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RENÉ DESCARTES
DISCURSO DO MÉTODO
MEDITAÇÕES
OBJECOES E RESPOSTAS
AS PAIXÕES DA ALMA
*
CARTAS
Introdução de Gilles-Gaston.Granger;
Prefácio e notas de Gérard Lebrun ;
Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Junior.
Prefacio ........................................................................................................ 7
Nota sobre a Edição .................................................................................. 9
Introdução .................................................................................................... 11
Discurso do Método ............................................ 33
Meditaço~es .................................................................................................... 81
Objeçoes e Respostas ................................................................................ 153
As Paixo~es da Alma •..................................................................................... 223
Cartas ............... /......................................................................................... 307
Índice ............................................................................................................. 341
Prefácio
O leitor encontrará aqui uma coletânea dos mais célebres textos filosóficos
de Descartes. Textos “filosóficos”, isto é, consagrados como tais pela tradição.
Os responsáveis pela edição, quanto a eles, pensariam de bom grado que o méto
do cartesiano para obter as tangentes às curvas ou o tratado das máquinas sim
ples ou a explicação do arco-íris ou ainda “a descrição do corpo humano ” apre
sentam tanto interesse “filosófico” quanto os textos mais conhecidos, aqui
publicados. Não se tratava, seguramente, de incluir nesta edição tantos textos
“científicos” (aliás, muitas vezes mais úteis à história das ciências do que às pró
prias ciências); mas tentou-se, na medida do possível, restituir este Descartes
integral, traído por comentários parciais, e que um trabalho, como o de Gué-
roult, nos ensinou a descobrir.
Isto porque Descartes foi injustamente tratado pela história, muitas vezes,
mesmo quando ela o celebrava. Compare-se, por exemplo, a sua reputação à de
Pascal: não é o bom senso oposto ao gênio, o pensamento claro ao pensamento
fulgurante? Nisso, sem dúvida, não se realça exageradamente este; mas deprecia-
se sorrateiramente aquele. Mas se, cansados das idéias recebidas (“filósofo do
Cogito”, “todo francês é cartesiano ’), ousamos enfim abordar os próprios textos,
veremos os clichês se desfazerem em pó e a verdadeira originalidade do autor
aparecer na mesma medida. Este “livre-pensador” é na realidade um católico
convicto; este “progressista” não fala do infinito senão “para se lhe submeter”;
este “idealista” se ocupa muito mais, em toda a sua correspondência, de Dióp-
trica e da construção de lunetas do que do Cogito; este “pai da filosofia france
sa” despreza os “doutos”; os leitores que ele almeja são os profanos em Filosofia
e até em Matemática, “de preferência aos que hajam aprendido segundo o méto
do ordinário ”, e os programas de nossas classes de Filosofia, dispostos segundo
a ordem das matérias, fá-lo-iam dar de ombros. Que o leiam —ou melhor, que
o deixem falar — e seus julgamentos temerários, sua tranquila presunção acaba
rão espantando-nos e até escandalizando-nos. É então que começaremos talvez a
compreendê-lo. Voltará a ser para nós este gentil-homem despreocupado com as
usanças universitárias, este algebrista orgulhoso de sua Geometria e contente
com que os seus pares nada compreendam dela, desdenhoso dos conceitos esco
lares de seu tempo, ingenuamente seguro de passar à posteridade. “Este cavaleiro
francês que partiu a um passo tão bom ”, dizia Péguy . . .
Tomando assim os textos ao pé da letra, aprendendo a lê-los sem anteparo,
vemos surgir, tanto quanto uma Filosofia inimitável, o solitário severo e apaixo
8 PREFÁCIO
nado que lhe é inseparável. O livro de Guéroult, por exemplo, nos faz
compreender melhor não só a ordenação rigorosa dos conceitos cartesianos
como o retrato de Franz Haals. Ao mesmo tempo que o sistema de Descartes
adquire toda a sua envergadura, o homem reencontra o seu exato lugar: não em
um “pensamento francês"mítico, entre Pasteur e Victor Hugo, mas na época de
Luís XIII e de Richelieu. Com isso, a França nada perde; a Filosofia e Descartes
ganham.
Isso para justificar o método de leitura que propomos aqui: estrita atenção
ao sentido das palavras e à articulação das “razões”. Escolar na aparência,, este
método, cremos nós, é o único capaz de fazer justiça à lenda de um Descartes
“escolar”. Se o leitor não envidar tal esforço, estes textos ser-lhe-ão inúteis,por
quanto procurará neles apenas confirmação dos “prejuízos da tradição ” (Descar
tes alinhá-los-ia, sem dúvida'entre os da “infância’j. Semelhante afirmação, à
frente de um livro sobre Descartes, parecería a justo título presunçosa. A frente
de um livro de Descartes, constitui apenas um apelo à modéstia: não o julguemos
de cima, a partir do que pensamos saber sobre ele; leiamo-lo e releiamo-lo como
ele próprio recomendava. Então, não o “julgaremos" mais e teremos talvez
probabilidades de compreender este autor difícil. Alain observava: “E um
homem terrível para se tomar como mestre. Seu olho parece dizer: Mais um que
se vai enganar”.
Descartes merece, não viver numa lenda, por mais benevolente que seja,
mas obter leitores “que examinem curiós amente minhas razões”. Não que ainda
se possa ser cartesiano, na acepção em que o eram Bossuet ou Mme de Sévigné.
Mas este pensamento ainda é capaz de nos prestar serviços: afastando os obstá
culos que nos impedem de entendê-lo bem, estabelecemos por aí mesmo nossas
distâncias em relação às ideologias que, hoje em dia, nos solicitam. Hegelia-
nismo, fenomenologia, existencialismo, todo “este rio de mil canais da Filosofia
moderna ”, tem sua cabeceira, nos diz Guéroult, “no pequeno livro denso e lacô
nico das Meditações”. Por isso vale a pena, ao menos uma vez, ler Descartes,
esquecendo que ele teve sucessores, deixando de vê-lo apenas como um pré-hus-
seríiano ou pré-sartriano. Depois, quem sabe? Ao voltar para estes, vê-los-emos
antes como pós-cartesianos e a inteligência de suas obras terá lucrado com isso:
saberemos melhor situá-las. Eis o maior benefício que cabe esperar de Descartes:
que ele nos leve ao dépaysement e nos ensine a considerar sob outra luz os auto
res modernos que nos são familiares. Quando um pensador é capaz, a três sécu
los de distância, de nos forçar a estes reexames, de que serve dizer que é “ge
nial”? Amemo-lo ou não, ele nos é indispensável.
Gerard Lebrun
Nota sobre a Edição
1.1. Propor ao homem de nosso tempo que leia ou releia Descartes exige
algumas palavras de explicação. Os filósofos, certamente, não deixam, nem dei
xarão, tão cedo, de interrogá-lo, de solicitá-lo, de tomá-lo como testemunha.
Mas, para o homem de bem, que pretende apenas um conhecimento geral das
grandes obras do espírito humano, de que vale o trabalho de ir um pouco além
das fórmulas e das citações sempitemas? O espírito, quando não a letra, do pen
samento cartesiano já não penetrou suficientemente nossas maneiras modernas
de pensar, sendo o resto justamente apenas resíduo? E preciso responder sim e
não a este elogio mitigado da grandeza cartesiana. Embora seja verdade que mui
tos temas que foram outrora conquistas do filósofo francês são hoje lugares-
comuns universais, embora seja verdade, em contrapartida, que o conjunto da
filosofia de Descartes não poderia satisfazer validamente a todas as exigências
da maioria de nossos contemporâneos, não é menos justo ver no sistema do filó
sofo, tomado como tal, um dos monumentos mais dignos de atenta visita. Nin
guém gostaria, talvez, de habitar as vastas salas de Versalhes; ao menos é lícito
compartilhar, em demorando-se nelas, do sentimento com que alguns homens,
cujo estado de alma compreendemos, souberam comprazer-se; e mesmo aí enten
demos o sentido das soluções válidas e definitivas que nelas foram dadas a pro
blemas que nossa arquitetura formula — e portanto resolve — de outra maneira.
É assim, acreditamos, que se deveria ler nosso autor. Não que seja proveitoso
percorrer-lhe os textos como se faz às salas de um museu, e à maneira de um
divertimento. Ele próprio nos adverte de que não escreve, de modo algum, para
aqueles que lerem suas Meditações “apenas como um romance, para se desente-
diar”1. Tanto mais que não se trata aqui de propor uma coletânea de peças esco
lhidas, da qual fariam parte apenas morceaux de bravoure. Trata-se antes, sem
dúvida, de fornecer um ponto de vista a partir do qual se descubra uma região
suficientemente extensa, ainda que muitos de seus rincões permaneçam escondi
dos. Paisagem “de fazer sonhar os maiores palradores”, se é permitido tomar
aqui a Descartes uma das raras flores de seu estilo. Mas é ainda necessário ir
além. Não é nada, ou quase nada, abranger com o olhar este vasto conjunto: o
que é necessário aqui é compreender, isto é, caminhar ao longo das veredas cuja
trama é tão cerrada que a desatenção de um instante nos extravia. Múltiplas
vezes Descartes adverte seu leitor — nas Respostas às Objeções e nas Cartas:
1.2. Levada ao seu mais agudo grau de exatidão, até o ponto extremo da'
atenção e do discernimento, por um pensamento afeito às delicadezas da análise,
uma tal leitura explicativa de um texto só pode ser coisa de um historiador da
filosofia, na medida em que se revela, ele próprio, um filósofo. Guéroult nos deu,
quanto às Meditações, um modelo admirável. Não se poderia exigir o mesmo do
simples leitor homem de bem. Ao menos, cada um pode convencer-se de que este
ideal de compreensão escrupulosa deve servir-lhe de oriente. Mas se tal é efetiva
mente a condição de proveitosa leitura das obras filosóficas — e singularmente
de Descartes —, seria restringir-lhe estranhamente o benefício o ignorar a neces
sidade de outra espécie de leitura. Uma vez assegurado o esforço de compreensão
leal, pode e deve desenvolver-se livremente uma reflexão que discuta o texto para
relacioná-lo, de um lado, às circunstâncias históricas que lhe infundem sua relati
vidade e, de outro, aos termos atuais dos problemas que ele coloca. Tanto seria
injusto e vão querer compreender Descartes regendo-o e repreendendo-o em
nome de uma mentalidade que lhe é estranha, quanto seria contrário à admiração
verdadeira que dedicamos a seu gênio recusar, após examinar para nós, homens
do século XX, o conteúdo válido de sua doutrina e de seu método. Compreendê-
lo inicialmente, sem preconceitos, tal como ele próprio' se exprimiu; meditar, em
seguida, sobre aquilo que nos toca em sua filosofia. Tais são as duas vias que
propomos ao leitor, e as páginas que se seguem oferecem-se-lhe apenas como
guia, sem qualquer ambição de acrescentar novo ensaio aos dos sèus
comentadores. '
2 Por necessidade do texto, usamos sempre “prejuízo” para traduzir préjugé, no sentido de pre
juízo, preconceito. (N. dos T.)
1
14 INTRODUÇÃO
3 Descartes Selon l’Ordre des Raisons, Paris, 1953, I, pág. 338. Escusado é dizer quanto deve
mos, neste ponto, à monumental exegese de Guéroult, que leva o leitor pouquíssimo atento a
redescobrir o texto das Meditações. I
INTRODUÇÃO 15
a fortiori todas as perfeições que conheço. Ê preciso pois que seja de um ser per
feito, e esta perfeição exclui a hipótese de um Deus enganador.
Assim, fica estabelecida a objetividade de nossas idéias e, mesmo, aparente
mente, a constante certeza do conteúdo delas.
D. O que faz com que, por uma -inversão dos termos do problema metafí
sico, trate-se agora de explicar a possibilidade do erro: sendo Deus onipotente e
veraz, como pode ocorrer, entretanto, que nos enganemos? Ê que o erro não é
absolutamente algo real, que dependa de Deus, mas apenas uma carência em
mim que estende o poder de meu livre arbítrio para além de meu entendimento.
Minha vontade, ou poder de julgar, é livre e infinita; eu me engano quando a
estendo às coisas que não entendo. Assim, o erro tem o, nada por princípio meta
físico — o que justifica Deus desta carência que me é própria — e a liberdade
por princípio psicológico, que é em mim, ao contrário, uma infinita perfeição.
E. Minhas razões de duvidar são pois explicadas e, ao mesmo tempo, supe
radas. A dúvida “metafísica” figurada pelo Gênio Maligno é afastada, assim
como a dúvida hiperbólica referente às essências matemáticas. E da certeza obje
tiva das idéias claras e distintas — como são as idéias matemáticas — posso
extrair ainda uma prova da existência de Deus. Pois na idéia de um Deus perfeito
percebo a existência. A realidade objetiva que lhe corresponde é portanto um ser
existente. Esta prova estabelece a necessidade da existência de Deus, mas não é
válida para mim, a não ser, é certo, que eu já tenha estabelecido por outra via o
princípio da objetividade das idéias claras e distintas que, por sua vez, dçpende
da existência de Deus. São as duas provas anteriores independentes que a toma
ram indubitável. Não há círculo aqui, mas concurso.
Resta esclarecer este aspecto de minha dúvida hiperbólica que concernia às
coisas materiais e se baseava na obscuridade e na confusão das idéias sensíveis.
Sem o que, uma ciência bem fundamentada da natureza corpórea não poderia
estender-se para além das demonstrações dos geômetras, “que não se preocupam
com sua existência”.
F. Ora, posso estar certo de que o corpo e a alma — ou seja, aquilo que
pensa — são realmente distintos, posto que posso concebê-los clara e distinta
mente como separados, e de que a onipotência de Deus pode, por conseguinte,
separá-los. De outro lado, Deus me dá, por intermédio do sentimento, que é em
mim uma certa faculdade passiva de conhecer as coisas sensíveis, a idéia de cor
pos existentes. Não poderia enganar-me nisto, a não ser que me desse ao mesmo
tempo a 'faculdade de conhecer a causa verdadeira, eminente4, dessas idéias;
mas, ao contrário, ele me inclina fortemente a acreditar que essas idéias provêm
das coisas corporais: é preciso, pois, confessar que existem.
Tudo o que nelas vejo de claro e distinto é somente de natureza geométrica,
enquanto meus sentidos me fornecem apenas uma idéia confusa e obscura de
suas qualidades. Esta experiência do sentimento revela-me que minha alma, em
bora essencialmente distinta de meu corpo, é estreitamente “confundida e mistu
rada” com ele. Esta união da alma com o corpo permanece incompreensível para
meu entendimento, mas o que me parece possível não é de modo algum um limite
das possibilidades de um Deus infinito, que tudo pode, salvo aquilo que for
contraditório à sua própria essência. Incompreensível é, pois, minha natureza, na
4 Quer dizer: cuja realidade não seja formalmente aquela que me é dada na idéia que tenho dela.
16 INTRODUÇÃO
sua Física das Matemáticas puras, “às quais (ele) almeja mais do que tudo que
ela se assemelhe” (Respostas às Quintas Objeções) e declarar-se “aborrecido”
com os problemas matemáticos: pois estes são apenas um meio e a ocasião de
um exercício.
Matemáticas e Método
3.4. A Física cartesiana é a explicação das coisas deste mundo; ela deve ao
mesmo tempo desmascarar as ilusões ocasionais de nossos sentidos e explicá-las,
ou seja, ela desenvolve por ordem todas as conseqüências da distinção entre a
alma e o corpo. Neste sentido, ela se opõe radicalmente à Física da Escola, cuja
6 Regra VIII. Cf. sobre este tema o penetrante estudo de J. Vuillemin, in Mathématiqiles et
Métaphysique chez Descartes, Paris, 1960.
INTRODUÇÃO 19
7 Há aí, como se sabe, duas dificuldades que a mecânica de Leibniz e a de Newton trarão à
plena luz. De um lado, não é a simples extensão que intervém nas leis do movimento, mas a
massa, propriedade dinâmica da matéria. De outro, não se pode dissociar a grandeza das veloci
dades de sua direção: é preciso figurá-las como grandezas vetoriais, e não como grandezas esca
lares. Por outro lado, a definição estritamente relativista do movimento, ligada a um ponto de
referência local, não é de modo algum clara se examinarmos suas consequências, pois parece
então que a quantidade de movimento em um sistema perde toda a significação. Mas a discussão
dessa dificuldade de interpretação do mecanismo cartesiano nos arrastaria demasiado longe.
20 INTRODUÇÃO
8 Com estas idéias ae “mais fraco” e “mais forte” reaparecem, infelizmenté, as idéias obscuras
que, unidas à distinção não fundamentada entre direção e quantidade de movimento, hão de vi
ciar irremediavelmente a Mecânica cartesiana e levá-la a pecar contra seus próprios princípios.
9 Com sua teoria das lentículas da Dióptrica, o princípio de inércia, e o conteúdo do peaueno
Tratado dos Engenhos que segue a carta a Huygens de 5 de outubro de 1637,é quase tudo [de só
lido que permanece dos resultados Oa física cartesiana.
INTRODUÇÃO 21
O Homem
3.8. Como quer que seja para nós este malogro, Descartes não lhe foi sensí
vel; acreditou possuir uma explicação dos fenômenos verdadeiramente convin
cente para um espírito atento e não preconceituoso. E neste universo o homem
tem seu lugar, eminente, já que participa a um tempo do reinado da extensão,
onde tudo é mecanismo, e do reinado do pensamento, que o introduz na moral e
na religião. Mas depende ainda de um terceiro reinado, que é o da união entre a
alma e o corpo. Daí o caráter inteiramente singular da antropologia cartesiana,
que se divide necessariamente em três registros bem distintos.
Enquanto corpo, orgânico, o homem é animal, o que quer dizer que convém
descrevê-lo como uma máquina, mais complexa certamente que os outros siste
mas materiais, e que tudo quanto ocorre nesta máquina deve ser fisicamente
explicado. O começo do Tratado do Homem expõe claramente este postulado.
Imaginaremos, diz o Autor, homens em tudo a nós semelhantes, mas considera
remos, inicialmente, neles apenas uma máquina sem alma, sendo esta, como se
sabe, realmente distinta do corpo. Contrariamente à interpretação escolástica do
aristotelismo, para a qual toda organização é alma, Descartes pretende explicar
a fisiologia animal a partir da circulação, no corpo, das diferentes modalidades
da matéria. Os espíritos animais nada mais são do que as partes mais tênues do
sangue que passam do coração ao cérebro, e a seguir do cérebro aos músculos,
que eles movem à maneira de nossos comandos hidráulicos. O próprio sfangue
provém de uma filtragem das partes dos alimentos que o calor do coração irá
destilar. Na Descrição do Corpo Humano, seguida do Tratado da Formação do
22 INTRODUÇÃO ‘
10 Assim, Descartes tem a idéia nítida, do reflexo, e mesmo do reflexo condicionado. (Cf. Cartas,
a Mersenne, de 18 de março de 1630, sobre o cão fustigado ao som do violino. . .) Acerca desse
ponto, poder-se-á consultar o livro de Canguilhem: La Formation de la Théorie du Réflexe au
XVIIeetXVHIe Siècle, Paris, 1955. |
INTRODUÇÃO 23
como desta união entre a alma e o corpo não seria possível obter uma idéia clara
e distinta, e como seria necessário raciocinar precisamente sobre noções obscu
ras e confusas, a empresa culmina em malogro reconhecido. Descartes nos devol
ve, ao fim de contas, à obediência à nossa natureza, que “conhece bem melhor
(seu estado) do que um médico, que só vê o exterior”. (Colóquio com Burman.)
É renunciar a uma medicina científica.
11 Cf., sobre toda esta questão, Descartes Selon l’Ordre des Raisons, II, caps. XIX e XX, e tam
bém: Lívio Teixeira, Ensaio, sobre a Moral de Descartes, caps. IX e X.
-í
24 INTRODUÇÃO
Contradições da Solidão
Filosofia e Ideologia ,
4.5. Pouco importa que René Descartes tenha sido, ele próprio, em muitos
aspectos, um.homem sinceramente ligado à religião e a ordem social tradicional.
(Seria absurdo descrevê-lo como revolucionário disfarçado, que mascarasse sua
incredulidade sob uma piedade simulada e seu radicalismo político sob um apa
rente respeito pelos poderes.) O que conta é a introdução, em seu sistema, de ele
mentos que vão objeuvamente no sentido ae uma idéia nova do homem e da
natureza. Desligados do contexto rigorosamente encadeado em que aparecem,
tomar-se-ão as idéias-forças de uma concepção geral [do mundo sumária mas efi
caz, posto que diretamente imbricada em poderosos njiovimentos que dominam a
sociedade dos dois séculos vindouros. Existe realmente, neste sentido, uma ideo
logia cartesiana. ; ■
O primeiro tema seria o da laiclzação do saber. "‘Concebí uma filosofia”,
diz ele a Burman, “de maneira que pudesse ser recebida em todo lugar, mesmo
entre os turcos, sem ofender a ninguém.” A universalidade que a ideologia medie
val queria obter pela catolicidade da fé cristã, Dçscartes pensa encontrá-la
mediante o apelo ao “bom senso”. Tal deslocamento; do centro de gravidade do
pensamento concorda manifestamente com a substitxiição, por relações de troca
em uma sociedade capitalista, das relações de evangelização e comunhão numa
sociedade de tipo medieval.
O segundo tema seria o da causalidade. Este princípio já pertencia, é certo,
ao racionalismo escolástico; mas Descartes, estabelecida a existência de Deus,
interpreta-o num sentido mecanicista, cuja assimilação há de orientar todo o pen
samento pragmático do futuro. Produzir efeitos pondo em ação causas adequa
das, tal é o leitmotiv profundo do homem pós-cartesiano. Por mais que o dissi
mulemos sob interpretações mágico-rituais, ou éticas [e religiosas, o mito nunca é
mais que uma manifestação de sua má-fé. Descartes anuncia o advento de um
mundo positivo e duro, mas que é também aquele em Jque o homem proclama seu
reinado sobre as potências da natureza, !
Um último tema, este radicalmente moderno, prolonga e completa os dois
outros. Chamá-lo-emos o tema da empresa. Tomou-se tão banal hoje que mal se
ousa mencioná-lo; era, entretanto, novo ao tempo dê Descartes. O propósito de
organizar o mundo em vista da felicidade terrestre dos homens, e de basear essa
organização em um domínio da natureza que consiste em integrá-la em um uni
verso de máquinas, tal é a idéia cartesiana. O sentido que ela reveste no Filósofo,
e a repercussão renovada que pode ter em nós, homens do século XX, não deve
nos encobrir o acordo elementar e, querendo-se, mistificador que ela pôde espon
taneamente manifestar com a mentalidade da primçira idade capitalista. Uma
ideologia da empresa infletida no sentido da procura Ido lucro e da mecanização
rude das relações entre os homens e das relações dos homens com o mundo, não
poderia evidentemente ser confundida com a filosofia de Descartes, exceto por
uma espécie de grotesco mal-entendido. Mas é assirri, sem dúvida, que, no mais
das vezes, as idéias conduzem o mundo. E para os séqulos subsequentes a ideolo
gia cartesiana teve ainda mais importância do que a filosofia expressa pelo
pensador.
28 INTRODUÇÃO
necessitasse e de resto impedir que seu lazer lhe fosse arrebatado pela importuni
dade de pessoa alguma...”
O estabelecimento das verdades da ciência é, para Descartes, obra de um
só. Ê que a estreita còncatenação das razões que se “encadeiam” exige, segundo
ele, que o mesmo espírito percorra o conjunto de seu sistema. O tempo da ciên
cia, também, seria um tempo descontínuo, devendo cada um refazer por conta
própria o caminho já percorrido. Um individualismo tão radical, ainda que seja
perfeitamente coerente com a visão cartesiana das coisas,,será aceitável para
nós? Com ele está posta em causa a relação entre o coletivo e o individual. A
ética cartesiana, como doutrina da individuação da máquina corporal, por uma
alma que lhe dá sua finalidade, não nos colocará o mesmo problema? O gene
roso se recusa a situar a sabedoria ao nível da ordem social; o que ele pede à
organização coletiva são apenas as comodidades “que só se encontram nas gran
des cidades” (Cartas-,Balzac, de 5 de maio de 1631), e, acima de tudo, a paz.
Semelhante posição, que ainda hoje corresponde a certa concepção da vida pelo
intelçctual, nos leva a refletir sobre a antinomia do pensador solitário, empenha
do, entretanto, em uma empresa cuja parada é a ventura da humanidade.
Gilles-Gaston Granger
DISCURSO DO MÉTODO
1 O primeiro título em que pensou o autor era: “Projeto de uma Ciência universal que possa ele
var a nossa natureza ao seu mais alto grau de perfeição. Mais os Meteoros, a Dióptrica e a Geo
metria, onde as mais curiosas matérias que o autor pôde escolher para dar prova da ciência uni
versal que ele propõe são tratadas de tal modo que mesmo aqueles que não estudaram podem
entendê-las”. Não se deve esquecer que a obra constitui apenas uma Introdução, que perde muito
de seu sentido quando separada dos três ensaios que ela antecede.
Advertência
Se este discurso parecer demasiado longo para ser lido de uma só vez,
poder-se-á dividi-lo em seis partes. E, na primeira, encontrar-se-ão diversas
considerações atinentes às ciências. Na segunda, as principais regras do método
que o Autor buscou. Na terceira, algumas das regras da Moral que tirou desse
método. Na quarta, as razões pelas quais prova a existência de Deus e da alma
humana, que são os fundamentos de sua metafísica. Na quinta, a ordem das
questões de Física que investigou, e,particularmente, a explicação do movimento
do coração e algumas outras dificuldades que concernem à Medicina, e depois
também a diferença que há entre nossa alma e a dos animais. E, na última, que
coisas crê necessárias para ir mais adiante do que foi na pesquisa da natureza e
que razões o levaram a escrever.
—--THTWrn
Primeira Parte
O bom senso é a coisa do mundo nos toma homens e nos distingue dos
melhor partilhada, pois cada qual animais, quero crer que existe inteira
pensa estar tão bem provido dele, que mente em cada um, e seguir nisso a
mesmo os que são mais difíceis de con opinião comum dos filósofos, que
tentar em qualquer outra coisa não dizem não haver mais nem menos
costumam desejar tê-lo mais do que o senão entre os acidentes, e não entre as
têm. E não é verossímil que todos se formas ou naturezas dos indivíduos de
enganem a tal respeito; mas isso antes uma mesma espécie2.
testemunha que o poder de bem julgar Mas não temerei dizer que penso ter
e distinguir o verdadeiro do falso, que tido muita felicidade de me haver
é propriamente o que se denomina o encontrado, desde a juventude, em cer
bom senso ou a razão, é naturalmente tos caminhos, que me conduziram a
igual em todos os homens'; e, destarte, considerações e máximas, de que for
que a diversidade de nossas opiniões mei um método, pelo qual me parece
não provém do fato de serem uns mais que eu tenha meio de aumentar gra
racionais do que outros, mas somente dualmente meu conhecimento, e de
de conduzirmos nossos pensamentos alçá-lo, pouco a pouco, ao mais alto
por vias diversas e não considerarmos ponto, a que a mediocridade de meu
as mesmas coisas. Pois não é suficiente espírito e a curta duração de minha
ter o espírito bom, o principal é apli vida lhe permitam atingir3. Pois já
cá-lo bem. As maiores almas são capa colhi dele tais frutos que, embora no
zes dos maiores vícios, tanto quanto juízo que faço de mim próprio eu pro
das maiores virtudes, e os que só cure pender mais para o lado da
andam muito lentamente podem avan desconfiança do que para o da presun
çar muito mais, se seguirem sempre o ção, e que, mirando com um olhar de
caminho reto, do que aqueles que cor filósofo as diversas ações e empreendi
rem e dele se distanciam. mentos de todos os homens, não haja
Quanto a mim, jamais presumi que quase nenhum que não me pareça vão
meu espírito fosse em nada mais per e inútil, não deixo de obter extrema
feito do que os do comum; amiúde
desejei mesmo ter o pensamento^ tão 2 É acidente o que pertence a um ser sem per
tencer à sua essência. — “Os filósofos” desig
rápido, ou a imaginação tão nítida e nam, como sempre em Descartes, os escolás-
distinta, ou a memória tão ampla ou ticos.
tão presente, quanto alguns outros. E 3 Cf. a definição de sabedoria (assimilada à
não sei de quaisquer outras qualidades, ciência) no Prefácio dos Princípios: “O per
feito conhecimento de todas as coisas que o
exceto as que servem à perfeição do homem pode saber, tanto para a conduta da
espírito; pois, quanto à razão ou ao vida quanto para a conservação da saúde e a
senso, posto que é a única coisa que invenção de todas as artes”.
38 DESCARTES
til em bons espíritos como qualquer quase o mesmo que o conversar com
dos precedentes. O que me levava a os de outros séculos, é o viajar. É bom
tomar a liberdade de julgar por mim saber algo dos costumes de diversos
todos os outros e de pensar que não povos, a fim de que julguemos os nos
existia doutrina no mundo que fosse tal sos mais sãmente e não pensemos que
como dantes me haviam feito esperar. tudo quanto é contra os nossos modos
Não deixava, todavia, de estimar os é ridículo e contrário à razão, como
exercícios com os quais se ocupam nas soem proceder os que nada viram.
escolas. Sabia que as línguas que nelas Mas, quando empregamos demasiado
se aprendem são necessárias ao enten tempo em viajar, acabamos tomando-
dimento dos livros antigos; que a gen nos estrangeiros em nossa própria
tileza das fábulas desperta o espírito; terra; e quando somos demasiado
que as ações memoráveis das histórias curiosos das coisas que se praticavam
o alevantam, e que, sendo lidas com nos séculos passados, ficamos ordina
discrição, ajudam a formar o juízo; riamente muito ignorantes das que se
que a leitura de todos os bons livros é praticam no presente. Além do mais,
qual uma conversação com as pessoas as fábulas fazem imaginar como possí
mais qualificadas dos séculos passa veis muitos eventos que não o são, e
dos, que foram seus autores, e até uma mesmo as histórias mais fiéis, se não
conversação premeditada, na qual eles mudam nem alteram o valor das coisas
nos revelam tão-somente os melhores para tomá-las mais dignas de serem
de seus pensamentos; que a eloquência lidas, ao menos omitem quase sempre
tem forças e belezas incomparáveis; as circunstâncias mais baixas e menos
que a poesia tem delicadezas e doçuras ilustres, de onde resulta que o resto
muito encantadoras; que as Matemá não parece tal qual é, e que aqueles que
ticas têm invenções muito sutis, e que regulam os seus costumes pelos exem
podem servir muito, tanto para conten plos que deles tiram estão sujeitos a
tar os curiosos, quanto para facilitar cair nas extravagâncias dos paladinos
todas as artes e diminuir o trabalho de nossos romances e a conceber
dos homens; que os escritos que tratam desígnios que ultrapassam suas for
dos costumes contêm muitos ensina ças7.
mentos e muitas exortações à virtude Eu apreciava muito a eloquência e
que são muito úteis; que a Teologia en estava enamorado da poesia; mas pen
sina a ganhar o céu; que a Filosofia dá sava que uma e outra eram dons do
meio de falar com verossimilhança de espírito, mais do que frutos do estudo.
todas as coisas e de se fazer admirar Aqueles cujo raciocínio é mais vigo
pelos menos eruditos; que a Jurispru roso e que melhor digerem8 seus
dência, a Medicina e as outras ciências pensamentos, a fim de tomá-los claros
trazem honras e riquezas àqueles que e inteligíveis, podem sempre persuadir
as cultivam; e, enfim, que é bom tê-las melhor os outros daquilo que pro-
examinado a todas, mesmo as mais
supersticiosas e as mais falsas, a fim de 7 Descartes dirá que as línguas, a Geografia,
conhecer-lhes o justo valor e evitar ser a História, são adquiridas “sem nenhum dis
por elas enganado. curso de razão”: elas recorrem apenas à
memória, jamais à razão. Essa distinção entre
Mas eu acreditava já ter dedicado as “ciências racionais” e “históricas” é funda
bastante tempo às línguas, e mesmo mental nos Clássicos; será mantida por Kant.
também à leitura dos livros antigos, às 8 Digerem: ordenam, segundo o sentido pri
suas histórias e às suas fábulas. Pois mitivo do latim digerere, cf. Littré.
40 DESCARTES
põem, ainda que falem apenas baixo pretendia, como qualquer outro; ga
bretão9 e jamais tenham aprendido nhar o céu; mas, tendo aprendido,
retórica. E aqueles cujas invenções são como coisa muito .segura, que o seu
mais agradáveis e que as sabem expri caminho não está menos aberto aos
mir com o máximo de ornamento e do mais ignorantes do que aos mais dou
çura não deixariam de ser os melhores tos e que as verdades reveladas que
poetas, ainda que a arte poética lhes para lá conduzem estão acima de
fosse desconhecida1 0. nossa inteligência, não ousaria subme
Comprazia-me sobretudo com as tê-las à fraqueza de meus raciocínios, e
Matemáticas, por causa da certeza e pensava que, para empreender o seu
da evidência de suas razões; mas não exame e lograr êxito, era necessário ter
notava ainda seu verdadeiro emprego, alguma extraordinária assistência do
e, pensando que serviam apenas às céu e ser mais do que homem.
artes mecânicas, espantava-me de que, Da Filosofia nada direi, senão que,
sendo seus fundamentos tão firmes e vendo que foi cultivada pelos mais
tão sólidos, não se tivesse ediflcado excelsos espíritos que viveram desde
sobre eles nada de mais elevado1112. Tal muitos séculos e que, no entanto, nela
como, ao contrário, eu comparava os não se encontra ainda uma só coisa
escritos dos antigos pagãos que tratam sobre a qual não se dispute, e por
dos costumes a palácios muito sober conseguinte que não seja duvidosa, eu
bos e magníficos, erigidos apenas não alimentava qualquer presunção de
sobre a areia e sobre a lama. Erguem acertar melhor do que os outros; e que,
muito alto as virtudes e apresentam- considerando quantas opiniões diver
nas como as mais estimáveis de todas sas, sustentadas por homens doutos,
as coisas que existem no mundo; mas pode haver sobre uma e mesma maté
não ensinam bastante a conhecê-las, e ria, sem que jamais possa existir mais
amiúde o que chamam com um nome de uma que seja verdadeira, reputava
tão belo não é senão uma insensibili quase como falso tudo quanto era
dade-, ou um orgulho, ou um desespero, somente verossímil1 3.
ou um parricídio1 2. Depois, quanto às outras ciências,
Eu reverenciava a nossa Teologia e na medida em que tomam seus princí
pios da Filosofia, julgava que nada de
9 Sinal da pouca importância que Descartes sólido se podia construir sobre funda
concede à língua: todo pensamento pode expri mentos tão pouco firmes. E nem a
mir-se em qualquer língua. honra, nem o ganho que elas prome
10 As regras da arte não são de menosprezar,
mas em arte não há método e nela o aprendi
tem, eram suficientes para me incitar a
zado tem só uma pequena parte. Este primado aprendê-las; pois não me sentia, de
reconhecido à inspiração atesta a mutação modo, algum, graças a Deus, numa
ocorrida na condição do “artista”, embora o condição que me obrigasse a converter
sécuio XVII ainda o denomine “artesão”. a ciência num mister, para o alívio de
11 Parece que o ensino das Matemáticas era
ministrado tendo sobretudo em mira as suas
aplicações técnicas (cartografia, fortificações, 13 Descartes visa aqui à “disputa” escolástica
agrimensura). Gilson observa que este caráter que se convertera em exercício escolar e ao há
“aplicado” das Matemáticas devia tomar bito dos professores de citar e refutar as opi
ainda mais estranha a física aristotélica que niões de diferentes autores. Descartes (que não
era ensinada ao mesmo tempo. Ele cita, em haveria de apreciar os nossos manuais de Filo
apoio, um. texto antiaristotélico de Clavius, sofia) pensa que a verdade é uma só (“não
autor de um compêndio de Matemática versa havendo senão uma verdade de cada] coi
do por Descartes. sa. . . ”) e que ela compele todos os espíritos
12 Alusão aos estóicos. ao assentimento. ■
DISCURSO DO MÉTODO 41
Segunda Parte
niões de mui diversas pessoas, não se vez para sempre, a retirar-lhes essa
acham, de modo algum, tão próximas confiança, a fim de substituí-las em
da verdade quanto os simples raciocí seguida ou por outras melhores, ou
nios que um homem de bom senso então pelas mesmas, depois de tê-las
pode efetuar naturalmente’ com res ajustado ao nível da razão. E acreditei
peito às coisas que se lhe apresentam. firmemente que, por este meio, lograria
E assim ainda, pensei que, como todos conduzir minha vida muito melhor do
nós fomos crianças antes de sermos que se a edificasse apenas sobre velhos
homens, e como nos foi preciso por fundamentos, e me apoiasse tão-so
muito tempo sermos governados por mente sobre princípios de que me dei
nossos apetites e nossos preceptores, xara persuadir em minha juventude,
que eram amiúde contrários uns aos sem ter jamais examinado se eram
outros, e que, nem uns nem outros, verdadeiros. Pois, embora notasse
nem sempre, talvez nos aconselhassem nesta tarefa diversas dificuldades, não
o melhor, é quase impossível que nos eram todavia irremediáveis, nem com
sos juízos sejam tão puros ou tão sóli paráveis às que se encontram na refor
dos como seriam, se tivéssemos o uso ma .d.as ip.enpres coisas atinentes ao
inteiro de nossa razão desde o nasci público. Esses grandes corpos são
mento e se não tivéssemos sido guia demasiado difíceis de reerguer quando
dos senão por ela1*8. abatidos, ou mesipo de suster quando
Ê certo que não vemos em parte al abalados, e suas quedas não podem
guma lançarem-se por terra todas as deixar de ser muito rudes. Pois, quanto
casas de uma cidade, com o exclusivo às suas imperfeições, se as têm, como a
propósito de refazê-las de outra manei mera diversidade existente entre eles
ra, e de tomar assim suas ruas mais basta para assegurar que as têm nume
belas; mas vê-se na realidade que mui rosas, o uso sem dúvida as suavizou, e
tos derrubam as suas para reconstruí- mesmo evitou e corrigiu insensivel
las, sendo mesmo algumas vezes obri mente um grande número às quais não
gados a fazê-lo, quando elas correm o se podería tão bem remediar por
perigo de cair por si próprias, por seus prudência. E, enfim, são quase sempre
alicerces não estarem muito firmes. A mais suportáveis do que o seria a sua
exemplo disso, persuadi-me de que mudança; da mesma forma que os
verdadeiramente não seria razoável grandes caminhos, que volteiam entre
que um particular intentasse reformar montanhas, se tomam pouco a pouco
um Estado, mudando-o em tudo desde tão batidos e tão cômodos, à força de
os fundamentos e derrubando-o para serem freqüentados, que é bem melhor
reerguê-lo; nem tampouco reformar o segui-los do que tentar ir mais reto,
corpo das ciências ou a ordem estabe escalando por cima dos rochedos e
lecida nas escolas para ensiná-las; mas descendo até o fundo dos precipícios.
que, no tocante a todas as opiniões que Eis por que não podería de forma al
até então acolhera em meu crédito, o guma aprovar esses temperamentos
melhor a fazer seria dispor-me, de uma perturbadores e inquietos que, não
sendo chamados, nem pelo nasci
mento, nem pela fortuna, ao manejo
1 8 Desprezo pela erudição livresca, oposição dos negócios públicos, não deixam de
da razão à história, da evidência conquistada
por nós mesmos ao “preconceito” herdado da neles praticar sempre, em idéia, algu
tradição, estes leitmotiv cartesianos em parte ma nova reforma. E se eu pensasse
alguma se acham melhor concentrados. haver neste escrito a menor coisa que
44 DESCARTES
pudesse tomar-me suspeito de tal lou Colégio, que nada se poderia imaginar
cura, ficaria muito pesaroso de ter tão estranho e tão pouco crível que
aceito publicá-lo. Nunca o meu intento algum dos filósofos já não houvesse
foi além de procurar reformar meus dito; e depois, ao viajar, tendo reco
próprios pensamentos, e construir num nhecido que todos os que possuem
terreno que é todo meu. De modo que, sentimentos muito contrários aos nos
se, tendo minha obra me agradado bas sos nem por isso são bárbaros ou sel
tante, eu vos mostro aqui o seu mode vagens, mas que muitos usam, tanto ou
lo, nem por isso quero aconselhar mais do que nós, a razão; e, tendo
alguém a imitá-lo. Aqueles a quem considerado o quanto um mesmo
Deus melhor partilhou suas graças homem, com o seu mesmo espírito,
alimentarão talvez desígnios mais ele sendo criado desde a infância entre
vados; mas temo bastante que já este franceses ou alemães, toma-se dife
seja ousado demais para muitos. A rente do que seria se vivesse sempre
simples resolução de se desfazer de entre chineses ou canibais; e como,-até
todas as opiniões a que se. deu antes nas modas de nossos trajes, a mesma
crédito não é um exemplo que cada coisa que nos agradou há dez anos, e
qual deva seguir; e o mundo compõe- que talvez nos agrade ainda antes de
se quase tão-somente de duas espécies decorridos outros dez, nos parece
de espíritos, aos quais ele não convém agora extravagante e ridícula, de sorte
de modo algum. A saber, daqueles que, que são bem mais o costume e o exem
crendo-se mais hábeis do que são, não plo que nos persuadem do que qual
podem impedir-se de precipitar seus quer conhecimento certo e que, não
juízos, nem ter suficiente paciência obstante, a pluralidade das vozes não é
para conduzir por ordem todos os seus prova que valha algo para as verdades
pensamentos: daí resulta que, se hou um pouco difíceis de descobrir, por ser
vessem tomado uma vez a liberdade de bem mais verossímil que um só homem
duvidar dos princípios que aceitaram e as tenha encontrado do que todo um
de se apartar do caminho comum, povo: eu não podia escolher ninguém
nunca poderiam ater-se à senda que é cujas opiniões me parecessem dever
preciso tomar para ir mais direito, e ser preferidas às de outrem, e achava-
permaneceríam extraviados durante me como que compelido a tentar eu
toda a vida; depois, daqueles que, próprio conduzir-me.
tendo bastante razão, ou modéstia, Mas, como um homem que caminha
para julgar que são menos capazes de só e nas trevas, resolvi ir tão lenta
distinguir o verdadeiro do falso do que mente, e usar de tanta circunspecção
alguns outros, pelos quais podem ser em todas as coisas, que, mesmo se
instruídos, devem antes contentar-se avançasse muito pouco, evitaria pelo
em seguir as opiniões desses outros, do menos cair. Não quis de modo algum
que procurar por si próprios outras começar rejeitando inteiramente qual
melhores. quer das opiniões que porventura se
E, quanto a mim, estaria sem dúvida insinuaram outrora em minha confian
no número destes últimos, se eu tivesse ça, sem que aí fossem introduzidas
tido um único mestre, ou se nada sou pela razão, antes de despender bas
besse das diferenças havidas em todos tante tempo em elaborar o projeto da
os tempos entre as opiniões dos mais obra que ia empreender, e em procurar
doutos. Mas, tendo aprendido, desde o o verdadeiro método para chegar ao
DISCURSO DO MÉTODO 45
conhecimento de todas as coisas de gras e certas cifras, que se fez dela uma
que meu espírito fosse capaz1 9. arte confusa e obscura que embaraça o
Eu estudara um pouco, sendo mais espírito, em lugar de uma ciência que o
jovem, entre as partes da Filosofia, a cultiva. Por esta causa, pensei ser mis
Lógica, e, entre as Matemáticas, a ter procurar algum outro método que,
Análise dos geômetras19 20 e a Álgebra, compreendendo as vantagens desses
três artes ou ciências que pareciam três, fôsse isento de seus defeitos. E,
dever contribuir com algo para o meu como a multidão de leis fornece amiú-
desígnio. Mas, examinando-as, notei de escusas aos vícios, de modo que um
que, quanto à Lógica, os seus silogis Estado é bem melhor dirigido quando,
mos e. a- maior parte de seus outros pre
ceitos’ servem mais para explicar a ou- tendo embora muito- poucas, são estri
tamente cumpridas; assim, em vez
''trem ás coisas que já se sabem, ou
mesmo, como a arte de Lúlio, para desse grande número de preceitos de
que se compõe a Lógica, julguei que
falar, sem julgamento, daquelas que se
ignoram, do que para aprendê-las. E me bastariam os quatro seguintes21,
embora ela contenha, com efeito, uma desde que tomasse a firme e constante
porção de preceitos muito verdadeiros resolução de não deixar uma só vez de
e muito bons, há todavia tantos outros observá-los.
misturados de permeio que são ou O primeiro era o de jamais acolher
nocivos, ou supérfluos, que é quase tão alguma coisa como verdadeira que eu
difícil separá-los quanto tirar uma não conhecesse evidentemente como
Diana ou uma Minerva de um bloco de tal; isto é, de evitar cuidadosamente a
mármore que nem sequer está esboça precipitação e a prevenção22, e de
do. Depois, com respeito à Análise dos nada incluir em meus juízos que não se
Antigos e à Álgebra dos modernos, apresentasse tão clara e tão distinta
além de se estenderem apenas a maté mente23 a meu espírito, que eu não
rias muito abstratas, e de não parece tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em
rem de nenhum uso, a primeira perma dúvida.
nece sempre tão adstrita à O segundo, o de dividir cada umâ
consideração das figuras, que não pode
exercitar o entendimento sem fatigar 21 Leibniz foi o primeiro a zombar da banali
muito a imaginação; e esteve-se de tal dade deste método. E é verdade que o Método
está contido mais nas Regulae do que nessa
forma sujeito, na segunda, a certas re apresentação esotérica. Não obstante, a leitura
da Geometria — o único dos três ensaios que,
19 Houve, portanto, um intervalo entre as segundo o Autor, prova a validade do Método
reflexões de novembro de 1619 e a elaboração — mostra o quanto esta banalidade é aparen
do método. Aliás, este não resulta daquelas, te. Separadas desta referência, compreendidas
porém bem mais dos trabalhos matemáticos como preceitos gerais, as regras seriam, na
em curso (construção, por meio de uma pará verdade, pouco proveitosas: é o que se esquece
bola, de todos os problemas dos sólidos do tér- com demasiada frequência.
ceiro e quarto graus). 22 A “precipitação” cohsiste em julgar antes
20 A Análise designa aqui o método que con de se ter chegado à evidência, e a “prevenção”,
siste em supor conhecida a linha desconhecida, na persistência dos “prejuízos da infância”.
em estabelecer as relações que a ligam a gran 23 Cf. Princípios, I, 45: “Denomino claro o
dezas conhecidas, até que se possa construí-la que é presente e manifesto a um espírito aten
a partir destas relações. Entre os Antigos, esse to.. . e distinto o que é de tal modo preciso e
método (válido para outros domínios, além da diferente de todos os outros, que compreende
Geometria) se apresenta sob a forma geomé em si apenas o que parece manifestamente a
trica. quem o considere como se deve”.
46 DESCARTES
para deduzi-las umas das outras, não mais examinar somente estas propor
pode haver quaisquer tão afastadas a ções em geral31, e supondo-as apenas
que não se chegue por fim, nem tão nos suportes que servissem para me
ocultas que não se descubram. E não tornar o seu conhecimento mais fácil;
me foi muito penoso procurar por •mesmo assim, sem restringi-las de
quais devia começar, pois já sabia que forma nenhuma a tais suportes, a fim
havia de ser pelas mais simples e pelas de poder aplicá-las tão melhor, em
mais fáceis de conhecer; e, conside seguida, a todos os outros objetos a
rando que, entre todos os que prece que conviessem. Depois, tendo notado
dentemente buscaram a verdade nas que, para conhecê-las, teria algumas
ciências, só os matemáticos puderam vezes necessidade de considerá-las
encontrar algumas demonstrações, isto cada qual em particular, e outras vezes
é, algumas razões certas e evidentes, somente de reter, ou de compreender,
não duvidei de modo algum que não várias em conjunto, pensei que, para
fosse pelas mesmas que eles examina melhor considerá-las em particular,
ram29; embora não esperasse disso devia supô-las em linhas32, porquanto
nenhuma outra utilidade, exceto a de não encontraria nada mais simples,
que acostumariam o meu espírito a se nem que pudesse representar mais
alimentar de verdades e a não se con distintamente à minha imaginação e
tentar com falsas razões. Mas não foi aos meus sentidos33; mas que, para
meu intuito, para tanto, procurar
aprender todas essas ciências particu 31. Trata-se, portanto, da mathesis universalis,
“ciência inteiramente nova pela qual poderão
lares que se chamam comumente mate ser resolvidos todos os problemas relativos a
máticas30; e, vendo que, embora seus qual gênero de quantidade, contínua ou discre
objetos sejam diferentes, não deixam ta” (A. T. X, 156) e primeiro fruto do método.
de concordar todas, pelo fato de não Na verdade, o método foi concebido com vis
conferirem nesses objetos senão as tas a ela. Sobre esta interpenetração da mathe
sis e do método, cf. Regulae, quarta regra. Não
diversas ações ou proporções que se trata aqui, de modo algum, da Geometria
neles se encontram, pensei que valia “analítica”, como às vezes se pretende falsa
mente.
29 Acrescente-se para a claridade do texto: 32 “Lineis rectis.”, diz o texto latino. A linha
“que era preciso começar”. — Cf. Col. com reta é escolhida como figuração universal da
Burman: “A Matemática acostuma o espírito a grandeza porque ela é o suporte mais flexível
reconhecer a verdade, porque sempre encon para a teoria das proporções (pode representar
tramos nela raciocínios rigorosos que não um produto, um quociente, uma raiz, bem
encontraríamos alhures. Em consequência, como uma soma ou uma diferença), mas tam
uma vez afeito o espírito aos raciocínios mate bém porque permite evitar o incomensuráveL
máticos, tê-lo-emos tomado também próprio à O fato de as letras algébricas representarem li
pesquisa de outras verdades, posto que em nhas e não números (e, em geral, a descon
toda parte há somente uma e mesma forma de fiança de Descartes para com a aritmética)
raciocinar”. (A. T. VI, 550-51.) atesta o que Belaval denomina, em Leibniz
30 Alusão à divisão escolástica das Matemá Critique Descartes, “a limitação da Álgebra
ticas: Matemáticas Puras (Geometria, Aritmé pela Geometria”. Descartes libertou-se do rea
tica) e Mistas (Astronomia, Música, Óptica). lismo intuitivo dos gregos (por exemplo, colo
O que interessa a Descartes é o denominador cando que o resultado dé todo cálculo sobre
comum dessas ciências (a ordem e a medida), quantidades figuradas por grandezas retilíneas
ao passo que os Escolásticos desejavam sepa corresponde, por sua vez, a uma grandeza reti-
rá-las com respeito a seus objetos. Particulari- línea), mas foi só pela metade.
zação que impedia de distinguir, como faz 33 Indispensável ao entendimento em Mate
Descartes, esta “Matemática comum”, que re mática, a imaginação (a consideração das figu
quer apenas memória, e “a ciência matemá- ras) não é, entretanto, senão uma auxiliar. Cf.
- tica, que não é bebida nos livros”. Regulae, regra catorze.
48 DESCARTES
que se me apresentassem, pois isso atingir uma idade bem mais madura do
mesmo seria contrário à ordem que ele que a dos vinte e três anos que eu então
prescreve. Mas, tendo notado que os contava e antes de ter despendido
seus princípios deviam ser todos toma muito tempo em preparar-me para
dos à Filosofia, na qual não encon isso, tanto desenraizando de meu espí
trava ainda quaisquer que fossem cer rito todas as más opiniões que nele
tos, pensei que seria mister, antes de acolhera até essa época como acumu
tudo, procurar ali estabelecê-los; e que, lando muitas experiências, para servi
sendo isso a coisa mais importante do rem em seguida de matéria a meus
mundo, e onde a precipitação e a pre raciocínios, e exercitando-me sempre
venção eram mais de recear, não devia no método que me prescrevera, a fim
empreender sua realização antes de de me firmar nele cada vez mais.
Terceira Parte
crê nela, amiúde uma se apresenta sem xasse talvez de sê-lo, ou quando eu ces
a outra39. E, entre várias opiniões sasse de considerá-la como tal. 1
igualmente aceites, escolhia apenas as Minha segunda máxima consistia
mais moderadas: tanto porque são em ser o mais firme e o mais resoluto
sempre as mais cômodas para a práti possível em minhas ações, e em nãó se
ca, e verossimilmente40 as melhores, guir menos constantemente do que se
pois todo excesso costuma ser mau, fossem muito seguras as opiniões mais
como também a fim de me desviar duvidosas, sempre que eu me tivésse
menos do verdadeiro caminho, caso eu decidido a tanto42. Imitando nisso os
falhasse, do que, tendo escolhido um viajantes que, vendo-se extraviados
dos extremos, fosse o outro o que deve nalguma floresta, não devem errar vol
ria ter seguido. E, particularmente, teando, ora para um lado, ora para
colocava entre os excessos todas as outro, nem menos ainda deter-se num
promessas pelas quais se cerceia em sítio, mas caminhar sempre o mais reto
algo a própria liberdade41. Não que possível para um mesmo lado, e não
desaprovasse as leis que, para reme mudá-lo por fracas razões, ainda que
diar a inconstância dos espíritos fra no começo só o acaso talvez haja
cos, permitem, quando se alimenta determinado a sua escolha: pois, por
algum bom propósito, ou mesmo, para este meio, se não vão exatamente
a segurança do comércio, algum desíg aonde desejam, pelo menos chegarão
nio que seja apenas indiferente, que se no fim a alguma parte, onde verossi
façam votos ou contratos que obri milmente estarão melhor que no meio
guem a perseverar nele; mas porque de uma floresta. E, assim como as
não via no mundo nada que permane ações da vida não suportam às vezes
cesse sempre no mesmo estado, e por qualquer delonga, é uma verdade
que, no meu caso particular, como pro muito certa que, quando não está em
metia a mim mesmo aperfeiçoar cada nosso poder o discernir as opiniões
mais verdadeiras, devemos seguir as
vez mais os meus juízos, e de modo mais prováveis; e mesmo, ainda que
algum torná-los piores, pensaria come não notemos em umas mais probabili
ter grande falta contra o bom senso, se, dades do que em outras, devemos, não
pelo fato de ter aprovado então alguma obstante, decidir-nos por algumas e
coisa, me sentisse obrigado a tomá-la considerá-las depois não mais como
como boa ainda depois, quando dei duvidosas, na medida em que se rela
cionam com a prática, mas como
39 Existe uma diferença entre um juízo e o
conhecimento deste juízo. Assim, “eu não du muito verdadeiras e muito certas, por
vido de modo algum que cada um tenha em si quanto a razão que a isso nos decidiu
a idéia de Deus, pelo menos implícita. . . não
me surpreendo, no entanto, de ver homens que 42 A fim de evitar um mal-entendido, Descar
não sentem ter em si esta idéia, ou melhor, que tes formulará esta regra de maneira mais preci
dela não se apercebem absolutamente”. (Car sa: “. . . Não agir menos constantemente se
tas, a Hyperaspistes, agosto de 1641.) gundo as opiniões que julgamos duvidosas. . .
40 A verossimilhança, excluída da ordem teó quando consideramos não haver outras que
rica, recobrará valor na ordem prática. julguemos melhores ou mais certas, do que se
41 Não será rebaixar os votos religiosos, soubéssemos que aquelas são as melhores (A
como pergunta Gilson, encará-los como sim XXX, março de 1638.) Não se trata, portanto,
ples remédio para “a inconstância dos espíri de um voluntarismo cego, “além do que rela
tos fracos”? Notar-se-á aqui o desprezo de ciono principalmente esta regra às ações da
Descartes para com “o engajamento” sob vida que não sofrem qualquer delonga d me
todas as suas formas. sirvo dela apenas provisoriamente”.
DISCURSO DO MÉTODO 51
se apresenta como tal43. E isto me per mantes, ou asas para voar como as
mitiu, desde então, libertar-me de aves. Mas confesso que é preciso um
todos os arrependimentos e remorsos longo exercício e uma meditação arniú-
que costumam agitar as consciências de reiterada para nos acostumarmos a
desses espíritos fracos e vacilantes que olhar por este ângulo todas as coisas; e
se deixam levar inconstantemente a creio que é principalmente nisso que
praticar, como boas, as coisas que de consistia o segredo desses filósofos4 4,
pois julgam más. que puderam outrora subtrair-se ao
Minha terceira máxima era a de pro império da fortuna e, malgrado as
curar sempre antes vencer a mim pró dores e a pobreza, disputar felicidade
prio do que à fortuna, e de antes modi aos seus deuses. Pois, ocupando-se
ficar os meus desejos do que a ordem incessantemente em considerar os limi
do mundo; e, em geral, a de acostu tes que lhes eram prescritos pela natu
mar-me a crer que nada há que esteja reza, persuadiram-se tão perfeitamente
inteiramente em nosso poder, exceto os de que nada estava em seu poder além
nossos pensamentos, de sorte que, de dos seus pensamentos, que só isso bas
pois de termos feito o melhor possível tava para impedi-los de sentir qualquer
no tocante às coisas que nos são exte afecção por outras coisas; e dispu
riores, tudo em que deixamos de nos nham deles tão absolutamente, que ti
sair bem é, em relação a nós, absoluta nham neste particular certa razão de se
mente impossível. E só isso me parecia julgarem mais ricos, mais poderosos,
suficiente para impedir-me, no futuro, mais livres e mais felizes que quaisquer
de desejar algo que eu não pudesse outros homens, que, não tendo esta
adquirir, e, assim, para me tomar con filosofia, por mais favorecidos que
tente. Pois, inclinando-se a nossa von sejam pela natureza e pela fortuna, ja
tade naturalmente a desejar só aquelas mais dispoêm assim de tudo quanto
coisas que nosso entendimento lhe querem4 5.
representa de alguma forma como Enfim, para a conclusão dessa
possíveis, é certo que, se conside moral, deliberei passar em revista as
rarmos todos os bens que se acham diversas ocupações que os homens
fora de nós como igualménte afastados exercem nesta vida, para procurar
de nosso poder, não lamentaremos escolher a melhor; e, sem que pretenda
mais a falta daqueles que parecem dizer nada sobre as dos outros, pensei
que o melhor a fazer seria continuar
dever-se ao nosso nascimento, quando naquela mesma em que me achava,
deles formos privados sem culpa isto é, empregar toda a minha- vida em
nossa, do que lamentamos não possuir cultivar minha razão, e adiantar-me, o
os reinos da China ou do México; e mais que pudesse, no conhecimento da
que fazendo, como se diz, da necessi verdade, segundo o método que me
dade virtude, não desejaremos mais prescrevera. Eu sentira tão extremo
estar sãos, estando doentes, ou estar contentamento, desde quando come
livres, estando na prisão, do que dese çara a servir-me deste método, que não
jamos ter agora corpos de uma matéria acreditava que, nesta vida, se pudes
tão pouco corruptível quanto os dia sem receber outros mais doces, nem
43 Tudo se passa como se essas opiniões fos 4 4 Filósofos: estóicos. (N. do T.)
sem muito verdadeiras e, para nós, elas o são 4 5 A respeito do acento estóico da passagem
efetivamente, visto que não pudemos encontrar e do destino desta regra na moral definitiva, cf.
outras melhores. Cartas, a Elisabeth.
52 DESCARTES
não fosse a de que não continha nada Todavia, esses nove anos escoa
de certo. E, como ao demolir uma ram-se antes que eu tivesse tomado
velha casa, reservam-se comumente os qualquer partido, com respeito às difi
escombros par a servir à construção de culdades que costumam ser disputadas
outra nova, assim, ao destruir todas as entre os doutos, ou começado a procu
minhas opiniões que julgava mal fun rar os fundamentos de alguma Filoso
dadas, fazia diversas observações e fia mais certa do que a vulgar50. E o
adquiria muitas experiências, que me exemplo de muitos espíritos excelsos
serviram ‘depois para estabelecer ou que, tendo alimentado precedente
tras mais certas. E, ademais, conti mente esse intento, não haviam logra
nuava a exercitar-me no método que do, parecia-me, realizá-lo, levava-me a
me prescrevera; pois não só tomava o imaginar tantas dificuldades, que não
cuidado de conduzir geralmente todos teria talvez ousado empreendê-lo tão
os meus pensamentos segundo as suas cedo, se não soubesse que alguns já fa
regras, como reservava, de tempos em ziam correr o rumor de que eu já o le
tempos, algumas horas, que empregava vara a termo. Não poderia dizer em
particularmente em aplicá-lo nas difi que baseavam esta opinião; e, se para
culdades de Matemática, ou mesmo isso contribuí com algo por meus dis
também em algumas outras que eu cursos, deve ter sido por confessar
podia tomar quase semelhantes às das neles mais ingenuamente o que eu
Matemáticas, separando-as de todos os ignorava do que costumam fazer aque
princípios das outras ciências, que eu les que estudaram um pouco, e talvez
não achava bastante firmes, como ve também por mostrar as razões que
reis que procedi com várias que são tinha de duvidar de muitas coisas que
explicadas neste volume49 E assim, os outros consideram certas, do que
sem viver, aparentemente, de forma por me jactar de qualquer doutrina.
diferente daqueles que, não tendo outro Mas, tendo o coração bastante altivo
emprego senão passar uma vida doce e para não querer que me tomassem por
inocente, procuram separar os prazeres alguém que eu não era, pensei que
dos vícios, e que, para gozar de seus cumpria esforçar-me, por todos os
lazeres sem se aborrecer, usam todos meios, para tomar-me digno da reputa
•os divertimentos que são honestos, não ção que me atribuíam; e faz justamente
deixava de persistir em meu desígnio e oito anos que esse desejo me decidiu a
de orogredir no conhecimento da ver afastar-me de todos os lugares em que
dade, mais talvez do que se me limi pudesse ter conhecimentos, e a retirar-
tasse a ler livros ou frequentar homens me para aqui51, para um país onde a
de letras. longa duração da guerra levou a esta
belecer tais ordens, que os exércitos
49 Deve referir-se aos problemas versados em nele mantidos parecem servir apenas
Os Meteoros (explicação dos ventos, das
nuvens, do arco-íris) e na Dióptrica (G.
para que os frutos da paz sejam goza
Milhaud estabelece que Descartes formulou a dos com tanto mais segurança, e onde,
lei da refração por volta de 1626). — Sobre a dentre a multidão de um grande povo
concepção cartesiana da Física Matemática, muito ativo e mais zeloso de seus pró-
cf. Cartas, a Mersenne, de 17 de maio de 1638,
11 de março de 1640, bem como a de 27 de
julho de 1638: “Pois se lhe apraz considerar o 50 A Filosofia escolástica.
que escrevi do solo, da neve, do arco-íris 51 Início da estada na Holanda, no outono
etc. . . saberá efetivamente que toda a minha de 1628, que durará ãté a partida para a Sué
Física não é mais do que Geometria”. cia, em 1649.
54 DESCARTES
prios negócios, do que curioso dos tem nas cidades mais frequentadas,
assuntos dos de outrem, sem carecer de pude viver tão solitário e retirado
nenhuma das comodidades que exis como nos desertos mais remotos.
I
Quarta Parte
Não sei se deva falar-vos das pri nhum, nesse caso, que seja verdadeiro,
meiras meditações que aí realizei; pois resolvi fazer de conta que todas as coi
são tão metafísicas e tão pouco co sas que até então haviam entrado no
muns, que não serão, talvez, do gosto meu espírito não eram mais verda
de todo mundo. E, todavia, a fim de deiras que as ilusões de meus sonhos.
que se possa julgar se os fundamentos Mas, logo em seguida, adverti que,
que escolhi são bastante firmes, vejo- enquanto eu queria assim pensar que
me, de alguma forma, compelido a tudo era falso, cumpria necessaria
falar-vos delas. De há muito observara mente que eu, que pensava53, fosse al
que, quanto aos costumes, é necessário guma coisa. E, notando que esta verda
às vezes seguir opiniões, que sabemos de: eu penso, logo existo 5 4, era tão
serem muito incertas, tal como se fos firme e tão certa que todas as mais
sem indubitáveis, como já foi dito extravagantes suposições dos céticos
acima; mas, por desejar então ocupar- não seriam capazes de a abalar, julguei
me somente com a pesquisa da verda que podia aceitá-la, sem escrúpulo,
de, pensei que era necessário agir exa como o primeiro princípio da Filosofia
tamente ao contrário, e rejeitar como que procurava.
absolutamente falso tudo aquilo em Depois, examinando com atenção o
que pudesse imaginar a menor dúvi que eu era, e vendo que podia supor
da52, a fim de ver se, após isso, não que não tinha corpo algum e que não
restaria algo em meu crédito, que fosse havia qualquer mundo, ou qualquer
inteiramente indubitável. Assim, por lugar onde eu exitisse, mas que nem
que os nossos sentidos nos enganam às por isso podia supor que não exitia; e
vezes, quis supor que não havia coisa que, ao contrário, pelo fato mesmo de
alguma que fosse tal como eles nos eu pensar em duvidar da verdade das
fazem imaginar. E, porque há homenè outras coisas seguia-se niui evidente e
que se equivocam ao raciocinar; mui certamente que eu existia; ao
mesmo no tocante às mais simples passo que, se apenas houvesse cessado
matérias de Geometria, e cometem ãí de pensar, embora tudo o mais que al
paralogismos, rejeitei como falsas, jul guma vez imaginara fosse verdadeiro,
gando que estava sujeito a falhar como já não teria qualquer razão de crer que
qualquer outro, todas as razões que eii
tomara até então por demonstrações. E 53 Cumpre notar que Descartes não diz: “du
enfim, considerando que todos os mes vido, logo 'Sou”. A dúvida não importa como
mos pensamentos que temos quando ato, mas como conhecimento do fato de que eu
duvido.
despertos nos podem também ocorrer 54 O Cogito não é um raciocínio: é uma cons
quando dormimos, sem que haja Re- tatação de fato. Por que então se emprega aqui
o termo “logo”? “Descartes dá ao Cogito o
52 Está, portanto, sujeito à dúvida não só aspecto de um raciocínio toda vez que Ideseja
aquilo de que eu duvido de fato mas também pôr em relevo o caráter necessário da ligação
aquilo de que poderia duvidar de direito. que o mesmo contém.” (Op. cit., II, 309.)|
DISCURSO DO MÉTODO 55
isso acrescentei que, dado que conhe toda a composição testemunha depen
cia algumas perfeições que não pos dência, e que a dependência é mahifes-
suía, eu não era o único ser que existia tamente um defeito60, julguei por aí
(usarei aqui livremente, se vos aprou- que nao podia ser uma perfeição em
ver, alguns termos da Escola); mas que Deus o ser composto dessas duas natu
devia necessariamente haver algum rezas, e que, por conseguinte, ele não o
outro mais perfeito, do qual eu depen era 61, mas que, se havia alguns corpos
desse e de quem eu tivesse recebido no mundo, ou então algumas inteligên
tudo o que possuía59. Pois, se eu fosse cias, ou outras naturezas, que não fos
só e independente de qualquer outro, sem inteiramente perfeitos, o seu ser
de modo que tivesse recebido, de mim deveria depender do poder de Deus, de
próprio, todo esse pouco pelo qual tal sorte que não pudessem subsistir
participava dó Ser perfeito, poderia sem ele um só momento 62.
receber de mim, pela mesma razão, todas as maneiras, pois os geômetras
todo o restante que sabia faltar-me, e supõem tudo isto em seu objeto, per
ser assim eu próprio infinito, eterno, corria algumas de suas mais simples
imutável, onisciente, todo-poderoso, e Quis procurar, depois disso, outras
enfim ter todas as perfeições que podia verdades, e tendo-me proposto o objeto
notar existirem em Deus. Pois, segun dos geômetras, que eu concebia como
do os raciocínios que acabo de fazer, um corpo contínuo63, ou um espaço
para conhecer a natureza de Deus, infinitamente extenso em compri
tanto quanto a minha o era capaz, bas mento, largura e altura ou profundi
tava considerar, acerca de todas as coi dade, divisível em diversas partes que
sas de que achava em mim qualquer podiam ter diversas figuras e grande
idéia, se era ou não perfeição possuí- zas, e ser movidas ou transpostas de
las, e estava seguro de que nenhuma
das que eram marcadas por alguma
imperfeição existia nele, mas que todas 60 Composição implica dependência das par
as outras existiam. Assim, eu via que a tes, umas em relação às outras, e do todo em
relação às partes.
dúvida, a inconstância, a tristeza e coi 61 Para conceber a infinita perfeição de Deus,
sas semelhantes não podiam existir cumpre atribuir-lhe todas as perfeições das
nele, dado que eu próprio estimaria quais possuímos apenas fragmentos e excluir
muito estar isento delas. Além disso, dele as imperfeições que há em nós.
62 Evocação da doutrina da criação contínua:
eu tinha idéias de muitas coisas sensí a) o tempo é radicalmente descontínuo (o
veis e corporais; pois, embora supu tempo presente não depende do precedente); b)
sesse que estava sonhando e que tudo em cada um desses momentos descontínuos, o
quanto via e imaginava era falso, não estado do mundo e meu pensamento são
podia negar, contudo, que as idéias a conservados no ser por Deus. Tese ligada à
negação das formas substanciais. Enquanto,
respeito não existissem verdadeira para Santo Tomás, “Deus instituiu uma ordem
mente em meu pensamento; mas, por das coisas, tal que algumas dependem de ou
já ter reconhecido em mim mui clara tras pelas quais elas são secundariamente
mente que a natureza inteligente é dis conservadas no ser”, Descartes afirma não
haver nenhuma “virtude por meio da qual eu
tinta da corporal, considerando que possa fazer com que eu, que sou agora, seja
ainda, um instante após”.
59 Deus é agora considerado como o meu 63 Um corpo absolutamente pleno: não sendo
Criador que me mantém no ser e não mais o corpo senão extensão, a extensão que [sepa
como o autor da idéia de Deus em mim rasse duas partes de matéria seria, ela própria,
existente. um corpo.
DISCURSO DO MÉTODO 57
demonstrações. E, tendo notado que sofos terem por máxima, nas escolas,
essa grande certeza, que todo mundo que nada há no entendimento que não
lhes atribui, se funda apens no fato de haja estado primeiramente nos senti
serem concebidas com evidência, se dos65, onde, todavia, é certo que as
gundo a regra que hâ pouco expressei, idéias de Deus e da alma jamais estive
notei também que nada havia nelas ram. E me parece que todos os que
que me assegurasse a existência de seu querem usar a imaginação para com
objeto. Pois, por exemplo, eu via muito preendê-las procedem do mesmo modo
bem que, supondo um triângulo, cum que se, para ouvir os sons ou sentir os
pria que seus três ângulos fossem odores, quisessem servir-se dos olhos;
iguais a dois retos; mas, apesar disso exceto com esta diferença ainda: que o
nada via que garantisse haver no sentido da vista não nos garante menos
mundo qualquer triângulo. Ao passo a verdade de seus objetos do que os do
que, voltando a examinar a idéia que
olfato ou da audição; ao passo que a
tinha de um Ser perfeito, verificava que
nossa imaginação ou os nossos senti
a existência estava aí inclusa, da
mesma forma como na de um triân dos nunca poderíam assegurar-nos de
gulo está incluso serem seus três ângu qualquer coisa, se o nosso entendi
los iguais a dois retos, ou na de uma mento não interviesse.
esfera serem todas as suas partes igual Enfim, se há ainda homens que não
mente distantes do' seu centro, ou estejam bem persuadidos da existência
mesmo, ainda mais evidentemente; e de Deus e da alma, com as razões que
' que, por conseguinte, é pelo menos tão apresentei, quero que saibam que todas
certo 6 4 que Deus, que é esse Ser perfei as outras coisas, das quais se julgam
to, é ou existe, quanto sê-lo-ia qualquer talvez certificados, como a de terem
demonstração de Geometria. um corpo, haver astros e uma terra, e
Mas o que leva muitos a se persua coisas semelhantes, são ainda menos
direm de que há dificuldade em conhe- certas. Pois, embora se possua dessas
cê-lo, e mesmo também em conhecer o coisas uma certeza moral, que é de tal
que é sua alma, é o fato de nunca ele ordem que, exceto sendo-se extrava
varem o espírito além das coisas sensí gante, parece impossível pô-la em dú
veis e de estarem de tal modo acostu vida, todavia também, quando se trata
mados a nada considerar senão da certeza metafísica6 6, não se pode
imaginando, que é uma forma de pen negar, a menos que sejamos desarra-
sar particular às coisas materiais, que zoados, que é motivo suficiente, para
tudo quanto não é imaginável lhes pa
rece não ser inteligível. E isto é assaz 6 5 Adágio escolástico. Toda essa passagem
constitui um ataque ao excessivo papel conce
manifesto pelo fato de os próprios filó dido pelo aristotelismo e pelo tomismo à “ima
ginação”. Em Metafísica, contrariamente ao
6 4 Exposição da prova a priori: “. . . ainda que se passa na Física e na Matemática, a
mais evidentemente”, porque a inclusão da imaginação não poderia ser de qualquer
existência necessária na essência de Deus é serventia.
uma relação ainda mais simples do que as rela 6 6 Distinção entre “certeza moral” (suficiente
ções geométricas citadas (ela é antes compa para a vida prática) e metafísica (“quando pen
rável às verdades matemáticas indemonstrá- samos que não é de modo algum possível que a
veis). “Pelo menos tão certo” significa “mais coisa seja diferente do que julgamos”). No pri
certo”: é possível estar seguro da existência de meiro plano, seria loucura duvidar da exis
Deus, sem o estar da verdade dos teoremas tência das coisas sensíveis; no segundo, é
matemáticos, não sendo o inverso verdadeiro. leviandade estar “seguro” delas.
