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OS PENSADORES

RENÉ DESCARTES

DISCURSO DO MÉTODO

MEDITAÇÕES

OBJECOES E RESPOSTAS
AS PAIXÕES DA ALMA
*
CARTAS
Introdução de Gilles-Gaston.Granger;
Prefácio e notas de Gérard Lebrun ;
Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Junior.

EDITOR: VICTOR CIVITA


Títulos originais:
Discours de la méthode de bien conduire sa raison et chercher la vérité dans les Sciences; plus la
Dioptrique, les Météores et la Géométrie, qui sont des essais de cette méthode. ;
Meditationes de prima philosophia, ubi de Dei existentia et animae immortalitate; his adjunctae
sunt variae objectiones doctorum virorum in istas de Deo et anima demonstrationes cum respon-
sionibus auctoris. (1° edição, Paris, 1641.)

Les Passions de 1’Altne


Lettres

l.a edição—Fevereiro 1973

© — Copyright desta edição, 1973,


Abril S.A. Cultural e Industrial, São Paulo.
Tradução publicada sob licença de:
Difusão Européia do Livro, São Paulo.
Sumario

Prefacio ........................................................................................................ 7
Nota sobre a Edição .................................................................................. 9
Introdução .................................................................................................... 11
Discurso do Método ............................................ 33
Meditaço~es .................................................................................................... 81
Objeçoes e Respostas ................................................................................ 153
As Paixo~es da Alma •..................................................................................... 223
Cartas ............... /......................................................................................... 307
Índice ............................................................................................................. 341
Prefácio

O leitor encontrará aqui uma coletânea dos mais célebres textos filosóficos
de Descartes. Textos “filosóficos”, isto é, consagrados como tais pela tradição.
Os responsáveis pela edição, quanto a eles, pensariam de bom grado que o méto­
do cartesiano para obter as tangentes às curvas ou o tratado das máquinas sim­
ples ou a explicação do arco-íris ou ainda “a descrição do corpo humano ” apre­
sentam tanto interesse “filosófico” quanto os textos mais conhecidos, aqui
publicados. Não se tratava, seguramente, de incluir nesta edição tantos textos
“científicos” (aliás, muitas vezes mais úteis à história das ciências do que às pró­
prias ciências); mas tentou-se, na medida do possível, restituir este Descartes
integral, traído por comentários parciais, e que um trabalho, como o de Gué-
roult, nos ensinou a descobrir.
Isto porque Descartes foi injustamente tratado pela história, muitas vezes,
mesmo quando ela o celebrava. Compare-se, por exemplo, a sua reputação à de
Pascal: não é o bom senso oposto ao gênio, o pensamento claro ao pensamento
fulgurante? Nisso, sem dúvida, não se realça exageradamente este; mas deprecia-
se sorrateiramente aquele. Mas se, cansados das idéias recebidas (“filósofo do
Cogito”, “todo francês é cartesiano ’), ousamos enfim abordar os próprios textos,
veremos os clichês se desfazerem em pó e a verdadeira originalidade do autor
aparecer na mesma medida. Este “livre-pensador” é na realidade um católico
convicto; este “progressista” não fala do infinito senão “para se lhe submeter”;
este “idealista” se ocupa muito mais, em toda a sua correspondência, de Dióp-
trica e da construção de lunetas do que do Cogito; este “pai da filosofia france­
sa” despreza os “doutos”; os leitores que ele almeja são os profanos em Filosofia
e até em Matemática, “de preferência aos que hajam aprendido segundo o méto­
do ordinário ”, e os programas de nossas classes de Filosofia, dispostos segundo
a ordem das matérias, fá-lo-iam dar de ombros. Que o leiam —ou melhor, que
o deixem falar — e seus julgamentos temerários, sua tranquila presunção acaba­
rão espantando-nos e até escandalizando-nos. É então que começaremos talvez a
compreendê-lo. Voltará a ser para nós este gentil-homem despreocupado com as
usanças universitárias, este algebrista orgulhoso de sua Geometria e contente
com que os seus pares nada compreendam dela, desdenhoso dos conceitos esco­
lares de seu tempo, ingenuamente seguro de passar à posteridade. “Este cavaleiro
francês que partiu a um passo tão bom ”, dizia Péguy . . .
Tomando assim os textos ao pé da letra, aprendendo a lê-los sem anteparo,
vemos surgir, tanto quanto uma Filosofia inimitável, o solitário severo e apaixo­
8 PREFÁCIO

nado que lhe é inseparável. O livro de Guéroult, por exemplo, nos faz
compreender melhor não só a ordenação rigorosa dos conceitos cartesianos
como o retrato de Franz Haals. Ao mesmo tempo que o sistema de Descartes
adquire toda a sua envergadura, o homem reencontra o seu exato lugar: não em
um “pensamento francês"mítico, entre Pasteur e Victor Hugo, mas na época de
Luís XIII e de Richelieu. Com isso, a França nada perde; a Filosofia e Descartes
ganham.
Isso para justificar o método de leitura que propomos aqui: estrita atenção
ao sentido das palavras e à articulação das “razões”. Escolar na aparência,, este
método, cremos nós, é o único capaz de fazer justiça à lenda de um Descartes
“escolar”. Se o leitor não envidar tal esforço, estes textos ser-lhe-ão inúteis,por­
quanto procurará neles apenas confirmação dos “prejuízos da tradição ” (Descar­
tes alinhá-los-ia, sem dúvida'entre os da “infância’j. Semelhante afirmação, à
frente de um livro sobre Descartes, parecería a justo título presunçosa. A frente
de um livro de Descartes, constitui apenas um apelo à modéstia: não o julguemos
de cima, a partir do que pensamos saber sobre ele; leiamo-lo e releiamo-lo como
ele próprio recomendava. Então, não o “julgaremos" mais e teremos talvez
probabilidades de compreender este autor difícil. Alain observava: “E um
homem terrível para se tomar como mestre. Seu olho parece dizer: Mais um que
se vai enganar”.
Descartes merece, não viver numa lenda, por mais benevolente que seja,
mas obter leitores “que examinem curiós amente minhas razões”. Não que ainda
se possa ser cartesiano, na acepção em que o eram Bossuet ou Mme de Sévigné.
Mas este pensamento ainda é capaz de nos prestar serviços: afastando os obstá­
culos que nos impedem de entendê-lo bem, estabelecemos por aí mesmo nossas
distâncias em relação às ideologias que, hoje em dia, nos solicitam. Hegelia-
nismo, fenomenologia, existencialismo, todo “este rio de mil canais da Filosofia
moderna ”, tem sua cabeceira, nos diz Guéroult, “no pequeno livro denso e lacô­
nico das Meditações”. Por isso vale a pena, ao menos uma vez, ler Descartes,
esquecendo que ele teve sucessores, deixando de vê-lo apenas como um pré-hus-
seríiano ou pré-sartriano. Depois, quem sabe? Ao voltar para estes, vê-los-emos
antes como pós-cartesianos e a inteligência de suas obras terá lucrado com isso:
saberemos melhor situá-las. Eis o maior benefício que cabe esperar de Descartes:
que ele nos leve ao dépaysement e nos ensine a considerar sob outra luz os auto­
res modernos que nos são familiares. Quando um pensador é capaz, a três sécu­
los de distância, de nos forçar a estes reexames, de que serve dizer que é “ge­
nial”? Amemo-lo ou não, ele nos é indispensável.

Gerard Lebrun
Nota sobre a Edição

Nosso objetivo foi unicamente o de permitir uma leitura seguida e atenta de


Descartes. A tradução obedeceu, portanto, essencialmente à exigência de literali-
dade. Em presença de um texto do século XVII, o tradutor, caso não queira con­
sentir que se perca algo do sentido da frase, dève às vezes escolher entre a elegân­
cia e a precisão. Nestes ’casos, demos sempre preferência à precisão. No entanto,
alguns torneios de estilo (mais próximos do latim que do francês moderno) foram
aligeirados, certos vocábulos arcaicos foram transpostos, sempre que o sentido
da frase permanecesse integralmente respeitado.
A anotação não alimenta qualquer pretensão à erudição (confronto dos tex­
tos em latim e francês, paracrítica. . .). As notas constituem simples pontos de
referência úteis ao leitor que deseja compreender Descartes a partir do texto; elas
foram concebidas com vistas à explicação de textos. Por isso fugimos deliberada-
mente de todas as referências (puramente históricas, léxicográficas, biográficas)
que nada acrescentassem ao sentido da frase. De resto, quanto à gênese das
Meditações, às condições de publicação do Tratado das Paixões, à vida de Des­
cartes ou da Princesa Elisabeth, não faltam excelentes obras.
Tampouco temos qualquer pretensão no tocante à originalidade. As notas
do Discurso do Método inspiram-se no comentário de Gilson; as das Meditações
e Objeções no livro de Guéroult; as das Paixões da Alma no livro de Lívio Tei­
xeira e na edição de Mme Rodis-Lewis. Sempre que pudemos, restituímos
expressamente a estes autores o que lhes é devido, isto é, tudo; e almejamos ape­
nas que as referências e citações que apresentamos incitem o leitor a consultar
estas obras.
Introdução

1.1. Propor ao homem de nosso tempo que leia ou releia Descartes exige
algumas palavras de explicação. Os filósofos, certamente, não deixam, nem dei­
xarão, tão cedo, de interrogá-lo, de solicitá-lo, de tomá-lo como testemunha.
Mas, para o homem de bem, que pretende apenas um conhecimento geral das
grandes obras do espírito humano, de que vale o trabalho de ir um pouco além
das fórmulas e das citações sempitemas? O espírito, quando não a letra, do pen­
samento cartesiano já não penetrou suficientemente nossas maneiras modernas
de pensar, sendo o resto justamente apenas resíduo? E preciso responder sim e
não a este elogio mitigado da grandeza cartesiana. Embora seja verdade que mui­
tos temas que foram outrora conquistas do filósofo francês são hoje lugares-
comuns universais, embora seja verdade, em contrapartida, que o conjunto da
filosofia de Descartes não poderia satisfazer validamente a todas as exigências
da maioria de nossos contemporâneos, não é menos justo ver no sistema do filó­
sofo, tomado como tal, um dos monumentos mais dignos de atenta visita. Nin­
guém gostaria, talvez, de habitar as vastas salas de Versalhes; ao menos é lícito
compartilhar, em demorando-se nelas, do sentimento com que alguns homens,
cujo estado de alma compreendemos, souberam comprazer-se; e mesmo aí enten­
demos o sentido das soluções válidas e definitivas que nelas foram dadas a pro­
blemas que nossa arquitetura formula — e portanto resolve — de outra maneira.
É assim, acreditamos, que se deveria ler nosso autor. Não que seja proveitoso
percorrer-lhe os textos como se faz às salas de um museu, e à maneira de um
divertimento. Ele próprio nos adverte de que não escreve, de modo algum, para
aqueles que lerem suas Meditações “apenas como um romance, para se desente-
diar”1. Tanto mais que não se trata aqui de propor uma coletânea de peças esco­
lhidas, da qual fariam parte apenas morceaux de bravoure. Trata-se antes, sem
dúvida, de fornecer um ponto de vista a partir do qual se descubra uma região
suficientemente extensa, ainda que muitos de seus rincões permaneçam escondi­
dos. Paisagem “de fazer sonhar os maiores palradores”, se é permitido tomar
aqui a Descartes uma das raras flores de seu estilo. Mas é ainda necessário ir
além. Não é nada, ou quase nada, abranger com o olhar este vasto conjunto: o
que é necessário aqui é compreender, isto é, caminhar ao longo das veredas cuja
trama é tão cerrada que a desatenção de um instante nos extravia. Múltiplas
vezes Descartes adverte seu leitor — nas Respostas às Objeções e nas Cartas:

1 Respostas às Segundas Objeções.


12 INTRODUÇÃO

retirar, ou modificar, ou deslocar uma peça do sistema é correr o risco de pô-lo


abaixo. É preciso, pois, em primeiro lugar, ler Descartes, levando a sério o enca-
deamento de suas razões, acompanhando seus passos, como ele quis que se fizes­
se. E esta conversação com um grande espírito de outro século, mesmo quando
suscita em nós espantos e reticências, é sem dúvida o primeiro e principal exercí­
cio em que consistem as Humanidades.

1.2. Levada ao seu mais agudo grau de exatidão, até o ponto extremo da'
atenção e do discernimento, por um pensamento afeito às delicadezas da análise,
uma tal leitura explicativa de um texto só pode ser coisa de um historiador da
filosofia, na medida em que se revela, ele próprio, um filósofo. Guéroult nos deu,
quanto às Meditações, um modelo admirável. Não se poderia exigir o mesmo do
simples leitor homem de bem. Ao menos, cada um pode convencer-se de que este
ideal de compreensão escrupulosa deve servir-lhe de oriente. Mas se tal é efetiva­
mente a condição de proveitosa leitura das obras filosóficas — e singularmente
de Descartes —, seria restringir-lhe estranhamente o benefício o ignorar a neces­
sidade de outra espécie de leitura. Uma vez assegurado o esforço de compreensão
leal, pode e deve desenvolver-se livremente uma reflexão que discuta o texto para
relacioná-lo, de um lado, às circunstâncias históricas que lhe infundem sua relati­
vidade e, de outro, aos termos atuais dos problemas que ele coloca. Tanto seria
injusto e vão querer compreender Descartes regendo-o e repreendendo-o em
nome de uma mentalidade que lhe é estranha, quanto seria contrário à admiração
verdadeira que dedicamos a seu gênio recusar, após examinar para nós, homens
do século XX, o conteúdo válido de sua doutrina e de seu método. Compreendê-
lo inicialmente, sem preconceitos, tal como ele próprio' se exprimiu; meditar, em
seguida, sobre aquilo que nos toca em sua filosofia. Tais são as duas vias que
propomos ao leitor, e as páginas que se seguem oferecem-se-lhe apenas como
guia, sem qualquer ambição de acrescentar novo ensaio aos dos sèus
comentadores. '

1.3. Começaremos, pois, por um esquema muito sucinto da Metafísica


segundo a ordem das razões, tal como Descartes quis expô-la, como fundamento
de toda “Filosofia” — entenda-se, de todo conhecimento autêntico.
A este encaminhamento rigorosamente regrado das Meditações, cujas
conclusões garantem a possibilidade das diversas ciências, deve naturalmente se­
guir o desenvolyimento destas. Não seria possível incluir nesta coletânea textos
propriamente científicos: por isso mesmo, devíamos insistir aqui no sentido da
obra de Descartes cientista. Eis por que várias páginas serão dedicadas ao
conhecimento cartesiano segundo a ordem das matérias, ao seu método, à sua
arquitetura, muito mais, é verdade, do que ao seu conteúdo.
Tudo isto no concernente à coerência e à riqueza internas do sistema. As
duas partes de nossa introdução cuidarão desta segunda leitura a que aludimos
atrás, e tomarão como objeto Descartes e seu tempo, Descartes e nosso tempo.
INTRODUÇÃO 13

A ORDEM DAS RAZÕES: DESCARTES METAFÍSICO

“A análise mostra o verdadeiro caminho pelo qual uma


coisa foi metodicamente inventada e revela como os efeitos
dependem das causas.”
Respostas às Segundas Objeções.

2.1. A Filosofia, diz-nos Descartes, é o estudo da Sabedoria, isto é, um


“perfeito conhecimento de todas as coisas que o homem pode saber, tanto para
a conduta de sua vida como para a conservação de sua saúde e a invenção de
todas as artes”; mas, a fim de que este conhecimento seja tal, acrescenta, “é
necessário que seja deduzido das causas primeiras”. (Carta do autor a quem tra­
duziu o Livro dos Princípios.) A ambição do filósofo é, portanto, universal; seu
alvo é construir uma doutrina que baste à prática da vida terrestre e, como ele o
afirma em muitas passagens, que nos permita atingir a felicidade. Notar-se-á,
todavia, que uma tal doutrina só é verdadeiramente útil caso esteja inabalavel­
mente alicerçada aos olhos de quem quer que deseje dar-se ao trabalho de ficar
atento, e não apenas recebida de um preceptor. Libertar o “bom senso” daqueles
que quiserem realmente tomar-se senhores de seus-prejuízos2, dando-lhes o
exemplo de um procedimento rigorosamente regrado, tal é o desígnio de Descar­
tes em seus escritos metafísicos, que devem servir de preparação a uma Filosofia
universal, isto é, a um conhecimento seguro de todas as coisas.
Ele especifica no texto acima citado a ordem dos estudos que deve seguir o
homem ainda não deformado pelos prejuízos da Escola: formar em primeiro
lugar uma moral, isto é, elaborar para si uma regra de vida, talvez provisória —
tema que voltaremos a tratar; exercitar-se, a seguir, em pensar justamente, não
aprendendo as regras da “Lógica”, mas praticando raciocínios sobre questões
“fáceis e simples”, como as das Matemáticas, a fim de aprender “a bem conduzir
sua razão para descobrir as verdades que se ignoram”; dedicar-se, enfim, efetiva­
mente à verdadeira Filosofia, cuja primeira parte é a Metafísica, ou seja, a pes­
quisa dos primeiros princípios do conhecimento. Todo o resto deve daí decorrer:
Física e ciências da vida, posto que, uma vez estabelecidos os princípios, basta
continuar a raciocinar por ordem.

2.2. A metafísica cartesiana dirige-se, pois, por predileção, ao homem de bem,


capaz de raciocinar sem prejuízos, por menos atento que o apresentem. É o
Políandre da Recherche de la Vérité, diálogo em que o bom senso do ignorante
bem intencionado prevalece maravilhosamente sobre o saber mal fundado daque­
le que conhece “exatamente tudo o que se pode aprender nas Escolas”. O autor
das Meditações, como o do Discurso, como o Eudoxe da Recherche, apresenta-
se assim, apenas na medida em que mostra o caminho e guia os passos de quem
queira segui-lo, e não como aquele que detém e ensina uma verdade. Eis por que,
como diz ao redator das Segundas Objeções, ele pretendeu mais “escrever Medi­
tações do que disputas ou questões, como fazem os filósofos, ou teoremas e pro­

2 Por necessidade do texto, usamos sempre “prejuízo” para traduzir préjugé, no sentido de pre­
juízo, preconceito. (N. dos T.)
1

14 INTRODUÇÃO

blemas, como os geômetras”, testemunhando deste modo que escreveu apenas


“para aqueles que quiserem dar-se ao trabalho de meditar (com ele) seriamente e
êónsiderar as coisas com atenção”.
Esbocemos, este movimento das Meditações;xinico em seu gênero na história
da Filosofia, que Guéroult caracteriza mui exatamente como a “cronologia
necessária dos procedimentos intelectuais que, em conflito com os obstáculos
sensíveis, progridem em direção à verdade”3. O desígnio da Metafísica é pesqui­
sar em que limites pode funcionar nosso entendimento e descobrir no interior
destes limites, se possível, certezas.
A. Comecemos, portanto, por duvidar de nossos conhecimentos, já que|per-
cebemos facilmente que nos enganamos algumas vezes. Os conhecimentos prove­
nientes dos sentidos são os mais facilmente postos em dúvida. Mas duvidaremos
também das verdades matemáticas? Esteja eu dormindo ou acordado, dois e três
fazem sempre cinco. . . Todavia, não poderia ocorrer que um gênio onipotente
procedesse de tal modo que eu me enganasse nestas matérias da mesma maneira
que no tocante às coisas apreendidas pelos sentidos? Para maior segurança fingi­
rei portanto que nenhuma de minhas crenças está assegurada, nem mesmo as
matemáticas.
B. Mas, se estou assim persuadido de que não há nada, nem céu, nem terra,
nem espíritos, nem corpos, não estou entretanto persuadido de que não existo. Eu
sou, se me engano; duvido, penso, existo: essa palavra é necessariamente verda­
deira todas as vezes que a concebo em meu espírito. Minha existência como
coisa que pensa está doravante garantida e vejo claramente que esta coisa pen­
sante é mais fácil, enquanto tal, de conhecer do que o corpo, a cujo respeito até
agora nada me certifica. Este Cogito, este “eu penso”, modelo de pensamento
claro e distinto, dá-me a garantia subjetiva de toda idéia clara e distinta no tempo
em que a percebo. Ele funda já a possibilidade da ciência.
C. O encontro de uma idéia que seja efetivamente uma essência objetiva,
isto é, que me garanta a existência e a natureza de seu objeto, vai fundar agora
a objetividade da ciência. Esta idéia é a de Deus, e a existência de um Deus veraz
irá converter a necessidade subjetiva das idéias em necessidade objetiva.
Minhas idéias, enquanto são “imagens das coisas”, diferem entre si pela
maior ou menor riqueza de seu conteúdo. A idéia de um Deus eterno e infinito é,
dentre todas, a mais rica. Ora a “luz natural”, isto é, a evidência das idéias cla­
ras e distintas que o Cogito me revelou, ensina-me que deve haver tanta realiaaae
na causa quanta em seu efeito. É preciso, pois, que esta idéia de perfeição que
reconheço em mim provenha, não de mim, mas de um ser bastante poderoso e
real para dar conta da riqueza mesma de sua idéia. Tal é a primeira prova da
existência de Deus pelos efeitos.
De outro lado, eu, que existo e que tenho a idéia de um ser perfeito, de quem
posso tirar minha existência, quer tenha começado a existir em certo momento,
quer tenha sempre existido, já que a conservação de um ser exige tanto de uma
causa quanto sua criação? Não pode ser de mim mesmo, pois eu me teria dado

3 Descartes Selon l’Ordre des Raisons, Paris, 1953, I, pág. 338. Escusado é dizer quanto deve­
mos, neste ponto, à monumental exegese de Guéroult, que leva o leitor pouquíssimo atento a
redescobrir o texto das Meditações. I
INTRODUÇÃO 15

a fortiori todas as perfeições que conheço. Ê preciso pois que seja de um ser per­
feito, e esta perfeição exclui a hipótese de um Deus enganador.
Assim, fica estabelecida a objetividade de nossas idéias e, mesmo, aparente­
mente, a constante certeza do conteúdo delas.
D. O que faz com que, por uma -inversão dos termos do problema metafí­
sico, trate-se agora de explicar a possibilidade do erro: sendo Deus onipotente e
veraz, como pode ocorrer, entretanto, que nos enganemos? Ê que o erro não é
absolutamente algo real, que dependa de Deus, mas apenas uma carência em
mim que estende o poder de meu livre arbítrio para além de meu entendimento.
Minha vontade, ou poder de julgar, é livre e infinita; eu me engano quando a
estendo às coisas que não entendo. Assim, o erro tem o, nada por princípio meta­
físico — o que justifica Deus desta carência que me é própria — e a liberdade
por princípio psicológico, que é em mim, ao contrário, uma infinita perfeição.
E. Minhas razões de duvidar são pois explicadas e, ao mesmo tempo, supe­
radas. A dúvida “metafísica” figurada pelo Gênio Maligno é afastada, assim
como a dúvida hiperbólica referente às essências matemáticas. E da certeza obje­
tiva das idéias claras e distintas — como são as idéias matemáticas — posso
extrair ainda uma prova da existência de Deus. Pois na idéia de um Deus perfeito
percebo a existência. A realidade objetiva que lhe corresponde é portanto um ser
existente. Esta prova estabelece a necessidade da existência de Deus, mas não é
válida para mim, a não ser, é certo, que eu já tenha estabelecido por outra via o
princípio da objetividade das idéias claras e distintas que, por sua vez, dçpende
da existência de Deus. São as duas provas anteriores independentes que a toma­
ram indubitável. Não há círculo aqui, mas concurso.
Resta esclarecer este aspecto de minha dúvida hiperbólica que concernia às
coisas materiais e se baseava na obscuridade e na confusão das idéias sensíveis.
Sem o que, uma ciência bem fundamentada da natureza corpórea não poderia
estender-se para além das demonstrações dos geômetras, “que não se preocupam
com sua existência”.
F. Ora, posso estar certo de que o corpo e a alma — ou seja, aquilo que
pensa — são realmente distintos, posto que posso concebê-los clara e distinta­
mente como separados, e de que a onipotência de Deus pode, por conseguinte,
separá-los. De outro lado, Deus me dá, por intermédio do sentimento, que é em
mim uma certa faculdade passiva de conhecer as coisas sensíveis, a idéia de cor­
pos existentes. Não poderia enganar-me nisto, a não ser que me desse ao mesmo
tempo a 'faculdade de conhecer a causa verdadeira, eminente4, dessas idéias;
mas, ao contrário, ele me inclina fortemente a acreditar que essas idéias provêm
das coisas corporais: é preciso, pois, confessar que existem.
Tudo o que nelas vejo de claro e distinto é somente de natureza geométrica,
enquanto meus sentidos me fornecem apenas uma idéia confusa e obscura de
suas qualidades. Esta experiência do sentimento revela-me que minha alma, em­
bora essencialmente distinta de meu corpo, é estreitamente “confundida e mistu­
rada” com ele. Esta união da alma com o corpo permanece incompreensível para
meu entendimento, mas o que me parece possível não é de modo algum um limite
das possibilidades de um Deus infinito, que tudo pode, salvo aquilo que for
contraditório à sua própria essência. Incompreensível é, pois, minha natureza, na

4 Quer dizer: cuja realidade não seja formalmente aquela que me é dada na idéia que tenho dela.
16 INTRODUÇÃO

medida em que sou composto de alma e de corpo; mas ela comporta em si


mesma com que subsistir, e Deus proveu-a exatamente da perfeição que lhe con­
vém e à qual ela pode pretender, dando-nos sempre o meio de retificar, pelo
entendimento, os inevitáveis erros de nossos sentidos que nos fornecem não ima­
gens, mas signos das realidades materiais e de nossas necessidades.

2.3. Assim, pois, compreendida e reconhecida a imperfeição e a debilidade


de nossa natureza, a possibilidade de uma ciência certa nos é dada, desde que nos
recusemos a nos deixar extraviar. Assim, acham-se sucessivamente afastados
dois erros: o que consiste em “sofisticar a razão pelo sentimento” — e as três
primeiras Meditações o desmascaram; e o que consiste em “sofisticar a natureza
pela razão” 5 — e as três últimas Meditações o refutam.
Tal é o ensinamento das Meditações Metafísicas, que constituem, como
vemos, um preâmbulo necessário, mas somente um preâmbulo, da verdadeira
Filosofia. Tanto mais que bastaria, diz Descartes, “tomar conhecimento dela
uma vez de maneira geral e lembrar a conclusão” (Col. com Burman), sem insis­
tir demasiado, dedicando-se a tais meditações, como ele se vangloria diante da
Princesa Elisabeth, apenas durante algumas horas, no máximo, por ano. Ainda
assim, cumpre estar seguro de que se compreenderam perfeitamente as suas
razões e a maneira rigorosa segundo a qual decorrem umas das outras, de tal
sorte que nosso espírito permaneça constantemente em guarda contra a confusão
entre prejuízos dos sentidos e conhecimentos claros e distintos do entendimento.
Toda a filosofia cartesiana constitui uma tentativa para desenvolver com vigi­
lância esta árvore das ciências cujas raízes são a Metafísica, o tronco a Física, e
os ramos as demais ciências que dela derivam, a saber, principalmente, a Medici­
na, a Mecânica e a Moral. '

A ORDEM DAS MATÉRIAS: DESCARTES CIENTISTA

“Gostaria muito de prosseguir e de mostrar aqui toda a


cadeia de outras verdades que deduzi dessas orimeiras.”
Discurso do Método, V.

3.1. Observar-se-á que nesta célebre imagem da árvore do conhecimento a


Matemática não se acha representada. Estranha lacuna, dir-se-á, se se pensar nas
afirmações de Descartes sobre a importância desta ciência, cujos raciocínios ele
queria que, penetrassem toda a sua Física. Ê que o estatuto da Matemática é sin­
gular; ela não se acha nem ao nível da Metafísica, que funda a ciência e lhe for­
nece seus princípios, nem ao nível das outras ciências, que reconstroem as coisas
pêlo pensamento, dando a razão dos efeitos. Como ciência da extensão, ela con­
diciona diretamente o conhecimento das coisas sensíveis e se encontraria, portan­
to, no direito de fazer parte da Física; mas, de fato, como toma para objeto o que
há de mais simples nas coisas, de mais imediatamente acessível nelas às idéias
claras e distintas, ela intervém no sistema essencialmente como paradigma da
dedução rigorosa, é exercício imediato do método. Compreende-se, por conse­
guinte, que Descartes possa ao mesmo tempo gabar-se do fato de aproximarmos
5 Guéroult, op. cit., II, pág. 245.
INTRODUÇÃO 17

sua Física das Matemáticas puras, “às quais (ele) almeja mais do que tudo que
ela se assemelhe” (Respostas às Quintas Objeções) e declarar-se “aborrecido”
com os problemas matemáticos: pois estes são apenas um meio e a ocasião de
um exercício.

Matemáticas e Método

3.2. As regras do método que o filósofo quer aplicar universalmente não


aparecem em parte alguma de maneira mais manifesta do que no raciocínio
matemático. E se se quiser comparar os procedimentos de que ele realmente
lança mão em sua Geometria aos preceitos do Discurso e das Regulae, não se
pode deixar de notar que estas últimas reproduzem e generalizam as regras de
sua técnica algébrica. Dividir a dificuldade, ir do simples ao complexo, efetuar
enumerações completas, é o que observa rigorosamente o geômetra quando ana­
lisa um problema em suas incógnitas, estabelece e resolve suas equações. A origi­
nalidade de Descartes consiste em ter determinado, de forma por assim dizer
canônica, essas regras de manipulação que somente se esboçam em seus contem­
porâneos na sua aplicação particular às grandezas, e de havê-las ao mesmo
tempo oposto e substituído à Lógica da Escola, na qual vê apenas um instru­
mento de retórica, inutilmente sofisticado.

3.3. As matemáticas cartesianas são pois realmente, em sua intenção, um Mé­


todo: como afirma a XIV Regra, “não temo dizer que esta parte de nosso método
não foi adiantada para resolver problemas de matemática, mas antes que é preci­
so aprender as Matemáticas apenas para cultivar este Método”. E, no entanto,
neste domínio da ordem e da grandeza que ele se deve exercer inicialmente. O lei­
tor do Filósofo erraria portanto grandemente se tomasse sua declaração dema­
siado ao pé da letra e fará bem em se informar dos resultados obtidos neste domí­
nio. A considerar as coisas grosso modo, e sem querer entrar num exame
circunstanciado, a resposta poderia ser. a seguinte:
1. ° No plano tecnológico, Descartes pensa haver tomado o melhor da Aná­
lise dos Antigos e da Álgebra dos Modernos. A Análise dos Antigos — a de
Euclides, a de Arquimedes, a de Apolônio — caracteriza-se pelo rigor. Numa
demonstração sempre intervém apenas um número finito de procedimentos de
pensamento ou, ao menos, uma série de procedimentos correspondente à dos
inteiros. Quanto à Álgebra dos Modernos, que ele sem dúvida estudou em Cla-
vius, e cujos progressos obtidos por Viète conhecerá somente mais tarde, ele pro­
cede realmente segundo a ordem na solução dos problemas e se esforça por tra­
zer à luz os processos de invenção que os Antigos tinham o coquetismo de
dissimular; mas ela se enreda num simbolismo pesado e rudimentar, que o Ter­
ceiro Livro da Geometria substitui de prontovpor aquele que é ainda hoje usado.
Para convencer-se disso, bastaria compará-lo com uma página da Álgebra de
Clavius, onde nenhuma equação é completamente formulada em símbolos e onde
signos cabalísticos representam as diversas potências da coisa, isto é, da
incógnita.
2. ° Esta nova clareza da linguagem e do pensamento deriva, num plano
mais profundo, de uma inovação maior. Separando radicalmente o cálculo das
intuições sensíveis da grandeza, Descartes renuncia ao estreito realismo dos anti­
18 INTRODUÇÃO

gos geômetras: um quadrado, um cubo não mais serão necessariamente pensados


como a medida de uma ârea, de um volume, porém como resultados de uma ope­
ração aritmética, homogêneos entre si, posto que todos correspondem a números.
Assim, acha-se consumado o passo decisivo para um cálculo abstrato e geral.
Aos símbolos múltiplos que diferenciam qualitativamente as diversas potências
da Cosa (coisa), indicando espécies distintas de grandezas: superfícies, vohkmes
e, paradoxalmente, “supersólidos”, por exemplo, para a quinta potência. . I. —
substitui o símbolo único da incógnita, ao qual um expoente é associado para
nele diferenciar estruturalmente as potências.
O que se chamará mais tarde de “Geometria Analítica” não é, em Descar­
tes, nada menos do que a redução sistemática das propriedades de elementos
geométricos a estruturas de cálculo. A idéia de representação desses elementos
por meio de coordenadas, que por vezes se atribui ao Filósofo, era já conhecida
— e, em certos domínios, aplicada — bem antes dele; Fermat, seu contempo­
râneo, a expõe, de resto, de maneira bem mais sistemática, em seu Isagoge, do
que o faz. Descartes no Livro Primeiro da Geometria. Mas é Descartes que abre
caminho para uma identificação das estruturas da Álgebra e das da Geometria.
Inventio mirabilis, mas que trazia em si mesma seus próprios limites.
° Com efeito, oparti-pris de não considerar, em Geometria, senão as cur­
3.
vas cujas propriedades possam ser coordenadas às das equações algébricas for­
nece realmente a Descartes o fio condutor de uma classificação racional, onde
intervém curvas de um grau qualquer e não mais apenas, como nos Antigos, as
de segundo grau, as cônicas. Mas é preciso afastar, ao mesmo tempo, todas as
curvas de outro tipo, cuja descrição combine dois movimentos incomensuráveis
entre si. São as curvas “mecânicas” que ele expulsa ou desejaria expulsar do
paraíso dos geômetras. A Florimond de Beaune, que lhe propõe o estudo de uma
curva logarítmica, responde por uma determinação de suas tangentes e de seus
pontos por meio de uma série indefinida de aproximações, pois os dois movimen­
tos pelos quais se pode compor sua trajetória são algebricameijte irredutíveis.
Mas assinala efetivamente que procede deste modo, por assim dizer, a contra­
gosto: as linhas “mecânicas” não dependem da racionalidade algébrica, a única
que ele quisera conceber; e se “na série das coisas a pesquisar apresenta-se algu­
ma da qual o nosso entendimento não possa ter a suficiente intuição, é preciso
parar aí; não cabe examinar o que segue” 6. Compreende-se, por conseguinte, em
que sentido pôde ele opor-se à corrente de pensamento que, em seu tempo, prepa­
rava a invenção de novo- cálculo que devia culminar numa filosofia do infinito e
do contínuo: neste ponto, Fermat, Cavalieri, Pascal, preparam e anunciam
Leibniz.

“O Mundo de Monsieur Descartes ”

3.4. A Física cartesiana é a explicação das coisas deste mundo; ela deve ao
mesmo tempo desmascarar as ilusões ocasionais de nossos sentidos e explicá-las,
ou seja, ela desenvolve por ordem todas as conseqüências da distinção entre a
alma e o corpo. Neste sentido, ela se opõe radicalmente à Física da Escola, cuja
6 Regra VIII. Cf. sobre este tema o penetrante estudo de J. Vuillemin, in Mathématiqiles et
Métaphysique chez Descartes, Paris, 1960.
INTRODUÇÃO 19

noção de forma substancial é interpretada por Descartes como uma confusão


entre as idéias da extensão e do pensamento: física da finalidade, na qual os cor­
pos têm um lugar natural, em cuja direção se deslocam, e uma perfeição, para a
qual tendem. Descartes insiste muito na expulsão da finalidade; seu Mundo, uma
vez dados a matéria e o movimento e determinados pelas leis eternas que Deus
lhes impôs, podería perfeitamente constituir-se, tal como o vemos, a partir do
caos; nenhuma intenção é necessária para explicar sua construção. “Pela nature­
za”, diz eie, “não entendo absolutamente aqui algum deus ou qualquer outra
espécie de potência imaginária; mas sirvo-me desta palavra para significar a pró­
pria matéria, enquanto a considero com todas as qualidades que lhe atribuí,
compreendidas todas em conjunto, sob a condição de que Deus continue a
conservá-la da mesma forma que a criou.” (O Mundo, Cap. VIII.)

3.5. Os constituintes reais do mundo são, portanto, a matéria e o movimen­


to. Por matéria cumpre entender apenas uma extensão compacta, não qualifi­
cada, cujas diversas modificações, em sua totalidade, só podem provir de sua
fragmentação em parcelas mais ou menos rápidas e tênues, pela ação do movi­
mento. Este é definido por Descartes como o transporte relativo de uma parte dá
matéria da vizinhança de um corpo que a toca à vizinhança de qualquer outro.
Daí decorre o princípio fundamental, a saber, que não há vazio na natureza,
mas apenas deslocamentos de partes da matéria que se substituem umas às
outras. O movimento não é, portanto, possível, a não ser que esta matéria se frag­
mente ao infinito (o que “concebemos ser verdadeiro” sem poder “compreender”,
Princípios, II, 34), e todo deslocamento de uma partícula insere-se necessaria­
mente na permutação em anel de um conjunto de partículas. Neste mundo pleno,
só há turbilhões de matéria.
O segundo princípio fundamental deriva da perfeição e imutabilidade de
Deus: é o princípio da constância da quantidade de movimento. Esta quantidade
de movimento é definida como o produto da “grandeza” de um corpo, que mede
sua quantidade de matéria por sua velocidade instantânea, contada independen­
temente de sua direção 7.
Da imutabilidade divina seguem-se ainda três leis básicas da natureza:
1. ° Que toda alteração do estado de movimento de' um corpo pressupõe
uma causa.
2. ° Que todo corpo que se move tende a continuar seu movimento em linha
reta. Estas duas leis constituem o primeiro enunciado preciso do princípio de
inércia.
3. ° Que se um corpo móvel encontra um outro (imóvel) “mais forte” do que
ele, nada perde de sua quantidade de movimento, mas apenas muda de direção;

7 Há aí, como se sabe, duas dificuldades que a mecânica de Leibniz e a de Newton trarão à
plena luz. De um lado, não é a simples extensão que intervém nas leis do movimento, mas a
massa, propriedade dinâmica da matéria. De outro, não se pode dissociar a grandeza das veloci­
dades de sua direção: é preciso figurá-las como grandezas vetoriais, e não como grandezas esca­
lares. Por outro lado, a definição estritamente relativista do movimento, ligada a um ponto de
referência local, não é de modo algum clara se examinarmos suas consequências, pois parece
então que a quantidade de movimento em um sistema perde toda a significação. Mas a discussão
dessa dificuldade de interpretação do mecanismo cartesiano nos arrastaria demasiado longe.
20 INTRODUÇÃO

se encontra um “mais fraco”, perde tanto movimento quanto imprime ao outro8.


A partir destes princípios estabelece-se a Mecânica cartesiana, que se reduz,
como se vê, a uma teoria da comunicação dos movimentos, ou seja, do choque
dos corpos. Toda a Física deverá, pois, apresentar-se como uma tentativa
heróica de deduzir daí a diversidade dos fenômenos.

3.6. A esta tentativa Descartes concederá o nome de “fábula do mundo”,


pois é uma explicação genética que mostra como poderia ter-se constituído q uni­
verso, a supor que Deus não tenha preferido criá-lo de uma só vez. Ele condida,
portanto, seu leitor “a sair fora deste mundo para vir ver um outro inteiramente
novo (que ele engendrará) em sua presença nos espaços imaginários”. Precaução
puramente oratória destinada a inquisidores de ortodoxia, ou consciência do
caráter hipotético de toda explicação científica? Ambas as coisas ao mesmo
tempo, talvez; em todo caso, não parece que o filósofo haja, ele próprio, perce­
bido aqui um conflito com sua fé na revelação das Escrituras; e sua Física pare­
ce-lhe boa e verdadeira, na medida em que nos toma inteligível, tal como Deus
a dispôs ao criar suas leis como verdades eternas, a máquina do mundo.
Ele discerne, pois, três estados da matéria, segundo o grau de fragmentação
e a velocidade das partículas que se ordenam em vastos “turbilhões”, consti­
tuindo os diferentes “céus”, com seus sóis e planetas. A própria luz nada mais é
do que a transmissão instantânea do deslocamento das mais finas partículas,
vindo tocar o órgão da visão. A figura arredondada ou aguda e o grau de agita­
ção das partículas mais volumosas explicam as propriedades que chamamos quí­
micas dos corpos terrestres e sua ação sobre nossos sentidos. Não é possível dei­
xar de admirar a amplitude desta cosmogonia, que engendra sob nossos olhos
um mundo, nosso sol com suas manchas, águas doces e águas salgadas; que quer
explicar “a maneira pela qual arde uma tocha” e a “natureza do carvão”, qual a
“diferença que existe entre o ímã e o ferro” e “por que o aço é muito duro,' teso
e rude”, a transparência de certos corpos e a gravidade e a lüz. . . Como se
explica que ela tenha, entretanto, dado tão poucos frutos duráveis e que se tenha
podido dizer, não sem evidente exagero, que ela retardara de um século o desen­
volvimento de uma verdadeira ciência da natureza?
3.7. A intenção cartesiana era radicalmente inovadora e fecunda, e é ela
ainda, pode-se dizer, que domina todos os êxitos de uma Física tomada anticar-
tesiana em seu conteúdo. Considerar inicialmente que os dados dos sentidos são
signos das coisas, como é expressamente dito no início do Tratado do Mundo, e
construir modelos matemáticos dos fenômenos é o que já fizera Galileu, o que
fará Newton e o próprio Descartes, quando é estritamente fiel a seu desígnio.
Explicar as coisas é então ser capaz de agir sobre elas, tomar-se “senhor e pos­
suidor da natureza”. Basta comparar, por exemplo, a bela teoria do arco-íris9,
inteiramente moderna por seu uso combinado da experiência, da hipótese e do

8 Com estas idéias ae “mais fraco” e “mais forte” reaparecem, infelizmenté, as idéias obscuras
que, unidas à distinção não fundamentada entre direção e quantidade de movimento, hão de vi­
ciar irremediavelmente a Mecânica cartesiana e levá-la a pecar contra seus próprios princípios.
9 Com sua teoria das lentículas da Dióptrica, o princípio de inércia, e o conteúdo do peaueno
Tratado dos Engenhos que segue a carta a Huygens de 5 de outubro de 1637,é quase tudo [de só­
lido que permanece dos resultados Oa física cartesiana.
INTRODUÇÃO 21

cálculo, com as dissertações escolásticas de seus contemporâneos: que se per­


corra apenas a excelente Summa Philosophica do Pe. Eustache de Saint Paul, na
segunda’edição de 1611, que serviu talvez de manual ao jovem aluno de La
Flèche. . . '
Mas a efetivação desta intenção é raramente tão feliz. É que Descartes, em
lugar de procurar um esquema onde apenas intervenham a ordem e a medida,
limita-se o mais das vezes a comparações tomadas aos dados da percepção para
justificar seu modelo abstrato, A fim de explicar a concentração das menores
partes da matéria no centro de cada céu, invoca a imagem da confluência de dois
rios e dos materiais que eles carreiam (O Mundo, Cap. IX); para justificar o fato
de que menores partes dos espíritos animais podem “espessar-se em pituíta”, não
no cérebro, mas “no conduto que existe entre as narinas e a garganta”, ele alega
que “a fumaça se converte facilmente em fuligem nos tubos das chaminés, mas
nunca na lareira onde está o fogo” (Tratado do Homem). Ê confundir a imagina­
ção com o entendimento.
Assim como interpretara estritamente a racionalidade matemática como
definida pela Álgebra, do mesmo modo quer interpretar estritamente a racionali­
dade física como determinada pelo mecanismo dos choques, que são trocas de
quantidade de movimento. Ê esterilizar no embrião a sua própria idéia de uma fí­
sica matemática, coibir uma colaboração verdadeiramente fecunda da expe­
riência com a razão. Assim, as deduções que desenvolve permanecem na super­
fície das coisas, sem virtude, e deixam de satisfazer os rigorosos critérios que ele
próprio instituira.

O Homem

3.8. Como quer que seja para nós este malogro, Descartes não lhe foi sensí­
vel; acreditou possuir uma explicação dos fenômenos verdadeiramente convin­
cente para um espírito atento e não preconceituoso. E neste universo o homem
tem seu lugar, eminente, já que participa a um tempo do reinado da extensão,
onde tudo é mecanismo, e do reinado do pensamento, que o introduz na moral e
na religião. Mas depende ainda de um terceiro reinado, que é o da união entre a
alma e o corpo. Daí o caráter inteiramente singular da antropologia cartesiana,
que se divide necessariamente em três registros bem distintos.
Enquanto corpo, orgânico, o homem é animal, o que quer dizer que convém
descrevê-lo como uma máquina, mais complexa certamente que os outros siste­
mas materiais, e que tudo quanto ocorre nesta máquina deve ser fisicamente
explicado. O começo do Tratado do Homem expõe claramente este postulado.
Imaginaremos, diz o Autor, homens em tudo a nós semelhantes, mas considera­
remos, inicialmente, neles apenas uma máquina sem alma, sendo esta, como se
sabe, realmente distinta do corpo. Contrariamente à interpretação escolástica do
aristotelismo, para a qual toda organização é alma, Descartes pretende explicar
a fisiologia animal a partir da circulação, no corpo, das diferentes modalidades
da matéria. Os espíritos animais nada mais são do que as partes mais tênues do
sangue que passam do coração ao cérebro, e a seguir do cérebro aos músculos,
que eles movem à maneira de nossos comandos hidráulicos. O próprio sfangue
provém de uma filtragem das partes dos alimentos que o calor do coração irá
destilar. Na Descrição do Corpo Humano, seguida do Tratado da Formação do
22 INTRODUÇÃO ‘

Feto, ele retoma os mesmos temas e empreende expor mecanicamente a forma­


ção do embrião pelo simples movimento desordenado dos elementos das duas
“sementes”. Certamente, a fisiologia cartesiana permanece no mesmo nível de
sua física; o princípio da explicação mecanicista parece aqui, no entanto, mais
revolucionário ainda e, considerando as dificuldades do objeto, mais diretamente
fecundo1 °. Pois ele conduz Descartes a um exame empírico muito mais cuida­
doso dã máquina humana; e como a aplicação imediata dos esquemas matemá­
ticos permanece ainda hoje incerta, a insuficiência de suas explicações surpreen­
de-nos muito menos. I

3.9. Mas o traço mais interessante da antropologia cartesiana é segura­


mente sua concepção do reinado da união da alma com o corpo. Nossa alma não
esfá apenas álojadá em nosso corpo “como o piloto em seu navio”; ela lhe é mui
estrêitamente — e incompreensivelmente — unida, de tal sorte que nossas idéias
sensíveis não se ligam de modo algum às coisas pela relação de cópia com mode­
lo, mas pela de signo com significado. União incompreensível, com efeito, pois
mistura e confunde- o divisível, que é a extensão, com o indivisível, que é o pensa­
mento; Descartes não pretende de modo algum tornar concebível o que não
poderia sê-lo; quer apenas tentar mostrar como conheço, por intermédio do indi­
visível, o que ocorre no divisível. Daí o caráter radicalmente obscuro e confuso,
mas perfeitamente autêntico em seu gênero, da sensação, que apreende qualida­
des e não essências objetivas. Daí, ainda, a existência dàquilo que Descartes
chama as paixões, que são “percepções, ou emoções, ou sentimentos da alma,
que se relacionam particularmente a ela e que são causadas, mantidas e fortifi­
cadas por alguns movimentos dos espíritos” (animais).
As paixões devem, pois, ser estudadas enquanto modificações corporais —
e encontramos então seu exato equivalente entre os animais —, mas sobretudo,
enquanto paixões, em relação à nossa alma, que elas “incitam e predispõem a
querer coisas para as quais preparam o corpo”. Introduzem, portanto, a finali­
dade na economia corporal, uma finalidade global, é verdade, e que não é infalí­
vel, mas que institui, no conjunto, a melhor ordem que se possa esperar para
nossa saúde. Neste sentido são inteiramente boas, e basta saber como bem inter­
pretá-las e utilizá-las.

3.10. De maneira geral, a união entre a alma e o corpo comanda o desen­


volvimento das duas últimas ciências que têm o homem como objeto: a Moral e
a Medicina. Ambas são introduzidas no Discurso como o coroamento da ciên-
. cia, conhecimento diretamente aplicado à busca da felicidade. A segunda bem
poderia constituir-se, para começar, como disciplina puramente física, posto que
nada se passa no corpo organizado que não dependa do mecanismo de sua má­
quina. Mas cumpre renunciar a isto bem depressa, O corpo humano deve ser
considerado como composto substancial e seria possível encontrar, em algumas
anotações de Descartes, as premissas de uma medicina psicossomática. Mas,

10 Assim, Descartes tem a idéia nítida, do reflexo, e mesmo do reflexo condicionado. (Cf. Cartas,
a Mersenne, de 18 de março de 1630, sobre o cão fustigado ao som do violino. . .) Acerca desse
ponto, poder-se-á consultar o livro de Canguilhem: La Formation de la Théorie du Réflexe au
XVIIeetXVHIe Siècle, Paris, 1955. |
INTRODUÇÃO 23

como desta união entre a alma e o corpo não seria possível obter uma idéia clara
e distinta, e como seria necessário raciocinar precisamente sobre noções obscu­
ras e confusas, a empresa culmina em malogro reconhecido. Descartes nos devol­
ve, ao fim de contas, à obediência à nossa natureza, que “conhece bem melhor
(seu estado) do que um médico, que só vê o exterior”. (Colóquio com Burman.)
É renunciar a uma medicina científica.

3.11. Quanto à Moral, a evolução do projeto cartesiano é mais complexa, e


conduz, como o assinala Guéroult, a “dificuldades inextrincáveis”.Amoral provi­
sória, enunciada no Discurso, é finalmente substituída por uma moral científica?
É ainda o que faziam esperar os Princípios: a sabedoria é um conhecimento pelas
causas, que supõe, portanto, uma ciência acabada do mundo e do homem, e o
soberano bem confunde-se com o gôzo deste saber. Mas, se Descartes mantém
sempre esta posição de princípio, confessa, não obstante, a Chanut (carta de 15
de junho de 1646) que precisa realmente contentar-se com um conhecimento
imperfeito, suficiente, todavia, para “estabelecer fundamentos certos em moral”.
E é o que afirma ter feito no Tratado das Paixões. A moral das paixões, que nos
dá o meio de bem usar o sentimento obscuro de nosso bem, que nos proporciona
a união da alma com o corpo, representa, portanto, .o; conhecimento científico,
certo quanto à sua forma, confuso quanto a seu objeto, que, em um sentido, pare­
ce substituir a moral provisória. Com efeito, conduz a confirmá-la e a incluí-la.
Pois, incapaz de fornecer respostas a todos os problemas que nos formula a prá­
tica da vida, ela baseia de alguma maneira as máximas da moral provisória em
nossa própria condição de incerteza, que ela traz à luz. De tal sorte que o sobe­
rano bem, isto é, a virtude e a beatitude que a acompanha, “não mais residirão
na posse do verdadeiro,’donde resulta irresistivelmente a ação boa, mas do esfor­
ço por chegar a tanto”11. O conteúdo das regras morais cientificamente deduzi­
das de um conhecimento universal das coisas fica substituído pelaforma de uma
atividade: seguir a virtude é “ter uma vontade firme e constante de executar tudo
o que julgarmos ser o melhor e de empregar toda a força de nosso entendimento
em bem julgar”. (Cartas, a Elisabeth, de 18 de agosto de 1646.) E quando nenhu-,
ma razão nos inclina, é preciso obedecer às leis e aos costumes de nosso país. . .
Observar-se-á, no entanto, que esta doutrina está longe do formalismo de um
Kant; para Descartes, esta determinação formal de bem agir traduz-se direta­
mente no plano psicológico, pois corrésponde à cultura de uma paixão, que é a
generosidade, a qual leva o homem a conhecer que é senhor apenas de sua vonta­
de e o faz assumir constantemente a resolução de usá-la para aquilo que julga ser
melhor. Tal é a última palavra da sabedoria, como ela pareceu atualmente acessí­
vel ao autor já maduro do Tratado das Paixões-.

