justamente no sofrimento.
473
8, 18
A Verdade
Passar ao largo da dor é passar ao largo de Cristo. Perguntar por que sofremos é
o mesmo que ignorar a questão que nos é imposta: [A pergunta que nos é feita
desde a cruz; não exatamente “o que fazes tu por mim”, mas “o que hei de fazer
de Cristo?”].
Responder que não entendemos o sofrimento, que não o suportamos, que não o
dominamos, que não o podemos tornar frutífero [útil], seria ignorar a resposta
divina. [Vinde a mim... eu vos aliviarei. Eu sou a ressurreição e a vida.]. Esta
resposta nos é dada na realidade da negação [que o sofrimento representa]. [A
tradução inglesa escreve que a resposta de Deus seria ignorada
“Assim, pois, queres ser co-herdeiro do Senhor Jesus Cristo, ser seu irmão e ser
igual a ele, mas não queres sofrer com ele, então ele, certamente, no dia
novíssimo, não te reconhecerá nem como cooperador nem como irmão mas te
perguntará onde tens tua coroa de espinhos, tua cruz, teus cravos e teu opró-
brio; se foste motivo de horror para todo mundo conforme ele próprio e todos os
seus membros [ou seguidores] o são, desde o princípio do mundo. Se não
puderes exibir estas coisas, também ele não poderá tomar-te por seu irmão!”
(Lutero).
“Os filósofos antigos buscavam a verdade e a felicidade com todas suas forças,
todavia, um axioma malévolo da natureza diz que jamais alguém encontrará
aquilo que precisa procurar. Contudo, é possível que alguém que veja a
inverdade em toda parte e que espontaneamente se irmane à infelicidade, em vez
de desilusão, encontre algo diferente, um milagre: algo inexprimível, algo de que
a verdade e a felicidade são apenas quais imagens idolatras; a terra perde a sua
ponderabilidade, os eventos e poderes do mundo tornam-se irreais quais sonhos
e, como em claro entardecer, a luz se espalha em todo seu redor.
474
A Verdade
8, 18-19
Esse tal se sentirá como se estivesse acordando de sonho cujas nuvens flutuan-
tes ainda o envolvessem. Essas nuvens também se dissiparão: então será dia
claro” (Nietzsche).
Cegos e mudos, por isso mesmo vendo e falando; sem perguntas e sem respostas
e justamente por isso, perguntando e respondendo; sofrendo e, assim, triunfando:
é assim que os filhos de Deus reconhecem e amam seu Pai, pois “a sua glória
será revelada neles”. SERÁ; esta é a grande carência. [A tradução inglesa
escreve que “esta é a nossa grande miséria”], mas é, também, a esperança
infinitamente maior. Mais uma vez, o FUTURUM RESSURRECTIONIS nos
lembra que em tudo [dito aqui] falamos de possibilidade divina e não humana.
Nem por um instante, sequer, pode a criatura duvidar que está num mundo onde
todos sofrem.
Se a criatura sofrer por ter consciência de um mundo interior, invisível, que ela
pressente ao menos como problema em dura oposição ao mundo exterior,
totalmente outro, estranho, diferente, — vendo [esses dois mundos] separados
porém lado a lado e um contra o outro, — sentindo que o mundo exterior, por
demais conspícuo, vem complicadamente, prepotente, ameaçador, hostil ao seu
encontro, ela não pode ignorar por muito tempo que, também lá fora, não existe
imediação; [não existe a ligação direta com Deus]. [A tradução inglesa escreve
que “não imaginaremos, por muito, que a Paz de nossa união direta com Deus
esteja na harmonia do mundo exterior”.]
Não é, também, evidente que [quanto mais preocupada a pessoa estiver com a
sua própria incerteza], maior atenção prestará ao mundo que a rodeia, 475
8, 19
A Verdade
[e pesquisa]; descobre, experimenta e sabe; este é o seu cosmos cuja paz ele
procura na história e natureza porém, o que a criatura recebe, o que lhe vem ao
encontro de toda parte, com fatal inexorabilidade, é a inquietação inerente a este
mundo.
“Quando a natureza acorre ao ser humano, ela evidência que ele é necessário
para a remir da maldição da vida animal e que nele, finalmente, a existência
apresenta um espelho em cujo fundo a vida deixa de ser destituída de sentido
para emergir em seu significado metafísico. Contudo, ponderemos: onde termina
o animal e começa o ser humano, este ser único sobre o qual repousa a 476
A Verdade
8, 19-20
“Pois a criação foi sujeita à vacuidade, não por sua própria vontade, porém por
quem a sujeitou, em esperança porque também a criação será liberta da servidão
da corrupção para a liberdade da glória dos filhos de Deus”.
(Calvino).
Como haveria de a eterna interação entre energia e matéria, entre “vir a ser” e
desaparecer, entre formação e decomposição, entre sede de viver e necessidade
de morrer, ser parte da vida eterna?
bio até o maior dos sáurios e até o mais digno deão de uma faculdade de
teologia, ser a vida plena, real, direta, a vida eterna?
477
8, 20-21
A Verdade
A vacuidade da criatura não vem por sua vontade; ela não é uma realidade
primária; ela resulta da falta de percepção dos otimistas ou da conclusão
apressada dos pessimistas e é, imediatamente, mal interpretada, todavia, essa
vacuidade não é a característica final, definitiva, do ser humano, porém a cria-
ção está sujeita a ela, por quem a sujeitou e, por isso, há esperança, pois a
sujeição vem de Deus.
[do mundo] são obra de Deus e a sua interrogação assim como o sofrimento a
que agora está sujeita toda criação, juntamente com o ser humano, são a resposta
divina; é por isto que a criatura foi sujeita “em esperança”.
A Verdade
8, 20-22
[ainda] não sou, — espera suspirando, mas feliz, é a promessa da qual o corpo,
Se o ser humano for livre, também o mundo o será. Se o ser humano for
“um” em si mesmo por ser “um” com Deus, então também no cosmos deixará de
existir “isto” e “aquilo”; não haverá mais “dentro” e “fora”, não haverá “ser”
e “desaparecer”.
Quando surgirem os filhos de Deus, “pelo seu aparecimento dará a natureza, que
nunca salta, o seu único salto; um salto de júbilo porquanto pela primeira vez ela
sentirá haver alcançado seu alvo”. (Nietzsche).
Quem quiser saber estas coisas pode conhecê-las desde já, ciente porém de que
nada sabe: “Na verdade, a terra será ainda lugar de convalescença, mas nela já se
sente novo odor — aroma salutar e de novas esperanças”. (Nietzsche).
— O que sabemos?
Sabemos que quando falamos da glória de Deus, nos referimos a um futuro que
nunca e jamais será tempo [presente ou temporalidade].
Toda criação: também o que estiver encoberto, oculto e que, por isso, é mais
difícil de ser entendido com a nossa inteligência! Não se trata de sua extensão e
amplitude mas do saber de nosso entendimento. O que conhecemos, o que
sabemos e o que entenderemos é que [aqui] se trata de [contínuo] “suspirar” e
“gemer”; de estar permanentemente em dores, como coisa desprendida de sua
origem, de algo [agora] apenas relativo, separado do absoluto por abismo
intransponível. Então, se algo conhecermos, conhecemo-lo como “coisa”, como
o que é relativo; mesmo isto é criação do ser humano e, portanto, a origem de
seus “suspiros” e de sua existência “em sofrimento”.
Sabemos que tudo que foi [ou é] criado pelo ser humano, tudo o que está na
temporalidade — (pois nada sabemos nem conhecemos daquilo que não é
criado, e que não está no tempo) — traz em si o embrião da eternidade, do seu
futuro eterno que anscia trazer à luz o que, todavia, não pode fazer no tempo
presente.
479
8, 22-23
A Verdade
Deus, porém, está nos céus e tu estás na terra! Justamente este NÃO-
CONHECIMENTO daquilo que Deus sabe é o conhecimento que [no mundo]
Acaso já ouvimos esse gemer da criatura, que nos diz tudo quanto precisamos
ouvir se tivermos ouvidos para tanto? [Acaso ouvimos esse gemer]
que Cristo nos revela se ele estiver em nós?! Não é isto um mistério mais
misterioso que todos os mistérios?
“E não somente a criação mas também nós que temos as primícias do Espírito,
gememos em nosso íntimo, aguardando a nossa filiação, a redenção de nosso
corpo”.
Passemos, pois, a considerar o ser humano que somos; como esse ser labuta e
vive neste mundo, pois os olhos que assim perscrutadores nos olham do espelho
são os nossos, que tudo examinam e, no final, até a si mesmos.
Sim, sou eu, o ser [humano] que sabe que a lei procede do Espírito (7, 14); [sou
eu], que invisivelmente estou redimido por força da redenção que teve lugar em
Jesus Cristo (3, 24); (sou eu,) a criatura que foi tomada, conduzida, favorecida e
liberta invisivelmente pela verdade; sou filho de Deus!
De outra forma, como poderia eu, realmente, sofrer sob a pressão de minha
existência e de meu modo de ser [segundo o mundo]? Não fôra assim, como
poderia eu chamar Aba! Pai! E como poderia eu ouvir o gemido das criaturas
que sofrem?
480
A Verdade
8, 23
Convém que tenhamos, de novo, presente a nossa advertência para [não cairmos
em] alguma forma de romantismo, lembrando-nos de que aquém da ressurreição
existe interminável complexo de possibilidades, desde as excelentemente
superiores até as mais ínfimas; desde as mais nobres até às mais vis; existem as
mais dignas e as mais inominavelmente baixas.
Quem nos livra da implacável impressão do quanto tudo isto está emaranhado
entre si — (que nossas atividades, desde as mais sublimes às mais abjetas, se
entrelaçam e, quiçá, se confundem em suas origens?].
O que vale o maior dos gênios se ele, com toda sua genialidade vem a este
mundo, nele vive e dele se despede, como qualquer um de nós?
481
8, 23
A Verdade
Aquilo que designamos como “espírito” não é mais do que algo comparável à
neblina sobre terreno alagadiço. Donde vem a névoa? E o que sobra quando o
vento a espalha? O que permanece visível, consistente, material?
O que [ou quem] somos nós, já que admitimos tudo isto, tão honestamente?
Também nós, detentores das primícias do Espírito, gememos tão abertamente
quanto a criatura que está a nosso lado, ante a mesma vacuidade, isto é, ante os
mesmos contrastes entre a vida e a morte, entre a luz e as trevas, entre a beleza e
vileza, jazemos em dor tanto quanto os outros, trazendo em nós o futuro eterno
do qual temos ciência [todavia], sabendo que nunca foi e jamais será parte de
nossa temporalidade. Somos prisioneiros de Deus como as demais criaturas e por
isso, semelhantemente a elas, vivemos em esperança!
“Em esperança”! O Espírito testifica que somos filhos de Deus. Nasceu a nova
criatura que, de seu Pai, herdará o mundo. Todavia, essa nova criatura não sou
eu; ela não é este ser que é segundo meu corpo no presente século. A última
possibilidade desta criatura [o que resta à existência temporal] é gemer e esperar
pela adoção.
Escorrido e escoado o grande mar da realidade que aqui e agora nos rodeia e
alaga, só restará a verdade: a verdade da realidade! Então a Eternidade será a
totalidade dos tempos, [a sua integração entre os limites que vão] da mais remota
antigüidade até o mais distante futuro! Então já não existirá mais [mundo]
interior que não seja também exterior; não haverá outro eu que não seja eu
mesmo; não se tratará de uma parte apenas mas estarei redimido na totalidade de
meu ser, transformado, purificado, novo perante Deus, por Deus, em Deus; serei
participante da vida e do ser divino: — a isto se chama Filiação.
482
A Verdade
8, 23-25
“Não é de admirar, pois, que sejamos movidos por profunda tribulação; não se
trata de desejo mas de clamor ansioso pois, quando se descobre a realidade da
miséria, é preciso clamar”. (Calvino).
“Porque somos salvos pela esperança. Porém esperança visível não é esperança
(pois o que alguém vê, por que precisa esperá-lo?). Porém, se esperamos por
aquilo que não vemos, o aguardamos com perseverança”.
Sim! A verdade é tão pura, tão santa, tão imensa e poderosa, ela é tão
acentuadamente a nossa redenção, ela é tão peculiarmente o próprio Deus —
Deus por nós, que só nos podemos apropriar dela como sendo vitória,
cumprimento e realização, como presença, mediante a esperança e de nenhuma
outra maneira.
Como poderia a Verdade ser Deus se ela, para nós, fosse uma possibilidade,
entre outras? Como poderia ser ela a nossa salvação se ela não fosse,
Que mais poderíamos desejar senão que esta esperança redentora seja.
483
8, 24-25
A Verdade
Cristianismo que não seja totalmente escatologia, nada, absolutamente nada tem
a ver com Cristo.
O que não for esperança, é tronco, jugo, algema; é tão pesado quanto a própria
palavra REALIDADE. Não liberta, antes aprisiona; não é misericórdia, porém
juízo e destruição; não é direção divina, mas fado; não é Deus, porém o
espelhamento da própria criatura não redimida, ainda que [essa expressão
material, essa imagem com a qual procuramos iludir a esperança], seja a
imponente estrutura do progresso social ou a pomposa exibição da redenção
cristã!
A Verdade
8, 24-27
perseverarmos “como se” víssemos o que, de fato, não vemos, “como se”,
contemplássemos o invisível.
É a esperança que acaba com este enigma; é ela que suprime o “como se”.
pois, bem ou mal humorados nos contentaríamos com o que existe. [Com aquilo
que é].
rito, explica o fato de não nos conformarmos com a realidade, o fato de não
haver harmonia [ou sintonia] possível entre o nosso ser e aquilo que existe [ao
redor de nós]. Somente esta esperança invisível explica porque fica subjacente
em nós uma “espera oculta” por aquilo que “não é” e que nos confronta
existencialmente.
Nada mais podemos desejar ser (se é que nos entendemos corretamente) do que
pessoas que se contentam em saber, pelos gemidos da criação e seus próprios,
que nada podemos pedir que seja maior ou melhor do que a cruz, na qual nos é
revelado que Deus é Deus e que precisamos ser servos que esperam por seu
Senhor.
Pois não sabemos como haveremos de orar devidamente. Mas o próprio Espírito
intercede poderosamente por nós com inexprimíveis gemidos porquanto aquele
que sonda os corações conhece a mente do Espírito que intercede pelos santos
na capacidade divina. [A tradução inglesa escreve:... intercede pelos santos
segundo a vontade de Deus.]
Semelhantemente, também o Espírito antecede a nossa fraqueza”.
485
8, 24-27
A Verdade
O Espírito opera em causa própria e segue seu próprio caminho; não somos nós
que o possuímos, porém é ele quem nos tem. Ele chega primeiro e se
Também a nossa expectativa é fraqueza, por mais paciente e crente que seja.
Pode bem acontecer que nossa expectação se já infernal, descaracterizada, sem
futuro, ineficaz e sem propósito, inútil, uma expectativa que por nada espera e
que, por isso, nada alcança, nada recebe e ninguém, se não Deus, pode nos
garantir que nossa expectação não seja dessa espécie.
A força que existe em nossa fraqueza está na antecedência do Espírito e na
Verdade que subsiste por si só. Todavia, precisamos de nos convencer de que
nem mesmo pela maior renúncia conseguiremos apropriar-nos dessa força. O
Acaso entendemos agora, no final desta parte da Carta aos Romanos, o que isto
quer dizer?
Acaso não teria Paulo orado, enquanto escrevia estas palavras? Ou não teria
orado acertadamente, [“devidamente”]?
Não são estas palavras uma só oração e, onde já se orou com mais ousadia, mais
altruísmo e mais profundidade que aqui? Contudo, enquanto Paulo escreve estas
palavras ele sabe que NÃO SABE como deve orar adequadamente.
Por que não sabe? Evidentemente, porque a oração não é nenhuma “maravilha
das maravilhas que se realiza na alma dos fiéis”; porque “o motivo de toda prece
é denodado esforço em busca de confirmação, de fortalecimento e da ascensão
gradual de nossa vida” e a sua essência é a idéia da “intercomuni-cação entre os
fiéis e Deus, que é imaginado como pessoa e considerado como estando
presente” (Fr. Heiler).
486
A Verdade
8, 26
É na oração que justamente o homem que ora, mostra que é totalmente humano.
É das pessoas tidas como piedosas [religiosas, crentes, espirituais] que brotam e
rapidamente se sucedem os mais atrevidos saltos e as mais arrojadas pontes,
[visando à comunicação direta com Deus]. Tais aproximações, porém, nada têm
a ver com Deus, o Deus desconhecido, que [tais homens] não ouvem nem
compreendem e que, todavia, está vivo [e pode ser conhecido (1, 19)]. Elas nada
têm a ver com Deus porque a oração, considerada e glorificada como coisa
objetiva, [como experiência humana] apenas justifica e confirma o libelo (certo
se for analisado do ponto de vista humano) que Feuerbach levanta contra toda
religião.
“Não sabemos”. Além deste “não sabemos” e contida nessa confissão está a
realidade do relacionamento do homem com Deus.
[Esta negação nada tem a ver com a técnica de submersão (de “absor-
Não é importante que alcancemos um estágio alto, mais alto ou muito alto em
nossa oração, pois esta escala, junto com todas as demais que medem o acesso
ao céu [ou a nossa “santidade”,] está no distrito do NÃO-DEUS, [no reino] do
Deus deste mundo.
ção, consiste no fato de que perante Deus, em nosso lugar, está o Outro, o Todo-
Poderoso, o Eterno, o Segundo Homem, o que é do céu! (I Cor. 15, 47).
“Pois aquele que sonda os corações conhece a mente do Espírito que intercede
pelos santos, na capacidade divina” [ou, “segundo a vontade de Deus”
— Almeida].
Deixemos de lado nossa investigação sobre Deus; porém Deus nos es-quadrinha.
Nossa mente nunca é reta, mas Deus sabe que a mente do Espírito
[que está] em nós, é reta; Deus a conhece e [vê que] ela é segundo o Espírito.
Humanamente, nada e ninguém pode interceder por nós; estamos totalmente sós
e inteiramente perdidos; mas o Espírito, segundo a vontade de Deus, 487
8, 11-27
A Verdade
por nós intercede; somos salvos. Pecadores somos e continuaremos sendo se esta
intercessão do Espírito não se der; porém Deus nos chama santos. Foi para
sermos santos que ele nos criou do NADA que éramos, somos e seremos [se
santos não formos]. Ele nos faz seus santos [isto é, criaturas separadas para ele],
seus escolhidos, seus instrumentos, por força dessa intercessão.
CRISTO.
[Mais uma vez parece oportuno observar o contra-senso que pratica quem segue
ou ensina que outros seres, ainda que redimidos, possam interceder por nós
perante Deus ou Cristo, que é o próprio Deus. Há um só mediador; temos um só
mediador; temos u único advogado e somente um intercessor: JESUS
Talvez esteja dizendo que não podemos objetivar a verdade porque ela não pode
ser consubstanciada em algo real, visível, palpável, concreto, pois é justamente a
verdade que assim nos delimita, nos pesa e nos define, como seres humanos que
somos. Da mesma maneira, não podemos considerá-la como algo abstrato, algo
que pertença ao pensamento, à mente e que esteja ao nosso alcance para que dela
nos apropriemos subjetivamente, nem mesmo como ideal; ela não pertence a esta
ou àquela determinada pessoa. A verdade não é destino e também não justifica
ou explica nossa existência. A verdade é a “Boa Nova”, por isso é alegre, é
perfeição; por isso é bela. A verdade é o Espírito; por isso não pode ser encarada
levianamente. A verdade, segundo critério filosófico, humano, é a conformidade
das palavras (e até das atitudes) com a realidade de pensamento, pode ser moral
ou física, ou ambas as coisas; pode até ser intuitiva e dependerá da formação da
consciência do indivíduo, ou cognitiva e dependerá do conhecimento científico e
da cultura das pessoas.
488
A Verdade
8, 11-27
vel; esta verdade divina é a jubilosa realidade que se revela no verbo de Deus
perceptível à humanidade em Jesus Cristo: Deus é amor!
Sabemos que Jesus Cristo é a VERDADE. Sabemos! Quem há que por ela
invariavelmente, paute suas palavras e suas atitudes?
O Amor de Deus à criatura humana é o supremo bem de que ela goza e para o
qual concorrem todas as coisas deste mundo; esta concorrência, operada pelo
Espírito Santo e em Cristo Jesus, põe o amor de Deus no coração da cria-489
8, 28-30
O Amor
tura, não como imposição, nem como predestinação seletiva, mas na forma de
predestinação de possibilidade.
Vs. 28-30 Pois sabemos que Deus permite que todas as coisas conjuntamente
operem para o bem daqueles que o amam, aqueles que por sua delibera-
ção foram chamados para isso. Por quanto, aqueles que ele conheceu, a estes
também destinou a serem conformes à imagem de seu Filho (a fim de que este
seja o primogênito entre muitos irmãos!). Porém, a estes que para isto destinou,
a estes também chamou; e aos que chamou, a estes também declarou
justificados. Mas aos que justificou fez também participantes de sua glória.
490
O Amor
8, 28
Todavia, jamais será [uma coisa qualquer indefinida], “isto” ou “aquilo”, mas é o
Poder e o Sentido que vem de cima, que é dado por Deus independentemente de
qual seja a atitude humana.
491
8, 28
O Amor
A pessoa pode, efetivamente, estar consciente das flechas que estão cravadas em
seu corpo; do veneno que sua alma tem de sorver; dos horrores que lhe são
enviados. (Jó 6, 4). A criatura pode, realmente, saber que ela tem de viver em
luta constante e que os seus dias são quais os de um jornaleiro (Jó 7, 1); ela pode
mesmo exclamar: “Acaso sou mar, ou algum monstro marinho, para que assim
me vigies?” (Jó 7, 12). O homem pode, de fato, encontrar em seu caminho um
opositor para o qual não encontre árbitro ou juiz... “que levante sua mão sobre
ambos” [e faça prevalecer a justiça], (Jó 9, 33); pode ser que o seu caminho lhe
seja [subitamente] ocultado e [suas saídas] estejam cercadas por todos os lados
(Jó 3, 23).
Sim, tudo isto pode ser tão forte, tão eficaz, tão real e, por isso, tão
[claramente vindo] da mão de Deus que a criatura nada mais possa ver, nem
saber ou querer, ou tomar a sério e ter por válido, [que nada mais lhe reste]
É assim que a criatura ama a Deus. Não antes nem depois do instante
[crítico] que “não é”, [o instante que não está cronologicamente situado na
escala de nosso tempo], e que, todavia, é o sentido e significado de todos
momentos de nosso tempo. “MAGNA ET INCOMPREHENSIBILIS RES EST,
AMARE DEUM NEMPE HILARI PECTORE ET GRATO COMPLECTI PER
MORTIFICAT”. (Melanchton).
[Sim, grande e incompreensível coisa é, amar a Deus, sem dúvidas, com o peito
tomado de alegria e gratidão pela totalidade da vontade divina, inclusive pela
condenação e mortificação ou,] melhor entendendo: quando tiver lugar o amor a
Deus, a possibilidade religiosa (conscientemente ou não) passa a ser
acontecimento temporal. [Todavia], para caracterizar a temporalidade [a natureza
efêmera] da religião, não é necessário que ela seja acompanhada dos fenô-
que nela, por vezes se manifestam, tão certo quanto, no Livro de Jó, não são
importantes os excelentes discursos proferidos pelos seus amigos.
492
O Amor
8, 28
É o caminho que foi aberto, que pode ser palmilhado e pelo qual a criatura entra
em contato com a sua carência, [com o que lhe falta] e com a sua liberdade; ao
longo dele se dá a fundamentação existencial da personalidade e a revelação do
sentido eterno de todas as possibilidades do ser humano. [Esta revelação,
todavia, se completa] no “além” daquilo que fica suprimido; quando o menino
for homem; quando contemplarmos de face a face e não mais através da imagem
obscura do espelho; quando já não conhecermos somente “em parte” mas
totalmente, conforme somos conhecidos... (I Cor. 13, 8-12).
Este é o amor que jamais acaba (I Cor. 13, 8) e que permanece juntamente com a
fé e a esperança: “Estes três, porém o maior destes é o amor”, porque ele é o
acontecimento existencial presente tanto na fé quanto na esperança, (como a
“consubstanciação energética” da fé (Cal. 5, 6) — (Almeida registra... “mas a fé
atua pelo amor” e a tradução inglesa escreve “a fé opera pelo amor”]. O caminho
inexplicável (sobretudo excelente (I Cor. 12,31 2ª parte)], o caminho do Amor (I
Cor. 13, 13), é única, total e exclusivamente, obra de Deus. CARNI
CONTRARIA VOLUPTATE SPONSUS SPONSAM SUAM
[A estes ele] permite que todas as coisas operem conjuntamente para o bem”.
O amor a Deus é humildade tão consciente de si mesma, humildade que sabe tão
bem o que quer, que já não formula determinadas perguntas, nem levanta
determinadas reivindicações. Este amor, por ser anseio tão veemente, já provou o
sabor do cumprimento e, por isto, não pode mais ser mitigado, [muito menos]
extinto.
8, 28
O Amor
dobro, tudo quanto antes possuíra”, (Jó 42, 7-10), pois ao contrário de seus
amigos por demais religiosos ele venceu o “ponto morto” e chegou ao “ponto
vivo” onde o ser humano e seu mundo, não só ultrapassaram a noite, como estão
sob o reflexo do glorioso dia vindouro, quando Deus deixa de ser o Grande-
Desconhecido para se tornar o Grande-Conhecido, quando o misterioso Universo
se revelará como criação de Deus. “Pois todas as coisas operam conjuntamente
para o bem daqueles que amam a Deus”.
O bem é o amor de Deus à criatura humana que, miserável e nua, apenas está
ainda vestida na presença de Deus mas, por isso mesmo, está ricamente trajada.
Tudo precisa operar conjuntamente para que aqueles a quem Deus ama sejam
participantes desse bem; tudo precisa cooperar na construção desse bem.
Aquele que ama a Deus está onde as duas negações [a realidade do mundo e a
invisibilidade de Deus] se manifestam mais agudamente e se contrapõem, uma
apontando à outra e se cancelando mutuamente. Quem ama a Deus está na
posição onde, por trás dele, acima dele e nele mesmo, se vê superimposta a nova
condição: Jesus Cristo, a ressurreição e a vida.
O Amor
8, 28
invisível; entre o céu e a terra; entre o ser humano e Deus. Também a dualidade
conforme aqui a conhecemos e que teremos de [suportar e] reconhecer até o final
de nossos dias, proclama a sua unidade, que é a nossa esperança: a glória dos
filhos de Deus.
A pergunta: “Quais são os que amam a Deus?” não pode ser posta
quantitativamente.
O amor a Deus não é [dom que possa ser] concedido; isto [não aconteceu, não
acontece e] jamais acontecerá em parte alguma; ele não está à mão e não se o
pode apanhar, nem para o indivíduo nem coletivamente; ele não pode ser
conquistado nem herdado, nem existe nas pessoas como se fora propriedade de
alguém.
Foi Deus quem primeiramente amou a criatura humana; foi Deus quem rasgou,
quem abriu o abismo à direita e à esquerda de cada pessoa, tirando-lhe todas as
demais alternativas de forma a restar-lhe esta uma só: amar novamente aquele
que acentua as antonomias da duplicidade e as faz operar “conjuntamente” para
que ao ser humano não passem de todo desapercebidas a inambigüidade e a
oculta unidade dessa duplicidade. Assim Deus edifica o que
[de outra formal não seria edificável nem aqui nem no além.
“De acordo com a sua decisão”, aqueles que o amam são chamados a executar a
obra para a qual ninguém pode chamar outra pessoa, nem mesmo oferecer-se.
E quando foi que alguém que amasse a Deus entendeu de outra forma?
Quem há que, (amando a Deus), acaso se glorie de dar a volta à chave e abrir a
porta realizando a plenitude da negação da negação; que se glorie de haver
vencido o caminho estreito entre os abismos que o ladeiam; que haja trocado o
sinal daquilo que não é edificável tanto no aquém como no além e tenha, assim,
conseguido e efetivado a conversão de todas as coisas? Que a “certeza cristã”
que, felizmente, subsiste apenas na presunção dos teólogos, tenha a desfaçatez
de citar, de mencionar os paradoxos absolutos do governo divino do mundo e a
confiança dos homens em Deus, como fatos religiosos, contando com eles ou,
495
8, 28
O Amor
[ou melhor, então o ser humano adquire [ou assume) condições de sentir a
manifestação de Deus] e esta sua manifestação jamais se estende pelo tempo, de
forma que ela não pode tornar-se um “bem”, uma posse, (para quem quer que
seja]. Esta manifestação é (repetimos) de novo e sempre, trabalho próprio de
Deus e dádiva exclusivamente sua, porquanto só em Deus pode a “vida” ser
morte e a “morte” vida; somente ele revela a criação no Cosmos e só ele revela
que ele mesmo é o Redentor.
Estes, pois, são os que amam a Deus; que para isso foram chamados pelo próprio
Deus e por ele só. Como poderiam amar a Deus se houvessem encontrado a seu
próprio ver, respostas mais satisfatórias, mais aquietantes?
496
O Amor
8, 29-30
Os que amam a Deus jamais poderão impedir que sejam comparados aos fúteis
portadores de tirso [insígnia de Baco, que consistia no desenho de um bastão
encimado de uma pinha ou, alternativamente, de ramos]; nem ficarão surpresos
se forem [até mesmo] confundidos com eles e, se isto não acontecer, o atribuirão
à providência divina; em qualquer hipótese, porém, não apelarão à sua vocação
pois sempre considerarão que ela só é válida em si mesma e nunca admitirão que
ela lhes dê alguma vantagem.
Nem tampouco esses tais [que amam a Deus] se oporão a que se lhes tire toda a
paz, lembrando-se que eles não são senão apenas chamados.
Jamais lhes parecerá lógico [ou compreensível] que o amor a Deus tenha sido
derramado em seus corações pelo Espírito Santo. Nunca poderão supor que isto
seja um fato real, consumado. “Eu serei aquele que eu for”! (ou, na versão de
Almeida, “Eu sou o que sou”!] (Ex. 3, 13-15): O Desconhecido, o Invisível, o
Eterno; [eu sou] aquele que chama.
Se, por um instante, [os que assim são chamados] o amassem de forma diferente,
[tivessem com Deus] um relacionamento direto, assegurando para si uma posse,
ou se gozassem de algum privilégio [ou vantagem ou experiência especial],
então Deus já não seria mais Deus e a vocação deixaria de existir, pois são
chamados aqueles que foram destinados por Deus “para serem conforme a
imagem de seu Filho”. A imagem a que se devem assemelhar é a morte de Jesus.
(Filip. 3, 10).
Foi sob esta figura [nesta imagem], sob esta forma incógnita e sob a
transparência do fato que constitui a característica dominante da vida de Jesus
— [a sua renúncia a tudo quanto poderia ser (inclusive ao que o mundo lhe
poderia dar como “filho do homem”), culminando com sua morte], —que o
Filho de Deus veio ao mundo. (5, 6; 6, 5; 8, 3). A isto, [a esta semelhança] são
destinados aqueles que amam a Deus: destinados a testemunhar o caminho da
morte, [a “VIA CRUCIS”] de Jesus, e também a sua ressurreição.
A última e mais pesada aflição [daqueles que amam a Deus] é o caminho que
têm de percorrer na vida, qualquer que seja a forma efetiva[e particular de cada
um]. É a aflição de quem está apertado entre o Deus Desconhecido e o mundo,
por demais conhecido; é uma situação na qual a criatura não sabe como se há de
ter nem como dela há de sair.
497
8, 29-30
O Amor
Todavia é claro que quando esta destinação se completa em uma pessoa, quando
se torna num evento, quando pessoas como Jó ou Paulo anunciam a morte de
Jesus, quando se tornar possível que a criatura se glorie em sua tribulação como
sendo sua honra e sua salvação (5, 3), quando acontecer alguém tornar-se em luz
que brilha dentro de sua miséria, [angústia, aflição e tribula-
ção], a despeito dessa miséria ou por causa dela, (II Cor. 1, 3-11), então se trata
de obra de Deus que opera nessa pessoa e por meio dela, pois nenhuma nega-
ção finita gera o infinito. Não há asceticismo, nem martirização, nem “sabedoria
da morte”, nem morte voluntária, nem qualquer suplício que a pessoa escolha,
que possa criar a luz que vem da cruz de Cristo.
Nenhuma experiência mortal serve como sucedânea da morte que fala aos
“chamados” e que, através deles, fala do Deus vivo; não há discipulado
Quando a aflição já não for somente aflição, nem a morte apenas morte; quando
o “NÃO” deixar de ser puramente não, e o “não-conhecimento” já não for
exatamente, desconhecimento, [quando as coisas se transformarem e mu-darem
de sentido] semelhantemente ao que acontece na “imagem de seu Filho”
Quando isto se der, foi porque Deus assim resolveu e não o ser humano.
E nesta determinação [nesta resolução anterior] que a todo instante [e em cada
momento] precede a nossa atualidade em nosso relacionamento com Deus (que
uma vez foi rompido pela nossa queda e ora se faz indiretamente), que está a
legitimidade e a autoridade da vocação daqueles que amam a Deus.
Eles são destinados por Deus porque são conhecidos por ele. “Se alguém ama a
Deus, esse é conhecido por ele”. (I Cor. 8, 3).
498
O Amor
8, 29-30
O fato de que Deus conhece a criatura humana e de que neste conhecimento que
é de Deus e somente de Deus, a destinação desta criatura para filho de Deus
esteja no amor que ela tem a Deus e [ainda] que dentro desta destinação a
criatura seja chamada para testemunhar do evento da ressurreição, não significa
que este amor seja motivado por decisão divina tomada na origem dos tempos
(no próprio começo dos tempos!) pela qual se crie agora, no decorrer dos tempos
e na presente criatura, uma determinada maneira de ser, de ter e de agir; antes
significa que esse amor a Deus não pode, em momento algum, brotar como
modo de ser, ter ou agir, atribuível aos homens pois ele tem, por todo sempre e a
cada momento, sua origem em Deus, que é onde sua fonte precisa ser procurada
e só onde pode ser achada.
Quem ama a Deus, jamais pode perguntar: “Sou eu?” Nem tampouco lhe podem
interrogar: “És tu?”
Esta pergunta, “acaso sou eu?” é rica em sentido na conotação que teve nos
lábios dos Apóstolos quando a formularam na última ceia.
499
8, 29-32
O Amor
“Se alguém julga saber alguma coisa, com efeito não aprendeu ainda como
convém saber” (1 Cor. 8, 2), “porquanto o que alguém sabe, e que portanto lhe é
perceptível, isso é temporal, porém o que é eterno, é invisível”.
Julgados, eles são justificados; cegos, eles vêem; mortos são vivificados, porém,
nunca jamais em relação direta de causa e efeito mas sempre e reiteradamente
dependendo de Deus.
Eles são, a todo tempo da temporalidade, aquilo que são! [Isto é, no mundo, são
— apesar de toda graça divina — apenas seres humanos!].
Agora, pois, pretendemos saber o que dizemos [do que estamos falando e o que
estamos afirmando], quando dizemos: “Aos que chamou, a esses também
justificou e aos que justificou, a esses fez co-participantes da sua glória”.
Porquanto na criatura por ele chamada, por ele destinada e dele conhecida, no
oculto de seu ser, ter e agir (2, 16), Deus encontra o que lhe apraz,
[porque o que aí existe] é a nova criatura, [o ser] que o próprio Deus criou para a
redenção dos homens.
O Amor
8, 31-32
Todavia “ágape” continua sendo o “caminho mais excelente” que não pode ser
entendido nem pela experiência, nem pelo raciocínio, nem pelo nosso intensivo
testemunho de que pertencemos a Deus; ele se torna compreensível, apenas, em
Deus.
Vs. 31 e 32 Que diremos, pois, à vista dessas coisas? Se Deus é por nós, quem
será contra nós?Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos
nós o entregou, como não nos dará também, com ele, graciosamente, todas as
coisas?
“Que diremos, pois, à vista dessas coisas?” — [o que diremos pois] para
esclarecer, interpretar e completar aquilo que o próprio Deus diz aos que o
amam, aquilo que só Deus pode afirmar lá onde ele quer que o procuremos e
onde ele se dá a conhecer?
Acaso [poderíamos juntar algo ao que Deus diz, sem obscurecer-lhe o sentido?]
Poderíamos acrescentar alguma coisa que não fosse senão um pequeno
comentário, [não importa se] reiterando ou negando o que Deus disse?
Ora, calar sobre o que o amor [a Deus] conhece [e traz ao nosso conhecimento]
tem o mesmo efeito obscurecedor que falar a seu respeito; erramos igualmente,
quer falemos quer silenciemos mas estaremos certos em ambos os casos se Deus
nos justificar— (literalmente, “se Deus nos der razão”).
[As duplas trevas foram desfeitas pelo nascimento do Homem Novo (em Cristo)
que já não apresenta as trevas da retenção da verdade com sua própria justiça e
não está à sombra do NÃO divino à injustiça humana. Todavia, o Homem Velho,
(em Adão)] é precipitado na dualidade dessas trevas e, eventualmen-501
8, 31-32
O Amor
Contudo, a criatura com quem Deus está e que, portanto, por força da iniciativa
divina está ao lado de Deus, ignora a dualidade e não pensa por antinomias; a
ninguém e nada tem contra si, pois este ser corruptível [desagradável], revestiu-
se da incorruptibilidade e o mortal, da imortalidade. Aqui se cumpriu o que foi
dito: “Tragada foi a morte pela vitória”! (1 Cor. 15, 54).
Mediante este “Deus por nós”! está dito o que era preciso, sobre
“Cumprimento”, “Redenção”, “Perfeição” e “Glória”; foi dito tudo o que
podemos afirmar e o que precisa ser dito sobre o invisível centro.
O princípio e o fim é Deus, que é “tudo em todos” (1 Cor. 15, 28). Não temos
palavras para expressar, nem o nosso entendimento pode compreender
[como pode Deus ser — ou como é ele “tudo em todos”], mesmo porque se
entendêssemos, se pudéssemos explicar, ele já não seria esse “tudo em todos”.
Juntamente com ele, também nós (especialmente nós!) estamos submersos nas
águas, arrastados para as profundezas e colocados perante o não que Deus
pronunciou a nosso respeito — a respeito desta criatura a quem foi tirada toda
possibilidade de fugir desta confrontação [com o não divino] e que é conduzida
ao tribunal a que todos são submetidos no insanável conflito entre a justificação
e o pecado, entre a vida e a morte, entre a temporalidade e a eternidade.
Lá [onde Jesus Cristo está e para onde a criatura humana foi conduzida]
O Amor
8, 33-39
— o Deus a quem nunca conhecemos se não como nosso opositor, como quem
está contra nós — [e que, agora e aqui] é o “Deus por nós”.
O Cristo entregue, o Cristo que tudo nos tira [que nos leva à renúncia de todas as
possibilidades do mundo], deixando-nos apenas a existencialidade de Deus é,
[realmente] o “Deus por nós” (8, 31) e “nós”, ao lado de Deus; temos de ousar o
assalto a esta posição incapturável que, todavia, já caiu! O Cristo que foi
entregue é o Espírito, a Verdade, o incansável braço de Deus. Se sofrermos com
ele, como não haveremos de ser, também, glorificados com ele? (8, 17). Se
morrermos com ele, como não haveremos, também, de viver com ele?
(6, 8). Se Deus nos entregou, juntamente com ele, ao tribunal que está sobre
todos [que a todos julga], como não nos concederá também, em toda graça, que
todas as coisas concorram conjuntamente para o nosso bem?! (8, 28).
“Em toda graça!” — Não podemos falar, mas também não podemos deixar de
falar da aurora que vimos!
Acaso Deus, que nos declara justificados? Quem condenará?— Acaso Cristo
Jesus, o que morreu, ou melhor o ressurrecto que está à direita de Deus e que
até intercede por nós?
— Este assalto que aqui é feito à fortaleza “Deus por nós” acaso pode ser
confirmado?
Embora esta maneira de traduzir possa estar implícita no contexto geral parece-
me que, pela posição em que a frase está e pela maneira de escrever do Autor,
ele quer referir-se à idéia geral contida nos versículos 33 a 39 nos quais 503
8, 33-39
O Amor
se afirma vigorosamente que “Deus é por nós”. [A tradução literal da frase, que
segue imediatamente à transcrição dos versículos é: [Pode a posição “Deus por
nós” aqui assaltada, ser confirmada?)].
— Não; ela precisa ser renunciada imediatamente pois sabemos que este
território é propriedade de Deus; é território no qual nada temos a procurar, nem
agora, nem no passado, nem no futuro. [Entenda-se: O “assalto” precisa ser
renunciado].
O que mais pode a criatura humana ser perante Deus senão acusada?
“Somos”? Acaso “nós”? Nós que de uma ou outra forma nos convertemos, ou
que procedemos desta ou daquela maneira ou que, de alguma forma fomos
convencidos, entusiasmados ou adequadamente orientados?
DICTU —, a experiência dos outros esteja, até, menos distante que a nossa...
Todavia, para uns e outros, e sem fim a diferença entre o instante eterno no qual
abordamos [assaltamos] a posição “Deus por nós”, e todos demais momentos
tanto anteriores como posteriores, nos quais “ainda” ou “de novo”
por parte daqueles que para isto foram chamados pelo próprio Deus e que são
destinados e conhecidos por ele (8, 29-30), caiu nos braços [ou no coração] do
encolerizado juiz da criatura deste mundo. Cristo — o HOMEM NOVO que eu
504
O Espírito
8, 33-39
não sou — implantou seus pés onde não posso estar. A ele se diz o que eu não
posso dizer. Ele não é apenas aquele que morreu, mas nele se completa a
conversão [a mudança, a transformação] de todas as coisas; ele é aquele que
ressurgiu e, nesta qualidade, está em meu lugar à direita de Deus e intercede por
mim. Ele percebe que eu, o pecador, estou justificado; que minha prisão é minha
liberdade e que minha máxima aflição na morte é a vitória da vida.
1. Ao tratar da obra de Deus junto aos homens, Barth diz repetidas vezes que
Deus se justifica perante os homens e conta com eles; todavia o A. não entra em
minúcias sobre estes aspectos específicos do relacionamento de Deus com o ser
humano. (Deve ser porque escreve para teólogos!)
Por que precisa Deus justificar-se? Acaso não disse ele a Moisés,
“Eu sou o que SOU”!? É certo que a seguir Deus abrandou a sua maneira de se
identificar: “Dirás que quem te enviou é ‘o Deus de nossos pais, o Deus de
Abraão’... “(Exo. 3, 14-15).
505
8, 1-39
O Espírito
(se for permitido que assim nos expressemos) mas a sua semelhança com a ética
humana não vai além desta peculiaridade e, assim mesmo, porque a
característica veio de cima. É Deus que, havendo por seu próprio decreto criado
o ser humano à sua imagem e semelhança, lhe dá liberdade plena para “fazer” e
“deixar de fazer”.
Deus visa ao bem perfeito e à finalidade última da criatura, não pela adaptação
de meios mas, mediante uma única condição: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e
só a ele servirás”. (Deut. 6, 13 e Mat. 4, 10). Ou então, segundo o grande
mandamento: “Amarás o Senhor teu Deus de todo teu coração, de toda tua alma,
de todo teu entendimento”. (Deut. 6, 5 e Mat. 22, 37). A diferença fundamental
está nisto: a ética humana estabelece leis para moldar os corações; a ética divina
sugere a reforma do coração para dele surgirem pensamentos retos.
O Espírito
8, 1-39
isto mesmo, seria mais próprio dizer que no sofrimento, na aflição e na dor,
quando convenientemente entendidos, vemos a razão de Deus quando nos
reivindicou (ou reivindica) para si. Esta é a justificação (que encontramos) de
Deus.
Ora, é justamente quando assim entendemos que nos entregamos a Deus, sem
reservas. Isto se dará quando houvermos ouvido e entendido a pergunta e a
resposta que nos vem desde a cruz; quando nos houvermos esvaziado
completamente, quando virmos a luz não gerada que brilha através e além do
sofrimento; então estaremos em condições de receber em nós a obra de Deus e
daremos ocasião (todavia não nós, mas Cristo em nós!...) a que o Espírito Santo
entre e faça morada em nós. Esta é a maneira pela qual Deus conta conosco, no
sofrimento. Não para lhe servirmos por testemunhas, embora esse testemunho
seja marco indicativo de nossa redenção. Deus conta e
“precisa contar conosco” para justificar-nos, pois ele não nos predestinou para
crermos, inescapavelmente, (ou para que alguns, —
nos é dado pelo Espírito que não podemos criar em nós, nem convidar para
habitar em nosso coração, ou aí o reter pelos nossos méritos, embora possamos
rejeitá-lo a qualquer tempo).
Deus não trata o homem qual cão (inda que seja o cão “melhor amigo”),
porquanto o ser humano foi criado à imagem de Deus e não consta, em lugar
algum, que o cão goze desse privilégio perante o homem...
507
8, 1-39
O Espírito
— Está na porta que ele abre para vislumbrarmos a luz que vem desde a cruz. (É
por isso que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus.
— Revela nossa condição humana. Revela o contraste que existe entre a nossa
vida atual e a edênica, quando ainda éramos filhos de Deus pelo direito de
criação; quando ainda não havíamos abandonado o lar e perdido a filiação.
Revela, portanto, também o contraste que existe entre a criatura deste mundo e a
nova criatura, restaurada na condição de filho de Deus, agora por adoção.
Ele é o Senhor que nos criou e não nos rejeita, antes nos aceita e nos justifica
perante si mesmo. Todavia, para poder socorrer-nos, é preciso que o queiramos,
que o amemos. (Nós?)
Acaso Isaías 11, 6-9 não nos sugere um mundo inteiramente diverso daquele que
conhecemos?
O homem que recebeu o domínio sobre a terra e tudo o que nela há, para seu
sustento, seu prazer e seu gozo, não se limitou a usá-la mas a explorou e explora.
508
O Espírito
8, 1-39
A poluição ambiental é intensa e chega a tal ponto de levar a pensar no risco de
ficar o globo terráqueo exposto a ação desintegradora dos raios cósmicos.
Na aurora do século ecológico parece ser mais evidente o que o Apóstolo quis
dizer quando, há 2.000 anos, escrevia os versículos 19
juntos viverão,
—————————————————
conhecimento do Senhor!”
509
Capítulo IX
A TRIBULAÇÃO DA IGREJA
ria, perigo, aflição, apertura. Por isso, me parece que TRIBULAÇAO se ajusta
melhor ao pensamento do A.
• Solidariedade
- Vs.
1 a 5
6 a 13
A aflição da Igreja é inerente à sua missão e será tanto maior quanto mais fiel a
Igreja for. Esta missão é a de anunciar o Deus invisível — o Deus de Jacó —
9, 1-5
Solidariedade
A aflição da Igreja não é para penalização mas para libertação; é pela pregação
da Igreja fiel que o homem do presente século se defronta com o Deus de Esaú;
se aflige e com ele luta durante a longa noite de sua temporalidade até que raie a
aurora do grande Dia do Senhor e ele receba a graça, a bênção do Deus de Jacó.
É por força desta graça que a Igreja do presente século, a Igreja de Esaú, perene
em sua temporalidade, desaparece para dar lugar a sua irmã gêmea, mais
excelente, de quem Deus se agrada, a Igreja de Jacó, perene em sua eternidade, e
da qual o fundamento é Cristo.
É na forma da semelhança dos gêmeos Esaú e Jacó e sob esta alegoria, esta
parábola, que o A. analisa o processo da revelação divina, mediante a dupla
predestinação.
Neste capítulo e nos dois seguintes o A. analisa a Igreja sob três aspectos: sua
Tribulação, sua Culpa e sua Esperança.
Solidariedade
9, 5
Além da versão adotada por Barth, existem três outras: a) Versão semelhante à
de Almeida, atrás transcrita; b) Versão que usa as mesmas palavras da versão
anterior porém, valendo-se do artifício de introdução de vírgulas e supressão de
um artigo escreve, finalmente, que “a dignidade de Deus pode ser,
verdadeiramente, atribuída a Cristo”. (Esses artifícios são de Hoffmann, Zahn,
Beck e Kuehl).
A primeira alternativa (conforme o texto veio até nós) encontra forte apoio na
construção gramatical análoga à das passagens em 1, 25 e II Cor. 11, 31.
Todavia, Barth diz que não pode aceitar essa tão ímpar atribuição ao Deus
Altíssimo (a classificação “acima” de todos, de Zahn), pelas seguintes razões:
ção atual;
513
9, 5
Solidariedade
É certo, diz o A., que o texto como doxologia independente poderia ser admitido
porém ele não concorda com Juelicher que diz ser esta a única interpretação
cabível, e faz notar que Lietzmann, embora também aceite a hipótese de que se
trate de doxologia independente do texto, é mais prudente com respeito à
possibilidade de existirem outras interpretações plausíveis.
Para que a passagem possa ser tida como doxologia independente, diz o A., é
necessário aceitar a sua redação como assindetonia inteiramente estranha ao
estilo de Paulo e também totalmente descabida no texto.
514
Solidariedade
9, 1
Deus! Aquele que tanto é a nítida linha de chegada como de partida de tudo
quanto somos, temos e fazemos; que qualitativamente difere infinitamente do
homem e de tudo que é humano, que nunca foi e jamais será idêntico aos
homens, aquele que designamos por Deus, assim o sentimos, o pressentimos e
adoramos; aquele que é o terminante “ALTO” a toda impetuosidade (ou
dessossego) humano e o peremptório “MARCHE!” a toda estagnação (ou
sossego); aquele que é o SIM em nosso não e o não em nosso sim; aquele que é
o primeiro e o último e, como tal, o desconhecido; aquele que jamais é uma
grandeza entre outras no âmbito de nosso conhecimento: Deus, o Senhor, o
Criador e o Redentor, este é o Deus Vivo!
O evangelho é a boa nova da salvação que há em Cristo Jesus, que nos revela
esse Deus [de outra formal oculto, o Deus Vivo. O evangelho é o relampejo do
impossível sobre o aparentemente interminável reino das coisas possí-
veis; do invisível sobre o visível; do além sobre o mundo presente. [Este lampejo
do além] não [vem] de algum mundo separado — destacado do nosso mundo
porém como a verdade deste mundo, verdade que agora e aqui [ainda] está
encoberta; vem como a origem à qual todas as coisas estão vinculadas; como a
supressão de toda relatividade e, por isso, como a realidade de todas coisas
relativas; vem como o Reino de Deus cuja inevitabilidade, existencialidade,
vitória e glória não podem ficar ocultas, a despeito do ser humano, ou melhor
9, 1
Solidariedade
vigorosa e mais adequada a seu ser, pois não falamos das degenerescências
religiosas, porém da plenitude da Igreja ideal.
“ponto por ponto”? Pode, aqui dar-se o caso de uma parte pretender ter razão
perante a outra, que não a tenha?
Solidariedade
9, 1
parativamente mais ante o fato de que o ser humano não alcança aquilo que,
como membro da Igreja, ele tanto aspira.
Quanto mais fiel a Igreja for à verdade evangélica mais alto ela falará do NÃO
divino e mais claramente apontará à cruz da renúncia, do sofrimento, da
vergonha, da dor e da aflição; mais fortemente proclamará a absoluta
necessidade de o homem perder a sua vida para ganhá-la. Tal Igreja não opiará o
povo, antes o despertará, o sacudirá, até que cada um clame “Deus meu!, Deus
meu!”.
[Dentro da dialética irônica do A. é certo que, no acalento dos que dormem, as
Igrejas “menos” evangélicas têm maior êxito do que as que diligenciam
obedecer aos preceitos bíblicos.]
Ainda falando humanamente, não podemos deixar de dizer que a Igreja visível é
o Corpo de Cristo; que entre aqueles que nela ingressam, que a ela se ligam, há
os que buscam a Deus para adorá-lo em Espírito e Verdade; há os que esperam e
desejam o antigo estado de filhos de Deus, a sua volta ao lar; todavia, não visam
necessariamente a sua “entrada” no céu, mas amam a Deus. Já não confiam em
seus dotes, seus bens materiais, seu saber, seu estofo moral, sua espiritualidade,
sua fé; não buscam nem pedem recompensa, porque sabem que nada merecem.
Contudo, vivem em esperança, pela fé. Crêem que Deus é poderoso para os
salvar. Confiam no sacrifício expiatório de Cristo; esperam em Deus!
É evidente que Barth não quer dizer que a Igreja desaparecerá ou deve
desaparecer; tal interpretação é inteiramente inadmissível ante as afirmações
feitas em capítulos anteriores onde Barth declara, inclusive, que a existência da
Igreja é essencial à religião que é, por sua vez, a mais sublime de todas as
atividades humanas.
Também é certo que neste contexto, quando Barth fala da Igreja, ele não se
refere às agremiações de caráter eclesiástico pretensamente paralelas ao
Cristianismo — (Judaísmo, Maometanismo, etc.) — nem a conventículos
semelhantes ao Mormonismo, por exemplo, nem ao Espiritismo ou alguma
forma de 517
9, 1
Solidariedade
Por todas essas propriedades tal Igreja tem de ser — só pode ser —
Todavia essa mesma Igreja abriga os que permanecem fiéis, aqueles que lavaram
suas vestes no sangue do Cordeiro e não as contaminaram; a Igreja que com
paciência e perseverança guarda a fé; a Igreja que tem ante si uma porta aberta,
contra a qual não prevalecerão as forças do mal.
Estando no mundo e sendo parte dele, é natural que a Igreja, por seus membros,
seu clero, seus dirigentes, seus pregadores e seus missionários, por sua própria
organização eclesiástica, descambe sempre e reiteradamente para o pecado
fundamental, origem específica da queda do homem: o desejo de tornar-se igual
a Deus. E tanto maior é esta tentação quanto mais perto de Deus o homem se
sentir; ela é ubíqua na Igreja porque nela os Balaãos de todos os tempos têm
campo fértil para a sementeira de tropeços; porque quanto mais a criatura tratar
de seu relacionamento com o Criador maior será o seu anseio de aproximar-se
dele diretamente, contornando a cruz. E o faz por eufemismos engendrando
doutrinas, elaborando confissões de fé, promulgando dogmas, pregando e
promovendo — SUA FÉ — sua IGREJA.
Solidariedade
9, 1
de onde caiu; que com temor e tremor espera pela coroa da vida; que humilde e
crente confia na fidelidade de Deus. (Apoc. caps. 2 e 3).
É pois evidente que a oposição entre Igreja e Evangelho é de fora a fora e que,
basicamente, ela é interminável. Sim, senhores, neste assunto um lado tem razão
e outro está errado.
Não se trata de homem contra homem; não é Saulo ou Paulo contra os demais
fariseus! Não é o pregador do Evangelho contra o membro da Igreja.
Estas contraposições não são infinitas mas altamente finitas. Nos lábios humanos
não há pregação pura do Evangelho que não seja “eclesiástica”.
O incógnito divino continua por mais clara que seja a nossa pregação do
Evangelho, porquanto ninguém pode de direito [e com propriedade] falar sobre
Deus, ainda que o fizesse com línguas de fogo. Nem podemos ser diferentes:
todo aparato [de que nos servimos] para erigir manter e ordenar o
relacionamento
(Acaso haverá algum homem de Igreja que não proceda dessa maneira?).