58 DESCARTES
Quinta Parte
conhecer do que dizendo aqui, suma diversas partes desta matéria, de modo
riamente, o que ele contém. Eu preten que compusesse com ela um caos tão
dia, antes de escrevê-lo, incluir nele confuso quanto os poetas possam fazer
tudo o que julgava saber quanto á crer, e que, em seguida, não fizesse
natureza das coisas materiais. Mas, tal outra coisa senão prestar o seu con
como os pintores que, não podendo curso comum73 à natureza, e déixá-la
representar igualmente bem num qua agir segundo as leis por ele estabele
dro plano todas as diversas faces de cidas. Assim, primeiramente, descrevi
um corpo sólido, escolhem uma das essa matéria e procurei representá-la
principais, que colocam à luz, e, som- de tal modo que nada há no mundo,
breando as outras, só as fazem apare parece-me, mais claro nem mais inteli
cer tanto quanto se possa vê-las ao gível, exceto o que há pouco foi dito
olhar aquela; assim, temendo não sobre Deus e a alma; pois supus
poder pôr em meu discurso tudo o que mesmo, expressamente, que não existia
tinha no pensamento, tentei apenas nela nenhuma dessas formas ou quali
expor bem amplamente o que concebia dades acerca das quais se disputa nas
da luz; depois, no seu ensejo, acres escolas, nem, de modo geral, qualquer
centar alguma coisa sobre o sol e as coisa cujo conhecimento não fosse tão
estrelas fixas, porque a luz proceae natural às nossas almas que não se
quase toda deles; sobre os céus, porque
72 Aqui começa o resumo da falsa “hipótese”
a transmitem; sobre os planetas, os da formação do mundo. Falsa não tanto por
cometas e a terra, porque a refletem; e, prudência (o processo revolutivo contradiz o
em particular, sobre todos os corpos relato das Escrituras) quanto por razão. A
que há sobre a terra, porque são ou razão é que me faz ver que “seria contrário à
onipotência de Deus que este não criasse o
coloridos, ou transparentes, ou lumino mundo desde o começo com toda a perfeição
sos; e, enfim, sobre o homem, porque é que deveria tér”. (Princípios, III, art. 45.) Esta
o seu espectador. Também, para som hipótese terá, pois, apenas um valor metodoló
brear um pouco todas essas coisas e gico: “Quão melhor conheceriamos qual foi a
natureza de Adão e das árvores do Paraíso, se
poder dizer mais livremente o que jul tivéssemos examinado como os filhos se for
gava a seu respeito, sem ser obrigado a mam pouco a pouco no ventre de suas mães e
seguir nem a refutar as opiniões aceitas como as plantas saem de suas sementes, do
entre os doutos, resolvi-me a deixar que se tivéssemos somente considerado quais
eram quando Deus os criou; do mesmo modo,
todo esse mundo às suas disputas, e a entenderemos melhor qual é, em geral, a natu
falar somente do que aconteceria num reza de todas as coisas existentes no mundo, se
novo, se Deus criasse agora em qual pudermos imaginar alguns princípios aue
quer parte, nos espaços imaginários71, sejam muito inteligíveis e muito simples, os
bastante matéria para compô-lo 7 2, e se quais nos façam ver claramente que os astros e
a terra, e enfim todo este mundo visível pode
agitasse diversamente, e- sem ordem, às ría ser produzido assim apenas de. algumas
sementes, embora saibamos que ele não foi
71 Ironicamente, Descartes situa o seu “mito” produzido desta maneira. . . ” (Prin., III, art.
da formação do mundo nos “espaços imaginá 45.)
rios”, noçao escolástica, para ele inadmissível, 73 O “concurso ordinário” é oposto ao “con
já que não pode haver esoaco não cheio se, curso extraordinário” (os milagres): é a ação
como ele pensa, espaço e matéria se recipro pela qual Deus conserva o mundo com suas
cam leis.
DISCURSO DO MÉTODO 61
composta, todas as suas partes não tivesse sido criadoda forma como pro-
deixavam de tender exatamente para o , punha; pois é bem mais verossímil (qué,
seu centro; como, havendo água e ar à desde o começo, Deus o, tenha tornado
sua superfície, a disposição dos céus e • tal como devia ser. Mas é certo,1 e é
dos astros, principalmente da Lua, uma opinião comumente adotada entre
devia nela causar um fluxo e refluxo, os teólogos, que a ação pela qual ele
que fosse semelhante, em todas as suas agora o conserva é exatamente igual
circunstâncias, ao que se observa nos àquela pela qual o criou: de modo que,
nossos mares; e além disso, certo embora não lhe houvesse dado, no
curso, tanto da água como do ar, do começo, outra forma senão a do Caos,
levante para o poente, tal como se desde que, tendo estabelecido as leis da
observa também entre os trópicos; natureza, lhe tenha prestado seu con
como as montanhas, os mares, as fon curso, para ela agir assim como costu
tes e os rios podiam naturalmente for ma, pode-se crer, sem prejudicar o
mar-se nela, e os metais aparecerem milagre da criação, que só por isso
nas minas, e as plantas crescerem nos todas as coisas que são puramente
campos, e em geral todos os corpos materiais poderiam, com o tempo, tor
chamados mistos ou compostos7 8 nar-se tais como as vemos no presen
serem nela engendrados. E entre outras te81. E sua natureza é bem mais fácil
coisas, já que após os astros nada de conceber, quando as vemos nascer
conheço no mundo, a não ser o fogo, pouco a pouco desta maneira, do que
que produza a luz, apliquei-me a expli quando já as consideramos totalmente
car bem claramente tudo o que per feitas.
tence à sua natureza, como ele se faz, Da descrição dos corpos inanima
como se nutre; como existe às vezes dos e das plantas, passei à dos animais
apenas calor sem luz7879, e outras vezes e particularmente à dos homens.
luz sem calor80, como pode introduzir Mas, como não contava ainda sufi
diversas cores em diversos corpos e ciente conhecimento para falar deles
diversas outras qualidades; como no mesmo estilo que do resto, isto é,
funde uns e endurece outros; como os demonstrando os efeitos pelas causas,
pode consumir a quase todos ou con e mostrando de quais sementes e de
verter em cinzas e em fumo; e enfim, que maneira a natureza deve produzi-
como dessas cinzas, pela só violência los, contentei-me em supor que Deus
de sua ação, forma o vidro; pois, pare formasse o corpo de um homem intei
cendo-me essa transmutação de cinzas ramente semelhante a um dos nossos,
em vidro tão admirável como nenhuma tanto na figura exterior de seus mem
outra que se produza na natureza, bros como na conformação interior de
deu-me particular prazer descrevê-la. seus órgãos, sem compô-lo de outra
Todavia, não desejava inferir, de matéria além da que eu descrevera, e
todas essas coisas, que este mundo sem pôr nele, no começo, qualquer
alma racional, nem qualquer outra
'coisa para servir-lhe de alma vegeta-
78 Entenda-se: os corpos que são combina
ções de elementos; pois os elementos carte-
sianos já não são o frio, o quente, o seco e o 81 “Sendo estas leis a causa de que a matéria
úmido, mas três ordens de matéria, definidas deva tomar sucessivamente todas as formas de
pelo volume e pelo movimento de suas partes. que é capaz, se considerarmos por ordem
Cf. Princípios, III, arts. 52-54. todas estas formas, poderemos, enfim, chegar
7 9 Exemplo: a cal viva. àquela que se encontra presentemente neste
80 Exemplo: as estrelas cadentes. mundo.” (Princípios, III, art. 47.)
DISCURSO DO MÉTODO 63
tiva ou sensitiva, senão que excitasse julgar facilmente, a partir dele, o que
em seu coração um desses fogos sem se deve pensar de todos os outros. E,
luz que eu já explicara, e que não con para que se tenha menos dificuldade de
cebia nenhuma outra natureza, exceto entender o que vou dizer a esse respei
a que aquece o feno quando o guardam to, gostaria que todos os que não são
antes de estar seco, ou a que faz ferver versados em anatomia se dessem ao
os vinhos novos quando ficam a fer trabalho, antes de ler isto, de mandar
mentar sobre o bagaço. Pois, exami cortar diante deles o coração de um
nando as funções que, em virtude grande animal que possua pulmões,
disso, podiam estar neste corpo, encon pois é em tudo semelhante ao do
trava exatamente todas as que podem homem, e que peçam para que se lhes
estar em nós sem que o pensemos, nem mostrem as duas câmaras ou concavi
por conseguinte que a nossa alma, ou dades nele existentes. Primeiramente, a
seja, essa parte distinta do corpo cuja que está no lado direito83, a que
natureza, como jâ foi dito mais acima, correspondem dois tubos muito largos:
é apenas a de pensar, para tal contri a saber, a veia cava, que é o principal
bua, e que são todas as mesmas, o que receptáculo do sangue e como que o
permite dizer que os animais sem tronco da árvore da qual todas as ou
razão se nos assemelham, sem que eu tras veias do corpo são ramos; e a veia
possa achar para isso qualquer daque arteriosa8 4, que foi assim impropria
las razões que, sendo dependentes do mente designada, por se tratar efetiva
pensamento, são as únicas que nos per mente de uma artéria, a qual, tomando
tencem enquanto homens, ao passo sua origem no coração, se divide, de
que achava a todas em seguida, ao pois de sair dele, em muitos ramos que
supor que Deus criara uma alma racio vão espalhar-se por toda a parte nos
nal e que a juntara a esse corpo de uma pulmões. Depois, a que esta no lado
certa maneira que descrevia82. esquerdo8 5, à qual correspondem, da
Mas, a fim de que se possa ver de mesma forma, dois tubos que são tanto
que modo eu tratava esta matéria, ou mais largos que os precedentes: a
quero apresentar aqui a explicação do saber, a artéria venosa8 6, que também
movimento do coração e das artérias, foi impropriamente designada, porque
o qual, sendo o primeiro e o mais geral não é outra coisa senão uma veia, que
que se observa nos animais, permitirá vem dos pulmões, onde se divide em
vários ramos, entrelaçados com os da
82 Trata-se, portanto, de uma reconstituição veia arteriosa e com os desse conduto
imaginária do homem enquanto animal-má- que se chama gasnete87, por onde
quina, antes da inserção da alma. Na realida entra o ar da respiração; e a grande
de, o corpo humano nunca é uma máquina, artéria88, que, saindo do coração,
pois está sempre unido a uma alma. Mas esta lança seus ramos por todo o corpo.
redução mostra que a única função da alma é Gostaria também que se lhes mostras
o pensamento, e que é preciso’, portanto, renun
ciar às noções escolásticas de alma sensitiva
sem cuidadosamente as onze pequenas
ou vegetativa. “No homem, a alma é una e é a peles89, que, como outras tantas pe-
alma racional. . . as faculdades que dão ao
corpo vida e movimento, e que denominamos 83 O ventrículo direito.
nas plantas e nos animais alma vegetativa e 8 4 A artéria pulmonar.
alma sensitiva, encontram-se também no 8 5 O ventrículo esquerdo.
homem; mas, nele, não devemos denominá-las 8 6 As veias pulmonares.
almas. . . elas são de um gênero inteiramente 87 A traquéia-artéria.
diferente do da alma racional.” (A Regius, 88 A aorta.
maio de 1641.) 83 As válvulas.
64 DESCARTES
quenas portas, abrem e fecham as qua enfim, que este calor é capaz de fazer
tro aberturas que há nessas duas que, se uma gota de sangue entear em
concavidades: a saber, três à entrada suas concavidades, ela se infle pronta
da veia cava90, onde se acham de tal mente e se dilate, como procedem em
modo dispostas que não podem de geral todos os líquidos quando os dei
maneira alguma impedir que o sangue xamos cair gota a gota nalgum vaso
nela contido corra para a concavidade que esteja muito quente.
direita do coração, e todavia impedem Isso porque, depois disso, nada mais
exatamente que possa dali sair; três à preciso dizer para explicar o movi
entrada da veia arteriosa91, que, estan mento do coração, salvo que, quando
do dispostas bem ao contrário, permi as suas concavidades não estão cheias
tem realmente ao sangue que está de sangue, este corre necessariamente
nessa concavidade passar para os pul
da veia cava para a concavidade direi
mões, mas não ao que está nos pul
ta, e da artéria venosa para a esquerda;
mões voltar para lá; e assim92 duas
já que esses dois vasos se acham sem
outras à entrada da artéria venosa, que
pre cheios, e que suas aberturas, volta
deixam fluir o sangue dos pulmões
para a concavidade esquerda do cora das para o coração, não podem então
ção, mas opõem-se ao seu retomo; e ser tapadas; mas, tão logo tenham
três à entrada da grande artéria9394 , que entrado assim duas gotas de sangue,
lhe permitem sair do coração, mas uma em cada concavidade, estas gotas,
impedem o seu retomo. E não há que só podem ser muito grossas, por
necessidade de procurar outra razão que as aberturas por onde penetram
para o número dessas peles, senão a de são muito largas, e os vasos de onde
que a abertura da artéria venosa, sendo provêm muito cheios de sangue, rarefa-
oval devido ao lugar onde fica, pode zem-se e dilatam-se por causa do calor
ser comodamente fechada com duas, que aí encontram; por esse meio,
ao passo que, as outras sendo redon fazendo inflar o coração todo, empur
das, três podem melhor fechá-las. ram e fecham as cinco pequenas portas
Demais, gostaria que lhes fosse dado
considerar que a grande artéria e a veia que ficam à entrada dos dois vasos de
arteriosa sao de uma composição onde vêm, impedindo, assim, que desça
muito mais dura e mais firme do que a mais sangue ao coração; e, conti
artéria venosa e a veia cava, e que as nuando a rarefazer-se cada vez mais,
duas últimas se alargam antes de en empurram e abrem as seis outras
trar no coração, formando aí como que pequenas portas que ficam à entrada
duas bolsas, chamadas as orelhas do dos dois outros vasos por onde saem,
coração, que se compõem de uma fazendo inflar por esse meio todos os
carne semelhante à deste; e que há ramos da veia arteriosa e da grande
sempre mais calor no coração do que artéria, quase no mesmo instante que o
qualquer outro lugar do corpo9 4, e, coração, o qual, em seguida, inconti-
nenti, se desinfla, como sucede tam
90 A válvula tricúspide.
91 As válvulas sigmóides no orifício da arté bém com essas artérias, por se resfriar
ria pulmonar. o sangue que nelas entrou; e suas seis
92 A válvula mitral., pequenas portas se fecham e as cinco
93 As válvulas sigmóides no orifício da aorta. da veia cava e da artéria venosa
94 “O calor que todo mundo reconhece ser no
coração maior do que em todas as outras-par reabrem-se, dando passagem a| duas
tes do corpo”, diz Descartes. “Todo mundo”, outras gotas de sangue, que vão de
isto é, a medicina grega e a tradição medieval. novo inflar o coração e as artérias, tal
DISCURSO DO MÉTODO 65
retomar das extremidades para o cora sangue da artéria venosa, tendo estado
ção, e, demais, pela experiência que apenas nos pulmões depois de passar
mostra que todó o sangue existente no pelo coração, é mais sutil e rarefaz-se
corpo pode dele sair em muito pouco mais forte e mais facilmente do que
tempo por uma única artéria, quando aquele que vem imediatamente da veia
secionada, ainda mesmo que ela fosse cava1 01 ? E o que podem os médicos
estreitamente ligada muito perto do adivinhar, tateando o pulso, se não
coração, e secionada entre ele e a liga sabem que, conforme o sangue | muda
dura, de sorte que não houvesse moti de natureza, pode ser rarefeito pelo
vo de imaginar que o sangue que daí calor do coração mais ou menos forte
saísse proviesse de outro lugar. e mais ou menos rápido do que antes?
Mas há muitas outras coisas que E, se se examina como esse calor se
testemunham que a verdadeira causa comunica aos outros membros, não
desse movimento do sangue é a que eu cumpre confessar que é por meio do
disse98. Assim, primeiramente, a dife sangue que, passando pelo coração,
rença que se nota entre o sangue que nele se aquece e daí se espalha por
sai das veias e o que sai das artérias só todo o corpo? Donde resulta que, se se
pode proceder do fato de que, tendo-se tira o sangue de alguma parte, tira-se-
rarefeito e como que destilado ao pas Ihe da mesma maneira o calor; e, ainda
sar pelo coração, é mais sutil e mais que o coração fosse tão ardente como
vivo, e mais quente logo depois de sair um ferro abrasado, não bastaria, como
dele, isto é, quando nas artérias, do que não basta, para aquecer os pés e as
o é um pouco antes de nele entrar, isto mãos, se não lhes enviasse continua
é, quando nas veias. E, se se presta mente novo sangue102. Depois, tam
atenção, verifica-se que tal diferença só bém se sabe daí que a verdadeira utili
aparece realmente na direção do cora dade da respiração é trazer bastante ar
ção e de modo algum nos lugares que fresco aos pulmões, para fazer com
dele mais se distanciam99100 *. Depois, a que o sangue, que para aí vem da
dureza das peles, de que a veia arte- concavidade direita do coração, onde
riosa e a grande artéria se compõem, foi rarefeito e como que transmudado
mostra suficientemente que o sangue em vapores, se espesse e se converta de
novo em sangue, antes de recair na
bate contra elas com mais força do que concavidade esquerda, sem o que não
contra as veias1 °°. E por que seriam a poderia ser próprio para servir de ali
concavidade esquerda do coração e a mento ao fogo aí existente103. O que
grande artéria mais amplas e mais lar se conforma, visto que os animais
gas do que a concavidade direita e a
veia arteriosa, se não fosse porque o 01 Terceiro argumento: no ventrículo es
querdo, maior do que o direito, o sangue deve
98 Descartes vai mostrar, agora, que só a sua dilatar-se mais. Com efeito, tendo passado
explicação dá conta do mecanismo da circula apenas pelos pulmões, ònde se demorou pouco
ção. tempo, “retém mais facilidade em se dilatar e
99 Primeiro argumento contra Harvey: ele se reaquecer do que possuía antes de entrar no
não explica como, no coração, o sangue veno- coração”.
so pode transformar-se em sangue arterial 102 Quarto argumento: é o sangue que ali
(ignorava-se, então, que essa transformação menta o calor do corpo; mas onde há de haurir
decorre da respiração pulmonar). este calor, se não for no coração?
100 Segundo argumento: o sangue na artéria 103 Por aí explicar-se-á a função da ■respira
pulmonar e na aorta, dada a constituição des ção: condensar, no pulmão, o sangue que fora
sas, deve ser sangue arterial. Ora, isto só é transformado, no coração, em vapor de san-
explicável pelo calor do coração. gue, antes de retomar ao coração.
DISCURSO DO MÉTODO 67
desprovidos de pulmões tampouco têm muito pura e muito viva que, subindo
mais do que uma só concavidade no continuamente em grande abundância
coração e as crianças, que não podem do coração ao cérebro, dirige-se daí,
usâ-los, enquanto encerradas no ventre pelos nervos, para os músculos, e
de suas mães, possuem uma abertura imprime movimento a todos os mem
por onde corre o sangue da veia cava bros1 0 5; sem que seja preciso imaginar
para a concavidade esquerda do cora outra causa que leve as partes do san
ção e um conduto por onde ele vem da gue que, sendo as mais agitadas e as
veia arteriosa para a grande artéria, mais penetrantes, são as mais próprias
sem passar pelo pulmão. Depois a coc- para compor tais espíritos, a se dirigi
ção, como se faria ela no estômago, se rem mais ao cérebro do que a outras
o coração não lhe enviasse calor pelas partes; mas somente que as artérias,
artérias, e com esse, algumas das mais que as levam para aí, são aquelas que
fluidas partes do sangue, que ajudam a vêm do coração’ em linha mais reta de
dissolver os alimentos que foram aí todas, e que, segundo as regras da
postos? E a ação que converteu o suco Mecânica, que são as mesmas da natu
desses alimentos em sangue, não será reza1 0 6, quando várias coisas tendem
ela fácil de conhecer, se se considera a mover-se em conjunto para um
que este se destila, passando e repas mesmo lado, onde não há lugar sufi
sando pelo coração, talvez mais de ciente para todas, tal como as partes
cem ou duzentas vezes por dia? E de do sangue que saem da concavidade
que mais se necessita para explicar a esquerda do coração tendem para o cé
nutrição e a produção dos diversos rebro, as mais fracas e menos agitadas
humores que existem no corpo1 0 4, ex devem ser desviadas pelas mais fortes,
ceto dizer que a força com que o san que por esse meio aí vão ter sós.
gue, ao rarefazer-se, passa do coração Explicara assaz particularmente
às extremidades das artérias leva algu- • todas essas coisas no tratado que pre
mas de suas partes a se deterem entre tendí outrorapublicar1 0 7. E, em segui
as dos membros onde se acham e a da, mostrara nele qual deve ser a estru
tomarem aí o lugar de algumas outras tura dos nervos e dos músculos do
que elas expulsam; e que, conforme a corpo humano, para fazer que os espí
situação, ou a figura, ou a pequenez ritos animais, estando dentro, tenham
dos poros que encontram, umas vão ter a.força de mover seus membros: assim
a certos lugares mais do que outras, da como se vê que as cabeças, pouco de
mesma forma como cada qual pode ter pois de decepadas, se remexem ainda, e
visto diversos crivos que, sendo diver mordem a terra, não obstante não mais
samente perfurados, servem para sepa sejam animadas; quais mudanças se
rar diversos grãos uns dos outros? E, devem efetuar no cérebro, para causar
enfim, o que há de mais notável em a vigília, o sono e os sonhos; como a
tudo isso é a geração dos espíritos ani luz, os sons, os odores, os sabores, o
mais, que são como um vento muito
sutil, ou melhor, como uma chama 105 A teoria mecanicista há de explicar igual
mente a produção dos “espíritos animais”
104 A “nutrição” designa a assimilação do (partículas materiais circulantes nos nervos e
sangue pelos órgãos; os “humores” são o suor, responsáveis pelo influxo nervoso) a partir da
a saliva, a urina. “E de que mais se necessi dilatação do sangue.
ta. . .” significa que a explicação mecânica de 1 0 6 Acerca desta identificação do físico ao
todas as funções orgânicas permite eliminar a mecânico, cf. Princípios, IV, art. 203.
alma vegetativa dos escolásticos. 107 O Tratado do Homem.
68 DESCARTES
resulta que é moralmente impossível assim como entre os homens, e que uns
que numa máquina existam bastante são mais fáceis de adestrar que outros,
diversas para fazê-la agir em todas as não é crível que um macaco ou um
ocorrências da vida, tal como a nossa papagaio, que fossem os mais perfeitos
razão nos faz agir11 2. de sua espécie, não igualassem nisso
Ora, por esses dois meios, pode-se uma criança das mais estúpidas ou
também conhecer a diferença existente pelo menos uma criança com o cérebro
entre os homens e os animais112113. Pois perturbado, se a sua alma não fosse de
é uma coisa bem notável que não haja uma natureza inteiramente diferente da
homens tão embrutecidos e tão estúpi nossa. E não se deve confundir as pala
dos, sem excetuar mesmo os insanos, vras com os movimentos naturais, que
que não sejam capazes de arranjar em testemunham as paixões e podem ser
conjunto diversas palavras, e de com imitados pelas máquinas assim como
pô-las num discurso pelo qual façam pelos animais; nem pensar, como al
entender seus pensamentos; e que, ao guns antigos, que os animais falam,
contrário, não exista outro animal, por embora não entendamos sua lingua
mais perfeito e felizmente engendrado gem: pois, se fosse verdade, porquanto
que possa ser, que faça o mesmo. E têm muitos órgãos correlatos aos nos
isso não acontece porque lhes faltem sos, poderíam fazer-se compreender
órgãos, pois vemos que as pegas e os tanto por nós como por seus semelhan
papagaios podem proferir palavras tes. É também coisa mui digna de nota
assim' como nós, e todavia não podem que, embora existam muitos animais
falar como nós, isto é, testemunhando que demonstram mais indústria do que
que pensam o que dizem; ao passo que nós em algumas de suas ações, vê-se,
os homens que, tendo nascido surdos e todavia, que não a demonstram nem
mudos, são desprovidos’ dos órgãos um pouco em muitas outras: de modo
que servem aos outros para falar, tanto que aquilo que fazem melhor do que
ou mais que os animais, costumam nós não prova que tenham espírito;
inventar eles próprios alguns sinais, pois, por esse critério, tê-lo-iam mais
pelos quais se fazem entender poí do que qualquer de nós e procederíam
quem, estando comumente com eles, melhor em tudo; mas, antes, que não o
disponha de lazer para aprender a sua têm, e que é a natureza que atua neles
língua. E isso não testemunha apenas segundo a disposição de seus órgãos:
que os animais possuem menos razão assim como um relógio, que é com
do que os homens, mas que não pos posto apenas de rodas e molas, pode
suem nenhuma razão. Pois vemos que contar as horas e medir o tempo mais
é preciso muito pouco para saber falar; justamente do que nós, com toda a
e, posto que se nota desigualdade entre nossa prudência.
os animais de uma mesma espécie, Eu descrevera, depois disso, a alma
racional, e mostrara que ela não pode
112 O melhor comentário desta passagem é, ser de modo algum tirada do poder da
além do texto citado mais acima, a carta ao matéria, como as outras coisas de que
Marquês de Newcastle, de 23 de novembro de falara, mas que deve expressamente ter
1646.
113 Para Descartes, a tese do animal-má- sido 11 4; e como não basta que esteja
quina, longe de abrir a porta ao materialismo,
é o corolário indispensável do espiritualismo. 11 4 A alma não pode ser engendrada pela
“A teoria dos animais-máquinas é inseparável matéria. É uma “substância” que requer um
do ‘Penso, logo existo’ ”, escreve Canguilhem ato especial de criação. E Descartes pensa tê-
(cf. Canguilhem, Connaissance de la Vie, págs. lo estabelecido com mais clareza do que Santo
124-160). Tomás.
70 DESCARTES
Sexta Parte
Ora, faz agora três anos que chegara entre as minhas, na qual me tivesse
ao fim do tratado que contém todas enganado, não obstante o grande cui
essas coisas, e que começara a revê-lo, dado que sempre tomei em não acolher
a fim de pô-lo em mãos de um impres- novas em minha confiança, das quais
sor, quando soube que pessoas, a quem não tivesse demonstrações muito cer
respeito e cuja autoridade sobre mi tas, e de não escrever nenhuma que
nhas ações quase não é menor que pudesse resultar em desvantagem para
minha própria razão sobre meus pen qualquer pessoa. O que bastou para
samentos, haviam desaprpvado uma me obrigar a mudar a resolução que eu
opinião de Física, publicada pouco tomara de publicá-las. Pois, embora as
antes por alguém, opinião que não razões, pelas quais eu a adotara ante
quero dizer que a partilhasse, mas que riormente, fossem muito fortes, minha
nada reparara nela, antes de a censura inclinação, que sempre me movera a
rem, que pudesse imaginar ser prejudi detestar o mister de fazer livros, me
cial à religião ou ao Estado, nem, por levou incontinenti a achar muitas ou
conseguinte, que me impedisse de tras para me escusar dela. Ê essas
escrevê-la, se a razão mo houvesse razões de uma parte e de outra são
persuadido, e isso me fez recear que se tais, que não só tenho aqui algumi inte
encontrasse, do mesmo modo, alguma resse em dizê-las, como talvez ó pú-
r
DISCURSO DO MÉTODO 71
blico também o tenha em conhecê-las. Pois elas me fizeram ver que é possível
Nunca fiz muito caso das coisas que chegar a conhecimentos que sejam
vinham de meu espírito, e, enquanto muito úteis à vida, e que, em vez dessa
não recolhi outros frutos do método de Filosofia especulativa que se ensina
que me sirvo a não ser que fiquei satis nas escolas, se pode encontrar uma
feito no tocante a algumas dificuldades outra prática, pela qual, conhecendo a
que concernem às ciências especula força e as ações do fogo, da água, do
tivas, ou então que procurei regrar ar, dos astros, dos céus e de todos os
meus costumes pelas razões que ele me
outros corpos que nos cercam, tão
ensinava, não me julguei obrigado a
distintamente como conhecemos os
nada escrever a seu respeito. Pois, no
que toca aos costumes, cada qual diversos misteres de nossos artífices,
-segue de tal forma o seu próprio pare poderiamos empregá-los da mesma
cer que se poderia encontrar tantos maneira em todos os usos para os
reformadores quantas cabeças, se fosse quais são próprios, e assim nos tomar
permitido a outros, além dos que Deus como que senhores e possuidores da
estabeleceu jDomo soberanos dos natureza. O que é de desejar, não só
povos, ou então aos que concedeu sufi para a invenção de uma infinidade de
ciente graça e zelo para serem profetas, artifícios, que permitiríam gozar, sem
tentar mudâ-los, em algo; e, embora
minhas especulações me aprouvessem qualquer custo, os frutos da terra e
muito, pensei que os outros também ti todas as comodidades que nela se
nham as suas que lhes agradariam tal acham, mas principalmente também
vez mais. Mas, tão logo adquiri algu para a conservação da saúde, que é
mas noções gerais relativas à Física, e, sem dúvida o primeiro bem e o funda
começando a comprová-las em diver mento de todos os outros bens desta
sas dificuldades particulares11 6, notei vida; pois mesmo o espírito depende
até onde podiam conduzir, e o quanto tanto do temperamento e da disposição
diferem dos princípios que foram utili
zados até o presente, julguei que não dos órgãos do corpo que, se é possível
podia mantê-las ocultas sem pecar encontrar algum meio que tome comu-
grandemente contra a lei que nos obri mente os homens mais avisados e mais
ga a procurar, no que depende de nós, hábeis do que foram até aqui, creio que
o bem geral de todos os homens11 7. é na Medicina que se deve procurá-
11 6 Segundo Gilson, trata-se do problema da
lo 11 8. É verdade que aquela que está
construção das lunetas. agora em uso contém poucas coisas
117 A Filosofia.só pode, portanto, constituir a cuja utilidade seja tão notável; mas,
fundação de uma prática científica, “útil à
vida”. Seu fim não reside na contemplação. sem que alimente nenhum intuito de
Comparar com esta página -—- que afasta de desprezá-la, estou certo de que não há
pronto toda interpretação espiritualista do ninguém, mesmo entre os que a profes-
pensamento cartesiano — a passagem em que
Baillet, na Vie de M. Descartes, relata a entre
vista do jovem Descartes com o Cardeal de
118 Juntamente com a Moral e a Mecânica, a
Medicina é um dos três ramos da árvore cujo
Bérulle. Este “fez-lhe entrever as conse
quências que poder iam ter tais pensamen tronco é a Física. No tempo do Discurso, Des
tos. . . e a utilidade que o público daí tiraria se cartes alimentava ainda a esperança de poder
se aplicasse a maneira de filosofar à Medicina constituir a Medicina baseada em demonstra
e à Mecânica, das quais uma produziría o ções infalíveis de que fala a Mersenne, em
restabelecimento e a conservação da saúde e a janeiro de 1630. Acerca da evolução de Des
outra a diminuição e o alívio dos trabalhos dos cartes a este respeito, cf. Guéroult, op. cit., t.
homens”. (A. T. I, 164.) II.
72 DESCARTES
sam, que não confesse que tudo quanto procurar as mais raras e complicadas:
nela se sabe é quase nada, em compa a razão disso é que essas mais raras
ração com o que resta a saber, e que nos enganam muitas vezes, quando se
poderiamos livrar-nos de uma infini conhecem ainda as causas das mais
dade de moléstias, quer do espírito, comuns, e que as circunstâncias das
quer do corpo, e talvez mesmo do quais dependem são quase sempre tão
enfraquecimento da velhice, se tivés particulares e tão pequenas, que é
semos bastante conhecimento de suas muito penoso adverti-las119. Mas | a
causas e de todos os remédios de que a ordem que guardei nisso foi a seguinte.
natureza nos dotou. Ora, tendo o Primeiramente, procurei encontrar em
desígnio de empregar toda a minha geral os princípios, ou primeiras cau
vida na pesquisa de uma ciência tão sas, de tudo quanto existe, ou pode
necessária, e tendo encontrado, um existir, no mundo, sem nada conside
caminho que me parece tal que se deve rar, para tal efeito, senão Deus só, que
infalivelmente achá-la, se o seguirmos, o criou, nem tirá-las de outra parte, ex
a não ser que disso sejamos impedidos, ceto de certas sementes de verdades
ou pela curta duração da vida, ou pela que existem naturalmente em nossas
falta de experiências, julguei que não almas. Depois disso, examinei quais os
havia melhor remédio contra esses dois primeiros e os mais ordinários efeitos
impedimentos do que comunicar fiel que se podem deduzir dessas causas: e
mente ao público todo o pouco que já
parece-me que, por aí, encontrei céus,
tivesse descoberto, e convidar os bons
espíritos a esforçarem-se por passar astros, uma terra, e mesmo, sobre a
além, contribuindo, cada qual segundo terra, água, ar, fogo, minerais e algu
sua inclinação e seu poder, para as mas outras dessas coisas que são as
experiências que seria preciso fazer, e mais comuns de todas e as mais sim
comunicando outrossim ao público pies, e por conseguinte as mais fáceis
todas as coisas que aprendesse, a fim de conhecer. Depois, quando quis des
de.que os últimos começassem onde os cer às que eram mais particulares,
precedentes houvessem acabado, e apresentaram-se-me tão diversas, que
assim, juntando as vidas e os trabalhos não acreditei que fosse possível ao
de muitos, fôssemos todos juntos espírito humano distinguir as formas
muito mais longe do que poderia ir ou espécies de corpos que existem
cada um em particular.
sobre a terra, de uma infinidade de ou
Notara mesmo, no tocante às expe tras que poderiam nela existir, se fosse
riências, que elas são tanfo mais neces
sárias quanto mais avançada a gente 119 O desprezo de Descartes pelas experiên
está no conhecimento. Pois, no come cias é outra lenda que é necessário denunciar.
ço, mais vale servir-se apenas das que É verdade que Descartes prefere as_experiên-
se apresentam por si mesmas aos nos cias inteiramente realizadas ná natureza e des
sos sentidos, e que não poderiamos confia das experiências complicadas. No que
se opõe menos ao “método experimental” do
ignorar, contanto que lhes dediquemos que desconfia dos amantes do maravilhoso e
o pouco que seja de reflexão, em vez de dos curiosos sem método. j
DISCURSO DO MÉTODO 73
a vontade de Deus aí colocá-las, nem, não de outra1 21. De resto, estou agora
por consequência, tomá-las de nosso num ponto em que vejo, parece-me,
uso, a não ser que se vá ao encontro muito bem qual o meio a que se deve
das causas pelos efeitos e que se recor recorrer para efetuar a maioria das que
da a muitas experiências particula- podem servir para esse efeito; mas vejo
rès120. Em decorrência disso, repas também que são tais e em tão grande
sando meu espírito sobre todos os número que nem as minhas mãos, nem
a minha renda, ainda que eu tivesse mil
objetos que alguma vez se ofereceram
vezes mais do que tenho, bastariam
aos meus sentidos, ouso dizer que não
para todas; de sorte que, conforme
observei nenhum que não pudesse tiver doravante a comodidade de fazê-
explicar assaz comodamente por meio las em maior ou menor número, avan
dos princípios que achara. Mas cum çarei mais ou menos no conhecimento
pre que eu confesse também que o da natureza. Fato que prometia a mim
poder da natureza é tão amplo e tão próprio tomar conhecido, pelo tratado
vasto e que esses princípios são tão que escrevera, e mostrar tão clara
simples e tão gerais, que quase não mente a utilidade que daí podia advir
notei um único efeito particular que eu ao público que obrigaria a todos os
já não soubesse ser possível deduzi-lo que desejam, em geral o bem dos
daí de várias maneiras diferentes, e que homens, isto é, todos os que são de
a minha maior dificuldade é comu- fato virtuosos, e não apenas por fingi
mento, nem somente por opinião, tanto
mente descobrir de qual dessas manei
a comunicar-me as que já tivessem
ras o referido efeito depende. Pois, feito como a me ajudar na pesquisa
para tanto, não conheço outro expe das que restam por fazer.
diente, senão o de procurar novamente Mas sobrevieram, desde então, ou
algumas experiências, que sejam tais tras razões que me levaram a mudar de
que seu resultado não seja o mesmo, se opinião e pensar que devia, na verdade,
explicado de uma dessas maneiras e continuar escrevendo todas as coisas
que julgasse de alguma importância, à
120 As experiências particulares “instituídas
expressamente com o fito de saber o que é pre
121 Segundo papel da experiência: ela desem
ciso deduzir” (Gilson) só aparecem, portanto,
pata as opiniões quando são igualmente plau
no terceiro estádio. É inútil insistir sobre o síveis vários modos de produção de um mesmo ‘
caráter dedutivo desta Física: basta que uma efeito. — Sobre a validade da Física, cf. Prin
“suposição” não contradiga a experiência e cípios, IV, arts. 204 a 206: Descartes pensa ter
que a dedução seja feita “consequentemente” dado em sua Física demonstrações tão rigoro
para que ela seja acolhida. Mas Descartes sas quanto as da Matemática;- mas concede
insiste alhures no aspecto racional que suas que aí seria possível contentar-se com uma
“hipóteses” oferecem em face das “fantasias” “certeza moral” ou altamente provável e até
da Escola. Entre as duas Físicas, é fácil efetuar com uma certeza pragmática: “Eu crerei ter
feito o suficiente se as causas que expliquei
a separação: “É suficiente provar qual é a ver forem tais que todos os efeitos que elas podem
dadeira causa de certos efeitos para dar-lhes produzir se verifiquem semelhantes aos que
uma de que possam claramente ser deduzidos; vemos no mundo, sem me informar se são pro
e pretendo que todos os efeitos de que falei per duzidos por elas ou por outras”. Esta cosmolo-
tencem a este número”. (A Morin, 13 de julho gia dogmática entremostra, assim, o que pode
de 1638.) ría ser uma Física Experimental.
74 DESCARTES
medida que fosse descobrindo sua ver- • grandes aquisições, do que tiveram
dade, e proporcionar-lhes o mesmo outrora, quando mais pobres, em reali
cuidado que se quisesse mandar impri zar outras muito menores. Ou então
mi-las: quer para ter mais ocasião de pode-se compará-los aos chefes 'de
bem examiná-las, porque sem dúvida exército, cujas forças costumam cres
se olha sempre mais de perto o que se cer à proporção de suas vitórias, e que
acha dever ser visto por muitos, do que necessitam de mais habilidade, para se
aquilo que se faz apenas para si pró manterem após a perda de uma bata
prio, e, amiúde, as coisas que me pare lha, do que possuem, depois de vencê-
ceram verdadeiras quando comecei a la, para tomar cidades e províncias.
concebê-las pareceram-me falsas quan Pois é verdadeiramente dar batalhas
do pretendi pô-las no papel; quer para procurar vencer todas as dificuldades e
não perder nenhuma ocasião de benefi os erros que nos impedem de chegar ao
ciar o público, se é que disso sou conhecimento da verdade, e é perder
capaz, e para que, se meus escritos uma acolher qualquer falsa opinião no
valem alguma coisa, os que os possuí tocante a uma matéria um pouco geral
rem após a minha morte possam usá- e importante; é preciso, em seguida,
los como for mais conveniente; mas muito mais destreza para voltar ao
que não devia de modo algum consen mesmo estado em que se encontrava
tir que fossem publicados durante a antes do que para fazer grandes pro
minha vida, a fim de que nem as oposi- gressos, quando já se têm princípios
ções e as controvérsias a que estariam que sejam seguros. Quanto a mim, se
talvez sujeitos, nem mesmo a reputa deparei precedentemente com algumas-
ção, qualquer que ela fosse, que me verdades nas ciências (e espero que as
pudessem granjear, me dessem o coisas contidas neste volume122 leva
menor ensejo de perder o tempo que rão a julgar que descobri algumas),
desejo empregar em instruir-me. Pois, posso dizer que não passam de conse
embora seja verdade que cada homem quências e dependências de cinco ou
deve procurar, no que depende dele, o seis dificuldades principais que sobre
bem dos outros, e que é propriamente pujei, e que considero outras tantas
nada valer o não ser útil a ninguém, batalhas em que tive a sorte a meu
todavia é verdade também que os nos lado. Não temerei mesmo dizer que
sos cuidados devem estender-se mais penso precisar ganhar apenas mais
longe que o tempo presente, e que é duas ou três semelhantes para levar
bom omitir as coisas que trariam tal inteiramente a cabo os meus desígnios;
vez algum proveito aos que vivem, e que minha idade não é tão avançada
quando é com o intuito de fazer outras que, segundo o curso ordinário da
que aproveitarão mais aos nossos vin natureza, não possa ainda dispor de
douros. Porque, com efeito, quero que lazer suficiente para tal efeito. Mas
se saiba que o pouco que aprendi até creio estar tanto mais obrigado a pou
agora não é quase nada, em compara par o tempo que me resta quanto
ção com o que ignoro, e que não deses maior a esperança de poder empregá-
pero de poder aprender; pois acontece lo bem; e teria, sem dúvida, muitas
quase o mesmo aos que descobrem ocasiões de perdê-lo, se publicasse os
pouco a pouco a verdade nas ciências,
que àqueles que, começando a enrique 122 A saber: os três ensaios que seguem o
cer, têm menos dificuldade em realizar Discurso.
DISCURSO DO MÉTODO 75
buem a todos esses antigos filósofos, do-os, que se abrisse algumas janelas e
cujos escritos não possuímos, nem fizesse entrar a luz nessa adega, para
julgo, por isso, que os seus pensa onde desceram para se bater. Mas| até
mentos tenham sido muito desarrazoa- mesmo os melhores espíritos não
dos, visto serem os melhores espíritos devem desejar conhecê-los: pois, se
de seu tempo, mas apenas julgo que querem saber falar de todas as coisas e
nos foram mal relatados. Porque se vê adquirir a reputação de doutos, hão de
também que quase nunca aconteceu consegui-lo mais facilmente contentan
que algum de seus sectários os haja do-se com a verossimilhança, que pode
superado: e estou seguro de que os ser encontrada sem grande custo em
mais apaixonados dos que seguem todas as espécies de matérias, do que
agora Aristóteles crer-se-iam felizes se procurando a verdade, que só se desco
tivessem tanto conhecimento da natu bre pouco a pouco em algumas, e que,
reza quanto ele o teve, embora sob a quando se trata de falar das outras,
condição de nunca o terem maior. São obriga a confessar francamente que a
como a hera, que não tende a subir gente as ignora. Visto que preferem o
mais alto que as árvores que a susten conhecimento de um pouco de verdade
tam, e que muitas vezes mesmo toma a à vaidade de parecerem nada ignorar,
descer, depois de ter chegado ao seu como sem dúvida é bem preferível, e se
topo; pois me parece que também vol pretendem seguir um intento seme
tam a descer, isto é, tomam-se de certa lhante ao meu, não precisam, para
forma menos sapientes do que se se isso, que lhes diga nada mais do que já
abstivessem de estudar, aqueles que, disse nesse discurso. Pois, se são capa
não contentes em saber tudo o que é zes de passar mais adiante do que fui,
inteligivelmente explicado no seu sê-lo-ão também, com maior razão, de
autor, querem, além disso, encontrar achar por si próprios tudo o que penso
nele a solução de muitas dificuldades, ter achado125. Tanto mais que, não
a cujo respeito nada disse e nas quais tendo jamais examinado algo anão ser
nunca talvez pensou. Todavia, a ma por ordem, é certo que o que me falta
neira de filosofar é muito cômoda para ainda para descobrir é em si mais difí
aqueles que possuem tão-somente espí cil e mais oculto do que aquilo que
ritos muito medíocres; pois a obscuri pude precedentemente encontrar, e fe
dade das distinções e dos princípios de riam muito menos prazer em aprendê-
que se servem é causa de que possam lo por mim do que por si próprios;
falar de todas as coisas tão atrevida- além do que, o hábito que adquirirão,
mente como se as soubessem, e susten procurando primeiramente coisas fá
tar tudo o que dizem contra os mais ceis e passando pouco a pouco, gra
sutis e os mais hábeis sem que haja dualmente, a outras mais difíceis, lhes
meio de convencê-los. Nisso me pare servirá mais do que poderiam servir-
cem semelhantes a um cego que, para lhes todas as minhas instruções. Por
se bater sem desvantagem com alguém que, quanto a mim, persuadi-me de
que vê, o fizesse vir ao fundo de algu que, se me tivessem ensinado, desde a
ma adega muito obscura; e posso dizer juventude, todas as verdades cujas
que esses têm interesse que eu me abs demonstrações procurei depois, e se eu
tenha de publicar os princípios' da
125 O Discurso não é, pois, um equivalente
Filosofia de que me sirvo: pois, sendo das Regulae: pode-se considerá-lo não cotao
muito simples e muito evidentes, coiho üma exposição do método mas simplesmente
o são, faria quase o mesmo, publican como um prefácio a aplicações do método. ;
DISCURSO DO MÉTODO 77
não tivesse nenhuma dificuldade em que lhe servissem, não poderiam valer
aprendê-las, jamais saberia talvez al outra vez o tempo que teria de empre
gumas outras, e pelo menos jamais gar a fim de escolhê-las. De modo que,
teria adquirido o hábito e a facilidade, se existisse no mundo alguém, de quem
que penso ter, para sempre descobrir se soubesse que seria seguramente
outras novas, à medida que me aplico capaz de encontrar as maiores coisas e
a procurá-las. E, numa palavra, se há as mais úteis possíveis ao público, e a
no mundo alguma obra que não possa quem, por essa causa, os demais ho
mens se esforçassem, por todos os
ser tão bem acabada por nenhum outro
meios, em auxiliar na realização de
exceto pelo mesmo que a começou, é
seus desígnios, não vejo que pudessem
aquela em que trabalho.
fazer mais por ele além de custear os
É verdade que, no concernente às gastos nas experiências de que necessi
experiências que podem servir para tasse e, de resto, impedir que seu lazer
isso, um homem só não poderia bastar lhe fosse arrebatado pela importuni
para as fazer todas; mas não poderia dade de pessoa alguma. Mas, além de
também empregar utilmente outras que não presumo tanto de mim mesmo,
mãos que não as suas, exceto as dos que deseje prometer algo de extraordi
artífices ou pessoas tais a quem pudes nário, nem me alimente de pensa
se pagar, e a quem a esperança do mentos tão vãos, como os de imaginar
ganho, que é um meio muito eficaz, que o público se deva interessar muito
faria executar exatamente todas as coi com meus projetos, não tenho também
sas que ele lhes prescrevesse. Pois, a alma tão baixa, que queira aceitar de
quanto aos voluntários, que, por curio quem quer que seja qualquer favor, que
sidade ou desejo de aprender, se ofere se possa crer que eu não tenha mereci
cessem talvez para o ajudar, além de do.
comumente apresentarem mais pro Todas essas considerações juntas
messas do que resultado e de não faze foram causa, há três anos, de que eu
rem senão belas proposições de que não quisesse divulgar o tratado que
nenhuma jamais logra êxito, deseja tinha em mãos, e mesmo que adotasse
riam infalivelmente ser pagos pela a resolução de não elaborar nenhum
explicação de algumas dificuldades, ou outro, durante minha vida, que fosse
ao menos por cumprimentos e conver tão geral, nem do qual se pudesse
sas inúteis, que lhe custariam sempre conhecer os fundamentos de minha Fí
algum tempo, por pouco que perdesse. sica. Mas em seguida houve de novo
E, quanto às experiências já feitas duas outras razões, que me obrigaram
pelos outros, ainda que quisessem lhas a apresentar aqui alguns ensaios parti
comunicar, o que aqueles que as cha culares, e a prestar ao público alguma
mam de segredos nunca o fariam, são, conta de minhas ações e de meus
na maioria, compostas de tantas cir desígnios. A primeira é que, se dei
cunstâncias, ou ingredientes supér xasse de fazê-lo, muitos, que souberam
fluos, que lhe seria muito penoso deci da intenção que eu alimentava ante
frar-lhes a verdade; além de que as riormente de mandar imprimir alguns
encontraria quase todas tão mal expli escritos, poderiam imaginar que as
cadas, ou mesmo tão falsas, porquanto causas pelas quais me abstivera disso
aqueles que as efetuaram esforçaram- fossem mais desvantajosas para mim
se por tomá-las conformes- com seus do que na realidade o são. Pois, embo
princípios, que, se algumas houvessem ra não ame a glória em excesso, ou
78 DESCARTES
mesmo, se ouso dizê-lo, a deteste, na que haja tanto mais ocasião, suplico a
medida em que a julgo contrária ao todos os que tiverem quaisquer pbje-
repouso, que estimo acima de todas as ções a fazer-lhes que se dêem ao traba
coisas, todavia nunca procurei escon lho de enviá-las ao meu livreiro, para
der minhas ações como crimes, nem que, sendo advertido, procure juntar-
usei muitas precauções para ficar lhes ao mesmo tempo a minha respos
desconhecido; tanto por crer que isso ta; e por esse meio, os leitores, vendo
me faria mal, como por saber que me em conjunto uma e outra, julgarão
daria uma espécie de inquietação, que tanto mais facilmente a verdade. Pois
seria mais uma vez contrária ao per prometo nunca lhes dar respostas lon
feito repouso de espírito que procuro. gas, mas somente confessar minhas
E visto que, tendo-me sempre mantido faltas mui francamente, se as reconhe
assim indiferente entre o cuidado de cer, ou então, caso não consiga perce
ser conhecido e o de não sê-lo, não bê-las, dizer simplesmente o que julgar
pude evitar de conquistar certa reputa necessário para a defesa das coisas que
ção, pensei que devia fazer o máximo escrevi, sem acrescentar a explicação
para me livrar ao menos de a ter má. A de qualquer nova matéria, a fim de não
outra razão que me obrigou a escrever me enredar sem fim entre uma e outra.
este livro é que, vendo todos os dias Se algumas daquelas de que falei, no
inais e mais o retardamento que sofre o começo da Dióptrica e dos Meteoros,
meu intento de me instruir, por causa chocam de início, por eu as denominar
de uma infinidade de experiências de suposições, e por parecer que não an
que necessito, e que me é impossível seio prová-las, que se tenha a paciência
realizá-lo sem a ajuda de outrem, em de ler o todo com atenção, e espero que
bora não me lisonjeie tanto a ponto de todos hão de se ver satisfeitos. Pois se
esperar que o público tome grande me afigura que nelas as razões se se
parte em meus interesses, todavia não guem de tal modo que, como as derra
quero faltar tanto a mim próprio que deiras são demonstradas pelas primei
dê motivo aos que me sobreviverão ras, que são as suas causas, essas
para me censurar um dia de que eu primeiras o são reciprocamente pelas
podia ter-lhes deixado muitas coisas últimas, que são seus efeitos. E não se
bem melhores do que as que deixei, se deve imaginar que cometo com isso a
não tivesse negligenciado demais em falta que os lógicos chamam um círcu
fazê-los compreender em que poderiam lo1 2 6; pois, como a experiência toma a
contribuir para os meus projetos. maioria desses efeitos muito certos, as
causas das quais os deduzo não servem
E pensei que me era fácil escolher tanto para prová-los como servem
algumas matérias que, sem estarem para explicá-los; mas bem ao contrá
expostas a muitas controvérsias, nem rio, são elas que são provadas por eles.
me obrigarem a declarar mais do que E não as chamei suposições só para
desejo sobre os meus princípios, não que se saiba que penso poder deduzi-
deixariam de mostrar assaz claramente las dessas primeiras verdades que
o que posso ou não posso nas ciências. expliquei mais acima, mas que expres-
E nisso eu não poderia dizer se fui bem
sucedido e não quero predispor os juí
126 Cf. Cartas, a Morin, de 13 de julho de
zos de ninguém, falando eu próprio 1638, onde Descartes se defende da acusação
dos meus escritos; mas estimaria do “círculo lógico” e estabelece a diferença
muito que fossem examinados e, para entre “provar” e “explicar”. '
DISCURSO DO MÉTODO 79
samente não o quis fazer para impedir em francês, que é a língua de meu país,
que certos espíritos, que imaginam e não em latim, que é a de meus
saber num dia tudo o que um outro preceptores, é porque espero que aque
pensou em vinte anos, tão logo ele lhes les que se servem apenas de sua razão
diz apenas duas ou três palavras a res natural inteiramente pura julgarão me
peito, e que são tanto mais sujeitos a lhor minhas opiniões do que aqueles
falhar, e menos capazes da verdade, que não acreditam senão nos livros
quanto mais penetrantes e vivos são, antigos. E quanto aos que unem o bom
não pudessem aproveitar a ocasião seuso ao estudo, os únicos que desejo
para meus juizes, não serão de modo
para erigir alguma Filosofia extrava
gante sobre o que acreditariam ser os algum, tenho certeza, tão parciais em
favor do latim que recusem ouvir mi
meus princípios, e que depois me atri
buíssem a culpa disso. Pois, quanto às nhas razões, porque as explico em lín
gua vulgar.
opiniões que são totalmente minhas, Além disso, não quero falar aqui,
não as desculpo de serem novas, tanto em particular, dos progressos que no
mais que, se se considerarem bem as futuro espero fazer nas ciências, nem
suas razões, estou certo de que serão me comprometer em relação ao pú
julgadas tão simples e tão conformes blico com qualquer promessa que não
ao senso comum que parecerão menos tenha a certeza de cumprir: mas direi
extraordinárias e menos estranhas do unicamente que resolvi não empregar o
que quaisquer outras que se possa ter tempo de vida que me resta em outra
sobre os mesmos assuntos. E não me coisa exceto procurar adquirir algum
vanglorio também de ser o primeiro conhecimento da natureza, que seja de
inventor de qualquer delas, mas antes tal ordem que dele se possam tirar re
de não as ter jamais acolhido, nem gras para a Medicina, mais seguras do
pelo fato de terem sido proferidas por que as adotadas até agora; e que
outrem, nem pelo que possam ter sido, minha inclinação me afasta tanto de
mas unicamente porque a razão mas qualquer espécie de outros desígnios,
fez aceitar. principalmente dos que não poderiam
Se os artífices não puderem tão cedo ser úteis a uns sem prejudicar a outros,
executar a invenção que é explicada na que, se algumas circunstâncias me
Dióptrica, não creio que se possa compelissem a dedicar-me a eles, hão
dizer, por isso, que ela seja má: pois, creio que fosse capaz de lograr êxito.
desde que é preciso destreza e hábito Pelo que, faço aqui uma declaração
para fazer e ajustar as máquinas que que, sei muito bem, não poderá servir
descreví, sem que nelas falte qualquer para me tomar notável no mundo, mas
circunstância, não me espantaria tampouco tenho qualquer desejo de
menos se eles as lograssem no primeiro sê-lo; e ficarei sempre mais obrigado
lance, do que se alguém conseguisse àqueles graças aos quais desfrutarei
aprender, num dia, a tocar o alaúde sem impedimento do meu lazer, do que
excelentemente, tão-só porque lhe foi o seria aos que me oferecessem os mais
dada uma boa tavolatura. E se escrevo honrosos empregos da terra.
MEDITAÇÕES’
1 Para a comodidade das referências, seguimos a numeração da edição Khodoss (P.U.F.): em cada Medita
ção, cada parágrafo é numerado; as alíneas das Segundas e Quintas Respostas são numeradas com um nú
mero de três algarismos, dos quais o primeiro designa as Segundas ou Quintas Respostas. Por exemplo, 203
significará Segundas Respostas, § 3, e 529: Quintas Respostas, § 29. A letra G acompanhada de um alga
rismo remete à exposição geométrica que segue as Segundas Respostas.
AOS SENHORES DEÃO E DOUTORES
DA SAGRADA FACULDADE DE TEOLOGIA DE PARIS
Senhores,
capaz de nos fornecer2. Daípor que julguei que não seria absolutamente fora de
propósito que mostrasse aqui por que meios isto pode serfeito e que via é preciso
tomar para chegar ao conhecimento de Deus com mais facilidade e certeza do
que conhecemos as coisas deste mundo.
E, no que concerne à alma, embora muitos tenham acreditado que não é
fácil conhecer-lhe a natureza, e alguns tenham mesmo ousado dizer que as razões
humanas nos persuadem de que ela morre com o corpo e que somente a fé nos
ensina o contrário, todavia, visto que o Concilio de Latrão, realizado sob o
pontificado de Leão X, na sessão 8, os condena e ordena expressamente aos filó
sofos cristãos que respondam a seus argumentos e empreguem todas as forças de
seu espírito para dar a conhecer a verdade — ousei efetivamente empreendê-lo
neste escrito. Ademais, sabendo que a principal razão, que leva muitos ímpios a
não quererem acreditar de maneira alguma que há um Deus e que a alma huma
na é distinta do corpo, é que eles dizem que ninguém até aqui pôde demonstrar
essas duas coisas; embora eu não seja absolutamente dessa opinião, mas, ao
contrário, mantenha que quase todas as razões apresentadas por tantas grandes
personagens, no tocante a essas duas questões, são outras tantas demonstrações
e, quando são bem entendidas, afirme que seja quase impossível inventar novas:
se é que eu creio que nada se podería fazer mais útil na Filosofia do que procurar
uma vez com curiosidade e cuidado as melhores e mais sólidas razões e dispô-las
numa ordem tão clara e tão exata que doravante seja certo a todo mundo serem
verdadeiras demonstrações. Enfim, posto que muitas pessoas desejaram isto de
mim3, as quais têm conhecimento de que cultivei um certo método para resolver
toda sorte de dificuldades nas ciências; método que, na verdade, não é novo,
nada havendo de mais antigo do que a verdade, mas do qual eles sabem que me
servi assaz felizmente em outras ocasiões; pensei que era de meu dever tentar
algo neste tema.
Ora, trabalhei o melhor que pude para encerrar neste tratado tudo o que
disso se pode dizer. Não que eu tenha acumulado aqui todas as diversas razões
que se poderíam alegar para servir de prova a nosso tema: pois jamais acreditei
que isto fosse necessário, senão quando não haja nenhuma que seja certa; mas
somente tratei as primeiras e principais de tal maneira que ouso efetivamente
propô-las como demonstrações muito evidentes e muito certas. E direi, além
disso, que elas são tais que eu não penso que haja alguma via por onde o espírito
2 Cf. Pascal: “Não é o que diz a Escritura, que melhor conhece as coisas que são de Deus. Ela
diz, ao contrário, que Deus é um Deus oculto. . . Quando afirma, em tantas passagens, que aque
les que procuram Deus o encontram, não é dessa luz que fala, como sendo o dia em pleno meio-
dia. . .” (Pléiade, pág. 1184.)
3 Possível alusão ao Cardeal de Bérulle e aos Oratorianos que haviam compreendido o valor
apologético da metafísica cartesiana. Este valor, Descartes o reafirma com muita freqüência na
sua correspondência. Por exemplo: “Relendo o primeiro capítulo do Gênese, dei-me conta, não
sem espanto, que eu podia, de acordo com minhas próprias idéias, explicá-lo inteiramente de
modo bem melhor do que por todas as maneiras pelas quais os intérpretes o explicaram até
aqui. . . Mas agora, após a exposição que fiz de minha Filosofia, formulei o desígnio de mostrar
claramente que ela concorda muito mais com todàs as verdades da Fé do que a de Aristóteles”.
(A. T. IV, 698.) Era também a opinião, no- século XVII, de Bossuet, Malebranche, Amaud, etc.
A lenda de Descartes antepassado do livre-pensamento nos leva hoje a esquecer demasiado esse
fato. Sobre o cristianismo inequívoco de Descartes, cf. as Cartas, a Gibieuf (18 de julho de 1629)
e a Mersenne (18 de dezembro de 1629 e novembro de 1630). !
MEDITAÇÕES 85
4 Descartes dirá, na carta a Clerselier, que dâ sequência às Quintas Respostas: “Peço-lhes consi
derar que, entre os que são reputados os mais sapientes na Filosofia da Escola, não há cem que
os entendam (os Elementos de Euclides) e que não há um entre dez mil que entenda todas as
demonstrações de Apolônio ou de Arquimedes, embora sejam tão evidentes e tao certas quanto
as de Euclides”. Este argumento é invocado contra os objetantes que não acham suas razões evi
dentes, como se se tratasse de uma “evidência” vulgar e não elaborada pela prática das
Matemáticas.
5 O que não quer dizer que o espírito matemático está ao alcance de todos: “Nem todo mundo
tem semelhante aptidão”, diz Descartes a Burman.
6 Esse parágrafo evidencia o paralelo entre a ordem das razões matemáticas e a ordem das
razões metafísicas. Sobre esse ponto, cumpre remeter ao livro de Guéroult, em que as nossas
notas se inspiram continuamente, e assimilar a comparação estabelecida entre as duas “ordens”
por Vuillemin (Math. etMéta. chez Descartes, págs. 119-127).
7 No texto, ejfort. Ch. Adam supõe que deva ser effet. (N. dos T.)
86
mas também no que se refere à humana Filosofia, cada um crendo que não épos
sível encontrar alhures mais solidez e conhecimento, nem mais prudência e inte
gridade para formular seu juízo; não duvido, se vos dignardes a tanto cuidar
deste escrito, a ponto de querer primeiramente corrigi-lo (pois, tendo conheci
mento não só de minha imperfeição como também de minha ignorância, não
ousaria eu assegurar que não haja nele quaisquer erros) e, depois, após acres
centar as coisas que lhe faltam, arrematar as que não estão perfeitas e tomar, vós
mesmos, o cuidado de fornecer uma explicação mais ampla às que dela necessi
tem, ou, ao menos, disso me advertir a fim de que nisso trabalhe, e, enfim, depois
que as razões pelas quais eu provo que há um Deus e que a alma humana difere
do corpo tiverem sido levadas ao ponto de clareza e evidência a que eu tenho cer
teza ser possível conduzi-las, que deverão ser tomadas como demonstrações
muito exatas, e quiserdes declarar isto mesmo e testemunhâ-lo publicamente: eu
não duvido, digo, que, se isto forfeito, todos os erros e falsas opiniões que jamais
existiram no tocante a essas duas questões sejam em breve expungidas do espí
rito dos homens. Pois a verdade fará que todos os doutos e pessoas de espírito
subscrevam vosso julgamento e vossa autoridade, de tal modo que os ateus, que
são de ordinário mais arrogantes que doutos e judiciosos, se despojem de seu
espírito de contradição ou talvez sustentem, eles próprios, as razões que verão
serem recebidas por todas as pessoas de espírito como demonstrações, temendo
parecerem não possuir inteligência; e, enfim, todos os outros facilmente se rende
rão ante tantos testemunhos que não haverá mais ninguém que ouse duvidar da
existência de Deus e da distinção real e verdadeira da alma humana em relação
ao corpo.
Compete a vós, agora, julgar o fruto que proviria dessa crença, se ela fosse
uma vez bem estabelecida, vós que védes as desordens que sua dúvida produz;
mas não seria gentil de minha parte recomendar ainda mais a causa de Deus e da
Religião àqueles que sempre foram seus mais firmes esteios.
Resumo
cias diferentes, como se concebe o bém ele não perece de modo algum;
espírito e o corpo, são, com efeito, mas que o corpo humano, na medida
substâncias diversas e realmente dis em que difere dos outros corpos, não é
tintas umas das outras; e é o que se formado e composto senão de cérta
conclui na sexta Meditação. E, na configuração de membros e outros aci
mesma, também isto se confirma, pelo dentes semelhantes; e a alma humana,
fato de não concebermos qualquer ao contrário, não é assim composta de
corpo senão como divisível, ao passo quaisquer acidentes, mas é uma pura
que o espírito ou a alma do homem substância. Pois, ainda que todos os
não se pode conceber senão como indi seus acidentes se modifiquem, por
visível: pois, com efeito, não podemos exemplo, que ela conceba certas coi
conceber a metade de alma alguma, sas, que ela queira outras, que ela sinta
como podemos fazer com o menor de outras, etc., é, no entanto, sempre a
todos os corpos; de sorte que suas mesma alma; ao passo que o corpo hu
naturezas não são somente reconhe mano não mais é o mesmo pelo sim
cidas como diversas, porém mesmo, de ples fato de se encontrar mudada a fi
alguma maneira, como contrárias. gura de alguma de suas partes. Donde
Ora, é preciso que saibam que eu não se segue que o corpo humano pode
me empenhei, neste tratado, em dizer facilmente perecer, mas que o espírito
nada mais, tanto porque isto basta ou a alma do homem (o que eu absolu-
para mostrar mui claramente que da tamente não distingo) é imortal por sua
corrupção do corpo não decorre a natureza.
morte da alma, e assim, dar aos ho Na terceira Meditação, parece-me
mens a esperança de uma segunda vida que expliquei bastante longamente o
após a morte;, como também porque as principal argumento de que me sirvo
premissas das quais é possível concluir para provar a existência de Deus.
a imortalidade da alma dependem da Todavia, a fim de que o espírito do lei
explicação de toda a Física3: primeira tor possa mais facilmente abstrair-se
mente, a fim de saber que, em geral, dos sentidos, não quis de modo algum
todas as substâncias, isto é, todas as servir-me nesse lugar de quaisquer
coisas que não podem existir sem comparações tiradas das coisas corpó-
serem criadas por Deus, são por sua reas, de tal modo que talvez tenham
natureza incorruptíveis e jamais restado muitas obscuridades, as quais,
podem cessar de ser, caso não sejam espero, serão inteiramente esclarecidas
reduzidas a nada por este mesmo Deus nas minhas respostas às objeções que
que lhes queira negar seu concurso me foram propostas depois. Como, por
ordinário. E, em seguida, a fim de que exemplo: é bastante difícil entender
se note que o corpo, tomado em geral, como a idéia de um ser soberanamente
é uma substância, razão ppla qual tam- perfeito, a qual se encontra em nós,
contém tanta realidade objetiva, isto é,
9 A fim de facilitar a publicação de sua Física é participa por representação em tantos
que Descartes pede o imprimatur da Sorbonne para
a sua Metafísica. Daí por que solicita a Mersenrie graus de ser e de perfeição, que ela
que mantenha o projeto em segredo: “Isto poderia deve necessariamente provir de uma
talvez impedir a aprovação da Sorbonne, que eu causa soberanamente perfeita. Mas eu
desejo, e que me parece poder servir extremamente a
meus intuitos: pois eu vos diria que este poucó^de o'esclarecí nestas respostas, pela com
Metafísica que vos envio contém todos os princípios paração com uma máquina muito arti
de minha Física”. (11 de novembro de 1640.) Em
outros termos: se aprovasse a Metafísica, a Sór- ficial cuja idéia se encontra no espírito
bonne desdizer-se-ia condenando a Física. de qualquer operário; pois, assim
MEDITAÇÕES 89
CONCERNENTES
À PRIMEIRA FILOSOFIA
NAS QUAIS A EXISTÊNCIA DE DEUS E A DISTINÇÃO REAL
ENTRE A ALMA E O CORPO DO HOMEM
SÃO DEMONSTRADAS
Primeira Meditaçao13
tamente falsa, certamente ao menos as quadrado nunca terá mais do que qua
cores com que eles a compõem devem tro lados; e não parece possível que
ser verdadeiras. verdades tão patentes possam ser sus
7. E pela mesma razão, ainda que peitas de alguma falsidade ou incerte
essas coisas gerais, a saber, olhos, za.
cabeça, mãos e outras semelhantes, 9. Todavia, há muito que tenho no
possam ser imaginárias, é preciso, meu espírito certa opinião1 8 de que há
todavia, confessar que há coisas ainda um Deus que tudo pode e por quem fui
mais simples e mais universais, que criado e produzido tal como sou. Ora,
são verdadeiras e existentes; de cuja quem me poderá assegurar que esse
mistura, nem mais nem menos do que Deus não tenha feito com que não haja
da mistura de algumas cores verdadei nenhuma terra, nenhum céu, nenhum
ras, são formadas todas essas imagens corpo extenso, nenhuma figura, nenhu
das coisas que residem em nosso ma grandeza, nenhum lugar e que, não
pensamento, quer verdadeiras e reais, obstante, eu tenha os sentimentos de
quer fictícias e fantásticas. Desse gêne todas essas coisas e que tudo isso não
ro de coisas é a natureza corpórea em me pareça existir de maneira diferente
geral, e sua extensão; juntamente com daquela que eu vejo? E, mesmo, como
a figura das coisas extensas, sua quan julgo que algumas vezes os outros se
tidade, ou grandeza, e seu número; enganam até nas coisas que eles acre
como também o lugar em que estão, o ditam saber com maior certeza, pode
tempo que mede sua duração e outras ocorrer que Deus tenha desejado que
coisas semelhantes1*7. eu me engane todas as vezes em que
8. Eis por que, talvez, daí nós não faço a adição de dois mais três, ou em
concluamos mal se dissermos que a Fí que enumero os lados de um quadrado,
sica, a Astronomia, a Medicina e todas ou em que julgo alguma coisa ainda
as outras ciências dependentes da mais fácil, se é que se pode imaginar
consideração das coisas compostas algo mais fácil do que isso. Mas pode
são muito duvidosas e incertas; mas ■ ser que Deus não tenha querido que eu
que a Aritmética, a Geometria e as ou seja decepcionado desta maneira, pois
tras ciências desta natureza, que não ele é considerado soberanamente bom.
tratam senão de coisas muito simples e Todavia, se repugnasse à sua bondade
muito gerais, sem cuidarem muito em fazer-me de tal modo que eu me enga
se elas existem ou não na natureza, nasse sempre, parecería também ser-
contêm alguma coisa de certo e indubi- lhe contrário permitir que eu me enga
tável. Pois, quer eu esteja acordado, ne algumas vezes e, no entanto, não
quer esteja dormindo, dois mais três posso duvidar de que ele mo permi
formarão sempre o número cinco e o ta1 9.
10. Haverá talvez aqui pessoas que
1 7 O segundo argumento encontra, pois, o seu limi preferirão negar a existência de um
te: ele não me permite pôr em dúvida os compo
nentes de minhas percepções, a saber, as “naturezas Deus tão poderoso a acreditar que
simples”, indecomponíveis (figura, quantidade, es
paço, tempo), que são o objeto da Matemática. Tais 1 8 Essa “opinião” é sustentàda pelos teólogos das
elementos “escapam, contrariamente aos objetos Segundas Objeções: Deus, dada sua onipotência,
sensíveis, a todas as razões naturais de duvidar”, pode nos enganar. Não é o parecer de Descartes: o
sublinha Guéroult, apoiando-se no texto da Quinta engano em Deus constituiría não só um sinal de
Meditação: “A natureza de meu espírito é tal que eu malignidade, mas de não-ser. (Col. com Burman.)
não me poderia impedir de julgá-las verdadeiras Isso redunda em afirmar o valor tão-somente meto
enquanto as concebo clara e distintamente”. Daí a dológico dessa suposição antinatural.
necessidade de recorrer ao terceiro argumento que 1 9 A consideração da bondade, por si só, não basta
abalará esta certeza “natural”. para invalidar a suposição. Cf. a nota precedente.