11 Cf., sobre toda esta questão, Descartes Selon l’Ordre des Raisons, II, caps. XIX e XX, e tam­
bém: Lívio Teixeira, Ensaio, sobre a Moral de Descartes, caps. IX e X.

24 INTRODUÇÃO

DESCARTES E SEU TEMPO

“O próprio rumor de sua azáfama não interrompe mais


meus devaneios do que o faria o de algum riacho. Pois, se
faço algumas vezes reflexão sobre suas ações, daí recebo o
mesmo prazer que vos causaria ver os camponeses que culti­
vam vossos campos; posto que vejo que todo o seu trabalho
serve para embelezar o lugar de minha morada, e para fazer
com que não haja aí carência de algo.” |
(Carta aBalzac, 5 de maio de 1631.)

4.1. Fosse-nos inteiramente desconhecido o personagem Descartes, nem


por isso sua filosofia seria menos admirável. Quis-se, no entanto, emprestar algo
de pitoresco a este imponente sistema, insistindo na humanidade de René Des­
cartes, romanceando um pouco, talvez, sua história. Seu engajamento como sol­
dado a serviço do Eleitor da Baviera, o sonho profético que relata em seus diá­
rios íntimos, a sua peregrinação a Loreto, a filha que teve com sua criada Helena
e que faleceu aos cinco anos, e mesmo a afeição que manifestou à Princesa Pala-
tina, tudo isso serviu de pretexto a muitas conjeturas. Não pretendemos retomar
aqui essas tentativas. Não nos podemos, todavia, desinteressar das condições
históricas mais gerais que cercaram o nascimento e o desenvolvimento do carte-
sianismo. As questões que podemos formular a este respeito não são de ordem
biográfica. Mais fáceis de resolver do que essas, pelo fato de não exigirem as.
mesmas precisões, são também incomparavelmente mais difíceis, pelo fato de
reclamarem uma interpretação da relação entre os fatos gerais de civilização e as
obras do espírito. Não poderiamos simular tê-las resolvido aqui, e ser-nos-á sufi­
ciente propô-las tão claramente quanto possível, simplificando muito, de resto,
os dados que deveriam ser apresentados.
Qual a atmosfera em que Descartes viveu? Em que medida e como partici­
pou das realidades de seu tempo? Pode-se relacionar os conceitos de qúe parte,
ou que submete à sua crítica, à ideologia de determináda classe? E os novos con­
ceitos que promove adaptam-se a uma nova ideologia? Especifiquemos sumaria­
mente esse conjunto de difíceis questões.

Um Meio Século Conturbado

4.2. Poderia talvez haver a tendência de confundir o meio século em que


viveu Descartes com o período faustoso do “Grande Século”. Entre 1598, ano da
separação dos Países Baixos da Coroa da Espanha, e 1650, data da nomeação de
João de Witt como Grande Pensionário da Holanda, são cinquenta anos, não de
equilíbrio e de Classicismo, mas de perturbações, de conflitos e de expressão bar­
roca: é a época, não de Luís XIV, mas da Mãe Coragem. Em 1619, estoura a
guerra nascida de uma revolta protestante dostchecos contra o imperador, e que
devia durar trinta anos, devastando as Alemanhas. As alianças se entrecruzam
entre países católicos e protestantes, potências marítimas e potências terrestres.
A política interior dos Estados não é menos conturbada: contestação do poder
real em França pela nobreza e pela burguesia togada: é a Fronda; lut'a nas
Províncias Unidas entre os clientes da Família de Orange e os grandes burgueses
holandeses; revoluções na Inglaterra e ditadura de Cromwell. E, por cima, os
INTRODUÇÃO 25

conflitos religiosos que opõem reformistas e católicos e, muitas vezes mesmo, em


cada confissão, duas tendências violentamente antagônicas: uma liberal, a outra
rigorista. É o caso do calvinismo holandês entre os partidários liberais de Armi-
nius e os de Gomar, ferozmente ortodoxos. Ê também um pouco o caso do cato­
licismo francês, em que o Cardeal de Bérulle se apresenta como um reformador.
Sem dúvida é sob esta forma religiosa que se manifestam então na consciência
dos contemporâneos os antagonismos mais profundos1 2.

4.3. Mas já se pode discernir muito claramente, nessa sociedade conturbada,


alguns conflitos de classes, que animam em profundidade as oposições políticas
e religiosas. A situação, certamente, não é homogênea na Europa, e o historiador
deve naturalmente distinguir o caso da Inglaterra, por exemplo, que conhece uma
primeira Revolução Industrial, do da França, com estruturas econômicas mais
antigas, e das Províncias Unidas que, de algum modo, estão entre uma e outra.
É possível, entretanto, de maneira geral, reconhecer quase por toda parte
manifestações diversas de um conflito maior. Uma nova burguesia, cujas bases
econômicas são já industriais na Inglaterra e na Holanda, opõe seus interesses
aos de outros grupos, amiúde bastante divididos: nobres arruinados ou frustra­
dos em sua influência política, trabalhadores, pequenos proprietários rurais. Nas
Províncias Unidas, por exemplo, à antiga indústria medieval dos tecidos, arrui­
nada pela concorrência inglesa, sucedeu uma indústria já quantitativa, cujas
inversões provêm dos enormes lucros do comércio marítimo e da atividade ban­
cária. As Companhias das índias criadas em 1602 quanto à Oriental e 1623 quan­
to a Ocidental, constituem potências monopolísticas assaz fortes para pautar
totalmente o jogo dos preços dos gêneros coloniais em toda a Europa. A grande
burguesia da província da Holanda exerce, portanto, uma ação capital no sentido
do liberalismo econômico, religioso e intelectual que lhe favorece o surto. Entra
em conflito com todos os que ela tende a privar de seus privilégios, como os no­
bres da Frísia e de Groningen, e todos aqueles que aspiram a uma repartição
mais equitativa das riquezas, camponeses, proprietários, operários e marinheiros.
Apoiam a família de Orange, Maurício de Nassau, depois os Guilhermes, e todos
os estatúderes de diversas províncias, isto é, governadores militares. Sua vanta­
gem tática nas lutas ‘deste meio século decorre do fato de representarem a idéia
de unidade nacional contra o espanhol e o francês. Em 1619, Maurício de Nas­
sau obterá a execução de Oldenbameveldt, representante dos burgueses. Mas em
1650, com a morte do segundo Guilherme de Orange, João de Witt é nomeado
Grande Pensionário, isto é, conselheiro jurídico da Holanda e de numerosas
províncias; manterá por vinte anos os poderes de verdadeiro presidente da Repú­
blica das Províncias Unidas, até que um golpe do partido orangista investe Gui­
lherme III da autoridade ditatorial, depois do bárbaro assassínio dos irmãos De
Witt que tanto deveria indignar Spinoza1 3. |

1 2 Cf. o papel desempenhado na Inglaterra pela ideologia puritana no desenvolvimento de um


primeiro capitalismo industrial. Ver J. U. Nef, La Naissance de la Civilisation Industrielle, Paris,
1954.
1 3 As belas-artes, nas Províncias Unidas, refletem a dominação real da classe dos grandes bur­
gueses, ao mesmo tempo que a fermentação de uma sensibilidade que não alcançou equilíbrio.
Hals e seus retratos de “regentes”, Rembrandt e seus jogos de; sombra dominam a nossos olhos
o meio século. Mas os contemporâneos nunca conseguiram recônhecer-se sem mal-estar no gênio
barroco do segundo.
26 INTRODUÇÃO

Essa luta aberta de episódios bastante sangrentos se desenrola entretanto


em clima relativamente liberal; os conflitos religiosos entre gomaristas e arminia-
nos, justamente porque se limitam apenas a duplicar o antagonismo entre os
orangistas ortodoxos e o partido burguês dos Estados liberais, não conduzem
absolutamente a uma tutela do pensamento. Os próprios príncipes de Orange,
chefes da reação aristocrata, e ortodoxos por política, são intelectualmente adep­
tos de um humanismo liberal. Eis por que veremos Descartes preferir cem vezes
a Holanda à. Itália, aparentemente mais calma, mas onde as questões religiosas
passam para o primeiro plano. Descartes viverá, portanto, na Holanda. Em que
medida participou dos conflitos de seu tempo?

Contradições da Solidão

4.4. René Descartes nasceu em uma família de burgueses enobrecidos pelo


exercício dos ofícios. Mandam-no estudar em um dos melhores colégios da
época, recentemente instituído pelos jesuítas. Em momento algum ver-se-á cons­
trangido a ganhar a vida: uma renda confortável e, com a morte do pai, uma
pequena fortuna provêem-lhe facilmente as necessidades. Sem dúvida manteve
um estilo de vida bastante modesto e procurou mais a independência e a paz do
que o luxo. Mas, na Holanda, habita casas cômodas, que são por vezes “peque­
nos castelos”, como em Franeker, “separado por um fosso do resto da cidade”,
e mesmo, com vistas à chegada do talhador de lentes M. Ferrier, ele “tomou um
rapaz que soubesse cozinhar à francesa”. (Cartas, a Mersenne, de 18 de março de
1630.) . |
Se, ao sair do colégio, se alista como soldado, é de maneira singularrriente
livre. Nunca solicita cargo algum, não possui aparentemente nenhum grau,
permanecendo realmente decidido a desempenhar sempre tão-só o papel de
espectador. É diletante, procurando mais “considerar os costumes dos outros
homens” do que tomar parte ativamente em suas querelas e na execução de seus
desígnios. Viu-se nele com razão, portanto, o solitário que se retira à parte das
perturbações para se entregar à pesquisa do verdadeiro. Mas esta solidão é ambí­
gua. No presente, como a conjuntura é favorável ao partido de Orange, que
representa uma certa ordem militar oposta aos ataques estrangeiros e aos riscos
de decomposição da União, Descartes aparece amiúde como o protegido dos
estatúderes. Mas .nem por isso está menos exposto às denúncias gomaristas de
um Vossius. De outro lado, tampouco é de duvidar que as idéias por ele expres­
sas estejam no fim das contas em harmonia, não com a política da classe anacrô­
nica dos nobres frísios, mas com a da grande burguesia. Tanto é que sua
influência se estenderá extraordinariamente após sua morte, durante o período
em que o partido do Grande Pensionário domina os destinos das Províncias. A
situação de Descartes fornece sem dúvida o primeiro grande exemplo da do inte­
lectual moderno, pois, se pertence pelo nascimento e condição a uma classe, cujo
interesse é no caso manter estaticamente uma certa ordem social, nem por isso
deixa de ser, pela obra, o anunciador de nova visão do mundo, que se tornará
logo a da classe dominante. Limitar-nos-emos a anotar em seu sistema alguns
traços principais desta ideologia.
INTRODUÇÃO 27

Filosofia e Ideologia ,

4.5. Pouco importa que René Descartes tenha sido, ele próprio, em muitos
aspectos, um.homem sinceramente ligado à religião e a ordem social tradicional.
(Seria absurdo descrevê-lo como revolucionário disfarçado, que mascarasse sua
incredulidade sob uma piedade simulada e seu radicalismo político sob um apa­
rente respeito pelos poderes.) O que conta é a introdução, em seu sistema, de ele­
mentos que vão objeuvamente no sentido ae uma idéia nova do homem e da
natureza. Desligados do contexto rigorosamente encadeado em que aparecem,
tomar-se-ão as idéias-forças de uma concepção geral [do mundo sumária mas efi­
caz, posto que diretamente imbricada em poderosos njiovimentos que dominam a
sociedade dos dois séculos vindouros. Existe realmente, neste sentido, uma ideo­
logia cartesiana. ; ■
O primeiro tema seria o da laiclzação do saber. "‘Concebí uma filosofia”,
diz ele a Burman, “de maneira que pudesse ser recebida em todo lugar, mesmo
entre os turcos, sem ofender a ninguém.” A universalidade que a ideologia medie­
val queria obter pela catolicidade da fé cristã, Dçscartes pensa encontrá-la
mediante o apelo ao “bom senso”. Tal deslocamento; do centro de gravidade do
pensamento concorda manifestamente com a substitxiição, por relações de troca
em uma sociedade capitalista, das relações de evangelização e comunhão numa
sociedade de tipo medieval.
O segundo tema seria o da causalidade. Este princípio já pertencia, é certo,
ao racionalismo escolástico; mas Descartes, estabelecida a existência de Deus,
interpreta-o num sentido mecanicista, cuja assimilação há de orientar todo o pen­
samento pragmático do futuro. Produzir efeitos pondo em ação causas adequa­
das, tal é o leitmotiv profundo do homem pós-cartesiano. Por mais que o dissi­
mulemos sob interpretações mágico-rituais, ou éticas [e religiosas, o mito nunca é
mais que uma manifestação de sua má-fé. Descartes anuncia o advento de um
mundo positivo e duro, mas que é também aquele em Jque o homem proclama seu
reinado sobre as potências da natureza, !
Um último tema, este radicalmente moderno, prolonga e completa os dois
outros. Chamá-lo-emos o tema da empresa. Tomou-se tão banal hoje que mal se
ousa mencioná-lo; era, entretanto, novo ao tempo dê Descartes. O propósito de
organizar o mundo em vista da felicidade terrestre dos homens, e de basear essa
organização em um domínio da natureza que consiste em integrá-la em um uni­
verso de máquinas, tal é a idéia cartesiana. O sentido que ela reveste no Filósofo,
e a repercussão renovada que pode ter em nós, homens do século XX, não deve
nos encobrir o acordo elementar e, querendo-se, mistificador que ela pôde espon­
taneamente manifestar com a mentalidade da primçira idade capitalista. Uma
ideologia da empresa infletida no sentido da procura Ido lucro e da mecanização
rude das relações entre os homens e das relações dos homens com o mundo, não
poderia evidentemente ser confundida com a filosofia de Descartes, exceto por
uma espécie de grotesco mal-entendido. Mas é assirri, sem dúvida, que, no mais
das vezes, as idéias conduzem o mundo. E para os séqulos subsequentes a ideolo­
gia cartesiana teve ainda mais importância do que a filosofia expressa pelo
pensador.
28 INTRODUÇÃO

DESCARTES E O NOSSO TEMPO

5.1. Ê possível, indubitavelmente, lendo hoje Descartesj limitar-se a admirar


em sua obra um magnífico monumento. Não é entretanto o intuito dos edftores
destes textos atender somente ao gosto arqueológico de um pequeno número de
amadores. Sendo Descartes de todos os filósofos franceses certamente o maior, o
mais sólido, seria muito humilhante tanto para a Filosofia como para nossa
época que seus escritos cessassem de ser para nós matéria de pensamento. Esbo­
çaremos, portanto, para concluir, algumas breves anotações sugeridas pela leitu­
ra de seu texto.
É lugar-comum, desde Hegel, ver nele o pai do espírito moderno e, |mais
precisamente, do racionalismo. Mas não lhe pedimos que nos transmita um
dogma: interrogamo-lo antes sobre sua maneira peculiar de colocar alguns de
nossos problemas e de esclarecer talvez nossas próprias contradições.

5.2. Descartes insistiu, por exemplo, no progresso de conjunto das condi­


ções de vida dos homens, obtido pela aplicação da razão. Mas jamais conside­
rou, por assim dizer, a realização concreta dessa transformação em uma história.
Falando da língua universal, cujo significado para uma filosofia racionalista da
vida social bem vê, já que por seu intermédio “os camponeses poderiam melhor
julgardaverdade das coisas do que o fazem atualmente os filósofos”, não espera
de modo algum vê-la jamais em uso. “Isso pressupõe”, diz a Mersenne, “grandes
transformações na ordem das coisas, e seria preciso que o mundo todo fosse tão-
somente um paraíso terrestre, o que não é bom propor a não ser no país dos
romances.” (20 de novembro de 1629.) Não só requer esta língua universal a
condição intrínseca do acabamento da ciência, mas ainda sua.utilização exige —
e favorece — uma empresa de subversão social que Descartes se recusa tèrmi-
nantemente a abonar. Por isso não concede, em sua filosofia, nenhum lugar à his­
tória efetiva. Isto concorda, naturalmente, com sua teoria do tempo descontínuo,
cujo fio é mantido pelo poder de Deus e pelo império de suas leis. Mas, para nós,
que aprendemos a converter o devir histórico em um problema, a atitude carte­
siana nos coloca diante de uma contradição entre o ideal fundado de um pro­
gresso do conhecimento ativo e a ideologia de uma ordem intemporalmente cons­
tituída. O racionalismo cartesiano se nos apresenta, neste ponto, como a
determinação necessária de um fim cujos meios nos escapam. Pede uma filosofia
da história, uma dialética das obras da razão. Por conseguinte, compreende-se
melhor por que, a partir dessa antinomia, tantos partidos contrários quiseram
anexá-lo.

5.3. Se proclama a universalidade do bom senso, que alicerça esta possibili­


dade teórica de um progresso coletivo dos homens, não é de modo algum para
concluir pela necessidade de uma pesquisa coletiva da verdade. Releiam o famo­
so texto da VI parte do Discurso: “Se houvesse no mundo alguém de quem se
soubesse ser seguramente capaz de encontrar as maiores coisas e as mais úteis
possíveis ao público e a quem, por esta causa, os demais homens se esforçassem
por todos os meios em auxiliar na realização de seus desígnios, não vejo que
pudessem fazer mais por ele além de custear os gastos nas experiências que
INTRODUÇÃO 29

necessitasse e de resto impedir que seu lazer lhe fosse arrebatado pela importuni­
dade de pessoa alguma...”
O estabelecimento das verdades da ciência é, para Descartes, obra de um
só. Ê que a estreita còncatenação das razões que se “encadeiam” exige, segundo
ele, que o mesmo espírito percorra o conjunto de seu sistema. O tempo da ciên­
cia, também, seria um tempo descontínuo, devendo cada um refazer por conta
própria o caminho já percorrido. Um individualismo tão radical, ainda que seja
perfeitamente coerente com a visão cartesiana das coisas,,será aceitável para
nós? Com ele está posta em causa a relação entre o coletivo e o individual. A
ética cartesiana, como doutrina da individuação da máquina corporal, por uma
alma que lhe dá sua finalidade, não nos colocará o mesmo problema? O gene­
roso se recusa a situar a sabedoria ao nível da ordem social; o que ele pede à
organização coletiva são apenas as comodidades “que só se encontram nas gran­
des cidades” (Cartas-,Balzac, de 5 de maio de 1631), e, acima de tudo, a paz.
Semelhante posição, que ainda hoje corresponde a certa concepção da vida pelo
intelçctual, nos leva a refletir sobre a antinomia do pensador solitário, empenha­
do, entretanto, em uma empresa cuja parada é a ventura da humanidade.

5.4. Esta convicção cartesiana da solidão originária do Ego, do “Eu”, sujei­


to de todo conhecimento, pôde inspirar, ou ao menos apadrinhar, a filosofia dos
fenomenólogos. Filosofar seria, inicial e essencialmente, explorar as diversas
modalidades dos atos de pensamento pelos quais o “Eu” coloca, fora de si, obje­
tos possíveis. Mostrar a passagem desses alvos ou intenções à apreensão de obje­
tos vividos — como reais, como imaginários, como rememorados ... — em um
universo em que se entrecruzam outras consciências, tal seria a difícil tarefa de
uma Filosofia que não se autoriza o atalho pouco seguro de uma prova da exis­
tência de Deus.
O Cogito cartesiano está, assim, na origem de uma filosofia da consciência.
Explicar deste modo o mundo partindo da consciência como dado evidente, ou
compreender, ao contrário, a consciência como um aspecto do mundo objetivo,
eis o dilema da Filosofia contemporânea. Uma meditação a partir de Descartes
nela nos introduz plenamente.

5.5. Faremos, enfim, uma última observação capaz de acentuar decidida­


mente a atualidade de certa problemática cartesiana. Ao jovem Burman, que o
interroga sobre uma passagem da IV parte dos Princípios, Descartes teria feito
notar que: “Não fomos bastante acostumados a considerar as máquinas, e esta é
a origem de quase todos os erros em Filosofia”. (Cumpre entender por Filosofia
o conjunto da ciência humana.) O cartesianismo é, pois, a primeira Filosofia
explícita das máquinas, pois não se poderia comparar-lhe algumas considerações
esparsas entre os alexancfrinos que comentaram, neste sentido, Aristóteles e
Arquimedes. Todo o seu desígnio consiste, uma vez estabelecida a certeza de
uma ciência positiva, em imaginar “máquinas” capazes de produzir todos os
fenômenos do universo, inclusive os do corpo humano. Mas viram-se as dificul­
dades que sua tentativa encontrava dentro -de sua própria doutrina, onde a alma
imaterial deve dominar até certo ponto a máquina e dar-lhe uma finalidade. A
antinomia espírito-máquina domina ainda hoje, sob forma renovada, as tentati­
vas de uma ciência do homem. Surgiu nova concepção da máquina que corres­
30 INTRODUÇÃO

ponde, sem dúvida, a outra posição da antinomia; os sistemas que tratam a


“informação” se opõem àqueles, que tratam a “energia”, servindo os segundos
necessariamente de substratos e os primeiros de coordenadores para um firm E,
mais do que o poderia conceber Descartes mesmo, o autômato módemo, com
seu órgão de cálculo, nos põe no caminho de um conhecimento eficaz do
comportamento humano. Neste sentido, poder-se-ia, portanto, dizer que a tecno­
logia atual constitui um começo de reposta dialética à antinomia cartesiana,
separada das soluções metafísicas que o autor, em seu tempo, procurou. ,
Tais são alguns dos pontos em que se poderia fixar a atenção do ijeitor
moderno. Uma reflexão desse tipo, que se afasta do texto de um autor para colo­
car em questão problemas que nos são próprios, não poderia ser considerada
como uma falta de respeito em relação a um pensamento genial. Bem ao contrá­
rio: é render-lhe homenagem o encontrar nele matéria de reflexão. Mas é preciso,
para que essa transposição seja fecunda, que as idéias próprias do autor tenham
sido levadas a sério. Se se quiser compreender, portanto, que tal comentário do
filósofo não deve substituir o esforço de entender o que ele próprio quis, com
seus escritos, nos propor, admitir-se-á, sem dúvida, a justeza das duas orienta­
ções de leitura que esta introdução tentou sugerir.

Gilles-Gaston Granger
DISCURSO DO MÉTODO

PARA BEM CONDUZIR A PRÓPRIA RAZÃO


E PROCURAR AVERDADE NAS CIÊNCIAS1

1 O primeiro título em que pensou o autor era: “Projeto de uma Ciência universal que possa ele­
var a nossa natureza ao seu mais alto grau de perfeição. Mais os Meteoros, a Dióptrica e a Geo­
metria, onde as mais curiosas matérias que o autor pôde escolher para dar prova da ciência uni­
versal que ele propõe são tratadas de tal modo que mesmo aqueles que não estudaram podem
entendê-las”. Não se deve esquecer que a obra constitui apenas uma Introdução, que perde muito
de seu sentido quando separada dos três ensaios que ela antecede.
Advertência

Se este discurso parecer demasiado longo para ser lido de uma só vez,
poder-se-á dividi-lo em seis partes. E, na primeira, encontrar-se-ão diversas
considerações atinentes às ciências. Na segunda, as principais regras do método
que o Autor buscou. Na terceira, algumas das regras da Moral que tirou desse
método. Na quarta, as razões pelas quais prova a existência de Deus e da alma
humana, que são os fundamentos de sua metafísica. Na quinta, a ordem das
questões de Física que investigou, e,particularmente, a explicação do movimento
do coração e algumas outras dificuldades que concernem à Medicina, e depois
também a diferença que há entre nossa alma e a dos animais. E, na última, que
coisas crê necessárias para ir mais adiante do que foi na pesquisa da natureza e
que razões o levaram a escrever.
—--THTWrn
Primeira Parte

O bom senso é a coisa do mundo nos toma homens e nos distingue dos
melhor partilhada, pois cada qual animais, quero crer que existe inteira­
pensa estar tão bem provido dele, que mente em cada um, e seguir nisso a
mesmo os que são mais difíceis de con­ opinião comum dos filósofos, que
tentar em qualquer outra coisa não dizem não haver mais nem menos
costumam desejar tê-lo mais do que o senão entre os acidentes, e não entre as
têm. E não é verossímil que todos se formas ou naturezas dos indivíduos de
enganem a tal respeito; mas isso antes uma mesma espécie2.
testemunha que o poder de bem julgar Mas não temerei dizer que penso ter
e distinguir o verdadeiro do falso, que tido muita felicidade de me haver
é propriamente o que se denomina o encontrado, desde a juventude, em cer­
bom senso ou a razão, é naturalmente tos caminhos, que me conduziram a
igual em todos os homens'; e, destarte, considerações e máximas, de que for­
que a diversidade de nossas opiniões mei um método, pelo qual me parece
não provém do fato de serem uns mais que eu tenha meio de aumentar gra­
racionais do que outros, mas somente dualmente meu conhecimento, e de
de conduzirmos nossos pensamentos alçá-lo, pouco a pouco, ao mais alto
por vias diversas e não considerarmos ponto, a que a mediocridade de meu
as mesmas coisas. Pois não é suficiente espírito e a curta duração de minha
ter o espírito bom, o principal é apli­ vida lhe permitam atingir3. Pois já
cá-lo bem. As maiores almas são capa­ colhi dele tais frutos que, embora no
zes dos maiores vícios, tanto quanto juízo que faço de mim próprio eu pro­
das maiores virtudes, e os que só cure pender mais para o lado da
andam muito lentamente podem avan­ desconfiança do que para o da presun­
çar muito mais, se seguirem sempre o ção, e que, mirando com um olhar de
caminho reto, do que aqueles que cor­ filósofo as diversas ações e empreendi­
rem e dele se distanciam. mentos de todos os homens, não haja
Quanto a mim, jamais presumi que quase nenhum que não me pareça vão
meu espírito fosse em nada mais per­ e inútil, não deixo de obter extrema
feito do que os do comum; amiúde
desejei mesmo ter o pensamento^ tão 2 É acidente o que pertence a um ser sem per­
tencer à sua essência. — “Os filósofos” desig­
rápido, ou a imaginação tão nítida e nam, como sempre em Descartes, os escolás-
distinta, ou a memória tão ampla ou ticos.
tão presente, quanto alguns outros. E 3 Cf. a definição de sabedoria (assimilada à
não sei de quaisquer outras qualidades, ciência) no Prefácio dos Princípios: “O per­
feito conhecimento de todas as coisas que o
exceto as que servem à perfeição do homem pode saber, tanto para a conduta da
espírito; pois, quanto à razão ou ao vida quanto para a conservação da saúde e a
senso, posto que é a única coisa que invenção de todas as artes”.
38 DESCARTES

satisfação do progresso que penso já guns exemplos que se podem imitar, se


ter feito na busca da verdade e de con­ encontrarão talvez também muitos ou­
ceber tais esperanças para o futuro tros que se terá razão de não seguir, es­
que, se entre as ocupações dos homens pero que ele será útil a alguns, sem ser
puramente homens4, há alguma que nocivo a ninguém, e que todo^s me
seja* solidamente boa e importante, serão gratos por minha franqueza.
ouso crer que é aquela que escolhi. Fui nutrido nas letras5 desde a
Todavia, pode acontecer que me infância, e por me haver persuadido de
engane, e talvez não passe de um que, por meio delas, se podia adquirir
pouco de cobre e vidro o que eu tomo um conhecimento claro e seguro de
por ouro e diamantes. Sei como esta­ tudo o que é útil à vida, sentia extraor­
mos sujeitos a nos equivocar no que dinário desejo de aprendê-las. Mas,
nos tange, e como também nos devem logo que terminei todo esse curso de
ser suspeitos os juízos de nossos ami­ estudos, ao cabo do qual se costuma
gos, quando são a nosso favor. Mas ser recebido na classe dos doutos,
estimaria muito mostrar, neste discur­ mudei inteiramente de opinião. Pois
so, .quais os caminhos que segui, e me achava enleado em tantas dúvidas
representar nele a minha vida como e erros, que me parecia não haver obti- -
num quadro, para que cada qual possa do outro proveito, procurando ins-
julgá-la e que, informado pelo comen­ truir-me, senão o de ter descoberto
tário geral das. opiniões emitidas a res­ cada vez mais a minha ignorância. E,
peito dela, seja este um novo meio de no entanto, estivera numa das mais cé­
me instruir, que juntarei àqueles de que lebres escolas da Europa 6, onde pensa­
costumo me utilizar. va que deviam existir homens sapien-
Assim, o meu desígnio não é ensinar tes, se é que existiam em algum lugar
aqui o método que cada qual deve se­ da Terra. Aprendera aí tudo o que os
guir para bem conduzir sua razão, mas outros aprendiam, e mesmo, não me
apenas mostrar de que maneira me tendo contentado com as ciências que
esforcei por conduzir a minha. Os que nos ensinavam, percorrera todos os li­
se metem a dar preceitos devem consi­ vros que tratam daquelas que são
derar-se mais hábeis do que aqueles a consideradas as mais curiosas e as
quem os dão; e, se falham na menor mais raras,, que vieram a cair em mi­
coisa, são por isso censuráveis. Mas, nhas mãos. Além disso, eu conhecia os
não propondo este escrito senão como juízos que os outros faziam de mim; e
uma história, ou, se o preferirdes, não via de modo algum que me julgas­
como uma fábula, na qual, entre al­ sem inferior a meus condiscípulos, em­
bora entre eles houvesse alguns já des­
4 Os “homens puramente homens” são ho­ tinados a preencher os lugares de
mens considerados ao nível da exclusiva “luz nossos mestres. E, enfim, o nosso sécu­
natural”, abstraindo-se qualquer assistência lo parecia-me tão florescente e tão fér-
que Deus possa proporcionar-lhes. É doutrina
constante em Descartes que o filósofo deva
deixar ao teólogo toda investigação do sobre­ 5 Isto é: a Gramática, a História, a Poesia, a
natural: “Para o filósofo, basta considerar o Retórica.
homem na medida em que, nas coisas naturais, 6 O colégio dos jesuítas de La Flèche, funda­
só depende de si; e eu, de meu lado, escrevi do em 1604, onde Descartes entrou em 1606.
minha filosofia de modo que possa ser rece­ Descartes nunca depreciou La Flèche, como
bida em toda parte, mesmo entre os turcos, e pretende a lenda, permanecendo sempre em
que eu não cause es'cândalo a ninguém”. (Col. bons termos com seus mestres. Assim, a1 exce­
com Burman, A.T. VI. 550.) “Não devemos lência do ensino em La Flèche só acusa melhor
submeter a teologia a raciocínios.” ainda a insuficiência da tradição cultural!
DISCURSO DO MÉTODO 39

til em bons espíritos como qualquer quase o mesmo que o conversar com
dos precedentes. O que me levava a os de outros séculos, é o viajar. É bom
tomar a liberdade de julgar por mim saber algo dos costumes de diversos
todos os outros e de pensar que não povos, a fim de que julguemos os nos­
existia doutrina no mundo que fosse tal sos mais sãmente e não pensemos que
como dantes me haviam feito esperar. tudo quanto é contra os nossos modos
Não deixava, todavia, de estimar os é ridículo e contrário à razão, como
exercícios com os quais se ocupam nas soem proceder os que nada viram.
escolas. Sabia que as línguas que nelas Mas, quando empregamos demasiado
se aprendem são necessárias ao enten­ tempo em viajar, acabamos tomando-
dimento dos livros antigos; que a gen­ nos estrangeiros em nossa própria
tileza das fábulas desperta o espírito; terra; e quando somos demasiado
que as ações memoráveis das histórias curiosos das coisas que se praticavam
o alevantam, e que, sendo lidas com nos séculos passados, ficamos ordina­
discrição, ajudam a formar o juízo; riamente muito ignorantes das que se
que a leitura de todos os bons livros é praticam no presente. Além do mais,
qual uma conversação com as pessoas as fábulas fazem imaginar como possí­
mais qualificadas dos séculos passa­ veis muitos eventos que não o são, e
dos, que foram seus autores, e até uma mesmo as histórias mais fiéis, se não
conversação premeditada, na qual eles mudam nem alteram o valor das coisas
nos revelam tão-somente os melhores para tomá-las mais dignas de serem
de seus pensamentos; que a eloquência lidas, ao menos omitem quase sempre
tem forças e belezas incomparáveis; as circunstâncias mais baixas e menos
que a poesia tem delicadezas e doçuras ilustres, de onde resulta que o resto
muito encantadoras; que as Matemá­ não parece tal qual é, e que aqueles que
ticas têm invenções muito sutis, e que regulam os seus costumes pelos exem­
podem servir muito, tanto para conten­ plos que deles tiram estão sujeitos a
tar os curiosos, quanto para facilitar cair nas extravagâncias dos paladinos
todas as artes e diminuir o trabalho de nossos romances e a conceber
dos homens; que os escritos que tratam desígnios que ultrapassam suas for­
dos costumes contêm muitos ensina­ ças7.
mentos e muitas exortações à virtude Eu apreciava muito a eloquência e
que são muito úteis; que a Teologia en­ estava enamorado da poesia; mas pen­
sina a ganhar o céu; que a Filosofia dá sava que uma e outra eram dons do
meio de falar com verossimilhança de espírito, mais do que frutos do estudo.
todas as coisas e de se fazer admirar Aqueles cujo raciocínio é mais vigo­
pelos menos eruditos; que a Jurispru­ roso e que melhor digerem8 seus
dência, a Medicina e as outras ciências pensamentos, a fim de tomá-los claros
trazem honras e riquezas àqueles que e inteligíveis, podem sempre persuadir
as cultivam; e, enfim, que é bom tê-las melhor os outros daquilo que pro-
examinado a todas, mesmo as mais
supersticiosas e as mais falsas, a fim de 7 Descartes dirá que as línguas, a Geografia,
conhecer-lhes o justo valor e evitar ser a História, são adquiridas “sem nenhum dis­
por elas enganado. curso de razão”: elas recorrem apenas à
memória, jamais à razão. Essa distinção entre
Mas eu acreditava já ter dedicado as “ciências racionais” e “históricas” é funda­
bastante tempo às línguas, e mesmo mental nos Clássicos; será mantida por Kant.
também à leitura dos livros antigos, às 8 Digerem: ordenam, segundo o sentido pri­
suas histórias e às suas fábulas. Pois mitivo do latim digerere, cf. Littré.
40 DESCARTES

põem, ainda que falem apenas baixo pretendia, como qualquer outro; ga­
bretão9 e jamais tenham aprendido nhar o céu; mas, tendo aprendido,
retórica. E aqueles cujas invenções são como coisa muito .segura, que o seu
mais agradáveis e que as sabem expri­ caminho não está menos aberto aos
mir com o máximo de ornamento e do­ mais ignorantes do que aos mais dou­
çura não deixariam de ser os melhores tos e que as verdades reveladas que
poetas, ainda que a arte poética lhes para lá conduzem estão acima de
fosse desconhecida1 0. nossa inteligência, não ousaria subme­
Comprazia-me sobretudo com as tê-las à fraqueza de meus raciocínios, e
Matemáticas, por causa da certeza e pensava que, para empreender o seu
da evidência de suas razões; mas não exame e lograr êxito, era necessário ter
notava ainda seu verdadeiro emprego, alguma extraordinária assistência do
e, pensando que serviam apenas às céu e ser mais do que homem.
artes mecânicas, espantava-me de que, Da Filosofia nada direi, senão que,
sendo seus fundamentos tão firmes e vendo que foi cultivada pelos mais
tão sólidos, não se tivesse ediflcado excelsos espíritos que viveram desde
sobre eles nada de mais elevado1112. Tal muitos séculos e que, no entanto, nela
como, ao contrário, eu comparava os não se encontra ainda uma só coisa
escritos dos antigos pagãos que tratam sobre a qual não se dispute, e por
dos costumes a palácios muito sober­ conseguinte que não seja duvidosa, eu
bos e magníficos, erigidos apenas não alimentava qualquer presunção de
sobre a areia e sobre a lama. Erguem acertar melhor do que os outros; e que,
muito alto as virtudes e apresentam- considerando quantas opiniões diver­
nas como as mais estimáveis de todas sas, sustentadas por homens doutos,
as coisas que existem no mundo; mas pode haver sobre uma e mesma maté­
não ensinam bastante a conhecê-las, e ria, sem que jamais possa existir mais
amiúde o que chamam com um nome de uma que seja verdadeira, reputava
tão belo não é senão uma insensibili­ quase como falso tudo quanto era
dade-, ou um orgulho, ou um desespero, somente verossímil1 3.
ou um parricídio1 2. Depois, quanto às outras ciências,
Eu reverenciava a nossa Teologia e na medida em que tomam seus princí­
pios da Filosofia, julgava que nada de
9 Sinal da pouca importância que Descartes sólido se podia construir sobre funda­
concede à língua: todo pensamento pode expri­ mentos tão pouco firmes. E nem a
mir-se em qualquer língua. honra, nem o ganho que elas prome­
10 As regras da arte não são de menosprezar,
mas em arte não há método e nela o aprendi­
tem, eram suficientes para me incitar a
zado tem só uma pequena parte. Este primado aprendê-las; pois não me sentia, de
reconhecido à inspiração atesta a mutação modo, algum, graças a Deus, numa
ocorrida na condição do “artista”, embora o condição que me obrigasse a converter
sécuio XVII ainda o denomine “artesão”. a ciência num mister, para o alívio de
11 Parece que o ensino das Matemáticas era
ministrado tendo sobretudo em mira as suas
aplicações técnicas (cartografia, fortificações, 13 Descartes visa aqui à “disputa” escolástica
agrimensura). Gilson observa que este caráter que se convertera em exercício escolar e ao há­
“aplicado” das Matemáticas devia tomar bito dos professores de citar e refutar as opi­
ainda mais estranha a física aristotélica que niões de diferentes autores. Descartes (que não
era ensinada ao mesmo tempo. Ele cita, em haveria de apreciar os nossos manuais de Filo­
apoio, um. texto antiaristotélico de Clavius, sofia) pensa que a verdade é uma só (“não
autor de um compêndio de Matemática versa­ havendo senão uma verdade de cada] coi­
do por Descartes. sa. . . ”) e que ela compele todos os espíritos
12 Alusão aos estóicos. ao assentimento. ■
DISCURSO DO MÉTODO 41

minha fortuna; e conquanto não fizes­ tomá-las verossímeis1 4. E eu sempre


se profissão de desprezar a glória tive um imenso desejo de aprender a
como um cínico, fazia, entretanto, distinguir o verdadeiro do falso, para
muito pouca questão daquela que eu só ver claro nas minhas ações e caminhar
podia esperar adquirir com falsos'títu­ com segurança nesta vida.
los. E enfim, quanto às más doutrinas, É certo que, enquanto me limitava a
pensava já conhecer bastante o que considerar os costumes dos outros
valiam, para não mais estar exposto a homens, pouco encontrava que me
ser enganado, nem pelas promessas de satisfizesse, pois advertia neles quase
um alquimista, nem pelas predições de tanta diversidade como a que notara
um astrólogo, nem pelas imposturas de anteriormente entre as opiniões dos
um mágico, nem pelos artifícios ou filósofos. De modo que o maior pro­
jactâncias de qualquer dos que fazem veito que daí tirei foi que, vendo uma
profissão de saber mais do que sabem. porção de coisas que, embora nos
Eis por que, tão logo a idade me per­ pareçam muito extravagantes e ridícu­
mitiu sair da sujeição de meus precep- las, não deixam de ser comumente aco­
tores, deixei inteiramente o estudo das lhidas e aprovadas por outros grandes
letras. E, resolvendo-me a não mais
povos, aprendi a não crer demasiado
procurar outra ciência, além daquela
firmemente em nada do que me fora
que se poderia achar em mim próprio,
inculcado só pelo exemplo e pelo cos­
ou então no grande livro do mundo,
empreguei o resto de minha mocidade tume; e assim, pouco a pouco, livrei-
em viajar, em ver cortes e exércitos, em me de muitos erros que podem ofuscar
frequentar gente de diversos humores e *• a nossa luz natural e nos tomar menos
condições, em recolher diversas expe­ capazes de ouvir a razão. Mas, depois
riências, em provar-me a mim mesmo que empreguei alguns anos em estudar
nos reencontros que a fortuna me pro­ assim no livro do mundo, e em procu­
punha. e, por toda parte, em fazer tal rar adquirir alguma experiência, tomei
reflexão sobre as coisas que se me um dia a resolução de estudar também
apresentavam, que eu pudesse tirar a mim próprio e de empregar todas as
delas algum proveito. Pois afigurava- forças de meu espírito na escolha dos
se-me poder encontrar muito mais ver­ caminhos que devia seguir1 5. O que
dade nos raciocínios que cada qual efe-- me deu muito mais resultado, parece-
tua no respeitante aos negócios que lhe me, do que se jamais tivesse me afas­
importam, e cujo desfecho, se julgou tado de meu país e de meus livros.
mal, deve puni-lo logo em seguida, do
que naqueles que um homem de letras 1 4 Notar bem que toda essa passagem consti­
tui a mais brutal e desdenhosa condenação da
faz em seu gabinete, sobre especula­ Filosofia como disciplina e como profissão, tal
ções que não produzem efeito algum e como a concebemos ainda atualmente.
que não lhe trazem outra consequência 1 5 Após a “experiência” do mundo e a obser­
senão talvez a de lhe proporcionarem vação dos costumes, a fundação da ciência.
tanto mais vaidade quanto mais dis­ Na realidade, os cortes não foram tão inopina-
dos. Os anos de que nos fala Descartes não
tanciadas do senso comum, por causa foram anos de preguiça intelectual. (Cf. G.
do outro tanto de espírito e artifício Milhaud, Descartes Savant, “Les Premiers es-
que precisou empregar no esforço de sais scientifiques de Descartes”.)
42 DESCARTES

Segunda Parte

Achava-me, então, na Alemanha, como tornam as ruas curvas e desi­


para onde fora atraído pela ocorrência guais, dir-se-ia que foi mais o acaso do
das guerras, que ainda não findaram, e, que a vontade de alguns homens usan­
quando retomava da coroação do do da razão que assim os dispôs. E se
imperador1*6 para o exército, o início se considerar que, apesar de tudo, sem­
do inverno me deteve num quartel, pre houve funcionários com o encargo
onde, não encontrando* nenhuma fre- de fiscalizar as construções dos parti­
qüentação que me distraísse, e não culares para torná-las úteis ao orna­
tendo, além disso, por felicidade, mento do público, reconhecer-se-á
quaisquer solicitudes ou paixões que realmente que é penoso, trabalhando
me perturbassem, permanecia o dia apenas nas obras de outrem, fazer coi­
inteiro fechado sozinho num quarto sas muito acabadas. Assim, imaginei
bem aquecido onde, dispunha de todo o que os povos, que, tendo sido outrora
vagar para me entreter com os meus semi-selvagens e só pouco a pouco se
pensamentos. Entre eles, um dos pri­ tendo civilizado, não elaboraram suas
meiros foi que me lembrei de conside­ leis senão à medida que a incomodi-
rar que, amiúde, não há tanta perfeição dade dos crimes e das querelas a tanto
nas obras compostas de várias peças, e os compeliu, não poderiam ser tão bem
feitas pela mão de diversos mestres, policiados1 7 como aqueles que, a
como naquelas em que um só traba­ começar do momento em que se reuni­
lhou. Assim, vê-se que os edifícios ram observaram as constituições de
empreendidos e concluídos por um só algum prudente legislador. Tal como é
arquiteto costumam ser mais belos e bem certo que o estado da verdadeira
melhor ordenados do que aqueles que religião, cujas ordenanças só Deus fez,
muitos procuraram reformar, fazendo deve ser incomparavelmente melhor
uso de velhas paredes construídas para regulamentado do que todos os outros.
outros fins. Assim,essas antigas cida­ E, para falar das coisas humanas, creio
des que, tendo sido no começo peque­ que, se Esparta foi outrora muito
nos burgos, tomaram-se no correr do florescente, não o deveu à bondade de
tempo grandes centros, são ordinaria­ cada uma de suas leis em particular,
mente tão mal compassadas, em com­
visto que muitas eram bastante alheias
paração com essas praças regulares,
e mesmo contrárias aos bons costu­
traçadas por um engenheiro à sua fan­
mes, mas ao fato de que, tendo sido
tasia numa planície, que, embora con-
inventadas apenas por um só, tendiam
. siderando os seus edifícios cada qual à todas ao mesmo fim. E assim pensei
parte, se encontre neles muitas vezes
tanta ou mais arte que nos das outras, que as ciências dos livros, ao menos
todavia, a ver como se acham arranja­ aquelas cujas razões são apenas prová­
dos, aqui um grande; ali um pequeno, e veis e que não apresentam quaisquer
demonstrações, pois se compuseram e
1 6 As festas da coroação celebraram-se de
avolumaram pouco a pouco com opi-
julho a setembro de 1619. O episódio dapoêle
é, em geral, situado nos primeiros dias de 1 7 Policiados: de “policiar” (policer), nb sen­
novembro de 1619. tido de amenizar os costumes pela civilização.
DISCURSO DO MÉTODO 43

niões de mui diversas pessoas, não se vez para sempre, a retirar-lhes essa
acham, de modo algum, tão próximas confiança, a fim de substituí-las em
da verdade quanto os simples raciocí­ seguida ou por outras melhores, ou
nios que um homem de bom senso então pelas mesmas, depois de tê-las
pode efetuar naturalmente’ com res­ ajustado ao nível da razão. E acreditei
peito às coisas que se lhe apresentam. firmemente que, por este meio, lograria
E assim ainda, pensei que, como todos conduzir minha vida muito melhor do
nós fomos crianças antes de sermos que se a edificasse apenas sobre velhos
homens, e como nos foi preciso por fundamentos, e me apoiasse tão-so­
muito tempo sermos governados por mente sobre princípios de que me dei­
nossos apetites e nossos preceptores, xara persuadir em minha juventude,
que eram amiúde contrários uns aos sem ter jamais examinado se eram
outros, e que, nem uns nem outros, verdadeiros. Pois, embora notasse
nem sempre, talvez nos aconselhassem nesta tarefa diversas dificuldades, não
o melhor, é quase impossível que nos­ eram todavia irremediáveis, nem com­
sos juízos sejam tão puros ou tão sóli­ paráveis às que se encontram na refor­
dos como seriam, se tivéssemos o uso ma .d.as ip.enpres coisas atinentes ao
inteiro de nossa razão desde o nasci­ público. Esses grandes corpos são
mento e se não tivéssemos sido guia­ demasiado difíceis de reerguer quando
dos senão por ela1*8. abatidos, ou mesipo de suster quando
Ê certo que não vemos em parte al­ abalados, e suas quedas não podem
guma lançarem-se por terra todas as deixar de ser muito rudes. Pois, quanto
casas de uma cidade, com o exclusivo às suas imperfeições, se as têm, como a
propósito de refazê-las de outra manei­ mera diversidade existente entre eles
ra, e de tomar assim suas ruas mais basta para assegurar que as têm nume­
belas; mas vê-se na realidade que mui­ rosas, o uso sem dúvida as suavizou, e
tos derrubam as suas para reconstruí- mesmo evitou e corrigiu insensivel­
las, sendo mesmo algumas vezes obri­ mente um grande número às quais não
gados a fazê-lo, quando elas correm o se podería tão bem remediar por
perigo de cair por si próprias, por seus prudência. E, enfim, são quase sempre
alicerces não estarem muito firmes. A mais suportáveis do que o seria a sua
exemplo disso, persuadi-me de que mudança; da mesma forma que os
verdadeiramente não seria razoável grandes caminhos, que volteiam entre
que um particular intentasse reformar montanhas, se tomam pouco a pouco
um Estado, mudando-o em tudo desde tão batidos e tão cômodos, à força de
os fundamentos e derrubando-o para serem freqüentados, que é bem melhor
reerguê-lo; nem tampouco reformar o segui-los do que tentar ir mais reto,
corpo das ciências ou a ordem estabe­ escalando por cima dos rochedos e
lecida nas escolas para ensiná-las; mas descendo até o fundo dos precipícios.
que, no tocante a todas as opiniões que Eis por que não podería de forma al­
até então acolhera em meu crédito, o guma aprovar esses temperamentos
melhor a fazer seria dispor-me, de uma perturbadores e inquietos que, não
sendo chamados, nem pelo nasci­
mento, nem pela fortuna, ao manejo
1 8 Desprezo pela erudição livresca, oposição dos negócios públicos, não deixam de
da razão à história, da evidência conquistada
por nós mesmos ao “preconceito” herdado da neles praticar sempre, em idéia, algu­
tradição, estes leitmotiv cartesianos em parte ma nova reforma. E se eu pensasse
alguma se acham melhor concentrados. haver neste escrito a menor coisa que
44 DESCARTES

pudesse tomar-me suspeito de tal lou­ Colégio, que nada se poderia imaginar
cura, ficaria muito pesaroso de ter tão estranho e tão pouco crível que
aceito publicá-lo. Nunca o meu intento algum dos filósofos já não houvesse
foi além de procurar reformar meus dito; e depois, ao viajar, tendo reco­
próprios pensamentos, e construir num nhecido que todos os que possuem
terreno que é todo meu. De modo que, sentimentos muito contrários aos nos­
se, tendo minha obra me agradado bas­ sos nem por isso são bárbaros ou sel­
tante, eu vos mostro aqui o seu mode­ vagens, mas que muitos usam, tanto ou
lo, nem por isso quero aconselhar mais do que nós, a razão; e, tendo
alguém a imitá-lo. Aqueles a quem considerado o quanto um mesmo
Deus melhor partilhou suas graças homem, com o seu mesmo espírito,
alimentarão talvez desígnios mais ele­ sendo criado desde a infância entre
vados; mas temo bastante que já este franceses ou alemães, toma-se dife­
seja ousado demais para muitos. A rente do que seria se vivesse sempre
simples resolução de se desfazer de entre chineses ou canibais; e como,-até
todas as opiniões a que se. deu antes nas modas de nossos trajes, a mesma
crédito não é um exemplo que cada coisa que nos agradou há dez anos, e
qual deva seguir; e o mundo compõe- que talvez nos agrade ainda antes de
se quase tão-somente de duas espécies decorridos outros dez, nos parece
de espíritos, aos quais ele não convém agora extravagante e ridícula, de sorte
de modo algum. A saber, daqueles que, que são bem mais o costume e o exem­
crendo-se mais hábeis do que são, não plo que nos persuadem do que qual­
podem impedir-se de precipitar seus quer conhecimento certo e que, não
juízos, nem ter suficiente paciência obstante, a pluralidade das vozes não é
para conduzir por ordem todos os seus prova que valha algo para as verdades
pensamentos: daí resulta que, se hou­ um pouco difíceis de descobrir, por ser
vessem tomado uma vez a liberdade de bem mais verossímil que um só homem
duvidar dos princípios que aceitaram e as tenha encontrado do que todo um
de se apartar do caminho comum, povo: eu não podia escolher ninguém
nunca poderiam ater-se à senda que é cujas opiniões me parecessem dever
preciso tomar para ir mais direito, e ser preferidas às de outrem, e achava-
permaneceríam extraviados durante me como que compelido a tentar eu
toda a vida; depois, daqueles que, próprio conduzir-me.
tendo bastante razão, ou modéstia, Mas, como um homem que caminha
para julgar que são menos capazes de só e nas trevas, resolvi ir tão lenta­
distinguir o verdadeiro do falso do que mente, e usar de tanta circunspecção
alguns outros, pelos quais podem ser em todas as coisas, que, mesmo se
instruídos, devem antes contentar-se avançasse muito pouco, evitaria pelo
em seguir as opiniões desses outros, do menos cair. Não quis de modo algum
que procurar por si próprios outras começar rejeitando inteiramente qual­
melhores. quer das opiniões que porventura se
E, quanto a mim, estaria sem dúvida insinuaram outrora em minha confian­
no número destes últimos, se eu tivesse ça, sem que aí fossem introduzidas
tido um único mestre, ou se nada sou­ pela razão, antes de despender bas­
besse das diferenças havidas em todos tante tempo em elaborar o projeto da
os tempos entre as opiniões dos mais obra que ia empreender, e em procurar
doutos. Mas, tendo aprendido, desde o o verdadeiro método para chegar ao
DISCURSO DO MÉTODO 45