Se não mostrarmos a eternidade na semelhança das coisas efêmeras, (se não
acharmos analogias para ilustrar nosso discurso), então estamos servindo à Igreja
e não estamos pregando o Evangelho (e quem, senão só Deus, pode livrar-nos
dessa possibilidade tão altamente provável?).
[Entendo que o A. quer dizer que se intentarmos falar de Deus e sobre Deus em
termos metafísicos, transcendentais ou filosóficos, sem recorrer a comparações e
ao estabelecimento de paralelos com fenômenos do mundo temporal estaremos,
talvez, exaltando a cultura, a sublimidade da Igreja ou promovendo sua mística
mas, não estaremos entregando a mensagem de Deus a nossos ouvintes.
Barth afirma que a própria pregação, em suas variadas facetas, é qual parábola
dos diferentes aspectos da verdade divina, pois:]
O fato de ninguém conseguir falar seriamente a respeito de Deus sem com isso
envolver sua própria pessoa e comprometer-se a si mesmo (fato que 519
9, 1
Solidariedade
Qual o evangelista que poderia impedir que “aos de fora tudo seja dito por
parábolas” e que esses tais, em tudo que ele diz, vejam apenas a forma estranha
de um direito novo e fabuloso pelo qual não se deixam derrubar antes, servindo-
se dele, com menos ou mais garra, paixão e habilidade queiram defender os
direitos que conhecem, [segundo os quais se julgam] justificados e salvos?
[Quem pode impedir que aqueles que estão de fora] julguem a seriedade (a
importância) de toda pregação como sendo [apenas] de âmbito eclesiástico onde,
reconhecida e realmente, nada é aplicável à vida prática pois nada na Igreja é, de
fato, existencialmente sério? Quem há que possa impedir o escândalo desse
malogro do evangelho?
— NINGUÉM!
[Esse escândalo] só pode ser impedido por Deus, e mais ninguém. Po-rém,
quando Deus o faz [quando Deus remove o escândalo], ele se mantém incógnito.
Não há qualquer possibilidade de termos nós a razão enquanto os outros não a
tenham. O ponto de vista de Deus permanece inteiramente resguardado,
[protegido da influência] de todos nossos pontos de vista, [de todas nossas
opiniões]. (Ele tem razão e todos estamos em erro, [ele é justo e todos nós somos
injustos] ).
— Não! Porém com a mente voltada para Deus e utilizando nossas ferramentas
[com a eficiência de que formos capazes], propagaremos o Evangelho e, porque
a Igreja é erigida pelo Reino do Céu, a ela nos submeteremos não obstante nosso
pleno conhecimento de sua permanente oposição ao Evangelho; com ela nos
solidari-zaremos, não nos desinteressaremos dela, antes a reconheceremos, nela
ingressare-mos e nos colocaremos à sua disposição, tornando-nos co-
responsáveis e participantes por aquilo e daquilo que lhe falta — que
necessariamente tem de lhe faltar.
520
Solidariedade
9, 1-2
“Falo a verdade em Cristo, não tergiverso [não finjo], do que minha consciência
me dá testemunho no Espírito Santo, que tenho grande mágoa e incessante dor
em meu coração”.
O Pastor porta sua toga sem sequer se dignar a lançar um olhar aos que
defendem o “laicismo” e que são amplamente tidos como melhores e mais
felizes; contudo ele vê a impossibilidade [quiçá a limitação] do empreendimento
Eclesiástico-Religioso; ele sabe que esse empreendimento tem de sossobrar
porque é inviável por sua própria natureza; ele vê como sua questionabilidade
cresce, não pela sua fraqueza, não com sua falta de influência, não mediante o
alheamento da Igreja no mundo, mas pelo contrário: a questionabilidade da
Igreja cresce com a habilidade e a força das ilusões que oferece, que são
sobremaneira práticas e geram tanta felicidade; [as restrições que se podem fazer
ou as dúvidas que surgem a respeito da Igreja, aumentam]
521
9, 2-3
Solidariedade
É preferível não gozar da graça, não ter a liberdade, não receber o Espí-
rito, não esperar o Dia Vindouro, do que ter tudo isso na qualidade de quem não
é co-participante, não sofre, não está perplexo, não se lamenta, mas é fugitivo e
está “separado”: isto nunca!
— Sim, sem dúvida, uma posição perdida que, mesmo assim, precisa ser
guardada. Quaisquer que sejam as posições que, como criaturas humanas,
sustentamos [e defendemos] são posições perdidas. Isto precisa ficar claro e de
fato se esclarece quando na Igreja se anuncia o Evangelho; quando na
solidariedade do profeta com o sacerdote, o impossível se torna possível e aquilo
que é possível se torna impossível.
O profeta declara-se solidário com o sacerdote porque sabe que tem de enfrentar
uma pergunta para a qual somente Deus tem a resposta; todavia não [se faz
solidário] para apresentar a pergunta em nova terminologia, nem tampouco para
engendrar nova tarefa para a veneranda Igreja; nem estará pensando na fundação
de alguma Igreja nova para tratar de incumbência antiga. Ele sabe que [até]
uma colônia, ou uma escola técnica pode ser uma igreja. Ele sabe que para esta
enfermidade de nada adianta a troca de hospital ou de enfermaria, por mais
radical que [essa mudança] seja, pois somente em Deus pode ser alcançada a
cura.
Solidariedade
9, 3
trazer aos seus ouvintes a resposta que Deus tem para dar e dá através da
instrumentalidade da Igreja. [Isto é, aquela Igreja que se assenta sobre a pedra
fundamental que é Cristo, o Filho do Deus Vivo, contra a qual não prevalecerão
as portas do inferno].
Todavia o Pregador sabe que a Igreja, sendo constituída por membros ainda
sujeitos ao “corpo desta morte”, está em natural oposição ao próprio Evangelho
conforme bem o comprovam as discórdias entre os irmãos; o Pregador sabe que
não é a “mudança de denominação” nem mesmo a troca de confissão religiosa
que modifica a criatura, que a cura espiritualmente, que a salva e a conduz para a
vida eterna. Esta graça é dada por Deus, e Deus somente! [Isto evidentemente,
não significa que aqueles que se convertem a Cristo devam ficar onde estão, que
não precisem “mudar” de Igreja; isto dependerá da conjuntura de cada caso e a
divina inspiração do Espírito Santo mostrará o caminho a seguir. Saulo não foi
desobediente à visão celestial; deixou o farisaísmo e entregou-se ao Cristianismo
e, para isso, teve de afastar-se da sinagoga dos judeus, fundando as inúmeras
Igrejas Cristãs que o registro dos atos apostólicos e as cartas de Paulo bem
revelam.
Quem realmente se converte, muda de rumo em sua vida; não mais se afasta de
Deus mas vai ao seu encontro no caminho para a cruz; esta conversão, esta
mudança de rumo exige novos caminhos e o converso abandonará a avenida
larga, plana, alegre, do comodismo, para seguir a vereda estreita e difícil da
renúncia. Mudará de Igreja? Talvez sim e talvez não. Quem houver passado da
morte para a vida buscará aquele redil onde melhor possa praticar o bem que
deseja e quer; onde, no seu entender, melhor possa louvar e adorar a Deus em
Espírito e em Verdade; ele terá que decidir por si mesmo, perante Deus e optar!
O Profeta não entrará num bote salva-vidas para fugir da inevitável ca-tástrofe
que ameaça a Igreja mas permanecerá, agradecido ou não, no seu posto, seja este
na Casa de Máquinas ou na Ponte de Comando.
523
9, 3
Solidariedade
Após cada vigoroso ataque polêmico contra a Igreja ele [o Profeta] voltará
prontamente à posição onde neste mundo — e justamente como pessoa
eclesiástico-religiosa — a criatura humana é “amaldiçoada” [é anátema],
“separada de Cristo”, para sentir a bem-aventurança unicamente na esperança da
graça de Deus, porquanto toda e qualquer polêmica anti-religiosa, [toda disputa
contra a religião] só tem sentido se o seu objetivo for a afirmação [categóri-ca]
de que só a Deus pertence a honra e jamais o polemista, [acaso] sabendo e
conhecendo melhor, poderia justificar-se e se salvar. Por isso, ao alçar a sua voz
para lembrar a si mesmo e à Igreja da eternidade, o Profeta prefere estar em todo
instante do tempo presente com a Igreja (e também com a teologia, por
exemplo), no inferno, a estar com os pietistas de alto ou baixo coturno, de
observância mais moderna ou mais antiga, em um céu que não existe. Aceite-o
quem puder: Cristo está lá onde se reconhece inconsolavelmente que fomos
banidos de sua presença, não porém, (jamais), onde nos sintamos abrigados e
protegidos da aflição que a ciência deste banimento nos traz.
— Por que não encerraríamos o assunto “Igreja” com o Capítulo VIII, como se a
Igreja nada representasse de sério, de real, mas fosse apenas história, ou questão
acidental?
Solidariedade
9, 4-5
Admitir que existam caminhos diretos — natureza, história, arte, moral, ciência
ou até mesmo a religião — para chegar à impossível possibilidade que é Deus, é
[mera] auto-sugestão sentimental e liberal. A superabundante variedade dos
caminhos diretos que levam à Igreja, a igrejas e igrejinhas de toda sorte é bem
exemplificada nas experiências do chamado “Socialismo Religioso” [quiçá o
Evangelho Social, tão em voga entre os ledos marxistizantes].
Isto não é dito [por Paulo porque ele estivesse] “tomado de grato e profundo
respeito” (Juelicher) porém trata-se da afirmação sóbria de que os demais
fariseus podem, também, saber, dizer, representar e ter, do Evangelho, tudo o que
Paulo tem.
9, 4-5
Solidariedade
Para tanto, é preciso ser israelita? [É preciso ser israelita] para ter a filiação, a
glória, os pactos [as alianças], à dádiva da lei, o culto a Deus, as promessas, os
patriarcas, o Cristo segundo a carne?
Acaso a Igreja não tem todas essas coisas, também? Como, pois, se poderia ter
mais do que o cumprimento do Antigo Testamento? [Como poderia a Igreja
desejar mais do que o cumprimento das promessas do Antigo Testamento?].
Bem sabemos que as paredes do canal são firmes e bem construídas e contra o
temor de que ele pudesse estar seco os moradores ribeirinhos estão devidamente
protegidos porquanto também nós outros [aqueles que estão de fora da Igreja]
nada podemos fazer senão abrir canais pois a água viva da revelação [tanto ou]
tão pouco está à disposição de uns quanto de outros.
Sabemos que tudo quanto fizermos será apenas em forma de variantes daquilo
que a Igreja sempre foi.
“Os quais têm a Deus que governa todas as coisas. Louvado seja eternamente!”
— Não podemos negar isto; e como poderíamos? Portanto, dizemos Sim! Mas
neste “Sim” está subentendida a objeção que endereçamos [não só] à Igreja
(mas) também a nós. Dizemos Sim se o Deus de que falamos for aquele que,
como toda gente, também nós conhecemos, assim o designamos e adoramos.
Porém, se [esse] Deus for aquele que “reina sobre tudo” então está latente em
nossa pergunta, (se Israel e a Igreja têm Deus), a queixa e a acusação de que 526
O Deus de Jacó
9, 5-6
a Igreja não o tem. Como objeção do próprio Deus à Igreja, não deveria ser
ignorada levianamente a objeção que os inimigos da Igreja levantam quando
dizem que o “canal” está vazio, e que a posse da Filiação, das Alianças, da Lei,
do Culto Divino, das Promessas, dos Patriarcas, do Cristo segundo a carne e do
próprio Deus, não pode ser considerada como existencial [como real e objetiva]
embora de todas essas coisas a Igreja se glorie e não sem razão. Quando esse
leão rugir, quem há que não tema? Deus, como Deus, cessa a solidariedade entre
Paulo e os Fariseus e se inicia o protesto, o contraste.
Vista por Deus, como Deus, a Igreja está extinta desde agora, “Ouvis o sinal?”
Comentários: 9, 1-5
Nada há de novo sob o sol; todavia, para a criatura Deus é sempre a absoluta
novidade porquanto ele não está “sob o sol”. Quando para o homem (e para a
congregação dos homens na Igreja visível) raiar a manhã do Dia do Senhor,
quando o ser humano transpuser os umbrais da eternidade, ele terá perante si a
grande NOVIDADE; ele verá de face a face o Deus Desconhecido deste mundo!
Então será a Nova Jerusalém; então aquilo que “E” para este mundo já não será
mais; estará definitivamente extinta a Igreja de Esaú; egressa da Igreja visível, da
Igreja das lutas, das dissenções, dos fracassos espirituais e, quiçá, das glórias
terrenas, a Nova Criatura ingressará na Igreja invisível, cujo rol de membros é o
Livro da Vida de cujas páginas, pela graça de Deus, seu nome não foi riscado.
Para Deus não há tempo passado nem futuro; aquilo que SERÁ para a criatura
deste século, “É” desde agora para DEUS. Em Cristo é HOJE
9, 6
O Deus de Jacó
Por que será que são sempre e somente os espíritos pequenos e nervosos, os
“religiosos-histéricos” que ao se revoltarem, [aliás] com razão, contra o ensino
de sacerdotes e escribas ou ante a mundanalidade da Igreja, seu atraso político e
cultural, sua corrupção, sua fraqueza e sua hipocrisia, apelam apressadamente
— e não sem satisfação com seu próprio gesto trágico — a esta ULTIMARATIO
Por que será que o impacto da oposição direta à Igreja até mesmo [o impacto da
luta] contra a sua degenerescência é tão desmesuradamente desagradável, vazio,
inconsistente e tão pouco convincente?
Por que manifestou Paulo sua melancólica solidariedade com Israel, na aparente
tentativa de ficar na linha média entre essas duas possibilidades — (a
preservação da Igreja e a tentativa de sua reformulação] ambas tão pouco
promissoras?
O Deus de Jacó
9, 6
também o Apóstolo estaria junto com os muitos que se queixam dizendo “que a
palavra de Deus falhou”, e por isso se põem a [imaginar e] meditar sobre como
poderão ser salvos. [Estivera] em tal situação, o Apóstolo responsabiliza-ria a
degenerescência humana pelos inconfundíveis sintomas da evidente enfermidade
crônica da Igreja e tomaria as medidas apropriadas e mais ou menos decisivas
para debelar o mal.
quer dizer que a Igreja não pode, pelas contingências da temporalidade que a
reveste, anunciar a Palavra de Deus com “palavras dos céus”, porém o faz com
terminologia humana e entendimento humano procurando (por assim dizer)
TRANSMITIR a inspiração que recebe, embora essa “retransmissão” seja im-
perfeita.
A Igreja que tiver Cristo por alicerce não é detentora da verdade porque ela não
detém Cristo em si mesma, porém ela é a fonte onde brota, ou melhor, onde pode
e deve brotar a água viva, porque a água da vida somente jorrará enquanto e na
medida em que Cristo for, de fato, alicerce; contudo, mesmo estando
fundamentada em Cristo, a água que através dela jorra traz consigo algumas das
características materiais — humanas — que deturpam a verdade eterna de modo
que a mensagem da Igreja, sendo da Igreja, já não é a verdade de Deus; no
entanto o mister, o assunto, o tema de tal Igreja é a própria Verdade, (é Deus!); é
de Deus que a Igreja fala, por isso não fala “exatamente” a Verdade mas fala da
Verdade; se a Igreja revelasse (ou se revelar) a mensagem que tem para entregar
com absoluta fidelidade ao “original”, ela já não estaria (ou não estará) falando
do Deus de Abraão, Isac e Jacó, do Deus dos Profetas e dos Apóstolos, do Deus
Desconhecido, mas de UM Deus, quiçá do Não — Deus deste mundo.
9, 6
O Deus de Jacó
“edificadores rejeitaram” por que não quiseram ou não tiveram coragem para
assimilar o escândalo da fé.
No entanto dá-se o milagre da graça; o Espírito intercede por nós e vem ao nosso
encontro e pela instrumentalidade da Igreja (todavia não somente pela Igreja)
nos leva aos pés da cruz.
Esta é a COROA DA IGREJA! ...]
A Igreja se esfacela na rocha que a fundamenta; ela morre naquele de quem ela
vive. O “bem-aventurado” e, também, “terrível” tema da Igreja é a Palavra de
Deus na qual se efetiva o relacionamento entre o homem e Deus [...
e o verbo se fez carne ...] para que Deus seja verdadeiro e todo homem
mentiroso (3, 4).
Neste tema divide-se a Igreja sempre de novo em Igreja de Esaú e Igreja de Jacó.
Naquela o milagre não acontece e por isso todo falar e ouvir de Deus apenas
revela que o homem é mentiroso, enquanto nesta acontece o milagre e a Verdade
de Deus é visível [acima e] por sobre a mentira humana.
[como duas organizações] em oposição entre si. A Igreja de Esaú é a única que
Tratamos da Igreja de Esaú porque somente dela podemos falar; mas não nos
podemos ocupar dela sem imediatamente nos lembrarmos que o seu
Em toda sua dubiedade, Esaú vive de Jacó e subsiste somente porque não é e
enquanto ele próprio não for Jacó.
Como não podemos contornar esta realidade, a [contínua] queda, a perene
degenerescência e a eventual recuperação da Igreja de Esaú passam a ter, para
nós, interesse apenas secundário e não nos podemos animar a perder com ela
uma palavra sequer, a não ser em conexão com sua própria aflição — a aflição
que fustiga suas virtudes e não a que procede de seus vícios.
530
O Deus de Jacó
9, 6-7
O que nos resta senão permitir que essa pergunta execute a sua obra em nós, e
“esperar que o milagre se realize” conforme dizem aqueles que não têm
esperança? O que nos resta senão estar atentos ao Evangelho e tartamudear a
respeito daquele que, para sempre, fundamenta a Igreja de Jacó? O que mais nos
resta além da aflição da Igreja, esta Igreja de Esaú, a única que conhecemos? O
que nos resta senão tomarmos esta Igreja “a sério” para então bater à porta de
Deus: “Não te deixarei ir se não me abençoares”? (Gen. 32, 36).
Vs. 6 (segunda parte) a 9 Porquanto não por eles descenderem todos de Israel,
são eles Israel; nem por serem descendentes de Abraão são todos filhos de
Deus. Antes: em Isaque a tua descendência terá o seu nome! isto é: os filhos
segundo a carne, como tais, não são filhos de Deus, mas são os filhos da
promessa que são considerados como descendência de Abraão e de Deus.
Porque a palavra da promessa é esta: “Ao tempo eu virei e Sara terá um filho”.
Se eles acaso ouvem a palavra de Deus e dela falam de forma que aquilo que aí
se ouve e de que se fala seja realmente a Palavra de Deus — o milagre acontece;
se o seu instante histórico contiver também, o culto, o instante eterno da
Revelação, então eles são existencialmente aquilo pelo que se nomeiam e mais
531
9, 6-8
O Deus de Jacó
uma vez precisamos dizer: o milagre acontece! Então estes são, invisivelmente, a
Igreja de Jacó; possuem a promessa de Abraão (4, 16), são filhos de Deus (8,
16)!
São mesmo? São aquilo que seu nome diz? E por que não seriam? Por que não o
seriam todos eles desde os mais categorizados até os mais de baixo? Quais, deles
todos, não seriam testemunhas e sinais da lei e dos profetas (3, 21)?
Porém, “em Cristo” quer dizer na medida em que se der o milagre; na medida
em que a livre graça, vocação e eleição de Deus assim o quer; na medida em que
houver compreensão (entendimento) de Deus.
(Se não houver compreensão de Deus] se não for pelo milagre, pela eleição
divina, então não é “em Cristo”! Portanto nunca e jamais enquanto forem
“descendência de Israel” ou “tronco de Abraão”; nunca e jamais por força da
eventual máxima plenitude da Igreja de Esaú ainda que ela atingisse o ápice, à
culminância do desenvolvimento religioso da humanidade.
Acaso não é motivo de aflição se esta for a situação da Igreja com rela-
ção ao seu próprio tema? E esta aflição que, de uma ou outra forma, constitui a
base de todas atribulações da Igreja, inclusive daquelas vindas de fora; é por isso
que ela não é reconhecida [pelo mundo]; [é por causa desta aflição básica]
Isto é, os filhos segundo a carne, como tais, não são Filhos de Deus, mas são os
filhos da promessa que são assim considerados.
O Deus de Jacó
9, 6-8
mas também são o que esse nome significa, são [por assim dizer] peculiares,
ção histórica ou psíquica; não podem ser definidos no mundo porque foram
definidos por Deus como Isaque, como “filhos da promessa”, à luz do
FUTURUM AETERNUM; por força da nova contabilidade de Deus com a
criatura humana (3, 28; 4, 3; 6, 11 e 8, 18), eles são o que são; portanto, não é de
outra maneira: não é por força de suas características próprias (ainda
encontráveis neles), não por sua capacidade como “filhos segundo a carne”, não
por força de alguma coisa, inda que fosse a mais sublime e mais santa que
existiu, existe ou poderá existir neste mundo; antes é por que todas essas
características, [qualidades], (propriedades e possibilidades) foram postas em
dúvi-da, anuladas, canceladas.
9, 8-9
O Deus de Jacó
[Entendo que o A. quer dizer que a criatura se depara APENAS com a promessa
da Eleição e não com a sua efetivação objetiva].
A criatura precisa crer ousadamente; não se lhe oferece qualquer garantia [para
avalizar a sua fé] pois tal garantia só poderia ser o próprio Espírito, a própria fé,
e se constituiria na ousadia que deve acompanhar a fé. [Em outras palavras, a
“garantia” anularia a fé mediante a supressão da possibilidade de existência das
características que lhe são inerentes].
“Isaque” quer dizer “sorriso”, Por que e como sorrimos? [Acaso sorrimos]
ceticamente em vista da impossível possibilidade ou entusiasticamente porque
vemos a impossível possibilidade? O passo que vai de uma a outra destas
reações não é tão grande como pretendem aqueles que não conhecem o
verdadeiro ceticismo e o verdadeiro entusiasmo.
A Igreja não pode ocultar que seu tema a empurra a uma aresta de rocha
extremamente aguda; no entanto, em nenhum instante ela pode desejar que seja
diferente porquanto o cumprimento fácil da promessa seria a perda daquilo que
foi firmemente prometido aos homens.
Ora, o tema da Igreja é a verdade de Deus. Esta verdade somente pode ser
assimilada pela fé e tanto pode ser recebida com entusiasmo pela possibilidade
da (aparentemente impossível) graça de Deus, como pode ser vista com
ceticismo, justamente pela aparente impossibilidade dessa graça. Portanto, a área
de opção é infinitamente pequena, reduzida é a distância que medeia entre as
duas escolhas, pois ambas as posições se definem nesta mesma aresta aguda: a
aparente impossibilidade da graça de Deus!
[O A. diz ainda que a Igreja não poderia desejar que fosse de outra forma
porquanto o cumprimento aleatório da promessa invalidaria a própria firme 534
O Deus de Jacó
9, 9
promessa divina, Parece-me que isto é assim porque não se trata de decisão
simples; não se cogita nem mesmo de alguma decisão extremamente importante
ao nível das coisas mais sérias do mundo, mas da única decisão que a criatura
humana precisa tomar ante o seu Criador. Não é questão aleatória “mui simples
de entender” e “fácil de explicar” como pretende certa “teologia para crian-
A decisão fácil, casual, fortuita, invalida e anula a promessa de Deus aos homens
ou melhor, não diz respeito a essa promessa pois não se relaciona com o DEUS
DESCONHECIDO de Abraão, Isaque e Jacó cuja verdade a Igreja proclama (ou
deve proclamar), antes serve ao NÃO-DEUS cuja “verdade” o mundo gosta de
ouvir.
É por isto que a Igreja não pode, em instante algum, desejar que esta aresta
aguda da linha de decisão se alargue, que se transforme em plataforma ampla e
firme, tão caracteristicamente — mas também de forma tão caricata —
Toda Igreja que triunfa desta ou daquela forma, [aleatoriamente] e que por isso é
tida por viva. “tem o nome de que está viva, mas eis que está morta”.
535
9, 9-13
O Deus de Jacó
Se a Igreja não perceber esta sua real tribulação ela também não terá verdadeira
esperança: se ela não quiser crer sem ver, apenas verá aquilo que se pode
perceber sem crer.
(“para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras
mas por aquele que chama), já fora dito a ela: o mais velho será servo do mais
moço. Como está escrito: amei a Jacó porém me aborreci de Esaú.
Assim se proclama ainda mais claramente como a Igreja se divide ante seu
próprio tema e que tema é este.
Quem se não Deus, e somente Deus, pode falar a favor de um ou contra o outro,
quando toda diferença humana ainda está oculta no secreto das entranhas
maternas que recordam a invisibilidade divina? Por que Jacó e não Esaú?
Nenhum deles levara (ou possuíra) sobre o outro qualquer vantagem para ser
vocacionado: ambos eram filhos legítimos de Isaque, netos de Abraão, e nenhum
deles havia praticado “nem bem nem mal”. No entanto a linha inexorável e
crítica corta através da descendência até aqui gerada e concebida em comum
marcando, deste lado, a eleição e daquele, a condenação; aqui a Igreja de Deus,
ali a Igreja dos homens; de um lado a Verdade como justificação e do outro, a
verdade como julgamento. Por que? poderíamos perguntar sempre.
536
O Deus de Jacó
9, 10-13
A resposta:
De que outra maneira haveremos de reconhecer esse Deus, senão nesta sua
sabedoria? [Como poderíamos sequer vislumbrar] esse Deus totalmente diferente
que não está ligado a qualquer característica humana, nem de modo
independente nem relativamente e que não pode ser contrastado com coisa
alguma? Como haveria de se tornar visível para nós o Deus Invisível e como
haveríamos de conhecer o Deus Desconhecido senão nesta segunda condição de
sua liberdade? E de que outra forma poderia efetivar-se o tema da Igreja senão
mediante a contínua reiteração de sua crise?
A própria descendência de Abraão, oprimida por Deus, nada mais pode aspirar
nem querer senão que “a determinação de Deus, segundo a eleição, prevaleça”,
que Deus tenha razão e a detenha em sua irrestrita liberdade.
Deus é glorificado com o júbilo dos eleitos [ou salvos] e também com o ranger
de dentes dos condenados porque na incontornável doutrina da eterna dupla
predestinação “não se trata da limitação quantitativa mas de descrição
ção eterna da criatura humana e que nesta fundamentação “a decisão é dada por
aquele que chama”; ensina que Deus é verdadeiramente o Deus dessa criatura, O
que o ensinamento da dupla predestinação assinala é o paradoxo; no contraste da
eleição e da rejeição o seu entendimento é equívoco.
Deus conduz a sua causa na Igreja e por ser sua a causa, ela [a Igreja]
não sossobrará. [O A. diz, literalmente, “ela não pode sossobrar”]. É justamente
por isto que haveremos de tomar muito cuidado ao desfazer da “causa em que
estamos”, [ao detratar a Igreja] porquanto ao conduzir a sua causa Deus, em todo
caso, arrebatará a nossa (como “nossa”!), de nossas mãos; permitirá 537
9, 13
O Deus de Esaú
ou não que se dê o milagre. [É Deus somente que] confirma seu Israel (como
seu!) e rejeita aos que o são apenas de nome; conduz à luz um povo que o serve
e envolve em trevas a outro que apenas pretende servi-lo; dá a herança a seus
filhos e a tira dos estranhos; aos que chamou abençoa com sua presença e com
sua ausência castiga os que não chamou; faz derradeiros dos que no mundo são
primeiros e dos que aqui são os últimos ele faz primeiros: tudo isto sendo ele
Deus, o Desconhecido e sendo seus o Reino, o Poder e a Glória.
“Porquanto amei a Jacó mas odiei a Esaú”. Recordamos que esta é uma
descrição da conduta de Deus. (Mal. 1, 2-3); é uma descrição da qualidade do
procedimento divino: procedimento livre, régio, soberano, incondicional;
[humanamente] sem razão de ser. Só nesta forma podemos entender e honrar a
Deus pois ele somente é compreendido pela criatura deste mundo e por ela
considerado digno de honra, como o Deus que elege e rejeita, que ama e odeia,
que faz viver e faz morrer.
Ante a predestinação estão todos na mesma linha; tanto. Jacó quanto Esaú se
defrontam com ela durante toda sua temporalidade. Com ela defronta-se Esaú no
eterno instante da revelação e também Jacó. Jacó é o Esaú invisível e Esaú o
visível Jacó.
A formulação reformada da doutrina da predestinação fixando a eleição e a
condenação na unidade psicológica do indivíduo, e quantitativamente em
[número de] eleitos e condenados é mitologificante. Paulo não quis dizer isso
nem poderia pensar assim pois nele, de fora a fora está focalizado o interesse de
Deus pelo indivíduo e jamais o interesse do indivíduo por Deus [como seria o
caso se a aproximação da criatura humana a Deus fosse, de alguma forma,
originada pela predestinação].
538
O Deus de Esaú
9, 13
Esta é a grandeza da Igreja e também sua aflição que nunca pode ser
suficientemente avaliada: a aflição a par da qual todas as demais tribulações que
tiver são apenas quais folganças infantis.
Vs. 14 a 18 O que diremos pois? Não é isto uma iniqüidade da parte de Deus?
É pois, assim: ele tem misericórdia de quem quer e obstina a quem lhe apraz.
[Esta] é uma verdade terrível e mais terrível ainda porque ela nos é apresentada
claramente sem qualquer conotação psicológica!
539
9, 14-18
O Deus de Esaú
Quem é o Deus que assim nos fala, em cujas mãos é tão terrível cair, que lida
com os seus dessa maneira e lhes prepara semelhante aflição?
Quem é o Deus tão superno, que faz maravilhas, que não pode ser conhecido e
em quem não pode ser crido senão pelo milagre da revelação e na transformação
(pela mudança) da rejeição em eleição?
Quem é o Deus que sempre se faz encontrável e que, por isso mesmo, quer ser
sempre procurado? [quem é esse Deus] que por toda eternidade é o Deus de Jacó
e, por isso mesmo é, a todo tempo, o Deus de Esaú?
dele?
Acaso não é evidente que este pensamento (de Calvino), sobre o qual nenhuma
Igreja digna desse nome pode deixar de ponderar, é um ataque ao princípio
fundamental de toda Igreja? Não é claro que ante a realidade desse Deus [que
assim elege e rejeita] todas nossas abstrações ético-religiosas ruem por terra
como se fossem esferas equilibradas sobre hastes pontiagudas, como casas e
árvores representadas em pinturas futuristas?
Acaso não são por demais compreensíveis as objeções que em todos os tempos o
açodamento e o curto-fôlego eclesiástico-religioso levantam à doutrina da
predestinação em nome da altamente ameaçada criatura humana? [Acaso] não é
inevitável que do mais alto e mais destemido pináculo da fé humana sempre e
sempre ressoe de novo a estulta pergunta (3, 5), se Deus não seria, ele próprio,
“iníquo? Se ele não seria um demônio malévolo e caprichoso que nos faz parvos,
a todos, um perturbador das normas da justiça [do direito] a que ele próprio
deveria estar sujeito?
É certo que a Igreja não compreenderá [a natureza da] sua tribulação e não
poderá transformar-se enquanto a ameaça dessa interrogação [sobre a iniqüidade
de Deus], [ou a formulação] dessa queixa e dessa acusação não for entendida em
sua inteireza.
540
O Deus de Esaú
9, 14-15
[A tradução inglesa escreve: “Em qualquer caso temos que admitir que enquanto
a Igreja não reconhecer quão ameaçadora é a possibilidade dessas perguntas,
dessas queixas e acusações, ela nem entenderá sua própria atribulação nem
alcançará a transformação de sua miséria. É precisamente na possibilidade de
semelhante interrogação que se revela a extrema impropriedade de toda noção
que os homens têm de Deus e de tudo quanto podem fazer por ele. Não há
conhecimento de Deus, nem consolo nem esperança, fora da catástrofe à qual
essa possibilidade dirige nossa atenção].
Um Deus contra o qual não se levantasse esse clamor, não seria Deus.
Estas são coisas que Nietzche, em sua selvagem oposição a Deus, parece ter
entendido melhor do que os irrefletidos crentes “diretos”, [quiçá os que se
consideram em ligação direta e íntima comunhão com Deus-Pai] que ousam
incriminá-lo por isso. Porquanto [está escrito]: “A Jacó amei, mas odiei a Esaú”.
“Isto está em conformidade com outros episódios semelhantes, como [por
exemplo], a coluna de nuvem que se pois entre exércitos de Faraó e Israel, e era
escuridade para aqueles e luz para estes. Estas passagens têm dois lados: para
aqueles que crêem, que confiam no amor de Deus, elas têm um sentido
amorável, suave; porém aos que prefeririam poder contar com suas próprias
obras elas são, francamente, qual nuvem tenebrosa.
“Quanto mais duras essas proposições forem consideradas por alguém, tanto
mais está essa pessoa absorvida por sua própria justiça; porém quanto melhor
aceitarmos esse ensino, mais plenamente repousa nosso coração na graça
divina”. (Steinhofer).
A objeção [de que Deus é iníquo] é impossível por mais pertinente [mais
verossímil] que pareça; por mais profunda que seja sua penetração na realidade
[segundo o critério humano]. Esta objeção apenas pode ser levantada para
imediatamente ruir sobre si mesma e assim, nesta emergência e pronta
submersão, evidenciar que Deus é “aquele que é”: o Deus de Esaú, por ser o
Deus de Jacó; ele é o Deus que gera a aflição porque traz o socorro; é o Deus
que rejeita porque elege.
Justamente por isso a crise não pode ser contornada nem se pode querer afastar o
escândalo da coluna de nuvem de dois efeitos.
541
9, 15-16
O Deus de Esaú
Deus, “iníquo”? Não, porém é sua própria norma! A justiça divina é justiça
eterna! O amor de Deus é infinito, não finito!
O fato de os homens terem a Deus por [Senhor e dominador ou,] “déspota” [no
dizer do Autor] (Luc. 2, 29 e Atos 4, 24 e seguintes) e assim o considerarem
como pai amoroso, de o tratarem como o Deus de Esaú porque o consideram
Deus de Jacó e assim o amam, isto se dá pelo conhecimento [que temos] de
Deus, em Cristo, e não há caminho para nosso conhecimento de Deus que não
esbarre no escolho dessa objeção.
[As duas últimas citações de Calvino que o A. faz mostram o que o grande
Reformador pensava a respeito das dificuldades que o ensinamento bí-
blico sobre a predestinação representa para o nosso entendimento: a rigor, é
inútil tentarmos desvendar o seu segredo para expô-lo em palavras humanas; 542
O Deus de Esaú
9, 15-16
Todavia, isto não significa que a eleição divina seja quantitativa nem que tenha
sido imposta aos homens na origem dos tempos ou antes da origem da espécie
mediante a destinação de uns para a vida e de outros para a morte ou de uns para
a redenção e de outros para a danação, enquadrando-nos em destinos
inamovíveis. É claro que poderia ser assim pois o barro não interpela o oleiro
sobre a destinação que lhe deu; todavia “amei a Jacó e aborreci a Esaú”
não significa que aquele será salvo e este condenado, mas diz muito claramente
que a salvação é pela expontânea graça divina embora a manifestação da predi-
leção de Deus por Jacó, ainda antes que os gêmeos houvessem praticado o bem
ou o mal — pois nem haviam ainda nascido — possa, não sem razão, ser
considerada como evidência da destinação “anterior” ao nascimento da criatura,
quiçá, a “predestinação” eterna. Somente em Cristo se pode considerar o caso
Esaú-Jacó como parábola típica do ensinamento sobre a salvação
exclusivamente pela graça pois somente pela revelação de Deus em Cristo, pelo
evangelho de Jesus é que aprendemos que o dom gratuito de Deus é a salvação
de TODO AQUELE QUE CRER. Todavia, imediatamente surge a “parábola” de
Esaú e Jacó como advertência para que ninguém pense que “por ter crido” e
Por que haveremos de arrazoar? Acaso não aceitamos o paradoxo e não vemos
nele a invisível Graça de Deus? Ora, O JUSTO VIVERÁ PELA Fé!].
O que faz de Moisés, o MOISES mensageiro e proclamador da aliança divina, da
graça e do evangelho da redenção?
E a resposta:
— “Farei passar perante ti a minha glória com o meu nome, O SENHOR! Far-
me-ei ouvir perante ti e me compadecerei de quem me compadecer e me
apiedarei de quem me apiedar”.
“Não podes ver a minha face pois homem algum verá o meu rosto e viverá”.
(Exo. 33, 16-20 Apud LXX).
543
9, 16-18
O Deus de Esaú
Nada se acrescenta à criatura que já não lhe pertença por direito humano mas
Deus lhe dá (aquilo que dá) por compaixão e misericórdia; porque esta
compaixão e misericórdia são genuínas e poderosas, ele é digno de nossa
adoração como o fundamento de nossa esperança pois, [nessa atitude
compassiva] ele é totalmente Deus; ou, em outras palavras, essa compaixão é
livre, incondicional,
De outro Deus que não seja este que direta e linearmente é entendido como
sendo o Deus de Esaú e que, todavia, cm autêntico milagre é também o Deus de
Jacó, a Igreja que vê sua esperança em sua própria aflição, nem sequer deve
querer cogitar.
“Foi por isto que te levantei, para em ti evidenciar o meu poder e para que meu
nome seja proclamado em toda terra; portanto, tem misericórdia de quem quer e
obstina a quem lhe apraz”.
Reconhecemos isto quando percebemos que nem sequer poderíamos ter feito
esta pergunta louca, que cai tão longe de seu alvo; que não nos seria, sequer,
possível protestar contra a realidade visível do Deus de Esaú, nem pedir socorro
ao Deus de Jacó e clamar pela sua revelação se, além da única visão que agora e
aqui temos de Deus, não brilhasse vitoriosamente a luz original do Criador e
Redentor.
Se, porém, a realidade de nosso protesto contra a inegável condenação direta nos
recordar [que ele é feito] segundo nossa própria justiça, que [todavia] se trata de
procedimento divino, então pode acontecer que sintamos o imperativo de adorar
e honrar a Deus na sua visibilidade, como o Deus de Esaú; como o Deus que
gera as aflições e que condena; talvez então agarremos e seguremos a mão que
fustiga e assim encontremos muito mais: encontremos o Deus de Jacó, o Deus
que traz o socorro, o Deus que elege.
Moisés, colocado na fenda da penha somente pôde ver Deus pelas costas, depois
dele haver passado, (Exo. 33, 21 -23). Vê-lo de outra maneira significaria a
morte.
544
O Deus de Esaú
9, 17-18
A Igreja que sente sua tribulação, que sabe que em toda extensão de sua
realidade histórica ela é rejeitada por Deus e que [todavia] se prende, se agarra a
este Deus terrível porque, apesar disso, ele é Deus, tal Igreja tem por Deus, o
Deus vivo: o Deus que muito acima de tudo mais e de forma totalmente
diferente, pode eleger e elegerá!
Não somente Moisés foi “levantado” por Deus na invisibilidade do seu munus de
Homem de Deus, mas também o foi Faraó em sua função de opositor de Moisés.
Nesta predestinação para a obstinação Deus não tira de Faraó a mínima partícula
daquilo que lhe cabe segundo a Justiça humana. Do ponto de vista humano
Moisés não tem qualquer vantagem decisiva sobre Faraó. Ambos estão
evidentemente sob a mesma mão dura, a mesma mão sob a qual já antes
estiveram Esaú e Jacó. Moisés poderia estar no lugar de Faraó e Faraó poderia
ser Moisés. Humanamente, a figura Esaú-Faraó é mais fácil de compreender que
a de Jacó-Moisés porque, quando mencionamos Moisés, o eleito, não nos
referimos ao Moisés visível [humano] a quem o Faraó visível se opõe com a
vantagem de certa grandiosidade trágica em sua obstinação quando confrontada
com suas fraquezas humanas, seu insucesso e seu amargo fim.
INDIVIDUUM.
Neste episódio não há qualquer classificação ou diferenciação e nele cai por terra
a conhecida (e por demais conhecida) teoria de que a pessoa tem duas almas
[que se opõem] (e por que não tem três ou mais?) — Aqui se trata de qualidade
que, de forma alguma, pode ser qualificada psicologicamente e que, portanto,
não pode ser atribuída a um ou outro.
9, 16); [meu Poder, isto é] minha “VIRTUS” e efetiva excelência ante todos os
deuses (1, 16).
9, 18-21
O Deus de Esaú
A pessoa “endurecida” é o homem visível [o homem deste mundo] que como tal,
em seu fundamental afastamento de Deus, não conhece o arrependimento nem
pode praticar atos dignos dele. E quem de nós sabe o que é arrependimento, para
nem sequer falarmos de atos dignos dele? Este é o nosso endurecimento, [a
nossa obstinação].
Quem haveria de ser excluído dessa obra divina? Esta é a misericórdia sob a qual
estamos.
Como poderia Deus, agora e aqui, falar conosco senão pelo rude desnudamento
deste contraste? E como poderia este tão grande contraste ser fundamentado
senão neste único Deus em quem também se oculta a sua supressão? Deus quer;
Deus tem misericórdia e endurece: Ele! Este “ELE” é a tribulação da Igreja, cuja
obra humana jamais pode ser a obra dele; todavia,
“ELE” é também a esperança da Igreja para além da tribulação e isto com tanta
certeza quanto a genuflexão perante ELE é o ponto final da obra humana.
Vs. 19 a 21 (Um episódio [uma digressão]). Sendo assim, o que tem ele a
censurar pois quem haveria de resistir à sua vontade?
Ó homem! Quem és tu que queres replicar a Deus? Acaso pode a obra feita
perguntar ao mestre: por que me fizeste assim? Acaso não tem o oleiro poder
sobre a argila para, da mesma massa, fazer um vaso para adorno e outro para a
imundícia?
546
O Deus de Esaú
9, 19-21
“Neste caso, o que tem ele a censurar, pois quem haveria de resistir à sua
vontade?”
e 6, 15)
[Ora], nenhuma ação humana contribui para o triunfo, para a vitória de Deus;
[qualquer que seja nossa reação ou nossa atitude, ela não constituirá nem
empecilho, nem contribuirá para a promoção dos desígnios de Deus].
O Deus de Esaú
o quanto a criatura está enferma [e fraca] perante Deus, embora esse resguardo,
provavelmente, não contribua para a celebridade deles.
Hoelderlin foi poeta alemão que faleceu sofrendo das faculdades mentais, em
estado de infantilismo, (apud Delta-Larousse).
ça (de que todos sofremos) por medo dos sintomas; [afinal], as mais pavorosas
aberrações e os destinos trágicos de uns poucos ou de muitos, nada mais são do
que sintomas. Não é o caso de contornar a aludida objeção ou de não meditar
seriamente sobre o pensamento de Deus.
Vamos, porém, elaborar essa rejeição, mais uma vez. ([Para as anteriores ver] 3,
5s; 6, Is; e 6, l5s). “Ó homem! Quem és tu que queres replicar a Deus?”
O homem! Com isto já está dito o que se poderia dizer contra essa objeção que
ignora a infinita diferença qualitativa que existe entre Deus e os homens.
Essa crítica ajuíza entre o Criador e a criatura como se fosse entre coisas iguais;
548
O Deus de Esaú
9, 19
Essa objeção admite, senão total, quase totalmente que a ação humana é
conseqüente da vontade de Deus, isto é, ela subentende que aquilo que o homem
fizer está em relação a Deus em termos de causa e efeito. Ora, isto é
improcedente. O que o homem faz não pode ser relacionado com a vontade
divina nem como causa nem como efeito. Não existe nenhuma relação direta,
visível, entre a responsabilidade humana e a liberdade de Deus mas apenas o
relacionamento indireto, inderivável, irrealizável, entre o temporal e o eterno,
entre Criador e criatura.
A liberdade de Deus com relação à criatura humana não é mecanismo que, de
fora, impulsione os homens nem é a força geratriz (ou criativa) da vida (ver 1ª
Edição deste livro!) porém é a genuína origem da criatura; a liberdade de Deus é
a luz na qual os olhos da criatura brilham e sem a qual se obscurecem; ela é o
infinito a cuja dupla dimensão o ser humano é grande ou pequeno; ela é a
sentença do juiz pela qual o homem permanece em pé ou cai.
Pelas suas próprias ações o homem não pode, nem diminuir nem aumentar, nem
promover nem reter a liberdade divina. Esta possibilidade está tão fora de
cogitação pois é justamente no relacionamento indireto da própria liberdade do
ser humano com a liberdade de Deus que se fundamenta e está garantida a
relativa necessidade, a relativa seriedade e a relativa ordenação dos homens.
É Justamente a pessoa que respeita a Deus como Deus, que não terá motivos
para essa objeção; tal pessoa nem temerá nem desejará a supressão de sua
responsabilidade; ela não enlouquecerá nem se tornará imoral, criminosa ou
suicida. E se [acaso] ela vier a ser uma destas coisas ela não as erigirá em
[revoluciona e] põe por terra; do quanto somos incapazes de vigiar com Cristo
por uma hora, ao menos; de como nos é difícil suportar o paradoxo de nossa
existência sem recorrer a toda sorte de titanismo [de heroísmo e de
grandiosidade humana], para a satisfação de nossa sede de equilíbrio.
549
9, 20-21
O Deus de Esaú
[Blueher, (Hans) foi um dos líderes intelectuais do “Movimento da Juventude
alemã”, após 1928; em 1921 publicou um tratado sobre o comportamento da
sociedade masculina, defendendo o suicídio como “sacramento”.
A pessoa que percebe que Deus é a aflição daqueles que a ele pertencem, sabe
que, em qualquer caso, tanto em sua moral quanto em sua [eventual]
amoralidade ela é digna de censura e se opõe à vontade de Deus (9, 19); ela sabe
que para ela não há qualquer compensação e que ela não encontra pretexto, nem
em sua moral nem na amoralidade para replicar a Deus, para pretender ter razão
perante ele e assim se eximir dessa aflição.
Tal pessoa levará essa atribulação muito mais a sério e dessa maneira
fundamentará a conscientização de sua responsabilidade. “Estas coisas não são
ditas para que, pela dureza de nossa cerviz e nossa indolência ponhamos em
cheque o Espírito Santo — que nos deu um pequeno lampejo de sua luz — mas
para que entendamos que aquilo que temos, dele recebemos e para que apren-
damos a procurar tudo nele, a esperar nele, a nos reconsagrarmos a ele e a
prosseguirmos ao encalço de nossa salvação com temor e tremor”. (Calvino).
“Acaso perguntará a obra ao mestre: por que me fizeste assim? Acaso não tem o
oleiro poder sobre a argila para da mesma massa fazer um vaso para o adorno e
outro para a imundícia?”
Como [interrogará] a obra ao artista e o barro ao oleiro? Quem ousa falar ainda
em dois parceiros, de dois elementos de uma série (como causa e efeito)? Aqui,
o artífice com sua intenção; acolá o material de que se serve e ali o produto
acabado. Daqui para ali, do oleiro ao barro, do artista à obra, não há ponte de
ligação, não há continuidade, O “aqui” e o “acolá” representam diferença
qualitativa que é incomensurável, infinita; [diferença que], embora expressa com
certa impropriedade, implica em relacionamento indireto, invisí-
vel, entre o “aqui” e o “ali” (ou que [por outras palavras] é uma parábola de tal
relacionamento!).
O Deus de Esaú
9, 21-23
vaso de flores quanto um urino] — (que a liberdade do artista para decidir entre
este e aquele produto não se prende a concatenações de causa e efeito,) — do
ponto de vista da “matéria prima” e do “produto” continua faltando a explica-
Assim, o homem e Deus. Deus está perante o homem como ORIGEM e não
CAUSA. Se o homem for justo, ele o é para Deus; se pecar, peca contra Deus. Se
o homem viver, vive na participação da vida divina e se morrer é porque a
criatura precisa morrer em Deus!
A criatura humana está perante Deus como a realidade ante o irreal; como o
Deus precisa ser compreendido como o Deus de Jacó E o Deus de Esaú; de outra
forma não ficaria claro como, em toda temporalidade, ele é o Deus de Esaú e, na
eternidade, é o Deus de Jacó.
551
9, 22-23
O Deus de Esaú
Deus é o UNO Deus de Jacó, para todo sempre, que se revela como o Deus do
gênero humano. Todavia, podemos compreender que não podemos entender a
Deus, senão na dualidade dialética pela qual “um” tem de se transformar em
“dois” para que “dois” seja verdadeiramente “um”.
Quando Deus se revela à criatura — a esta criatura deste mundo — ele precisa
antepor-se a ela como o Deus que a aborrece, como aquele que revela sua força
irresistivelmente, isto é, Deus revela inevitável e inexoravelmente à criatura que
ele não é semelhante a nenhum dos deuses que o homem adora, ainda que o
adorado seja o “Deus Altíssimo”.
Quando a criatura humana recebe a revelação de Deus ela não pode mais ser
outra coisa senão um “vaso de ira” incapaz de obedecê-lo e compromete a Deus
em tudo quanto fizer e nada mais sabe, senão que tem de morrer em Deus.
Não seria o caso de que os verdadeiros homens de Deus foram tais precisamente
porque reconheceram que eram vasos preparados para a destruição?
Precisamente porque perceberam que nenhum homem, como tal, é Justo, que
suas vidas são desprezíveis, (Exo. 4, 24-26) e que este mundo é passageiro?
Todavia, [dentro dessa revelação em que nos defrontamos com o NÃO divino]
Deus dá-nos também, na totalidade de nossa natureza de criaturas humanas, o
amparo do “NÃO-OBSTANTE” do Criador, com o qual [ele anuncia] o perdão
que encobre toda nossa pecaminosidade (lembrar o “Kapporeth”— 3, 25).
552
O Deus de Esaú
9, 22-29
Ante a aflição que Deus preparou para Jacó, Moisés, Elias, não se pode, em
verdade, deixar de considerar que do ponto de vista humano, os seus opositores
Esaú, Faraó, Acab, escolheram a melhor parte. [Todavia], este Deus é o escudo,
o grandiosíssimo galardão, eternamente. [Gen. 15, 1].
Mas, se o processo da revelação deste Deus único partir sempre daquilo que é
temporal para o eterno, da rejeição para a eleição, de Esaú para Jacó, de Faraó
para Moisés? Se a existência dos “Vasos da ira” (que todos somos na
temporalidade) for a expressão da contenção e tolerância divinas, (3, 25-26), se
for o véu da grande longanimidade (2, 4) e paciência de Deus, atrás do qual a
existência dos “vasos de misericórdia” (que todos somos na eternidade!) está
apenas encoberta mas não perdida? E se a pessoa de Esaú, votado à perdição (à
qual também Jacó pertence!), tiver de suportar sempre a ira de Deus apenas
como substituto para que a pessoa de Jacó, que foi preparada para a glória (à
qual também Esaú pertence!), tenha acesso à justificação de Deus, que existe
oculta na ira e dela emerge? Incompreensível e temível é este processo da
revelação que tudo abrange e tudo suprime! Incompreensível e temível é este
ocultamento do verdadeiro SER, atrás da [própria] existência! Incompreensí-
Mas... se for assim? Se este processo for conforme a vontade de Deus para
conosco? Então, onde fica a nossa pergunta infantil, mitológica, sobre a razão de
Deus querer esta dualidade?
Vs. 24 a 29 Como tais, ele também nos chamou, não só de entre os judeus mas
também de entre os gentios. Conforme ele diz em Oséas: eu chamarei para meu
povo o que não era meu povo e os que não foram amados para serem amados. E
acontecerá que no local onde lhes foi dito: Não sois meu povo! serão chamados
filhos do Deus vivo. Isaías, porém, lamenta Israel: ainda que o número dos
filhos de Israel fosse como a areia do mar, apenas um remanescente será salvo!
Porquanto o Senhor permitirá que na terra haja um corte e uma redução nas
palavras da profecia! E conforme Isaías já havia dito anteriormente: se o
Senhor Jeová não nos deixasse sobrar uma semente, ter-nos-íamos tornado
como Sodoma e seríamos semelhantes a Gomorra.
9, 24-29
O Deus de Esaú
[A tradução inglesa escreve: “Dissemos ‘se’; mas não queremos dizer isso
porque não há dúvidas a esse respeito. O processo da revelação, em Cristo, é
decisivo. Na temporalidade somos ‘vasos da ira’; na eternidade não somos
apenas algo mais, mas coisa absolutamente diferente: somos “vasos da
misericórdia!”].
Quem... “Nós”?
O fato de ser Deus que ama, que elege, que se compadece, significa a supressão
de todas divisões [e separações] que podem e precisam existir entre os homens.
É apenas a Igreja de Esaú que precisa refazer sempre os muros que segregam
Israel de Edom, os judeus dos gentios, os crentes dos incrédulos. No instante
eterno quando, em Cristo, irrompe a Igreja de Jacó, as paredes divisó-
rias são lançadas por terra, o “gentio” Esaú entra no serviço do Senhor e,
juntamente com as hostes que estão de fora, passa a participar da promessa
divina.
— e proclama isto com todo desamor que se impõe quando tratamos do amor de
Deus como palavra de julgamento ou como palavra profética; e quem há que
possa separar entre uma e outra na passagem de Isaías 10, 22-32?
Quando é Deus que ama, que elege e que se compadece, quem há que, estando
do lado de dentro, tenha a certeza de, na realidade, não estar de fora?
554
A Tribulação da Igreja
9, 1-29
A Igreja de Esaú, a nossa, a Igreja que conhecemos, está sobre o fio de navalha,
à borda do precipício, porque o seu alvo, a sua meta, o seu Sião e a sua promessa
é justamente a Igreja de Jacó; porque ela tem que se haver com o Deus Vivo;
porque ela é povo deste Deus.
Não há outra certeza além daquela que Deus tem [ou oferece] em si mesmo, pois
é incerto todo saber afora o conhecimento de Deus e nosso desconhecimento.
Comentários: 9, 1-29
O conceito geral sobre a predestinação conforme esboçado nas diversas notas até
aqui introduzidas, parece-me corresponder ao pensamento de Barth conforme o
encontrei e entendi, não somente na “Carta aos Romanos” mas também na
“Dogmática”. É certo que nossa compreensão é influenciada pelo nosso modo de
sentir e pensar, tanto mais quando a exposição interpretada vem (ou nos parece
vir) ao encontro de opiniões ou conclusões anteriores, confirmando-as.
Portanto é justo que além das reservas que o leitor já tenha feito aos conceitos
emitidos, ele aponha reservas ainda maiores, para escrutar cuidadosamente as
observações que lhe pareçam apressadas ou até
9, 1-29
A Tribulação da Igreja
O que Moisés e Faraó, Esaú e Jacó, assim como Davi e Golias, Samuel e Saul,
Elias e Acab, João Batista e Herodes, Paulo e Saulo — e quantas antinomias
quisermos achar — evidenciam e não só as antinomias mas os caracteres típicos
quais um Pedro ou um Judas, é que Deus julga segundo aquilo que houver no
íntimo do coração quer seja tesouro aí escondido, mediante a inspiração do
Santo Espírito, quer seja a cultura da semente lançada pelo Espírito das Trevas.
Teria Elias sido “cristãmente” superior aos sacerdotes de Baal? Elias deu o seu
testemunho; mostrou o poder do Deus Altíssimo.
Deus, em sua liberdade, se revelou a Elias quando este viveu a sua própria
incapacidade.