96 DESCARTES
todas as outras coisas são incertas. dosas de alguma maneira, como aca
Mas não lhes resistamos no momento e bamos de mostrar, e todavia muito
suponhamos, em favor delas, que tudo prováveis, de sorte que se tem muito
quanto aqui é dito de um Deus seja mais razão em acreditar nelas do que
uma fábula. Todavia, de qualquer em negá-las. Eis por que penso que me
maneira que suponham ter eu chegado utilizarei delas mais prudentemente se,
ao estado e ao ser que possuo, quer o tomando partido contrário, empregar
atribuam a algum destino ou fatali todos os meus cuidados em enganar-
dade, quer o refiram ao acaso, quer me a mim mesmo, fingindo que todos
queiram que isto ocorra por uma contí esses pensamentos são falsos e imagi
nua série e conexão das coisas, é certo nários; até que, tendo de tal modo
que, já que falhar e enganar-se é uma sopesado meus prejuízos, eles não pos
espécie de imperfeição, quanto menos sam inclinar minha opinião mais para
poderoso for o autor a que atribuírem um lado do que para o outro, e meu
minha origem tanto mais será provável juízo não mais seja doravante domi
que eu seja de tal modo imperfeito que nado por maus usos e desviado do reto
me engane sempre. Razões às quais caminho que pode conduzi-lo ao co
nada tenho a responder, mas sou obri nhecimento da verdade. Pois estou se
gado a confessar que, de todas as opi guro de que, apesar disso, não pode
niões que recebi outrora em minha haver perigo nem erro nesta via e de
crença como verdadeiras, não há ne que não poderia hoje aceder dema
nhuma da qual não possa duvidar siado à minha desconfiança, posto que
atualmente, não por alguma inconside- não se trata no momento de agir, mas
ração ou leviandade, mas por razões somente de meditar e de conhecer.
muito fortes e maduramente considera 12. Suporei, pois, que há não um
das: de sorte que é necessário que verdadeiro Deus, que é a soberana
interrompa e suspenda doravante meu fonte da verdade, mas certo gênio
juízo sobre tais pensamentos, e que maligno21, não menos ardiloso e enga
não mais lhes dê crédito, como faria nador do que poderoso, que empregou
com as coisas que me parecem eviden toda a sua indústria em enganar-me.
temente falsas, se desejo encontrar Pensarei que o céu, o ar, a terra, as
algo de constante e de seguro nas cores, as figuras, os sons e todas as
ciências20. coisas exteriores que vemos são apenas
11. Mas não basta ter feito tais ilusões e enganos de que ele se serve
considerações, é preciso ainda que para surpreender minha credulidade.
cuide de lembrar-me delas; pois essas Considerar-me-ei a mim mesmo abso
antigas e ordinárias opiniões ainda me lutamente desprovido de mãos, de
voltam amiúde ao pensamento, dan olhos, de carne, de sangue, desprovido
do-lhes a longa e familiar convivência de quaisquer sentidos, mas dotado da
que tiveram comigo o direito de ocu falsa crença de ter todas essas coisas.
par meu espírito mau grado meu e de Permanecerei obstinadamente apegado
tornarem-se quase que senhoras de a esse pensamento; e se, por esse meio,
minha crença. E jamais perderei o cos
tume de aquiescer a isso e de confiar 21 A função do Deus enganador e do Gênio Malig
nelas, enquanto as considerar como no é a mesma: porém o Gênio Maligno é um artifí
cio psicológico que, impressionando mais a minha
são efetivamente, ou seja, como duvi-. imaginação, levar-me-á a tomar a dúvida mais a
sério e a inscrevê-la melhor em minha memória (“é
20 A dúvida é agora universalizada. preciso ainda que cuide de lembrar-me dela”).
MEDITAÇÕES 97
1. A Meditação que fiz ontem en-| vel, até que tenha aprendido certa
cheu-me o espírito de tantas dúvidas,j mente que não há nada no mundo de
que doravante não está mais em meu certo.
alcance esquecê-las. E, no entanto, não 2. Arquimedes, para tirar o globo
vejo de que maneira poderia resolvê- terrestre de seu lugar e transportá-lo
las; e, como se de súbito tivesse caído para outra parte, não pedia nada mais
em águas muito profundas, estou de tal exceto um ponto que fosse fixo e segu
modo surpreso que não posso nem fir ro. Assim, terei o direito de conceber
mar meus pés no fundo, nem nadar altas esperanças, se for bastante feliz
para me manter à tona. Esforçar-me-ei, para encontrar somente uma coisa que
não obstante, e seguirei novamente a sej a certa e indubitável2 4.
mesma via que trilhei ontem, afastan 3. Suponho, portanto, que todas as
do-me de tudo em que poderia imagi coisas que vejo são falsas; persuado-
nar a menor dúvida, da mesma manei me de que jamais existiu de tudo quan
ra como se eu soubesse que istd fosse to minha memória referta de mentiras
absolutamente falso; e continuarei me representa; penso não possuir ne
sempre nesse caminho até que tenha nhum sentido; creio que o corpo, a
encontrado algo de certo, ou, pelo figura, a extensão, o movimento e o
menos, se outra coisa não me for possí- lugar são apenas ficções de meu espíri
to. O que poderá, pois, ser considerado
23 Plano da Meditação:
A) §§1-9: da natureza do espírito huma verdadeiro? Talvez nenhuma outra
no...: coisa a não ser que nada há no mundo
§§ 1-4: conquista da primeira certeza: de certo.
(§§1-3): procura de uma primeira 4. Mas que sei eu, se não há nenhu
certeza;
(§4): “Eu sou, eu existo”; ma outra coisa diferente das que acabo
§ §5-9: reflexão sobre esta primeira certe de julgar incertas, da qual não se possa
za e conquista da segunda: ter a menor dúvida? Não haverá algum
(§ § 5-8): quem sou eu, eu que
estou certo que sou? Uma coisa Deus, ou alguma outra potência, que
pensante. Determinação da essên me .ponha no espírito tais pensamen
cia do Eu; tos? Isso não é necessário; pois talvez
(§9): descrição da “coisa pensante”
e distinção entre o pensamento seja eu capaz de produzi-los por mim
(atributo principal desta substân mesmo. Eu então, pelo menos, não
cia) e suas outras faculdades; serei alguma coisa? Mas já neguei que
B) §§10-18: . . .e de como ele é mais fácil de i
conhecer do que o corpo: i
Contraprova da segunda certeza (o pe 2 4 A primeira certeza adquirida não será, pois, a
daço de cera) e conquista da terceira mais alta; deve apenas inaugurar a cadeia das
certeza. razões.
100 DESCARTES
lhantes sutilezas29. Mas, antes, deter- qual seja tocado e do qual receba a
me-ei em considerar aqui os pensa impressão. Pòis não acreditava de
mentos que anteriormente nasciam por | modo algum que se devesse atribuir à
si mesmos em meu espírito e que eram natureza corpórea vantagens como ter
inspirados apenas por minha natureza, . de si o poder de mover-se, de sentir e
quando me aplicava à consideração de de pensar; ao contrário, espantava-me
meu ser. Considetava-me, inicial antes ao ver que semelhantes faculda
mente, como provido de rosto, mãos, des se encontravam em certos cor
braços e toda essa máquina composta pos3 1
de ossos e carne, tal como ela aparece 7. Mas eu, o que sou eu, agora que
em um cadáver, a qual eu designava suponho3 2 que há alguém que é extre-
pelo nome de corpo. Considerava, l mamente poderoso e, se ouso dizê-lò,
além disso, que me alimentava, que I malicioso e ardiloso, que emprega
caminhava, que sentia e que pensava e ' todas as suas forças e toda a sua indús
relacionava todas essas ações à tria em enganar-me? Posso estar certo
alma30* ; mas não me detinha em pen de possuir a menor de todas as coisas
sar em que consistia essa alma, ou, se que atribuí há pouco à natureza corpó
o fazia, imaginava que era algo extre
mamente raro e sutil, como um vento, rea? Detenho-me em pensar nisto com
uma flama ou um ar muito tênue, que atenção, passo e repasso todas essas
estava insinuado e disseminado nas coisas em meu espírito, e não encontro
minhas partes mais grosseiras. No que nenhuma que possa dizer que exista
se referia ao corpo, não duvidava de em mim. Não é necessário que me de
maneira alguma de sua natureza; pois more a enumerá-las. Passemos, pois,
pensava conhecê-la mui dístintamente aos atributos da alma e vejamos se há
e, se quisesse explicá-la segundo as alguns que existam em mim. Os pri
noções que dela tinha, tê-la-ia descrito meiros são alimentar-me e caminhar;
desta maneira: por corpo entendo tudo mas, se é verdade que não possuo
o que pode ser limitado por alguma corpo algum, é verdade também que
figura; que pode ser compreendido em não posso nem caminhar nem alimen
qualquer lugar e preencher um espaço tar-me. Um outro é sentir; mas não se
de tal sorte que todo outro corpo dele pode também sentir sem o corpo; além
seja excluído; que pode ser sentido ou do que, pensei sentir outrora muitas
pelo tato, ou pela visão, ou pela audi coisas, durante o sono, as quais reco
ção, ou pelo olfato; que pode ser movi nhecí, ao despertar, não ter sentido
do de muitas maneiras, não- por .si efetivamente. Um outro é pensar; e
mesmo, mas por algo de alheio pelo verifico aqui que o pensamento é um
29 Sobre este método de determinação do pro
atributo que me pertence; só ele não
blema por segregação, cf. o diálogo: Recherche de
la Vérité (Pléiade, págs. 892-94). Ao interlocutor 31 Este conhecimento “natural” que eu tenho de
aturdido que acaba de responder: “Diria, portanto, mim mesmo antes da prova da dúvida será inteira-
que sou um homem”, o cartesiano replica: "Não i mente falso? Não. Se a alma é concebida à maneira
prestais atenção ao que perguntei e a resposta que dos escolásticos, em troca a distinção entre o corpo
apresentais, embora vos pareça simples, lançar- e o espírito (indispensável à Física) está aí presente,
vos-ia em questões muito árduas e muito embaraço mas a título de opinião provável, sem fundamento.
sas, se eu quisesse apertá-las por menos que seja. . . Cf. Respostas, 204.
Não entendestes bem a minha pergunta e respondeis 32 Mudança de plano. Do pensamento inspirado
a mais coisas do que vos perguntei. . . Dizei-me, por “minha natureza” passamos à só idéia de mim
pois, o que sois propriamente, na medida em que mesmo compatível com a instauração da dúvida, da
duvidais”. indeterminação psicológica à determinação metafí
3 0 Cf. Respostas, 508. sica.
102 DESCARTES
e desviar o espírito dessa maneira de de mim mesmo? Pois é por si tão evi
conceber a fim de que ele próprio dente que sou eu quem duvida, quem
possa reconhecer muito distintamente entende e quem desej a que não é neces
sua natureza3*7. sário nada acrescentar aqui para expli
9. Mas o que sou eu, portanto? cá-lo. E tenho também certamente o
Uma coisa que pensa. Que é uma coisa poder de imaginar; pois, ainda que
que pensa? É uma coisa que duvida, : possa ocorrer (como supus anterior
que concebe, que afirma, que nega, que mente) que as coisas que imagino não
quer, que não quer, que imagina tam sejam verdadeiras, este poder de imagi-
bém e que sente38. Certamente não é ; nar não deixa, no entanto, de existir
pouco se todas essas coisas pertencem ' realmente em mim e faz parte do meu
à minha natureza. Mas por que não lhe pensamento. Enfim, sou o mesmo que
pertenceríam? Não sou eu próprio esse sente, isto é, que recebe e conhece as
mesmo que duvida de quase tudo, que, coisas como que pelos órgãos dos sen
no entanto, entende e concebe certas tidos, po*sto que, com efeito, vejo a luz,
coisas, que assegura e afirma que ouço o ruído, sinto o calor. Mas dir-
somente tais coisas são verdadeiras, í me-ão que essas aparências são falsas
que nega todas as demais, que quer e e que eu durmo. Que assim seja; toda
deseja conhecê-las mais, que não quer via,, ao menos, é muito certo que me
ser enganado, que imagina muitas coi parece que vejo, que ouço e que me
sas, mesmo mau grado seu, e que sente aqueço; e é propriamente aquilo que
também muitas como que por inter em mim se chama sentir e isto, tomado
médio dos órgãos do corpo? Haverá ; assim precisamente, nada é senão pen-
algo em tudo isso que não seja tão ver • sar. Donde, começo a conhecer o que
dadeiro quanto é certo que sou e que l sou, com um pouco mais de luz e de
existo, mesmo se dormisse sempre e distinção do que anteriormente39.
ainda quando aquele que me deu a 10. Mas não me posso impedir de
existência se servisse de todas as suas crer que as coisas corpóreas40, cujas
forças para enganar-me? Haverá, tam imagens se formam pelo meu pensa-
bém, algum desses atributos que possa | mento, e que se apresentam aos senti-
ser distinguido de meu pensamento, ou t
'dos, sejam mais distintamente conheci
que se possa dizer que existe separado das do que essa não sei que parte de
mim mesmo que não se apresenta à
3 7 Em virtude desse princípio, não me é dado abso
lutamente o direito de recorrer à imaginação, pois imaginação: embora, com efeito, seja
“tudo quanto posso compreender por seu meio” foi • uma coisa bastante estranha que coisas
excluído pela dúvida. Por aí eu sbi, ao mesmo • que considero duvidosas e distantes
tempo, que minha natureza é .puro pensamento
exclusivo de todo elemento corporal. E a segunda sejam mais claras e mais facilmente
verdade, a qual não se deve confundir com a distin conhecidas por mim do que aquelas
ção real entre a alma e o corpo, estabelecida somen
te na Meditação Sexta. Cf. 510.
3 8 Cumpre observar a diferença relativamente ' à 39 A saber, um pensamento: a) distinto dos corpos,
definição do § 7: “Isto é, um espírito, um entendi se os houver; b) distinto das faculdades não propria-
mento ou uma razão”. Aí determinava-se a essência . mente intelectuais, como a imaginação, que só me
da substância “coisa pensante”; aqui ela é descrita ■ pertencem porque implicam este pensamento puro.
revestida de seus diferentes modos. Desse novo 40 Novo assalto do pensamento imaginativo ine
ponto de vista, reintegra-se na “coisa pensante” o rente à “minha natureza” e do qual não posso ainda
que fora excluído de sua essência. Todos esses me desprender: estou convencido, mas não persua-
modos (imaginar, sentir, querer), embora não per , dido. Daí a necessidade de uma contraprova que
tençam à minha natureza, não podem ser postos em servirá para estabelecer a terceira verdade. Como
dúvida, na medida em que se beneficiam da certeza ! todas as figuras de retórica das Meditações, esta
do Cogito. integra-se na ordem.
104 DESCARTES
que são verdadeiras e certas e que per todas as coisas que se apresentavam ao
tencem à minha própria natureza. Mas paladar, ao olfato, ou à visão, ou ao
vejo bem o que seja: meu espírito tato, ou à audição, encontram-se mu
apraz-se em extraviar-se e não pode dadas e, no entanto, a mesma cera per
ainda conter-se nos justos limites da manece. Talvez fosse como penso
verdade. Soltemos-lhe, pois, ainda uma atualmente, a saber, que a cera não era
vez, as rédeas a fim de que, vindo, em nem essa doçura do mel, nem esse
seguida, a libertar-se delas suave e agradável odor das flores, nem essa
oportunamente, possamos mais facil brancura, nem essa figura, nem esse
mente dominá-lo e conduzi-lo 41. som, mas somente um corpo que um
11. Comecemos pela consideração pouco antes me aparecia sob certas
das coisas mais comuns e que acredi formas e que agora se faz notar sob
tamos compreender mais distinta outras. Mas o que será, falando preci
mente, a saber, os corpos que tocamos samente, que eu imagino quando a
e que vemos. Não pretendo falar dos concebo dessa maneira? Considere-
corpos em geral, pois essas noções ge mo-lo atentamente e, afastando todas
rais são ordinariamente mais confusas, as coisas que não pertencem à cera,
porém de qualquer corpo em particu vejamos o que resta. Certamente nada
lar. Tomemos, por exemplo, este peda permanece senão algo de extenso, flexí
ço de cera que acaba de ser tirado da vel e mutável. Ora, o que é isto: flexí
colmeia: ele não perdeu ainda a doçura vel e mutável? Não estou imaginando
do mel que continha, retém ainda algo que esta cera, sendo redonda, é capaz
do odor das flores de que foi recolhido; de se tomar quadrada e de passar do
sua cor, sua figura, sua grandeza, são quadrado a uma figura triangular?
patentes; é duro, é frio, tocamo-lo e, se Certamente não, não é isso, posto que
nele batermos, produzirá algum som. a concebo capaz de receber uma infini
Enfim, todas as coisas que podem dade de modificações similares e eu
distintamente fazer conhecer um corpo não poderia, no entanto, percorrer essa
encontram-se neste. infinidade com minha imaginação e,
12. Mas eis que, enquanto falo, é por conseguinte, essa concepção que
aproximado do fogo: o que nele resta tenho da cera não se realiza através da
va de sabor exala-se, o odor se esvai, minha faculdade de imaginar 42.
sua cor se modifica, sua figura se alte 13. E, agora, que é essa extensão?
ra, sua grandeza aumenta, ele toma-se Não será ela igualmente desconhecida,
líquido, esquenta-se, mal o podemos já que na cera que se funde ela aumen
tocar e, embora nele batamos, nenhum ta e fica ainda maior quando está intei
som produzirá. A mesma cera perma ramente fundida e muito mais ainda
nece após essa modificação? Cumpre quando o calor aumenta? E eu não
concebería claramente e segundo a ver
confessar que permanece: e ninguém o dade o que é a cera, se não pensasse
pode negar. O que é, pois, que se que é capaz de receber mais variedades
conhecia deste pedaço de cera com
tanta distinção? Certamente não pode 42 Raciocínio em duas partes: l.° o que me permite
ser nada de tudo o que notei nela por reconhecer a mesma cera é sua identidade na medi
intermédio dos sentidos, posto que da em que a cera é coisa extensa; 2.° mas este con
teúdo só pode ser idéia e não imagem da extensão
que o corpo ocupa atualmente ou daquelas (em nú
41 Em outros termos: façamos de conta que inter mero finito) que poderia ocupar em seguida. Cf.
rompemos a ordem a fim de seguir o senso comum Quintas Respostas: “As faculdades de entender e de
em seu próprio- terreno. Sobre o fato de ser esta imaginar diferem não só segundo o mais e o menos,
transgressão apenas aparente, cf. o importantíssimo porém como duas maneiras de agir totalmente
§ 515 das Respostas. diferentes”. '
MEDITAÇÕES 105
segundo a extensão do que jamais ima Ia, senão chapéus e casacos que podem
ginei. Ê preciso, pois, que eu concorde cobrir espectros ou homens fictícios
que não poderia mesmo conceber pela que se movem apenas por molas? Mas
imaginação o que é essa cera e que julgo que são homens verdadeiros e
somente meu entendimento é quem o assim compreendo, somente pelo poder
concebe43; digo este pedaço de cera de julgar que reside em meu espírito,
em particular, pois para a cera em ; aquilo que acreditava ver com meus
geral é ainda mais evidente. Ora, qual olhos.
é esta cera que não pode ser concebida 15. Um homem que procura elevar
senão pelo entendimento ou pelo espí seu conhecimento para além do
rito? Certamente é a mesma que vejo, ‘ comum deve envergonhar-se de apro
que toco, que imagino e a mesma que veitar ocasiões para duvidar das for
conhecia desde o começo. Mas o que é mas e dos termos do falar do vulgo;
de notar é que sua percepção, ou a prefiro passar adiante e considerar se
ação pela qual é percebida, não é uma. eu concebia com maior evidência e
visão, nem um tatear, nem uma imagi perfeição o que era a cera, quando a
nação, e jamais o foi, embora assim o I percebi inicialmente e acreditei conhe-
parecesse anteriormente, mas somente ! cê-la por meio dos sentidos exteriores,
uma inspeção do espírito, que pode ser í ou ao menos por meio' do senso
imperfeita e confusa, como era antes, ■ comum, como o chamam, isto é, por
©u clara e distinta, como é presente meio do poder imaginativo, do que a
mente, conforme minha atenção se di concebo presentemente, após haver
rija mais ou menos às coisas que exis examinado mais exatamente o que ela
tem nela e das quais é composta. ; é e de que maneira pode ser conhecida,
14. Entretanto, eu não poderia. es j Por certo, seria ridículo colocar isso
pantar-me demasiado ao considerar o ■ em dúvida. Pois, que havia nessa pri-
quanto meu espírito tem de fraqueza e : meira percepção que fosse distinto1 e
de pendor que o leva insensivelmente evidente e que não pudesse cair da
ao erro. Pois, ainda que sem falar eu mesma maneira sob os sentidos do
considere tudo isso em mim mesmo, as | menor dos animais? Mas quando dis-
palavras detêm-me; todavia, e sou ' tingo a cera de suas formas exteriores
quase enganado pelos termos da lin e, como se a tivesse despido de suas
guagem comum; pois nós dizemos que vestimentas, considero-a inteiramente
vemos a mesma cera, se no-la apresen nua44, é certo que, embora se possa
tam, e não que julgamos que é a ainda encontrar algum erro em meu
mesma, pelo fato de ter a mesma cor e ; juízo, não a posso conceber dessa
a mesma figura: donde desejaria quase forma sem um espírito humano 4 5.
concluir que se conhece a cera pela
visão dos olhos e não pela tão-só ins 44 C£ 513, onde Descartes se defende de ter pre-
peção do espírito, se por acaso não t tendido “abstrair o conceito da cera.de seus aciden-
olhasse pela janela homens que pas í tes”. “Os acidentes são contingentes em relação à
sam pela rua, à vista dos quais não i substância, mas não a acidentalidade”, especifica
' Guéroult. (Descartes, I, pág. 56.)
deixo de dizer que vejo homens da 45 Tal é o sentido exato do “pedaço de cera”: eu
mesma maneira que digo que vejo a nada posso conhecer através da percepção ou da
cera; e, entretanto, que vejo desta jane- imaginação sem compreender (ou reconhecer), atra
vés do. pensamento, a essência da coisa. Tenho ou
não razão de reconhecer esta essência? Não sei
43 Por onde fica provado não só que a imaginação ainda. Pois não se trata aqui de saber se eu dispo-
não pode me dar a conhecer a natureza dos corpos nho efetivamente do conhecimento da essência do
que se lhe apresentam (o que era o objetivo da corpo, mas de saber em quais condições posso estar
contraprova), mas ainda que o pensamento puro é o seguro de possuir a idéia clara e distinta deste
único capaz de fazê-lo. i corpo. Cf. Guéroult, op. cit., págs. 144-45.
106 DESCARTES
16; Mas, enfim, que direi desse espí nitidez não deverei eu conhecer-me 4 7,
rito, isto é, de mim mesmo 4*6 ? Pois até posto que todas as razões que servem
aqui não admiti em mim nada além de para conhecer e conceber a natureza
um espírito. Que declararei, digo, de da cera, ou qualquer outro corpo, pro
mim, que pareço conceber com tanta vam muito mais fácil e evidentemente
nitidez e distinção este pedaço de cera? a natureza de meu espírito? E encon
Não me conheço a mim mesmo não só tram-se ainda tantas outras coisas no
com muito mais verdade e certeza, mas próprio espírito que podem contribuir
também com muito maior distinção e ao esclarecimento de sua natureza, que
nitidez? Pois, se julgo que a cera é ou aquelas que dependem do corpo (como
existe pelo fato de eu a ver, sem dúvida esta) não merecem quase ser enumera
segue-se bem mais evidentemente que das.
eu próprio sou, ou que existo pelo fato 18. Mas, enfim,.eis que insensivel
de eu a ver. Pois pode acontecer que mente cheguei aonde queria; pois, já
aquilo que eu vejo não seja, de fato, que é coisa presentemente conhecida
cera; pode também dar-se que eu. não
tenha olhos para ver coisa alguma; por mim que, propriamente falando, só
mas não pode ocorrer, quando vejo ou concebemos os corpos pela faculdade
(coisa que não mais distingo) quando de entender em nós existente e não pela
penso ver, que eu, que penso, não seja imaginação nem pelos sentidos, e que
alguma coisa. Do mesmo modo, se não os conhecemos pelo fato de os ver
julgo que a cera existe, pelo fato de que ou de tocá-los, mas somente por os
a toco, seguir-se-á ainda a mesma conceber pelo pensamento, reconheço
coisa, ou seja, que eu sou; e se o julgo com evidência que nada há que me seja
porque minha imaginação disso me mais fácil de conhecer do que meu
persuade, ou por qualquer outra causa espírito. Mas, posto que é quase
que seja, concluirei sempre a mesma impossível desfazer-se tão prontamente
coisa. E o que notei aqui a respeito da de uma antiga opinião, será bom que
cera pode aplicar-se a todas as outras eu me detenha um pouco neste ponto, ,a
coisas que me são exteriores e que se fim de que, pela amplitude de minha
encontram fora de mim. • meditação, eu imprima mais profunda
17. Ora, se a noção ou conheci mente em minha memória este novo
mento da cera parece ser mais nítido e conhecimento.
mais distinto após ter sido descoberto
não somente pela visão ou pelo tato, 47 É a terceira verdade: o espírito é mais fácil de
mas ainda por muitas outras causas, conhecer do que o corpo. Com efeito, obtenho
imediatamente o conhecimento da existência e da
com quão maior evidência, distinção e 'natureza de meu espírito, ao passo que o meu pensa
mento me proporciona apenas a idéia clara e dis
4 6 Passamos, com este parágrafo, à confirmação tinta dos corpos cuja existência ainda é problemá
da segunda verdade: quando percebo o pedaço de tica. Guéroult comenta: “Quando Descartes declara
cera, seja compreendendo clara e distintamente sua que o conhecimento da alma é o mais fácil dos
natureza, seja apenas imaginando-o ou tocando-o, conhecimentos, quer dizer que é a mais fácil das
só uma coisa é certa, no ponto em que me encontro. verdades científicas e o primeiro dos conhecimentos
Ê que eu penso percebê-lo-. . . Mostrando que este na ordem da ciência. Não quer dizer que a ciência é
“pensamento” era indispensável ao conhecimento mais fácil do que o conhecimento vulgar. A passa
da coisa, a análise precedente deu confirmação a gem do senso comum à ciência é, com efeito, a mais
esta verdade. difícil das ascensões”. (Op. cit., pág. 128.)
Meditação Terceira48
De Deus; qüe Ele Existe
1. Fecharei agora os olhos, tampa que pensa, isto é, que duvida, que afir
rei meus ouvidos, desviar-me-ei de ma, que nega, que conhece poucas coi
todos os meus sentidos, apagarei sas, que ignora muitas, que ama, que
mesmo de meu pensamento todas as i odeia, que quer e não quer, que tam-
imagens de coisas corporais, ou, ao i bém imagina e que sente. Pois, assim
menos, uma vez que mal se pode fazê- j como notei acima, conquanto as coisas
lo, reputá-las-ei como vãs e como fal | que sinto e imagino não sejam talvez
sas; e assim, entretendo-me apenas co ’ absolutamente nada fora de mim e
migo mesmo e considerando meu nelas mesmas, estou, entretanto, certo
interior, empreenderei tomar-me de que essas maneiras de pensar, que
pouco a pouco mais conhecido e mais
familiar a mim mesmo. Sou uma coisa chamo sentimentos e imaginações so
mente na medida em que são maneiras
48 Plano da Meditação: i de pensar, residem e se encontram cer-
§§ 1-4: recapitulação; i tamente em mim. E neste pouco que
§5: a questão de Deus;
§§6-9: discriminação dos dados do pro ■ acabo de dizer creio ter relatado tudo o
blema. que sei verdadeiramente, ou, pelo
A) §§10-14: primeiro caminho para o exame menos, tudo o que até aqui notei que
do valor objetivo das idéias: o senso comum.
B) §§15-29: segundo caminho: sabia.
(§§16-17): princípios de causali- J
dade e correspondência; 2. Agora considerarei mais exata
(§18): colocação do problema: em mente se talvez não se encontrem abso-
quais condições reconhecería eu o •lutamente em mim outros conheci
valor objetivo de uma idéia?
(§§19-21): exame das diferentes mentos que não tenha ainda percebido.
espécies de idéia sob este novo Estou certo de que sou uma coisa pen
prisma; sante; mas não saberei também, por
(§22): a idéia de Deus reconhecida ]
como dotada de valor objetivo = tanto, o que é requerido para me tomar
primeira prova; certo de alguma coisa? Nesse primeiro
(§§23-28): reflexões sobre esta
prova. conhecimento só se encontra uma
C) §§29-42: segunda prova: clara e distinta percepção daquilo que
(§§29-30): necessidade de outra conheço; a qual, na verdade, não seria
prova;
(§§31-32): primeiro momento, pri suficiente para me assegurar de que é
meira hipótese: eu existo por mim verdadeira se em algum momento
mesmo como por uma causa; pudesse acontecer qud uma coisa que
(§§33-34): primeiro momento, se
gunda hipótese: eu existo sem eu concebesse tão clara e distintamente
causa; ; se verificasse falsa. E, portanto, pare
(§35): segundo momento;
(§§36-37): reflexões subsidiárias. ce-me que já posso estabelecer como
§§38-42: reflexão sobre o conjunto. : regra geral que todas as coisas que
108 DESCARTES
luz natural que deve haver ao menos zido em um objeto que dele era priva
tanta realidade na causa eficiente e do anteriormente se não for por uma
total quanto no seu efeito: pois de onde coisa que seja de uma ordem, de um
é que o efeito pode tirar sua realidade grau ou de um gênero ao menos tão
senão de sua causa? E como poderia perfeito quanto o calor, e assim os
esta causa lha comunicar se não a outros. Mas ainda, além disso, a idéia
tivesse em si mesma 6 4 ? do calor, ou da pedra, não pode estar
17. Daí decorre 6 5 não somente que em mim se não tiver sido aí colocada
o nada não poderia produzir coisa por alguma causa que contenha em si
alguma, mas também que o que é mais ao menos tanta realidade quanto aque
perfeito, isto é, o que contém em si la que concebo no calor ou na pedra.
mais realidade, não pode ser uma Pois,, ainda que essa causa não trans
decorrência e uma dependência do mita à minha idéia nada de sua reali
menos perfeito. E esta verdade não é dade atual ou formal, nem por isso se
somente clara e evidente nos seus efei deve imaginar que essa causa deva ser
tos, que possuem essa realidade que os menos real; mas deve-se saber que,
filósofos chamam de atual ou formal, sendo toda idéia uma obra do espírito,
mas também nas idéias onde se consi sua natureza é tal que não exige de si
dera somente a realidade que eles cha nenhuma outra realidade formal além
mam de objetiva: por exemplo, a pedra da que recebe e toma de empréstimo
que ainda não foi, não somente não do pensamento ou do espírito, do qual
pode agora começar a ser, se não for ela é apenas um modo, isto é, uma
produzida por uma coisa que possui maneira ou forma de pensar. Ora, a
em si formalmente, ou eminentemen fim de que uma idéia contenha uma tal
te6 6, tudo o que entra na composição realidade objetiva de preferência a
da pedra, ou seja, que contém em si as outra, ela o deve, sem dúvida, a algu
mesmas coisas ou outras mais excelen ma causa, na qual se encontra ao
tes do que aquelas que se encontram menos tanta realidade formal quanto
na pedra; e o calor não pode ser produ esta idéia contém de realidade objeti
va6 7. Pois, se supomos que existe algo
6 4 Primeiro princípio invocado como “manifesto
pela luz natural”: princípio de causalidade (cf. 211 e
G 20, 21). Mas será este princípio, enunciado geral 67 Do ponto de vista de sua realidade formal, as
mente, aplicável ao caso das idéias que nos preocu idéias são simplesmente conteúdos do pensamento;
pam? Daí a necessidade de completá-lo com o prin mas, do ponto de vista de sua realidade objetiva,
cípio expresso no parágrafo seguinte, que Guéroult “aquela não há de satisfazer quem disser (somente)
denomina: “princípio de correspondência da idéia e que o próprio entendimento é a causa delas”. (Pri-
de seuideatum”. ■ meiras Respostas.) Trata-se de uma inovação de
6 5 Nesse parágrafo difícil, mostra-se que o princí Descartes. Para a Filosofia tomista, “não havia pro
pio de causalidade vale tanto no caso de uma “reali blema especial da causa do conteúdo das idéias. . .
dade atual ou formal” quanto no caso de uma “rea porque este conteúdo, não sendo considerado como
lidade objetiva”. Traduzamos. Seja uma substância do ser, não requeria nenhuma causa própria. . .
existente em ato: uma pedra, um homem. É evidente Nessas condições, o ser formal de meu conceito re
que há na causa que a prodifziu pelo menos tanta quer uma causa (o intelecto que apreende- a forma
realidade quanto nesta substância mesma. Seja da pedra), mas o ser objetivo de meu conceito não a
agora a idéia que eu tenho desta substância (isto é, requer”. (Gilson, Discours, 322.) Com Descartes,
uma “realidade objetiva” e não mais uma “reali ao contrário, coloca-se uma questão que para a
dade atual ou formal”). É igualmente evidente que Escolástica não tinha sentido: posso fiar-me na
há no ser existente (“atual ou formalmente”) que. é idéia para afirmar o que se me aparece através dela?
causa desta idéia (ou desta “realidade objetiva”) “Como é que o sendo para nós é o próprio sendo?",
pelo menos tanta realidade quanto nesta idéia traduz Guéroult, ao fim de seu livro. (Op. cit., II,
mesma. 305.) Através dos termos da ontologia medieval, é a
6 8 Uma causa contém “formalmente” seu efeito ontologia do que se convencionou chamar “o idea
quando ela lhe é homogênea, e o contém “eminente lismo moderno”., de Fichte a Husserl que aqui se
mente”, no caso contrário. Cf. G 4. desenha.
MEDITAÇÕES 113
na idéia que não se encontra em sua tiradas, mas que jamais podem conter
causa, cumpre, portanto, que ela obte algo de maior ou de mais perfeito 7°.
nha esse algo do nada; mas, por imper
feita que seja essa maneira de ser pela 18. E quanto mais longa e cuidado
qual uma coisa é objetivamente ou por samente examino todas estas coisas,
representação no entendimento por sua tanto mais clara e distintamente reco
idéia68, decerto não se pode dizer, nó nheço que elas são verdadeiras. Mas,
entanto, que essa maneira ou essa enfim, que concluirei de tudo isso?
forma não seja nada, nem por conse Concluirei que, se a realidade objetiva
guinte que essa idéia tire sua origem do de alguma de minhas idéias é tal que
nada. Não devo também duvidar que eu reconheça claramente que ela não
seja necessário que a realidade esteja está em mim nem formal nem eminen
formalmente nas causas de minhas temente e que, por conseguinte, não
idéias, embora a realidade que eu con posso, eu mesmo, ser-lhe a causa, daí
sidero nessas idéias seja somente obje decorre necessariamente que não exis
tiva, nem pensar que basta que essa to sozinho no mundo, mas que há
realidade se encontre objetivamente em ainda algo que existe e que é a causa
suas causas69; pois, assim como essa desta idéia; ao passo que, se não se
maneira de ser objetivamente pertence encontrar em mim uma tal idéia, não
às idéias, pela própria natureza delas,! terei nenhum argumento que me possa
do mesmo modo a maneira ou forma convencer e me certificar da existência
de ser formalmente pertence às causas de qualquer outra coisa além de mim
dessas idéias (ao menos às primeiras e mesmo; pois procurei-os a todos cui
principais) pela própria natureza delas. dadosamente e não pude, até agora,
E ainda que possa ocorrer que uma encontrar nenhum 71.
idéia dê origem a uma outra idéia, isso;
todavia não pode estender-se ao infini 19. Ora, entre essas idéias, além
to, mas é preciso chegar ao fim a uma daquela que me representa a mim
primeira idéia, cuja causa seja um mesmo, sobre a qual não pode haver
como padrão ou original, na qual toda aqui nenhuma dificuldade, há uma
a realidade ou perfeição esteja contida outra que me representa um Deus, ou
formalmente e em efeito, a qual só se tras as coisas corporais e inanimadas,
encontre objetivamente ou por repre outras os anjos, outras os animais,
sentação nessas idéias. De sorte que a outras, enfim, que me representam ho
luz natural me faz conhecer evidente mens semelhantes a mim. Mas, no que
mente que as idéias são em mim como se refere às idéias que me representam
quadros, ou imagens, que podem na outros homens ou animais, ou anjos,
verdade facilmente não conservar a
perfeição das coisas de onde foram 70 Conhecido pela luz natural, este princípio,
como o anterior, faz parte dessas noções primitivas
que escapam ao domínio do Grande Embusteiro.
68 Hâ imperfeição na medida em que o conteúdo Isso não significa que as idéias sejam efetivamente
representativo é privado da existência própria aó as imagens das coisas, porém me permite apenas
objeto que representa. Cf. Primeiras Respostas: “A aplicar o princípio de causalidade entre uma reali
maneira de ser pela qual uma coisa existe objetiva dade objetiva e uma realidade atual.
mente ou por representação no entendimento por 71 Recapitulação da exposição precedente (desde o
sua idéia é imperfeita”. § 15) e posição do problema: encontrarei eu uma
69 Outra objeção possível: a idéia não terá como idéia cuja realidade objetiva seja tal que me seja
causa outra idéia e assim sucessivamente ao infini absolutamente impossível imputar a sua causa a
to? Resposta: esta regressão é possível, mas, cedo meu exclusivo pensamento? Estapositio quaestionis
ou tarde, chega-se a uma causa que possui uma reali exige, pois, uma nova enumeração e classificação
dade “formal ou atual”. dos diversos gêneros de idéias.
114 DESCARTES
concebo facilmente que podem ser for falsidade material74, a saber, quando
madas pela mistura e composição de elas representam o que nada é como se
outras idéias que tenho das coisas cor fosse alguma coisa. Por exemplo, i as
porais e de Deus, ainda que não hou idéias que tenho do calor e do frio são
tão pouco claras e tão pouco distintas,
vesse, fora de mim, no mundo, outros qué por seu intermédio não posso dis
homens, nem quaisquer animais ou cernir se o frio é somente uma priva
anjos72. E quanto às idéias das coisas ção do calor ou o calor uma privação
corporais, nada reconheço de tão gran do frio, ou ainda se uma e outra são
de nem de tão excelente que não me qualidades reais ou não o são; e visto
pareça poder provir de mim mesmo; que, sendo as idéias como que ima
pois, se as considero de mais perto, e gens, não pode haver nenhuma que não
se as examino da mesma maneira nos pareça representar alguma coisa,
como examinava, há pouco, a idéia da se é certo dizer que o frio nada é senão
cera, verifico que pouquíssima coisa privação do calor, a idéia que mo
nela se encontra que eu conceba clara representa como algo de real e de posi
e distintamente: a saber, a grandeza ou tivo será sem despropósito chamada
a extensão em longura, largura e falsa, e assim outras idéias semelhan
tes; às quais certamente não é neces
profundidade; a figura que é formada sário que eu atribua outro autor exceto
pelos termos e pelos limites dessa eu mesmo. Pois, se elas são falsas, isto
extensão; a situação que os corpos é, se representam coisas que não exis
diferentemente figurados guardam tem, a luz natural me faz conhecer que
entre si; e o movimento ou a modifica procedem do nada, ou seja, que estão
ção dessa situação; aos quais podemos em mim apenas porque falta algo à
acrescentar a substância, a duração e o minha natureza e porque ela não é
número73. Quanto’ às outras coisas, inteiramente perfeita. E se essas idéias
como a luz, as cores, os sons, os odo são verdadeiras, todavia, já que me
res, os sabores, o calor, o frio e as ou revelam tão pouca realidade que não
tras qualidades que caem sob o tato, posso discernir nitidamente a coisa
representada do não-ser, não vejo
encontram-se em meu pensamento
razão pela qual não possam ser produ
com tanta obscuridade e confusão que zidas por mim mesmo e eu não possa
ignoro mesmo se são verdadeiras ou ser o seu autor 7 5.
falsas e somente aparentes, isto é, se as
idéias que concebo dessas qualidades 7 4 Cf. a nossa nota ao § 9. Além da falsidade for
mal, que é caso do juízo, temos a falsidade material,
são, com efeito, as idéias de algumas devida ao fato de certas idéias (sensíveis) serem ape
coisas reais, ou se não me representam nas pseudo-idéias, isto é, se apresentarem falsa
apenas seres quiméricos que não mente a mim como dotadas de um caráter represen
tativo. Mas existirão, no sentido estrito, idéias
podem existir. Pois, ainda que eu tenha completamente falsas por natureza? Não é aqui o
notado acima que só nos juízos é que lugar de decidi-lo. O fim do parágrafo levar-nos-á
simplesmente a observar que, mesmo que essas
se pode encontrar a falsidade formal e idéias fossem verdadeiras idéias, comportam pelo
verdadeira, pode, no entanto, ocorrer menos um mínimo de realidade objetiva e, como
que se encontre nas idéias uma certa tais, poderíam muito bem ser produzidas por mim
mesmo. É a única questão que nos interessa aqui.
7 5 Logo:B)Elxclusão das idéias das qualidades sen
72 A) Exclusãodas realidades “animadas” (no senti síveis corpóreas. Em 525, Descartes chama a aten-
do não estritamente cartesiano, visto que são incluí çõ de Gassendi para o fato de nunca ter dito que as
das as idéias dos animais). idéias das coisas sensíveis derivavam do espírito:
73 O exame das idéias claras e distintas das coisas “Somente mostrei naquele ponto não haver nelas
“corporais e inanimadas” é remetido ao parágrafo tanta realidade. . . que se deva concluir que elas
seguinte. não podiam derivar do espírito só”.
MEDITAÇÕES 115
32. E não devo imaginar que as coi maneira alguma das outras; e assim do
sas que me faltam são talvez mais difí fato de ter sido um pouco antes não se
ceis de adquirir do que aquelas das segue que eu deva ser atualmente, a
quais já estou de posse; pois, ao não ser que neste momento alguma
contrário, é bem certo que foi muito causa me produza e me crie, por assim
mais difícil que eu, isto é, uma coisa ou dizer, novamente, isto é, me conserve.
uma substância pensante, haja saído 34. Com efeito, é uma coisa muito
do nada, do que me seria adquirir as clara e muito evidente90 (para todos os
luzes e os ..conhecimentos de muitas que considerarem com atenção a natu
coisas que ignoro, e que são apenas reza do tempo) que uma substância,
acidentes dessa substância. E, assim, para ser conservada em todos os
sem dificuldade, se eu mesmo me tives momentos de sua duração, precisa do
se dado esse mais de que acabo de mesmo poder e da mesma ação, que
falar, isto é, se eu fosse o autor de meu seria nècessário para produzi-la e
nascimento e de minha existência, eu criá-la de novo, caso não existisse
não me teria privado ao menos de coi ainda. De sorte que a luz natural nos
sas que são de mais fácil aquisição, a mostra claramente que a conservação
saber, de muitos conhecimentos de que e a criação não diferem senão com res
minha natureza está despojada88; não peito à nossa maneira de pensar, e não
me teria tampouco privado de nenhu em efeito. Cumpre, pois, apenas que eu
ma das coisas que estão contidas na me interrogue a mim mesmo para
idéia que concebo de Deus, pois não saber se possuo algum poder e alguma
há nenhuma que me pareça de mais virtude que seja capaz de fazer de tal
difícil aquisição; e se houvesse alguma, modo que eu, que sou agora, seja ainda
certamente ela me parecer ia tal (su no futuro: pois, já que eu sou apenas
pondo que tivesse por mim todas as uma coisa pensante (ou ao menos já
que não se trata até aqui precisamente
outras coisas que possuo), porque eu
senão dessa partè de mim mesmo), se
sentiria que minha força acabaria neste
um tal poder residisse em mim, decerto
ponto e não seria capaz de alcançá-lo.
33. E ainda que possa supor que eu deveria ao menos pensá-lo e ter
talvez tenha sido sempre como sou conhecimento dele: mas não sinto ne
nhum poder em mim91 e por isso reco
agora89, nem por isso poderia evitar a nheço evidentemente que dependo de
força desse raciocínio, e não deixo de algum ser diferente de mim.
conhecer que é necessário que Deus 35. Poderá também ocorrer que este
seja o autor de minha existência. Pois ser de que dependo não seja aquilo que
todo o tempo de minha vida pode ser chamo Deus e que eu seja produzido
dividido em uma infinidade de partes, ou por meus pais ou por outras causas
cada uma das quais não depende de
90 Cumpre justificar a equação entre criação e
88 Ê impossível, em virtude do princípio: “Quem conservação, colocada ao fim do parágrafo anterior
pode o mais pode o menos”. Ora, é mais difícil criar e sem a qual a refutação já não disporia de força.
uma substância (mesmo finita) do que atribuir Mas trata-se de um princípio ainda imposto pela
perfeições que jamais são algo exceto acidentes (cf. descontinuidade dos momentos do tempo.
G 23). Logo, como não posso produzir o menos (as 91 Cf. o § 13, onde a hipótese de uma faculdade
perfeições de que tenho idéia), não posso produzir o desconhecida não era repelida; mas tratava-se de
mais (ser o autor do meu ser). A hipótese é absurda. uma faculdade “própria para produzir idéias”, e
89 B) Admitamos que eu exista sem causa. A aqui trata-se de uma faculdade que poderia produzir
descontinuidade e a independência dos momentos a mim próprio com meu desconhecimento. Ora,
do tempo invalidam de pronto esta hipótese, por dado que eu aqui me considero sempre como sendo
quanto implicam a necessidade para mim de ser nada mais do que uma coisa pensante, tal hipótese é
conservado, em cada instante, por uma causa. dessa vez inaceitável. ,
MEDITAÇÕES 119
menos perfeitas da que ele92? Muito não pode haver progresso até o infini
ao contrário, isso não pode ser assim. to, posto que não se trata tanto aqui da
Pois, como já disse anteriormente, é causa que me produziu outrora como
uma coisa evidente que deve haver ao da que me conserva presentemente.
menos tanta realidade na causa quanto 36. Não se pode fingir também que
em seu efeito. E portanto, já que sou talvez muitas causas juntas tenham
urtia coisa pensante, e tenho em mim concorrido em parte para me produzir,
alguma idéia de Deus, qualquer que e que de uma recebi a idéia de uma das
seja, enfim, a causa que se atribua à perfeições que atribuo a Deus, e de
minha natureza, cumpre necessaria outra a idéia de alguma outra, de sorte
mente confessar que ela deve ser de que todas essas perfeições se encon
igual modo uma coisa pensante e pos tram na verdade em alguma* parte do
suir em si a idéia de todas as perfeições Universo, mas não se acham todas jun
que atribuo à natureza divina93. Em tas e reunidas em uma só que seja
seguida, pode-se de novo pesquisar se
Deus. Pois, ao contrário, a unidade, a
essa causa tem sua origem e sua exis
simplicidade ou a inseparabilidade de
tência de si mesma ou de alguma outra
todas as coisas que existem em Deus é
coisa. Pois se ela a tem de si própria9 4,
uma das principais perfeições que con
segue-se, pelas razões que anterior
cebo existentes nele; e por certo a idéia
mente aleguei, que deve ser, ela
dessa unidade e reunião de todas as
mesma, Deus; porquanto, tendo a vir
perfeições de Deus não foi colocada
tude de ser e de existir por si, ela deve
também, sem dúvida, ter o poder de em mim por nenhuma causa da qual eu
possuir atualmente todas as perfeições não haja recebido também as idéias de
cujas idéias concebe, isto é, todas todas as outras perfeições. Pois ela não
aquelas que eu concebo como existen mais pode ter feito compreender juntas
tes em Deus. Se ela tira sua existência e inseparáveis, sem fazer ao mesmo
de alguma outra causa diferente de tempo com que eu soubesse o que elas
si9 5, tornar-se-á a perguntar, pela eram e que as conhecesse a todas de al
mesma razão, a respeito desta segunda guma maneira9 6.
causa, se ela é por si, ou por outrem, 37. No que se refere aos meus pais,
até que gradativamente se chegue a aos quais parece que devo meu nasci
uma última causa que se verificará ser mento, ainda que seja verdadeiro tudo
Deus. E é muito manifesto que nisto quanto jamais pude acreditar a seu res
peito, daí não decorre todavia que
92 Segundo momento da prova: eu sei agora “que sej am eles que me conservam, nem que
dependo de algum ser diferente de mim”, mas este me tenham feito e produzido enquanto
ser não poderá ser algo mais exceto Deus?
93 Invocação do princípio de causalidade e aplica- coisa pensante, pois apenas puseram
ção ao caso precedente. algumas disposições nessa matéria, na
9 4 A) Esta causa estranha existe por si; ela deve, qual julgo que eu, isto é, meu espírito
portanto, causar-se com todas as perfeições de que
tenho idéia. Portanto, ela é Deus. — a única coisa que considero atual
9 5 Ep Esta causa é, por sua vez, produzida por mente como eu próprio — se acha
outra, mas é possível remontar assim indefinida encerrado; e, portanto, não pode haver
mente na série das causas? Não; aqui, não nos
assiste o direito, pois não se trata da causa que me aqui, quanto a eles, nenhuma dificul
produziu (posso subsistir sem os meus pais), mas da dade, mas é preciso concluir necessa
causa que me criou ou me conserva no ser a cada
instante do tempo. Vemos quão ligada se encontra riamente que, pelo simples fato de que
esta segunda prova à idéia cartesiana do tempo,
imposta pela Física. (Cf. Guéroult, op. cit., I, págs.
272-85.) 9 6 Cf. Col. com Burman, A. T., V, págs. 154-55.
120 DESCARTES
mim mesmo certa capacidade de jul modo que não. devo espantar-me se me
gar, que sem dúvida recebi de Deus, do engano.
mesmo modo que todas as outras coi 5. Assim, conheço que o erro en
sas que possuo; e como ele não quere quanto tal não é algo de real que
ría iludir-me, é certo que ma deu tal dependa de Deus, mas que é apenas
que não poderei jamais falhar, quando uma carência; e, portanto, que não
a usar como é necessário. E não resta tenho necessidade, para falhar, de
ria nenhuma dúvida quanto a esta ver algum, poder que me tenha sido dado
por Deus particularmente para esse
dade, se não fosse possível, ao que efeito, mas que ocorre que eu me enga
parece, inferir dela a consequência de ne pelo fato de o poder que Deus me
que assim nunca me enganei; pois se doou para discernir o verdadeiro do
devo a Deus tudo o que possuo e se ele falso não ser infinito em mim1 0 5.
não me deu nenhum poder para falhar, 6. Todavia, isto ainda não me satis
parece que nunca devo enganar-me10 4. faz inteiramente1 0 6; pois o erro não é
E, na verdade, quando penso apenas uma pura negação, isto é, não é a sim
em Deus, não descubro em mim ples carência ou falta de alguma perfei
nenhuma causa de erro ou de falsida ção que me não é devida, mas antes é
de; mas em seguida, retomando a mim, uma privação de algum conhecimento
a experiência me ensina que estou, não que parece que eu deveria possuir. E,
obstante, sujeito a uma infinidade de considerando a natureza de Deus, não
me parece possível que me tenha dado
erros e, ao procurar de mais perto a alguma faculdade que seja imperfeita
causa deles, noto que ao meu pensa em seu gênero, isto é, à qual falte algu
mento não se apresenta somente uma ma perfeição que lhe seja devida; pois,
idéia real e positiva de Deus, ou seja, se é verdade que, quanto mais um arte
de um ser soberanamente perfeito, mas são é perito mais as obras que saem de
também, por assim dizer, uma certa suas mãos são perfeitas e acabadas,
idéia negativa do nada, isto é, daquilo que ser imaginaríamos nós que, produ
que está infmitamente distante de toda zido por esse soberano criador de
sorte de perfeição; e que sou como que todas as coisas, não fosse perfeito e
um meio entre Deus e o nada, isto é, inteiramente acabado em todas as suas
colocado de tal maneira entre o sobe partes? E por cçrto não há dúvida de
rano ser e o não-ser que nada se encon que Deus só pode me ter criado de tal
tra em mim, na verdade, que me possa maneira que jamais eu pudesse enga
conduzir ao erro, na medida em que nar-me; é certo também que ele quer
sempre aquilo que é o melhor: ser-me-
um soberano ser me produziu; mas
á, pois, mais vantajoso falhar do que
que, se me considero participante -de
não falhar10 7?
alguma maneira do nada.ou do não-
ser, isto é, na medida em que não sou 1 ° 5 Estando o erro no homem devido ao fato de ele
eu próprio o soberano ser, acho-me também participar do nada e não sendo o nada
exposto a uma infinidade de faltas, de causa de nada (G 20), pode parecer que o erro fica
assim explicado e Deus desculpado. . .
1 0 6 Por quê? É que o erro não está em mim como
104 E no entanto eu me engano. . . É a própria simples falta de ser, como admite com demasiada
colocação do problema da Teodicéia: Deus, meu rapidez a solução anterior, mas como uma “imper
criador, é infmitamente perfeito; ora, o erro e o mal feição positiva”. Não é uma simples ignorância,
existem de fato; como desculpar Deus disso'? A bem mas uma ignorância que eu dou por uma verdade.
dizer, o problema assim colocado preocupa menos Mais do que uma negação: uma privação.
Descartes do que este outro: como, salvaguardando 107 O reconhecimento do erro como privação des
definitivamente a veracidade de Deus, garantir loca o problema: já que Deus quer sempre o melhor,
definitivamente a possibilidade “do conhecimento será melhor que o homem tenha sido afetado de
das outras coisas do Universo”? uma privação?
MEDITAÇÕES 125
7. Considerando isso com mais mesma coisa que poderia talvez, com
atenção, ocòrre-me inicialmente ao alguma forma de razão, parecer muito
pensamento que me não devo espantar imperfeita, caso estivesse inteiramente
se minha inteligência não for capaz de só, apresenta-se muito perfeita em sua
compreender por que Deus faz o que natureza, caso seja encarada como
faz e que assim não tenho razão algu parte de todo este Universo. E, embo
ma de duvidar de sua existência, pelo ra, desde que me propus a tarefa de
fato de que, talvez, eu veja por expe duvidar de todas as coisas, eu tenha
riência muitas outras coisas sem poder conhecido com certeza apenas minha
compreender por que razão nem como existência e a de Deus, todavia tam
Deus as produziu1 °8. Pois, sabendo já bém, já que reconhecí o infinito poder
que minha natureza é extremamente de Deus, não poderia negar que ele não
fraca e limitada, e, ao contrário, que a tenha produzido muitas outras coisas,
de Deus é imensa, incompreensível e ou, pelo menos, que não as possa pro
infinita1 0 9, não mais tenho dificuldade duzir, de sorte que eu exista e seja
em reconhecer que há uma infinidade
de coisas em sua potência cujas causas colocado no mundo como parte da
ultrapassam o alcance de meu espírito. universalidade de todos os seres.
9. E, em seguida, olhando-me de
E esta única razão é suficiente para
persuadir-me de que todo esse gênero mais perto e considerando quais são
meus erros (que apenas testemunham
de causas que se costuma tirar do
haver imperfeição em mim), descubro
fim não é de uso algum nas coisas físi
cas ou naturais; pois não me parece que dependem do concurso de duas
que eu possa sem temeridade procurar causas, a saber, do poder de conhecer
e tentar descobrir os fins impenetráveis que existe em mim e do poder de esco
de Deus110. lher, ou seja, meu livre arbítrio; isto é,
8. Demais, vem-me ainda ao espí de meu entendimento e conjuntamente
rito que não devemos considerar uma de minha vontade112. Isto porque, só
única criatura separadamente, quando pelo entendimento, não asseguro nem
pesquisamos se as obras de Deus são nego coisa alguma, mas apenas conce
perfeitas, mas de uma maneira geral bo as idéias das coisas que posso asse
todas as coisas em conjunto111. Pois a gurar ou negar. Ora, considerando-o
assim precisamente, pode-se dizer que
1 0 8 Primeiro argumento metafísico possível: recur jamais encontraremos nele erro algum,
so à incompreensibilidade de Deus. Ela possibilita a desde que se tome a palavra erro em
tese: “O erro pode ser bom sem o nosso conheci sua significação própria. E, ainda que
mento Cf. Princípios, III, 2.
1u9 Podemos medir a diferença entre a fínitude haja talvez uma infinidade de coisas
cartesiana e a fínitude kantiana, se advertirmos que neste mundo das quais não tenho idéia
Kant poderia escrever o primeiro membro desta
frase, mas nunca o segundo. alguma em meu entendimento, não se
110 Fundamentação metafísica da exclusão das pode por isso dizer que ele seja privado
causas finais em Física. A respeito, cf. Col. com dessas idéias como de algo que seja de
Burman (A. T., V, pág. 158) e Princípios, I, 28.
“Não devemos presumir tanto de nós mesmos a vido à sua natureza, mas somente que
ponto de crer que Deus nos quisesse participar seus não as tem; porque, com efeito, não há
conselhos...” razão alguma capaz de provar que
111 Segundo argumento metafísico possível: o que
eu percebo como imperfeição só é verdade em rela Deus devesse dar-me uma faculdade de
ção a mim e não ao conjunto do Universo. Argu conhecer maior e mais ampla do que
mento que se inscreve na linha das teodicéias clássi
cas dos estóicos e de Santo Agostinho até Leibniz
(e, se se quer, até essas teodicéias modernas que são 112 Recurso ao exame das faculdades psicológicas.
o hegelianismo e o marxismo). Deve-se observar Será sucessivamente mostrado que, nem a presença
que, apelando este argumento para a idéia de Uni em mim do entendimento, nem a da vontade, me
verso, é necessário tomar o recurso a esta compa autorizam a queixar-me de uma privação qualquer
tível com a ordem, neste lugar. e, portanto, de uma imperfeição em Deus.
126 DESCARTES
aquela que me deu; e, por hábil e enge sinto ser em mim tão grande, que não
nhoso operário que eu mo represente, concebo absolutamente a idéia de
nem por isso devo pensar que devesse nenhuma outra mais ampla e mais
pôr em cada uma de suas obras todas extensa: de sorte que é principalrriente
as perfeições que pôde pôr em algu ela que me faz conhecer que eu trago a
mas. Não posso tampouco me lastimar imagem e a semelhança de Deus. Pois,
de que Deus não me tenha dado um ainda que seja incomparavelmente
livre arbítrio ou uma vontade bastante maior em Deus do que em mim, quer
ampla e perfeita, visto que, com efeito, por causa do conhecimento e do poder,
eu a experimento tão vaga e tão exten que, aí se encontrando juntos, a tor
sa que ela não está encerrada em nam mais firme e mais eficaz, quer por
quaisquer limites113* . E o que me pare causa do objeto, na medida em que a
115
ce muito notável neste ponto é que, de vontade se dirige e se estende infinita
todas as outras coisas existentes em mente a mais coisas; ela não me pare
mim, não há nenhuma tão perfeita e ce, todavia, maior se eu a considero
tão extensa que eu não reconheça efeti formal e precisamente nela mesma11 6.
vamente que ela poderia ser ainda Pois consiste somente em que podemos
maior e mais perfeita. Pois, por exem fazer uma coisa ou deixar de fazer (isto
plo, se considero a faculdade de conce é, afirmar ou negar, perseguir ou fugir)
ber que há em mim, acho que ela é de ou, antes, somente em que, para afir
uma extensão muito pequena e grande mar ou negar, perseguir ou fugir às
mente limitada e, ao mesmo tempo, eu coisas que o entendimento nos propõe,
me represento a idéia de uma outra agimos de tal maneira que não senti
faculdade muito mais ampla e mesmo mos absolutamente que alguma força
infinita; e, pelo simples fato de que me exterior nos obrigue a tanto11 7. Pois,
posso representar sua idéia, conheço para que eu seja livre, não é necessário
sem dificuldade que ela pertence à que eu seja indiferente na escolha de
natureza de Deus. Da mesma manei um ou de outro dos dois contrários;
ra11 4, se examino a memória ou a mas antes, quanto mais eu pender para
imaginação, ou qualquer outro poder, um, seja porque eu conheça evidente
não encontro nenhum que não seja em mente que o bom e o verdadeiro aí se
mim muito pequeno e limitado e que encontrem, seja porque Deus disponha
em Deus não seja imenso e infinito11 5. assim o interior do meu pensamento,
Resta tão-somente a vontade, que eu tanto mais livremente o escolherei e o
abraçarei. E certamente a graça divina
113 Nota-se que a infinidade da vontade é primeiro
evocada quanto à grandeza: “Não se encontra
encerrada em quaisquer limites. . . a idéia de outra 11 6 Passagem que significa: a vontade marca a
mais ampla e mais extensa”. Ê por aí, com efeito, minha semelhança com Deus, menos por ser ela
que ela mais difere do entendimento, para o qual há infinita em grandeza (pois este infinito ainda é ape
coisas incognoscíveis de direito (o conteúdo do infi nas indefinido com respeito a Deus) do que por ser,
nito em Deus). Nele tanto quanto em mim, poder absoluto do sim e
11 4 Esta. passagem quererá dizer que a fmitude do do não.
entendimento é do mesmo gênero que a da imagina-, 11 7 Esse poder absoluto nunca está mais próximo,
ção? Guéroult nega e observa (pp. cit., págs. no homem, daquele que há em Deus, do que ao ser
328-29) que, se a fmitude da imaginação é corporal, ele iluminado pelo entendimento. Eis por que
a do entendimento é antes uma “indefinitude”: importa distinguir aqui esta “potência real e posi
nosso conhecimento pode aumentar “gradativa tiva de se determinar” que Deus nos concedeu da
mente até o infinito”, o que constitui uma espécie de “indiferença”, estado no qual a vontade, não sendo
fmitude em face da infinitude positiva de Deus. iluminada por nenhuma razão num ou noutro senti
115 Ê uma maneira de falar, pois a memória (que do, está afastada ao máximo da de Deus. Cf. Car
supõe a sucessão temporal) e a imaginação (que tas, a Mesland, 2 de maio de 1644. Esta “indife
supõe a união a um corpo) não se encontram em rença” possível da vontade humana desempenhará
Deus. papel decisivo no parágrafo seguinte.
MEDITAÇÕES 127
dimento não tem nenhum conheci . me deu uma inteligência mais capaz,
mento, mas geralmente também a ou uma luz natural maior do que aque
todas aquelas que ele não descobre la que dele recebi, posto que, com efei
com uma clareza perfeita no momento to, é próprio do entendimento finito
em que a vontade delibera sobre elas; não compreender uma infinidade de
pois, por prováveis que sejam as conje- coisas e próprio de um entendimento
turas que me tomam inclinado a julgar criado o ser finito: mas tenho todos os
alguma coisa, o tão-só conhecimento motivos de lhe render graças pelo fato
que tenho de que são apenas conjetu- de que, embora jamais me devesse
ras e não razões certas e indubitáveis algo, me tenha dado, não obstante,
basta para me dar ocasião de julgar o todo o pouco de perfeição que existe
contrário. Isto é o que experimentei em^mim; estando bem longe de conce
suficientemente nesses dias passados, ber sentimentos tão injustos como o de
ao estabelecer como falso tudo o que imaginar que ele me tirou ou reteve
tivera antes como muito verdadeiro, injustamente as outras perfeições que
pelo simples fato de ter notado que se não me deu121 122. Não tenho também
podia duvidar disso de alguma manei motivo de me lastimar do fato de me
ra. haver dado uma vontade mais ampla
13. Ora, se me abstenho de formu do que o entendimento, uma vez que,
lar meu juízo sobre uma coisa, quando consistindo a vontade em apenas uma
não a concebo com suficiente clareza e coisa, e sendo seu sujeito como que
distinção, é evidente que o utilizo indivisível, parece que sua natureza é
muito bem e que não estou enganado; tal que dela nada se poderia tirar sem
mas, se me determino a negá-la ou a destruí-la; e, certamente, quanto maior
assegurá-la, então não me sirvo como for ela, mais tenho que agradecer a
devo de meu livre arbítrio; se garanto o bondade daquele que ma deu123* . E,
que não é verdadeiro, é evidente que enfim, não devo também lamentar-me
me engano, e até mesmo, ainda que jul de que Deus concorra comigo para for
gue segundo a verdade, isto não ocorre mar os atos dessa vontade, isto é, os
senão por acaso e eu não deixo de fa juízos nos quais eu me engano, porque
lhar e de utilizar mal o meu livre arbí esses atos são inteiramente verdadeiros
trio; pois a luz natural nos ensina que e absolutamente bons na medida em
o conhecimento do entendimento deve que dependem de Deus; e há, de algu
sempre preceder a determinação da ma forma, mais perfeição em minha
vontade. E é neste mau uso do livre natureza, pelo fato de que posso
arbítrio que se encontra a privação que forrná-los, do que se não o pudesse1 2 4.
constitui a forma do erro1 21. A priva Quanto à privação, que consiste na
ção, digo, encontra-se na operação na única razão formal do erro e do peca
medida em que procede de mim; mas do, não tem necessidade de nenhum
ela não se acha no poder qiie recebi de concurso de Deus, já que não é uma
Deus, nem mesmo na operação na me
dida em que ela depende dele. Pois não
122 a) A fínitude de meu entendimento não pode
tenho certamente nenhum motivo de ser imputada a Deus como uma imperfeição. Cf.
me lastimar pelo fato de que Deus não Princípios I, 36.
123 b) Quanto à vontade, não só não tenho por
que me queixar, mas devo ser reconhecido a Deus
121 O erro é, portanto, agora reconhecido como por ma ter dado infinita.
privação, contrariamente ao que se passava na 124 c) Que minha vontade possa formar juízos é
pseudo-solução do § 5. E, não obstante, Deus será ainda uma perfeição. Assim, tomados um a um, os
disso desculpado por quatro considerações: “Não elementos que concorrem ao erro humano não cons
tenho nenhum motivo de me lastimar...” tituem sinal de nenhum hão-ser ou de nenhum mal.
MEDITAÇÕES 129
que consiste a maior e principal perfei preciso concluir que uma tal concep
ção do homem, considero não ter ção ou um tal juízo é verdadeiro1 29.
ganho pouco com esta Meditação, ao 17. De resto, não somente aprendi
haver descoberto a causa das falsida hoje o que devo evitar para não mais
des e dos erros. falhar, mas também o que devo fazer
16. E, certamente, não pode haver para chegar ao conhecimento da ver
outra além daquela que expliquei; pois, dade. Pois, certamente, chegarei a
todas as vezes que retenho minha von tanto se demorar suficientemente
tade nos limites de meu conhecimento, minha atenção sobre todas as coisas
de tal modo que ela não formule juízo que conceber perfeitamente e se; as
algum senão a respeito das coisas que separar das outras que não com
preendo senão com confusão e obscu
lhe são clara e distintamente represen ridade. E disto, doravante, cuidarei
tadas pelo entendimento, não pode zelosamente.
ocorrer que eu me engane; porque toda
concepção clara e distinta é sem dúvi 129 Daí a oitava verdade: as idéias claras e distin
da algo de real e de positivo, e portanto tas têm um valor objetivo imediatamente certo. A
não pode ter sua origem no nada, mas regra segundo a qual “todas as coisas que conce
bermos muito clara e muito distintamente são
deve ter necessariamente Deus como verdadeiras”, que obtive por reflexão sobre o Cogi
seu autor; Deus, digo, que, sendo sobe to, no começo da Meditação Terceira (§ 2), é agora
objetivamente validada. Doravante, não mais preci
ranamente perfeito, não pode ser causa sarei efetuar o Cogito a fim de provar a verdade
de erro algum; e, por conseguinte, é dessa regra; bastará lembrar-me dela.
Meditação- Quinta1 30
Da Essência das Coisas Materiais;
e, Novamente, de Deus, que Ele Existe
1. Restam-me muitas outras coisas enumerar nela muitas partes diversas e
a examinar, concernentes aos atributos atribuir a cada uma dessas partes toda
de Deus e à mújiha própria natureza, sorte de grandezas, de figuras, de situa
isto é, ao meu espírito: mas retomarei ções e de movimentos; e, enfim, posso
em outra ocasião , talvez, a sua pesqui- consignar a cada um desses movimen
sa.' Agora (após haver notado o que tos toda espécie de duração.
cumpre fazer ou <evitar para chegar ao 4. E não conheço estas coisas com
conhecimento da verdade), o que tenho distinção apenas quando as considero
principalmente a fazer é tentar sair e em geral; mas, também, por pouco que
desembaraçar-me de todas as dúvi eu a isso aplique minha atenção, con
131 em que mergulhei nesses dias
das130 cebo uma infinidade de particularida
passados e ver se|não é possível conhe des1 32 referentes aos números, às figu
cer nada de certo.no tocante às coisas ras, aos movimentos e a outras coisas
materiais. | semelhantes, cuja verdade se revela
2. Mas, antes de examinar se há tais com tanta evidência e se acorda tão
coisas que existakn fora de mim, devo bem com minha natureza que, quando
considerar suas ^déias na medida em começo a descobri-las, não parece que
aprendo algo de novo, mas, antes, que
que se encontram em meu pensamento me recordo de algo que já sabia
e ver quais são distintas e quais são anteriormente, isto é, que percebo coi
confusas. sas que estavam já no meu espírito,
3. Em primeiro lugar, imagino dis- embora eu ainda não tivesse voltado
tintamente esta quantidade que os filó meu pensamento para elas.
sofos chamam vulgarmente de quanti 5. E o que, aqui, estimo mais consi
dade contínua, |ou a extensão em derável é que encontro em mim uma
longura, largura e profundidade que há infinidade de idéias de certas coisas
nessa quantidadej ou, antes, na coisa à que não podem ser consideradas um
qual ela é atribuída. Demais, posso puro nada, embora talvez elas não te
nham nenhuma existência fora de meu
130 Plano da Meditação: pensamento133, e que não são fingidas
§§ 1-2: exame das idéias das essências;
§§3-6: valiàação da verdade das essên
cias matemáticas; as “naturezas verda 132 Após os entes matemáticos, suas propriedades
deiras e imutáveis” da Matemática não essenciais tais como Deus as instituiu.
são inventadas nem extraídas da expe 133 A separação entre a essência e a existência só
riência; | tem sentido ao nível das idéias. Quando eu penso a
§§7-10: a prova ontológica; essência do triângulo e a existência do mesmo triân
§§11-15: vantagens desta nova prova. gulo, diz alhures Descartes, esses dois pensamentos
131 Programa das jJleditações Quinta e Sexta: diferem apenas enquanto são pensamentos; no
estabelecer a veracidade divina em toda a sua triângulo existente fora de meu pensamento, a
amplitude. essência e a existência não podem ser distinguidas.
132 DESCARTES
por mim, conquanto esteja em minha tudo o que é verdadeiro é alguma coisa
liberdade pensâ-las ou não pensá-las; e já demonstrei amplamente acima que
mas elas possuem suas naturezas ver todas as coisas que conheço clqra e
dadeiras e imutáveis. Como, por exem distintamente são verdadeiras. E,< con
plo, quando imagino um triângulo, quanto não o tivesse demonstrado,
ainda que não haja talvez em nenhum todavia a natureza de meu espírito é tal
lugar do mundo, fora de meu pensa que não me poderia impedir de julgá-
mento, uma tal figura, e que nunca las verdadeiras enquanto as concebo
tenha havido alguma, não deixa, entre clara e distintamente'13 5. E me recordo
tanto, de haver uma certa natureza ou de que, mesmo quando estava ainda
forma, ou essência determinada, dessa fortemente ligado aos objetos dos sen
figura, a qual é imutável e eterna, que tidos, tivera entre as mais constantes
eu não inventei absolutamente e que verdades aquelas que eu concebia clara
não depende, de maneira alguma, de e distintamente no que diz respeito às
meu espírito; como parece, pelo fato de figuras, aos números e às outras coisas
que se pode demonstrar diversas pro que pertencem à Aritmética e à Geo
priedades desse triângulo, a saber, que metria.
os três ângulos são iguais a dois retos, 7. Ora, agora1 3 6, se do simples fato
que o maior ângulo e oposto ao maior de que posso tirar de meu pensamento
lado e outras semelhantes, as quais a idéia de alguma coisa segue-se que
agora, quer queira, quer não, reco tudo quanto reconheço pertencer clara
nheço mui claramente e mui evidente e distintamente a esta coisa pertence-
mente estarem nele, ainda que não lhe de fato, não posso tirar disto um
tenha antes pensado nisto de maneira argumento e uma prova demonstrativa
alguma, quando imaginei pela primeira da existência de Deus? É certo que não
vez um triângulo; e, portanto, não se encontro menos13 7 em mim sua idéia,
pode dizer que eu as tenha fingido e isto é, a idéia de um ser soberanamente
inventado. perfeito, do que a idéia de qualquer fi
6. E aqui só posso me objetar que gura ou de qualquer número que seja.
talvez essa idéia de triângulo tenha E não conheço menos clara e distinta
vindo ao meu espírito por intermédio mente que uma existência atual e eter
de meus sentidos, porque vi algumas na pertence à sua natureza do que
vezes corpos de figura triangular; pois conheço que tudo quanto posso de
posso formar em meu espírito uma monstrar de qualquer figura ou de
infinidade de outras figuras, a cujo res qualquer número pertence verdadeira
peito não se pode alimentar a menor mente à natureza dessa figura ou desse
suspeita de que jamais tenham caído número. E, portanto, ainda que tudo o
sob os sentidos e não deixo, todavia, de que concluí nas Meditações anteriores
poder demonstrar diversas proprie
dades relativas à sua natureza, bem
13 5 Retomo ao plano da “natureza” — o da Medi
como à do triângulo: as quais devem tação Primeira —, onde me é impossível duvidar de
ser certamente todas verdadeiras, visto fato de uma verdade matemática quando ela se me
que as concebo claramente13 4. E, por apresenta atualmente.
13 6 “Agora” = depois que estamos metafísica
tanto, elas são alguma coisa e não um mente certos do valor objetivo das idéias claras e
puro nada; pois é muito evidente que134distintas.