conhecimento de todas as coisas de gras e certas cifras, que se fez dela uma
que meu espírito fosse capaz1 9. arte confusa e obscura que embaraça o
Eu estudara um pouco, sendo mais espírito, em lugar de uma ciência que o
jovem, entre as partes da Filosofia, a cultiva. Por esta causa, pensei ser mis­
Lógica, e, entre as Matemáticas, a ter procurar algum outro método que,
Análise dos geômetras19 20 e a Álgebra, compreendendo as vantagens desses
três artes ou ciências que pareciam três, fôsse isento de seus defeitos. E,
dever contribuir com algo para o meu como a multidão de leis fornece amiú-
desígnio. Mas, examinando-as, notei de escusas aos vícios, de modo que um
que, quanto à Lógica, os seus silogis­ Estado é bem melhor dirigido quando,
mos e. a- maior parte de seus outros pre­
ceitos’ servem mais para explicar a ou- tendo embora muito- poucas, são estri­
tamente cumpridas; assim, em vez
''trem ás coisas que já se sabem, ou
mesmo, como a arte de Lúlio, para desse grande número de preceitos de
que se compõe a Lógica, julguei que
falar, sem julgamento, daquelas que se
ignoram, do que para aprendê-las. E me bastariam os quatro seguintes21,
embora ela contenha, com efeito, uma desde que tomasse a firme e constante
porção de preceitos muito verdadeiros resolução de não deixar uma só vez de
e muito bons, há todavia tantos outros observá-los.
misturados de permeio que são ou O primeiro era o de jamais acolher
nocivos, ou supérfluos, que é quase tão alguma coisa como verdadeira que eu
difícil separá-los quanto tirar uma não conhecesse evidentemente como
Diana ou uma Minerva de um bloco de tal; isto é, de evitar cuidadosamente a
mármore que nem sequer está esboça­ precipitação e a prevenção22, e de
do. Depois, com respeito à Análise dos nada incluir em meus juízos que não se
Antigos e à Álgebra dos modernos, apresentasse tão clara e tão distinta­
além de se estenderem apenas a maté­ mente23 a meu espírito, que eu não
rias muito abstratas, e de não parece­ tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em
rem de nenhum uso, a primeira perma­ dúvida.
nece sempre tão adstrita à O segundo, o de dividir cada umâ
consideração das figuras, que não pode
exercitar o entendimento sem fatigar 21 Leibniz foi o primeiro a zombar da banali­
muito a imaginação; e esteve-se de tal dade deste método. E é verdade que o Método
está contido mais nas Regulae do que nessa
forma sujeito, na segunda, a certas re­ apresentação esotérica. Não obstante, a leitura
da Geometria — o único dos três ensaios que,
19 Houve, portanto, um intervalo entre as segundo o Autor, prova a validade do Método
reflexões de novembro de 1619 e a elaboração — mostra o quanto esta banalidade é aparen­
do método. Aliás, este não resulta daquelas, te. Separadas desta referência, compreendidas
porém bem mais dos trabalhos matemáticos como preceitos gerais, as regras seriam, na
em curso (construção, por meio de uma pará­ verdade, pouco proveitosas: é o que se esquece
bola, de todos os problemas dos sólidos do tér- com demasiada frequência.
ceiro e quarto graus). 22 A “precipitação” cohsiste em julgar antes
20 A Análise designa aqui o método que con­ de se ter chegado à evidência, e a “prevenção”,
siste em supor conhecida a linha desconhecida, na persistência dos “prejuízos da infância”.
em estabelecer as relações que a ligam a gran­ 23 Cf. Princípios, I, 45: “Denomino claro o
dezas conhecidas, até que se possa construí-la que é presente e manifesto a um espírito aten­
a partir destas relações. Entre os Antigos, esse to.. . e distinto o que é de tal modo preciso e
método (válido para outros domínios, além da diferente de todos os outros, que compreende
Geometria) se apresenta sob a forma geomé­ em si apenas o que parece manifestamente a
trica. quem o considere como se deve”.
46 DESCARTES

das dificuldades que eu examinasse em tão gerais, que eu tivesse a certeza de


tantas parcelas quantas possíveis e nada omitir2 6.
quantas necessárias fossem para me­ Essas longas cadeias de razões27,
lhor resolvê-las2 4. todas simples, e fáceis28, de que os geô-
O terceiro, o de conduzir por ordem metras costumam servir-se para chegar
meus pensamentos, começando pelos às suas mais difíceis demonstrações,
objetos mais simples e mais fáceis de haviam-me dado ocasião de imaginar
conhecer, para subir, pouco a pouco, que todas as coisas possíveis de cair
como por degraus, até o conhecimento sob o conhecimento dos homens se­
dos mais compostos, e supondo guem-se umas às outras da mesma
mesmo uma ordem entre os que não se maneira e que, contanto que nos abste-
precedem naturalmente uns aos ou­ nhamos somente de aceitar por verda­
tros2 5. deira qualquer que não o seja, e que
E o último, o de fazer em toda parte guardemos sempre a ordem necessária
enumerações tão completas e revisões
2 6 Pode parecer que esta regra repita a segun­
24 As palavras “dificuldade” (que significa: da, visto que a divisão em “parcelas” é a
problema matemático) e “resolver” devem mesma boisa que a enumeração das variáveis.
Vuillemin, que evoca esta dificuldade em seu
*remeter-nos à Geometria, nomeadamente à
livro Mathématiques et Métaphysique chez
primeira parte do Livro III, onde se trata da Descartes (pág. 137), pensa que tal regra é
resolução das equações mediante dois méto­ antes ilustrada pela enumeração de todos os
dos: quer realizando o produto dos binômios casos possíveis para a solução de uma equa­
compostos da incógnita menos cada uma das ção, o que possibilita a escolha da solução
raízes; quer, “quando não se encontra nenhum mais geral. “Preceito reflexivo e regulador que
binômio que possa assim dividir a soma toda versa sobre os métodos e não sobre os
da equação proposta”, considerando a equa­ problemas.”
ção como o produto de dois polinômios (mé­ 2 7 Por “razões”, deve-se entender “propor­
todo das indeterminadas). Supor-se-á, por ções”. Como mostra Vuillemin, no capítulo IV
exemplo, que a equação do quarto grau é fruto de sua obra, a ciência cartesiana é uma teoria •
da multiplicação de duas equações arbitrárias das proporções: multiplicação, divisão e extra­
do segundo grau. Não é, pois, questão somente ção de raiz são três meios de construção de
de “dividir”, mas também de decompor até os uma quarta proporcional — o grau de uma
elementos mais simples cuja combinação en­ equação é definido pelo número de proporções
gendrará a solução. requeridas entre duas quantidades, seu gênero
2 5 Constituição de uma série em que cada pelo número mínimo dessas proporções — em
termo ficará colocado antes dos que dele geral, uma proporção contínua é o modelo da
dependem e depois daqueles de que ele depen­ ordem. Uma série como
de. A Geometria, na sua classificação das cur­ 3 _ 6 _ 12
vas, ilustra a importância da ordem assim con­ 6 “ 12“ 24
cebida: “as linhas mais compostas” serão nela mostra-nos “de que maneira estão envolvidas
recebidas tanto como as mais simples, “con­ todas as questões referentes às proporções ou
razões das coisas e em que ordem devem ser
tanto que possamos imaginá-las descritas por
procuradas: o que por sí só constitui o essen­
um 'movimento contínuo ou por vários que se
cial de toda ciência da matemática pura”.
seguem e dos quais os últimos sejam inteira­ (Reg. A. T. X, pág. 385.)
mente regrados pelos que os precedem; pois, 28 Vuillemin observa que “simples” e “fácil”
mediante isso, podemos sempre ter um conhe­ não são sinônimos. “Ê fácil o que é simples
cimento exato de sua medida”. (A. T. VI, 389.) segundo nós e, por assim dizer, do ponto de
A ordem é o garante da homogeneidade de um vista psicológico. É simples o que é primeiro
domínio e da possibilidade de determinar com pela ordem das coisas.” (Op. cit., pág. 118>) O
certeza os seres que ele inclui ou exclui. Isto raciocínio mais fácil (pedagógica e sinteíica-
será válido tanto em Metafísica como em mente) nem sempre é o mais simples (segundo
Geometria. a ordem e analiticamente).
DISCURSO DO MÉTODO 47

para deduzi-las umas das outras, não mais examinar somente estas propor­
pode haver quaisquer tão afastadas a ções em geral31, e supondo-as apenas
que não se chegue por fim, nem tão nos suportes que servissem para me
ocultas que não se descubram. E não tornar o seu conhecimento mais fácil;
me foi muito penoso procurar por •mesmo assim, sem restringi-las de
quais devia começar, pois já sabia que forma nenhuma a tais suportes, a fim
havia de ser pelas mais simples e pelas de poder aplicá-las tão melhor, em
mais fáceis de conhecer; e, conside­ seguida, a todos os outros objetos a
rando que, entre todos os que prece­ que conviessem. Depois, tendo notado
dentemente buscaram a verdade nas que, para conhecê-las, teria algumas
ciências, só os matemáticos puderam vezes necessidade de considerá-las
encontrar algumas demonstrações, isto cada qual em particular, e outras vezes
é, algumas razões certas e evidentes, somente de reter, ou de compreender,
não duvidei de modo algum que não várias em conjunto, pensei que, para
fosse pelas mesmas que eles examina­ melhor considerá-las em particular,
ram29; embora não esperasse disso devia supô-las em linhas32, porquanto
nenhuma outra utilidade, exceto a de não encontraria nada mais simples,
que acostumariam o meu espírito a se nem que pudesse representar mais
alimentar de verdades e a não se con­ distintamente à minha imaginação e
tentar com falsas razões. Mas não foi aos meus sentidos33; mas que, para
meu intuito, para tanto, procurar
aprender todas essas ciências particu­ 31. Trata-se, portanto, da mathesis universalis,
“ciência inteiramente nova pela qual poderão
lares que se chamam comumente mate­ ser resolvidos todos os problemas relativos a
máticas30; e, vendo que, embora seus qual gênero de quantidade, contínua ou discre­
objetos sejam diferentes, não deixam ta” (A. T. X, 156) e primeiro fruto do método.
de concordar todas, pelo fato de não Na verdade, o método foi concebido com vis­
conferirem nesses objetos senão as tas a ela. Sobre esta interpenetração da mathe­
sis e do método, cf. Regulae, quarta regra. Não
diversas ações ou proporções que se trata aqui, de modo algum, da Geometria
neles se encontram, pensei que valia “analítica”, como às vezes se pretende falsa­
mente.
29 Acrescente-se para a claridade do texto: 32 “Lineis rectis.”, diz o texto latino. A linha
“que era preciso começar”. — Cf. Col. com reta é escolhida como figuração universal da
Burman: “A Matemática acostuma o espírito a grandeza porque ela é o suporte mais flexível
reconhecer a verdade, porque sempre encon­ para a teoria das proporções (pode representar
tramos nela raciocínios rigorosos que não um produto, um quociente, uma raiz, bem
encontraríamos alhures. Em consequência, como uma soma ou uma diferença), mas tam­
uma vez afeito o espírito aos raciocínios mate­ bém porque permite evitar o incomensuráveL
máticos, tê-lo-emos tomado também próprio à O fato de as letras algébricas representarem li­
pesquisa de outras verdades, posto que em nhas e não números (e, em geral, a descon­
toda parte há somente uma e mesma forma de fiança de Descartes para com a aritmética)
raciocinar”. (A. T. VI, 550-51.) atesta o que Belaval denomina, em Leibniz
30 Alusão à divisão escolástica das Matemá­ Critique Descartes, “a limitação da Álgebra
ticas: Matemáticas Puras (Geometria, Aritmé­ pela Geometria”. Descartes libertou-se do rea­
tica) e Mistas (Astronomia, Música, Óptica). lismo intuitivo dos gregos (por exemplo, colo­
O que interessa a Descartes é o denominador cando que o resultado dé todo cálculo sobre
comum dessas ciências (a ordem e a medida), quantidades figuradas por grandezas retilíneas
ao passo que os Escolásticos desejavam sepa­ corresponde, por sua vez, a uma grandeza reti-
rá-las com respeito a seus objetos. Particulari- línea), mas foi só pela metade.
zação que impedia de distinguir, como faz 33 Indispensável ao entendimento em Mate­
Descartes, esta “Matemática comum”, que re­ mática, a imaginação (a consideração das figu­
quer apenas memória, e “a ciência matemá- ras) não é, entretanto, senão uma auxiliar. Cf.
- tica, que não é bebida nos livros”. Regulae, regra catorze.
48 DESCARTES

reter, ou compreender, várias em con­ minar, mesmo naquelas que ignorava,


junto, cumpria que eu as designasse por quais meios e até onde seria possí­
por alguns signos, os mais breves vel resolvê-las3 6. No que não vos piare-
possíveis3 4, e que, por esse meio, cerei talvez muito vaidoso, se conside­
tomaria de empréstimo o melhor da rardes que, havendo apenas úma
Análise geométrica e da Álgebra, e verdade de cada coisa, todo aquele que
corrigiría todos os defeitos de uma a encontrar sabe a seu respeito tanto
pela outra. quanto se pode saber; e que, por exem­
E como, efetivamente, ouso dizer plo, uma criança instruída na aritmé­
que a exata observação desses poucos tica, que tenha efetuado uma adição
preceitos que eu escolhera me deu tal segundo as regras, pode estar certa de
facilidade de deslindar todas as ques­ ter achado, quanto à soma que exami­
tões às quais se estendem essas duas nava, tudo o que o espírito humano
ciências que, nos dois ou três meses poderia achar. Pois, enfim, o método
que empreguei em examiná-las, tendo que ensirja a seguir a verdadeira ordem
começado pelas mais simples e mais e a enumerar exatamente todas as
gerais, e constituindo cada verdade que circunstâncias daquilo que se procura
eu achava uma regra que me servia em contém tudo quanto dá certeza às re­
seguida para achar outras, não só con­ gras da aritmética.
segui resolver muitas que julgava antes Mas o que me contentava mais
muito difíceis3 5, como me pareceu nesse método era o fato de que, por ele,
também, perto do fim, que podia deter­ estava seguro de usar em tudo minha
razão, se não perfeitamente, ao menos
3 4 A simplificação da Álgebra consiste em o melhor que eu pudesse; além disso,
designar todas as grandezas por letras do alfa­ sentia, ao praticá-lo, que meu espírito
beto, em representar as potências pelas cifras se acostumava pouco a pouco a conce­
escritas em expoentes (salvo para x2 que Des­ ber mais nítida e distintamente seus
cartes ainda escreve xx) e o equacionamento objetos, e que, não o tendo submetido
pela igualdade a zero.
3 3 Segundo G. Milhaud (Descartes Savant), a qualquer matéria particular, prome­
alusão à solução dos problemas dos sólidos do tia a mim mesmo aplicá-lo tão util­
terceiro e quarto graus por meio da interseção mente às dificuldades das outras ciên­
de um círculo e de uma parábola. Milhaud cias como o fizera com as da Álgebra.
mostra, a este propósito, o quanto Descartes,
em 1620, é ainda o continuador da geometria Não que, para tanto, ousasse empreen­
grega. Para resolver o que nós formulamos der primeiramente o exame de todas as
pela equação: x3 = a2 b, Arquimedes introdu­
zia uma segunda variável y, tal que: x2 # ay, 3 6 Exemplo dessa determinação dos “limi­
o que significava procurar duas médias pro­ tes”: a classificação dos problemas no livro II
porcionais entre a e b. Para solucionar este da Geometria, onde são delimitados os proble­
problema, servia-se de duãs parábolas defini­ mas resolúveis com régua e compasso — com
das por duas razões das ordenadas com as abs- curvas mais complicadas, mas que é possível
cissas. Ê este método que Descartes sistema­ construir de maneira exata e por um movi­
tiza para as equações do terceiro e quarto mento contínuo —, enfim os problemas para
graus, ponto de partida do que será denomi­ os quais as curvas só podem ser construídas
nado mais tarde “Geometria Analítica”. Des­ por pontos discretos (as “transcendentes”),
cartes não toma, pois, aos gregos o método como a espiral ou quadratriz, que “não perten­
analítico como procedimento lógico, mas antes cem de modo algum ao número das que penso
o próprio conteúdo desta análise, e seu gênio que devem ser aqui recebidas. . . porque as
consiste mais em explorar os recursos de um imaginamos descritas por dois movimentqs
processo já utilizado do que em “descobrir” separados e que não têm entre si nenhuma
este processo. Tanto é que Descartes nunca se relação que se possa medir exatamente”. (A. T.
vangloriou da Geometria Analítica. VI, 390.)
DISCURSO DO MÉTODO 49

que se me apresentassem, pois isso atingir uma idade bem mais madura do
mesmo seria contrário à ordem que ele que a dos vinte e três anos que eu então
prescreve. Mas, tendo notado que os contava e antes de ter despendido
seus princípios deviam ser todos toma­ muito tempo em preparar-me para
dos à Filosofia, na qual não encon­ isso, tanto desenraizando de meu espí­
trava ainda quaisquer que fossem cer­ rito todas as más opiniões que nele
tos, pensei que seria mister, antes de acolhera até essa época como acumu­
tudo, procurar ali estabelecê-los; e que, lando muitas experiências, para servi­
sendo isso a coisa mais importante do rem em seguida de matéria a meus
mundo, e onde a precipitação e a pre­ raciocínios, e exercitando-me sempre
venção eram mais de recear, não devia no método que me prescrevera, a fim
empreender sua realização antes de de me firmar nele cada vez mais.

Terceira Parte

E enfim, como não basta, antes de tantemente a religião em que Deus me


começar a reconstruir a casa onde se concedeu a graça de ser instruído
mora, derrubá-la, ou prover-se de desde a infância, e govemando-me, em
materiais e arquitetos, ou adestrar-se a tudo o mais, segundo as opiniões mais
si mesmo na arquitetura, nem, além moderadas e as mais distanciadas do
disso, ter traçado cuidadosamente o excesso, que fossem comumente aco­
seu projeto; mas cumpre também ter-se lhidas em prática pelos mais sensatos
provido de outra qualquer onde a gente daqueles com os quais teria de viver.
possa alojar-se comodamente durante Pois, começando desde então a não
o tempo em que nela se trabalha; contar para nada com as minhas pró­
assim, a fim de não permanecer irre- prias opiniões, porque eu as queria
soluto3*7 em minhas ações, enquanto a submeter todas a exame, estava certo
razão me obrigasse a sê-lo, em meus de que o melhor a fazer era seguir as
juízos, e de não deixar de viver desde dos mais sensatos. E, embora haja tal­
então o mais felizmente possível, for­ vez, entre os persas e chineses, homens
mei para mim mesmo uma moral tão sensatos como entre nós, parecia-
provisória, que consistia apenas em
três ou quatro máximas que eu quero me que o mais útil seria pautar-me por
vos participar38. aqueles entre os quais teria de viver; e
A primeira era obedecer às leis e aos que, para saber quais eram verdadeira­
costumes de meu país, retendo cons­ mente as suas opiniões, devia tomar
nota mais daquilo que praticavam do
3 7 Sobre a irresolução como o pior dos males, que daquilo que diziam; não só por­
cf. Paixões, art. 60, e Cartas, a Elisabeth, de que, na corrupção de nossos costumes,
l.° de setembro de 1645. há poucas pessoas que queiram dizer
3 8 Col. com Burman, A. T. VI, 552: “O autor
não gosta de escrever sobre a Moral, mas viu- tudo o que acreditam, mas também
se forçado, por causa dos pedantes e gente porque muitos o ignoram, por sua vez;
desta espécie, a adicionar estas regras; de pois, sendo a ação do pensamento,
outro modo, diriam dele que se trata de um pela qual se crê uma coisa, diferente
homem sem religião, sem fé, e que, com o seu
método, quer derrubar tudo isso”. daquela pela qual se conhece que se
50 DESCARTES

crê nela, amiúde uma se apresenta sem xasse talvez de sê-lo, ou quando eu ces­
a outra39. E, entre várias opiniões sasse de considerá-la como tal. 1
igualmente aceites, escolhia apenas as Minha segunda máxima consistia
mais moderadas: tanto porque são em ser o mais firme e o mais resoluto
sempre as mais cômodas para a práti­ possível em minhas ações, e em nãó se­
ca, e verossimilmente40 as melhores, guir menos constantemente do que se
pois todo excesso costuma ser mau, fossem muito seguras as opiniões mais
como também a fim de me desviar duvidosas, sempre que eu me tivésse
menos do verdadeiro caminho, caso eu decidido a tanto42. Imitando nisso os
falhasse, do que, tendo escolhido um viajantes que, vendo-se extraviados
dos extremos, fosse o outro o que deve­ nalguma floresta, não devem errar vol­
ria ter seguido. E, particularmente, teando, ora para um lado, ora para
colocava entre os excessos todas as outro, nem menos ainda deter-se num
promessas pelas quais se cerceia em sítio, mas caminhar sempre o mais reto
algo a própria liberdade41. Não que possível para um mesmo lado, e não
desaprovasse as leis que, para reme­ mudá-lo por fracas razões, ainda que
diar a inconstância dos espíritos fra­ no começo só o acaso talvez haja
cos, permitem, quando se alimenta determinado a sua escolha: pois, por
algum bom propósito, ou mesmo, para este meio, se não vão exatamente
a segurança do comércio, algum desíg­ aonde desejam, pelo menos chegarão
nio que seja apenas indiferente, que se no fim a alguma parte, onde verossi­
façam votos ou contratos que obri­ milmente estarão melhor que no meio
guem a perseverar nele; mas porque de uma floresta. E, assim como as
não via no mundo nada que permane­ ações da vida não suportam às vezes
cesse sempre no mesmo estado, e por­ qualquer delonga, é uma verdade
que, no meu caso particular, como pro­ muito certa que, quando não está em
metia a mim mesmo aperfeiçoar cada nosso poder o discernir as opiniões
mais verdadeiras, devemos seguir as
vez mais os meus juízos, e de modo mais prováveis; e mesmo, ainda que
algum torná-los piores, pensaria come­ não notemos em umas mais probabili­
ter grande falta contra o bom senso, se, dades do que em outras, devemos, não
pelo fato de ter aprovado então alguma obstante, decidir-nos por algumas e
coisa, me sentisse obrigado a tomá-la considerá-las depois não mais como
como boa ainda depois, quando dei­ duvidosas, na medida em que se rela­
cionam com a prática, mas como
39 Existe uma diferença entre um juízo e o
conhecimento deste juízo. Assim, “eu não du­ muito verdadeiras e muito certas, por­
vido de modo algum que cada um tenha em si quanto a razão que a isso nos decidiu
a idéia de Deus, pelo menos implícita. . . não
me surpreendo, no entanto, de ver homens que 42 A fim de evitar um mal-entendido, Descar­
não sentem ter em si esta idéia, ou melhor, que tes formulará esta regra de maneira mais preci­
dela não se apercebem absolutamente”. (Car­ sa: “. . . Não agir menos constantemente se­
tas, a Hyperaspistes, agosto de 1641.) gundo as opiniões que julgamos duvidosas. . .
40 A verossimilhança, excluída da ordem teó­ quando consideramos não haver outras que
rica, recobrará valor na ordem prática. julguemos melhores ou mais certas, do que se
41 Não será rebaixar os votos religiosos, soubéssemos que aquelas são as melhores (A
como pergunta Gilson, encará-los como sim­ XXX, março de 1638.) Não se trata, portanto,
ples remédio para “a inconstância dos espíri­ de um voluntarismo cego, “além do que rela­
tos fracos”? Notar-se-á aqui o desprezo de ciono principalmente esta regra às ações da
Descartes para com “o engajamento” sob vida que não sofrem qualquer delonga d me
todas as suas formas. sirvo dela apenas provisoriamente”.
DISCURSO DO MÉTODO 51

se apresenta como tal43. E isto me per­ mantes, ou asas para voar como as
mitiu, desde então, libertar-me de aves. Mas confesso que é preciso um
todos os arrependimentos e remorsos longo exercício e uma meditação arniú-
que costumam agitar as consciências de reiterada para nos acostumarmos a
desses espíritos fracos e vacilantes que olhar por este ângulo todas as coisas; e
se deixam levar inconstantemente a creio que é principalmente nisso que
praticar, como boas, as coisas que de­ consistia o segredo desses filósofos4 4,
pois julgam más. que puderam outrora subtrair-se ao
Minha terceira máxima era a de pro­ império da fortuna e, malgrado as
curar sempre antes vencer a mim pró­ dores e a pobreza, disputar felicidade
prio do que à fortuna, e de antes modi­ aos seus deuses. Pois, ocupando-se
ficar os meus desejos do que a ordem incessantemente em considerar os limi­
do mundo; e, em geral, a de acostu­ tes que lhes eram prescritos pela natu­
mar-me a crer que nada há que esteja reza, persuadiram-se tão perfeitamente
inteiramente em nosso poder, exceto os de que nada estava em seu poder além
nossos pensamentos, de sorte que, de­ dos seus pensamentos, que só isso bas­
pois de termos feito o melhor possível tava para impedi-los de sentir qualquer
no tocante às coisas que nos são exte­ afecção por outras coisas; e dispu­
riores, tudo em que deixamos de nos nham deles tão absolutamente, que ti­
sair bem é, em relação a nós, absoluta­ nham neste particular certa razão de se
mente impossível. E só isso me parecia julgarem mais ricos, mais poderosos,
suficiente para impedir-me, no futuro, mais livres e mais felizes que quaisquer
de desejar algo que eu não pudesse outros homens, que, não tendo esta
adquirir, e, assim, para me tomar con­ filosofia, por mais favorecidos que
tente. Pois, inclinando-se a nossa von­ sejam pela natureza e pela fortuna, ja­
tade naturalmente a desejar só aquelas mais dispoêm assim de tudo quanto
coisas que nosso entendimento lhe querem4 5.
representa de alguma forma como Enfim, para a conclusão dessa
possíveis, é certo que, se conside­ moral, deliberei passar em revista as
rarmos todos os bens que se acham diversas ocupações que os homens
fora de nós como igualménte afastados exercem nesta vida, para procurar
de nosso poder, não lamentaremos escolher a melhor; e, sem que pretenda
mais a falta daqueles que parecem dizer nada sobre as dos outros, pensei
que o melhor a fazer seria continuar
dever-se ao nosso nascimento, quando naquela mesma em que me achava,
deles formos privados sem culpa isto é, empregar toda a minha- vida em
nossa, do que lamentamos não possuir cultivar minha razão, e adiantar-me, o
os reinos da China ou do México; e mais que pudesse, no conhecimento da
que fazendo, como se diz, da necessi­ verdade, segundo o método que me
dade virtude, não desejaremos mais prescrevera. Eu sentira tão extremo
estar sãos, estando doentes, ou estar contentamento, desde quando come­
livres, estando na prisão, do que dese­ çara a servir-me deste método, que não
jamos ter agora corpos de uma matéria acreditava que, nesta vida, se pudes­
tão pouco corruptível quanto os dia­ sem receber outros mais doces, nem

43 Tudo se passa como se essas opiniões fos­ 4 4 Filósofos: estóicos. (N. do T.)
sem muito verdadeiras e, para nós, elas o são 4 5 A respeito do acento estóico da passagem
efetivamente, visto que não pudemos encontrar e do destino desta regra na moral definitiva, cf.
outras melhores. Cartas, a Elisabeth.
52 DESCARTES

mais inocentes; e, descobrindo todos de que é assim, não se pode deixar de


os dias, por seu meio, algumas verda­ ficar contente.
des que me pareciam assaz impor­ Depois de me ter assim assegurado
tantes e comumente ignoradas pelos destas máximas, e de as ter posto à
outros homens, a satisfação que isso parte, com as verdades da fé, que sem­
me dava enchia de tal modo meu espí­ pre foram as primeiras na minha cren­
rito, que tudo o mais não me tocava. ça, julguei que, quanto a todo o res­
Além do que, as três máximas prece­ tante de minhas opiniões, pojdia
dentes não se baseavam senão no meu livremente tentar desfazer-me delas. E,
intuito de continuar a me instruir: pois, como esperava chegar melhor ao cabo
tendo Deus concedido a cada um de dessa tarefa conversando com os ho­
nós alguma luz para discernir o verda­ mens, do que continuando por mais
deiro do falso, não julgaria dever tempo encerrado no quarto aquecido
contentar-me, um só momento, com as onde me haviam ocorrido esses pensa­
opiniões de outrem, se não me propu­ mentos, recomecei a viajar quando o
sesse empregar o meu próprio juízo em inverno ainda não acabara. E, em
examiná-las, quando fosse tempo4*6; e todos os nove anos seguintes, não fiz
não saberia isentar-me de escrúpulos, outra coisa senão rolar pelo mündo,
ao segui-las, se não esperasse não per­ daqui para ali, procurando ser mais
der com isso ocasião alguma de encon­ espectador do que ator em todas as
trar outras melhores, caso as houvesse. comédias que nele se representam 4 8; e,
E, enfim, não saberia limitar os meus efetuando particular reflexão, em cada
desejos, nem estar contente, se não matéria, sobre o que podia tomá-la
tivesse trilhado um caminho pelo qual, suspeita e dar ocasião de nos equivo­
pensando estar seguro da aquisição de carmos, desenraizava, entrementes, do
todos os conhecimentos de que fosse meu espírito todos os erros que até
capaz, julgava estar também, pelo então nele se houvessem insinuado.
mesmo meio, da de todos os verda Não que imitasse, para tanto, os céti­
deiros bens que alguma vez viessem a cos, que duvidam apenas por duvidar e
estar em meu alcance; tanto mais que, afetam ser sempre irresolutos: pois, ao
não se inclinando a nossa vontade a se­ contrário, todo o meu intuito tendia
guir ou fugir a qualquer coisa, senão tão-somente a me certificar e remover
conforme o nosso entendimento lha a terra movediça e a areia, para encon­
represente como boa ou má, basta bem trar a rocha ou a argila, u que conse­
julgar, para bem proceder, e julgar o gui muito bem, parece-me, tanto mais
melhor possível, para proceder tam­ que, procurando descobrir a falsidade
bém da melhor maneira4 7, isto é, para ou a incerteza das proposições que
adquirir todas as virtudes e, conjunta­
mente, todos os outros bens que se pos­ examinava, não por fracas conjeturas,
sam. adquirir; e, quando se está certo mas por raciocínios claros e seguros,
não deparava quaisquer tão duvidosas
4 6 Isto é: elas só se justificam como condi­ que delas não tirasse sempre alguma
ções provisórias da busca da verdade. conclusão bastante certa, quando mais
4 7 As duas fórmulas não são equivalentes. No
primeiro caso, o entendimento esclarecido por
idéias claras e distintas compele a vontade; no 4 8 Acerca do tema do espectador, cf. Cartas,
segundo, não estando assegurada a verdade do a Elisabeth, de 18 de maio de 1645. Poder-jse-á
juízo, eu deveria envidar esforço para seguir compará-lo ao tema do ator nos Estóicos. (Cf.
sempre o que o entendimento me representa Goldschmidt, Système Stoícien, págs. 150 e
como o melhor. segs. e 178 e segs.)
DISCURSO DO MÉTODO 53

não fosse a de que não continha nada Todavia, esses nove anos escoa­
de certo. E, como ao demolir uma ram-se antes que eu tivesse tomado
velha casa, reservam-se comumente os qualquer partido, com respeito às difi­
escombros par a servir à construção de culdades que costumam ser disputadas
outra nova, assim, ao destruir todas as entre os doutos, ou começado a procu­
minhas opiniões que julgava mal fun­ rar os fundamentos de alguma Filoso­
dadas, fazia diversas observações e fia mais certa do que a vulgar50. E o
adquiria muitas experiências, que me exemplo de muitos espíritos excelsos
serviram ‘depois para estabelecer ou­ que, tendo alimentado precedente­
tras mais certas. E, ademais, conti­ mente esse intento, não haviam logra­
nuava a exercitar-me no método que do, parecia-me, realizá-lo, levava-me a
me prescrevera; pois não só tomava o imaginar tantas dificuldades, que não
cuidado de conduzir geralmente todos teria talvez ousado empreendê-lo tão
os meus pensamentos segundo as suas cedo, se não soubesse que alguns já fa­
regras, como reservava, de tempos em ziam correr o rumor de que eu já o le­
tempos, algumas horas, que empregava vara a termo. Não poderia dizer em
particularmente em aplicá-lo nas difi­ que baseavam esta opinião; e, se para
culdades de Matemática, ou mesmo isso contribuí com algo por meus dis­
também em algumas outras que eu cursos, deve ter sido por confessar
podia tomar quase semelhantes às das neles mais ingenuamente o que eu
Matemáticas, separando-as de todos os ignorava do que costumam fazer aque­
princípios das outras ciências, que eu les que estudaram um pouco, e talvez
não achava bastante firmes, como ve­ também por mostrar as razões que
reis que procedi com várias que são tinha de duvidar de muitas coisas que
explicadas neste volume49 E assim, os outros consideram certas, do que
sem viver, aparentemente, de forma por me jactar de qualquer doutrina.
diferente daqueles que, não tendo outro Mas, tendo o coração bastante altivo
emprego senão passar uma vida doce e para não querer que me tomassem por
inocente, procuram separar os prazeres alguém que eu não era, pensei que
dos vícios, e que, para gozar de seus cumpria esforçar-me, por todos os
lazeres sem se aborrecer, usam todos meios, para tomar-me digno da reputa­
•os divertimentos que são honestos, não ção que me atribuíam; e faz justamente
deixava de persistir em meu desígnio e oito anos que esse desejo me decidiu a
de orogredir no conhecimento da ver­ afastar-me de todos os lugares em que
dade, mais talvez do que se me limi­ pudesse ter conhecimentos, e a retirar-
tasse a ler livros ou frequentar homens me para aqui51, para um país onde a
de letras. longa duração da guerra levou a esta­
belecer tais ordens, que os exércitos
49 Deve referir-se aos problemas versados em nele mantidos parecem servir apenas
Os Meteoros (explicação dos ventos, das
nuvens, do arco-íris) e na Dióptrica (G.
para que os frutos da paz sejam goza­
Milhaud estabelece que Descartes formulou a dos com tanto mais segurança, e onde,
lei da refração por volta de 1626). — Sobre a dentre a multidão de um grande povo
concepção cartesiana da Física Matemática, muito ativo e mais zeloso de seus pró-
cf. Cartas, a Mersenne, de 17 de maio de 1638,
11 de março de 1640, bem como a de 27 de
julho de 1638: “Pois se lhe apraz considerar o 50 A Filosofia escolástica.
que escrevi do solo, da neve, do arco-íris 51 Início da estada na Holanda, no outono
etc. . . saberá efetivamente que toda a minha de 1628, que durará ãté a partida para a Sué­
Física não é mais do que Geometria”. cia, em 1649.
54 DESCARTES

prios negócios, do que curioso dos tem nas cidades mais frequentadas,
assuntos dos de outrem, sem carecer de pude viver tão solitário e retirado
nenhuma das comodidades que exis­ como nos desertos mais remotos.
I

Quarta Parte

Não sei se deva falar-vos das pri­ nhum, nesse caso, que seja verdadeiro,
meiras meditações que aí realizei; pois resolvi fazer de conta que todas as coi­
são tão metafísicas e tão pouco co­ sas que até então haviam entrado no
muns, que não serão, talvez, do gosto meu espírito não eram mais verda­
de todo mundo. E, todavia, a fim de deiras que as ilusões de meus sonhos.
que se possa julgar se os fundamentos Mas, logo em seguida, adverti que,
que escolhi são bastante firmes, vejo- enquanto eu queria assim pensar que
me, de alguma forma, compelido a tudo era falso, cumpria necessaria­
falar-vos delas. De há muito observara mente que eu, que pensava53, fosse al­
que, quanto aos costumes, é necessário guma coisa. E, notando que esta verda­
às vezes seguir opiniões, que sabemos de: eu penso, logo existo 5 4, era tão
serem muito incertas, tal como se fos­ firme e tão certa que todas as mais
sem indubitáveis, como já foi dito extravagantes suposições dos céticos
acima; mas, por desejar então ocupar- não seriam capazes de a abalar, julguei
me somente com a pesquisa da verda­ que podia aceitá-la, sem escrúpulo,
de, pensei que era necessário agir exa­ como o primeiro princípio da Filosofia
tamente ao contrário, e rejeitar como que procurava.
absolutamente falso tudo aquilo em Depois, examinando com atenção o
que pudesse imaginar a menor dúvi­ que eu era, e vendo que podia supor
da52, a fim de ver se, após isso, não que não tinha corpo algum e que não
restaria algo em meu crédito, que fosse havia qualquer mundo, ou qualquer
inteiramente indubitável. Assim, por­ lugar onde eu exitisse, mas que nem
que os nossos sentidos nos enganam às por isso podia supor que não exitia; e
vezes, quis supor que não havia coisa que, ao contrário, pelo fato mesmo de
alguma que fosse tal como eles nos eu pensar em duvidar da verdade das
fazem imaginar. E, porque há homenè outras coisas seguia-se niui evidente e
que se equivocam ao raciocinar; mui certamente que eu existia; ao
mesmo no tocante às mais simples passo que, se apenas houvesse cessado
matérias de Geometria, e cometem ãí de pensar, embora tudo o mais que al­
paralogismos, rejeitei como falsas, jul­ guma vez imaginara fosse verdadeiro,
gando que estava sujeito a falhar como já não teria qualquer razão de crer que
qualquer outro, todas as razões que eii
tomara até então por demonstrações. E 53 Cumpre notar que Descartes não diz: “du­
enfim, considerando que todos os mes­ vido, logo 'Sou”. A dúvida não importa como
mos pensamentos que temos quando ato, mas como conhecimento do fato de que eu
duvido.
despertos nos podem também ocorrer 54 O Cogito não é um raciocínio: é uma cons­
quando dormimos, sem que haja Re- tatação de fato. Por que então se emprega aqui
o termo “logo”? “Descartes dá ao Cogito o
52 Está, portanto, sujeito à dúvida não só aspecto de um raciocínio toda vez que Ideseja
aquilo de que eu duvido de fato mas também pôr em relevo o caráter necessário da ligação
aquilo de que poderia duvidar de direito. que o mesmo contém.” (Op. cit., II, 309.)|
DISCURSO DO MÉTODO 55

eu tivesse existido; compreendi por aí Em seguida, tendo refletido sobre


que era uma substância cúja essência aquilo que eu duvidava, e que, por
ou natureza consiste apenas no pensar, conseqüência, meu ser não era total­
e que, para, ser, não necessita de ne­ mente perfeito, pois via claramente que
nhum lugar, nem depende de qualquer o conhecer é perfeição maior do que o
coisa material. De sorte que esse eu, duvidar, deliberei procurar de onde
isto é, a alma5 5, pela qual sou o que aprendera a pensar em algo mais per­
sou, é inteiramente distinta do corpo e, feito do que eu era; e conheci, com
mesmo, que é mais fácil de conhdcer evidência, que deveria ser de alguma
do que ele, e, ainda que este nada fosse, natureza que fosse de fato mais perfei­
e!a não deixaria de ser tudo o que é. ta. No concernente aos pensamentos
Depois disso, considerei em geral o que tinha de muitas outras coisas fora
que é necessário a uma proposição de mim, como do céu, da terra, da luz,
para ser verdadeira e certa; pois, como do calor e de mil outras, não me era
acabava de encontrar uma que eu tão difícil saber de onde vinham, por­
sabia ser exatamente assim, pensei que que, não advertindo neles nada que me
devia saber também em que consiste parecesse tomá-los superiores a mim,
essa certeza56. E, tendo notado que podia crer que, se fossem verdadeiros,
nada há no eu penso, logo existo, que eram dependências de minha natureza,
me assegure de que digo a verdade, ex­ na medida em que esta possuía alguma
ceto que vejo muito claramente que, perfeição; e se não o eram, que eu os
para pensar, é preciso existir 5 7, julguei tinha do nada, isto é, que estavam em
poder tomar por regra geral que as coi­ mim pelo que eu possuía de falho. Mas
sas que concebemos mui clara e mui não podia acontecer o mesmo com a
distintamente são todas verdadeiras, idéia de um ser mais perfeito do que o
havendo apenas alguma dificuldade meu; pois tirá-la do nada era manifes­
em notar bem quais são as que conce­ tamente impossível; e, visto que não há
bemos distintamente. menos repugnância em que o mais per­
feito seja uma conseqüência e uma
5 5 Descartes, nas Segundas Respostas, decla­ dependência do menos perfeito do que
ra que preferiu mens a anima no texto latino. em admitir que dómada procede algu­
Mens designa apenas ó entendimento. Neste ma coisa, eu não podia tirá-la tam­
parágrafo, Descartes insiste na substancia- pouco de mim próprio. De forma que
lidade da alma como puro pensamento, heteró-
gena à substância do corpo, mas estabelece restava apenas que tivesse sido posta
também a natureza puramente intelectual da em mim por uma natureza que fosse
alma. verdadeiramente mais perfeita do que a
’5 6 Reflexão sobre as condições da certeza do minha, e que mesmo tivesse em si
Cogito que conduzirá à determinação do crité­ todas as perfeições de que eu poderiá
rio da certeza em geral: o conhecimento claro
e distinto. “Sendo cada verdade que eu encon­ ter alguma idéia, isto é, para explicar-
trava uma regra que me servia para encontrar me numa palavra, que fosse Deus 5 8. A
outras... ”, diz mais abaixo Descartes.
5 7 Guéroult (op. cit., II, 307-10) mostra que o 58 Interrogação sobre a origem da idéia do
princípio “Para pensar, é preciso ser” não é a perfeito que há em meu espírito. Fica estabele­
premissa maior de um raciocínio, como seria cido que: l.° esta idéia não pode provir do
“Tudo o -que pensa é”. Trata-se de um adágio nada que há em mim (em virtude do princípio:
sem o qual eu não teria consciência da ligação ex níhilo nihil gignit), 2.° que ela não pode vir
necessária entre Cogito e Sum; mas, em de mim, ser imperfeito (não pode haver mais
contrapartida, sem o Cogito eu tampouco teria realidade no efeito do que na causa), ao passo
consciência deste adágio. Pór que supôr, per­ que esta solução seria possível para as idéias
gunta Descartes, “que o conhecimento das que eu tenho das coisas externas. Donde: l.°
proposições particulares deve sempre ser dedu­ existência de outra natureza fora de mim; 2.°
zido de universais”? . . . que contém todas as perfeições.
56 DESCARTES

isso acrescentei que, dado que conhe­ toda a composição testemunha depen­
cia algumas perfeições que não pos­ dência, e que a dependência é mahifes-
suía, eu não era o único ser que existia tamente um defeito60, julguei por aí
(usarei aqui livremente, se vos aprou- que nao podia ser uma perfeição em
ver, alguns termos da Escola); mas que Deus o ser composto dessas duas natu­
devia necessariamente haver algum rezas, e que, por conseguinte, ele não o
outro mais perfeito, do qual eu depen­ era 61, mas que, se havia alguns corpos
desse e de quem eu tivesse recebido no mundo, ou então algumas inteligên­
tudo o que possuía59. Pois, se eu fosse cias, ou outras naturezas, que não fos­
só e independente de qualquer outro, sem inteiramente perfeitos, o seu ser
de modo que tivesse recebido, de mim deveria depender do poder de Deus, de
próprio, todo esse pouco pelo qual tal sorte que não pudessem subsistir
participava dó Ser perfeito, poderia sem ele um só momento 62.
receber de mim, pela mesma razão, todas as maneiras, pois os geômetras
todo o restante que sabia faltar-me, e supõem tudo isto em seu objeto, per­
ser assim eu próprio infinito, eterno, corria algumas de suas mais simples
imutável, onisciente, todo-poderoso, e Quis procurar, depois disso, outras
enfim ter todas as perfeições que podia verdades, e tendo-me proposto o objeto
notar existirem em Deus. Pois, segun­ dos geômetras, que eu concebia como
do os raciocínios que acabo de fazer, um corpo contínuo63, ou um espaço
para conhecer a natureza de Deus, infinitamente extenso em compri­
tanto quanto a minha o era capaz, bas­ mento, largura e altura ou profundi­
tava considerar, acerca de todas as coi­ dade, divisível em diversas partes que
sas de que achava em mim qualquer podiam ter diversas figuras e grande­
idéia, se era ou não perfeição possuí- zas, e ser movidas ou transpostas de
las, e estava seguro de que nenhuma
das que eram marcadas por alguma
imperfeição existia nele, mas que todas 60 Composição implica dependência das par­
as outras existiam. Assim, eu via que a tes, umas em relação às outras, e do todo em
relação às partes.
dúvida, a inconstância, a tristeza e coi­ 61 Para conceber a infinita perfeição de Deus,
sas semelhantes não podiam existir cumpre atribuir-lhe todas as perfeições das
nele, dado que eu próprio estimaria quais possuímos apenas fragmentos e excluir
muito estar isento delas. Além disso, dele as imperfeições que há em nós.
62 Evocação da doutrina da criação contínua:
eu tinha idéias de muitas coisas sensí­ a) o tempo é radicalmente descontínuo (o
veis e corporais; pois, embora supu­ tempo presente não depende do precedente); b)
sesse que estava sonhando e que tudo em cada um desses momentos descontínuos, o
quanto via e imaginava era falso, não estado do mundo e meu pensamento são
podia negar, contudo, que as idéias a conservados no ser por Deus. Tese ligada à
negação das formas substanciais. Enquanto,
respeito não existissem verdadeira­ para Santo Tomás, “Deus instituiu uma ordem
mente em meu pensamento; mas, por das coisas, tal que algumas dependem de ou­
já ter reconhecido em mim mui clara­ tras pelas quais elas são secundariamente
mente que a natureza inteligente é dis­ conservadas no ser”, Descartes afirma não
haver nenhuma “virtude por meio da qual eu
tinta da corporal, considerando que possa fazer com que eu, que sou agora, seja
ainda, um instante após”.
59 Deus é agora considerado como o meu 63 Um corpo absolutamente pleno: não sendo
Criador que me mantém no ser e não mais o corpo senão extensão, a extensão que [sepa­
como o autor da idéia de Deus em mim rasse duas partes de matéria seria, ela própria,
existente. um corpo.
DISCURSO DO MÉTODO 57

demonstrações. E, tendo notado que sofos terem por máxima, nas escolas,
essa grande certeza, que todo mundo que nada há no entendimento que não
lhes atribui, se funda apens no fato de haja estado primeiramente nos senti­
serem concebidas com evidência, se­ dos65, onde, todavia, é certo que as
gundo a regra que hâ pouco expressei, idéias de Deus e da alma jamais estive­
notei também que nada havia nelas ram. E me parece que todos os que
que me assegurasse a existência de seu querem usar a imaginação para com­
objeto. Pois, por exemplo, eu via muito preendê-las procedem do mesmo modo
bem que, supondo um triângulo, cum­ que se, para ouvir os sons ou sentir os
pria que seus três ângulos fossem odores, quisessem servir-se dos olhos;
iguais a dois retos; mas, apesar disso exceto com esta diferença ainda: que o
nada via que garantisse haver no sentido da vista não nos garante menos
mundo qualquer triângulo. Ao passo a verdade de seus objetos do que os do
que, voltando a examinar a idéia que
olfato ou da audição; ao passo que a
tinha de um Ser perfeito, verificava que
nossa imaginação ou os nossos senti­
a existência estava aí inclusa, da
mesma forma como na de um triân­ dos nunca poderíam assegurar-nos de
gulo está incluso serem seus três ângu­ qualquer coisa, se o nosso entendi­
los iguais a dois retos, ou na de uma mento não interviesse.
esfera serem todas as suas partes igual­ Enfim, se há ainda homens que não
mente distantes do' seu centro, ou estejam bem persuadidos da existência
mesmo, ainda mais evidentemente; e de Deus e da alma, com as razões que
' que, por conseguinte, é pelo menos tão apresentei, quero que saibam que todas
certo 6 4 que Deus, que é esse Ser perfei­ as outras coisas, das quais se julgam
to, é ou existe, quanto sê-lo-ia qualquer talvez certificados, como a de terem
demonstração de Geometria. um corpo, haver astros e uma terra, e
Mas o que leva muitos a se persua­ coisas semelhantes, são ainda menos
direm de que há dificuldade em conhe- certas. Pois, embora se possua dessas
cê-lo, e mesmo também em conhecer o coisas uma certeza moral, que é de tal
que é sua alma, é o fato de nunca ele­ ordem que, exceto sendo-se extrava­
varem o espírito além das coisas sensí­ gante, parece impossível pô-la em dú­
veis e de estarem de tal modo acostu­ vida, todavia também, quando se trata
mados a nada considerar senão da certeza metafísica6 6, não se pode
imaginando, que é uma forma de pen­ negar, a menos que sejamos desarra-
sar particular às coisas materiais, que zoados, que é motivo suficiente, para
tudo quanto não é imaginável lhes pa­
rece não ser inteligível. E isto é assaz 6 5 Adágio escolástico. Toda essa passagem
constitui um ataque ao excessivo papel conce­
manifesto pelo fato de os próprios filó­ dido pelo aristotelismo e pelo tomismo à “ima­
ginação”. Em Metafísica, contrariamente ao
6 4 Exposição da prova a priori: “. . . ainda que se passa na Física e na Matemática, a
mais evidentemente”, porque a inclusão da imaginação não poderia ser de qualquer
existência necessária na essência de Deus é serventia.
uma relação ainda mais simples do que as rela­ 6 6 Distinção entre “certeza moral” (suficiente
ções geométricas citadas (ela é antes compa­ para a vida prática) e metafísica (“quando pen­
rável às verdades matemáticas indemonstrá- samos que não é de modo algum possível que a
veis). “Pelo menos tão certo” significa “mais coisa seja diferente do que julgamos”). No pri­
certo”: é possível estar seguro da existência de meiro plano, seria loucura duvidar da exis­
Deus, sem o estar da verdade dos teoremas tência das coisas sensíveis; no segundo, é
matemáticos, não sendo o inverso verdadeiro. leviandade estar “seguro” delas.
58 DESCARTES

não estarmos inteiramente seguros a gurasse que elas possuem a perfeição


respeito, o fato de se advertir que pode­ de serem verdadeiras 6 7.
mos do mesmo modo imaginar, quan­ Ora, depois que o conhecimento de
do adormecidos, que temos outro Deus e da alma nos tenha, assim,} dado
corpo, que vemos outros astros e outra certeza dessa regra, é muito fácil
terra, sem que na realidade assim o compreender que os sonhos que imagi­
namos quando adormecidos não
seja. Pois, de onde sabemos que os devem, de modo algum, levar-nos a
pensamentos que ocorrem em sonhos duvidar da verdade dos pensamentos
são mais falsos do que os outros, se que temos quando acordados. Pois, se
muitos não são amiúde menos vivos e acontecesse que, mesmo dormindo,
nítidos? E, ainda que os melhores espí­ tivéssemos alguma idéia muito distin­
ritos estudem o caso tanto quanto lhes ta, como, por exemplo, que um geôme-
aprouver, não creio que possam dar tra inventasse qualquer nova demons­
qualquer razão que seja suficiente para tração, o sono deste não a impediría de
ser verdadeira. E, quanto ao erro mais
desfazer essa dúvida, se não pressupu­ comum de nossos sonhos, que consiste
serem a existência de Deus. Pois, em em nos representarem diversos objetos
primeiro lugar, aquilo mesmo que há tal como fazem nossos sentidos exte­
pouco tomei como regra, a saber, que riores, não importa que ele nos dê oca­
as coisas que concebemos mui clara e sião de desconfiar da verdade de tais
mui distintamente são todas verdadei­ idéias, porque estas também nos
ras, não é certo senão porque Deus é podem enganar muitas vezes, sem que
ou existe, e é um ser perfeito, e porque estejamos dormindo, como sucede
tudo o que existe em nós nos vem dele. quando os que têm icterícia vêem tudo
Donde se segue que as nossas idéias ou da côr amarela, ou quando os astros
ou outros corpos fortemente afastados
noções, sendo coisas reais, e prove­ de nós se nos afiguram muito menores
nientes de Deus em tudo em que são do que são. Pois, enfim, quer estejamos
claras e distintas, só podem por isso em vigília, quer dormindo, nunca nos
ser verdadeiras. De sorte que, se temos devemos deixar persuadir senão pela
muitas vezes outras que contêm falsi­ evidência de nossa razão 68. E deve-se
dade, só podem ser as que possuem observar que digo de nossa razão e de
algo de confuso e obscuro, porque modo algum de nossa imaginação, ou
nisso participam do nada, isto é, são de nossos sentidos. Porque, embora
assim confusas em nós, porque nós 6 7 Somente após a prova da existência de um
não somos de todo perfeitos. E é evi­ Deus perfeito (logo, imutável e não enganador
dente que não repugna menos admitir — portanto garante das idéias claras e distin­
que a falsidade ou a imperfeição proce­ tas), é que a regra da evidência è as outras ver­
dades anteriormente descobertas podem ser
dam de Deus, como tal, do que admitir colocadas como verdadeiras. Antes disso,
que a verdade ou a perfeição procedam gozam apenas de uma certeza subjetiva, verda­
deiras só quando penso nelas efetivamente.
do nada. Mas, se não soubéssemos de 68 Todos os argumentos possíveis do ceti­
modo algum que tudo quanto existe em cismo são doravante varridos: não poderiamos
nós de real e verdadeiro provém de um ser sensíveis ao argumento do sonho, por
ser perfeito e infinito, por claras e- dis­ exemplo, a não ser que ainda concedéssemos
nosso crédito às imagens sensíveis. Agora só
tintas que fossem nossas idéias não as idéias claras e distintas têm força constran­
feríamos qualquer razão que nos asse­ gedora.
DISCURSO DO MÉTODO 59

vejamos o sol mui claramente, não e verídico, as houvesse posto em nós


devemos julgar por isso que ele seja, sem isso. E, pelo fato de nossos racio­
apenas, da grandeza que o vemos; e cínios jamais serem tão evidentes nem
bem podemos imaginar distintamente tão completos durante o sono como
uma cabeça de leão enxertada no durante a vigília, ainda que às vezes
corpo de uma cabra, sem que devamos nossas imaginações sejam tanto ou
concluir, por isso, que no mundo há mais vivas e expressas, ela nos dita
uma quimera; pois a razão não nos também que, não podendo nossos
dita que tudo quanto vemos ou imagi­ pensamentos serem inteiramente ver­
namos, assim, seja verdadeiro, mas nos dadeiros, porque não somos de todo
dita realmente que todas as nossas perfeitos, tudo o que eles encerram de
idéias ou noções devem tér algum fun­ verdade deve encontrar-se infalivel­
damento de verdade; pois não seria mente naquele que temos quando acor­
possível que Deus, que é todo perfeito dados, mais do que em nossos sonhos.