Moisés teve de sentir que nada valia por si só, quando sua mulher o chamou de
sanguinário.
Jacó teve de lutar com o Deus da ira para sentir sua própria carência.
De Acab os cães lamberam o sangue; Faraó foi vencido pelas ondas do mar;
Judas enforcou-se.
556
A Tribulação da Igreja
9, 1-29
Deus se revela aos homens mostrando o seu poder na dupla predestinação feita
na eternidade, antes — muito antes de existir o mundo e de haver sido criado o
homem à imagem e semelhança de Deus. E
Esta dupla predestinação se decide em Cristo — “Quem crer já está salvo; quem
não crer já está condenado. (João 3, 18).
Deus rejeita o ímpio que é impuro em seu coração e aceita o justo que é puro em
seu coração.
Impuro? Puro? Quem há que não seja impuro, e quem há que seja puro? É
novamente pela graça de Jesus Cristo, que levou sobre si a nossa impureza. E só
em Cristo, (pela fé na graça de Deus) que o salmista podia orar a Deus
suplicando a purificação de seu coração.
É somente pela graça de Cristo que nos podemos aproximar de Deus clamando
ABA, PAI.
Que mais podemos dizer? Dizer muito é demais e dizer pouco é de menos. É
bastante, pois, que conheçamos de Deus o que ele de si revela na sua rejeição e
na sua justificação, que é segundo nossa fé que, por sua vez, se fundamenta na
fidelidade de Deus, comprovada em Jesus Cristo, o Filho Unigênito de Deus que
tira o pecado do mundo.
557
Capítulo X
A CULPA DA IGREJA
• A Crise do Conhecimento - 9, 30 a
10, 3
A análise que Barth faz da primeira parte do capítulo mostra a Igreja em círculo
vicioso: sua missão é promover o entendimento (o conhecimento) de Deus; ao
desempenhar-se de sua incumbência ela cria a comunidade religiosa e esta — a
igreja visível — substitui o Deus que a Igreja anunciou e anuncia, pelo Deus
“conhecido”, o Deus imagem, o Deus criado segundo critério humano.
Então se manifesta a falha, da Igreja: a ausência de Deus: Ora, a Igreja sabe que
não tem o Deus que anuncia. Sabe que não faz a adoração que quer e que deve,
antes pratica a que não quer; não dá legitimamente a Deus o que é de Deus:
deixa levar-se por influências e respeitos humanos; não consegue esquivar-se
totalmente (e muitas vezes nem um pouco sequer) das glórias transitórias que o
mundo lhe proporciona e nem sempre resiste a tentação de ser ela própria o
lenitivo que o mundo espera, o descanso para as almas! Em seu diligente
cuidado de servir a Deus e salvar as almas, a Igreja ensina, dogmatiza disciplina,
exclui, anatematiza e ora se separa do mundo, daqueles que não têm a lei, ora se
identifica com ele “para tornar a graça redentora mais acessível” aos homens.
9, 30-32
A Crise do Conhecimento
[Almeida escreve: “Que diremos pois? Que os gentios, que não buscavam a
justificação, vieram a alcançá-la, todavia, a que decorre da fé; e Israel que
buscava a lei da justiça não chegou a atingir essa lei. Por que? Porque não
decorreu da fé e sim, como que das obras”. A tradução inglesa fica mais próxi-
ma da tradução de Almeida.]
Falamos da tribulação a que estamos todos sujeitos, qualquer que seja nossa
posição em relação à Igreja; tratamos da tribulação da qual, aos olhos de Deus,
ninguém se pode excluir e pela qual ninguém pode lamentar nem culpar os
outros, porque é a aflição que a criatura humana, especialmente o homem
religioso como tal, tem de suportar em seu relacionamento com Deus.
A Igreja padece por Deus ser Deus, quando toma consciência de que ela mesma
desenvolve — e que portanto nela surge — a humanidade religiosa.
Este padecimento não é provocado por Deus ser contra [ou se opor alis-to ou
aquilo; [por não estar] aqui ou acolá, ou [por exigir] menos ou mais; mas porque
Deus se contrapõe a todo ser [e a todas coisas] de natureza material ou temporal
e que são determinadas (ou criadas pelos homens desta ou daquela maneira);
Deus se contrapõe às coisas materiais como aquele que é imaterial, que é a
origem e o Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis, (porém jamais como
um segundo ser em oposição ao que quer que seja!) Como haveria semelhante
modo de ser, de Deus, gerar a aflição das criaturas, senão através [e por causal da
culpabilidade humana?
560
A Crise do Conhecimento
9, 30
Aflição [que fosse apenas contingência natural da condição humana], que fosse
apenas destino e que, portanto, não admitisse inculpação, não seria sentida
agonia ou angústia ardente.
[Se intentarmos queixa contra Deus,] isto significa que, neste fenôme-no, quem
precisa ser incriminada é a criatura humana. [Somos nós!]
A Crise do Conhecimento
— não faríamos mais do que, ainda uma vez, expor [a incapacidade,] a falha de
nossa análise da situação. Teríamos deixado de perceber que a sede profunda de
nossa tribulação é, na realidade, o nosso reconhecimento de que nós somos os
acusados”).
É fácil de ver que mediante seu conhecimento de Deus o ser humano não é
apenas um paciente, um enfermo, porém é também um pecador que erra.
Como fica a Palavra de Deus em nossos lábios se, [para anunciá-la], precisamos
convencer-nos [primeiramente] que entre “os outros”, [os que es-tão fora de
nossa grei], ninguém tem muito a dizer contra aquilo que pregamos sabendo,
porém, que não há muitos que estejam [decididamente] a favor?
A Crise do Conhecimento
9, 30
mas também sem horizontes mais amplos, [situação essa] que a leva a ansiar por
alguma luta, alguma oposição, chegando quase a suspirar, saudosa, por uma
pequena perseguição [para sacudir os fiéis, afastar os adesistas e oportunistas] e
se livrar da proximidade incômoda [daqueles que estão a seu lado, assim postos
por Deus, sem serem da Igreja].
Acaso não está a Igreja (mais ou menos) nessa situação desde os tempos dos
apologistas?
Todavia, olhos mais penetrantes postados à janela da Igreja vêem mais do que
isto — [do que a preocupação da Igreja em sondar a reação de seus ouvintes e,
quiçá, defender a posição de seus fiéis] — pois percebem, (se tiverem a acuidade
necessária para compreender o que se pode vislumbrar apenas indiretamente),
que a Igreja não poderá salvar sua situação e sua existência peculiar, colocando o
mundo no banco dos réus por causa de seu empedernimento no pecado e então
avançar contra ele com bordunas e alfinetadas.
Tais observadores terão percebido com horror o que está claramente descrito em
2, 14-29: “Gentios que não têm a lei praticam, em sua condição natural, o que a
lei exige”. Eles não correm empós a justificação porque já a alcançaram; não
aceitam ensino [não entram para a Igreja] porque já receberam ensinamento; não
têm interesse nas coisas religiosas porque, de há muito, Deus se interessou por
eles. Não se interessam pela “nossa” Palavra de Deus porque já de há muito eles
a ouviram sem nossa intervenção, pois ela mesma se anunciou.
claro que julgando segundo a retidão humana, tal possibilidade pode ser refutada
com argumentos bem evidentes: quem ignora que os gentios [os não crentes]
são, visível e realmente, apenas pobres pagãos?
9, 30
A Crise do Conhecimento
Como, porém, poderia a Igreja, como tal, negar a existência dessa possibilidade
divina [que Deus oferece aos gentios] ou condicionar sua aceitação a esta ou
àquela possibilidade de retidão visível, humana, por mais abundantes e decisivos
que fossem seus argumentos contra a salvação existencial dos gentios?
Como poderia a Igreja, que diz ser Deus o seu Deus, ignorar que Deus é Deus?
Como poderia ela, de qualquer forma, negar que Deus é o Deus de “judeus e
gentios” (3, 30)? Acaso não é o próprio genitor da raiz de Israel, louvado como o
“incircunciso” (4, 9)?
De que vale a busca da justificação que Israel promove, de que vale seu zelo por
Deus, se ele (ou a Igreja) tiver de admitir que justamente os “outros”, os que não
procuram a justificação, que não lutam [junto com a Igreja], já tenham alcançado
o alvo? Pode, acaso, a Igreja ignorar a censura que está im-plícita na realidade
do que Deus sempre fez sem ela, ao lado e antes dela, aquilo que é [a missão
precípua da Igreja] seu dom e sua tarefa e que [assim fazendo] Deus destrói a
própria razão de ser da existência da Igreja? Onde fica a Igreja ante esse
reproche? E se o olhar perscrutador [postado à janela da Igreja]
penetrar ainda mais profundamente e constatar que “Israel, porém, que buscava
uma lei de justificação, não a obteve”?
Se o eleito Jacó também puder ser Esaú e se o valoroso soldado de Deus for
simplesmente um dos muitos combatentes que no mundo correm, lutam, falam
sem obter qualquer resultado, pois não podem mesmo ter êxito pelo simples fato
de serem humanos? Esta é, evidentemente, uma possibilidade pela qual podemos
levantar todas objeções humanamente viáveis contra a seriedade da Igreja, o seu
sentido mais profundo e o resultado de sua obra. Todavia e especialmente a
Igreja que não pode deixar de meditar sobre esta possibilidade pois ela vive da
lembrança da interminável diferença qualitativa entre Deus e o ser humano,
conserva esta lembrança em suas leis e isto porque a Igreja deve saber que a
criatura não pode correr ao encalço da justificação divina nem empós qualquer
meio para determinar e compelir a presença de Deus ou para a garantir, 564
A Crise do Conhecimento
9, 30-31
convalidar e mostrar. A Igreja deve saber que o “PORQUE” divino do perdão
apenas tem resposta pelo “PORQUE” que vem de Deus e jamais por qualquer
razão ou causa humana. Basicamente a Igreja sabe isto; porém ela precisa saber
mais: precisa saber também que não pode andar empós a fé, empós o invisível;
que ela não pode procurar o relacionamento direto do homem (que é o presente
homem!) com Deus (que não conhecemos!) relacionamento este que subsiste
unicamente na fidelidade de Deus, [pela sua revelação em Cristo Jesus].
A Igreja precisa saber que de nada lhe adianta fugir do objetivo para o subjetivo,
do “serviço” a Deus (do culto a Deus) ao “cultivo” da devoção; da justificação
para uma “lei de justificação”; e de nada adianta porque aquilo que na realidade
a criatura procura ela não encontra.
É claro que a Igreja pode correr ao encalço da lei humana e da religião; pode
cultivar a vivência [ou a experiência religiosa] mediante o estabelecimento de
normas lógicas, éticas e estéticas, mas não pode fazer mais do que isso. A
“experiência” que a criatura tem de Deus não é a fé, não é a justificação, nem é a
presença real de Deus; não é o divino “PORQUE” mas é o nosso relacionamento
humano (e por isso também muito duvidoso, com Deus).
A Igreja bem pode (e deve) vigiar o fluir das águas nas quais pode jorrar a
torrente divina quando chegar a hora de Deus; todavia ela não pode forçar o
fluxo dessa torrente, e isto a Igreja não pode esquecer! Talvez seja a lembrança
constante desta sua impossibilidade, desta sua ferida aberta, a sua melhor
posição.
Talvez a Igreja não saiba que não existe “LEI DE JUSTIFICAÇAO” e que ao
seguir ao seu encalço ela persegue uma ilusão. [Ainda que o saiba], ela o
esquece a todo instante; seja como for, sem exceção, jamais fazemos o menor
esforço para nos convencermos, inda que por um só momento, de que
semelhante lei não existe.
A parte real desta ilusão, — o alvo colimado por todas Igrejas e igrejolas
Se a Igreja falar sobre a fé, então ela claramente fala de algo que esvazia a
temporalidade; ela fala de alguma coisa que a criatura deste mundo pode ter,
pode aspirar e pode alcançar de uma ou outra maneira; algo que pode ser
mostrado, exibido, aqui e acolá. [Todavia], como haveria esta obra humana 565
9, 31
A Crise do Conhecimento
[que é a Igreja] ser a [expressão da] fé que justifica [a criatura] perante Deus?
Não é muito mais provável que [justamente] a mais alta religiosidade seja
confundida como predicado da fé e que [na pretensão de ser a própria fé]
constitua a ilusão [a que nos referimos]?
amos tal excelência senão na religiosidade dos profetas de Israel ou nos cantores
dos Salmos pois, uns e outros jamais foram superados em sua expressão
religiosa, nem mesmo pela “religião de Jesus” — se é que podemos falar em
çou a justificação...)
Seja como for: ainda que existisse [ou exista] religião que estivesse [ou esteja]
em harmonia com a justificação divina, a criatura humana não alcança a
“lei da justificação” pois esta lei só pode ser atingida no instante do Milagre
Absoluto, e este milagre vem pela fé; [não chegamos a esse instante porque por
ele houvéssemos diligenciado mediante nosso correr, vigiar e agir] pois FE ou é
milagre ou então não é FÉ.
Este milagre não pode ser “almejado”, nem alcançado, nem apresentado mas é, a
todo instante, o novo e imprevisível acontecimento divino entre os homens.
Poderíamos, contudo, perguntar: por que não? Por que não podemos correr ao
encalço do milagre da fé, que a Igreja prega? Por que resulta sempre sendo
[mera] ilusão aquilo que a Igreja tanto busca?
[“Por que não?”] (A resposta:) “Porque esta procura não vem da fé, porém das
obras”.
Ter fé significa temer e amar a Deus sobre todas as coisas; [significa aceitá-lo]
qual é e não conforme pensamos que seja. Ter fé significa a nossa sujeição ao
indefectível julgamento que a situação geral entre a criatura humana e Deus
exige. Todavia esse julgamento subsiste porque não nos podemos apropriar de
Deus, não podemos perseguí-lo (caçá-lo) porque Deus é e permanece 566
A Crise do Conhecimento
9, 31-32
ção” que a Igreja pratica vem “das obras”. As “obras” são o relacionamento da
criatura humana com um Deus conforme ela o supõe e que não é,
necessariamente, o Deus que opera maravilhas [ou milagres].
As obras são a “carta magna” do ser humano pela qual ele não reconhece o
julgamento da situação geral entre os homens e Deus; “cartas” em que esse
julgamento não é reconhecido em sua inteireza, — (o que dá na mesma coisa).
anseios [de sucesso], abrir mão de seus êxitos e da exibição de seus alvos.
9, 32
A Crise do Conhecimento
não religiosos [ateus]) e que são, todavia, justificados por Deus. É preciso que a
Igreja volte sua total objetividade [à pregação da mensagem] do Deus
desconhecido, do Deus vivo, do Deus livre; que a Igreja se concentre totalmente
na pregação da cruz. Tal Igreja poderia, de maneira invisível e inaudita, ser a
Igreja de Jacó, a Igreja da fé, a Igreja da justificação divina; de fato a Igreja
assim
Contudo, para ser assim a Igreja precisa ter a ousadia de começar pela
[A Igreja tem preferido] orientar sua atividade pelas obras, (para aquilo e
naquilo) que podemos ver; o que a Igreja diz ser sua fé em nenhuma hipótese se
assemelha com [o paradigma da fé apresentado em] Hebreus, li.
A Igreja não ama a solidão do deserto; mesmo quando ela prega sobre isto, não é
disto que ela realmente trata; mesmo quando ela, aparentemente, se detém em
solidão e no ermo, ela desveste sua solitude de todo espanto verdadeiro, de todo
perigo real. A Igreja não pratica o jejum daqueles que foram privados da
presença do noivo, antes procura e sabe como consolar-se da terrível vacuidade
de toda história da Igreja, recorrendo a toda sorte de ro-mântico
sentimentalismo.
A Igreja não quer ser estrangeira no mundo: ela não pode esperar pela cidade que
tem fundamento — [cujo fundamento é Deus]. A Igreja não se conforma em se
deter naquele ponto inicial do cristianismo — na paixão do Cristo abandonado
— quando os ponteiros [do relógio do tempo] ainda não marca-vam a
ressurreição, pois ela tem muita pressa, está sedenta e faminta por coisas
positivas, [ela anseia] pelo júbilo do festim nupcial.
A despeito de todas suas derrotas e seus reveses a Igreja não quer recuar das
perdidas obras exteriores para o centro do fortim, mas quer avançar sempre.
[Porém, avançar] para onde? Sem dúvida avançar na direção do ser humano que
assim, quem sabe, poderia livrar-se do julgamento [divino]. E o avanço para o
que é diretamente constatável, para o que e visível, compreensível, imediato,
manejável.
A Crise do Conhecimento
9, 32-33
Isto é assim porque o ser humano não pode contornar a maldição de sua
condição natural de simples criatura — nem mesmo sendo religioso — ainda que
fosse o seguidor [ou adepto] da mais sublime das religiões.
Se tudo for apenas questão existencial, como não haveria de Israel [(ou a Igreja)]
ser alcançado e ultrapassado pelos “primeiros” entre os gentios que,
declaradamente, não estão de mãos vazias?
A Igreja não alcança a ilusão que tanto persegue e, nesta sua corrida, passa-lhe
desapercebida a realidade que poderia agarrar; assim a Igreja não sofre
apenasmente por ser Esaú e não Jacó, mas sofre por sua própria culpa.
Quem há que tendo procurado participar seriamente da experiência da Igreja,
sabendo que é absolutamente necessário ter essa experiência e que ela não pode
ser encontrada em nenhum outro lugar, [sim, quem há que nessas condições] não
sinta sobre os seus ombros o peso dessa culpa, ou possa livrar-se dela? E,
sentindo a culpa, quem há que não tenha plena consciência dela?
Ora, a culpa surge quando o ser humano descobre que aquilo que é possível a
Deus é impossível ao homem; então a criatura se atreve a ouvir o Criador e a
falar de Deus, todavia não lhe tributa honra: esta é a única culpa do ser humano!
9, 32-33
A Crise do Conhecimento
[Em Jesus Cristo] Deus revela o seu interminável amor, enquanto dá a conhecer
a sua liberdade, o milagre, o seu reino, de forma absolutamente inequívoca. [O
original diz “na mais cortante inambiguidade”].
Quem for da verdade, aqui, [em Jesus Cristo,] ouvirá sua voz. Porém, quem é da
verdade? Quem vê Deus qual ele é? Quem há que não tenha milhares de
pretextos para desviar-se dele?
ção, Amor, Deus, ela se despedaça [fica confundida] porque neste Sião, neste
céu terreno, [Deus] estabeleceu a realidade de que ELE é o Eterno que, pela
graça, permite que se o encontre onde ele for procurado como o ETERNO.
Somente aquele que crê não se despedaçará neste tropeço e neste escândalo.
Quem porém não crer mas “correr ao encalço”, (9, 31), esse necessariamente
colherá apenas nozes chochas; esse tal será qual o homem que dispara para
dentro de beco sem saída.
[Deus nos escolheu e nos escolhe pela sua fidelidade à qual apenas podemos
corresponder com nossa fé; se diligenciarmos, se nos empenharmos por atingir a
graça de Deus, se corrermos ao encalço da vida eterna, se procurarmos a fé,
então não estaremos porfiando por entrar pela porta estreita da renúncia e de
nosso auto-esvaziamento mas estaremos correndo empós uma lei de justificação
por for-
Se dissermos, “façamos o mal, pois então será mais abundante a graça de Deus”,
ou se não nos preocuparmos com nossa vida espiritual “porque Deus salva a
quem quer” então no primeiro caso, estaremos confiando em nossas obras que,
nesta hipótese, são declaradamente negativas; na segunda atitude 570
A Crise do Conhecimento
9, 32-33 e 10, 1-3
A porta é uma só; não existem dois caminhos: “Crê no Senhor Jesus”.
Os mais evidentes erros humanos que a Igreja cometer, suas transgressões, sua
superficialidade e sua indolência, seu bem-estar mundano e sua ingenuidade, sua
inútil humildade e seu igualmente inútil orgulho, seu importuno zelo teórico nas
coisas minúsculas pelas quais não vale a pena mover um dedo sequer e também
sua igualmente importuna indiferença e irresoluta tranqüilidade em questões
fundamentais, nada disto nem tudo mais que se puder dizer contra a Igreja a
condenaria se ela mesma não se condenasse ao rejeitar o julgamento [a sentença]
que pesa sobre todos os homens, como tais, desde antes de haverem pecado ou
transgredido [este ou aquele mandamento].
“vida eclesiástica” — não pode ter nem terá bom êxito, ainda que tudo faça (ou
tudo fizesse) com o mais sincero zelo para se livrar do erro e da transgressão.
Com ou sem erros [tal] Igreja nunca jamais será a Igreja de Deus porque ela não
conhece [não sabe] o que seja ARREPENDIMENTO.
10, 2
A Crise do Conhecimento
tão fáceis, nem para nós nem para os outros, aceitando o convite implícito nessa
censura ou incriminação, abandonando a Igreja assim qualificada e suportando
as eventuais conseqüências; sequer pensamos nisso!
Todavia [o pregoeiro] não tem culpa de ser assim, de ser a Igreja a maior
atingida. O mensageiro — [o pregador, o pastor, o homem de Igreja] — tem de
fazer valer a Palavra de Deus tanto na Igreja quanto contra ela e não é
responsável pelo fato de a Igreja também ser atingida. [Ele seria, sim, culpado
perante Deus e os homens se tergiversasse, se concedesse contemporizações, se
procurasse apresentar mensagem atenuada, suavizada, alentadora, ao gosto do
mundo ...]. Quando prega é o próprio pregador [o primeiro e] o maior atingido!
Todos aqueles que levam o incontornável problema da Igreja a sério tanto são
acusados como acusadores.
572
A Crise do Conhecimento
10, 2
Pelo contrário: aqui se trata de acabar com essa competição inútil [e frívola];
sabendo-se que a religiosidade humana, — (mesmo a que qualitativamente se
situar entre a mais requintada cultura e quantitativamente superar a multidão da
Torre de Babel) — não tem significação decisória perante Deus; sabendo-se que
na arena onde os homens e Deus se confrontam para se separa-rem e
[efetivamente] se separam, e se confrontam também para se encontrarem
[e realmente se encontram ...], não é uma praça onde os homens se mimoseiam
distribuindo ramos de louro entre si ou onde alguns possam negar os louros a
outros; sabendo-se que a todos nos resta apenas: temer, amar e adorar à Deus!
VOLENS, concorre para este caos? O que significa toda a história da teologia,
até o dia de hoje, este eloqüente setor da luta generalizada pela existência, na
qual as feras mais Jovens armadas com aspas e dentes mais agudos vão
eliminando as mais velhas e mais fracas até que [no ciclo natural] elas sejam,
também, eliminadas? Que sentido tem essa sucessão de cenas? E quem é que
[acaso] nota que nisso tudo não há sentido algum?
Zelo por Deus, com entendimento, seria a submissão à justiça divina, ao próprio
Deus e a Deus somente; seria a submissão à divina predestinação e seria o amor
ao Deus que neste mistério reina absoluto por ser ele só o verdadeiro Deus, pois
a justificação de Deus e a sua liberdade para ser lei é norma pa ra si mesmo; é
em sua liberdade que ele — e somente ele — chama e vocaciona (9, 12; é nesta
liberdade que é próprio amar Jacó e odiar Esaú (9, 13; é nesta liberdade que ele
se compadece de quem quer e endurece a quem lhe apraz (9, 18); esta é a
liberdade de Deus: de ser somente ele o próprio Deus, ontem, hoje e amanhã,
com a mesma irrestrita soberania.
573
10, 3
A Crise do Conhecimento
[Na realidade a pessoa chega à conclusão de que sob seu próprio prisma e
perante o mundo seus “resultados” são melhores] porque sob o julgamento
[que imagina segundo seus critérios pessoais] e ao qual se submete, já não 574
A Crise do Conhecimento
10, 3
[nem do mundo]?
Como poderá a Igreja esquivar-se de levantar, ela mesma, essa acusação contra
si?
Comentários: 9, 30 - 10, 3
1. Diz Barth que a Igreja poderia ser a sede da verdadeira adoração a Deus se,
entre outras coisas claras e bem compreensíveis, ela também fosse
suficientemente humilde para não se deixar superar por “um Kant” e suportasse
com moderação (com paciência), “a humilhação que lhe impõe o racionalismo”
mas, amasse e obedecesse a Deus.
Parece-me que o A. quer dizer que se o próprio Kant, o apóstolo do uso da razão
em substituição à revelação, encontrou limites para as possibilidades humanas,
reconhecendo que Deus, a imortalidade e o universo não podem ser explicados
racionalmente, maiores e mais ponderáveis motivos deverá ter a Igreja para dar a
Deus o que é de Deus. Portanto deve a Igreja suportar com paciência a
humilhação (segundo o mundo) que o racionalismo lhe impõe porquanto, sem fé,
é impossível agradar a Deus; nunca chegaremos à fé por elucubrações mentais
ou deduções matemáticas pois a FÉ nasce da FIDELIDADE
575
9, 30 - 3; 4
quer dizer que a Igreja não deseja ficar na renúncia; não que tomar a sua cruz;
quer gozar da ressurreição sem passar pela morte.
ção que a Igreja sente pelo fracasso conseqüente do cumprimento de sua missão
mas o desapontamento da Igreja porque muitos daqueles que não correm empós
uma lei de justificação são justificados por Deus e outros que buscam esta
justificação não a alcançam; porém não alcançam o que procuram porque
confiam em suas próprias forças, seus feitos, seus méritos, sua fé. Esta é a culpa
da Igreja e, por isto mesmo, a causa de sua aflição porquanto, se a Igreja
renunciar a si mesma e se entregar inteiramente à fé, será semelhante aos que
“sem lei” fazem a vontade de Deus ou, se possível fôra, inda mais excelente que
estes e já não sofrerá da enfermidade característica da Igreja no mundo mas
gozará paz com Deus. Esta paz é a luz que raia quando se definem as trevas da
aflição e do reconhecimento da culpa e será tanto mais visível quanto mais
densas as trevas forem; esta luz vem da fidelidade de Deus: é a luz não gerada
que vem do cumprimento da lei por Jesus Cristo, na cruz, que tira a nossa culpa
e nos restabelece na categoria de filhos de Deus.]
pode alegar que se acha em contingência fatal, mas precisa assumir, ela mesma,
a responsabilidade de seu procedimento.
ência inequívoca e ardente de que a aflição da IgreJa é a sua culpa e, mais ainda,
para que nesta realidade percebamos com clareza o correlacionamento que existe
entre a tribulação e a esperança da Igreja.
Vs. 4 e 5 Porquanto o objetivo da lei é Cristo, para a justiça de todo aquele que
crê. Pois Moisés descreve a justiça que vem da lei com as palavras: o homem
que fizer estas coisas, por elas viverá.
[e um só juízo].
Quer esta verdade venha ao nosso conhecimento como a “justiça que procede da
fidelidade de Deus”, a ser compreendida, confirmada e apropriada pela fé (1,
17), quer a encontremos na forma da justiça que procede da lei, —
isto é como norma estabelecida à ação humana para orientação de seus objetivos
e alvos, — ela é uma só verdade, uma mesma justiça. Invisivelmente ela é a
justiça que procede da fidelidade de Deus e visivelmente ela é sempre a justi-
ça que vem da lei; nem poderia a lei dar origem a outra justiça — por exemplo,
justiça divina — mas tendo origem na lei ela [também] procede da fidelidade de
Deus, pois o sentido, o significado, o “objetivo da lei” é a justiça de Deus.
Não é sem motivo que a Igreja que cuida (e precisa cuidar) da lei anda empós
uma “Lei da Justiça” e de uma religião do Reino de Deus (9, 31).
O alvo, [a meta, o objetivo] do qual toda religião deve dar testemunho (3, 21) é
Cristo. Cristo é o fim [o consumador] das necessidades [das carências], das
ambições e dos anseios da humanidade, aos quais a Igreja procura satisfazer, dos
quais cuida e aos quais dedica toda sua carinhosa atenção. Oxalá fosse
[realmente e sempre] assim: que a Igreja fizesse isto ou, pelo menos, entendesse
577
10, 4
o que significa estar ativa na lei da justiça; se ao menos soubesse o que significa
despertar e viver religião que seja sinal e testemunho; se ela correspondesse ao
último anseio do ser humano resolvendo todos os legítimos penúltimos anseios
peculiares à criatura.
Se a lei for tomada a sério cessa toda paz, toda segurança, todo descanço que não
sejam a segurança, o descanço e a paz inerentes ao instante eterno da revelação
de Deus.
Cessa então toda “corrida ao encalço” da justiça; cessa toda procura que seja
qualquer outra coisa que não busca de entendimento (10, 2). Cessa todo desejo
de estabelecer “a própria justiça” (10, 3). CESSA! e sabemos o que dizemos com
isto: acontece o milagre; [dá-se] o relacionamento existencial do homem com
Deus e que jamais se realiza na temporalidade: acontece. A fé crê; Deus fala. Isto
é devoção séria; Igreja séria!
578
10, 5
Admitamos, todavia, que ele seja tudo isso; qual dos profetas, qual o apóstolo ou
qual o reformador que não o foi? Acontece porém que como profeta, como
apóstolo, como reformador, como “Moisés” — ele significa [algo]
mais: ele acentua que é necessário cumprir a lei para viver pela justiça que dela
procede. “Não são os ouvintes da lei que são justificados perante Deus mas os
que a praticam” (2, 13).
Porém, o que quer dizer ser “PRATICANTE DA LEI”? Lembremo-nos que isto
significa submetermo-nos a quem outorga a lei, àquele de quem a recebemos;
significa compreender que o homem só pode ser justificado pela proximidade de
Deus e pela eleição divina; [portanto] ser praticante da lei significa dar, sempre
de novo, nosso testemunho da majestade divina, da proximidade de Deus e da
eleição eterna. Significa, pois, render toda retidão humana (TODA) a quem ela
pertence e a ele (A ELE SÓ) dar a honra.
Portanto, diz Moisés que o homem viverá pela lei somente [quando e]
deveria perceber que seu dom é apresentar a “retidão que vem da lei”; esta é a
sua missão [e ela deveria desincumbir-se dessa tarefa] com [argumentação ou]
dialética de tal maneira ampla [convincente] e vigorosa que logo ficasse claro
que o alvo [o fim] da lei é Cristo; que ficasse evidente que nenhuma justifica-
ção procede da lei mas do cumprimento daquilo que a lei determina; portanto
[a justificação] vem de Cristo no qual a criatura que “corre” [em busca de uma
lei de justificação] é suprimida por Deus e isto mediante a fidelidade de Deus.
579
10, 5-8
AETERNUM (Moisés) não pode deixar de nos fazer entender que nem a
promessa nem a condição ligada a ela é direta e observável. Ambas são usadas
para indicar a possibilidade messiânica, escatológica; semelhantemente a Igreja
deve apreender a retidão que vem da lei como se esta lhe estivesse entregando,
(propondo) uma tarefa a cumprir e uma dádiva a distribuir: a Igreja precisa
apoderar-se firmemente da verdadeira dialética — que Cristo é o fim da lei;
dialética porque nenhuma retidão emerge da lei, porém da exigência da lei, isto
é, de Cristo. Em Cristo, os homens que fainosamente ‘buscam’ são suprimidos e
(em seguida) são exaltados para estarem com Deus. Tudo isso se dá pela
fidelidade de Deus”.
Parece-me que o A. não diz nem mesmo sugere que a lei entrega uma tarefa à
Igreja, porém afirma que a missão da Igreja é pregar o cumprimento da lei de
Deus, conforme também Moisés ensinou; isto é o que a Igreja tem para oferecer,
O Cumprimento messiânico, escatológico da promessa de vida se realiza em
Cristo que deu integral cumprimento à lei e que, por isto, é a meta, é o fim da lei
— e a muitos justificará.
É fora de dúvida que compreendendo a sua missão desta maneira, a Igreja teria
(ou terá) de encarar com horror a sua mais profunda aflição pois terrível coisa é
cair na mão do Senhor; todavia, [só] então a sua culpa poderá ser removida e,
acima de sua aflição, raiará a sua esperança!
Vs. 6 a 8 Porém a justiça que procede da fidelidade de Deus, diz: — Não argúas
em teu coração” quem subirá aos céus?” (Isto é, para trazer Cristo para baixo!)
Ou então, “quem descerá ao abismo?” (Quer dizer, para levantar a Cristo de
entre os mortos!) Porém, o que diz ela? “A palavra está muito perto de ti, em
tua boca e em teu coração”, (Deut. 30, 12-14); (isto é a palavra da fidelidade de
Deus que pregamos!) 580
10, 6-7
Se a Igreja arrecear-se ou se recusar a dar a honra a Deus, então ela não deve
nem pode alegar [em sua defesa] que o homem é APENAS humano e só tem
possibilidades humanas. A mensagem de Deus, — o Desconhecido, o Todo-
Poderoso, o Criador, não é estranha nem à Igreja nem ao homem; o que é de
estranhar é que [essa mensagem divina,] como limite das possibilidades
humanas, não seja estranha à humanidade.
Se a criatura seguir o seu próprio caminho, com seriedade até o fim [até sua
extremidade], então ela se encontrará perante Deus; porém, junto com a criatura
estará também a Igreja em sua possibilidade alternativa: a atitude em que, na
presença de Deus, ela pode tornar-se absolutamente séria, [compene-trada de sua
missão divina], abandonando de vez a corrida desenfreada em busca da “lei de
justificação” (9, 31), suprimindo definitivamente o “zelo sem entendimento” por
Deus (10, 2) e o estabelecimento de “sua própria justiça”
(10, 3).
A Igreja que assim proceder será (e terá) aquilo que o mundo nela procura e dela
espera: será sede [e a fonte] do arrependimento frutífero e pleno de promessa; e
nada mais!
[ou torna-se-lhe] desgostosa sua convulsiva lida ora tentando subir aos céus, ora
descendo ao abismo; [quando a Igreja tornar-se absolutamente seria na presença
de Deus, isto é, quando puser de lado as veleidades humanas, ela sentirá
desprazer na sua tentativa] de ora personificar o máximo requinte em matéria de
exigências eclesiásticas e em seguida pender para o extremo oposto, com o
máximo de condescendência e o mínimo de imposição.
10, 6-7
Públicas, nas salas de juri; presença da Igreja nas escolas, nos quartéis, nas
cerimônias e festas do governo, tudo isso que a Igreja faz com o evidente intuito
de engrandecer-se, de ganhar e assegurar prestígio ou de comprovar seu status, e
que governados e governantes aceitam por conveniência política ou fato
consumado, quando não por sorrateiro interesse eleiçoeiro — uns iludem (ou
pensam iludir) os outros — e todos tomam o nome de Deus em vão ...].
[Ao apresentar-se a Deus, em seriedade,] a Igreja saberá [ou sabe] que não se
pode “encenar” a Cristo, nem “trazê-lo do céu” ou “tirá-lo de entre os mortos”.
Ela saberá [ou sabe] que de forma alguma Cristo é o exaltado, o trans-figurado, o
ideal, mas é o Homem Novo; por isso o Natal não é a nossa muito conhecida e
querida festa da bem-conhecida “mãe” e tão conhecida “criancinha”.
A ascenção não é um símbolo de nosso idealismo que vai até os céus, e o fogo
do Pentecostes nada tem a ver com nossos artifícios de “pular fogueiras”, por
mais entusiásticos e genuínos que fossem.
A Igreja, (inclusive toda possível igrejola que por amor à sua sobrevivência nem
quizesse ser Igreja,) assim posta com seriedade na presença de Deus seria (ou
será) o lugar onde, em contraste com toda sorte de outros locais
[ou instituições], a distância própria (porém nunca medida!) que vai “dos mais
altos céus” ao “mais profundo dos abismos” é percebida, estabelecida, e res-
guardada para, finalmente, ser expressa em palavras; tal Igreja seria (ou será) o
local onde, com ou sem incenso, já não é preciso silenciar, porquanto a ocasião
própria de calar ou de falar — (até mesmo de clamar!) — perante Deus se impõe
automaticamente quando e onde a criatura percebe a alegre nova, a palavra
positiva de Deus; é assim por que, quando e onde isto acontecer, (ao contrá-
582
10, 6-7
É preciso que aqui se diga expressamente que na afirmação de que não devemos
“tentar descer ao abismo” está incluída também a tentação (muito próxima de
nós) de revestir a palavra negativa (de renúncia] que vem da cruz —
rio quando pregamos a palavra que vem da cruz como forma e método para
ganhar almas, transformando-a novamente em atitude humana e em questão
moral!
Pode acontecer que em contraste com seu costumeiro dinamismo, a Igreja passe
a exibir passividade artificial; em substituição à sua extensa propaganda habitual
ela agora busque a salvação numa atitude de pretensa expectativa, plena de
profunda significação — nada movendo e nada tocando — atitude que, todavia,
nada vale e nada representa por ser estudada, intencional e, portanto, altamente
suspeita.
“A palavra está mui perto de ti, em tua boca e em teu coração, isto é, a palavra
da fidelidade de Deus, que pregamos”.
Isto quer dizer que [para se conhecer “a palavra”] não há necessidade de ações
especiais, ou de violência; não são necessárias nem ações positivas nem
negativas, nem é preciso recorrer a subversões ou artifícios; é suficiente que
cada pessoa olhe em torno de si e preste atenção na aflição e na promessa da 583
10, 6-8
A única exigência que precisamos satisfazer para que também nós nos
apropinqüemos da “palavra” é fazermos a crítica — a mais singela, a mais
sóbria, a mais realista — da vida e do modo de ser do mundo.
A Igreja que estivesse disposta a abandonar suas sacrossantas alturas e
profundezas e retrair-se de todos setores de suas extensas e intensas
possibilidades eclesiásticas para se voltar à vida, ao ser humano, ao seu próprio
lugar; que deixasse de cuidar daquilo que está longe para dedicar-se à
vizinhança; (que deixasse de cuidar do que é grandioso (perante o mundo) para
zelar pelo que é cotidiano humilde e modesto], que se defrontasse face a face
com a problemática da existência, [tal Igreja] se defrontaria, também face a face,
com sua carência (sua aflição) e sua responsabilidade. Todavia, juntamente com
esta sua aflição e sua responsabilidade, ela se depararia com aquele que para ela
as preparou, a fim de poder assistí-la de perto.
Reiteramos que ao nos referirmos a esta Igreja tão fortemente objetiva, que
assim renuncia e assim se concentra pensamos — mais do que na “Igreja
Reformada” — na Igreja de Jacó; pensamos na Igreja do milagre e da Fé; temos
em mente a “impossível possibilidade”, a Igreja do Deserto, que nunca se parece
como tal nem mesmo aos outros [aos de fora] e que portanto jamais pode ser
objeto de algum “Movimento Novo”, de alguma “Escola” [teológica]
A retirada para as linhas internas [que acima preconizamos] e que deveria ser
levada a efeito, não é manobra tática que deva ser planejada, iniciada
10, 8
programação esclarecedora e sem consideração de ordem prática e, amanhã
poderia acontecer novamente, como o passo que vai da esperança para a aflição
e da aflição para a esperança, porquanto este é o passo eterno que dá nova
qualificação e nova orientação a todos passos humanos; o passo que pode ser e
deixar de ser acompanhado de todos possíveis passos da criatura; o passo que
pode incitar ou impedir todo passo humano. Este recuo para a cidadela, [este
retorno] entre todas as possibilidades humanas, é sempre a possibilidade
totalmente diferente e por isto mesmo a possibilidade que sempre e em toda
parte está aberta; é a possibilidade aberta para Deus qual ele é, — o Deus Vivo, o
Deus Desconhecido.
Onde se encaminhar esse retorno aí estará a Igreja de Jacó acima, por traz e
dentro da Igreja de Esaú, (ainda que fosse a mais corrompida igreja clerical) pois
mais uma vez repetimos: “Perto de ti está a Palavra!”, diz a justiça de Deus.
(Deut, 30, 14).
A palavra está à nossa disposição, para ser tomada a sério, para se fazer valer,
pronta para nos afligir o mais pesadamente possível e para nos dar a liberdade no
mais alto grau; ela está à nossa disposição para ser ouvida e falada todavia ela
nunca será ouvida nem enunciada porque é a palavra de Cristo. Nós mesmos
esperamos por ela. A problemática de nossa existência é por demais pesada para
que não esperássemos pelo som da trombeta com a última pergunta e resposta,
vinda do além; contudo, e justamente por ser do além, vem por entre o ruído
tumultuoso das penúltimas perguntas e respostas.
— “ainda que seja ouvida por ouvidos humanos e proclamada por humanos
lábios! — salvo se for anunciada como a pergunta e resposta finais”.
Perto está a palavra; para onde quer que olhemos está preparada a dinamite.
Todavia se apesar de tudo, nada acontecer ou, se sempre acontecer algo
diferente; se não ousarmos correr qualquer risco (o que, aliás, seria o maior dos
riscos); se insistirmos em preferir mil dias fora, a um só dia dentro dos átrios do
585
10, 9-11
Senhor; se jamais quisermos estar com as mãos vazias para agarrar aquilo que,
na realidade, somente mãos vazias podem segurar; se já temos as velas pandas
ao vento e as mãos postas no leme antes de sabermos para onde navegaremos; se
já iniciamos a construção da torre ou se já declaramos a guerra sem que
tenhamos orçado o custo das obras ou contado nossas tropas. — então não
podemos alegar que aquilo que deixamos de fazer foi impossível; [não podemos
dizer que nossa falha foi por motivo de força maior; que não estava em nós,
como criaturas humanas que somos, atender e prover o que se impôs, finalmente,
como elemento fundamental].
[Não podemos alegar que aquilo que deixamos de fazer foi o impossível] pois
mesmo o impossível, como tal, esta próximo de nós, à nossa disposição; impõe-
se a nós, quer irromper por nossas portas a dentro: é mais possível do que tudo
quanto consideramos possível e viável: a luz brilha nas trevas!
Vs. 9 a 11 Porquanto se com tua boca confessares a Jesus como teu senhor e
creres em teu coração que Deus o acordou dos mortos, serás salvo. Pois a fé que
está no coração conduz à justiça e a confissão da boca conduz à salvação. Ora,
a Escritura diz: Todo aquele que nele crer não será envergonhado! (Isa. 28, 16).
“O homem que estas coisas praticar, por elas viverá” (10, 5), é o que diz Moisés
a respeito da justiça [que vem segundo a lei].
Qual é a condição que a Igreja tem para “praticar” a lei de maneira a fazer jus à
promessa?
A resposta; “Se confessares a Jesus como senhor e creres que Deus o acordou de
entre os mortos” serás salvo e, ainda: “Todo aquele que nele crer”, não será
confundido.
Não há outra palavra senão esta que Israel encontra em seu coração e nos seus
lábios, eternamente pronta, eternamente próxima, se Israel souber o que significa
ser “Israel” e quando a Igreja souber tomar a si mesma a sério (10, 6-8).
586
10, 9-11
que testifica ser Jesus, em sua singularidade histórica e sua temporalidade (8, 4)
esse SENHOR, o RESSURRECTO, aquele em quem se há de crer e a quem se
há de confessar. Por isto, “A FÉ QUE ESTÁ NO CORAÇÃO CONDUZ À
JUSTI-
e “boca”, (em si,] têm qualquer importância; (poderiam ter sido citados outros
órgãos, por exemplo os pés e as mãos, os olhos e os ouvidos) porém o que
importa é a ênfase que [a citação desses órgãos] dá à contingência, à incerteza da
existência humana e do modo de ser da criatura na totalidade de sua
problemática, [sua ambigüidade], contingência essa que contrasta com a
existencialidade, com a realidade, da conversão que, [esta sim] responde [à
incerteza da criatura neste mundo] porque se completa, se firma, em Jesus.
[E por ser em Jesus Cristo] esta realidade está ao alcance das possibilidades
humanas, ainda que seja no seu limite extremo.
O homem que isto fizer, que confessar e crer — (e não nos esqueçamos que este
procedimento, esta ação, é invisível e inaudível!) — este viverá pela justiça.
587
10, 12-15
Agora, [de nossa parte] afirmamos e pensamos poder demonstrar que a exigência
imposta à Igreja com referência a esta promessa invisível não é desconhecida
nem irrealizável.
Vs. 12 a 15 Pois não há diferença entre judeu e grego: o mesmo Senhor está
acima de todos, rico para os que o invocam, porque todo aquele que invocar o
nome do Senhor será salvo. Porém, como poderiam invocá-lo se não cressem
nele? E como poderão crer nele se dele não tiverem ouvido? Mas como
poderiam ouvir sem pregador? E de que maneira se poderia anunciá-
ção dos pés daqueles que trazem boas novas! [Comparar com a tradução de
Almeida, notadamente quanto às formas verbais].
Existe, acaso, algum lugar onde isto não aconteça? Onde ocorreria semelhante
pressentimento e desejo de entendimento sem que existisse também,
potencialmente, a invocação a Deus e, portanto, a invocação do nome do Senhor
que nos revela Deus como Deus?
Teríamos, acaso, consciência da fatalidade da morte que oprime os homens se
não tivéssemos (a incompreensível!) consciência da (impossível!) possibilidade
da ressurreição?
10, 12-15
Deus respondeu ainda antes que os homens o invocassem e por isto, somente por
isto, [por Deus já haver respondido antecipadamente], o invoca-ram os homens.
[Dizemos que] os homens estão enfermos em Deus porque é nele que precisam
convalescer. Este é o sentido da situação entre Deus e o ser humano, conforme
revelada em Jesus Cristo, que é o “Senhor” desta situação por força de sua
ressurreição e que, — na aflição de nossa existência, em nosso suspirar, em
nossas perguntas, em nossa procura e em nosso clamor, — revela que
[justamente] a riqueza da salvação divina e de nossa convalescença [em Deus] é
a raiz oculta desta aflição e desse gemer. [Ao nos aproximarmos de Deus em
Cristo Jesus e à medida que formos sendo curados de nossas enfermidades,
sentimos o efeito de nossa queda; então torna-se, para nós, bem patente o efeito
devastador do pecado: a perda da comunhão direta; o aviltamento e a destrui-
A situação é esta: “Não há diferença entre judeu e grego; o mesmo Senhor está
acima de todos, rico para os que o invocam, porque todo aquele que invocar o
nome do Senhor será salvo”; (Joel 2, 32) [e, também] “todo aquele que nele crer
não será confundido” (10, 11).
O que significa isto tudo com vistas à Igreja, a cada Igreja, senão que toda Igreja
que a si mesma tomar a sério será a Igreja de Jacó?
[Todavia,] quando se diz a Israel [que] “TODO AQUELE” [que nele crer será
salvo] e quando se afirma que não há diferença entre judeu e grego, trata-se de
promessa ou de julgamento?
Seja como for, estas duas afirmações constituem o mais expressivo comentário
de Paulo aos conceitos de FÉ e JUSTIÇA pois elas atestam, — quer a Igreja
goste, quer não — a ilimitada liberdade de Deus, segundo o sentido decisivo que
lhes dá a morte de Cristo sobre a cruz.
Vale a pena invocar a este Senhor, o “Senhor que está acima de todos, rico para
todos os que o invocam”, sem distinção entre judeu e grego porquanto, ao
justificar o judeu, justifica a si mesmo porém, ao assim justificar-se não se
compromete com o judeu pois também se justifica ao justificar o grego, porque
ele é Deus perante todos os homens.
Se a Igreja for sábia ela se agradará disto pois, sendo assim, ela não é excluída
por este Senhor quando o invocar por quanto ele está acima de todos e 589
10, 12-15
Mas se a Igreja for louca, então ela se desagradará dessa revelação de Deus em
Jesus Cristo; — [desagradar-se-á por Deus não fazer distinção entre judeu e
grego, entre o homem da Igreja — desta ou daquela igreja — e o homem do
século ou de outra igreja], — pois nesta condição, [ante a inexistência de
privilegiados] ela já não está automaticamente incluída [na aceitação divina],
nem mesmo por força de sua invocação; se a Igreja for louca, por temor, ela
deixará de invocar a este “duro” Senhor.
Contudo, Deus é invocado tal qual ele é! Invocado quer dizer conhecido, crido,
temido e amado existencialmente; [ de todo coração, de toda alma, de todo
entendimento]. [Invocam-no] as pessoas que esperam, submissas, pela justiça de
Deus, pela vida eterna (10,5) e pela salvação eterna (10,9 e 13), para não serem
confundidas eternamente (10, 11).
Estão (tais pessoas) na Igreja ou fora dela? Ou, acaso, são parte de alguma Igreja
nova, só deles? Ora, esta pergunta é inconseqüente e é justamente isto o que
preocupa a Igreja.
(Ao mencionarmos aqueles que SEM LEI esperam em Deus], não nos estamos
referindo aos poucos “pagãos” conversos em Roma, Corinto e Éfeso; estes
poucos são apenas sinal de conversão totalmente diferente; também não nos
referimos a pagãos “nobres” quais Sêneca [por exemplo] e seus pares; não nos
referimos a piedosos filhos do mundo, nem a desconhecidos ateus cristãos e
semelhantes, pois estes todos são apenas sinal [ou testemunhas] da luz na qual
estamos em Cristo, independentemente de toda e qualquer retidão humana.
Não falamos de grandeza com a qual a Igreja pudesse concorrer ou pela qual ela
pudesse aferir-se, quiçá grandeza que a Igreja pudesse medir e contar por si.
Esta é a gente que colocamos ante a Igreja. (Quem é parte dela? Quem não o é?)
10, 14-15
ção” — [a precedência de uns sobre outros]; também a Igreja pode colocar-se
sincera e reiteradamente na fila dos sucessores do incircunciso Abraão (4, 9-12)
e ter forças suficientes para tomar consciência de sua fraqueza [e confessá-
Portanto: “Como poderiam invocá-lo se não cressem nele? E como poderão crer
nele se dele não tiverem ouvido? Mas como poderiam ouvir se não houver
pregador? E de que maneira se poderia anunciá-lo sem ser enviado?”
Esta fé, [por ser secreta, íntima, não exterior,] produz [frutos igualmente
(... “eis que estou à porta e bato”, (Apoc. 3, 20)... “eis agora o dia da salvação”.
591
10, 16-17
Não há dúvidas quanto ao brilho da luz nas trevas mas, sim, se justamente a
Igreja — a descendência de Abraão — vê essa luz.
A palavra (o “verbo” que se fez carne] que é o objetivo da lei, exige obediência.
“Aqueles que praticam a lei serão justificados”.
AQUELE que invocar [ou melhor, somente ao que invocar] o nome do Senhor.
É por isto que o Evangelho é a boa nova da Salvação pois ele contrapõe a
absoluta soberania de Deus a todas ligações, mediações e pressuposições
humanas, (ainda que se tratasse dos pensamentos mais transcendentais!) Em
última análise, foi com boa razão que Kant não escreveu uma “Crí-
10, 16-17
“Deus Déspota”].
[Obediência significa] estar pronto a abrir mão de tudo “isto e aquilo”, do “aqui
e acolá” em que estamos envolvidos; [obedecer significa] estar disposto a
abandonar empreendimentos, mudar de hábitos de trabalho, romper
compromissos, afastar-se de ligações [alianças ou associações e, por que não?
em casos extremos, romper até mesmo os laços de família...]; significa rejeitar
[ou aceitar] riscos; deixar que o pêndulo que oscila repouse em seu ponto morto
e também permitir que oscile de um ponto ao outro, percorrendo sempre de novo
o mesmo caminho, para frente e para trás, sem jamais repousar; (obedecer,
significa enfrentar a vida com constante e igual seriedade (e responsabilidade),
qualquer que seja o ponto de nosso percurso, a situação em que nos
encontremos; significa suportar os golpes que Deus nos enviar em toda sua
amplitude, (sabendo em quem temos crido!), jamais esquecendo, nem perdendo
a noção de que, em Deus, todas as coisas estão sujeitas ao PARE! divino [e que
todas as coisas concorrem, conjuntamente, para o bem daqueles que amam a
Deus!].
Tal obediência absoluta estaria de acordo com o Evangelho; porém, quem há que
obedeça assim? Com absoluta certeza, nem estes nem aqueles; certamente não
há cifras, (não são “tantos e tantos”).
593
10, 16-17
Onde (ou quando), pela ação da Igreja, é a criatura levada, em temor e tremor, ao
arrependimento, ao respeito a Deus, ao estabelecimento e à preservação da
distância que medeia entre Deus e os homens?
Acaso podemos dizer que a Igreja alivia [produz a relaxação] da tensão (que o
“sistema” impõe [aos fiéis] ou então, por outro lado, que ela desperta aquele
movimento [vivo e eficaz] que não permite [ao crente] parar, mesmo quando ele
tem a “felicidade” de encontrar algum esconderijo [ou pretexto]
para se acomodar?
Será que a Igreja nos conduz, entre [surpresos ou] assustados e felizes, a essa
permanente “escuta atenciosa” — permanente, por ser fundamental e básica? Ou
então, [acaso ela nos dá forças] para suportar e resistir irreprochavelmente às
perplexidades que Deus prepara para nós?
[Acaso não nos sugere a Igreja que procuremos agradar a todos], que acenemos à
fidalguia e à plebe, às classes cultas e ao proletariado, à juventude e à burguesia,
aos contemporâneos e aos circunstantes, (son-dando e adivinhando o que uns e
outros têm a dizer, [quando não o que querem ouvir,] o que querem fazer, se
[acaso] entendem o que a Igreja prega ou se acaso não o conseguem entender?
594
10, 16-17
Neste seu afã a Igreja revela surpreendente habilidade para aplicar
A Igreja tem a elasticidade de uma bola de borracha para absorver os mais duros
impactos, [os mais severos castigos] que lhe sejam impostos
que sempre quando possível, contarão com a publicação de algum livro especial
cujo título ou nome dará indicação segura da sua presunção e de seu fracasso
final.
não é a “última palavra”; [o crente “acha” que para ele a Igreja não constitui]
um fim em si mesma e, assim pensando,] não percebe que este seu raciocínio é
mera ilusão que a realidade desfaz.
595
10, 16-17
“Por que é a Igreja tão incrivelmente hábil para descobrir naquilo que é divino
algo que possa ser descrito historicamente ou analisado psicologicamente?
“Que estranha elasticidade tem a Igreja quando, atingida em plena face por essa
sua característica, fala complacentemente do valor religioso da reprimenda!
“Por que tem a Igreja tanta pressa em amordaçar qualquer pessoa que mostre
mais inteligência transformando-a imediatamente em líder?
“Tudo isto é compatível com a mui devastadora ilusão de quase todos, de que a
Igreja não é a coisa suprema, nem é um fim em si mesma”.]
596
10, 16-18
V. 18 Porém, digo eu, não haveriam de ouvir? Sim, francamente: por todo
mundo se propagou o seu eco e as suas palavras até os confins da terra!
Deveria a Igreja ser desculpada, [sua culpa ignorada ou, pelo menos, explicada e
portanto justificada] mediante a alegação de que ela “ainda não ouviu”, como se
nem sequer fora possível ela já ter ouvido?! Como se a “Palavra de Cristo” a
[revelação de Deus] fosse alguma novidade da qual se poderia ter ou deixar de
ter notícia; fosse carisma, [dádiva divina, privilégio] de gente
[de outra parte] que mora algures, em algum recanto do mundo, ou mesmo em
outra rua? Como se alguém pudesse afirmar que se trata de tema absolutamente
novo? Como se existisse no mundo coisa mais divulgada, [mais anunciada,
propagada, de conhecimento mais generalizado] do que [a existência do Deus
criador do universo, que é] o “Deus Desconhecido”?!