13 7 Notar a partir daí os “não. . . menos” e “ao
menos”: a existência de Deus, legível em sua essên
134 As idéias das essências matemáticas não são, cia, não é menos certa do que as verdades matemá
portanto, simuladas nem provenientes do sensível (§ ticas, mas tampouco o é mais. Devemos colocá-la
6). Cf. 543. Enquanto idéias claras e distintas, no mesmo plano que essas verdades essenciais que a
correspondem, pois, a algo. dúvida natural não conseguia abalar. I
MEDITAÇÕES 133
não fosse de modo algum verdadeiro, a 8. Mas, ainda que, com efeito, eu
existência de Deus deve apresentar-se não possa conceber um Deus sem exis
em meu espírito ao menos como tão tência, tanto quanto uma montanha
certa quanto considerei até agora todas sem vale, todavia, como do simples
as verdades das Matemáticas, que se fato de eu conceber uma montanha
referem apenas' aos números e às figu com vale não se segue que haja qual
ras138: embora, na verdade, isto não quer montanha no mundo, do mesmo
pareça de início inteiramente mani modo, embora eu conceba Deus com
festo e se afigure ter alguma aparência existência, parece não decorrer daí que
de sofisma. Pois, estando habituado haja algum Deus existente: pois meu
em todas as outras coisas a fazer dis pensamento não impõe necessidade al
tinção entre a [existência e a essência,
persuado-me facilmente de que a exis guma às coisas; e como só depende de
tência pode ser separada da essência mim o imaginar um cavalo alado,
de Deus e de que, assim, é possível ainda que não haja nenhum que dispo
conceber Deus como não existindo nha de asas, assim eu poderia, talvez,
atualmente. Mas, não obstante, quan atribuir existência a Deus, ainda que
do penso nissb com maior atenção, não houvesse Deus algum existen
verifico claramente que a existência te1 40. Mas não é assim, é que aqui há
não pode ser separada da essência de um sofisma escondido sob a aparência
Deus, tanto qdanto da essência de um desta objeção: pois pelo fato de que
triângulo retilíneo não pode ser sepa não posso conceber uma montanha
rada a grandeza de seus três ângulos sem vale não se segue que haja monta
iguais a dois retos ou, da idéia de uma
montanha, a idéia de um vale; de sorte nha alguma nem vale algum, mas
que não sinto |menos repugnância em somente que a montanha e o vale, quer
conceber um E>eus (isto é, um ser sobe existam quer não, não podem, de
ranamente perfeito) ao qual falte exis maneira alguma, ser separados um do
tência Jisto é, ao qual falte alguma outro; ao passo que, do simples fato de
perfeição), do que em conceber uma eu não poder conceber Deus sem exis
montanha que não tenha vale1 3 9.13
* tência, segue-se que a existência lhe é
inseparável, e, portanto, que existe
13 8 Hâ uma certeza da existência de Deus que é do verdadeiramente: não que meu pensa
mesmo tipo que a certeza espontânea e ingênua que mento possa fazer que isso seja assim,
se atribui às verdades matemáticas. É esta certeza e que imponha às coisas qualquer
que ora podemos vjalidar, assim como validamos a
certeza matemática: em nome do princípio do valor necessidade; mas, ao contrário, porque
objetivo das idéias' claras e distintas. Por isso, a a necessidade da própria coisa, a
“prova ontológica’ situa-se em plano diverso do
das duas outras provas (o fato de se encontrar em saber, da existência de Deus, deter
outra Meditação basta para indicá-lo) e é depen mina meu pensamento a concebê-lo
dente em relação a elas na ordem das razões dessa maneira. Pois não está em minha
metafísicas.
13 9 Sobre a imagem da montanha e do vale: “Não liberdade conceber um Deus sem exis
temos nenhuma oulra razão para assegurar que não tência (isto é, um ser soberanamente
haja absolutamente montanha sem vale, exceto que perfeito sem uma soberana perfeição),
vemos ser impossível completar suas idéias quando
os consideramos um sem o outro, embora possa como me é dada a liberdade de imagi
mos, por abstração!, ter a idéia de uma montanha ou nar um cavalo sem asas ou com asas.
de um lugar pelo qual subimos de baixo para cima
sem considerar que' se possa descer por aí mesmo de
cima para baixo”! (A Gibieuf, 19 de janeiro de 1 40 Segunda objeção possível: não se tratará
1642.) Primeira objeção possível a esta nova prova somente de uma existência em idéia no meu pensa
da existência de Deus: posso conceber Deus como mento? Resposta: em minha idéia de Deus, eu per
não existente? Resposta: a idéia da essência de cebo a ligação da existência com a essência como
Deus é inseparável de sua existência assim como uma relação de essência necessária que se impõe ao
“em todas as outras coisas”. meu espírito.
134 DESCARTES
clara e distintamente que têm a força natureza que, tão logo compreenda
de me persuadir inteiramente. E, embo algo bastante clara e distintamente,
ra, entre as coisas que concebo dessa sou naturalmente levado, a acreditá-lo
maneira, haja na verdade algumas verdadeiro; no entanto, já que sou tam
manifestamente jconhecidas de qual bém de tal natureza que não posso
quer, e haja outras também que não se manter sempre o espírito ligado a uma
revelam senão àqueles que as conside mesma coisa, e que amiúde me recordo
ram de mais perro e que as examinam de ter julgado uma coisa verdadeira,
mais exatamente; todavia, uma vez quando deixo. de considerar as razões
descobertas, nãjo são consideradas que me obrigaram a julgá-la dessa
menos certas umas do que as outras. maneira, pode acontecer que nesse ín
Como, por exemplo, em todo triângulo terim outras razões se me apresentem,
retângulo, ainda] que não pareça tão as quais me fariam facilmente mudar
facilmente, de início, que o quadrado de opinião se eu ignorasse que há um
da base é igual abs quadrados dos dois Deus1 4 4. E, assim, eu jamais teria uma
outros lados, como é evidente que essa ciência verdadeira e certa de qualquer
base é oposta do maior ângulo, não coisa que seja, mas somente opiniões
obstante, uma vez que isto foi reconhe vagas e inconstantes.
cido, ficamos persuadidos tanto da 14. Como, por exemplo, quando
verdade de um como da de outro. E no considero a natureza do triângulo,
que concerne a Deus, certamente, se conheço evidentemente, eu que sou um
meu espírito nã]o estivesse prevenido pouco versado em Geometria, que seus
por quaisquer prejuízos e se meu pen três ângulos são iguais a dois retos e
samento não se encontrasse distraído não me é possível não acreditar nisso
pela presença cjontínua das imagens enquanto aplico meu pensamento à sua
das coisas sensíveis, não haveria coisa demonstração; mas, tão logo eu o des
alguma que eu conhecesse melhor nem vie dela, embora me recorde de tê-la
mais facilmente !do que ele. Pois have claramente compreendido, pode ocor
rá algo por si mais claro e mais mani rer facilmente que eu duvide de sua
festo do que pensar que há um Deus, verdade caso ignore que há um
isto é, um ser soberano e perfeito, em Deus1 45. Pois posso persuadir-me de
cuja idéia, e somente nela, a existência ter sido feito de tal modo pela natureza
necessária ou eterna está incluída e, que possa enganar-me facilmente,
por conseguinte, que existe? mesmo nas coisas que acredito com
12. E, conquanto, para bem conce preender com mais evidência e certeza;
ber essa verdade] eu tivesse necessitado principalmente, visto que me lembro
de grande aplicaçao de espirito, pre de haver muitas vezes estimado muitas
sentemente, todajvia, estou mais seguro 1 4 4 Compreende-se aqui por que a prova ontoló-
dela do que de tudo quanto me parece gica, em relação às outras, não é apenas uma prova
mais certo: mas, além disso, noto que a a mais: ela nos fornece imediatamente no plano da
certeza de todas as outras coisas dela “natureza”, isto é, da Psicologia, a certeza de que
Deus existe etemamente. Poupa, assim, o constante
depende tão absolutamente que, sem recurso às difíceis provas a priori. O raciocínio
esse conhecimento, é impossível jamais matemático, por exemplo, está assegurado, sem que
conhecer algo pe]rfeitamente1 43. eu tenha necessidade, ao efetuá-lo, de reativar as
“razões” da Meditação Terceira.
13. Pois, ainda que eu seja de tal 145 As provas a priori garantem a evidência atual
(é nisso que desempenham papel primordial e indis
143 Diferença entre a essência de Deus e as essên pensável); a prova ontológica assegura a lembrança
cias matemáticas: aquela pode garantir a certeza das evidências. Cf. o comentário feito nas Segundas
destas. Respostas, 222.
136 DESCARTES
coisas como verdadeiras e certas, *que, pela qual me certifico da verdade, era
em seguida, outras razões me levaram levado a acreditar nelas por razões que
a julgar absolutamente falsas. reconheci depois serem menos fortes
15. Mas, após ter reconhecido do que então imaginara. O que mais
haver um Deus, porque ao mesmo poderão, pois, objetar-me? Que talvez
tempo reconheci também que todas as eu durma (como eu mesmo me objetei
coisas dependem dele e que ele não é acima) ou que todos os pensamentos
enganador, e que, em seguida a isso, que tenho atualmente não são mais
julguei que tudo quanto concebo clara verdadeiros do que os sonhos que ima
e distintamente não pode deixar de ser ginamos ao dormir? Mas, mesmo que
verdadeiro: ainda que não mais pense estivesse dormindo, tudo o que se apre
nas razões pelas quais julguei tal ser senta a meu espírito com evidência é
verdadeiro, desde que me lembre de absolutamente verdadeiro. E, assim,
tê-lo compreendido clara e distinta reconheço muito claramente que a cer
mente, ninguém pode apresentar-me teza e a verdade de toda ciência depen
razão contrária alguma que me faça ja dem do tão-só conhecimento do verda
mais colocá-lo em dúvida; e, assim, deiro Deus: de sorte que, antes que eu
tenho dele uma ciência certa e verda o conhecesse, não podia saber perfeitá-
deira. E esta mesma ciência se estende mente nenhuma outra coisa. E, agora
também a todas as outras coisas que que o conheço, tenho o meio de adqui
me lembro ter outrora demonstrado, rir uma ciência perfeita no tocante a
como as verdades da Geometria e ou uma infinidade de coisas, não somente
tras semelhantes: pois, que me poderão das que existem nele mas também das
objetar, para obrigar-me a colocá-las que pertencem à natureza corpórea, na
em dúvida? Dir-me-ão que minha natu medida em que ela pode servir de obje
reza é tal que sou muito sujeito a enga to às demonstrações dos geômetras, os
nar-me? Mas. já sei que me não posso quais não se preocupam, de modo
enganar nos juízos cujas razões conhe algum, com sua existência1 4 6.
ço claramente. Dir-me-ão que outrora
tive muitas coisas por verdadeiras e 1 4 6 Esta Meditação Quinta contém a nona verdade
certas, as quais mais tarde reconheci da ordem das razões: temos certeza absoluta de que
serem falsas? Mas eu não havia conhe as propriedades das essências são as propriedades
cido clara nem distintamente tais coi das coisas e, no que concerne à essência de Deus, de
que aí estâ inscrita a existência necessária, portanto
sas e, não conhecendo ainda esta regra eterna.
Meditação Sexta147
Da Existência das Coisas Materiais e da Distinção
Real entre a Alma e o Corpo do Homem
apetites, como também certas inclina daquelas que eu mesmo podia simular,
ções corporais para a alegria, a triste em meditando, ou do que as que
za, a cólera e outras paixões semelhan encontrava impressas em minha me
tes; e, no exterior, além da extensão, mória, parecia que não podiam proce
das figuras, dos movimentos dos cor der de meu espírito; de sorte que era
pos, notava neles a dureza, o calor e necessário que fossem causadas em
todas as outras qualidades que se reve mim por quaisquer outras coisas. Coi
lam ao tato. Demais, aí notava a luz, sas das quais não tendo eu nenhum
cores, odores, sabores e sons, cuja conhecimento senão o que me forne
variedade me fornecia meios de distin ciam essas mesmas idéias, outra coisa
guir o céu, a terra, o mar e geralmente me podia vir ao espírito, só que essas
todos os outros corpos uns dos outros. coisas eram semelhantes às idéias que
8. E, por certo, considerando as elas causavam.
idéias de todas essas qualidades que se 10. E já que eu me lembrava tam
apresentavam ao meu pensamento, e bém que me servira mais dos sentidos
as quais eram as únicas que eu sentia do que da razão e reconhecia que as
própria e imediatamente, não era sem idéias que eu formava por mim mesmo
razão que eu acreditava sentir coisas não eram tão expressas quanto aquelas
inteiramente diferentes de meu pensa que eu recebia dos sentidos e, mesmo,
mento, a saber, corpos de onde proce que eram, as mais das vezes, compos
diam essas idéias1 59. Pois eu experi tas de partes destas, eu me persuadia
mentava que elas se apresentavam ao facilmente de que não havia nenhuma
meu pensamento sem que meu consen idéia em meu espírito que não tivesse
timento fosse requerido para tanto, de antes passado pelos meus sentidos.
sorte que não podia sentir objeto 11. Não era também sem alguma
algum, por mais vontade que tivesse, razão que eu acreditava que este corpo
se ele não se encontrasse presente ao (que, por um certo direito particular,
órgão de um de meus sentidos; e não eu chamava de meu) me pertencia mais
estava de maneira alguma em meu propriamente e mais estreitamente do
poder não o sentir quando ele aí esti que qualquer outro. Pois, com efeito,
vesse presente. jamais eu podia ser separado dele
9. E, dado que as idéias que recebia como dos outros corpos; sentia nele e
pelos sentidos eram muito mais vivas, por ele todos os meus apetites e todas
mais expressas e mesmo, à sua manei as minhas afecções; e, enfim, eu era to
ra, mais distintas do que qualquer uma cado por sentimentos de prazer e de
159 . e sobre que fundamento era apoiada
dor em suas partes e não nas dos ou
minha crença. . enumeração até o § Í2 das tros corpos que são separados dele.
motivações dos “prejuízos da infância”. Os argu 12. Mas, quando examinava por
mentos serão os seguintes: a) a coerção (cf. Princí-
- pios, H, § 1: “Não está em meu poder fazer com que que desse não sei que sentimento de
ex.perim.exvtem.os um sentimento de preferência a dor segue a tristeza do espírito, e do
outro. . . ”); b) vivacidade particular das idéias sentimento de prazer nasce a alegria,
sensíveis; c) maior importância aparente das idéias
sensíveis, na qual se baseia a teoria escolástica do ou, ainda, por que esta não sei que
conhecimento e todo empirismo' em geral; d) não emoção do estômago, que chamo
posso ser separado de meu corpo como dos outros fome, nos dá vontade de comer, e a se
corpos; e) é nele que sinto minhas afecções e meus
apetites (noção do corpo próprio); f) é em suas par cura da garganta nos dá desejo de
tes que sinto prazer e dor; g) o laço entre os estados beber, e assim por diante, não podia
fisiológicos e as afecções da alma (contrações do
estômago e fome) pode provir tão-somente de um apresentar nenhuma razão, senão que
ensinamento da natureza. a natureza mo ensinava dessa maneira;
MEDITAÇÕES 141
pois não há, certamente, qualquer afi 14. E a essas razões de dúvida
nidade nem qualquer relação (ao acrescentei ainda, pouco depois, duas
menos que eu possa compreender) outras bastante gerais. A primeira é
entre essa emoção do estômago e o de que jamais acreditei sentir algo, estan
sejo de comer, assim como entre o sen do acordado, que não pudesse, tam
timento da coisa que causa a dor e o bém, algumas vezes, acreditar sentir,
pensamento de tristeza que esse senti ao estar dormindo; e como não creio
mento engendra. E, da mesma manei que as coisas que me parece que sinto
ra, parecia-me que eu aprendera da ao dormir procedam de quaisquer
natureza todas as outras coisas que eu objetos existentes, não via por que
julgava no tocante aos objetos dos sen devia ter antes essa crença no tocante
tidos; porque eu notava que os juízos, àquelas que me parece que sinto ao
que eu me acostumara a formular a estar acordado. E a segunda é que, não
respeito desses objetos, formavam-se conhecendo ainda ou, antes, fingindo
em mim antes que eu tivesse o lazer de não conhecer o autor de meu ser, nada
pesar e considerar quaisquer razões via que pudesse impedir que eu tivesse
que me pudessem obrigar a formulá- sido feito de tal maneira pela natureza
los1 60. que me enganasse mesmo nas coisas
13. Mas, depois1 61, muitas expe que me pareciam ser as mais verdadei
riências arruinaram, pouco a pouco, ras.
todo o crédito que eu dera aos senti 15. E, quanto às razões que me ha
dos. Pois observei muitas vezes que viam anteriormente persuadido da ver
torres, que de longe se me afiguravam dade das coisas sensíveis, não tinha
redondas, de perto pareciam-me qua muita dificuldade em rejeitá-las. Pois,
dradas, e que colossos, erigidos sobre parecendo a natureza levar-me a mui
tas coisas de que a razão me desviava,
os mais altos cimos dessas torres, pare-
não acreditava dever confiar muito nos
ciam-me pequenas estátuas quando as
ensinamentos dessa natureza. E, embo
olhava de baixo; e, assim, em uma infi
ra as idéias que recebo pelos sentidos
nidade de outras ocasiões, achei erros
não dependam de minha vontade, não
nos juízos fundados nos sentidos exte
pensava que se devesse, por isso, con
riores. E não somente nos sentidos
cluir que procediam de coisas diferen
exteriores, mas mesmo nos interiores:
tes de mim, posto que talvez possa
pois haverá coisa mais íntima ou mais
haver em mim alguma faculdade (ape
interior do que a dor? E, ,no entanto, sar de ter até agora permanecido
aprendi outrora de algumas pessoas, desconhecida para mim) que seja a
que tinham os braços e as pernas cor causa dessas idéias e que as produ
tados, que lhes parecia ainda, algumas za1,62
vezes, sentir dores nas partes que lhes 16. Mas, agora que começo a me
haviam sido amputadas; isto me dava lhor conhecer-me a mim mesmo e a
motivo de pensar que eu não podia descobrir mais claramente o autor de
também estar seguro de ter dolorido minha origem, não penso, na verdade,
algum de meus membros, embora sen
tisse dores nele. 1 62 Crítica dos argumentos a) e g) expostos
anteriormente: como já notara a Meditação Tercei
160 É a definição do “pré-juízo”. ra, a “natureza” pode contravir a razão, e o argu
1 61 “E, depois, examinarei as razões que me obri mento proveniente da coerção é abalado pela hipó
garam em seguida a colocá-las em dúvida. . Os tese de uma faculdade desconhecida que podêria
§§ 13 e 14 recapitulam as razões tiradas da Medita produzir, sem o nosso conhecimento, as idéias
ção Primeira. sensíveis.
142 DESCARTES
que deva temerariamente admitir todas já que, de um lado, tenho uma idéia
as coisas que os sentidos parecem ensi- clara e distinta de mim mesmo, na me
nar-nos, mas não penso tampouco que dida em que sou apenas uma çoisa
deva colocar em dúvida todas em pensante e inextensa, e que, de outro,
• geral1*63. tenho uma idéia distinta do corpo, na
17. E, primeiramente, porque sei medida em que é apenas uma coisa
que todas as coisas que concebo clara extensa e que não pensa, é certo que
e distintamente podem ser produzidas este eu, isto é, minha alma, pela qual
por Deus tais como as concebo, basta eu sou o que sou, é inteira e verdadei
que possa conceber clara e distinta ramente distinta de meu corpo e que
mente uma coisa sem uma outra para ela pode ser ou existir sem ele1 6 6.
estar certo de que uma é distinta ou 18. Ainda mais, encontro em imim
diferente da outra, já que podem ser faculdades de pensar totalmente parti
postas separadamente, ao menos pela culares e distintas de mim, as faculda
onipotência de Deus; e não importa des de imaginar e de sentir, sem as
por que potência se faça essa separa quais posso de fato conceber-me clara
ção, para que seja obrigado a julgá-las e distintamente por inteiro, mas que
diferentes1 64. E, portanto, pelo pró não podem ser concebidas sem mim,
prio fato de que conheço com certeza isto é, sem uma substância inteligente
que existo, e que, no entanto, noto que à qual estejam ligadas. Pois, na noção
não pertence necessariamente nenhu que temos dessas faculdades, ou (para
ma outra coisa à minha natureza ou à servir-me dos termos da Escola) no seu
minha essência, a náo ser que sou uma conceito formal, elas encerram alguma
coisa que pensa, concluo efetivamente çspécie de intelecção: donde concebo
que minha essência consiste somente que são distintas de mim, como as
em que sou uma coisa que pensa ou figuras, os movimentos e os outros
uma substância da qual toda a essên modos ou acidentes dos corpos o são
cia ou natureza consiste apenas em dos próprios corpos que os sustentam.
pensar. E, embora talvez (ou, antes, 19. Reconheço, também, em mim
certamente, como direi logo mais) eu algumas outras faculdades, como as de
tenha um corpo ao qual estou muito mudar de lugar, de colocar-me em
estreitamente conjugado1 6 5, todavia, múltiplas posturas e outras semelhan
tes, que não podem ser concebidas,
assim como as precedentes, sem algu
1 63 “E, enfim, considerarei o que devo a respeito
delas agora acreditar.” Em outros termos, não se ma substância à qual estejam ligadas, e
trata mais “agora” de voltar aos “prejuízos” elimi nem, por conseguinte, existir sem ela;
nados pela prova da dúvida; mas tampouco se trata mas é muito evidente que essas facul
de recusar os dados sensíveis em geral, sem anali
sá-los à luz da veracidade divina. Começa, aqui, a dades, se é verdade que existem, devem
parte principal dessa Meditação, em que serão esta ser ligadas a alguma substância corpó-
belecidas as três últimas verdades. • rea ou extensa,, e não a uma substância
1 6 4 Ê o elemento essencial da prova da distinção:
Deus não pode deixar de fazer o que eu concebo inteligente, posto que, no conceito
clara e distintamente. Só este princípio basta para claro e distinto dessas faculdades, há
invalidar todas as conclusões derivadas da união de de fato alguma sorte de extensão que
fato entre a alma e o corpo. se acha contida, mas de modo nenhum
1 6 5 Notar a reserva: não sabemos ainda se a prova
poderá ser aplicada. Cf.: “E se Deus mesmo jun qualquer inteligência1 6 7. Demais, en-
tasse tão intimamente corpo e alma que fosse
impossível uni-los mais, e fizesse um composto des
tas duas substâncias assim unidas, concebemos 166 É a décima verdade. Acerca das noções de dis
também que permaneceríam realmente distintas, tinção real e modal, cf. Princípios, I, 60-61.
não obstante tal união, porque, qualquer que seja a 1 6 7 Esta distinção dos modos da substância exten
ligação que Deus estabeleça entre elas, não poderia sa e dos módos da substância inteligente anuncia
desfazer-se do seu poder de separá-las. . . " (Princí que deve haver em mim outra coisa além do puro
pios, I, 60.) pensamento.
MEDITAÇÕES 143
contra-se em mim certa faculdade pas mente. Pois, não me tendo dado nenhu
siva de sentir, isto é, de receber e ma faculdade para conhecer que isto
conhecer as idéias das coisas sensí seja assim, mas, ao contrário, uma
veis1*68; mas ela me seria inútil, e dela fortíssima inclinação para crer que
não me poderia servir absolutamente, elas me são enviadas pelas coisas cor
se não houvesse em mim, ou em porais ou partem destas, não vejo
outrem, uma faculdade ativa1 6 9, capaz como se poderia desculpá-lo de embai-
de formar e de produzir essas idéias. mento se, com efeito, essas idéias par
Ora, essa faculdade ativa não pode tissem de outras causas que não coisas
existir em mim enquanto sou apenas corpóreas, ou fossem por elas produzi
uma coisa que pensa, visto que ela não das. E, portanto, é preciso confessar
pressupõe meu pensamento1 70, e, tam que há coisas corpóreas que exis
bém, que essas idéias me são frequen tem1 72.
temente representadas sem que eu em 21. Talvez elas não sejam, todavia,
nada contribua para tanto e mesmo, inteiramente como nós as percebemos
amiúde, mau grado meu; é preciso, pelos sentidos, pois essa percepção dos
pois, necessariamente, que ela exista sentidos é muito obscura e confusa em
muitas coisas; mas, ao menos, cumpre
em alguma substância diferente de
confessar que todas as coisas que, den
mim, na qual toda a realidade que há
òbjetivamente nas idéias por ela produ tre elas, concebo clara e distintamente,
isto é, todas as coisas, falando em
zidas esteja contida formal ou eminen
temente (como notei antes). E esta geral, compreendidas no objeto da
Geometria especulativa, aí se encon
substância é ou um corpo, isto é, uma tram verdadeirameme. Mas, no que se
natureza corpórea, na qual está conti refere a outras coisas, as quais ou são
da formal e efetivamente tudo o que
apenas particulares, por exemplo, que
existe objetivamente e por represen o sol seja de uma tal grandeza e de
tação nas idéias; ou então é o próprio uma tal figura, etc., ou são concebidas
Deus, ou alguma outra criatura mais
menos claramente e menos distinta
nobre do que o corpo, na qual isto mente, como a luz, o som, a dor e ou
mesmo esteja contido eminentemen tras semelhantes, é certo que, embora
te1 71. sejam elas muito duvidosas e incertas,
20. Ora, não sendo Deus de modo todavia, do simples fato de que Deus
algum enganador, é muito patente que não é enganador e que, por conse
ele não me envia essas idéias imediata guinte, não permitiu que pudesse haver
mente por si mesmo, nem também por
alguma falsidade nas minhas opiniões,
intermédio de alguma criatura., na qual que não me tivesse dado também algu
a realidade das idéias não esteja conti ma faculdade capaz de corrigi-la, creio
da formalmente, mas apenas eminente poder concluir seguramente que tenho
em mim os meios de conhecê-las com
1 68 Passagem à prova da existência das coisas certeza1 73.
materiais. Parte-se do reconhecimento em mim da
existência de uma sensibilidade passiva.
1 6 9 “Se acreditei que a ação e a paixão são apenas 1 72 Se Deus não nos proporcionou nenhum meio
uma única e mesma coisa a que se atribuíram dois de reconhecer ou de evitar um erro, é porque esta
nomes diferentes...” (A Hyperaspistes, 27 de julho mos diante de uma verdade: processamento análogo
de 1641.) ao de uma prova por absurdo. Assim, fica estabele
170 Se esta faculdade ativa pressupusesse meu cida a décima primeira verdade: certeza absoluta da
pensamento, eu haveria de sabê-lo. existência dos corpos. .
1 71 Esta faculdade ativa deve estar colocada numa 173 O valor do sentimento é especificado: ele vai
substância fora de mim que, em virtude do princípio mais longe do que a simples atestação da existência
de causalidade, será, ou mais “nobre” do que o dos corpos. Por menor que seja o valor objetivo da
corpo (causa eminente), ou o próprio corpo (causa verdade sensível, esta possui, no entanto, um valor.
formal). Ora, a primeira dessas possibilidades Sem embargo, não é ainda visível qual a verdadeira
infringiría o princípio da veracidade divina. função do sentimento e o fim que o justifica.
144 DESCARTES
i 7 e Não estarei indo longe demais ao conceder 1 7 7 Distinção das ordens. “A natureza” designa
esta “verdade” ao sentimento? Não redundará isso somente a substância composta, a zona de mistura
em justificar os “prejuízos da infância” e os erros de da alma e do corpo; e seu “ensinamento” em nada
uma Física “fenomenológica”, como a de Aristó concerne ao conhecimento: limita-se à informação
teles e dos escolásticos? biológica.
146 DESCARTES
considerando a máquina do corpo hu homem, tomada desse modo, seja falí
mano como formada por Deus para ter vel e enganadora1 81. •
em si todos os movimentos que costu 33. Para começar, pois, este exame,
meiramente estão aí, eu tenha motivo noto aqui, primeiramente, que há gran
de pensar que ela não segue a ordem de de diferença entre espírito e corpo, pelo
sua natureza quando a garganta está fato de ser o corpo, por sua própria
seca e que beber prejudica-lhe a con natureza, sempre divisível e o espírito
servação; reconheço, todavia, que este inteiramente indivisível. Pois, com efei
último modo de explicar a natureza é to, quando considero meu espírito, isto
muito diferente do outro180. Pois esta é, eu mesmo, na medida em que sou
não é outra coisa senão uma simples apenas uma coisa que pensa, nao
denominação, a qual depende inteira posso aí distinguir partes algumas,
mente do meu pensamento, que com mas me concebo como uma coisa
para um homem doente e um relógio única e inteira. E, conquanto, o espí
mal feito com a idéia que tenho de um rito todo pareça estar unido ao corpo
homem são e de um relógio bem feito, todo, todavia um pé, um braço ou
e a qual não significa nada que Se qualquer outra parte estando separada
encontre na coisa da qual ela é dita; ao do meu corpo, é certo que nem por isso
passo que, pela outra maneira de expli haverá aí algo de subtraído a meu espí
car a natureza, entendo algo que se rito. E as faculdades de querer, sentir,
encontra verdadeiramente nas coisas e, conceber, etc., nao podem propria
portanto, não deixa de ter alguma mente ser chamadas suas partes: pois o
verdade. mesmo espírito emprega-se todo em
32. Mas, certamente, embora em querer e também todo em sentir, em
relação ao corpo hidrópico trata-se conceber, etc. Mas ocorre exatamente
apenas de uma denominação exterior, o contrário com as coisas corpóreas ou
quando se diz que sua natureza está extensas: pois não há uma sequer que
corrompida, pelo fato de que, sem ter eu não faça facilmente em pedaços por
necessidade de beber, não deixa de ter meu pensamento, que meu espírito não
a garganta seca e árida; todavia, com divida mui facilmente em muitas par
tes e, por conseguinte, que eu não reco
respeito à totalidade do composto, isto
é, do espírito ou da alma unida a este nheça ser divisível. E isso bastaria
para ensinar-me que o espírito ou a
corpo, não se trata de pura denomina
alma do homem é inteiramente dife
ção, mas, antes, de verdadeiro erro da
rente do corpo, se já não o tivesse
natureza, pelo fato de ter sede, quando
suficientemente aprendido alhures1 82.
lhe é muito nocivo o beber; e, portanto, 34. Noto também que o espírito nãò
resta ainda examinar como a bondade recebe imediatamente a impressão de
de Deus não impede que a natureza do todas as partes do corpo, mas somente
do cérebro, ou talvez mesmo de uma
1 80 Antes de passar à justificação de Deus, Des de suas menores partes, a saber, aquela
cartes afastará uma solução inaceitável. Trata-se de
compreender por “minha natureza” o corpo mate
rial como máquina. Portanto, já não procede falar 1 81 Após o malogro da solução materialista, a difi
de falha na natureza, assim como não procede dizer culdade subsiste, pois, totalmente.
que um relógio é “falível” quando não marca a hora 182 O que vai desculpar Deus é a consideração das
certa: não há patologia das máquinas. Mas esta dificuldades suscitadas de fato pela união entre a
solução, que consiste em reduzir a substância com alma e o corpo. Daí por que Descartes, aqui, come
posta humana ao corpo físico (ou ao animal-má- ça pondo em evidência a incompatibilidade dos dois
quina), é evidentemente incompatível com a união termos a unir: o divisível e o indivisível; união,
substancial. Em Descartes, a psicofisiologia huma aliás, que jamais poderemos compreender, mas ape
na não é materialista. nas constatar e descrever.
148 DESCARTES
onde se exerce a faculdade que cha mas somente algumas de suas partes
mam o senso comum, a qual, todas as que passam pelos rins ou pelo pescoço,
vezes que está disposta da mesma isso excite, não obstante, os mesmos
maneira, faz o espírito sentir a mesma movimentos no cérebro que poderiam
coisa183, embora as outras partes do nele ser excitados por um ferimento
corpo possam estar diversamente dis recebido no pé, em decorrência do que
postas, como o testemunha uma infini será necessário que o espírito sinta no
dade de experiências, que aqui não é pé a mesma dor que sentiria se aí tives
necessário relatar1 8 4. se recebido um ferimento. E cumpre
35. Noto, além disso, que a natu julgar algo semelhante a respeito de
reza do corpo é tal que nenhuma de todas as outras percepções de nossos
suas partes pode ser movida por outra sentidos1 8 5.
parte um pouco distanciada, que não 36. Enfim, noto que, como de todos
possa sê-lo também da mesma forma os movimentos que se verificam na
por cada uma das. partes que estão parte do cérebro do qual o espírito re
entre as duas, ainda que esta parte cebe imediatamente a impressão, cada
mais distante não aja de modo algum. um causa apenas um certo sentimento,
Como, por exemplo, a corda ABCD nada se pode desejar nem imaginar
que está inteiramente tensa, se chegar nisso de melhor, senão que esse movi
mos a puxar e mexer a última parte D, mento faça o espírito sentir, entre
a primeira A não se mexerá de maneira todos os sentimentos que é capaz de
diferente da que poderiamos fazê-la causar, aquele que é mais próprio e
mexer-se, se puxássemos uma das par mais ordinariamente útil à conserva
tes médias B ou C, e a última D, no ção do corpo humano quando goza de
entanto, permanecesse imóvel. E, da plena saúde1 8 6. Ora, a experiência nos
mesma maneira, quando sinto uma dor leva a conhecer que todos os senti
no pé, a medicina me ensina que esse mentos que a natureza nos deu são tais
sentimento se comunica por meio de como acabo de dizer; e, portanto, nada
nervos dispersos no pé, que se acham se encontra neles que não tome paten
estendidos como cordas desde esse tes o poder e a bondade de Deus, que
lugar até o cérebro, quando eles são os produziu1 8 7.
puxados no pé, puxam também, ao 37. Assim, por exemplo, quando os
mesmo tempo, o lugar do cérebro de nervos que estão no pé são movidos
fortemente, e mais do que comumente,
onde provêm e onde chegam, e aí exci seu movimento, passando pela medula
tam certo movimento que a natureza
instituiu para fazer sentir dor ao espíri 185 O sistema nervoso é apresentado como um
to, como se essa dor estivesse no pé. feixe de fios que partem da periferia para o centro.
Mas, já que esses nervos devem passar Por isso, qualquer que seja o nível do nervo de onde
se desencadeia o movimento (pé, perna, coxa, rins),
pela perna, pela coxa, pelos rins, pelas ele chegará sempre ao mesmo ponto.
costas e pelo pescoço, para estender-se 18 6 Seja qual for o ponto de partida da tração exer
desde os pés até o cérebro, pode ocor cida sobre ela, a glândula só pode, portanto, receber
um único movimento, o que acarreta uma limitação
rer que, embora suas extremidades que considerável da integração nervosa. Deus precisou
se acham no pé não sejam movidas, escolher, para o conjunto dos movimentos indife-
rençáveis de cada nervo, a sinalização mais útil ao
homem.
183 A glândula pineal. 1 8 7 Essa solução do problema, conforme ao princí
18 4 Somente ao nível da glândula pode o espírito pio do melhor, possibilita todavia o erro. Mas ela
receber as impressões sensoriais, e o sentimento só surge agora como o preço inevitável do mal míni
varia em função da variação na disposição dessa mo, tomando-se, pois, compatível com a bondade
pequena glândula. de Deus.
MEDITAÇÕES 149
da espinha dorsal até o cérebro, provo dor como se ela estivesse no pé e o sen
ca uma impressão no espírito que lhe tido será naturalmente enganado; por
faz sentir algo, isto é, dor, como estan que o mesmo movimento no cérebro
do no pé, pela qual o espírito é adver não podendo causar no espírito senão
tido e excitado a fazer o possível para o mesmo sentimento e este sentimento
afugentar sua causa, como muito peri sendo muito mais freqüentemente exci
gosa e nociva para o pé. tado por uma causa que fere o pé, do
38. Ê verdade que Deus podia esta que por alguma outra que esteja alhu
belecer a natureza do homem de tal res, é bem mais razoável que ele leve
sorte que esse mesmo movimento no ao espírito a dor do pé do que a dor de
cérebro fizesse com que o espírito sen alguma outra parte188. E, embora a
tisse uma coisa inteiramente diferente: secura da garganta nem sempre prove
por exemplo, que o movimento se nha, como de ordinário, do fato de que
fizesse sentir a si mesmo, ou na medida beber é necessário para a saúde do
em que está no cérebro, ou na medida corpo, mas algumas vezes de uma
em que está no pé, ou ainda na medida causa inteiramente contrária, como
em que situado em qualquer outro experimentam os hidrópicos, todavia é
lugar entre o pé e o cérebro, ou, enfim, muito melhor que ela engane neste
qualquer outra coisa, tal como ela caso do que se, ao contrário, ela enga
possa ser; mas nada disso teria contri nasse sempre quando o corpo está bem
buído tão bem para a conservação do disposto; e, assim, em relação às ou
corpo quanto aquilo que lhe faz sentir. tras coisas.
39. Da mesma maneira, quando 42. E certamente essa consideração
temos necessidade de beber, nasce daí me serve muito, não somente para
certa secura na garganta que move reconhecer todos os erros a que minha
seus nervos e, por intermédio deles, as natureza está sujeita, mas também
partes interiores do cérebro; e esse para evitá-los ou para corrigi-los mais
movimento faz com que o espírito facilmente: pois, sabendo que todos os
experimente o sentimento da sede por meus sentidos me significam mais
que, nessa ocasião, nada há que nos ordinariamente o verdadeiro do que o
seja mais útil do que saber que temos falso no tocante às coisas que se refe
necessidade de beber, para a conserva rem às comodidades ou incomodi-
ção da saúde; e assim quanto aos dades do corpo, e podendo quase sem
outros. pre me servir de vários dentre eles para
40. Donde é inteiramente manifesto examinar uma mesma coisa e, além
que, não obstante a soberana bondade disso, podendo usar minha memória,
de Deus, a natureza do homem, en para ligar e juntar os conhecimentos
quanto composto do espírito e do presentes aos passados, e meu entendi
corpo, não pode deixar de ser, algumas mento, que já descobriu todas as cau
vezes, falível e enganadora. sas de meus erros, não devo temer
41. Pois, se há alguma causa que
excite, não no pé, mas em qualquer 1 8 8 “Justificação” da ilusão dos amputados. Po-
uma das partes do nervo que está ten der-se-ia perguntar se Deus é inteiramente descul
pado. Afinal de contas, por que colocou ele os
dido desde o pé até o cérebro, ou dados do problema da união de maneira que não
mesmo no cérebro, o mesmo movi haja solução perfeita? A Meditação Quarta, porém,
nos ensinou que ignoramos quais são os fins de
mento que se faz ordinariamente quan Deus e que a imperfeição do pormenor pode contri
do o pé está mal disposto, sentir-se-á a buir para a perfeição do conjunto.
150 DESCARTES
soberano ser; e então seremos os pri não sabeis ainda que sois uma' coisa
meiros anos render a vosso raciocínio, pensante, porquanto, segundo vós, tal
e dar-nos-emos todos as mãos. Ora, conhecimento depende do conheci
que tal idéia procede dessas noções mento claro de um Deus existente, que
antecipadas, patenteia-se, parece, ainda não demonstrastes, nos lugares
assaz claramente do fato de os cana onde concluís que conheceis clara
denses, os hurões e os outros homens mente o que sois. Adicionai a isso que
selvagens não possuírem neles tal um ateu conhece clara e distintamente
idéia, a qual podeis até formar do que os três ângulos de um triângulo
conhecimento que tendes das coisas são iguais a dois retos, embora esteja
corporais; de sorte que vossa idéia muito longe de crer na existência de
nada mais representa senão esse Deus, posto que a negou completa
mundo corporal, que abrange todas as mente: porque, diz ele, se Deus existis
perfeições que poderieis imaginar; de se, haveria um soberano ser e um sobe
sorte que não podeis concluir outra rano bem, isto é,. um infinito; ora, o
coisa, exceto que há um ente corpóreo que é infinito, em todo gênero de
muito perfeito; a não ser que junteis- perfeição, exclui toda outra coisa que
algo mais, que eleve vosso espírito ao seja não somente toda espécie de ser e
conhecimento das coisas espirituais ou de bem mas, outrossim, toda espécie de
incorpóreas. Ainda aqui é possível não-ser e de mal; no entanto, há mui
afirmar que a idéia de um anjo pode tos seres e muitos bens,, assim como
existir em vós, tanto quanto a de um muitos não-seres e muitos males; obje
ser mais perfeito, sem que haja necessi
ção à qual julgamos ser oportuno que
dade, para tanto, de que seja formada
vós respondais, de modo que aos ím
em vós por um anjo realmente existen
te, embora o anjo seja mais perfeito do pios nada mais reste a objetar, e que
que vós. Mas não tendes a idéia de possa servir de pretexto à sua impieda
de.
Deus, assim comò a de um número ou
a de uma linha infinita; e, ainda que Em quarto lugar, negais que Deus
pudésseis tê-la, este número é inteira possa mentir ou enganar; conquanto se
mente impossível. Adicionai a isto que encontrem escolásticos que sustentam
a idéia de unidade e simplicidade de o contrário, como Gabriel, Arimi-
uma única perfeição que envolva e nensis e alguns outros, os quais pen
contenha todas as outras constitui-se sam que Deus mente, falando absolu
unicamente pela operação do entendi tamente, isto é, que ele significa algo
mento que raciocina, assim como se aos homens contra sua intenção, e con
constituem as unidades universais, que tra o que decretou e resolveu, como
quando, sem acrescentar condição, diz
não estão nas coisas, mas somente no
aos ninivitas por seu profeta: Ainda
entendimento, como é visível pela uni
quarenta dias, e Nínive será subver
dade genérica, transcendental, etc.
tida, e ao dizer muitàs outras coisas
Em terceiro lugar, como ainda não que não aconteceram, porque não pre
estais certo da existência de Deus e tendeu que tais palavras correspon
dizeis, no entanto, que não podeis estar dessem à sua intenção ou a seu decre
seguro de coisa alguma, ou conhecer to. Por que se empederniu e cegou o
coisa alguma clara e distintamente, se Faraó, e, se pôs nos profetas um espí
primeiro não conheceis certa e clara rito de mentira, como podeis afirmar
mente que Deus existe, segue-se que que não podemos ser enganados por
158 DESCARTES
ele? Não pode Deus comportar-se com espírito que a governa e, se, ao contrá
os homens como um médico com seus rio, expõe-se ao perigo, quando perse
doentes, e um pai com seus filhos, que gue e abrange os conhecimentos^ obs
tanto um como outro enganam tão curos e confusos do entendimento,
amiúde, mas sempre com prudência e notai que daí parece possível inferir
utilidade? Pois se Deus nos mostrasse que os turcos e os outros infiéis não só
a verdade inteira e nua, que olho ou, não pecam quando não abraçam a reli
antes, que espírito possuiría bastante gião cristã e católica mas até mesmo
força para suportá-la8 ? pecam quando a abraçam, pois não
Ainda que, a bem dizer, não seja conhecem sua verdade nem clara nem
necessário supor um Deus enganador, distintamente. Ainda mais, se for ver
para que sejais decepcionados nas coi dadeira essa regra que estabeleceis,
sas que pensais conhecer clara e distin não será dado à vontade abranger
tamente, visto que a causa dessa senão pouquíssimas coisas, visto que
decepção pode estar em vós, embora não conhecemos quase nada com a
nem sequer o sonheis. Pois como sa clareza e distinção que exigis, para
beis que vossa natureza não é tal que constituir uma certeza que não esteja
ela se engana sempre, ou ao menos sujeita a nenhuma dúvida. Tomai,
com muita freqüência? E onde vos pois, cuidado, se vos apraz, para que,
informaram que, ho tocante às coisas pretendendo firmar o partido da verda
que pensais conhecer clara e distinta de, não proveis mais do que o necessá
mente, é certo que nunca estivestes rio, e para que, em vez de apoiá-lo, não
enganado, e que não o podeis estar? o derrubeis.
Pois quantas vezes verificamos que as Em sexto lugar, nas vossas respostas
pessoas se enganam em coisas que às objeções precedentes, parece que
pensavam ver mais claramente do que deixastes de tirar a devida conclusão
o sol! Portanto, esse princípio do do seguinte argumento: O que entende
conhecimento claro e distinto deve ser mos pertencer clara e distintamente à
explicado tão clara e distintamente natureza, ou à essência, ou à forma
que, doravante, ninguém dotado de imutável e verdadeira de qualquer
espírito razoável possa ficar decepcio coisa, pode ser dito ou afirmado com
nado nas coisas que julgar conhecer verdade desta coisa; mas (depois de
clara e distintamente9; de outro modo, observar assaz cuidadosamente o que é
ainda não vemos nada que possamos Deus) entendemos clara e distinta
responder com certeza sobre a verdade mente que pertence à sua verdadeira e
de qualquer coisa. imutável natureza, que ele existeyQ.
Em quinto lugar, se a vontade nunca
pode falhar, ou não peca de maneira 10 O silogismo das Primeiras Respostas ao qual se
alude é o seguinte: o que concebemos clara e distin
alguma, quando segue e se deixa con tamente pertencer à natureza de uma coisa, pode
duzir pelas luzes claras e distintas do mos afirmar com verdade desta coisa; ora, concebe
mos clara e distintamente que pertence à natureza
de Deus existir; logo, Deus existe. As Primeiras
8 Oposição — embaraçosa para o autor — do Respostas concedem que “a dificuldade da menor
Deus cartesiano ao Deus antropomórfico das não é pequena”: l.° devido à distinção que fazemos
Escrituras. entre essência e existência “em todas as outras coi
8 O princípio de clareza e distinção é ele mesmo sas”; 2.° devido ao fato de que a idéia de Deus pre
claro e distinto? Ou então não designa ele senão cisa corresponder a uma “natureza verdadeira e
uma certeza psicológica e subjetiva, não passando, imutável” e de que eu devo poder verificar qüe ela
por conseguinte, como dirá Leibniz, de “uma marca não foi forjada pelo meu entendimento. Descartes
de certeza obscura e sujeita ao capricho dos responde a essas duas dificuldades prejudiciais ao
homens”? fim das Primeiras Respostas. \
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 159
nhecer tanto melhor uma coisa quanto mais útil para alcançar um firme e se
mais particularidades dela conhece guro conhecimento das coisas do que
mos; assim, temos mais conhecimento acostumar-se, antes de estabelecer
daqueles com quem conversamos algo, a duvidar de tudo e principal
todos os dias do que daqueles de que mente das coisas corporais, embora
só conhecemos o nome ou o rosto; e houvesse visto há longo tempo muitos
todavia não julgamos que esses nos livros escritos pelos céticos e acadê
sejam inteiramente desconhecidos; micos sobre a matéria e não fosse sem
nesse sentido penso ter suficientemente certo fastio que ruminava um alimento
demonstrado que o espírito, conside tão comum, não pude todavia dispen-
rado sem as coisas que se costumam sar-me de lhe conceder uma Meditação
atribuir ao corpo, é mais conhecido inteira; e gostaria que os leitores
que o corpo considerado sem o espíri empregassem não apenas o pouco
to. E é tudo o que pretendia provar tempo necessário para lê-la, mas al
nessa Meditação Segunda. guns meses, ou ao menos algumas
Mas bem vejo o que pretendeis semanas, em considerar as coisas de
dizer, a saber, que, havendo eu escrito que ela trata, antes de passar além;
apenas seis Meditações sobre a Filoso pois assim não duvido que aufiram
fia primeira, os leitores se espantarão lucro bem melhor da leitura do restan
de que, nas duas primeiras, não con te.
clua nada mais senão o que acabo de Ademais, por não termos tido até
declarar nesse instante, e pôr isso hão agora quaisquer idéias das coisas per
de achá-las demasiado estéreis e indig tencentes ao espírito que não fossem
nas de terem sido trazidas à luz1*6. A muito confusas e misturadas às idéias
isso respondo somente não temer que das coisas sensíveis, e por ter sido esta
aqueles que houverem lido com discer a primeira e principal razão pela qual
nimento o restante do que escrevi te não se pôde entender assaz claramente
nham ocasião de suspeitar que eu haja nenhuma das coisas que se diziam de
malogrado no trato da matéria; mas Deus e da alma, pensei que não faria
que me pareceu muito razoável que as pouco se mostrasse como é preciso dis
coisas que exigem particular atenção, e tinguir as propriedades ou qualidades
devem ser consideradas separadamente do espírito das propriedades ou quali
das outras, fossem postas em Medita dades do corpo, e como é preciso
ções separadas1 7. reconhecê-las; pois, embora muitos já
Eis por que, não conhecendo nada tenham dito que, para bem entender as
coisas imateriais ou metafísicas, é
1 6 “Isto poderia ser dito em quatro palavras e esta necessário distanciar o nosso espírito
ríamos todos de acordo. Se eu devesse gastar tantas
palavras e tempo para aprender uma coisa de tão dos sentidos, não obstante ninguém,
pouca importância, teria dificuldade de me resignar que eu saiba, mostrou ainda por que
a. isso”, é o que Descartes faz dizer a seu adversário meio é possível realizá-lo. Ora, o
no diálogo La Recherche de la Vérité. Kant terá de verdadeiro, e a meu juízo, o único meio
defender-se da mesma censura e fará muitas vezes
observar que é preciso distinguir entre o tema da para isso está contido na minha Medi
finitude de nosso conhecimento, lugar-comum da tação Segunda1 8; mas é de tal ordem
Metafísica, e a demonstração e determinação preci
sa dos limites de nosso conhecimento.
1 7 Cf. Cartas, a Mersenne, de 24 de dezembro de 18 Este “único meio” é “o método de segregação”
1640, sobre a diferença essencial entre a ordem das (Guéroult, t. I, 69): não posso me conceber 'clara e
matérias e a ordem das razões: “Não intento abso distintamente senão excluindo tudo de mim salvo o
lutamente dizer em um mesmo lugar tudo quanto pensamento (distinção real), não posso conceber as
pertence a uma matéria, porque me seria impossível faculdades não intelectuais de meu éspírito sem
prová-lo efetivamente. . .” incluir nelas o pensamento (distinção modal).
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 163
que não basta tê-lo encarado uma vez, dar algum. Pois, o que direis vós? Que
cumpre examiná-lo amiúde e conside essas coisas são realmente distintas,
rá-lo durante muito tempo, a fim de podendo cada qual existir sem a outra?
que o hábito .de confundir as coisas Mas eu tomaria a perguntar-vos de
intelectuais com as corporais, que se onde sabeis que uma coisa pode existir
enraizou em nós no curso de toda a sem a outra. Pois, para que isso consti
nossa vida, possa ser expungido por tua um signo de distinção, é necessário
um hábito contrário, o de distingui-las, que seja conhec-ido.
adquirido pelo exercício de alguns Alegareis talvez que os sentidos vo-
dias. E isso me pareceu uma causa lo fazem conhecer, por que vedes uma
bastante justa para que não versasse coisa na ausência de outra, ou porque
outra matéria na Meditação Segunda. a tocais, etc. Mas a fé dos sentidos é
Perguntais aqui como demonstro mais incerta que a do entendimento; e
que o corpo não pode pensar; mas per pode acontecer de muitas maneiras que
doai-me se respondo que ainda não dei uma só e mesma coisa se apresente a
lugar a tal questão, tendo apenas nossos sentidos sob diversas formas,
começado a tratá-la na Meditação ou em diversos lugares e maneiras,
Sexta, pelas seguintes palavras: É sufi sendo assim tomada por duas. E enfim,
ciente que eu possa clara e distinta se vos recordais do que foi dito da cera
mente conceber uma coisa sem outra, ao termo da Meditação Segunda, sa
para ser certo que uma é distinta ou beis que os corpos mesmos não são
diferente da outra, etc. E pouco depois: propriamente conhecidos pelos senti
Ainda que eu tenha um corpo que me dos, mas só pelo entendimento; de tal
seja mui estreitamente ligado, no en modo que sentir uma coisa sem uma
tanto, porque, de um lado, possuo uma outra nada é senão ter a idéia de uma
idéia clara e distinta de mim próprio, coisa, e entender que essa idéia não é a
na medida em que sou apenas uma mesma que a idéia de uma outra: ora,
coisa que pensa, e não extensa, e que, isso só é cognoscível pelo fato de que
de outro, possuo uma idéia clara e dis uma coisa é concebida sem a outra; o
tinta do corpo, na medida em que é que não pode ser certamente conheci
apenas uma coisa extensa, e que não do, se não se tem a idéia clara e dis
pensa, é certo que eu, isto é, meu espí tinta dessas duas coisas: e assim esse
rito, ou minha alma, pela qual sou o signo de real distinção deve reduzir-se
que sou, é inteira e verdadeiramente ao meu para tomar-se certo.
distinta de meu corpo, e que pode ser Porque, se há os que negam haver
ou existir sem ele. Ao que é facil adi idéias distintas do espírito e do corpo,
cionar: Tudo o que pode pensar é espí nada posso fazer, exceto pedir-lhes que
rito, ou se chama espírito. Mas como o considerem assaz atentamente as coi
corpo e o espírito são realmente distin sas contidas nessa Meditação Segunda,
tos, nenhum corpo é espírito. Logo, ne e notem que a opinião, por eles adota
nhum corpo pode pensar. E certamente da, de que as partes do cérebro concor
nada vejo nisso que possais negar; pois rem com o espírito para formar nossos
negareis vós que basta concebermos pensamentos não se baseia em nenhu
claramente uma coisa sem outra, para ma razão positiva, mas apenas em que
sabermos que são realmente distintas? jamais experimentaram ter existido
Dai-nos, portanto, algum signo mais sem corpo, e que com muita freqüência
certo da distinção real, se é que se pode foram impedidos por ele em suas
164 DESCARTES
se livre a si mesmo dos prejuízos que lhes prestar grande atenção. Ora, de
lhe ofuscam talvez a luz natural, e se tudo isso, conclui-se mui manifesta
acostume a dar crédito às primeiras mente que Deus existe21. E todavia,
noções, cujos conhecimentos são tão em favor daqueles cuja luz natural é
verdadeiros e tão evidentes, como nada tão fraca, que não vêem que constitui
mais pode sê-lo, de preferência às opi uma primeira noção que toda a perfei
niões obscuras e falsas, mas que um ção que está objetivamente numa idéia
longo uso gravou profundamente em deve estar realmente em alguma de
nossos espíritos. suas causas, ainda a demonstrei de
Pois que nada exista em um efeito maneira fácil de conceber, mostrando
que não tenha existido de forma seme que o espírito que tem esta idéia não
lhante ou mais excelente na causa é pode existir por si próprio; e, portanto,
uma primeira noção, e tão evidente, não vejo o que podeis desejar mais
que não há nada mais claro; e esta para me dardes as mãos, como haveis
outra noção comum, que de nada nada prometido.
se faz, a compreende em si, porque, se Não vejo tampouco que tenhais pro
se concorda que exista algo no efeito vado algo contra mim, dizendo que tal
que não existiu na sua causa, cumpre vez eu tenha recebido a idéia que me
concordar também que isso procede do representa Deus dos pensamentos que
nada; e se é evidente que o nada não concebi anteriormente, dos ensina
pode ser a causa de algo, é somente mentos dos livros, dos discursos de
porque, nesta causa, não haveria a meus amigos, etc., e não somente de
mesma coisa do que no efeito. meu espírito. Pois meu argumento terá
sempre a mesma força, se, dirigindo-
Constitui também uma primeira me àqueles de quem se diz que eu a
noção que toda a realidade, ou toda a recebi, eu lhes perguntar se.a têm por
perfeição, que só está objetivamente si mesmos, ou por outrem, em vez de
nas idéias, deve estar formal ou emi perguntá-lõ a mim próprio; e eu con
nentemente nas suas causas; e toda cluirei sempre que este outro é Deus,
opinião que jamais nutrimos sobre a de quem ela é primeiramente derivada.
existência das coisas fora de nós Quanto ao que acrescentais neste
apóia-se tão-somente nela. Pois de ponto, de que ela pode ser formada da
onde nos podería advir a suspeita de consideração das coisas corporais, não
que existissem, se não do simples fato me parece mais verossímil do que se
de suas idéias virem pelos sentidos disserdes que não dispomos de qual
ferir nosso espírito? quer faculdade auditiva, mas que, pela
Ora, que há em nós alguma idéia de simples visão das cores, chegamos ao
um ente soberanamente poderoso e conhecimento dos sons. Pois pode-se
perfeito, e também que a realidade afirmar que há mais analogia ou rela
objetiva desta idéia não se encontra em ção entre as cores e os sons do que
nós, nem formal, nem eminentemente, entre as coisas corporais e Deus. E
isto tornar-se-á manifesto aos que pen quando pedis que eu adicione alguma
sarem seriamente no assunto, e quise
rem dar-se ao trabalho de meditá-lo 21 Toda essa página é menos uma resposta do que
comigo; mas não podería enfiá-lo à uma retomada da primeira prova pelos efeitos cujas
força no espírito dos que lerem as mi articulações Descartes se limita a pôr em evidência
(localização do problema, axiomas, raciocínio por
nhas Meditações apenas como um exclusão). O que mais responder aos que não soube
romance, para se desenfadar, e sem ram situar-se no plano da “luz natural”?
166 DESCARTES
les que misturam a esta algumas outras pode' ser concebida pelo exclusivo
idéias compõem por tal meio um Deus entendimento e que, de fato, não é
quimérico em cuja natureza existem outra coisa senão aquilo que ele nos
coisas que se contrariam; e, após tê-lo faz conhecer, seja pela primeira, seja
assim composto, não é de espantar que pela segunda, seja pela terceira de suas
neguem que tal Deus, que lhes é repre operações. E pretendo manter que, do
sentado por uma falsa idéia, existe. simples fato de alguma perfeição, que
Assim, quando vós falais aqui de um está acima de mim, tornar-se o objeto
ser corporal mui perfeito, se tomais a de meu entendimento, de qualquer
denominação mui perfeito de modo forma que se lhe apresente — por
absoluto, de maneira que entendais que exemplo, do simples fato de eu perce
o corpo é um ser onde se encontram ber que nunca posso, enumerando,
todas as perfeições, dizeis coisas que se chegar ao maior de todos os números,
contrariam2*4, posto que a natureza do e daí eu conhecer que existe algo, em
corpo encerra muitas imperfeições, por matéria de números, que ultrapassa
exemplo, a que o corpo seja divisível minhas forças —, posso concluir ne
em partes, que cada uma de suas par cessariamente não que existe na verda
tes não seja a outra, e outras semelhan de um número infinito, nem tampouco
tes; pois é algo evidente por si que que sua existência implica contradi
constitui maior perfeição não poder ser ção, como dizeis, mas que este poder
dividido do que poder sê-lo. Pois se que tenho de compreender que há sem
entendeis apenas o que é mui perfeito pre alguma coisa a mais a conceber no
no gênero do corpo, isto não é de maior dos números, que eu jamais
modo algum o .verdadeiro Deus. posso conceber, não provém de mim
O que acrescentais da idéia de um mesmo, e que eu o recebi de algum
anjo, o qual é mais perfeito do que nós, outro ser que é mais perfeito do que
a saber, que não é necessário que tenha sou.
sido posta em nós por um anjo, estou E importa muito pouco que se dê o
facilmente de acordo; pois eu próprio nome de idéia a esse conceito de um
declarei, na Meditação Terceira, que número indefinido, ou que não Iho
ela pode compor-se das idéias que dêem. Mas, para entender qual é esse
temos de Deus e do homem. E isso não ente mais perfeito do que eu e saber se
me é de forma alguma, contrário. não é esse mesmo número, cujo fim
Quanto aos que negam possuir em si não posso encontrar, que é realmente
a idéia de Deus e em seu lugar forjam existente e infinito, ou se é outra coisa
algum ídolo, etc., esses, digo eu, negam qualquer, cumpre considerar todas as
o nome e concedem a coisa. Pois certa outras perfeições, as quais, além do
mente não penso que tal idéia seja da poder de me dar esta idéia, podem exis
mesma natureza que as imagens das tir na mesma coisa em que existe este
coisas materiais pintadas na fantasia; poder; e assim verificamos que esta
mas, ao contrário, .creio que ela só coisa é Deus.
Enfim, quando Deus é dito inconce
2 4 “O ser corporal mui perfeito” é uma expressão bível, por isso se entende uma plena e
contraditória se referirmos “corporal” à sua defini inteira concepção, que compreende e
ção cartesiana (extensão divisível); mas não, se
compreendermos apenas por corporal uma “subs abrange perfeitamente tudo quanto há
tância sensível”, como procedem os teólogos. As nele, e não essa concepção medíocre e
próprias palavras não têm o mesmo sentido. “Não imperfeita que há em nós, a qual no
se define bem o corpo como uma substância sensí
vel.” (A Morus, 5 de fevereiro de 1649.) entanto basta para conhecer que ele
168 DESCARTES
existe. E nada provais contra mim, ensinada por ele sentir em si próprio
dizendo que a idéia da unidade de que não pode se dar que ele pense, caso
todas as perfeições que há em Deus é não exista. Pois é próprio de nosso
formada da mesma maneira que a uni espírito formar as proposições gerais
dade genérica e a dos outros univer pelo conhecimento das particulares.
sais. Mas, não obstante, ela é muito Ora, que um ateu possa conhecer
diferente; pois denota uma particular e claramente que os três ângulos de um
positiva perfeição em Deus, ao passo triângulo são iguais a dois retos, não o
que a unidade genérica nada acres nego2 6; mas sustento apenas que não
centa de real à natureza de cada conhece isso por uma ciência verda
indivíduo. deira é certa, porque todo conheci
Em terceiro lugar, onde afirmei que mento que se pode tornar duvidoso
nada podemos saber de certo, se não não deve ser denominado ciência, e
conhecermos primeiramente que Deus uma vez que se supõe tratar-se de um
existe, afirmei, em termos expressos, ateu, não pode ele ter certeza de não
que falava apenas da ciência dessas ser enganado nas coisas que lhe pare
conclusões, cuja lembrança nos pode cem muito evidentes, como já foi mos
retornar ao espírito, quando não mais trado mais acima; e, embora essa dúvi
pensamos nas razões de onde as tira da talvez não lhe ocorra ao
mos2*5. Pois o conhecimento dos pri pensamento, pode no entanto ocorrer-
meiros princípios ou axiomas não cos lhe, se a examinar, ou se lhe for pro
tuma ser chamado ciência pelos posta por outrem; e nunca estará fora
dialéticos. Mas, quando percebemos do perigo de concebê-la, caso não
que somos coisas pensantes, trata-se de reconheça primeiramente um Deus.
uma primeira noção que não é extraída
de nenhum silogismo; e quando al E não importa que talvez julgue
guém diz: Penso, logo sou, ou existo, haver demonstrações para provar que
ele não conclui sua existência de seu Deus não existe; pois, como essas pre
pensamento como pela força de algum tensas demonstrações são falsas, é
silogismo, mas como uma coisa conhe sempre possível dar-lhe a conhecer a
cida por si; ele a vê por simples inspe sua falsidade; e levá-lo, então, a mudar
ção do espírito. Como se evidencia do de opinião. O que na verdade não será
fato de que, se a deduzisse por meio do difícil, se por todas as razões ele apre
silogismo, deveria antes conhecer esta sentar somente a que acrescentais aqui,
premissa maior: Tudo o que pensa é ou a saber, que o infinito em todo gênero
existe. Mas, aó contrário, esta lhe é de perfeição exclui toda outra espécie
de ser, etc.
2 5 A Meditação Quinta fala da ciência das verda Pois, primeiramente, se se lhe per
des mediatas. Esta é que é garantida por Deus, de
scrte. que não devo efetuar de novo a demonstração gunta de onde ficou sabendo que esta
para obter novamente a certeza. A questão dessa exclusão de todos os outros seres per
garantia não se coloca, portanto, para os per se nota tence à natureza do infinito, nada terá
conhecidos intuitivamente. Por isso poderá Descar
tes escrever, nas Quartas Respostas, referindo-se a para responder pertinentemente, posto
• esta passagem: “Fiz ver bastante claramente. . . que, .pelo nome infinito, não se costu-
que não incidi na falta que se chama círculo”, asse
gurando através de Deus as coisas conhecidas
clara e distintivamente e a existência de Deus atra 2 6 Não se trata agora das garantias de minha ciên
vés do pensamento claro e distinto. Pois distingui cia, mas das próprias verdades.. Descartes não
“as coisas que concebemos de fato mui claramente negou que um ateu pudesse ser matemático, mas
das que nos recordamos haver outrora concebido que pudesse manter a certeza de que as verdades
mui claramente”. evidentes são verdadeiras.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 169
ma entender aquilo que exclui a exis parece que lhe são atribuídas algumas
tência das coisas finitas, e que ele nada paixões humanas.
pode saber da natureza de uma coisa Pois todos conhecem suficiente
que ele pensa não ser absolutamente mente a distinção que há entre essas
nada, e por conseguinte não ter nenhu maneiras de falar de Deus, de que a
ma natureza, exceto a que está contida Escritura se serve comumente, que se
na simples e ordinária significação do acomodam à capacidade do vulgo e
nome dessa coisa2*7* . contêm de fato alguma verdade, mas
Ademais, para que serviria o infinito apenas na medida em que esta se rela
poder desse infinito imaginário, se não ciona aos homens, e as que expressam
pudesse jamais criar algo? E enfim, uma verdade mais simples e mais pura
por experimentarmos haver em nós e que não muda de natureza, embora
mesmos certo poder de pensar, conce não se lhes relacione de modo
bemos facilmente que tal poder possa algum29; destas é que cada qual deve
existir em alguém mais, e até maior do usar ao filosofar e foi delas que preci
que em nós; mas, ainda que pensemos sei utilizar-me principalmente nas mi
que aquele cresce ao infinito, não nhas Meditações, visto que mesmo aí
tememos por isso que o nosso se tome eu não supunha ainda que algum
menor. O mesmo sucede com todos os homem me fosse conhecido, e não me
outros atributos de Deus, inclusive o considerava tampouco composto de
do poder de produzir alguns efeitos corpo e espírito, mas um espírito
fora de si, desde que suponhamos que somente.
nada há em nós sem que esteja subme
tido à vontade de Deus; portanto, é De onde se toma evidente que não
possível entendê-lo como totalmente falei nesse ponto da mentira que se
infinito sem qualquer exclusão das coi exprime por palavras, mas apenas da
sas criadas28. malícia interna e formal contida no
Em quarto lugar, quando digo que engano: se bem que, no entanto, essas
Deus não pode mentir, nem ser enga palavras que citais do profeta: Ainda
nador, penso convir com todos os teó quarenta dias, e Nínive será subver
logos que alguma vez existiram e hão tida, não constituam mesmo uma men
de existir no futuro. E tudo quanto ale tira verbal, porém uma simples amea
gais em contrário não possui mais ça, cuja ocorrência dependia de uma
força do que se, tendo negado que condição; e quando é dito que Deus
Deus se encoleriza, ou que esteja sujei empederniu o coração do Faraó, ou
to às outras paixões da alma, me obje algo semelhante, não cumpre pensar
tardes as passagens da Escritura onde que o tenha feito positivamente, mas
apenas negativàmente, a saber, não
2 7 Passamos agora à prova da não existência de dando ao Faraó uma graça eficaz para
Deus alegada pelos teólogos. Em primeiro lugar, a que se convertesse.
definição do infinito é fabricada sob medida e tanto
mais arbitrariamente quanto o ateu se limita a tor Não desejaria, apesar de tudo, con
nar explícito um nome, porquanto recusa a colocar denar aqueles que afirmam que Deus
uma essência. pode proferir por seus profetas alguma
28 Em segundo lugar, não se pode dizer que o infi
nito seja exclusivo da pluralidade das coisas'cria mentira verbal, tais como o são aque
das. Notar-se-á o caráter spinozista do raciocínio las de que se servem os médicos quan-
do ateu. A pluralidade existe, diz ele, logo o infinito
não existe. O infinito existe, logo é preciso que a
pluralidade seja ilusória, dirá Spinoza. As conclu 2 9 Distinção, que será retomada por Spinoza, entre
sões são inversas, mas a incompatibilidade é a a linguagem antropomórfica das Escrituras e a ver
mesma. dade filosófica que ela reveste.
170 DESCÀRTES
possa tê-la das coisas obscuras e con a tomaram dos sentidos ou de algum
fusas, por pouca obscuridade ou con falso preconceito. De nada vale, ou-
fusão que nelas observemos; pois tal trossim, que alguém suponha que tais
obscuridade, qualquer que seja, é coisas parecem falsas a Deus ou aos
causa assaz suficiente para nos fazer anjos, porque a evidência de nossa per
duvidar dessas coisas. Tampouco po cepção não permitirá que ouçamos a
demos tê-la das coisas percebidas ape quem o tenha suposto e nos queira
nas pelos sentidos, não importa a cla persuadir32.
reza que ocorra em sua percepção, Há outras coisas que nosso entendi
porque muitas vezes já notamos que no mento também concebe muito clara
sentido pode haver erro, como quando mente, quando observamos de perto as
um hidrópico sente sede, ou a neve pa razões de que depende seu conheci
rece amarela a quem sofre de icterícia; mento; e, por issó, não podemos,
pois este último não a vê menos clara e então, duvidar dele. Mas, dado que
distintamente desta forma do que nós a podemos esquecer as razões, e no
quem ela parece branca. Resta, portan entanto recordar as conclusões daí
to, que, se podemos tê-la, é somente extraídas, pergunta-se se é possível ter
das coisas que o espírito concebe clara uma firme e imutável persuasão sobre
e distintamente. essas conclusões, ao passo que nos
Ora, entre tais coisas, algumas há lembramos de que foram deduzidas de
tão claras e ao mesmo tempo tão sim princípios mui evidentes; pois esta
ples que nos é impossível pensar nelas lembrança deve pressupor-se para que
sem que as julguemos verdadeiras: por possam chamar-se conclusões. E eu
exemplo, que existo quando penso, que respondo que só podem tê-la os que
as coisas que foram alguma vez feitas conhecem de tal modo Deus a ponto
não podem não ter sido feitas e outras de saberem que não pode acontecer
semelhantes, das quais é manifesto que que a faculdade de entender, que lhes
possuímos perfeita certeza. foi dada por ele, tenha por objeto outra
coisa se não a verdade; mas que os ou
Pois não podemos duvidar dessas tros não a têm. E isso foi tão clara
coisas sem pensar nelas; mas não mente explicado ao fim da Meditação
podemos jamais pensá-las sem acredi Quinta que não penso dever aqui
tar que sejam verdadeiras, como acabo acrescentar-lhe algo.
de dizer; logo, não podemos duvidar Em quinto lugar, surpreendo-me de
delas sem as crermos verdadeiras, isto que negueis que a vontade corre o peri
é, nunca podemos duvidar delas31. go de falhar, quando persegue e envol
E de nada serve alegar que verifi ve os conhecimentos obscuros e confu
camos muitas vezes que pessoas se sos do entendimento. Pois, o que é que
enganavam em coisas que pensavam pode tomá-la certa, se o que ela segue
ver mais claramente que o sol. Pois não é claramente conhecido? E qual
nunca vimos, nós nem ninguém, que foi o filósofo, ou o teólogo, ou o sim
isso tenha acontecido aos que tiraram ples homem no uso da razão, que não
tão-só do entendimento toda a clareza haja alguma vez confessado que o peri-
de suas percepções, mas antes aos que
32 Os teólogos interpretaram a certeza como um
31 Uma vez que atingi a certeza, sabendo que satis estado psicológico entre outros. Para Descartes, o
fiz a suas condições, não mais posso duvidar diante termo é mais determinado: pensamento de um obje
da evidência: a dúvida jâ não seria senão um artifí to tal que, devido ao próprio fato de eu pensá-lo,
cio sem qualquer sentido. não posso duvidar de sua verdade.