Quinta Parte

Gostaria muito de prosseguir e de Deus estabeleceu de tal modo na natu­


mostrar aqui toda a cadeia de outras reza, e das quais imprimiu tais noções
verdades que deduzi dessas primeiras. em nossas almas que, depois de refletir
Mas, dado que, para tal efeito, seria bastante sobre elas, não poderiamos
agora necessário que falasse de muitas duvidar que não fossem exatamente
questões controvertidas entre os dou­ observadas em tudo o que existe ou se
tos, com os quais não desejo indispor- faz no mundo 69. Depois, considerando
a sequência dessas leis, parece-me ter
me, creio que será melhor que eu me descoberto muitas verdades mais úteis
abstenha e somente diga, em geral,' e mais importantes do que tudo quanto
quais elas são, a fim de deixar que os aprendera até então, ou mesmo espe­
mais sábios julguem se seria útil que o rava aprender.
público fosse a esse respeito mais Mas, dado que procurei explicar as
particularmente informado. Permane­ principais num tratado que certas
cia sempre firme na resolução que to­ considerações me impedem de publi­
mara de não supor qualquer outro car70, não poderia dá-las melhor a
princípio, exceto aquele de que acabo
de me servir para demonstrar a exis­ 69 As “leis da natureza” são as regras cons­
tantes instituídas por Deus e “segundo as quais
tência de Deus e da alma, e de não se efetuam as mudanças na matéria”: conser­
acolher coisa alguma por verdadeira vação da quantidade de movimento, princípio
que não me parecesse mais clara e de inércia, leis do choque dos corpos, etc. . .
mais certa do que me haviam parecido Elas nada têm em comum com a lei no sentido
determinista, como sublinha Belaval no seu
anteriormente as demonstrações dos Leibniz et Descartes: “Descartes e Leibniz
geômetras. E, no entanto, ouso dizer pensam na natureza tão-somente no contexto
que não só encontrei meio de me satis­ teológico da Criação; as leis serão regras, má­
fazer em pouco tempo no tocante a ximas razões, que o legislador supremo faz rei­
nar na constituição do mundo” (pág. 453).
todas as principais dificuldades que 70 O Mundo ou Tratado da Luz que Descar­
costumam ser tratadas na Filosofia, tes,. devido à condenação de Galileu, deixara
mas também que notei certas leis que de publicar (1634).
60 DESCARTES

conhecer do que dizendo aqui, suma­ diversas partes desta matéria, de modo
riamente, o que ele contém. Eu preten­ que compusesse com ela um caos tão
dia, antes de escrevê-lo, incluir nele confuso quanto os poetas possam fazer
tudo o que julgava saber quanto á crer, e que, em seguida, não fizesse
natureza das coisas materiais. Mas, tal outra coisa senão prestar o seu con­
como os pintores que, não podendo curso comum73 à natureza, e déixá-la
representar igualmente bem num qua­ agir segundo as leis por ele estabele­
dro plano todas as diversas faces de cidas. Assim, primeiramente, descrevi
um corpo sólido, escolhem uma das essa matéria e procurei representá-la
principais, que colocam à luz, e, som- de tal modo que nada há no mundo,
breando as outras, só as fazem apare­ parece-me, mais claro nem mais inteli­
cer tanto quanto se possa vê-las ao gível, exceto o que há pouco foi dito
olhar aquela; assim, temendo não sobre Deus e a alma; pois supus
poder pôr em meu discurso tudo o que mesmo, expressamente, que não existia
tinha no pensamento, tentei apenas nela nenhuma dessas formas ou quali­
expor bem amplamente o que concebia dades acerca das quais se disputa nas
da luz; depois, no seu ensejo, acres­ escolas, nem, de modo geral, qualquer
centar alguma coisa sobre o sol e as coisa cujo conhecimento não fosse tão
estrelas fixas, porque a luz proceae natural às nossas almas que não se
quase toda deles; sobre os céus, porque
72 Aqui começa o resumo da falsa “hipótese”
a transmitem; sobre os planetas, os da formação do mundo. Falsa não tanto por
cometas e a terra, porque a refletem; e, prudência (o processo revolutivo contradiz o
em particular, sobre todos os corpos relato das Escrituras) quanto por razão. A
que há sobre a terra, porque são ou razão é que me faz ver que “seria contrário à
onipotência de Deus que este não criasse o
coloridos, ou transparentes, ou lumino­ mundo desde o começo com toda a perfeição
sos; e, enfim, sobre o homem, porque é que deveria tér”. (Princípios, III, art. 45.) Esta
o seu espectador. Também, para som­ hipótese terá, pois, apenas um valor metodoló­
brear um pouco todas essas coisas e gico: “Quão melhor conheceriamos qual foi a
natureza de Adão e das árvores do Paraíso, se
poder dizer mais livremente o que jul­ tivéssemos examinado como os filhos se for­
gava a seu respeito, sem ser obrigado a mam pouco a pouco no ventre de suas mães e
seguir nem a refutar as opiniões aceitas como as plantas saem de suas sementes, do
entre os doutos, resolvi-me a deixar que se tivéssemos somente considerado quais
eram quando Deus os criou; do mesmo modo,
todo esse mundo às suas disputas, e a entenderemos melhor qual é, em geral, a natu­
falar somente do que aconteceria num reza de todas as coisas existentes no mundo, se
novo, se Deus criasse agora em qual­ pudermos imaginar alguns princípios aue
quer parte, nos espaços imaginários71, sejam muito inteligíveis e muito simples, os
bastante matéria para compô-lo 7 2, e se quais nos façam ver claramente que os astros e
a terra, e enfim todo este mundo visível pode­
agitasse diversamente, e- sem ordem, às ría ser produzido assim apenas de. algumas
sementes, embora saibamos que ele não foi
71 Ironicamente, Descartes situa o seu “mito” produzido desta maneira. . . ” (Prin., III, art.
da formação do mundo nos “espaços imaginá­ 45.)
rios”, noçao escolástica, para ele inadmissível, 73 O “concurso ordinário” é oposto ao “con­
já que não pode haver esoaco não cheio se, curso extraordinário” (os milagres): é a ação
como ele pensa, espaço e matéria se recipro­ pela qual Deus conserva o mundo com suas
cam leis.
DISCURSO DO MÉTODO 61

pudesse mesmo fingir ignorá-la74. -substância, situação, movimentos e


Além disso, fiz ver quais eram as leis todas as diversas qualidades desses
da natureza; e, sem apoiar minhas céus e desses astros; de sorte que pen­
razões em nenhum outro princípio, a sava ter dito a respeito o suficiente,
não ser no das perfeições infinitas de para fazer compreender que nada se
Deus75, procurei demonstrar todas nota nos deste mundo que não devesse,
ou ao menos não pudesse, parecer
aquelas que pudessem suscitar qual­ totalmente semelhante nos do mundo
quer dúvida e mostrar que elas são tais que estava descrevendo. Daí vim a
que, embora Deus tivesse criado mui­ falar particularmente da terra: como,
tos mundos, não poderia existir um só embora houvesse expressamente su­
em que deixassem de ser observadas. posto que Deus não pusera peso
Depois disso, indiquei como a maior algum7 7 na matéria de que ela era
parte da matéria desse caos devia, em
sequência dessas leis, dispor-se e ar- 7 6 A luz não é um movimento (“Nenhum
movimento ocorre no instante”, Princípios, II,
ranjar-se de uma certa forma que a art. 39), mas é uma ação instantânea (“A força
torna semelhante aos nossos céus; da luz não consiste absolutamente na duração
como, entretanto, algumas de suas par­ de qualquer movimento”) que anima as partí­
tes deviam compor uma terra, alguns culas da matéria sutil mais próxima ao mesmo
dos planetas e cometas, e outras, uni tempo que a mais distante. Assim, as diferen­
tes partes do raio luminoso são contemporâ­
sol e estrelas fixas. E neste ponto, neas, embora-espacialmente dependentes umas
estendendo-me sobre o tema da luz, das outras, e o instante de luz é um estado que
expliquei bem longamente qual era a exclui toda duração (é verdade que a “dura­
que se devia encontrar no sol e nas ção” é apenas “uma maneira de considerarmos
uma coisa enquanto ela continua existindo”
estrelas, e como, a partir daí, atraves­ Prin., I, 55), um conceito à medida de nosso
sava num instante os imensos espaços espírito finito). A medição, por Cassini e
dos céus 7 6, e como se refletia dos pla­ Huyghens, da velocidade da luz destruirá esta
netas e dos cometas para a terra. Juntei tese do instante como indivisível fora do
a isso também várias coisas atinentes à tempo; “Ao substituir, com efeito, no coração
das coisas criadas, o dinâmico pelo estático
(esta descoberta) impossibilitava a redução do
7 4 Esta referência à Física escolástica toma físico ao puro geométrico”. (Guéroult, Descar­
sensível o alcance polêmico da doutrina das, tes, I, 273.) Cf. Cartas, a Beeckmann, de 22 de
idéias claras e distintas e da redução da maté­ agosto de 1634, onde é afirmada a importância
ria à extensão. A evacuação das formas subs­ capital desta teoria: se ela for falsa, o mundo
tanciais (isto é, do princípio interno que, em poderá conter vazio, matéria e extensão dei­
cada corpo, governa as operações deste) toma xam de se reciprocar e a Física de Descartes se
esboroará.
a natureza inteiramente transparente ao enten­ 7 7 Entenda-se gravitas no sentido de “ten­
dimento. Mas as coisas já não têm “força inte­ dência do elemento a se dirigir para baixo”. A
rior pela qual elas se.conservam no ser”, como gravidade não é uma qualidade última do
nota um teólogo da época. (Citado por Bré- corpo e tampouco resulta da atração do grave
hier, La Philosophie et son Passe, pág. 132.) pela terra, mas de um empuxo do corpo pela
7 5 Sobretudo a imutabilidade, essencial ao “matéria sutil que gira ao redor da terra”.
princípio da inércia (que Descartes foi o pri­ Sobre a dificuldade que Descartes tem, a partir
meiro a enunciar: “Cada parte da matéria, em daí, para determinar “o retardamento que rece­
particular, continua no mesmo estado, en­ be o movimento dos corpos pesados, devido ao
quanto o encontro com outras não a obrigue a ar em que se movem”, cf. Cartas, a Mersenne,
de. 22 de junho de 1637, e a obra de Alexandre
mudá-lo”) e ao princípio de conservação -da Koyré. La Loi de la Chute des Corps. Descar­
quantidade de movimento.
tes et Galilée.
62 DESCARTES

composta, todas as suas partes não tivesse sido criadoda forma como pro-
deixavam de tender exatamente para o , punha; pois é bem mais verossímil (qué,
seu centro; como, havendo água e ar à desde o começo, Deus o, tenha tornado
sua superfície, a disposição dos céus e • tal como devia ser. Mas é certo,1 e é
dos astros, principalmente da Lua, uma opinião comumente adotada entre
devia nela causar um fluxo e refluxo, os teólogos, que a ação pela qual ele
que fosse semelhante, em todas as suas agora o conserva é exatamente igual
circunstâncias, ao que se observa nos àquela pela qual o criou: de modo que,
nossos mares; e além disso, certo embora não lhe houvesse dado, no
curso, tanto da água como do ar, do começo, outra forma senão a do Caos,
levante para o poente, tal como se desde que, tendo estabelecido as leis da
observa também entre os trópicos; natureza, lhe tenha prestado seu con­
como as montanhas, os mares, as fon­ curso, para ela agir assim como costu­
tes e os rios podiam naturalmente for­ ma, pode-se crer, sem prejudicar o
mar-se nela, e os metais aparecerem milagre da criação, que só por isso
nas minas, e as plantas crescerem nos todas as coisas que são puramente
campos, e em geral todos os corpos materiais poderiam, com o tempo, tor­
chamados mistos ou compostos7 8 nar-se tais como as vemos no presen­
serem nela engendrados. E entre outras te81. E sua natureza é bem mais fácil
coisas, já que após os astros nada de conceber, quando as vemos nascer
conheço no mundo, a não ser o fogo, pouco a pouco desta maneira, do que
que produza a luz, apliquei-me a expli­ quando já as consideramos totalmente
car bem claramente tudo o que per­ feitas.
tence à sua natureza, como ele se faz, Da descrição dos corpos inanima­
como se nutre; como existe às vezes dos e das plantas, passei à dos animais
apenas calor sem luz7879, e outras vezes e particularmente à dos homens.
luz sem calor80, como pode introduzir Mas, como não contava ainda sufi­
diversas cores em diversos corpos e ciente conhecimento para falar deles
diversas outras qualidades; como no mesmo estilo que do resto, isto é,
funde uns e endurece outros; como os demonstrando os efeitos pelas causas,
pode consumir a quase todos ou con­ e mostrando de quais sementes e de
verter em cinzas e em fumo; e enfim, que maneira a natureza deve produzi-
como dessas cinzas, pela só violência los, contentei-me em supor que Deus
de sua ação, forma o vidro; pois, pare­ formasse o corpo de um homem intei­
cendo-me essa transmutação de cinzas ramente semelhante a um dos nossos,
em vidro tão admirável como nenhuma tanto na figura exterior de seus mem­
outra que se produza na natureza, bros como na conformação interior de
deu-me particular prazer descrevê-la. seus órgãos, sem compô-lo de outra
Todavia, não desejava inferir, de matéria além da que eu descrevera, e
todas essas coisas, que este mundo sem pôr nele, no começo, qualquer
alma racional, nem qualquer outra
'coisa para servir-lhe de alma vegeta-
78 Entenda-se: os corpos que são combina­
ções de elementos; pois os elementos carte-
sianos já não são o frio, o quente, o seco e o 81 “Sendo estas leis a causa de que a matéria
úmido, mas três ordens de matéria, definidas deva tomar sucessivamente todas as formas de
pelo volume e pelo movimento de suas partes. que é capaz, se considerarmos por ordem
Cf. Princípios, III, arts. 52-54. todas estas formas, poderemos, enfim, chegar
7 9 Exemplo: a cal viva. àquela que se encontra presentemente neste
80 Exemplo: as estrelas cadentes. mundo.” (Princípios, III, art. 47.)
DISCURSO DO MÉTODO 63

tiva ou sensitiva, senão que excitasse julgar facilmente, a partir dele, o que
em seu coração um desses fogos sem se deve pensar de todos os outros. E,
luz que eu já explicara, e que não con­ para que se tenha menos dificuldade de
cebia nenhuma outra natureza, exceto entender o que vou dizer a esse respei­
a que aquece o feno quando o guardam to, gostaria que todos os que não são
antes de estar seco, ou a que faz ferver versados em anatomia se dessem ao
os vinhos novos quando ficam a fer­ trabalho, antes de ler isto, de mandar
mentar sobre o bagaço. Pois, exami­ cortar diante deles o coração de um
nando as funções que, em virtude grande animal que possua pulmões,
disso, podiam estar neste corpo, encon­ pois é em tudo semelhante ao do
trava exatamente todas as que podem homem, e que peçam para que se lhes
estar em nós sem que o pensemos, nem mostrem as duas câmaras ou concavi­
por conseguinte que a nossa alma, ou dades nele existentes. Primeiramente, a
seja, essa parte distinta do corpo cuja que está no lado direito83, a que
natureza, como jâ foi dito mais acima, correspondem dois tubos muito largos:
é apenas a de pensar, para tal contri­ a saber, a veia cava, que é o principal
bua, e que são todas as mesmas, o que receptáculo do sangue e como que o
permite dizer que os animais sem tronco da árvore da qual todas as ou­
razão se nos assemelham, sem que eu tras veias do corpo são ramos; e a veia
possa achar para isso qualquer daque­ arteriosa8 4, que foi assim impropria­
las razões que, sendo dependentes do mente designada, por se tratar efetiva­
pensamento, são as únicas que nos per­ mente de uma artéria, a qual, tomando
tencem enquanto homens, ao passo sua origem no coração, se divide, de­
que achava a todas em seguida, ao pois de sair dele, em muitos ramos que
supor que Deus criara uma alma racio­ vão espalhar-se por toda a parte nos
nal e que a juntara a esse corpo de uma pulmões. Depois, a que esta no lado
certa maneira que descrevia82. esquerdo8 5, à qual correspondem, da
Mas, a fim de que se possa ver de mesma forma, dois tubos que são tanto
que modo eu tratava esta matéria, ou mais largos que os precedentes: a
quero apresentar aqui a explicação do saber, a artéria venosa8 6, que também
movimento do coração e das artérias, foi impropriamente designada, porque
o qual, sendo o primeiro e o mais geral não é outra coisa senão uma veia, que
que se observa nos animais, permitirá vem dos pulmões, onde se divide em
vários ramos, entrelaçados com os da
82 Trata-se, portanto, de uma reconstituição veia arteriosa e com os desse conduto
imaginária do homem enquanto animal-má- que se chama gasnete87, por onde
quina, antes da inserção da alma. Na realida­ entra o ar da respiração; e a grande
de, o corpo humano nunca é uma máquina, artéria88, que, saindo do coração,
pois está sempre unido a uma alma. Mas esta lança seus ramos por todo o corpo.
redução mostra que a única função da alma é Gostaria também que se lhes mostras­
o pensamento, e que é preciso’, portanto, renun­
ciar às noções escolásticas de alma sensitiva
sem cuidadosamente as onze pequenas
ou vegetativa. “No homem, a alma é una e é a peles89, que, como outras tantas pe-
alma racional. . . as faculdades que dão ao
corpo vida e movimento, e que denominamos 83 O ventrículo direito.
nas plantas e nos animais alma vegetativa e 8 4 A artéria pulmonar.
alma sensitiva, encontram-se também no 8 5 O ventrículo esquerdo.
homem; mas, nele, não devemos denominá-las 8 6 As veias pulmonares.
almas. . . elas são de um gênero inteiramente 87 A traquéia-artéria.
diferente do da alma racional.” (A Regius, 88 A aorta.
maio de 1641.) 83 As válvulas.
64 DESCARTES

quenas portas, abrem e fecham as qua­ enfim, que este calor é capaz de fazer
tro aberturas que há nessas duas que, se uma gota de sangue entear em
concavidades: a saber, três à entrada suas concavidades, ela se infle pronta­
da veia cava90, onde se acham de tal mente e se dilate, como procedem em
modo dispostas que não podem de geral todos os líquidos quando os dei­
maneira alguma impedir que o sangue xamos cair gota a gota nalgum vaso
nela contido corra para a concavidade que esteja muito quente.
direita do coração, e todavia impedem Isso porque, depois disso, nada mais
exatamente que possa dali sair; três à preciso dizer para explicar o movi­
entrada da veia arteriosa91, que, estan­ mento do coração, salvo que, quando
do dispostas bem ao contrário, permi­ as suas concavidades não estão cheias
tem realmente ao sangue que está de sangue, este corre necessariamente
nessa concavidade passar para os pul­
da veia cava para a concavidade direi­
mões, mas não ao que está nos pul­
ta, e da artéria venosa para a esquerda;
mões voltar para lá; e assim92 duas
já que esses dois vasos se acham sem­
outras à entrada da artéria venosa, que
pre cheios, e que suas aberturas, volta­
deixam fluir o sangue dos pulmões
para a concavidade esquerda do cora­ das para o coração, não podem então
ção, mas opõem-se ao seu retomo; e ser tapadas; mas, tão logo tenham
três à entrada da grande artéria9394 , que entrado assim duas gotas de sangue,
lhe permitem sair do coração, mas uma em cada concavidade, estas gotas,
impedem o seu retomo. E não há que só podem ser muito grossas, por­
necessidade de procurar outra razão que as aberturas por onde penetram
para o número dessas peles, senão a de são muito largas, e os vasos de onde
que a abertura da artéria venosa, sendo provêm muito cheios de sangue, rarefa-
oval devido ao lugar onde fica, pode zem-se e dilatam-se por causa do calor
ser comodamente fechada com duas, que aí encontram; por esse meio,
ao passo que, as outras sendo redon­ fazendo inflar o coração todo, empur­
das, três podem melhor fechá-las. ram e fecham as cinco pequenas portas
Demais, gostaria que lhes fosse dado
considerar que a grande artéria e a veia que ficam à entrada dos dois vasos de
arteriosa sao de uma composição onde vêm, impedindo, assim, que desça
muito mais dura e mais firme do que a mais sangue ao coração; e, conti­
artéria venosa e a veia cava, e que as nuando a rarefazer-se cada vez mais,
duas últimas se alargam antes de en­ empurram e abrem as seis outras
trar no coração, formando aí como que pequenas portas que ficam à entrada
duas bolsas, chamadas as orelhas do dos dois outros vasos por onde saem,
coração, que se compõem de uma fazendo inflar por esse meio todos os
carne semelhante à deste; e que há ramos da veia arteriosa e da grande
sempre mais calor no coração do que artéria, quase no mesmo instante que o
qualquer outro lugar do corpo9 4, e, coração, o qual, em seguida, inconti-
nenti, se desinfla, como sucede tam­
90 A válvula tricúspide.
91 As válvulas sigmóides no orifício da arté­ bém com essas artérias, por se resfriar
ria pulmonar. o sangue que nelas entrou; e suas seis
92 A válvula mitral., pequenas portas se fecham e as cinco
93 As válvulas sigmóides no orifício da aorta. da veia cava e da artéria venosa
94 “O calor que todo mundo reconhece ser no
coração maior do que em todas as outras-par­ reabrem-se, dando passagem a| duas
tes do corpo”, diz Descartes. “Todo mundo”, outras gotas de sangue, que vão de
isto é, a medicina grega e a tradição medieval. novo inflar o coração e as artérias, tal
DISCURSO DO MÉTODO 65

como as precedentes. E porque o san­ do o gelo neste ponto, e de ser o pri­


gue, que entra assim no coração, passa meiro a ter ensinado a existência de
por essas duas bolsas que se chamam muitas pequenas passagens nas extre­
suas orelhas, daí resulta que o movi­ midades das artérias, por onde o san­
mento dessas é contrário ao seu, e que gue que elas recebem do coração entra
elas se desinflam quando ele se infla9 5. nos pequenos ramos das veias, de onde
De resto, a fim de que aqueles que não ele toma a dirigir-se para o coração, de
conhecem a força das demonstrações sorte que o seu curso não é mais do
matemáticas, e não estão acostumados que uma circulação perpétua. E isso
a distinguir as razões verdadeiras das ele prova muito bem pela experiência
verossímeis9 6, não se aventurem a comum dos cirurgiões, que, ligando o
negar tal fato sem exame, quero adver­ braço sem apertá-lo muito, acima do
ti-los de que esse movimento que local onde abrem a veia, fazem que o
acabo de explicar segue-se tão necessa­ sangue saia dela com mais abundância
riamente da simples disposição dos ór­ do que se não o houvessem ligado. E
gãos que se podem ver a olho nu no aconteceria exatamente o contrário, se
coração, e do calor que se pode sentir eles o ligassem abaixo, entre a mão e a
com os dedos, e da natureza do sangue abertura, ou então se o ligassem mui
que se pode conhecer por experiência, fortemente em cima. Pois é manifesto
como o de um relógio segue-se da que ò laço medianamente apertado,
força, da situação e da figura de seus podendo impedir que o sangue, que já
contrapesos e rodas. está no braço, retome ao coração pelas
Mas, se se pergunta como o sangue veias, não impede no entanto que para
das veias não se esgota, fluindo assim aí sempre afluanovo sangue pelas arté­
continuamente para o coração, e como rias, porque estas se situam por baixo
as artérias não se enchem demais, já das veias, e porque suas peles, sendo
que tudo quanto passa pelo coração mais duras, são menos fáceis de pres-
para elas se dirige, não necessito res­ . sionar, e também porque o sangue pro­
ponder algo mais do que já foi escrito cedente do coração tende com mais
por um médico da Inglaterra, a quem é força a passar por elas para a mão do
preciso dar dar o louvor de ter rompi­ que a voltar daí para o coração pelas
veias. E, como esse sangue sai do
9 5 Gilson, opondo Harvey a Descartes, nota
que o erro deste é triplo: a) o coração é um braço pela abertura que existe numa
órgão passivo; b) a causa da dilatação e da das veias, deve necessariamente haver
contração é a mesma; c) a diástole é a fase algumas passagens abaixo dp laço, isto
ativa, e a sístole, a fase passiva. é, na direção das extremidades do
9 6 Passagem que pode parecer saborosa, mas braço, por onde possa vir das arté­
que é muito significativa. Descartes julga estar
com a verdade, visto que sua explicação é rias97. Ele prova, outrossim, muito
estritamente mecânica, ao passo que, para bem o que diz sobre o fluxo do sangue,
Harvey, diz ele, “é mister imaginar alguma por certas pequenas peles, as quais se
faculdade (a contratilidade) que cause este acham de tal modo dispostas em diver­
movimento, cuja natureza é mais difícil de sos pontos ao longo das veias, que não
conceber do que tudo quanto se pretente expli­ lhe permitem passar do meio do corpo
car por meio dela”. Do mesmo modo, Descar­
tes verá na hipótese da atração, emitida por para as extremidades, mas somente
Gilbert, um recurso às qualidades ocultas. Não
constitui ofensa a seu gênio verificar o quanto 9 7 Resumo de um capítulo do De Motu Cor-
o dogmatismo do “claro e do distinto” está dis, de Harvey (1628), ao qual Descartes atri­
muitas vezes longe de ser sinônimo do rigor bui expressamente a descoberta da circulação
científico, no sentido em que o entendemos. do sangue.
66 DESCARTES

retomar das extremidades para o cora­ sangue da artéria venosa, tendo estado
ção, e, demais, pela experiência que apenas nos pulmões depois de passar
mostra que todó o sangue existente no pelo coração, é mais sutil e rarefaz-se
corpo pode dele sair em muito pouco mais forte e mais facilmente do que
tempo por uma única artéria, quando aquele que vem imediatamente da veia
secionada, ainda mesmo que ela fosse cava1 01 ? E o que podem os médicos
estreitamente ligada muito perto do adivinhar, tateando o pulso, se não
coração, e secionada entre ele e a liga­ sabem que, conforme o sangue | muda
dura, de sorte que não houvesse moti­ de natureza, pode ser rarefeito pelo
vo de imaginar que o sangue que daí calor do coração mais ou menos forte
saísse proviesse de outro lugar. e mais ou menos rápido do que antes?
Mas há muitas outras coisas que E, se se examina como esse calor se
testemunham que a verdadeira causa comunica aos outros membros, não
desse movimento do sangue é a que eu cumpre confessar que é por meio do
disse98. Assim, primeiramente, a dife­ sangue que, passando pelo coração,
rença que se nota entre o sangue que nele se aquece e daí se espalha por
sai das veias e o que sai das artérias só todo o corpo? Donde resulta que, se se
pode proceder do fato de que, tendo-se tira o sangue de alguma parte, tira-se-
rarefeito e como que destilado ao pas­ Ihe da mesma maneira o calor; e, ainda
sar pelo coração, é mais sutil e mais que o coração fosse tão ardente como
vivo, e mais quente logo depois de sair um ferro abrasado, não bastaria, como
dele, isto é, quando nas artérias, do que não basta, para aquecer os pés e as
o é um pouco antes de nele entrar, isto mãos, se não lhes enviasse continua­
é, quando nas veias. E, se se presta mente novo sangue102. Depois, tam­
atenção, verifica-se que tal diferença só bém se sabe daí que a verdadeira utili­
aparece realmente na direção do cora­ dade da respiração é trazer bastante ar
ção e de modo algum nos lugares que fresco aos pulmões, para fazer com
dele mais se distanciam99100 *. Depois, a que o sangue, que para aí vem da
dureza das peles, de que a veia arte- concavidade direita do coração, onde
riosa e a grande artéria se compõem, foi rarefeito e como que transmudado
mostra suficientemente que o sangue em vapores, se espesse e se converta de
novo em sangue, antes de recair na
bate contra elas com mais força do que concavidade esquerda, sem o que não
contra as veias1 °°. E por que seriam a poderia ser próprio para servir de ali­
concavidade esquerda do coração e a mento ao fogo aí existente103. O que
grande artéria mais amplas e mais lar­ se conforma, visto que os animais
gas do que a concavidade direita e a
veia arteriosa, se não fosse porque o 01 Terceiro argumento: no ventrículo es­
querdo, maior do que o direito, o sangue deve
98 Descartes vai mostrar, agora, que só a sua dilatar-se mais. Com efeito, tendo passado
explicação dá conta do mecanismo da circula­ apenas pelos pulmões, ònde se demorou pouco
ção. tempo, “retém mais facilidade em se dilatar e
99 Primeiro argumento contra Harvey: ele se reaquecer do que possuía antes de entrar no
não explica como, no coração, o sangue veno- coração”.
so pode transformar-se em sangue arterial 102 Quarto argumento: é o sangue que ali­
(ignorava-se, então, que essa transformação menta o calor do corpo; mas onde há de haurir
decorre da respiração pulmonar). este calor, se não for no coração?
100 Segundo argumento: o sangue na artéria 103 Por aí explicar-se-á a função da ■respira­
pulmonar e na aorta, dada a constituição des­ ção: condensar, no pulmão, o sangue que fora
sas, deve ser sangue arterial. Ora, isto só é transformado, no coração, em vapor de san-
explicável pelo calor do coração. gue, antes de retomar ao coração.
DISCURSO DO MÉTODO 67

desprovidos de pulmões tampouco têm muito pura e muito viva que, subindo
mais do que uma só concavidade no continuamente em grande abundância
coração e as crianças, que não podem do coração ao cérebro, dirige-se daí,
usâ-los, enquanto encerradas no ventre pelos nervos, para os músculos, e
de suas mães, possuem uma abertura imprime movimento a todos os mem­
por onde corre o sangue da veia cava bros1 0 5; sem que seja preciso imaginar
para a concavidade esquerda do cora­ outra causa que leve as partes do san­
ção e um conduto por onde ele vem da gue que, sendo as mais agitadas e as
veia arteriosa para a grande artéria, mais penetrantes, são as mais próprias
sem passar pelo pulmão. Depois a coc- para compor tais espíritos, a se dirigi­
ção, como se faria ela no estômago, se rem mais ao cérebro do que a outras
o coração não lhe enviasse calor pelas partes; mas somente que as artérias,
artérias, e com esse, algumas das mais que as levam para aí, são aquelas que
fluidas partes do sangue, que ajudam a vêm do coração’ em linha mais reta de
dissolver os alimentos que foram aí todas, e que, segundo as regras da
postos? E a ação que converteu o suco Mecânica, que são as mesmas da natu­
desses alimentos em sangue, não será reza1 0 6, quando várias coisas tendem
ela fácil de conhecer, se se considera a mover-se em conjunto para um
que este se destila, passando e repas­ mesmo lado, onde não há lugar sufi­
sando pelo coração, talvez mais de ciente para todas, tal como as partes
cem ou duzentas vezes por dia? E de do sangue que saem da concavidade
que mais se necessita para explicar a esquerda do coração tendem para o cé­
nutrição e a produção dos diversos rebro, as mais fracas e menos agitadas
humores que existem no corpo1 0 4, ex­ devem ser desviadas pelas mais fortes,
ceto dizer que a força com que o san­ que por esse meio aí vão ter sós.
gue, ao rarefazer-se, passa do coração Explicara assaz particularmente
às extremidades das artérias leva algu- • todas essas coisas no tratado que pre­
mas de suas partes a se deterem entre tendí outrorapublicar1 0 7. E, em segui­
as dos membros onde se acham e a da, mostrara nele qual deve ser a estru­
tomarem aí o lugar de algumas outras tura dos nervos e dos músculos do
que elas expulsam; e que, conforme a corpo humano, para fazer que os espí­
situação, ou a figura, ou a pequenez ritos animais, estando dentro, tenham
dos poros que encontram, umas vão ter a.força de mover seus membros: assim
a certos lugares mais do que outras, da como se vê que as cabeças, pouco de­
mesma forma como cada qual pode ter pois de decepadas, se remexem ainda, e
visto diversos crivos que, sendo diver­ mordem a terra, não obstante não mais
samente perfurados, servem para sepa­ sejam animadas; quais mudanças se
rar diversos grãos uns dos outros? E, devem efetuar no cérebro, para causar
enfim, o que há de mais notável em a vigília, o sono e os sonhos; como a
tudo isso é a geração dos espíritos ani­ luz, os sons, os odores, os sabores, o
mais, que são como um vento muito
sutil, ou melhor, como uma chama 105 A teoria mecanicista há de explicar igual­
mente a produção dos “espíritos animais”
104 A “nutrição” designa a assimilação do (partículas materiais circulantes nos nervos e
sangue pelos órgãos; os “humores” são o suor, responsáveis pelo influxo nervoso) a partir da
a saliva, a urina. “E de que mais se necessi­ dilatação do sangue.
ta. . .” significa que a explicação mecânica de 1 0 6 Acerca desta identificação do físico ao
todas as funções orgânicas permite eliminar a mecânico, cf. Princípios, IV, art. 203.
alma vegetativa dos escolásticos. 107 O Tratado do Homem.
68 DESCARTES

calor e todas as outras qualidades dos contém movimentos mais admiráveis


objetos exteriores nele podem imprimir do que qualquer das que possam ser
diversas idéias por intermédio dos sen­ inventadas pelos homens. i
tidos; como a fome, a sede e as outras E detivera-me particularmente rieste
paixões interiores também lhe podem ponto, para mostrar que, se houvesse
enviar as suas; o que deve ser nele to­ máquinas assim, que tivessem os ór­
mado pelo senso comum108, onde gãos e a figura de um macaco, ou de
essas idéias são acolhidas; pela memó­ qualquer outro animal sem razão, não
ria, que as conserva109110, e pela fanta­
111 disporíamos de nenhum meio para
sia1 1 °, que as pode modificar diversa­ reconhecer que elas não seriam em
mente e compor com elas outras tudo da mesma natureza que esses ani­
novas, e pelo mesmo meio, distri­ mais; ao passo que, se houvesse outras
buindo os espíritos animais nos mús­ que apresentassem semelhança com os
culos, movimentar os membros desse nossos corpos e imitassem tanto nos­
corpo de tão diversas maneiras, quer a sas ações quanto moralmente fosse
propósito dos objetos que se apresen­ possível, teríamos sempre dois meios
tam a seus sentidos, quer das paixões muito seguros para reconhecer que
interiores que estão nele, que os ossos nem por isso seriam verdadeiros ho-.
se possam mover, sem que a vontade mens. Desses, o primeiro é que nunca
os conduza. O que não parecerá de poderiam usar palavras, nem outros
modo algum estranho a quem, sabendo sinais, compondo-os, como fazemos
quão diversos autômatos^11, ou má­ para declarar aos outros os nossos
quinas móveis, a indústria dos homens pensamentos. Pois pode-se muito bem
pode produzir, sem empregar nisso conceber que uma máquina seja feita
senão pouquíssimas peças, em compa­ de tal modo que profira palavras, e até
ração à grande multidão de ossos, que profira algumas a propósito das
músculos, nervos, artérias, veias e ações corporais que causem qualquer
todas as outras partes existentes no
corpo de cada animal, considerará esse mudança em seus órgãos: por exem­
corpo como uma máquina que, tendo plo, se a tocam num ponto, que per­
sido feita pelas mãos de Deus, é gunte o que se lhe quer dizer; se em
incomparavelmente melhor ordenada e outro, que grite que lhe fazem mal, e
coisas semelhantes; mas não que ela as
108 A sede do “senso comum” é a glândula
arranje diversamente, para responder
pineal (cf. Tratado das Paixões, I, arts. 31-32). ao sentido de tudo quanto se disser na
109 Sobre a explicação da memória corporal sua presença, assim como podem fazer
(distinta da memória intelectual, cf. Cartas, a os homens mais embrutecidos. E o
Mersenne, de l.° de abril de 1640), v. A. T. XI, segundo é que, embora fizessem muitas
pág. 177: os espíritos animais, que receberam
a impressão de uma idéia sensível, ao saírem coisas tão bem, ou talvez melhor do
da glândula pineal, traçam na parte interior do que qualquer de nós, falhariam infali­
cérebro figuras que se reportam às dos objetos. velmente em algumas outras, pelas
Por meio destas figuras, as idéias sensíveis quais se descobriría que não agem pelo
podem tornar a formar-se “sem que a presença
dos objetos aos quais se referem seja requeri­
conhecimento, mas somente pela dis­
da. E é nisso que consiste a memória”. posição de seus órgãos. Pois, ao passo
110 A “fantasia” ocupa o mesmo lugar no cé­ que a razão é um instrumento univer­
rebro que o “senso comum”, mas quando as sal, que pode servir em todas as espé­
imagens são aí suscitadas na ausência de todo cies de circunstâncias, tais órgãos
objeto.
111 Sobre os autômatos, cf. Cartas, a XXX, necessitam de alguma disposição parti­
de março de 1638. cular para cada ação particular; 'daí
DISCURSO DO MÉTODO 69

resulta que é moralmente impossível assim como entre os homens, e que uns
que numa máquina existam bastante são mais fáceis de adestrar que outros,
diversas para fazê-la agir em todas as não é crível que um macaco ou um
ocorrências da vida, tal como a nossa papagaio, que fossem os mais perfeitos
razão nos faz agir11 2. de sua espécie, não igualassem nisso
Ora, por esses dois meios, pode-se uma criança das mais estúpidas ou
também conhecer a diferença existente pelo menos uma criança com o cérebro
entre os homens e os animais112113. Pois perturbado, se a sua alma não fosse de
é uma coisa bem notável que não haja uma natureza inteiramente diferente da
homens tão embrutecidos e tão estúpi­ nossa. E não se deve confundir as pala­
dos, sem excetuar mesmo os insanos, vras com os movimentos naturais, que
que não sejam capazes de arranjar em testemunham as paixões e podem ser
conjunto diversas palavras, e de com­ imitados pelas máquinas assim como
pô-las num discurso pelo qual façam pelos animais; nem pensar, como al­
entender seus pensamentos; e que, ao guns antigos, que os animais falam,
contrário, não exista outro animal, por embora não entendamos sua lingua­
mais perfeito e felizmente engendrado gem: pois, se fosse verdade, porquanto
que possa ser, que faça o mesmo. E têm muitos órgãos correlatos aos nos­
isso não acontece porque lhes faltem sos, poderíam fazer-se compreender
órgãos, pois vemos que as pegas e os tanto por nós como por seus semelhan­
papagaios podem proferir palavras tes. É também coisa mui digna de nota
assim' como nós, e todavia não podem que, embora existam muitos animais
falar como nós, isto é, testemunhando que demonstram mais indústria do que
que pensam o que dizem; ao passo que nós em algumas de suas ações, vê-se,
os homens que, tendo nascido surdos e todavia, que não a demonstram nem
mudos, são desprovidos’ dos órgãos um pouco em muitas outras: de modo
que servem aos outros para falar, tanto que aquilo que fazem melhor do que
ou mais que os animais, costumam nós não prova que tenham espírito;
inventar eles próprios alguns sinais, pois, por esse critério, tê-lo-iam mais
pelos quais se fazem entender poí do que qualquer de nós e procederíam
quem, estando comumente com eles, melhor em tudo; mas, antes, que não o
disponha de lazer para aprender a sua têm, e que é a natureza que atua neles
língua. E isso não testemunha apenas segundo a disposição de seus órgãos:
que os animais possuem menos razão assim como um relógio, que é com­
do que os homens, mas que não pos­ posto apenas de rodas e molas, pode
suem nenhuma razão. Pois vemos que contar as horas e medir o tempo mais
é preciso muito pouco para saber falar; justamente do que nós, com toda a
e, posto que se nota desigualdade entre nossa prudência.
os animais de uma mesma espécie, Eu descrevera, depois disso, a alma
racional, e mostrara que ela não pode
112 O melhor comentário desta passagem é, ser de modo algum tirada do poder da
além do texto citado mais acima, a carta ao matéria, como as outras coisas de que
Marquês de Newcastle, de 23 de novembro de falara, mas que deve expressamente ter
1646.
113 Para Descartes, a tese do animal-má- sido 11 4; e como não basta que esteja
quina, longe de abrir a porta ao materialismo,
é o corolário indispensável do espiritualismo. 11 4 A alma não pode ser engendrada pela
“A teoria dos animais-máquinas é inseparável matéria. É uma “substância” que requer um
do ‘Penso, logo existo’ ”, escreve Canguilhem ato especial de criação. E Descartes pensa tê-
(cf. Canguilhem, Connaissance de la Vie, págs. lo estabelecido com mais clareza do que Santo
124-160). Tomás.
70 DESCARTES

alojada no corpo humano, assim como mente independente do corpo e, por


um piloto em seu navio, exceto talvez conseguinte, que não está de modo
para mover seus membros, mas que é algum sujeita a morrer com ele; de­
preciso que esteja junta e unida estrei- pois, como não se veem outras causas
tamente com ele para ter, além disso, que a destruam, somos naturalmente
sentimentos e apetites semelhantes aos levados a julgar por isso que ela é
nossos, e assim compor um verdadeiro imortal11 5.
homem. De resto, eu me alonguei um
pouco aqui sobre o tema da alma, por­ 11 5 A tese que atribui pensamento aos 'ani­
mais leva a colocar uma alma corrupjtível e
que é dos mais importantes; pois, após mortal. Ao contrário, a explicação mecanicista
o erro dos que negam Deus, que penso vai na trilha do cristianismo: em um mesmo
haver refutado suficientemente mais movimento o filósofo estabelece a separação
acima, não hâ outro que afaste mais os da alma e do corpo no interesse da Física e a
substancialidade da alma no interesse da reli­
espíritos fracos do caminho reto da gião. É necessário lembrar que os “libertinos”,
virtude do que imaginar que a alma contra os quais Descartes lutava (aliado ao
dos animais seja da mesma natureza Oratório), eram menos materialistas, ná acep­
ção atual, do que “naturalistas”, que eles não
que a nossa, e que, por conseguinte, negavam a existência da alma, mas — ao atri­
nada temos a temer, nem a esperar, de- buir uma alma aos animais — a sua imortali­
í pois dessa vida, não mais que as mos­ dade. Em outro contexto, com respeito ao
cas e as formigas; ao passo que, saben­ materialismo, a teoria dos animais-máquinas
não trabalhará mais em favor da substancia­
do-se o quanto diferem, compreende-se lidade da alma humana (presunção de imorta­
muito mais as razões que provam que lidade), porém tenderá a reduzi-la ao funciona­
a nossa é de uma natureza inteira­ mento cerebral (presunção de materialidade).