ções [ou alternativas que melhor resolvessem o problema de nossa vida e por
isso nos levasse a ignorar a “Palavra de Cristo”] quando, na realidade apenas
sabemos “que assim não pode continuar”?!
DE CRISTO seria então uma novidade que alguns teriam ouvido e outros não.
Seria uma dádiva dispensada aos que moram em algum canto especial do
mundo, em alguma outra rua. Então existiria mais algum conhecimento que não
temos ainda. Haveria mais alguma coisa que pudéssemos conhecer se um anjo
descesse do céu hoje, golpeasse a mesa e anunciasse a novidade em voz de
trovão. Mas não é assim. Quem quer que sejamos, ouvimos a PALAVRA DE
CRISTO e estamos em foco. Descobrir que não a ouvimos é, para nós,
objetivamente impossível”].
Vs. 19 e 20 Mas, digo, não teria Israel entendido? Já o disse Moisés: Farei com
que tenhais ciúmes de um povo que não é povo e provocarei vossa ira contra um
povo sem entendimento.
Dar-se-ia o caso que a culpa deveria ser desculpada porque, embora tivéssemos
ouvido bem, não pudemos entender?
Ou ter força moral, dotes dialéticos ou fé vigorosa? Onde estão os que assim
entendem, na invisível Igreja Gentílica de Jacó? [A tradução inglesa muda
ligeiramente a pergunta escrevendo: “Onde se encontra tal entendimento?
Haveremos de descobrí-lo em alguma desconhecida Igreja Gentílica, de Jacó?]
[Acaso] é necessário ousar repetir aquilo que Isaías teve a coragem de dizer?
V. 21 De Israel, porém, ele disse: Durante o dia todo estendo a minha mão a um
povo desobediente e contradizente. (Isaías 65, 2).
Fazemos ponto. Culpa não é inocência. Culpa quer dizer: “Podemos, mas não
queremos”! Não queremos renunciar a nós mesmos. Não queremos descer do
cume que escalamos; não queremos que novo sistema de coordenadas entre em
vigor; queremos permanecer nas cabanas e tendas de nosso arraial e não
queremos ser conduzidos ao encontro com Deus. (Exo. 19, 17).
Comentários: 10,4-21
Penso que Barth quer referir-se a igrejas minadas e dominadas por dirigentes
essencialmente legalistas e casuístas; não se refere a pastores, pois também ele o
é; não quer atingir aos clérigos desta ou daquela Igreja pois aqui, acolá e em toda
parte são muitos os que correm em busca de “uma lei de justificação”. Parece-
me que o A.
É certo que nossas Igrejas Evangélicas têm grande “vocação” para erigir os que
nelas se destacam, em líderes: oficiais da Igreja, profes-599
10, 4-21
Ora, a entrega da liderança aos mais aptos não me parece ser condenável e tal
promoção não silenciará as pessoas nem as anulará antes lhes dará tribuna maior
e auditório mais amplo. Estará errada, porém, se a escolha for feita pelo critério
das obras, pela cultura, pela eloqüência, pela representatividade no mundo. Estas
qualidades podem ser importantes e até desejáveis, como acessórias, todavia
carecem de valor na seara divina e quando os crentes forem guindados à
liderança, em função dessas características visíveis, o seu trabalho fica anulado;
sua voz perde sonância e não ressoa. Com tais líderes, a Igreja passa a correr ao
encalço de “uma lei de justificação”.
600
Capítulo XI
A ESPERANÇA DA IGREJA
• A Unidade de Deus
- Vs. 1 a 10
• O Alvo
- Vs. 25 a 36
Neste Capítulo Barth conclui o seu estudo sobre a Igreja conforme o Apóstolo a
apresenta nos capítulos IX a XI de sua Epístola aos Romanos.
Talvez possamos dizer que em sua exegese o A. escreve a trilogia da Igreja: sua
aflição, sua culpa e sua esperança.
Prenuncia a Igreja de Jacó porém vive a Igreja de Esaú. Esta é sua aflição.
Na aflição, toma vulto a sua culpa. Quer justificar-se perante o mundo e perante
Deus; põe-se a ensinar; quer ser exemplo quer ser fonte de benção e, por isso
tudo, busca a si uma lei do justificação. Ensina que de graça somos salvos mas
sugere (e por vezes até afirma categoricamente) que somente dentro de suas
quatro paredes se encontra a salvação. Ensina que a salvação é pela fé, que sem
fé é impossível agradar a Deus mas, como é morta a fé sem obras, insiste nestas.
E são obras de toda sorte: sociais, políticas, beneficentes, de catequese, de
proselitismo, missionárias, eclesiásticas, paraeclesiásticas, ecumênicas e tantas
outras.
Todavia, a aflição vem de Deus e a culpa existe unicamente perante Deus; é por
isto que a única e toda esperança da Igreja, está em Deus. É este o tema deste
capítulo.
601
11, 1-2
A Unidade de Deus
Deus é um só, no tempo e no espaço. Para Filo (Philo) Deus não pode ter
“qualidades” pois qualquer atributo que se lhe desse o restringiria, o limitaria e o
materializaria. Para Barth é preciso usar de analogias humanas para explicar
Deus; e Deus, que é absolutamente ABSCONDITUS, revela-se aos homens que
sabem ver, ouvir e entender, mostrando sua glória, sua majestade, sua retidão,
sua liberdade, sua perfeição, sua severidade, sua justiça, sua bondade, sua
compassividade, de multiformes maneiras ao alcance do entendimento humano.
Revela-se na grandeza das leis que regem o Universo desde o átomo ao macro-
cosmos; revela-se em sua santa Palavra; na vocação de homens e mulheres fiéis
a seu nome; na dádiva de seu Filho Unigênito; revela-se na dupla predestinação
do homem: sua rejeição e sua Eleição.
O mesmo e único Deus que provoca a aflição, que expõe a culpa e que castiga
rejeitando, é o Deus que elege para a vida eterna. Esta é a primeira parte da
Esperança da Igreja.
“A luz resplandece nas trevas”, O que quer dizer a segunda parte das palavras de
João” “as trevas não a apreenderam”. [João 1, 5]; ou então, segundo
interpretação moderna e melhor: “As trevas não a sobrepujaram”. [Almeida
registra:... “e as trevas não prevaleceram contra ela”.]
A Unidade de Deus
11, 1-2
embora conhecendo a Deus — por amor aos homens — não o quer reconhecer e,
assim, prefere mandar matar o Cristo para não dar livre curso à Palavra de Deus,
[para não permitir que Deus fale aos que “não são” como se fossem]?
Teria Deus aberto inutilmente os seus braços a seu povo? 510, 21). Acaso
acontece o que é inacreditável e Deus seja traído sempre de novo na própria
Igreja — [e qual a Igreja que não o trai] — deixando de ser servido justamente
por aqueles que pretendem servi-lo? [Traído por aqueles que] em sua [pretensa]
adoração negam e desmentem com toda a arte e força a seu alcance que Deus é
Deus. Onde haverá pois, ainda, esperança? Como se poderá progredir em
qualquer direção, partindo de semelhante ponto morto? Haverá alguma
esperança para criaturas que trucidaram e sepultaram a esperança com suas
próprias mãos?
“Teria Deus abandonado seu povo?” Sem o pano de fundo desta pergunta, a
esperança não seria esperança.
ça que fundamentarmos em coisas humanas, visíveis, [ainda que sejam as] mais
aperfeiçoadas, aumentará essa culpa automaticamente e jamais a suprimirá.
A Unidade de Deus
si mesmo e dos outros que aqui se trata [exclusivamente] de dar honra a Deus [e
a Deus somente].
Quem quer que sejamos [ou pretendamos ser,] deponhamos as armas pois [na
realidade,] somos a “Igreja” e tudo quanto lhe diz respeito. Promove-mos a mais
duvidosa atividade e exibimos a mais suspeita marca deste ou daquele
empreendimento religioso (ainda que seja [ou que fosse] a mais privativa e
pessoal das religiões!). Somos pois,judeus, católicos, luteranos, ou reformados
[presbiterianos] (e fazem-se insistentes advertências para que não passemos de
uma confissão [da nossa] para outra). Estamos ou nos arrolamos sob toda sorte
de chancelas ou de cátedras. (É igualmente bastante [é sempre muito,] tanto o
que se pode dizer contra leigos e teólogos ou contra sacerdotes e professores!)
Rolamos sobre os trilhos de alguma antiga e grande comunidade cristã ou,
quando isto não pode ser, sobre os de alguma seita nova e pequena e então
pretendemos conhecer a tragédia ou o humor de toda essa existência, suas lutas,
seus frutos, sua sobrevivência, sua expectativa e sua movimentação.
É justamente por causa de sua particular aflição, por sua culpa e porque a Igreja,
humanamente falando, não tem esperança é que ela tem a ESPERAN-
ÇA, em Deus!
“Deus não baniu o seu povo que ele reconheceu” [ou, segundo Almeida,
604
A Unidade de Deus
11, 1-2
Isto não é anunciado por quem está seguro na praia, nem é do barco que, feliz, se
afasta dos destroços do naufrágio, [nem tampouco] do bote salva-vidas que se
aproxima transbordante de socorros! Isto é proclamado do alto da pró-
Isto significa que pecar contra Deus, negá-lo e traí-lo, são atos de quem sabe que
é parte integrante da Igreja [e que portanto] também ele é Igreja e tudo quanto
ela representa. Se alguém não souber isto, se alguém acaso tiver para si solução
melhor do que a Igreja [sofredora] e seus lamentos, ou se assim o perceber e
seguir, ou se escolher para si alguma pequena trilha particular para contornar a
perplexidade da Igreja esquivando-se [dessa confissão] de que “também eu sou”,
então tal pessoa de maneira nenhuma conhece a aflição que Deus, como Deus,
preparou para a criatura humana, nem tampouco a culpa pela qual o homem está
aprisionado na presença de Deus. Portanto, tal indivíduo também está excluído]
da esperança que consiste naquilo que se anuncia e se evidencia dolorosamente
na Igreja, a saber: que a nossa aflição vem de Deus e que somos culpados
perante ele. [Portanto, ele só, pode salvar-nos!]
Como é, pois?
Se é Deus que estende os seus braços todo o dia, a um povo desobediente e
contradizente (10, 21)— e levamos isto tão extremamente a sério, a ponto de
nem sequer procurarmos [(diligenciarmos por)] pertencer a esse povo, pois
sabemos que a ele pertencemos [e dele fazemos parte] existencialmente e em
qual quer hipótese, — então, [por ser a Deus que desobedecemos] por ser ele o
Deus inconquistável em quem [e contra quem] nos despedaçamos, —justamente
por ser este o Deus, há para esse povo desobediente, [para a Igreja] e existe para
nós a insuperável, a vitoriosa esperança. Se é Deus que estende suas mãos para
nós, o que pode significar a nossa desobediência, por mais satânica que fosse [ou
que seja]? O que pode significar nossa contradição e que [força anuladora]
representa o ponto morto a que chegamos? Qual é [ante os braços de Deus que
se estendem para nós] o alcance [sobre nosso destino final] do trucidamento e do
sepultamento da esperança, que perpetramos? O que representa a traição a
Cristo, que praticamos? “O Grande Inquisidor” recebe sobre os lábios exangues
e nonagenários o beijo do Cristo [que ele resolvera matar]. “Esta foi a sua única
resposta”.
É esta resposta única e total que constitui a esperança da Igreja. Esta compaixão
eterna fundamenta-se exclusivamente em Deus; ela não pode, por assim dizer,
ser deduzida racionalmente [pois não é demonstrável logicamente], porquanto
ela excede a todo pensamento [e a todo entendimento humano].
O conhecimento que o ser humano tem de Deus, não o salva mas o traz a
julgamento; todavia, o conhecimento que Deus tem da criatura a salva e a eleva.
[O A. faz jogo de palavras dizendo, aproximadamente, que o conheci-605
11, 2
A Unidade de Deus
Deus rejeita, por isso também elege; Deus condena e por isso, também agracia.
Deus leva até ao inferno e por isso também conduz para fora dele. Deus
questiona a Igreja, formula a dúvida que nela irrompe e que aí se torna pública
como pesada ferida na comunidade [e nas congregações] dos homens mas, por
ele a haver formulado, dá-lhe também a resposta.
[na identidade] do DEUS ABSCONDITUS com aquele que acordou Jesus Cristo
de entre os mortos; do Deus de Esaú com o Deus de Jacó. Em poucas palavras: a
unidade de Deus que se revelou em sua total invisibilidade, é a nossa esperan-
ça. É por isso que, quando não houver outra esperança, quando não houver
amparo, nem mediação nem transição, nem a coadjuvação de outras
perspectivas, então “a luz resplandeceu nas trevas e as trevas não a dominaram”.
“O Senhor não rejeitará o seu povo, por causa do seu grande nome, porquanto
livremente ele vos aceitou como seu povo”. [1 Sam. 12, 22— (apud] LXX).
E o que lhe diz a palavra de Deus? — “Guardei para mim sete mil homens que
não dobraram seus joelhos diante da ignomínia de Baal”. Assim também ao
tempo de agora existe um remanescente pela eleição da graça. Porém, por ser
pela graça, não é por obras pois do contrário a graça já não seria graça.
606
A Unidade de Deus
11, 3-4
A unidade de Deus, como esperança da Igreja, precisa ser crida [aceita pela fé]
no seu total paradoxo e sua insuficiência. É melhor que [essa unidade]
É por isto que a situação da Igreja precisa ser analisada com o mais absoluto
rigor. Dizemos levianamente que [o lamento do profeta] se referia à Igreja de
Acab e Jesabel; que Elias se queixava dos filhos de Israel. (IReis 19, 10 e 14).
É sabido que não pode haver qualquer conduta de compromisso entre Jeová e
Baal; não se pode “claudicar entre ambos os lados.” pois quando Baal desponta,
indubitavelmente, em qualquer lugar, — (por exemplo na teologia, na pregação,
no posicionamento político da Igreja), — é evidente que ele passa a ser o Senhor
da Casa, pois Jeová não cogita de repartir alguma coisa com ele.
A maior ênfase que se der a um pormenor não é demais para chamar a atenção à
problemática do todo e, nenhum merencório protesto alegando que (apesar de
tudo) “a Igreja tem muito de Jeová”, pode resistir à força viva da prova de
indícios que [os críticos da Igreja] conduzem [contra ela]. Portanto, nenhum
[protesto semelhante] pode ser arma de defesa [ou servir de justificativa] contra
a necessidade de arrependimento; aqui não se trata de ter paciência mas de
assumir a impaciência dos profetas; não se trata de exibir o humor de observador
mas de se empenhar em desenfreada ofensiva; não se trata de justi-
607
11, 4
A Unidade de Deus
“Reservei para mim sete mil pessoas que não dobraram seus joelhos diante a
ignomínia de Baal” (I Reis 19, 18).
Esta é a outra face que Elias não vê. Como haveria ele de ver isto, por mais
agudeza que tivesse para as sutilezas da Igreja?
Na realidade [esta reserva] não é algo como um rio subterrâneo, escondido, mas
é o outro lado, — o lado ou a página — completamente diferente; [é um
“aspecto diferente” da Igreja].
Os sete mil não são 7.000 numéricos, por mais paradoxal e chocante que esta
afirmação pareça em face ao texto. (“Não é parte ínfima da população do país”
(Juelicher) ); não é comunidade de “minoria silenciosa” que Elias pudesse ter
encontrado aqui e ali, os conhecesse e pudesse até nomeá-los. Ele tem razão
quando diz, “eu fiquei só”!
O profeta, como tal, está — por assim dizer — sempre só e [é sempre visto ou
tido como] “original”. O QUANTUM de sua alma solitária não pode ser
multiplicado nem diminuído.
Por isso diz a Palavra de Deus que ele não deixa de conhecer [e reconhecer]
os seus. [Todavia], (não que existam alguns que acaso o conheçam!), pois a
graça de Deus é infinita. (Não que os sete mil sejam agraciados!), pois a unidade
de Deus triunfa na imprevisível [e incompreensível] problemática da história da
Igreja; (não que existam tantos ou tantos que gozem de alguma paz consigo
mesmos!).
Este deserto não tem oásis! É certo que a qualidade invisível da eleição se torna
visível ali e acolá, nesta e naquela pessoa, contudo, mesmo quando invisível ela
é maravilha, [milagre] e revelação.
Eu, eu retive para mim sete mil pessoas! Deus quer reservar, unicamente para si
a razão e a salvação. Ele tem a razão e ele salva! [Deus reserva para si mesmo, o
direito e a razão para salvar a criatura humana].
608
A Unidade de Deus
11, 5-6
Elias não está só e a totalidade de Israel não foi rejeitada, pois aqui Deus entra
em cena; justamente aqui, onde termina toda esperança humana, porque Deus,
em sua ira, esperou apenas pelo clamor do solitário Elias para provar a esse
solitário e a todo Israel que ELE é misericordioso.
“Assim, também, no tempo de agora existe um remanescente pela elei-
ção da graça. Porém, por ser pela graça, não é pelas obras pois, do contrário, a
graça já não seria graça”.
“No tempo de agora” a Igreja de Jacó já está entre a Igreja de Esaú; está, para os
olhos que vêem, para os ouvidos que ouvem, para os corações atentos, onde o
amor a Deus foi derramado pelo Espírito Santo; está em palavras que são mais
do que palavras; está na disposição de muitos a fazer a vontade de Deus.
Quem são estes muitos? Aqui também não se trata de 7.000 que sejam contáveis
mas de um remanescente que, se considerado quantitativamente, está em vias de
desaparecer e nem sequer pode ser considerado; podemos afogar-nos novamente
na ilha da verdade que emerge do mar pois toda vez que pé desajeitado tentar
pisá-la ela de novo se cobre com a avassaladora caudal.
Portanto, este remanescente não pode ser procurado onde se destacam e realçam
coisas humanas, em fatos [e ocasiões] notáveis, como tempos [anos, dias,
semanas] de perdão, movimentos, [com alvos específicos, campanhas], 609
11, 5-6
A Unidade de Deus
avivamentos, reformas e coisas semelhantes; — tudo isto são obras! [Se isto
valesse,] então graça não seria GRAÇA. Se, porém, o remanescente for
encontrável nessas obras, somente o será na medida em que Deus também se
revelar nelas, isto é, na medida em que nas ondas desses movimentos e
desenvolvimentos humanos existir a [verdadeira] obediência (10, 16). Todavia, e
com certeza, não será somente aí — por mais que se escandalize toda observa-
ção direta — que se encontrará o remanescente fiel; ([aliás,] com certeza não
será encontrado em tais movimentos, se aí for procurado!); antes poderá achar-se
nas partes baixas da curva sim, talvez justamente aí, [na anti-crista, no fundo do
vale] onde nem se pensa em obras segundo o critério e o gosto dos historiadores
eclesiásticos; lá onde é notório que todo tempo é apenas intervalo, [onde o tempo
que passa tem apenas o significado de lapsos secundários da nossa vida e da
história do mundo] e onde somente Deus abre os olhos [dos homens]
para que eles o vejam; onde somente Deus pode revelar-se e dar-se a conhecer
entre a miséria e a perdição humanas. [O A. diz textualmente “onde somente
Deus pode re-encontrar-se e se reconhecer entre a miséria e perdição humanas”.
Entendo que Barth quer dizer que somente pela infinita misericórdia de Deus
pode ele reconhecer na criatura perdida aquela que ele criou à sua imagem e
semelhança e aceitá-la conforme está; somente por ser ele o Deus de infinita
misericórdia e incomensurável amor, pode ele ver na criatura decaída aquela que
ele visitava à tarde, no Jardim do Éden!].
É o conhecimento que Deus toma, [ou tem] dos homens que decide e isto, quer a
curva da história da Igreja se incline para cima, quer se oriente para baixo; ou
então, quer sejam bárbaros teutões ou piedosos religiosos do século 19 o objeto
de sua consideração.
Deus não rejeitou o seu povo, porque ele o reconheceu. [Segundo a tradução de
Almeida, “a quem de antemão conheceu”]. (11, 2).
“agora” por entre a miséria e a culpa da Igreja, cuja esperança está unicamente
no fato de que Deus se justifica “agora” e agora vindica a sua propriedade.
Esta esperança da Igreja é tão certa quanto Deus “agora “ se revela em Cristo
como aquele que é nossa aflição e de quem ficamos devedores.
[A versão inglesa escreve: “A única esperança da Igreja é que Deus deveria [ou
haveria de] agora justificar-se e dar testemunho de sua própria unidade. Esta é,
na realidade, a esperança da Igreja porque em Cristo Deus se revela agora como
a causa de nossa tribulação e de nossa culpa”.
610
A Unidade de Deus
11, 6 e 7-10
Vs. 7 a 10 Como fica pois? O que Israel procurou não alcançou, porém o obtêm
os eleitos. Os demais são endurecidos, conforme está escrito: Deus deu-lhes
espírito de profundo sono, olhos que não vêem e ouvidos que não ouvem, até o
dia de hoje. E Davi diz: Sua mesa lhes seja por armadilha, por tropeço,
aborrecimento e punição. Trevosos sejam seus olhos para que não vejam e que
encurves suas costas para sempre!
[A tradução de Almeida, registra: “O que diremos, pois? O que Israel busca, isso
não conseguiu; mas a eleição o alcançou; e os mais foram endurecidos, como
está escrito: Deus lhes deu espírito de entorpecimento, olhos para não ver e
ouvidos para não ouvir, até ao dia de hoje. E diz Davi: Torne-se-lhes a mesa em
laço e armadilha, em tropeço e punição; escureçam-se-lhes os olhos para que não
vejam e fiquem para sempre encurvadas suas costas”.]
611
11, 6-10
A Unidade de Deus
Para deixar absolutamente fora de dúvida que nos referimos a Deus quando
falamos da esperança da Igreja, paramos para tratar mais uma vez do não que
Deus antepõe à Igreja. [Literalmente do NÃO de Deus a respeito da Igreja].
Somente na luta contra este “não” pode surgir a Igreja de Jacó e a esperança ser
genuína, pura, real. Este “não” subsiste no fato que precisa ser afirmado mais
uma vez (9, 31): “Israel não alcançou o que procura”. Não alcança e não
alcançará. Sabemos o que Israel busca: aquela justiça própria sob consciente
escamoteação da justiça divina (10, 3); aquela justificação e salvação do ser
humano mediante a entronização do homem religioso. Onde se acharia uma
Igreja que, após curta hesitação, não voltasse sempre a fazer isso? Quem souber
como as Igrejas se realizam [como se estabelecem e subsistem em sua ra-zão de
ser] acaso poderia isentar-se da culpa de semelhante busca? — Contudo, a
esperança de encontrar essa justificação não pode ser satisfeita. Todas esperanças
desse gênero serão sempre frustradas pela sua própria impossibilidade e na
impossibilidade divina.
Todavia não estará acaso a Igreja, nesta sua procura, ao encalço de algo
completamente diferente, algo que ela não se atreve (buscar abertamente)
porquanto esta procura não é lícita à criatura humana e se ousasse fazê-lo teria
de admitir sua própria total dubiedade?
Aqui não se diz que a procura, em si, não seja lícita [ou que seja culposa]. (Pelo
contrário: buscai-o para que vivais!), mas a culpa está no esquecimento de que o
homem não pode buscar a JUSTIFICAÇÃO; a culpa está na presunção da
criatura humana que admite ser capaz de obter a justificação sem se dar conta da
imprudência [e leviandade] com que abre mão e renuncia ao que já achou
[aquilo que lhe foi dado pela graça] para se entregar à procura certamente inútil
[e possivelmente ruinosa — sem dúvida sujeita à ira de Deus!]
Deixamos bem nítido que “eleitos” não significa estes ou aqueles nem os que
estão aqui ou acolá, nem os que são denominados desta ou daquela maneira. E
pela graça que o são. Eles não podem ser apontados; não podem ser incluídos em
nossa programação; nada se pode começar com eles nem com eles se pode
contar. Jamais serão luminares da Igreja — não farão Escola. Não 612
A Unidade de Deus
11, 7-10
serão fonte de inspiração a menos que o sejam na forma de impulso para a vida
eterna e, assim mesmo, como escândalo. Eles estão ali e acolá mas, com certeza,
não onde se clama “EIS AQUI”! Eles têm este ou aquele nome que não é aquele
pelo qual são chamados. Eles são conhecidos como os desconhecidos.
[A tradução inglesa escreve assim: “Eles emergem apenas a fim de que possam
ser submersos. A sua eleição e o êxito com que “ALCANÇAM” não são coisas
que possam ser descritas em livros devotos nem a sua “influência”
Nos eleitos a Igreja pode, também, aprender que “Israel não alcança o que
busca”.
A luz brilha nas trevas, sem ser sobrepujada! Porém, é nas trevas! Desesperança
é desesperança e “ponto morto” é ponto morto; não há continuidade entre a alma
de um e de outro, entre os portadores da esperança e aqueles a quem ela é
trazida: rio há transferência não há “contágio”; não há influência daqueles sobre
estes. A interligação [entre uns e outros] faz-se somente em Deus. Também os
eleitos somente ALCANÇARÃO “em Deus” aquilo que procurarão em vão se
não o obtiverem de Deus. Eles dão testemunho de Deus mas não são nem
sementeira divina nem grão ou coisa parecida para os demais. (O
Jesus dos “sinópticos” enviou os seus discípulos para anunciar o Reino de Deus,
mas não para o estabelecer! (Mat. 10, 7)). [Todavia aqueles que dão testemunho
de Deus], os Eleitos, estão sempre [reiterada e continuadamente] expostos ao
único e grande risco, ao perigo mortal, de se olvidarem de Deus, [de o omi-
tirem], deixando, assim, de ser suas testemunhas e passando a identificar-se total
e absolutamente com os “outros” e, empedernidos como estes, ficarem
completamente obturados à possibilidade [da graça] divina. [Ver o que está dito
expressamente em Mat. 10, 28].
Disto tudo resta que não há esperança se Deus não operar o milagre —
613
11, 7-10
A Unidade de Deus
Como única verdade visível, resta esta que deve ser inscrita nos umbrais de cada
porta de Igreja, no frontispício de cada livro de sermões, na primeira página de
cada livro religioso: “Os demais foram empedernidos”.
rica. Se Deus não for reconhecido como Deus, os “demais” são todos, porquanto
Deus quer ser conhecido através de si mesmo; é por isto que aparecem os eleitos
e também a exclusão dos “demais” que incluem os eleitos quando estes, na sua
existencialidade [sua vida, sua atitude e sua conduta perante os homens e Deus]
deixarem de testificar [a eleição].
Toda a aflição da Igreja de Esaú consiste em que Deus a feriu com “um espírito
de sonolência”; com “olhos que não vêem” e “ouvidos que não ouvem”; que da
parte de Deus a “sua mesa” e todo seu procedimento têm de lhe ser por laço”,
por armadilha, por castigo e por escândalo e que Deus “lhe encurva o dorso” sob
a lei que não serve para justificação e salvação e contudo não pode ser evitada.
Todavia este [mesmo] Deus, que tão desapiedadamente diz NÃO enquanto
proclama sua misericórdia; que tão inexoravelmente exclui [rejeita]
enquanto a todos atrai a si; que fica assim tão oculto e que se anuncia justamente
como o Deus recôndito quando menciona o seu nome, — ELE é a esperança da
Igreja. ELE é esta esperança pela sua Unidade, sua Identidade, sua Graça e sua
Verdade. É assim e de nenhuma outra forma, que ELE é o nosso pai em Jesus
Cristo, o que foi crucificado e que ressurgiu.
Donde advirá tanta esperança à Igreja para assentar a sua esperança neste Deus?
11, 11-10
Todavia, não é isto que o A. diz. O Livro da Vida sempre existiu, continua
existindo e existirá. Os nomes nele inscritos podem ser riscados a qualquer
tempo: as varas enxertadas também podem ser cortadas; outras, cortadas, podem
ser re-enxertadas e, por extensão, analogia e lógica humanas, também estas
podem ser cortadas novamente. O próprio A. o afirma quando diz que ninguém
esteja extremamente seguro de sua situação perante Deus; que aqueles que
receberam a eleição, cuidem para permanecer nela. Se não é garantia de salvação
permanecer alguém na Igreja, muito menos o é estar alguém fora dela porquanto
as coisas vis não podem ser incensadas, sublimadas, pois nem as mais nobres
servem para tanto!
Quando Barth diz que o Deus que rejeita é o mesmo Deus que elege e que nesta
unidade não rejeitará para sempre, que o NÃO divino não é a última palavra,
refere-se à parte empedernida da Igreja, à parte endurecida de Israel. Refere-se
àquela parte que, buscando para si uma lei de justificação cai nas profundezas da
“sombra de José” — julga-se melhor aquinhoada que os demais. Na ira que pesa
sobre esta “Igreja” que assim se promove, os “de fora” vêem (ou melhor, podem
ver) a justiça divina e assim a Igreja cumpre a sua missão, ainda que na
negatividade, (e quem não é negativo?) até que seja despertado nela o zelo de
Deus.
Uma palavra aos de Fora é uma palavra de advertência aos que não são Israel;
que não são Igreja. É uma palavra aos pobres de espírito que não têm de que e de
quem gloriar-se. Talvez percebam a glória de Deus manifesta no Universo mas
não acolhem a mensagem que a Igreja quer entregar-lhes; talvez até zom-bem
dela e, com certeza, conservam-se na atitude de quem observa à distância.
É uma palavra aos que não conhecem a lei, embora em suas consciências sejam
lei para si mesmos e se admoestem entre si.
615
11, 11
É uma palavra de advertência aos gentios para que, na graça que receberam,
dêem testemunho dela perante Israel, a fim de que também para este soe a hora
da eleição.
Vs. 11 Digo pois: acaso tropeçaram para que caíssem? Impossível! Porém por
sua queda tem lugar a salvação dos gentios — para torná-los ciumentos.
A RSV diz: “Assim pergunto: tropeçaram eles para cair? De forma alguma! Mas
pela sua transgressão a salvação veio aos gentios, para deixar Israel com
ciúmes”.
mes neles”.
Talvez possa parecer à primeira vista que se trata de indagar se Israel não foi
induzido ao tropeço para cair e propiciar a salvação dos gentios, em raciocí-
11, 11
talvez com menos dolo, se pudesse deduzir dessa passagem que a salvação dos
gentios veio em conseqüência da queda de Israel; ou então em outras palavras,
que a salvação das pessoas de fora da Igreja resulta do fracasso da Igreja.
Talvez seja isto: Israel não foi induzido ao tropeço, nem levado à queda.
A missão dada à Nação Eleita foi testificar a graça divina; preparar o caminho
para a vinda do Senhor em quem seriam (foram e são) benditas todas as nações
da terra. Os planos de Deus não são frustrados pela conduta humana (2, 11;
Deut. 10, 17; Atos 10, 34 e seguintes; Gal. 2, 2); a missão de “nação sacerdotal”
teria de cumprir-se e foi cumprida quer fosse com o coração dócil e leal de um
Jó, um Moisés ou um João (o Evangelista) e tantos outros, ou fosse com a dura
cerviz de um Jonas, um Faraó, ou de um recalcitrante Saulo.
Israel foi de dura cerviz: Jacó lutou com o anjo do Senhor; o povo do deserto
quis voltar às panelas de carne do Egito e se serviu do primeiro pretexto que lhes
pareceu razoável para fundir o seu bezerro de ouro; a nação constitu-
ída preferiu um rei vistoso à liderança do Deus “invisível” de Samuel; adora-ram
nos “Altos”, aos astros visíveis e abandonaram o Altíssimo que talvez lhes
parecesse por demais remoto e, pior do que isto, imaterial. Perseguiram os
profetas e se encastelaram em sua própria retidão e justiça; decoraram a lei,
viveram sua forma, sua letra, porém não praticaram seu espírito; alardeavam o
cumprimento do primeiro grande mandamento e prevaricavam no segundo,
semelhante ao primeiro. Negaram ao Cristo a ponto de chamarem o seu sangue
sobre eles e sobre seus filhos.
Mas teria sido Israel que assim procedeu? Ou foram eles como porção
representativa da humanidade — nação, Igreja, autoridade eclesiástica, poder
civil — o mundo dos homens naquilo que tinha e tem de mais tipicamente
representativo?
617
11, 11
Mas não é assim; a graça não tem data histórica, nem lugar geográfico, nem
raça, tribo ou nação e também não os tem a transgressão.
ção dos gentios, dos que estão de fora, daqueles que não conhecem a lei.
Porque os que estão sem lei, (quando têm olhos para ver e entendimento para
compreender), percebem que Deus não opera segundo critérios humanos e por
acepção de pessoas; que Deus não se deixa levar por engodos, nem promessas,
nem sacrifícios, nem ritos, nem iniciação esotérica ou outra qualquer; Deus não
julga pelo louvor, ou pela devoção, ou pela liturgia; nem por flagelação, ou
renúncias ou obediência a alguma lei, ou seita, ou denominação. Deus julga e
justifica na conformidade de sua eleição eterna pelo que encontra no íntimo de
cada pessoa. É pela rejeição divina à pretensa retidão humana que os “gentios
quiçá mais vazios em si mesmos, vislumbram mais prontamente a Graça Divina.
Talvez possamos parafrasear o v. 11(s), escrevendo que o testemunho da
fidelidade (longanimidade) de Deus com a Igreja deu lugar à conversão das
“pessoas de fora” e a conversão destas levou (ou leva) a Igreja à plena renúncia
de sua própria retidão.
ção à Igreja que nos está próxima, como aqueles que “não ouvem” e “não falam”
conforme ouvimos e falamos; eles são observadores não comprometidos e
testemunhas das tentações e fracassos da Igreja. Não há dúvida de que eles vêem
o insucesso da Igreja: o mundo o vê e também a Igreja já o viu — há muito —
embora, talvez, tenha silenciado a respeito da existência de um fracassar
contínuo, um tropeçar, um correr de encontro a algum obstáculo invisível.
Acaso não é certo que se nós mesmos formos apenas sofrivelmente sadios, se
ainda não houvermos sido contagiados pelo romantismo, não poderemos assistir
uma missa católica sem a sensação profunda que “assim não vai” e isto, se nosso
sentimento não se expressar muito mais vigorosamente, nos termos do catecismo
de Heidelberg?
618
11, 11
não estão melhores que nós [pois eles na realidade estão dentro de outro grupo e
pensam de nós, MUTATIS MUTANDIS, aquilo que deles pensamos].
O que Deus tem a dizer contra a Igreja é, na verdade, dito contra ela também
pelo “mundo”, não importa se este o diz com ou sem entendimento todavia, é
por isto mesmo que aquilo que o mundo diz contra a Igreja, somente pode ser
tomado no sentido daquilo que se pode dizer contra ela da parte de Deus e de
nenhuma outra forma. Portanto, não é como se a fraqueza, a perplexidade, a
profunda incredibilidade que sempre revelam a culpa e aflição da Igreja ao
mundo fossem a realidade final, metafísica. A Igreja não está liquidada nem foi
derrotada, ainda que os “gentios” vejam contra ela dez vezes mais [erros] do que
estão vendo.
Assim como Deus não abandonará o próprio mundo em sua [evidente e mais do
que confirmada] aflição e culpa, assim também [ou melhor, com mais justa
razão] não abandonará a Igreja que, a despeito de toda sua dubiedade, é do
mundo o ponto mais alto, o seu apogeu.
Mundo e Igreja são o que são, apenas em sua relatividade mútua. Como se pode
sequer cogitar da exclusão total, absoluta, de uma das partes pela outra? O que é
total, absoluto, é a oposição de ambas as partes juntas [Igreja e mundo] a Deus.
Do ponto de vista divino porém, tanto a Igreja como o mundo estão extintos.
[Vistos do ponto de vista divino] estão liquidados tanto Israel como os gentios.
Portanto é impossível que [Israel] tenha esbarrado na pedra de tropeço (pedra de
tropeço e rocha de escândalo, 9, 33) para que caísse.
11, 11
efetiva a filiação do mundo (9, 22-23); por isto (a aflição da Igreja) não é a
“A sua ira dura um instante e a sua misericórdia a vida inteira”. (Sal, 30, 5). A
condenação somente existe como sombra projetada pela luz da elei-
Aquele que recebe a revelação divina precisa, por si mesmo, tomar a posição de
quem recebeu essa revelação e nela põe a sua esperança, a despeito de toda
[conscientização] de culpa e [conseqüente] aflição que [tal revelação]
traz consigo.
[A tradução inglesa escreve: “Aquele que recebe a revelação de Deus precisa
submeter-se à tribulação e à culpa que a sua posição implica, para que ele
mesmo seja o guardião da revelação e da esperança que tem”].
Primeiro vem Israel: a Igreja. Em sua falha, em sua catástrofre, nasce o segundo.
“Por sua queda tem lugar a salvação dos gentios: onde afluiu o pecado,
transbordou a graça”. (5, 20).
Porém, como acontece? — Pela garantia da graça divina acima de toda injustiça
humana.
A “injustiça humana” dos gentios, que clama aos céus, se opõe menos à justiça
divina, que a retidão humana” da Igreja.
620
11, 11-15
A provocadora preferência dada a Jacó faz com que também Esaú se lembre do
Deus de Jacó e na divina origem da vocação de Moisés também Faraó, em seu
endurecimento, tem participação — ainda que fosse “por ciú-
mes”; [ainda que fosse] pelo profundo dessossego que provoca a existência dos
eleitos o que, para os condenados, necessariamente significa a demonstração da
liberdade divina e a eleição pela graça.
É por isto que a Igreja tropeça: para que se patenteiem seus fracassos, sua
incredibilidade e o humor involuntário que a envolve; para que se revele a
profundamente escondida sombra de José; para que [na Igreja] se conheça de
novo na liberdade de Deus que tudo expõe à luz. É desta forma que a aflição e a
culpa da Igreja têm seu fim (seu objetivo) e o final [o término], o seu
cumprimento em Deus.
Vs. 12 a 15 Ora, se sua queda for riqueza para o mundo e seu esvaziamento
riqueza para os gentios, quanto mais o será a sua plenitude Digo-o a vós
gentios! Justamente na medida em que eu sou o apóstolo dos gentios tenho por
honra em meu ministério despertar os ciúmes nos que são da minha carne e
assim salvar alguns deles. Porquanto, se a sua condenação dá lugar à adoção
do mundo, a sua aceitação não será, se não, a vida dentre os mortos.
“Ora, se a sua queda [sua transgressão] for riqueza para o mundo e seu
esvaziamento [seu desapossamento, seu abatimento] for riqueza para os gentios,
quanto mais será a sua plenitude” [sua aceitação, seu restabelecimento, sua
completa e cabal realização].
621
11, 12
Quem tiver esta experiência pode bem ter caído, mas apenas caído, para erguer-
se novamente, apoiado no próprio obstáculo em que tropeçou. Não terá caído
definitivamente; não terá tombado em sentido fatal, metafísico, inflexí-
vel, absoluto; não será algo para além do limite do tempo [para além da
temporalidade].
“desapossamento” da Igreja.
Este fim não é final; [não é a última palavra, não é definitivo]. Este fim
Além da cruz está a ressurreição, (mostrada por Deus e visível aos olhos por ele
abertos.). Foi aí [na cruz] que Deus se manifestou e deu testemunho de si; foi aí
que Deus se fez lembrado como a origem de todas as coisas, como Criador e
Redentor. Foi aí que Deus mostrou sua plenitude, patenteando na plenitude da
possessão humana a queda do homem, sua negatividade, sua negação, a notória
vacuidade humana; [todavia, nesta sua plenitude,] Deus revelou também a sua
invisibilidade.
A plenitude de Deus! Sua justificação, portanto sua positividade, sua riqueza, sua
misericórdia, sua visibilidade. A vacuidade que domina a possessão 622
11, 12-14
humana tem fim e o cabedal humano acaba. Não acontece assim com a plenitude
de Deus; a positividade que substitui a negatividade, não tem fim.
[Ora,] o fim da Igreja é o começo da plenitude de Deus que não só é infinita mas
é eterna e, portanto, não é apenas a delimitação das coisas finitas que se lhe
opõem à Igreja, mas também a sua supressão, mediante o que não há mais
“eleitos e condenados”, “gentios e judeus”, “gente DE FORA e DE
Os que [“de fora”] observam a Igreja e seu insucesso, tomem nota de que as
últimas coisas terão lugar quando a Igreja chegar ao seu fim, (11, 15 e 1
Cor. 15, 26— a supressão da morte!; que tomem nota de que esse
esvaziamento(!), prepara o advento de [total] preenchimento, (e este ainda mais
salutar!).
Somente se poderia afirmar que a Igreja “está liquidada “ com extremo temor e
tremor ou antes, isto não se pode afirmar de maneira alguma, pois quem
suportará saber o que será então?
“Digo isto a vós, gentios: exatamente na medida em que sou apóstolo dos
gentios vejo a dignificação do meu ministério nos ciúmes que eu despertar
naqueles que são do meu sangue, para salvar alguns deles”.
[A tradução de Almeida escreve: “Dirijo-me a vós outros que sois gentios! Visto
pois que eu sou apóstolo dos gentios, glorifico o meu ministério para ver se de
algum modo posso despertar à emulação os de meu povo e salvar alguns deles”].
Justamente aqueles que “estão de fora” precisam ouvir tudo isto e ponderar a
respeito. Eles são justificados através da aflição e da culpa da Igreja. O
instante da rejeição dos que “estão dentro” é o momento da salvação dos que
“estão fora”.
11, 13-15
sério para merecerem a justificação pois é de esperar que para esse fim não
fossem incensar as extremas fraquezas humanas.
É justamente isto que prende Paulo a Israel e o traz sempre de volta a seu povo;
é por isto que ele se sente constrangido a iniciar a sua pregação [para onde quer
que vá] primeiramente com Israel, conforme Lucas bem o descreve com
segurança e propriedade [no Livro de Atos].
A nudez em que está o gentio e que significa a sua predisposição para Deus em
contraste com a plenitude de Israel, não pode, por isso mesmo, ser outra coisa
que não essencialmente a condição em que a criatura, (e também Israel), se
encontra em relação a Deus; este é o ponto onde, deixando para trás sua própria
justiça que é seu tribunal, entra em consideração, também para Israel, o divino
PORÉM do perdão.
Por outro lado onde se poderia vir a saber que o perdão é o “sentido”
que está além da nudez humana, [além da pobreza] dos filhos do mundo — se
não lá onde, na criação, está a mais alta e última possibilidade humana?
Onde toma a criatura ciência de sua posição em Deus [e perante Deus], se não na
religião?
Igreja e mundo são mantidos unidos, [juntos] pela infinita diferença qualitativa
entre Deus e o homem, que estabelece um vínculo qual grampo de aço e que, ali
significa a rejeição e aqui a eleição. Este vínculo torna, por assim dizer,
impossível dissociar a humanidade para formar os dois respectivos grupos.
624
11, 13-15
O “Apóstolo dos Gentios” não seria o mensageiro de Jesus Cristo se ele não se
dirigisse com o mesmo empenho ao “gentio” [existente] no judeu e ao
ção é impossível; [aliás,] é justamente esta tentativa que, mais do que qualquer
outra, esmaga o ser humano. A prova: Cristo foi crucificado pela Igreja.
A Igreja procura a Deus e o rejeita quando ele vem a seu encontro porque não
quer aceita-lo e, pelo conhecimento de semelhante catástrofe, tem lugar “a
filiação do mundo”.
Onde [ou quando] pisou o próprio Paulo a soleira do Mundo Novo se-não
quando abandonou o farisaísmo no tempo assinalado segundo uma seção
longitudinal de sua vida física?
Por eles (judeu e Igreja), a humanidade tem a prova de que sempre há um lugar
onde se vai às últimas conseqüências das possibilidades que ela recebeu, lugar
esse onde, na evidente impossibilidade do mundo, se mostra a possibilidade de
Deus.
625
11, 15-18
Se é certo que em nenhum lugar fica mais patente o que seja REJEIÇÃO
do que na Igreja, também é certo que em nenhum lugar fica tão claro o que seja a
ACEITAÇÃO desta criatura, neste mundo, do que [nesta mesma] Igreja.
— “Então” não é tempo e é qualquer tempo! Portanto, diremos “aí” para evitar
que se pense em possibilidade escatológica temporal e não da possibilidade
escatológica final, da qual aqui se trata; [portanto dizemos] aí, quando a
possibilidade humana consubstanciada na Igreja coincidir com aquilo que essa
possibilidade de fato significa e pretende ser, isto é, [quando a possibilidade
humana representada na Igreja] coincidir com a possibilidade do próprio Deus e
de Deus somente, aí acontece mais do que FILIAÇAO, mais do que PAZ COM
Onde há esperança, aí há também esperança para a Igreja e isto precisa ser dito a
“vós, gentios”, vós que observais lá de fora, (tanto mais que, precisamente como
tais, sois justificados!)
Esperança da Igreja! Neste sentido, toda esperança é da Igreja, pois na esperança
que há para a Igreja está encerrada [enfeixada] toda esperança.
626
11, 16-18
(A tradução inglesa escreve: “Se a humanidade como um todo houver de ter sua
atenção voltada a esse evento existencial — [refere-se ao evento de ouvir e
enunciar (proferir) a Palavra de Deus) — isto pode ocorrer apenas entre as
paredes onde a tentativa de ouvir e falar a Palavra de Deus é feita
continuadamente e onde continuadamente falha”.]
“Se as primícias forem santas, também o será a massa. Sendo santa a raiz, santos
também serão os ramos”.
As santas “primícias”, “a raiz” santa, é a derradeira possibilidade; a
possibilidade escatológica, que é o tema e, portanto, o julgamento e a promessa
da Igreja; é dela que a Igreja se forma [se estabelece] e por ela a Igreja precisa
reformular-se sempre; é nesta possibilidade que a Igreja se despedaça e precisa
despedaçar-se. É nela [também] que a Igreja espera não se despedaçar, quando e
onde nada há a esperar. (4, 18; 5, 5; 9, 33; 10, 11).
[O que à primeira vista parece ser claro no texto é a singela afirmação de que
aquilo que é santo, que é separado por Deus pela sua livre e soberana vontade, só
pode produzir o que é santificado.
627
11, 16-18
Assim, como as “primícias da farinha” (Deut. 18, 4) separadas (santas) por Deus
e para o serviço de Deus, somente poderiam produzir a massa (o pão) santificado
para o Serviço do Senhor, ou assim como a seiva gerada pelas raízes só pode
produzir o fruto que a seiva contém, assim também é santo (separado por Deus)
quem (ou o que) Deus santificou — seja pessoa, obra ou organização.
A santidade da origem e do fim [do Alfa e do Ômega] não pode ser considerada
em nenhuma analogia e a participação do “meio” [do “presente século”] nesta
santidade — isto é — a ligação [ou alguma interdependência]
entre a Igreja de Esaú, nossa conhecida, e a Igreja de Jacó, que não conhecemos,
é totalmente impossível.
“Todavia, se alguns dos ramos foram quebrados e tu, como oliveira brava, foste
enxertado no lugar deles, não te ergas acima dos ramos” [legítimos]
(Lietzmann).
Não; verdadeiramente não é por acaso que Paulo faz esta analogia tão absurda
do ponto de vista agronômico; antes ele recorre a esta semelhança para chamar
atenção a inviabilidade (ou ao absurdo) de que se trata aqui e que não permite
estabelecer qualquer analogia humanamente lógica.
“estão fora”.
628
Uma coisa é tão espantosa quanto a outra, mas é exatamente disto que se trata:
Deus não se deixa achar por aqueles que o buscam mas torna-se achável por
aqueles que não o procuram (10, 20). [Não há nada que possa justificar a idéia
“torna-te achável e Deus te achará” — antes os que isto praticam ou ensinam,
buscam a justificação de forma (por assim dizer) ainda pior que Israel (ou a
Igreja), pois tentam buscá-la e alcançá-la como que por subterfúgio, por astú-
Ele é a raiz santa da árvore e, cortado dele, nem o broto legítimo pode crescer;
enxertado nele, mesmo o rebento selvagem pode medrar. Não como se a vara
bravia, o gentio, o “de fora”, tivesse qualquer vantagem sobre a vara legítima,
sobre o judeu, sobre o “de dentro” [mas porque tira o sustento da “raiz santa”].
A arrogância (ou altivez) dos “de fora” que, em seu suposto progresso livre e
selvagem olham a Igreja vendo-a de cima [tratando-a com superioridade] é
sempre mais absurda do que seria a atitude inversa.
Se, perante Deus, a nudez dos que estão de fora não for pior do que a dos outros,
ela de maneira nenhuma será melhor do que a respeitável retidão humana
daqueles que “estão dentro”. Entendamos bem: na nudez em que a criatura se
torna aceitável a Deus, na inocência infantil ou na lamúria que lhe dá condição
para receber a justificação divina, a ser salva por Deus, a criatura está
unicamente perante Deus e não recebe [a justificação e a redenção, não goza da
aceitação de Deus] por sua “gentilidade” por sua rejeição a Igreja, ou por suas
características de filho do “presente século” mas, única e exclusivamente, pela
misericórdia de Deus. A sua nudez é apenas analogia da nudez aceita por Deus!
Ninguém, jamais, pôde gloriar-se de ter a pobreza de Espírito daqueles que são
absolutamente estranhos à Igreja, os tais que Jesus louvou como “bem
aventurados” e [cuja “pobreza”] justifica os gentios perante Deus, porque eles
nunca existiram. O fato de a possibilidade do perdão divino existir para os que
estão fora enquanto declaradamente não está ao alcance dos que estão dentro,
629
11, 18-22
“Mas ainda que te levantes acima deles, não és tu que suportas a raiz, mas a raiz
a ti”.
Isto quer dizer que se tu acaso preferes ser ateu, observador [de fora], esteta,
liberal, socialista, naturalista, ou que quer que seja de que te glories em ser,
qualquer que seja o nome que dês à tua atitude de consciente autoctonia ou
teses!) estás dentro do SIM que tem de ser o não para a Igreja. Portanto vives
daquilo que está além da tua possibilidade e da sua impossibilidade; vives
daquilo que está além do teu direito e além do seu erro, daquilo que está além do
teu “SIM” e do “NÃO” da Igreja.
É a raiz que te suporta”. Seria mania de grandeza pensar que pudesse ser o
contrário: que tu em tua autenticidade, tua pureza, tua honestidade, tua aptidão
laical, pudesses ser a própria raiz, a fonte da divindade! Então,
[aparentemente]poderias livrar-te da Igreja e de sua aflição; todavia, daquilo que
ameaça e julga a Igreja, tu não te livras. Aquilo que tu és, somente o és na
medida em que esta mesma coisa [esta aflição e culpa] agora te livra de tua
[própria] exaltação!
630
11, 20-22
[Aparentemente] não pode ser de outra forma [à vista do discurso que tão
freqüentemente ouvimos]: é preciso proclamar que nós, (sim, nós e hoje
mesmo!) vimos a Deus; fomos arrebatados por ele, o compreendemos, o
experimentamos em nossa vida; comprovamos, testemunhamos e ampliamos o
seu Reino; enriquecemos nossa existência e [tomamos] a decisão. Abandonamos
os caminhos antigos, quebramos as velhas lousas, vencemos o “homem de
ontem”, derrubamos os ídolos que servíamos antes do “grande acontecimento”!
Por isto, aquela maneira de dizer, [aquele discurso] pode, talvez, ser qual
analogia da verdade substancial se, ao menos, tiver algum sentido e não for
apenas, desde o seu começo, ledo engano.
Por que não haveriam os “de fora” de entoar o seu “hino da temporalidade”, [o
hino] “da alegria de viver”, como hino de louvor a Deus?
Porém, “eles foram quebrados pela sua incredulidade; tu porém estás onde te
achas, pela fé”.
[ou teria], acaso, o ramo bravo (com respeito à raiz!) sobre o ramo legítimo que
foi cortado?
11, 21-22
Fé não é alguma coisa (como por exemplo “devoção” ou piedade) de que a gente
possa gloriar-se ou que alguém possa exibir e contrapor a Deus e aos homens ou
então pelo que alguém possa ensoberbecer-se. A fé brota sob temor e tremor por
Deus ser Deus; o que não surgir desta forma não é fé mas incredulidade e
fundamenta a condenação.
Certeza de salvação (se esta duvidosa expressão puder ser empregada!) não é
propriedade de alguém que a pudesse trazer a campo contra (ou também a
favor!) de alguma Igreja. — Não pode haver incompreensão mais terrível dos
Reformadores. É Deus que decide e sua magnanimidade é semelhante à sua
severidade; (tanto a magnanimidade como a severidade!) se renovam dia a dia:
contemplai-as pois! A eleição pela graça vale! “Certeza de salvação” sem a mais
restrita dupla predestinação, certeza de salvação segundo a interpretação que lhe
dá o protestantismo mais recente, é pior do que gentilidade!
“O espírito servil de Hagar se exalta quando recebe alguma coisa, mas este é o
caminho da expulsão” (Steinhofer). Agora, pois, é necessário lembrar que o
discurso já tantas vezes proferido contra a Igreja pelos que “estão de fora”, na
verdade, foi sempre o sino que anunciou uma nova Igreja que, [todavia,] nunca
precisou esperar muito para sentir a aflição e a culpa da antiga e que logo se
reuniu com esta, entre os ramos quebrados.
“Porque se Deus não poupou os ramos naturais, também não poupará a ti. Vê a
bondade e a severidade de Deus; a severidade para com os que caíram; para
contigo, porém, a bondade divina, isto é, se tu te conservares nessa bondade; se
não também tu serás cortado.
Precatemo-nos mais dos “leigos” que exibem sua laicidade e dos filhos deste
mundo que se mostram conscientes e felizes de sua mundanalidade, do que de
todos sacerdotes.
632
11, 23-24
Aqueles “de fora” que são realmente eleitos, não darão semelhante senha.
O genuíno eleito que está fora da Igreja evita a linguagem de vitória”.) Vs. 23 e
24 E também aqueles, se não insistirem na incredulidade, serão enxertados. Pois
Deus é poderoso para reenxertá-los. Pois se tu foste tirado da oliveira brava que
é segundo a tua natureza e contra tua natureza foste enxertado na oliveira
nobre, quanto mais estes, com naturezas semelhantes, serão enxertados em suas
próprias oliveiras!
— Quem és tu, ó homem, que assim interrogas a Deus? Acaso já não aprendeste
que os seus caminhos não são os nossos caminhos e os seus pensamentos não
são os nossos pensamentos?
633
O Alvo
Porque ele é Deus e para que os homens vejam! Vejam, e voltem ao Senhor.
Ora, é para isto, para que o gentio veja e receba a mensagem da eleição divina,
que Deus endureceu a Israel fazendo dele o instrumento, dócil ou não, nas suas
mãos.
Lembremo-nos desta outra parábola; Jonas não quis ir a Nínive; todavia Deus
não se sujeitou aos caprichos do profeta antes sujeitou-o e a cidade foi salva.
Deus não precisa que o homem “queira” obedecer ou esteja pronto a servi-lo.
Deus determina. Israel foi nomeada “nação sacerdotal”: “Tu serás uma benção
‘e’ em ti serão benditas todas as famílias da terra”.