172 descartes
go de falhar a que nos expomos é tanto interior, pela qual, tendo Deus nos
menor quanto mais clara a coisa que aclarado sobrenaturalmente, possuí
concebemos antes de lhe dar nosso mos confiança certa de que as coisas
consenso? E que pecam os que, sem propostas à nossa crença foram por ele
conhecimento de causa, pronunciam reveladas, e de que é inteiramente
algum julgamento? Ora, nenhuma con impossível que ele seja mentiroso e nos
cepção é dita obscura ou confusa, ex engane: e isso é mais seguro do que
ceto porque nela está contido algo que qualquer outra luz natural, e amiúde
não é conhecido. até mais evidente, por cauda da luz da
Portanto, aquilo que objetais no graça 33.
tocante à fé que se deve abraçar, não E por certo os turcos e os outros
tem. maior força contra mim do que infiéis, quando não abraçam a religião
contra todos os que alguma vez culti cristã, não pecam por não quererem
varam a razão humana; e, a bem dizer, dar fé às coisas obscuras, como sendo
não tem força alguma contra ninguém. obscuras; mas pecam, ou porque resis
Pois, embora se diga que a fé tem por tem à graça divina que os adverte
objeto coisas obscuras, não obstante interiormente, ou porque, pecando em
aquilo pelo qual cremos nela não é outras coisas, tomam-se indignos
obscuro; é mais claro do que qualquer dessa graça. E direi atrevidamente que
luz natural. Tanto mais quanto cumpre um infiel que, destituído de toda graça
distinguir entre a matéria, ou a coisa à sobrenatural e totalmente ignorante de
qual concedemos nossa crença, e a que as coisas que nós outros cristãos
razão formal que move nossa vontade acreditamos foram reveladas por
a concedê-la. Pois só nessa razão for Deus, e, não obstante, atraído por al
mal é que queremos que haja clareza e guns falsos raciocínios, se entregasse à
evidência. crença dessas mesmas coisas que- lhe
Quanto à matéria, ninguém jamais fossem obscuras, não seria por isso
negou que pode ser obscura, e até fiel, mas antes pecaria porque não se
mesmo a própria obscuridade; pois, serviría como se deve de sua razão.
quando julgo que a obscuridade deve E penso que jamais qualquer teó
ser. subtraída de nossos pensamentos logo ortodoxo alimentou outros senti
para poder dar-lhes nosso consenti mentos a esse respeito; e também aque
mento sem nenhum perigo de falhar, é les que lerem minhas Meditações não
a obscuridade mesma que me serve de terão motivo de crer que eu não haja
matéria para formar um juízo claro e conhecido esta luz sobrenatural, por
distinto. quanto, na Quarta, em que busquei
Além disso, cabe notar que a clareza cuidadosamente a causa do erro ou fal
ou a evidência pela qual nossa vontade sidade, declarei, em palavras expres
pode ser incitada a crer é de duas espé sas, que ela dispõe o interior de nosso
cies: uma que parte da luz natural, e pensamento a querer, e que, no entan
outra que provém da graça divina. to, não diminui de modo algum a'
Ora, conquanto se afirme comu- liberdade.
mente que a fé pertence às coisas obs
curas, todavia isso se refere apenas à 33 A graça mesma é uma luz (sobrenatural e não
sua matéria e não à razão formal pela mais natural) que ilumina nossa vontade. Esta pas
sagem mostra quanto importa distinguir entre a
qual cremos; pois, ao contrário, esta concepção clara e distinta das coisas e a redução
razão formal consiste em certa luz real a coisas claras e distintas.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 173
De resto, peço-vos aqui que lembreis que pretendeis, a premissa maior devia
de que, no tocante às coisas que a von ser assim: Aquilo que concebemos
tade pode abranger, sempre estabeleci clara e distintamente pertencer à natu
grande distinção entre a prática da reza de alguma coisa pode ser dito ou
vida e a contemplação da verdade. afirmado com verdade pertencer à
Pois, no que concerne à prática da natureza dessa coisa. E assim não con
vida, tanto faz que eu'pense ser preciso feria senão uma inútil e supérflua repe
seguir apenas as coisas que conhece tição. Mas a premissa maior do meu
mos mui claramente, como, ao contrá argumento foi a seguinte: Aquilo que
rio, que eu sustente que nem sempre se concebemos clara e distintamente per
deve contar com o mais verossímil, tencer à natureza de alguma coisa
sendo preciso algumas vezes, entre pode ser dito ou afirmado com verdade
muitas coisas completamente desco dessa coisa. Isto é, se ser animal per
nhecidas e incertas, escolher uma e se tence à essência ou à natureza do
lhe apegar, e em seguida crer nela não homem, pode-se assegurar que o
menos firmemente, enquanto não vir homem é animal; se ter os três ângulos
mos razões em contrário, do que se a iguais a dois retos pertence à natureza
tivéssemos escolhido por razões certas do triângulo retilíneo, pode-se assegu
e mui evidentes, como já expliquei no rar que o triângulo retilíneo tem seus
Discurso do Método3 4. Mas, onde se três ângulos iguais a dois retos; se exis
trata tão-somente da contemplação da tir pertence à natureza de Deus, pode-
verdade, quem jamais negou que é pre se assegurar que Deus existe, etc. E a
ciso suspender o julgamento em rela premissa menor foi a seguinte: Ora, é
ção às coisas obscuras e que não sejam certo que pertence à natureza de Deus
assaz distintamente conhecidas? Ora, existir. Daí é evidente que se deva con
que em minhas Meditações só se veri cluir como eu o fiz, a saber: Logo,
fica essa contemplação da verdade, pode-se com verdade assegurar, quan
além de se reconhecer este fato bas to a Deus, que ele existe; e não como
tante claramente por elas próprias, eu desejais: Logo, podemos assegurar
o declarei em palavras expressas no com verdade que pertence à natureza
fim da Primeira, ao dizer que nunca de Deus o existir.
seria demais duvidar, nem havería Portanto, para usar da exceção que
demasiada desconfiança naquele apresentais em seguida, deverieis negar
ponto, tanto mais que não me aplicava a premissa maior e dizer que aquilo
então às coisas concernentes à prática que concebemos clara e distintamente
da vida, mas apenas à busca da pertencer à natureza de alguma coisa
verdade. não pode por isso ser dito ou afirmado
Em sexto lugar, onde censurais a dessa coisa, anão ser que sua natureza
conclusão de um silogismo por mim seja possível, ou não repugne de modo
formulado, parece-me que vós próprios algum. Mas notai, peço-vos,- a fraqueza
pecais na forma; pois, para concluir o dessa exceção. Pois, ou pelo termo
possível entendeis, como se faz ordina
3 4 Daí por que, contrariamente à Física e à Metafí riamente, tudo o que não repugna ao
sica, a Moral deverá recorrer à noção do provável e
à experiência. “Reencontramos entre a Ciência e a pensamento humano, acepção em que
Sabedoria. . . esta separação à qual Descartes pare é manifesto que a natureza de Deus, da
cia pôr fim e. . . que era uma das características forma como a descrevi, é possível, por
dos moralistas da Renascença.” (Guéroult, op. cit.,
II, 237.) que nada supus nela, exceto o que,con
174 DESCARTES
quer coisa que esteja fora do entendi corpo humano, na medida em que dife
mento, porque, pelo próprio fato de re dos outros corpos, compõe-se so
uma coisa estar fora do entendimento, mente de certa configuração de mem
se toma manifesto que ela não implica bros, e outros acidentes semelhan
de modo algum, mas que é possível. tes38; e, enfim, que a morte do cor
Ora, a impossibilidade com que nos po depende somente de alguma divi
deparamos em nossos pensamentos são ou mudança de figura. Ora,
provém apenas de serem eles confusos não temos nenhum argumento, ou
e obscuros, e não pode haver nenhuma qualquer exenlplo, que nos persuada de
impossibilidade nos que são claros e que a morte ou o aniquilamento de
distintos; por conseguinte, a fim de uma substância tal como é o espírito
podermos estar seguros de que conhe deva decorrer de uma causa tão ligeira
cemos bastante a natureza de Deus como o é uma mudança de figura, que
para sabermos que não há qualquer não é senão um modo, e ainda um
repugnância em que ela exista, é sufi modo, não do espírito, mas do corpo,
ciente que entendamos clara e distinta que é realmente distinto do espírito. E
mente todas as coisas que percebemos não dispomos mesmo de qualquer
haver nela, embora tais coisas sejam argumento nem exemplo que nos possa
apenas em pequeno número em relação convencer de que há substâncias sujei
às que não percebemos, posto que tas ao aniquilamento. O que basta para
estas também estejam nela; e que com concluir que o espírito, ou a alma do
isso notemos que a existência neces homem, na medida em que isso pode
sária é uma das coisas que percebe ser conhecido pela Filosofia natural, é
mos, assim, existir em Deus. imortal.
Em sétimo lugar, já dei a razão, no Mas caso se pergunte se Deus, por
resumo de minhas Meditações, pela seu absoluto poder, não determinou
qual nada disse aqui sobre a imortali talvez que as almas humanas cessem
dade da alma37; já mostrei também de existir, ao mesmo tempo que são
mais acima como provara suficiente destruídos os corpos a que estão uni
mente a distinção que há entre o espí das, só a Deus compete respondê-lo. E
rito e toda espécie de corpo. como agora ele nos revelou que isso
Quanto ao que acrescentais, que da nunca ocorrerá, não deve subsistir a
distinção da alma com o corpo não se respeito nenhuma dúvida.
segue que ela seja imortal, porque, ape De resto, devo agradecer-vos muito
sar disso, se pode dizer que Deus a fez por vos terdes dignado tão obsequiosa-
de tal natureza que sua duração finda mente, e com tanta franqueza, adver
com a da vida do corpo, confesso que tir-me não só das coisas que vos pare
nada tenho a responder; pois não ali ceram dignas de explicação mas
mento tanta presunção a ponto de ten também das dificuldades que me po
tar determinar, pela força do racio diam ser opostas pelos ateus, ou por
cínio humano, algo que depende alguns aborrecedores e maldizentes.
Pois, ainda que não veja nada, entre
apenas da pura vontade de Deus.
O conhecimento natural nos ensina as coisas que me propusestes, que não
que o espírito é diferente do corpo, e houvesse de antemão rejeitado ou
que é uma substância; e também que o
38 A substância extensa é indestrutível, mas não as
substâncias corporais particulares; os corpos não
3 7 No resumo, nota Descartes que as Meditações são verdadeiras substâncias, como os espíritos, mas
permitem estabelecer que a morte da alma não apenas especificações da extensão. E isso é tão ver
decorre da corrupção do corpo; mas uma demons dade no tocante ao corpo humano (enformado por
tração da imortalidade da alma exigiría “a explica uma alma) como em relação & máquina (do animal),
ção de toda a Física”. apesar da diferença existente entre ambos.
176 DESCARTES
fim de impugnar a verdade, ele se toma conselho, procurarei aqui imitar a sín
menos capaz de compreendê-la, por tese dos geômetras e efetuarei um resu
quanto desvia o espírito da considera mo das principais razões que usei para
ção das razões que o persuadem dela demonstrar a existência de Deus e a
para aplicá-lo à busca das que a distinção que há entre o espírito e o
destro em. corpo humano: o que não servirá
Mas, não obstante, para testemu pouco, talvez, para aliviar a atenção
nhar o quanto condescendo com vosso dos leitores.
RAZOES
Definições
I. Pelo nome de pensamento, com enformam o próprio espírito, que se
preendo tudo quanto está de tal modo aplica a esta parte do cérebro.
em nós que somos imediatamente seus III. Pela realidade objetiva de uma
conhecedores. Assim, todas as opera idéia, entendo a entidade ou o ser da
ções da vontade, do entendimento, da coisa representada pela idéia, na medi
imaginação e dos sentidos são pensa da em que tal entidade está na idéia; e,
mentos. Mas acrescentei imediata da mesma maneira, pode-se dizer uma
mente, para excluir as coisas que se perfeição objetiva, ou um artifício
guem e dependem de nossos objetivo, etc. Pois, tudo quanto conce
pensamentos: por exemplo, o movi bemos como estando nos objetos das
mento voluntário tem, verdadeira idéias, tudo isso está objetivamente, ou
mente, a vontade como princípio, mas por representações, nas próprias
ele próprio, no entanto, não é um idéias4 4.
pensamento. IV. As mesmas coisas são ditas
II. Pelo nome de idéia, entendo esta estarem formalmente nos objetos das
forma de cada um de nossos pensa idéias, quando estão neles tais como as
mentos por cuja percepção imediata concebemos; e são ditas estarem neles
eminentemente, quando, na verdade,
temos conhecimento desses mesmos
pensamentos. De tal modo que nada não estão aí, como tais, mas são tão
grandes, que podem suprir essa carên
posso exprimir por palavras, ao com cia com a excelência delas 4 5.
preender o que digo, sem que daí
mesmo seja certo que possuo em mim 4 4 A realidade objetiva de uma idéia é seu con
a idéia da coisa que é significada por teúdo na medida em que é dotado de valor represen
minhas palavras. E assim não dou o tativo. Cumpre não confundi-la, pois, com seu valor
objetivo, ao qual ela não permite, por si só,
nome de idéia às simples imagens que prejulgar. ■
são pintadas na fantasia; ao contrário, 4 5 Se considerarmos que a idéia de Deus, enquanto
não lhes dou aqui esse nome, na medi idéia, é forçosamente inferior àquele de quem ela é
cópia, Deus será denominado causa eminente desta
da em que se encontram na fantasia idéia. Se considerarmos que não pode haver na rea
corporal, isto é, na medida em que são lidade objetiva da idéia do perfeito, enquanto idéia
do perfeito, nada que seja menos perfeito do que o
pintadas em algumas partes do cére próprio ser perfeito, Deus pode então ser denomi
bro, mas somente na medida em que nado causa formal de sua idéia.
180 DESCARTES
semelhantes; e que assim exercitem sível está contida, mas além disso a
essa clareza do entendimento que lhes necessária. Pois, daí só, e sem qualquer
foi dada pela natureza, mas que as raciocínio, conhecerão que Deus exis
percepções dos sentidos acostumaram te; e não lhes será menos claro e evi
a perturbar e obscurecer, que a exerci dente, sem outra prova, que lhes é
tem, digo eu, totalmente pura e liberta manifesto que dois é um número par, e
de seus prejuízos; pois, por este meio, a três um número ímpar, e coisas seme
verdade dos axiomas seguintes lhes lhantes48. Pois há coisas que são
será fortemente evidente. assim conhecidas sem provas por
Em quarto lugar, que examinem as alguns, enquanto outros só as enten
idéias dessas naturezas que contêm em dem por um longo discurso e raciocí
si um conjunto de muitos atributos, nio.
como a natureza do triângulo, a do Em sexto lugar, que, considerando
quadrado ou de qualquer outra figura; com cuidado todos os exemplos de que
bem como a natureza do espírito, a falei nas minhas Meditações, de uma
natureza do corpo e, acima de todas, a clara e distinta percepção, e todos cuja
natureza de Deus ou de um ser sobera- percepção é obscura e confusa, habi
namente perfeito. E que tomem nota de tuem-se a distinguir as coisas clara
que se pode assegurar, com verdade, mente conhecidas das obscuras; pois
que existem em si próprias todas essas isso se aprende melhor por exemplos
coisas que concebemos claramente do que por regras, e penso que disso
estarem aí contidas47. Por exemplo, não se pode dar um exemplo, sem que
porque na natureza do triângulo retilí eu já não o haja aflorado um pouco.
neo está contido que seus três ângulos Em sétimo lugar, postulo que os lei
são iguais a dois retos, e porque na tores, levando em conta que nunca
natureza do corpo ou de uma coisa reconheceram qualquer falsidade nas
extensa a divisibilidade acha-se com coisas que conceberam claramente e
preendida (pois não concebemos a que, ao contrário, nunca encontraram,
coisa extensa tão pequena que não pos senão por acaso, qualquer verdade nas
samos dividi-la ao menos pelo pensa coisas que conceberam apenas com
mento), é certo dizer que os três ângu obscuridade, considerem que seria algo
los de todo triângulo retilíneo são inteir amente des arr azo ado se, por al
iguais a dois retos, e que todo corpo é guns prejuízos dos sentidos, ou por
divisível. algumas suposições feitas à vontade, e
Em quinto lugar, postulo que se fundadas em algo obscuro e desconhe
detenham longamente em contemplar a cido, pusessem em dúvida as coisas
natureza do ser soberanamente perfei que o entendimento concebe clara e
to; e, entre outras coisas, que conside distintamente. Mediante isso, admiti
rem que, nas idéias de todas as outras rão facilmente os seguintes axiomas
naturezas, a existência possível encon
tra-se de fato contida, mas que, na 48 O conhecimento da necessidade da existência de
idéia de Deus, não só a existência pos Deus é, portanto, comparável ao das verdades mate
máticas conhecidas sem prova. “O pensamento últi
mo de Descartes é, pois, não cabe dúvidas, que o
47 Ê a premissa maior da prova apriori que é aqui argumento ontológico não comporta prova e que ele
postulada. Nas Meditações, ela era demonstrada reside inteiramente na percepção direta de uma rela
pela primeira prova: “Aquilo mesmo que tomei há ção necessária inclusa em uma essência imediata
pouco por uma regra, a saber, que as coisas que mente apreendida pela intuição; mas que nem por
concebemos mui clara e mui distintamente são isso deixa de permanecer totalmente comparável às
todas verdadeiras, só fica assegurado porque Deus é verdades matemáticas, pelo menos àquelas que são
ou existe e porque é um ser perfeito...” indemonstráveis.” (Guéroult, op. cit., I, pág. 352.)
182 DESCARTES
I. Não há coisa existente da qual que o vemos? Mas essa visão não afeta
não se possa perguntar qual a causa de modo algum o espírito, a não ser na
pela qual ela existe. Pois isso se pode medida em que é uma idéia: uma idéia,
perguntar até mesmo de Deus: não que digo, inerente ao próprio espírito, e
tenha necessidade de alguma causa não uma imagem pintada na fantasia;
para existir, mas porque a própria e, por ocasião dessa idéia, não pode
imensidade dé sua natureza é a causa mos julgar que o céu existe, a não ser
ou a razão pela qual não precisa de que suponhamos que toda idéia deve
qualquer causa para existir. ter uma causa de sua realidade obje
II. O tempo presente não depende tiva que seja realmente existente; causa
daquele que imediatamente o prece que julgamos ser o céu mesmo; e assim
deu; eis por que não é necessário uma por diante 50.
menor causa para conservar uma VI. Há diversos graus de realidade
coisa, do que para produzi-la pela pri ou de entidade: pois a substância tem
mais realidade do que o acidente ou o
meira vez. modo, e a substância infinita mais do
III. Nenhuma coisa, ou perfeição que a finita. Eis por que também há
alguma dessa coisa atualmente existen mais realidade objetiva na idéia de
te, não pode ter o Nada, ou uma coisa substância do que na de acidente, e
não existente, como a causa de sua mais na idéia de substância infinita do
existência. que na de substância finita 51.
IV. Toda a realidade ou perfeição VII. A vontade se dirige voluntária
que existe numa coisa encontra-se for e livremente (pois isto é de sua essên
mal, ou eminentemente, na sua causa cia), mas no entanto de modo infalível,
primeira e total. ao bem que lhe é claramente conheci
V. Daí se segue também que a reali do. Daí por que, se ela chega a conhe
dade objetiva de nossas idéias requer cer quaisquer perfeições que não pos
uma causa, em que esta mesma reali sua, entregar-se-lhes-á imediatamente,
dade seja contida, não só objetiva, mas caso estejam ao seu alcance; pois reco-
também formal, ou eminentemente49.
50 Notar-se-á aqui, com Guéroult, o caráter funda
E cumpre notar que este axioma deve mental do princípio da correspondência entre a
ser tão necessariamente admitido, que idéia e o ideado. O fato de certos pensamentos se
só dele depende o conhecimento de apresentarem certa ou erradamente como “produzi-
dos-por-seu-objeto” é “uma propriedade original
todas as coisas, tanto sensíveis como que não se pode adquirir pela experiência; é uma
insensíveis. Pois, como sabemos, por condição primeira de meu conhecimento, e mesmo
de minha percepção sensível”. (Guéroult, op. cit., I,
exemplo, que o céu existe? Será por 199.)
51 Dizer que as idéias das substâncias têm mais
49 Do axioma IV, segue-se que a causa da reali realidade objetiva que as dos acidentes, significa
dade objetiva da idéia há de ser uma realidade for ■ que “participam por representação em mais graus
mal. Daí a necessidade de uma causa atualmente de ser ou de perfeição do que as que me representam
existente para o efeito atualmente conservado. Esta somente modos ou acidentes”. É um princípio evi
dependência entre os axiomas explica a reserva dente por luz natural que os acidentes são ihenos
acima: “Confesso que muitos dentre eles. . . deve que a substância. Daí por que será preciso alguma
ríam ser propostos mais como teoremas do que coisa a mais para criar a substância do que* para
como axiomas, se eu quisesse ser mais exato”. criar os acidentes.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 183
nhecerá que lhe é um maior bem ceito de uma coisa limitada, a exis
possuí-las do que não as possuir 52. tência possível ou contingente acha-se
VIII. O que pode fazer o mais, ou o apenas contida, e no conceito de um
mais difícil, também pode fazer o ser soberanamente perfeito está com
menos, ou o mais fácil. preendida a perfeita e necessária exis
tência 5 3.
IX. E algo maior e mais difícil criar
52 Esta definição da vontade como apetência
ou conservar uma substância do que necessária do bem é de origem escolástica. Mas Gil
criar ou conservar seus atributos ou son (Commentaire du Discours, pág. 333) observa
propriedades; mas não é algo maior ou que os escolásticos não poderíam utilizar essa
noção a fím de provar a existência de Deus. Com
mais difícil criar uma coisa do que efeito, é mister que o homem seja dotado de uma
conservâ-la, como já foi dito. vontade infinita para que se tome “um ser que, de
direito, queira para si todas as perfeições que Deus,
X. Na idéia ou no conceito de cada causa sui, quer para si e se dá”.
coisa, a existência está contida, porque 53 A fmitude da realidade objetiva nas idéias das
nada podemos conceber sem que seja coisas finitas é que exclui delas a existência necessá
ria. Por meio dessas, posso conhecer com certeza a
sob a forma de uma coisa existente; possibilidade de seu objeto, mas nunca a existência
mas com a diferença de que no con deste.
Proposição Primeira
A EXISTÊNCIA DE DEUS É CONHECIDA PELA SIMPLES CONSIDERAÇÃO
DE SUA NATUREZA
Demonstração
Proposição Segunda
A EXISTÊNCIA DE DEUS É DEMONSTRADA POR SEUS EFEITOS, PELO
SIMPLES FATO DE SUA IDÉIA ESTAR EM NÓS
Demonstração
A realidade objetiva de cada uma de qual esta mesma realidade esteja conti
nossas idéias requer uma causa na da, não objetiva, mas formal ou emi-
184 DESCARTES
eminentemente (pelo quinto axioma). sexto axioma), e que ela não pode estar
Ora, é certo que temos em nós a contida em ninguém mais exceto em
idéia de Deus (pela segunda e oitava Deus mesmo (pela oitava definição).
Logo, a idéia de Deus, que há em
definições), e que a realidade objetiva
nós, exige Deus como causa: por
dessa idéia não está contida em nós, conseguinte, Deus existe (pelo terceiro
nem formal, nem eminentemente (pelo axioma).
Proposição Terceira
A EXISTÊNCIA DE DEUS É AINDA DEMONSTRADA PELO FATO DE NÓS
PRÓPRIOS, QUE TEMOS EM NÓS A IDÉIA DE DEUS, EXISTIRMOS
Demonstração
Corolário
DEUS CRIOU O CÉU E A TERRA, E TUDO O QUE NELES ESTÁ CONTIDO.
E, ALÉM DISSO, PODE FAZER TODAS AS COISAS QUE CONCEBEMOS
CLARAMENTE, DA MANEIRA COMO NÓS AS CONCEBEMOS
Demonstração
Todas essas coisas seguem-se clara por aquele em quem ela se encontra,
mente da proposição precedente. Pois não só o céu e a terra, etc., devem ter
provamos aí a existência de Deus, por sido criados, mas também todas as ou
ser necessário que haja um ser existen tras coisas que conhecemos como
te, no qual todas as perfeições, de que possíveis.
hâ em nós alguma idéia, estejam conti
das formal ou eminentemente. Logo, provando a existência de
Ora, é certo que temos em nós a Deus, provamos também a seu respeito
idéia de um poder tão grande, que, só todas essas coisas.
Proposição Quarta
O ESPÍRITO E O CORPO SÃO REALMENTE DISTINTOS
Demonstração
Tudo o que concebemos claramente 7) que podem existir uma sem a outra
pode ser feito por Deus da maneira (como acabo de provar) 5 5.
como nós o concebemos (pelo corolá Logo, o espírito e o corpo 'são real
rio precedente). mente distintos.
E é preciso observar que me servi
Mas concebemos claramente o espí aqui da onipotência de Deus para tirar
rito, isto é, uma substância que pensa, dela a minha prova56; não que seja
sem o corpo, isto é, sem uma—subs necessário qualquer poder extraordi
tância extensa (pelo postulado 2); e, de nário para separar o espírito do corpo,
outra parte, concebemos também cla- mas porque, não tendo tratado senão
r amente o corpo sem o espírito (como de Deus nas proposições anteriores,
cada um concorda facilmente). não podia tirá-la de oütro lugar exceto
dele. E não importa de modo algum
Logo, ao menos pela onipotência de por qual poder duas coisas sejam sepa
Deus, o espírito pode existir sem o radas, para sabermos que são real
corpo, e o corpo sem o espírito. mente distintas.
Pois bem, as substâncias que podem 5 5 A fim de que as substâncias estejam realmente
existir uma sem a outra são realmente separadas, basta provar que são substâncias e não
distintas (pela definição 10). substâncias existentes.
5 6 A prova através da onipotência de Deus, aqui
Ora, é certo que o espírito e o corpo imposta pela ordem sintética, ameaça dissimular
são substâncias (pelas definições 5, 6 e que o conceito essencial é o da “distinção real”.
RESPOSTAS DO AUTOR
ÀS QUINTAS OBJEÇÕES
FORMULADAS PELO SENHOR GASSENDI
Do Senhor Descartes ao Senhor Gassendi
Senhor,
bém, os filósofos em muitas ocasiões; e zelo da verdade, bem mostra que ele
aquele que chama isto recorrer a uma próprio não quer servir-se desta candu
máquina, forjar ilusões, procurar des ra filosófica, nem pôr em uso as
vios e novidades e que diz que isto é razões, ms atribuir somente às coisas
indigno da candura de um filósofo e do os ouropéis e as cores da retórica.
sentimento e ao andar, refiro-os tam qual desejais ser chamado, tendes tão
bém, na maior parte, ao corpo e nada pouco comércio com o espírito que
atribuo à alma do que lhes diz respeito, não pudestes notar a passagem em que
exceto, apenas, que é um pensamento. corrigi esta imaginação do vulgo pela
504. Ademais, que razão tendes de qual fingimos que a coisa que pensa é
dizer que não havia necessidade de tão semelhante ao vento ou a algum outro
grande aparelhamento para provar corpo dessa espécie60? Pois corrigi-o,
minha existência! Certamente penso sem dúvida, quando mostrei que se
ter muita razão em inferir de vossas pode supor que não há vento, nem
próprias palavras que o aparelhamento fogo, nem qualquer outro corpo no
do qual me servi não foi ainda suficien mundo, e que, entretanto, sem mudar
temente grande, posto que não pude essa suposição, todas as coisas pelas
fazer ainda com que compreendésseis quais conheço que sou uma coisa que
bem a questão; pois, quando dizeis que pensa não deixam de permanecer em
poderia concluir a mesma coisa de sua totalidade 61. E, portanto, todas as
cada uma de minhas ações indiferente perguntas que me fazeis em seguida,
mente, vós vos enganais bastante, já por exemplo: Por que não poderia eu,
que não hâ nenhuma entre elas de que pois, ser um vento? Por que nãopode
eu esteja inteiramente certo — refiro- ria preencher um espaço? Por que não
me àquela certeza metafísica, única poderia ser movido de várias manei
certeza de que aqui se trata — exceto o ras? e outras semelhantes, são tão vãs
e tão inúteis que não necessitam de
pensamento. Pois, por exemplo, não resposta.
seria boa a seguinte consequência: eu 506. III. O que em seguida acres
passeio, logo existo, senão na medida centais não é mais sólido, a saber: se
em que o conhecimento interior que eu sou um corpo sutil e tênue, por que
tenho disto é um pensamento, do qual nãopoderia ser alimentado?; e o resto.
somente esta conclusão é certa, não do Pois nego absolutamente que eu seja
movimento do corpo, o qual às vezes um corpo62. E, para acabar de uma
pode ser falso, como nos nossos vez por todas com essas dificuldades,
sonhos, embora nos pareça então que porque me objetais quase sempre a
passeamos; de maneira que, do fato de mesma coisa, e não combateis minhas
que eu penso passear, posso muito bem
inferir a existência de meu espírito, que 60 Texto de Gassendi: “Dizei-me, eu vos peço, ó
alma, ou o que quer que sejais, corrigistes até aqui
tem este pensamento, mas não a do este pensamento pelo qual vos imaginais ser algo
meu corpo que passeia. O mesmo semelhante ao vento ou a qualquer outro corpo
acontece com todos os outros. desta natureza, espalhado em todas as partes de
vosso corpo? Certamente não o fizestes”. Em ou
505. II. Começais, em seguida, por tros termos: quem vos autoriza a sustentar que só o
uma figura de retórica bastante agra pensamento pode ser separado de mim? Por que
dável que se chama prosopopéia, a me não seria este pensamento um corpo?
51 Em suma, Gassendi não compreendeu o método
interrogar, não mais como um homem de redução, implicado pela dúvida hiperbólica. Ele
inteiro, mas como uma alma separada se coloca ao nível de uma investigação física e fisio
lógica, quando se trata de uma separação de essên
do corpo; no que parece que tenhais cias no plano metafísico.
querido advertir-me de que essas obje 62 Resta-vos provar, dizia Gassendi, que o corpo
ções não partem do espírito do sutil não é capaz de pensamento, “que esse corpo gros
seiro e pesado em nada contribui para o vosso
filósofo, mas de um homem preso aos pensamento, conquanto jamais tenhais estado sem
sentidos e à carne. Dizei-me, portanto, ele e nunca tenhais pensado algo estando separado
dele. . . ” Para Descartes, essas constatações de fato
suplico-vos, ó carne, ou quem quer que não poderiam valer contra a certeza metafísica de
sejais, e qualquer que seja o nome pelo direito. 1
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 191
um conceito claro e distinto dessa d ade por causa do equívoco que reside
substância, no qual nada estâ contido na palavra alma6 7, mas eu a esclarecí
que pertença ao da substância corpo nitidamente tantas vezes que me enver
ral, isso me basta plenamente para gonho de repeti-lo aqui; e é por isso
assegurar que, enquanto eu me conhe que direi apenas que os nomes foram
ço, nada sou senão uma coisa que ordinariamente impostos por pessoas
pensa; e isso é tudo o que assegurei na ignorantes, o que faz com que não con
Meditação Segunda, da qual se trata venham sempre propriamente às cbisas
nesse momento; e não deveria admitir que significam; no entanto, desde que
que esta substância pensante fosse um foram aceitos, não temos liberdade de
corpo sutil, puro, tênue, etc., na medi mudá-los, mas podemos apenas corri
da em que não tive nenhuma razão que gir suas significações quando vemos
disso me persuadisse; se tendes algu que não são bem compreendidas.
ma, a vós cabe no-la ensinar e não exi Assim, visto que os primeiros autores
gir de mim que prove que algo é falso dos nomes talvez não distinguiram em
quando não tive outra razão para não nós aquele princípio pelo qual somos
admiti-lo senão o fato de me ser desco alimentados, crescemos e realizamos,
nhecida essa razão. Pois fazeis o sem o pensamento, todas as outras fun
mesmo que se, dizendo que estou ções que partilhamos com os animais,
atualmente na Holanda, dissésseis que daquele outro pelo qual nós pensamos,
não devo ser acreditado se não provar eles denominaram ambos os princípios
ao mesmo tempo que não estou na com o mesmo nome de alma; e, vendo
China ou em qualquer outra parte do pouco depois que o pensamento era
mundo; visto que talvez possa ocorrer diferente da nutrição, deram o nome de
que um mesmo corpo, pela onipotência espírito a esta coisa que em nós tem a
de Deus, esteja em muitos lugares. E faculdade de pensar e acreditaram que
quando acrescentais que devo também era a parte principal da alma. Mas eu,
provar que as almas dos animais não tendo cuidado que o princípio pelo
qual somos alimentados é inteiramente
são corpóreas e que o corpo em nada diferente daquele pelo qual pensamos,
contribui para o pensamento, fazeis disse que o nome alma, quando se refe
ver não somente que ignorais a quem re ao mesmo tempo a um e a outro, é
pertence à obrigação de provar uma equívoco, e que, para tomá-lo precisa
coisa mas também que não sabeis o mente como esse primeiro ato ou essa
que cada um deve provar; pois, quanto forma principal do homem, ele deve
a mim, não creio nem que as almas dos ser somente entendido como aquele
animais não sejam corpóreas nem que princípio pelo qual pensamos; dessa
o corpo em nada contribua para o maneira, chamei-o o mais das vezes
pensamento; mas somente digo que pelo nome de espírito, para evitar esse
não ê este o lugar de examinar essas
coisas66. 6 7 Gassendi: “Eu pensava falar a uma alma huma
na ou então a esse princípio interno pelo qual o
508. IV. Buscais aqui a obscuri- homem vive, sente, se move e entende, e no entanto
falava apenas a um puro espírito; pois vejo que sois
6 6 O fim do parágrafo fornece bom exemplo da despojado não unicamente do corpo, mas também
“dialética” de Descartes: por que deveria eu provar de uma parte da alma”. Ele acredita, portanto, que
como falsas idéias que se apresentam apartadas Descartes rechaça da alma as faculdades não inte
tão-somente pela evidência fenomenológica? Dialé lectuais ao mesmo título que o corpo. Isto significa
tica sempre útil contra as falsas ciências, que ape confundir a distinção real entre alma e corpo e a
nas exigem a prova da falsidade por não poder dar distinção modal entre o entendimento e as demais
a da verdade. faculdades.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 193
equívoco e essa ambiguidade. Pois não contrário, posto que não sabia então se
considero o espírito como uma parte o corpo era uma e mesma coisa que o
da alma, mas como toda a alma espírito ou se não o era, eu nada queria
pensante. adiantar, mas somente considerei o
509. Mas, dizeis, sentis dificuldade espírito até que, enfim, na Meditação
em saber se eu não considero, portan Sexta, não somente adiantei mas de
to, que a alma pensa sempre. Mas por monstrei mui claramente que ele era
que nao pensaria ela sempre, uma vez realmente distinto do corpo. Mas vos
que é uma substância pensante? E que enganais nisto a vós mesmo, e muito,
maravilha há em que não nos lembre pois, não tendo a menor razão para
mos dos pensamentos que ela teve no mostrar que o espírito não é distinto do
ventre de nossas mães, ou durante a corpo, não deixais de afirmá-lo sem
letargia, já que não nos lembramos, prova alguma 6 9.
mesmo, de muitos pensamentos que 511. V. O que eu disse da imagina
sabemos muito bem que tivemos quan ção é bastante claro, desde que se quei
do adultos, sãos e despertos, pela ra examiná-lo cuidadosamente, mas
razão de, para nos lembrarmos de não é estranho se parecer obscuro
pensamentos que o espírito concebeu àqueles que jamais meditam e que não
uma vez, enquanto conjugado ao fazem reflexão alguma sobre o que
corpo, ser necessário que restem deles pensam. Mas devo adverti-los de que
alguns vestígios impressos no cérebro, as coisas que asseverei'não perten
para os quais o espírito se volta e apli cerem ao conhecimento que tenho de
ca-lhes seu pensamento, a fim de mim mesmo não são, de modo algum,
lembrar-se; ora, que há de maravilhoso incompatíveis com aquelas que ante
se o cérebro de uma criança ou de um riormente disse não saber se perten
letárgico não é próprio para receber ciam à minha essência, na medida em
tais impressões 6 8 ? que pertencer à minha essência e per
510. Enfim, onde eu disse que tal tencer ao conhecimento que tenho de
vez possa ocorrer que aquilo que eu mim mesmo são duas coisas inteira
não conheço ainda (a saber, meu mente diferentes 7 0.
corpo) não seja diferente de mim que 512. VI. Tudo o que aqui alegais, ó
conheço (a saber, de meu espírito), que boníssima carne, não me parece tanto
nada sei disso, que não o discuto, 69 A objeção de Gassendi se relacionava com a
etc. . ., vós me objetais: Se vós não o Meditação Segunda, § 7. Como podeis afirmar que
sabeis, se não o discutis, por que dizeis nada sois exceto uma coisa que pensa e, ao mesmo
que não sois nada disso? Ora, não é tempo, admitir que “essas coisas que suponho nada
serem talvez sejam algo real que não difere absolu
verdade que eu tenha adiantado algo tamente de mim que conheço”? Ele ignora, assim,
que não soubesse; pois, exatamente ao que nesta passagem a certeza de que nada sou além
de uma coisa pensante não adquiriu ainda validade
objetiva.
68 Cabe perguntar em que medida esse parágrafo 70 Cf. Segunda Meditação, § 8. Não sei, objeta
concorda com o princípio segundo o qual nada hâ Gassendi, se as coisas que caem sob a imaginação
em nós de que não tenhamos consciência. Mas a não pertencem à minha essência. É sempre o mesmo
doutrina, neste ponto, é mais complexa do que pare mal-entendido. Descartes verificou simplesmente:
ce. Por exemplo, Descartes pôde escrever: “Temos reconheci que existia sem recorrer às imagens das
realmente um conhecimento atual dos atos ou das coisas corporais e mesmo reputando essas coisas
operações dê nosso espírito, mas nem sempre de como falsas. Gassendi, por sua vez, transpõe, em
suas faculdades, a não ser em potência”. (Quartas afirmação ontológica, esta análise do simples
Respostas a Amauld.) De modo que, quando o espí conhecimento. Ora, neste ponto, assiste-me o direito
rito deixa de lembrar-se, conserva em potência cer de excluir o corpo do conhecimento de minha natu
tas faculdades ou propriedades da res cogitans. reza, mas não de minha natureza.
194 DESCARTES
za, visto que um não se demonstra sem tem a virtude de conhecer-lhe a dureza,
outro 72. E não vejo o que podeis dese outro que pode conhecer a modifica
jar de mais, no que se refere a isto, a ção dessa dureza ou a liquefação, etc.,
não ser que se vos diga qual é o odor e pois alguém pode conhecer a dureza
qual é o sabor do espírito humano, ou sem por isso conhecer a brancura,
de que sal, enxofre -e mercúrio é ele como é o caso de um cego de nascença
composto; pois quereis que, como por e assim por diante. Donde se vê clara
uma espécie de operação química, a mente que não há coisa alguma de que
exemplo do vinho, nós o passemos se conheçam tantos atributos quanto
pelo alambique, a fim de saber o que os de nosso espírito, pois, na medida
entra na composição de sua essên em que os conhecemos nas outras coi
cia73. O que certamente é digno de sas, podemos contar tantos outros no
vós, ó carne, e de todos aqueles que, espírito, pelo fato de que ele os conhe
nada concebendo senão mui confusa ce; e, portanto, sua natureza é mais
mente, não sabem o que se deve pes conhecida do que a de qualquer outra
quisar de cada coisa. Mas, quanto a coisa7 4.
mim, jamais pensei que, para tomar 515. Enfim, vós me argüis aqui de
uma substância manifesta, fosse neces passagem pelo fato de que, nada tendo
sária outra coisa além de descobrir-lhe admitido em mim a não ser o espírito,
os diversos atributos; de sorte que, eu fale todavia da cerca que vejo e que
quanto mais atributos conhecemos de toco, o que no entanto não se pode
alguma substância, mais perfeitamente fazer sem olhos ou sem mãos; mas de
também conhecemos-lhe a natureza; e, veis haver notado que adverti expressa
do mesmo modo, podemos distinguir mente que não se tratava aqui da visão
mui diversos atributos na cera: um que ou do tato, que se fazem por inter
ela é branca, outro que é dura, outro médio dos órgãos corpóreos, mas
somente do pensamento de ver e de
que, de dura, torna-se líquida, etc.; do tocar, que não necessita desses órgãos,
mesmo modo, hâ tantos atributos no como experimentamos todas as noites
espírito: um que ele tem a virtude de em nossos sonhos 7 5; e certamente vós
conhecer a brancura da cera, outro que o notastes muito bem, mas quisestes
apenas mostrar quantos absurdos e
72 Cf. Meditação Segunda, § 16. Gassendi: “Não injustas cavilações são capazes de
vejo de onde podeis inferir que se possa conhecer
claramente algo de vosso espírito, exceto que ele inventar aqueles que não se empenham
existe. . .” tanto em bem conceber uma coisa
73 Para Gassendi, a expressão “uma coisa pensan
te” não me faz conhecer nada do todo. “Se alguém quanto em impugná-la e contradizê-la.
vos pedisse que lhe désseis um conhecimento do
vinho mais exato e mais pronunciado, pensarieis tê- 74 Doutrina antiescolástica e antiempirista do pri
lo satisfeito ao dizer que o vinho é uma coisa lí mado do conhecimento espiritual sobre o corporal.
quida que se espreme da uva, que é ora branca, ora Cf. Regras, VII: “Nada pode ser conhecido antes da
rosada, etc., mas não tentarieis descobrir e manifes inteligência, pois é pela inteligência que as coisas
tar o interior de sua substância, mostrando como são cognoscíveis enão inversamente”.
essa substância é composta de aguardentes... e de 7 5 Mais uma vez Gassendi desconhece que se trata
muitas partes misturadas numa justa proporção?” do pensamento enquanto ato universal que se desen
O conhecimento do eu estaria, portanto, na medida rola necessariamente através de qualquer conheci
de uma análise química; ora, trata-se do conheci mento, seja ou não este conhecimento garantido
mento certo de mim mesmo enquanto pensante. objetivamente.
196 DESCARTES
substância não tem realidade alguma como também talvez de qualquer outra
que não. haja tomado das idéias dos coisa que exista no ihundo, por peque
acidentes segundo os quais ou à manei na que seja; e não é verdade que conce
ra dos quais ela é concebida, mostrais bemos o infinito pela negação do fini
claramente que não tendes idéia algu to, visto que, ao contrário, toda
ma da substância que seja distinta, limitação contém em si a negação do
pois esta não pode jamais ser. conce infinito82.
bida à maneira dos acidentes, nem 552. Não é verdade também que a
tomar-lhes de empréstimo sua realida idéia que nos representa todas as
de; mas, ao contrário, os acidentes são perfeições que atribuímos a Deus não
comumente concebidos pelos filósofos tem mais realidade objetiva do que têm
como substâncias, a saber, quando eles as coisas finitas. Pois confessais, vós
os concebem como reais; pois não se mesmo, que todas essas perfeições são
pode atribuir aos acidentes realidade ampliadas por nosso espírito, a fim de
alguma (isto é, entidade alguma mais que possam ser atribuídas a Deus; pen
do que modal) que não seja tomada à sais, portanto, que as coisas assim
idéia da substância81. ampliadas não são maiores do que as
Enfim, onde dizeis que não forma que não o foram; e de onde nos pode
mos a idéia de Deus senão sobre aqui vir essa faculdade de ampliar todas as
lo que aprendemos e ouvimos dos perfeições criadas, isto é, de conceber
outros, atribuindo-lhe, a exemplo algo de maior e de mais perfeito do que
deles, as mesmas perfeições que vimos elas são, se não do simples fato de que
os outros atribuírem-lhe, eu desejaria temos em nós a idéia de uma coisa
que tivésseis também acrescentado de maior, a saber, do próprio Deus? E,
onde é, pois, que esses primeiros enfim, não é verdade também que
homens, de quem aprendemos e ouvi Deus seria pouca coisa se não fosse
mos essas coisas, obtiveram essa maior do que o concebemos; pois con
mesma idéia de Deus. Pois, se a obtive cebemos que ele é infinito e nada pode
ram de si mesmos, por que não pode haver de maior do que o infinito. Mas
riamos nós obtê-la de nós mesmos? confundis intelecção com imaginação
Porque, se Deus lhas revelou, Deus e supondes que imaginamos Deus
existe consequentemente. como algum grande e poderoso gigan
E, quando acrescentais que aquele te, como o faria aquele que, jamais
que chamauma coisa infinita dâ a uma tendo visto um elefante, o imaginasse
coisa que não compreende um nome semelhante a um oução de altura e de
que tampouco entende, não fazeis a largura desmesuradas, o que concordo
distinção entre a intelecção conforme convosco ser muito impertinente83.
ao alcance de nosso espírito, tal como
cada um reconhece suficientemente em 82 Sobre a Meditação Terceira, § 15. Gassendi
siratsmo ter do infinito, e a concepção nega a positividade da idéia de infinito. Ora, para
inteira e perfeita das coisas, isto é, que Descartes, “esta idéia é evidentemente positiva,
visto ser idéia do infinito apenas porque encerra a
compreende tudo o quê há de inteli realidade (objetiva) do infinito; pretender extraí-la
gível nelas, que é de tal ordem que nin do finito surge então como imediatamente absurdo,
guém a teve jamais não só do infinito pois seria querer tirar a realidade objetiva infinita
de uma realidade finita”. (Guéroult, op. cit., I, 190.)
83 Como no caso dos dois sóis, tudo se baseia na
81 Acerca da definição da substância, cf. Princí recusa de Gassendi de distinguir intelecção e imagi
pios, I, 51. Acerca da necessidade de distinguir sem nação. Por conseguinte, não pode ele ter idéia posi
pre os modos na substância e a própria substância, tiva do infinito. A posição de Gassendi é neste
cf. Princípios, I, 64. ponto bastante próxima da de Kant. I
OBJEÇÕES E RESPOSTAS .199
V. Dizeis aqui muitas coisas para vosso costume usar argumentos e pro
fazer de conta que me contradizeis e var o que dizeis. Provais isto com o
entretanto nada dizeis contra mim, exemplo do dedo que não pode bater
posto que concluís a mesma coisa que em si mesmo e do olho que não pode
eu8 4. Mas, todavia, mesclais aqui e ver-se a si mesmo a não ser num espe
acolá várias coisas com as quais não lho: ao que é fácil responder que não é
estou de acordo; por exemplo, que este o olho que se vê a si mesmo, nem o
axioma, nada hâ num efeito que não espelho, mas antes o espírito, o qual
tenha estado primeiramente em sua somente conhece não só o espelho
causa, se deve entender mais da causa como o olho e a si mesmo. Podemos
material do que da eficiente; pois é mesmo, também, dar outros exemplos,
impossível conceber que a perfeição da entre as coisas corpóreas, da ação que
forma preexista na causa material, mas uma coisa exerce sobre si, como quan
tão-somente na causa eficiente, e tam do um tamanco se vira sobre si
bém que a realidade formal de uma mesmo; esta conversão não será uma
idéia seja uma substância, e muitas ou ação que ele exerce sobre si8 6 ?
tras coisas semelhantes. 525. Enfim, é mister observar que
523. VI. Se tivésseis algumas ra eu não afirmei que as idéias das coisas
zões para provar a existência das coi materiais derivavam do espírito, como
sas materiais, sem dúvida tê-las-íeis quereis aqui fazer crer; pois demons
aqui relatado8 5. Mas, uma vez que trei expressamente depois que elas pro
perguntais somente se é, então, verda cediam muitas vezes dos corpos, e que
deiro que eu não esteja certo de que é com isso que se prova a existência
haja alguma coisa diferente de mim das coisas corpóreas; mas somente
que exista no mundo, e que supondes apontei nessa passagem que não há
que não há necessidade de procurar as nelas tanta realidade que, por causa da
razões de uma coisa tão evidente, e seguinte máxima: Nada hâ num efeito
assim vos referis somente aos vossos que não tenha estado em sua causa,
antigos prejuízos, mostrais bem mais formal ou eminentemente, se deva con
claramente que não tendes mais qual cluir que elas não puderam derivar do
quer razão para provar o que afirmais tão-só espírito; o que não impugnais de
do que se não houvésseis dito coisa maneira nenhuma8 7.
alguma. No que dizeis a respeito das 526. VII. Não dizeis nada aqui que
idéias, isto não tem necessidade de res não tenhais dito anteriormente e que eu
posta, porque retringis o nome de idéia não haja refutado inteiramente. Adver-
apenas às imagens pintadas na fanta tir-vos-ei aqui apenas, no tocante à
sia; e eu estendo-o a tudo o que conce idéia do infinito (a qual dizeis não
bemos com o pensamento. poder ser verdadeira a não ser que
524. Mas, pergunto-vos, de passa
gem, por que argumento provais que 8 6 A objeção de Gassendi supunha que a cons
nada age sobre si mesmo. Pois não é ciência de si podia ser apenas um desdobramento, a
contemplação exterior do eu como a de uma coisa.
Ora, para Descartes não existe diferença de natu
8 4 Trata-se do princípio: “Há pelo menos tanta reza entre pensar e pensar que se pensa.
realidade formal na causa da idéia quanta realidade 8 7 Repreendendo Descartes por não ter provado
objetiva na própria idéia”. Gassendi prefere reser que eu pudesse produzir, por mim só, as idéias cor
var a aplicação deste princípio à causalidade mate porais, Gassendi mostra que não compreendeu o
rial (o sêmen com respeito ao filho, o material com sentido da passagem: somente no caso da idéia de
respeito à casa) do que à causa eficiente (o pai ou o Deus é que posso estar certo de se tratar de uma
arquiteto). idéia que não poderia ser produzida por mim
8 5 Cf. Meditação Terceira, §§ 20, 21. mesmo.
200 DESCARTES
compreenda o infinito, e que o que dele erro quando negais que possamos ter
conheço é, quando muito, apenas uma uma verdadeira idéia de Deus: pois,
parte do infinito e mesmo uma parte ainda que não conheçamos todas as
minúscula, que não representa melhor coisas que existem em Deus, todavia,
o infinito que o retrato de um simples tudo o que conhecemos existir nele é
cabelo representa um homem inteiro), inteiramente verdadeiro. Quanto ao
advertir-vos-ei, digo, que repugna que que dizeis, que o pão não é mais per
eu compreenda alguma coisa e que o feito do que aquele que o deseja, e que,
que eu compreendo seja infinito; pois, do fato de eu conceber que algo estâ
para ter uma idéia verdadeira do infini atualmente contido numa idéia, não se
to, ele não deve ser de maneira alguma segue que ela esteja atualmente na
compreendido, tanto mais que a in- coisa da qual é idéia, e também que
compreensibilidade mesma estâ conti formulo juízo sobre aquilo que ignoro,
da na razão formal do infinito88; e e outras coisas semelhantes, tudo isso,
entretanto é coisa manifesta que a digo, nos demonstra apenas que pre
idéia que temos do infinito não repre tendeis temerariamente impugnar vá
senta somente uma de suas partes mas rias coisas das quais não compreendeis
o infinito em sua totalidade, conforme o sentido; pois, do fato de alguém dese
deve ser representado por uma idéia jar pão, não se infere que o pão seja
humana; embora seja certo que Deus mais perfeito do que ele, mas somente
ou algumà outra natureza inteligente que aquele que necessita de pão é
dele possa ter outra idéia muito mais menos perfeito do que quando não
perfeita, isto é, muito mais exata e necessita dele. E, do fato de alguma
mais distinta do que aquela que os ho coisa estar contida numa idéia, não
mens têm, da mesma maneira que dize concluo que essa coisa exista atual
mos que aquele que não é versado na mente, a não ser quando não se pode
Geometria não deixa de possuir a idéia designar nenhuma outra causa para
de todo o triângulo, quando o concebe essa idéia exceto a própria coisa que
como uma figura composta de três ela representa como existente atual
linhas, embora os geômetras possam mente; o que demonstrei que não se
conhecer várias outras propriedades pode dizer de muitos mundos, nem de
do triângulo e notar muitas coisas em qualquer outra coisa que seja, exceto
sua idéia que o não versado na Geome de Deus, apenas89. E não julgo tam
tria não observa. Pois, como é sufi pouco do que ignoro, pois apresentei
ciente conceber uma figura composta as razões do juízo que formulava,
de três linhas para ter a idéia de todo o razões que são tais que não pudestes
triângulo, assim é suficiente conceber até agora refutar nem a mais frágil.
uma coisa que não estâ encerrada em 528. IX. Quando negais que tenha
limites alguns para ter uma verdadeira mos necessidade do concurso e da
e inteira idéia de todo o infinito. influência contínua da causa primeira
527. VIII. Incorreis aqui no mesmo para sermos conservados90, negais
88 Se não posso compreender Deus, já que está 89 Podemos ter a idéia de muitas coisas que não
além do finito, posso ao menos entender que é existem atualmente, objetava Gassendi. Resposta: a
incompreensível. “Longe portanto de me tomar idéia de Deus em mim é a única de que estou certo
Deus incognoscível, a incompreensibilidade, embo que só poderia ser gerada por aquilo mesmo que ela
ra envolva certa limitação necessária de meu conhe representa como existente. A objeção pressupõe,
cimento (eu jamais poderia esgotar o infinito, pos pois, que Gassendi interpretou falsamente a aplica
suir dele um conhecimento ‘adequado’, isto é, ção que é feita do princípio de clareza e distinção e
completo), é ao mesmo tempo... o que me permite que não atentou para o caráter eminentemente origi
conhecer o infinito como tal.” (Guéroult, op. cit., t. nal da idéia de Deus.
I, 206.) 90 Cf. Meditação Terceira, § 33.
I
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 201
riam convir à natureza humana; o que que temos de Deus forma-se sucessiva
me basta inteiramente para demonstrar mente do aumento das perfeições das
a existência de Deus; pois sustento que criaturas; ela se forma inteiramente e
tal virtude, de aumentar e de acrescer de uma vez pelo fato de .concebermos
as perfeições humanas até o ponto de por nosso espírito o ser infinito, inca
não mais serem humanas, mas infinita paz de qualquer espécie de aumento.
mente elevadas acima do estado e da 532. E, quando perguntais como
condição humanos, não poderia existir provo que a idéia de Deus existe em
em nós se não tivéssemos um Deus nós como a marca do operário im
como o autor de nosso ser. Mas, para pressa sobre sua obra, qual é a manei
não mentir, espanto-me muito pouco ra dessa impressão e qual a forma
de que não vos pareça que eu o tenha dessa marca*5, é o mesmo que se,
demonstrado bastante claramente; pois reconhecendo em qualquer quadro
até aqui não percebi que tivésseis tanto artifício que eu não julgasse pos
compreendido bem qualquer de mi sível que esta obra saísse de outras
nhas razões. mãos senão as de Apeles, e que che
531. X. Quando retomais aquilo gasse a dizer que tal artifício inimitável
que eu disse, a saber, que nada se pode é como que determinada marca que
actescentar nem diminuir à idéia de Apeles imprimiu em todas as suas
Deus* 4, parece que não cuidastes bem obras para distingui-las de todas as
do que dizem comumente os filósofos, outras, me perguntásseis qual é a
ou seja, que as essências das coisas são
forma dessa marca e qual a maneira de
indivisíveis; pois a idéia representa a
sua impressão. Certamente, parece que
essência da coisa, a qual se toma
seríeis então mais digno de riso do que
imediatamente a idéia de outra coisa se
se lhe acrescenta ou se lhe diminui de resposta. E quando prosseguis, se
esta marca não é diferente da obra,
algo: assim se figurou outrora a idéia
sois pois, vós mesmo, uma idéia, não
de uma Pandora; assim foram elabora
sois nada além do que uma maneira de
das as idéias dos falsos deuses por
pensar, sois tanto a marca impressa
aqueles que não concebiam como é
necessária a idéia do verdadeiro Deus. quanto o sujeito da impressão, o que
Mas, desde que se concebeu uma vez a dizeis não será tão sutil quanto se,
idéia do verdadeiro Deus, ainda que tendo eu dito que o artifício pelo qual
nele se possam descobrir novas perfei os quadros de Apeles são distintos dos
ções que até então não se haviam per outros não é diferente dos próprios
cebido, sua idéia não foi, entretanto, quadros, objetásseis que tais quadros
acrescida ou aumentada, mas apenas não passam, portanto, de um artifício,
tornada mais distinta é mais expressa, que não são compostos de matéria al
visto que essas novas perfeições deve guma e que são apenas uma maneira
ríam estar todas contidas nesta mesma de pintar, etc.?
idéia que se tinha anteriormente, já que 533. E quando, para negar que
se supõe que era verdadeira; da mesma tenhamos sido feitos à imagem e seme-
maneira que a idéia do triângulo não é
aumentada quando se notam nele mui 9 5 Cf. Meditação Terceira, § 39. A partir desse
ponto, Gassendi critica e escarnece o conhecimento
tas propriedades que até então se igno que as Meditações nos proporcionam de Deus.
ravam. Pois não penseis que a idéia “Como se pode concebê-lo por razão natural?. . .
Já o haveis visto face a face para poder assegurar,
fazendo comparação entre vós e ele, que lhe sois
9 4 Cf. Meditação Terceira, § 38. conforme?”
OBJEÇÕES E RESPOSTAS .203
lhança de Deus, dizeis que Deus tem, obra, como parece quando um pintor
pois, a forma de um homem e em faz um quadro que se lhe assemelha.
seguida relacionais todas as coisas nas 534. Mas, com quão pouca fideli
quais a natureza humana é diferente da dade apresentais minhas palavras
divina, sois nisto mais sutil do que se, quando fingis que eu disse que não
para negar que quaisquer quadros de concebo essa semelhança que tenho
Apeles tenham sido feitos à seme com Deus na medida em que conheço
lhança de Alexandre, dissésseis que ser uma coisa incompleta e depen
Alexandre se assemelha, portanto, a dente, visto que, ao contrário, só disse
um quadro e, todavia, que os quadros isso para mostrar a diferença existente
são compostos de madeira e de cores e entre Deus e nós, de medo que se acre
não de carne como Alexandre? Pois ditasse que eu queria igualar os ho
não é da essência de uma imagem ser mens a Deus e as criaturas ao criador !
em tudo semelhante à coisa de que ela Pois, nesse mesmo lugar, disse que não
é imagem, mas basta que se lhe asse concebia somente que eu era nisso
melhe em alguma coisa. E é mui evi muito inferior a Deus, e que aspirava,
dente que essa virtude admirável e mui no entanto, a essas maiores coisas que
perfeita de pensar que concebemos eu não possuía, mas também que essas
existir em Deus é representada por coisas maiores a que eu aspirava
encontravam-se em Deus atualmente e
aquela que existe em nós, ainda que
de maneira infinita, às quais no entan
muito menos perfeita. E, quando prefe
to encontrava em mim alguma coisa de
ris comparar a criação de Deus com a
semelhante, já que ousava de algum
operação de um arquiteto a fazê-lo
modo aspirar a elas.
com a geração de um pai, vós o fazeis Enfim, quando dizeis que hâ motivo
sem nenhuma razão; pois, embora de espantar porque todo o resto dos
essas três maneiras de agir sejam total homens não tem os mesmos pensa
mente diferentes, a distância não é tão mentos de Deus que eu tenho, jâ que
grande entre a produção natural e a di ele imprimiu neles sua idéia do mesmo
vina quanto entre a artificial e a modo que em mim, é como se vos
mesma produção divina. Mas não pen espantásseis do fato de que, tendo todo
seis nem que digo que há a mesma mundo a noção do triângulo, cada um,
relação entre Deus e nós que a que entretanto, não notasse a mesma quan
existe entre o pai e seus filhos; nem que tidade de propriedades, e que haja tal
é verdadeiro também que jamais haja vez mesmo alguns que lhe atribuam
qualquer relação entre o operário e sua falsamente muitas coisas.
liberdade, pois não só a sinto em mim portanto, voltar-se para coisas às quais
mesmo como também vejo que, tendo o entendimento não a dirige, e no
o desígnio de combatê-la, em lugar de entanto era isto o que negáveis há
opor-lhe boas e sólidas razões, vós vos pouco e no que consiste presentemente
contentais simplesmente em negá-la. E o tema de nossa discussão; se ela é
talvez eu encontrasse mais crédito no determinada pelo entendimento, não é
espírito dos outros afirmando o que ela, portanto, que se mantém sob sua
experimentei, e que cada um pode tam guarda; mas somente ocorre que, como
bém experimentar em si mesmo, do ela se voltava anteriormente em dire
que vós, que negais uma coisa pelo ção ao falso que lhe era por ele propos
simples fato de que jamais talvez a ha to, da mesma maneira por acaso ela se
veis experimentado10 5. E, no entanto, volta agora para o verdadeiro, porque
é fácil julgar por vossas próprias pala
vras que algumas vezes a experimen o entendimento Iho propõe. Mas, além
tastes: pois, quando negais que possa disso, eu desejaria saber qual é a natu
mos impedir-nos de cair em erro, reza do falso que concebeis e como
porque não quereis que a vontade se pensais que pode ser objeto do entendi
dirija a coisa alguma sem que a tanto mento. Pois, para mim, que não enten
seja determinada pelo entendimento, do pelo falso nada que não seja a pri
vós estais de acordo que podemos pro vação do verdadeiro, julgo haver uma
ceder de maneira a não perseverarmos inteira repugnância que o entendi
nisto, o que não se pode fazer de modo mento apreenda o falso sob a forma ou
algum sem a liberdade que tem a von a aparência do verdadeiro, o que seria
tade de se dirigir a isto ou aquilo sem todavia necessário se ele jamais deter
esperar a determinação do entendi minasse a vontade a abraçar a falsida
mento; liberdade que, todavia, não de.
quereis reconhecer. Pois, se o entendi 539. IV. No que concerne ao fruto
mento determinou uma vez a vontade a destas Meditações, parece-me ter ad
fazer um falso juízo, eu vos pergunto, vertido suficientemente no prefácio, o
quando ela começa pela primeira vez a que penso que lestes, que ele não será
querer cuidar de não perseverar no grande para aqueles que, não se dando
erro, o que é que a determina a ao trabalho de compreender a ordem e
tanto10 6? Se for ela própria, poderá, o nexo de minhas razões, cuidarem
10 5 Até agora a dialética parece mais brilhante do
apenas de procurar em todas as oca
que convincente: por que deveria Gassendi apresen siões motivos de disputas. E quanto ao
tar razões onde Descartes se contenta em invocar o método pelo qual poderiamos discernir
testemunho do “que se pode sentir e experimentar
em si mesmo”? Qual a sua culpa, se se recusa a as coisas que concebemos de fato cla
admitir o que não experimentou? Mas Descartes irá ramente das coisas de que apenas nos
justamente demonstrar (pelo absurdo) que seu
adversário não podia deixar de efetuar essa expe- persuadimos conceber clara e distinta
frâáado livre arbítrio. mente, embora eu pense tê-lo ensinado
106 O dilema é o seguinte: Gassendi admite que
podemos nos coibir de perseverar no erro; mas de maneira bastante exata, como já o
como é determinada a vontade para isso? disse, não ousaria prometer que seria
A) ou por si própria — e a tese de Gassendi se
esboroa; facilmente compreensível aos que tra
B) ou pelo entendimento — solução que engen balham tão pouco em se despojar de
dra um absurdo, pois cumpriría admitir que o enten
dimento mesmo nos pode induzir a perceber o falso seus prejuízos, a ponto de se queixar de
sob a forma do verdadeiro. Vemos por aí no que a que fui demasiado longo e exato no
tese do livre arbítrio e da vontade responsável pelo
erro é inseparável do princípio da clareza e da mostrar o meio de se desfazer de tais
distinção. prejuízos.
OBJEÇOES E RESPOSTAS 207
é em relação a elas senão uma denomi a tenhamos concebido ela própria, mas
nação exterior, que não lhes causa antes o verdadeiro triângulo. Da
nenhuma transformação; e, todavia, mesma maneira que, quando lançamos
não se pode duvidar que elas sejam o olhar sobre um papel onde há alguns
conformes a esta verdadeira natureza traços dispostos e arranjados de tal
das coisas que foi feita e construída modo que representam o rosto de um
pelo verdadeiro Deus: não que haja no homem, a visão não excita tanto em
mundo substâncias que tenham com nós a idéia dos próprios traços quanto
primento sem largura, ou largura sem a idéia de um homem: o que não ocor
profundidade; mas porque as figuras rería, se o rosto de um homem não nos
geométricas não são consideradas fosse conhecido de outro lugar, e se
como substâncias, mas somente como não estivéssemos mais acostumados a
os limites nos quais a substância está pensar nele do que em seus traços, os
contida- No entanto, não concordo quais mui amiúde não poderiamos dis
com que as idéias dessas figuras nos tinguir uns dos outros se estivéssemos
tenham jamais caído sob os sentidos, um pouco distanciados. Assim, certa
como cada um se persuade ordinaria mente, não poderiamos jamais conhe- •
mente; pois, ainda que não haja dúvida cer o triângulo geométrico através
que possam existir no mundo, tal como daquele que vemos traçado sobre o
os geômetras as consideram, nego, no papel, se nosso espírito não recebesse a
entanto, que existam quaisquer em sua idéia de outra parte1 0 8.
torno de nós, a não ser que sejam tão 544. II. Não vejo aqui a que gênero
pequenas que não nos impressionem os de coisas quereis que a existência per
sentidos: pois são ordinariamente com tença, nem por que ela não pode ser
postas de linhas retas, e não penso que denominada uma propriedade109,
jamais tenha tocado nossos sentidos como a onipotência, tomando o nome
parte alguma de uma linha que fosse de propriedade para toda espécie de
verdadeiramente reta. Por isso, quando atributo ou para tudo o que pode ser
chegamos a olhar através de uma lune-
ta aquelas que nos haviam parecido as 108 Para refutar a doutrina cartesiana das essên
cias como verdades eternas, Gassendi expunha que
mais retas, vemo-las inteiramente irre as essências são generalidades constituídas empiri-
gulares e curvadas em todas as partes, camente, que só tiram sua verdade das coisas singu
como ondas. E, portanto, quando per lares de que são abstraídas. Responde Descartes:
Como poderiamos extrair as idéias geométricas do
cebemos pela primeira vez em nossa sensível, visto que elas jamais aí se encontram?
109 A recusa de Gassendi em considerar a exis
infância uma figura triangular traçada tência como uma propriedade ou uma perfeição
sobre o papel, tal figura não nos pôde anuncia a crítica kantiana da prova ontológica.
ensinar como era necessário conceber Gassendi escreve, por exemplo: “O que existe e que,
além da existência, tem muitas perfeições, não tem a
o triângulo geométrico, posto que não existência como perfeição singular. . . mas como
representava melhor do que um mau forma ou ato pelo qual a coisa mesma e suas perfei
desenho representa uma imagem per ções são existentes, e sem a qual nem a coisa nem
suas perfeições existiriam de modo algum... Se
feita. Mas, na medida em que a idéia uma coisa carece de existência, não se diz que está
verdadeira do triângulo já estava em privada de alguma perfeição, mas que é nula ou que
ela não é absolutamente”. Em Gassendi, como em
nós, e que nosso espírito podia conce- Kant, esta recusa provém da impossibilidade de
bê-la mais facilmente do que a figura considerar a existência de outro modo, a não ser
menos simples ou mais composta de como existência sensível, tal como notará Hegel
(Enciclopédia, Introdução § 51). Quanto à crítica de
um triângulo pintado, daí decorre que, Marx à posição kantiana, cf. a Dissertação sobre
tendo visto essa figura composta, não Demócrito eEpicuro, in fine. I
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 209
atribuído a uma coisa, como efetiva ter sido tão fácil de resolver. No que
mente deve ser aqui entendido. Mas, concerne ao que acrescentais em segui
antes, a existência necessária é verda- da, já respondi suficientemente; e enga
deiramente em Deus uma propriedade nai-vos grandemente quando dizeis
tomada no sentido menos amplo, por que não se demonstra a existência de
que apenas a ele convém, e porque só Deus como se demonstra que todo
nele faz parte de sua essência. Eis por triângulo retilíneo tem seus três ângu
que também a existência do triângulo los iguais a dois retos; pois a razão é
não deve ser comparada com a exis semelhante nos dois casos, exceto que
tência de Deus, porque ela tem em a demonstração que prova a existência
Deus uma relação manifestamente di de Deus é muito mais simples e evi
ferente com a essência, que não tem no dente do que a outra. E enfim, silencio
triângulo110; e não cometo mais aqui sobre o restante do que prosseguis,
o erro que os lógicos chamam de peti porque, quando dizeis que não explico
ção de princípio, quando coloco a exis bastante as coisas e que minhas provas
tência entre as coisas que pertencem à não são convincentes, penso que a me
existência de Deus, do que quando, lhor título poder-se-ia dizer o mesmo
entre as propriedades do triângulo, co de vós e das vossas.
loco a igualdade da grandeza de seus 545. III. Contra tudo o que apre
três ângulos com dois retos. Não é ver sentais aqui de Diágoras, de Teodoro,
dade também que a essência e a exis de Pitágoras-e de vários outros, opo
tência em Deus, tanto quanto no triân nho-vos os céticos, que colocavam em
gulo, podem ser concebidas uma sem a dúvida as próprias demonstrações: de
outra, porque Deus é seu próprio ser e Geometria, e sustento que eles não o
o triângulo não. E, todavia, não nego teriam feito se tivessem tido o conheci
que a existência possível seja uma per mento certo da verdade de um
feição na idéia do triângulo, como a Deus111; e mesmo se uma coisa pare
existência necessária é uma perfeição cer verdadeira a mais pessoas, isto não
na idéia de Deus, pois isso a torna provará que essa coisa seja mais notó
mais perfeita do que o são as idéias de ria e mais manifesta do que outra;
todas essas quimeras que supomos não prová-lo-á antes o fato de que aqueles
poderem ser produzidas. E, portanto, que têm um conhecimento suficiente de
não diminuístes em nada a força de uma e de outra reconhecem que uma é
meu argumento e permaneceis sempre primeiramente conhecida, mais evi
enganado por este sofisma que dizeis11 * dente e mais segura do que a outra.
11 0 Gassendi considera sofisma a assimilação da 111 Gassendi invoca o exemplo dos geômetras
existência em Deus a uma propriedade necessária antigos para mostrar que o conhecimento da neces
no triângulo: a existência de Deus e a existência do sidade das verdades geométricas independe do
triângulo é que deveríam ser postas no mesmo conhecimento da existência de Deus. De resto, pros
plano. Ora, para Descartes, neste caso, não se leva segue ele, “essas demonstrações são de tal evidência
mais em conta a distinção essencial entre a exis e certeza que, sem esperar nossa deliberação, elas
tência necessária, inclusa na essência de Deus, e a nos arrancam, por si mesmas, o nosso consentimen
existência somente possível, inclusa na do triângulo. to”, ao mesmo título que o Cogito.
210 DESCARTES
va da verdade das coisas que existem algum vapor, algum ar, ou qualquer
fora de nós, no que não vejo que corpo que seja, por sutil e tênue que
tenhais dito coisa alguma de verda possa ser11 4; mas, quanto a saber se
deiro. efetivamente era diferente do corpo,
548. III. Não me detenho aqui em disse nessa ocasião que não era o
coisas que tantas vezes repisastes e que momento de discuti-lo. Tendo-o reser
ainda nesta passagem repetis tão vã vado para esta Meditação Sexta, foi
mente; por exemplo, que há muitas nela que tratei amplamente de tal tema
coisas que adiantei sem prova, as quais e onde decidi esta questão por uma
afirmo, não obstante, ter demonstrado demonstração mui forte e verdadeira.
mui evidentemente; como também que Mas vós, ao contrário, confundindo a
somente quis falar do corpo grosseiro e questão que concerne a como pode o
palpável quando excluí o corpo de espírito ser concebido com aquela que
minha essência; ainda que, todavia, se refere ao que ele é efetivamente, não
meu desígnio tenha sido excluir de dais a entender outra coisa senão que
minha essência toda espécie de corpo, nada compreendestes distintamente de
por pequeno e sutil que possa ser11 3, e todas estas coisas.
outras coisas semelhantes; pois, que se 549. IV. Perguntais aqui como
poderá aqui responder a tantas pala considero que a espécie ou a idéia do
vras ditas e adiantadas, sem qualquer corpo, que é extenso, pode ser recebida
fundamento razoável, se não negá-las em mim que sou uma coisa inexten-
mui simplesmente? Contudo, direi de sa" 5. Respondo que nenhuma espécie
passagem que gostaria de saber sobre corporal é recebida no espírito, mas
o que vos fundamentais para dizer que que a concepção ou intelecção pura
falei mais do corpo maciço e grosseiro das coisas, corpóreas ou espirituais, é
do que do corpo sutil e tênue. É, decla feita sem qualquer imagem ou espécie
rais, porque eu disse que tenho um corpórea; e quanto à imaginação, que
corpo ao qual estou conjugado e tam não pode ser senão das coisas corpó
bém que é certo que eu, isto é, minha reas, é verdade que para elaborar uma
alma, é distinta de meu corpo, onde é necessário uma espécie que seja um
confesso que não vejo por que tais verdadeiro corpo e à qual o espírito se
palavras não poderiam também ser aplique, mas não que seja recebida no
relacionadas ao corpo sutil e impercep espírito. O que dizeis da idéia do sol,
tível, assim como àquele que é mais que um cego de nascença forma pelo
grosseiro e palpável; e não creio que simples conhecimento que tem de seu
tal pensamento possa ocorrer ao espí calor, é facilmente refutável11 6; pois
rito de outrem além de vós. De resto, esse cego pode perfeitamente ter uma
mostrei claramente, na Meditação Se 11 4 Gassendj lembra que a Meditação Segunda
gunda, que o espírito poderia ser con não prova absolutamente que eu não seja “um
cebido como uma substância existente, vento, um fogo, um vapor, um ar”, o que Descartes
recusa em nome da ordem das razões.
antes mesmo que soubéssemos se há
11 5 Como poderia a idéia do corpo, pergunta Gas
no mundo algum vento, algum fogo, sendi, representá-lo, se ela não fosse, por sua vez,
extensa? E se nosso espírito não fosse uma coisa
113 Sobre a Meditação Quarta, § 17. A dificul extensa, como poderia ela residir-nele?
dade, julga Gassendi, não está em saber se meu 11 6 Gassendi? se um cego de nascença dissesse que
espírito difere do “corpo maciço e grosseiro” -—■ o sol é uma “coisa que esquenta”, não teria disso
isso é certo —, mas em saber se o espírito não é uma idéia clara e distinta. Quem vos garante que
“um corpo sutil e fino difuso neste corpo espesso e tendes uma idéia clara e distinta de vós mesmo
maciço”. quando vos definis como uma “coisa que pensa”?
212 DESCARTES
idéia clara e distinta do sol como de houvesse alguém que quisesse dizer
uma coisa que aquece, embora não a que Bucéfalo é uma música, não seria
tenha como a idéia de uma coisa que em vão e sem razão que tal coisa seria
aclara e ilumina. E é sem razão que me negada por outrem. E certamente em
comparais a esse cego; primeiramente todo o resto que acrescentais aqui para
porque o conhecimento de uma coisa provar que o espírito tem extensão11 9,
que pensa se estende muito mais longe na medida, dizeis vós, em que ele se
do que aquele de uma coisa que aque serve do corpo que é extenso, não me
ce, e mesmo é muito mais amplo do parece que raciocinais melhor do que
que qualquer conhecimento que tenha se, pelo fato de Bucéfalo relinchar e
mos de qualquer outra coisa que seja, assim emitir sons que podem ser rela
como mostrei no devido lugar, é tam cionados com a música, tirásseis a
bém porque não há ninguém que possa consequência de que Bucéfalo é, por
mostrar que essa idéia do sol que o tanto, uma música. Pois, ainda que o
cego elabora não contenha tudo o que espírito seja unido a todo o corpo, não
se possa conhecer dele, exceto aquele se segue daí que ele seja extenso por
que, sendo dotado do sentido da vista, todo o corpo, pois não é próprio do
conhece, além disso, sua figura e sua espírito ser extenso, mas somente pen
luz; mas, quanto a vós, não só não sar. E ele não concebe a extensão por
conheceis mais do que eu no tocante uma espécie extensa que exista nele,
ao espírito como também não perce embora imagine voltando-se e aplican
beis aí tudo o que vejo11 7, de sorte que do-se a uma espécie corpórea que é
nisto seja antes vós que pareceis um extensa, como o disse anteriormente.
cego, e posso no máximo, do vosso E, enfim, não é necessário que o espí
ponto de vista, ser chamado de vesgo rito seja da ordem e da natureza do
ou pouco clarividente, com todos os corpo, conquanto tenha a força ou a
demais homens. virtude de movê-lo.