Sexta Parte

Ora, faz agora três anos que chegara entre as minhas, na qual me tivesse
ao fim do tratado que contém todas enganado, não obstante o grande cui­
essas coisas, e que começara a revê-lo, dado que sempre tomei em não acolher
a fim de pô-lo em mãos de um impres- novas em minha confiança, das quais
sor, quando soube que pessoas, a quem não tivesse demonstrações muito cer­
respeito e cuja autoridade sobre mi­ tas, e de não escrever nenhuma que
nhas ações quase não é menor que pudesse resultar em desvantagem para
minha própria razão sobre meus pen­ qualquer pessoa. O que bastou para
samentos, haviam desaprpvado uma me obrigar a mudar a resolução que eu
opinião de Física, publicada pouco tomara de publicá-las. Pois, embora as
antes por alguém, opinião que não razões, pelas quais eu a adotara ante­
quero dizer que a partilhasse, mas que riormente, fossem muito fortes, minha
nada reparara nela, antes de a censura­ inclinação, que sempre me movera a
rem, que pudesse imaginar ser prejudi­ detestar o mister de fazer livros, me
cial à religião ou ao Estado, nem, por levou incontinenti a achar muitas ou­
conseguinte, que me impedisse de tras para me escusar dela. Ê essas
escrevê-la, se a razão mo houvesse razões de uma parte e de outra são
persuadido, e isso me fez recear que se tais, que não só tenho aqui algumi inte­
encontrasse, do mesmo modo, alguma resse em dizê-las, como talvez ó pú-
r
DISCURSO DO MÉTODO 71

blico também o tenha em conhecê-las. Pois elas me fizeram ver que é possível
Nunca fiz muito caso das coisas que chegar a conhecimentos que sejam
vinham de meu espírito, e, enquanto muito úteis à vida, e que, em vez dessa
não recolhi outros frutos do método de Filosofia especulativa que se ensina
que me sirvo a não ser que fiquei satis­ nas escolas, se pode encontrar uma
feito no tocante a algumas dificuldades outra prática, pela qual, conhecendo a
que concernem às ciências especula­ força e as ações do fogo, da água, do
tivas, ou então que procurei regrar ar, dos astros, dos céus e de todos os
meus costumes pelas razões que ele me
outros corpos que nos cercam, tão
ensinava, não me julguei obrigado a
distintamente como conhecemos os
nada escrever a seu respeito. Pois, no
que toca aos costumes, cada qual diversos misteres de nossos artífices,
-segue de tal forma o seu próprio pare­ poderiamos empregá-los da mesma
cer que se poderia encontrar tantos maneira em todos os usos para os
reformadores quantas cabeças, se fosse quais são próprios, e assim nos tomar
permitido a outros, além dos que Deus como que senhores e possuidores da
estabeleceu jDomo soberanos dos natureza. O que é de desejar, não só
povos, ou então aos que concedeu sufi­ para a invenção de uma infinidade de
ciente graça e zelo para serem profetas, artifícios, que permitiríam gozar, sem
tentar mudâ-los, em algo; e, embora
minhas especulações me aprouvessem qualquer custo, os frutos da terra e
muito, pensei que os outros também ti­ todas as comodidades que nela se
nham as suas que lhes agradariam tal­ acham, mas principalmente também
vez mais. Mas, tão logo adquiri algu­ para a conservação da saúde, que é
mas noções gerais relativas à Física, e, sem dúvida o primeiro bem e o funda­
começando a comprová-las em diver­ mento de todos os outros bens desta
sas dificuldades particulares11 6, notei vida; pois mesmo o espírito depende
até onde podiam conduzir, e o quanto tanto do temperamento e da disposição
diferem dos princípios que foram utili­
zados até o presente, julguei que não dos órgãos do corpo que, se é possível
podia mantê-las ocultas sem pecar encontrar algum meio que tome comu-
grandemente contra a lei que nos obri­ mente os homens mais avisados e mais
ga a procurar, no que depende de nós, hábeis do que foram até aqui, creio que
o bem geral de todos os homens11 7. é na Medicina que se deve procurá-
11 6 Segundo Gilson, trata-se do problema da
lo 11 8. É verdade que aquela que está
construção das lunetas. agora em uso contém poucas coisas
117 A Filosofia.só pode, portanto, constituir a cuja utilidade seja tão notável; mas,
fundação de uma prática científica, “útil à
vida”. Seu fim não reside na contemplação. sem que alimente nenhum intuito de
Comparar com esta página -—- que afasta de desprezá-la, estou certo de que não há
pronto toda interpretação espiritualista do ninguém, mesmo entre os que a profes-
pensamento cartesiano — a passagem em que
Baillet, na Vie de M. Descartes, relata a entre­
vista do jovem Descartes com o Cardeal de
118 Juntamente com a Moral e a Mecânica, a
Medicina é um dos três ramos da árvore cujo
Bérulle. Este “fez-lhe entrever as conse­
quências que poder iam ter tais pensamen­ tronco é a Física. No tempo do Discurso, Des­
tos. . . e a utilidade que o público daí tiraria se cartes alimentava ainda a esperança de poder
se aplicasse a maneira de filosofar à Medicina constituir a Medicina baseada em demonstra­
e à Mecânica, das quais uma produziría o ções infalíveis de que fala a Mersenne, em
restabelecimento e a conservação da saúde e a janeiro de 1630. Acerca da evolução de Des­
outra a diminuição e o alívio dos trabalhos dos cartes a este respeito, cf. Guéroult, op. cit., t.
homens”. (A. T. I, 164.) II.
72 DESCARTES

sam, que não confesse que tudo quanto procurar as mais raras e complicadas:
nela se sabe é quase nada, em compa­ a razão disso é que essas mais raras
ração com o que resta a saber, e que nos enganam muitas vezes, quando se
poderiamos livrar-nos de uma infini­ conhecem ainda as causas das mais
dade de moléstias, quer do espírito, comuns, e que as circunstâncias das
quer do corpo, e talvez mesmo do quais dependem são quase sempre tão
enfraquecimento da velhice, se tivés­ particulares e tão pequenas, que é
semos bastante conhecimento de suas muito penoso adverti-las119. Mas | a
causas e de todos os remédios de que a ordem que guardei nisso foi a seguinte.
natureza nos dotou. Ora, tendo o Primeiramente, procurei encontrar em
desígnio de empregar toda a minha geral os princípios, ou primeiras cau­
vida na pesquisa de uma ciência tão sas, de tudo quanto existe, ou pode
necessária, e tendo encontrado, um existir, no mundo, sem nada conside­
caminho que me parece tal que se deve rar, para tal efeito, senão Deus só, que
infalivelmente achá-la, se o seguirmos, o criou, nem tirá-las de outra parte, ex­
a não ser que disso sejamos impedidos, ceto de certas sementes de verdades
ou pela curta duração da vida, ou pela que existem naturalmente em nossas
falta de experiências, julguei que não almas. Depois disso, examinei quais os
havia melhor remédio contra esses dois primeiros e os mais ordinários efeitos
impedimentos do que comunicar fiel­ que se podem deduzir dessas causas: e
mente ao público todo o pouco que já
parece-me que, por aí, encontrei céus,
tivesse descoberto, e convidar os bons
espíritos a esforçarem-se por passar astros, uma terra, e mesmo, sobre a
além, contribuindo, cada qual segundo terra, água, ar, fogo, minerais e algu­
sua inclinação e seu poder, para as mas outras dessas coisas que são as
experiências que seria preciso fazer, e mais comuns de todas e as mais sim
comunicando outrossim ao público pies, e por conseguinte as mais fáceis
todas as coisas que aprendesse, a fim de conhecer. Depois, quando quis des­
de.que os últimos começassem onde os cer às que eram mais particulares,
precedentes houvessem acabado, e apresentaram-se-me tão diversas, que
assim, juntando as vidas e os trabalhos não acreditei que fosse possível ao
de muitos, fôssemos todos juntos espírito humano distinguir as formas
muito mais longe do que poderia ir ou espécies de corpos que existem
cada um em particular.
sobre a terra, de uma infinidade de ou­
Notara mesmo, no tocante às expe­ tras que poderiam nela existir, se fosse
riências, que elas são tanfo mais neces­
sárias quanto mais avançada a gente 119 O desprezo de Descartes pelas experiên­
está no conhecimento. Pois, no come­ cias é outra lenda que é necessário denunciar.
ço, mais vale servir-se apenas das que É verdade que Descartes prefere as_experiên-
se apresentam por si mesmas aos nos­ cias inteiramente realizadas ná natureza e des­
sos sentidos, e que não poderiamos confia das experiências complicadas. No que
se opõe menos ao “método experimental” do
ignorar, contanto que lhes dediquemos que desconfia dos amantes do maravilhoso e
o pouco que seja de reflexão, em vez de dos curiosos sem método. j
DISCURSO DO MÉTODO 73

a vontade de Deus aí colocá-las, nem, não de outra1 21. De resto, estou agora
por consequência, tomá-las de nosso num ponto em que vejo, parece-me,
uso, a não ser que se vá ao encontro muito bem qual o meio a que se deve
das causas pelos efeitos e que se recor­ recorrer para efetuar a maioria das que
da a muitas experiências particula- podem servir para esse efeito; mas vejo
rès120. Em decorrência disso, repas­ também que são tais e em tão grande
sando meu espírito sobre todos os número que nem as minhas mãos, nem
a minha renda, ainda que eu tivesse mil
objetos que alguma vez se ofereceram
vezes mais do que tenho, bastariam
aos meus sentidos, ouso dizer que não
para todas; de sorte que, conforme
observei nenhum que não pudesse tiver doravante a comodidade de fazê-
explicar assaz comodamente por meio las em maior ou menor número, avan­
dos princípios que achara. Mas cum­ çarei mais ou menos no conhecimento
pre que eu confesse também que o da natureza. Fato que prometia a mim
poder da natureza é tão amplo e tão próprio tomar conhecido, pelo tratado
vasto e que esses princípios são tão que escrevera, e mostrar tão clara­
simples e tão gerais, que quase não mente a utilidade que daí podia advir
notei um único efeito particular que eu ao público que obrigaria a todos os
já não soubesse ser possível deduzi-lo que desejam, em geral o bem dos
daí de várias maneiras diferentes, e que homens, isto é, todos os que são de
a minha maior dificuldade é comu- fato virtuosos, e não apenas por fingi­
mento, nem somente por opinião, tanto
mente descobrir de qual dessas manei­
a comunicar-me as que já tivessem
ras o referido efeito depende. Pois, feito como a me ajudar na pesquisa
para tanto, não conheço outro expe­ das que restam por fazer.
diente, senão o de procurar novamente Mas sobrevieram, desde então, ou­
algumas experiências, que sejam tais tras razões que me levaram a mudar de
que seu resultado não seja o mesmo, se opinião e pensar que devia, na verdade,
explicado de uma dessas maneiras e continuar escrevendo todas as coisas
que julgasse de alguma importância, à
120 As experiências particulares “instituídas
expressamente com o fito de saber o que é pre­
121 Segundo papel da experiência: ela desem­
ciso deduzir” (Gilson) só aparecem, portanto,
pata as opiniões quando são igualmente plau­
no terceiro estádio. É inútil insistir sobre o síveis vários modos de produção de um mesmo ‘
caráter dedutivo desta Física: basta que uma efeito. — Sobre a validade da Física, cf. Prin­
“suposição” não contradiga a experiência e cípios, IV, arts. 204 a 206: Descartes pensa ter
que a dedução seja feita “consequentemente” dado em sua Física demonstrações tão rigoro­
para que ela seja acolhida. Mas Descartes sas quanto as da Matemática;- mas concede
insiste alhures no aspecto racional que suas que aí seria possível contentar-se com uma
“hipóteses” oferecem em face das “fantasias” “certeza moral” ou altamente provável e até
da Escola. Entre as duas Físicas, é fácil efetuar com uma certeza pragmática: “Eu crerei ter
feito o suficiente se as causas que expliquei
a separação: “É suficiente provar qual é a ver­ forem tais que todos os efeitos que elas podem
dadeira causa de certos efeitos para dar-lhes produzir se verifiquem semelhantes aos que
uma de que possam claramente ser deduzidos; vemos no mundo, sem me informar se são pro­
e pretendo que todos os efeitos de que falei per­ duzidos por elas ou por outras”. Esta cosmolo-
tencem a este número”. (A Morin, 13 de julho gia dogmática entremostra, assim, o que pode­
de 1638.) ría ser uma Física Experimental.
74 DESCARTES

medida que fosse descobrindo sua ver- • grandes aquisições, do que tiveram
dade, e proporcionar-lhes o mesmo outrora, quando mais pobres, em reali­
cuidado que se quisesse mandar impri­ zar outras muito menores. Ou então
mi-las: quer para ter mais ocasião de pode-se compará-los aos chefes 'de
bem examiná-las, porque sem dúvida exército, cujas forças costumam cres­
se olha sempre mais de perto o que se cer à proporção de suas vitórias, e que
acha dever ser visto por muitos, do que necessitam de mais habilidade, para se
aquilo que se faz apenas para si pró­ manterem após a perda de uma bata­
prio, e, amiúde, as coisas que me pare­ lha, do que possuem, depois de vencê-
ceram verdadeiras quando comecei a la, para tomar cidades e províncias.
concebê-las pareceram-me falsas quan­ Pois é verdadeiramente dar batalhas
do pretendi pô-las no papel; quer para procurar vencer todas as dificuldades e
não perder nenhuma ocasião de benefi­ os erros que nos impedem de chegar ao
ciar o público, se é que disso sou conhecimento da verdade, e é perder
capaz, e para que, se meus escritos uma acolher qualquer falsa opinião no
valem alguma coisa, os que os possuí­ tocante a uma matéria um pouco geral
rem após a minha morte possam usá- e importante; é preciso, em seguida,
los como for mais conveniente; mas muito mais destreza para voltar ao
que não devia de modo algum consen­ mesmo estado em que se encontrava
tir que fossem publicados durante a antes do que para fazer grandes pro­
minha vida, a fim de que nem as oposi- gressos, quando já se têm princípios
ções e as controvérsias a que estariam que sejam seguros. Quanto a mim, se
talvez sujeitos, nem mesmo a reputa­ deparei precedentemente com algumas-
ção, qualquer que ela fosse, que me verdades nas ciências (e espero que as
pudessem granjear, me dessem o coisas contidas neste volume122 leva­
menor ensejo de perder o tempo que rão a julgar que descobri algumas),
desejo empregar em instruir-me. Pois, posso dizer que não passam de conse­
embora seja verdade que cada homem quências e dependências de cinco ou
deve procurar, no que depende dele, o seis dificuldades principais que sobre­
bem dos outros, e que é propriamente pujei, e que considero outras tantas
nada valer o não ser útil a ninguém, batalhas em que tive a sorte a meu
todavia é verdade também que os nos­ lado. Não temerei mesmo dizer que
sos cuidados devem estender-se mais penso precisar ganhar apenas mais
longe que o tempo presente, e que é duas ou três semelhantes para levar
bom omitir as coisas que trariam tal­ inteiramente a cabo os meus desígnios;
vez algum proveito aos que vivem, e que minha idade não é tão avançada
quando é com o intuito de fazer outras que, segundo o curso ordinário da
que aproveitarão mais aos nossos vin­ natureza, não possa ainda dispor de
douros. Porque, com efeito, quero que lazer suficiente para tal efeito. Mas
se saiba que o pouco que aprendi até creio estar tanto mais obrigado a pou­
agora não é quase nada, em compara­ par o tempo que me resta quanto
ção com o que ignoro, e que não deses­ maior a esperança de poder empregá-
pero de poder aprender; pois acontece lo bem; e teria, sem dúvida, muitas
quase o mesmo aos que descobrem ocasiões de perdê-lo, se publicasse os
pouco a pouco a verdade nas ciências,
que àqueles que, começando a enrique­ 122 A saber: os três ensaios que seguem o
cer, têm menos dificuldade em realizar Discurso.
DISCURSO DO MÉTODO 75

fundamentos de minha Física1 23. Pois, eqüitativo do que eu próprio. E jamais


embora sejam quase todos tão eviden­ notei tampouco que, por meio das
tes que basta entendê-los para os acei­ disputas que se praticam nas escolas,
tar, e não haja nenhum de que não alguém descobrisse alguma verdade
pense poder dar demonstração, toda­ até então ignorada12 4, pois, enquanto
via, porque é impossível que estejam cada qual se empenha em vencer, exer­
concordes com todas as diversas opi­ cita-se bem mais em fazer valer a
niões dos outros homens, prevejo que verossimilhança do que em pesar as
seria muitas vezes desviado pelas opo- razões de uma e de outra parte; e aque­
sições que engendrariam. les que foram por muito tempo bons
Pode-se dizer que essas oposições advogados nem por isso são, em segui­
seriam úteis, tanto para me fazerem da, melhores juizes.
conhecer as minhas faltas, como para, Quanto à utilidade que os outros
se eu tivesse algo de bom, os outros colheríam da comunicação de meus
poderem, por esse meio, entendê-lo pensamentos, não poderia também ser
mais, e, como muitos podem ver me­ muito grande; tanto mais que ainda
lhor do que um homem só, para que, não os levei tão longe que não seja
começando desde já a servir-se desse necessário juntar-lhes muitas coisas
bem, eles me ajudassem também com antes de aplicá-los ao uso. E penso
suas invenções. Mas, embora reco­ poder afirmar, sem vaidade, que, se há
nheça que sou extremamente sujeito a alguém que seja capaz disso, hei de ser
falhar, e que não me fio quase nunca eu mais do que outro qualquer: não
nos primeiros pensamentos que me que não possam existir no mundo mui­
ocorrem, todavia a experiência que tos espíritos incomparavelmente me­
tenho das objeções que me podem ser lhores que o meu; mas porque não se
feitas impede-me de esperar delas qual­ poderia conceber tão bem uma coisa, e
quer proveito: pois muitas vezes já tomá-la sua, quando se aprende de
comprovei os juízos, tanto daqueles outrem, como quando a gente mesmo a
que eu tinha por meus amigos quanto inventa. O que é tão verdadeiro, nesta
de alguns outros a quem eu pensava matéria, que, embora tenha muitas
ser indiferente, e mesmo também de al­ vezes explicado algumas de minhas
guns de quem eu sabia que a maligni- opiniões a pessoas de ótimo espírito, e,
dade e a inveja se esforçariam bastante enquanto eu lhes falava, pareciam
por revelar o que o afeto ocultaria a entendê-las mui distintamente, todavia,
meus amigos; mas raramente aconte­ quando as repetiam, notei que quase
ceu que alguém me objetasse algo que, sempre as mudavam de tal sorte que
de modo algum, eu não houvesse pre­ não mais podia confessá-las como
visto, a não ser que fosse coisa muito minhas. A esse propósito, muito esti­
distanciada de meu assunto; de sorte mo pedir aqui, aos nossos vindouros,
que quase nunca deparei com algum que jamais creiam nas coisas que lhes
censor de minhas opiniões que não me forem apresentadas como vindas de
parecesse ou menos rigoroso ou menos mim, se eu próprio não as tiver divul­
gado. E não me espantam de modo
123 Isto é, o Tratado do Mundo. Os “funda­ algum as extravagâncias que se atri-
mentos da Física” serão publicados nos Prin­
cípios, mas os ataques à escolástica serão mais 12 4 Nova oposição entre a disputa dialética,
velados e a doutrina de Copémico há de ser simples exercício de linguagem, e a procura da
apresentada com prudência. verdade.
76 DESCARTES

buem a todos esses antigos filósofos, do-os, que se abrisse algumas janelas e
cujos escritos não possuímos, nem fizesse entrar a luz nessa adega, para
julgo, por isso, que os seus pensa­ onde desceram para se bater. Mas| até
mentos tenham sido muito desarrazoa- mesmo os melhores espíritos não
dos, visto serem os melhores espíritos devem desejar conhecê-los: pois, se
de seu tempo, mas apenas julgo que querem saber falar de todas as coisas e
nos foram mal relatados. Porque se vê adquirir a reputação de doutos, hão de
também que quase nunca aconteceu consegui-lo mais facilmente contentan­
que algum de seus sectários os haja do-se com a verossimilhança, que pode
superado: e estou seguro de que os ser encontrada sem grande custo em
mais apaixonados dos que seguem todas as espécies de matérias, do que
agora Aristóteles crer-se-iam felizes se procurando a verdade, que só se desco­
tivessem tanto conhecimento da natu­ bre pouco a pouco em algumas, e que,
reza quanto ele o teve, embora sob a quando se trata de falar das outras,
condição de nunca o terem maior. São obriga a confessar francamente que a
como a hera, que não tende a subir gente as ignora. Visto que preferem o
mais alto que as árvores que a susten­ conhecimento de um pouco de verdade
tam, e que muitas vezes mesmo toma a à vaidade de parecerem nada ignorar,
descer, depois de ter chegado ao seu como sem dúvida é bem preferível, e se
topo; pois me parece que também vol­ pretendem seguir um intento seme­
tam a descer, isto é, tomam-se de certa lhante ao meu, não precisam, para
forma menos sapientes do que se se isso, que lhes diga nada mais do que já
abstivessem de estudar, aqueles que, disse nesse discurso. Pois, se são capa­
não contentes em saber tudo o que é zes de passar mais adiante do que fui,
inteligivelmente explicado no seu sê-lo-ão também, com maior razão, de
autor, querem, além disso, encontrar achar por si próprios tudo o que penso
nele a solução de muitas dificuldades, ter achado125. Tanto mais que, não
a cujo respeito nada disse e nas quais tendo jamais examinado algo anão ser
nunca talvez pensou. Todavia, a ma­ por ordem, é certo que o que me falta
neira de filosofar é muito cômoda para ainda para descobrir é em si mais difí­
aqueles que possuem tão-somente espí­ cil e mais oculto do que aquilo que
ritos muito medíocres; pois a obscuri­ pude precedentemente encontrar, e fe­
dade das distinções e dos princípios de riam muito menos prazer em aprendê-
que se servem é causa de que possam lo por mim do que por si próprios;
falar de todas as coisas tão atrevida- além do que, o hábito que adquirirão,
mente como se as soubessem, e susten­ procurando primeiramente coisas fá­
tar tudo o que dizem contra os mais ceis e passando pouco a pouco, gra­
sutis e os mais hábeis sem que haja dualmente, a outras mais difíceis, lhes
meio de convencê-los. Nisso me pare­ servirá mais do que poderiam servir-
cem semelhantes a um cego que, para lhes todas as minhas instruções. Por­
se bater sem desvantagem com alguém que, quanto a mim, persuadi-me de
que vê, o fizesse vir ao fundo de algu­ que, se me tivessem ensinado, desde a
ma adega muito obscura; e posso dizer juventude, todas as verdades cujas
que esses têm interesse que eu me abs­ demonstrações procurei depois, e se eu
tenha de publicar os princípios' da
125 O Discurso não é, pois, um equivalente
Filosofia de que me sirvo: pois, sendo das Regulae: pode-se considerá-lo não cotao
muito simples e muito evidentes, coiho üma exposição do método mas simplesmente
o são, faria quase o mesmo, publican­ como um prefácio a aplicações do método. ;
DISCURSO DO MÉTODO 77

não tivesse nenhuma dificuldade em que lhe servissem, não poderiam valer
aprendê-las, jamais saberia talvez al­ outra vez o tempo que teria de empre­
gumas outras, e pelo menos jamais gar a fim de escolhê-las. De modo que,
teria adquirido o hábito e a facilidade, se existisse no mundo alguém, de quem
que penso ter, para sempre descobrir se soubesse que seria seguramente
outras novas, à medida que me aplico capaz de encontrar as maiores coisas e
a procurá-las. E, numa palavra, se há as mais úteis possíveis ao público, e a
no mundo alguma obra que não possa quem, por essa causa, os demais ho­
mens se esforçassem, por todos os
ser tão bem acabada por nenhum outro
meios, em auxiliar na realização de
exceto pelo mesmo que a começou, é
seus desígnios, não vejo que pudessem
aquela em que trabalho.
fazer mais por ele além de custear os
É verdade que, no concernente às gastos nas experiências de que necessi­
experiências que podem servir para tasse e, de resto, impedir que seu lazer
isso, um homem só não poderia bastar lhe fosse arrebatado pela importuni­
para as fazer todas; mas não poderia dade de pessoa alguma. Mas, além de
também empregar utilmente outras que não presumo tanto de mim mesmo,
mãos que não as suas, exceto as dos que deseje prometer algo de extraordi­
artífices ou pessoas tais a quem pudes­ nário, nem me alimente de pensa­
se pagar, e a quem a esperança do mentos tão vãos, como os de imaginar
ganho, que é um meio muito eficaz, que o público se deva interessar muito
faria executar exatamente todas as coi­ com meus projetos, não tenho também
sas que ele lhes prescrevesse. Pois, a alma tão baixa, que queira aceitar de
quanto aos voluntários, que, por curio­ quem quer que seja qualquer favor, que
sidade ou desejo de aprender, se ofere­ se possa crer que eu não tenha mereci­
cessem talvez para o ajudar, além de do.
comumente apresentarem mais pro­ Todas essas considerações juntas
messas do que resultado e de não faze­ foram causa, há três anos, de que eu
rem senão belas proposições de que não quisesse divulgar o tratado que
nenhuma jamais logra êxito, deseja­ tinha em mãos, e mesmo que adotasse
riam infalivelmente ser pagos pela a resolução de não elaborar nenhum
explicação de algumas dificuldades, ou outro, durante minha vida, que fosse
ao menos por cumprimentos e conver­ tão geral, nem do qual se pudesse
sas inúteis, que lhe custariam sempre conhecer os fundamentos de minha Fí­
algum tempo, por pouco que perdesse. sica. Mas em seguida houve de novo
E, quanto às experiências já feitas duas outras razões, que me obrigaram
pelos outros, ainda que quisessem lhas a apresentar aqui alguns ensaios parti­
comunicar, o que aqueles que as cha­ culares, e a prestar ao público alguma
mam de segredos nunca o fariam, são, conta de minhas ações e de meus
na maioria, compostas de tantas cir­ desígnios. A primeira é que, se dei­
cunstâncias, ou ingredientes supér­ xasse de fazê-lo, muitos, que souberam
fluos, que lhe seria muito penoso deci­ da intenção que eu alimentava ante­
frar-lhes a verdade; além de que as riormente de mandar imprimir alguns
encontraria quase todas tão mal expli­ escritos, poderiam imaginar que as
cadas, ou mesmo tão falsas, porquanto causas pelas quais me abstivera disso
aqueles que as efetuaram esforçaram- fossem mais desvantajosas para mim
se por tomá-las conformes- com seus do que na realidade o são. Pois, embo­
princípios, que, se algumas houvessem ra não ame a glória em excesso, ou
78 DESCARTES

mesmo, se ouso dizê-lo, a deteste, na que haja tanto mais ocasião, suplico a
medida em que a julgo contrária ao todos os que tiverem quaisquer pbje-
repouso, que estimo acima de todas as ções a fazer-lhes que se dêem ao traba­
coisas, todavia nunca procurei escon­ lho de enviá-las ao meu livreiro, para
der minhas ações como crimes, nem que, sendo advertido, procure juntar-
usei muitas precauções para ficar lhes ao mesmo tempo a minha respos­
desconhecido; tanto por crer que isso ta; e por esse meio, os leitores, vendo
me faria mal, como por saber que me em conjunto uma e outra, julgarão
daria uma espécie de inquietação, que tanto mais facilmente a verdade. Pois
seria mais uma vez contrária ao per­ prometo nunca lhes dar respostas lon­
feito repouso de espírito que procuro. gas, mas somente confessar minhas
E visto que, tendo-me sempre mantido faltas mui francamente, se as reconhe­
assim indiferente entre o cuidado de cer, ou então, caso não consiga perce­
ser conhecido e o de não sê-lo, não bê-las, dizer simplesmente o que julgar
pude evitar de conquistar certa reputa­ necessário para a defesa das coisas que
ção, pensei que devia fazer o máximo escrevi, sem acrescentar a explicação
para me livrar ao menos de a ter má. A de qualquer nova matéria, a fim de não
outra razão que me obrigou a escrever me enredar sem fim entre uma e outra.
este livro é que, vendo todos os dias Se algumas daquelas de que falei, no
inais e mais o retardamento que sofre o começo da Dióptrica e dos Meteoros,
meu intento de me instruir, por causa chocam de início, por eu as denominar
de uma infinidade de experiências de suposições, e por parecer que não an­
que necessito, e que me é impossível seio prová-las, que se tenha a paciência
realizá-lo sem a ajuda de outrem, em­ de ler o todo com atenção, e espero que
bora não me lisonjeie tanto a ponto de todos hão de se ver satisfeitos. Pois se
esperar que o público tome grande me afigura que nelas as razões se se­
parte em meus interesses, todavia não guem de tal modo que, como as derra­
quero faltar tanto a mim próprio que deiras são demonstradas pelas primei­
dê motivo aos que me sobreviverão ras, que são as suas causas, essas
para me censurar um dia de que eu primeiras o são reciprocamente pelas
podia ter-lhes deixado muitas coisas últimas, que são seus efeitos. E não se
bem melhores do que as que deixei, se deve imaginar que cometo com isso a
não tivesse negligenciado demais em falta que os lógicos chamam um círcu­
fazê-los compreender em que poderiam lo1 2 6; pois, como a experiência toma a
contribuir para os meus projetos. maioria desses efeitos muito certos, as
causas das quais os deduzo não servem
E pensei que me era fácil escolher tanto para prová-los como servem
algumas matérias que, sem estarem para explicá-los; mas bem ao contrá­
expostas a muitas controvérsias, nem rio, são elas que são provadas por eles.
me obrigarem a declarar mais do que E não as chamei suposições só para
desejo sobre os meus princípios, não que se saiba que penso poder deduzi-
deixariam de mostrar assaz claramente las dessas primeiras verdades que
o que posso ou não posso nas ciências. expliquei mais acima, mas que expres-
E nisso eu não poderia dizer se fui bem
sucedido e não quero predispor os juí­
126 Cf. Cartas, a Morin, de 13 de julho de
zos de ninguém, falando eu próprio 1638, onde Descartes se defende da acusação
dos meus escritos; mas estimaria do “círculo lógico” e estabelece a diferença
muito que fossem examinados e, para entre “provar” e “explicar”. '
DISCURSO DO MÉTODO 79

samente não o quis fazer para impedir em francês, que é a língua de meu país,
que certos espíritos, que imaginam e não em latim, que é a de meus
saber num dia tudo o que um outro preceptores, é porque espero que aque­
pensou em vinte anos, tão logo ele lhes les que se servem apenas de sua razão
diz apenas duas ou três palavras a res­ natural inteiramente pura julgarão me­
peito, e que são tanto mais sujeitos a lhor minhas opiniões do que aqueles
falhar, e menos capazes da verdade, que não acreditam senão nos livros
quanto mais penetrantes e vivos são, antigos. E quanto aos que unem o bom
não pudessem aproveitar a ocasião seuso ao estudo, os únicos que desejo
para meus juizes, não serão de modo
para erigir alguma Filosofia extrava­
gante sobre o que acreditariam ser os algum, tenho certeza, tão parciais em
favor do latim que recusem ouvir mi­
meus princípios, e que depois me atri­
buíssem a culpa disso. Pois, quanto às nhas razões, porque as explico em lín­
gua vulgar.
opiniões que são totalmente minhas, Além disso, não quero falar aqui,
não as desculpo de serem novas, tanto em particular, dos progressos que no
mais que, se se considerarem bem as futuro espero fazer nas ciências, nem
suas razões, estou certo de que serão me comprometer em relação ao pú­
julgadas tão simples e tão conformes blico com qualquer promessa que não
ao senso comum que parecerão menos tenha a certeza de cumprir: mas direi
extraordinárias e menos estranhas do unicamente que resolvi não empregar o
que quaisquer outras que se possa ter tempo de vida que me resta em outra
sobre os mesmos assuntos. E não me coisa exceto procurar adquirir algum
vanglorio também de ser o primeiro conhecimento da natureza, que seja de
inventor de qualquer delas, mas antes tal ordem que dele se possam tirar re­
de não as ter jamais acolhido, nem gras para a Medicina, mais seguras do
pelo fato de terem sido proferidas por que as adotadas até agora; e que
outrem, nem pelo que possam ter sido, minha inclinação me afasta tanto de
mas unicamente porque a razão mas qualquer espécie de outros desígnios,
fez aceitar. principalmente dos que não poderiam
Se os artífices não puderem tão cedo ser úteis a uns sem prejudicar a outros,
executar a invenção que é explicada na que, se algumas circunstâncias me
Dióptrica, não creio que se possa compelissem a dedicar-me a eles, hão
dizer, por isso, que ela seja má: pois, creio que fosse capaz de lograr êxito.
desde que é preciso destreza e hábito Pelo que, faço aqui uma declaração
para fazer e ajustar as máquinas que que, sei muito bem, não poderá servir
descreví, sem que nelas falte qualquer para me tomar notável no mundo, mas
circunstância, não me espantaria tampouco tenho qualquer desejo de
menos se eles as lograssem no primeiro sê-lo; e ficarei sempre mais obrigado
lance, do que se alguém conseguisse àqueles graças aos quais desfrutarei
aprender, num dia, a tocar o alaúde sem impedimento do meu lazer, do que
excelentemente, tão-só porque lhe foi o seria aos que me oferecessem os mais
dada uma boa tavolatura. E se escrevo honrosos empregos da terra.
MEDITAÇÕES’

1 Para a comodidade das referências, seguimos a numeração da edição Khodoss (P.U.F.): em cada Medita­
ção, cada parágrafo é numerado; as alíneas das Segundas e Quintas Respostas são numeradas com um nú­
mero de três algarismos, dos quais o primeiro designa as Segundas ou Quintas Respostas. Por exemplo, 203
significará Segundas Respostas, § 3, e 529: Quintas Respostas, § 29. A letra G acompanhada de um alga­
rismo remete à exposição geométrica que segue as Segundas Respostas.
AOS SENHORES DEÃO E DOUTORES
DA SAGRADA FACULDADE DE TEOLOGIA DE PARIS

Senhores,

A razão que me leva a apresentar-vos esta obra é tão justa — e, quando


conhecerdes seu desígnio, estou certo de que tereis o também justo desígnio de
tomá-la sob vossa proteção — que penso nada melhor poder fazer, para torná-la
de algum modo recomendável a vossos olhos, do que dizer-vos, em poucas pala­
vras, o que mepropus nela.
Sempre estimei que estas duas questões, de Deus e da alma, eram as princi­
pais entre as que devem ser demonstradas mais pelas razões da Filosofia que da
Teologia: pois, embora nos seja suficiente, a nós outros que somos fiéis, acreditar
pela fé que há um Deus e que a alma humana não morre com o corpo, certa­
mente não parece possível poder jamais persuadir os infiéis de religião alguma,
nem quase mesmo de qualquer virtude moral, se primeiramente não se lhes pro­
varem essas duas coisas pela razão natural. E na medida em que se propõem
muitas vezes, nesta vida, maiores recompensas aos vícios do que à virtude, pou­
cas pessoas preferiríam o justo ao útil, se não fossem retidas pelo temor de Deus
ou pela expectativa de outra vida. E, embora seja absolutamente verdadeiro que
é preciso acreditar que há um Deus, porque isto é assim ensinado nas Santas
Escrituras, e, de outro lado, que épreciso acreditar nas Santas Escrituras, porque
elas vêm de Deus; e isto porque, sendo a fé um dom de Deus, aquele mesmo que
dá a graça para fazer crer nas outras coisas pode também dá-la para fazer-nòs
crer que ele existe: não poderiamos, todavia, propor isto aos infiéis, que pode­
ríam imaginar que cometeriamos nisto o erro que os lógicos chamam de círculo.
E, na verdade, cuidei que vós outros, Senhores, com todos os teólogos, não
somente assegurais que a existência de Deus pode ser provada pela razão natu­
ral, mas também que se infere da Santa Escritura que o seu conhecimento é
muito mais claro do que o que se tem de muitas coisas criadas e que, com efeito,
esse conhecimento é tão fácil que os que não o possuem são culpados. Como é
patente nestas palavras da Sabedoria, capítulo 13, onde é dito que a ignorância
deles não é perdo âvel: pois se seu espírito penetrou tão a fundo no conhecimento
das coisas do mundo, como é possível que não tenham encontrado mais facil­
mente o Soberano Senhor dessas coisas? E aos Romanos, capítulo primeiro, é
dito que são indesculpáveis. E ainda no mesmo lugar, por estas palavras: o que
é conhecido de Deus é manifesto neles,parece que somos advertidos de que tudo
quanto se pode saber de Deus pode ser demonstrado por razões, as quais não é
necessário buscar alhures que em nós mesmos, e as quais só nosso espírito é
84 DESCARTES

capaz de nos fornecer2. Daípor que julguei que não seria absolutamente fora de
propósito que mostrasse aqui por que meios isto pode serfeito e que via é preciso
tomar para chegar ao conhecimento de Deus com mais facilidade e certeza do
que conhecemos as coisas deste mundo.
E, no que concerne à alma, embora muitos tenham acreditado que não é
fácil conhecer-lhe a natureza, e alguns tenham mesmo ousado dizer que as razões
humanas nos persuadem de que ela morre com o corpo e que somente a fé nos
ensina o contrário, todavia, visto que o Concilio de Latrão, realizado sob o
pontificado de Leão X, na sessão 8, os condena e ordena expressamente aos filó­
sofos cristãos que respondam a seus argumentos e empreguem todas as forças de
seu espírito para dar a conhecer a verdade — ousei efetivamente empreendê-lo
neste escrito. Ademais, sabendo que a principal razão, que leva muitos ímpios a
não quererem acreditar de maneira alguma que há um Deus e que a alma huma­
na é distinta do corpo, é que eles dizem que ninguém até aqui pôde demonstrar
essas duas coisas; embora eu não seja absolutamente dessa opinião, mas, ao
contrário, mantenha que quase todas as razões apresentadas por tantas grandes
personagens, no tocante a essas duas questões, são outras tantas demonstrações
e, quando são bem entendidas, afirme que seja quase impossível inventar novas:
se é que eu creio que nada se podería fazer mais útil na Filosofia do que procurar
uma vez com curiosidade e cuidado as melhores e mais sólidas razões e dispô-las
numa ordem tão clara e tão exata que doravante seja certo a todo mundo serem
verdadeiras demonstrações. Enfim, posto que muitas pessoas desejaram isto de
mim3, as quais têm conhecimento de que cultivei um certo método para resolver
toda sorte de dificuldades nas ciências; método que, na verdade, não é novo,
nada havendo de mais antigo do que a verdade, mas do qual eles sabem que me
servi assaz felizmente em outras ocasiões; pensei que era de meu dever tentar
algo neste tema.
Ora, trabalhei o melhor que pude para encerrar neste tratado tudo o que
disso se pode dizer. Não que eu tenha acumulado aqui todas as diversas razões
que se poderíam alegar para servir de prova a nosso tema: pois jamais acreditei
que isto fosse necessário, senão quando não haja nenhuma que seja certa; mas
somente tratei as primeiras e principais de tal maneira que ouso efetivamente
propô-las como demonstrações muito evidentes e muito certas. E direi, além
disso, que elas são tais que eu não penso que haja alguma via por onde o espírito

2 Cf. Pascal: “Não é o que diz a Escritura, que melhor conhece as coisas que são de Deus. Ela
diz, ao contrário, que Deus é um Deus oculto. . . Quando afirma, em tantas passagens, que aque­
les que procuram Deus o encontram, não é dessa luz que fala, como sendo o dia em pleno meio-
dia. . .” (Pléiade, pág. 1184.)
3 Possível alusão ao Cardeal de Bérulle e aos Oratorianos que haviam compreendido o valor
apologético da metafísica cartesiana. Este valor, Descartes o reafirma com muita freqüência na
sua correspondência. Por exemplo: “Relendo o primeiro capítulo do Gênese, dei-me conta, não
sem espanto, que eu podia, de acordo com minhas próprias idéias, explicá-lo inteiramente de
modo bem melhor do que por todas as maneiras pelas quais os intérpretes o explicaram até
aqui. . . Mas agora, após a exposição que fiz de minha Filosofia, formulei o desígnio de mostrar
claramente que ela concorda muito mais com todàs as verdades da Fé do que a de Aristóteles”.
(A. T. IV, 698.) Era também a opinião, no- século XVII, de Bossuet, Malebranche, Amaud, etc.
A lenda de Descartes antepassado do livre-pensamento nos leva hoje a esquecer demasiado esse
fato. Sobre o cristianismo inequívoco de Descartes, cf. as Cartas, a Gibieuf (18 de julho de 1629)
e a Mersenne (18 de dezembro de 1629 e novembro de 1630). !
MEDITAÇÕES 85

humano possa jamais descobrir outras melhores; pois a importância da questão


e a glória de Deus à qual tudo isto se refere me constrangem a falar aqui um
pouco mais livremente de mim do que de costume. Todavia, quaisquer que sejam
a evidência e a certeza que encontro em minhas razões, não me posso persuadir
de que todo mundo seja capaz de entendê-las. Mas, assim como na Geometria,
há muitas delas que nos foram deixadas por Arquimedes, por Apolônio, por Pap-
pus e por muitos outros, que sãó acolhidas por todo mundo como muito certas e
muito evidentes, porque elas nada contêm que, considerado separadamente, não
seja muito fácil de conhecer, e porque não há momento algum em que as conse­
quências não se adaptem e não convenham muito bem aos antecedentes; não
obstante, por serem um pouco longas e exigirem um espírito inteiro, não são
compreendidas e entendidas senão por pouquíssimas pessoas*: da mesma manei­
ra, ainda que considere que aquelas de que me sirvo aqui igualam e até mesmo
ultrapassam em certeza e evidência as demonstrações da Geometria, com­
preendo íodavia^que não possam ser suficientemente entendidas por muitos,
tanto por serem também um pouco longas e dependentes umas das outras quanto
principalmente por exigirem um espírito inteiramente livre de todos os precon­
ceitos e que possa facilmente desligar-se do comércio dos sentidos. E, na verda­
de, não se encontram tantos no mundo que sejam próprios às especulações meta­
físicas quantos às da Geometria4 5. E, além disso, há ainda essa diferença de que,
estando todos prevenidos pela opinião de que na Geometria não se deve adiantar
nada de que não se tenha uma demonstração certa, os que não são inteiramente
versados nesta ciência pecam o mais frequentemente aprovando falsas demons­
trações, para fazerem crer que as entendem, do que refutando as verdadeiras. O
mesmo não acontece na Filosofia, onde,, acreditando cada um que todas as suas
proposições são problemáticas, poucos se entregam à pesquisa da verdade; e
muitos mesmo, querendo adquirir a reputação de espíritos fortes, só se empe­
nham em combater arrogantemente as verdades mais patentes6.
Eis por que, Senhores, qualquer que seja a força que possam ter minhas
razões, posto que pertencem à Filosofia, não espero que exerçam grande efeito 7
sobre os espíritos se não as tomardes sob vossa proteção. Mas, sendo tão grande
a consideração de todos por vossa companhia, e sendo o nome da Sorbonne de
tal autoridade que não somente no que concerne à Fé, depois dos Sagrados
Concílios, jamais se deu tanto crédito ao juízo de qualquer outra companhia,

4 Descartes dirá, na carta a Clerselier, que dâ sequência às Quintas Respostas: “Peço-lhes consi­
derar que, entre os que são reputados os mais sapientes na Filosofia da Escola, não há cem que
os entendam (os Elementos de Euclides) e que não há um entre dez mil que entenda todas as
demonstrações de Apolônio ou de Arquimedes, embora sejam tão evidentes e tao certas quanto
as de Euclides”. Este argumento é invocado contra os objetantes que não acham suas razões evi­
dentes, como se se tratasse de uma “evidência” vulgar e não elaborada pela prática das
Matemáticas.
5 O que não quer dizer que o espírito matemático está ao alcance de todos: “Nem todo mundo
tem semelhante aptidão”, diz Descartes a Burman.
6 Esse parágrafo evidencia o paralelo entre a ordem das razões matemáticas e a ordem das
razões metafísicas. Sobre esse ponto, cumpre remeter ao livro de Guéroult, em que as nossas
notas se inspiram continuamente, e assimilar a comparação estabelecida entre as duas “ordens”
por Vuillemin (Math. etMéta. chez Descartes, págs. 119-127).
7 No texto, ejfort. Ch. Adam supõe que deva ser effet. (N. dos T.)
86

mas também no que se refere à humana Filosofia, cada um crendo que não épos­
sível encontrar alhures mais solidez e conhecimento, nem mais prudência e inte­
gridade para formular seu juízo; não duvido, se vos dignardes a tanto cuidar
deste escrito, a ponto de querer primeiramente corrigi-lo (pois, tendo conheci­
mento não só de minha imperfeição como também de minha ignorância, não
ousaria eu assegurar que não haja nele quaisquer erros) e, depois, após acres­
centar as coisas que lhe faltam, arrematar as que não estão perfeitas e tomar, vós
mesmos, o cuidado de fornecer uma explicação mais ampla às que dela necessi­
tem, ou, ao menos, disso me advertir a fim de que nisso trabalhe, e, enfim, depois
que as razões pelas quais eu provo que há um Deus e que a alma humana difere
do corpo tiverem sido levadas ao ponto de clareza e evidência a que eu tenho cer­
teza ser possível conduzi-las, que deverão ser tomadas como demonstrações
muito exatas, e quiserdes declarar isto mesmo e testemunhâ-lo publicamente: eu
não duvido, digo, que, se isto forfeito, todos os erros e falsas opiniões que jamais
existiram no tocante a essas duas questões sejam em breve expungidas do espí­
rito dos homens. Pois a verdade fará que todos os doutos e pessoas de espírito
subscrevam vosso julgamento e vossa autoridade, de tal modo que os ateus, que
são de ordinário mais arrogantes que doutos e judiciosos, se despojem de seu
espírito de contradição ou talvez sustentem, eles próprios, as razões que verão
serem recebidas por todas as pessoas de espírito como demonstrações, temendo
parecerem não possuir inteligência; e, enfim, todos os outros facilmente se rende­
rão ante tantos testemunhos que não haverá mais ninguém que ouse duvidar da
existência de Deus e da distinção real e verdadeira da alma humana em relação
ao corpo.
Compete a vós, agora, julgar o fruto que proviria dessa crença, se ela fosse
uma vez bem estabelecida, vós que védes as desordens que sua dúvida produz;
mas não seria gentil de minha parte recomendar ainda mais a causa de Deus e da
Religião àqueles que sempre foram seus mais firmes esteios.
Resumo

DAS SEIS MEDITAÇÕES SEGUINTES

Na primeira, adianto, as razões pelas vi-me obrigado a seguir uma ordem


quais podemos duvidar geralmente de semelhante àquela de que se servem os
todas as coisas, e particularmente das geômetras, a saber, adiantar todas as
coisas materiais, pelo menos enquanto coisas das quais depende a proposição
não tivermos outros fundamentos nas que se busca, antes de concluir algo
ciências além dos que tivemos até o dela8.
presente. Ora, se bem que a utilidade Ora, a primeira e principal coisa
de uma dúvida tão geral não se revele requerida, antes de conhecer a imorta­
desde o início, ela é todavia nisso lidade da alma, é formar dela uma con­
muito grande, porque nos liberta de cepção clara è nítida, e inteiramente
toda sorte de prejuízos e nos prepara distinta de todas as concepções que se
um caminho muito fácil para acostu­ possam ter do corpo: o que foi feito
mar nosso espírito a desligar-se dos nesse lugar. Requer-se, além disso,
sentidos, e, enfim, naquilo que toma saber que todas as coisas que concebe­
impossível que possamos ter qualquer mos clara e distintamente são verda­
dúvida quanto ao que descobriremos, deiras, segundo as concebemos: o que
depois, ser verdadeiro. não pôde ser provado antes da quarta
Na segunda, o espírito que, usando Meditação. Ademais, cumpre ter uma
de sua própria liberdade, supõe que concepção distinta da natureza corpó-
todas as coisas, de cuja existência haja rea, a qual se forma, parte nesta segun­
a menor dúvida, não existem, reco­ da, parte na quinta e na sexta Medita­
nhece que é absolutamente impossível, ções. E, enfim, deve-se concluir, de
no entanto, que ele próprio não exista. tudo isso, que as coisas que se concebe
O que é também de uma utilidade clara e distintamente serem substân-
muito grande, já que por esse meio ele
8 Frase capital e que muitas objeções não levarão
estabelece facilmente distinção entre as em conta. Daí por que Descartes responderá amiú-
coisas que lhe pertencem, isto é, à de: “Hâ confusão; pensais que pretendo adiantar
natureza intelectual, e as que perten­ ‘ neste lugar ’ conclusões que ainda não me é dado
proyar”. Umadas maiores dificuldades do livro é que
cem ao corpo. Mas, como pode ocorrer nos obriga a abandonar a ordem das matérias que
qüe alguns esperem de mim, neste nos é familiar (ainda que seja apenas pela leitura
ponto, razões para provar a imortali­ dos manuais de Filosofia) em favor de uma gênese
dos conteúdos, de modo que conteúdos pertencentes
dade da alma, considero dever agora à mesma matéria hão de aparecer em diferentes pas­
adverti-los de que, tendo procurado sagens, conforme o lugar exigido pela ordem (a
natureza corpórea nas Meditações Segunda, Quarta
nada escrever neste tratado de que não e Sexta; as provas da existência de Deus na Tercei­
tivesse demonstrações muito exatas, ra, depois na Meditação Quinta).
88 DESCARTES

cias diferentes, como se concebe o bém ele não perece de modo algum;
espírito e o corpo, são, com efeito, mas que o corpo humano, na medida
substâncias diversas e realmente dis­ em que difere dos outros corpos, não é
tintas umas das outras; e é o que se formado e composto senão de cérta
conclui na sexta Meditação. E, na configuração de membros e outros aci­
mesma, também isto se confirma, pelo dentes semelhantes; e a alma humana,
fato de não concebermos qualquer ao contrário, não é assim composta de
corpo senão como divisível, ao passo quaisquer acidentes, mas é uma pura
que o espírito ou a alma do homem substância. Pois, ainda que todos os
não se pode conceber senão como indi­ seus acidentes se modifiquem, por
visível: pois, com efeito, não podemos exemplo, que ela conceba certas coi­
conceber a metade de alma alguma, sas, que ela queira outras, que ela sinta
como podemos fazer com o menor de outras, etc., é, no entanto, sempre a
todos os corpos; de sorte que suas mesma alma; ao passo que o corpo hu­
naturezas não são somente reconhe­ mano não mais é o mesmo pelo sim­
cidas como diversas, porém mesmo, de ples fato de se encontrar mudada a fi­
alguma maneira, como contrárias. gura de alguma de suas partes. Donde
Ora, é preciso que saibam que eu não se segue que o corpo humano pode
me empenhei, neste tratado, em dizer facilmente perecer, mas que o espírito
nada mais, tanto porque isto basta ou a alma do homem (o que eu absolu-
para mostrar mui claramente que da tamente não distingo) é imortal por sua
corrupção do corpo não decorre a natureza.
morte da alma, e assim, dar aos ho­ Na terceira Meditação, parece-me
mens a esperança de uma segunda vida que expliquei bastante longamente o
após a morte;, como também porque as principal argumento de que me sirvo
premissas das quais é possível concluir para provar a existência de Deus.
a imortalidade da alma dependem da Todavia, a fim de que o espírito do lei­
explicação de toda a Física3: primeira­ tor possa mais facilmente abstrair-se
mente, a fim de saber que, em geral, dos sentidos, não quis de modo algum
todas as substâncias, isto é, todas as servir-me nesse lugar de quaisquer
coisas que não podem existir sem comparações tiradas das coisas corpó-
serem criadas por Deus, são por sua reas, de tal modo que talvez tenham
natureza incorruptíveis e jamais restado muitas obscuridades, as quais,
podem cessar de ser, caso não sejam espero, serão inteiramente esclarecidas
reduzidas a nada por este mesmo Deus nas minhas respostas às objeções que
que lhes queira negar seu concurso me foram propostas depois. Como, por
ordinário. E, em seguida, a fim de que exemplo: é bastante difícil entender
se note que o corpo, tomado em geral, como a idéia de um ser soberanamente
é uma substância, razão ppla qual tam- perfeito, a qual se encontra em nós,
contém tanta realidade objetiva, isto é,
9 A fim de facilitar a publicação de sua Física é participa por representação em tantos
que Descartes pede o imprimatur da Sorbonne para
a sua Metafísica. Daí por que solicita a Mersenrie graus de ser e de perfeição, que ela
que mantenha o projeto em segredo: “Isto poderia deve necessariamente provir de uma
talvez impedir a aprovação da Sorbonne, que eu causa soberanamente perfeita. Mas eu
desejo, e que me parece poder servir extremamente a
meus intuitos: pois eu vos diria que este poucó^de o'esclarecí nestas respostas, pela com­
Metafísica que vos envio contém todos os princípios paração com uma máquina muito arti­
de minha Física”. (11 de novembro de 1640.) Em
outros termos: se aprovasse a Metafísica, a Sór- ficial cuja idéia se encontra no espírito
bonne desdizer-se-ia condenando a Física. de qualquer operário; pois, assim
MEDITAÇÕES 89

como o artifício objetivo dessa idéia própria certeza das demonstrações


deve ter alguma causa, a saber, a ciên­ geométricas depende do conhecimento
cia do obreiro, ou de alguma outra pes­ de um Deus.
soa da qual ele tenha aprendido, da Enfim, na sexta, distingo a ação do
mesma maneira é impossível que a entendimento da ação da imaginação;
idéia de Deus que em nós existe não os sinais desta distinção são aí descri­
tenha o próprio Deus por sua causa1 °. tos. Mostro que a alma do homem é
Na quarta, prova-se que as coisas realmente distinta do córpo' e que,
que concebemos mui clara e mui todavia, ela lhe é tão estreitamente
distintamente são todas verdadeiras; e conjugada e unida que compõe como
ao mesmo tempo é explicado em que que uma mesma coisa com ele. Todos
consiste a razão do erro ou falsidade: o os erros procedentes dos sentidos são
que deve necessariamente ser sabido aí expostos com os meios de evitá-los.
tanto para confirmar as verdades pre­ E, finalmente, apresento todas as ra­
cedentes quanto para melhor entender zões das quais é possível concluir a
as que se seguem. Mas, entretanto, é de existência das coisas materiais: não
notar que não trato de modo algum, que as julgue muito úteis para provar o
neste lugar, do pecado, isto é, do erro que elas provam, a saber, que há um
que se comete na busca do bem e do mundo, que os homens têm corpos e
mal, mas somente daquele que sobre­ outras coisas semelhantes, que nunca
vêm no julgamento e no discernimento foram postas em dúvida por homem
do verdadeiro e do falso; e que não algum de bom senso12; mas porque,
pretendo falar aí das coisas que com­ considerando-as de perto, chega-se a
petem à fé ou à conduta da vida, mas conhecer que elas não são tão firmes
somente daquelas que dizem respeito nem tão evidentes quanto aquelas que
às verdades especulativas e conhecidas nos conduzem ao conhecimento de
por meio da tão-só luz natural11. Deus e da nossa alma; de sorte que
Na quinta, além de a natureza cor- estas últimas são as mais certas e as
pórea tomada em geral ser aí explica­ mais evidentes que possam cair no
da, a existência de Deus também é
demonstrada por novas razões, nas 11 Cf. Quartas Respostas: “Na Meditação Quarta,
quais todavia podem-se encontrar al­ só tive intenção de tratar do erro que se comete no
gumas dificuldades, mas que serão discernimento do verdadeiro e do falso, e não do
que ocorre na procura do bem e do mal — e sempre
resolvidas nas respostas às objeções excetuei as coisas que se referem à fé e às ações de
que me foram feitas; e também revela- nossa vida, quando disse que só devemos dar cré­
se aí de que maneira é verdadeiro que a dito às coisas que conhecemos evidentemente. . .”
Este corte entre a luz natural e a fé é essencial para
o pensamento claro e distinto, na medida em que
1 0 Se tomardes a idéia de Deus somente enquanto Descartes não quer arriscar-se a transgredir as ver­
idéia e não como conteúdo fora do entendimento, dades reveladas. Mas implica a secularização da
lemos nas Primeiras Objeções, “esta maneira de ser Filosofia.
é apenas uma denominação externa e não comporta 12 As Meditações não se colocam ao nível das
nenhuma realidade; não há razão para procurar a “verdades da vida”, onde a dúvida seria ridícula e
sua causa. Para falar propriamente, uma idéia não é as provas metafísicas despropositadas. Elas são,
nada”. Resposta de Descartes: “Se alguém tem no afirma Guéroult, uma análise e uma classificação
espírito a idéia de alguma máquina muito artificial, dos conteúdos (consciência de si, idéias, vontade,
podemos com razão perguntar qual a causa desta inclinações) que descubro, “ao percorrer o campo
idéia. . . pois se esta idéia contém um certo artifício de meu espírito”, “assim como o geômetra encon­
objetivo mais do que um outro, ela o deve, sem dú­ tra, no campo da pura extensão, grande número de
vida, a alguma causa...” A aplicação do princípio seres reais e verdadeiros, dotados de propriedades e
de causalidade ao conteúdo das idéias (à “realidade que mantêm entre si relações necessárias. . . figuras
objetiva” delas) constitui, como se verá, o nervo da retilíneas, triângulos e paralelogramos, retângulos e
primeira prova. gnômon, círculo...” {Descartes, II, pág. 288.)
90 DESCARTES

conhecimento do espírito humano. E é tir aqui muitas outras questões das


tudo o que me propus provar nestas quais também falei ocasionalmente
seis Meditações; o que me leva a omi­ neste tratado. I
MEDITAÇÕES