Mais feliz teria sido Jonas se houvesse partido de coração alegre, para a sua
missão; mais feliz seria Israel se não houvesse tropeçado em Cristo Jesus. Mais
depressa ter-se-ia arrependido Nínive e mais cedo alcançariam os gentios a sua
eleição; Jonas não teria sido lançado ao mar e Israel não teria sido, parcialmente,
endurecido. Mas Jonas, do abismo, clamou ao Senhor e, de Sião virá o libertador
de Israel. Então raiará a aurora do dia glorioso de Jesus Cristo e se reunirão ao
Rei da glória os eleitos de Deus. Israel e os gentios; os de fora e os de dentro da
Igreja. Aleluia.
Assim como a Igreja somente se compenetra de sua culpa e sente a sua aflição
quando se defronta com a santidade de Deus; assim como a Igreja não tem em
quem depositar sua esperança se não em Deus e em Deus somente, assim
também o seu objetivo — o seu alvo — é “apressar o dia glorioso em que os
remidos todos se reunirão”; é apressar a plenitude dos tempos — a segunda
vinda de Cristo — o que ela só consegue em Deus e por Deus. Nele, por ele e
para ele são todas as coisas.
onde ela terá deixado de ser — porque o seu Santuário será o próprio Senhor dos
céus e da terra: será Deus. A Igreja visível a “Igreja de Esaú”, só pode alcançar o
seu objetivo pela esperança que é sustentada pelo firme fundamento das coisas
que se não vêem: pela fé! Por isto, o alvo está posto na compaixão de Deus. O
alvo está posto na compaixão de Deus porque, na realidade, a ansiedade 634
O Alvo
11, 25-27
Vs. 25 a 27 Porquanto eu gostaria, irmãos, que este mistério não vos passasse
desapercebido — e vos emocionásseis em vossos eventuais pensamentos: o
endurecimento veio parcialmente sobre Israel, até o advento da plenitude para
os gentios. E nestas circunstâncias todo Israel será salvo, conforme está escrito:
O Libertador virá de Sião e suprimirá as impiedades de Jacó e esta será a
aliança com ele, estabelecida por mim: eu retirarei os seus pecados.
e “a” Sião ou “para” Sião; segundo Beza — é o A. quem o diz — teria havido
descuido de algum escriba ou Paulo teria usado apenas a abreviatura da
preposição original. Barth porém conclui que a despeito da firmeza e da clareza
da exposição de Beza e também apesar de todos (ou aparentemente todos)
comentaristas concordarem tacitamente com essa explicação, ele (Barth) não se
sente à vontade para acompanhá-la simplesmente e acha que deve colocar essa
interpretação, pelo menos, em dúvida; diz ainda que Calvino tinha razão ao
observar que APTIUS AD PROPOSITUM QUADRABAT LOQUUTIO, QUA
UTITUR PROPHETA. Se a preposição conforme transcrita for Paulina 635
11, 25
O Alvo
“então lhe precisa ser feita justiça na exegese”. É o que o A. tenta fazer na
exposição que segue].
Também a situação entre o homem e Deus, conforme ela se situa sob o ponto de
vista da Igreja, é “MISTÉRIO”.
636
O Alvo
11, 25
tica final.
[Ou, em outras palavras, “o endurecimento veio para parte de Israel, até que a
totalidade dos gentios entrasse”].
(II, 36). É Deus que torna inevitável a tarefa que a Igreja impõe a si mesma.
Ele [Deus] é a grande impossibilidade que inviabiliza essa tarefa. É a ele (Deus)
que [justamente nessa tarefa] a criatura humana fica devedora. É Deus que
aperta o ser humano de todos os lados como se fora um grampo de aço e 637
11, 25
O Alvo
que assim se revela ao homem (se dá a conhecer) como o único Deus, como o
que está além [do outro lado] da culpa e da aflição; [dá-se a conhecer como] o
alvo [da criatura neste mundo e, quiçá no além].
O mesmo Deus que elege Saul, condena esse Saul para eleger Davi. Por que?
Porque ele é Deus! “Minha alma está calada perante Deus, que é meu auxílio”
[Sal. 62, 1]. É justamente esta obra inaudita que é divina. Obra ordenada
[mandada] e mansa [silenciosa, calma, pacífica] em vista da qual se pode e se
precisa ter esperança [porque ela se impõe drasticamente].
Fora essa obra menos inaudita não seria divina e à criatura humana res-taria algo
mais do que permanecer silenciosa e ter esperança.
A criatura (na sua qualidade de ser humano) não pode conhecer a Deus; os
homens não [o] verão com os olhos que vêem nem [o] ouvirão com ouvidos que
ouvem; “é inútil todo o humano querer e buscar; inúteis são as ponderações e os
anseios dos homens. O ponto decisivo se perde [sempre] e precisa ser perdido. A
criatura não chega ao arrependimento, nem deve chegar a ele, por causa do
arrependimento verdadeiro e, “mesmo que tentem abocanhá-lo, como o cão à
mosca, ele foge sempre”. (Lutero).
O Alvo
11, 25-26
Naquela Jerusalém onde não haverá templo, [não haverá santuário porque o seu
santuário é Deus e o Cordeiro], os gentios salvos [as nações da terra] andarão à
luz da glória de Deus e do Cordeiro [que é sua lâmpada].
Conhecendo este alvo e este fim, vale a pena conservar as vistas voltadas [em
firme esperança] na desesperançada realidade do endurecimento de Israel; vale a
pena permanecer em silêncio e ter esperança.
ção só podem ser esperadas pela criação da nova criatura mediante a revelação
de Deus; [esta nova criatura] então, invisivelmente, entra no lugar da “velha”
“nova”, por ela sofre e por ela espera. A criatura velha é a prefiguração “daquele
que há de vir”. (5, 14).
Esta “nova criatura” vindoura, salva pela revelação de Deus, justificada e
vivificada, constitui junto com os eleitos de Israel, a gentilidade eleita em Cristo.
Também aqui, achamos que não se trata de grandeza histórica, de certa soma de
indivíduos anímicos, nem de conscientes ou inconscientes “cristãos gentílicos”.
O Homem Novo — “Jacó” — não pode ser caracterizado mais claramente como
a pessoa criada por Deus do que mediante o contraste com seu irmão mais velho
— “Esaú” — este na qualidade da pessoa que “ouve” e “fala”
a Palavra de Deus.
Não se pode expressar mais claramente que a pessoa que ESCOLHE a Deus,
precisa dar lugar à pessoa ESCOLHIDA por Deus. Isto é o que precisa ser dito e
ouvido. Este é o sentido da dupla predestinação; este é o mistério de Deus e o
alvo de sua sempre reiterada e preservada liberdade.
639
11, 26
O Alvo
Isto vale para todo Israel, para a totalidade da Igreja, para cada Igreja; isto é a
prefiguração daquilo que é vindouro, é o cumprimento da profecia, é o canal ao
longo do qual jorra a água viva da revelação.
A Igreja assim dobrada (assim humilhada), pode e deve assumir o seu tema de
fronte erguida e a Igreja perdida se tornará a portadora da mensagem da
salvação.
640
O Alvo
11, 26-27
A profecia do “segundo” Isaías sobre o servo de Deus que as nações devem
ouvir surgirá então e terá cumprimento. Onde a palavra da Cruz for reconhecida
e aceita como sendo a impossibilidade divina que se opõe a toda carne, aí
também se reconhece que Cristo ressurgiu, e sua ressurreição vale! Aí se toma
[esta realidade] como a possibilidade de Deus em espírito e em verdade.
da “Nova Jerusalém”].
[Talvez seja oportuno lembrar aqui que Barth quer dar ênfase ao de Sião, como
origem, como procedência. O Libertador será alguém “natural” de Sião,
originário de Sião, conforme também escrevem as demais versões que temos
usado como referência diferindo, portanto, do texto análogo, de Isaías, porém
coincidindo com a redação do Salmo 14, v. 7. É interessante notar que Sião
simboliza a família real” de Davi e, também, a Igreja de Deus.]
[uma criatura] a rejeição foi sobrepujada e tragada pela ELEIÇÃO. Ele vem de
Sião; de cima; do alicerce invisível da Igreja do qual procede, também, a sua
rejeição; vem da glória do Trono de Deus; com ele [Cristo] estão a divindade e o
poder da realeza; a criação é a sua manifestação e esta jamais acontece [em outra
forma] porque — em todos os tempos — ela é mistério, supressão, fundamento e
eternidade. É também por isso que a sua obra é inaudita: o afastamento das
pecaminosidades de Jacó; a remoção do invólucro de tudo o que é impossí-
Estamos novamente no limite das palavras humanas e, por isso, paramos; mas
641
11, 28-32
O Alvo
Precisamos agora tentar expor o tema dos três últimos capítulos [IX, X
e XI] nos termos os mais precisos, na forma a mais exata, que nos for possível.
Vimos que a “Igreja” é uma realidade ambígua. Nela vêm à tona toda a
dubiedade e toda a incerteza da natureza e da cultura dos homens. Na medida em
que, sob o ponto de pragmática humana, o Evangelho de Cristo, de um lado, for
contraposto à obra da Igreja, do outro, a Igreja se destaca, indubitavelmente,
como o lugar onde a inimizade do homem contra Deus vem a público; e o lugar
onde a indiferença, a incompreensão e a resistência humana encontram a sua
forma mais sublime e também a mais ingênua. A Igreja é, [por assim dizer], o
“ponto morto” onde nem mesmo a arrancada mais violenta produz o mínimo
movimento [útil] ainda que esta arrancada se julgue movida pela maior força
divina que se possa imaginar.
A criatura piedosa que a Igreja cria, desenvolve e produz e que, com todo seu
conhecimento (de Deus e de sua lei e mais ainda, com todas) suas obras e suas
orações [se considera] justificada, parece ser, de alguma forma, o último
obstáculo forte e inconquistável deste lado da barricada.
* [Em nota de rodapé o A. diz que “já não pode” concordar com a supressão
desse AGORA; diz ele que esse advérbio pertence a este lugar por força de
tensão escatológica quase insuportável pois para o ENTÃO do v. 30 este
segundo AGORA do v. 31 é surpreendente. A R.S.V. suprime o segundo
AGORA mas anota que escritos antigos o incluem. A Versão Sinodal Francesa
escreve, “por sua vez”].
642
O Alvo
11, 27-32
Aliás, tudo o que o ser humano empreende para se proteger [para se defender],
surge acumulado, — maciçamente concentrado — nesta criatura
Todavia, é também por causa da existência de tal tipo de pessoas, que tem lugar
a possibilidade indireta do perdão e da compaixão divina. [Abre-se o caminho
indireto da graça e do perdão]. O mensageiro desta via indireta, a testemunha do
perdão, o vaso desta compaixão é a criatura que está em oposi-
ção [à Igreja]; é a criatura que está de fora, que é do mundo; é o gentio na total
evidência de sua carência, na sua nulidade, no seu desvalimento.
Na Igreja se torna visível a terra de ninguém, a zona morta entre duas forças que
se opõem, pois aí o progresso das realizações humanas, ainda que se considerem
investidas de poder divino é, finalmente, bloqueado.
“Toda a piedade que a Igreja encoraja e atinge, toda sabedoria, trabalho e oração
com que ela pretende estar justificada, são amontoados de maneira a formarem
poderoso obstáculo deste lado da barreira que separa Deus e o homem. O
homem de Igreja, armado até os dentes, reúne e focaliza em si tudo quanto os
homens construíram para sua defesa contra Deus. Daí, a purificação do Templo!
Também daí procede o abandono, por inútil, de toda conceituação de algum
caminho direto entre Deus e o homem. Por isso, precisamente ao homem de
Igreja, se abre a possibilidade de um caminho indireto: o caminho do perdão e da
graça de Deus. É neste ponto que, no horizonte, surge o ‘outro’
11, 28
O Alvo
da Igreja, anuncia o caminho indireto; ele aparece ante nós em visível pobreza,
evidentemente abandonado e sem proteção. Ele não é obstáculo. Nele se faz
conhecida a situação entre Deus e o homem conforme ela é, pois nele a justiça
forense de Deus está revelada em toda sua glória. Tendo Deus resolvido revelar
sua glória e sua misericórdia neste ‘outro homem’ segue-se que aqueles que
personificam o propósito e a realização da Igreja, deste lado da barreira,
precisam estar como os INIMIGOS DO EVANGELHO — POR AMOR (por
causa) DE VOS. O pecado precisa abundar para que a graça superabunde”.
lo porque Deus é Deus. Não compete a nós, — seres humanos — perguntar por
que, como e quando.
O que parece certo é que Deus se agrada da fé singela, simples, sem pretensões a
méritos e a recompensas; sem vantagens de qualquer espécie. Deus retribuirá a
cada um segundo suas obras, mas para nossa salvação — para “agradar a Deus”
— de nada valem elas, nem NOSSA ascendência, NOSSA grei, NOSSO saber,
nem mesmo a fé tem algum valor quando por ela nos candidatarmos à
justificação divina, pois então já não será singela e simples. Este é, todavia, o
risco do Homem de Igreja, clérigo ou leigo: a Presunção. E o “gentio” que, —
Será então necessário ser GENTIO para alcançar o Reino dos céus ou será
somente pelo exemplo dele que o CRENTE aceitará VERDADEIRAMENTE a
Cristo?
Não, pois Deus não se deixa levar de respeitos humanos; se assim fôra Deus não
seria o Deus dos judeus e TAMBÉM dos gentios mas somente o Deus dos
gentios. Porém Deus é Deus para ambos. Todavia, a sua revelação é pri-644
O Alvo
11, 28
meiramente para o judeu, para Israel, para o homem de Igreja, se este não se
materializar como Esaú, quiçá procurando valer-se do seu direito nato de
primogenitura; não se ensoberbecer como Faraó, confiando em seus bens
materiais e seu poderio real; não buscar para si uma lei de justificação conforme
o
Todavia, onde estaria a gentilidade que não fosse solidária e una com Israel,
nessa abundância do pecado, nesta “inimizade” [com Deus]?
Ora, desde que aqueles que não são justificáveis, que não são salváveis,
[isto é, aqueles assim considerados por serem gentios] têm, [todavia] a promessa
divina [e apesar da] totalidade de sua desobediência nela estão inteiramente sob
a misericórdia de Deus, precisam [agora] honrá-lo (“por causa dos Patriarcas”,)
[isto é,] pela fé que teve Abraão, o gentio — [a saber, o Abraão de antes da
circuncisão], é [portanto] evidente que estes tais estão agora “dentro” da Igreja
— sim, justamente eles são os “amados de Deus”; o [antigo depositário da
Promessa] que como homem religioso [busca para si uma lei de justificação e] se
opõe a Deus, fica agora “sacrificado” e abandonado dentro da Igreja, [mas na
realidade fora dela], dando lugar à justificação forense dos gentios.
A Igreja é, portanto, a comunidade dos que buscam o perdão e que, por isso, são
santos; dos perdidos que, por serem tais, são salvos; dos que estão 645
11, 28
O Alvo
morrendo e, por isso, são vivificados. É assim que na aflição e na culpa deste
homem da Igreja, — neste homem que conhece, que trabalha, que ora, — reú-
(3, 3). “A palavra de Deus não falha” (9, 6). “Deus não rejeitou o seu povo” (11,
2).
Mais verdadeiro do que a razão que têm os “de fora” sobre os de dentro, mais
verdadeiro do que a falta de razão em que estão os “de dentro” com rela-
ção aos de fora, mais verdadeiro do que toda pragmática invisível que pareceu
resultar dessa oposição entre a Igreja e o mundo, é sempre o tema [o assunto]
ção dos eleitos da mesma maneira que, em contraposição, [esses dons] não
podem ser comprovados senão pela eleição dos rejeitados pois, invisivelmente,
uns e outros são a mesma coisa em Deus.
[A tradução inglesa escreve: “A rejeição dos eleitos não destrói seus dons e sua
vocação que são tão confirmados por essa rejeição quanto pela elei-
ção dos réprobos. Ambas essas operações são, invisivelmente, uma e a mesma
coisa em Deus”.]
646
O Alvo
11, 28-31
— qualquer que seja a Igreja — e fica frustrada quando a Igreja não corresponde
a essa ansiedade. A missão que tem lugar, [que se impõe] em toda parte onde as
pessoas têm consciência desse desejo do mundo, é irrevogável e quem se
envolve no problema é arrastado para dentro da catástrofe de toda humanidade [e
passa a participar intensamente de sua ansiedade e aflição]. A possibilidade que
se descerra onde e quando o ser humano reconhece que sua aflição lhe vem da
parte de Deus, permanece aberta e, sem ela, não haveria esperança. Outra coisa
não sabemos!
“Assim como vós então fostes desobedientes a Deus, todavia agora achastes
misericórdia mediante a desobediência deles, assim também eles agora
tornaram-se desobedientes mediante a misericórdia que vos foi concedida, para
que também eles, agora, encontrassem misericórdia”.
“Ele fala agora do estranho regulamento de Deus em sua Igreja, segundo o qual
aqueles que têm o nome e a reputação de Povo de Deus e de Igreja
[conforme o povo de Israel) são rejeitados por sua falta de fé, enquanto os
outros, que outrora não eram Povo de Deus e estavam entre os desobedientes, e
agora aceitam o Evangelho, e crêem em Cristo, passam a ser a verdadeira Igreja
de Deus e são bem-aventurados”. (Lutero).
Sim, é estranho; é coisa de que nunca antes se ouviu falar; é paradoxal a maneira
pela qual na Igreja funciona o regulamento divino.
“achastes misericórdia”, vós, os gentios; vós que estais de fora; vós que não,
tendes cura, vós que não tendes esperança! Agora os rejeitados são eleitos e
neles surge a Igreja de Jacó. Agora, no carrilhão divino, soou a sua hora. Po-rém,
como? O poder, isto é, a divindade da misericórdia que foi ao encontro deles se
comprova no seu cortante contraste com a desobediência humana; no
arrancamento dos eleitos da fila dos rejeitados; na oposição da luz às trevas.
Esta ação é divina porque ela se dirige aos desobedientes (e quem não o é?)
expondo-os e os castigando ao mesmo tempo. [Simultaneamente expõe, castiga e
se compadece e, diz o A., “é nisto e por isto que esta compaixão é divina”].
11, 28-32
O Alvo
[isto é, vem de Deus], pois ela apenas expõe no desobediente (e, mais uma vez,
quem não o é?) a sua desobediência, para atraí-lo a si.
Como haveria de ser de outra maneira senão que agora no mesmo e eterno
AGORA que aqui eleva e ali derruba e que num e noutro caso anuncia a
liberdade e a majestade de Deus) — [sim, agora,] os eleitos, [os gentios que
receberam a graça] são de sua parte a garantia para os rejeitados, [a parte
endurecida de Israel] que, tendo de carregar o fardo dos eleitos passa a ter
também o direito ao gozo da misericórdia que lhes é estendida. Este é o novo
denominador comum para toda humanidade e que se torna invisivelmente
perceptível no AGORA da Revelação.
[Para entender] o que Paulo quer dizer — (e não somente Paulo!) — quando fala
de Deus, da justificação do ser humano, de pecado, graça, ressurreição, lei, juízo,
salvação, eleição, condenação, fé, amor, esperança, quando fala do Dia de Jesus
Cristo; para saber com que sentido e em que classificação estas grandes palavras
devem ser soletradas e empregadas, é preciso que se tenha entendido esta
passagem; a sua compreensão decide sobre o sentido que lhes daremos. Esta
passagem é a medida de tudo quanto medirmos; é a balança na qual tudo será
pesado; ela é, à sua maneira para cada leitor ou ouvinte, o próprio critério da
dupla predestinação cujo sentido final ela claramente objetiva indicar.
devem ser tomadas em seu sentido literal, preciso, ainda que as pessoas inclu-
ídas no segundo “TODOS” corram o risco de serem agrupadas por Calvino entre
os que NIMIS CRASSE DELIRANT.
648
O Alvo
11, 32-36
[Convém notar que a versão inglesa escreve que as referidas palavras são
“prenhes de significado” o que não é precisamente o que o A. diz. Talvez a
analogia gráfica entre as palavras “praegnant”, alemã e “pregnant” inglesa
houvesse falseado a tradução de “preciso”, exato — que é o que a palavra alemã
significa, para “prenhe”, pleno, do vocábulo inglês.]
Nesta passagem está o objeto da fé (que, todavia, jamais pode ser “objeto”).
Aqui está a substância, (a essência) do Cristianismo (que está acima de todas
substâncias). A Igreja tem uma [só] esperança: é esta [que está expressa nesta
passagem]; não tem outra. Oxalá a Igreja se apossasse dela.
“Observai esta frase capital que condena todo mundo e a toda justiça humana,
exaltando unicamente a justiça de Deus, a ser alcançada pela fé”.
(Lutero).
(1, 16-17). Entendamos bem: apenas por ser o DEUS ABSCONDITUS o sujeito
que tem o DEUS REVELATUS por predicado, é que os lábios humanos podem
falar do conteúdo da Carta aos Romanos, falar de teologia e falar da Palavra de
Deus; não apenas “podem” mas PRECISAM.
Cuidar dessas coisas, [delas falar] com a sábia reserva de quem tem consciência
de que nada se faz com tal prática, é tarefa plena de promessas.
Ainda mais, o fato de este sujeito (o DEUS ABSCONDITUS) ter este predicado
649
11, 33-36
O Alvo
“Quem tiver esta Epístola bem dentro do coração tem consigo a luz e o poder do
Antigo Testamento”, disse Lutero, presumivelmente após cuidadosa reflexão,
porquanto — [em contraposição] — a luz e o poder do Novo Testamento
ninguém tem consigo; esta luz e este poder, como tais, não aparecem pois não se
trata de “um caso” ao lado de “outros casos”. Portanto, ninguém tem o direito
de, honestamente, achar que em Paulo, ou na teologia, falta a revelação, falta
mais positividade, falta algo mais do que a Palavra. Aquele que assim achar
pergunte, ele mesmo, a Deus por que isto não está escrito em nenhum livro,
(nem mesmo nos Evangelhos sinópticos!) e por que em lugar nenhum isto é
apresentado como obra humana; e seja grato se, possivelmente, a teologia
conseguiu estimá-lo a, realmente, dirigir-se com esta pergunta ao próprio Deus,
porquanto a invisibilidade de Deus pode ser vista quando “observada
sensatamente” (1, 20) e sua inescrutabilidade pode ser “perscrutada” nas
profundezas divinas. (I Cor. 2, 10).
ele mesmo — que habita em luz, onde ninguém pode chegar; é estar [silente e
em adoração] sempre e de novo exatamente ante a oculta profundidade de sua
riqueza, sua possibilidade, sua vida, sua glória! É estar sempre e de novo ante a
oculta profundidade de sua sabedoria, seus pensamentos, seus juízos e seus
caminhos, da trajetória que vai daqui para o além! É estar sempre de novo ante a
profundidade oculta do conhecimento pelo qual ele nos conhece antes de nós o
conhecermos; o conhecimento pelo qual ele não nos abandona — a nós, que
sempre estamos sem ele!
650
O Alvo
11, 33-36
“Quem conheceu a mente do Senhor ou quem foi seu conselheiro? (Isaías 40,
13). “Ou quem lhe deu alguma coisa que, então, ele tivesse de retribuir?”
(Jó 41, 11). [O A., entre parênteses, diz que esta passagem de Jó provavelmente
se refere ao “Leviatan-crocodilo” do v.2 do mesmo capítulo desse livro].
Ele é Deus; ele mesmo, e unicamente ele. Isto é o SIM da Epístola aos Romanos.
“Porque dele, por meio dele e para ele são todas as coisas. Sua é a glória,
eternamente. Amém”. Marco Aurélio, em suas meditações diz, quase
textualmente, o mesmo. A mesma fórmula foi transcrita num hino a Silene e até
inscrita num anel de feiticeiro. Entre outros, Filo a conhecia; no entanto, por que
o misticismo helênico que sabidamente, — conforme também o menos remoto
judaísmo, — conhecia mais ou menos tudo, não deu ênfase maior a essa
verdade? Por que não a souberam enunciar mais claramente, de forma que
causasse maior impacto, que tivesse maior expressão profética?
11, 33-36
O Alvo
Evangelho é a Palavra de Deus posta na língua dos homens e pelo seu Poder, sua
Pureza, sua Origem Divina, redime e santifica aquilo que usar. É a graça e o
milagre da inspiração divina].
Por que será que o “empréstimo” que Paulo faz se parece tão mais como sendo
original, até mesmo na planície das coisas históricas? [Todavia, aqui cabe esta
observação:] De que outra maneira mais significativa poderia Paulo terminar
este Capítulo, do que nesta forma tão altissonante, [até mesmo] atroa-dora e que
suscita tanta esperança, dizendo [com o vigor da inspiração divina e com a
certeza da fé] aquilo que outros também sabem?
“sombra de José”, está sempre à espreita para invadir o coração crente e arrancá-
lo do aconchego da graça; esta pretensão à superioridade, à retidão, à santidade,
à certeza da salvação, ao privilégio da eleição pessoal, da predestinação seletiva
e exclusiva, é o leão que ruge em volta da Igreja; aos “de fora” ele não ameaça
(enquanto não tiverem consciência de que “também eles” são eleitos); mas
tomando ciência dessa verdade eis também eles, quais os homens da Igreja,
sujeitos à tentação da importância, da convicção íntima da superioridade de seu
652
O Alvo
11, 25-36
modo de ser com relação à religiosidade dos “fiéis” e então são, também eles,
candidatos à poda do tronco ao qual foram enxertados; esta é a catástrofe que
paira sobre a Igreja e da qual ela se liberta morrendo como “velha criatura” e
ressurgindo em Cristo.
É por isto que a Igreja fala de Deus e anuncia a “Boa Nova”, pois ela
efetivamente encontrou, — vale dizer, recebeu — a revelação de Deus, Todavia,
a “nova criatura” somente pode existir ressurgindo em Cristo; ele é a sede da
Revelação.
A Parte “endurecida” da Igreja pode ver nos “de fora” a ação da graça divina; é
uma das maneiras pelas quais Deus fala e, vendo e compreendendo os caminhos
de Deus ela pode esvaziar-se a si mesma, humilhar-se e dar glória a Deus; então
poderá acontecer o milagre, cessar o endurecimento e a Igreja toda voltar à
singeleza e pureza de sua tarefa; ela estará então em condições legítimas de levar
aos de fora a mensagem da salvação, de que é portadora mas não sede; então a
Igreja pode, deve e efetivamente será a missionária para os gentios.
Todavia a Igreja não pode — e ninguém pode — dizer que está do lado da razão,
pois só Deus a tem; pretender estar “a seu lado” é jactância, é arrogância
humana; é querer ser igual a Deus. O que podemos fazer é confiar na graça e
esperar que Deus nos tome quais somos, não porque o mereçamos mas pela
mediação de Jesus Cristo.
“Combati o bom combate” porém, “sou o que sou pela graça de Deus”.
É por tudo isto que ninguém pode pretender “descrer” da Igreja; seria requintada
vaidade e absurda exibição de superioridade; equi-valeria a afirmar que
encontrou por seu tirocínio, sua acuidade, seu entendimento, um caminho mais
excelente fora dos caminhos mais apertados estabelecidos por Deus; seria a
expressão existencial do endurecimento que “vem de Deus” e vem dele por ser
ele a pedra de toque que afere a nossa atitude.
653
11, 25-36
O Alvo
— Dentro da queda do homem Edênico, sim. O homem quis e não pôde fazer-se
igual a Deus; por isso teve medo e se escondeu dele; voltou-lhe as costas;
afastou-se dele e, nesse desvario tenta achar para si fórmulas que o justifiquem e
sejam agradáveis à sua pretensão: ídolos, filosofias, teologias, liturgias, cultos,
doutrinas, contemplações místicas, louvores espúrios, “intimidade” (comunhão)
com Deus, — seus soldados, seus arautos, seus defensores, seus heróis.
Tudo para termos ligação direta com Deus, talvez até mesmo confes-sando-nos
seus servos leais.
654
A GRANDE PERTURBAÇÃO
• 12,
1- 2
- O Problema da Ética,
• 12,
3- 8
- A Base Fundamental,
• 12,
9- 15
- Possibilidades Positivas,
• 12, 16- 20
- Possibilidades Negativas,
• 13,
8- 14,
• 14,
1- 15, 13
655
12, 1 a 15, 13
A Grande Perturbação
ção o ser humano sentirá na sua “Grande Possibilidade Positiva” amando a Deus
sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo e, também, em todas
possibilidades negativas — em sua não conformação com o “presente século”
— até o “Grande Dia do Senhor” quando será exaltado e viverá; porém, será
exaltado e viverá em Deus e para Deus!
Este não é um tema abordado apenas nesta parte quase final da exegese da
Epístola aos Romanos mas, conquanto Jesus Cristo seja o único assunto de toda
pregação Paulina, em nenhuma de suas cartas — soberana e divinamente
inspiradas — deixou o Apóstolo de referir-se ao problema da vivência cristã e
dos cristãos; e o faz de forma precisa, profunda, ampla, penetrando em todo
leque das experiências individuais, cotidianas e em todos setores fundamentais
da vida — lar, igreja, sociedade e em todas situações — filhos, pais, servos,
senhores, leigos, pastores, governados e governantes. Em toda parte Paulo insta,
ensina, recomenda e exorta, mas a opção permanece adstrita à liberdade
individual de cada pessoa.
Paulo foi obediente à visão celestial e dócil à inspiração divina. Barth ouviu-lhe
a voz e a fez ressoar à essência do protestantismo segundo o viu em seus dias e
conforme me parece ser ainda hoje o traço característico dos homens
verdadeiramente evangélicos deste país, aqueles que não se deixaram fascinar
pelas sereias do “Evangelho Social”, da tolerância abdicante e da comodidade do
sincretismo religioso. São homens e mulheres tementes a Deus; acatadores das
autoridades; pacientes com os que erram e tolerantes com os fracos;
respeitadores de pais e filhos; fieis no lar e na Igreja; bons patriotas e bons
cidadãos do mundo; bons servos e bons patrões; prudentes no falar, morigerados
nos costumes, sal da terra que procuram remir porque os tempos são maus. Eles?
Sim, eles, porém não por alcance deles e por seus méritos, mas pela graça de
Deus: livres das peias do mundo mas servos de Cristo para servir!
656
A Grande Perturbação
12, 1 a 15, 13
— Sim, são tudo isto. (Não por eles — mais uma vez o dizemos — mas pela
graça de Deus é que são o que são!) Por isso trazem também, sob seus pés como
lastro e sobre seus ombros como carga, a GRANDE TRIBULAÇAO: o
privilégio e a responsabilidade de serem trabalhadores na grande empresa divina,
a obra da FÉ despertada pela FIDELIDADE de Deus. É a mordomia cristã a que
Paulo nos exorta fundamentado nas “misericórdias divinas” de cujo Evangelho é
o mensageiro divinamente credenciado. (Atos 9, 15).
Sob o título acima Barth faz a exegese dos primeiros dois versículos do Capítulo
XII demonstrando que em seu relacionamento com Deus o homem é motivado
inteiramente pela revelação da graça. É a graça que constrange; ela perturba
inexplicavelmente, se assim podemos dizer, a criatura humana quando e
enquanto está entregue às suas inclinações naturais, que são conforme o padrão
do mundo. É pela graça de Deus e com fundamento nessa graça que Paulo se
sente autorizado a exortar os romanos destinatários de sua carta, a que ofereçam
seus corpos a Deus em sacrifício vivo, santo e agradável. Assim se estabelece a
conduta cristã, a nova ética estruturada nessa renúncia.
657
12, 1-2
O Problema da Ética
“Exorto-vos pois, irmãos”. O que mais pode significar esta nova repetição do
Problema da Ética senão a grande perturbação que a própria idéia de Deus
representa para toda atividade humana [já que essa idéia] acaba,
necessariamente, ficando em desacordo com todo discurso que se proferir a
respeito de Deus, de vez que esse discurso será sempre de pessoas insensatas e
que perdem a perspectiva da questão? (E quem haveria que estivesse livre dessas
deficiências?) As considerações que se fizerem sobre a ética [que Deus
apresenta] defrontam-se com o percalço da falta de objetividade do tema. [O
original diz textualmente: “O problema que a ética representa está na recordação
e no encareci-mento de que o assunto de tal dissertação não tem objetividade”].
Não tem acima dele ou por trás dele, um mundo; não se apóia em algo
metafísico, nem em algum tesouro de experiências espirituais; tampouco se
refere a alguma vastidão transcendental. O que há, o que existe, é a nossa vida
dentro da nossa conhecida 658
O Problema da Ética
12, 1-2
natureza e cultura, vida que também aqueles que proferem semelhante discurso
precisam alimentar [intelectualmente] a cada instante, vivendo — por assim
dizer — da mão para a boca, [precariedade] em que, na realidade, sobrevivem de
uma ou outra forma.
Não pode haver erro maior do que supor que esses conceitos pudessem ser
formulados (e deduzidos) independentemente do ambiente em que vivemos e
que não fossem relacionados com as coisas concretas de nossa vida cotidiana.
Por isto, a quem quiser bem compreender a “Epístola aos Romanos”,
recomendamos insistentemente que leia toda sorte de literatura mundana,
notadamente os jornais.
Cogitar, pensar seriamente, é meditar sobre-a vida e, por isso e nisso, é meditar
sobre Deus. Cogitando sobre a vida o pensamento precisa percorrer intricados
caminhos e vagar pelas mais remotas paragens, pois a vida transcorre em
mobilidade e tensão caleidoscópicas, A vida não é simples, nem direta nem
definida; inequívocas, objetivas, singelas, são apenas algumas suas aparências
superficiais mas nunca e em nenhum lugar, a sua profundeza e a sua conjuntura.
Nunca é simples a realidade de cuja existência a aparência fala.
O Problema da Ética
Estas interrupções e hiatos caracterizam todo pensamento sério que, por isso
mesmo, não pode escapar à crítica de ser intelectual, [teórico e sem maior
objetividade].
Se não pudermos negar que é absolutamente necessário criar uma ética especial
condizente com a dogmática Paulina (o que temos tentado demonstrar), [se não
pudermos rejeitar a necessidade de se criar essa ética diferente]
sob a alegação de que isto seria supérfluo e nem faria sentido então,
evidentemente, temos de nos conformar e aceitar a grande perturbação que o
problema da ética representa. A existência desse problema lembra-nos que não é
o ato de pensar que satisfaz a plenitude das exigências concretas porém, sim, a
sua 660
O Problema da Ética
12, 1
“EXORTO-VOS, IRMÃOS!”
“Pelas misericórdias de Deus” eu vos exorto. Portanto, aqui não se abre novo
livro; nem mesmo se vira a página. Aqui não se recomenda alguma “prá-
661
12, 1
O Problema da Ética
Eis que nessa cogitação, analisando a essência do mundo, nos deparamos com
essa tremenda interrogação ética dependendo de resposta que, todavia, nos é
proposta em CRISTO, consubstanciando em si “as misericórdias de Deus”.
O Problema da Ética
12, 1
somos forçados a voltar ao ponto de onde começamos e formular mais
objetivamente, até mais substancialmente, sua essencial impossibilidade de
solução porquanto, finalmente, elas definem o mundo qual é, sem serem, de
forma alguma, deprimidas em coisas deste mundo”.
Notar que o original não fala em “teoria” e “prática” da religião; parece-me que
o A. quer dizer que nada se inventa. A exortação não é para seguir teoria nova,
antes é feita em nome das há muito prometidas e conhecidas misericórdias de
Deus, as quais o A. passa a enumerar; semelhantemente (e agora na conclusão
do pensamento), não se trata de formular mais precisamente a nossa questão,
porém de perceber como as “misericórdias de Deus” despertam em nossos cora-
ções a consciência de que CRISTO é a resposta que Deus tem para os homens.
Entendo ser isto o que Barth está dizendo — [ou melhor, o que Paulo diz.!)].
A sede dessa exortação não pode ser qualquer dessas elevações humanas donde
bem intencionados mestres-escola ditam preceitos de moral ou, donde profetas
— vocacionados ou não — lançam raios dardejantes e donde pretensos ou
verdadeiros mártires cuidam de derramar seus ais sobre a humanidade. Se essa
sede for uma Igreja, certamente será uma Igreja consciente de sua extrema e
indestrutível solidariedade com este vale de ossos secos; [será uma Igreja] que
não terá outra esperança se não Deus.
Quando se trata de ética, nada mais é possível senão a crítica do caráter todo,
isto é, será necessário fazer um movimento profundo, básico, possivelmente
rotação angular de 3600 [para varrer todo campo em derredor], e examinar cada
um dos pontos da problemática de nossa vida.
Ao se proceder a critica da totalidade do caráter, apreciando tanto os seus traços
negativos como os positivos, é necessário manter a máxima discri-
ção, não para evitar juízos por de mais severos (conforme se poderia supor) mas,
justamente ao contrário, para não ser excessivamente complacente deixando de
usar da indispensável radicalidade.
O clangor que nos vem dos pontos altos do mundo, o sonido que reboa desde as
torres da Igreja triunfante nunca é e jamais será a “grande tribulação”
663
12, 1
O Problema da Ética
[É preciso ter sempre presente em nossa mente que todo clamor, toda crítica,
toda lamentação que se fizer ao analisar os caracteres do mundo, quer sejam
típicos quer sejam excepcionais — tanto negativos como positivos — diz
também respeito a nós mesmos, talvez até com desvantagem para nós; por isso,]
toda pessoa que, ao pretender alçar sua voz para criticar a outrem, não se sentir
concomitantemente [atingível e atingida pela sua própria critica,] anulada,
liquidada, que se cale na comunidade — [vale dizer, na Igreja, pois ou não tem a
necessária radicalidade ou o seu pronunciamento é irrelevante].
Misericórdia quer dizer não JULGAR porque [aquilo que é ou poderia ser objeto
de julgamento] já foi julgado.
consciência!).
664
O Problema da Ética
12, 1
Não pode haver exortação onde, quem exorta, já traz na algibeira o es-boço de
algum programa ou de algum instrumento de acusação.
absoluto que dão ao discurso, tem a voz crocitante, na realidade tem a voz morna
e pouco convincente dos que se abrigam ao titanismo de bons e maus e, portanto,
estão sob o juízo a que toda prosápia está sujeita e do qual, eles mesmos, dão
testemunho, sempre de novo.
A exortação somente pode existir [e surgir] onde o direito do ser humano
consiste e está baseado na realidade de que “esta” criatura — [qualquer que seja,
tanto aquela que exorta como a exortada,] — não tem razão e, portanto. [a 665
12, 1
O Problema da Ética
Eis que agora, ao encontro [deste homem, nosso conhecido] vem o “homem
novo”, para o requisitar, [para o convocar] fundamentado “nas misericórdias de
Deus”; é justamente esta fundamentação, a origem e o sentido deste encargo
ético [para o qual o “homem velho” é requisitado,] que confere seriedade à
convocação e, não apenas seriedade mas, também Poder. Ante semelhante
fundamentação o homem não pode recuar. Obediência apenas interior,
“pensamento” são nada mais e nada menos que a Nova Criatura em Cristo, em
quem [e de quem] se origina a grande perturbação da qual a velha criatura deste
corpo não pode esquivar-se. É nesta perturbação que se desencadeia a vista da
graça e das “misericórdias divinas” — misericórdias que pessoa alguma mereceu
e jamais alguém merecerá, — que se delineia e se fixa o relacionamento do
homem com Deus, relacionamento que demanda obediência absoluta e
constrange a obedecer. Esta perturbação é a crise a que está sujeita toda criatura
e constitui sua única esperança, levando-a da morte para a vida; nela está a ÉTI-
CA da tensão escatológica sem a qual não há ética.
666
O Problema da Ética
12, 1
Não há engano mais absurdo do que esperar (ou temer) que a graça pudesse
transformar-se em leito de repouso para “teóricos” e místicos (6, 15-16).
Semelhantemente, na defesa do homem com justa razão preocupado com sua
vida (moral!), não há tentativa mais traiçoeira do que, sob o pretexto de evitar
esse engano do luteranismo, preferir fundamentar a ética em conceitos
orientados para objetivos deste mundo, em bens e em ideais, em vez de tomar
como referência o conceito da negação decisiva de todas finalidades de origem
humana pensando, antes, no perdão do pecado [que é a graça de Deus].
“ao corpo” os “direitos” que [segundo a natureza humana] lhe são próprios.
Fora da graça não há qualquer forma ou maneira de despertar verdadeiro
dessossego ético na criatura e o ataque absoluto que contra essa criatura é
desferido — e que constitui o sentido de toda ética, — somente pode ser desfe-
chado se o ponto de vista da graça for mantido firmemente em todas instâncias,
“como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: vosso culto objetivo a ele”.
Se a própria pessoa for o objeto dessa renuncia, dessa abdicação, dessa oferta,
então o seu sacrifício não pode ser senão o absoluto reconhecimento da
questionabilidade e do confisco que Deus manda a seu encontro de todos os
lados; é o sacrifício que a pessoa tem de fazer (permanentemente) no seu sempre
renovado e nunca cabalmente realizado retorno à misericórdia e à liberdade de
Deus; é o SACRIFÍCIO cuja dureza e grandeza melhor esclarecemos e
apreendemos meditando sobre a dupla predestinação, conforme capítulos IX a
XI.
667
12, 1
O Problema da Ética
Em primeiro lugar, a exortação reconduz-nos àquele em cujo nome — e em
nenhum outro — é possível exortar. O problema da ética é idêntico ao da
dogmática: SOLI DEO GLORIA! Todo tratamento ético secundário sobre o
qual, mais adiante, teremos algo a dizer, precisa estar ligado a esta ética
primeira, precisa proceder dela e estar em correlação com seu caráter” vivo,
santo e agradável”, como sendo o “bom” que está à nossa disposição para o
extremo
Nisto tudo é preciso observar bem que SACRIFÍCIO não é alguma transação
humana mediante a qual a vontade de Deus se muda e se faça em função da
instrumentalidade de quem se sacrifica. Sacrifício é antes de mais nada, uma
demonstração em honra a Deus, por ele exigida (pois demanda a honra) mas, em
si mesma é ação humana, tão boa ou tão má quanto qualquer outra. (É Deus
quem faz a qualificação, segundo sua onisciência, sua sabedoria, sua retidão e
sua misericórdia, na conformidade do que houver no íntimo do coração de quem
faz o sacrifício). Deus permanece sendo somente ele, Deus, mesmo ante o maior
sacrifício e a vontade divina se cumpre segundo os seus imutáveis desígnios.
(Isto precisa ficar bem claro a toda sorte de místicos e sonhadores, a todo
pretenso condicionamento da vontade divina por promessas, louvor e até mesmo
orações; todavia, o que dizemos, como homem o dizemos; vemos na promessa, a
superstição; na gratidão pela tragédia o desvirtuamento da graça divina (“Deus
meu, Deus meu, por que me abandonaste?”), na reza a formalização do
relacionamento do homem com Deus; e na oração não raro —
a sonora peça oratória do ilustre fariseu. (“Graças te dou, ó Deus, porque não sou
assim”...). Todavia o ESPÍRITO corrige e, transformando, torna perfeita a nossa
suplica: “Pedi, e dar-se-vos-á.”
Somente a oração?
Somente uma criança poderia julgar uma passeata de 19 de maio como sendo o
movimento trabalhista do qual a passeata é mera demonstração, o que não
impedirá que alguns operários conscientes da movimentação da classe, dela
participem e até a considerem eminentemente necessária. Ora, o sacrifício
Não há nenhuma orientação da vida [mordomia] por mais alta que seja a
qualidade de sua ética, mediante a qual as vontades divina e humana coincidam:
na 668
O Problema da Ética
12, 1
A própria pureza da ética exige que não haja qualquer mistura entre o céu e a
terra (e nisto, também, concordamos com Kant), porquanto a pureza da ética está
na sua origem, que precisa ser preservada, a despeito de toda pressão romântica,
referindo-nos a Deus como Deus e ao homem como homem.
é questão que temos de entregar totalmente a Deus. Ele aceita e rejeita. Ele
retribuirá [o original diz “pagará”] a cada um “segundo suas obras” (2, 6) [isto é]
segundo o que Deus escolher [OU acolher nessas obras] e a avaliação que lhes
der.
[tanto aquelas colocadas na ética básica quanto as daí decorrentes ]. somente têm
eventual valor se, em si mesmas, não forem mais do que meros apelos [ou
oferendas] à aceitação ou à rejeição divina e, como tais, nunca pretenderem ser
mais do que analogias (parábolas) e testemunhos, ficando até mesmo esta 669
12, 1
O Problema da Ética
Tudo quanto se puder designar como dever, virtude e bem, está sobre o fio desse
agudo gume; está suspenso por esse tênue fio que decide se a criatura que as
pratica está realmente pronta ao sacrifício — isto é, se ela quer realmente
[sobrepujar suas próprias inclinações, seus interesses e suas regalias e, tudo]
sacrificando, demonstrar que dá a honra a Deus. O que for além disso [a atitude
que tiver vestígios de conceitos egoístas, vaidade e interesses pessoais — até
mesmo a pressuposição de estar “agradando a Deus”] procede do maligno, —
[por mais grandioso ou emocionante que seja,] ainda que fosse a santidade e a
pureza de alguma virgem martirizada.
Para quem este Deus parecer excessivamente duro, quem não quiser [ou não
puder] oferecer essa “adoração objetiva”, este que se volte para trás, pois tem
bens em demasia [Mat. 19, 16 e seguintes].
Daí vê-se porque e de que maneira a ética exigida por Deus com fundamentação
nas suas misericórdias tem de, necessariamente resultar na grande perturbação
de TODO e CADA indivíduo.
Para responder dizemos tudo, afirmando que se referem às atividades básicas das
pessoas que se sacrificam, das criaturas que não são vitoriosas, nem triunfantes,
nem têm razão (o que, todavia, não impede que tenham realmente a aparência de
vitória, triunfo e razão!).
O Problema da Ética
12, 2
podermos traçar a [eventual] linha divisória que nos separasse dele; a este
mundo também pertenceria um [hipotético] corpo astral, por simples questão de
lógica. [Possível referência aos gênios de fogo os quais povoariam o universo
segundo algumas religiões ocultistas].
O mundo [que a passagem menciona] é aquele no qual o ser humano, (com todas
suas possíveis e imagináveis projeções mundanas e “intermundiais”) continua
sendo criatura humana.
Este mundo tem determinada “postura”, determinado esquema e tem uma lei
básica que se expressa na tendência de seguir a luz (criada!), de buscar a vida e a
plenitude; busca o testemunho e portanto o que é testificado; em resumo: este
mundo segue a própria criatura, [e esta criatura, para o mundo e segundo o
mundo — e pela própria lei natural do mundo — completa-se e se realiza
plenamente e idealmente em sua materialidade absoluta, nas suas multiformes
manifestações].
Esse esforço para assegurar prazer, posse, sucesso, saber, poderio, ra-zão, para
chegar a ambicionada e [supostamente] atingível plenitude imaginada, deve ser a
obra do misterioso centro deste cosmos na medida em que o homem for genial.
(Convém aqui lembrar que a origem etimológica de “genial” sugere a idéia de
casamento, [núpcias,] e gênio — ou “genius” — é o “querido EGO”). [Mais
adiante Barth faz analogias entre “genial” e o que, em português, poderíamos
escrever “genital”, do latim “genialis”].
pio fundamental da ética [com a grande perturbação que fala] do sacrifício 671
12, 2
O Problema da Ética
Quando a obra ou a criatura nos fala em sua mais sublime beleza (Mozart!), fala-
nos em tons da mais profunda melancolia. Quem já não o sabia? Quem já não
sabia que nosso “corpo” é o “corpo da morte” (7, 24) e que na realidade
nenhuma outra atividade nos resta senão a de [tentar melhorar um pouco a nossa
situação e] “remediar” esta empresa (8, 13) (procurando fugir de sua fatalidade
material)?
[A tradução inglesa escreve, (acaso) “não sabemos que a nossa atividade não
pode, senão cessar?”. Embora o verbo empregado no original possa significar
também “parar”, “cessar”, “desligar a empresa”, ele significa “arrumar”, dispor
provisoriamente que, aliás, é a primeira definição que os dicionários dão, e que
traduzi como “remediar”; parece-me que o significado assim entendido no
original é mais profundo e vai bem com a citação de 8, 13 pois implica na idéia
de que existe, enquanto aqui estamos, a possibilidade de “provisoriamente”
abrandarmos as condições de nossa empresa (que caminha para o colapso —
para a morte), mediante o controle dos ímpetos de nosso corpo e en-tão, pela
graça de Deus, quem sabe, a salvaremos da derrocada definitiva! ...].
Quem ignoraria que essa conduta ética nos é imposta por ordenança
ria, em ligação direta com a “primária” e, por sua decorrência, sucede que “não
nos conformamos com a condição deste mundo mas, sim, na sua transformação”.
O Problema da Ética
12, 2
— (e isto também pode, em dado momento ser a mais alta confirmação da vida,
o seu (mais significativo] desdobramento!); então será o fim do mundo, a
ressurreição dos mortos; e a criatura agirá eticamente. A ética de uma atitude
está naquilo que a ilumina [e não da luz que dela acaso se esparge], porquanto
neste assunto temos razões para não nos expressarmos senão em forma negativa.
[Falamos em termos de negação, de abstenção, de renúncia, do] sobrepujamento
do indivíduo porquanto a conformação [que a ética divina impõe] não se dá
segundo o presente século mas é segundo o mundo transformado.
Portanto, resta que toda conduta humana é somente (por que dizemos
A criatura que se engaja nos mais sublimes feitos e realidades tanto pode ser
aquela sempre vitoriosa como esta outra, do sofrimento; pode ser a pessoa no
pleno gozo de seus êxitos ou a outra no duro curtimento da tragédia; tanto pode
ser a que progride de ânimo alegre como a que regride melancolica-mente; tanto
pode ser quem de tudo tira vantagem e proveito, como quem constantemente
abre mão, abdica, renuncia.
12, 2
O Problema da Ética
max temporal [se delicia em festim nupcial] com seu muito “amado Ego”.
“feitos e realidades”?
das quais irradia a luz do sacrifício porém, estes casos procedem de criaturas
[Foerster foi filósofo e pensador alemão que escreveu sobre “Ética e Pedagogia
Sexual” e Ragaz escreveu sobre “Socialismo e Ética”. O primeiro era católico e
o segundo protestante; ambos combateram o militarismo; Foerster foi livre-
pensador e Ragaz, socialista].
Perguntamos novamente: quem está livre desta crise? Onde não existe ela?
Quem há que se negue a ouvir com boa vontade, esta exortação? Quem a
rejeitaria?
Aqui todos atacam porque todos são atacados; todos têm razão porque ninguém
a tem. Não se pode imaginar um ataque mais severo às obras de Satanás do que
este, [contido na “exortação”]. Todavia, este ataque também desmo-rona
algumas obras que são consideradas plenamente divinas.
674
O Problema da Ética
12, 2
O que se pode aconselhar ou a que se pode convidar ou incitar alguém, para que
produza tais frutos?
— Sim, o pensamento.
675
12, 2
O Problema da Ética
Não só podemos mas devemos convidar a todos e instar para que se arrependam;
podemos rogar que não se esquivem da por demais conhecida crise de todos
pensamentos mas meditem sobre ela, ouvindo a Palavra divina e dando lugar a
Deus. E isto basta.
A graça basta também para a ética! Basta, porquanto a volta dada na posição da
chave indica que existe [agora] nova maneira de proceder e abre a porta a essa
possível atividade [a essa possível conduta ética] que, em primeiro lugar, já traz
em si o caráter do protesto divino contra o grande erro e possui em alto grau a
transparência que dá passagem à luz do dia vindouro.
[Esta graça divina] é suficiente para abalar o indivíduo em sua maldita segurança
[mesmo que se trate do mais presunçoso intelectualista] e então guiar o seu
destino espiritual como nova criatura em Cristo.
676
O Problema da Ética
12, 2
Tanto a ética como a lógica precisam, uma mediante a outra, ser remetidas à sua
origem, ao problema da existência; daí procede a necessidade de se tratar da
Palavra de Deus, — de ouvi-la, de comentá-la, justamente quando se tem em
vista a vida verdadeira. Porque a ética precisa voltar à problemática da vida
através da lógica e porque a lógica precisa fazê-lo através da ética, é que
precisamos voltar ao discurso, aparentemente ocioso, sobre Deus, ao meditar-
mos sobre a interrogação do que faremos. Isto se impõe porque o mundo está
cheio de encargos prementes; impõe-se por causa do acidente [e quiçá também
incidente] de rua; por causa do jornal diário, da Carta aos Romanos, do
“Paulinismo”.
Se fosse possível “fazer” alguma coisa com “atos e fatos”, conforme pessoas
apressadas levianamente supõem, tudo isso poderia ser abandonado na prática.
Porém, como vimos, com atos e fatos nada se faz; por isso somos exortados a
renovar o pensamento, a invertê-lo e a que nos arrependamos; é uma advertência
que devemos ouvir e, ao ouvi-la, fazer alguma coisa.
Ante isso vamos mais uma vez firmar delimitando, ou melhor, vamos firmar
sublinhando que a palavra final do ensinamento aqui necessário, tem de ser dada
por Deus e por Deus somente.
Deus é a grande perturbação tanto de quem cuida da ética como de quem cuida
da dogmática.
12, 3-8
A Base Fundamental
Porque Deus ama potencialmente, ele também requer para si o amor filial da
criatura.
Vs. 3 (primeira parte) Assim, com fundamento na graça que me foi concedida
digo a cada um de vós que não queira elevar-se em sua mente, o que não tem
sentido, mas cuide ser moderado.
[A tradução de Almeida escreve: “Porque pela graça que me foi dada digo a cada
um dentre vós que não pense de si mesmo além do que convém, antes, pense
com moderação”].
Esta é a grande perturbação. Ela se dá, em primeiro lugar, porque Deus é o amor
que ama a criatura humana e, então, se verifica que Deus quer ser 678
A Base Fundamental
12, 3
amado. “Francamente, Deus não é egoísta mas ele é o EGO infinito que não
pode ser modificado para te agradar, porém tu precisas modificar-te para agradar
a ele... Assim como a flecha desferida pelo flecheiro exímio não pode parar antes
de atingir seu alvo, assim a criatura humana não encontra descanso, se-não em
Deus...; tão logo eu tente, em minha vida, dar expressão ao que afirmo, isto é,
quando procuro pôr o Cristianismo em termos práticos, então faço explodir a
vida e o escândalo assoma.” (Kierkegaard).
ções de receber a exortação e, também, de exortar (12, 1). É nesta condição que
Paulo fala (1, 1); a graça que lhe foi dada, (tanto nesta passagem como em 5, 2),
é o fato paradoxal de seu apostolado, [que se evidência em] sua situação peculiar
como “mensageiro especialmente ordenado [ou comissionado] para o
cumprimento da mais alta missão” (Kierkegaard).
Paulo dirige-se aos romanos como gente igual a ele, isto é, como gente que
também experimentou a grande perturbação que Paulo traz constantemente à
lembrança deles, em sua carta. É por isto que toda a Epístola aos Romanos, é
uma exortação.
[licença ou] permissão [ou base] para progressos rotineiros, quiçá diários, nem
para que se assumam presunçosamente posições mais avançadas [ou mais
ousadas]. O fato de que Deus é Deus faz-se conhecer [e impõe o seu
reconhecimento] por si mesmo; é ele mesmo que urge a que se tomem novas
posições e dão compasso para o desenvolvimento normal.