550. De resto, não acrescentei que o 551. V. O que dizeis nessa passa
espírito não era extenso para explicar gem, no que se refere à união entre o
como ele é e dar a conhecer sua nature espírito e o corpo, é semelhante às difi
za, mas somente para advertir que se culdades precedentes. Nada objetais
enganam aqueles que pensam que ele é contra minhas razões, mas colocais
extenso11 8. Da mesma maneira que, se somente dúvidas que vos parecem deri
var de minhas conclusões, embora
11 7 Por “pensamento”, Gassendi e Descartes não efetivamente não vos ocorram ao espí
entendem a mesma coisa: Gassendi recusa-se a ver
o atributo principal da res cogitans no pensamento- rito senão porque desejais submeter ao
entendimento. Poder-se-á consultar, acerca dessa exame da imaginação coisas que de
questão, o debate que opôs Alquié e Guéroult no
Congresso Descartes de Royaumont (Descartes, sua própria natureza não estão sujeitas
Ed. Minuit, págs. 33-71). Alquié sustentava que a a tal jurisdição. Assim, quando quereis
res cogitans é algo mais do que o pensamento comparar aqui a mistura que se faz
enquanto entendimento, sendo este apenas um
modo de substância pensante ao mesmo título que a entre o corpo e o espírito com a de dois
vontade. “Não sei absolutamente”, replicava Gué corpos misturados, basta-me responder
roult, “de textos em que Descartes oponha um
suporte, uma qualidade oculta, um ser que não. que não se deve fazer entre essas coisas
pudesse ser atingido pelo pensamento visto que não comparação alguma, pois que são de
seria o pensamento...” (pág. 39). dois gêneros totalmente diferentes, e
118 Gassendi: “Dizeis que não sois uma coisa
extensa; certamente, fico sabendo por aí o que não
sois, mas não o que sois. . . Ter-se-ia uma idéia 11 9 Gassendi pergunta nesta passagem como pode
bastante clara e distinta do Bucéfalo se se conhe a alma ser unida ao corpo todo ou a parte do corpo,
cesse pelo menos que ele não é uma música?” se ela não é extensa.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 213
Senhor,
de toda espécie de prejuízo, nada mais existo, o autor das Instâncias quer que
é preciso do que se resolver a nada eu suponha esta premissa maior: aque
afirmar ou negar de tudo o que ante le que pensa é; e, assim, que tenha já
riormente se afirmou ou negou, senão esposado um prejuízo. No que ele se
após havê-lo novamente examinado, engana novamente quanto ao uso da
ainda que não se deixe de reter todas palavra prejuízo: pois, embora se
as mesmas noções na memória. Disse, possa dar esse nome a tal proposição
todavia, que seria difícil expulsar quando a proferimos sem atenção, e
assim de nossa crença tudo o que aí quando somente acreditamos que ela é
anteriormente se havia colocado, em verdadeira porque recordamos já tê-la
parte porque é necessário ter alguma assim julgado anteriormente, não se
razão de duvidar antes de se determi pode dizer, todavia, que ela seja um
nar a tanto (e foi por isso que propus prejuízo quando a examinamos, por
as principais dessas razões em minha que parece tão evidente ao entendi
Primeira Meditação), e em parte tam mento que este não poderia impedir-se
bém porque, qualquer que seja a reso de crer nela, ainda que seja a primeira
lução que tomemos de nada afirmar ou vez em sua vida que nela pense e que
negar, esquecemo-nos facilmente dela por conseguinte não tenha quanto a
em seguida se não a imprimirmos for isso qualquer prejuízo122. Mas o erro
temente na memória; eis por que dese que é aqui mais considerável é que esse
jei que se pensasse nisso cuidadosa autor supõe que o conhecimento das
mente. proposições particulares deve sempre
ser deduzido das universais, segundo a
555. A segunda objeção é apenas ordem dos silogismos da dialética123,
uma suposição manifestamente falsa; no que mostra saber bem pouco de que
pois, embora eu houvesse dito ser maneira se deve procurar a verdade;
mesmo necessário esforçar-se por pois é certo que para encontrá-la cum
negar as coisas que anteriormente pre sempre começar pelas noções par
eram tidas por demasiado asseguradas, ticulares, para em seguida chegar às
limitei expressamente que isto só se
gerais, embora seja possível também,
deveria fazer durante o tempo em que
reciprocamente, tendo-se encontrado
se dirigisse toda a atenção à procura as gerais, deduzir delas outras particu
de algo mais certo do que tudo quanto lares. Assim, quando se ensina a uma
assim se poderia negar, tempo em cujo criança os elementos da Geometria,
transcurso é evidente que não se pode não a faremos entender em geral que,
ria deixar de se revestir de algum pre quando, de duas quantidades iguais,
juízo que fosse danoso. tiramos partes iguais, os restos perma
556. A terceira também nada con necem iguais, ou que o todo é maior do
tém senão uma cavilação; pois, embo que suas partes, se não lhes mostrar
ra seja verdadeiro que a dúvida apenas mos exemplos em casos particulares. E
não basta para estabelecer qualquer foi por não ter cuidado disso que nosso
verdade, ela não deixa de ser útil para autor enganou-se em tantos falsos
preparar o espírito a estabelecê-la raciocínios, com os quais engrossou
após, e é somente nisto que eu a seu livro; pois ele nada fez senão com
empreguei. por falsas premissas maiores à sua fan-
557. Contra a Meditação Segunda, 122 O Cogito só se toma um prejuízo (ante a prova
da existência de Deus) quando não é reativado
vossos amigos notam seis coisas. A atualmente. !
primeira é que dizendo: penso, logo 123 Cf. Princípios, I, 49.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 217
tasia, como se eu tivesse delas dedu substância pensante haver julgado que
zido as verdades que expliquei. é intelectual, porque notou em si todas
558. A segunda objeção que ano as propriedades das substâncias inte
tam aqui vossos amigos é que, para lectuais, e não pôde advertir aí nenhu
saber que se pensa, é preciso saber o ma das pertencentes ao corpo, pergun-
que é o pensamento; o que não sei de ta-se-lhe ainda como sabe se não é um
modo algum, dizem eles, porque tudo corpo mais do que uma substância
neguei. Mas eu apenas neguei os pre imaterial.
juízos e nunca as noções, como estas, 561. A quinta objeção é seme
que se conhecem sem qualquer afirma lhante: Embora eu não encontre exten
ção ou negação. são em meu pensamento, não se segue
559. A terceira é que o pensamento que ele não seja extenso, já que meu
não pode existir sem objeto; por exem pensamento não é a regra da verdade
plo, sem o corpo. Onde>é preciso evitar das coisas. E também a sexta: Pode
o equívoco da palavra pensamento, acontecer que a distinção que descubro
que se pode tomar como a coisa pen por meu pensamento entre o pensa
sante e também como a ação dessa mento e o corpo seja falsa. Mas cum
coisa124; ora, nego que a coisa pen pre notar aqui particularmente o equí
sante tenha necessidade de outro obje voco que existe nestas palavras: meu
to além de si mesma para exercer sua pensamento não é a regra da verdade
ação, embora ela possa também esten- das coisas; pois se quer dizer que meu
dê-la às coisas materiais quando as pensamento não deve ser a regra dos
examina. outros para obrigá-los a crer em uma
560. A quarta é que, embora eu coisa que penso verdadeira, estou de
tenha um pensamento de mim mesmo, pleno acordo; mas isto não vem aqui a
não sei se este pensamento é mais uma propósito, pois não quis obrigar nin
ação corporal ou um átomo, que se guém a seguir minha autoridade; ao
move do que uma substância imaterial; contrário, adverti em diversos lugares
no que o equívoco do nome pensa que não nos devemos deixar persuadir
mento é repetido, e não vejo aqui nada apenas pela evidência das razões. Ade
afora uma questão sem fundamento e mais, se tomamos indiferentemente a
que é semelhante à seguinte: julgais palavra pensamento por todas as espé
que sois um homem porque percebeis cies de operações da alma, é certo que
em vós todas as coisas na ocorrência podemos ter muitos pensamentos dos
das quais chamais de homens aqueles quais nada se pode inferir no referente
em que elas se encontram; mas, como às coisas existentes fora de nós; mas
sabeis se não sois um elefante e não isso também não vem a propósito
um homem, por algumas outras razões nesse lugar, quando se trata apenas de
que não podeis perceber? Pois, após a pensamentos que são percepções cla
ras e distintas e de juízos que cada um
124 A respeito dessa distinção, cf. Princípios, I, deve fazer consigo em seguida a essas
63-64. E nomeadamente: “Quando os consideramos
(o pensamento e a extensão) como as propriedades percepções1 2 5. Eis por que, no sentido
das substâncias de que dependem, distinguimo-los
facilmente dessas substâncias e os tomamos tais 125 Distinção entre: a) meu pensamento indivi
como são verdadeiramente; ao passo que, se quiser dual; b) o pensamento na medida em que recobre
mos considerá-los sem substância, isso poderá não importa qual cogitatio; c) o pensamento claro e
levar-nos a tomá-los por coisas que subsistem por si distinto que, só ele, constitui autoridade. Para Des
mesmas”. Todavia, esta distinção de razão entre a cartes, o pensamento (ou razão) não é uma facul
cogitado e a res cogitans não significa que o ser dade psicológica que a gente declararia arbitraria
pensante enquanto tal seja outra coisa senão o mente infalível, mas um domínio engendrado pela,
pensamento. evidência intelectual.
218 DESCARTES
em que essas palavras devem ser enten persuadiram delas; 4.° e que, do fàto
didas aqui, digo que o pensamento de de que me reconheço imperfeito, não se
cada um, isto é, a percepção ou conhe segue que Deus exista. Mas, se se toma
cimento que tem de uma coisa, deve a palavra idéia da maneira pela qual eu
ser para ele a regra da verdade dessa disse expressamente que a tomava, sem
coisa, isto é, que todos os juízos que se escusar pelo equívoco daqueles que
sobre ela tiver feito devem ser confor a restringem às imagens das coisas
mes a essa percepção para serem bons; materiais que se formam na imagina
mesmo no tocante às verdades da fé, ção127, não se poderia negar que
devemos perceber alguma razão que temos alguma idéia de Deus, a não ser
nos persuada de que elas foram revela que não se entenda o que significam
das por Deus, antes de nos determi estas palavras: a coisa mais perfeita
narmos a crer nelas1 2 6; e, ainda que os que possamos conceber; pois é isto que
ignorantes façam bem em seguir o todos os homens chamam de Deus. E é
juízo dos mais capazes quanto às coi chegar a estranhos extremos, para que
sas de difícil conhecimento, é preciso rer levantar objeções, dizer que não se
todavia que seja a sua percepção que entende o que significam as palavras
lhes ensine que são ignorantes e que que são mais comuns na boca dos
aqueles cujos juízos querem seguir não homens128; além do que, a confissão
o são tanto, talvez; de outra maneira, mais ímpia que alguém possa fazer é
fariam mal em segui-los e agiriam mais dizer de si mesmo, no sentido em que
como autômatos ou como animais do tomei a palavra idéia, que não tem
que como homens. Assim, é o erro nenhuma idéia de Deus: pois não con
mais absurdo e mais exorbitante que siste somente em dizer que não o
um filósofo possa admitir o querer conhece pela razão natural, mas tam
fazer juízos que não se relacionem às bém que, nem pela fé ou qualquer
percepções que ele tem das coisas; e outro meio, poderia saber coisa algu
todavia, não vejo como nosso autor ma dele, porque se não se possui qual
poderia escusar-se de ter caído nesse quer idéia dele, isto é, qualquer percep
erro na maioria-de suas objeções; pois ção que corresponda à significação
ele não quer que cada um se detenha dessa palavra Deus, em vão se dirâ
em sua própria percepção, mas pre crer que Deus é, pois equivale a afir
tende que se deva crer nas opiniões ou mar que se crê que nada é e assim se
nas fantasias que lhe apraz propor-nos, permanece no abismo da impiedade e
embora não as perceba de modo no extremo da ignorância.
algum. 563. O que acrescentam, dizendo
que, se eu tivesse essa idéia, eu a
562. Contra a Meditação Terceira, compreendería, é afirmado sem qual
vossos amigos notaram: l.° que todo quer fundamento: pois, já que a pala
mundo não experimenta em si a idéia vra compreender significa alguma limi
de Deus; 2.° que, se eu tivesse essa tação, um espírito finito não poderia
idéia, eu a compreendería; 3.° que mui compreender Deus, que é infinito; mas
tos leram minhas razões e não se isto não impede que ele o perceba,
assim como se pode tocar uma monta
12 B“Ainda que se diga que a fé tem por objeto nha, ainda que não se possa abraçâ-
coisas obscuras, não obstante a razão pela qual
acreditamos nelas não é obscura, mas é mais clara
do que qualquer luz natural.” (Segundas respostas.) 1 2 7 Cf. as definições 2 e 3 da exposição geométrica
Mesmo no domínio da fé, a decisão permanece das Segundas Respostas. j
racional e a vontade não pode dispensar as razões. 128 Cf. Cartas, aMersenne, julho de 1641.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 219
la129. Aquilo que dizem também de tas noções que existem em nós, dizen
minhas razões, afirmando que muitos do em seguida que não se pode estar
as leram sem por elas serem persuadi certo de coisa alguma sem saber antes
dos, pode facilmente ser refutado, pois que Deus existe; 2.° e que o conheci
hâ alguns outros que as compreen mento de Deus de nada serve para
deram e ficaram com elas satisfeitos; adquirir o das verdades matemáticas;
pois deve-se crer mais em um só que 3° e que ele pode ser enganador. Vede
diz, sem intenção de mentir, que viu ou a respeito minha resposta às Segundas
que compreendeu alguma coisa, do que Objeções e o fim da segunda parte da
em mil outros que a negam pelo sim Resposta às Quartas.
ples fato de que não puderam vê-la ou 566. Mas eles acrescentam no fim
compreendê-la: assim como na desco um pensamento que não sei se nosso
berta dos antípodas acreditou-se muito autor escreveu em seu livro de Instân
mais no relato feito por alguns mari cias, embora seja um pensamento bas
nheiros que fizeram a volta da terra do tante semelhante aos seus: Muitos
que em milhares de filósofos que não excelsos espíritos, dizem eles, acredi
acreditaram que ela fosse redonda. E tam ver claramente que a extensão
já que alegam aqui os Elementos de matemática, a qual estabeleço como
Euclides, como se fossem fáceis para princípio de minha Física, não é- outra
todo mundo, peço a eles que conside coisa senão meu pensamento, e que ela
rem que entre aqueles que se estima não tem nem pode ter nenhuma subsis
serem os mais sábios na Filosofia da tência fora de meu espírito, sendo ape
Escola não há um entre cem que os nas uma abstração que faço do corpo
compreenda e que não há um em dez físico; eportanto que toda a minha Fí
mil que entenda todas as demonstra sica só pode ser imaginária e fictícia,
ções de Apolônio ou de Arquimedes, como o são todas as Matemáticas
embora elas sejam tão evidentes e tão puras; e que, na Física real das coisas
certas quanto as de Euclides. que Deus criou, é preciso uma matéria
564. Enfim, quando afirmam que real sólida e não imaginária. Eis a
do fato de que reconheço em mim al objeção das objeções, e a suma de toda
guma imperfeição não se segue que a doutrina dos excelsos espíritos, que
Deus exista, com isso nada provam; aqui são alegados. Todas as coisas que
pois eu não a deduzí imediatamente podemos entender e conceber não são
disso sem acrescentar-lhe algo mais; e para eles senão imaginações e ficções
apenas me fazem recordar o artifício de nosso espírito e que não podem ter
desse autor que costuma truncar mi qualquer subsistência: donde se segue
nhas razões e não apresentar delas que nada há, exceto o que não se pode
senão algumas partes para fazê-las de modo algum entender, conceber ou
parecer imperfeitas. imaginar, que se deva admitir como
565. Nada vejo em tudo o que nota verdadeiro130: isto é, que é preci.so fe
ram a respeito das três outras Medita char inteiramente a porta à razão e
ções a que não tenha já amplamente
130 A objeção — de espírito ao mesmo tempo
respondido alhures, como àquilo que empirista e aristotélico — pretende que “a extensão
objetam: l.° que cometi um círculo dos geômetras” não passa de uma ficção forjada
provando a existência de Deus por cer por nosso espírito. Descartes traduz: é uma ficção
porque podemos concebê-la clara e distintamente, e
não poupa trabalho em denunciar, por conseguinte,
129 O conhecimento da natureza de Deus pode ser um absurdo no antimatematicismo de seus adversá
fiel sem ser total. rios.
220 DESCARTES
rio, que tudo o que existe em nós, e que sos corpos dependem da alma3, ao
não concebemos de modo algum como passo que se devia pensar, ao contrá
passível de pertencer a um corpo, deve rio, que a alma só se ausenta, quando
ser atribuído à nossa alma2. se morre, porque esse calor cessa, por
que os órgãos que servem para mover
Art,. 4. Que o calor e o movimento dos o corpo se corrompem.
membros procedem do corpo, e os
pensamentos, da alma. Art. 6. Que diferença há entre um
corpo vivo e um corpo morto.
Assim, por não concebermos que o
corpo pense de alguma forma, temos
razão de crer que toda espécie de pen A fim de evitarmos, portanto, esse
samento em nós existente pertence à erro, consideremos que a morte nunca
alma; e, por não duvidarmos de que sobrevêm por culpa da alma, mas
haja corpos inanimados que podem somente porque alguma das principais
mover-se de tantas diversas maneiras partes do corpo se corrompe; e julgue
que as nossas, ou mais do que elas, e mos que o corpo de um homem vivo
que possuem tanto ou mais calor (o difere do de um morto como um reló
que a experiência mostra na chama, gio, ou outro autômato (isto é, outra
que possui, ela só, muito mais calor e máquina que se mova por si mesma),
movimento do que qualquer de nossos quando está montado e tem em si o
membros), devemos crer que todo o princípio corporal dos movimentos
calor e todos os movimentos em nós para os quais foi instituído, com tudo o
existentes, na medida em que não que se requer para a sua ação, difere
dependem do pensamento, pertencem do mesmo relógio, ou outra máquina,
apenas ao corpo. quando está quebrado e o princípio de
seu movimento pára de agir 4.
Art. 5. Que é erro acreditar que a alma
dá o movimento e o calor ao corpo. Art. 7. Breve explicação das partes do
corpo e de algumas de suas funções.
Por esse meio, evitaremos um erro
considerável em que muitos caíram, de Para tornar isso mais inteligível,
sorte que o reputo a principal causa explicarei, em poucas palavras, a
que até agora impediu que se pudessem forma toda de que se compõe a má-
explicar bem as paixões e as outras
3 A alma está implantada na máquina do corpo,
coisas pertencentes à alma. Consiste mas não é seu princípio de formação nem conserva
em ter-se imaginado, vendo-se que ção. “Trata-se simplesmente de íntima associação
todos os corpos mortos são privados da alma com o todo e as partes da máquina já fei
ta. . . Assim a natureza física realizaria mecanica
de calor e depois de movimento, que mente uma máquina muito complicada, com dispo
era a ausência da alma que fazia cessar sições tais que uma alma poderia de alguma forma
calçá-la, sem que tenha tido algo com a fabricação
esses movimentos e esse calor; e assim e a imbricação de suas partes.” (Guéroult, II, pág.
se julgou, sem razão, que o nosso calor ,181.)
natural e todos os movimentos de nos 4 No caso do homem, a deterioração da máquina
pão conduz apenas à sua destruição, mas também à
separação da alma e do corpo. A doutrina da união
2 Lembrança do princípio da distinção das subs da alma e do corpo na separação exclui, assim, radi
tâncias enunciado na Meditação Sexta. calmente todo animismo ou vitalismo. !
AS PAIXÕES DA ALMA 229
quina de nosso; corpo 5. Não há quem dam de que todas as veias e artérias do
já não saiba que existem em nós um corpo sejam como regatos por onde o
coração, um cérebro, um estômago, sangue não pára de correr muito rapi
músculos, nervos, artérias, veias e coi damente, começando seu curso na
sas semelhantes; sabe-se também que cavidade direita do coração pela veia
os alimentos ingeridos descem ao estô arteriosa, cujos ramos se espalham por
mago e às tripas, de onde o seu suco, todo o pulmão e se juntam aos da arté
correndo para o fígado e para todas as ria venosa, pelo qual ele passa do pul
veias, se mistura com o sangue que mão ao lado esquerdo do coração; de
elas contêm, aumentando, por esse pois segue daí para a grande artéria,
meio, a sua quantidade6. Aqueles que cujos ramos, esparsos pelo resto do
ouviram falar, por pouco que seja, da corpo, se unem aos ramos da veia que
medicina sabem, além disso, como se levam de novo o mesmo sangue à cavi
compõe o coração e como todo o san dade direita do coração, de sorte que
gue das veias pode facilmente correr essas duas cavidades são como eclu
da veia cava para seu lado direito, e sas, através de cada uma das quais
daí passar ao pulmão pelo vaso que passa todo o sangue em cada volta que
denominamos veia arteriosa, depois faz pelo corpo. Demais, sabe-se que
retornar do pulmão ao lado esquerdo todos os movimentos dos membros
do coração pelo vaso denominado dependem dos músculos e que estes
artéria venosa7, e, enfim, passar daí músculos se opõem uns aos outros, de
para a grande artéria, cujos ramos se tal modo que, quando um deles se
espalham pelo corpo inteiro. E mesmo encolhe, atrai para si a parte do corpo
todos os que não foram cegados intei a que está ligado, o que provoca ao
ramente pela autoridade dos antigos, e mesmo tempo o alongamento do mús
que quiseram abrir os olhos para exa
culo que lhe é oposto; depois, se acon
minar a opinião de Harvey no tocan
tece numa outra vez que este último se
te à circulação do sangue8, não duvi
encolha, leva o primeiro a alongar-se e
5 Sendo possível (arts. 3, 4, 5) e indispensável à
puxa para si a parte a que eles estão
inteligência das paixões a distinção entre as funções ligados. Enfim, sabe-se que todos esses
que dependem do corpo e as funções que dependem movimentos dos músculos, assim
da alma, Descartes irá agora descrever sucessiva
mente as funções essenciais de um e de outro. Até o como todos os sentidos, dependem dos
§ 11, asfunções do corpo. nervos, que são como pequenos fios ou
6 Cf. Tratado do Homem (Plêiade, págs. 808-809): como pequenos tubos que procedem,
devido à fermentação que se produz no estômago,
“as partes mais sutis” dos alimentos formam o todos, do cérebro, e contêm, como ele,
quilo, que é levado para o fígado, onde sofre a ação certo ar ou vento muito sutil que cha
da hematose. “Este licor aí se sutiliza. . . adquire mamos espíritos animais9.
cor e toma a forma do sangue. . . Ora, este sangue,
assim contido nas veias, só tem uma única passa
gem manifesta por onde possa sair delas, a saber, a Art. 8. Qual é o princípio de todas
que conduz à concavidade direita do coração.”
7 Veia arteriosa: artéria pulmonar; artéria venosa: essas funções.
veia pulmonar.
8 Descartes recusava atribuir a ação do coração a Mas não se sabe comumente de que
uma contração muscular, mas aderia inteiramente à
teoria circulatória de Harvey. “A opinião do Sr. forma esses espíritos animais e nervos
Descartes sobre a circulação do sangue”, relata contribuem para os movimentos e os
Baillet, “granjeara-lhe grande crédito entre os dou sentidos, nem qual é o princípio corpo-
tos e contribuira maravilhosamente para restabe
lecer nesta mátéria a reputação de William Harvey,
que se vira maltratada por diversos médicos dos 9 O Tratado do Homem dirá: “Um certo vento
Países-Baixos, a maioria dos quais ignorante ou muito sutil, ou melhor, uma chama muito viva e
obstinada em antigas máximas de suas faculdades.” muito pura”.
230 DESCARTES
ral que os faz agir; eis por que, embora mente, em todas as artérias e veias,
já tenha tratado algo do assunto em mediante o que leva o calor que adqui
outros escritos1 °, não deixarei de dizer re no coração a todas as outras partes
aqui sucintamente que, enquanto vive do corpo e lhes serve de alimento.
mos, há um contínuo calor em nosso
coração, que é uma espécie de fogo aí Art. 10. Como se produzem no cérebro
mantido pelo sangue das veias, e que os espíritos animais.
esse fogo é o princípio corporal de
todos os movimentos de nossos mem Mas o que há nisso de mais notável
bros1 1. é que todas as partes mais vivas e mais
sutis do sangue que o calor rarefez no
Art. 9. Como se faz o movimento do coração entram incessantemente em
coração12 . grande quantidade nas cavidades do
cérebro. E a causa que as conduz para
O seu primeiro efeito é dilatar o san aí, de preferência a qualquer outro
gue que enche as cavidades do cora lugar, é que todo sangue saído do cora
ção; e isso é causa de que esse sangue, ção pela grande artéria toma seu curso
tendo necessidade de ocupar maior em linha reta para esse sítio, e que, não
espaço, passe com impetuosidade da podendo entrar todo, porque o lugar
cavidade direita para a veia arterial, e possui apenas passagens muito estrei
da esquerda para a grande artéria; tas, só passam as suas partes mais agi
depois, cessando essa dilatação, torne tadas e mais sutis, enquanto o resto se
incontinenti a entrar da veia cava para espalha por todos os outros locais do
a cavidade direita do coração, e da corpo. Ora, tais partes do sangue
artéria venosa para a esquerda; pois há muito sutis compõem os espíritos ani
pequenas peles nas entradas desses mais13; e não precisam, para tal efeito,
quatro vasos, dispostas de tal modo receber qualquer modificação no cére
que fazem com que o sangue não possa bro, exceto a de serem separadas das
penetrar no coração senão pelas duas outras partes do sangue menos sutis1 4;
últimas, nem sair dele exceto pelas pois o que denomino aqui espíritos não
duas outras. O novo sangue que entra são mais do que corpos e não têm
no coração é aí imediatamente rarefei- qualquer outra propriedade, exceto a
to, do mesmo modo que o precedente; de serem corpos muito pequenos e se
é só nisso que consiste a pulsação ou o
batimento do coração e das artérias; 13 Em Galeno (De Usu Partium), os espíritos vitais
de sorte que esse batimento se reitera chegam pela carótida aos ventrículos do cérebro,
onde são transformados em espíritos animais e
tantas vezes quantas entra sangue disponíveis para a função sensório-motora. Em
novo no coração. E também só isso Descartes, a distinção clássica entre espíritos ani
que dá ao sangue o seu movimento, e o mais (elaborados no cérebro), espíritos vitais (saí
dos do coração) e espíritos naturais (produzidos no
faz correr, muito rápida e incessante- fígado) é abolida. “Não mais há entre essas três for
mas de espíritos diferença qualitativa real, mas
’0 Nomeadamente na quinta parte do Discurso. somente uma diferença de calibre e mobilidade
11 “Uma observação errônea lhe informa que o entre elementos mais ou menos refinados.” (Mes-
coração é o mais quente de todos os órgãos. Tem, nard, “Espirit de la Physiologie Cartésienne”,
portanto, um ponto de partida: o coração é um foco Archives de Philosophie, vol. XIII.)
de calor, deve esquentar e dilatar o sangue que o 1 4 “E assim, sem outro preparo ou mudança, exce
atravessa.” (Osório de Almeida, “Descartes Physio- to que elas são separadas das mais grosseiras e que
logiste”, Eludes Cartésiennes, Hermann, 1937.) retêm ainda a extrema velocidade que o calor do
12 Cf. a qujnta parte do Discurso e- Gilson, Le coração lhes deu, deixam de ter a forma do sangue
Rôle de la Pensée Médiévale dans la Formation du e se chamam espíritos animais.” (Tratado do
Svstème Cartésien, cap. 2. Homem.)
AS PAIXÕES DA ALMA .231
moverem muito depressa, assim como acham, a saber, quando não encon
as partes da chama que sai de uma tram passagens abertas para sair, e às
tocha; de sorte que não se detêm em vezes correndo para o músculo oposto.
nenhum lugar e, à medida que entram Tanto mais que há pequenas aberturas
alguns nas cavidades do cérebro, tam em cada um desses músculos por onde
bém saem outros pelos poros existentes tais espíritos podem correr de um para
na sua substância, poros que os condu o outro e que estão de tal modo dispos
zem aos nervos e daí aos músculos, tas que — quando os espíritos vindos
por meio dos quais movem o corpo em do cérebro para um deles possuem, por
todas as diversas maneiras pelas quais pouco que seja, mais força do que os
esse pode ser movido1*5. que vão para o outro1 6 — abrem
todas as entradas por onde os espíritos
Art. 11. Como se fazem os movimen do outro músculo podem passar para
tos dos músculos. ele e fecham, ao mesmo tempo, todas
por onde os espíritos desse podem pas
Pois a única causa de todos os sar ao outro; dessa maneira, todos os
movimentos dos membros é que os espíritos antes contidos nesses dois
músculos se encolhem e seus opostos músculos se reúnem num deles mui
se alongam, como já foi dito; e a única prontamente e assim o inflam e o enco
causa que faz um músculo encolher-se lhem, enquanto o outro se alonga e se
mais do que seu oposto é que recebe, distende.
por pouco que seja, mais espírito do
cérebro do que o outro. Não que os Art. 12. Como os objetos de fora
espíritos que vêm imediatamente do atuam sobre os órgãos dos sentidos.
cérebro bastem por si sós para move
rem tais músculos, mas determinam os Resta ainda saber as causas que
outros espíritos, que já existem nesses levam os espíritos a não correrem sem
dois músculos a saírem todos mui pre da mesma forma do cérebro para
prontamente de um deles e a passarem os músculos e a se dirigirem às vezes
ao outro; dessa maneira, aquele de mais a uns do que a outros1 7. Pois,
onde saem torna-se mais longo e mais afora a ação da alma, que é verdadei
lasso e aquele no qual entram, sendo ramente em nós uma dessas causas,
rapidamente inflado por eles, se enco como direi mais abaixo, há ainda duas
lhe e atrai o membro a ele ligado. E outras que não dependem senão do
isso é fácil de conceber, desde que se corpo e que é preciso observar. A pri
saiba que pouquíssimos espíritos ani meira consiste na diversidade dos
mais vêm continuamente do cérebro movimentos excitados nos órgãos dos
para cada músculo, mas que em cada sentidos por seu objetos, a qual já foi
um há sempre grande quantidade de por mim assaz amplamente explicada
outros encerrados no mesmo músculo na Dióptrica; mas, para que os que
que nele se movem muito depressa, às
1 6 “Os espíritos”, dirá Descartes no artigo seguin
vezes girando apenas no lugar onde se te, “nem sempre correm do cérebro para os múscu
los da mesma maneira. " Esta diferença na força de
1 5 Cumpre imaginar o encéfalo “como uma espé lançamento comanda a regulamentação dos espíri
cie de reservatório central, o ventrículo, onde vem tos já contidos nos músculos e, por esse meio, os
abrir-se a tubagem dos nervos destinada a engolfar movimentos musculares.
todos os espíritos disponíveis: estes filtram-se atra 1 7 Por que esta diversidade no escoamento dos
vés dos poros do tecido coroidiano, que reveste espíritos? Primeira causa (arts. 11 e 12): os movi
como um dossel o ventrículo”. (Mesnard, art. cil., mentos produzidos no cérebro por ocasião das
pág. 207.) impressões sensíveis.
232 DESCARTES
virem o presente escrito não tenham disso, é fácil conceber que os sons, os
necessidade de ler outros, repetirei odores, os sabores, o calor, a dor, a
aqui que há três coisas a considerar fome, a sede e, em geral, todos os obje
nos nervos, a saber: a sua medula, ou tos, tanto dos nossos demais sentidos
substância interior, que se estende na externos como dos nossos apetites
forma de pequenos filetes a partir do internos, excitam também alguns mo
cérebro, onde toma origem, até as vimentos em nossos nervos, que se
extremidades dos outros membros aos transmitem por meio deles até o cére
quais esses filetes estão ligados; depois bro; e além de esses diversos movimen
as peles que os envolvem e que, sendo tos do cérebro fazerem com que a alma
contíguas com as que envolvem o cére
tenha diversos sentimentos, podem
bro, compõem pequenos condutos em
também fazer, sem ela1 9, que os espíri
que ficam encerrados esses pequenos
filetes; depois, enfim, os espíritos ani tos sigam mais para certos músculos
mais que, levados por esses mesmos do que para outros, e, assim, que
condutos do cérebro até os músculos, movam nossos membros, o que prova
são a causa de tais filetes permane rei aqui somente através de um exem
cerem aí inteiramente livres e estendi plo. Se alguém avança rapidamente a
dos, de tal modo que a menor coisa mão contra os nossos olhos, como
que mova a parte do corpo à qual se para nos bater, embora saibamos tra
liga a extremidade de algum deles leva tar-se de nosso amigo, que faz isso só
a mover, pelo mesmo meio, a parte do por brincadeira e tomará muito cuida
cérebro de onde vem, tal como ao se do para não nos causar nenhum mal,
puxar uma das pontas de uma corda temos todavia muita dificuldade em
move-se a outra18. impedir que se fechem; isso mostra que
não é por intermédio de nossa alma
Art. 13. Que esta ação dos objetos de que eles se fecham, pois é contra a
fora pode conduzir diversamente os
nossa vontade, a qual é, se não a única,
espíritos aos músculos.
ao menos a sua principal ação; assim
Expliquei também na Dióptrica porque a máquina de nosso corpo é de
como todos os objetos da visão comu tal modo composta que o movimento
nicam-se conosco apenas porque dessa mão contra os nossos olhos exci
movem localmente, por intermédio dos ta outro movimento em nosso cérebro,
corpos transparentes que existem entre o qual conduz aos músculos os espíri
eles e nós, os pequenos filetes dos ner tos animais que fazem baixar as
vos ópticos que se acham no fundo de pálpebras20.
nossos olhos, e em seguida os lugares
do cérebro de onde provêm esses ner Art. 14. Que a diversidade existente
vos; que os movem, digo eu, de tantas
maneiras diversas que nos fazem ver entre os espíritos também pode diversi
diversidades nas coisas, e que não são ficar-lhes o curso.
imediatamente os movimentos que se
’9 Há, portanto, dois circuitos possíveis: a) movi
efetuam no olho, mas sim os que se mento sensorial-sentimento da alma-ação; b) movi
efetuam no cérebro, que representam mento sensorial-ação automática. O art. 16 especifi
para a alma esses objetos. A exemplo cará o funcionamento desta ação automática.
20 Sobre a teoria cartesiana do reflexo, consultar o
livro indispensável de Canguilhem: La Formallon
1 8 Cf. Meditação Sexta, § 35. du Concept de Réflexe. . .
AS PAIXÕES DA ALMA 233
A outra causa21 que serve para con lido mais de certas partes do que de
duzir diversamente os espíritos ani outras, porque os nervos e os músculos
mais aos músculos é a agitação desi que respondem a essas partes o pres
gual desses espíritos e a diversidade de sionam ou agitam mais, e porque, con
suas partes. Pois, quando algumas de forme a diversidade das partes de onde
suas partes são mais grossas e mais vem mais, dilata-se diversamente no
agitadas do que as outras, passam coração, e em seguida produz espíritos
mais à frente em linha reta nas cavida dotados de qualidades diferentes.
des e nos poros do cérebro, e por esse Assim, por exemplo, o que provém da
meio são levadas a músculos diferentes parte inferior do fígado, onde está o fel,
daqueles para onde iriam se tivessem dilata-se no coração de maneira dife
menos força. rente da do sangue oriundo do baço, e
este de modo diferente do do prove
Art. 15. Quais são as causas de sua niente das veias dos braços ou das per
diversidade. nas, e enfim este diferentemente do
suco dos alimentos, quando, tendo de
E essa desigualdade pode proceder novo saído do estômago e dos intesti
das diversas matérias de que se com nos, passa rapidamente pelo fígado até
põem, como se vê nos que beberam o coração.
muito vinho cujos vapores, entrando
prontamente no sangue, sobem do Art. 16. Como todos os membros
coração ao cérebro, onde se convertem podem ser movidos pelos objetos dos
em espíritos que, sendo mais fortes e sentidos e pelos espíritos sem a ajuda
mais abundantes do que aqueles que aí da alma.
se encontram comumente, são capazes
de mover o corpo de muitas maneiras Enfim, é preciso notar que a má
estranhas. Esta desigualdade dos espí quina de nosso corpo é de tal modo
ritos pode também proceder das diver composta que todas as mudanças que
sas disposições do coração, do fígado, ocorrem no movimento dos espíritos
do estômago, do baço e de todas as ou podem levá-los a abrir alguns poros do
tras partes que contribuem para a sua cérebro mais do que outros, e recipro
produção; pois cumpre principalmente camente que, quando algum desses
observar aqui certos pequenos nervos poros está pouco mais ou menos aber
insertos na base do coração, que ser to que de costume pela ação dos ner
vem para alargar e estreitar as entra vos que servem aos sentidos22, isso al
das dessas concavidades, por meio do tera algo no movimento dos espíritos e
que o sangue, dilatando-se nelas mais determina que sejam conduzidos aos
ou menos fortemente, produz espíritos músculos destinados a mover o corpo
diversamente dispostos. É preciso
notar também que, embora o sangue 22 O Tratado do Homem descreve com maior pre
que penetra no coração provenha de cisão este mecanismo. “Se o fogo A se encontra
perto do pé B”, as partes do fogo estirarão um nervo
todos os outros lugares do corpo, toda e abrirão “no mesmo instante a entrada do poro
via acontece muitas vezes ser ele impe contra o qual este pequeno Tio termina... Ora,
estando assim aberta a entrada do poro, os espíritos
animais da concavidade entram nele, e são levados
21 Segunda causa: o efeito de lançamento variável por ele, em parte aos músculos que servem para reti
segundo a desigualdade dos espíritos, podendo esta rar este pc deste fogo, em parte aos que servem para
desigualdade provir de causas diversas que o artigo volver os olhos e a cabeça a fim de olhá-lo, e em
seguinte especificará. A terceira causa: a ação da parte aos que servem para adiantar as mãos e do
álma (cf. art. 12) será analisada nos arts. 34-36. brar todo o corpo para defendê-lo.”
234 DESCARTES
ginar alguma coisa que não existe26, mesmo a nada29. Ora, ainda que algu
como a representar úm palácio encan mas dessas imaginações sejam paixões
tado ou uma quimera, e também quan da alma, tomando a palavra na sua
do se aplica a considerar algo que é’ mais própria e mais perfeita significa
somente inteligível e não imaginável, ção, é ainda que possam ser todas
por exemplo a sua própria natureza, as assim denominadas, se se tomar o
percepções que tem dessas coisas de termo em uma acepção mais geral,
pendem principalmente da vontade que todavia, posto que não têm uma causa
tão notável e tão determinada como as
a leva a percebê-las; eis por que se cos
percepções que a alma recebe por
tuma considerá-las como ações mais
intermédio dos nervos, e parecem ser
do que como paixões2 2*7.
apenas a sombra e a pintura destas,
antes que as possamos distinguir bem
Art. 21. Das imaginações que só têm cumpre considerar a diferença que há
por causa o corpo. entre estas outras.
Entre as percepções que são causa Art. 22. Da diferença que existe entre
das pelo corpo, a maior parte depende as outras percepções.
dos nervos; mas há também algumas
que deles não dependem, e que se cha Todas as percepções que ainda não
mam imaginações28, como essas de expliquei vêm à alma por intermédio
que acabo de falar, das quais, não obs dos nervos30, e existe entre elas essa
tante, diferem pelo fato de nossa vonta diferença pelo fato de relacionarmos
de não se empenhar em formá-las, o umas aos objetos de fora, que ferem
que faz com que não possam ser incluí nossos sentidos, e as outras ao nosso
corpo, oü a algumas de suas partes, e
das no número das ações da alma, e outras enfim à nossa alma.
procedam apenas de que, sendo os
espíritos diversamente agitados, e en-' Art. 23. Das percepções que relacio
contrando os traços de diversas im namos com osobjetos que existem fora
pressões que precederam no cérebro, de nós.
tomem aí seu curso fortuitamente por As que referimos a coisas situadas
certos poros mais do que por outros. fora de hós, a. saber, aos objetos de
Tais são as ilusões de nossos sonhos e nossos sentidos, são causadas, ao
também os devaneios a que nos entre
29 Acerca desses devaneios, cf. Cartas, aElisabeth,
gamos muitas vezes estando despertos, de 6 de outubro de 1645. Se o sonho não suprime o
quando nosso pensamento erra negli pensamento, a imaginação aí se liberta da vontade:
não posso sair do sonho à minha vontade (é o corpo
gentemente sem se aplicar por si que é responsável pelo despertar). Permitindo às
representações resultantes do corpo viver uma vida
2 6 A imaginação voluntária (“se aplica”) ou cria própria, o sonho não ameaça, todavia, o Cogito,
dora também pertence a este grupo. visto que o pensamento passivo ainda acolhe aí as
imagens como imagens. Eis por que é sempre, possí
27 O campo das paixões propriamente ditas já está vel passar da imaginação-paixão à imaginação
reduzido: só “as percepções que têm o corpo como controlada. (Cf. Cartas, a Elisabeth, maio ou junho
causa” merecem verdadeiramente esse nome. de 1645.)
28 Arts. 21 a 27: b) as percepções que têm o corpo 30 2.° as que dependem dos nervos. Podemos divi
como causa. Distinguem-se: l.° as que não resultam di-las em três rubricas: a) percepções referidas aos
de uma mensagem sensorial e são produzidas pelo objetos (art. 23); b) às afecções do corpo (art. 24); c)
curso fortuito dos espíritos. à alma em particular (art. 25).
236 DESCARTES
mesmas coisas que a alma percebe por çÕes da alma, que referimos particular
intermédio dos nervos lhe podem ser mente a ela, e que são causadas, manti
também representadas pelo curso for das e fortalecidas por algum
tuito dos espíritos, sem que haja outra movimento dos espíritos3 5.
diferença exceto que as impressões vin
das ao cérebro por meio dos nervos Art. 28. Explicação da primeira parte
costumam ser mais vivas e mais dessa definição3 6.
expressas do que as excitadas nele
pelos espíritos; o que me levou a dizer Podemos chamá-las percepções
no art. 21 que as últimas são como a quando nos servimos em geral desse
sombra e a pintura das outras. É preci termo para significar todos os pensa
so. também notar que ocorre algumas mentos que não constituem ações da
vezes ser essa pintura tão semelhante à alma ou vontades, mas não quando o
coisa representada, que podemos enga empregamos apenas para significar
nar-nos no tocante às percepções que conhecimentos evidentes; pois a expe
se relacionam aos objetos fora de nós, riência mostra que os mais agitados
ou então quanto às que se relacionam por suas paixões não são aqueles que
a algumas partes de nosso corpo, mas melhor as conhecem, e que elas perten
não podemos equivocar-nos do mesmo cem ao rol das percepções que a
modo no tocante às paixões, por estreita aliança entre a alma e o corpo
quanto são tão próximas e tão interio torna confusas e obscuras3 7. Podemos
res à nossa alma que lhe é impossível também chamá-las sentimentos, por
senti-las sem que* sejam verdadeira que são recebidas na alma do mesmo
mente tais como ela as sente. Assim, modo que os objetos dos sentidos exte
muitas vezes quando dormimos, e riores, e não são de outra maneira38
mesmo algumas vezes estando acorda conhecidos por ela; mas podemos cha-
dos, imaginamos tão fortemente certas
coisas que pensamos vê-las diante de 3 5 Definição das paixões no sentido estrito.
nós, ou senti-las no corpo, embora aí 3 6 Explicação da definição precedente do ponto de
não estejam de modo algum; mas, vista da alma. Em que podem as paixões ser deno
minadas percepções (no sentido mais amplo do
ainda que estejamos adormecidos e termo), sentimentos (ou sensações), emoções?
sonhemos, não podemos sentir-nos 3 7 Não pode haver, portanto, conhecimento claro
das paixões. Lívio Teixeira observa: “Ele emprega
tristes ou comovidos por qualquer para o conhecimento das paixões a forma gramati
outra paixão, sem que na verdade a cal do comparativo destinada a exprimir a relativi
alma tenha em si esta paixão3 4. dade desse conhecimento: o conhecimento me
lhor. . . Existe, pois, o conhecimento melhor ou
pior das paixões, não o conhecimento perfeito
Art. 27. A definição das paixões da delas”. (Op. cit., pág. 152.)
alma. 38 "Autrement se refere, pode-se interpretar razoa
velmente, ao conhecimento pelas idéias claras e dis
tintas, possível para o objeto das sensações, mas
Depois de haver considerado no que não para o fenômeno misto da paixão.” (Lívio Tei
as paixões da alma diferem de todos os xeira, op. cit., pág. 153.) A ciência das paixões será,
portanto, um conhecimento claro e distinto de uma
seus outros pensamentos, parece-me vivência intrinsecamente obscura e confusa. Eis por
que podemos em geral defini-las por que, se Descartes quer explicar as paixões “na qua
percepções, ou sentimentos, ou emo-34 * lidade de físico”, isso não significa “que pretenda
explicá-las unicamente pela Física, isto é, pela fisio-
logia do corpo, mas que deseja considerá-las segun
34 A hipótese do sonho infirma apenas a validade do um método racional que procura evidências,
objetiva dos juízos sobre o mundo exterior. Ela apropriadas, todavia, à natureza mesma do objeto,
deixa intacto o vivido pela consciência enquanto a qual é aqui obscuridade e confusão intrínsecas”.
vivido. (Guéroult, t. II, pág. 253.)
238 DESCARTES
Art. 30. Que a alma está unida a 41 Essa indivisibilidade própria ao organismo hu
todas as partes do corpo conjuntamen mano resulta de sua união com a alma: “Nosso
corpo, enquanto corpo humano, permanece sempre
te39. o mesmo número durante o tempo em que está
unido à mesma alma. E inclusive, nesse sentido, é
indivisível. . .”. (Carta a Mesland, .citada in Gué-
Mas, para compreender mais perfei- roult, II, pág. 181.)
tamente todas essas coisas, é neces 42 Essa penetração da alma em todo o corpo per
sário saber que a alma está verdadeira mite falar de uma “alma corporal” em um sentido
muito particular, que Descartes ressalta na carta de
mente unida ao corpo todo40, e que 26 de julho a Arnauld: “Se por corporal entende
não se pode propriamente dizer que ela mos o que pertence ao corpo, embora seja de outra
esteja em qualquer de suas partes com natureza, a alma também pode ser dita corporal, na
medida em que está apta a unir-se ao corpo; mas se
por corporal entendemos o que participa da natu
39 Constituindo as paixões um dos aspectos da reza do corpo, esse peso não é mais corporal do que
comunicação entre o corpo e a alma, serão agora a nossa própria alma”.
analisadas as modalidades desta. 43 Segunda modalidade da união: a alma deve ter
40 Primeira modalidade da união: a alma, justa sua sede em um órgão que governa o movimento
mente por não ter extensão alguma, não enforma dos espíritos animais. (Cf. Lívio Teixeira, op. cit.,
qualquer parte do corpo humano, em especial. pág. 154.)
AS PAIXÕES DA ALMA 239
esta parte é o cérebro, ou talvez o cora duas mãos, duas orelhas, e enfim todos
ção: o cérebro, porque é com ele que se os órgãos de nossos sentidos externos
relacionam os órgãos dos sentidos; e o são duplos; e que, dado que não temos
coração, porque é nele que parece senão um único e simples pensamento
sentirem-se as paixões. Mas, exami de uma mesma coisa ao mesmo tempo,
nando o caso com cuidado, parece-me cumpre necessariamente que haja
ter reconhecido com evidência que a algum lugar onde as duas imagens que
parte do corpo em que a alma exerce nos vêm pelos dois olhos, onde as duas
imediatamente suas funções não é de outras impressões que recebemos de
modo algum o coração, nem o cérebro um só objeto pelos duplos órgãos dos
todo 4 4, mas somente a mais interior de outros sentidos, se possam reunir em
suas partes, que é certa glândula muito uma antes que cheguem à alma, a fim
pequena, situada no meio de sua subs de que não lhe representem dois obje
tância, e de tal modo suspensa por tos em vez de um só. E pode-se conce
cima do conduto por onde os espíritos ber facilmente que essas imagens ou
de suas cavidades anteriores mantêm outras impressões se reúnem nessa
comunicação com os da posterior, que glândula, por intermédio dos espíritos
os menores movimentos que nela exis que preenchem as cavidades do cére
tem podem contribuir muito para mo bro, mas não há qualquer outro local
dificar o curso desses espíritos, e, no corpo onde possam assim unir-se,
reciprocamente, as menores modifica senão depois de reunidas nessa glându
ções que sobrevêm ao curso dos espíri la46.
tos podem contribuir muito para alte
rar os movimentos dessa glândula4 5. Art. 33. Que a sede das paixões não
fica no coração.
Art. 32. Como se conhece que essa
glândula é a principal sede da alma. Quanto à opinião dos que pensam
que a alma recebe as suas paixões no
A razão que me persuade de que a coração, não pode ser de modo algum
considerável, pois se funda apenas no
alma não pode ter, em todo o corpo,
fato de que as paixões nos fazem sentir
nenhum outro lugar, exceto essa glân
dula, onde exerce imediatamente suas aí alguma alteração 4 7; e é fácil notar
funções é que considero que as outras que essa alteração só é sentida, como
que no coração, por intermédio de um
partes do nosso cérebro são todas
pequeno nervo que desce do cérebro
duplas, assim como tempos dois olhos,
para ele, assim como a dor é sentida
4 4 Objetar-se-á a Descartes que a gente não tem
como que no pé, por intermédio dos
cérebro em excesso para pensar. Já Galeno, no De
Usu Parlium, escrevia: “Crer que esse corpo (a 4 6 A glândula pituitária, pregada no osso esfe-
glândula pineal) preside a passagem do espírito é nóide, satisfaria essa condição, mas não dispõe da
dar prova de ignorância e atribuir demasiado a essa mobilidade da pineal. (Cartas, a Mersenne, 24 de
glândula. Se assim fosse, uma glândula desempe dezembro de 1640.)
nharia o papel e teria a dignidade de cérebro”. Mes- 4 7 Trata-se de uma ruptura com a tese peripatética
nard, que cita esse texto no artigo já mencionado e estóica. Mme Rodis-Lewis, na sua edição do Trai-
(págs. 208-209), conclui daí que Descartes não té (pág. 91), assinala um texto de 1641 onde esse
conhecia Galeno, a não ser por uma obra de J. Syl- rompimento com a tradição é atenuado: “As pai
vius, aparecida em 1555, onde o autor assume por xões, na medida em que pertencem ao corpo, têm
desventura, precisamente sobre este ponto, posição como sede principal o coração, visto ser o principal
oposta à do grande empírico. órgão que elas alteram; mas, na medida em que afe
45 A mobilidade da glândula é uma das condições tam também a alma, aquela reside somente no cére
essenciais que Descartes invoca a fim de convertê-la bro, pois só por meio dele é que a alma pode ser
em sede da alma. imediatamente tocada”.
240 DESCARTES
nervos do pé, e os astros são percebi mas que pode também ser diversa
dos como que no céu por intermédio de mente movida pela alma48, a qual é de
sua luz e dos nervos ópticos; de sorte tal natureza que recebe em si tantas
que não é mais necessário que nossa impressões diversas, isto é, que ela tem
alma exerça imediatamente as suas tantas percepções diversas quantos
funções no coração para nele sentir as diferentes movimentos sobrevêm nessa
suas paixões do que é necessário que glândula; como também, reciproca
ela esteja no céu para nele ver os mente, a máquina do corpo é de tal
astros. forma composta que, pelo simples fato
de ser essa glândula diversamente mo
Art. 34. Como agem a alma e o corpo vida pela alma ou por qualquer outra
um contra o outro. causa que possa existir, impele os espí
ritos animais que a circundam para os
Concebamos, pois, que a alma tem a poros do cérebro, que os conduzem
sua sede principal na pequena glândula pelos nervos aos músculos, mediante o
que existe no meio do cérebro, de onde que ela os leva a mover os membros.
irradia para todo o resto do corpo, por
intermédio dos espíritos, dos nervos e Art. 35. Exemplo da maneira como as
mesmo do sangue, que, participando impressões dos objetos se unem na
das impressões dos espíritos, podem glândula que fica no meio do cérebro.
levá-los pelas artérias a todos os mem
bros; e, lembrando-nos do que já foi . Assim, por exemplo, se vemos
dito acima com respeito à máquina de algum animal vir em nossa direção, a
nosso corpo, a saber, que os pequenos luz refletida de seu corpo pinta duas
filetes de nossos nervos acham-se de imagens dele, uma em cada um de nos
tal modo distribuídos em todas as suas sos olhos, e essas duas imagens for
partes que, por ocasião dos diversos mam duas outras, por intermédio dos
movimentos aí provocados pelos obje nervos ópticos, na superfície interior
tos sensíveis, abrem diversamente os do cérebro defronte às suas concavida
poros do cérebro, o que faz com que os des; daí, em seguida, por intermédio
espíritos animais contidos nessas cavi dos espíritos que enchem suas cavida
dades entrem diversamente nos múscu des, essas imagens irradiam de tal
los, por meio do que podem mover os sorte para a pequena glândula envol
membros de todas as diversas manei vida por esses espíritos, que o movi
ras que esses são capazes de ser movi mento componente de cada ponto de
dos, e também que todas as outras cau uma das imagens tende para o mesmo
sas que podem mover diversamente os
espíritos bastam para conduzi-los a ponto da glândula para o qual tende o
diversos músculos; juntemos aqui que movimento que forma o pontó da
a pequena glândula, que é a principal
sede da alma, está de tal forma sus 48 É a terceira causa da diversidade no curso dos
espíritos que procedem do cérebro (cf. arts. 12 a
pensa entre as cavidades que contêm 16). Cabe notar que a correspondência entre as
esses espíritos que pode ser movida por impressões da alma e os movimentos da glândula
constitui uma descrição e de maneira alguma uma
eles de tantos modos diversos quantas explicação da união (cf. Lívio Teixeira, op. cit., pág.
as diversidades sensíveis nos objetos; 155).
AS PAIXÕES DA ALMA 241
tal modo livre que nunca pode ser outros, excitando, por esse meio, um
compelida; e, das duas espécies de movimento particular na glândula, que
pensamentos que distingui na alma, representa à alma o mesmo objeto e
das quais uns são suas ações, isto é, lhe faz saber que se trata daquele do
suas vontades, e os outros as suas pai qual queria lembrar-se.
xões, tomando-se esta palavra em sua
significação mais geral, que com Art. 43. Como a alma pode imaginar,
preende todas as espécies de percep estar atenta e mover o corpo.
ções, os primeiros estão absolutamente
em seu poder e só indiretamente o Assim, quando se quer imaginar
corpo pode modificá-los, assim como, algo que nunca se viu, essa vontade
ao contrário, os últimos dependem tem o poder de levar a glândula a
absolutamente das ações que os produ mover-se da maneira necessária para
zem, e a alma só pode modificá-los impelir os espíritos aos poros do cére
. indiretamente, exceto quando ela pró bro por cuja abertura essa coisa pode
pria é sua causa53. E toda a ação da ser representada; assim, quando se pre
alma consiste em que, simplesmente tende fixar a atenção para considerar
por querer alguma coisa, leva a peque por algum tempo um mesmo objeto, tal
na glândula, à qual está estreitamente vontade retém a glândula, durante esse
unida, a mover-se da maneira neces tempo, inclinada para um mesmo lado;
sária a fim de produzir o efeito que se assim, enfim, quando se quer andar ou
relaciona com esta Vontade. mover o próprio corpo de alguma
Art. 42. Como encontramos em nossa maneira, essa vontade faz com que a
memória as coisas de que nos quere glândula impila os espíritos para os
mos lembrar. músculos que servem para tal efeito.
Assim, quando a alma quer lem- Art. 44. Que cada vontade é natural
brar-se de algo, essa vontade faz com mente unida a algum movimento da
que a glândula, inclinando-se sucessi glândula; mas que, por engenho ou por
vamente para diversos lados, impila os hábito, se pode uni-la a outros.
espíritos para diversos lugares do cére
bro, até que encontrem aquele onde Todavia, nem sempre é a vontade de
estão os traços deixados pelo objeto de provocar em nós algum movimento ou
que queremos nos lembrar; pois esses algum outro efeito que pode levar-nos
traços não são outra coisa senão os a excitá-lo; mas isso muda conforme a
poros do cérebro, por onde os espíritos natureza ou o hábito tenham diversa
tomaram anteriormente seu curso devi mente unido cada movimento da glân
do à presença desse objeto, e àdquiri- dula a cada pensamento 5 4. Assim, por
ram, assim, maior facilidade que os
outros, para serem de novo abertos da 54 Nossa vontade não pode excitar quaisquer
movimentos em nós. Certos movimentos, reflexos
mesma maneira pelos espíritos que ou mecanismos adquiridos só podem ser executados
para eles se dirigem; de sorte que tais por ocasião de outros movimentos voluntários. A
espíritos, encontrando esses poros, en alma ignora como se efetuam esses movimentos que
são executáveis apenas mediatamente: “Esta incli
tram neles mais facilmente do que nos nação da vontade é seguida pelo curso dos espíritos
nos nervos, e de tudo o que é requerido para o movi
53 “Se existe algo absolutamente em nosso poder, mento, o que ocorre por causa da disposição conve
são os nossos pensamentos, a saber, aqueles que niente do corpo, de que a alma pode realmente não
provêm da vontade e do livre arbítrio.” (Cartas, a ter de modo algum conhecimento. . .” (Cartas, a
Mersenne, 3 de dezembro de 1640.) Arnauld, 29 de julho de 1648.)
244 DESCARTES
55 A possibilidade de ligar artificialmente certos 5 6 A vontade não pode vencer o automatismo cir
automatismos a certos atos voluntários constituirá cular que está unido à paixão; neste caso, ela só
a base de um tratamento racional das paixões: pode reter os gestos aos quais a paixão me dispõe.
pode-se modificar a paixão mudando a represen Neste “esforço último” Lívio Teixeira vê “o último
tação da coisa a ela unida. reduto da vontade”. (Op. cit., pág. 158.)
AS PAIXÕES DA ALMA 245
mão, assim pode sobrepujar facilmente pode ser advertido em nós que repugne
as paixões menores, mas não as mais a nossa razão; de modo que não há
violentas e as mais fortes, a não ser de nisso outro combate exceto que, como
pois que se apaziguou a emoção do a pequena glândula que fica no meio
sangue e dos espíritos. O máximo que do cérebro pode ser impelida, de um
pode fazer a vontade, enquanto essa lado, pela alma, e, de outro, pelos espí
emoção está em vigor, é não consentir ritos animais, que são apenas corpos,
em seus efeitos e reter muitos dos como já disse acima, acontece às vezes
movimentos aos quais ela dispõe o que .esses dois impulsos sejam contrá
corpo. Por exemplo, se a cólera faz rios e que o mais forte impeça o efeito
levantar a mão para bater, a vontade do outro. Ora, podemos distinguir
pode comumente retê-la; se o medo in duas espécies de movimentos excitados
cita as pessoas a fugir, a vontade pode pelos espíritos na glândula: uns repre
detê-las, e assim por diante. sentam à alma os objetos que movem
os sentidos, ou as impressões que se
Art. 47. Em que consistem os comba encontram no cérebro e não efetuam
tes que se costuma imaginar entre a qualquer esforço sobre a vontade; ou
parte inferior e a superior da alma. tros efetuam algum esforço sobre ela, a
saber, os que causam as paixões ou os
E tão-somente na repugnância que movimentos dos corpos que as acom
existe entre os movimentos que o panham; e, quanto aos primeiros, em
corpo por seus espíritos e a alma por bora impeçam amiúde as ações da
sua vontade tendem a excitar ao alma, ou sejam impedidos por ela,
mesmo tempo na glândula é que con todavia, por não serem diretamente
sistem todos os combates que se costu contrários, não se verifica neles ne
ma imaginar entre a parte inferior da nhum combate. Só os observamos
alma, denominada sensitiva, e a supe entre os últimos e as vontades que lhes
rior, que é racional, ou então entre os repugnam: por exemplo, entre o esfor
apetites naturais e a vontade; pois não ço com que os espíritos impelem a
há em nós senão uma alma, e esta glândula a causar na alma o desejo de
alma não tem em si nenhuma diversi alguma coisa e aquele com que a alma
dade de partes5 7 : a mesma que é sensi a repele, pela vontade que tem de fugir
tiva é racional e todos os seus apetites da mesma coisa; e o que faz principal
são suas vontades. O erro que se come mente surgir esse combate é que, não
teu em fazê-la desempenhar diversas tendo a vontade o poder de excitar
personagens que são comumente con diretamente as paixões, como já foi
trárias umas às outras' provém apenas dito, é obrigada a usar de engenho e
de não se haver distinguido bem suas aplicar-se a considerar sucessivamente
funções das do corpo, ao qual unica diversas coisas, das quais, se acontece
mente se deve atribuir tudo quanto que uma tenha a força de modificar
% por um momento o curso dos espíritos,
57 A representação precedente da relação entre a pode acontecer que a seguinte não a
vontade e as paixões apresenta a vantagem de con
firmar a unidade da alma contra os que querem tenha e que os espíritos retomem o
dividi-la em faculdades; a doutrina dos espíritos curso logo depois, porque a disposição
animais confirma que o irracional no homem, não é
imputável às almas inferiores (vegetativa e sensiti precedente nos nervos, no coração e no
va), mas ao corpo. sangue não mudou, o que leva a alma a
246 DESCARTES
Art. 51. Quais as primeiras causas das Art. 52. Qual o seu emprego e como
paixões. podemos enumerá-las.
Já se sabe, pelo que se disse mais Observo, além disso, que os objetos
acima6 4, que a última e mais próxima que movem os nossos sentidos não
causa das paixões da alma não é outra provocam em nós diversas paixões de
senão a agitação com que os espíritos vido a todas as diversidad.es que exis
movem a pequena glândula situada no tem neles, mas somente devido às
meio do cérebro. Mas isso não basta diversas formas pelas quais nos podem
para podermos distingui-las umas das prejudicar ou beneficiar, ou então, em
outras; é mister procurar suas fontes e geral, ser importantes; e que o emprego
examinar suas primeiras causas; ora, de todas as paixões consiste apenas no
ainda que possam algumas vezes ser fato de disporem a alma a querer coi
causadas pela ação da alma, que se sas que a natureza dita serem úteis a
determina a conceber estes ou aqueles nós, e a persistir nessa vontade, assim
objetos, e também pelo exclusivo tem como a mesma agitação dos espíritos
peramento do corpo ou pelas impres que costuma causá-las dispõe o corpo
sões que se encontram fortuitamente aos movimentos que servem à execu
no cérebro, como acontece quando nos ção dessas coisas; eis por que, a fim de
sentimos tristes ou alegres sem que enumerá-las, cumpre apenas examinar,
possamos dizer o motivo 6 5, parece, no por ordem, de quantas maneiras dife
entanto, pelo que foi dito, que todas rentes que nos importam 6 7 podem os
elas podem também ser excitadas pelos nossos sentidos ser movidos por seus
objetos que afetam os sentidos e que objetos; e farei aqui a enumeração de
tais objetos são suas causas mais co
muns e principais; daí se segue que, 67 “. . . dita serem úteis a nós”: sobre o alcance
desta doutrina, cf. Col. com Burman. “É possível
para encontrar todas, basta considerar que, se um médico permitisse a seus doentes os ali
todos os efeitos desses objetos 6 6. mentos e as bebidas que estes reclamam amiúde, a
saúde deles se restabelecesse bem melhor do que
com essas drogas que dão náusea. . . em tais casos,
6 4 No art. 34. a natureza chega a restabelecer-se sozinha: ela tem
6 5 Distinção das três causas possíveis da agitação perfeita consciência, interiormente, de seu estado, e
dos espíritos. o conhece bem melhor que um médico, que só vê o
6 6 Não são as diferenças entre os objetos, mas exterior.” “. . . que nos importam”: palavras essen
entre os efeitos que podem produzir em nós que ser ciais; segundo Lívio Teixeira (op. cit., pág. 164) e
virão de base para a classificação. “Descartes diz Guéroult (op. cit., II, pág. 253), atestam que não se
que se devem considerar todos os efeitos dos objetos tratará de uma notação estritamente fisiológica das
exteriores sobre nós, o que entendemos incluir tanto paixões (é o programa que Mesnard atribui a
o estudo dos fenômenos fisiológicos como dos Descartes), mas que a ordem da enumeração obede
psicológicos, que é realmente o que ele vai fazer.” cerá ao critério da prática e da conveniência
(Lívio Teixeira, op cit., pág. 162.) biológicas.
252 DESCARTES
ordem, distingo os tempos 71 e, consi ção, que nos dispõe a deliberar e tomar
derando que elas nos levam a olhar o conselho. À última opõe-se a coragem
futuro muito mais do que o presente, ou a ousadia, de que a emulação cons
ou o passado, começo pelo desejo. titui uma espécie. E a covardia é con
Pois, não somente quando se deseja trária à coragem, tal como o medo ou
adquirir um bem que ainda não se pos o pavor à ousadia.
sui, ou evitar um mal que se julga pas
sível de sobrevir, mas também quando Art. 60. O remorso.
se deseja apenas a conservação de um
bem ou a ausência de um mal, que é E, se estamos determinados a algu
tudo aquilo a que essa paixão pode ma ação, antes que seja suprimida a
estender-se, é evidente que ela encara irresolução, isso engendra o remorso
sempre o futuro. de consciência, o qual não considera o
tempo vindouro, como as paixões
Art. 58. A esperança, o temor, o precedentes, mas o presente ou o
ciúme, a segurança e o desespero. passado.
Art. 63. A satisfação de si mesmo e o Art. 68. Por que essa enumeração das
arrependimento. paixões é diferente da comumente
aceita.
Podemos também considerar a Eis a ordem que me parece melhor
causa do bem ou do mal, tanto pre para enumerar as paixões. Sei muito
sente como passado. E o bem que foi bem que nisso me afasto da opinião de
feito por nós mesmos nos dá uma satis todos os que até agora escreveram
fação interior, que é a mais doce de sobre elas, mas não o faço sem grande
todas as paixões, ao passo que o mal razão. Pois os outros tiram suas
provoca o arrependimento, que é a enumerações do fato de distinguirem
mais amarga. na parte sensitiva da alma dois apeti
tes, que chamam um concupiscível e o
Art. 64. O favor e o reconhecimento. outro irascível12. E, como não conhe
ço na alma nenhuma distinção de par
Mas o bem praticado por outros é tes, o que já disse acima, isto não me
causa de que os tenhamos em favor, parece significar outra coisa senão que
ainda que não seja feito a nós; e, quan ela tem duas faculdades, uma de dese
do o é, ao favor juntamos o reconheci jar e a outra de se irritar; e, posto que
mento. ela tem da mesma forma as faculdades
de admirar, amar, esperar, temer e,
Art. 65. A indignação e a cólera. assim, de receber em si cada uma das
outras paixões^ ou de praticar as ações
Do mesmo modo, o mal praticado a que essas paixões a impelem, não
por outros, não se relacionando a nós, vejo por que quiseram relacionar todas
faz somente com que desperte a nossa com a concupiscência ou a cólera.
indignação para com eles; e, quando se Além do que, tal enumeração não
relaciona conosco, suscita também a compreende todas as principais pai
cólera. xões, como creio que esta o faz. Falo
apenas das principais, porque se pode
riam ainda distinguir muitas outras
Art. 66. A glória e a vergonha. mais particulares, pois seu número é
indefinido.
Além disso, o bem que existe ou
existiu em nós, quando relacionado Art. 69. Que há somente seis paixões
com a opinião que os outros podem ter primitivas13.
a seu respeito, excita em nós a glória, e
o mal, a vergonha. Mas o número das que são simples e
72 As obras que tratam das paixões, numerosas no
Art. 67. Ofastio, o pesar e a alegria. século XVI, respeitavam ainda quase todas a divi
são escolástica dos apetites entre o concupiscível e
o irascível (proveniente de Platão, cf. República,
E às vezes a duração do bem provo 436 a 441 c). No concupiscível a alma sofre apenas
ca o tédio ou o fastio, ao passo que a a força de atração ou de repulsão do bem e do mal;
no irascível, ela tende a enfrentar a dificuldade. A
do mal diminui a tristeza. Enfim, do distinção entre a alma e o corpo torna caduca esta
bem passado resulta o pesar, que é divisão que Descartes julga arbitrária.
uma espécie de tristeza, e do mal pas 73 A enumeração de Descartes é superior, pensa
ele, pelo fato de permitir distinguir as paixões primi
sado resulta o júbilo, que é uma espé tivas. Mas Descartes não nos informa segundo qual
cie de alegria. critério se efetua esta distinção.
AS PAIXÕES DA ALMA 255
primitivas não é muito grande. Pois, Art. 71. Que nesta paixão não ocorre
passando em revista todas as que enu qualquer mudança no coração nem no
merei, pode-se facilmente notar que há sangue.
apenas seis que são tais, a saber: a
admiração, o amor, o ódio, o desejo, á E esta paixão tem a particularidade
alegria e a tristeza; e todas as outras de não notarmos de modo algum que
compõem-se de algumas dessas seis, seja acompanhada de qualquer mudan
ou então são suas espécies 7 4. Por isso, ça no coração e no sangue, como acon
para que sua multidão não embarace tece com outras paixões. A razão é
que, não tendo nem o bem nem o mal
nossos leitores, tratarei aqui separada por objeto, mas só o conhecimento da
mente das seis primitivas; e, em segui coisa que se admira, ela não se rela
da, mostrarei de que forma todas ás ciona ao coração e ao sangue, dos
outras tiram daí sua origem. quais depende todo o bem do corpo,
mas apenas ao cérebro, onde ficam os
Art. 70. Da admiração; sua definição órgãos dos sentidos que servem a esse
e causa. conhecimento.
vocam. O que não se julgará incrível, fortalecer e conservar outros nos quais
se se considerar que uma razão aná não vale a pena deter-se.
loga faz com que, estando a planta de
nossos pés habituada a um contato Art. 75. Para que serve particular
bastante rude, devido ao peso do corpo mente a admiração.
que sustenta, sintamos muito pouco
esse contato quando andamos; ao
passo que outro muito menor e mais E pode-se dizer particularmente da
suave, como o das cócegas, nos é admiração que ela é útil porque nos
quase insuportável, por não nos ser leva a aprender e a reter’ em nossa
comum. memória coisas que dantes ignoráva-
mos; pois só admiramos o que nos pa
rece raro e extraordinário; e coisa al
Art. 73. O que é o espanto. guma pode parecer-nos assim senão
porque nós a ignorávamos, ou também
E essa surpresa tem tanto poder porque é diferente das coisas que
para levar os espíritos localizados nas conhecíamos; pois é essa diferença que
cavidades do cérebro ao lugar onde nos leva a chamá-la extraordinária.
está a impressão do objeto admirado Ora, ainda que uma coisa que nos era
que, por vezes, impele todos para lá e desconhecida se apresente de novo ao
os deixa de tal modo ocupados em nosso entendimento ou aos nossos sen
conservar essa impressão que nenhum tidos, não a retemos por isso em nossa
deles passa ao cérebro, nem mesmo se memória, se a idéia que dela temos não
desvia de alguma forma das primeiras for fortalecida em nosso cérebro por
pegadas que seguiu no cérebro: o que alguma paixão, ou pela aplicação de
faz que o corpo inteiro permaneça nosso entendimento, que a nossa von
imóvel como uma estátua e que só per tade determina a uma atenção e refle
cebamos do objeto a primeira face que xão particulares. E as outras paixões
se apresentou, e por conseguinte não podem servir-nos para notar as coisas
possamos adquirir dele um conheci que parecem boas ou más, mas só dis
mento mais particular. E isso o que se pomos da admiração para as que pare
chama comumente estar espantado; e cem tão-somente raras. Por _ isso,
o espanto é um excesso de admiração vemos que os que não possuem qual
que só pode ser mau. quer inclinação natural para essa pai
xão são ordinariamente muito ignoran
Art. 74. Para que servem todas as pai tes.
xões e no que elas prejudicam.
Art. 76. No que ela pode prejudicar e
Ora, é fácil saber, pelo que foi dito como se pode suprir sua falta e corrigir
acima, que a utilidade de todas as pai seu excesso.
xões consiste apenas em fortalecer e
fazer durar na alma pensamentos, os Mas acontece muito mais admirar
quais é bom que ela conserve, e que mos em demasia e nos espantarmos ao
poderiam facilmente, sem isso, ser perceber coisas que merecem pouca ou
obliterados. Assim como todo o mal nenhuma consideração, do que admi
que podem causar consiste em fortale rarmos demasiado pouco. E isso pode
cer e conservar esses pensamentos subtrair inteiramente ou perverter o
mais do que o necessário, ou então em uso da razão. Daí por que, emboraiseja
AS PAIXÕES DA ALMA 257
bom ter nascido com alguma inclina encontramos coisas raras que admira
ção para esta paixão, porque isso nos mos, mais nos acostumamos a cessar
dispõe para a aquisição das ciências, de admirá-las e a pensar que todas as
devemos todavia esforçar-nos em se que podem apresentar-se depois são
guida para nos libertar dela o mais vulgares, todavia, quando é excessiva e
possível 7 6. Pois é fácil suprir a sua nos leva somente a deter a atenção na
falta por uma reflexão e atenção parti primeira imagem dos objetos que se
culares, a que a nossa vontade sempre apresentarem, sem adquirir deles outro
pode obrigar nosso entendimento conhecimento, deixa atrás de si um há
quando julgamos que a coisa que se bito que dispõe a alma a deter-se do
apresenta vale a pena; mas não há mesmo modo em todos os outros obje
outro remédio para impedir o admirar tos que se apresentem, desde que lhe
excessivo senão adquirir o conheci pareçam, por pouco que seja, novos. E
mento de muitas coisas e exercitar-nos é isso que faz durar a moléstia dos que
na consideração de todas as que pos são cegamente curiosos 7 7, isto é, que
sam parecer mais raras e mais estra procuram as raridades somente para
nhas. admirá-las e hão para conhecê-las:
pois tornam-se pouco a pouco tão
Art. 77. Que não são nem os mais
admirativos, que coisas de importância
estúpidos nem os mais hábeis os mais
nula não são menos capazes de retê-los
propensos à admiração.
do que aquelas cuja pesquisa é mais
útil.