CONCERNENTES

À PRIMEIRA FILOSOFIA
NAS QUAIS A EXISTÊNCIA DE DEUS E A DISTINÇÃO REAL
ENTRE A ALMA E O CORPO DO HOMEM
SÃO DEMONSTRADAS
Primeira Meditaçao13

Das Coisas que se Podem Colocar em Dúvida

1. Há já algum tempo eu me aper- 2. Agora, pois, que meu espírito


cebi de que, desde meus primeiros está livre de todos os cuidados, e que
anos, recebera muitas falsas opiniões consegui um repouso assegurado numa
como verdadeiras, e de que aquilo que pacífica solidão, aplicar-me-ei seria­
depois eu fundei em princípios tão mal mente e com liberdade em destruir em
assegurados não podia ser senão mui geral todas as minhas antigas opiniões.
duvidoso e incerto; de modo que me Ora, não será necessário, para alcan­
era necessário tentar seriamente, uma çar esse desígnio, provar que todas elas
vez em minha vida, desfazer-me de são falsas, o que talvez nunca levasse a
todas as opiniões a que até então dera cabo; mas, uma vez que a razão já me
crédito, e começar tudo novamente persuade de que não devo menos
desde os fundamentos, se quisesse esta­ cuidadosamente impedir-me de dar
belecer algo de firme e de constante crédito às coisas que não são inteira­
nas ciências. Mas, parecendo-me ser mente certas e indubitáveis, do que às
muito grande essa empresa, aguardei que nos parecem manifestamente ser
atingir uma idade que fosse tão madu­ falsas, o menor motivo de dúvida que
ra que não pudesse esperar outra após eu nelas encontrar bastará para me
ela, na qual eu estivesse mais apto para levar a rejeitar todas1 4. E, para isso,
executá-la; o que me fez diferi-la por não é necessário que examine cada
tão longo tempo que doravante acredi­ uma em particular, o que seria um tra­
taria cometer uma falta se empregasse balho infinito; mas, visto que a ruína
ainda em deliberar o tempo que me dos alicerces carrega necessariamente
resta para agir. consigo todo o resto do edifício, dedi-
car-me-ei inicialmente aos princípios
13 A primeira Meditação tem como peculiaridade sobre os quais todas as minhas antigas
o fato de não se tratar aí de “estabelecer verdade
alguma, mas apenas de me desfazer desses antigos opiniões estavam apoiadas.
prejuízos”. (Sétimas Respostas.) Sua composição é 3. Tudo o que recebi, até presente­
a seguinte:
A) § § 1-3: o princípio da dúvida hiperbólica; mente, como o mais verdadeiro e segu­
B) §§3-13: argumentos que estendem e radica­ ro, aprendi-o dos sentidos ou pelos
lizam a dúvida.
(§3): argumento dos erros dos
sentidos; 1 4 A dúvida assim posta em ação: a) distinguir-se-
(§§4-9): argumento do sonho; á da dúvida vulgar pelo fato de ser engendrada não
(§§9-13): argumento que estende a por experiência, mas por uma decisão; b) será
dúvida ao valor objetivo das essên­ “hiperbólica”, isto é, sistemática e generalizada; c)
cias matemáticas, em duas etapas: consistirá, pois, em tratar como falso o que é apenas
- o Deus enganador; duvidoso, como sempre enganador o que alguma,
- o Gênio Maligno. vez me enganou.
94 DESCARTES
sentidos: ora, experimentei algumas mente; que é com desígnio e propósito
vezes que esses sentidos eram engano­ deliberado que estendo esta mão e que
sos, e é de prudência nunca se fiar a sinto: o que ocorre no sono não pare­
inteiramente em quem já nos enganou ce ser tão claro nem tão distinto quan­
uma vez1*5. to tudo isso. Mas, pensando cuidado­
4. Mas, ainda que os sentidos nos samente nisso, lembro-me de ter sido
enganem às vezes, no que se refere às muitas vezes enganado, quando dor­
coisas pouco sensíveis e muito distan­ mia, por semelhantes ilusões. E, deten-
tes, encontramos talvez muitas outras, do-me neste pensamento, vejo tão
das quais não se pode razoavelmente manifestamente que não há quaisquer
duvidar, embora as conhecéssemos por indícios concludentes, nem marcas
intermédio deles: por exemplo, que eu assaz certas por onde se possa distin­
esteja aqui, sentado junto ao fogo, ves­ guir nitidamente a vigília do sono, que
tido com um chambre, tendo este papel me sinto inteiramente pasmado: e meu
entre as mãos e outras coisas desta pasmo é tal que é quase capaz de me
natureza. E como poderia eu negar que persuadir de que estou dormindo.
estas mãos e este corpo sejam meus? A 6. Suponhamos, pois, agora, que
não ser, talvez, que eu me compare e estamos adormecidos e que todas essas
esses insensatos, cujo cérebro está de particularidades, a saber, que abrimos
tal modo perturbado e ofuscado pelos os olhos, que mexemos a cabeça, que
negros vapores da bile que constante­ estendemos as mãos, e coisas seme­
mente asseguram que são reis quando lhantes, não passam de falsas ilusões; e
são muito pobres; que estão vestidos pensemos que talvez nossas mãos,
de ouro e de púrpura quando estão assim como todo o nosso corpo, não
inteiramente nus; ou imaginam ser são tais como os vemos. Todavia, é
cântaros ou ter um corpo de vidro. preciso ao menos confessar que as coi­
Mas quê? São loucos e eu não seria sas que nos são representadas durante
menos extravagante se me guiasse por o sono são como quadros e pinturas,
seus exemplos. que não podem ser formados senão à
5. Todavia, devo aqui considerar semelhança de algo real e verdadeiro; e
que sou homem1 6 e, por conseguinte, que assim, pelo menos, essas coisas
que tenho o costume de dormir e de gerais, a saber, olhos, cabeça, mãos e
representar, em meus sonhos, as mes­ todo o resto do corpo, não são coisas
mas coisas, ou algumas vezes menos imaginárias, mas verdadeiras e existen­
verossímeis, que esses insensatos em tes. Pois, na verdade, os pintores,
vigília. Quantas vezes ocorreu-me so­ mesmo quando se empenham com o
nhar, durante a noite, que estava neste maior artifício em representar sereias e
lugar, que estava vestido, que estava sátiros por formas estranhas e extraor­
.junto ao fogo, embora estivesse inteira­ dinárias, não lhes podem, todavia, atri­
mente nu dentro de meu lèito? Parece- buir formas e naturezas inteiramente
me agora que não é com olhos adorme­ novas, mas apenas fazem certa mistura
cidos que contemplo este papel; que e composição dos membros de diver­
esta cabeça que eu mexo não está dor­ sos animais; ou então, se porventura
1 5 Argumento do erro do sentido, primeiro grau da
sua imaginação for assaz extravagante
dúvida. Ê insuficiente para nos fazer duvidar siste­ para inventar algo de tão novo, qu'e ja­
maticamente de nossas percepções sensíveis. mais tenhamos visto coisa semelhante,
1 6 Aqui começa o argumento do sonho, segundo
grau da dúvida, que irá estendê-la a todo conheci­ e que assim sua obra nos represente
mento sensível, ou pelo menos a seu conteúdo. uma coisa puramente fictícia e absolu­
MEDITAÇÕES 95

tamente falsa, certamente ao menos as quadrado nunca terá mais do que qua­
cores com que eles a compõem devem tro lados; e não parece possível que
ser verdadeiras. verdades tão patentes possam ser sus­
7. E pela mesma razão, ainda que peitas de alguma falsidade ou incerte­
essas coisas gerais, a saber, olhos, za.
cabeça, mãos e outras semelhantes, 9. Todavia, há muito que tenho no
possam ser imaginárias, é preciso, meu espírito certa opinião1 8 de que há
todavia, confessar que há coisas ainda um Deus que tudo pode e por quem fui
mais simples e mais universais, que criado e produzido tal como sou. Ora,
são verdadeiras e existentes; de cuja quem me poderá assegurar que esse
mistura, nem mais nem menos do que Deus não tenha feito com que não haja
da mistura de algumas cores verdadei­ nenhuma terra, nenhum céu, nenhum
ras, são formadas todas essas imagens corpo extenso, nenhuma figura, nenhu­
das coisas que residem em nosso ma grandeza, nenhum lugar e que, não
pensamento, quer verdadeiras e reais, obstante, eu tenha os sentimentos de
quer fictícias e fantásticas. Desse gêne­ todas essas coisas e que tudo isso não
ro de coisas é a natureza corpórea em me pareça existir de maneira diferente
geral, e sua extensão; juntamente com daquela que eu vejo? E, mesmo, como
a figura das coisas extensas, sua quan­ julgo que algumas vezes os outros se
tidade, ou grandeza, e seu número; enganam até nas coisas que eles acre­
como também o lugar em que estão, o ditam saber com maior certeza, pode
tempo que mede sua duração e outras ocorrer que Deus tenha desejado que
coisas semelhantes1*7. eu me engane todas as vezes em que
8. Eis por que, talvez, daí nós não faço a adição de dois mais três, ou em
concluamos mal se dissermos que a Fí­ que enumero os lados de um quadrado,
sica, a Astronomia, a Medicina e todas ou em que julgo alguma coisa ainda
as outras ciências dependentes da mais fácil, se é que se pode imaginar
consideração das coisas compostas algo mais fácil do que isso. Mas pode
são muito duvidosas e incertas; mas ■ ser que Deus não tenha querido que eu
que a Aritmética, a Geometria e as ou­ seja decepcionado desta maneira, pois
tras ciências desta natureza, que não ele é considerado soberanamente bom.
tratam senão de coisas muito simples e Todavia, se repugnasse à sua bondade
muito gerais, sem cuidarem muito em fazer-me de tal modo que eu me enga­
se elas existem ou não na natureza, nasse sempre, parecería também ser-
contêm alguma coisa de certo e indubi- lhe contrário permitir que eu me enga­
tável. Pois, quer eu esteja acordado, ne algumas vezes e, no entanto, não
quer esteja dormindo, dois mais três posso duvidar de que ele mo permi­
formarão sempre o número cinco e o ta1 9.
10. Haverá talvez aqui pessoas que
1 7 O segundo argumento encontra, pois, o seu limi­ preferirão negar a existência de um
te: ele não me permite pôr em dúvida os compo­
nentes de minhas percepções, a saber, as “naturezas Deus tão poderoso a acreditar que
simples”, indecomponíveis (figura, quantidade, es­
paço, tempo), que são o objeto da Matemática. Tais 1 8 Essa “opinião” é sustentàda pelos teólogos das
elementos “escapam, contrariamente aos objetos Segundas Objeções: Deus, dada sua onipotência,
sensíveis, a todas as razões naturais de duvidar”, pode nos enganar. Não é o parecer de Descartes: o
sublinha Guéroult, apoiando-se no texto da Quinta engano em Deus constituiría não só um sinal de
Meditação: “A natureza de meu espírito é tal que eu malignidade, mas de não-ser. (Col. com Burman.)
não me poderia impedir de julgá-las verdadeiras Isso redunda em afirmar o valor tão-somente meto­
enquanto as concebo clara e distintamente”. Daí a dológico dessa suposição antinatural.
necessidade de recorrer ao terceiro argumento que 1 9 A consideração da bondade, por si só, não basta
abalará esta certeza “natural”. para invalidar a suposição. Cf. a nota precedente.
96 DESCARTES

todas as outras coisas são incertas. dosas de alguma maneira, como aca­
Mas não lhes resistamos no momento e bamos de mostrar, e todavia muito
suponhamos, em favor delas, que tudo prováveis, de sorte que se tem muito
quanto aqui é dito de um Deus seja mais razão em acreditar nelas do que
uma fábula. Todavia, de qualquer em negá-las. Eis por que penso que me
maneira que suponham ter eu chegado utilizarei delas mais prudentemente se,
ao estado e ao ser que possuo, quer o tomando partido contrário, empregar
atribuam a algum destino ou fatali­ todos os meus cuidados em enganar-
dade, quer o refiram ao acaso, quer me a mim mesmo, fingindo que todos
queiram que isto ocorra por uma contí­ esses pensamentos são falsos e imagi­
nua série e conexão das coisas, é certo nários; até que, tendo de tal modo
que, já que falhar e enganar-se é uma sopesado meus prejuízos, eles não pos­
espécie de imperfeição, quanto menos sam inclinar minha opinião mais para
poderoso for o autor a que atribuírem um lado do que para o outro, e meu
minha origem tanto mais será provável juízo não mais seja doravante domi­
que eu seja de tal modo imperfeito que nado por maus usos e desviado do reto
me engane sempre. Razões às quais caminho que pode conduzi-lo ao co­
nada tenho a responder, mas sou obri­ nhecimento da verdade. Pois estou se­
gado a confessar que, de todas as opi­ guro de que, apesar disso, não pode
niões que recebi outrora em minha haver perigo nem erro nesta via e de
crença como verdadeiras, não há ne­ que não poderia hoje aceder dema­
nhuma da qual não possa duvidar siado à minha desconfiança, posto que
atualmente, não por alguma inconside- não se trata no momento de agir, mas
ração ou leviandade, mas por razões somente de meditar e de conhecer.
muito fortes e maduramente considera­ 12. Suporei, pois, que há não um
das: de sorte que é necessário que verdadeiro Deus, que é a soberana
interrompa e suspenda doravante meu fonte da verdade, mas certo gênio
juízo sobre tais pensamentos, e que maligno21, não menos ardiloso e enga­
não mais lhes dê crédito, como faria nador do que poderoso, que empregou
com as coisas que me parecem eviden­ toda a sua indústria em enganar-me.
temente falsas, se desejo encontrar Pensarei que o céu, o ar, a terra, as
algo de constante e de seguro nas cores, as figuras, os sons e todas as
ciências20. coisas exteriores que vemos são apenas
11. Mas não basta ter feito tais ilusões e enganos de que ele se serve
considerações, é preciso ainda que para surpreender minha credulidade.
cuide de lembrar-me delas; pois essas Considerar-me-ei a mim mesmo abso­
antigas e ordinárias opiniões ainda me lutamente desprovido de mãos, de
voltam amiúde ao pensamento, dan­ olhos, de carne, de sangue, desprovido
do-lhes a longa e familiar convivência de quaisquer sentidos, mas dotado da
que tiveram comigo o direito de ocu­ falsa crença de ter todas essas coisas.
par meu espírito mau grado meu e de Permanecerei obstinadamente apegado
tornarem-se quase que senhoras de a esse pensamento; e se, por esse meio,
minha crença. E jamais perderei o cos­
tume de aquiescer a isso e de confiar 21 A função do Deus enganador e do Gênio Malig­
nelas, enquanto as considerar como no é a mesma: porém o Gênio Maligno é um artifí­
cio psicológico que, impressionando mais a minha
são efetivamente, ou seja, como duvi-. imaginação, levar-me-á a tomar a dúvida mais a
sério e a inscrevê-la melhor em minha memória (“é
20 A dúvida é agora universalizada. preciso ainda que cuide de lembrar-me dela”).
MEDITAÇÕES 97

não está em meu poder chegar ao eu reincido insensivelmente por mim


conhecimento de qualquer verdade, ao mesmo em minhas antigas opiniões e
menos está ao meu alcance suspender evito despertar dessa sonolência, de
meu juízo. Eis por que cuidarei zelosa- medo de que as vigílias laboriosas que
mente de não receber em minha crença se sucederíam à tranquilidade de tal
nenhuma falsidade, e preparareii tão repouso, em vez de me propiciarem al­
bem meu espírito a todos os ardis guma luz ou alguma clareza no conhe­
desse grande enganador que, por pode-%' cimento da verdade, não fossem sufi­
roso e ardiloso que seja, nunca poderá cientes para esclarecer as trevas das
impor-me algo. dificuldades que acabam de ser agita­
13. Mas esse desígnio é árduo e das.
trabalhoso22 e certa preguiça arrasta-;
me insensivelmente para o ritmo de 22 Esta insistência na dificuldade de exercer uma
dúvida tão radical não é enfática; quanto mais a dú­
minha vida ordinária. E, assim como vida for vivida como radical, mais as certezas que
um escravo que gozava de uma liber­ se impuserem, em seguida, se apresentarão como
inabaláveis. Tomar a dúvida levianamente é expor-
dade imaginária, quando começa a se a nada compreender da sequência das Medita­
suspeitar de que sua liberdade é apenas ções. A*este propósito, cf. 203. — “Não há erro
um sonho, teme ser despertado e cons­ mais grave”, diz Alain, “do que julgar que esta dú­
vida é fingida. Não há também erro mais comum,
pira com essas ilusões agradáveis para porque poucos homens jogam este jogo seriamen­
ser mais longamente enganado, assim te.”
Meditação Segunda23
Da Natureza do Espírito Humano;
e de como Ele é Mais Fácil de Conhecer do que o Corpo

1. A Meditação que fiz ontem en-| vel, até que tenha aprendido certa­
cheu-me o espírito de tantas dúvidas,j mente que não há nada no mundo de
que doravante não está mais em meu certo.
alcance esquecê-las. E, no entanto, não 2. Arquimedes, para tirar o globo
vejo de que maneira poderia resolvê- terrestre de seu lugar e transportá-lo
las; e, como se de súbito tivesse caído para outra parte, não pedia nada mais
em águas muito profundas, estou de tal exceto um ponto que fosse fixo e segu­
modo surpreso que não posso nem fir­ ro. Assim, terei o direito de conceber
mar meus pés no fundo, nem nadar altas esperanças, se for bastante feliz
para me manter à tona. Esforçar-me-ei, para encontrar somente uma coisa que
não obstante, e seguirei novamente a sej a certa e indubitável2 4.
mesma via que trilhei ontem, afastan­ 3. Suponho, portanto, que todas as
do-me de tudo em que poderia imagi­ coisas que vejo são falsas; persuado-
nar a menor dúvida, da mesma manei­ me de que jamais existiu de tudo quan­
ra como se eu soubesse que istd fosse to minha memória referta de mentiras
absolutamente falso; e continuarei me representa; penso não possuir ne­
sempre nesse caminho até que tenha nhum sentido; creio que o corpo, a
encontrado algo de certo, ou, pelo figura, a extensão, o movimento e o
menos, se outra coisa não me for possí- lugar são apenas ficções de meu espíri­
to. O que poderá, pois, ser considerado
23 Plano da Meditação:
A) §§1-9: da natureza do espírito huma­ verdadeiro? Talvez nenhuma outra
no...: coisa a não ser que nada há no mundo
§§ 1-4: conquista da primeira certeza: de certo.
(§§1-3): procura de uma primeira 4. Mas que sei eu, se não há nenhu­
certeza;
(§4): “Eu sou, eu existo”; ma outra coisa diferente das que acabo
§ §5-9: reflexão sobre esta primeira certe­ de julgar incertas, da qual não se possa
za e conquista da segunda: ter a menor dúvida? Não haverá algum
(§ § 5-8): quem sou eu, eu que
estou certo que sou? Uma coisa Deus, ou alguma outra potência, que
pensante. Determinação da essên­ me .ponha no espírito tais pensamen­
cia do Eu; tos? Isso não é necessário; pois talvez
(§9): descrição da “coisa pensante”
e distinção entre o pensamento seja eu capaz de produzi-los por mim
(atributo principal desta substân­ mesmo. Eu então, pelo menos, não
cia) e suas outras faculdades; serei alguma coisa? Mas já neguei que
B) §§10-18: . . .e de como ele é mais fácil de i
conhecer do que o corpo: i
Contraprova da segunda certeza (o pe­ 2 4 A primeira certeza adquirida não será, pois, a
daço de cera) e conquista da terceira mais alta; deve apenas inaugurar a cadeia das
certeza. razões.
100 DESCARTES

tivesse qualquer sentido ou qualquer vezes que a enuncio ou que a concebo


corpo. Hesito no entanto, pois que se em meu espírito2 7.
segue daí? Serei de tal modo depen­ 5. Mas não conheço ainda bastante
dente do corpo e dos sentidos que não claramente o que sou, eu que estou
possa existir sem eles? Mas eu me per­ cerro de que sou; de sorte que dora­
suadi de que nada existia no mundo, vante é preciso que eu atente com todo
que não havia nenhum céu, nenhuma cuidado, para não tomar imprudente­
terra, espíritos alguns, nem corpos mente alguma outra coisa por mim, e
alguns: não me persuadi também, por­ assim para não equivocar-me neste
tanto, de que eu não existia2*5? Certa­
mente não, eu existia sem dúvida, se é conhecimento que afirmo ser mais
certo e mais evidente do que todos os
que eu me persuadi, ou, apenas, pensei que tive até agora2 8.
alguma coisa. Mas há algum, não sei
qual, enganador mui poderoso e mui 6. Eis por que considerarei de novo
ardiloso que emprega toda a sua indús­ o que acreditava ser, antes de me
tria em enganar-me sempre. Não há, empenhar nestes últimos pensamentos;
pois, dúvida alguma de que sou, se ele e de minhas antigas opiniões suprimi­
me engana; e, por mais que nie engane, rei tudo o que pode ser combatido
não poderá jamais fazer com que eu pelas razões que aleguei há pouco, de
nada seja, enquanto eu pensar ser algu­ sorte que permaneça apenas precisa­
ma coisa2 6. De sorte que, após ter pen­ mente o que é de todo indubitável. O
sado bastante nisto e de ter examinado que, pois, acreditava eu ser até aqui?
cuidadosamente todas as coisas, cum­ Sem dificuldade, pensei que era um
pre enfim concluir e ter por constante homem. Mas que é um homem? Direi
que esta proposição, eu sou, eu existo, que é um animal racional? Certamente
é necessariamente verdadeira todas as não: pois seria necessário em seguida
pesquisar o que é animal e o que é
2 6 Retomemos o raciocínio. No ponto em que racional e assim, de uma só questão,
estou, não poderia eu ter a certeza da existência cairiamos insensivelmente numa infini­
de “algum Deus”? Não, nada o exige (e um dos
princípios da análise dos geômetras é o de não dade de outras mais difíceis e embara­
remontar a uma verdade superior àquela com que çosas, e eu não querería abusar do
posso me contentar). Irei invocar a certeza de minha
existência como indivíduo, sujeito concreto? Não, pouco tempo e lazer que me resta
nada o permite, visto que pus em dúvida a exis­ empregando-o em deslindar seme-
tência de tudo o que há “no mundo”. . . Mas cuida­
do ! A “hesitação” aqui é ditada pelo medo de uma
confusão: fiel à regra da dúvida, não tenho motivo 27 O fim da frase indica que ela só é verdadeira
de abrir exceção em favor do homem concreto que cada vez que penso nela atualmente. Ê também uma
sou; mas, aquém deste, há algo que irá resistir à dú­ transição, pdis permitirá responder à pergunta que
vida. E doravante o Eu não será mais este Eu de agora haverá de colocar-se: qual é a natureza deste
chambre e ao pé do fogo que a Primeira Meditação Eu-existente que acabo de afirmar?
evocava (como indica Goldschmidt, Congresso 28 Eu não conheço, ainda, o conteúdo desta exis­
Descartes de Royaumont, pág. 53). tência que acabo de afirmar. Importa, pois, encon­
2 6 Essa frase evidencia bem o papel do “Grande trá-lo pela exclusiva análise dos dados do problema,
Embusteiro”: impor a meus pensamentos uma istolé, por determinação, levando em conta tudo o
prova de tal ordem que aquele que lhe resistir seja, que é dado, mas excluindo tudo o que não o é (a
quando não garantido como verdadeiro (é impos­ referência à Regra XII é aqui indispensável). Notar
sível antes da prova da existência de Deus), pelo a frase “é preciso que eu atente com todo cuidado
menos recebido como certo. Se não fosse arrancado, para não tomar imprjudentemente alguma outra
extorquido ao Gênio Maligno, o Cogito não passa­ coisa por mim”, que seria absurdo no plano da Psi­
ria de uma banalidade. Sobre a originalidade do cologia e que se justifica apenas ao nível de uma Ál­
Cogito, cf. o fim do opúsculo de Pascal: De ITisprit gebra das noções, comparável à “Álgebra, dos
Géométrique. comprimentos” das Regulae. I
MEDITAÇÕES 101

lhantes sutilezas29. Mas, antes, deter- qual seja tocado e do qual receba a
me-ei em considerar aqui os pensa­ impressão. Pòis não acreditava de
mentos que anteriormente nasciam por | modo algum que se devesse atribuir à
si mesmos em meu espírito e que eram natureza corpórea vantagens como ter
inspirados apenas por minha natureza, . de si o poder de mover-se, de sentir e
quando me aplicava à consideração de de pensar; ao contrário, espantava-me
meu ser. Considetava-me, inicial­ antes ao ver que semelhantes faculda­
mente, como provido de rosto, mãos, des se encontravam em certos cor­
braços e toda essa máquina composta pos3 1
de ossos e carne, tal como ela aparece 7. Mas eu, o que sou eu, agora que
em um cadáver, a qual eu designava suponho3 2 que há alguém que é extre-
pelo nome de corpo. Considerava, l mamente poderoso e, se ouso dizê-lò,
além disso, que me alimentava, que I malicioso e ardiloso, que emprega
caminhava, que sentia e que pensava e ' todas as suas forças e toda a sua indús­
relacionava todas essas ações à tria em enganar-me? Posso estar certo
alma30* ; mas não me detinha em pen­ de possuir a menor de todas as coisas
sar em que consistia essa alma, ou, se que atribuí há pouco à natureza corpó­
o fazia, imaginava que era algo extre­
mamente raro e sutil, como um vento, rea? Detenho-me em pensar nisto com
uma flama ou um ar muito tênue, que atenção, passo e repasso todas essas
estava insinuado e disseminado nas coisas em meu espírito, e não encontro
minhas partes mais grosseiras. No que nenhuma que possa dizer que exista
se referia ao corpo, não duvidava de em mim. Não é necessário que me de­
maneira alguma de sua natureza; pois more a enumerá-las. Passemos, pois,
pensava conhecê-la mui dístintamente aos atributos da alma e vejamos se há
e, se quisesse explicá-la segundo as alguns que existam em mim. Os pri­
noções que dela tinha, tê-la-ia descrito meiros são alimentar-me e caminhar;
desta maneira: por corpo entendo tudo mas, se é verdade que não possuo
o que pode ser limitado por alguma corpo algum, é verdade também que
figura; que pode ser compreendido em não posso nem caminhar nem alimen­
qualquer lugar e preencher um espaço tar-me. Um outro é sentir; mas não se
de tal sorte que todo outro corpo dele pode também sentir sem o corpo; além
seja excluído; que pode ser sentido ou do que, pensei sentir outrora muitas
pelo tato, ou pela visão, ou pela audi­ coisas, durante o sono, as quais reco­
ção, ou pelo olfato; que pode ser movi­ nhecí, ao despertar, não ter sentido
do de muitas maneiras, não- por .si efetivamente. Um outro é pensar; e
mesmo, mas por algo de alheio pelo verifico aqui que o pensamento é um
29 Sobre este método de determinação do pro­
atributo que me pertence; só ele não
blema por segregação, cf. o diálogo: Recherche de
la Vérité (Pléiade, págs. 892-94). Ao interlocutor 31 Este conhecimento “natural” que eu tenho de
aturdido que acaba de responder: “Diria, portanto, mim mesmo antes da prova da dúvida será inteira-
que sou um homem”, o cartesiano replica: "Não i mente falso? Não. Se a alma é concebida à maneira
prestais atenção ao que perguntei e a resposta que dos escolásticos, em troca a distinção entre o corpo
apresentais, embora vos pareça simples, lançar- e o espírito (indispensável à Física) está aí presente,
vos-ia em questões muito árduas e muito embaraço­ mas a título de opinião provável, sem fundamento.
sas, se eu quisesse apertá-las por menos que seja. . . Cf. Respostas, 204.
Não entendestes bem a minha pergunta e respondeis 32 Mudança de plano. Do pensamento inspirado
a mais coisas do que vos perguntei. . . Dizei-me, por “minha natureza” passamos à só idéia de mim
pois, o que sois propriamente, na medida em que mesmo compatível com a instauração da dúvida, da
duvidais”. indeterminação psicológica à determinação metafí­
3 0 Cf. Respostas, 508. sica.
102 DESCARTES

pode ser separado de mim. Eu sou, eu existirem, já que me são desconhe­


existo: isto é certo; mas por quanto cidas, não sejam efetivamente diferen­
tempo? A saber, por todo o tempo em tes de mim, que eu conheço? Nada sei
que eu penso33; pois poderia, talvez, a respeito; não o discuto atualmente,
ocorrer que, se eu deixasse de pensar, não posso dar meu juízo senão a coisas
deixaria ao mesmo tempo de ser ou de que me são conhecidas: reconhecí que
existir. Nada admito agora que não eu era, e procuro o que sou, eu que
seja necessariamente verdadeiro: nada reconhecí ser. Ora, é muito cedo que
sou, pois, falando precisamente, senão essa noção e conhecimento de; mim
uma coisa que pensa, isto é, um espíri­ mesmo, assim precisamente tomada,
to, um entendimento ou uma razão, não depende em nada das coisas cuja
que são termos cuja significação me existência não me é ainda conheci­
era anteriormente3 4 desconhecida. da3 6; nem, por conseguinte, e com
Ora, eu sou uma coisa verdadeira e mais razão de nenhuma daquelas que
verdadeiramente existente; mas que são fingidas e inventadas pela imagina­
coisa? Já o disse: uma coisa que pensa. ção. E mesmo esses termos fingir e
E que mais? Excitarei ainda minha imaginar advertem-me de meu erro;
imaginação para procurar saber se não pois eu fingiría efetivamente se imagi­
sou algo mais. Eu não sou essa reunião nasse ser alguma coisa, posto que ima­
de membros que se chama o corpo ginar nada mais é do que contemplar a
humano; não sou um ar tênue e pene­ figura ou a imagem de uma coisa cor­
trante, disseminado por todos esses poral. Ora, sei já certamente que eu
membros; não sou um vento, um sou, e que, ao mesmo tempo, pode
sopro, um vapor, nem algo que posso ocorrer que todas essas imagens e, em
fingir e imaginar, posto que supus que geral, todas as coisas que se relacio­
tudo isso não era nada e que, sem nam à natureza do corpo sejam apenas
mudar essa suposição, verifico que não sonhos ou quimeras. Em seguimento
deixo de estar seguro de que sou algu­ disso, vejo claramente que teria tão
ma coisa 3 5. pouca razão ao dizer: excitarei minha
8. Mas também pode ocorrer que imaginação para conhecer mais distin­
essas mesmas coisas, que suponho não tamente o que sou, como se dissesse:
estou atualmente acordado e percebo
33 Entre todas as faculdades: 1) do corpo — 2) da algo de real e de verdadeiro; mas, visto
alma, uma só, o pensamento, resiste à exclusão. que não o percebo ainda assaz nitida­
Vemos aqui a importância do fim do § 4: “Esta
proposição — eu sou, eu existo — é necessaria­ mente, dormiría intencionalmente a
mente verdadeira sempre que eu apronuncio ou que fim de que meus sonhos mo represen­
eu a concebo em meu espírito". E ao refletir sobre tassem com maior verdade e evidência.
esta inseparabilidade ■—- único dado que se encontra
em minha posse — que obtenho imediatamente a E, assim, reconheço certamente que
natureza "daquilo que sou”. Trata-se da primeira nada, de tudo o que posso com­
verdade da cadeia de razões.
3 * “Mxteriormente”, isto é, no plano em que nos preender por meio da imaginação, per­
colocava o parágrafo precedente, eu podia proferir tence a este conhecimento que tenho de
estas palavras, mas sem lhes ter determinado o sen­ mim mesmo e que é necessário lembrar
tido, portanto sem conhecê-lo.
3 5 Sobre o fim desse parágrafo, cf. 505 e segs. Não
há necessidade alguma de ir procurar em outra 3 6 O contraditor que retorquisse haver talvez em
parte uma resposta, visto que dei a única resposta mim alguma outra faculdade desconhecida situar-
que respeitava os dados do problema: “Eu sou uma se-ia no plano da Psicologia e não das razões meta­
coisa que pensa”. Mas “o homem natural” sente-se físicas. Um dos princípios da análise é que não
tentado a recorrer à imaginação a fim de completar tenho o direito de argiiir propriedades ainda desco­
esta resposta. Há nisso uma inclinação que o pará­ nhecidas para combater as que se acham agora
grafo seguinte irá desenraizar. estabelecidas. . i
MEDITAÇÕES 103

e desviar o espírito dessa maneira de de mim mesmo? Pois é por si tão evi­
conceber a fim de que ele próprio dente que sou eu quem duvida, quem
possa reconhecer muito distintamente entende e quem desej a que não é neces­
sua natureza3*7. sário nada acrescentar aqui para expli­
9. Mas o que sou eu, portanto? cá-lo. E tenho também certamente o
Uma coisa que pensa. Que é uma coisa poder de imaginar; pois, ainda que
que pensa? É uma coisa que duvida, : possa ocorrer (como supus anterior­
que concebe, que afirma, que nega, que mente) que as coisas que imagino não
quer, que não quer, que imagina tam­ sejam verdadeiras, este poder de imagi-
bém e que sente38. Certamente não é ; nar não deixa, no entanto, de existir
pouco se todas essas coisas pertencem ' realmente em mim e faz parte do meu
à minha natureza. Mas por que não lhe pensamento. Enfim, sou o mesmo que
pertenceríam? Não sou eu próprio esse sente, isto é, que recebe e conhece as
mesmo que duvida de quase tudo, que, coisas como que pelos órgãos dos sen­
no entanto, entende e concebe certas tidos, po*sto que, com efeito, vejo a luz,
coisas, que assegura e afirma que ouço o ruído, sinto o calor. Mas dir-
somente tais coisas são verdadeiras, í me-ão que essas aparências são falsas
que nega todas as demais, que quer e e que eu durmo. Que assim seja; toda­
deseja conhecê-las mais, que não quer via,, ao menos, é muito certo que me
ser enganado, que imagina muitas coi­ parece que vejo, que ouço e que me
sas, mesmo mau grado seu, e que sente aqueço; e é propriamente aquilo que
também muitas como que por inter­ em mim se chama sentir e isto, tomado
médio dos órgãos do corpo? Haverá ; assim precisamente, nada é senão pen-
algo em tudo isso que não seja tão ver­ • sar. Donde, começo a conhecer o que
dadeiro quanto é certo que sou e que l sou, com um pouco mais de luz e de
existo, mesmo se dormisse sempre e distinção do que anteriormente39.
ainda quando aquele que me deu a 10. Mas não me posso impedir de
existência se servisse de todas as suas crer que as coisas corpóreas40, cujas
forças para enganar-me? Haverá, tam­ imagens se formam pelo meu pensa-
bém, algum desses atributos que possa | mento, e que se apresentam aos senti-
ser distinguido de meu pensamento, ou t
'dos, sejam mais distintamente conheci­
que se possa dizer que existe separado das do que essa não sei que parte de
mim mesmo que não se apresenta à
3 7 Em virtude desse princípio, não me é dado abso­
lutamente o direito de recorrer à imaginação, pois imaginação: embora, com efeito, seja
“tudo quanto posso compreender por seu meio” foi • uma coisa bastante estranha que coisas
excluído pela dúvida. Por aí eu sbi, ao mesmo • que considero duvidosas e distantes
tempo, que minha natureza é .puro pensamento
exclusivo de todo elemento corporal. E a segunda sejam mais claras e mais facilmente
verdade, a qual não se deve confundir com a distin­ conhecidas por mim do que aquelas
ção real entre a alma e o corpo, estabelecida somen­
te na Meditação Sexta. Cf. 510.
3 8 Cumpre observar a diferença relativamente ' à 39 A saber, um pensamento: a) distinto dos corpos,
definição do § 7: “Isto é, um espírito, um entendi­ se os houver; b) distinto das faculdades não propria-
mento ou uma razão”. Aí determinava-se a essência . mente intelectuais, como a imaginação, que só me
da substância “coisa pensante”; aqui ela é descrita ■ pertencem porque implicam este pensamento puro.
revestida de seus diferentes modos. Desse novo 40 Novo assalto do pensamento imaginativo ine­
ponto de vista, reintegra-se na “coisa pensante” o rente à “minha natureza” e do qual não posso ainda
que fora excluído de sua essência. Todos esses me desprender: estou convencido, mas não persua-
modos (imaginar, sentir, querer), embora não per­ , dido. Daí a necessidade de uma contraprova que
tençam à minha natureza, não podem ser postos em servirá para estabelecer a terceira verdade. Como
dúvida, na medida em que se beneficiam da certeza ! todas as figuras de retórica das Meditações, esta
do Cogito. integra-se na ordem.
104 DESCARTES

que são verdadeiras e certas e que per­ todas as coisas que se apresentavam ao
tencem à minha própria natureza. Mas paladar, ao olfato, ou à visão, ou ao
vejo bem o que seja: meu espírito tato, ou à audição, encontram-se mu­
apraz-se em extraviar-se e não pode dadas e, no entanto, a mesma cera per­
ainda conter-se nos justos limites da manece. Talvez fosse como penso
verdade. Soltemos-lhe, pois, ainda uma atualmente, a saber, que a cera não era
vez, as rédeas a fim de que, vindo, em nem essa doçura do mel, nem esse
seguida, a libertar-se delas suave e agradável odor das flores, nem essa
oportunamente, possamos mais facil­ brancura, nem essa figura, nem esse
mente dominá-lo e conduzi-lo 41. som, mas somente um corpo que um
11. Comecemos pela consideração pouco antes me aparecia sob certas
das coisas mais comuns e que acredi­ formas e que agora se faz notar sob
tamos compreender mais distinta­ outras. Mas o que será, falando preci­
mente, a saber, os corpos que tocamos samente, que eu imagino quando a
e que vemos. Não pretendo falar dos concebo dessa maneira? Considere-
corpos em geral, pois essas noções ge­ mo-lo atentamente e, afastando todas
rais são ordinariamente mais confusas, as coisas que não pertencem à cera,
porém de qualquer corpo em particu­ vejamos o que resta. Certamente nada
lar. Tomemos, por exemplo, este peda­ permanece senão algo de extenso, flexí­
ço de cera que acaba de ser tirado da vel e mutável. Ora, o que é isto: flexí­
colmeia: ele não perdeu ainda a doçura vel e mutável? Não estou imaginando
do mel que continha, retém ainda algo que esta cera, sendo redonda, é capaz
do odor das flores de que foi recolhido; de se tomar quadrada e de passar do
sua cor, sua figura, sua grandeza, são quadrado a uma figura triangular?
patentes; é duro, é frio, tocamo-lo e, se Certamente não, não é isso, posto que
nele batermos, produzirá algum som. a concebo capaz de receber uma infini­
Enfim, todas as coisas que podem dade de modificações similares e eu
distintamente fazer conhecer um corpo não poderia, no entanto, percorrer essa
encontram-se neste. infinidade com minha imaginação e,
12. Mas eis que, enquanto falo, é por conseguinte, essa concepção que
aproximado do fogo: o que nele resta­ tenho da cera não se realiza através da
va de sabor exala-se, o odor se esvai, minha faculdade de imaginar 42.
sua cor se modifica, sua figura se alte­ 13. E, agora, que é essa extensão?
ra, sua grandeza aumenta, ele toma-se Não será ela igualmente desconhecida,
líquido, esquenta-se, mal o podemos já que na cera que se funde ela aumen­
tocar e, embora nele batamos, nenhum ta e fica ainda maior quando está intei­
som produzirá. A mesma cera perma­ ramente fundida e muito mais ainda
nece após essa modificação? Cumpre quando o calor aumenta? E eu não
concebería claramente e segundo a ver­
confessar que permanece: e ninguém o dade o que é a cera, se não pensasse
pode negar. O que é, pois, que se que é capaz de receber mais variedades
conhecia deste pedaço de cera com
tanta distinção? Certamente não pode 42 Raciocínio em duas partes: l.° o que me permite
ser nada de tudo o que notei nela por reconhecer a mesma cera é sua identidade na medi­
intermédio dos sentidos, posto que da em que a cera é coisa extensa; 2.° mas este con­
teúdo só pode ser idéia e não imagem da extensão
que o corpo ocupa atualmente ou daquelas (em nú­
41 Em outros termos: façamos de conta que inter­ mero finito) que poderia ocupar em seguida. Cf.
rompemos a ordem a fim de seguir o senso comum Quintas Respostas: “As faculdades de entender e de
em seu próprio- terreno. Sobre o fato de ser esta imaginar diferem não só segundo o mais e o menos,
transgressão apenas aparente, cf. o importantíssimo porém como duas maneiras de agir totalmente
§ 515 das Respostas. diferentes”. '
MEDITAÇÕES 105

segundo a extensão do que jamais ima­ Ia, senão chapéus e casacos que podem
ginei. Ê preciso, pois, que eu concorde cobrir espectros ou homens fictícios
que não poderia mesmo conceber pela que se movem apenas por molas? Mas
imaginação o que é essa cera e que julgo que são homens verdadeiros e
somente meu entendimento é quem o assim compreendo, somente pelo poder
concebe43; digo este pedaço de cera de julgar que reside em meu espírito,
em particular, pois para a cera em ; aquilo que acreditava ver com meus
geral é ainda mais evidente. Ora, qual olhos.
é esta cera que não pode ser concebida 15. Um homem que procura elevar
senão pelo entendimento ou pelo espí­ seu conhecimento para além do
rito? Certamente é a mesma que vejo, ‘ comum deve envergonhar-se de apro­
que toco, que imagino e a mesma que veitar ocasiões para duvidar das for­
conhecia desde o começo. Mas o que é mas e dos termos do falar do vulgo;
de notar é que sua percepção, ou a prefiro passar adiante e considerar se
ação pela qual é percebida, não é uma. eu concebia com maior evidência e
visão, nem um tatear, nem uma imagi­ perfeição o que era a cera, quando a
nação, e jamais o foi, embora assim o I percebi inicialmente e acreditei conhe-
parecesse anteriormente, mas somente ! cê-la por meio dos sentidos exteriores,
uma inspeção do espírito, que pode ser í ou ao menos por meio' do senso
imperfeita e confusa, como era antes, ■ comum, como o chamam, isto é, por
©u clara e distinta, como é presente­ meio do poder imaginativo, do que a
mente, conforme minha atenção se di­ concebo presentemente, após haver
rija mais ou menos às coisas que exis­ examinado mais exatamente o que ela
tem nela e das quais é composta. ; é e de que maneira pode ser conhecida,
14. Entretanto, eu não poderia. es­ j Por certo, seria ridículo colocar isso
pantar-me demasiado ao considerar o ■ em dúvida. Pois, que havia nessa pri-
quanto meu espírito tem de fraqueza e : meira percepção que fosse distinto1 e
de pendor que o leva insensivelmente evidente e que não pudesse cair da
ao erro. Pois, ainda que sem falar eu mesma maneira sob os sentidos do
considere tudo isso em mim mesmo, as | menor dos animais? Mas quando dis-
palavras detêm-me; todavia, e sou ' tingo a cera de suas formas exteriores
quase enganado pelos termos da lin­ e, como se a tivesse despido de suas
guagem comum; pois nós dizemos que vestimentas, considero-a inteiramente
vemos a mesma cera, se no-la apresen­ nua44, é certo que, embora se possa
tam, e não que julgamos que é a ainda encontrar algum erro em meu
mesma, pelo fato de ter a mesma cor e ; juízo, não a posso conceber dessa
a mesma figura: donde desejaria quase forma sem um espírito humano 4 5.
concluir que se conhece a cera pela
visão dos olhos e não pela tão-só ins­ 44 C£ 513, onde Descartes se defende de ter pre-
peção do espírito, se por acaso não t tendido “abstrair o conceito da cera.de seus aciden-
olhasse pela janela homens que pas­ í tes”. “Os acidentes são contingentes em relação à

sam pela rua, à vista dos quais não i substância, mas não a acidentalidade”, especifica
' Guéroult. (Descartes, I, pág. 56.)
deixo de dizer que vejo homens da 45 Tal é o sentido exato do “pedaço de cera”: eu
mesma maneira que digo que vejo a nada posso conhecer através da percepção ou da
cera; e, entretanto, que vejo desta jane- imaginação sem compreender (ou reconhecer), atra­
vés do. pensamento, a essência da coisa. Tenho ou
não razão de reconhecer esta essência? Não sei
43 Por onde fica provado não só que a imaginação ainda. Pois não se trata aqui de saber se eu dispo-
não pode me dar a conhecer a natureza dos corpos nho efetivamente do conhecimento da essência do
que se lhe apresentam (o que era o objetivo da corpo, mas de saber em quais condições posso estar
contraprova), mas ainda que o pensamento puro é o seguro de possuir a idéia clara e distinta deste
único capaz de fazê-lo. i corpo. Cf. Guéroult, op. cit., págs. 144-45.
106 DESCARTES

16; Mas, enfim, que direi desse espí­ nitidez não deverei eu conhecer-me 4 7,
rito, isto é, de mim mesmo 4*6 ? Pois até posto que todas as razões que servem
aqui não admiti em mim nada além de para conhecer e conceber a natureza
um espírito. Que declararei, digo, de da cera, ou qualquer outro corpo, pro­
mim, que pareço conceber com tanta vam muito mais fácil e evidentemente
nitidez e distinção este pedaço de cera? a natureza de meu espírito? E encon­
Não me conheço a mim mesmo não só tram-se ainda tantas outras coisas no
com muito mais verdade e certeza, mas próprio espírito que podem contribuir
também com muito maior distinção e ao esclarecimento de sua natureza, que
nitidez? Pois, se julgo que a cera é ou aquelas que dependem do corpo (como
existe pelo fato de eu a ver, sem dúvida esta) não merecem quase ser enumera­
segue-se bem mais evidentemente que das.
eu próprio sou, ou que existo pelo fato 18. Mas, enfim,.eis que insensivel­
de eu a ver. Pois pode acontecer que mente cheguei aonde queria; pois, já
aquilo que eu vejo não seja, de fato, que é coisa presentemente conhecida
cera; pode também dar-se que eu. não
tenha olhos para ver coisa alguma; por mim que, propriamente falando, só
mas não pode ocorrer, quando vejo ou concebemos os corpos pela faculdade
(coisa que não mais distingo) quando de entender em nós existente e não pela
penso ver, que eu, que penso, não seja imaginação nem pelos sentidos, e que
alguma coisa. Do mesmo modo, se não os conhecemos pelo fato de os ver
julgo que a cera existe, pelo fato de que ou de tocá-los, mas somente por os
a toco, seguir-se-á ainda a mesma conceber pelo pensamento, reconheço
coisa, ou seja, que eu sou; e se o julgo com evidência que nada há que me seja
porque minha imaginação disso me mais fácil de conhecer do que meu
persuade, ou por qualquer outra causa espírito. Mas, posto que é quase
que seja, concluirei sempre a mesma impossível desfazer-se tão prontamente
coisa. E o que notei aqui a respeito da de uma antiga opinião, será bom que
cera pode aplicar-se a todas as outras eu me detenha um pouco neste ponto, ,a
coisas que me são exteriores e que se fim de que, pela amplitude de minha
encontram fora de mim. • meditação, eu imprima mais profunda­
17. Ora, se a noção ou conheci­ mente em minha memória este novo
mento da cera parece ser mais nítido e conhecimento.
mais distinto após ter sido descoberto
não somente pela visão ou pelo tato, 47 É a terceira verdade: o espírito é mais fácil de
mas ainda por muitas outras causas, conhecer do que o corpo. Com efeito, obtenho
imediatamente o conhecimento da existência e da
com quão maior evidência, distinção e 'natureza de meu espírito, ao passo que o meu pensa­
mento me proporciona apenas a idéia clara e dis­
4 6 Passamos, com este parágrafo, à confirmação tinta dos corpos cuja existência ainda é problemá­
da segunda verdade: quando percebo o pedaço de tica. Guéroult comenta: “Quando Descartes declara
cera, seja compreendendo clara e distintamente sua que o conhecimento da alma é o mais fácil dos
natureza, seja apenas imaginando-o ou tocando-o, conhecimentos, quer dizer que é a mais fácil das
só uma coisa é certa, no ponto em que me encontro. verdades científicas e o primeiro dos conhecimentos
Ê que eu penso percebê-lo-. . . Mostrando que este na ordem da ciência. Não quer dizer que a ciência é
“pensamento” era indispensável ao conhecimento mais fácil do que o conhecimento vulgar. A passa­
da coisa, a análise precedente deu confirmação a gem do senso comum à ciência é, com efeito, a mais
esta verdade. difícil das ascensões”. (Op. cit., pág. 128.)
Meditação Terceira48
De Deus; qüe Ele Existe