[Entendo que o Autor quer dizer que não se pode partir do conceito de que Deus
é Deus, para estabelecer uma norma de “prática diária da ética”, nem para o
aperfeiçoamento progressivo de nossa conduta e, muito menos (se assim
podemos dizer), tomar esse conceito como motivação e justificação para inovar
métodos de trabalho, técnicas de evangelização, exercícios de aprimoramento
espiritual, etc. O conhecimento de Deus é o reconhecimento de que só Deus é
Deus, é revelação que está à disposição dos que têm olhos para ver e ouvidos
para ouvir, desde o princípio do mundo (1, 20); é revelação que está em Cristo
Jesus (Heb. 1); todos são convidados, porém o convite, a revelação, vem de
Deus (Mat. 11, 25 ss). Quem ouvir o apelo do Espírito Santo em seu coração e
não for desobediente à visão celestial, esse achará descanso para sua alma; terá a
Deus por seu Deus; a Jesus Cristo por seu Salvador; ao Espírito Santo por seu
Consolador. Esse tal viverá pela fé e oferecerá os seus dotes, dons e pendores
naturais a Deus em sacrifício espontâneo, 679
12, 3
A Base Fundamental
Quem há que observe quão freqüentemente erra? Parece mesmo que, para nossa
vergonha, precisamos estar sempre em alguma dessas alturas, [dessas
excelências humanas]; precisamos estar, conforme vimos, em alguma Igreja,
pois ela surge onde se fala e se ouve falar a respeito de Deus, onde se trata
daquilo que, da parte de Deus, há para dizer sobre a nossa vida (9, 6). Que Igreja
é essa? É infinita a possibilidade de que se trate da Igreja em que a criatura
humana “quer estar no alto”. Portanto, aquilo que nos deveria ser dito e que
deveríamos ouvir sobre a nossa vida, da parte de Deus, será dito e ouvido,
sempre, impropriamente e, pior do que isto, soará (para nós) cada vez mais
apropriado e “mais essencial”.
O fim desta Igreja — o fim de todos os “ALTOS”, com seus Baalim e Astartes
— é a Igreja invisível, a Igreja de Jacó.
680
A Base Fundamental
12, 3
Pode, todavia, acontecer que não seja em vão que, ao menos, saibamos que é
assim; saibamos que nada que consideremos ser importante ou sério neste
mundo e pertencente ao mundo, pode resistir [à inexorável lei do salário do
pecado] e que, se não deixarmos [de nos colocar sempre de novo nas
ALTURAS] nos seja mostrado, também sempre de novo, e nos seja incutido
como por marteladas, que não há senso em semelhante conduta, a fim de que
“cuidemos de ser moderados”.
681
12, 3-6
A Base Fundamental
[Em lugar de “sentido” a tradução inglesa escreve “doutrina” o que, talvez, seja
mais próprio]. Esse conceito [ou doutrina] tem por base [que a Igreja é formada
por] aglomerado vivo constituído pela agregação de personalidades parciais que
se reúnem ao todo como corpo celular onde, cada um unido aos muitos, e parcela
do conjunto [para cujo caráter total contribui com a parcela minúscula de sua
qualidade particular e, embora não seja decisivo para impor suas próprias
características ao conjunto, para ele concorre em proporção à parte que lhe toca].
“conjunto” poderia ter — vale dizer, que a Igreja teria — se cada um de seus
integrantes, fôra mais brilhante e mais se destacasse? Se assim fosse, todos
deveriam esforçar-se na “sublime” competição de cada um ser “mais
excelente”...].
682
A Base Fundamental
12, 3-6
Devemos desconfiar dessa interpretação, quando por mais não seja, pelo simples
fato dela parecer tão lógica [e precisamos dizê-lo em refutação ao que foi escrito
na primeira edição deste livro]; precisamos dizê-lo porque a doutrina do
relacionamento do homem com Deus e que lhe serve por base, parece estar
muito próxima [dessa doutrina católica-romana da Igreja], (tão próxima que o
protestantismo dificilmente dela escapa!).
O ser humano tem de enfrentar, ele próprio, a questão divina em toda sua aflição;
[agasalhar, ele mesmo], toda a esperança que a questão encerra, e não pode
contornar o problema passando-o para a coletividade, [ou diluindo sua
responsabilidade mediante a co-participação “de todos”] porquanto o indivíduo
[perante Deus] não é PARTE e, sim, a integral TOTALIDADE.
12, 3-6
A Base Fundamental
XIMO (13, 9-10; Marc. 12, 28-31. Luc. 10, 25-37). Todavia o próximo é “cada
pessoa”, porquanto ele não é o “teu próximo” naquilo que o diferencia dos
outros e também não o é naquilo em que, se diferenciando dos outros, se asse-
melhe a ti; ele é o teu próximo por ser o teu igual perante Deus. “Esta igualdade
não estabelece condições porquanto a criatura a tem incondicionalmente”.
(Kierkegaard).
Agora, com vistas ao indivíduo [nosso próximo] com o qual nos confrontamos,
torna-se claro o que significa [a norma], o encargo ético de “cuidar”
684
A Base Fundamental
12, 3-6
A Base Fundamental
“O TODO”. —), porém são indivíduos; cada um é [de per si] a NOVA
CRIATURA. (1 Cor. 12, 12-13). Este UM “O CORPO DE CRISTO”, é que vem
ao nosso encontro na comunidade dos crentes, dentro do problema dos outros.
Esta mudança não pode ser [ordenada ou] incentivada por qualquer maioria, nem
por “imposição” ou necessidade [de qualquer outra natureza que não pelo poder
da ressurreição], nem por autoridade histórica [ou por força da tradição], nem
por organismo eclesial ou eclesiástico místico ou inter-mundial, porquanto é a
lembrança de Cristo crucificado que muda o procedimento ético secundário,
fazendo-o cuidadosamente moderado e o ligando à ética fundamental [do
oferecimento do corpo em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus],
participando, assim, juntamente com [a dignificação da] ética primária, do poder
e da dignidade da origem básica, [que é Jesus Cristo].
686
A Base Fundamental
12, 6-8
ção à nossa fé; se serviço, em nosso servir; quem ensina, em seu ensino; aquele
que exorta, na sua exortação; quem contribui, com liberalidade; quem ajuda,
com selo; quem exerce a misericórdia, com alegria.
12, 6-8
A Base Fundamental
exortar; quem distribui esmolas, que o faça com liberalidade; quem preside, que
ponha nisso todo seu zelo; quem exerce a misericórdia, o faça com alegria.”].
A exortação ética — [o encargo ético] não pode ser para que “cada um cuide do
que é seu”, porém, que “cada um cuide da unidade”!
“Não há dúvidas de que a tolerância é uma virtude sem a qual nenhum de nós
pode viver, mas, apesar disso, precisamos ao menos entender que, a rigor, ela
destrói a Congregação porquanto ela é a atitude mediante a qual se rejeita a
perturbação divina. Aquele em quem, verdadeiramente, estamos unidos é, ele
mesmo, a grande intolerância. Ele quer governar, quer ser vitorioso, ele quer ser
— tudo. É ele quem perturba toda reunião familiar, todo esquema de união da
cristandade, toda cooperação humana. Ele assim perturba porque ele é a PAZ que
está acima de todo alheamento, de toda brecha e facção. A máxima ‘a cada um o
seu’ jamais pode conduzir a procedimento ético; a máxi-ma verdadeira é ‘a cada
um a unidade’”.
Entendo que o Autor quer dizer que Cristo, UNO e INDIVIDUALMENTE (isto
é, ELE, em sua unicidade, e para cada um, individualmente) é o centro 688
A Base Fundamental
12, 6-8
ência” para com os “fracos na fé”). Não pode haver tolerância porque o próprio
Cristo com quem e em quem somos UM, é a intolerância. Antes devemos ver na
tolerância, “da qual nem todos escapamos”, um meio de defesa que adotamos
para nos protegermos da perturbação que sentimos quando nos confrontamos
com o problema “Deus”!
Deus não tolera outros deuses. Ele é o dominador, o vitorioso, é tudo; é e quer
sê-lo. Ele é a perturbação de todas nossas experiências e realizações de aparente
paz, quer seja na sociedade, na família ou na Igreja. (“Não cuideis que vim trazer
paz sobre a terra” — Mat. 10, 34 ss). Ele é inimigo da causa coletiva, (porquanto
busca a criatura, individualmente, para a salvar). Ele perturba e destrói a paz na
terra, porque só ele é a verdadeira paz, a paz que está acima de todos acidentes
da vida, de toda fuga de Deus, de todo subterfúgio e de toda facção.
Não pode haver fuga, nem subterfúgio, nem acidente, nem facção, porquanto a
recomendação ética, não é “que cada um cuide do que é seu”, mas,
E Barth continua:]
Todavia psicologia não é ética e, tanto menos o será quanto mais honesta
[mais séria] for. Neste assunto resta-nos apenas considerar e lembrar que toda
689
12, 6-8
A Base Fundamental
ência desta crise consiste em desgalgar os cabeços onde a criatura acaso esteja
instalada junto com os seus — [com os que são de sua grei e qualquer que seja a
altitude de sua elevação] — encolhendo-se e diminuindo-se para somente Deus
ficar em destaque, pois só ele é Grandioso. Portanto (trata-se novamente do
preceito ético-cristão da moderação e, a passagem da morte para a vida que a
criatura usufrui em Cristo), também está na sujeição do procedimento ético
secundário à ética primária [do culto devido exclusivamente a Deus].
“com fundamento na “GRAÇA” poderá considerar como seu o dom que “pela
graça” lhe foi concedido e, poderá acontecer—ou melhor, sejamos muito caute-
losos! — TALVEZ possa acontecer que aquilo que cada um recebeu
individualmente seja para a honra. Sim. Então será para a honra. Esta honra já
não é exclusivamente deste um indivíduo mas, com as vistas naquele UM [que é
Cristo] a honra se reparte [sem diminuir sua grandeza nas partes] sobre a
pluralidade dos membros e sobre cada um deles — sobre toda a Congregação —
[porém jamais como banco de méritos em depósito para socorro eventual de
outros menos agraciados ou mais desgraçados, mas, serão quais “chuvas de
bênçãos” celestiais].
Que formidável Congregação. É com profundo temor que, aqui, nos atrevemos a
acompanhar o texto pois a esta altura às perspectiva da ressurrei-
A Base Fundamental
12, 6
— e que sacerdotes. [Na tipificação dessa Congregação] nem sequer se fala nas
necessidades humanas mas exclusiva e unicamente da exigência de Deus, à qual
todos precisam submeter-se. Nessa Congregação cada um segue sua trajetória
[segue “o dever” que lhe foi traçado] como o projétil que sai do cano da arma.
Cada um tem permissão para seguir esse curso; precisa e pode fazê-lo porque
cada um tem um objetivo — O OBJETIVO.Nessa Congregação ninguém faz
obra parcial; nela não há disciplinas — [matérias separadas], nem tarefas pois
cada um, ao fazer sua parte, faz aquela única parte que é o todo.
que os pretensos profetas nos têm causado] permanece [em nós] o anseio de que
venha alguém que nos mostre, realmente, o “totalmente outro”, em cuja
identidade não podemos penetrar.
Se “acaso” existir uma única pessoa que tenha submetido aquilo que é
propriamente seu, — o dom que recebeu — à “eventual” possibilidade” da
graça, que fale segundo a medida da fé, que dê, realmente, a Deus o que é de
Deus de tal maneira que, através dela, Deus possa falar como se ela não
existisse; se tal pessoa for a UNIDADE, então a sua profecia é a única
alternativa ética e a par dela não há outra; esta profecia não necessitará de
suplementação nem
Jesus Cristo].
691
12, 7
A Base Fundamental
Servir significa pensar feridas temporais e manter vivo o ferimento eterno, que
não se deve fechar. Servir significa cuidar do corpo para não perder a alma;
significa não passar ao largo daquele que caiu nas mãos de salteadores como
fizeram o sacerdote e o levita da parábola pois, justamente ao homem da Igreja,
para quem o conhecimento de Deus é tudo, a pergunta “quem é o meu próximo”,
já não tem justificação, [já não é mais explicável nem aceitável] já não tem mais
razão de ser.
Talvez seja servo de Deus o indivíduo que nada faz senão servir aos outros,
porém os serve, verdadeiramente, em suas aflições, em sua miséria e na crise de
sua existência; este que assim serve, talvez tenha ouvido que também como
“pessoa prática” não se pode ter razão [perante Deus]; todavia, é possível que
esse tal seja “o bom samaritano”. Então, [se for assim], esse um haverá optado
“pela melhor parte”, conforme o fez Maria e sua obra [quiçá] será suficiente e
segura.
[Sempre a verve irônica de Barth, agora dizendo que se os teólogos são mente-
captos, se traem a cristandade tratando e cuidando do estudo das coisas que são
de Deus, não será menor o dano se o assunto for encerrado e todos se calarem].
A Base Fundamental
12, 7-8
lugar para, se possível for, sem tumultuação e, por isso, de maneira sistemática,
determinar as limitações que foram postas aos homens e, incansavelmente,
estabelecer o que significa essa “palavra humana” para cada pessoa, palavra que
está sempre presente [evidente ou], subjacente, a eles se apondo; [neste afã]
Também a teologia, notoriarnente, poderia ser não apenas uma mas a única
alternativa ética e o indivíduo que agisse “como professor”, para ensinar, poderia
ser verdadeiramente a UNIDADE. — “Talvez” algum “como pregador”, como
quem exorta, consola e convida. Aqui pensa-se especialmente no Pastor. — O
“Pastor”, como única possibilidade ética? Quem não se admira disso? Mas o que
há nisso para se pasmar? Seria de admirar [e pasmar] se o ternário [o assunto]
imposto [ao pastorado] fosse, por exemplo, psicologia, moral, história sagrada,
finalidades comunitárias, tradição da Igreja, ou determinadas experiências na
vida.
Na realidade não é assim; [o tema real do Pastor] é a perplexidade que Deus
prepara aos homens e a promessa que ele faz.
A demonstração, portanto. vai além “do falar” das diversas testemunhas. para
atingir também aquilo que a pessoa faz.
693
12, 8
A Base Fundamental
É claro que GRAÇA significa ter coração aberto e não mesquinho, fechado.
Contudo, é preciso lembrar — não que essas diferentes funções, [os diversos
694
A Base Fundamental
12, 3-8
Não precisa ser totalmente ocultado — nem está — que sempre onde houver
uma Congregação “talvez” constituída em sua unicidade, olhando para o UM, aí
se luta, aí se tem esperança, aí se sofre; e tudo isto não é em vão!
2. Por que não pode a base fundamental da ética — a realidade de que Deus é
Deus e que nos ama — ser também a base de nosso progresso diário, rotineiro,
visível a todos? Creio que é porque não se pode misturar o que é divino,
espiritual, com aquilo que é humano e material. O
12, 3-8
A Base Fundamental
“progresso rotineiro” ainda que fosse (ou seja) o mais sublime progresso
“espiritual”, pelo simples fato de ser neste e deste mundo, seria (ou é) material e
materializado; será (ou é) arrogante e pretencioso ou, pelo menos, convencido e
autoconsciente. Por isso terá sua paga direta no mundo e não é SACRIFÍCIO,
muito menos é SANTO E AGRADAVEL
Possibilidades Positivas
DEUS — mas designa a razão de ser, a destinação da ética que o Autor designa
como SECUNDARIA. Esta ética trata do relacionamento entre os irmãos e foi
estabelecida por Deus para a vivência na comunidade e convivência na
Congregação. Vivendo só, o homem não encontra seu próximo e, talvez, não
vislumbre Deus. É na comunidade que o homem encontra seu próximo, em
Deus, como indiví-
Barth chama de positiva a ética que o “presente século”, a cuja rejeição somos
exortados, considera negativa; e a adoção das atitudes práticas, — (embora
nunca totalmente praticadas por nós), — recomendadas nos versículos 9 a 13 do
capítulo 12. É a conduta que decorre logicamente da dedicação e do domínio de
“nosso corpo” em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, como culto racional.
É
Possibilidades Positivas
confronto com o amor de Deus; assim exacerbamos a aflição que este contraste
gera o que dá origem a perseguição, possivelmente acirrando os ânimos e re-
crudescendo o ódio contra nós. Todavia, “venha daí o galardão ou a galé,
vantagem ou dano, não há retroceder”; é o amor de Cristo que nos constrange!
Não sejais tardios em levar as coisas a sério! Ardei em espírito! Servi à tempo
realidade! Regozijai-vos na esperança! Sede persistentes durante a aflição!
Permanecei em oração! Participai naquilo que se fizer pelos santos! Cultivai a
hospitalidade! Abençoai aos que vos perseguem; abençoai e não amaldiçoeis!
Alegrai-vos com os que se alegram e chorai com os que choram!
Em notas de rodapé o Autor explica o que chama sua maneira de ler os vs. li e
13 no original dizendo que:
esta exortação tem sentido bem definido o que não acontece aqui e lhe parece
que a passagem de 1, 1 tem ainda menos correlação com o tópico do v. 11; diz
Barth que Juelicher quer defender e reforçar seu modo (convencional) de ler
dizendo... “ao Senhor, somente”. Todavia, em toda essa série de exortações ou
recomendações, a ênfase está sempre nos verbos e os substantivos indicam
apenas o problema funcional. Seria o final do v. 11 uma exceção no contexto,
como teria de ser, se tivéssemos de acrescentar o “somente” de Juelicher?
Diz o Autor que a maneira de ler o original, por ele sugerida, oferece um
paradoxo apropriado cuja legitimidade poderia ser comprovada exatamente pelo
seu “mau gosto”, acusado por Lietzmann.
698
Possibilidades Positivas
12, 9-15
b) Com relação ao v. 13 Barth escreve que também este versículo foi vítima do
copista que “corrigiu” o v. 11, havendo escrito o que lhe pareceu ser mais
compreensível. Todavia, a passagem nada tem a ver com a veneração ou
homenagem a santos porém deve ser entendida conforme a passagem 1, 9 (onde
Paulo escreve que “faz menção” dos crentes em Roma em suas orações); trata-se
de “assistir” ou “garantir” alguém, isto é, (conforme diz Zahn), trata-se da
Ética positiva (consiste no comportamento de quem quer e faz aquilo que não
está na conformidade “deste século” ou, mais abstratamente (e no dizer textual
do Autor), consiste em querer e fazer aquilo que tem conotação negativa para a
condição do presente mundo, que não consta de seu programa, não se adapta ao
esquema de EROS e lança o seu protesto contra o grande erro].
[Esta “ética positiva”, na realidade], somente pode ser encontrada naquilo que
Deus quer e faz. [Como seres humanos] não conhecemos procedimento ético que
seja verdadeiramente positivo, que esteja fora do quadro de Eros e que — como
querer e fazer — seja genuíno protesto [contra a conduta mundana].
rio que nos conduzamos com a máxima cautela. É mais fácil que, [como
paradigma dessa analogia] escolhamos qualidades [ou virtudes] que nos pare-
— cheias de luz interior, — em lugar de certas outras [que tenhamos por menos
agradáveis, ou menos nobres]. — Por exemplo, antes escolheremos o amor do
que o ódio. No entanto é possível que a grande perturbação divina esteja mais
próxima das manifestações que rechaçamos. É mais provável que justamente
aquelas qualidades [ou virtudes que não preferimos] estejam mais próximas do
procedimento que leva àquele “sacrifício vivo” a que somos conclamados “pelas
misericórdias” de Deus e no qual demonstramos a honra que lhe tributa-mos;
antes estará [o culto racional devido a Deus] no cumprimento da segunda tábua
da lei, do que no da primeira.
12, 9
Possibilidades Positivas
estiver considerando e não em seu teor propriamente dito — (que traz sempre a
forma deste mundo). Há ainda (outra razão para essa aparente falta de precisão):
a possibilidade de que existam obras impostas pelos mandamentos da primeira
Tábua da Lei, que entrem em conflito com as imposições normais da segunda.
[Entendo que o Autor quer dizer que Deus poderia exigir para sua adoração e seu
serviço (que é do que trata a primeira parte dos dez mandamentos) ações e
atitudes que estejam em desacordo com os preceitos éticos secundários, como
poderia, eventualmente, ser considerado o caso do extermínio dos sacerdotes de
Baal. A versão inglesa traduz assim: “A possibilidade de que Deus possa, de
quando em vez, ser honrado com comportamento humano que contradiga os
mandamentos da segunda Tábua da Lei precisa ser mantida em aberto”].
como amor do ser humano a Deus é a grande obra invisível da primeira Tábua; é
a obra viva de quem está sob a graça divina, seguindo aquilo que “adoração”
(Mat. 22, 37), não é carnal e portanto não está sob a égide de Eros, mas é
derramado pelo Espírito Santo em nossos corações; este “ágape” é o amor
mediante o qual e pelo qual todas as coisas concorrem para o nosso bem].
Possibilidades Positivas
12, 9
Aquele que caiu nas mãos dos salteadores é o motivo (ou o pretexto) para que eu
reconheça o meu próximo e somente como tal — não materialmente
(Lutero). Não se trata pois de imposição obrigatória assim como, mais atrás 701
12, 9
Possibilidades Positivas
(12, 3-8), não foi estatuído que se organizasse a Congregação ou que se seguisse
a teologia, a profecia, etc. Estas possibilidades relativas existem e assim também
o amor [ao próximo] na qualidade de maior possibilidade relativa [ao alcance do
ser humano], possibilidade essa na qual se manifesta expressivamente a
perturbação que Deus traz aos homens. Todavia, é preciso lembrar do significado
especial, característico e crítico do amor como a mais alta possibilidade positiva
na esfera da graça: ele deve conduzir-se na plenitude de sua significação; ser
realmente digno do nome (emprestado!) que traz: ÁGAPE; ser realmente ética
positiva; ser verdadeiramente um protesto na correnteza em que, como seres
humanos, se encontram as pessoas.
Isto jamais e em parte alguma será entendido por si mesmo pois, onde é que
existe amor humano diferente daquele ao qual os homens, por sua origem não se
deveriam submeter, isto é, [onde existe no mundo amor que não seja] na forma
de Eros? Onde se encontraria adoração a Deus que não contenha, também, um
pouco de adoração desse Deus conhecido dos homens? Quando [ou onde] seria o
nosso amor humano [ao próximo e a Deus] totalmente puro, neutro,
[desinteressado], totalmente livre das distorções deste mundo e das cobiças que o
dominam, inteiramente livre do desejo de ver, de criar, de estabelecer e
estruturar, de possuir?
Eros não é sincero; Eros é hipocrisia; como função biológica ele oscila com
excessiva rapidez entre o ardor e a frialdade. ÁGAPE, porém, é sincero; é por
isso que jamais se acaba mas participa da eternidade. [I Cor. 13, 8].
O amor como graça, lembra-nos que é a questão divina do Deus recôndito que é
posta em nosso caminho na realidade de nosso próximo e que a nossa conduta
para com ele, em todas as circunstâncias, deve ser em honra e glória a Deus, que
a pureza de nossa conduta para com nosso próximo não pode estar em nosso
relacionamento mútuo mas na sua reformulação constante, na incessante
renovação de suas bases; não se trata de alcançar determinado resultado
(porquanto a objetivação de resultados, por mais louváveis que sejam, é sempre
a meta de Eros!); [lembra-nos que nessa reformulação de nossa conduta] o
sentido é sempre o do sacrifício que deve ser apresentado na pureza de quem
obedece e no respeito ante aquele que o pode aceitar ou rejeitar.
Possibilidades Positivas
12, 9
çamento na realidade material; como aquilo que não é puro, que é restolho
terreno e [contudo] precisa ser suportado (ainda que) dolorosamente. Isto é o
MAL.
Amor é a crise em que também o outro está inserido. É por isso que o AMOR,
por força de sua inevitável recorrência ao amor a Deus, jamais é o fenômeno
aparentemente inequívoco, direto, claramente compreensível, pelo qual anseiam
os sentimentalistas. O amor tanto pode desencadear o que é agradável quanto o
que é desagradável; tanto pode procrastinar como pode ser inexorável; pode
guardar a paz e guerrear. [Todavia], “a vontade de Deus deve governar
[textualmente. “deve ter precedência sobre”] todas boas obras que eu possa fazer
ao próximo e todo amor que eu lhe possa dedicar; ainda que eu pudesse tornar o
mundo todo feliz, por um dia, mas isto não fosse da vontade de Deus, eu não o
deveria fazer”. (Lutero).
Somente o amor que tem em si forças suficientes para abominar o mal, tem
também a força necessária para se apegar ao bem; para esquecer, sabendo; 703
12, 9-10
Possibilidades Positivas
Em última análise, é pelo amor [segundo a graça] que o ser humano anseia, no
mais profundo do seu ser; esse é o amor que a criatura reivindica (apesar de o
negar plangentemente), porquanto Eros [jamais satisfaz e] jamais pode trazer [ou
proporcionar] justificação e redenção.
“Irmandades” sem temor e tremor, sem consciência de que somente poderão ser
irmãos em Deus, irmandades diretas, especiais, que não sejam estritamente para
servir, estão na categoria de grosseiro abuso (1, 27.) e são um horror para Deus.
[e nesta forma resolutiva] pode a fraternidade ser demonstração [ou ser protesto]
contra a condição deste mundo; somente [neste tipo de irmandade] se vencem os
reveses, a negação e as desilusões que, inevitavelmente, caracterizam tudo
quanto conhecemos como irmandade ou fraternidade.
Possibilidades Positivas
12, 10-11
(Juelicher escreve que para Paulo não teria havido um só momento que não
estivesse “carregado de seriedade”. Tal idéia deve, simplesmente, ser ignorada).
Levar a sério, [ou ser zeloso, cuidar], (conferir com 12, 8) significa aquela
imposição objetiva, aquela determinação e aquela decisão que caracterizam a
pessoa que tem autoridade de fato, autoridade que lhe advém por força das
credenciais que lhe são conferidas por aquele que é UM, para o representar
perante o OUTRO.
É claro que essa exigência [de zelar, de levar as coisas a sério] está
estreitatamente ligada ao amor entre os seres humanos (mediante o qual — sob o
impacto da grande perturbação [que o amor divino induz] — deveríamos erguer
nosso protesto contra a desavergonhada [e irresponsável] segurança dos homens.
[Para que esse protesto seja eficaz, para que tenha sentido] é preciso que ele seja
feito com absoluta seriedade, [com todo zelo] a fim de que toda e qualquer
refutação seja silenciada, por não ter razão de ser; é preciso que o respeito aos
outros se imponha naturalmente e que [no relacionamento com mais de um
indivíduo] domine, animadoramente, a neutralidade.
levar a sério, [como zelo], na verdade não é isso. Aquilo que vemos se adapta
“bem demais” à condição deste mundo, com as suas ditaduras. Onde há [onde já
vimos] alguma autoridade da qual se possa dizer outra coisa? [Contudo], toda
nossa imposição [autoritária] está nas conchas da balança. “Não sejais
remissos!” Ponde a valer aquilo que não sois, não conheceis nem sabeis. Não
fiqueis assentados sobre vossa autoridade! Não respondais [quiçá inflando-vos
em sabedoria] mas perguntai. Imponde-vos, abrindo mão de toda imposição!
Não há solenidade se não a da questão (que não é vossa) [e que sois chamados a
julgar!]; o instante em que a questão pronunciar o seu solene discurso e por meio
dele vos colocar no gozo do respeito ético, — não será um instante. [Entendo
que o Autor quer dizer que no momento em que a questão, — que é.
12, 11-12
Possibilidades Positivas
gozando, quiçá, o sabor do respeito ético, este não será para ela um instante, um
momento; será a sensação ou, quem sabe, a realidade da eternidade].
— Sim, no mesmo sentido que o amor. E nesta mesma direção que apontam
todos conceitos éticos aqui referidos; voltam-se a uma perturbação plena de
promessa, a uma grandeza invisível que está por trás e que invade a vida dos
homens.
“espírito”? Acaso é “aquilo” que a todo momento nos conduz? Acaso é a tepi-
dez, ou o calor, ou a efervescência, ou a incandescência que conhecemos como
“Ardei em espírito”
706
Possibilidades Positivas
12, 12
“Alegrai-vos na esperança!”
— Sim, senhores. A grande esperança que Deus oferece aos homens obriga-os,
por essa mesma esperança, a protestar contra os caminhos do mundo. Mas, quem
há que não tenha esperança? O que é que transforma particularmente a nossa
esperança em procedimento ético? [Respondemos:] A alegria!
Ter esperança significa “não ver”; ter as “mãos vazias”; sofrer privação, estar
perante o NÃO (8, 24-25). Em oposição a tudo isso está a ALEGRIA.
— Também a aflição, como ética? [Esta pergunta talvez seja respondida por
outra:] Onde e como poderíamos honrar e glorificar a Deus, fora da aflição?
“Gloriamo-nos nas tribulações” (5, 3). Estar em tribulação [é uma forma de]
ação positiva da criatura humana. Esta aflição vem de Deus, mas não
simplesmente, diretamente. A aflição sobrevém a toda alma que pratica o mal (2,
9).
“Permanecei em oração”!
— Então [também] oração é [uma possibilidade] ética? Mais uma vez, sim.
Oração é verdadeiramente, uma obra. [E claro que dizemos isto da oração como
ação secundária, isto é, ação complementar, que vem depois], como fato, 707
12, 12-13
Possibilidades Positivas
e não nos estamos referindo à oração como adoração [que é básica, que é
primária] que conhecemos como a ética primeira que fundamenta e precede todo
procedimento ético [entre os homens].
O que nos resta sob a incomensurável pressão de nossa posição como seres
humanos perante Deus, senão apelar a ele, clamar como os Salmistas e como
clamaram a Deus todos os demais que viram as coisas quais elas realmente são?
[O que mais nos resta senão] nos submetermos a ele, agradecendo-lhe porque ele
é Deus (porém jamais sem espanto [sem temor]! ), a ele implorando que seja e
continue sendo nosso Deus?!
“Orar como convém, não sabemos” (8, 26). E pela permanência na ora-
É evidente que tanto aqui como na segunda carta aos Coríntios, Paulo mostra
pouco interesse pela grandeza material, pelo valor das ofertas, o que é
justamente a única [ou, pelo menos aparentemente a maior] motivação nas
manifestações de caridade, mais modernas. A ênfase de Paulo está na forma 708
Possibilidades Positivas
12, 14-15
mas mensageiro de Deus que, como tal, vai ao encontro da vontade divina; ele é
o “outro”, [o próximo], em seu mais tenebroso enigma e, portanto, apresenta
também a oportunidade de fazer o que é absolutamente inequívoco: renunciar ao
recurso às armas e abençoar em vez de amaldiçoar e, nessa atitude inesperada,
(dessa forma inexoravelmente objetiva) aumentar sobremaneira a perturba-
ção [que o perseguidor sente, teme e que motivou sua atitude]. A benção assim
exarada em plena luta pela vida significa — e de maneira muito vigorosa para a
honra e glória de Deus — que no “outro” reconhecemos o “UM”.
“Alegrai-vos com os que se alegram; chorai com os que choram”! Há uma
última perspectiva na linha que até aqui vínhamos seguindo: se o “perseguidor’ é
mensageiro de Deus, por que não o será também, quem se rejubila, ou quem
chora? Acaso a alegria e a tristeza são apenas os pontos culminantes da emoção
biológica (ou erótica)?
Seria próprio, — acaso seria uma resposta objetiva à questão que aqui nos é
proposta através “do outro”, — contrapor a alegria à moderação do estoicismo
ou, a sua serenidade à dor? Não; antes, onde houver riso ou choro, há também
motivo para considerar que, justamente quando as emoções humanas atingem
709
12, 15
Possibilidades Positivas
seus pontos extremos, tornam-se de tal maneira duvidosas que passam a apontar,
para além delas mesmas, ao seu sentido parabólico: há um rir que é vida e um
chorar que é morte; portanto, é perigoso adotar posições estóicas e morais; é
perigoso querer ensinar, convencer, [doutrinar]; são perigosas todas abordagens
feitas por contrastes materiais. Poderia então acontecer que fôssemos
encontrados lutando contra Deus, conforme aconteceu com Micail quando viu
Davi dan-
O protesto que aqui deve ser levantado [contra o mundo] está, surpreen-
dentemente, na confirmação da pessoa no maior êxtase de sua alegria ou no
extremo de sua dor. A ética precisa, neste caso, assimilar aquela paradoxal
irreconhecibilidade do Filho de Deus, na “semelhança da carne dominada pelo
pecado”. (8. 3).
[Deus.].
Possibilidades Positivas
12, 9-15
Qual a nação que verdadeiramente respeita a pessoa humana? Qual respeita, não
só os direitos do homem, conforme lindamente postos no papel há três séculos
pelos ingleses, há dois pelos americanos e um pouco mais recentemente pela
revolução francesa mas, efetivamente, respeita a pessoa humana como criatura
pela qual Cristo morreu, sem olhar sua raça, suas aptidões, ou suas inclinações
naturais, sem se servir dela para a explorar ou a encaminhar aos seus fins
político-sociais?
No entanto, os dois grandes mandamentos que Cristo referendou existem desde a
remota revelação no Monte Sinai, eles só, capazes de garantir ao homem os
direitos que nações, homens sérios e demago-gos de todos matizes, proclamam e
reclamam. Procuram os homens alimento que não é pão e nesse sustento se
comprazem até que o caos sobrevenha e então, na carência, talvez busquem e
invoquem ao Senhor até novamente atingirem as alturas da glória do mundo e
novamente morram. Cristo, porém veio até nós para que tivéssemos vida e vida
abundante.
ção. Tanto alegrando-nos com quem se alegra como chorando com quem chora,
unimo-nos ao nosso próximo como Cristo se une a nós, protestando — Cristo
por excelência e nós mediante a graça de Deus
Todavia Barth diz que a recomendação a que nos identifiquemos com nosso
próximo nas suas emoções não tem expressão crítica, não é decisiva e gera uma
incerteza que nos remete aos primeiros mandamentos do decálogo — ou seja ao
primeiro grande mandamento.
12, 16-20
Possibilidades Negativas
que nos faz buscar, incontinente, a adoração pura, simples, espiritual, nela
fundamentando e enrijecendo a têmpera de nosso “culto racional”
— amando-nos cordialmente uns aos outros, não sendo remissos no zelo, rego-
zijando-nos na esperança, perseverando na oração, exercendo a hospitalidade,
auxiliando na manutenção da boa causa, abençoando aos que nos perseguem,
alegrando-nos com os que se alegram e chorando com os que choram, como as
possibilidades de termos todos o mesmo sentimento, de aquiescer ao que é
humilde, de não tornar mal por mal, de meditar naquilo que parece ser bom à
vista de todos, manter a paz e não exercer vingança, são qualidades inerentes à
nova criatura, quiçá ideais que, como seres humanos, jamais atingiremos, não
obstante são alvo, são referência ao fim proposto.
712
Possibilidades Negativas
12, 16-20
Vs. 16 a 20 Refleti entre vós sobre a mesma coisa, não cogitando do que está no
alto mas consentindo em serdes conduzidos às coisas que são de baixo.
Não segui as vossas eventuais presunções! A ninguém tomeis mal com mal!
Meditai sobre aquilo que seja bom à vista de todos.
Não fazei justiça a vós mesmos, amados, antes daí lugar à ira de Deus! Pois
está escrito: “É a mim que compete estabelecer justiça, eu recompensarei! diz o
Senhor Porém, se teu inimigo tiver forme, dá-lhe de comer! Se tiver sede, dá-lhe
de beber! Pois fazendo isto amontoarás carvões incandescentes sobre a sua
cabeça”. [Conferir com a tradução de Almeida].
Designamos como procedimento “ético-negativo” o “querer” e o “fazer” que são
positivos com relação ao mundo vindouro e que se ajustam à transformação
deste mundo (12, 2).
12, 16
Possibilidades Negativas
As diversas possibilidades são éticas justamente pela sua relação com a origem;
se procurarmos a qualidade ética do próprio teor dessas possibilidades a sua
característica ética fica prejudicada.
“Refleti entre vós sobre a mesma coisa, não cogitando do que está no alto mas
consentindo em serdes conduzidos às coisas que são de baixo”.
[Almeida escreve: “Tende o mesmo sentimento uns para com os outros; em lugar
de serdes presunçosos, condescendei com o que é humilde; não sejais sábios aos
vossos próprios olhos”].
Parece que aqui não se trata daquelas muitas coisas que devemos fazer ou deixar
de fazer cuidando de não pensar de nós mesmos mais do que convém,
“porque isto não faz sentido”, “antes cuidemos de ser moderados” (12, 3); po-
rém, trata-se de modo muito concreto e visível do posicionamento da criatura
humana frente às conhecidas elevações e depressões das eventualidades da vida
e às correspondentes afirmações e negações. É preciso que agora confessemos
que a desconfiança com que vemos tudo quanto “está na crista” neste mundo e a
nossa inclinação favorável a tudo quanto está por baixo, são conseqüências da
perturbação que nos vem de Deus.
As depressões casuais de nossa vida [os seus pontos baixos] tem relativamente
mais valor — como testemunhas [da graça] — do que as eventuais culminâncias;
somos mais profundos na negação do que na afirmação e gostaríamos de deixar
perfeitamente claro que a compreensão desta perturbação do 714
Possibilidades Negativas
12, 16
O Cristianismo não se sente bem onde quer que se levantem torres e a tais
construções ele tem sempre reservas a opor.
12, 16
Possibilidades Negativas
[para o que é humilde, — e se esforça para isso], vê grande mão sacudindo tudo
quanto E ou quer SER; vê o sinal de interrogação aposto a todas eminências do
mundo; ouve o secreto estalido das vigas que se rompem; e não pode deixar de
ver e ouvir o que ouve e vê!
É por isto que o Cristianismo aprecia os pobres, os que sofrem, os que têm fome
e sede; os que são tratados injustamente. É por isto que o Cristianismo pode, em
seriedade, recomendar o celibato sem receio de, mediante a supressão da
propagação da espécie, suprimir também a premissa básica de todo raciocínio
positivo e que consiste na premissa “de que de uma ou de outra maneira a vida
seja algo de valor” (Harnack).
“depressões” [da criatura], pelo menos a analogia da vida porque não pode
esquecer o que significa RESSURREIÇÃO.
O Cristianismo nos diz que provavelmente é mais bem aventurado quem estiver
na profundeza do vale do que aquele que estiver nas alturas!
716
Possibilidades Negativas
12, 16
Não devemos expressar-nos de forma mais incisiva sobre este assunto porque
aquela desconfiança [aparentemente dispensada às coisas que estão no alto] e
esta boa vontade [com que são vistas as coisas que estão embaixo], aquela
advertência e esta promessa a que talvez façam jus as culminâncias e as
depressões concretas de nossa existência, têm sempre apenas o sentido de
analogias e disto não nos podemos esquecer por um só instante.
“construtor de torres” já não tenha, há muito, passado daqueles que afirmam para
os que negam; se o NAO dos que negam já não se transformou, há muito tempo,
em SIM — [isto é, se tenha transformado na afirmação] da criatura que ficou
segura em sua negação e de quem o Cristianismo, com tristeza, precisa afastar-
se.
[participar da vida normal], por exemplo, casar e ter filhos, ser querido;
promover a ciência, pertencer a algum partido político (inclusive não sendo
socialista...) — ter a arte em grande estima, aplaudir a cultura e talvez até —
para cúmulo da tragédia e do humor — ser clérigo!
Existe todavia certo desequilíbrio [entre uma e outra] porquanto a parábola (ou
analogia) da morte fala alto de mais, ainda que seja apenas parábola.
717
12, 16
Possibilidades Negativas
porque também este APENAS dá lugar a que nos lembremos de Deus, de onde
se origina a pergunta formulada com inescapável seriedade: “O que faremos
pois?”.
“Refleti entre vós sobre a mesma coisa!”, não cogitando do que está no alto [no
que está por cima] mas, consentindo em serdes conduzidos às coisas que estão
embaixo, sêde do mesmo sentimento entre vós, pois justamente as grandes
contradições que resultam da dialética desta norma — (do conceito SOLI DEO
GLORIA) — as contradições entre a refutação e a confirmação da 718
Possibilidades Negativas
12, 16
Não estamos todos enfermos no mesmo hospital? Não estamos todos sob a
mesma acusação? Não fomos todos condenados pela mesma sentença? O
Não segui as vossas eventuais presunções!” [“Não sejais sábios aos vossos
próprios olhos!”]. (Prov. 3, 7).
[alguém] conduzir às coisas que estão embaixo. Lá no alto, — ainda que tais
queremos, é algum gabarito [ou padrão] para a luta pela existência, que não seja
crítico, [decisivo]. Confiamos ingenuamente nos conceitos [pessoais], —
“eu”, “tu”, “nós” e “os outros”; temos “uma” situação ou “um ponto de vista”;
(que ironia!); falamos tragicamente de “um opositor”, falamos de superioridade,
de hegemonia e de vitória, todavia submetemo-nos a outros padrões, a outros
parâmetros; abrimos caminho (ou não); chegamos “em cima e descemos de
novo; lutamos felizes, (ou não); temos sucessos mas também insucessos,
sofremos desilusões, somos golpeados, feridos, postergados [preteridos e
humilhados]. É nisso tudo que desenvolvemos [e alimentamos] nossas
“eventuais presunções”. Avaliamos [e julgamos a nosso favor] sob a pressão
imprópria do momento presente, cada um conforme então “lhe ferver o sangue
nas veias”, defendendo-se do opositor e mais ainda — até primeiramente —
defendendo a si mesmo.
Não nos iludamos; esta é, a rigor, a regra constante de nossa conduta: seguimos
presunções eventuais! Contudo, ainda que essa linha de procedimento não seja
rompida [e interrompida] definitivamente, pode [ao menos] ser truncada e
fletida.
719
12, 16-17
Possibilidades Negativas
O ataque fundamental da graça deixa suas marcas na criatura humana não pela
agudeza (ou precisão) de eventuais respostas divinas (que, aliás, nunca são dadas
pois a graça é sempre — e unicamente — demonstração e testemunha de que há
resposta) porém justamente pelo fato de ela própria estabelecer a interrogação; é
nisto que consiste a seriedade e a força da ética cristã; (ela interroga e,
inquirindo remete a questão à sua origem, à fonte da própria ética]
Para a ética cristã as altitudes humanas são apenas analogias; simples parábola é
toda luta [toda oposição entre a criatura e o mundo,] ainda que essa oposição
fosse (ou seja] a mais santa e a mais necessária.
Acaso é isto “desanimador”? Acaso moem-se, com isso, todos nossos ossos?
vel psiquiatricamente.
Possibilidades Negativas
12, 16-17
“Porque perguntas acercado que é bom’? Bom só existe um”. (Mat. 19, 17).
Insistindo em ver nosso próximo no seu aspecto visível qual ele mesmo se
apresenta consideramo-lo, em princípio, perdido para o bem, ainda que nele
vejamos toda sorte de coisas boas. Esta nossa insistência é a “retribuição com o
mal!”
Possibilidades Negativas
Contudo, lembremo-nos sempre que não há nem pode haver quebra absoluta —
interrupção plena e total da linha [do procedimento normal humano]; não pode
haver atitude absolutamente boa nem se pode transformar a atitude de “não-
resistência” em algo de valor absoluto porquanto então, na verdade, estaríamos
destruindo nossa esperança pelo mundo vindouro.
“Meditai sobre aquilo que seja bom à vista de todos!” [Almeida escreve:
Esforçai-vos por fazer o bem perante todos os homens]. (Prov. 3, 4). [Os quatro
primeiros versículos do Capítulo 3 de Provérbios, parecem reforçar a maneira de
traduzir do Autor].
“bom a vista de todos”] nem pode temer a luz do critério da validade universal;
não pode recear a luz da publicidade.
Semelhante comportamento não pode alegar a existência deste ou daquele
paradoxo, não pode basear-se nele nem pode deixar de ter sempre presente a
realidade da existência do UM no outro [seu próximo] porquanto o paradoxo
ético [que se impõe ao mundo pelo seu contraste com o procedimento usual]
consiste exatamente em tomar em consideração este UM invisível e, ao lado
deste paradoxo, não pode haver outro (e aqui é conveniente colocar Kierkegaard
na posição devida, [corrigindo-o] por intermédio de Kant).
— 1, 1), tanto mais necessário é que ela esteja em harmonia com a verdade que
722
Possibilidades Negativas
12, 17
proclama [ou representa]. A própria ação profética, por vezes em tão profundo
desencontro com a sociedade a que se dirige precisa, em ULTIMA RATIO
estar em harmonia com a verdade reconhecida por todos. [Quiçá, embora não
aceita e até combatida precisa ser — e é — confessadamente ou intimamente
reconhecida como sendo “o bom”]. Conseqüentemente, podemos abrir mão da
aprovação de “muitos”, porém em nenhum instante sequer, da “aprovação”
[ou ética] especial [ou diferente da usual] para aqueles que sobressaem [na
sociedade ou entre seus pares] e conseqüentemente também não existe ética
separada para os que forem [simplesmente] normais! Por isso, qualquer
procedimento que admirarmos por sua ética, ou mesmo que apenas
reconheçamos como sendo ético, (por exemplo, a ação de algum profeta!), torna-
se, para nós, força constrangedora da qual não podemos escapar mediante
justificações cap-ciosas ou de simples fuga, dizendo, (por exemplo): “Mas isso
era Lutero!”
Pode significar que a criatura é de tal maneira contida e mantida em cheque por
Deus que ela não tem alento para contragolpear, por mais justos e mais bem
aplicados que seus golpes fossem.
723
12, 18
Possibilidades Negativas
Não se pode exigir que tratemos amigavelmente semelhante indivíduo se, para o
fazermos, temos de lutar em nós mesmos para nos dominarmos, gerando
enormes pressões internas.
Se, porém, acontecer que, brigando com ele, aliviamos [descarregamos]
em parte nossa pressão interior, por que não haveremos de lutar? Nada há mais
natural do que a guerra; porém a guerra aponta para além de si mesma porque,
em última análise, ela é dirigida contra o homem que conhecemos.
ção de que — de alguma maneira, vimos o nosso semelhante à luz do UM, que
ele não é.
Parece-nos ser impossível haver qualquer luta “em Cristo”, pois ELE É
A NOSSA PAZ!
Não é possível lançar nova carga sobre este ou aquele, dizendo-lhe que
ção divina!
Isto nos diz respeito, muito de perto, para que mantenhamos paz com todos, a
todo e qualquer preço. De onde tiraremos a emoção e o ânimo necessá-
rios para brigar, quando houvermos reconhecido que NÃO SOMOS DEUS?
Nada daquilo que denominamos PAI — e nisto não podemos acompanhar Kant
— pode ser, sequer, o mais remoto degrau preliminar da “paz eterna”, [a escada
de] acesso ao “Reino do Bom Senso”.
Quando dizemos que vemos Jesus Cristo em nosso próximo e que, por isso, na
guerra vemos a paz, e que podemos e devemos efetivar essa perspectiva 724
Possibilidades Negativas
12, 18-19
“Não fazei justiça a vós mesmos, amados, antes dai lugar à ira de Deus.
Pois está escrito: “É a mim que compete fazer justiça, eu recompensarei, diz o
Senhor” (Deut. 3, 25). Porém se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer! Se 725
12, 19
Possibilidades Negativas
tiver sede, dá-lhe de beber! Pois fazendo isto amontoarás carvões incandescentes
sobre sua cabeça”. (Prov. 25, 21-22).
Segundo o nosso ponto de vista a respeito dessa ordem [de preservar a paz],
parece ser mais do que lógico que não precisamos mantê-la porquanto todo o
atro enigma [da maldade e da repulsa que nos inspira nosso semelhante,
conforme o vemos longe de Deus], parece aglomerar-se em nosso inimigo; todas
observações que foram abafadas e todas opiniões pessimistas a seu respeito,
aparentemente se confirmam e nos parece ser completamente impossível recuar
do conflito em virtude do relacionamento biológico existente entre nós e nosso
antagonista no instante em que ele se opõe a nós como nosso “inimigo”, seja
pessoal ou nacional; por questão de princípios ou por classe social; porquanto,
quem é o inimigo?
ça, que me faz ver o maligno no homem que conheço (12, 17) e que me põe em
vias de retribuir mal com mal.
Com toda razão Lutero vê seu inimigo no Papa de Roma e não apenas um
inimigo mas o arquimaligno em ação. E plenamente justificável o lamento do
Salmista quando vê o “inimigo” surgir qual grandeza quase absoluta perante
Deus, a quem clama por [justiça e] retribuição.
É o inimigo que abre os meus olhos para que eu veja o que secretamente sempre
me irrita em meu semelhante; ele o mostra a mim, como sendo o “mal”; ele me
mostra que, realmente, o “mal” é inerente à criatura humana e a acompanha até o
fim da vida, no mundo; é através de nosso inimigo que percebemos que o mal
segue o seu curso naturalmente, sem impedimento, sem contenção, sem reação e
sem oposição nem interior nem exterior. E o inimigo que desperta em mim o
tumultuoso clamor por justiça que seja superior, que seja compensadora,
vingativa, (e que não encontro); é o clamor pedindo um juiz que julgue sobre nós
dois (e que, todavia, está ausente).
Quem há que me ponha em maior crise do que este inimigo? O que devo fazer
quando eu tiver a experiência elementar, mas avassaladora para mim, que toda
justiça “retribuidora”, está excluída? O que devo fazer quando me convencer que
tudo quanto eu poderia fazer contra meu inimigo é [também] o mal, e 726
Possibilidades Negativas
12, 19
está igualmente sujeito às sanções daquela justiça superior [pela qual tanto
clamo e] de cuja falta eu me ressinto tão dolorosamente?
É por isso que, ao se deparar comigo, [meu inimigo] me afronta com seu ardente
zelo por Deus, zelo que o traiu pela cobiça de seu coração. (1, 24).
Acaso posso assumir a mesma atitude? Posso, também eu, tomar a defesa do que
é justo, em minhas mãos?
727
12, 19-20
Possibilidades Negativas
— Repetimos ainda uma vez: eu posso tentar fazê-lo e, talvez, até precise tentá-
lo. Como haveria eu de encontrar outra possibilidade senão a de enfrentar o Titã,
titânicamente? Apenas não posso, depois, admirar-me se eu tiver de reconhecer
no meu próprio destino titânico, trágico, apavorante e digno de compaixão, que
também eu. na intenção de fazer justiça direta, apenas cometi injustiça.
Quem há que dê lugar à ira de Deus e não à ira humana? Quem cuida para que a
ação humana seja eliminada e suprimida pela superior ação divina?
É isto o que nosso inimigo tem a nos dizer [na qualidade de nosso pró-
ximo e mensageiro de Deus]. Ele apenas desfaz a última ilusão de que a justiça
de Deus poderia ser, para nós — criaturas humanas — algo diferente daquilo que
se pode fazer [exclusiva e necessariamente] no contexto do mal; ele expõe essa
ilusão, mostrando-nos que ela é estranha, remota e invisível; nele transparece a
absoluta impossibilidade de que essa ilusão se torne verdadeira; no inimigo
apenas vemos a justiça de Deus, manifesta em sua ira e o próprio Deus em sua
qualidade absoluta de DEUS ABSCONDITUS.
[que seriam cabíveis], formular apenas perguntas, desistindo de todas ações para
ficar — apenas — nas respectivas pressuposições?
Que gestos devo fazer, [que atitudes tomar], — desde que me é vedado
contragolpear, — senão obedecer esta ordem [absolutamente absurda],
totalmente impossível, pouco prática, de maneira alguma [lógica ou] racional,
que diz:
“Se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer! Se tiver sede, dá-lhe de beber.”?
Possibilidades Negativas
12, 20
oculto no inimigo deve ser compelido a revelar-se. Para tanto preciso reconhecê-
lo como aquele que tem “fome e sede”. [Comparar com Mat. 25, 35-45]. Preciso
reconhecer que [este meu inimigo] nada mais é que a vítima de seu trágico
destino (ainda que, visto de fora — [visto pelo mundo] — ele triunfe
inteiramente); preciso ver nele a criatura batida pela ira de Deus e [preciso
compreender] que a justiça objetiva que contra ele procuro, já foi aplicada. O
“outro”
assim batido, o inimigo fustigado por Deus, já não pode mais ser estranho para
mim; na parábola da morte, ele é o UM.
Todavia tal conhecimento, para ser genuíno, precisa ser alcançado praticamente;
por isso, dá-lhe de comer e de beber! Tu és solidário com o [teu]
inimigo, batido por Deus. Seu mal é teu mal: seu sofrimento o teu sofrimento,
sua justificação, a tua justificação e, somente aquilo que o redime pode redimir a
ti também.
O BEM é todo procedimento que pode manifestar [ou expressar] essa correlação
entre ti e ele; e todo procedimento que, pelo padrão dos atos dos titãs entre eles,
só pode ser entendido como abstenção [como omissão ou au-sência de ação].
Assim, quando tua conduta se elevar à altura do amor ao inimigo, ela será qual a
profundeza do vale e tua atitude será. (realmente). significativa.
729
12, 16-20
Possibilidades Negativas
SOLI DEO GLORIA parece ser para Barth a chave para a interpretação do
preceito de que devemos consentir nas coisas que são humildes. A primeira vista
essa interpretação pode parecer-nos estranha como soa estranhamente a redação
que o Autor dá à passagem de 12, 16, particularmente se a confrontarmos com a
tradução de Almeida. Escreve Barth: “Refleti (vós) sobre a mesma coisa, não
cogitando do que está no alto”, mas consentindo que sejais levados a pensar e
cuidar das coisas humildes! O que tem isso a ver com a glória que só a Deus é
devida?
Todavia, se acaso nos foi difícil aceitar prontamente a forma pouco familiar da
redação de Barth, a introdução do conceito SOLI DEO GLORIA torna a sua
maneira de escrever não apenas aceitável mas profundamente significativa; aliás
esse conceito não se aplica unicamente ao versículo 16, mas aos quatro
versículos aqui analisados como “Possibilidades Negativas” da ética cristã.
Enquanto assim subimos, enquanto somos glorificados pelos homens que vêem
nossas obras quais as exibimos estamos verdadeiramente, novamente — e
sempre — enfeitiçados, fascinados, irresistivelmente atraídos — e traídos —
pelo eloqüente e traiçoeiro discurso da Serpente: “Sereis iguais a Deus”.
É por isto que o Cristianismo vê “com desconfiança”, com reservas e quiçá, até
com crítica, tudo quanto fala da grandeza humana, até mesmo de sua
religiosidade quando nestes “altos montes” colocamos nossa esperança e nossa
confiança. É por isto que a “sadia piedade popular evangé-
lica” perde o lugar ao sofredor “homem russo” — quiçá conforme retratado por
Tolstoi e Dostoievski — e este, — agora talvez exaltado por Marx 730
Possibilidades Negativas
12, 16-20
É por isto que a ética cristã deixa de ter valor quando o fixamos em seu teor
material; é por isto que o asceta em seu retiro. aparentemente sem nada de útil
produzir, pode estar mais perto do reino de Deus que o diligente crente,
inteiramente devotado ao construtivo trabalho social de sua paróquia ou sua
comunidade.
É por isto que somos todos instados a pensar e cuidar do que é simples e comum.
— O que há de comum?
É ainda sob a chave SOLI DEO GLORIA que devemos procurar a inteligência
das observações do Autor sobre o celibato, sem dúvida calcadas no capítulo 7 da
Segunda Carta aos Coríntios lembrando, todavia, que as diretrizes do Apóstolo
são dadas não ao clero mas à Igreja em geral, segundo aquilo que ele,
particularmente, considera ser o mais acer-tado — o mais desejável — “por
causa da instante necessidade”; em vista da premente e urgente questão do
momento que então vivia a Igreja de Corinto e por extensão, toda cristandade
dos primeiros séculos de nossa era. Notar o cuidado do Apóstolo em destacar e
ressaltar dentro de suas considerações o que é, fundamentalmente, mandamento
divino.