De resto, embora só os embrute-
cidos e estúpidos não- sejam levados
naturalmente à admiração, isto não Art. 79. As definições do amor e do
significa dizer que os mais dotados de ódio 7 8.
espírito sejam os mais inclinados a ela;
mas são principalmente os que, embo O amor é uma emoção da alma cau
ra possuam um senso comum assaz sada pelo movimento dos espíritos que
bom, não têm., todavia, em grande a incita a unir-se voluntariamente aos
conta sua própria suficiência. objetos que lhe parecem convenientes.
E o ódio é uma emoção causada pelos
Art. 78. Que o seu excesso pode espíritos que incita a alma a querer
converter-se em hábito quando se estar separada dos objetos que se lhe
deixa de corrigi-lo. apresentam como nocivos. Eu digo que
tais emoções são causadas pelos espíri
E, conquanto essa paixão pareça tos a fim de distinguir o amor e o ódio,
diminuir com o uso, pois, quanto mais que são paixões e dependem do corpo,
tanto dos juízos que levam também a
7 6 A admiração pode estar na origem da ciência, alma a se unir voluntariamente às coi
mas, enquanto paixão, ela nos distancia do exercí sas que ela considera boas e a se sepa
cio da ciência. Encontram-se na correspondência de rar daquelas que considera más como
Descartes muitos ataques contra os amantes de
maravilhas. Por exemplo, a propósito da história de
uma jovem que apresenta todos os dias sobre o
corpo as chagas dos mártires cujas festas são cele 7 7 O excesso de uma paixão é uma doença, desde
bradas, escreve: “O bom padre Mersenne é tão que não se tome a palavra no sentido patológico.
curioso e fica tão alegre em ouvir alguma maravilha 78 O autor vai analisar as cinco outras paixões do
que escuta favoravelmente todos os que lhe contam ponto de vista psicológico (arts. 79-96) e depois
uma”. (A Huyghens, 12 de março de 1640.) fisiológico (arts. 96-136).
258 DESCARTES
das emoções que só esses juízos exci volência, isto é, unimos-lhe também
tam na alma79. voluntariamente as coisas que cremos
lhe serem convenientes: o que é um dos
Art. 80. O que significa unir-se ou principais efeitos do amor. E se julgar
separar-se voluntariamente. mos que é um bem possuí-lo ou lhe
estar associado de outra forma que não
De resto, pela palavra voluntaria a voluntária, desejamo-lo: o que é tam
mente, não pretendo falar aqui do bém um dos mais comuns efeitos do
desejo80, que é uma paixão à parte e se amor.
relaciona com o porvir; mas do con
sentimento pelo qual nos consideramos Art. 82. Como paixões muito diferen
presentemente unidos com o que ama tes combinam na medida em que parti
mos, de sorte que imaginamos um todo cipam do amor.
do qual pensamos constituir apenas
uma parte, e do qual a coisa amada é a Não é necessário também distinguir
outra. Como, ao contrário, no ódio tantas espécies de amor quantos os
nos consideramos como um todo só diversos objetos que se podem amar;
inteiramente separado da coisa pela pois, por exemplo, embora a paixão
qual se tem aversão. que um ambicioso nutre pela glória,
um avarento pelo dinheiro, um bêbado
Art. 81. Da distinção que se costuma pelo vinho, um bruto pela mulher que
fazer entre o amor de concupiscência e deseja violar, um homem de honra por
o de benevolência. seu amigo ou por sua amante e um
bom pai por seus filhos, sejam muito
Ora, distinguem-se comumente duas diferentes entre si, todavia, por partici
espécies de amor, uma das quais é cha parem do amor, são semelhantes. Mas
mada amor de benevolência, isto é, que os quatro primeiros têm amor apenas
incita a querer o bem para o que se pela posse dos objetos aos quais se re
ama; a outra é chamada amor de fere sua paixão81, e não o têm pelos
concupiscência, isto é, que leva a dese objetos mesmos, pelos quais nutrem
jar a coisa que se ama. Mas me parece somente desejo misturado com outras
que essa distinção considera apenas os paixões particulares, ao passo que o
efeitos do amor, e não a sua essência; amor de um bom pai por seus filhos é
pois, tão logo nos unimos voluntaria tão puro que nada deseja deles e não
mente a algum objeto, de qualquer quer possuí-los de outra maneira senão
natureza que seja, temos por ele bene como o faz, nem estar unido a eles
mais estreitamente do que já o está;
79 Enquanto paixão, o amor não é apenas a anteci mas, considerando-os como outros
pação consciente do bem ao qual desejo estar tantos ele próprio, procura o bem deles
unido: esta antecipação torna-se inseparável de sua
ressonância orgânica. Sobre os sentimentos pura como o seu próprio, ou mesmo com
mente intelectuais, cf. art. 147. mais cuidado, porque, representando-
30 O amor, neste sentido, deve ser diferenciado do
desejo (o amor no sentido comum será, ao contrá
rio, o desejo que nasce do agrado, cf. art. 90). Ele 31 A sexualidade está portanto afastada da essên
não é a consciência da necessidade que se refere ao cia do amor. Sobre esta ideologia do amor (insepa
alimento ou ao objeto sexual, mas reveste ao mesmo rável no século XVII do preciosismo) e seU| con
tempo o amor pela glória, pelo dinheiro, pela pá teúdo social, poder-se-á consultar: René Bray, La
tria. . . É em outro nível, como há de indicar o arti Préciosité et les Précieux; Octave Nada, Le Senti-
go seguinte, que o amor poderá compor-se com o ment de l’Amour dans 1’Oluvre de Corneille;\Pau\
desejo. Bénichou, Morales du Grand Siècle. I
AS PAIXÕES DA ALMA 259
se formar com eles um todo, do qual país ou nossa cidade, e mesmo por um
nao é a melhor parte, prefere muitas homem particular, quando o estima
vezes os interesses deles aos próprios e mos mais do que a nós próprios. Ora, a
não teme perder-se para salvá-los. A diferença que existe entre essas três
afeição que as pessoas de honra sen espécies de amor aparece principal
tem por seus amigos é dessa natureza, mente através de seus efeitos; pois,
embora raramente seja tão perfeita; e a posto que em todas nos consideramos
que sentem pela amada participa unidos e juntos à coisa amada, esta
muito dela, mas também participa um mos sempre prontos a abandonar a
pouco da outra. parte menor do todo que se compõe
com ela para conservar a outra; o que
Art. 83. Da diferença entre a simples faz com que, na simples afeição, se
afeição, a amizade e a devoção82.
prefira sempre a si próprio ao que se
ama e que, ao contrário, na devoção se
Pode-se, parece-me, com melhor prefira de tal modo a coisa amada ao
razão ainda distinguir o amor pela esti eu próprio que não se receia morrer
ma que se dedica ao que amamos em para conservá-la. Viram-se muitas
comparação com nós próprios; pois, vezes exemplos disso nos que se expu
quando estimamos o objeto de nosso seram à morte certa em defesa de seu
amor menos que a nós mesmos, senti príncipe ou de sua cidade, e até, algu
mos por ele simples afeição; quando o mas vezes, de pessoas particulares às
estimamos tal como a nós próprios, quais se haviam devotado.
isso se chama amizade; e, quando o
estimamos mais, a paixão que alimen Art. 84. Que não há tantas espécies de
tamos pode ser chamada devoção. ódio como de amor.
Assim, pode-se ter afeição por uma
flor, por um pássaro, por um cavalo; De resto,'ainda que o ódio seja dire
porém, a não ser que se tenha o espí tamente oposto ao amor, não se distin
rito muito desregrado, não se pode nu guem nele todavia tantas espécies, por
trir amizade senão pelos homens. E que não se nota tanto à diferença que
eles são de tal modo objeto dessa pai existe entre os males de que se está
xão, que não há homem tão imperfeito separado voluntariamente como a que
que não se lhe possa dedicar amizade existe entre os bens a que se está unido.
muito perfeita, quando se pensa ser
amado por ele e se tem a alma verda Art. 85. Do agrado e do horror.
deiramente nobre e generosa, conforme
o que será explicado mais adiante nos E não encontro senão uma única
artigos 154 e 156. No que concerne à distinção considerável que seja aná
devoção, seu principal objeto é, sem loga num e noutro. Consiste em que os
dúvida, a soberana Divindade, em rela objetos, tanto do amor como do ódio,
ção à qual não podemos deixar de ser podem ser representados à alma pelos
devotos quando a conhecemos como se sentidos exteriores, ou então pelos inte
deve; mas podemos também sentir riores e por sua própria razão; pois
devoção por nosso príncipe, pelo nosso denominamos comumente bem ou mal
aquilo que nossos sentidos interiores
82 Acerca desse artigo, cf. Cartas, a Chanut, de l.° ou nossa razão nos levam a julgar
de fevereiro de 1647. conveniente ou contrário à nossa natu
260 DESCARTES
Art. 88. Quais são as suas diversas Art. 90. Qual é o que nasce do agrado.
espécies.
Ao contrário, o agrado foi particu
Haveria mais razão de distinguir o larmente instituído pela natureza para
desejo em tantas espécies diversas representar o gozo do que agrada
quão diversos os objetos que se procu como o maior de todos os bens perten
ram; pois,, por exemplo, a curiosidade, centes ao homem, o que faz desejar
que não é senão um'desejo de conhe ardentemente esse gozo. É verdade que
cer, difere muito do desejo de glória, e há diversas espécies de agrados e que
este do desejo de vingança, e assim por os desejos daí oriundos não são todos
diante. Mas aqui basta saber que há igualmente poderosos; pois, por exem
tantos desejos quantas espécies de plo, a beleza das flores nos incita
amor ou de ódio e que os mais conside somente a mirá-las, e a dos frutos, a
ráveis e os mais fortes são os que nas comê-los8 6. Mas o principal é o prove
cem do agrado e do horror. niente das perfeições que imaginamos
numa pessoa que pensamos capaz de
Art. 89. Qual é o desejo que nasce do tornar-se outro nós mesmos; pois, com
horror. a diferença do sexo, que a natureza
estabeleceu nos homens bem como nos
animais destituídos de razão, ela esta
Ora, conquanto seja apenas um beleceu também certas impressões no
mesmo desejo que tende à busca de um cérebro que fazem com que, em certa
bem e à fuga do mal que lhe é contrá idade e em certo tempo, nos conside
rio, assim como já foi dito, o desejo remos como defeituosos e como se não
que nasce do agrado não deixa de ser fôssemos senão a metade de um todo,
muito diferente daquele que nasce do do qual uma pessoa do outro sexo deve
horror; pois este agrado e este horror, constituir a outra metade, de sorte que
que verdadeiramente são contrários, a aquisição dessa metade é confusa
não são o bem e o mal que servem de mente representada pela natureza
objetos a tais desejos, mas somente como o maior de todos os bens imagi
duas emoções da alma que a predis náveis. E, ainda que se veja muitas pes
põem a buscar duas coisas muito dife soas desse outro sexo, nem por isso se
rentes, a saber: o horror é instituído deseja muitas ao mesmo tempo, posto
pela natureza para representar à alma que a natureza não leva a imaginar que
uma morte súbita e inopinada, de sorte se necessite de mais de uma metade.
que, embora seja às vezes apenas o Mas, quando numa se observa algo
contato de um vermezinho, ou o rumor
de uma folha tremulante, ou a sua 8 6 Reafirmação de uma simples diferença de grau
sombra, que provoque o horror, sente- entre o agrado sensual e o prazer estético.
262 DESCARTES
que agrada mais do que aquilo que se gozo que ela frui do bem que seu
observa ao mesmo tempo nas outras, entendimento lhe representa como
isso determina a alma a sentir somente seu88. E verdade que, enquanto a alma
por ela todo o pendor que a natureza está unida ao corpo, essa alegria inte
lhe dá para procurar o bem que ela lhe lectual não pode deixar de ser acompa
representa como o maior que se possa nhada da outra, que é uma paixão;
possuir8 7; e esta inclinação ou este de pois, tão logo o nosso entendimento
sejo que nasce assim do agrado leva percebe que possuímos algum bem,
mais comumente o nome de amor do embora este bem possa ser tão dife
que a paixão de amor acima descrita. rente de tudo quanto pertence ao corpo
Por isso, produz os mais estranhos que não seja de modo algum imaginá
efeitos e é ele que serve de principal vel, a imaginação não deixa de provo
matéria aos fazedores de romances e car incontinenti alguma impressão no
aos poetas. cérebro, da qual se segue o movimento
dos espíritos que excita a paixão da
Art. 91. A definição da alegria. alegria.
suas causas, a saber, quando este bem Mas a causa de ser a alegria de ordiná
ou este mal provocam suas impressões rio seguida pelo prazer é que tudo o
no cérebro sem o intermédio da que se chama prazer ou sentimento
alma89, às vezes porque pertencem agradável consiste em que os objetos
apenas ao corpo, e outras vezes tam dos sentidos excitam nos nervos algum
bém, ainda que pertençam à alma, por movimento que seria capaz de prejudi
que ela nao os considera como bem ou cá-los se não tivessem bastante força
mal, mas sob outra forma qualquer, para lhe resistir, ou se o corpo não esti
cuja impressão está unida à do bem e vesse bem disposto; o que provoca
.
do mal no cérebro9091 uma impressão no cérebro, a qual,
sendo instituída pela natureza a fim de
Art. 94. Como essas paixões são exci testemunhar esta boa disposição e esta
tadas por bens e males que se referem força, a representa à alma como um
apenas ao corpo, e no que consistem o bem que lhe pertence, na medida em
prazer físico2^ e a dor. que está unida ao corpo, e assim excita
nela a alegria. E quase a mesma razão
Assim, quando gozamos de plena que nos leva a obter naturalmente pra
saúde e o tempo é mais sereno do que zer em nos sentirmos comovidos por
de costume, sentimos em nós um todas as espécies de paixões, mesmo
contentamento que não provém de com a tristeza e o ódio, quando essas
nenhuma função do entendimento, mas paixões são causadas apenas pelas
somente das impressões que o movi estranhas aventuras a cuja represen
mento dos espíritos provoca no cére tação assistimos num teatro93, ou por
bro; e sentimo-nos igualmente tristes outros meios semelhantes, que, não
como quando o corpo está indisposto, podendo nos prejudicar de maneira
embora não saibamos que ele o esteja. alguma, parecem aprazer nossa alma,
Assim, o prazer dos sentidos é seguido tocando-a. E a causa de que a dor pro
de tão perto pela alegria, e a dor pela duz de ordinário a tristeza é que o sen
tristeza, que a maioria dos homens não timento chamado dor provém sempre
os distingue de modo algum92. To de alguma ação tão violenta que ofen
davia, diferem tanto que podemos de os nervos; de sorte que, sendo insti
algumas vezes sofrer dores com alegria tuído pela natureza para significar à
e receber prazeres que desagradam. alma o dano que o corpo recebe por
essa ação, e a sua fraqueza no fato de
89 "Sem o intermédio da alma não significa que não lhe ter podido resistir, representa-
não tenhamos consciência desses estados, porque se lhe um e outro como males que lhe são
assim fosse elas não seriam paixões, mas apenas sempre desagradáveis, exceto quando
que a causa deles não é a idéia de algum bem que
possuímos ou de um mal que nos afeta. A causa causam alguns bens que ela aprecia
deles é um estado puramente fisjológico.” (Lívio mais do que a eles.
Teixeira, op. cit., pág. 174.)
90 Ou então sua causa pode ser uma associação
tornada inconsciente. “Assim, quando somos leva
dos a amar alguém sem que saibamos a causa, 92 Assim como a alegria intelectual e a “paixão”
podemos crer que isso vem do fato de haver algo na qual ela se insere, cumpre distinguir o bem-estar
nele de semelhante ao que houve em outro objeto fisiológico e a paixão de alegria que ele produz.
que amamos anteriormente, embora não saibamos o 93 O estudo fisiológico começa pela descrição dos
que é.” (Cartas, a Chanut, 6 de junho de 1647.) movimentos corporais observados em cada uma das
91 Em francês chatouillement: prazer proveniente cinco paixões. Cf. Cartas, a Elisabeth, maio de
de cócegas. Traduzimos por “prazer físico” por 1646: “É verdade que tive dificuldade em distinguir
falta de correspondente exato para o termo. (N. dos os que pertencem a cada paixão porque elas nunca
T.) estão sós”.
264 DESCARTES
Art. 95. Como podem também ser em que servem à produção do sangue e
excitados por bens e males que a alma depois dos espíritos; pois, embora
não nota, ainda que lhe pertençam; todas as veias conduzam o sangue que
como são os prazeres que tiramos do elas contêm para o coração, acontece,
aventurar-se ou do lembrar-se do mal no entanto, às vezes, que o de algumas
passado. é impelido para ele com mais força do
que o de outras; e acontece também
Assim, o prazer que sentem muitas que as aberturas por onde entra no
vezes as pessoas jovens em empreender
coração, ou, então, aquelas por onde
coisas difíceis e em expor-se a grandes
sai, são às vezes mais largas ou mais
perigos, embora não esperem daí qual
apertadas umas que as outras.
quer proveito ou qualquer glória, surge
neles porque o pensamento de que é
difícil aquilo que empreendem provoca Art. 97. As principais experiências
em seus cérebros uma impressão que, que servem para conhecer esses movi
unida àquela que poderiam formar se mentos no amor.
pensassem que é um bem sentir-se bas
tante corajoso, bastante feliz, bastante Ora, considerando as diversas alte
destro ou bastante forte, para se arris rações que a experiência mostra em
car a tal ponto, é causa de que obte nosso corpo enquanto nossa alma é
nham prazer disso. E o contentamento agitada por diversas paixões, observo
que sentem os velhos quando se lem no amor, quando está só, isto é, quan
bram dos males que sofreram provém do não se acha acompanhado de qual
de que eles se representam ser um bem quer intensa alegria, ou desejo, ou tris
o fato de terem podido, apesar de tudo, teza, que o batimento do pulso é igual
subsistir. e muito maior e mais forte que de cos
tume; que se sente um doce calor no
Art. 96. Quais são os movimentos do peito, e que a digestão dos alimentos se
sangue e dos espíritos que causam as faz mui prontamente no estômago, de
cinco paixões precedentes3 4. modo que essa paixão é útil para a
saúde.
As cinco paixões que comecei a
explicar aqui se acham de tal modo Art. 98. No ódio.
unidas ou opostas umas às outras que
é mais fácil considerá-las todas em Observo, ao contrário, no ódio, que
conjunto do que tratar de cada uma o pulso é desigual e mais fraco, e amiú-
separadamente, assim como se tratou de mais rápido; que se sentem frialda-
da admiração; e diferentemente dessa, des entremescladas de certo calor áspe
a causa dessas paixões não reside uni ro e picante no peito; que o estômago
camente no cérebro, mas também no deixa de cumprir sua função e tende à
coração, no baço, no fígado e em todas vomitar e rejeitar os alimentos ingeri
as outras partes do corpo, na medida dos, ou ao menos a corrompê-los e a
convertê-los em maus humores.
9 4 Sobre o prazer ambíguo que o espetáculo trá
gico proporciona, cf. Cartas, a Elisabeth, 6 de outu Art. 99. Na alegria. *
bro de 1645. Descartes já escrevia no Compendium
Musicae: “As elegias mesmas e as tragédias nos
agradam tanto mais quanto mais excitam em nós Na alegria, que o pulso é igual e
compaixão e dor. . . ”. mais rápido que de ordinário, mas que
AS PAIXÕES DA ALMA 265
não é tão forte ou tão grande como no vos do sexto par, aos músculos situa
amor; e que se sente um calor agradá dos em torno dos intestinos e do estô
vel que não fica apenas no peito, mas mago, da forma requerida a levar o
se espalha também por todas as partes suco dos alimentos, que se converteu
externas do corpo, com o sangue que em sangue novo, a passar prontamente
para lá aflui em abundância; e que no ao coração sem se deter no fígado, e,
entanto se perde às vezes o apetite, sendo aí impelido com mais força do
porque a digestão se faz pior do que de que o é em outras partes do corpo, a
costume. entrar no coração com maior abun
dância e excitar nele um calor maior,
Art. 100. Na tristeza. por ser mais grosso do que aquele que
já foi rarefeito muitas vezes ao passar e
Na tristeza, que o pulso é fraco e repassar pelo coração; o que o faz en
lento, e que sentimos em tomo do viar também espíritos ao cérebro cujas
coração como laços, que o apertam, e partes são mais grossas e mais agita
pedaços de gelo que o gelam e comuni das que de ordinário; e esses espíritos,
cam sua frialdade ao resto do corpo; e fortalecendo a impressão que o pri
que, apesar disso, não se deixa de ter meiro pensamento do objeto amável
por vezes bom apetite e sentir que o nele ocasionou, obrigam a alma a
estômago não deixa de cumprir o seu deter-se nesse pensamento; e é nisso
dever, contanto que não haja ódio mis que consiste a paixão do amor.
turado à tristeza.
Art. 103. No ódio.
Art. 101. No desejo.
Ao contrário, no ódio, o primeiro
Enfim, noto, de particular, no dese pensamento do objeto que produz
jo, que este agita o coração mais aversão conduz de tal modo os espíri
violentamente do que quaisquer das tos existentes no cérebro para os mús
outras paixões, e fornece ao cérebro culos do estômago e dos intestinos que
mais espíritos, os quais, passando daí impedem o suco dos alimentos de se
aos músculos, tornam todos os senti misturar com o sangue, apertando
dos mais agudos e todas as partes do todas as aberturas por onde costuma
corpo mais móveis. correr; e condu-los também de tal
modo aos pequenos nervos do baço e
Art. 102. O movimento do sangue e da parte inferior do fígado, onde fica o
dos espíritos no amor3 5. receptáculo da bile, que as partes do
sangue que costumam ser rejeitadas
Essas observações, e muitas outras para esses lugares deles saem e correm,
que seria demasiado longo relacionar, com o sangue que está nos ramos da
deram-me motivo para julgar que, veia cava, para o coração; o que causa
quando o entendimento se representa muitas desigualdades em seu calor,
qualquer objeto de amor, a impressão tanto mais que o sangue proveniente
que tal pensamento efetua no cérebro do baço não se aquece e não se rarefaz
conduz os espíritos animais, pelos ner- senão a custo, e que, ao contrário, o
procedente da parte inferior do fígado,
9 5 Estudo dos fenômenos circulatórios nas paixões onde há sempre fel, se abrasa e dilata
e de suas causas (arts. 102-111). mui rapidamente; daí. se segue que os
266 DESCARTES
que algumas vezes o sangue, ou outro . ódio. E se pode ver a olho nu que há no
suco que entrava no coração, era um fígado inúmeras veias ou condutos
alimento mais -conveniente que o bastante largos, por onde o suco dos
comum para nele manter o calor, que é alimentos pode passar da veia porta
o princípio da vida; o que levava a para a veia cava, e daí para o coração,
alma a juntar voluntariamente a si esse sem se deter de modo algum no fígado;
alimento, isto é, a amá-lo, e ao mesmo mas há também uma infinidade de ou
tempo os espíritos corriam do cérebro tras menores, onde ele pode deter-se, e
para os músculos, que podiam pressio que contêm sempre sangue de reserva,
nar ou agitar as partes de onde viera como faz também o baço; sangue esse
ao coração, para fazer que estas lhe que, sendo mais grosseiro do que aque
enviassem mais; e tais partes eram o le que se acha em outras partes do
estômago e os intestinos, cuja agitação corpo, pode melhor servir de alimento
aumenta o apetite, ou também o fígado ao fogo que há no coração, quando o
e o pulmão, que os músculos do dia estômago e os intestinos deixam de Iho
fragma podem pressionar: eis por que fornecer.
desde então esse mesmo movimento
dos espíritos sempre acompanhou a Art. 109. Na alegria.
paixão do amor9 7.
Aconteceu também algumas vezes,
Art. 108. No ódio. no começo de nossa vida, que o sangue
contido nas veias era um alimento bas
Algumas vezes, ao contrário, chega tante conveniente para manter o calor
va ao coração algum suco estranho, do corpo, e que elas o continham em
que não era próprio para manter o ta] quantidade que não havia a necessi
calor, ou que podia mesmo extingui-lo; dade de buscar qualquer alimento
o que levava os espíritos que subiam alhures; o que excitou na alma a pai
do coração para o cérebro a provocar xão da alegria e fez, ao mesmo tempo,
na alma a paixão do ódio; e ao mesmo com que os orifícios do coração se
tempo também esses espíritos iam do abrissem mais do que de costume e que
cérebro aos nervos que podiam impelir os espíritos corressem, abundante
o sangue do baço e das pequenas veias mente, do cérebro, não só para os ner
do fígado para o coração, a fim de obs- vos que servem para abrir esses orifí
tar que aí entrasse esse suco nocivo; e, cios, mas também, em geral, para
demais, àqueles que podiam repelir todos os outros que impelem o sangue
esse mesmo suco para os intestinos e das veias para o coração, e impedem
para o estômago, ou também às vezes que a ele venha de novo o do fígado,
obrigar o estômago a vomitá-lo: daí do baço, dos intestinos e do estômago;
resulta que esses mesmos movimentos eis por que esses mesmos movimentos
costumam acompanhar a paixão do acompanham a alegria.
9 7 Existe uma ligação primitiva entre o movimento Art. 110. Na tristeza.
dos espíritos e os estados sinestésicos que resultam
do estado de calor do coração. Durante cada uma
dessas ligações, a alma experimenta pela primeira As vezes, ao contrário, acontece que
vez o sentimento que desencadeará em seguida o
processo de auto-refbrçamento do qual não era o corpo teve falta de alimento, e é o
originariamente senão o simples concomitante. que deve ter feito sentir à alma a sua
268 DESCARTES
mais rubra do que durante a alegria, espíritos ao cérebro que não podem ser
porque a cor do sangue parece tanto daí regularmente conduzidos para os
mais viva quanto corre menos rapida músculos.
mente, e também porque assim se pode
reunir mais nas veias da face do que Art. 119. Da languidez.
quando os orifícios do coração estão
mais abertos. Isto transparece princi A languidez é uma disposição para
palmente na vergonha, que é composta relaxar e ficar sem movimento, que é
de amor a si próprio e de um desejo pre sentida em todos os membros; provém,
mente de evitar a infâmia presente, o tal como o tremor, do fato de não irem
que faz vir o sangue das partes interio suficientes espíritos para os nervos,
res para o coração, depois daí, através mas de uma forma diferente; pois a
das artérias, para a face, e com isso causa do tremor é que não os há bas
uma moderada tristeza que impede tantes no cérebro para obedecerem às
esse sangue de voltar ao coração. O determinações da glândula quando ela
mesmo transparece tão comumente os impele para algum músculo, ao
quando se chora; pois, como direi logo passo que o langor procede do fato de
mais, é o amor unido à tristeza que a glândula não os determinar a ir para
causa a maioria dàs lágrimas; e o alguns músculos de preferência a ou
mesmo surge na cólera, onde amiúde tros.
um rápido desejo de vingança se mistu
ra ao amor, ao ódio e à tristeza. Art. 120. Como ela é causada pelo
amor epelo desejo.
Art. 118. Dos tremores.
E a paixão que causa mais comu
Os tremores têm duas causas diver mente este efeito é o amor, unido ao
sas: uma consiste no fato de chegarem desejo de uma coisa cuja aquisição não
às vezes muito poucos espíritos do cé se imagina possível no momento pre
rebro para os nervos, e a outra de às sente; pois o amor ocupa de tal forma
vezes chegarem aí em demasia para a alma em considerar o objeto amado,
poderem fechar bem as pequenas pas que emprega todos os espíritos que se
sagens dos músculos que, segundo foi encontram no cérebro em representar-
dito no artigo 11, devem ser fechados lhe a imagem e detém todos os movi
para determinar os movimentos dos mentos da glândula que não sirvam
membros. A primeira causa aparece na para tal efeito. E cumpre notar, no
tristeza e no medo, assim como quan tocante ao desejo, que a propriedade
do trememos de frio, pois estas paixões que lhe atribuí de tornar o corpo mais
podem, da mesma maneira que a frial- móvel só lhe convém quando se imagi
dade do ar, espessar o sangue de tal na que o objeto desejado é tai que se
forma que não forneça ao cérebro bas pode desde esse momento fazer algo
tantes espíritos para enviá-los aos ner que sirva para adquiri-lo; pois se, ao
vos. A outra causa aparece amiúde nos contrário, se imagina que é impossível
que desejam ardentemente algo, e nos naquele momento fazer algo de útil
que estão fortemente comovidos pela para isso, toda a agitação do desejo
cólera, como também nos que estão permanece no cérebro, sem passar de
ébrios: pois estas duas paixões, assim modo algum aos nervos, e sendo aí
como o vinho, fazem ir às vezes tantos inteiramente empregada em fortalecer
AS PAIXÕES DA ALMA 271
a idéia do objeto desejado, deixa o meio que ele abafa o fogo, o qual cos
resto do corpo languescente. tuma manter quando entra no coração
apenas com medida.
Art. 121. Que também pode ser causa
da por outras paixões. Art. 123. Por que não se desmaia de
tristeza.
Ê verdade que o ódio, a tristeza e
mesmo a alegria também podem cau Parece que uma grande tristeza
sar certo langor quando são muito vio sobrevinda inopinadamente deve aper
lentos, porque ocupam inteiramente a tar de tal modo os orifícios do coração
alma em considerar seu objeto, princi que pode também extinguir-lhe o fogo;
palmente quando se lhe junta o desejo mas, não obstante, não se observa que
de uma coisa para cuja aquisição em isso aconteça, ou, se acontece, é muito
nada podemos contribuir no momento raramente; a razão disso, creio, é que
presente. Mas, como nos detemos não pode haver no coração tão pouco
muito mais a considerar os objetos que sangue que não baste para manter o
unimos a nós voluntariamente do que calor, quando esses orifícios estão
aqueles de que nos separamos ou quase fechados.
quaisquer outros, e como a languidez
não depende de uma surpresa, mas Art. 124. Do riso.
necessita de algum tempo para se for
mar, ela se encontra muito mais no O riso consiste em que o sangue que
amor do que em todas as outras procede da cavidade direita do coração
paixões. pela veia arteriosa, inflando de súbito e
repetidas vezes os pulmões, faz com
Art. 122. Do desmaio. que o ar neles contido seja obrigado a
sair daí com impetuosidade pelo gas-
O desmaio não está muito afastado nete, onde forma uma voz inarticulada
da morte, pois se morre quando o fogo e estrepitosa; e tanto os pulmões, ao se
que há no coração se extingue por inflarem, quanto este ar, ao sair, impe
completo, e só se cai em desmaio lem todos os músculos do diafragma,
quando ele é de tal modo abafado que do peito e da garganta, mediante o que
ainda permanecem alguns restos de movem os do rosto que têm com eles
calor que podem em seguida reacen qualquer conexão; e não é mais que
dê-lo. Ora, há muitas indisposições do essa ação do rosto, com essa voz inar
corpo que nos podem levar assim a ticulada e estrepitosa, que chamamos
tombar em desfalecimento; mas entre riso.
as paixões apenas a extrema alegria,
nota-se, dispõe desse poder; e creio que Art. 125. Por que ele não acompanha
a forma para causar tal efeito é que, as maiores alegrias.
abrindo extraordinariamente os orifí
cios do coração, o sangue das veias Ora, ainda que pareça ser o riso um
entra nele tão de repente e em tão gran dos principais sinais da alegria, essa
de quantidade, que o calor não pode não pode todavia provocá-lo, exceto
rarefazê-lo assaz prontamente para quando é apenas moderada e há algu
levantar as pequenas peles que fecham ma admiração ou algum ódio mistu
as entradas dessas veias: é por esse rado com ela: pois verificamos por
272 QESCARTES
experiência que, quando estamos ex mão, há sempre algum pequeno motivo
traordinariamente alegres, nunca o de ódio, ou ao menos de admiração. E
motivo dessa alegria nos leva a estou aqueles cujo baço não é muito sadio
rar de riso, e não podemos mesmo ser estão sujeitos a ser não só mais tristes,
a ele levados por qualquer outra causa, mas também, por intervalos, mais ale
exceto quando estamos tristes; e a gres e mais dispostos a rir que os
razão disso é que, nas grandes alegrias, outros: posto que o baço envia duas
o pulmão está sempre tão cheio de san espécies de sangue para o coração,
gue que não pode encher-se mais uma muita espessa e grosseira, que
repetidamente. causa a tristeza; a outra muito fluida e
sutil, que causa a alegria. E amiúde,
Art. 126. Quais são as suas principais depois de rir muito, sentimo-nos natu
causas. ralmente inclinados à tristeza, porque,
estando esgotada a parte mais fluida
E só posso notar duas causas que do sangue do baço, a outra, mais gros
façam assim subitamente inflar o pul seira, segue-a para o coração.
mão. A primeira é a surpresa da admi
ração, a qual, estando unida à alegria, Art. 127. Qual é sua causa na indigna
pode abrir tão prontarnente os orifícios ção.
do coração que grande abundância de
sangue, entrando de repente em seu Quanto ao riso que acompanha
lado direito pela veia cava, aí se rare- algumas vezes a indignação, é comu
faz e, passando daí à veia, arteriosa, mente artificial e fingido; mas, quando
infla os pulmões. A outra é a mistura natural, parece vir da alegria que senti
de algum líquido que aumenta a rarefa- mos ao verificar que o mal que nos
ção do sangue; e não encontro nada indignou não pode ofender-nos e, com
mais próprio para isso do que a parte isso, que estamos surpresos com a
mais fluida daquele que procede do novidade ou com o encontro inopinado
baço, parte que, sendo impelida para o deste mal; de modo que a alegria, o
coração por alguma ligeira emoção de ódio e a admiração para ele contri
ódio, ajudada pela surpresa da admira buem. Todavia, quero crer que é possí
ção e misturando-se com o sangue que vel também produzi-lo sem qualquer
vem dos outros lugares do corpo, o alegria, pelo . simples movimento da
qual a alegria faz entrar nele com aversão, que envia sangue do baço ao
abundância, pode levar este sangue a coração, onde é rarefeito e impelido
dilatar-se aí muito mais que de ordiná para o pulmão ao qual infla facilmente
rio; da mesma maneira que vemos uma se o encontra, quase vazio; e em geral
porção de outros líquidos se inflarem tudo o que pode inflar subitamente o
de repente, estando sobre o fogo, quan pulmão desta maneira causa a ação
do se lança um pouco de vinagre no exterior do riso, exceto quando a tris
vasilhame em que se acham; pois a teza a transmuda na dos gemidos e dos
mais fluida parte do sangue prove gritos que acompanham as lágrimas. A
niente do baço é de natureza seme esse propósito, Vives escreveu de si
lhante à do vinagre. A experiência próprio que, estando uma vez muito
também nos mostra que, em tòdas as tempo sem comer, os primeiros boca
circunstâncias que podem produzir dos que metia na boca o obrigavam a
este riso estrepitoso que vem do pul rir; o que podia provir do fato dé seu
AS PAIXÕES DA ALMA 273
pulmão, vazio de sangue devido à falta mais abundantes, desde que não sejam
de alimento, se encher prontamente com isso mais agitados, se convertem
com o primeiro suco que passava do também em água, o que é causa do
estômago para o coração, e que só a suor que surge quando se faz algum
imaginação de comer podia levá-lo, exercício. Mas então os olhos não
antes mesmo que o dos alimentos inge suam, porque, durante os exercícios do
ridos aí chegasse. corpo, como a maioria dos espíritos
vai para os músculos que servem para
Art. 128. Da origem das lágrimas. movê-lo, vão menos para os olhos,
através do nervo óptico. E é apenas
Assim como o riso jamais é causado uma e mesma matéria que compõe o
pelas maiores alegrias, também as lá sangue, enquanto está nas veias ou nas
grimas nunca provêm de extrema tris artérias, e os espíritos quando ele está
teza, mas somente da que é moderada no cérebro, nos nervos ou nos múscu
e acompanhada, ou seguida, de algum los, e os vapores quando sai em forma
sentimento de amor, ou também de ale de ar, e enfim o suor ou as lágrimas
gria. E, para compreender bem a sua quando se espessa em água sobre a
origem, cumpre observar que, embora superfície do corpo ou dos olhos.
saia continuamente uma porção de
vapores de todas as partes de nosso
corpo, não há todavia nenhuma de Art. 130. Como o que causa dor ao
onde saiam tantos como dos olhos, por olho excita-o a chorar.
causa da grandeza dos nervos ópticos
e da multidão de pequenas artérias por E não consigo notar senão duas cau
onde eles lhes vêm; e que, assim como sas que façam os vapores que saem dos
o suor se compõe apenas de vapores olhos se transmudarem em lágrimas. A
que, saindo das outras partes, se con
primeira é quando a figura dos poros
vertem em água em suas superfícies,
por onde passam é mudada por qual
do mesmo modo as lágrimas se tornam
vapores que saem dos olhos. quer acidente que seja: pois isso, retar
dando o movimento desses vapores e
Art. 129. Da maneira como os vapores modificando sua ordem, pode levá-los
se transmudam em água. a se converterem em água. Assim,
basta que um argueiro caia no olho
para arrancar-lhe algumas lágrimas
Ora, como já escrevi nos Meteoros,
ao explicar de que forma os vapores do porque, excitando neles a dor, altera a
ar se convertem em chuva, que isso disposição de seus poros; de sorte que,
provém do fato de serem mais abun tornando-se alguns mais estreitos, as
dantes ou menos agitados que de ordi pequenas partes dos vapores passam
nário, assim creio que, quando os que neles menos depressa, e que, em vez de
saem do corpo são muito menos agita saírem como antes igualmente distan
dos que de costume, ainda que não tes umas das outras, e permanecerem
sejam tão abundantes, não deixam de assim separadas, acabam por encon
se converter em água, o que provoca os trar-se, porque a ordem destes poros
suores frios que procedem algumas está perturbada, mediante o que elas se
vezes da fraqueza, quando se está juntam e assim se convertem em
doente; e creio que, quando são muito lágrimas.
274 DESCARTES
Art. 131. Como se chora de tristeza. Art. 133. Por que choram facilmente
os velhos e as crianças.
A outra causa é a tristeza seguida de
amor ou de alegria, ou em geral de As crianças e os velhos são mais
qualquer causa que leva o coração a inclinados a chorar do que os de meia-
impelir mais sangue pelas artérias. A idade, mas é por razões diversas. Os
tristeza é aí requerida porque, res- velhos choram amiúde de afeição e de
friando todo o sangue, estreita os alegria; pois essas duas paixões unidas
poros dos olhos; mas, como à medida em conjunto enviam muito sangue ao
que os estreita diminui também a coração e daí muitos vapores aos
quantidade de vapores a que devem olhos; e a agitação desses vapores é de
dar passagem, isto basta para produzir tal forma retardada pela frialdade de
lágrimas se a quantidade desses vapo suas índoles que se convertem facil
res não for ao mesmo tempo aumen mente em lágrimas, conquanto nenhu
tada por alguma outra causa; e nada a ma tristeza as precedesse. Porque se al
aumenta mais do que o sangue enviado guns velhos choram também mui
ao coração, na paixão do amor. Por facilmente por irritação, não é tanto o
isso vemos que os que estão tristes não temperamento de seus corpos mas o de'
derramam continuamente lágrimas, seus espíritos que os dispõe a tanto; e
mas apenas por intervalos, quando isso só acontece aos que são tão fracos
fazem alguma nova reflexão sobre os que se deixam sobrepujar inteiramente
objetos pelos quais têm afeição. por pequenos motivos de dor, medo ou
piedade. O mesmo ocorre com as
Art. 132. Dos gemidos que acompa crianças, que não choram quase de ale
nham as lágrimas. gria, mas muito mais de tristeza,
mesmo quando ela não é acompa
nhada de amor; pois têm sempre bas
E então os pulmões também se en
chem às vezes de repente pela abun tante sangue para produzir muitos
vapores, os quais, tendo seu movi
dância do sangue que entra aí dentro e
que expulsa o ar que costumam conter, mento retardado pela tristeza, se con
vertem em lágrimas.
o qual, saindo pélo gasnete, engendra
os gemidos e os gritos que costumam
acompanhar as lágrimas; e esses gritos Art. 134. Por que algumas crianças
são comumente mais agudos do que os empalidecem em vez de chorar.
que acompanham o riso, embora sejam
produzidos quase da mesma maneira; Todavia, há algumas que empali
a razão disso é que os nervos que ser decem em vez de chorar quando estão
vem para alargar ou estreitar os órgãos zangadas; o que pode testemunhar
da voz, para torná-la mais grossa, ou haver nelas um juízo e uma coragem
mais aguda, estando unidos aos que extraordinários, a saber, quando isso
abrem os orifícios do coração durante provém do fato de considerarem a
a alegria e os contraem durante a tris grandeza do mal e se prepararem para
teza, fazem com que esses órgãos se forte resistência, tal como fazem os
alarguem ou se estreitem ao mesmo que sao mais idosos; mas trata-se mais
tempo. comumente de marca de má índqle, a
AS PAIXÕES DA ALMA 275
saber, quando isto provém do fato de presente, e que não são sempre as mes
serem propensas ao ódio ou ao medo; mas ações que unimos aos mesmos
pois estas são paixões que diminuem a pensamentos; pois isso basta para dar
matéria das lágrimas, e vê-se, ao a razão de tudo quanto cada um de nós
contrário, que as que choram mui pode advertir de particular em si ou em
facilmente são propensas ao amor e à outrem, no tocante a esta matéria, e
piedade. que não foi ainda explicado1 00. E, por
exemplo, é fácil pensar que as estra
Art. 135. Dos suspiros. nhas aversões de alguns, que os impe
dem de suportar o odor das rosas ou a
A causa dos suspiros é muito dife presença de um gato, ou coisas seme
rente da causa das lágrimas, embora lhantes, provêm apenas do fato de
pressuponham, como essas, a tristeza; terem'sido no começo de suas vidas
pois, ao passo que somos incitados a fortemente ofendidos por quaisquer
chorar quando os pulmões estão cheios objetos parecidos, ou então de terem
de sangue, somos incitados a suspirar compartilhado do sentimento de suas
quando se acham quase vazios, e quan mães, que se viram por eles ofendidas
do alguma imaginação de esperança quando grávidas; pois é certo que há
ou de alegria abre o orifício da artéria relação entre todos os movimentos da
venosa, que a tristeza estreitara, por mãe e os da criança que está em seu
que então, caindo o pouco sangue que ventre, de modo que o que é contrário
resta nos pulmões de repente no lado a uma prejudica a outra. E o odor das
esquerdo do coração por essa artéria rosas pode ter causado grande dor de
venosa, e sendo para aí impelido pelo cabeça a uma criança quando ainda se
desejo de alcançar esta alegria, o qual achava no berço, ou então um gato
agita ao mesmo tempo todos os mús pode tê-la amedrontado fortemente,
culos do diafragma e do peito, o ar é sem que ninguém tivesse reparado
impelido prontamente pela boca para nisso ou que em seguida restasse qual
os pulmões, a fim de preencher neles o quer lembrança, embora a idéia da
lugar deixado por esse sangue; e é isso aversão que tivera então por estas
que se chama suspiro. rosas ou por este gato permaneça
impressa em seu cérebro até o fim da
Art. 136. De onde.provêm os efeitos vida.
das paixões que são particulares a cer
tos homens. Art. 137. Do uso das cinco paixões
aqui explicadas, na medida em que se
De resto, para suprir aqui em pou relacionam ao corpoy 01.
cas palavras tudo quanto se poderia
acrescentar no tocante aos diversos
efeitos ou às diversas causas das pai Depois de ter dado as definições do
xões, contentar-me-ei em repetir o
1 00 “Todos os cérebros não se acham dispostos da
princípio em que se apóia tudo o que mesma maneira”, dizia o art. 39. A explicação do
escrevi, a saber, que há tal ligação mecanismo geral das paixões pode ser, pois, com
entre a nossa alma e o nosso corpo pletada por uma psicologia individual e histórica.
Lívio Teixeira (págs. 179-80) mostra no que as li
que, quando se uniu uma vez qualquer nhas que seguem antecipam certos temas da psica
ação corporal com algum pensamento, nálise. Cumpre notar, no entanto, que, em Descar
tes, a relação de associação se reduz à contigüidade
nenhum ds dois torna a apresentar-se de dois “traços” e que não é expressiva, como em
a nós sem que o outro também esteja Freud.
276 DESCARTES
apenas o corpo, ou se este fosse a semos sê-lo ainda mais pelo amor ao
nossa melhor parte; mas, desde que é bem, ao qual é contrário, ao menos
somente a menor, devemos principal quando este bem e este mal são bas
mente considerar as paixões na medida tante conhecidos; pois confesso que o
em que pertencem à alma, em relação ódio ao mal, que só se manifesta pela
' à qual o amor e o ódio provêm dò dor, é necessário com respeito ao
conhecimento1 0 4 e precedem a alegria corpo; mas não falo aqui senão daque
e a tristeza, exceto quando essas duas le que resulta de um conhecimento
últimas tomam o lugar do conheci maís claro, e relaciono-o apenas com a
mento, de que são espécies. E, quando alma. Digo também que nunca existe
este conhecimento é verdadeiro, isto é, sem tristeza, porque, sendo o mal ape
quando as coisas que ela nos leva a nas uma privação, não pode ser conce
amar são verdadeiramente boas, e as bido sem algum sujeito real em que
que nos leva a odiar são verdadeira exista; e nada há de real que não tenha
mente mâs, o amor é incompara em si alguma bondade, de modo que o
velmente melhor do que o ódio; ele não ódio que nos afasta de algum mal afas
poderia ser demasiado grande e nunca ta-nos, pelo mesmo meio, do bem a
deixa de produzir a alegria. Digo que que está unido1 0 5, e a privação desse
este amor é extremamente'bom porque, bem, sendo representada à nossa alma
unindo a nós verdadeiros bens, nos como um defeito que é seu, excita nela
aperfeiçoa outro tanto. Digo também a tristeza: por exemplo, o ódio que nos
que não poderia ser demasiado grande, distancia dos maus costumes de al
pois tudo o que o mais excessivo pode guém distancia-nos pelo mesmo meio
fazer é nos unir tão perfeitamente a de sua convivência, na qual pode
esses bens que o amor que temos parti riamos sem isso auferir algum bem
cularmente por nós mesmos não intro cuja privação nos irrita. E assim em
duz a aí qualquer distinção, o que creio todos os outros ódios pode-se notar
nunca poderá ser mau; e é necessária algum motivo de tristeza.
mente seguido de alegria, porque nos
representa o que amamos como um Art. 141. Do desejo, da alegria e da
bem que nos pertence. tristeza.
poderiamos nos abandonar demais ao mal, ainda que seja apenas para evitá-
amor e à alegria, nem evitar demais o lo; e, muitas vezes, mesmo uma falsa
ódio e a tristeza; mas os movimentos alegria vale mais que uma tristeza cuja
corporais que o acompanham podem causa é verdadeira. Mas não ouso
ser todos nocivos à saúde, quando são dizer o mesmo do amor em relação ao
muito violentos, e, ao contrário, ser-lhe ódio; pois, quando o ódio é justo, afas-
úteis quando são apenas modera ta-nos apenas do objeto que contém o
dos1*0 6. mal de que é bom estar separado, ao
passo que o amor que é injusto nos une
Art. 142. Da alegria e do amor, com a coisas que podem prejudicar, ou, ao
parados com a tristeza e o ódio. menos, que não merecem ser tão consi
deradas por nós como o são, o que nos
De resto, posto que o ódio e a tris avilta e nos rebaixa.
teza devem ser rejeitados pela alma,
mesmo quando procedem de verda Art. 143. Das mesmas paixões, na
deiro conhecimento, com maior razão medida em que se referem ao dese-
devem sê-lo quando provêm de alguma jo109.
falsa opinião. Mas é de duvidar que o
amor e a alegria sejam bons ou não E é mister notar exatamente que o
quando se acham tãô mal fundados; e que acabo de dizer dessas quatro pai
parece-me que, se os considerarmos xões só se verifica quando são conside
precisamente naquilo que são em si radas precisamente em si próprias e
próprios com respeito à alma, podere não nos levam a nenhuma ação; pois,
mos'dizer que, embora a alegria seja na medida em que excitam em nós o
menos sólida e o amor menos vanta desejo, por cujo intermédio regulam os
joso do que quando possuem um me nossos costumes, é certo que todas
lhor fundamento, não deixam de ser aquelas cuja causa é falsa podem
preferíveis à tristeza e ao ódio tão mal prejudicar, e que, ao contrário, todas
fundados1 0 7 : de modo que, nos recon aquelas cuja causa é justa podem ser
tros da vida em que não podemos evi vir, e mesmo que, quando são igual
tar o azar de sermos enganados108, mente mal fundadas, a alegria é comu
agimos sempre melhor pendendo para mente mais nociva que a tristeza,
as paixões que tendem para o bem do porque esta, infundindo retenção e
que para aquelas que dizem respeito ao receio, predispõe de alguma maneira à
1 0 6 Por estar a alma unida a um corpo, o amor e a prudência, ao passo que a outra torna
alegria, intrinsecamente bons, podem ser excessivos inconsiderados e temerários os que se
e o ódio e a tristeza, intrinsecarríente maus, não lhe abandonam.
devem no entanto ser banidos em absoluto. Vê-se
aqui no que a Moral, enquanto baseada na Psicofi-
siologia, difere de uma Moral de “espíritos puros”. Art. 144. Dos desejos cuja realização
Vê-se também no que é perigoso falar de uma Moral
de Descartes: os preceitos podem diferir segundo as só depende de nós.
condições em que o problema é colocado.
107 Ê a concessão extrema que Descartes pode Mas, dado que essas paixões não
fazer na linha de uma Moral psicofisiológica. Des
cartes expressará opinião diferente na carta a Elisa-
beth, de 6 de outubro de 1645, na qual a mesma 109 Com essa última rubrica, aparece a Moral
questão é examinada, não mais psicologicamente, própriamente dita. A questão da verdade ou da fal
porém na perspectiva do bem absoluto. sidade da paixão, que permanecia bastante secun
1 Q 8 É preciso ainda adquirir a certeza de que o dária nos parágrafos precedentes, passa agcira ao
“verdadeiro conhecimento” é impossível no imedia primeiro plano. Daí a oposição entre os arts.1142 e
to. 143. !
AS PAIXÕES DA ALMA 279
podem levar a nenhuma ação, exceto rar com atenção a bondade do que é de
por intermédio do desejo que excitam, desejar.
é particularmente esse desejo que deve
mos ter o cuidado de regular; e é nisso Art. 145. Dos que não dependem
que consiste a principal utilidade da senão de outras causas, e o que é a
Moral110: ora, como disse há fortuna.
pouco111, esse desejo é sempre bom,
quando segue um verdadeiro conheci Quanto às coisas que não dependem
mento, assim não pode deixar de ser de modo algum de nós, por boas que
mau, quando se funda em algum erro. possam ser, jamais devemos desejá-las
E me parece que o erro mais comu com paixão11 5, não só porque podem
mente cometido no tocante aos desejos não acontecer, e por isso nos afligir
é o de não distinguirmos suficiente tanto mais quanto mais tivermos dese
mente as coisas que dependem inteira jado, mas principalmente porque, ocu
mente de nós das que não dependem de pando nosso pensamento, elas nos des
modo algum112: pois, quanto às que viam de dedicar nossa afeição a outras
dependem tão-somente de nós, isto é, coisas cuja aquisição depende de nós.
de nosso livre arbítrio, basta saber que E há dois remédios gerais contra esses
são boas para não poder desejá-las desejos vãos: o primeiro é a generosi
com demasiado ardor11 3, porque é se dade, de que falarei abaixo; o segundo
guir a virtude fazer as coisas boas que é que devemos amiúde refletir sobre a
dependem de nós, e é certo que nunca providência divina, e nos representar
se poderia ter um desejo ardente de que é impossível que alguma coisa
mais pela virtude, além de que, não aconteça de maneira diferente da deter
podendo deixar de lograr o que deseja minada desde toda a eternidade por
mos dessa forma, porquanto só de nós esta providência; de sorte que ela é
é que depende, recebemos sempre a como uma fatalidade ou uma necessi
satisfação que daí esperávamos11 4. dade imutável que cumpre opor à for
Mas a falta que se costuma cometer tuna para destruí-la como uma quime>
nesse particular nunca é desejar dema ra que provém apenas do erro de nosso
siado, mas somente desejar demasiado entendimento116. Pois não podemos
pouco; e o soberano remédio contra desejar senão o que consideramos de
isso é libertar o espírito, tanto quanto uma maneira como possível, e não
possível, de toda espécie de outros podemos considerar possíveis as coisas
desejos menos úteis, e depois procurar que só dependem de nós na medida em
conhecer muito claramente e conside que pensamos que dependem da fortu
na, isto é, que julgamos que possam
110 A Moral não é, portanto, entendida como téc acontecer, e que outrora aconteceram
nica de regulamentação deduzida da explicação do outras semelhantes. Ora, essa opinião
fenômeno psicofísiológico, mas como resposta à
pergunta: como devemos regrar a paixão do desejo? baseia-se apenas no fato de não conhe-
Ela aparece como técnica concernente a uma pai
xão particular.
111 No art. 141. 11 5 Segunda parte da resposta. Cf. Cartas, a Elisa
11 2 Quanto à retomada por Descartes dessa distin beth, maio de 1646.
ção estóica — que permitira responder à questão 11 6 O desconhecimento da concatenação universal
ética —, cf. Cartas, a Elisabeth, 4 de agosto de dos fenômenos provoca não a ilusão do livre arbí
1645. trio, como em Spinoza, mas a crença na fortuna,
ii3. É a primeira parte da resposta. isto é, numa providência caprichosa cujas decisões
.i.1 4 Nota epicurista: a virtude é concebida como são imprevisíveis em si (e que nada tem a ver com o
um meio a serviço da felicidade. Deus cartesiano).
280 DESCARTES
cermos todas as causas que contri sar que, com respeito a nós, nada
buem para cada efeito; pois, quando acontece que não seja necessário e
uma coisa que estimamos depender da como que fatal, de sorte que não pode
fortuna não ocorre, isso testemunha mos sem erro desejar que aconteça de
que alguma das causas necessárias outra forma11 9. Mas, como a maioria
para produzi-la falhou, e, por conse de nossos desejos se estende a coisas
guinte, que era absolutamente impossí que não dependem de nós nem todas
vel, e que jamais aconteceu outra de outrem, devemos exatamente distin
semelhante, isto é, produção da qual guir nelas o que depende apenas de
houvesse faltado também uma causa nós, a fim de estender nosso desejo
semelhante: de modo que, se não tivés tão-somente a isso; e quanto ao mais,
semos ignorado isso de antemão, embora devamos considerar sua ocor
nunca a teríamos considerado como rência inteiramente fatal e imutável, a
possível, nem, por conseguinte, a tería fim de que nosso desejo não se ocupe
mos desejado11 7. de modo algum com isso, não devemos
Art. 146. Dos que dependem de nós e deixar de considerar as razões que
de outrem. levam mais ou menos a esperá-la, a fim
de que essas razões sirvam para regu
Ê mister, portanto, rejeitar inteira lar nossas ações120: pois, por exem
mente a opinião vulgar de que há fora plo, se tivéssemos de tratar de algo em
de nós uma fortuna que faz com que as um lugar onde pudéssemos ir por dois
coisas sobrevenham ou não sobreve caminhos diversos, um dos quais cos
nham, a seu bel-prazer, e saber que tuma ser muito mais seguro do que o
tudo é conduzido pela providência outro, embora talvez o decreto da
divina, cujo decreto eterno é de tal providência seja tal que, se formos
modo infalível e imutável que, exce pelo caminho considerado mais segu
tuando as coisas que este mesmo ro, seremos certamente roubados, e
decreto quis pôr na dependência de que, ao contrário, poderemos passar
nosso livre arbítrio118, devemos pen pelo outro sem qualquer perigo, não
devemos por isso ser indiferentes à
11 7 Não é, pois, a ignorância que é condenável, escolha de um ou de outro, nem repou
mas o fato de julgar possível ou impossível um
acontecimento cuja modalidade (possível ou impos sarmos sobre a fatalidade imutável
sível) só poderemos conhecer quando ele for atual. desse decreto; mas a razão quer que
Primado do atual sobre o virtual, definição da
providência como uma causalidade motriz sem fis escolhamos o caminho que costuma
suras: vemos que a aproximação com os estóicos ser o mais seguro; e nosso desejo deve
não é apenas literal. Sobre o antiplatonismo e o ser realizado nesse particular quando
antiaristotelismo dos estóicos, cf. V. Goldschmidt,
Système Stoicien, págs. 84-85: “Eles haviam cons nós o seguimos, qualquer que seja o
truído um pressuposto metafísico. . . capaz de ali mal que daí nos sobrevenha, porque,
cerçar e orientar uma explicação científica do sendo este mal em relação a nós inevi
mundo, levada até os ínfimos pormenores: pois
nada absolutamente, nem ser nem acontecimento, tável, não temos nenhum motivo de
prescinde de causa ou de fim”. De outro lado, a aspirar a sermos dele isentos, mas
referência ao encadeamento universal, no espírito
do Pórtico, toma inacolhível uma interpretação somente executar da melhor forma o
dessa passagem como afirmação do determinismo
científico. 119 Doutrina estóica da cooperação com o destino.
11 8 Segundo Crisipo e Epicteto, a própria autono 120 A afirmação da fatalidade deve apenas nos
mia e a liberdade que temos de usar as coisas impedir de desejar com paixão as coisas que não
conformemente à nossa natureza entram na ordem dependem de nós, mas não excluir os juízos prová
providencial. veis e nos conduzir ao fatalismo e à indiferença'.
AS PAIXÕES DA ALMA 281
que nosso entendimento pode conhe alegria no mais íntimo da alma, emo
cer, assim como suponho que o execu ção que possui tanto poder que a triste
tamos. E é certo que, quando nos exer za, e as lágrimas que a acompanham
citamos em distinguir assim a em nada podem diminuir sua força. E
$ fatalidade da fortuna, habituamo-nos quando lemos aventuras estranhas
facilmente a regrar de tal modo nossos num livro, ou quando as vemos repre
desejos, na medida em que sua realiza sentadas num teatro, isso excita às
ção não depende senão de nós, que eles vezes em nós a tristeza, outras vezes a
podem sempre nos proporcionar intei alegria, ou o amor, ou o ódio, e geral
ra satisfação. mente todas as paixões, segundo a
diversidade dos objetos que se ofere
Art. 147. Das emoções interiores da cem à nossa imaginação; mas com isso
alma. temos prazer de senti-las erguerem-se
em nós, e esse prazer é uma alegria
Acrescentarei somente mais uma intelectual que pode tanto nascer da
consideração que me parece servir tristeza como de todas as outras
muito para nos impedir de receber paixões.
qualquer incomodidade das paixões;
nosso bem e nosso mal dependem Art. 148. Que o exercício da virtude é
principalmente das emoções interiores um soberano remédio contra as pai
que são excitadas na alma apenas pela xões.
própria alma, no que diferem dessas
paixões, que dependem sempre de Ora, posto que essas emoções inte
algum movimento dos espíritos; e, em riores nos tocam mais de perto e têm,
bora essas emoções da alma estejam por conseguinte, muito mais poder
muitas vezes unidas às paixões que se sobre nos do que as paixões que se
lhes assemelham, podem amiúde tam encontram com elas, e das quais dife
bém encontrar-se com outras, e mesmo rem, é certo que, contanto que a alma
nascer das que lhe são contrárias121. tenha sempre do que se contentar em
Por exemplo, quando um marido chora seu íntimo, todas as perturbações que
sua mulher morta, que (como acontece vêm de outras partes não dispõem de
às vezes) ele ficaria irritado de vê-la poder algum para prejudicá-la; mas
ressuscitada, pode suceder que seu antes servem para aumentar a sua ale
coração seja oprimido pela tristeza que gria, pelo fato de, vendo que não pode
nele provocam o aparato dos funerais e ser por eles ofendida, conhecer com
a ausência de uma pessoa a cujo conví isso sua própria perfeição. E, para que
vio estava acostumado; e pode suceder a nossa alma tenha assim do que estar
que alguns restos de amor ou de pieda contente, precisa apenas seguir estrita
de que se apresentam à sua imaginação mente a virtude1.22. Pois, quem quer
arranquem verdadeiras lágrimas de
122 A ação moral não resulta, portanto, do conhe
seus olhos, não obstante sentir secreta cimento do verdadeiro, mas da tendência para o
melhor. Ela se define menos pela espera objetiva do
121 A tranquilidade da alma pode ficar assim bem do que pelo intento de esperá-lo. Essa dissocia
resguardada pelas emoções da própria alma que ção da sabedoria e da ciência permite, portanto,
podem estar em contradição com as paixões. uma aproximação com a “vontade boa” kantiana.
282 DESCARTES
que haja vivido de tal maneira que sua nunca têm poder suficiente para per
consciência não possa censurá-lo de turbar a tranquilidade de sua alma.
nunca ter deixado de fazer todas as 123 Guéroult (op. cit., II, 264), assinalando que
esse texto desmente o art. 50, acrescenta: “Pode-se
coisas que julgou serem as melho tentar conciliar esses textos concebendo que, no
res123 (que é o que chamo aqui seguir homem que tem consciência de haver agido para o
que ele cria ser o melhor, isto é, virtuosamente, este
a virtude), recebe daí uma satisfação pesar não poderia perturbar a tranquilidade da
alma. Na realidade, Descartes oscila entre duas
tão poderosa para tomá-lo feliz que os posições diferentes sem poder optar definitivamente
mais violentos esforços da paixão por nenhuma delas”.
TERCEIRA PARTE
do que por falta de boa vontade que as são naturalmente levados afazer gran
cometem; e, como não pensam ser des coisas, e todavia a nada empreen
muito inferiores aos que possuem mais der de que não se sintam capazes; e,
bens ou honras, ou mesmo mais espíri como nada estimam mais do que fazer
to, mais saber, mais beleza, ou em bem aos outros homens e desprezar o
geral que os superam em algumas ou seu próprio interesse, por esse motivo
tras perfeições, também não se julgam são sempre perfeitamente corteses, afá
muito acima dos que superam, porque veis e prestativos para com todos. E
todas essas coisas lhes parecem muito com isso são inteiramente senhores de
pouco consideráveis em comparação suas paixões135, particularmente dos
com a boa vontade, pela qual tão-so desejos, do ciúme e da inveja, porque
mente eles se apreciam, e que supõem não há coisa cuja aquisição dependa
também existir, ou ao menos poder deles que julguem valer bastante para
existir, em cada um dos outros ho ser muito desejada; e do ódio para com
mens 1 3 3. os homens, porque os estimam a todos;
e do medo, porque a confiança que
Art. 155. Em que consiste a humildade depositam na sua própria virtude os
virtuosa. tranquiliza; e enfim da cólera, porque,
apreciando muito pouco todas as coi
Assim, os mais generosos costumam sas dependentes de outrem, nunca con
ser os mais humildes; e a humildade cedem tanta vantagem a seus inimigos
virtuosa consiste apenas em que a a ponto de reconhecer que são por eles
reflexão que fazemos sobre a debili ofendidos.
dade de nossa natureza e sobre as fal
tas que podemos ter cometido outrora, Art. 157. Do orgulho.
ou somos capazes de cometer agora,
que não são menores do que as que Todos os que concebem boa opinião
podem ser cometidas por outros, é de si próprios por alguma outra causa,
causa de não nos preferirmos a nin qualquer que seja, não têm verdadeira
guém e de pensarmos que os outros, generosidade, mas somente orgulho,
tendo seu livre arbítrio tanto quanto que é sempre muito vicioso, embra o
nós, também podem usá-lo bem. seja tanto mais quanto a causa pela
qual nós nos estimamos for mais injus
Art. 156. Quais são as propriedades da ta; e a mais injusta de todas é quando
generosidade e como ela serve de remé se é orgulhoso sem nenhum motivo;
dio contra todos os desregramentos^3 4 isto é, sem que se pense por isso haver
das paixões. em si qualquer mérito pelo qual se
deva ser estimado, mas só porque não
Os que são generosos dessa forma se faz caso do mérito, e porque, imagi
133 Ela possibilita também a fundação de uma nando-se que a glória não passa de
Moral universal, isenta de preconceitos de casta ou uma usurpação, crê-se que os que se
de “classe”. Embora a “boa vontade” cartesiana
nada tenha a ver com a “vontade boa” kantiana, atribuem mais glória são os que a têm
vemos surgir, aqui, uma exigência bastante compa
rável de universalidade ética. 135 A generosidade não extirpa as paixões: é a
13 4 Cumpre distinguir desregramento e excesso reguladora destas. Daí sua importância em Moral,
das paixões, pois o excesso constitui apenas um dos pois a principal utilidade daquela é justamente a
casos do desregramento. “regulação do desejo” (art. 144).
28,8 DESCARTES
mais. Esse vício é tão des arr azo ado e resolutos, e, como se não dispusés
absurdo, que eu teria dificuldade em semos do uso inteiro de nosso livre
acreditar que existem homens que se arbítrio, de não podermos impedir-
deixam levar por ele, se jamais alguém nos de fazer coisas das quais sabemos
tivesse sido louvado injustamente; mas que nos arrependeremos depois136137; e
a lisonja é tão comum em toda parte também no fato de crermos que não'
que não há homem, por defeituoso que podemos subsistir por nós próprios,
seja, que não se veja muitas vezes esti- nem passar sem muitas coisas cuja
.mado por coisas que não merecem ne aquisição depende de outrem. Assim é
nhum louvor, ou mesmo que merecem diretamente oposta à generosidade; e
censura; o que dá ocasião aos mais acontece muitas vezes que os que pos
ignorantes e aos mais estúpidos de suem o espírito mais baixo são os mais
incidirem nesta espécie de orgulho1 3 6. arrogantes e soberbos, da mesma ma
neira como os mais generosos são os
Art. 158. Que os seus efeitos são mais- modestos e os mais humildes.
contrários aos da generosidade. Mas, enquanto os que têm o espírito
forte e generoso não mudam de
humor nas prosperidades ou adversi-
Mas, qualquer que seja a causa pela
qual alguém se estima, se for diferente dades que lhes ocorrem, os que o têm
da vontade que se sente em si mesmo débil e abjeto são conduzidos apenas
de usar sempre bem o próprio livre pela fortuna, e a prosperidade não os
arbítrio, da qual eu disse que vem a infla menos que a adversidade os torna
generosidade, ela produz sempre um humildes. Mesmo se vê amiúde que se
orgulho mui censurável, e que é tão rebaixam vergonhosamente perante
diversa dessa verdadeira generosidade aqueles de quem esperam algum pro
que produz efeitos inteiramente contrá veito ou temem algum mal, e que ao
rios; pois todos os outros bens, como o mesmo tempo se elevam insolente
espírito, a beleza, as riquezas, as hon mente acima daqueles de quem não
ras, etc., costumando ser tanto mais esperam nem temem coisa alguma.
apreciados quanto em menos pessoas
Art. 160. Qual é o movimento dos
se encontrem, e sendo mesmo para a
maioria de tal natureza que não podem espíritos nessas paixões.
ser comunicados a muitos, isso leva os
orgulhosos a esforçarem-se por rebai De resto, é fácil reconhecer que o
xar todos os outros homens, e, sendo orgulho e a baixeza não são somente
escravos de seus desejos, têm a alma vícios, mas também paixões, porque a
sua emoção aparece fortemente no
incessantemente agitada pelo ódio, in
veja, ciúme ou cólera. exterior dos que são subitamente infla
dos ou abatidos por alguma nova
Art. 159. Da humildade viciosa. circunstância; mas é de duvidar que a
generosidade e a humildade, que são
virtudes, possam também ser paixões,
Quanto à baixeza ou humildade
porque seus movimentos aparecem
viciosa, consiste principalmente no
fato de nos sentirmos fracos ou pouco 137 A humildade viciosa engendra o oportunismo e
a frouxidão (o retrato que segue é o do “arrivista”);
136 A generosidade, virtude ética, opõe-se ao orgu mas,' fundamentalmente, ela consiste em assumir
lho, produto da adulação social. Esta distinção com complacência a nossa fraqueza e, em caso de
entre o valor moral e os falsos valores sociais é um necessidade, nos desculpar dela. No que já está pró
dos aspectos mais importantes desta Terceira Parte. xima da “má-fé” no sentido sartriano.
AS PAIXÕES DA ALMA 289
menos, e porque se afigura que a virtu que os qué menos se conhecem são os
de não concorda tanto com a paixão mais sujeitos a’se ensoberbecerem e a
como o faz o vício. Todavia, não vejo se humilharem mais do que devem,
razão que impeça que o mesmo movi- porque tudo quanto lhes acontece de
,;mento dos espíritos que serve para for- novo os surpreende e faz com que, atri-
-:talecer um pensamento, quando tem buindo-o a si próprios, se admirem e
um fundamento que é mau, não o que se estimem õu se desprezem, con
possa fortalecer também, quando o seu forme julguem que o que lhes sucede é
fundamento é justo; e como o orgulho oü não em seu proveito. Mas, como
e a generosidade consistem apenas na. muitas vezes após uma coisa que os
boa opinião que temos de nós próprios, ensoberbeceu sobrevêm outra que os
e só diferem em que esta opinião é humilha, o movimento de suas paixões
injusta num e justa na outra, parece- é variável;-1 ao contrário, nada há na
me que podemos relacioná-los a uma
generosidade que não seja compatível
mesma paixão, que é excitada por um
com a humildade virtuosa, nem aliás
movimento composto pelos da admira
que as possa mudar, ó que torna seus
ção, da alegria e do amor, tanto do que
movimentos firmes, constantes e sem
temos por nós próprios como do que pre muito semelhantes a si próprios.
temos pela coisa que leva alguém a se
estimar: como, ao contrário, o movi Mas não surgem tão de surpresa, por
mento que excita a humildade, quer quanto os que se estimam dessa manei
virtuosa, quer viciosa, é composto dos ra conhecem suficientemente quais são
da admiração, da tristeza e do amor as causas que os fazem estimarem-se;
que se sente por si próprio, misturado todavia, pode-se dizer que essas causas
com o ódio que se nutre pelos próprios são tão maravilhosas (a saber, o poder
defeitos, que fazem com que a gente se de usar nosso livre arbítrio, que nos
despreze; e toda a diferença que obser leva a nos apreciarmos a nós mesmos,
vo nesses movimentos é que o da admi e as imperfeições do sujeito em quem
ração goza de duas propriedades: a está esse poder, que nos levam a não
primeira, que a surpresa a torna forte nos estimarmos demais) que todas as
desde o começo, e a outra, que é igual vezes que no-las representamos de
em sua continuação, isto é, que os espí novo proporcionam sempre nova ad
ritos continuam movendo-se na mesma miração.
proporção no cérebro. Dessas proprie
dades a primeira encontra-se bem mais Art. 161. Como pode ser adquirida a
no orgulho e na baixeza do que na generosidade.
generosidade e na humildade virtuosa;
e, ao contrário, a última se nota mais
naquelas do que nessas duas outrasj a É mister notar que o que chamamos
razao disso é que o vício provem comumente virtudes são hábitos da
ordinariamente da ignorância138, e alma que a dispõem a certos pensa
mentos, de modo que são diferentes
13 8 Como observa Lívio Teixeira, é assaz difícil destes pensamentos, mas podem pro
encontrar um critério objetivo que possa separar
orgulho e generosidade ( vício e virtude), dado duzi-los e reciprocamente serem por
que nascem do mesmo mecanismo psicofísiológico. eles produzidas. Ê preciso notar tam
Aparentemente, o critério é puramente fisiológico:
variação ou regularidade no movimento dos espíri bém que tais pensamentos podem ser
tos. Na realidade, é de ordem intelectual (conheci gerados somente pela alma, mas ocor
mento ou ignorância que engendra a surpresa). Cf. o
adágio canis peccans est ignorans que. Descartes' re muitas vezes que algum movimento
relembra aMerserin,e (27 de abril de 1637). dos espíritos os fortaleça e, nesse caso,
290 DESCARTES
são ações de virtude e ao mesmo ção bem merece ser observada1 43.
tempo paixões da alma139; assim, em
bora não haja virtude à qual o bom Art. 162. Da veneração.
nascimento pareça contribuir tanto
como a que nos leva a nos apreciarmos A veneração ou o respeito é umã|
apenas segundo o nosso'justo valor, e inclinação da alma não só para esti-<
ainda que seja fácil crer que todas as mar o objeto que reverencia mas tam
bém para se lhe submeter com algum
almas postas por Deus em nossos cor
temor, a fim de procurar tomá-lo favo
pos não são igualmente nobres e for rável; de maneira que só alimentamos
tes1 40 (o que me levou a chamar esta veneração pelas causas livres que jul
virtude de generosidade1 41, segundo o gamos capazes de nos fazerem bem ou
uso de nossa língua, de preferência a mal, sem que saibamos qual dos dois
magnanimidade, segundo o uso da hão de fazer; pois temos amor e devo
Escola, onde não é muito conhecida), é ção mais do que simples veneração por
certo, no entanto, que a boa formação aquelas de quem não esperamos senão
muito serve para corrigir os defeitos do o bem e temos ódio por aquelas de
nascimento, e que, se nos ocuparmos quem não esperamos senão o mal; e, se
muitas vezes em considerar o que é. o não julgarmos que a causa deste bem
livre arbítrio e quão grandes são as ou deste mal seja livre, não nos subme
vantagens advindas do fato de se ter teremos a ela para procurar torná-la
uma firme resolução de usá-lo bem, favorável. Assim, quando os pagãos
assim como, de outro lado, quão inú mostravam veneração pelos bosques,
teis e vãos são todos os cuidados que fontes ou montanhas, não eram pro
afligem os ambiciosos, podemos exci priamente essas coisas mortas que
tar em nós a paixão e em seguida reverenciavam, mas as divindades que
adquirir a virtude da generosidade1 42, julgavam presidi-las. E o movimento
dos espíritos que provoca esta paixão
sendo esta como que a chave de todas compõe-se daquele que excita a admi
as outras virtudes e um remédio geral ração e daquele que excita o medo, de
contra todos os desregramentos das que falarei adiante.
paixões; parece-me que tal considera-
Art. 163. Do desdém.