1. Fecharei agora os olhos, tampa­ que pensa, isto é, que duvida, que afir­
rei meus ouvidos, desviar-me-ei de ma, que nega, que conhece poucas coi­
todos os meus sentidos, apagarei sas, que ignora muitas, que ama, que
mesmo de meu pensamento todas as i odeia, que quer e não quer, que tam-
imagens de coisas corporais, ou, ao i bém imagina e que sente. Pois, assim
menos, uma vez que mal se pode fazê- j como notei acima, conquanto as coisas
lo, reputá-las-ei como vãs e como fal­ | que sinto e imagino não sejam talvez
sas; e assim, entretendo-me apenas co­ ’ absolutamente nada fora de mim e
migo mesmo e considerando meu nelas mesmas, estou, entretanto, certo
interior, empreenderei tomar-me de que essas maneiras de pensar, que
pouco a pouco mais conhecido e mais
familiar a mim mesmo. Sou uma coisa chamo sentimentos e imaginações so­
mente na medida em que são maneiras
48 Plano da Meditação: i de pensar, residem e se encontram cer-
§§ 1-4: recapitulação; i tamente em mim. E neste pouco que
§5: a questão de Deus;
§§6-9: discriminação dos dados do pro­ ■ acabo de dizer creio ter relatado tudo o
blema. que sei verdadeiramente, ou, pelo
A) §§10-14: primeiro caminho para o exame menos, tudo o que até aqui notei que
do valor objetivo das idéias: o senso comum.
B) §§15-29: segundo caminho: sabia.
(§§16-17): princípios de causali- J
dade e correspondência; 2. Agora considerarei mais exata­
(§18): colocação do problema: em mente se talvez não se encontrem abso-
quais condições reconhecería eu o •lutamente em mim outros conheci­
valor objetivo de uma idéia?
(§§19-21): exame das diferentes mentos que não tenha ainda percebido.
espécies de idéia sob este novo Estou certo de que sou uma coisa pen­
prisma; sante; mas não saberei também, por­
(§22): a idéia de Deus reconhecida ]
como dotada de valor objetivo = tanto, o que é requerido para me tomar
primeira prova; certo de alguma coisa? Nesse primeiro
(§§23-28): reflexões sobre esta
prova. conhecimento só se encontra uma
C) §§29-42: segunda prova: clara e distinta percepção daquilo que
(§§29-30): necessidade de outra conheço; a qual, na verdade, não seria
prova;
(§§31-32): primeiro momento, pri­ suficiente para me assegurar de que é
meira hipótese: eu existo por mim verdadeira se em algum momento
mesmo como por uma causa; pudesse acontecer qud uma coisa que
(§§33-34): primeiro momento, se­
gunda hipótese: eu existo sem eu concebesse tão clara e distintamente
causa; ; se verificasse falsa. E, portanto, pare­
(§35): segundo momento;
(§§36-37): reflexões subsidiárias. ce-me que já posso estabelecer como
§§38-42: reflexão sobre o conjunto. : regra geral que todas as coisas que
108 DESCARTES

concebemos mui clara e mui distinta­ rano poder de um Deus se apresenta a


mente são todas verdadeiras 4 9. - meu pensamento, sou constrangido a
3. Todavia, recebi e admiti acima confessar que lhe é fácil, se ele o qui­
várias coisas como muito certas e ser, proceder de tal modo que eú me
muito manifestas, as quais, entretanto, . engane mesmo nas coisas que acredito
reconheci depois serem duvidosas e conhecer com uma evidência muito
incertas. Quais eram, pois, essas coi­ grande. E, ao contrário, todas as vezes
sas? Eram a terra, o céu, os astros e que me volto para as coisas que penso
todas as outras coisas que percebia por conceber mui claramente sou de tal
intermédio de meus sentidos. Ora, o maneira persuadido delas que sou leva­
que é que eu concebia clara e distinta­ do, por mim mesmo, a estas palavras:
mente nelas? Certamente nada mais engane-me quem puder, ainda assim
exceto que as idéias ou os pensamentos jamais poderá fazer que eu nada seja
dessas coisas se apresentavam a meu enquanto eu pensar que sou algo; ou
espírito. E ainda agora não nego que que algum dia seja verdade que eu não
essas idéias se encontrem em mim. tenha jamais existido, sendo verdade
Mas havia ainda outra coisa que eu agora que eu existo; ou então que dois
afirmava, e que, devido ao hábito que e três juntos façam mais ou menos do
tinha de acreditar nela, pensava perce­ que cinco, ou coisas semelhantes, que
ber mui claramente, embora na verda­ vejo claramente não poderem ser de
de não a percebesse de modo algum, a outra maneira senão como as conce­
saber, que havia coisas fora de mim bo50.
donde procediam essas idéias e às 5. E, por certo, posto que não tenho
quais elas eram inteiramente semelhan­ nenhuma razão de acreditar que haja
tes. E era nisso que eu me enganava; algum Deus que seja enganador, e
ou, se eu julgava talvez segundo a ver­ mesmo que não tenha ainda conside­
dade, não havia nenhum conhecimento rado aquelas que provam que há um
que eu tivesse que fosse causa da ver­ Deus, a razão de duvidar que depende
dade de meu julgamento. somente desta opinião é bem frágil e,
4. Mas quando considerava alguma por assim dizer, metafísica. Mas, a fim
coisa de muito simples e de muito fácil de poder afastá-la inteiramente, devo
no tocante à Aritmética e à Geometria, examinar se há um Deus, tão logo a
por exemplo, que dois e três juntos ocasião se apresente; e, se achar que
produzem o número cinco, e outras existe um, devo também examinar se
coisas semelhantes, não as concebia eu ele pode ser enganador: pois, sem o
pelo menos bastante claramente para conhecimento dessas duas verdades,
assegurar que eram verdadeiras? Cer­ não vejo como possa jamais estar certo
tamente, se julguei depois que se podia de coisa alguma. E a fim de que eu
duvidar destas coisas, não foi por possa ter a ocasião de examinar isto
outra razão senão porque me veio ao
50 “Produz-se, em consequência, uma oscilação
espírito que talvez algum Deus tivesse entre o fato e o direito, entre a certeza do fato de
podido me dar uma tal natureza que eu que sou quando penso e a dúvida absoluta que man­
me enganasse mesmo no concernente tém dé direito a hipótese do Deus enganador. . .
às coisas que me parecem as mais Assim, enquanto o Cogito constitui o único ponto
de apoio para a ciência, a ciência. . . é impossível,
manifestas. Mas todas as vezes que pois, desde que meu espírito deixa de fixar-se no
esta opinião acima concebida do sobe-49 Cogito para se dirigir alhures, este ponto de apoio
se abisma na noite da dúvida universal, arrastando
consigo toda a cadeia das razões.” (Guéroult, Des­
49 A respeito desta regra, cf. 561. cartes, I, pâgs. 155-157.)
MEDITAÇÕES 109

sem interromper a ordem de meditação 7. Agora54, no que concerne às


que me propus, que é de passar grada­ idéias, se as consideramos somente
tivamente das noções que encontrar nelas mesmas e não as relacionamos a
em primeiro lugar no meu espírito para alguma outra coisa, elas não podem,
aquelas que aí poderei achar depois 51, propriamente falando, ser falsas; pois,
cumpre aqui que eu divida todos os: quer eu imagine uma cabra ou uma
meus pensamentos em certos gêneros é quimera, não é menos verdadeiro que
considere em quais destes gêneros hâ eu imagino tanto uma quanto a outra.
propriamente verdade ou erro. 8. Não é preciso temer também que
6. Entre meus pensamentos, alguns, se possa encontrar falsidade nas afec­
são como as imagens das coisas, e só ções ou vontades; pois, ainda que
àqueles convém propriamente o nome possa desejar coisas más, ou mesmo
que jamais existiram, não é por isso,
de idéia 5 2: como no momento em que
todavia, menos verdade que as desejo.
eu represento um homem ou uma qui­
mera, ou o céu, ou um ano, ou mesmo: 9. Assim, restam tão-somente os
juízos, em relação aos quais eu devo
Deus. Outros, além disso, têm algumas;
outras formas: como, no momento em’ acautelar-me para não me enganar5 5.
que eu quero, que eu temo, que eu aflr-; Ora, o principal erro e o mais comum
mo ou que eu nego, então concebo' que se pode encontrar consiste em que
eu julgue que as idéias que estão em
efetivamente uma coisa como o sujeito
mim são semelhantes ou conformes às
da ação de meu espírito, mas acres­
coisas que estão fora de mim; pois,
cento também alguma outra coisa por
certamente, se eu considerasse as
esta ação à idéia que tenho daquela
idéias apenas como certos modos ou
coisa53; e deste gênero de pensamen­
formas de meu pensamento, sem que­
tos, uns são chamados vontades oii
rer relacioná-las a algo de exterior,
afecções, e outros juízos.
mal5 6 poderiam elas dar-me ocasião
de falhar.
s 1 A fim de varrer definitivamente a dúvida, procu- 10. Ora, destas idéias, umas me
rar-se-á a “ocasião” de provar que há um Deus e'
que ele não é enganador, mas sem interromper, no: parecem5 7 ter nascido comigo, outras
entanto, a cadeia das razões. Donde, até o § 15, o ser estranhas e vir de. fora, e as outras
exame minucioso dos dados em meu poder sobre os ser feitas e inventadas por mim
quais eu poderia eventualmente basear minha
prova.
52 Esta definição da idéia como cópia na qual se 5 4 Segunda classificação: quais são, dentre os con­
anuncia um original (a idéia-quadro) reaparecerá: teúdos anteriores, aqueles em que podemos nos
muitas vezes nesta Meditação. Importa tanto mais' fiar? Todos, salvo os juízos.
sublinhar que os termos “como uma imagem” cons-i 5 5 Enquanto conteúdo de pensamento, o juízo é
tituem apenas uma comparação destinada a expli­ tão certo como os outros (parece-me que eu jul­
car a função da idéia. Não se trata, de forma algu­ go...). Mas cumpre excluí-lo da indagação, na me­
ma, de assimilar a idéia intelectual à imagenr dida em que consiste em afirmar ou em negar sem
sensível. Cf. o protesto contra Hobbes nas Terceiras\ fundamento, que o conteúdo de minha idéia corres­
Respostas: “Pelo nome de idéia, ele quer somente: ponde a uma realidade fora dela. Ou ainda: afirma
que se entendam aqui as imagens das coisas mate-; ou nega que o conteúdo de uma idéia (sua “reali­
riais pintadas na fantasia corpórea; e sendo isso; dade objetiva”) possui um walor objetivo, sem exa­
suposto, é-lhe fácil mostrar que não se pode ter, minar previamente o conteúdo desta idéia.
nenhuma idéia própria e verdadeira de Deus nem dei 5 6 Restrição que tem sua importância. Tomar-se-á
um anjo. . assim como G 2: “Pelo nome de compreensível no § 19 desta Meditação.
idéia...” Sobre a novidade do sentido dado por 5 7 “Parecem” indica que Descartes se coloca ao
Descartes à palavra “idéia”, cf. Gilson, Discours, nível do senso comum. Aqui, com efeito, começa a
pág. 319. ; crítica da classificação das idéias segundo o senso
53 Por esta primeira classificação, distinguem-se: comum e dos preconceitos que ela implica —<é o
l.° as idéias; 2.° os conteúdos nos quais uma ação' “primeiro caminho” possível da investigação; o
do espírito se acrescenta às idéias. segundo inicia-se no § 15.
110 DESCARTES
mesmo. Pois, que eu tenha a faculdade e convincentes 5 8. Quando digo que me
de conceber o que é aquilo que geral­ parece que isso me é ensinado pela
mente se chama uma coisa ou uma ver­ natureza59, entendo somente por essa
dade, ou um pensamento, parece-me palavra natureza uma certa inclinação
que não o obtenho em outra parte que me leva a acreditar nessa coisa, e
senão em minha própria natureza; mas não uma luz natural que me faça
se ouço agora algum ruído, se vejo o conhecer que ela é verdadeira. Ora,
sol, se sinto calor, até o presente jul- essas duas coisas diferem muito entre
guei que estes sentimentos procediam si; pois eu nada poderia colocar em dú­
de algumas coisas que existem fora de vida daquilo que a luz natural me reve­
mim; e enfim parece-me que as sereias, la ser verdadeiro, assim como ela me
os hipogrifos e todas as outras quime­ fez ver, há pouco, que, do fato de eu
ras semelhantes são ficções e inven­ duvidar, podia concluir que existia. E
ções de meu espírito. Mas também tal­ não tenho em mim outra faculdade, ou
vez eu possa persuadir-me de que poder, para distinguir o verdadeiro do
todas essas idéias são do gênero das falso, que me possa ensinar que aquilo
que eu chamo de estranhas e que vêm que essa luz me mostra como verda­
de fora ou que nasceram todas comigo deiro não o é, e na qual eu me possa
ou, ainda, que foram todas feitas por fiar tanto quanto nela. Mas, no que se
mim; pois ainda não lhes descobri cla- refere a inclinações que também me
ramente a verdadeira origem. E o que parecem ser para mim naturais, notei
devo fazer principalmente neste ponto freqüentemente, quando se tratava de
é considerar, no tocante àquelas que escolher entre as virtudes e os vícios,
me parecem vir de alguns objetos loca­ que elas não me levaram menos ao mal
lizados fora de mim, quais as razões do que ao bem; eis por que não tenho
que me obrigam a acreditá-las seme­ motivo de segui-las tampouco no refe­
lhantes a esses objetos. rente ao verdadeiro e ao falso.
13. E, quanto à outra razão, segun­
11. A primeira dessas razões é que do a qual essas idéias devem provir de
me parece que isso me é ensinado pela alhures, porquanto não dependem de
natureza; e a segunda, que experi­ minha vontade, tampouco a acho mais
mento em mim próprio que essas convincente60. Pois, da mesma forma
idéias não dependem, de modo algum, que as inclinações, de que falava há
de minha vontade; pois amiúde se pouco, se encontram em mim, não obs­
apresentam a mim mau grado meu, tante não se acordarem sempre com
como agora, quer queira quer não, eu minha vontade, e assim talvez haja em
sinto calor, e por esta razão persuado- mim alguma faculdade ou poder pró­
me de que este sentimento ou esta idéia prio para produzir essas idéias sem
de calor é produzido em mim por algo
diferente de mim mesmo, óu seja, pelo 58 Começo da crítica do senso comum, que
calor do fogo ao pé do qual me encon­ compreenderá três argumentos.
59 Primeiro argumento: impossibilidade de confiar
tro. E nada vejo que pareça mais num instinto pretensamente “natural”. . .
razoável do que julgar que essa coisa 60 Segundo argumento: . . .nem na independência
aparente das idéias adventícias em relação à minha
estranha envia-me e imprime em mim vontade, para concluir que essas idéias têm certa­
sua semelhança, mais do que qualquer mente por origem uma coisa exterior a mim. É de
notar que a idéia de uma faculdade desconhecida
outra coisa. que era rejeitada na Meditação Segunda, porque ela
12. Agora é preciso que eu veja se não podia valer contra uma idéia clara e distinta, é
aqui admitida. Mas é para mostrar que nada posso
estas razões são suficientemente fortes concluir na ausência de uma idéia clara e distinla.
MEDITAÇÕES 111

auxílio de quaisquer coisas exteriores, formas de pensar, não reconheço entre


embora ela não me seja ainda conheci­ elas nenhuma diferença ou desigual­
da; como, com efeito, sempre me pare­ dade, e todas parecem provir de mim
ceu até aqui que, quando durmo, elas de uma mesma maneira; mas, conside­
se formam em mim sem a ajuda dos rando-as como imagens, dentre as
objetos que representam. E, enfim61,; quais algumas representam uma coisa
ainda que eu estivesse de acordo que; e as qtitras uma outra, é evidente que
elas são causadas por esses objetos, elas são bastante diferentes entre si.
não é uma conseqüência necessária; Pois, com efeito, aquelas que me repre­
que lhes devam ser semelhantes. Peloi sentam substâncias são, sem dúvida,
contrário, notei amiúde, em muitos' algo mais e contêm em si (por assim
exemplos, haver uma grande diferença falar) mais realidade objetiva, isto é,
entre o objeto e sua idéia. Como, por participam, por representação, num
exemplo, encontro em meu espírito maior número de graus de ser ou de
duas idéias do sol inteiramente diver­ perfeição do que aquelas que repre­
sas: uma toma sua origem nos sentidos, sentam apenas modos ou acidentes63.
e deve ser colocada no gênero daquelas Além do mais, aquela pela qual eu
que disse acima provirem de fora, e concebo um Deus soberano, eterno,
pela qual o sol me parece extrema­ infinito, imutável, onisciente, onipo­
mente pequeno; a outra é tomada nas tente e criador universal de todas as
razões da Astronomia, isto é, em cer­ coisas que estão fora dele; aquela,
tas noções nascidas comigo, ou, enfim, digo, tem certamente em si mais reali­
é formada por mim mesmo, de qual­ dade objetiva do que aquelas pelas
quer modo que seja, e pela qual o sol quais as substâncias finitas me são
me parece muitas vezes maior do que a! representadas.
16. Agora, é coisa manifesta pela
terra inteira. Por certo, essas duas'
idéias que concebo do sol não podem: 61 Terceiro argumento. É o mais importante.
ser ambas semelhantes ao mesmo sol; Supondo-se que a idéia tem de fato por origem uma
e a razão me faz crer que aquela que coisa exterior, daí não resulta, no entanto, que ela
lhe seja semelhante. O juízo sobre a origem (X é
vem imediatamente de sua aparência e causa de Y) não autoriza, de modo algum, o juízo
a que lhe é mais dessemelhante. | sobre o valor objetivo (Y assemelha-se a X). Assim
14. Tudo isso me leva a conhecer fica definitivamente afastada a “via” do senso
comum.
suficientemente que até esse momento 62 “Eu não poderia dizer que ainda se apresenta
não foi por um julgamento certo e outra via se não houvesse anteriormente rejeitado
premeditado, mas apenas por um cego todas as outras e, por este meio, preparado o leitor
a melhor conceber o que eu tinha a escrever.” (A.
e temerário impulso, que acreditei T,, V, 354). Tendo decidido eliminar os “juízos” de
haver coisas fora de mim, e diferentes que parte o senso comum, partiremos das idéias
de meu ser, as quais, pelos órgãos dé somente, e perguntaremos: existem idéias tais que
não posso deixar de lhes reconhecer valor objetivo?
meus sentidos ou por qualquer outro Por “ocasião” desta pesquisa é que será demons­
meio que seja, enviam-me suas idéias trada a existência de Deus.
ou imagens e imprimem em mim suas 63 Cf. G 23. — A “diferença” entre os conteúdos
não designa apenas a diferença desses conteúdos
semelhanças. j_ mesmos (uma cadeira, um pedaço de cera, um gene­
15. Mas há ainda uma outra via62 ral), mas também a diferença de “seus graus de ser
ou de perfeição”, conforme o objeto que represen­
para pesquisar se, entre as coisas das tam. “Perfeição” designa um bem que se deve natu­
quais tenho em mim! as idéias, há algu­ ralmente possuir e, como tal, pertence pois ao ser
mas que existem fora de mim. A saber, (cf. Gilson, Discours, 317). ■—■ Esta diferença quan­
titativa entre os graus de ser dos conteúdos possibi­
caso essas idéias sejam tomadas soH litará a aplicação do princípio de causalidade, enun­
mente na medida em que são certas ciado adiante.
112 DESCARTES

luz natural que deve haver ao menos zido em um objeto que dele era priva­
tanta realidade na causa eficiente e do anteriormente se não for por uma
total quanto no seu efeito: pois de onde coisa que seja de uma ordem, de um
é que o efeito pode tirar sua realidade grau ou de um gênero ao menos tão
senão de sua causa? E como poderia perfeito quanto o calor, e assim os
esta causa lha comunicar se não a outros. Mas ainda, além disso, a idéia
tivesse em si mesma 6 4 ? do calor, ou da pedra, não pode estar
17. Daí decorre 6 5 não somente que em mim se não tiver sido aí colocada
o nada não poderia produzir coisa por alguma causa que contenha em si
alguma, mas também que o que é mais ao menos tanta realidade quanto aque­
perfeito, isto é, o que contém em si la que concebo no calor ou na pedra.
mais realidade, não pode ser uma Pois,, ainda que essa causa não trans­
decorrência e uma dependência do mita à minha idéia nada de sua reali­
menos perfeito. E esta verdade não é dade atual ou formal, nem por isso se
somente clara e evidente nos seus efei­ deve imaginar que essa causa deva ser
tos, que possuem essa realidade que os menos real; mas deve-se saber que,
filósofos chamam de atual ou formal, sendo toda idéia uma obra do espírito,
mas também nas idéias onde se consi­ sua natureza é tal que não exige de si
dera somente a realidade que eles cha­ nenhuma outra realidade formal além
mam de objetiva: por exemplo, a pedra da que recebe e toma de empréstimo
que ainda não foi, não somente não do pensamento ou do espírito, do qual
pode agora começar a ser, se não for ela é apenas um modo, isto é, uma
produzida por uma coisa que possui maneira ou forma de pensar. Ora, a
em si formalmente, ou eminentemen­ fim de que uma idéia contenha uma tal
te6 6, tudo o que entra na composição realidade objetiva de preferência a
da pedra, ou seja, que contém em si as outra, ela o deve, sem dúvida, a algu­
mesmas coisas ou outras mais excelen­ ma causa, na qual se encontra ao
tes do que aquelas que se encontram menos tanta realidade formal quanto
na pedra; e o calor não pode ser produ­ esta idéia contém de realidade objeti­
va6 7. Pois, se supomos que existe algo
6 4 Primeiro princípio invocado como “manifesto
pela luz natural”: princípio de causalidade (cf. 211 e
G 20, 21). Mas será este princípio, enunciado geral­ 67 Do ponto de vista de sua realidade formal, as
mente, aplicável ao caso das idéias que nos preocu­ idéias são simplesmente conteúdos do pensamento;
pam? Daí a necessidade de completá-lo com o prin­ mas, do ponto de vista de sua realidade objetiva,
cípio expresso no parágrafo seguinte, que Guéroult “aquela não há de satisfazer quem disser (somente)
denomina: “princípio de correspondência da idéia e que o próprio entendimento é a causa delas”. (Pri-
de seuideatum”. ■ meiras Respostas.) Trata-se de uma inovação de
6 5 Nesse parágrafo difícil, mostra-se que o princí­ Descartes. Para a Filosofia tomista, “não havia pro­
pio de causalidade vale tanto no caso de uma “reali­ blema especial da causa do conteúdo das idéias. . .
dade atual ou formal” quanto no caso de uma “rea­ porque este conteúdo, não sendo considerado como
lidade objetiva”. Traduzamos. Seja uma substância do ser, não requeria nenhuma causa própria. . .
existente em ato: uma pedra, um homem. É evidente Nessas condições, o ser formal de meu conceito re­
que há na causa que a prodifziu pelo menos tanta quer uma causa (o intelecto que apreende- a forma
realidade quanto nesta substância mesma. Seja da pedra), mas o ser objetivo de meu conceito não a
agora a idéia que eu tenho desta substância (isto é, requer”. (Gilson, Discours, 322.) Com Descartes,
uma “realidade objetiva” e não mais uma “reali­ ao contrário, coloca-se uma questão que para a
dade atual ou formal”). É igualmente evidente que Escolástica não tinha sentido: posso fiar-me na
há no ser existente (“atual ou formalmente”) que. é idéia para afirmar o que se me aparece através dela?
causa desta idéia (ou desta “realidade objetiva”) “Como é que o sendo para nós é o próprio sendo?",
pelo menos tanta realidade quanto nesta idéia traduz Guéroult, ao fim de seu livro. (Op. cit., II,
mesma. 305.) Através dos termos da ontologia medieval, é a
6 8 Uma causa contém “formalmente” seu efeito ontologia do que se convencionou chamar “o idea­
quando ela lhe é homogênea, e o contém “eminente­ lismo moderno”., de Fichte a Husserl que aqui se
mente”, no caso contrário. Cf. G 4. desenha.
MEDITAÇÕES 113

na idéia que não se encontra em sua tiradas, mas que jamais podem conter
causa, cumpre, portanto, que ela obte­ algo de maior ou de mais perfeito 7°.
nha esse algo do nada; mas, por imper­
feita que seja essa maneira de ser pela 18. E quanto mais longa e cuidado­
qual uma coisa é objetivamente ou por samente examino todas estas coisas,
representação no entendimento por sua tanto mais clara e distintamente reco­
idéia68, decerto não se pode dizer, nó nheço que elas são verdadeiras. Mas,
entanto, que essa maneira ou essa enfim, que concluirei de tudo isso?
forma não seja nada, nem por conse­ Concluirei que, se a realidade objetiva
guinte que essa idéia tire sua origem do de alguma de minhas idéias é tal que
nada. Não devo também duvidar que eu reconheça claramente que ela não
seja necessário que a realidade esteja está em mim nem formal nem eminen­
formalmente nas causas de minhas temente e que, por conseguinte, não
idéias, embora a realidade que eu con­ posso, eu mesmo, ser-lhe a causa, daí
sidero nessas idéias seja somente obje­ decorre necessariamente que não exis­
tiva, nem pensar que basta que essa to sozinho no mundo, mas que há
realidade se encontre objetivamente em ainda algo que existe e que é a causa
suas causas69; pois, assim como essa desta idéia; ao passo que, se não se
maneira de ser objetivamente pertence encontrar em mim uma tal idéia, não
às idéias, pela própria natureza delas,! terei nenhum argumento que me possa
do mesmo modo a maneira ou forma convencer e me certificar da existência
de ser formalmente pertence às causas de qualquer outra coisa além de mim
dessas idéias (ao menos às primeiras e mesmo; pois procurei-os a todos cui­
principais) pela própria natureza delas. dadosamente e não pude, até agora,
E ainda que possa ocorrer que uma encontrar nenhum 71.
idéia dê origem a uma outra idéia, isso;
todavia não pode estender-se ao infini­ 19. Ora, entre essas idéias, além
to, mas é preciso chegar ao fim a uma daquela que me representa a mim
primeira idéia, cuja causa seja um mesmo, sobre a qual não pode haver
como padrão ou original, na qual toda aqui nenhuma dificuldade, há uma
a realidade ou perfeição esteja contida outra que me representa um Deus, ou­
formalmente e em efeito, a qual só se tras as coisas corporais e inanimadas,
encontre objetivamente ou por repre­ outras os anjos, outras os animais,
sentação nessas idéias. De sorte que a outras, enfim, que me representam ho­
luz natural me faz conhecer evidente­ mens semelhantes a mim. Mas, no que
mente que as idéias são em mim como se refere às idéias que me representam
quadros, ou imagens, que podem na outros homens ou animais, ou anjos,
verdade facilmente não conservar a
perfeição das coisas de onde foram 70 Conhecido pela luz natural, este princípio,
como o anterior, faz parte dessas noções primitivas
que escapam ao domínio do Grande Embusteiro.
68 Hâ imperfeição na medida em que o conteúdo Isso não significa que as idéias sejam efetivamente
representativo é privado da existência própria aó as imagens das coisas, porém me permite apenas
objeto que representa. Cf. Primeiras Respostas: “A aplicar o princípio de causalidade entre uma reali­
maneira de ser pela qual uma coisa existe objetiva­ dade objetiva e uma realidade atual.
mente ou por representação no entendimento por 71 Recapitulação da exposição precedente (desde o
sua idéia é imperfeita”. § 15) e posição do problema: encontrarei eu uma
69 Outra objeção possível: a idéia não terá como idéia cuja realidade objetiva seja tal que me seja
causa outra idéia e assim sucessivamente ao infini­ absolutamente impossível imputar a sua causa a
to? Resposta: esta regressão é possível, mas, cedo meu exclusivo pensamento? Estapositio quaestionis
ou tarde, chega-se a uma causa que possui uma reali­ exige, pois, uma nova enumeração e classificação
dade “formal ou atual”. dos diversos gêneros de idéias.
114 DESCARTES

concebo facilmente que podem ser for­ falsidade material74, a saber, quando
madas pela mistura e composição de elas representam o que nada é como se
outras idéias que tenho das coisas cor­ fosse alguma coisa. Por exemplo, i as
porais e de Deus, ainda que não hou­ idéias que tenho do calor e do frio são
tão pouco claras e tão pouco distintas,
vesse, fora de mim, no mundo, outros qué por seu intermédio não posso dis­
homens, nem quaisquer animais ou cernir se o frio é somente uma priva­
anjos72. E quanto às idéias das coisas ção do calor ou o calor uma privação
corporais, nada reconheço de tão gran­ do frio, ou ainda se uma e outra são
de nem de tão excelente que não me qualidades reais ou não o são; e visto
pareça poder provir de mim mesmo; que, sendo as idéias como que ima­
pois, se as considero de mais perto, e gens, não pode haver nenhuma que não
se as examino da mesma maneira nos pareça representar alguma coisa,
como examinava, há pouco, a idéia da se é certo dizer que o frio nada é senão
cera, verifico que pouquíssima coisa privação do calor, a idéia que mo
nela se encontra que eu conceba clara representa como algo de real e de posi­
e distintamente: a saber, a grandeza ou tivo será sem despropósito chamada
a extensão em longura, largura e falsa, e assim outras idéias semelhan­
tes; às quais certamente não é neces­
profundidade; a figura que é formada sário que eu atribua outro autor exceto
pelos termos e pelos limites dessa eu mesmo. Pois, se elas são falsas, isto
extensão; a situação que os corpos é, se representam coisas que não exis­
diferentemente figurados guardam tem, a luz natural me faz conhecer que
entre si; e o movimento ou a modifica­ procedem do nada, ou seja, que estão
ção dessa situação; aos quais podemos em mim apenas porque falta algo à
acrescentar a substância, a duração e o minha natureza e porque ela não é
número73. Quanto’ às outras coisas, inteiramente perfeita. E se essas idéias
como a luz, as cores, os sons, os odo­ são verdadeiras, todavia, já que me
res, os sabores, o calor, o frio e as ou­ revelam tão pouca realidade que não
tras qualidades que caem sob o tato, posso discernir nitidamente a coisa
representada do não-ser, não vejo
encontram-se em meu pensamento
razão pela qual não possam ser produ­
com tanta obscuridade e confusão que zidas por mim mesmo e eu não possa
ignoro mesmo se são verdadeiras ou ser o seu autor 7 5.
falsas e somente aparentes, isto é, se as
idéias que concebo dessas qualidades 7 4 Cf. a nossa nota ao § 9. Além da falsidade for­
mal, que é caso do juízo, temos a falsidade material,
são, com efeito, as idéias de algumas devida ao fato de certas idéias (sensíveis) serem ape­
coisas reais, ou se não me representam nas pseudo-idéias, isto é, se apresentarem falsa­
apenas seres quiméricos que não mente a mim como dotadas de um caráter represen­
tativo. Mas existirão, no sentido estrito, idéias
podem existir. Pois, ainda que eu tenha completamente falsas por natureza? Não é aqui o
notado acima que só nos juízos é que lugar de decidi-lo. O fim do parágrafo levar-nos-á
simplesmente a observar que, mesmo que essas
se pode encontrar a falsidade formal e idéias fossem verdadeiras idéias, comportam pelo
verdadeira, pode, no entanto, ocorrer menos um mínimo de realidade objetiva e, como
que se encontre nas idéias uma certa tais, poderíam muito bem ser produzidas por mim
mesmo. É a única questão que nos interessa aqui.
7 5 Logo:B)Elxclusão das idéias das qualidades sen­
72 A) Exclusãodas realidades “animadas” (no senti­ síveis corpóreas. Em 525, Descartes chama a aten-
do não estritamente cartesiano, visto que são incluí­ çõ de Gassendi para o fato de nunca ter dito que as
das as idéias dos animais). idéias das coisas sensíveis derivavam do espírito:
73 O exame das idéias claras e distintas das coisas “Somente mostrei naquele ponto não haver nelas
“corporais e inanimadas” é remetido ao parágrafo tanta realidade. . . que se deva concluir que elas
seguinte. não podiam derivar do espírito só”.
MEDITAÇÕES 115

20. Quanto às idéias claras e distin­ somente certos modos da substância, e


tas que tenho das coisas corporais, hâ como que as vestes sob as quais a
algumas dentre elas que, parece, pude substância corporal nos aparece, e que
tirar da idéia que tenho de mim sou, eu mesmo, uma substância, parece
mesmo7*6, como a que tenho da subs­ que elas podem estar contidas em mim
tância, da duração, do número e de ou­ èminentemente 7 9.
tras coisas semelhantes. Pois, quando 22. Portanto, resta tão-somente a
penso que a pedra é uma substância,; idéia de Deus, na qual é preciso consi­
ou uma coisa que é por si capaz de derar se há algo que não possa ter pro­
existir, e em seguida que sou uma subs­ vindo de mim mesmo? Pelo nome de
tância, embora eu conceba de fato que í Deus entendo uma substância infinita,
sou uma coisa pensante e não extensa, eterna, imutável, independente, onis­
e que a pedra, ao contrário, é uma ciente, onipotente e pela qual eu pró­
coisa extensa e não pensante, e que, prio e todas as coisas que são (se é ver­
assim, entre essas duas concepções há dade que há coisas que existem) foram
uma notável diferença, elas parecem,, criadas e produzidas. Ora, essas vanta­
todavia, concordar na medida em que; gens são tão grandes e tão eminentes
representam substâncias 7 7. Da mesmaí que, quanto mais atentamente as consi­
maneira, quando penso que sou agora; dero, menos me persuado de que essa
e me lembro, além disso, de ter sido: idéia possa tirar sua origem de mim
outrora e concebo mui diversos pensa­ tão-somente. E, por conseguinte, é pre­
mentos, cujo número conheço, então ciso necessariamente concluir, de tudo
adquiro em mim as idéias da duração e o que foi dito antes, que Deus existe80;
do número que, em seguida, posso pois, ainda que a idéia da substância
transferir a todas as outras coisas quei esteja em mim, pelo próprio fato de ser
quiser78. : eu uma substância, eu não teria, toda­
21. Quanto às outras qualidades de via, a idéia de uma substância infinita,
cujas idéias são compostas as coisas eu que sou um ser finito, se ela não
corporais, a saber, a extensão, a figura; tivesse sido colocada em mim por al-
a situação e o movimento de lugar,
verdade que elas não estão formal­ 7 9 D)'Exclusão da segunda classe das idéias das coi­
mente em mim, posto que sou apenas sas corporais, isto é, das idéias “dos atributos que
pertencem às coisas às quais são atribuídas”. (Prin­
uma coisa que pensa; mas, já que são cípios, I, 57.)
7 z
80 Aplicação do mesmo princípio de causalidade.
7 6 C) Exclusão,de umá primeira classe de idéias das Contendo um máximo de realidade objetiva, a idéia
coisas corporais. i de Deus envia necessariamente a uma causa que
conterá, no mínimo, um máximo absoluto de reali­
7 7 “A noção que temos da substância criada refe- dade formal. Como eu não posso ser esta causa, é
re-se da mesma maneira a todas, isto é, àquelas que mister concluir que Deus existe. Até agora procura­
são imateriais assim como àquelas que são mate­ va-se apenas, aparentemente, que idéia em mim
riais ou corporais; pois, para entender que são subs-- podia ser reconhecida como investida de um valor
tâncias, é preciso apenas perceber que podem existir objetivo. Acabamos de achá-la, mas achamos ao
sem a ajuda de qualquer coisa criada.” (Princípios^ mesmo tempo a primeira prova da existência de
I, 52.) Esta univocidade, de que se lança mão aqui) Deus pelos efeitos. Este § 22 constitui uma volta
vale apenas para as “substâncias criadas”, pois á decisiva. Pois a quarta verdade que acabamos assim
palavra “substância”, em compensação, jâ não terri de estabelecer não é da mesma ordem que as prece­
o mesmo sentido quando aplicada a Deus e às cria­ dentes: ela confere, por exemplo, sua verdade ao
turas. (Ibid., § 51.) Cogito, ainda que eu não pense nele atualmente. Ela
78 Cf. Princípios, I, 55: “Pensamos somente que a abole o poder do Grande Enganador; para nos
duração de cada coisa é um modo ou uma maneira transferir ao de um Deus garante da verdade de mi­
como consideramos cada coisa enquanto ela conti­ nhas idéias claras e distintas. Veja-se, a respeito
nua sendo”; e 57. deste ponto, a obra de Guéroult.
116 DESCARTES

guma substância que fosse verdadeira­ semelhantes: pois, ao contrário, sendo


mente infinita81. esta idéia mui clara e distinta, e con­
23. E não devo imaginar82 que não tendo em si mais realidade objetiva do
concebo o infinito por uma verdadeira que qualquer outra, não há nenhtíuna
idéia, mas somente pela negação do que seja por si mais verdadeira nem
que é finito, do mesmo modo que com­ que possa ser menos suspeita de erro e
preendo o repouso e as trevas pela de falsidade.
negação do movimento e da luz: pois, 25. A idéia, digo, desse ser sobera-
ao contrário, vejo manifestamente que namente perfeito e infinito é inteira­
há mais realidade na substância infi­ mente verdadeira; pois, ainda que tal­
nita do que na substância finita e, por­ vez se possa fingir que um tal ser não
tanto, quej de alguma maneira, tenho existe, não se pode fingir, todavia, que
em mim a noção do infinito anterior­ sua idéia não me representa nada de
mente à do finito, isto é, de Deus antes real, como disse há pouco da idéia do
que de mim mesmo. Pois, como seria frio.
possível que eu pudesse conhecer que 26. Esta mesma idéia é também mui
duvido e que desejo, isto é, que me clara e distinta porque tudo o que meu
falta algo e que não sou inteiramente espírito concebe clara e distintamente
perfeito, se não tivesse em mim nenhu­ de real e de verdadeiro, e que contém
ma idéia de um ser mais perfeito que o em si alguma perfeição, está contido e .
meu, em comparação ao qual eu encerrado inteiramente nessa idéia.
conhecería as carências de minha 27. E isto não deixa de ser verda­
natureza83? deiro, ainda que ,eu não compreenda o
24. E não se pode dizer que esta infinito, ou mesmo que se encontre em
idéia de Deus talvez seja material­ Deus uma infinidade de coisas que eu
mente falsa, e que, por conseguinte, eu não possa compreender, nem talvez
a possa ter do nada, isto é, que ela também atingir de modo algum pelo
possa estar em mim pelo fato de eu ter pensamento: pois é da natureza do infi­
carência, como disse acima, das idéias nito que minha natureza, que é finita e
de calor e de frio e de outras coisas limitada,' não possa compreendê-lo; e
basta que eu conceba bem isto, e que
81 “Ê manifesto que tudo o que concebemos ser em julgue que todas as coisas que concebo
Deus dessemelhante às coisas externas não pode vir claramente, e nas quais sei que há al­
ao nosso pensamento por intermédio destas pró­
prias coisas, mas somente por intermédio da causa guma perfeição, e talvez também uma
desta diversidade, isto é, Deus.” (Terceiras Respos­ infinidade de outras que ignoro, estão
tas.) em Deus formal ou eminentemente,
82 Aqui começa, até o § 29, uma reflexão sobre a
prova qué acabo de obter: sua certeza é inabalável. para que a idéia que dele tenho seja a
83 Cf. 526 e 563. — Sobre a precessão da noção mais verdadeira, a mais clara e a mais
de infinito com respeito à noção de finito, cf. Col.
com Burman (A. T., V, 153) e, sobretudo, o seguinte distinta dentre todas as que se acham
texto que nos indica a orientação antidialética de em meu espírito8 4.
•Ama. tal doutrina: “Nós não temos a intelecção do 28. Mas é possível também que eu
infinito por negação da limitação; e do fato de a
limitação conter a negação do infinito infere-se erra- seja algo mais do que imagino ser e
damente que a negação da limitação contém o que todas as perfeições que atribuo à
conhecimento do infinito; posto que aquilo pelo que natureza de um Deus estejam de algum
o infinito difere do finito é real e positivo, mas, ao
contrário, a limitação pela qual o finito difere 'do
infinito é não-ser ou negação do ser; ora, o que não 8 4 Não só posso conhecer o infinito sem o “com­
é não pode conduzir ao conhecimento do que é; preender”, mas o conhecimento desta incompreensi-
mas, inversamente, sua negação deve ser percebida bilidade me concede um conhecimento verdadeiro e
a partir do conhecimento da coisa”. (A. T., III, pág. inteiro do infinito, embora eu tenha apenas um
427.) conhecimento parcial do que ele contém.
MEDITAÇÕES 117

modo em mim em potência, embora capaz de adquirir algum maior acrés­


ainda não se produzam e não façam cimo. Mas concebo Deus atualmente
surgir suas ações. Com efeito, já perce­ infinito em tão alto grau que nada se
bo que meu conhecimento aumenta e pode acrescentar à soberana perfeição
se aperfeiçoa pouco a pouco e nada que ele possui. E, enfim, compreendo
vejo que o possa impedir de aumentar muito bem que o ser objetivo de uma
cada vez mais até o infinito8 5; pois, idéia não pode ser produzido por um
sendo assim acrescido e aperfeiçoado, ser que existe apenas em potência, o
nada vejo que impeça que eu possa qual, propriamente falando, não é
adquirir, por seu meio, todas as outras nada, mas somente por um ser formal
perfeições da natureza divina; e, enfim, ou atual.
parece que o poder que tenho para a 29. E por certo nada vejo em tudo o
aquisição dessas perfeições, se ele exis­ que acabo de dizer que não seja muito
te em mim, pode ser capaz de aí impri­ fácil de conhecer pela luz natural a
mir e introduzir suas idéias. Todavia, todos os que quiserem pensar nisto
olhando um pouco mais de perto, reco­
nheço que isto não pode ocorrer; pois, cuidadosamente: mas, quando abrando
primeiramente, ainda que fosse verda­ um pouco minha atenção, achando-se
de que meu conhecimento adquire meu espírito obscurecido e como que
todos os dias novos graus de perfeição cegado pelas imagens das coisas sensí­
e que houvesse em minha natureza veis, não se lembra facilmente da razão
muitas coisas em potência que não pela qual a idéia que tenho de um ser
existem ainda atualmente, todavia mais perfeito que o meu deva necessa­
essas vantagens não pertencem e não riamente ter sido colocada em mim por
se aproximam de maneira alguma da um ser que seja de fato mais perfei­
idéia que tenho da Divindade, na qual to8 6.
nada se encontra em potência, mas 30. Eis por que desejo passar adian­
onde tudo é atualmente e efetivamente. te e considerar se eu mesmo, que tenho
E não será mesmo um argumento infa­ essa idéia de Deus, poderia existir, no
lível e muito seguro de imperfeição em caso de não haver Deus. E,pergunto,
meu conhecimento o fato de crescer ele de quem tirarei minha existência? Tal­
pouco a pouco e aumentar gradativa­ vez de mim mesmo, ou de meus pais,
mente? Demais, ainda que meu conhe­ ou ainda de quaisquer outras causas
cimento aumentasse progressivamente, menos perfeitas que Deus; pois nada se
nem por isso deixo de conceber que ele pode imaginar de mais perfeito, nem
não poderia ser atualmente infinito, mesmo de igual a ele.
porquanto jamais chegará a tão alto 31. Ora, se eu fosse independente de
grau de perfeição que não seja ainda todo outro ser, e fosse eu próprio o
autor de meu ser87, certamente não
8 5 Daí porque Descartes não poderá perceber duvidaria de coisa alguma, não mais
contradição na noção do “maior de todos os núme­ concebería desejos e, enfim, não me
ros”: o que me impede de enumerar indefinidamente
ou talvez mesmo infinitamente? Mas poderei pôr no faltaria perfeição alguma; pois eu me
mesmo plano este infinito que o meu conhecimento teria dado todas aquelas de que tenho
é talvez capaz de atingir (nada sei dele) e a presença alguma idéia e assim seria Deus.
atual do infinito à qual me envia a idéia de Deus? A
idéia dominante desse parágrafo é a oposição entre
o atualmente infinito e o infinito que não se pode 8 6 Sobre o sentido da segunda prova (que aqui se
distinguir do indefinido. (Cf. Princípios, I, 27.) enceta), cf. 213.
Acerca da origem e do alcance matemático dessas 8 7 Primeiro momento desta prova: posso eu ser
noções, consultar o cap. IV do Leibniz Critique de por mim mesmo?A)Admitamos que sou o autor de
Descartes, de Belaval. mim mesmo. . .
118 DESCARTES

32. E não devo imaginar que as coi­ maneira alguma das outras; e assim do
sas que me faltam são talvez mais difí­ fato de ter sido um pouco antes não se
ceis de adquirir do que aquelas das segue que eu deva ser atualmente, a
quais já estou de posse; pois, ao não ser que neste momento alguma
contrário, é bem certo que foi muito causa me produza e me crie, por assim
mais difícil que eu, isto é, uma coisa ou dizer, novamente, isto é, me conserve.
uma substância pensante, haja saído 34. Com efeito, é uma coisa muito
do nada, do que me seria adquirir as clara e muito evidente90 (para todos os
luzes e os ..conhecimentos de muitas que considerarem com atenção a natu­
coisas que ignoro, e que são apenas reza do tempo) que uma substância,
acidentes dessa substância. E, assim, para ser conservada em todos os
sem dificuldade, se eu mesmo me tives­ momentos de sua duração, precisa do
se dado esse mais de que acabo de mesmo poder e da mesma ação, que
falar, isto é, se eu fosse o autor de meu seria nècessário para produzi-la e
nascimento e de minha existência, eu criá-la de novo, caso não existisse
não me teria privado ao menos de coi­ ainda. De sorte que a luz natural nos
sas que são de mais fácil aquisição, a mostra claramente que a conservação
saber, de muitos conhecimentos de que e a criação não diferem senão com res­
minha natureza está despojada88; não peito à nossa maneira de pensar, e não
me teria tampouco privado de nenhu­ em efeito. Cumpre, pois, apenas que eu
ma das coisas que estão contidas na me interrogue a mim mesmo para
idéia que concebo de Deus, pois não saber se possuo algum poder e alguma
há nenhuma que me pareça de mais virtude que seja capaz de fazer de tal
difícil aquisição; e se houvesse alguma, modo que eu, que sou agora, seja ainda
certamente ela me parecer ia tal (su­ no futuro: pois, já que eu sou apenas
pondo que tivesse por mim todas as uma coisa pensante (ou ao menos já
que não se trata até aqui precisamente
outras coisas que possuo), porque eu
senão dessa partè de mim mesmo), se
sentiria que minha força acabaria neste
um tal poder residisse em mim, decerto
ponto e não seria capaz de alcançá-lo.
33. E ainda que possa supor que eu deveria ao menos pensá-lo e ter
talvez tenha sido sempre como sou conhecimento dele: mas não sinto ne­
nhum poder em mim91 e por isso reco­
agora89, nem por isso poderia evitar a nheço evidentemente que dependo de
força desse raciocínio, e não deixo de algum ser diferente de mim.
conhecer que é necessário que Deus 35. Poderá também ocorrer que este
seja o autor de minha existência. Pois ser de que dependo não seja aquilo que
todo o tempo de minha vida pode ser chamo Deus e que eu seja produzido
dividido em uma infinidade de partes, ou por meus pais ou por outras causas
cada uma das quais não depende de
90 Cumpre justificar a equação entre criação e
88 Ê impossível, em virtude do princípio: “Quem conservação, colocada ao fim do parágrafo anterior
pode o mais pode o menos”. Ora, é mais difícil criar e sem a qual a refutação já não disporia de força.
uma substância (mesmo finita) do que atribuir Mas trata-se de um princípio ainda imposto pela
perfeições que jamais são algo exceto acidentes (cf. descontinuidade dos momentos do tempo.
G 23). Logo, como não posso produzir o menos (as 91 Cf. o § 13, onde a hipótese de uma faculdade
perfeições de que tenho idéia), não posso produzir o desconhecida não era repelida; mas tratava-se de
mais (ser o autor do meu ser). A hipótese é absurda. uma faculdade “própria para produzir idéias”, e
89 B) Admitamos que eu exista sem causa. A aqui trata-se de uma faculdade que poderia produzir
descontinuidade e a independência dos momentos a mim próprio com meu desconhecimento. Ora,
do tempo invalidam de pronto esta hipótese, por­ dado que eu aqui me considero sempre como sendo
quanto implicam a necessidade para mim de ser nada mais do que uma coisa pensante, tal hipótese é
conservado, em cada instante, por uma causa. dessa vez inaceitável. ,
MEDITAÇÕES 119

menos perfeitas da que ele92? Muito não pode haver progresso até o infini­
ao contrário, isso não pode ser assim. to, posto que não se trata tanto aqui da
Pois, como já disse anteriormente, é causa que me produziu outrora como
uma coisa evidente que deve haver ao da que me conserva presentemente.
menos tanta realidade na causa quanto 36. Não se pode fingir também que
em seu efeito. E portanto, já que sou talvez muitas causas juntas tenham
urtia coisa pensante, e tenho em mim concorrido em parte para me produzir,
alguma idéia de Deus, qualquer que e que de uma recebi a idéia de uma das
seja, enfim, a causa que se atribua à perfeições que atribuo a Deus, e de
minha natureza, cumpre necessaria­ outra a idéia de alguma outra, de sorte
mente confessar que ela deve ser de que todas essas perfeições se encon­
igual modo uma coisa pensante e pos­ tram na verdade em alguma* parte do
suir em si a idéia de todas as perfeições Universo, mas não se acham todas jun­
que atribuo à natureza divina93. Em tas e reunidas em uma só que seja
seguida, pode-se de novo pesquisar se
Deus. Pois, ao contrário, a unidade, a
essa causa tem sua origem e sua exis­
simplicidade ou a inseparabilidade de
tência de si mesma ou de alguma outra
todas as coisas que existem em Deus é
coisa. Pois se ela a tem de si própria9 4,
uma das principais perfeições que con­
segue-se, pelas razões que anterior­
cebo existentes nele; e por certo a idéia
mente aleguei, que deve ser, ela
dessa unidade e reunião de todas as
mesma, Deus; porquanto, tendo a vir­
perfeições de Deus não foi colocada
tude de ser e de existir por si, ela deve
também, sem dúvida, ter o poder de em mim por nenhuma causa da qual eu
possuir atualmente todas as perfeições não haja recebido também as idéias de
cujas idéias concebe, isto é, todas todas as outras perfeições. Pois ela não
aquelas que eu concebo como existen­ mais pode ter feito compreender juntas
tes em Deus. Se ela tira sua existência e inseparáveis, sem fazer ao mesmo
de alguma outra causa diferente de tempo com que eu soubesse o que elas
si9 5, tornar-se-á a perguntar, pela eram e que as conhecesse a todas de al­
mesma razão, a respeito desta segunda guma maneira9 6.
causa, se ela é por si, ou por outrem, 37. No que se refere aos meus pais,
até que gradativamente se chegue a aos quais parece que devo meu nasci­
uma última causa que se verificará ser mento, ainda que seja verdadeiro tudo
Deus. E é muito manifesto que nisto quanto jamais pude acreditar a seu res­
peito, daí não decorre todavia que
92 Segundo momento da prova: eu sei agora “que sej am eles que me conservam, nem que
dependo de algum ser diferente de mim”, mas este me tenham feito e produzido enquanto
ser não poderá ser algo mais exceto Deus?
93 Invocação do princípio de causalidade e aplica- coisa pensante, pois apenas puseram
ção ao caso precedente. algumas disposições nessa matéria, na
9 4 A) Esta causa estranha existe por si; ela deve, qual julgo que eu, isto é, meu espírito
portanto, causar-se com todas as perfeições de que
tenho idéia. Portanto, ela é Deus. — a única coisa que considero atual­
9 5 Ep Esta causa é, por sua vez, produzida por mente como eu próprio — se acha
outra, mas é possível remontar assim indefinida­ encerrado; e, portanto, não pode haver
mente na série das causas? Não; aqui, não nos
assiste o direito, pois não se trata da causa que me aqui, quanto a eles, nenhuma dificul­
produziu (posso subsistir sem os meus pais), mas da dade, mas é preciso concluir necessa­
causa que me criou ou me conserva no ser a cada
instante do tempo. Vemos quão ligada se encontra riamente que, pelo simples fato de que
esta segunda prova à idéia cartesiana do tempo,
imposta pela Física. (Cf. Guéroult, op. cit., I, págs.
272-85.) 9 6 Cf. Col. com Burman, A. T., V, págs. 154-55.
120 DESCARTES

eu existo e de que a idéia de um ser coisa imperfeita, incompleta e depen­


soberanamente perfeito, isto é, Deus, é dente de outrem, que tende e aspira
em mim, a existência de Deus está mui incessantemente a algo de melhor e de
evidentemente demonstrada9 7. maior do que sou, mas também conhe­
38. Resta-me apenas examinar de ço, ao mesmo. tempo, que aquele de
que maneira adquiri esta idéia. Pois quem dependo possui em si todas essas
não a recebi dos sentidos e nunca ela grandes coisas a que aspiro e cujas
se ofereceu a mim contra minha expec­ idéias encontro em mim, não indefmi-
tativa, como o fazem as idéias das coi­ damente e só em potência, mas que ele
sas sensíveis quando essas coisas se as desfruta de fato, atual e infinita­
apresentam ou parecem apresentar-se mente e, assim, que ele é Deus. E toda
aos órgãos exteriores de meus sentidos. a força do argumento de que aqui me
Não é também uma pura produção ou servi para provar a existência de Deus
ficção de meu espírito; pois não está consiste em que reconheço que seria
em meu poder diminuir-lhe ou acres- impossível que minha natureza fosse
centar-lhe coisa alguma. E, por conse­ tal como é, ou seja, que eu tivesse em
guinte, não resta outra coisa a dizer mim a idéia de um Deus, se Deus não
senão que, como a idéia de mim existisse verdadeiramente; esse mesmo
mesmo, ela nasceu e foi produzida co­ Deus, digo eu, do qual existe uma idéia
migo desde o momento em que fui em mim, isto é, que possui todas essas
criado. altas perfeições de que nosso espírito
39. E certamente não se deve achar pode possuir alguma idéia, sem, no
estranho que Deus, ao me criar, haja entanto, compreendê-las a todas, que
posto em mim esta idéia para ser como não é sujeito a carência alguma e que
que a marca do operário impressa em nada tem de todas as coisas que assi­
sua obra; e não é tampouco necessário nalam alguma imperfeição.
40. Daí é bastante evidente que ele
que essa marca seja algo diferente da
não pode ser embusteiro, posto que á
própria obra. Mas pelo simples fato de
luz natural nos ensina que o embuste
Deus me ter criado98, é bastante crível
depende necessariamente de alguma
que ele, de algum modo, me tenha pro­
carência99.
duzido à sua imagem e semelhança e 41. Mas, antes de examinar mais
que eu conceba essa semelhança (na cuidadosamente isso e passar à consi­
qual a idéia de Deus se acha contida) deração das outras verdades que daí se
por meio da mesma faculdade pela podem inferir, parece-me muito a pro­
qual me concebo a mim próprio; isto pósito deter-me algum tempo na con­
quer dizer que, quando reflito sobre templação deste Deus todo perfeito,
mim, não só conheço que sou uma ponderar totalmente à vontade seus
maravilhosos atributos, considerar, ad­
9 7 Deus é colocado como causa de si, autor de meu
ser e soberanamente perfeito. É a quinta verdade. mirar e adorar a incomparável beleza
Guéroult acentua que, se a primeira prova é a mais dessa imensa luz, ao menos na medida
importante (ao menos na ordem das razões, que não em que a força de meu espírito, que
se deve confundir com a ordem das coisas), posto
que só ela me permite colocar Deus, passar do sub­ queda de algum modo ofuscado por
jetivo ao objetivo, esta segunda prova, por seu ele, mo puder permitir.
turno, me faz conhecer melhor quem ele é. Cf. Prin­ 42. Pois, como a fé nos ensina que a
cípios, I, 22.
98 Todas as coisas criadas se parecem com seu
criador, pelo menos na medida em que são, como 99 Assim fica cumprido o programa em dois pon­
ele, substâncias. Quanto mais ser ele lhes concedeu, tos, traçado no § 5: l.° Deus existe; 2.° Deus não é
mais elas se lhe parecem. enganador.
MEDITAÇÕES 121

soberana felicidade da outra vida não ção, embora incomparavelmente


consiste senão nessa contemplação da menos perfeita, nos faz gozar do maior
Majestade divina, assim perceberemos, :• contentamento de que sejamos capazes
desde agora, que semelhante medita­ ! de sentir nesta vida.
Meditação Quarta100
Do Verdadeiro e do Falso