731
12, 21 a 13, 7
A seriedade do Autor, o seu empenho em dizer aquilo e somente aquilo que lhe
parece estar claro na Epístola, a sua ferrenha fidelidade ao que entende ver na
Escritura Sagrada, a absoluta ausência de partidarismo, estão patentes de modo
notório nesta parte da exegese. Talvez desagrade a muitos e até a todos; talvez dê
ocasião a que outros, menos escrupulosos,” o (seu) falar deformem e com sua
voz iludam aos que menos sábios forem” (Rudyard Kipling). Seja como for a
verdade está aí clara, até mesmo para quem não queira ver.
Para servir a Deus é preciso, não raro, desagradar aos homens, O Cristão há de
estar sempre em minoria — é o próprio Barth que o diz, algures — e desconfie
de seu (próprio) “Cristianismo” quem deixar de ser exceção no mundo.
O Autor consegue desagradar a “gregos e troianos”, isto é, à Autoridade e à
Rebelião. Todavia, mais vale obedecer a Deus!”
732
12, 21 a 13, 7
Vs. 12. 21 a 13, 7 Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem!
Tratamos agora da ordem da vida social (comunitária) cotidiana, que não deve
ser transgredida porque ela é a grande demonstração a favor da ordem do mundo
vindouro.
Para expor e ouvir o que aqui temos a dizer, vamos palmilhar terreno
acaloradamente disputado. Parece-nos pois, que não será inoportuna uma
advertência endereçada a todos que estejam por demais interessados [nessa polê-
mica] e especialmente àqueles que estiverem na expectativa ansiosa de revela-
ções sensacionais. Se este livro cair nas mãos de tais pessoas, que não iniciem
aqui a sua leitura, pois quem não nos acompanhou e entendeu — no todo, muito
menos nos compreenderá agora pelo simples motivo de dizermos o que dizemos,
— nada mais e nada menos.
733
12, 21 a 13, 7
Ora, é certo que o instante em que nos recordamos de Deus [ou em que com ele
nos encontramos], apenas pode ser considerado “eterno” na qualificação que
esse encontro lhe dá; todavia, dentro de nossa temporalidade será sempre um
acidente temporal, com épocas anteriores e posteriores a ele, isto é, ficará
situado entre um passado e um futuro. Semelhantemente, a decisão ética [ou
espiritual] que tomarmos na vida apenas poderá ser “absoluta” na medida em
que se referir a algum evento que já foi suprimido ou que jamais poderá ser
suprimido. [De outra forma será apreciada em termos de coisa passageira —
Existe [no mundo] uma pletora de “realidades éticas”, não apenas aquelas
baseadas nos tumultuários experimentos pessoais [isolados e casuais], po-rém,
muito além do mero acaso ou capricho, superabundam as [pressuposi-
ções [ou razões] das altas esferas de objetivos específicos — Estado, Direito,
Sociedade, Igreja — que dão à multitude de indivíduos a configuração de
totalidade e [que pretendem já haver resolvido o problema ético]; pretendem já
conhecer a resposta à pergunta sobre o que devemos fazer. Com grande
desembaraço e baseados em argumentos dos mais plausíveis, apresentam a
“realidade” de suas soluções ou respostas e não apenas “provam” essa realidade
como afirmam que elas representam a ordem e o caminho a seguir que
buscávamos desnecessariamente (por já terem sido encontrados — por eles).
[Estas organizações humanas que não vêem razões para que nos morti-fiquemos
em sacrifício vivo — porquanto não vêem qualquer necessidade de
transformação, antes entendem que já estão impondo a ética de que Deus se
agrada (12, 1-2) ou então, porque simplesmente revogaram a “ética divina” e
implantaram a sua própria — estas organizações são “as autoridades instituí-
das”]; elas exigem reconhecimento e obediência e temos de nos avir com elas,
quer queiramos reconhecê-las e obedecê-las, quer as queiramos rejeitar.
734
12, 21 a 13, 7
“todo poder público é exaltado pela sua origem divina” (Wernle) mas está no
ataque desferido ao próprio indivíduo, isto é, à sua “cogitação pelas coisas que
estão no alto” (12, 16), [à preocupação que os homens têm com as coisas que
lhes podem trazer poder, honra e fama], na sua petulância de Prometeu.
(como por exemplo “os deveres do cidadão”, segundo Juelicher) mas o nosso
empenho é em não quebrar essa ordem existente, isto é, estamos interessados em
que o indivíduo não se porte contra a ordem [que a autoridade representa].
E o revolucionário que se tem aqui sob a mira, para tirar-lhe das mãos o princí-
735
12, 21
[da revolução e da anarquia], essa titânica pretensão dos homens de [em si e por
si mesmos] assegurarem a renovação e a transformação de valores.
“presente século” senão buscar meios e métodos] para assegurar o curso normal
do mundo contra a intranqüilidade que lhe acena de todos os lados ante a grande
dubiedade de suas bases [e seus fundamentos]? (Acaso não são as “autoridades”)
É uma conspiração dos excessivamente muitos contra o indivíduo que fala, — e
só pode falar — de lá onde a pai. a sabedoria e o poder dos muitos chega ao fim?
736
12, 21
A criatura humana não tem o direito de ter direitos objetivos contra seu
semelhante e quanto maior for a aparência da objetividade da qual ela se sabe
cercar, tanto maior é a injustiça que ela inflige no “outro” porquanto este “outro”
espera pela justiça daquele que é “UM”.
737
12, 21
A Grande Possibilidade Negativa
Todavia, quando e onde a justiça de muitos — por maior que fosse o seu número
— seria a justiça desse “UM”? Onde e quando não foi esse direito “dos muitos”
obtido com subterfúgios ou, simplesmente, usurpado? Qual a legalidade que não
seja ilegal em sua origem? Qual a autoridade que não estabelece essa sua
autoridade, na tirania?
Contudo, é precisamente ao revolucionário que precisa ser dito que, quando ele
se entrega a essa cogitação ele está sendo “vencido pelo mal”. (Não se trata aqui
do revolucionário que recorre ao mais do que proibido derramamento de sangue.
Aliás, a atividade revolucionária não se inicia com a violência sanguinária mas
pelos secretos e venenosos ressentimentos contra o sistema” existente que alguns
tanto mais cultivam e saboreiam quanto mais abomi-nam a violência!).
O revolucionário se esquece de que ele não é o “UM”; ele se esquece de que ele
não é o “sujeito” [o autor, o agente] dessa liberdade pela qual tanto anseia; ele
não é o Cristo que se defronta com o inquisidor mas é o próprio inquisidor com
quem Cristo se defronta.
O revolucionário faz, também, uma reivindicação que lhe é defesa: faz da justiça
(do direito) um objeto. Também ele, com “sua razão” passa por cima de seus
semelhantes; também ele usurpa uma posição que não é dele, que não lhe deu
respeito. Também ele visa a instalar uma legalidade que é ilegal em sua origem,
uma autoridade que não tardará muito a revelar seu verdadeiro caráter tirano —
conforme com terror o verificamos no bolchevismo e que poderíamos mostrar
em acontecimentos muito mais espirituais — [por exemplo, no fanatismo da
própria Igreja, tão bem exemplificado na “Grande Inquisição”].
738
12, 21
Qual o ser humano que teria [ou tem o direito de apresentar ou representar algo
NOVO, novos tempos, — mundo novo ou até, algum “novo espírito”?
Acaso as coisas novas não se originam das coisas existentes, na medida em que
vão sendo armadas pelos homens? E essa “coisa nova” não passa a ser coisa já
existente no mesmo instante em que é engendrada?
Quem há que, ao criar o que é NOVO não esteja ele próprio (ele!) criando o
MAL? Acaso a coisa antiga que ele considera como sendo o mal e quer
substituir, não foi também inventada como coisa nova e, por isso mesmo, é ela o
mal?
[Ele quer tomar o lugar de Deus, quer fazer a justiça por suas próprias mãos...].
Esta é a sua tragédia; o mal não é resposta [ou solução] para o mal. A
consciência ferida pela ordem existente não se restabelece com a destruição
dessa ordem; “Vence o mal com o bem!”
O que mais pode significar e indicar esta possibilidade que nos resta [de vencer o
mal com o bem] senão o fim, a supressão, de todo triunfo pessoal, quer seja na
ordem estabelecida, quer seja na revolução? E de que forma haveria isto de se
realizar senão em misteriosa abstenção — [em “não-agir”] justamente onde e
quando, como seres humanos, sentimos o mais forte apelo à ação?
MUTANDIS] com o legalista que, também ele vencido pelo mal imagina impor
a legalidade da qual resulte a verdadeira revolução — [aquela da qual só Cristo é
o vencedor] — no entanto instiga a outra preparando o caminho para a revolta do
ódio e da destruição).
Aquilo que o homem quer é sempre julgado por aquilo que ele faz (7, 15 e 9).
739
12, 21 a 13, 1
Como poderia ele agir mais drasticamente do que voltando exatamente desse
ponto à fonte original da “abstenção” — [do “não-agir”] — isto é, não mais
alimentar rancores, não dar lugar a ira, não agredir, não destruir?
— Porque essa luta em que o rebelde se envolve não resulta do conflito entre ele
e a “autoridade governamental” mas é [a rigor], a luta entre o bem e o mal.
Ora, mesmo a mais radical das revoluções apenas pode opor à ordem existente
aquilo que já existe; (mas, se o que existe é mau, como pode a revolu-
(Se admitimos como certo, por ser lógico e natural, que toda “situação existente”
tenha em si algum bem (por mínimo que seja) e, semelhantemente, toda
“revolução”, traga em seu bojo alguma injustiça (ou algum mal — ainda que seja
diminuto), então veremos logo que], a revolução vitoriosa dá vigor à situação
anteriormente existente fazendo sobressair o que então havia de certo 740
[e se enfraquece com seus próprios erros] sem tirar qualquer benefício das falhas
da situação derrubada — [das quais é feita “tábua rasa” pois, “afinal”, foi por
causa delas que se admitiu a revolução!].
[ante as tarefas que a nova situação lhe impõe o prestígio se desgasta no atrito
constante dos interesses em choque] e a ação revolucionária se torna inócua.
o rebelde tiver absoluta e plena razão, ele esta absolutamente errado segundo o
juízo de Deus.
13, 1
humana remodelar ou reformar será necessariamente desfeito para ser refeito por
Deus de modo que perante ele toda qualificação que os homens derem às suas
organizações será nula de direito e de fato e a situação retomará sempre a sua
condição original.
Para representar o que ocorre com essa mudança de qualificações vamos nos
valer de uma analogia matemática, simples].
Sejam,
a, b, c, d, ...
(+ a + b + c + d + ...)
A sua supressão pela ordem divina [ou a sua transformação], pode ser
representada colocando-se o sinal negativo na frente do parêntese.
- (+ a + b + c + d + ...)
É evidente que a mais cabal das revoluções mesmo que seja a mais
absolutamente radical em seu sentido histórico — [por exemplo as modernas
revoluções culturais] —jamais pode ter o efeito abrangente e definitivo desse
sinal negativo aposto ao parêntese, [pois não poderá modificar todas as coisas de
forma definitiva e total], conforme é o caso do poder divino; [o que a revolução,
talvez, possa fazer] será, quando muito, mudar as características peculiares de
grupos isolados, o que poderíamos indicar matematicamente trocando os sinais
individuais dos termos.
- a, - b, - c, - d. - ...
- (- a, - b, - c, - d. - ...)
(+ a + b + c + d + ...)
Portanto, podemos dizer que, assim como nesse polinômio o sinal negativo do
parêntese recambia, de fato, os sinais de todos termos individuais às 742
13, 1
“Que toda pessoa se sujeite!”, significa que cada pessoa deve considerar o
quanto é falsa, em si mesma, a avaliação humana; não podemos aplicar o sinal
negativo decisivo; apenas podemos tornar patente a nós mesmos o quanto este
sinal aposto por Deus invalida aquilo que — [segundo nosso conceito humano]
— consideramos como sendo positivo ou negativo.
743
13, 1
ção de que “toda pessoa se sujeite à autoridade”; [isto é, não podemos pretender
deduzir dessa afirmação que a autoridade, em si mesma, (como pessoa) seja de
origem divina] pois é claro que “Deus” não pode ter, aqui, o sentido de
inequívoca realidade metafísica — o que seria uma idéia estranha à Epístola,
introduzida subitamente em oposição ao sentido que lhe é atribuído cm todo
restante da carta.
[Aliás], de que valeria guardar absoluta fidelidade ao [que “nos parece” estar]
expresso, segundo a letra do texto, se com isto faiscássemos o sentido [daquilo
que realmente está escrito]? (O texto não diz que a autoridade é divina mas) a
“autoridade” é de Deus; [e parte do sistema cuja existência Deus permite como
existe, por exemplo, a Igreja, a Família; este Deus não toma formas humanas
nem delega poderes a homem algum]; este Deus é o Senhor, o Deus
desconhecido e recôndito, o Criador e o Redentor; é o Deus que elege e rejeita; a
“autoridade” é dele, e o que existe foi por ele constituí-
do. [O texto] significa que esta “grandeza” que designamos como “autoridade”
— como qualquer outra grandeza humana, temporal, material, — é medida em
Deus; Deus é o seu princípio e o seu fim, sua justificação e o seu juízo, seu SIM
e seu NÃO.
ção precisa renunciar também à “flor azul” do romantismo pois com relação a
Deus o mal não pode servir de motivo para nossa queixa (como não pode, o
bem, ser motivo para nossa glorificação!).
744
13, 1-2
Como reação e resposta ao mal que encontramos na ordem vigente e que tão
diretamente nos atinge e fere, podemos apenas curvar-nos perante este Deus que
é tão maravilhosamente extraordinário e superior a todos os deuses porquanto, se
Deus for o juiz, quem contenderá com ele? E sendo assim, onde não se fará
justiça? Onde deixará o mal de testificar plenamente o BEM? Onde e quando
deixaria a realidade — [a situação existente e a autoridade constituí-
da] de ser referência plena ao que, originalmente, é imaterial? Como não haveria
de o mundo existente ser plena parábola do não existente. [do mundo vindouro]?
“Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente mas por causa
daquele que a sujeitou” (8, 20).
para apelar às “coisas que são do alto”, isto é, [a realidade de que a ordem
existente foi instituída por Deus]despoja-nos de tudo quanto nos e indispensá-
13, 1-2
[Almeida escreve: “De modo que aquele que se opõe à autoridade, resiste à
ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação”].
Por maior que fosse [ou que seja] a razão do rebelde, ele não a tem,
objetivamente; no instante em que ele vai além do protesto é preciso que se
proteste contra ele: “naquilo que julgas aos outros a ti mesmo te condenas, pois
praticas as próprias coisas que condenas”. (12, 1). Entre os homens, a atividade
do revoltoso é possível — (tão possível, por exemplo, como a da Guarda
Branca.)
13, 2-4
Autor deixa bem patente que a revolução, uma vez implantada, uma vez
vitoriosa, passa a ser, IPSO FACTO, ordem estabelecida].
Por trás da ordem existente — (que também pode ser a ordem recém-instalada)
— está Deus, ele, o Juiz e a Justiça!
Vencido pelo mal o homem se entrega à esfera onde o mal passa a ser o tribunal
do próprio mal e então, já não pode, sequer, admirar-se de seu destino.
“Porque os que dispõem do poder não representam qualquer susto para os que
praticam o bem mas, sim, para os que fazem o mal. Portanto, se não queres
temer a autoridade, faze o bem e encontrarás até o reconhecimento dela porque
ela é serva de Deus para teu bem”.
O revolucionário [ou a revolta] toma alento quando a pessoa sente ferida sua
consciência de justiça; quando a pressão que “os muitos”, — o Estado, a Igreja,
a Sociedade, — exercem sobre os indivíduos, se lhe afigura como sendo o MAL;
quando [no indivíduo ou em parcela maior ou menor da sociedade], surge o
horror ante esse super-poder da justiça que [sempre] leva a palma da vitória, na
ordem existente. Todavia, até que ponto se justifica esse horror? Evidentemente
não o é na medida em que nosso procedimento está [ou estiver] no mesmo plano
de ação daqueles que enfeixam o poder em suas mãos, daqueles que estão
“exercendo a justiça” mas, sê-lo-á na medida em que opusermos ao mal o
próprio mal abrigado em nossos pensamentos, palavras e atos: quando
opusermos a quem designamos como autoridade, aquilo que classificamos como
liberdade; quando opusermos à legalidade, a ilegalidade; à ordem relativa, a
relativa desordem; ao antiquado, a novidade; quando à dureza respondermos
com dureza!
Este horror [ou pavor] é o resultado do mau procedimento humano posto sob a
luz do julgamento divino; e qual seria a conduta humana que não fosse
747
13, 3-4
Todavia, é para isto que a autoridade foi “instituída”. É por isto que ela não
representa qualquer “susto” para quem procede bem. E como poderia ser
diferente? As autoridades não tem poder onde se faz o bem.
[“simplesmente”] porque não é subjugada por ele; não é atacável porque não
ataca; não é vulnerável porque não fere. Ela não está lá onde o mal passa a ser o
tribunal do próprio mal e por isto não está sujeita à fatalidade, pois já foi julgada
por Deus e justificada por ele! O que seria a boa obra [dessa nova criatura] senão
esta sua permanência no campo eterno da justiça e da justifica-
[de protesto ou de aplicação da justiça a que o “filho deste século” seja instigado
por seu romantismo — seu idealismo—, seu zelo ou seu sentimento de justiça,
renúncia essa] pela qual toda conduta e obra se volta à sua origem [em Deus].
Este “bom procedimento”, que jamais se materializa, não representa qualquer
susto [ou motivo de receio], nem às autoridades nem à rebelião [ou à anarquia!];
antes pelo contrário: enquanto a pessoa fizer o bem está ela livre das convulsões
que, inevitavelmente, assediam aos que se envolvem nessa luta de Prometeu,
contra (ou a favor!) da ordem existente.
[Quem pratica o BEM], verdadeiramente antevê o final [da providência divina],
além das coisas antepenúltimas que pode [ou poderia] fazer, agindo na esfera do
mal e assim, se torna cada vez menos visível, menos audível, de menor
dimensão. [menos perceptível nesse ambiente do qual se afasta]: ele se liberta de
todas emoções, de todas extroversões e de toda sua inquebrantabilidade
— [quiçá de toda dureza de sua cerviz]. Quem assim procede], já não é mais um
deus iracundo em luta com outros deuses mas, torna-se imparcial e encontra até
o reconhecimento da autoridade que, sem qualquer suspeita [de, também ela, não
ser aceitai, se compraz com o cidadão notavelmente pacífico conforme lhe
parece ser a criatura cujo comportamento, na realidade, significa apenas a
aceitação da justiça de Deus — pela qual [como homem deste século]
tanto tem (ou teria) a opor a essa autoridade — e que, no entanto, prefere
silenciar [para dar lugar à ira de Deus!].
(ainda que por ironia!), pois renuncia a toda parcialidade [todo partidarismo] e
todo romantismo [ou, talvez quixotismo]; tendo ficado, ele mesmo, liberto dos
ídolos [políticos], tal cidadão já não precisa persistir no protesto contra eles: não
precisa preocupar-se permanentemente com a evidente insuficiência das 748
13, 3-4
soluções atuais, da ordem estabelecida e dos meios que a Sociedade (ou a na-
[Quem pratica o bem] não ignora que a sombra de julgamento que por toda parte
vê, é a sombra da retidão; tal pessoa também não deixa de perceber o verdadeiro
sentido de testemunho e de parábola que caracteriza todas tentativas de purificar
a conduta humana.
13, 3-4
[uns com os outros] em seu peculiar tabuleiro de xadrez. (Assim, por exemplo, a
política só é possível [quando a pessoa que se dedicar a ela a considerar]
como jogo de oposições, quando for evidente que não se trata — nem é possí-
(Por outro lado é claro que, muito longe de aqui encontrarem sua confirmação,
os revolucionários devem tomar a ocasião para meditar sobre o que aqui foi dito,
confrontando tudo com os seus próprios pontos de vista).
“Se, porém, fizeres o mal, então teme, pois não traz a espada para aparentar. Ela
[a autoridade] é serva de Deus para dar cumprimento da ira de Deus contra
aqueles que promovem o mal”.
750
13, 3-4
”Daí a obrigação de nos sujeitarmos — não apenas por causa da ira mas,
Experimentar a ira de Deus, apenas como sua ira, seria a morte eterna; a
consciência, porém, entende o PARE, ordenado à espada sacada contra nós e
reconhece a Deus na sua ira.
751
13, 4-5
Então [ainda] o nosso espanto era inocente e nos uníamos a Deus em nosso
horror ante o lamento da criatura; então também sabíamos infinitamente mais —
muito melhor e mais profundamente, — a respeito da sua esperança.
13, 6-7
Acaso quereis destruir esta ordem estabelecida que fala tão eloqüentemente de
outra ordem, totalmente diferente? [Evidentemente] NÃO, porém:
Pode parecer-nos não ser assim nas adiantadas democracias do mundo, onde a
“lei das selvas” parece ter sido superada; onde sequer se admite que as nações
sejam invadidas por seus vizinhos; onde o apossamento do governo por meios
violentos seria um anacronismo: onde eleições facciosas ou “pré-preparadas”
parecem ser impossíveis.
Entendemos, por convenção, que não é tirana a autoridade que pauta seus atos na
conformidade de leis sancionadas pela vontade soberana do povo. Todavia, só há
uma lei que não é tirana porque se baseia no amor: “Amarás ao Senhor teu Deus
sobre todas as coisas, e ao teu próximo como a ti mesmo!”
2. “O revolucionário não é aquele que tão terrivelmente olha por seus olhos.”
Parece-nos que esta maneira de dizer se relaciona (e tem sua origem). com certa
maneira de falar, na língua original. Creio que o Autor quer dizer que o
revolucionário imagina um Deus vingador e feroz que deve ver o mundo
conforme ele — esse revolucionário —
753
12, 21 a 13, 7
Grande Inquisidor”.
3. Barth procura demonstrar que, ao dizer que “não há autoridade que não venha
de Deus”, Paulo não quis afirmar que a autoridade está revestida de divindade
(conforme se consideravam não poucas “casas reais” da época e,
freqüentemente, os próprios Cezares romanos).
O Autor se esforçou para demonstrar que a autoridade não deve ser idolatrada
mas respeitada e o resultado de suas elucubrações, que procuramos expor com a
fidelidade que nos foi possível, pode ser apreciado e julgado pelo leitor.
E por isto, e somente por isto, que não valeria a pena tentar “ser fiel” a uma
suposta interpretação “literal” do texto. contradizendo todo ensinamento bíblico.
— Respondemos: o “Grande Dia” vem e não falha; esteve, está e estará sempre
bem próximo de nós; mais próximo hoje do que ontem, quando nos
convertemos. Não podemos dizer quando vem, como não podemos dizer quando
nossa fé nasceu, porque a fé não é temporalidade, não é coisa ou matéria, mas
graça espiritual divina que sempre existiu e existirá; é dom do Espírito Santo e
não a podemos identificar nem situar no tempo e no espaço. Todavia, 754
13, 8-14
sabemos “em quem temos crido!” Quando? Acaso foi no caminho de Damasco?
Foi na casa de “um certo Judas?” Foi no ministério de Ananias? Foi no
apedrejamento de Estevão ou, quem sabe, aos pés de Gamaliel?
Sim, acaso foi naquele transe amargo ou, nesta experiência gloriosa?
O que nos importa é não recalcitrar. O que sabemos é que AGORA é o tempo
aceitável: “Eis que estou à porta e bato”
Nada de brigas e contendas! Antes imitai ao Nosso Senhor Jesus Cristo e não
segui a tendência da carne para satisfação de suas cobiças.
A ninguém devais coisa alguma, excepto o amor mútuo”. Não ficar devendo!
“fiquem devendo” a quem quer que seja. Seriam dúvidas financeiras? Seriam
salários retidos ou mercadorias compradas a crédito, ainda não pagas?
mente para a análise sem entrar em qualquer cogitação sobre este aspecto do
assunto, porque na língua alemã o trecho parece não deixar margem a dúvidas:
O que Paulo está dizendo é que não devemos cultivar a vingança, o ódio, a raiva,
a ira; não devemos ameaçar nem “respirar ameaças”; nada devemos retribuir
senão o amor mútuo.
Podemos expressar isto de outra forma, dizendo: Não resistais. Não busqueis a
decisão no terreiro do mal, pela negação (ou renegação.). Não entreis em
transgressão!
O protesto contra este mundo deve ser levantado pela prática do “amor mútuo”;
portanto deve ser apresentado e não abandonado.
ção existente no mundo em que vivemos e não consta de seu programa ‘lança o
seu protesto sobre o grande erro”; e... “somente pode ser encontrada naquilo que
Deus quer e faz!” [12, 9-IS]. É nesta sua forma totalmente [imaterial], invisível,
que a ética positiva testifica a originalidade de Deus [e de sua manifestação que,
a nós, parece tão estranha].
756
13, 8
como o invisível ponto de referência do mais alto anseio humano e que, por isso,
é também o ponto incisivo da inversão do sentido de nossa vida — [qui-
çá de nossa conversão].
como sendo o último SIM contido no derradeiro NÃO de toda vida humana.
13, 8
vemos [esse amor] como “derramamento do Espírito Santo” (5, 5), isto é, como
a realidade mediante a qual os homens conhecem a Deus, tomam posse dele e se
apegam a ele como o Deus Desconhecido, o Deus Recôndito, como o último
SIM no derradeiro NÃO de toda vida observável concreta”].
Amor é a apresentação existencial da criatura humana a Deus; é o toque da
liberdade de Deus e, justamente neste toque, é o fundamento de sua
personalização e “individualização”, se assim pudermos dizer).
O que significa isto quando verificamos que todo esse arrazoado cai por terra ao
ser confrontado com a nossa existência, com a vida que temos de viver em sua
singularidade e realidade, quando verificamos que no clímax de nosso discurso
sobre Deus ele mesmo nos perturba com a interrogação sobre “o que devemos,
pois, fazer?”.
O que significa isto tudo se, mediante essa pergunta Deus novamente se encobre
e se antepõe a nós como “o Deus Desconhecido?” (12, 1).
É no próximo que nos deparamos com o enigma da natureza original: é nele que
vemos a realidade do ser humano; nele nos confrontamos com nossa própria
criatura [como em espelho]; as suas peculiaridades nos lembram as nossas
próprias; nele vemos a nossa perdição, o nosso pecado e a nossa morte.
13, 8
Lembremo-nos de que o amor a Deus se torna realidade [em nós] quando esse
“TU” [que nos individualiza] se torna tão inexorável que já não podemos afastar
de nós a pergunta: [então], “quem sou?”
Este “TU” que questiona e responde se encontra, afinal e, na sua forma mais
notável, na problemática do próximo que” caiu nas mãos dos salteadores”.
O próximo está sempre invisível, oculto no “outro” para quem já não posso ser
— ou continuar sendo — [simplesmente] “outro”; ao qual preciso amar “como a
mim mesmo”, tão certo quanto amo a Deus, se é que o amo.
com o próximo.
759
13, 8
10, 30-37).
[acaso] representa paz ou luta, se significa [para nós] aquilo que entendemos
como amorável ou se, em muitíssimo maior grau, se afigura como acrimônia e
aspereza, — isto é outra questão. (12, 9).
— neste, naquele, em qualquer outro. Podemos dizer que o amor está ligado ao
seu objeto (isto é, ao seu próximo!) porque é na medida em que, de alguma
forma, se antepõe a ele.
primeira parte).
em sua total irritabilidade, sua extravagância e seu modo original de ser e agir,
justamente porque — é na medida em que esse AMOR desata e solta esta
originalidade que deve cair por terra qual manto que cai dos ombros
(Kierkegaard).
760
13, 8-10
Tomado a sério, o amor [ao próximo] é dever da “nova criatura” e, como dever,
está protegido contra todas arbitrariedades, todos enganos e todos abusos. Todos
mandamentos “Não DEVES” [fazer isto ou aquilo], os mandamentos negativos:
“Não adulterarás.””Não matarás!” “Não furtarás!” “Não cobiça-rás!” (Exo. 20.
13-27 e Deut. 5. 17) culminam neste mandamento positivo —
A criatura que, para voltar a Deus, foi compelida a toda abstenção é agora, por
Deus impelida a agir novamente; é a criatura vencida, que se reergue; é o
pecador, que é justificado; é o amortecido que é vivificado. Neste [impulso]
“O amor não causa mal ao próximo!” Portanto, o amor é a “obra do bem” que
vence o mal (12, 21), que anula e destrói a situação existente tão certamente
quanto a revolta (ou a revolução) não a consegue destruir — [embora o tente e
para isso se faça].
O amor não contradiz e, por isso, não pode ser refutado; não concorre e,
portanto, não é vencido; não busca decisão e, conseqüentemente, ele próprio é a
decisão.
Na esfera do mal o amor somente pode ser definido mediante negativas (pelo
que não é e pelo que não faz!) (I Cor. 13!). É por isto que o amor refuta o mal —
se é que nos podemos expressar assim. [Todavia], não há nenhuma
impossibilidade de se fazer o bem no ambiente do mal [que é o único ambiente
nosso conhecido! Nada me desobriga do dever de amar, mas: se eu deixar de
amar ao próximo] sob a alegação de estar assim protestando contra o curso deste
mundo, então também não amo a Deus. Então já não há sacrifício [que é o meu
culto racional] e não há renovação de pensamento (12, 3).
761
13, 10-11
em Deus! [E o ser humano que] morre e vive; cai e se ergue; é “quem ele é” é
“quem ele não é”, quer dizer, criado conforme aquele e conforme este e criado
novamente como o UM — o indivíduo em sua total unicidade e em absoluta
generalidade [quiçá sua universalidade]; — sempre [como indivíduo], na
qualidade de “velha criatura e [na sua universalidade], como “nova criatura”,
esta sobrepujando aquela na invisível mudança dos tempos, em Jesus Cristo.
da revelação, nesse ‘momento’ eterno que sempre existe, “no entanto não
existe”.
intervalo — [desse pequeno lapso de tempo que decorre entre o momento que
acaba de passar e o momento que chega] — minúsculo interregno nos tempos.
Apenas podemos fazer o que fazemos, conhecendo o INSTANTE, por isso nunca
“já o fizemos” pois, quando já se fez alguma coisa “nesse” conhecimento?
Apenas podemos fazer o que fazemos como testificação da vitória que
aconteceu, acontece e acontecerá em Cristo; apenas com vistas ao nascimento da
pessoa dentro da individualidade; é apenas no aguardo do FIM, (fim do mundo
da temporalidade, das coisas e dos homens) que está [na realidade], o começo —
o princípio [do novo céu e da nova terra!].
13, 11-12
“Chegou a hora para acordar do sono porquanto agora a nossa salvação está mais
perto (de nós) do que então, quando nos tornamos crentes”.
Jesus Cristo não passou sua vida terrena algures fora desta série de momentos
dos tempos mutáveis mas esteve [plenamente] inserido nela e é também dentro
dela que achamos [o conhecimento para] o reconhecimento do instante eterno;
nesse reconhecimento encontramos o local, o tempo e o estímulo para amar o
próximo].
pois a fé não pode transformar-se em realidade (3, 28), não pode ser algo que
764
13, 11-12
Não há crença que não precise ser lembrada da REVELAÇÃO; não existe obra
que não tenha de ser lembrada de que lhe é necessário ter o respectivo
conhecimento [ou saber]; nem há pessoa alguma que não necessite de ser
lembrada da LIBERDADE de Deus. Enquanto esta lembrança não ocorrer — (e
quando
ções!” Também há tempo oposto: os dias quando “a Palavra do Senhor era mui
rara e as visões não eram freqüentes”. (I Sam. 3, l[e Heb. 3, 7-8; Sal. 95, 7-8] ).
“Agora nossa salvação está mais próxima que outrora, quando nos tornamos
crentes”.
como existente, [pois este “já” somente se dará na segunda vinda, isto é], no
INSTANTE ETERNO do retorno glorioso de Nosso Senhor Jesus Cristo no final
dos tempos: na realização do Juízo Final, com a presença de Jesus Cristo. [O
‘os tempos da revelação’ que ‘já’ ocorreu, — as obras que ‘já’ foram feitas, Deus
que ‘já’ conhecemos, — e a nossa expectativa pela realização daquilo que ‘já’
765
13, 11-12
Todavia, essa tensão entre os tempos (de “então” e os de “agora”) tem tanto (ou
tão pouco) a ver com a célebre história da Igreja nestes vinte séculos os quais, —
sabidamente — ainda “não nos trouxeram” o retorno glorioso de Jesus Cristo no
final dos tempos como, por exemplo, o número de semanas ou meses que a Carta
aos Romanos ficou na bagagem de Febe durante sua viagem de Corinto a Roma
(16, 1) ou então, significa tão pouco quanto a soma dos minutos que se teriam
escoado entre o ditado de Paulo e a escrita de Tércio, porquanto: a hora do
despertamento, a “última” hora, cujo soar aqui se anuncia, verdadeiramente não
significa que existe “uma hora” que venha depois; nem sequer entra aqui em
cogitação a hipótese de que [ao despertamento], se siga um tempo —
(cronológico.), para o cumprimento dos tempos. Não é como se a vida que vem
da morte, o “NÃO-SER” que suprime tudo o que é, a justificação dos que já
foram julgados, o “AGORA” que está no intervalo de todo anterior e de todo
porvir, pudessem preencher, [completar] algum tempo ao lado do tempo [isto é]
(ao lado e contido no tempo presente).
“nunca se dá”? Como se daria aquilo que, segundo seu próprio conceito, não
pode acontecer, de forma alguma? [Em outras palavras: como podemos dizer que
“tarda” um acontecimento que não está programado? Literalmente, diz o Autor:
“como haveria de “falhar” aquilo que, segundo sua própria natureza, de modo
algum pode acontecer?]. Porquanto o FIM que o Novo Testamento anuncia não é
evento temporal, não e um fabuloso “fim do mundo”; [o fim anunciado] nada —
absolutamente nada — tem a ver com alguma catástrofe histórica, telúrica ou
cósmica: o fim anunciado pelo Novo Testamento é verdadeiramente o FIM; é
tanto o fim que estes vinte séculos pouco ou nada significam com respeito à
proximidade ou a longinqüidade de sua realização, Este FIM é tão decisivo — e
definitivamente o fim, que Abraão viu o dia e se alegrou!
766
13, 11-12
(como estes e aqueles) — da amarga seriedade, [da dura realidade] do dia “que
se aproxima” porém, justamente por que o “Instante Eterno” não acontece —
Então estaremos aguardando o retorno glorioso de Jesus Cristo “no final dos
tempos” ou, por outras palavras, estaremos atribuindo à nossa existência a
seriedade que ela tem; estaremos reconhecendo a Jesus Cristo como Autor e
Consumador [de todas as coisas]; então já não nos recusaremos a dar lugar ao
arrependimento, a mudar e inverter o rumo de nosso pensamento, a meditar nos
pensamentos eternos e, portanto, já não deixaremos de amar [o próximo].
Contudo, sem “conhecer” o “momento presente” nada disto acontece. Sem este
conhecimento não há AMOR — [Ágape].
767
13, 11-14,0
vel lapso de tempo que existe entre o ANTES e o APÓS dos dias de nossa vida e
amando o próximo porque somos amados em Cristo.
O Reino de Deus está demasiadamente propínquo; a avassaladora muralha da
eternidade [visível] em cada rocha, cada flor, em todo semblante humano!), o
limite do [nosso] tempo (MEMENTO MORI!), a presença de Jesus Cristo como
a volta [a curva, a inflexão] dos tempos, [tudo isto] nos oprime de tal maneira
que o traço retilíneo [isto é, a uniformidade] de nossa existência material — o
procedimento humano sob a determinação [e o influxo] da vida, da emoção e de
“Eros”, não pode deixar de ser perturbado [fletido, quebrado].
Estas palavras são dirigidas aos “amados de Deus em Roma, aos que foram
chamados para a santidade!” (1, 7).
Acaso não é evidente que também (nós) estamos no reino dos Karamazoff, onde
tais possibilidades existem?
Aquilo que designamos como Reino de Deus e este outro reino [que é tão bem
exemplificado no “mundo” dos Irmãos Karamazoff] parecem ser círculos que se
sobrepõem em pontos diversos, de não pouca monta. Se nesse terreno existir
separação claramente definida na qual as “obras das trevas” são postas de lado,
então tratar-se-á de separação final [decisiva], separação [feita mediante e sob] o
conhecimento do “momento presente” porquanto, o que se pode dizer se não que
a linha real da existência humana nenhures e jamais é interrompida e que “a
tendência da carne” nunca se muda, seja nas pessoas religiosas [ou piedosas],
seja nos “filhos do mundo”?
13, 12-14,0
Portanto, acaso pode o ser humano admirar-se de estar sempre de novo à borda
do abismo, de estar sempre tão profundamente enredado na mais profunda
dubiedade? Há de o ser humano suportar estar nas profundezas da animalidade,
se não suporta as altitudes morais da humanidade? Acaso é mais fácil solucionar
o enigma da vida, lá embaixo do que aqui em cima? Para que [e por que]
O ser humano é, em sua totalidade, atacado por Deus; o Reino de Deus rouba-lhe
o fôlego oprimindo-o em todas suas atitudes, em todas suas cobiças.
nos”. A longo prazo, não teremos opção [não nos será dada alternativa] para
fugir desse ataque divino e teremos de ceder à pressão de Deus ao longo de toda
linha [de resistência, ao longo de toda nossa vida “normal”]. Todavia, o AMOR
é o cumprimento da lei!
Às mesmas pessoas [às quais foi preciso recomendar que deixassem de lado as
obras das trevas recomenda-se] agora a antítese?! Dar-se-ia então o caso de
estarmos todos, mesmo assim, entre os amados de Deus?
769
13, 8-14
Seria enigmático, este conceito? Talvez sim porque o amor de Deus é para nós,
criaturas identificadas com o mundo, impregnadas de seus interesses, de seus
intercâmbios de conveniências e de seu egoísmo — procedimento absolutamente
estranho e incompreensí-
vel; o preceito de amar o inimigo é anormal e, mais do que isto, é absurdo: a sua
prática é enigma; a sua aceitação é mistério.
Isto talvez explique a existência do enigma; todavia por que estaria o AMOR
além (e, quiçá, até em oposição) ao relacionamento que a religião apresenta?
ção; é por isto que o AMOR revolve os fundamentos da terra e tudo quanto no
mundo existe, e passa a ser a própria revolução porquanto, pelo AMOR (Ágape)
tudo se faz novo. Já não há lugar para a vingança e retribuição de olho por olho e
de dente por dente; nem mesmo da 770
14, 1 a 15, 13
ção, EM CRISTO, vejo aquele por quem Cristo morreu. (Vejo?) Penso que Barth
se refere à nossa unidade original em Deus e com Deus, quando se refere ao
enigma da natureza original; unidade que volta quando “o próximo” — (o
“outro”) — e eu somos justificados pela misericórdia de Deus, em Cristo Jesus.
2. O AMOR suprime tudo quanto existe porque aceita tudo quanto está
pressuposto naquilo que existe.
“tudo crê”, tudo sofre, tudo espera, tudo suporta; nunca falha; não se alegra com
a injustiça; não é indecente, nem invejoso, nem leviano; não se irrita, não
suspeita mal; não busca seus próprios interesses”.
771
14, 1 a 15, 13
— O que aconteceu?
— Quem há que ouse viver segundo essa liberdade de Deus, se nem mesmo nos
atrevemos a imaginá-la?
Viver “Paulinamente” é viver livre; é estar oprimido por Deus, de todos os lados,
mas é, também, saber que se está por ele guardado em todos sentidos, é ser
constantemente lembrado da morte mas, continuamente encaminhado para a
vida; é ser desalojado do aconchego das acomodações e libertado dos
compromissos e do enclausuramento das coisas triviais para, [galgando os
patama-res de horizontes mais amplos], consciente e em abundante vida,
contemplar a eternidade. [Viver “Paulinamente”] é ver a clareza do perdão dos
pecados, vendo nesse perdão [concedido exclusivamente por Deus em sua plena
liberdade]
14, 1 a 15, 13
[Não é de estranhar] nem deixará de ser compreensível que aqueles que vivem
segundo o paradigma Paulino — e agora falamos da essência, [do pró-
Acontece porém que agora, quando já nos saúdam as luzes do porto que está
próximo, quando PER VARIOS CASUS, PER TOT DISCRIMINA RERUM,
finalmente chegamos à interrogação que forçosamente teria de ser respondida
afirmativamente, somos barrados com um derradeiro PARE! Mais uma vez nos
deparamos com esta advertência depois de, na verdade já por suficientes vezes,
havermos sido advertidos. Mais uma vez somos freados, mergulhados na
incerteza e postos em meditação. Evidentemente precisamos quebrar mais uma
vez nosso próprio quebrantamento. E Paulo contra o
Os LIVRES e os FORTES apenas são o que são por força da grande interrogação
que também se aplica à sua liberdade e à sua força.
Não somos advertidos contra a fé mas contra a NOSSA crença; não somos
postos em guarda [ou de sobreaviso] contra aquele ponto que nos é visível, sobre
o qual nos podemos firmar e pelo qual podemos viver mas, contra a nossa
estabilização e NOSSA vida, nesse ponto. Não somos admoestados contra a
Livre Mordomia da Vida mas contra a ambigüidade de sua aparência, 773
14, 1 a 15, 13
DEVES!”
“Paulinismo”.
Aqui, cada leitor é submetido à prova [e pode tirar suas próprias conclusões]
segundo a medida em que suporta a idéia de ainda uma vez, atento à advertência,
abrir mão de tudo quanto acreditou haver compreendido, apreendido [e
aprendido] na Epístola.
Se aqui não se manifestar a “Grande Perturbação”, se esta não se tornar crítica
[decisiva] para todo conhecimento — (até para o conhecimento cujo teor é
exatamente este dessossego!) — [se nesta contingência e nesta provação]
não restar [para o leitor] senão Deus e somente Deus, o Deus desconhecido e
oculto, como única fortidão dos FORTES, então tudo [quanto tal leitor pensa 774
14, 1-4
haver compreendido e apreendido] não passa de mero bronze que soa e címbalo
que tine.
No desfecho da Carta aos Romanos, (de maneira algo semelhante aos epílogos
dos romances de Dostoiewski) somos novamente postos ante a Impenetrável
problemática da vida — (também da vida dos cristãos e de suas comunidades!).
Não achamos saída (ou solução) para essa problemática e temos de recomeçar
sempre [do mesmo ponto de partida], — vendo e sofrendo a aflição que nossa
meditação sobre Deus gerou [e gera]. Ainda uma vez temos de nos defrontar
com a realidade de nosso semelhante e que se expressa na Grande Tribulação. —
o problema ético que o próximo representa.
Aquele que não come não julgue ao que come, pois Deus mantém comunhão
com ele. Quem és tu, para condenares o servo de um estranho? E para o seu
Senhor que ele está em pé pois o seu Senhor tem o poder para o suster
A livre mordomia da vida é uma das formas de mordomia de vida [entre outras
muitas] e, por sinal, é a que menos se destaca das demais e a que mais facilmente
desaparece; se não for assim, então algo está errado com sua suposta liberdade
porquanto o sentido desta liberdade não pode, em hipótese alguma. ser a conduta
do indivíduo, como tal, mas há de ser o procedimento do UM, [portanto a
invisível obra daquele que é invisível] no indivíduo; por isto,
É por isto que a pessoa [que adota essa livre mordomia para sua vida e se orienta
por ela] é forte embora tenha essa fortitude como se não a tivesse, temendo
imensamente sua eventual explosão. [O indivíduo que segue a livre mordomia da
vida que Paulo prega] é, ele mesmo, a própria agitação — [o dinamismo a
eletrização do ambiente], — por isso ele não entra nessa agitação
[que tudo revoluciona e transforma, tudo faz novo]; quando muito será o seu 775
14, 1-4
motor — [quiçá o elemento catalítico que provoca a reação, o levedo que fer-
menta a massa, o propulsor dos outros] mas então, será também, e com toda
certeza, o seu freio, [o elemento moderador].
Até ao “Paulinista” genuíno — (de passagem, note-se que se nem mesmo Paulo
foi sempre [“Paulinista”] genuíno, o que diremos de nós?!) — falta o necessário
empenho e capacidade suficiente para se diferençar dos outros, mesmo quando
estes, mui zelosamente, teimam em ser diferentes dele; tal
[indiferentemente aos seus eventuais possíveis méritos], tão pouco a sério que
evita escrupulosamente acentuar as incompatibilidades [que as caracterizam] e
até mesmo prefere não defini-las. Se ele o fizesse estaria perdido porquanto a sua
posição não é moldada segundo determinado ponto de vista [isto é, a sua ética
não resulta de dedução ou erudição filosófica] e ai dele se consentir em ser
levado a essa arena onde a cada ponto, honradamente, se contrapõe outro ponto
[igualmente erudito e, quiçá, lógico], séria, — e solidamente — alicerçado.
A [ética da] livre mordomia da vida não se impõe [às demais formas de
comportamento humano] esgrimindo sucessivamente contra cada convicção,
mas reconhecendo o objetivo comum a todas elas.
Aquele que é FORTE está muito longe de praticar a “tolerância” que abandona
cada um a suas próprias convicções mas está também igualmente distante da
“intolerância” que procura extirpar do outro as convicções que acaso tenha.
Quem é FORTE aprecia a seriedade dos diferentes caminhos [e procedimentos
éticos] humanos, porém apenas na medida em que considera,
[analisa e vê] a crise da qual todos procedem; até mesmo o seu modo peculiar de
agir tem sua origem no fato de que ele não olvida essa crise, antes medita sobre
ela.
Tal pessoa tem razão apenas na medida em que não a pretende ter. Ela age
conforme deve — [conforme lhe é pertinente, isto é,] socraticamente, [qui-
14, 1
[Tal pessoa — assim designada FORTE —] lidera sem inventar coisa alguma;
rompe [e abre as passagens], nada destruindo; brilha sem se tornar visível,
[conspícuo ou notável], vence, sujeitando-se, traz [consigo] a grande perturbação
divina não sendo, absolutamente, perturbadora.
Para que alguém cumpra tal programa [para assim se conduzir e agir dessa
maneira] é mister descer discretamente de todas alturas que houver esca-lado, até
mesmo das culminâncias que eventualmente pensar haver galgado pela [leitura e
estudo da] Carta aos Romanos!
ção neste mundo, baseados no exemplo da vida de Jesus conforme nô-la relatam
os evangelhos sinóticos e nem mesmo tirados dos ensinamentos contidos no
“Sermão do Monte”; a crença de que — para citar apenas um exemplo [de
natureza política] — nem mesmo a proibição do poderio militar para o domínio
dos povos estaria perfeitamente definida [ou clara] na Escritura Sagrada (12,
18)!
— A fé? Em que crê essa crença? Acaso será “nas grandiosas elucubrações que a
ilimitada autonomia da consciência dos crentes proclama?” (Juelicher).
Valerá realmente à pena crer que se “pode comer de tudo”? Alcançar fortitude é
assim, tão barato? O que acontecerá se adquirirmos essa força? O
14, 2-4
Vemos [entre esses cristãos de Roma que recorrem aos legumes] a mordomia de
vida do catolicismo — que falando com toda seriedade, deve ser considerada
grandiosa — o rigorismo da Reforma e também Tolstoi, com boa parcela de
socialistas e pacifistas religiosos.
Somos levados a meditar sobre como essa mordomia surge (e sempre continua
surgindo) organizando-se verdadeiramente em profunda seriedade e respeitável
perplexidade, com liberdade e disposição ao trabalho e ao sacrifício.
É com tributo de louvor que pensamos na longa lista de heróis, santos, mártires e
profetas cujo SER e QUERER cresceu [e se desenvolveu] nesse solo.
778
14, 2-4
[A tradução inglesa traz nota explicativa sobre esse trecho, informando que a
referência do Autor é ao título de panfleto publicado por Thomas Muenzer
Todos “reformistas” são fariseus; falta-lhes o senso de humor [ou o bom senso] e
não podem deixar de condenar os outros. Retire-se de um abstinente, 779
14, 2-4
Aquele que come legumes vive — (e nisto encontra o consolo de sua pacífica
maneira de se alimentar) — do seu protesto íntimo ou público contra a loucura
do mundo, sobre ela meneando sua cabeça; vive de sua segregação dos demais
porque ele próprio não conhece a tragédia da vida humana que, por sua
imensidade, deveria fazer toda boca calar-se.
Todavia não é do FRACO que agora temos de nos ocupar [conforme já foi dito
mais atrás], mas do “Paulinista” que faz de sua liberdade uma “causa”,
comprovando assim que é mais fraco do que os FRACOS. Este “Paulinista”
deveria saber aquilo que seu opositor — (a quem ele nem deveria considerar
como opositor) — não sabe: “Deus mantém COMUNHÃO com ele” — [a
saber], com o OUTRO, [em qualquer dos casos]. “Quem és tu que condenas o
servo de um estranho?”
“não-Paulinistas”?
[uma pálida percepção] dessa inaudita verdade de que Deus mantém comunhão
com o ser humano exclusivamente por misericórdia, poderia desprezar um outro
porque este não percebeu esta verdade mas, em seu otimismo, continua
prosseguindo, esperançoso, nesta constante e íngreme rampa moral?
Acaso está fora da possibilidade divina ter comunhão — não apenas com
publicanos e meretrizes — mas também com fariseus?!
Quem é senhor? Quem deve julgar? Quem tem condições — para derrubar ou
para manter em pé? — Será o homem, ou Deus? O FORTE deveria sabê-lo!
Então, quem sabe o que sabemos — Deus o sabe — O FORTE nada tem de
antemão!
Quem julga ter qualquer vantagem, “não sabe o que sabemos!” Só há uma
antecipação, e esta é desde a eternidade, desde o começo dos tempos para 780
14, 2-6
“tem poder para o suster em pé!” Na verdade, esta possibilidade deveria animar-
nos a também manter comunhão com aquele [que goza até do privilégio da
comunhão divina]. Se não o fazemos, se queremos ser fortes “a toda prova”,
então certamente estamos fracos.
Ele silencia, considera e espera. Ele sabe que não se trata de dizer
apressadamente o que pensa com convicção, contra o ponto de vista ou o
procedimento] do outro ou, de combater o outro, porém trata-se de ter
consciência e estar certo de que seu próprio modo de ver e examinar a questão
são corretos perante Deus porquanto “neles há, não raro, mais flexibilidade
[quiçá mais caridade cristã e comunhão com o próximo], do que [agindo apenas]
pela consciência claramente informada” — (Steinhofer). [Quando o FORTE
assim age é porque] percebe que o “RIGOR” é exercido “para o Senhor” e por
trás desse rigorismo existe a perplexidade que se origina em Deus, mesmo que
mal compreendida; ele 781
14, 5-12
considera [e conclui] que “o navio navega bem melhor em mar aberto todavia, se
preciso for, também pode singrar em canais estreitos”. (Bengel).
Todavia, a aplicação dessa regra, por sua própria natureza, é invisível aos outros.
vel que nessa “afirmação” dos FRACOS eles tenham Deus em suas mentes, que
o teor do seu procedimento — realmente — faça sentido e tenha significa-
[que “alguns” entendem ser sinal de fortitude cristã”] — seja mais agradável do
que o “não-comer” [que os fracos defendem].
Vs. 7 a 12 Agora uma observação básica: Porquanto nenhum de nós vive para
si mesmo e ninguém morre para si mesmo. Pois se vivemos, para o Senhor
vivemos e quando morremos, para o Senhor morremos. Por tanto, quer vivamos
quer morramos, somos do Senhor Foi por isto que Cristo morreu e tornou a
viver: afim de que seja Senhor sobre os mortos e sobre os vivos.
Tu, pois, o que acusas em teu irmão? Pois todos compareceremos perante o
tribunal de Deus, conforme está escrito: Tão verdadeiramente quanto vivo, diz o
Senhor perante mim se dobrará todo joelho e toda língua me confessará!
Portanto, cada um de nós precisará prestar contas de si mesmo.
Ser FORTE significa reconhecer que a criatura humana, como tal, se encontra
em crise que de forma alguma pode ser evitada. Nenhum de nós vive para si”;
“se vivemos, para o Senhor vivemos”. Não há vida em si; só há vida 782
14, 7-12
referida a Deus, [vida] que está sob o julgamento e ante a promessa de Deus;
esta vida é caracterizada pela morte mas é também qualificada pela esperança da
vida eterna, mediante a morte de Cristo. E isto o que a crise da “livre mordomia
da vida” e do “rigorismo”, representa; [a crise é uma só pois] tanto a “liberdade”
como o “rigorismo”, evidentemente, objetivam a vida. Porém a VIDA, na vida,
está na liberdade de Deus o que para nós, é a morte, pois somente vivemos para
o Senhor.
ção de Cristo como o sinal de nossa adoção [por Deus, como filhos seus].
Também esta morte está no teor da crise, tanto para o “Rigorismo” como para a
“Livre Mordomia da Vida” pois ambos esses procedimentos, cada um a seu
modo, têm a morte em mira.
Porém, a MORTE na morte, está na liberdade de Deus, o que para nós é a vida,
pois somente morremos para o Senhor.
14, 7-12
que tem a expressão de simples analogia (ou parábola) ante sua efetiva morte
biológica?
Ser forte significa reconhecer a Deus em Cristo mas, isto, na crise derradeira e
inevitável de nossa vida e de nossa morte, nesse ponto onde nada mais existe
senão a misericórdia de Deus. Ser FORTE significa temer e amar a Deus sobre
todas as coisas, conforme ele vem ao nosso pensamento na mais alta categoria
dialética: como o SENHOR.
Nem nossa vida, nem nossa morte; nem nosso SIM, nem nosso NÃO; nem o
“Rigorismo” nem a “Livre Mordomia da Vida” fazem jús à justificação divina;
isto não o sabe o FRACO e é o que constitui a sua fraqueza; por isso mesmo o
FORTE precisa sabê-lo tanto melhor e portanto, na hora de agir, quando chega a
ocasião de curvar-se (e render-se) ante o mistério divino, não pode esperar pelo
FRACO porém, compete-lhe dar o primeiro passo, o passo da humildade,
sabendo que nada sabemos, porque sabemos que Deus o sabe!
“Para o Senhor” é a grande verdade crítica sob a qual. como criaturas humanas,
estamos no mundo. (Esta verdade não diz respeito a FRACOS ou FORTES mas
a todos, reunidos em Cristo que está perante Deus, como nosso IRMÃO!) Esta
verdade crítica aponta a uma só coisa: “Todos compareceremos perante o
tribunal divino”.