13 9 Além de seus aspectos intelectual e volitivo, a
generosidade é também uma paixão: a regularidade
do curso dos espíritos que a opõe às paixoes-vícios Do mesmo modo, o que chamo des
não a subtrai às leis do fenômeno passional. dém é a inclinação da alma para des
140 “O entendimento de alguns não é tão bom
quanto o de outros”, observa Descartes na dedica prezar uma causa livre, julgando a seu
tória dos Princípios e “os que, com vontade cons= respeito que,-embora por sua natureza
tante de bem fazer e cuidado muito particular de se seja capaz de fazer bem ou mal, está,
instraÍT, têm também excelente espírito, alcançam
sem dúvida um grau mais elevado de sabedoria do 1 43 “Não é claro”, pergunta Henri Lefebvre a pro
que os outros.” (Ibid.) Pode haver ainda diferenças pósito desse texto, “que Descartes se dirige às duas
na “força da alma” evocada nos arts. 36 e 48. classes dominantes do século XVII, a burguesia e o
141 A fim de sublinhar o seu caráter em parte feudalismo? Que lhes propõe um ideal comum que
inato. lhes permitiría a reconciliação?. . . Ideologica
142 A paixão de generosidade predispõe à virtude mente, essa coexistência momentânea exigiu a
de generosidade, entendida como habitus implan determinação de uma figura do homem, aceitável ao
tado na alma. Esta não coincide de pronto com mesmo tempo pela burguesia e pela classe feudal.”
aquela. (Descartes, Ed. Minuit, págs. 249 a 255.). |
AS PAIXÕES DA ALMA 291
no entanto, tão abaixo de nós que não disposição da alma que a'persuade de
nos pode causar nem um nem outro. E que a coisa desejada não advirá; e é de
o movimento dos espíritos que o excita notar que, embora essas duas paixões
é composto dos que provocam a admi sejam contrárias, é possível tê-las as
ração, a segurança ou a ousadia. duas juntas, a saber, quando se repre
sentam ao mesmo .tempo diversas
Art. 164. Do uso dessas duas paixões. razões, das quais umas fazem julgar
que a realização do desejo é fácil e ou
São a generosidade, a fraqueza do tras a fazem parecer difícil.
espírito ou a baixeza que determinam o
bom e o mau uso dessas duas paixões: Art. 166. Da segurança e do desespero.
pois, quanto mais a alma é nobre e E nunca uma dessas paixões acom
generosa, tanto maior é a inclinação panha o desejo sem que não deixe
para tributar a cada qual o que lhe algum lugar à outra: pois, quando a
pertence144; e assim não se tem esperança é tão forte que expulsa intei
somente uma mui profunda humildade ramente o temor, ela muda de natureza
perante Deus, mas também se rende e se chama segurança ou confiança; e,
sem repugnância toda a honra e o res quando estamos certos de que aquilo
peito que é devido aos homens, a cada que desejamos advirá embora conti
um segundo o grau e a autoridade que nuemos a querer que advenha, deixa
tem no mundo, e desprezam-se apenas mos, no entanto, de ser agitados pela
os vícios. Ao contrário, os que pos paixão do desejo, que levava a buscar
suem o espírito baixo e fraco estão com inquietação sua ocorrência; do
sujeitos a pecar por excesso, às vezes mesmo modo, quando o receio é tão
por reverenciarem e temerem coisas extremo que tira todo lugar à esperan
que são dignas unicamente de despre ça, converte-se em desespero; e esse
zo, e outras vezes por desdenharem desespero, representando a coisa como
insolentemente as que mais merecem impossível, ( extingue inteiramente o
respeito; e passam amiúde mui pronta desejo, o qual só se dirige às coisas
mente da extrema impiedade à supers possíveis.
tição, depois da superstição à impieda
de, de sorte que não há vício nem Art. 167. Do ciúme.
desregramento de espírito de que não
sejam capazes. O ciúme é uma espécie de temor que
se relaciona ao desejo de conservar a
Art. 165. Da esperança e do temor. posse de algum bem; e não provém
tanto da força das razões que fazem
A esperança é uma disposição da julgar que se pode perdê-lo como da
alma para se persuadir de que advirá o grande estima que se lhe concede, a
que deseja, a qual é causada por um qual leva a examinar até os menores
movimento particular dos espíritos, a motivos de suspeita e a tomá-los por
saber, pelo da alegria e do desejo mis razões fortemente consideráveis.
turados em conjunto; e o temor é outra Art. 168. Em que essa paixão pode ser
144 A generosidade, envolvendo uma justa aprecia
honesta.
ção da liberdade, impede, assim, o desregramento
das paixões que concernem às “causas livres”. . E, porque se deve ter mais cuidado
292 DESCARTES
mam muito os males que lhes aconte sar com razão apenas dos bens de for
cem e consideram-nos dignos deles. tuna; pois, quanto aos da alma ou
mesmo do corpo, na medida em que os
Art. 180. Do uso da troça. temos de nascença, é suficiente para
sermos dignos deles tê-los recebido de
Pelo que respeita à troça modesta, Deus, antes de estarmos capacitados a
que repreende utilmente os vícios, cometer qualquer mal.
fazendo-os parecer ridículos, sem que
entretanto a gente mesma se ria disso Art. 183. Como pode ser justa ou
nem testemunhe nenhum ódio contra injusta.
as pessoas, não é uma paixão, mas
uma qualidade de homem de bem, que
patenteia a alegria de seu humor e a Mas quando a fortuna envia bens a
tranquilidade de sua alma, as quais alguém que verdadeiramente não os
constituem marcas de virtude e muitas merece, e quando a inveja não é provo
vezes também a finura de seu espírito, cada em nós senão porque, amando
por saber dar uma aparência agradável naturalmente a justiça, ficamos des-
às coisas de que zomba. gostosos pelo fato de ela não ser obser
vada na distribuição desses bens, é um
Art. 181. Da utilidade do riso na troça. zelo que pode ser desculpável, mor
mente quando o bem que invejamos a
E não é desonesto rir quando se outros é de tal natureza que pode
ouvem as troças de um outro; elas converter-se em mal nas mãos deles;
podém mesmo ser tais que significaria como1 49 é o caso de algum cargo ou
estar pesaroso não se rir delas; mas, serviço em cujo exercício eles possam
quando troçamos nós próprios, é mais comportar-se mal, e desejamos para
' conveniente abstermo-nos disso, a fim nós o mesmo bem e somos impedidos
de não parecermos surpresos com as de tê-lo, porque outros menos dignos o
coisas que dizemos, nem admirados possuem, isso torna essa paixão mais
com a finura que temos em inventá- violenta, e ela não deixa de ser descul
los; e isto faz com que surpreendam pável, desde que o ódio nela contido se
tanto mais aos que as Ouvem. relacione apenas com a má distribui
ção do bem que se inveja e não com as
Art. 182. Da inveja. pessoas que o possuem ou o distri
buem. Mas há poucas que sejam tão
O que se chama comumente inveja é justas e tão generosas a ponto de não
um vício que consiste numa perversi alimentar ódio por aqueles que os
dade de natureza que leva certa gente a impedem de adquirir um bem que não
se desgostar com o bem que vê aconte é comunicável a muitos, e que haviam
cer aos outros homens; mas sirvo-me
desejado para eles próprios, embora os
aqui dessa palavra para significar uma que o adquiriram sejam tanto ou mais
paixão que nem sempre é viciosa. A in dignos. E o que é ordinariamente mais
veja portanto, enquanto é uma paixão, invejado é a glória; pois, embora a dos
é uma espécie de tristeza mesclada de
outros não impeça que a ela possamos
ódio que nasce do fato de se ver acon
tecer o bem àqueles que julgamos 1 49 No que Descartes afasta-se de Aristóteles, para
indignos dele: o que só podemos pen quem a inveja é sempre viciosa. Cf. art. 195.
296 DESCARTES
aspirar, ela torna, todavia, o seu acesso Art. 186. Quais são os mais compas
mais difícil e encarece o seu preço. sivos.
Art. 184. De onde vem que os invejo Os que se sentem muito fracos e
sos estejam sujeitos a ter a tez plúm muito expostos às adversidades da for
bea. tuna parecem ser mais inclinados do
que os outros a esta paixão, porque se >
De resto, não há nenhum vício que representam o mal de outrem como
prejudique tanto a felicidade dos ho podendo acontecer-lhes; e assim são
mens como o da inveja: pois, os que comovidos à piedade mais pelo amor
trazem esta mácula, além de se afligi que dedicam a si próprios do que pelo
rem a si próprios, perturbam também que dedicam aos outros.
ao máximo de seu poder o prazer dos
outros e têm ordinariamente a tez Art. 187. Como os mais generosos são
plúmbea, isto é, mesclada de amarelo e tocados por essa paixão.
preto como que de sangue pisado: daí
vem que a inveja seja chamada livor Entretanto, os que são mais genero
em latim; o que concorda muito bem sos e têm o espírito mais forte, de
com o que foi dito mais acima dos modo que não temem nenhum mal em
movimentos do sangue na tristeza e no relação a si próprios e se mantêm para
ódio; pois este faz com que a bile ama além do poder da fortuna, não estão
rela, proveniente da parte inferior do isentos de compaixão quando vêem a
fígado, e a negra, proveniente do baço, imperfeição dos outros homens e
espalhem-se do coração pelas artérias ouvem suas queixas; pois é uma parte
em todas as veias; e aquela faz com da generosidade ter boa vontade para
que o sangue das veias tenha menos com todos. Mas a tristeza desta comi
calor e corra mais lentamente do que seração não é mais amarga1 50; e,
de ordinário, o que basta para tornar como a que é causada pelas ações
lívida a cor. Mas como a bile, tanto a funestas que se vê representarem num
amarela quanto a negra, pode também teatro, ela está mais no exterior e no
ser enviada às veias por muitas outras sentido do que no interior da alma, a
causas, e como a inveja não as impele qual tem, entretanto, a satisfação de
para aí em quantidade bastante grande pensar que cumpre o seu dever, pelo
para mudar a cor da tez, a não ser que fato de compadecer-se dos aflitos. E há
seja muito grande e de longa duração, nisto a diferença de que, ao passo que
não se deve pensar que todos os que o vulgo tem compaixão dos que se las
apresentam essa cor sejam propensos a timam, porque pensa que os males que
ela. sofrem são muito deploráveis, o princi
pal objeto da compaixão dos maiores
Art. 185. Da compaixão. homens é a fraqueza dos que vêem
lastimar-se, porque não julgam que ne
A compaixão é uma espécie de tris nhum acidente que possa acontecer
teza misturada de amor ou de boa von seja um mal tão grande quanto a
tade para com aqueles a quem vemos covardia dos que não podem sofrer
sofrer algum mal de que os julgamos com constância; e, embora odeiem os
indignos. Assim, é contrária à inveja vícios, nem por isso odeiam os que a
em virtude de seu objeto, e à zombaria
por considerá-los de outra maneira. 1 50 Cf. Cartas, a Elisabeth, de 18 de maio de 1605.
AS PAIXÕES DA ALMA 297
eles estão sujeitos, e sentem por eles serve senão para produzir um orgulho
apenas compaixão1 51. e uma arrogância impertinente: é o que
se pode observar particularmente nos
Art. 188. Quais são os que não são que, crendo-se devotos, são apenas
por ela tocados. carolas e supersticiosos; isto é, que, à
sombra de irem amiudadamente à igre
Mas só os espíritos malignos e inve ja, de recitarem muitas preces, de usa
josos odeiam naturalmente todos os rem cabelos curtos, de jejuarem, de
homens, ou então os que são tão bru darem esmola, pensam ser inteira
tais, e de tal forma estão cegados pela mente perfeitos, e imaginam-se tão
boa fortuna, ou desesperados pela má, grandes amigos de Deus, que nada
que pensam que nenhum mal possa poderiam fazer que lhe desagradasse, e
acontecer-lhes, são insensíveis à com que tudo quanto lhes dita sua paixão é
paixão. bom zelo, embora ela lhes dite às vezes
os maiores crimes que os homens pos
Art. 189. Por que esta paixão excita a. sam cometer,’ como trair cidades,
chorar. matar príncipes, exterminar povos in
teiros, só porque não seguem as suas
opiniões1 52.
Além disso, chora-se mui facilmente
nessa paixão, porque o amor, enviando
muito sangue ao coração, faz com que Art. 191. Do arrependimento.
saiam muitos vapores pelos olhos, e
porque a frialdade da tristeza, retar O arrependimento é diretamente
dando a agitação desses vapores, os contrário à satisfação de si próprio, e é
faz transformarem-se em lágrimas, se uma espécie de tristeza proveniente de
gundo o que foi dito acima. se julgar que se praticou qualquer má
ação; e é muito amarga, porque sua
causa procede apenas de nós; o que
Art. 190. Da satisfação de si próprio.
não impede, no entanto, que seja muito
útil quando é verdade que a ação de
A satisfação que sempre têm os que
que nos arrependemos é má e quando
seguem constantemente a virtude é um
temos disso um conhecimento certo,
hábito de sua alma que se chama
visto que ela nos incita a proceder me
tranquilidade e descanso de consciên
lhor outra vez. Mas acontece muitas
cia; mas a que se adquire de novo
vezes que os espíritos fracos se arre
quando se praticou recentemente algu
ma ação que se julga boa é uma pai pendem de coisas que praticaram sem
saber seguramente que eram más;
xão, a saber, uma espécie de alegria, a
persuadem-se disso unicamente porque
qual creio ser a mais doce de todas,
o .temem; e se houvessem feito o
porquanto sua causa depende apenas
contrário, arrepender-se-iam da mesma
de nós próprios. Todavia, quando essa
maneira: o que constitui neles uma
causa não é justa, isto é, quando as
imperfeição digna de compaixão; e os
ações de que se tira muita satisfação
não são de grande importância, ou são 1 52 “Os que são verdadeiramente pessoas de bem
mesmo viciosas, ela é ridícula e não não adquirem a reputação de ser devotos tanto
quanto os supersticiosos e hipócritas.” (Dedicatória
1 61 Esta piedade do generoso, no fim de contas dos Princípios.) Essa passagem dá testemunho da
desdenhosa, permite-nos medir quão distante está a separação instituída entre moral e religião: a fé não
generosidade da caridade cristã. poderia dispensar a moralidade definida laicamente.
298 DESCARTES
abundância e à natureza da bile a que Art. 201. Que há duas espécies de cóle
está misturado, excita um calor mais ra e os que têm mais bondade são os
áspero e mais ardente do que o que mais sujeitos àprimeira.
podem aí excitar o amor ou a alegria.
Isso nos adverte de que se podem
Art. 200. Por que os que ela faz enru- distinguir duas espécies de cólera: uma
bescer são menos de recear do que os que é muito rápida e se manifesta
que ela faz empalidecer. muito por fora, mas que no entanto
tem pouco efeito e pode facilmente
aplacar-se; outra que não aparece
E os sinais exteriores dessa paixão tanto no início, mas que rói mais o
são diferentes, conforme os diversos coração e tem efeitos mais perigosos.
temperamentos das pessoas e a diversi Os que possuem muita bondade e
dade das outras paixões que a com muito amor são os mais sujeitos à pri
põem ou se lhe juntam. Assim, há os meira; pois ela não nasce de um pro
que empalidecem ou tremem quando fundo ódio, mas de uma pronta aver
se encolerizam e há os que enrubescem são que os surpreende, porque, sendo
ou mesmo choram; e julga-se comu propensos a imaginar que todas as coi
mente que a cólera dos que empali sas devem seguir segundo a maneira
decem é mais de temer do que a cólera que julgam ser a melhor, tão logo
dos que enrubescem: a razão disso é acontecem de outra forma admiram-se
que, quando não se quer, ou não se e ofendem-se, amiúde, mesmo sem que
pode tirar vingança de outra forma, ex a coisa os haja tocado em particular,
visto que, tendo muita afeição, interes-
ceto pela expressão ou por palavras,
emprega-se todo o calor e toda a força sam-se por aqueles a quem amam tal
como por si próprios1 5 7. Assim, o que
desde o início da comoção, o que é
seria, para outro, motivo apenas de
causa de enrubescer; além do que, às
indignação, é para eles motivo de cóle
vezes, o pesar e a piedade que se tem ra; e porque a inclinação que têm para
por si próprio, porque a gente não amar os leva a ter muito calor e muito
pode vingar-se de outra maneira, são sangue no coração, a aversão que os
causas de chorar. E, ao contrário, os surpreende não pode enviar para ele
que se reservam e se decidem a uma tão pouca bile que não cause de início
maior vingança tornam-se tristes por grande emoção neste sangue; mas esta
que se julgam a isso obrigados pela emoção quase não dura, porque a
ação que os põe em cólera; e sentem força da surpresa não continua e por
algumas vezes receio dos males que que, tão logo se apercebem de que o
podem seguir-se da resolução por eles motivo que os irritou não devia emo
tomada, o que os toma primeiro páli cioná-los tanto, arrependem-se1 58.
dos, frios e trêmulos; mas, quando che
gam em seguida a executar a sua vin 157 Cf. Cartas, a Chanut, l.° de fevereiro de 1647.
gança, esquentam-se tanto mais 1 58 “São comumente os melhores homens que,
vendo de um lado a morte de um filho e de outro o
quanto mais frio sentiram no começo, perigo de um irmão, são por isso mais violenta
tal como vemos que as febres que se mente comovidos. Eis por que as faltas assim come
tidas, sem nenhuma malícia premeditada, são, pare-
iniciam pelo frio costumam ser as mais ce-me, as mais desculpáveis.” (Cartas, a Huyghens,
fortes. 1648.) !
AS PAIXÕES DA ALMA 301
Art., 202. Que são as almas fracas e remédio que se possa encontrar contra
baixas que se deixam dominar pela seus excessos, porque, levando-nos a
outra. apreciar muito pouco todos os bens
que podem ser arrebatados, e ao
A outra espécie de cólera, em que contrário, a estimar muito a liberdade
predomina o ódio e a tristeza, não é de e o império absoluto de nós próprios,
começo tão aparente, a não ser talvez e, ainda, a deixar de tê-lo quando qual
porque faz empalidecer o rosto; mas quer pessoa nos pode ofender, ela faz
sua força é aumentada pouco a pouco com que tenhamos apenas desprezo ou
pela agitação de ardente desejo de se quando muito indignação em face das
vingar excitado no sangue, o qual, injúrias com que os outros costumam
estando misturado com a bile que é ofender-se1 59.
impelida para o coração da parte infe
rior do fígado e do baço, provoca nele Art. 204. Da glória.
um calor fortemente áspero e picante.
E como são as almas mais generosas O que recebe aqui o nome de glória
que sentem mais reconhecimento, é uma espécie de alegria fundada no
assim são as mais orgulhosas, mais amor que se tem por si próprio e que
baixas e mais débeis que se deixam provém da opinião ou da esperança de
mais dominar por essa espécie de cóle sermos louvados por alguns outros.
ra; pois as injúrias parecem tanto Assim, é diferente da satisfação inte
maiores quanto mais o orgulho nos rior que nasce da opinião de se ter feito
leva a nos estimarmos a nós próprios, alguma boa ação; pois às vezes somos
e também tanto maiores quanto mais louvados por coisas que não cremos
apreciamos os bens que elas tiram, os ser boas e censurados por outras que
quais se estimam tanto mais quanto .cremos ser melhores: mas uma e outra
mais fraca e mais baixa é a alma, por são espécies de estima que temos por
que são bens que dependem de outrem. nós próprios, bem como espécies de
alegria; pois é motivo de nos apre
ciarmos o ver que somos apreciados
Art. 203. Que a generosidade serve de pelos outros1 60.
remédio contra seus excessos.
Art. 205. Da vergonha.
Demais, ainda que essa paixão seja
útil para nos dar vigor a fim de repelir A vergonha, ao contrário, é uma
ãs injúrias, não há, todavia, nenhuma espécie de tristeza também fundada no
de que se devam evitar os excessos amor a si próprio e que provém da opi
com mais cuidado, porque, pertur nião ou do temor de sermos censura-
bando o juízo, levam muitas vezes a 1 59 Cf. Cartas, a Chanut, l.° de novembro de
cometer faltas de que depois se tem 1646. A generosidade, por implicar o conhecimento
do verdadeiro valor do homem, o livre arbítrio, é o
arrependimento, e mesmo porque algu meio de nos curar da cólera, sem que possamos ser
mas vezes impedem que essas injúrias acusados de covardia. A gente só se livra da cólera
sejam tão bem repelidas como pode livrando-se da excessiva auto-estima e da suscetibi-
lidade è injúria daí decorrente. Nisso Descartes se
riamos fazer se sentíssemos menos aparta uma vez mais do ideal aristocrático.
emoção. Mas, como nada há que a 1 60 Análise que pode ser aplicada à glória come-
tome mais excessiva do que o orgulho, liana — ao mesmo tempo estima por si próprio e
creio que a generosidade é o melhor amor-próprio social.
302 DESCARTES
dos; é, além do mais, uma espécie de em que uma e outra são boas, as.sim
modéstia ou de humildade e descon como a ingratidão se opõe ao reconhe
fiança de ,si próprio: pois, quando a cimento e a crueldade à compaixão. E
gente se estima tanto que não pode a principal causa do descaramento
imaginar-se desprezada por ninguém, decorre de termos recebido muitas
não se pode facilmente ter vergonha. vezes grandes afrontas; pois não há
pessoa que, quando jovem, não imagi
Art. 206. Do uso dessas duas paixões. ne que o louvor é um bem e a infâmia
um mal muito mais importantes à vida
Ora, a glória e a vergonha têm o do que se verifica por experiência mais
mesmo uso pelo fato de nos incitarem tarde, quando, tendo-se recebido algu
à virtude, uma''pela esperança e a oútra mas afrontas assinaladas, a gente se vê
pelo temor; é somente necessário ins inteiramente privada de honra e des
truir o juízo no tocante ao que é verda prezada por todos. Eis por que se tor
deiramente digno de censura ou lou nam descarados os que, não medindo o
vor, a fim de não ficarmos bem e o mal senão pelas comodidades
envergonhados de proceder bem e não do corpo, vêem que continuam gozan
auferirmos vaidade de nossos vícios, do destas, após tais afrontas, tanto
como acontece a muitos. Mas não é quanto antes, ou mesmo às vezes bem
bom despojar-se inteiramente dessas mais, porque ficam desobrigados de
paixões, tal como faziam outrora os cí muitas coerções que a honra lhes
nicos; pois, ainda que o povo julgue impunha e porque, se a perda de bens
muito mal, dado que não podemos estiver unida à sua desgraça, encon-
viver sem ele, e que nos importa ser tram-se pessoas caridosas que Ihos
mos estimados por ele, devemos mui dão.
tas vezes seguir suas opiniões mais do
que as nossas, no tocante ao exterior Art. 2Ó8. Do fastio.
de nossas ações1 61.
O fastio é uma espécie de tristeza
Art. 207. Da impudência. proveniente da mesma causa de que
proveio antes a alegria; pois somos de
A impudência ou o descaramento, tal forma compostos, que a maioria
que é um desprezo pela vergonha, e das coisas de que desfrutamos são
amiúde também pela glória, não é uma boas em relação a nós apenas por certo
paixão, porque não há em nós nenhum tempo, e tornam-se em seguida incô
movimento particular dos espíritos que modas: o que transparece principal
a excite; mas é um vício oposto à ver mente no beber e no comer, que são
gonha, e também à glória, na medida úteis apenas enquanto temos apetite e
são nocivos quando não mais o temos;
161 O Discurso falava das “opiniões mais modera e, porque cessam de ser então agradá
das e mais afastadas do excesso que fossem comu-
mente recebidas ná prática pelos mais sensatos veis ao gosto, chamou-se essa paixão
daqueles com os quais eu devia viver”. Confissão de fastio.
oportunismo e conformismo? Esse conformismo,
responde Lívio Teixeira, “vem da clareza com què
se percebem as limitações da Moral social, bem Art. 209. Do pesar.
como as dificuldades que deparam aqueles que se
propõem transformâ-la. Este conformismo social de O pesar é também uma espécie de
Descartes é, antes de tudo, uma atitude de inteli
gência e boa vontade, em uma palavra, de generosi tristeza, que é uma particular amargu
dade”. (Op. cit., pág. 209.) ra, pelo fato' de estar sempre unida a
AS PAIXÕES DA ALMA 303
Minha Senhora,
O favor com que Vossa Alteza me E posso dizer, com verdade, que a
honrou, fazendo-me receber suas or questão proposta por Vossa Alte
dens por escrito, é maior do que jamais za1 parece-me ser a que me podem for
ousaria esperar e ele alivia melhor as mular com mais razão, em .virtude dos
minhas faltas do que aquele que eu escritos que publiquei. Pois, havendo
almejara com paixão, que era o de duas coisas na alma humana, das
recebê-las de viva voz, se me fosse quais depende todo conhecimento que
dada a honra de prestar-lhe reverência podemos ter de sua natureza, uma das
e oferecer-lhe os meus mui humildes quais é que ela pensa e a outra, que,
préstimos, quando estive ultimamente estando unida ao corpo, pode agir e
em Haia. Pois eu teria maravilhas em padecer com ele, quase nada disse da
demasia para admirar ao mesmo última e empenhei-me apenas em acla
tempo; e, vendo emanar discursos mais rar bem a primeira, porque o meu prin
do que humanos de um corpo tão cipal intuito era provar a distinção que
semelhante ao que os pintores conce há entre a alma e o corpo; para o que,
dem aos anjos, ficaria extasiado da somente esta podia servir e a outra
mesma maneira que me parecem dever seria nociva2. Mas, como Vossa Alte
ficar os que, vindos da terra, entram de za vê tão claro que não se poderia
novo no céu. E isso ter-me-ia tomado dissimular-lhe qualquer coisa, esfor-
menos capaz de responder a Vossa çar-me-ei aqui por explicar a maneira
Alteza, que sem dúvida já observou em pela qual concebo a união da alma
mim este defeito, quando tive anterior com o corpo e como tem ela a força de
mente a honra de lhe falar; e a clemên movê-lo.
cia de V. A. quis consolá-la, confian Primeiramente, considero haver em
do-me os traços de seus pensamentos nós certas noções primitivas, as quais
sobre um papel, onde, relendo-os mui são como originais, sob cujo padrão
tas vezes e acostumando-me a conside formamos todos os nossos outros
rá-los, deixam-me verdadeiramente
1 A saber: como pode a alma mover o corpo?
menos deslumbrado, porém com tanto 2 As Meditações insistiram na separação das subs
maior admiração, ao observar que não tâncias e, por razões metodológicas, deixaram na
parecem somente engenhosos à pri sombra a substância psicofísica, isto é, a união de
fato no homem , das duas substâncias separadas.
meira vista, mas tanto mais judiciosos Mas não se deve falar de um corte entre a alma e o
e sólidos quanto mais são examinados. corpo humano em Descartes.
310 DESCARTES
conhecimentos. E não há senão muito Por isso, visto que, nas Meditações
poucas dessas noções; pois, após as que Vossa Alteza se dignou ler, procu
mais gerais, do ser, do número, da rei fazer conceber as noções que só
duração, etc., que convêm a tudo quan pertencem à alma, distinguindo-as das
to possamos conceber, possuímos, em que pertencem só ao corpo, a primeira
relação ao corpo em particular, apenas coisa que devo explicar em seguida é a
a noção da extensão, da qual decorrem maneira de conceber as que pertencem
as da figura e do movimento; e, quanto à união da alma com o corpo, sem as
à alma somente, temos apenas a do que pertencem só ao corpo, ou só à
pensamento, em que se acham com alma. A isso me parece que pode servir
preendidas as percepções do entendi o que escrevi no fim da minha Res
mento e as inclinações da vontade; posta às Sextas Objeções; pois não
enfim, quanto à alma e ao corpo em podemos buscar essas noções simples
conjunto, temos apenas a de sua união, em outra parte exceto em nossa alma
da qual depende a noção da força de que, por sua natureza, as tem todas em
que dispõe a alma para mover o corpo, si, mas que nem sempre as distingue
e o corpo para atuar sobre a alma, cau suficientemente umas das outras, ou
sando seus sentimentos e suas pai não as atribui aos objetos aos quais
xões3 devemos atribuí-las.
Considero também que toda a ciên Assim, creio que confundimos até
cia dos homens consiste tão-somente agora4 a noção da força com que a
em bem distinguir essas noções e não alma atua no corpo e aquela com que
atribuir cada qual senão às coisas a um corpo atua em outro; e que atri-.
que pertencem. Pois, ao querer expli buímos ambas não à alma, pois não a
car alguma dificuldade por uma noção conhecíamos ainda, porém às diversas
que não lhe pertence, não podemos dei qualidades dos corpos, como a gravi
xar de nos equivocar, assim como ao dade, o calor e as outras, que imagina
querer explicar uma dessas noções por mos serem reais, isto é, possuírem uma
outra; pois, sendo primitivas, cada existência distinta da do corpo e, por
uma delas só pode ser entendida por si conseguinte, serem substâncias, embo
mesma. E já que a prática dos sentidos ra as denominássemos qualidades. E
nos tornou as noções da extensão, das nos servimos, para concebê-las, ora de
figuras e dos movimentos muito mais noções que se encontram em nós para
familiares do que as outras, a principal conhecer o corpo, ora das que aí se
causa de nossos erros está em que encontram para conhecer a alma, con
pretendemos comumente nos servir forme o que lhes atribuímos fosse
dessas noções para explicar as coisas a material ou imaterial5. Por exemplo,
que não pertencem, como quando se supondo que a gravidade é uma quali
quer utilizar a imaginação para conce dade real, da qual não possuímos qual
ber a natureza da alma, ou então, quer outro conhecimento, exceto que
quando se quer conceber a maneira tem a força de mover o corpo, no qual
pela qual a alma move o corpo,
4 Isto é: quando estávamos ainda sob o domínio
mediante aquela pela qual um corpo é dos “prejuízos da infância”, antes de termos alcan
movido por outro corpo. çado as noções claras e distintas. |
5 Sempre possuímos a idéia da união, mas 'aplica
mo-la, descabidamente, aos fenômenos naturais que
3 Exemplo de distinção das “regiões” que, como devem explicar-se apenas por figuras e por movi
dirá Descartes, é a característica da ciência. mentos.
CARTAS 311
se â^ha, para o centro da terra, não nos explicar-me, e seria demasiado presun
é jdifícil conceber como ela move esse çoso se ousasse pensar que minha res
COTpo, nem como está unida a ele; e posta deve satisfazê-la inteiramente;
não pensamos que isso se realiza pelo mas procurarei evitar uma e outra,
contato real de uma superfície com nada mais acrescentando aqui, exceto
outra, pois experimentamos, em nós que, se sou capaz de escrever ou de
próprios, que não dispomos de uma dizer algo que lhe possa agradar, terei
noção particular para conceber tal sempre por mui grande favor tomar a
coisa; e creio que usamos mal essa pena, ou ir a Haia, para tal fim, e que
noção, aplicando-a à gravidade, que nada há no mundo que me seja tão
não é algo realmente diferenciado do caro como poder obedecer a seus dita
corpo, como espero mostrar na Física, mes. Mas não consigo achar aqui lugar
mas que nos foi dada para conceber a para a observância do juramento de
maneira pela qual a alma move o Hipócrates que ela me impõe, pois que
corpo 6. ela nada me comunicou que não mere
Não testemunharia conhecer assaz o ça ser visto e admirado por todos os
incomparável espírito de Vossa Alteza, homens. Só posso dizer, a este respeito,
se empregasse mais palavras para que, apreciando infinitamente a carta
que recebi de Vossa Alteza, usá-la-ei
6 O exemplo é retomado nas Sextas Respostas: como os avaros usam seus tesouros, os
“Pensava que a gravidade conduzisse os corpos
para o centro da terra como se ela tivesse em si
quais escondem quanto mais os esti
algum conhecimento deste centro”. Como ele julga mam, e, recusando sua vista ao resto
que a gravidade deve explicar-se pelo exclusivo do mundo, aplicam seu soberano con
impulso da matéria sutil, Descartes rejeita com des
prezo a noção de atração. (Cartas, a Roberval, 20 tentamento em contemplá-los. Assim,
de abril de 1646.) Deve-se notar que Galileu, por estarei à vontade para desfrutar sozi
seu turno, concebe o fenômeno da queda como um nho do bem de vê-la; e minha maior
“movimento natural”, o único que ele retém da Físi
ca escolástica. “Ele abandona tanto quanto pode os ambição é poder dizer-me, e ser verda-
erros da Escola”, dirá Descartes. deiramente, etc.
A Elisabeth
Minha Senhora,
que é mais fácil atribuir matéria e Enfim, como creio ser necessário
extensão à alma do que atribuir-lhe compreender bem, uma vez na vida, os
capacidade de mover um corpo e de princípios da Metafísica, porque são
ser movida por ele, sem possuir maté eles que nos fornecem o conhecimento
ria, suplico-lhe que queira livremente de Deus e de nòssa alma, creio tam
atribuir esta matéria e esta extensão à bém que seria muito prejudicial ocupar
alma; pois isto não é mais do que arniúde o entendimento para meditar
concebê-la unida ao corpo12. E, depois neles, porque ele não poderia aplicar-
de haver bem concebido tal coisa e tê- se tão bem às funções da imaginação e
la experimentado em si própria, ser- dos sentidos; mas que o melhor é
Ihe-á fácil considerar que a matéria contentar-se em reter na memória e na
que Vossa Alteza terá atribuído a esse crença as conclusões que foram algu
ma vez tiradas e depois empregar o
pensamento não é o pensamento
tempo restante para o estudo, nos
mesmo; e que a extensão dessa matéria
pensamentos em que o entendimento
é de natureza diferente da extensão
atua com a imaginação e os sentidos.
desse pensamento, pelo fato de ser a A extrema devoção que dedico ao
primeira determinada em certo lugar, serviço de Vossa Alteza me faz esperar
do qual exclui qualquer outra extensão que minha franqueza não lhe será
de corpo, o que não faz a segunda. E desagradável e ter-me-ia empenhado
assim Vossa Alteza não deixará de aqui num discurso mais longo, onde
voltar facilmente ao conhecimento da tentaria esclarecer dessa vez todas as
distinção entre a alma e o corpo, não dificuldades da questão proposta; mas
obstante tenha concebido a sua união. uma deplorável nova que acabo de
receber de Utrecht, onde o Magistrado
12 A união não é uma soma das duas substâncias, me intimou, para verificar o que escre
porém sua mistura total. Pode-se dizer que a alma
tem, de algum modo, extensão, visto que se espalha ví de um de seus ministros, conquanto
em todas as partes do corpo. No entanto, nem por seja um homem que me caluniou mui
isso se toma divisível, pois está inteira em cada indignamente, e o que escrevi sobre ele,
parte. Possui, portanto, uma “extensão”, sem ser para minha justa defesa, não seja
uma substância extensa. Trata-se, sem dúvida, da
definição mais precisa que Descartes dá do orga senão demasiado notório a todo
nismo humano como totalidade ■—■ Ganzheit. Cabe mundo, compele-me a terminar aqui,
notar aqui como Descartes logra encerrar ao máxi para ir consultar os meios de me livrar,
mo noções impossíveis de exprimir no pathos meca-
nicista do claro e do distinto (cf. Guéroult, op. cit., o mais cedo que eu possa, dessas
II, págs. 186-191). chicanices. Sou, etc.
A Elisabeth
Todavia1*5, como um vaso pequeno causa dos diversos objetos aos quais se
pode ficar tão cheio como outro maior, estendem1 6.
ainda que contenha menos líquido, A terceira, que consideremos, en
assim, tomando o contentamento de quanto nos conduzimos assim, o quan
cada qual pela plenitude e pelà realiza to pudermos, segundo a razão, que
ção de seus, desejos regrados segundo a todos os bens que não possuímos
razão, não duvido que os mais pobres encontram-se também inteiramente
e os mais desgraçados pela fortuna ou fora de nosso poder tanto uns como
pela natureza possam estar inteira outros, e que, por este meio, nos acos
mente contentes e satisfeitos, assim tumemos a não desejá-los; pois nada
como os outros, embora não desfrutem há, como o desejo, o pesar ou o
de tantos bens. E não é senão desta arrependimento, que nos possa impedir
espécie de contentamento que se trata de estar contentes: mas se fizermos
aqui, pois a outra não está de nenhum sempre tudo o que nos dita a nossa
modo em nosso poder e sua busca razão, nunca teremos qualquer motivo
seria supérflua. de nos arrependermos, ainda que os
Ora, parece-me que cada um pode acontecimentos nos levassem a ver, em
ficar contente consigo mesmo, sem seguida, que nos havíamos enganado,
nada esperar de outras partes, con porque isso não se deu por culpa
tanto que observe apenas três coisas, nossa. E o que faz com que não deseje
às quais se relacionam as três regras mos ter, por exemplo, mais braços ou
da Moral, que estabelecí no Discurso mais línguas do que temos, mas que
do Método. desejemos realmente ter mais saúde ou
A primeira é que nos esforcemos mais riquezas, é apenas porque imagi
sempre por servir-nos, da melhor ma namos que tais coisas poderíam ser
neira possível, de nosso espírito, para adquiridas por nossa conduta, ou,
conhecer o que devemos ou não fazer então, que são devidas à nossa nature
em todas as circunstâncias da vida. za, e que esta não é a mesma das
A segunda, que mantenhamos a outras: opinião de que podemos nos
firme e constante resolução de execu desfazer, considerando que, como se
tar tudo quanto a razão nos aconse guimos sempre o conselho de nossa
lhar, sem que nossas paixões ou nossos razão, nada omitimos do que estava
em nosso poder, e que as moléstias e os
apetites nos desviem; e é a firmeza
desta resolução, que creio dever ser to infortúnios não são menos naturais no
mada pela virtude, embora eu não homem do que a prosperidade e a
saúde.
saiba de alguém mais que a tenha algu
ma vez explicado assim; mas dividi- De resto, nem todas as espécies de
ram-na em muitas espécies, a que desejos são incompatíveis com a beati-
foram dados diversos nomes, por tude; a não ser os que são acompa
nhados de impaciência e tristeza. Não
1 5 O termo é importante. Descartes admite que
mais vale possuir as duas espécies de bens do que 1 6 Não há senão uma virtude, diversificada pelos
apenas o segundo. Mas, como se verifica que a pri objetos aos quais se estende, “assim como todas as
meira pode não estar ao nosso alcance, não deve ciências reunidas não são nada mais do que a sabe
mos apegar-nos à busca desses bens que não depen doria humana, que se mantém sempre una, sempre a
dem de nós, se nós não os possuímos. Atitude mesma, por variados que sejam os objetos aos quais
eudemonista exposta em linguagem estóica. elas se aplicam. . . ” (Regulàe, reg. 1.)
CARTAS 319
Minha Senhora
de Vossa Alteza
o mui humilde e mui obediente servidor,
DESCARTES
Mas como, quando existe em alguma Eis por que julgo poder concluir
parte um prêmio para atirar ao alvo, aqui que a beatitude não consiste
suscita-se o desejo de atirar àqueles a senão no contentamento do espírito,
quem se mostra este prêmio, sem que isto é, no contentamento em geral;
por isso possam ganhá-lo, se não vêem pois, embora haja contentamentos que
o alvo, e os que o vêem não são por dependem do corpo, e outros que dele
isso induzidos a atirar, se não sabem não dependem de modo algum, não há
que há um prêmio a ganhar, assim a todavia qualquer outro, exceto no espí
virtude, que é o alvo, não se faz desejar rito: mas, para haver um contenta
muito, quando a vemos totalmente só; mento que seja sólido, é preciso seguir
e o contentamento, que é o prêmio, não a virtude3 4, isto é, ter uma vontade
pode ser adquirido, a não ser que a firme e constante de executar tudo o
sigamos33. que julgarmos ser o melhor e empregar
toda a força de nosso entendimento em
33 A imagem do arqueiro e do tiro ao alvo encon-
tra-se muitas vezes entre os moralistas antigos. Ela bem julgar. Reservo para outra vez o
é criticada pelo estoicismo, que se recusa a compa considerar o que Sêneca escreveu a
rar o fim da sabedoria com um fim exterior à ação. este respeito; pois minha carta já está
(Cf. Cícero, De Finibus, UI, 7.)
3 4 Conclusão epicurista: é o enunciado mesmo do demasiado longa, e só me resta o espa
imperativo hipotético kantiano. ço necessário para escrever que sou,
Minha Senhora,
de Vossa Alteza
o mui humilde e mui obediente servidor,
DESCARTES
Minha Senhora,
nós mesmos, a não ser enquanto nos podem servir para facilitar o uso da .'J
pertencemos, e significa menos perder virtude3 7; pois todas as ações de nossa
a vida do que perder o uso da razão; alma que nos conseguem alguma per- J
pois, mesmo sem os ensinamentos da feição são virtuosas, e todo o nosso í
fé, só a Filosofia natural leva nossa contentamento consiste apenas no
alma a esperar um estado mais feliz, nosso testemunho interior de possuir- f
após a morte, do que aquele em que se mos alguma perfeição. Assim, jamais
encontra presentemente; não há coisa poderiamos praticar qualquer virtude
que ela lhe faça temer como mais (isto é, fazer o que nossa razão nos
deplorável do que estar ligada a um persuade que devemos fazer), se daí
corpo que lhe rouba inteiramente a não recebéssemos satisfação e prazer.
liberdade. Mas há duas espécies de prazer: uns
Quanto às outras indisposições, que que pertencem ao espírito só e outros
não perturbam totalmente o senso, mas que pertencem ao homem, isto é, ao
alteram apenas os humores, e fazem espírito enquanto unido ao corpo; e
com que a gente se sinta extraordina esses últimos, apresentando-se confu
riamente inclinada à tristeza, à cólera samente à imaginação, parecem muitas
ou a alguma outra paixão, dão sem dú vezes maiores do que são, principal
vida pena, mas podem ser sobrepuja mente antes de os possuirmos, o que é
das, e até proporcionam à alma motivo fonte de todos os males e de todos os
de uma satisfação tanto maior quanto erros da vida. Pois, segundo a regra da
foram mais difíceis de vencer. E creio razão, cada prazer dever-se-ia medir
também o mesmo de todos os impedi pela grandeza da perfeição que o pro
mentos exteriores, como do brilho de duz, e é assim que medimos aqueles
um grande nascimento, dos galanteios cujas causas nos são claramente co
da corte, das adversidades da fortuna e nhecidas. Mas amiúde a paixão nos faz
também de suas grandes prosperi- julgar certas coisas melhores e mais
dades, as quais ordinariamente obstam desejáveis do que o são; pois, quando
que se possa desempenhar o papel de nos demos muito trabalho em adquiri-
las e perdemos, entretanto, a ocasião
filósofo mais do que o fazem as des de possuir outros bens mais verdadei
graças. Pois, quando temos tudo quan ros, o gozo nos faz conhecer seus defei
to desejamos, esquecemos de pensar tos, e daí provêm os desdéns, os pesa
em nós, e quando, em seguida, a sorte res e os arrependimentos. Eis por que o
muda, vemo-nos tanto mais surpresos verdadeiro ofício da razão é examinar
quanto mais nos fiávamos nela. Enfim, o justo valor de todos os bens cuja
pode-se dizer em geral que não há aquisição pareça depender de alguma
coisa capaz de nos subtrair inteira maneira de nossa conduta, a fim de
mente o meio de nos tornarmos felizes, que nunca deixemos de envidar todos
desde que ela não perturbe nossa os nossos cuidados no esforço de obter
razão; e que nem sempre as que pare aqueles que são, com efeito, os mais
cem mais aborrecidas são as que mais desejáveis; no que, se a fortuna se opõe
prejudicam. a nossos desígnios e impede seu bom
Mas, a fim de saber exatamente o êxito, teremos ao menos a satisfação
quanto cada coisa pode contribuir
para o nosso contentamento, cumpre 3 7 Esboço de um cálculo dos prazeres em função
considerar quais são as causas que o da grandeza da perfeição que os produz. A função
produzem, e isso constitui também um da razão, diz ainda Descartes, consiste em “saber
exatamente o quanto cadá coisa pode contribuir
dos principais conhecimentos que para nosso contentamento”. (6 de outubro de 1645.)
CARTAS 327
(de ifâda haver perdido por nossa falta, apenas. Digo comumente; pois nem
Jtó não deixaremos de desfrutar de toda todos os do espírito são louváveis, por
JÉya beatitude natural cuja aquisição haja que podem ser fundados em alguma
[estado ao nosso alcance. falsa opinião, como o prazer que se
Assim, por exemplo, a cólera pode sente em maldizer, que se funda apenas
[às vezes excitar em nós desejos de vin- em que alguém pensa dever ser tanto
■r gança tão violentos que nos levará a. •mais estimado quanto menos o forem
imaginar maior prazer em castigar os outros; e eles podem também enga
nosso inimigo do que em conservar nar-nos por sua aparência, quando al
nossa honra ou nossa vida, induzindo- guma forte paixão os acompanha,
nos a expor imprudentemente uma e como ocorre no que dá a ambição.
outra por esse motivo. Ao passo que, Mas a principal diferença existente
se a razão examina qual o bem ou a entre os prazeres do corpo e os do espí
perfeição em que se baseia este prazer rito consiste em que, sendo o corpo
que tiramos da vingança, não encon sujeito a mudança perpétua e depen
trará nenhum outro (ao menos quando dendo mesmo sua conservação e seu
tal vingança não serve para impedir bem-estar desta mudança, todos os
que nos ofendam de novo), exceto que prazeres que lhe concernem quase não
isso nos faz imaginar que dispomos de duram38 39; pois procedem apenas da
alguma sorte- de superioridade e algu aquisição de algo que é útil ao corpo,
ma vantagem sobre aquele de quem no momento em que os recebe; e, tão
nos desafrontamos. O que constitui logo cessa de lhe ser útil, eles também
amiúde apenas vã imaginação, que não
cessam, ao passo que os da alma
merece ser estimada em comparação
com a honra ou a vida, nem sequer em podem ser imortais como ela, contanto
comparação com a satisfação que que tenham um fundamento tão sólido
teríamos de ver-nos senhores de nossa que nem o conhecimento da verdade
cólera, abstendo-nos de nos vingar. ou qualquer falsa persuasão os des
E algo semelhante acontece em truam.
todas as outras paixões; pois não há De resto, o verdadeiro uso de nossa
uma única que não nos represente o razão para a conduta da vida consiste
bem ao qual ela tende com mais brilho apenas em examinar e considerar sem
do que merece, e que não nos leve' a paixão o valor de todas as perfeições,
imaginar prazeres bem maiores antes tanto do corpo como dó espírito, que
que os possuamos, os quais não encon podem ser adquiridas por nossa condu
tramos em seguida, quando os ta, a fim de que, sendo de ordinário
temos3 8 O que faz comumente repro obrigados a nos privar de algumas,
var a voluptuosidade, porque nos ser escolhamos sempre as melhores40. E,
vimos desta palavra apenas para signi como as do corpo são as menores,
ficar prazeres quefiios enganam muitas
vezes por sua aparência, e nos fazem pode-se dizer em geral que, sem elas,
negligenciar outros muito mais sólidos,
mas cuja expectativa não toca tanto, nome 38 Os prazeres do corpo não são suspeitos em
de um ideal ascético: verifica-se apenas que
como são comumente os do espírito são passageiros e proveitosos a curto prazo.
40 Toda esta passagem ilustra as páginas de Max
Scheler sobre a subordinação dos valores vitais aos
38 A crítica das paixões será uma crítica da repre valores de utilidade e a diferença entre o ascetismo
sentação imaginativa que nos leva a sobrestimar os moderno e o antigo ou evangélico. (Cf. L 'Homme
prazeres e uma previsão do prazer efetivo. du Ressentiment, Von Umsturze der Werte.)
328 DESCARTES
há meio de se tomar felizes41. Toda isentar-nos de ter paixões; basta que as,
via, não sou, de modo algum, de opi assujeitemos à razão e, uma vez assiin"
nião que devamos desprezá-las inteira domesticadas, algumas são tanto maisj
úteis quanto mais pendem para o-
mente, ou mesmo que devamos excesso. E jamais terei outra mais^
excessiva do que aquela que me leva:
41 Não se trata, pois, senão do pior: a.inspiração
essencialmente epicurista toma a sobrepor-se ao ao respeito e à veneração que vosí devo^
estoicismo aparente. e me faz ser,
Minha Senhora,
de Vossa Alteza
o mui humilde e mui obediente servidor,
DESCARTES
A amável carta que acabo de rece somente por sua vontade mas também
ber de vossa parte não me permite realmente e de fato, na maneira que lhe •
repousar enquanto não lhe houver convém estar unida, o movimento de
dado resposta; e, embora proponhais sua vontade, que acompanha o conhe
nela questões que outros mais eruditos cimento que ela tem de ser-lhe um
do que. eu teriam muito trabalho para bem, é sua alegria; e se está ausente, o
examinar em pouco tempo, todavia, movimento de sua vontade que acom
porque sei que, mesmo se eu empre panha o conhecimento que ela tem de
gasse muito tempo nisso, não poderia ser dele privado, é sua tristeza; mas
resolvê-las inteiramente, prefiro pôr aquele que acompanha o conheci
prontamente sobre o papel aquilo que mento que ela tem de que seria bom
o.zelo, que me incita, me ditará do que adquiri-lo é seu desejo. E todos estes
pensar.com mais vagar e não escrever movimentos da vontade nos quais con
em seguida nada melhor. sistem o amor, a alegria e a tristeza, e
Quereis saber minha opinião no o desejo, na medida em que são pensà-
tocante a três coisas: 1 — o que é o mentos racionais, e não paixões, po-
amor; 2 — se só a luz natural nos ensi der-se-iam achar em nossa alma, ainda
na a amar a Deus; 3 — qual dos dois que esta não tivesse corpo algum42.
desregramentos e maus usos é pior, o Pois, por exemplo, se ela percebesse.
do amor ou o do ódio ? que há na natureza muitas coisas a
conhecer, que são muito belas, sua
Para responder ao primeiro ponto,
vontade dirigir-se-ia infalivelmente a
distingo entre o amor que é puramente
intelectual ou racional e o que é uma amar o conhecimento destas coisas,
isto é, a considerá-lo como lhe perten
paixão. O primeiro consiste, parece-
cendo. E se notasse, ademais, possuir
me, apenas em que, quando nossa
este conhecimento, isso dar-lhe-ia ale
alma percebe algum bem, seja presen
gria; se considerasse que não o pos
te, seja ausente, que julga lhe ser
suía, isso, dar-lhe-ia tristeza; se pen
conveniente, ela se lhe junta volunta sasse que^he seria bom adquiri-lo, isso
riamente, isto é, considera-se a si pró
dar-lhe-ia desejo. E. nada haveria em
pria, com este bem, qual um todo, de
todos esses movimentos de sua vonta-
que ele é uma parte e ela a outra. Em
seguimento do que, se ele está presente,
42 Delimitação do domínio puramente racional da
isto é, se ela o possui, ou é por ele pos ciência das paixões: os sentimentos que concernem
suída, ou, enfim, caso se lhe una não à alma somente.
330 DESCARTES
de que lhe fosse obscuro, nem do que dispõe incontinenti o coração aos
ela não dispusesse de um mui perfeito movimentos que excitam a paixão dejk
conhecimento, desde que refletisse amor e, quando o coração se achag|
sobre os seus pensamentos. assim disposto por outras causas, isto®
Mas, enquanto nossa alma estâ leva a alma a imaginar qualidades^
unida ao corpo, este amor racional é amáveis em objetos em que ela veria sój?
ordinariamente acompanhado do defeitos em outros tempos. E não éW
outro, que se pode chamar sensual ou maravilha que certos movimentos do
sensitivo, e que, como disse sumaria coração estejam assim naturalmente
mente de todas as paixões, apetites e unidos a certos pensamentos, com os
sentimentos, na página 461 de meus quais não têm qualquer semelhança;
Príncipes em francês43*, não é mais do pois, pelo fato de nossa alma ser de tal
que um pensamento confuso provo natureza que pode estar unida a um
cado na alma por algum movimento corpo, possui também a propriedade
dos nervos, pensamento que a dispõe a de que cada um de seus pensamentos
este outro pensamento mais claro em pode associar-se de tal modo a alguns
que consiste o amor racional. Pois, movimentos ou outras disposições
como na sede, o sentimento que se tem deste corpo, que, quando as mesmas
da secura da garganta é um pensa disposições nele se encontram outra
mento confuso que dispõe ao desejo de vez, induzem a alma ao mesmo pensa
beber, mas não é este desejo mesmo; mento; e, reciprocamente, quando o
assim, no amor sente-se não sei que mesmo pensamento retoma, a alma
calor em tomo do coração e uma gran prepara o corpo para receber a mesma
de abundância de sangue no pulmão, disposição. Assim, ao aprendermos
que nos fazem abrir até os braços uma língua, juntamos as letras ou a
como para abraçar algo, e isto toma a pronúncia de certas palavras, qjie são
alma inclinada a juntar a si voluntaria coisas materiais, às suas significações,
mente o objeto que se lhe apresenta. que são pensamentos; de sorte que, ao
Mas o pensamento pelo qual a alma ouvirmos novamente as mesmas pala
sente este calor é diferente daquele que vras, concebemos as mesmas coisas; e,
a une ao referido objeto; e acontece ao concebermos as mesmas coisas,
mesmo às vezes que tal sentimento de recordamo-nos das mesmas pala
amor se acha em nós, sem que nossa vras4 5.
vontade se aplique a amar algo, porque Mas as primeiras disposições do
não encontramos objeto que julguemos corpo que acompanham assim os nos
digno disso. Pode acontecer também, sos pensamentos, ao ingressarmos no
ao contrário, que conheçamos um bem
45 Vale notar este paralelismo entre o condiciona
que merece muito e que nos juntemos a mento linguístico e o condicionamento passional.
ele voluntariamente, sem alimentar, Ele mostra sobretudo quão distante está Descartes
por isso, qualquer paixão, porque o da noção moderna de “sentido” entendido como
significação (por exemplo, psicopatológica ou esté
corpo não está a isso disposto. tica) essencialmente inseparável de seu portador
Mas, de ordinário, esses dois amores material. Para Descartes, há as significações univer
acham-se juntos 4 4: pois há tal ligação sais, de uma parte, e os signos materiais aos quais
elas correspondem em cada língua, de outra. Esse
entre um e outro que, quando a alma caráter totalmente convencional da linguagem liga-
julga que um objeto é digno dela, isto se ao pensamento “claro e distinto”: visto que a lin
guagem é inteiramente arbitrária, podemos manejar
as palavras de maneira que correspondam exata
43 Isto é, arts. 189 e 190 da quarta Parte. mente a idéias “naturais”, compreensíveis intuitiva
4 4 A distinção de direito dos dois amores não im mente. Em geral, devemo-nos fiar apenas nas
pede a sua união de fato, graças a um processo de evidências e fazer da linguagem apenas o veículo
condicion amento. das evidências.
CARTAS 331
se reconheça no que ele consiste mente por alguns ídolos que chamam
propriamente. O que é principalmenté com seu nome; do mesmo modo que
notável no tocante ao desejo; pois é to Ixíoh, no dizer dos poetas, abraçava
mado tão comumente pelo amor que uma nuvem em vez da Rainha dos
isso leva a distinguir duas espécies de Deuses. Todavia, não alimento a
amores: uma que se chama amor de menor dúvida de que possamos amar
benevolência, no qual este desejo não verdadeiramente Deus pela exclusiva
aparece tanto, e a outra que se chama força de nossa natureza. Não asseguro,
amor de concupiscência, o qual não é de forma alguma, que tal amorl seja
senão um desejo muito violento, basea meritório sem a graça e deixo o desen
do num amor amiúde fraco. redar disso aos teólogos; mas ouso
Mas seria preciso escrever um alen dizer que, com respeito a esta vida, é a
tado volume para tratar de todas as mais arrebatadora e a mais útil paixão
coisas que pertencem a esta paixão; e, que possamos ter; e, mesmo, que ela
embora sua índole seja a de fazer com pode ser a mais forte, embora haja
que nos comuniquemos o mais possí necessidade, para tanto, de meditação
vel, de modo que me incita a tentar mui atenta, porque somos continua
aqui dizer-vos mais coisas do que sei, mente distraídos pela presença de ou
quero no entanto conter-me, no temor tros objetos.
de que a longura desta carta vos enfa Ora, o caminho que julgo devermos
de Assim, passo à vossa segunda seguir, para chegar ao amor a Deus, é
questão, a saber: se só a luz natural o de considerá-lo um espírito, ou uma
nos ensina a amar a Deus e se se pode coisa pensante, donde, como a natu
amá-lo pela força desta luz. Vejo que reza de nossa alma possui alguma
há duas fortes razões para duvidar semelhança com a suá, acabamos
disso; a primeira é que os atributos de persuadindo-nos de que é uma emana
Deus que consideramos mais comu ção de sua soberana inteligência et
mente acham-se elevados tão acima de divinae quasi partícula aurae49. Do
nós que não concebemos de maneira mesmo modo, como nosso conheci
alguma que nos possam ser convenien mento parece poder aumentar gradati
tes, o que é causa de não nos unirmos a vamente até o infinito, e como, sendo o
eles voluntariamente; a segunda é que de Deus infinito, está ele no alvo a que
em Deus nada há que seja imaginável, visa o nosso, se não considerarmos
o que faz com que, mesmo se tivés nada mais, podemos chegar à extrava
semos por ele algum amor intelectual, gância de desejarmos ser deuses e
não pareça possível dedicar-lhe qual assim, por um erro mui grande, amar
quer amor sensitivo, porque deveria somente a divindade em vez de amar a
passar pela imaginação para vir do Deus. Mas se, além disso, advertimos a
entendimento ao sentido. Eis por que infinidade de seu poder, pela qual ele
não me espanto se alguns filósofos se criou tantas coisas, de que somos ape
persuadem de que só há a religião cris nas a menor parte; a extensão de sua
tã que, ensinando-nos o mistério da providência, que o faz ver com um só
encarnação, pelo qual Deus se abaixou pensamento tudo o que foi, é, será e
àté tomar-se semelhante a nós, nos poderia ser; a infalibilidade de seus
toma capazes de amá-lo48; e que
aqueles que, sem o conhecimento deste 48 Descartes admite que só a religião cristã nos
mistério, parecem nutrir paixão por al permite amar a Deus, mas não — como Pascal.:—
que só ela nos permite reconhecê-lo.
guma divindade, não a nutrem, por 49 Horácio, Sátiras, II, 2, v. 79, “quase uma parce
isso, pelo verdadeiro Deus, mas so la do sopro divino”.
CARTAS 333
decretos, que, embora não perturbem aparte muito do comércio dos sentidos,
nosso livre arbítrio, não podem de para se representar as verdades que
forma alguma ser mudados; e enfim, nela provocam este amor; daí resulta
de um lado, a nossa pequeneza e, de que não parece que ela possa comuni
outro, a grandeza de todas as coisas cá-lo à faculdade imaginativa para tor-
criadas, reparando de que modo elas ná-lo uma paixão. Mas, apesar disso,
dependem de Deus e considerando-as não duvido de que ela lha comuni
de maneira que tenham relação com que52. Pois, embora nada possamos
sua onipotência, sem encerrá-las numa imaginar do que existe em Deus, o
esfera, como procedem os que preten qual é o objeto de nosso amor, pode
dem que o mundo seja finito50: a mos imaginar o nosso amor mesmo,
meditação de todas essas coisas enche que consiste em querermos unir-nos a
um homem que as entende bem de uma algum objeto, isto é, à vista de Deus,
alegria tão extrema que, longe de ser considerar-nos pequeníssima parte de
injurioso e ingrato com Deus a ponto toda a imensidade das coisas que ele
de desejar ocupar-lhe o lugar, pensa jâ criou; porque, conforme sejam objetos
ter vivido o bastante por haver Deus diversos, podemos unir-nos a eles ou
lhe feito a graça de levá-lo a tais juntá-los a nós, de diversas maneiras; e
conhecimentos; e, unindo-se-lhe total e a simples idéia desta união basta para
voluntariamente, ama-o tão perfeita- excitar o calor em tomo do coração e
mente que nada mais deseja no mundo, causar violentíssima paixão 53.
exceto que seja feita a vontade de É verdade também que o uso de
Deus. E isso é causa para ele não mais nossa língua e a civilidade dos cumpri
temer a morte, nem as dores, nem as mentos não permitem que digamos,
desgraças, porquanto sabe que nada aos que pertencem a uma condição
pode acontecer-lhe, salvo o que Deus muito acima da nossa, que os amamos,
houver decretado; e ele ama de tal mas somente que os respeitamos, hon
forma este divino decreto, estima-o tão ramos, estimamos e que empregamos
justo e tão necessário, sabe que deve zelo e devoção no serviço deles; e a
depender tão inteiramente dele, que, razão disso parece-me ser que a amiza
mesmo na expectativa da morte ou de de dc homem para homem toma de
algum outro mal, se pudesse, por certa maneira iguais aqueles em quem
impossível que seja, mudá-lo, não teria ela é recíproca; e, assim, que, enquanto
vontade de fazê-lo. Mas, se não recusa nos esforçamos por nos fazer amar por
os males ou as aflições, porque lhe vêm algum grande, se lhe disséssemos que o
da providência divina, recusa ainda amamos, poderia pensar que o trata
menos todos os bens ou prazeres líci mos de igual e que lhe fazemos mal.
tos de que pode gozar nesta vida, por
que também vêm dele; e, recebendo-os 51 A submissão à vontade de Deus ajusta-se assim
ao naturalismo moral: a concordância entre minha
com júbilo, sem ter qualquer receio vontade e a de Deus não atua necessariamente em
pelos males, seu amor o toma perfeita- detrimento de minha felicidade nesta vida.
mente feliz51. 62 Distinção entre a via do entendimento puro, que
leva ao conhecimento da verdade, e a via imagina
É certo ser necessário que a alma se tiva, que conduz ao amor desta verdade.
63 “Por aí Descartes encontraria em certa medida
50 O conhecimento da infinidade positiva de Deus ,os caminhos de Inácio de Loiola. . . Quando se
nos impede de confundir esta infinidade com a inde- trata de engendrar um sentimento religioso vivo e
finidade do progresso de nosso conhecimento e verdadeiro, uma paixão, por exemplo, o amor de
proíbe, no fim de contas, qualquer teoria humanista Deus, Descartes, como Inácio de Loiola, recomenda
do progresso. A transcendência de Deus (indispen a representação imaginativa, isto é, concreta (por
sável à ciência) opõe, assim, obstáculo ao natura impressão distinta) de nossa união com o ser infini
lismo e ao humanismo. to.” (Guéroult, op. cit., II, pág. 226.)
334 DESCARTES
Mas, como os filósofos não costumam que nós, por exemplo, se amamos uma
dar diversos nomes às coisas conve flor, um pássaro, um edifício, ou coisa
nientes a uma mesma definição, e semelhante, a mais alta perfeição a que
como não sei de outra definição de possa atingir este amor, segundo seu
amor, exceto que é uma paixão que nos verdadeiro uso, não pode levar-nos a
leva a juntar-nos voluntariamente a pôr nossa vida em qualquer risco para
algum objeto, sem distinguir se este ob a conservação destas coisas, porque
jeto é igual a nós, ou maior, ou menor elas não são partes mais nobres do
do que nós, parece-me que, para falar a todo que compõem conosco, assim
linguagem deles, devo dizer que se como nossas unhas e nossos cabelos
pode amar a Deus. quanto ao nosso corpo; e seria uma
E se eu vos perguntasse, em sã cons extravagância pôr o corpo todo em
ciência, se não amais de modo algum a risco para a conservação dos cabelos.
esta grande Rainha, junto à qual estais Mas quando dois homens amam-se
presentemente, em vão poderieis afir mutuamente, a caridade quer que cada
mar que lhe devotais respeito, venera um dele estime seu amigo mais do que
ção e admiração, e eu não deixaria de a si próprio; eis por que sua amizade
julgar que lhe dedicais também mui não será de modo algum perfeita, se
ardente afeição. Pois o vosso estilo não estiverem prontos a dizer, um em
corre tão bem, quando falais dela, que, favor do outro: Me me adsum quifeci,
embora eu creia em tudo o que dizeis a in me convertite ferrum, etc.54. Da
respeito, porque sei que sois muito sin mesma maneira, quando um particular
cero e o ouvi também dizer de outros, se une voluntariamente a seu príncipe,
não acredito entretanto que pudésseis ou a seu país, se o seu amor é perfeito,
descrevê-la como o fazeis, se não tivés ele deve estimar-se apenas como parte
seis muito zelo, nem que pudésseis muito pequena do todo que compõe
estar junto de tão grande luz sem dela com eles, e assim não temer ir de
receber calor. encontro a uma morte certa a seu ser
E muito menos é verdade que o viço, mais do que se teme tirar um
nosso amor pelos objetos que se achàm pouco de sangue do braço para fazer
acima de nós seja jnenor do que o que que o resto do corpo se porte melhor. E
temos pelos outros; creio que, por sua vemos todos os dias exemplos deste
natureza, é mais perfeito, e que leva a amor, mesmo em pessoas de baixa
abraçar com mais ardor os interesses condição, que dão as vidas de bom
daquilo que se ama. Pois pertence à grado para o bem do seu país, ou para
natureza do amor fazer com que nos a defesa de um grande pelo qual se
consideremos com o objeto amado afeiçoam. Em consequência disso, é
como um todo de que somos apenas evidente que nosso amor para com
uma parte, e que transfiramos de tal Deus deve ser incomparavelmente o
modo os cuidados que habitualmente maior e o mais perfeito de todos.
temos por nós mesmos à conservação Não receio que esses pensamentos
deste todo, que dele não retemos para metafísicos dêem demasiado labor a
nós em particular senão uma parte tão vosso espírito; pois sei que ele é muito
grande ou tão pequena quanto cremos
ser uma parte grande ou pequena do capaz em tudo; mas confesso que can
todo ao qual demos o afeto: de sorte sam o meu, e que a presença'dos obje-
que, se nos unimos voluntariamente a 5 4 Virgílio, Eneida, IX, 427. “Fui eu quem p fez;
um objeto que estimamos menor do voltai o ferro contra mim.” !
CARTAS 335
as mesmas paixões, assim, como foi hâ ruína está pronto a provocar, a fim de
pouco dito, é evidente que, quando que isso sirva de ceva à extravagância
amamos, o mais puro sangue de nossas de seu furor. Dir-se-á talvez que o ódio
veias corre abundantemente para o é a causa mais próxima dos males que
coração, o que envia uma porção de se atribuem ao amor, porque, se ama
espíritos animais ao cérebro e assim mos alguma ■ coisa, odiamos, pelo
nos dá mais força, mais vigor e mais mesmo meio, tudo o que lhe é contrá
coragem; ao passo que, se alimen rio. Mas o amor é sempre mais culpa
tamos ódio, a amargura do fel e a do do que o ódio dos males que se [pro
agrura do baço, misturando-se com o duzem dessa maneira, tanto mais que é
nosso sangue, é causa de que ele não a primeira causa deles, e que o amor a
um só objeto pode assim engendrar o
I aflua tanto, nem tais espíritos venhamI ódio a muitos outros. Depois, além
ao cérebro, e assim que se permaneça
mais fraco, mais frio e mais tímido. E disso, os maiores males do amor não
a experiência confirma meu dizer; pois são os que ele comete dessa maneira
os Hércules, os Rolando e, em geral, os por intermédio do ódio; os principais e
que apresentam mais coragem amam os mais perigosos são os que ele pro
mais ardentemente do que os outros; e, duz, ou deixa produzir, para o exclu
sivo prazer do objeto amado, ou para o
ao contrário, os que são fracos e seu próprio. Lembro-me de uma tirada
covardes são mais inclinados ao ódio. de Théophile, que pode ser aqui apre
A cólera pode, na realidade, tomar os sentada como exemplo; ele faz com
homens ousados, mas ela toma seu que uma pessoa perdida de amor diga:
vigor do amor que se tem por si pró
prio, o qual lhe serve sempre de funda Dieux, que le beau Paris eut une belleproie!
mento, e não do ódio que se limita ape Que cet amantJit bien,
nas a acompanhá-lo. O desespero Alors qu ’il alluma 1’embrasement de Troie,
também leva a efetuar grandes esfor Pour amortir le sien /5 5
ços de coragem e o medo leva a exer O que demonstra que mesmo os
cer grandes crueldades; mas há dife maiores e mais funestos desastres
rença entre essas paixões e o ódio. podem constituir às vezes a ceva a um
Resta-me ainda provar que o amor amor mal regrado e servir a tomá-lo
que se tem por um objeto de pouca mais agradável quanto . mais aumen-
importância pode causar maior mal, tam-lhe o preço. Não sei se meus
sendo desregrado, do que o ódio a pensamentos concordam nisso com os
outro de maior valor. E a razão que vossos; mas asseguro-vos realmente
dou para isso é que o mal que vem do que concordam em que, como me
ódio se estende somente ao objeto prometestes muita benevolência, assim
odiado, ao passo que o amor desre sou com forte paixão, etc.
grado nada poupa, salvo o seu objeto,
o qual tem, de ordinário, tão-somente 5 5Théophile, Stances pour Mlle de M. “Deuses,
que bela presa fez o belo Páris! Como esse amante
pouca extensão, em comparação com procedeu bem, quando ateou o incêndio de Tróia,
todas as outras coisas, cuja perda e para amortecer o seu!”
Prefácio ............................................................................................... • 7
Nota ..................................................................................................... 9
Introdução .................................................................... *................. 11
Discurso do método .............................................................................. 33
Primeira parte ............................................................................. 37
Segunda parte ............................................................................... 42
Terceira parte ............................................................................... 49
Quarta parte ................................................................................. 54
Quinta parte .................................................................................. 59
Sexta parte .................................................................................... 70
MEDITAÇÕES .................................................................................... 81
Aos Senhores Deão e Doutores da Sagrada Faculdade de Teo
logia de Paris ................................................................................ 83
Resumo das Seis Meditações ....................................................... 87
Primeira Meditação: Das coisas que se podem colocar em dúvida 93
Meditação Segunda: Da natureza do espírito humano; e de co
mo ele é mais fácil de conhecer do que o corpo ........................ 99
Meditação Terceira: De Deus; que ele existe ............................. 107
Meditação Quarta: Do verdadeiro e do falso ............................. 123
Meditação Quinta: Da essência das coisas materiais; e, nova
mente, de Deus, que ele existe ..................................................... 131
Meditação Sexta: Da existência das coisas materiais e da dis
tinção real entre a alma e o corpo do homem ............................ 137
OBJEÇÕES E RESPOSTAS .............................................................. 153
Segundas Objeções ...................................................................... 155
Segundas Respostas .................................................................... 161
Quintas Respostas às Quintas Objeções ................................... 187
AS PAIXÕES DA ALMA .................................................................. 223
Primeira parte: Das paixões em geral e ocasionalmente de
toda a natureza do homem ......................................................... 225_ j
Segunda parte: Do número e da ordem das paixões e a explica
ção das seis primitivas ................................................................ 249
Terceira parte: Das paixões particulares ................................... 283
CARTAS ............................................................................................... 307
A Elisabeth, 21 de maio de 1643 ................................................ 30"9
À mesma, 28 de junho de 1643 ................................................... 313
À mesma, 4 de agosto de 1645 ................................................... 317
À mesma, 18 de agosto de 1645 ................................................ 321
à mesma, l.° de setembro de 1645 ............................................ 325
A Chanut, l.° de fevereiro de 1647 ............................................ 329
Este livro integra a coleção
OS PENSADORES — HISTÓRIA DAS GRANDES IDÉIAS DO MUNDO OCIDENTAL
Composto e impresso nas oficinas da
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