784
14, 7-12
Todos, — espantados com esta realidade final [da Epístola], de que “somos do
Senhor” — tentamos, de uma ou outra maneira, fazer a vontade de Deus,
organizando a “mordomia” de nossa vida. (Isto não significa, porém, que nesta
tentativa estejamos agindo sabiamente ou não). No mesmo mistério proclamado,
na mesma perplexidade e na mesma esperança separam-se os caminhos. Um
segue para a liberdade e outro para o rigorismo. Uns são os FORTES
Quando e na medida em que o ser humano colocar a sua própria “piedade” [ou
religiosidade] no lugar de Deus e da liberdade divina, a ética daí resultante —
qualquer que seja — terá a rejeição de Deus. A conduta humana apenas
(“eventualmente poderá”) alcançar a eleição divina na medida em que [ge-nuína
e existencialmente] renunciar vantagens, direitos, prerrogativas e renunciar à
idolatração desta ou daquela determinada “religiosidade” [ou santidade].
É por isto que “cada um de nós precisará prestar conta de si mesmo”, pois o que
sabemos da renúncia dos ‘outros”? Vemos apenas o modo de agir de cada um, a
sua “religiosidade”. Como saberemos se ele, acaso é eleito justamente naquilo
em que pensamos ver sua condenação? Como saberemos se ele.
14, 7-12
No “outro” somente podemos ver a pessoa julgada ou a ser julgada por Deus,
isto é, vemos a pessoa que esta perante Deus além de tudo quanto possa ter
algum significado para a conduta humana, portanto também além dos contrastes
entre eleição e rejeição.
Temos de apresentar, de nós mesmos, a mais pesada prestação de contas por isto,
todo julgamento feito segundo critérios históricos ou psicológicos (Mat.
Vs. 13 a 15 Por isso não nos acusemos mais mutuamente porém comprovai
vossa aptidão para julgar não ofendendo nem escandalizando o irmão.
Porquanto eu bem sei, e estou firmemente convencido no Senhor, que nada 786
14, 7-15
é impuro em si mesmo e que [as coisas] somente são impuras para quem assim
[as] considera. Se, porém, por teu comer teu irmão ficar em constrangimento,
então já não procedes na conformidade do amor Não destruas por teu comer
aquele por quem Cristo morreu.
O ponto de vista da Epístola aos Romanos, como tal, é o ponto de vista de Deus.
Julgar alguém, à luz desse ponto de vista, seria condenar essa pessoa em nome
de Deus, [declarar a sua condenação por Deus], acarretar-lhe a ofensa e o
escândalo que vêm de Deus. A simples lembrança disto deveria esmorecer em
nós toda e qualquer pretensão a julgar [o próximo].
Por outro lado, o julgamento que fazemos é desastrosamente unívoco; não temos
a liberdade divina de condenar e eleger [e o que é ainda mais terrível para quem
se atreve a avocar a si o privilégio divino — não temos meios para penetrar nos
recônditos mistérios da fé ...]; onde e quando pronunciamos a condenação, nela
nos fixamos e nessa atitude erigimos o ídolo da ira divina
14, 13-15
de Deus (porquanto tal ajuizamento, conforme o FORTE bem deveria saber, não
compete ao ser humano!). Desta maneira, a “capacidade de discernimento”
não apenas protege a quem a tem contra a prática do julgamento como também
contra o risco de suscitar “ofensas” e “escândalos”.
[Todavia], essa conduta [de moderação e prudência], também, apenas é divina
sendo de Deus pois, como obra humana (por ter então sentido exclusivo,
unívoco) é completamente impossível;) [inviável e contraproducente].
Enquanto Deus, pela ofensa e escândalo que gera, põe em ação sua sentença
condenatória, também aceita a criatura. Há a promessa e existe a esperan-
ça, [também], onde Deus condena e obstina (Cap. XI!). É da mesma pedra na
qual tropeçam os rejeitados que se diz: “Quem nela crer não será destruído.” (9,
23-33). É diferente se a pessoa, colocando-se no lugar de Deus, causar ofensa:
não provocará libertação mas, obstinação; oprimirá e não descerrará; matará e
não vivificará.
“Eu bem sei e estou firmemente convencido no Senhor Jesus que nada é impuro
em si mesmo”. O ponto de vista do qual parte o “irmão” é errado e é de antemão
invalidado por Cristo. Monasticismo e reformismo da vida —
14, 13-15
“Todavia [as coisas] somente são impuras para quem assim [as] considera”.
e que essa pessoa se tenha firmado nessa conclusão errônea sentindo, portanto,
repulsa por algo específico. Parece-nos, então, evidente que o modo de ver dessa
pessoa ou o encaminhamento de seu raciocínio é diferente daquele que nós
seguiríamos pois a conclusão a que chega deve ser justa e certa segundo seu
modo de pensar e não pode ser contestada. A tabuada pela qual tal pessoa opera
certamente é correta; o erro está nos valores atribuídos às cifras. A seriedade e o
discernimento de sua repulsa são justos [e até excelentes]; apenas é fatal a
arbitrariedade na escolha de seu objeto.
Por isso, tal pessoa precisa ser reconduzida à sua origem: como foi que ela se
fez?
Sob o ponto de vista humano foi, evidentemente, pelo mesmo sadio dessossego
da vida que dá origem à liberdade de consciência do FORTE; foi da mesma
premente consternação que a derradeira questão suscita também neste, e da
mesma ânsia de alcançar a justificação de Deus que este cultiva. Portanto.
14, 13-15
não deveria fazer; [toda atitude ou ensinamento] mediante o qual abafo e neu-
tralizo a inquietação que sua teimosia e seu capricho (seu rigorismo), escondem;
em que o ajudo a alcançar uma paz, [um sossego, uma segurança] que ele,
absolutamente, não deve sentir.
Mostro-lhe uma liberdade que é, para ele, o pior dos cativeiros. Trans-mito-lhe
um conhecimento de Deus que mais propriamente se chamaria “conhecimento
de Satanás”. Talvez esteja eu, assim, a preparar-lhe o escândalo que Deus,
inevitavelmente lhe deparará — (é necessário que venham escândalos). Talvez
aquilo que lhe impinjo até seja o “final do caminho” [e que portanto eu não
esteja perturbando sua marcha e, quem sabe até estou ajudando . ..] e nisto lhe
seja dada a possibilidade do arrependimento. Talvez ao induzí-lo à 790
14, 13-18
Contudo. — [“ai daquele homem por quem o escândalo vem” Mat. 18, 7],
“próximo”.
Não sou justificado porque tenha razão nem porque Deus a tem. Portanto, “não
destruas pelo teu comer aquele por quem Cristo morreu.”
Cristo morreu POR ele; eu, porém, como CONTRA ele! [Cristo, por ele, se
entregou à cruz; eu, contra ele, me entrego ao prazer da mesa!...] Isto é o
impossível absurdo da minha mais alta possibilidade — a saber, o absurdo da
minha religião [intelectualizada]; é o erro da minha suprema retidão.
Vs. 16 a 18 Vosso bem não deve ser blasfemado porquanto o Reino de Deus não
consiste no comer e no beber mas na, justificação, na paz e na alegria, no Santo
Espírito. Quem assim serve a Cristo é agradável a Deus e aceito pelos homens.
Estamos ante a barreira eril que se contrapõe à força dos fortes: a crise daquilo
que designamos como “nossa liberdade”.
14, 16-18
Sabemos que o valor de nossa liberdade está no fato de que nela Deus demonstra
a sua liberdade, ou entendemos que nossa liberdade tem algum valor intrínseco?
Para chegar a tal conclusão não seria necessário perlustrar a Epístola aos
Romanos. Se este tema fosse tudo o que a Epístola contivesse (e qual o
“Paulinista”
que esteja — ainda que por um só momento — a salvo do perigo de agir como
se isso fora, realmente, tudo!), quanta razão não teria então o coro dos “fracos”
com as incriminações que desde sempre levantam contra a Carta!? Quão certo
estaria o “Grande Inquisidor” em suas ponderações [(então)] verdadeiramente
bem fundamentadas contra a liberdade que Cristo trouxe! Teriam então razão
todos esses vastos exércitos de moralistas, pedagogos, psicólogos, sociólogos,
todos os que analisam o mundo pela história, todos os que estão seguros de que
são retos e práticos [objetivos] e todos os que se interessam pelo bom senso
geral! De um só golpe, teriam todos absoluta razão; subitamente a profunda
insensatez [de toda essa gente] nos pareceria desculpável pela sua inocuidade, ou
melhor, nos pareceria bem fundamentada e justificada. Teríamos então urgente
necessidade de nos sujeitarmos a qualquer lei que estivesse mais prontamente a
nosso alcance; havendo avançado longe demais em nosso exame, poderá
parecer-nos mui agradável voltar aos braços maternais da Igreja Católica.
Os sentidos usuais que damos a esses verbos não parecem definir com precisão
as alternativas em vista. Parece-me porém que ao afirmarmos que 792
14, 16-18
“podemos fazer o que devemos” estamos dizendo que sabemos qual o nosso
dever mas somos livres para cumpri-lo segundo os ditames de nossa consciência,
segundo a expressão e a opção de nossa vontade. Todavia, na expressão de que
“devemos fazer o que podemos” estamos nos submetendo à obediência de
disposições superiores na qual não deixa de haver certa dose de oportunismo e
porção maior ou menor de acomodação.
Talvez a expressão “justificação” não tenha (ou não deveria ter) aqui o sentido
total da justificação de Deus que é segundo a fé, mas o sentido de justificação da
conduta do “crente”, quiçá “Paulinista”, perante os seus irmãos; trata-se, talvez,
de lhe dar a devida razão do ponto de vista humano, embora essa aceitação
possa, implicitamente, ser estendida à justificação divina.
Todavia, essa liberdade tem também a sua barreira: “Que não seja blasfemado o
vosso ‘BEM!. Tudo posso, mas nem tudo me convém!” A minha liberdade de
consciência dá-me o direito de “comer e de beber” mas me dá também o direito
de deixar de comer e de beber. Esta negação não é uma ordem peremptória, uma
lei “dos Medos e dos Persas”, mas é a lei do amor; se eu constranger meu irmão,
se eu o escandalizar, quer bebendo ou comendo, quer me abstendo de o fazer, já
não estou mais agindo segundo a lei do amor. É por isto que o dilema é terrível;
é por isto que (para minha comodidade, meu “apaziguamento”), seria melhor
apegar-me a qualquer “lei” que esteja a mão, lei que me proíba a fazer isto e
aquilo e me imponha critérios definitivos, circuns-tanciados, para minha
conduta; se isto me traz a paz, então melhor me fora entregar-me aos braços da
chamada Santa Madre Igreja Católica” que resolve meus problemas temporais
(temporariamente, é certo), com seu confessioná-
Todavia, é a própria justiça de Deus que nos leva a esta crise [isto é, à crise da
delimitação da liberdade dentro de nossa liberdade]. Se esta crise não 793
14, 16-23
[A tolerância com que o Forte acolhe o Fraco que cuida do “comer e do Beber”
como testemunho de sua fé, pode ser aceitável perante Deus na medida que essa
condescendência tiver fundamento legítimo na segunda parte do Grande
Mandamento — “Amarás a Deus de todo teu coração e ao próximo como a ti
mesmo”; portanto o gesto é um amorável Ágape, e só pode ter lugar em Cristo,
isto é, no Espírito Santo. Todavia se o Forte houver sido impulsionado por outras
considerações, ainda que sejam nobres e até mesmo espirituais, é possí-
Vs. 19 a 23 Assim, aspiremos pela paz e pela edificação mútua. Não destruas a
obra de Deus por amor à comida. Tudo é limpo mas, quem come provocando
escândalo procede do maligno. E melhor não comer carne nem beber vinho nem
fazer coisa alguma que escandalize teu irmão. Tens fé?
[O Autor comenta que no original grego o v. 22 escreve “Tu o qual tens fé”; diz
Barth que deve tratar-se de engano de copista que, talvez não notando tratar-se
de frase interrogativa, inseriu este “o qual”].
Será que nossa argumentação deixou clara essa linha duplamente partida, — o
caminho estreito da mordomia “Paulina” da vida, que jamais é evidente por si
mesma? Vamos (tentar) sintetizá-la mais uma vez, [porém de forma diferente]:
“Devemos aspirar pela paz” todavia, não pela “primeira boa paz”
794
seja o sol do teu procedimento ético [de tua moralidade]. Sim; mas há outras
condições: a consciência independente, em Deus; a PAZ é a paz de Deus que
está acima do melhor critério humano; a PAZ na liberdade, que é também a
liberdade do próximo e, finalmente, não há paz sem edificação mútua.
Isto quer dizer que se o meu próximo está em aflição, eu a aumento usando da
minha liberdade [de comer]; que ele está em tentação e eu estou a empurrá-lo
mais para dentro dela; que ele deveria seguir o seu caminho sem se desviar [e
sem se distrair de seu objetivo] e eu o detenho.
Posso fazer isso? [Se de fato posso, o que — como possibilidade — é evidente]
preciso realmente “QUERER FAZER” o que posso? Posso desprezar a ação
direta, (objetiva, a ação de comer), isto é, posso deixar de a praticar? (Ou então,
ainda) baseado em minha liberdade de consciência, posso passar ao largo
daquele que caiu nas mãos dos salteadores [isto é, posso deixar de atender a meu
irmão que está em aflição e “comer” (ou proceder) conforme estou convicto que
seria “legal-mente” aceitável por Deus, tendo em vista que sou “realmente”
FORTE?].
Vamos adiante: “E melhor não comer carne nem beber vinho nem fazer coisa
alguma que escandalize teu irmão”. O Santo Espírito é o direito objetivo e não o
direito que tenho.
“Tens fé?” Sim, [é bom] que a tenhas; porém, “tem-na para ti mesmo” e
“perante Deus!”
Podes crer apenas por ti mesmo e perante Deus. Estás inteiramente a sós com
Deus, em tua fé, inteiramente preso a ele e lançado sobre ele; ninguém 795
mais é teu juiz nem teu Salvador e, “bem-aventurado é aquele que não precisa
condenar-se naquilo que faz!”
ção: é coisa terrível estar assim a sós com Deus; saber que só ELE é o “Bem”;
que não se pode zombar de Deus que tudo exige de nós e tudo suprime [e anula
pela nossa total imodéstia, nossa presunçosa liberdade de consciência e nosso
Quem há, então, que seja justificado? Quem ousa dizer: tenho fé? Quem se
atreve a assumir a responsabilidade [de responder à perguntai por si mesmo ou
pelos outros? Quem há que se atreva a jactar-se de sua independência e liberdade
(neste terreno)?
Portanto, nesta tétrica incerteza, apega-te a este único fio: Deus! E quem haverá
de apegar-se [a Deus] se não for sustentado?
ídos não vivendo para nossa própria satisfação. Pois também Cristo não viveu
para agradar a si mesmo porém, conforme está escrito: as injúrias daqueles que
te injuriaram caíram sobre mim! (Porquanto o que foi escrito, o foi para nosso
ensino, para que alcançássemos esperança pela perseverança e o consolo
inerentes aos cristãos). O Deus da perseverança e do consolo, porém, vos
conceda um mesmo espírito, com vistas a Cristo Jesus, a fim de que com um só
ânimo e em uníssono, louveis a Deus — Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.
ção de um mistério — (Lietzmann escreve ‘em’ e não ‘segundo’ nos dois casos
acima) — que foi silenciado por tempos eternos porém foi agora revelado pelos
escritos proféticos por ordem do eterno Deus, (Zahn escreve: ‘Pelos escritos 796
Barth escreve que à vista das críticas que desde então se seguiram ao texto, feitas
por Corssan, Lietzmann e Harnack e também com fundamento em novas
exegeses (“que devem aqui ter a última palavra conforme Zahn, com razão,
afirma”), julga que sua primeira posição precisa ser corrigida, justificando-se
como segue:]
a mais, torna-se perfeitamente claro comparando a passagem com as que lhe são
paralelas em Ef. 3, 20, Jud. 24 e 25 e também, embora com menos precisão, em
Mart. Polic. 20. [Provavelmente a carta do ‘Mártir’ Policarpo, bispo de Smirna,
aos Filipenses]. Em todas essas passagens trata-se de invocação independente da
frase seguinte. Se for assim, então a inserção de 16, 25-27 entre 14, 23 e 15, 1
provoca inaceitável quebra de continuidade, com o que Hoffmann concorda.
Nessas condições, o mínimo que se poderia dizer é que seria difícil compreender
a razão de ser desse hino
ção muito peculiar e forçada. Todos argumentos empregados para justificar tal
interpretação estribam-se na ênfase dada à expressão ‘para estabelecer! [Almeida
escreve ‘para vos confirmar’]. E de notar que se adotássemos esta interpretação
ficaríamos em flagrante contradição com o texto de 15, 3-12 o qual segue 14, 23
naturalmente, enquanto 16, 25-27, neste ponto, soa esdrúxulo, dispensável,
quase impróprio, inteiramente fora do contexto e apenas explicável como fecho
litúrgico destituído de qualquer outra correlação.
Se 14, 23 não for o final da Epístola — e não é fácil aceitar que o seja embora aí
houvessem terminado os referidos antigos manuscritos —
então a doxologia de 16, 25-27 não cabe neste ponto. Todavia, ela também não
cabe no fim do Capítulo XVI — conforme já o dissemos no comentário da
primeira edição. De que serviria ela, então? Seria ‘psicológica!
(Kuehl) para ser lida no final dos cultos [solenes ou] festivos? Mas a carta aos
Romanos nada tem de tais características, antes é ela objetiva
[prática]; vai ao desfecho com a pequena discussão de 16, 17-20, conclui com as
saudações enviadas pela gente de Corinto e, encerra com a bên-
ção de 16, 24 conforme convém — e esta sim, não pode ser suprimida.
“A idéia de que Paulo fosse criar após a ‘bênção’ nova ‘figura litúrgica’
parece ser fora de propósito; ainda que isto fosse possível, é preciso notar que
esta passagem de 16, 25-27 difere consideravelmente do estilo corrente de Paulo,
notadamente se a confrontarmos com a doxologia de Efe. 3, 20-21, em
comparação com a qual a passagem discutida soa desagradavelmente empolada;
a construção gramatical forçadamente rebuscada; inegavelmente, os grupos
conceituais são estranhos e, para completar [o aspecto negativo desse ‘hino’!],
há ainda a observação de 798
15, 25-27
las aceitáveis à Igreja Regular [de então] e que, por isso mesmo, se tornaram
Intragáveis. “Tudo isto leva à conclusão de que esta passagem não é de Paulo.
Ela foi acrescentada aos primeiros 14 capítulos como conclusão litúrgica e
depois foi transcrita na Epístola completa — já com os 16 capítulos, — por
vezes no mesmo lugar do seu ‘enxerto’
original entre os capítulos XIV e XV; outras vezes foi transferida para o final do
capítulo XVI — ‘sufocando! 16, 24; algumas vezes foi até transcrita nos dois
lugares. Todavia, também existem transcrições que excluem totalmente a
‘doxologia! de 16, 25-27.
Somos “FORTES”. O que nos torna “fortes” procede da crise que, sem
esmorecer. irrompe sempre de novo em nossa fortidão: não buscamos outro
caminho senão aquele que segue no meio de dois precipícios; não queremos
outra passagem para transpor a correnteza senão aquela onde podemos apoiar o
pé por um momento apenas; não queremos outro repouso senão Deus. Todavia, a
crise subsiste: tudo quanto for auto-afirmação; liberalidade; conquistas econô-
[sim, tudo isto nada tem a ver com a nossa fortitude. Se a nossa Livre Mordomia
da Vida, secretamente, tiver tal objetivo, então é melhor que passemos ao arraial
dos “Rigoristas”, dos “fracos”, pois é destas coisas que eles cuidam. Porém, o
que nos resta então? Visivelmente, nada. Apenas podemos concluir que, na
qualidade “dos que sabem”, dos “prudentes”, “como aqueles que são livres”,
também nós somos fracos; apenas podemos igualar-nos a eles.
Conseqüentemente, será tanto melhor para nós quanto menos desprezarmos
quem quer que seja; quanto menos nos destacarmos; quanto mais deixarmos de
liderar.
— Não. Isto não seria “suportar”. O Novo Testamento não nos propõe papéis
teatrais. Este “suportar” é absolutamente existencial: é ser, realmente.
fraco com os fracos porquanto estes não se consideram fracos antes, para eles, a
sua fraqueza consiste no fato de que supõem que suas forças estão se
desenvolvendo; a nós compete carregar [ou suportar] aquilo que eles não podem
ou não querem carregar. Trata-se de toda aquela sobrecarga do dessossego que
Deus prepara para os homens. Temos de ser aqueles que sabem que não nos
podemos desnvencilhar dessa carga, nem pelo rigorismo nem pela liberdade de
799
15, 1-6
Sabemos que no extremo da aflição humana, toda saída está bloqueada exceto
aquela única porta que Deus abre.
Os fracos também têm ciência de que existe gente que é sacerdotal, que suporta
e que sabe.
Seja esta a nossa livre mordomia da vida porém, “não vivendo para nossa
própria satisfação” porquanto no instante em que assim pensarmos (ou
pretendermos) “teremos perdido a batalha”. Pelo amor de Deus, nada de “delí-
rio protestante”, nada de “luta contra Roma!” Nossa força consiste em “suportar”
de tal maneira que nós mesmos não apareçamos [nem compareçamos], senão
como os que pensam e devem ser considerados.
ção definida, tida como avançada na cultura secular. Dessa forma perde a
ocasião de interrogar — questionar — e eventualmente aplaudir esta ou aquela
tendência deixando, conseqüentemente, de ser o fator decisivo na sociedade,
conforme lhe competeria.
“Cada um de nós viva para ser agradável ao próximo, com vistas ao bem, para a
edificação”. Este é o sacrifício, a renúncia, a jornada através do deserto, que se
requer do forte. Este sacrifício tem em mira o próximo; lembramos que o
15, 1-13
procura adiantar-se, [não se apressa para isso]; [o “FORTE”] espera mas não
dorme; não critica, pois vê-se em situação por demais crítica para se atrever a
tanto, todavia, tem esperança; ele não educa [não se atreve a ensinar] mas ora,
(isto é, intercede) e, enquanto ora, efetivamente educa. [O FORTE] não avança
por sobre os outros, antes dá-lhes lugar. [O FORTE] não tem uma posição
específica para estar e onde possa ser encontrado, mas está em todo lugar [onde
possa servir desinteressadamente, sem oprimir o próximo de maneira alguma e,
sem proveito para si mesmo].
Reino de Deus que ele proclama é realmente a liberdade de Deus por isso, sua
vida inteira é sacrifício, renúncia e retirada constante. “Os insultos daqueles que
te injuriam caíram sobre mim” (Sal. 69, 9). E assim que ele passa como o
Grande Sofredor [o Grande Varão de Dores.], (Isa. 53!), através da história da
antiga aliança; para nós, ele é o CRUCIFICADO!
“Isto foi escrito para nosso ensino”. Esta figura é plena de perseveran-
“do mesmo parecer” e que, por entre os choques dos múltiplos pensamentos
tomemos uma e mesma coisa [que é o UM] para o centro de nossas cogitações e
que, na dissonância das vozes dos membros da comunidade percebamos a
comunhão; “que com um só animo e em uníssono, louvemos a Deus — Pai de
nosso Senhor Jesus Cristo”.
14, 1 a 15, 13
está escrito: por isso, entre os gentios confessarei e cantarei ao teu nome!
e, em outro lugar; alegrai-vos, vós gentios, com o seu povo! e, outra vez: todos
os gentios, louvai ao Senhor e o louvem todos os povos! Novamente diz Isaías:
Haverá uma raiz em Jessé e por aquele que se levanta para reinar sobre os
gentios, por esse os povos esperarão. (Sal. 18, 50; Deut.
foi uma generalização posterior e que, aqui, Paulo está se dirigindo, mais uma
vez, especialmente aos “fortes”].
Cristo é a crise da livre mordomia da vida; ele dá força aos fortes para a glória
de Deus e, também para a glória de Deus, os reconduz aos fracos. Ele é o Cristo
de Israel, da Igreja; e por isto, por mais carente que seja o testemunho que, a seu
favor, dêem os fracos, esse testemunho não deixa de ter algo de objetivo, algo
que diga respeito a alguma verdade sobre Deus. Todavia, ele é também o Cristo
dos gentios, o Cristo do mundo; ora, a misericórdia divina descobriu [achou] os
fortes quando ainda eram fracos (5, 6) e a misericórdia e a verdade,
conjuntamente, mantêm juntos judeus e gentios, Igreja e mundo.
Quem é forte? Quem é fraco? Aqui está o “Deus da Esperança” à frente, por trás
e acima de toda mordomia da vida. Ao encontro desse Deus, reunindo suas
vozes, vão jubilosos todos os que foram achados por sua verdade e sua
misericórdia.
1. Diz Barth que ousar crer significa ser inteiramente livre sem reconhecer
qualquer espécie de restrição, senão a “grande restrição divina”.
802
14, 1 a 15, 13
“A vida que há na VIDA é contudo a liberdade de Deus que, para nós, é a morte
— pois vivemos somente para o Senhor’ e. logo adiante: “A morte que há na
MORTE é contudo a liberdade de Deus que, para nós, é a vida — pois morremos
somente para o Senhor!” Na realidade, aqui, este jogo dialético não nos deveria
surpreender por quanto o próprio Apóstolo o emprega: “Se vivemos, para Deus
vivemos; se morremos, para Deus morremos!”
O que Barth acrescenta é a conceituação aberta da liberdade divina que está
apenas implícita na afirmação Paulina.
Deus é livre e em sua liberdade rejeita a vida qual a temos e na qual temos de
morrer, passando a viver exclusivamente para o Senhor, porquanto, ainda em sua
absoluta liberdade, nessa morte Deus nos concede ressurreição e vida pois
efetivamente, para o Senhor morremos embora aqui não se trate necessariamente
da morte bioló-
3. Diz Barth que se não reconhecermos a crise da liberdade, a limitação que ela
mesma nos impõe no respeito devido à pessoa de nosso pró-
Porque “bem-aventurado é o homem que não se acusa naquilo que faz”; porque
Deus julga pelo que há no íntimo do coração; porque de Deus não se zomba;
porque o pecado contra o Espírito Santo não tem perdão.
803
O APÓSTOLO E A COMUNIDADE
V. 14 Eu porém, meus irmãos, estou por demais persuadido de que tendes pleno
conhecimento e estais aptos a vos aconselhardes mutuamente sobre o que
convém.
A Carta aos Romanos não contém alguma verdade nova, estranha ou de caráter
particular mas a verdade antiga, conhecida e universal; ela não pretende ser
original, profunda e cheia de riqueza espiritual mas, também não é possível
ignorá-la por causa dessa despretensão; não é um tratado de dogmática e, por
isso mesmo, não pode ser refutada nem atacada com tiradas antidogmáticas.
A Carta não proclama a autoridade de Paulo mas nem por isso pode ela ser
descartada sob o pretexto de que se trata “apenas” de Paulo porquanto o fato de
Paulo “não ser o Cristo” é corriqUeiro — não constitui novidade, — e coisa
banal que não causa qualquer impacto. Cristo “não está em livro algum” e
quanto a alguém acreditarem quem escreveu a Epístola aos Romanos ou naquilo
que nela foi escrito, isto jamais entrou sequer em consideração. Somente se pode
crer em Deus!
805
15, 14
O Apóstolo e a Comunidade
A carta enuncia aquilo que todos já ouviram e diz o que cada um pode dizer a si
mesmo; ela põe a descoberto aquilo que sempre e em toda parte foi [e é] a
verdade. Ela ensina aos doutos e tem mensagem para as pessoas de
conhecimento; ela admoesta aos homens de boa vontade; quando entra na arena
anula seu oponente, toma posse do campo, porém, apenas como analogia, (como
parábola, para depois do fato consumado retrair-se como se nada houvesse
acontecido.
Quem, contradizendo a Carta, quiser ter razão [ou razões] contra ela, está
inteiramente livre para assim agir — [procedendo, todavia,] por sua própria
conta e risco, [porquanto] “estou plenamente convencido de que estais cheios de
bondade e tendes plena posse do conhecimento”. Portanto, caro devoto, não te
incomodes; fecha os ouvidos às perguntas que te fizerem enquanto o puderes!
Acontece que, “falando sério”, estamos muito mais de comum acordo do que
pensas. Todavia [lembra-te], explosões de ressentimentos contra a ortodoxia não
podem mais ser consideradas senão como manifestações de humorismo.
Vs. 15 e 16 Em parte vos escrevi com um pouco mais de ousadia para vos
lembrar por força da graça que me foi concedida por Deus para ministração do
seu Evangelho como pregador de Cristo Jesus aos gentios afim de constituirem
oferta aceitável e santficada pelo Espírito Santo.
É preciso aceitar esse ponto de vista extremo, tão perigosamente exposto que,
aliás, nem sequer é um “ponto de vista”? E acaso necessário excluir de 806
O Apóstolo e a Comunidade
15, 14-16
nossa cogitação tudo quanto não for resposta definitiva, restrita, precisa, exata?
caminhos intermediários?
É aqui que se inicia nosso discurso “em parte com um pouco mais de ousadia” [e
começa a manifestar-se nosso] premente interesse em que não sejamos
silenciados.
[Não valeria a pena seguir pelo difícil caminho das opções decisivas] se ao
falarmos sobre Deus [isto é, se em nossa teologia, nossa pregação e nosso
testemunho] apenas pretendêssemos consolar-nos e nos ajudar [ou nos animar,
807
15, 14-16
O Apóstolo e a Comunidade
[Se essas forem as nossas razões é melhor buscarmos a porta larga e o caminho
amplo pelo qual andam muitos. Todavia,] vale a pena palmilhar impertérrito o
caminho estreito que medeia entre os dois abismos, se realmente ansiamos por
ouvir e por falar de Deus — o Deus conforme ele vem ao encontro da realidade
de nossa vida, autenticamente interpretado em Jesus Cristo —
(quer isto seja ou não de nosso agrado e aceitável para nós;) — vem como o
Deus desconhecido o Deus Santo, o Senhor da vida e da morte. [Vale a pena
seguir pelo caminho difícil das opções decisivas] se afinal, a despeito de todas
especulações contemporizadoras ou inofensivas, também se tratar da indaga-
Sabemos muito bem que não há propriamente “discurso ousado” sobre Deus mas
apenas — discurso “em parte um pouco ousado”; sabemos que o acontecimento
existencial da “recordação” não acontece na forma de ato ao lado de outros atos;
sabemos que [esta recordação j em nenhuma circunstância pode ter a
configuração de acontecimento, no sentido absoluto das palavras, 808
O Apóstolo e a Comunidade
15, 15-16
porquanto isto seria o final de todas as coisas — o que não nos devemos atrever
a tomar em nossas mãos.
“infração” é, [na realidade a “ousadia” dai teologia que a Carta aos Romanos
comete, em seu discurso sobre Deus.
15, 15-16
O Apóstolo e a Comunidade
É sempre muito própria a pergunta “se acaso não seria, de fato, melhor que
teologia e Igreja deixassem de existir”, tendo em vista que, [na prática]
nenhuma das duas tem o ânimo necessário de ser o que são [ou devem ser].
Todavia, se [pelo menos] tivessem suficiente ânimo para não fecharem; então, a
despeito de todas sufocantes considerações sobre a indiscutível banalidade das
obras humanas, não será [a teologia] banalidade excessivamente grande —
Vs. 17 a 21 Tenho pois minha glória em Cristo Jesus, a sabe, perante Deus.
Porquanto não me disporia a falar de coisas que Cristo não houvesse realizado
por meu intermédio, para trazer os gentios à obediência, por palavras e obras,
por força de sinais e maravilhas, pelo poder do Espírito 810
O Apóstolo e a Comunidade
15, 15-21
Quando uma pessoa fala de Deus [ou sobre Deus] com tanta veemência, a
consciência da sua própria posição também há de vir perturbadoramente à tona
em abundância de palavras.
Todavia, por força do “Perdão dos Pecados” pode dar-se o caso de neste
Quem é Paulo? — Paulo pode ser abandonado; o ponto alto onde acaso possa
estar, não é por demais notável. O que Paulo “experimentou”, o que sabe, o que
disse e o que fez, “disto não me disporia a falar”. Paulo nada é; todavia, não será
justamente [nesta renúncia,] neste retraimento, deixando de falar de sua própria
pessoa [para referir-se exclusivamente ao que Cristo fez por sua
instrumentalidade] que Paulo se torna [“sério”] — perigoso, [no modo de dizer
do Autor]?
Talvez esta glória a que Paulo se refere e que soa tão mal [aos ouvidos de certas
pessoas] seja apenas o sinal da glória que subsiste “em Cristo, perante Deus”,
cuja luz não pode ser escondida de todo, debaixo do “alqueire”.
Talvez seja esta glória o fator que tanto provoca [e irrita] os modestos atrevidos
que consideram tão insuportável tal manifestação Paulina. Talvez este 811
15, 17-21
O Apóstolo e a Comunidade
É evidente que este Apostolo, por seu convencimento, não foi pessoa
particularmente simpática, conquistadora; a quem ele houver convencido, o terá
conseguido a despeito de si mesmo e, jamais, por si mesmo. Também é assim o
seu Evangelho: um elemento perturbador na história do Espírito, que poderia
fácil e gostosamente ser suprimido do desenrolar dos fatos porquanto está em
toda parte qual grão de areia [no sapato] e, não raro, qual cascalho entre os
dentes lisos das engrenagens. Por isso a sua incontestável eficácia — que a
historia registra, — precisa ser procurada em alguma grandeza incomensurá-
Ele exibe sua peculiar e irônica suspeição por todas “colunas já existentes”. —
(Gál. 2, 9).
Ele não consulta carne e sangue e, por motivos altamente fundamentados, não
subiu a Jerusalém mas partiu para a Arábia. (Gál.
1, 16-17).
Ele se arroga o direito de afirmar cabalmente que não recebeu nem apreendeu
seu Evangelho de qualquer homem. (Gál. 1, 11-12).
O Apóstolo e a Comunidade
15, 22-23
Vs. 22 a 29 Por isso fui reiteradamente impedido de ir até vós, agora porém,
que não tenho campo nestas paragens e porque há muitos anos tenho pedido
para ir ter convosco e seguir viagem para Espanha, espero ver-vos de passagem
e encontrar entre vós companheiros para seguir até lá, — depois de eu me haver
recreado um pouco convosco. Contudo, agora viajo para Jerusalém.
O plano seguinte do homem, que já quase não encontra “campo” [para as suas
atividades] “deste lado da Itália”, é a viagem à Espanha, uma iniciativa que
demonstra a universalidade final [do cristianismo]. Neste plano, na realidade
muito mais apocalíptico do que racional, está também encaixada a possibilidade
de o autor e os leitores da carta se verem e se reverem pessoalmente.
Vs. 30 a 33 Admoesto-vos porém, irmãos, por nosso Senhor Jesus Cristo e pelo
amor do Espírito Santo, que batalheis ao meu lado, orando por mim a Deus
para que eu seja salvo dos infiéis da Judéia e que meu ministério seja 813
O Apóstolo e a Comunidade
bem aceito pelos santos de Jerusalém, para que então eu chegue a vós com
alegria e, se Deus assim quiser recobre ânimo convosco.
Ela mesma socorreu a muitos e também a mim. Saudai a Prisca e Áquila, meus
cooperadores em Cristo Jesus (e que por minha vida arriscaram suas cabeças o
que não somente eu lhes agradeço mas, também, todas igrejas gentílicas) — é a
igreja que se reúne em sua casa.
814
O Apóstolo e a Comunidade
16, 1-16
[ou à ética] da Epístola porquanto aqui se encontra a “vida simples” tantas vezes
mal compreendida [ou perdida]. Todavia, a essa indagação os próprios leitores
(da Epístola) — (cada um a seu modo), poderão responder, até o dia de hoje.
[Existe] suposição de que estes nomes sejam parte de outra carta, endereçada à
Igreja de Éfeso e, inadvertidamente, juntada à Epístola aos Romanos; esta
hipótese não é “simpática” pois parece ser mais agradável supor que a “carta”
aos Romanos foi endereçada especificamente a determinadas pessoas, com
fisionomias conhecidas e nomes certos; uma mulher — membro da Igreja — foi
sua portadora de Corinto até Roma, nos meados da década 50
815
16, 17-20
O Apóstolo e a Comunidade
— o Cristo, porém a seu próprio ventre e, com suas eloqüentes frases e palavras
beatas confundem os corações dos ingênuos, pois a vossa obedi-
ência é conhecida por todos e, agora, me alegro por vós. Gostaria, porém, que
fôsseis sábios para o bem e símplices com relação ao mal. O Deus da paz em
breve porá Satanás debaixo de vossos pés. A graça de nosso Senhor Jesus seja
convosco!
VERITAS. (Bengel).
816
O Apóstolo e a Comunidade
16, 21-24
A graça de nosso Senhor Jesus Crista seja com todos vós, Amém
1. Como e onde a Carta aos Romanos entra em polêmica para dominar a situação
e, em seguida, retirar-se sem fazer alarde e sem alegações?
Parece-me que só pode ser no seu ensino; na ética que sugere e que recomenda;
no oferecimento do corpo natural, — das forças, dos dons, da inteligência e até
dos eventuais recursos em bens materiais, — em sacrifício a Deus, através do
próximo, sabendo que nada temos de nós mesmos, que tudo vem de Deus; que
dele é a eleição e a rejeição e é ele quem valoriza o que há de ser valorizado.
Nada temos a alegar nem do que nos gloriar. E por isto, me parece, que a
Epístola vem, vê, vence e se retira sem vantagens e sem glórias, pois quem se
gloriar, glorie-se no Senhor!
Talvez Barth tenha razão com o que diz respeito à personalidade do Apóstolo. E
possível que Paulo não tenha sido pessoa simpática a seus contemporâneos e
talvez até existam razões de ordem superior
O Apóstolo e a Comunidade
certo que a luz cresce com a aproximação do dia e que a pesquisa, ainda que
abandonada em meio, não será de todo perdida.
Por que teria o Apostolo tido “tão estranho” procedimento se o seu objetivo era
“ganhar as pessoas” para Cristo? É evidente que sequer se pode imaginar que
Paulo cuidasse de “ganhar amigos e influenciar pessoas”; esta mercadoria
sempre esteve e está à venda e se adquire com certa “flexibilidade” que não fica
bem a pessoas de “responsabilidade” nem sua aplicação se coadunaria com o
caráter do Apóstolo dos Gentios. Contudo, ele tinha amigos: quem pode hoje
contar com pessoas que “pelo amigo” arrisquem “suas próprias cabeças”?
Que Paulo conhecia bem o valor da leal amizade, o epílogo da Carta aos
Romanos bem o atesta com sua longa lista de saudações, onde cada um é
apreciado de maneira objetiva e pessoal. E que dizer das demais cartas de Paulo,
particularmente as escritas a Timóteo, a Tito, e aquele bilhete sobre Onésimo?
Em nenhum lugar há lisonja ou agrado mas, sempre respeito à pessoa.
O que Paulo prega, o que Paulo ensina, o que defende, é que só DEUS É DEUS.
Que não é licito ao homem ocupar o trono de Deus, quer pessoalmente, quer
entronizando representantes seus na forma de imagens, conceitos, doutrinas,
dogmas, organizações ou o que quer que seja; não é lícito ao homem usurpar o
trono de Deus, nem tampouco lhe é permitido fazer-se seu íntimo mensageiro,
ou seu profeta, seu arauto — para “falar em nome do Senhor”. Tais posições
uma pessoa pode ter se para tanto for vocacionada, impelida por Deus mas delas
se desincumbirá com temor e tremor” Qualquer coisa que alguém fizer além
dessa vocação restrita, obscurecerá a verdade divina com a injustiça, com a
prepotência e com a auto-suficiência humanas e estas coisas estão debaixo da ira
de Deus.
818
O Apóstolo e a Comunidade
Paulo ensina que não há acepção de pessoas, nem pela família, nem pela raça,
nem gela fé, nem pelo conhecimento, nem por coisa alguma. Deus é Deus tanto
de gregos como de bárbaros; de judeus e de gentios; de membros da Igreja e de
não-membros da Igreja. Ele é DEUS.
Paulo ensina que mais convém agradar a Deus do que aos homens e que não há
agrado possível a Deus senão mediante a fé que vem pela própria fidelidade de
Deus e que por esta fé o justo viverá; que este Deus nos avalia segundo seu
exclusivo critério na conformidade daquilo que abrigarmos no recôndito de
nossos corações.
ção, sua capacidade física e assim procedendo, amemos a Deus sobre todas as
coisas e ao próximo como a nós mesmos, socorrendo-o, dando-lhe de comer e de
beber, mesmo que este próximo tenha a virulência de inimigo mordaz ou a vileza
de amigo falso; que não o escanda-lizemos, se ele nos parecer “fraco” na fé, com
gestos e atos que possam ser pedras de tropeço para ele.
Paulo ensina que não sejamos preguiçosos em nós mesmos e perante Deus. Que
não pretendamos julgar a Deus, porquanto unicamente ele é justo e reto; mesmo
quando consente que sejamos tentados o faz em sua infinita sabedoria e graça:
são insondáveis os seus juízos e inescrutáveis os seus caminhos; infinita é a sua
ciência e o seu saber. Quem pode compreendê-lo?
É por isto tudo que Paulo anuncia a Cristo, somente a Cristo, o Cristo
crucificado, de cujo Evangelho não se envergonha.
Não seria também por isto tudo que Paulo se recusou ostensivamente e até por
vezes hostilmente, a prestigiar todas as tradições,
Não seria por isto que ele repudiou todas as materializações, até mesmo as que,
em si mesmas, fossem condizentes com a história?
Não seria esse um motivo para enfatizar que devia a sua vocação ao Senhor
Jesus e não a este ou àquele homem?
Não seria por tudo isto que o Apóstolo se tenha referido da forma que o fez, às
“colunas” da Igreja nascente?
819
O Apóstolo e a Comunidade
Não teria sido a “conduta pessoal peculiar” de Paulo uma reação e advertência,
inspirada, contra a materialização que já ensaiava seus passos na Igreja do
primeiro século e que se tornou tão grotescamen-te patente no seio do
cristianismo (de todas “confissões”) nestes 2.000
Foi no século I que Paulo escreveu aos Romanos e sua voz ecoou poderosamente
na Cristandade; no século XVI sua voz reboou novamente, desagradável a
muitos: DE GRAÇA SOIS SALVOS! — É o dom de Deus. A mesma voz nos
fala hoje e cada leitor há de responder qual o eco que ressoa mais fortemente em
seus ouvidos.
820
(Eclesiastes).
maio, 1981
821
ÍNDICES
823
CITAÇÕES BÍBLICAS
ÍNDICE 1
CHAVE:
Indica: Citaçao do cap. 18 na pág. 384 e dos respectivos versículos, (10) na pág.
534 e (17-19) na pág. 207.
Índice 1A
GÊNESIS
7: (2) 526
9: (16) 545
13: (14) 39
(22) 268
(17) 225;
LEVÍTICO
28: (17) 62
NÚMEROS
ÊXODO
DEUTERONÔMIO
4: (24-26) 552
5: (17) 761
825
Citações Bíblicas
SALMOS
802
8: (5) 270
JOSUÉ
I SAMUEL
4: (4) 158
II SAMLEL
39: 401
I REIS
344
II REIS
23: 528
JÓ
95: (7-8) 766
6: (4) 492
106: (20) 62
(33) 492
117: 802
23: 130
31: 130
PROVÉRBIOS
38: 131
24: (12) 85
826
Índice 1A
ECLESIASTES
AMÓS
Cap. 7: 219
ISAÍAS
HABACUQUE
6: (5) 391
8: (14) 569
MALAQUIAS
(39) 93
6: (6) 112
811
679
55: (11) 118
JEREMIAS
Cap. 1: (6) 79
7: (4) 77
9: (23-24) 192
(37ss) 543
MARCOS
OSÉAS
3: (29) 430
8: (34) 48; 96
JOEL
827
Citações Bíblicas
16: (15) 70
19: 445
LUCAS
22: (10) 399
5: (8) 404
6: (26) 24
I CORÍNTIOS
12: (2-3) 84
7: (31) 672
9: (16) 31
JOÃO
4: (24) 386
6: (47) 149
II CORÍNTIOS
3: (17) 441
4: ( 24ss) 542
7: (53) 283
(19-20) 498
8: 708
828
Índice 1A
9: 708
2: (13) 513
FILEMON
GÁLATAS
HEBREUS
2: (7) 270
EFÉSIOS
Cap. 1: 227
2: (12) 514
I PEDRO
(20-21) 798
TIAGO
FILIPENSES
4: (14) 762
2: (5-11) 174; (6) 801; (6-7)
440
I JOÃO
COLOSSENSES
JUDAS
2: (14) 360
(único)
II TESSALONICENSES
APOCALIPSE
Cap. 1: (12) 513
2: (7) 636
II TIMÓTEO
5: (11-13) 174
7: 207
20: (11ss) 80
TITO
829
CITAÇÕES BÍBLICAS
ÍNDICE 1B
Chave: (5) 35, 240, 447
Leia-se: O versículo 5 do capítulo referido está citado nas páginas 35, 240 e 447
(Os números das páginas estão separados por vírgulas).
CAPÍTULO 1
(19-20) 490
(1)
(20)
698, 722
(1-7)
31, 174
650, 679
(2)
(22)
68
(3-4)
259, 280
(22ss)
(5)
(23)
76, 86
(6)
34
(24)
41, 727
(7)
768
(25)
513
(9)
699
(28-31) 66ss
(9-13)
813
(10)
37, 260
CAPÍTULO 2
(14)
35, 276
(1)
132
(16)
(1-2)
86, 269
(1-13)
355
(16-17) 649
(3)
187
(17)
51, 577
(3-5)
269
(18)
(4)
(5)
266
(6)
(18-19) 662
(9)
245, 707
(18ss)
75, 261
(11)
190, 617
(19)
487
(11-12) 272
831
(21-22) 31
(13)
(22)
161, 295
(14)
(14-15) 515
(23)
(14-19) 355
(24)
(14-29) 563
(24-28) 276
(15)
134, 677
(25)
(16)
(25-26) 553
(17)
242, 514
(27)
242, 565
(17s)
269
(17-20) 45
(27-31) 183
(19)
125
(27ss)
579
(19-25) 116
(28)
132, 233
(29)
(22)
242
(29-30) 204
(29)
89, 185
(30)
564
(31)
(1)
(1-2)
45, 514
(1-4)
120, 126
(1)
217, 222
(1-20)
(1-8)
180
(2)
(2)
187, 242
(3)
116, 646
(3)
(3-5)
291
(4-8)
200
(4)
530
(5)
(5)
(6-8)
198
(5s)
548
(9)
200, 564
(5-6)
616
(9-12)
(5-7)
123
(11)
99, 294
(5-8)
124, 125
(12)
594
(6)
120
(13)
(8)
524, 547
(9-18)
653
(13ss)
227
(10)
268, 281
(14-15) 218
(15)
(14-20) 269
(16)
170
(17)
(20)
300, 452
(21)
(17ss)
227
(18)
532, 577
(20)
187
832
Índice 1B
(21)
187
(1s)
548
(25)
236
(1-2)
616
CAPÍTULO 5
(1-12)
368
(1)
(2)
625
(2ss)
161
(1-2)
247
(3)
302, 337
(1-11)
256
(3-5)
303
(2)
(4)
309
(3)
498, 707
(4-5)
278
(3ss)
302
(5)
(5)
(6)
322, 332
(7)
297
(6)
(8)
(6-8)
440
(9)
280, 341
(8)
248
(10)
316
(8-10)
625
(11)
301, 533
(9)
250, 274
(12)
275, 362
(9-11)
341
(12-23) 368
(10)
(12-31) 365
(10-11) 299
(13)
453, 666
(11)
276
(14)
(12)
(14-15) 355
288
(15)
(12-14) 125
(15s)
548
(13)
285, 328
(15-16) 667
(17)
327, 338
(13-20) 355
(18)
334
(14)
(19)
(15)
275
(22)
(16)
277, 442
(23)
(17)
CAPÍTULO 7
(17-19) 86
(1)
(18)
(4)
362, 686
(6)
(19)
(7)
(7-13)
363, 561
525, 620
(7ss)
270
(21)
260, 264
(8)
(8-11)
398
CAPÍTULO 6
(9)
383, 739
(1)
(10)
264
833
Citações Bíblicas - Epístola aos Romanos (11)
270
(28)
(12)
283, 399
(28-29) 632
(13)
400
(28ss)
700
(14)
(29)
632
(14-17) 402
(29-30) 504
(14ss)
270
(31)
503
(15)
739
(38)
63
(16)
409
(16-17) 410
CAPÍTULO 9
(17)
447
(1-5)
597, 603
(18-19) 402
(2)
531
(18-20) 402
(4-5)
45, 99
(19)
(6)
637, 646, 680
(20)
317, 447
(12)
573
(13)
573
CAPÍTULO 7
(15-18) 51
(24)
(18)
573
(25)
319
(19)
(22-23) 620
CAPÍTULO 8 801
(23-33) 788
(1)
444
(31)
(2)
166
(33)
(3)
(4)
587
(5-9)
457
CAPÍTULO 10
(10)
451, 452
(1)
597, 603
(11)
463
(2)
96, 578, 581
(12)
462
(3)
(13)
672
(4)
581
(14)
(4-5)
89
(15)
472
(5)
586, 590
(16)
(6-8)
586
(17)
(9)
590
(18)
(11)
(19-22) 509
(11-14) 513
(19ss)
245, 262
(12)
622
(20)
490, 745
(12ss)
592
(22-23) 490
(13)
590, 592
(23)
608
(14-15) 45
(24)
(15)
169, 455
(24-25) 707
(16)
610
(26)
(16-21) 616
(27)
708
(17)
147
834
Índice 1B
(20)
629
(17)
726
(21)
603, 605
(18)
777
CAPÍTULO 11 788
(19)
738, 745
(2)
610, 646
(19-20) 736
(9)
627
(20)
744
(11)
633
(21)
(12)
638
(21 a 13, 7)
756
(13)
638
(31s)
367
(13-15) 638
(14)
638
CAPÍTULO 13 740
(15)
623
(7)
755
(25)
719
(9-10)
684
(25-26) 652
(11)
706
(28)
654
(12)
236
(30)
643
(14)
686
(32)
105
(36)
637
CAPÍTULO 14 797
(23)
798
CAPÍTULO 12
(1)
CAPÍTULO 15 797s
758, 774
(1)
773, 798
(1-2)
734
(1-6)
797
(2)
(3-12)
798
(3)
(15)
37, 816
(3-6)
760
(17)
163
(3-8)
678, 702
(20-22) 37
(6)
723
(30)
35
(8)
713
(9)
CAPÍTULO 16 797ss
(9-13)
697
(1)
766
(9-15)
(6)
815
(11)
698, 808
(17-20) 798
(13)
698, 813
(19)
34
(14)
701, 726
(22)
236
(15)
711
(24)
(16)
730, 736
(26)
47
835
ÍNDICE DE NOMES
ÍNDICE 2
A
255, 266, 290, 295, 392, 402, 413,
Anselmo 275
Cohen, H. 15, 54
Corssan 797
Atanásio 698
Erasmo 214
Bismark 15
Foerster 674
Boll 608
Gellert 95
Calvino 15, 118, 225, 239, 241, 253, Gouvêa, Ricardo Quadros 5ss 837
Índice de Nomes
Hegel 219
Heráclito 258
Hoelz 460
Holtzmann, H. 297
Melanchton 492
Merechkowski 238
Mota, Otoniel 1
Mozart 672
798
Orígenes 797
421, 692
Lessing 413
Lhotzky 372
Lichtenberg 413
Plotino 175
Polícarpo 798
838
Índice 2
Potenkin 101
Tholuck 796
Preiswerk S. 150
Rothe 453
Rousseau 271
Vasconcelos C. C. 23
Schiller 741
Weinel 254
Weiss, B. 513
Seume, R. 271
Wettstein 513s
Steiner 453
Steinhoffer 247, 541, 632, 781, 816
Zinzendorff 238
Zuendel 27, 51
839
ÍNDICE 3
“Actus Purus”291
38
767
Alvo, O 634s
Ama-Xosa 486
Catecismo de Heidelberg 10
757ss
Anabatistas 737
“Ananke”51
Antinomia 556
388s, 392s
Concílio de Trento 23
Condenação 96
841
Predestinação
Crer 44
Enoque 127
Daniel 127
Davi 127
Decisão 425
155, 160
Escrituração 80
Deus de Jacó 527
707
63, 66s
Espiritismo 334
755
Espiritualismo 453
“Disangelho”10
1), 422s
in fine)
Dor 507
Doxa 187
tários)
Editorial 31
842
Índice 3
Eucaristia 103
Explicações Preliminares 2
Guerra 774
453
(ver “Fé”)
e do mal)
vação”)
1), 811
Hóstia 77
843
Inovação 19
715, 792
124, 169
802
Intolerância 333s
Introdução 27
230s
614
Igreja (Esperança da) 17, 601, 611ss,
680
Jesus 137
602, 613
629, 632s
433, 764
161, 174
Imagens 41, 61
433
Impostos 753
Índia 63
Índice 3
Louvor 668
Luz 146s
Magia 295
Mandamento 389s
Maometanismo 354
Maravilha 81s, 88
“Justificatio Forensis” 17
Maria 422
Justo 47s
Mediador 51
150, 169
122, 252
Méritos (excedentes) 69
Método 76s, 81s, 105 (in fine), 149, 400 (in fine), 415, 772s, 785s
718, 788
384
562s
845
O
Misticismo 32, 81, 165, 222, 298, 301,
Mitras 410
“Poder”)
161
486s, 668
787s, 799ss
Ortodoxia 201ss
Mortificação 461
Munus 48, 69
ça)
Parúsia 242
As trevas 59
A origem 48
284, 724
846
Índice 3
Professor 692
Pedro 172
389
Protesto 756
355s, 477
525, 715s
fine), 328, 333 (in fine), 337s, 345, 436, 463s, 481, 785
345
Policarpo 798
R
Possibilidade negativa, A grande 732ss
Radicalismo 128
Recompensa 52, 58
781, 785
632, 778s
Pregador 407
Prerrogativas 629s
522s, 566
847
Riquezas 84ss
Ritos 295s
Reino do Mal 756
Sábado 69
Salomão 28, 54
778s
tura”)
Ser Humano 41
Servir 692
Revolta 53
Sião 641
848
Índice 3
Símbolo 295
Testemunhas 690s
Tirania 120s
794
805
Torquemada 357
525, 716
Transubstanciação 103
Sublapsarianismo 266
180
Superlapsarianismo 266
Tropeço 790
Unidade 688
Universalidade 144ss
Paulinum”)
Tempos 765s
Teocracia 737
809s
Wittenberg 779
Teosofia 214s
Zacarias 194
849
ÍNDICE 4
EXPLICAÇÕES PRELIMINARES
............................................................................. 1
AB EXTRA, AD REM
............................................................................................... 21
APRESENTAÇÃO
...................................................................................................... 25
Capítulo I
.................................................................................................................. 27
A Noite ..................................................................................................................
49
Capítulo II
................................................................................................................ 73
851
Capítulo III
............................................................................................................. 111
Capítulo IV
............................................................................................................. 177
Capítulo V
............................................................................................................... 235
Capítulo VI
............................................................................................................. 289
852
Índice 4
2ª Parte
QUALIS AB INCEPTO
.......................................................................................... 421
Capítulo VIII
.......................................................................................................... 425
Capítulo IX
............................................................................................................. 511
Capítulo X ..............................................................................................................
559
Capítulo XI
............................................................................................................. 601
853
Índices
..................................................................................................................... 823
854
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carta aos romanos 1.pdf
carta aos romanos 2.pdf
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