1. Acostumei-me de tal maneira ser completo e independente, ou seja,


nesses dias passados a desligar meu de Deus, apresenta-se a meu espírito
espírito dos sentidos e notei tão exata­ com igual distinção e clareza; e do
mente que há muito poucas coisas que simples fato de que essa idéia se encon­
se conhecem com certeza no tocante às tra em mim, ou que sou ou existo, eu
coisas corporais, que há muito mais que possuo esta idéia, concluo tão
que nos são conhecidas quanto ao evidentemente a existência de Deus e
espírito humano, e muito mais ainda que a minha depende inteiramente dele
quanto ao próprio Deus1 01, que agora em todos os momentos de minha vida,
desviarei sem nenhuma dificuldade que não penso que o espírito humano
meu pensamento da consideração das possa conhecer algo com maior evi­
coisas sensíveis ou imagináveis, para dência e certeza102. E já me parece
dirigi-lo àquelas que, sendo despren­ que descubro um caminho que nos
didas de toda matéria, são puramente conduzirá desta contemplação do ver­
inteligíveis. dadeiro Deus (no qual todos os tesou­
2. E certamente a idéia que tenho ros da ciência e da sabedoria estão
do espírito humano, enquanto é uma encerrados) ao conhecimento das ou­
coisa pensante e não extensa, em lon- tras coisas do Universo1 03.
gura, largura e profundidade, e que 3. Pois, primeiramente, reconheço
não participa de nada que pertence ao que é impossível que ele me engane
corpo, é incomparavelmente mais dis­ jamais, posto que em toda fraude e
tinta do que a idéia de qualquer coisa embuste se encontra algum modo de
corporal. E quando considero que imperfeição. E, conquanto pareça que
duvido, isto é, que sou uma coisa poder enganar seja um sinal de sutileza
incompleta e dependente, a idéia de um ou de poder, todavia querer enganar
testemunha indubitavelmente fraqueza
100 Plano da Meditação: ou malícia. E, portanto, isso não se
§§1-2: recapitulação; pode encontrar em Deus.
§§3-5: esboço de uma solução para ino­ 4. Em seguida, experimento em
centar Deus do erro;
§6: rejeição desta solução;
§§7-8: dois argumentos metafísicos pos­ 102 Reconheço, pois, agora, que Deus é a coisa
síveis; mais fácil de conhecer, embora sendo, lembremo-lo,
§§9-12: recurso à Psicologia e explica­ incompreensível.
ção do mecanismo do erro; 103 Este “caminho” é a confrontação de duas teses
§§13-14: Deus desculpado do erro; aparentemente contraditórias: l.° fui criado por um
§§15-17: retomo à Metafísica e valida­ Deus não enganador; 2.° devo reconhecer que sou
ção da regra da claridade e da distinção. sujeito ao erro. Cf. a oscilação entre o princípio da
101 Deus é, portanto, mais conhecido do que o dúvida universal e o fato da certeza do Cogito, no
meu Eu pensante. começo da Meditação precedente.
124 DESCARTES

mim mesmo certa capacidade de jul­ modo que não. devo espantar-me se me
gar, que sem dúvida recebi de Deus, do engano.
mesmo modo que todas as outras coi­ 5. Assim, conheço que o erro en­
sas que possuo; e como ele não quere­ quanto tal não é algo de real que
ría iludir-me, é certo que ma deu tal dependa de Deus, mas que é apenas
que não poderei jamais falhar, quando uma carência; e, portanto, que não
a usar como é necessário. E não resta­ tenho necessidade, para falhar, de
ria nenhuma dúvida quanto a esta ver­ algum, poder que me tenha sido dado
por Deus particularmente para esse
dade, se não fosse possível, ao que efeito, mas que ocorre que eu me enga­
parece, inferir dela a consequência de ne pelo fato de o poder que Deus me
que assim nunca me enganei; pois se doou para discernir o verdadeiro do
devo a Deus tudo o que possuo e se ele falso não ser infinito em mim1 0 5.
não me deu nenhum poder para falhar, 6. Todavia, isto ainda não me satis­
parece que nunca devo enganar-me10 4. faz inteiramente1 0 6; pois o erro não é
E, na verdade, quando penso apenas uma pura negação, isto é, não é a sim­
em Deus, não descubro em mim ples carência ou falta de alguma perfei­
nenhuma causa de erro ou de falsida­ ção que me não é devida, mas antes é
de; mas em seguida, retomando a mim, uma privação de algum conhecimento
a experiência me ensina que estou, não que parece que eu deveria possuir. E,
obstante, sujeito a uma infinidade de considerando a natureza de Deus, não
me parece possível que me tenha dado
erros e, ao procurar de mais perto a alguma faculdade que seja imperfeita
causa deles, noto que ao meu pensa­ em seu gênero, isto é, à qual falte algu­
mento não se apresenta somente uma ma perfeição que lhe seja devida; pois,
idéia real e positiva de Deus, ou seja, se é verdade que, quanto mais um arte­
de um ser soberanamente perfeito, mas são é perito mais as obras que saem de
também, por assim dizer, uma certa suas mãos são perfeitas e acabadas,
idéia negativa do nada, isto é, daquilo que ser imaginaríamos nós que, produ­
que está infmitamente distante de toda zido por esse soberano criador de
sorte de perfeição; e que sou como que todas as coisas, não fosse perfeito e
um meio entre Deus e o nada, isto é, inteiramente acabado em todas as suas
colocado de tal maneira entre o sobe­ partes? E por cçrto não há dúvida de
rano ser e o não-ser que nada se encon­ que Deus só pode me ter criado de tal
tra em mim, na verdade, que me possa maneira que jamais eu pudesse enga­
conduzir ao erro, na medida em que nar-me; é certo também que ele quer
sempre aquilo que é o melhor: ser-me-
um soberano ser me produziu; mas
á, pois, mais vantajoso falhar do que
que, se me considero participante -de
não falhar10 7?
alguma maneira do nada.ou do não-
ser, isto é, na medida em que não sou 1 ° 5 Estando o erro no homem devido ao fato de ele
eu próprio o soberano ser, acho-me também participar do nada e não sendo o nada
exposto a uma infinidade de faltas, de causa de nada (G 20), pode parecer que o erro fica
assim explicado e Deus desculpado. . .
1 0 6 Por quê? É que o erro não está em mim como
104 E no entanto eu me engano. . . É a própria simples falta de ser, como admite com demasiada
colocação do problema da Teodicéia: Deus, meu rapidez a solução anterior, mas como uma “imper­
criador, é infmitamente perfeito; ora, o erro e o mal feição positiva”. Não é uma simples ignorância,
existem de fato; como desculpar Deus disso'? A bem mas uma ignorância que eu dou por uma verdade.
dizer, o problema assim colocado preocupa menos Mais do que uma negação: uma privação.
Descartes do que este outro: como, salvaguardando 107 O reconhecimento do erro como privação des­
definitivamente a veracidade de Deus, garantir loca o problema: já que Deus quer sempre o melhor,
definitivamente a possibilidade “do conhecimento será melhor que o homem tenha sido afetado de
das outras coisas do Universo”? uma privação?
MEDITAÇÕES 125

7. Considerando isso com mais mesma coisa que poderia talvez, com
atenção, ocòrre-me inicialmente ao alguma forma de razão, parecer muito
pensamento que me não devo espantar imperfeita, caso estivesse inteiramente
se minha inteligência não for capaz de só, apresenta-se muito perfeita em sua
compreender por que Deus faz o que natureza, caso seja encarada como
faz e que assim não tenho razão algu­ parte de todo este Universo. E, embo­
ma de duvidar de sua existência, pelo ra, desde que me propus a tarefa de
fato de que, talvez, eu veja por expe­ duvidar de todas as coisas, eu tenha
riência muitas outras coisas sem poder conhecido com certeza apenas minha
compreender por que razão nem como existência e a de Deus, todavia tam­
Deus as produziu1 °8. Pois, sabendo já bém, já que reconhecí o infinito poder
que minha natureza é extremamente de Deus, não poderia negar que ele não
fraca e limitada, e, ao contrário, que a tenha produzido muitas outras coisas,
de Deus é imensa, incompreensível e ou, pelo menos, que não as possa pro­
infinita1 0 9, não mais tenho dificuldade duzir, de sorte que eu exista e seja
em reconhecer que há uma infinidade
de coisas em sua potência cujas causas colocado no mundo como parte da
ultrapassam o alcance de meu espírito. universalidade de todos os seres.
9. E, em seguida, olhando-me de
E esta única razão é suficiente para
persuadir-me de que todo esse gênero mais perto e considerando quais são
meus erros (que apenas testemunham
de causas que se costuma tirar do
haver imperfeição em mim), descubro
fim não é de uso algum nas coisas físi­
cas ou naturais; pois não me parece que dependem do concurso de duas
que eu possa sem temeridade procurar causas, a saber, do poder de conhecer
e tentar descobrir os fins impenetráveis que existe em mim e do poder de esco­
de Deus110. lher, ou seja, meu livre arbítrio; isto é,
8. Demais, vem-me ainda ao espí­ de meu entendimento e conjuntamente
rito que não devemos considerar uma de minha vontade112. Isto porque, só
única criatura separadamente, quando pelo entendimento, não asseguro nem
pesquisamos se as obras de Deus são nego coisa alguma, mas apenas conce­
perfeitas, mas de uma maneira geral bo as idéias das coisas que posso asse­
todas as coisas em conjunto111. Pois a gurar ou negar. Ora, considerando-o
assim precisamente, pode-se dizer que
1 0 8 Primeiro argumento metafísico possível: recur­ jamais encontraremos nele erro algum,
so à incompreensibilidade de Deus. Ela possibilita a desde que se tome a palavra erro em
tese: “O erro pode ser bom sem o nosso conheci­ sua significação própria. E, ainda que
mento Cf. Princípios, III, 2.
1u9 Podemos medir a diferença entre a fínitude haja talvez uma infinidade de coisas
cartesiana e a fínitude kantiana, se advertirmos que neste mundo das quais não tenho idéia
Kant poderia escrever o primeiro membro desta
frase, mas nunca o segundo. alguma em meu entendimento, não se
110 Fundamentação metafísica da exclusão das pode por isso dizer que ele seja privado
causas finais em Física. A respeito, cf. Col. com dessas idéias como de algo que seja de­
Burman (A. T., V, pág. 158) e Princípios, I, 28.
“Não devemos presumir tanto de nós mesmos a vido à sua natureza, mas somente que
ponto de crer que Deus nos quisesse participar seus não as tem; porque, com efeito, não há
conselhos...” razão alguma capaz de provar que
111 Segundo argumento metafísico possível: o que
eu percebo como imperfeição só é verdade em rela­ Deus devesse dar-me uma faculdade de
ção a mim e não ao conjunto do Universo. Argu­ conhecer maior e mais ampla do que
mento que se inscreve na linha das teodicéias clássi­
cas dos estóicos e de Santo Agostinho até Leibniz
(e, se se quer, até essas teodicéias modernas que são 112 Recurso ao exame das faculdades psicológicas.
o hegelianismo e o marxismo). Deve-se observar Será sucessivamente mostrado que, nem a presença
que, apelando este argumento para a idéia de Uni­ em mim do entendimento, nem a da vontade, me
verso, é necessário tomar o recurso a esta compa­ autorizam a queixar-me de uma privação qualquer
tível com a ordem, neste lugar. e, portanto, de uma imperfeição em Deus.
126 DESCARTES

aquela que me deu; e, por hábil e enge­ sinto ser em mim tão grande, que não
nhoso operário que eu mo represente, concebo absolutamente a idéia de
nem por isso devo pensar que devesse nenhuma outra mais ampla e mais
pôr em cada uma de suas obras todas extensa: de sorte que é principalrriente
as perfeições que pôde pôr em algu­ ela que me faz conhecer que eu trago a
mas. Não posso tampouco me lastimar imagem e a semelhança de Deus. Pois,
de que Deus não me tenha dado um ainda que seja incomparavelmente
livre arbítrio ou uma vontade bastante maior em Deus do que em mim, quer
ampla e perfeita, visto que, com efeito, por causa do conhecimento e do poder,
eu a experimento tão vaga e tão exten­ que, aí se encontrando juntos, a tor­
sa que ela não está encerrada em nam mais firme e mais eficaz, quer por
quaisquer limites113* . E o que me pare­ causa do objeto, na medida em que a
115
ce muito notável neste ponto é que, de vontade se dirige e se estende infinita­
todas as outras coisas existentes em mente a mais coisas; ela não me pare­
mim, não há nenhuma tão perfeita e ce, todavia, maior se eu a considero
tão extensa que eu não reconheça efeti­ formal e precisamente nela mesma11 6.
vamente que ela poderia ser ainda Pois consiste somente em que podemos
maior e mais perfeita. Pois, por exem­ fazer uma coisa ou deixar de fazer (isto
plo, se considero a faculdade de conce­ é, afirmar ou negar, perseguir ou fugir)
ber que há em mim, acho que ela é de ou, antes, somente em que, para afir­
uma extensão muito pequena e grande­ mar ou negar, perseguir ou fugir às
mente limitada e, ao mesmo tempo, eu coisas que o entendimento nos propõe,
me represento a idéia de uma outra agimos de tal maneira que não senti­
faculdade muito mais ampla e mesmo mos absolutamente que alguma força
infinita; e, pelo simples fato de que me exterior nos obrigue a tanto11 7. Pois,
posso representar sua idéia, conheço para que eu seja livre, não é necessário
sem dificuldade que ela pertence à que eu seja indiferente na escolha de
natureza de Deus. Da mesma manei­ um ou de outro dos dois contrários;
ra11 4, se examino a memória ou a mas antes, quanto mais eu pender para
imaginação, ou qualquer outro poder, um, seja porque eu conheça evidente­
não encontro nenhum que não seja em mente que o bom e o verdadeiro aí se
mim muito pequeno e limitado e que encontrem, seja porque Deus disponha
em Deus não seja imenso e infinito11 5. assim o interior do meu pensamento,
Resta tão-somente a vontade, que eu tanto mais livremente o escolherei e o
abraçarei. E certamente a graça divina
113 Nota-se que a infinidade da vontade é primeiro
evocada quanto à grandeza: “Não se encontra
encerrada em quaisquer limites. . . a idéia de outra 11 6 Passagem que significa: a vontade marca a
mais ampla e mais extensa”. Ê por aí, com efeito, minha semelhança com Deus, menos por ser ela
que ela mais difere do entendimento, para o qual há infinita em grandeza (pois este infinito ainda é ape­
coisas incognoscíveis de direito (o conteúdo do infi­ nas indefinido com respeito a Deus) do que por ser,
nito em Deus). Nele tanto quanto em mim, poder absoluto do sim e
11 4 Esta. passagem quererá dizer que a fmitude do do não.
entendimento é do mesmo gênero que a da imagina-, 11 7 Esse poder absoluto nunca está mais próximo,
ção? Guéroult nega e observa (pp. cit., págs. no homem, daquele que há em Deus, do que ao ser
328-29) que, se a fmitude da imaginação é corporal, ele iluminado pelo entendimento. Eis por que
a do entendimento é antes uma “indefinitude”: importa distinguir aqui esta “potência real e posi­
nosso conhecimento pode aumentar “gradativa­ tiva de se determinar” que Deus nos concedeu da
mente até o infinito”, o que constitui uma espécie de “indiferença”, estado no qual a vontade, não sendo
fmitude em face da infinitude positiva de Deus. iluminada por nenhuma razão num ou noutro senti­
115 Ê uma maneira de falar, pois a memória (que do, está afastada ao máximo da de Deus. Cf. Car­
supõe a sucessão temporal) e a imaginação (que tas, a Mesland, 2 de maio de 1644. Esta “indife­
supõe a união a um corpo) não se encontram em rença” possível da vontade humana desempenhará
Deus. papel decisivo no parágrafo seguinte.
MEDITAÇÕES 127

e o conhecimento natural, longe de facilmente e escolhe o mal pelo bem ou


diminuírem minha liberdade, antes a o falso pelo verdadeiro. O que faz com
aumentam e a fortalecem. De maneira que eu me engane e peque11 9.
que esta indiferença que sinto, quando 11. Por exemplo, examinando, estes
não sou absolutamente impelido paira dias passados120, se alguma coisa
um lado mais do que para outro pelo existia no mundo e reconhecendo que,
peso de alguma razão, é o mais baixo pelo simples fato de examinar esta
grau da liberdade, e faz parecer mais questão, decorria necessariamente que
uma carência no conhecimento do que eu próprio existia, não podia impedir-
uma perfeição na vontade; pois, se eu me de julgar que era verdadeira uma
conhecesse sempre claramente o que é coisa que concebia tão claramente, não
verdadeiro e o que é bom, nunca esta­ que a isso me achasse forçado por al­
ria em dificuldade para deliberar que guma causa exterior, mas somente por­
juízo ou que escolha deveria fazer; e que a uma grande clareza que havia no
assim seria inteiramente livre sem meu entendimento seguiu-se uma forte
nunca ser indiferente11 8. inclinação em minha vontade; e fui le­
10. De tudo isso reconheço que vado a acreditar com tanto mais liber­
nem o poder da vontade, o qual recebi dade quanto me encontrei com menos
de Deus, não é em si mesmo a causa de indiferença. Ao contrário, agora não
meus erros, pois é muito amplo e somente sei que existo na medida em
muito perfeito na sua espécie; nem que sou alguma coisa que pensa, mas
tampouco o poder de entender ou de apresenta-se também ao meu espírito
conceber: pois, nada concebendo uma certa idéia da natureza corpórea;
senão por meio deste poder que Deus o que faz com que eu duvide se esta
me conferiu para conceber, não há dú­ natureza pensante que existe em mim,
vida de que tudo o que concebo, conce­ ou antes, pela qual eu sou o que sou, é
bo como é necessário e não é possível diferente dessa natureza corpórea, ou
que nisso me engane. Donde nascem, ainda, se ambas não são senão uma
pois, meus erros? A saber, somente de mesma coisa. E suponho, aqui, que
que, sendo a vontade muito mais não conheço ainda nenhuma razão que
ampla e extensa que o entendimento, me persuada de uma coisa mais do que
eu não a contenho nos mesmos limites, de outra: donde se segue que sou intei-
mas estendo-a também às coisas que ramente indiferente quanto a negá-lo
não entendo; das quais, sendo a vonta­ ou assegurá-lo, ou mesmo ainda a abs-
de por si indiferente, ela se perde muito ter-me de dar algum juízo a este
respeito.
11 8 Sobre o fim desse parágrafo, cf. as especifica­ 12. E essa indiferença não se esten­
ções essenciais oferecidas pela carta a Mesland, de de somente às coisas das quais o enten-
9 de fevereiro de 1654, onde Descartes distingue
entre a liberdade antes da ação e enquanto se exerce
a ação. Só no segundo momento, diz ele, é que a 119 O conhecimento do mecanismo do erro aqui
liberdade “consiste apenas na facilidade que temos obtido constitui a sexta verdade. O erro é possível
de operar... e foi neste sentido que escrevi que me porque a vontade livre, fundamentalmente indife­
dirigia tanto mais livremente a uma coisa quanto rente, pode tomar-se “indiferente” no segundo senti­
era a ela impelido por mais razões”. Para Mersenne, do da palavra — no caso,-pronunciar-se sobre o que
ele sublinha também “que somos sempre livres de ela não entende inteira ou suficientemente. “E quan­
deixar de perseguir um bem que nos é claramente do dela abusamos deste modo, não é de admirar que
conhecido ou de adquirir, uma verdade eviden­ cheguemos anos equivocar.” (Princípios, I, 35.)
te...” (27 de maio de 1641). Assim, Descartes 120 Os §§ llel2 tiram a conclusão da verdade
pode manter, ao mesmo tempo e sem contradição, a precedente, mostrando-me como devo usar meu
liberdade-indeterminação e a liberdade-esponta- livre arbítrio a fim de evitar o erro; ao mesmo
neidade. Cf. uma crítica desta última em Sartre, tempo, orientam-nos para outra verdade: a confir­
Situations, I, pág. 317. mação definitiva da veracidade de Deus.
128 DESCARTES

dimento não tem nenhum conheci­ . me deu uma inteligência mais capaz,
mento, mas geralmente também a ou uma luz natural maior do que aque­
todas aquelas que ele não descobre la que dele recebi, posto que, com efei­
com uma clareza perfeita no momento to, é próprio do entendimento finito
em que a vontade delibera sobre elas; não compreender uma infinidade de
pois, por prováveis que sejam as conje- coisas e próprio de um entendimento
turas que me tomam inclinado a julgar criado o ser finito: mas tenho todos os
alguma coisa, o tão-só conhecimento motivos de lhe render graças pelo fato
que tenho de que são apenas conjetu- de que, embora jamais me devesse
ras e não razões certas e indubitáveis algo, me tenha dado, não obstante,
basta para me dar ocasião de julgar o todo o pouco de perfeição que existe
contrário. Isto é o que experimentei em^mim; estando bem longe de conce­
suficientemente nesses dias passados, ber sentimentos tão injustos como o de
ao estabelecer como falso tudo o que imaginar que ele me tirou ou reteve
tivera antes como muito verdadeiro, injustamente as outras perfeições que
pelo simples fato de ter notado que se não me deu121 122. Não tenho também
podia duvidar disso de alguma manei­ motivo de me lastimar do fato de me
ra. haver dado uma vontade mais ampla
13. Ora, se me abstenho de formu­ do que o entendimento, uma vez que,
lar meu juízo sobre uma coisa, quando consistindo a vontade em apenas uma
não a concebo com suficiente clareza e coisa, e sendo seu sujeito como que
distinção, é evidente que o utilizo indivisível, parece que sua natureza é
muito bem e que não estou enganado; tal que dela nada se poderia tirar sem
mas, se me determino a negá-la ou a destruí-la; e, certamente, quanto maior
assegurá-la, então não me sirvo como for ela, mais tenho que agradecer a
devo de meu livre arbítrio; se garanto o bondade daquele que ma deu123* . E,
que não é verdadeiro, é evidente que enfim, não devo também lamentar-me
me engano, e até mesmo, ainda que jul­ de que Deus concorra comigo para for­
gue segundo a verdade, isto não ocorre mar os atos dessa vontade, isto é, os
senão por acaso e eu não deixo de fa­ juízos nos quais eu me engano, porque
lhar e de utilizar mal o meu livre arbí­ esses atos são inteiramente verdadeiros
trio; pois a luz natural nos ensina que e absolutamente bons na medida em
o conhecimento do entendimento deve que dependem de Deus; e há, de algu­
sempre preceder a determinação da ma forma, mais perfeição em minha
vontade. E é neste mau uso do livre natureza, pelo fato de que posso
arbítrio que se encontra a privação que forrná-los, do que se não o pudesse1 2 4.
constitui a forma do erro1 21. A priva­ Quanto à privação, que consiste na
ção, digo, encontra-se na operação na única razão formal do erro e do peca­
medida em que procede de mim; mas do, não tem necessidade de nenhum
ela não se acha no poder qiie recebi de concurso de Deus, já que não é uma
Deus, nem mesmo na operação na me­
dida em que ela depende dele. Pois não
122 a) A fínitude de meu entendimento não pode
tenho certamente nenhum motivo de ser imputada a Deus como uma imperfeição. Cf.
me lastimar pelo fato de que Deus não Princípios I, 36.
123 b) Quanto à vontade, não só não tenho por
que me queixar, mas devo ser reconhecido a Deus
121 O erro é, portanto, agora reconhecido como por ma ter dado infinita.
privação, contrariamente ao que se passava na 124 c) Que minha vontade possa formar juízos é
pseudo-solução do § 5. E, não obstante, Deus será ainda uma perfeição. Assim, tomados um a um, os
disso desculpado por quatro considerações: “Não elementos que concorrem ao erro humano não cons­
tenho nenhum motivo de me lastimar...” tituem sinal de nenhum hão-ser ou de nenhum mal.
MEDITAÇÕES 129

coisa ou um ser e que, se a relacio­ criado de modo que eu nunca falhas­


namos a Deus como à sua causa, ela se127. Mas não posso por isso negar
não deverá ser chamada privação mas que não seja, de alguma maneira, a
somente negação, segundo o signifi­ maior perfeição em todo' o Universo o
cado que se atribui a essas palavras na fato de algumas de suas partes não
Escola125. serem isentas de defeitos, do que se
14. Pois, com efeito, não é uma. fossem todas semelhantes. E não tenho
imperfeição em Deus o fato de ele me nenhum direito de me lastimar se
haver concedido a liberdade de dar Deus, tendo-me colocado no mundo,
meu juízo ou de não o dar sobre certas não me tenha querido colocar na
coisas, a cujo respeito ele não pôs um ordem das coisas mais nobres e das
claro e distinto saber em meu entendi­ mais perfeitas; tenho mesmo motivo de
mento; mas, sem dúvida, é em mim me rejubilar porque, se ele não me con­
uma imperfeição o fato de eu não a cedeu a virtude de jamais falhar atra­
usar corretamente e de dar temeraria- vés do meio a que me referi acima, que
menté meu juízo sobre coisas que eu depende de um claro e evidente conhe­
concebo apenas com obscuridade e cimento de todas as coisas a respeito
confusão126. das quais posso deliberar, ele ao menos
15. Vejo, no entanto, que era fácil a deixou em meu poder o outro meio,
Deus fazer de sorte que eu nunca me que é reter firmemente a resolução de
enganasse, embora permanecesse livre jamais formular meu juízo a respeito
e com um conhecimento limitado, a de coisas cuja verdade não conheço
saber, dando a meu entendimento uma claramente128. Pois, embora eu note
clara e distinta inteligência de todas as essa fraqueza em minha natureza, de
coisas a respeito das quais eu devia al­ não poder ligar continuamente meu
guma vez deliberar, ou, então, se ape­ espírito a um mesmo pensamento,
nas houvesse Igravado tão profunda­ posso, todavia, por uma meditação
mente em minljia memória a resolução atenta e amiúde reiterada, imprimi-la
de nunca julgar a respeito de alguma tão fortemente na memória, que não
coisa sem concebê-la clara e distinta­ deixe jamais de lembrar-me, todas as
mente de sorte|que eu nunca a pudesse vezes de que tiver necessidade, e adqui­
esquecer. E noto efetivamente que, rir, desta maneira, o hábito de nunca
enquanto me considero inteiramente falhar. E, na medida em que é nisto
só, como se apenas eu existisse no
mundo, teria sido muito mais perfeito 12 7 Descartes sentir-se-á agora inteiramente satis­
do que sou caso Deus me houvesse feito? Não parece. Pois, afinal, Deus dispunha do
meio de não permitir o erro — e ele o permitiu. Daí
por que, definitivamente, a dialética cartesiana
125 d) Mas o próprio erro, na medida em que necessita dos argumentos clássicos da Teodicéia:
resulta do jogo dos|elementos anteriores, sem dúvi­ por que não teria Deus concedido todas as perfei-
da é privação ou imperfeição em nós, mas não é ções? Não é melhor para o todo que haja imperfei­
produzido por Deus. O erro provém do fato de Deus ções nas partes? É mister, na verdade, recorrer aos
“não nos ter dado tudo quanto podia nos dar”, mas fins de Deus, mesmo que nos sejam impenetráveis,
“não era de modo algum obrigado” a nos dar (Prin­ para inocentá-lo de nossa “fmitude”. Veremos, de
cípios, I, 31). Assim, isso que, para nós, é privação modo mais geral, que, em Descartes, a Antropo­
ou imperfeição positiva, não passa de negação ou logia reintroduz a finalidade que a Física mecani-
ser-limitado do ponto de vista de Deus. Em termos cista exclui.
modernos, poder-se-ia dizer que o homem toma ser 128 Mas esta aparente insatisfação representava
o não-ser, mas quej no absoluto, trata-se de uma ilu­ apenas um desvio para outra conclusão importante:
são. Esta confirmarão da veracidade e da perfeição dado que, no absoluto, o erro não é nada de real, eu
de Deus pode ser considerada como a sétima jamais falharia se me lembrasse sempre que devo
verdade. I julgar o que me aparece clara e distintamente como
126 Recapitulação: Deus é inocentado. real ou verdadeiro.
130 DESCARTES

que consiste a maior e principal perfei­ preciso concluir que uma tal concep­
ção do homem, considero não ter ção ou um tal juízo é verdadeiro1 29.
ganho pouco com esta Meditação, ao 17. De resto, não somente aprendi
haver descoberto a causa das falsida­ hoje o que devo evitar para não mais
des e dos erros. falhar, mas também o que devo fazer
16. E, certamente, não pode haver para chegar ao conhecimento da ver­
outra além daquela que expliquei; pois, dade. Pois, certamente, chegarei a
todas as vezes que retenho minha von­ tanto se demorar suficientemente
tade nos limites de meu conhecimento, minha atenção sobre todas as coisas
de tal modo que ela não formule juízo que conceber perfeitamente e se; as
algum senão a respeito das coisas que separar das outras que não com­
preendo senão com confusão e obscu­
lhe são clara e distintamente represen­ ridade. E disto, doravante, cuidarei
tadas pelo entendimento, não pode zelosamente.
ocorrer que eu me engane; porque toda
concepção clara e distinta é sem dúvi­ 129 Daí a oitava verdade: as idéias claras e distin­
da algo de real e de positivo, e portanto tas têm um valor objetivo imediatamente certo. A
não pode ter sua origem no nada, mas regra segundo a qual “todas as coisas que conce­
bermos muito clara e muito distintamente são
deve ter necessariamente Deus como verdadeiras”, que obtive por reflexão sobre o Cogi­
seu autor; Deus, digo, que, sendo sobe­ to, no começo da Meditação Terceira (§ 2), é agora
objetivamente validada. Doravante, não mais preci­
ranamente perfeito, não pode ser causa sarei efetuar o Cogito a fim de provar a verdade
de erro algum; e, por conseguinte, é dessa regra; bastará lembrar-me dela.
Meditação- Quinta1 30
Da Essência das Coisas Materiais;
e, Novamente, de Deus, que Ele Existe
1. Restam-me muitas outras coisas enumerar nela muitas partes diversas e
a examinar, concernentes aos atributos atribuir a cada uma dessas partes toda
de Deus e à mújiha própria natureza, sorte de grandezas, de figuras, de situa­
isto é, ao meu espírito: mas retomarei ções e de movimentos; e, enfim, posso
em outra ocasião , talvez, a sua pesqui- consignar a cada um desses movimen­
sa.' Agora (após haver notado o que tos toda espécie de duração.
cumpre fazer ou <evitar para chegar ao 4. E não conheço estas coisas com
conhecimento da verdade), o que tenho distinção apenas quando as considero
principalmente a fazer é tentar sair e em geral; mas, também, por pouco que
desembaraçar-me de todas as dúvi­ eu a isso aplique minha atenção, con­
131 em que mergulhei nesses dias
das130 cebo uma infinidade de particularida­
passados e ver se|não é possível conhe­ des1 32 referentes aos números, às figu­
cer nada de certo.no tocante às coisas ras, aos movimentos e a outras coisas
materiais. | semelhantes, cuja verdade se revela
2. Mas, antes de examinar se há tais com tanta evidência e se acorda tão
coisas que existakn fora de mim, devo bem com minha natureza que, quando
considerar suas ^déias na medida em começo a descobri-las, não parece que
aprendo algo de novo, mas, antes, que
que se encontram em meu pensamento me recordo de algo que já sabia
e ver quais são distintas e quais são anteriormente, isto é, que percebo coi­
confusas. sas que estavam já no meu espírito,
3. Em primeiro lugar, imagino dis- embora eu ainda não tivesse voltado
tintamente esta quantidade que os filó­ meu pensamento para elas.
sofos chamam vulgarmente de quanti­ 5. E o que, aqui, estimo mais consi­
dade contínua, |ou a extensão em derável é que encontro em mim uma
longura, largura e profundidade que há infinidade de idéias de certas coisas
nessa quantidadej ou, antes, na coisa à que não podem ser consideradas um
qual ela é atribuída. Demais, posso puro nada, embora talvez elas não te­
nham nenhuma existência fora de meu
130 Plano da Meditação: pensamento133, e que não são fingidas
§§ 1-2: exame das idéias das essências;
§§3-6: valiàação da verdade das essên­
cias matemáticas; as “naturezas verda­ 132 Após os entes matemáticos, suas propriedades
deiras e imutáveis” da Matemática não essenciais tais como Deus as instituiu.
são inventadas nem extraídas da expe­ 133 A separação entre a essência e a existência só
riência; | tem sentido ao nível das idéias. Quando eu penso a
§§7-10: a prova ontológica; essência do triângulo e a existência do mesmo triân­
§§11-15: vantagens desta nova prova. gulo, diz alhures Descartes, esses dois pensamentos
131 Programa das jJleditações Quinta e Sexta: diferem apenas enquanto são pensamentos; no
estabelecer a veracidade divina em toda a sua triângulo existente fora de meu pensamento, a
amplitude. essência e a existência não podem ser distinguidas.
132 DESCARTES
por mim, conquanto esteja em minha tudo o que é verdadeiro é alguma coisa
liberdade pensâ-las ou não pensá-las; e já demonstrei amplamente acima que
mas elas possuem suas naturezas ver­ todas as coisas que conheço clqra e
dadeiras e imutáveis. Como, por exem­ distintamente são verdadeiras. E,< con­
plo, quando imagino um triângulo, quanto não o tivesse demonstrado,
ainda que não haja talvez em nenhum todavia a natureza de meu espírito é tal
lugar do mundo, fora de meu pensa­ que não me poderia impedir de julgá-
mento, uma tal figura, e que nunca las verdadeiras enquanto as concebo
tenha havido alguma, não deixa, entre­ clara e distintamente'13 5. E me recordo
tanto, de haver uma certa natureza ou de que, mesmo quando estava ainda
forma, ou essência determinada, dessa fortemente ligado aos objetos dos sen­
figura, a qual é imutável e eterna, que tidos, tivera entre as mais constantes
eu não inventei absolutamente e que verdades aquelas que eu concebia clara
não depende, de maneira alguma, de e distintamente no que diz respeito às
meu espírito; como parece, pelo fato de figuras, aos números e às outras coisas
que se pode demonstrar diversas pro­ que pertencem à Aritmética e à Geo­
priedades desse triângulo, a saber, que metria.
os três ângulos são iguais a dois retos, 7. Ora, agora1 3 6, se do simples fato
que o maior ângulo e oposto ao maior de que posso tirar de meu pensamento
lado e outras semelhantes, as quais a idéia de alguma coisa segue-se que
agora, quer queira, quer não, reco­ tudo quanto reconheço pertencer clara
nheço mui claramente e mui evidente­ e distintamente a esta coisa pertence-
mente estarem nele, ainda que não lhe de fato, não posso tirar disto um
tenha antes pensado nisto de maneira argumento e uma prova demonstrativa
alguma, quando imaginei pela primeira da existência de Deus? É certo que não
vez um triângulo; e, portanto, não se encontro menos13 7 em mim sua idéia,
pode dizer que eu as tenha fingido e isto é, a idéia de um ser soberanamente
inventado. perfeito, do que a idéia de qualquer fi­
6. E aqui só posso me objetar que gura ou de qualquer número que seja.
talvez essa idéia de triângulo tenha E não conheço menos clara e distinta­
vindo ao meu espírito por intermédio mente que uma existência atual e eter­
de meus sentidos, porque vi algumas na pertence à sua natureza do que
vezes corpos de figura triangular; pois conheço que tudo quanto posso de­
posso formar em meu espírito uma monstrar de qualquer figura ou de
infinidade de outras figuras, a cujo res­ qualquer número pertence verdadeira­
peito não se pode alimentar a menor mente à natureza dessa figura ou desse
suspeita de que jamais tenham caído número. E, portanto, ainda que tudo o
sob os sentidos e não deixo, todavia, de que concluí nas Meditações anteriores
poder demonstrar diversas proprie­
dades relativas à sua natureza, bem
13 5 Retomo ao plano da “natureza” — o da Medi­
como à do triângulo: as quais devem tação Primeira —, onde me é impossível duvidar de
ser certamente todas verdadeiras, visto fato de uma verdade matemática quando ela se me
que as concebo claramente13 4. E, por­ apresenta atualmente.
13 6 “Agora” = depois que estamos metafísica­
tanto, elas são alguma coisa e não um mente certos do valor objetivo das idéias claras e
puro nada; pois é muito evidente que134distintas.
13 7 Notar a partir daí os “não. . . menos” e “ao
menos”: a existência de Deus, legível em sua essên­
134 As idéias das essências matemáticas não são, cia, não é menos certa do que as verdades matemá­
portanto, simuladas nem provenientes do sensível (§ ticas, mas tampouco o é mais. Devemos colocá-la
6). Cf. 543. Enquanto idéias claras e distintas, no mesmo plano que essas verdades essenciais que a
correspondem, pois, a algo. dúvida natural não conseguia abalar. I
MEDITAÇÕES 133

não fosse de modo algum verdadeiro, a 8. Mas, ainda que, com efeito, eu
existência de Deus deve apresentar-se não possa conceber um Deus sem exis­
em meu espírito ao menos como tão tência, tanto quanto uma montanha
certa quanto considerei até agora todas sem vale, todavia, como do simples
as verdades das Matemáticas, que se fato de eu conceber uma montanha
referem apenas' aos números e às figu­ com vale não se segue que haja qual­
ras138: embora, na verdade, isto não quer montanha no mundo, do mesmo
pareça de início inteiramente mani­ modo, embora eu conceba Deus com
festo e se afigure ter alguma aparência existência, parece não decorrer daí que
de sofisma. Pois, estando habituado haja algum Deus existente: pois meu
em todas as outras coisas a fazer dis­ pensamento não impõe necessidade al­
tinção entre a [existência e a essência,
persuado-me facilmente de que a exis­ guma às coisas; e como só depende de
tência pode ser separada da essência mim o imaginar um cavalo alado,
de Deus e de que, assim, é possível ainda que não haja nenhum que dispo­
conceber Deus como não existindo nha de asas, assim eu poderia, talvez,
atualmente. Mas, não obstante, quan­ atribuir existência a Deus, ainda que
do penso nissb com maior atenção, não houvesse Deus algum existen­
verifico claramente que a existência te1 40. Mas não é assim, é que aqui há
não pode ser separada da essência de um sofisma escondido sob a aparência
Deus, tanto qdanto da essência de um desta objeção: pois pelo fato de que
triângulo retilíneo não pode ser sepa­ não posso conceber uma montanha
rada a grandeza de seus três ângulos sem vale não se segue que haja monta­
iguais a dois retos ou, da idéia de uma
montanha, a idéia de um vale; de sorte nha alguma nem vale algum, mas
que não sinto |menos repugnância em somente que a montanha e o vale, quer
conceber um E>eus (isto é, um ser sobe­ existam quer não, não podem, de
ranamente perfeito) ao qual falte exis­ maneira alguma, ser separados um do
tência Jisto é, ao qual falte alguma outro; ao passo que, do simples fato de
perfeição), do que em conceber uma eu não poder conceber Deus sem exis­
montanha que não tenha vale1 3 9.13
* tência, segue-se que a existência lhe é
inseparável, e, portanto, que existe
13 8 Hâ uma certeza da existência de Deus que é do verdadeiramente: não que meu pensa­
mesmo tipo que a certeza espontânea e ingênua que mento possa fazer que isso seja assim,
se atribui às verdades matemáticas. É esta certeza e que imponha às coisas qualquer
que ora podemos vjalidar, assim como validamos a
certeza matemática: em nome do princípio do valor necessidade; mas, ao contrário, porque
objetivo das idéias' claras e distintas. Por isso, a a necessidade da própria coisa, a
“prova ontológica’ situa-se em plano diverso do
das duas outras provas (o fato de se encontrar em saber, da existência de Deus, deter­
outra Meditação basta para indicá-lo) e é depen­ mina meu pensamento a concebê-lo
dente em relação a elas na ordem das razões dessa maneira. Pois não está em minha
metafísicas.
13 9 Sobre a imagem da montanha e do vale: “Não liberdade conceber um Deus sem exis­
temos nenhuma oulra razão para assegurar que não tência (isto é, um ser soberanamente
haja absolutamente montanha sem vale, exceto que perfeito sem uma soberana perfeição),
vemos ser impossível completar suas idéias quando
os consideramos um sem o outro, embora possa­ como me é dada a liberdade de imagi­
mos, por abstração!, ter a idéia de uma montanha ou nar um cavalo sem asas ou com asas.
de um lugar pelo qual subimos de baixo para cima
sem considerar que' se possa descer por aí mesmo de
cima para baixo”! (A Gibieuf, 19 de janeiro de 1 40 Segunda objeção possível: não se tratará
1642.) Primeira objeção possível a esta nova prova somente de uma existência em idéia no meu pensa­
da existência de Deus: posso conceber Deus como mento? Resposta: em minha idéia de Deus, eu per­
não existente? Resposta: a idéia da essência de cebo a ligação da existência com a essência como
Deus é inseparável de sua existência assim como uma relação de essência necessária que se impõe ao
“em todas as outras coisas”. meu espírito.
134 DESCARTES

9. E não se deve dizer aqui que é, na jamais eu imagine triângulo algum;


verdade, necessário eu confessar que mas todas as vezes que quero conside­
Deus existe após ter suposto que ele rar uma figura retilínea compósta
possui todas as sortes de perfeições, somente de três ângulos é absolüta-
posto que a existência é uma delas, mente necessário que eu lhe atribua
mas que, com efeito, minha primeira todas as coisas que servem para con­
suposição não era necessária; da cluir que seus três ângulos não são
mesma maneira que não é necessário maiores do que dois retos, ainda que
pensar que todas as figuras de quatro talvez não considere então isto em
lados podem inscrever-se no círculo, particular. Mas quando examino que
mas que, supondo que tenho este figuras são capazes de ser inscritas no
pensamento, sou obrigado a confessar círculo, não é de maneira alguma
que o rombóide pode inscrever-se no necessário que eu pense que todas as
círculo, já que é uma figura de quatro figuras de quatro lados se encontram
lados; e, assim, serei obrigado a con­ neste rol; pelo contrário, nem mesmo
fessar uma coisa falsa141. Não se posso fingir que isso ocorra enquanto
deve, digo, alegar isto: pois, ainda que eu nada quiser receber em meu pensa­
não seja necessário que eu incida ja­ mento que não possa conceber clara e
mais em algum pensamento de Deus, distintamente. E, por conseguinte, há
todas as vezes, no entanto, que me uma grande diferença entre as falsas
ocorrer pensar em um ser primeiro.e suposições, como essa, e as verda­
soberano, èl tirar, por assim dizer, sua deiras idéias que nasceram comigo e,
idéia do tesouro de meu espírito, é dentre as quais, a primeira e principal
necessário que eu lhe atribua todas as é a de Deus.
espécies de perfeição, embora eu não 10. Pois, com efeito, reconheço de
chegue a enumerá-las todas e a aplicar muitas maneiras que esta idéia não é
minha atenção a cada uma delas em de modo algum algo fingido ou inven­
particular. E esta necessidade é sufi­ tado, que dependa somente de meu
ciente para me fazer concluir (depois pensamento, mas que é a imagem de
que reconhecí ser a existência uma uma natureza verdadeira e imutável.
perfeição1 42), que este ser primeiro e Primeiramente, porque eu nada pode­
soberano existe verdadeiramente: do ria conceber, exceto Deus só, a cuja
mesmo modo que não é necessário que essência a existência pertence cóm
necessidade. E, em seguida, também,
1 41 Terceira objeção possível: concedendo a Deus porque não me é possível conceber
todas as perfeições, não teria partido de uma falsa dois ou muitos deuses da mesma
suposição que tomaria minha conclusão caduca?
Resposta: esta suposição não é gratuita; ela se limi­ maneira. E, posto que há um agora que
ta a tomar explícito o conteúdo mesmo da essência existe, vejo claramente que é neces­
de Deus, tal como esta se acha presente em meu
espírito. Do mesmo modo: “Se eu t>enso em um sário que ele tenha existido anterior­
triângulo, então penso em uma figura onde a soma mente por toda a eternidade e que exis­
dos ângulos é igual a dois retos”. ta etemamente para o futuro. E, enfim,
1 42 Este pressuposto ê que serâ recusado por Kant
em sua crítica à prova ontológica: a existência não porque conheço uma infinidade de ou­
é uma perfeição que pertença ao conceito. Cumpre, tras coisas em Deus, das quais nada
todavia, observar que Descartes não tira a exis­ posso diminuir nem mudar.
tência de Deus da idéia que eu tenho dele. Depois de
estabelecer que a idéia de Deus corresponde a uma 11. De resto, de qualquer prova e
essência, mostra que, estando eu atento a esta essên­ argumento que eu me sirva, cumpre
cia (já não se trata da idéia como representação da
essência), percebo nela necessariamente a existên­ sempre retomar a este‘'ponto, isto é,
cia. que são somente as coisas que concebo
MEDITAÇÕES 135

clara e distintamente que têm a força natureza que, tão logo compreenda
de me persuadir inteiramente. E, embo­ algo bastante clara e distintamente,
ra, entre as coisas que concebo dessa sou naturalmente levado, a acreditá-lo
maneira, haja na verdade algumas verdadeiro; no entanto, já que sou tam­
manifestamente jconhecidas de qual­ bém de tal natureza que não posso
quer, e haja outras também que não se manter sempre o espírito ligado a uma
revelam senão àqueles que as conside­ mesma coisa, e que amiúde me recordo
ram de mais perro e que as examinam de ter julgado uma coisa verdadeira,
mais exatamente; todavia, uma vez quando deixo. de considerar as razões
descobertas, nãjo são consideradas que me obrigaram a julgá-la dessa
menos certas umas do que as outras. maneira, pode acontecer que nesse ín­
Como, por exemplo, em todo triângulo terim outras razões se me apresentem,
retângulo, ainda] que não pareça tão as quais me fariam facilmente mudar
facilmente, de início, que o quadrado de opinião se eu ignorasse que há um
da base é igual abs quadrados dos dois Deus1 4 4. E, assim, eu jamais teria uma
outros lados, como é evidente que essa ciência verdadeira e certa de qualquer
base é oposta do maior ângulo, não coisa que seja, mas somente opiniões
obstante, uma vez que isto foi reconhe­ vagas e inconstantes.
cido, ficamos persuadidos tanto da 14. Como, por exemplo, quando
verdade de um como da de outro. E no considero a natureza do triângulo,
que concerne a Deus, certamente, se conheço evidentemente, eu que sou um
meu espírito nã]o estivesse prevenido pouco versado em Geometria, que seus
por quaisquer prejuízos e se meu pen­ três ângulos são iguais a dois retos e
samento não se encontrasse distraído não me é possível não acreditar nisso
pela presença cjontínua das imagens enquanto aplico meu pensamento à sua
das coisas sensíveis, não haveria coisa demonstração; mas, tão logo eu o des­
alguma que eu conhecesse melhor nem vie dela, embora me recorde de tê-la
mais facilmente !do que ele. Pois have­ claramente compreendido, pode ocor­
rá algo por si mais claro e mais mani­ rer facilmente que eu duvide de sua
festo do que pensar que há um Deus, verdade caso ignore que há um
isto é, um ser soberano e perfeito, em Deus1 45. Pois posso persuadir-me de
cuja idéia, e somente nela, a existência ter sido feito de tal modo pela natureza
necessária ou eterna está incluída e, que possa enganar-me facilmente,
por conseguinte, que existe? mesmo nas coisas que acredito com­
12. E, conquanto, para bem conce­ preender com mais evidência e certeza;
ber essa verdade] eu tivesse necessitado principalmente, visto que me lembro
de grande aplicaçao de espirito, pre­ de haver muitas vezes estimado muitas
sentemente, todajvia, estou mais seguro 1 4 4 Compreende-se aqui por que a prova ontoló-
dela do que de tudo quanto me parece gica, em relação às outras, não é apenas uma prova
mais certo: mas, além disso, noto que a a mais: ela nos fornece imediatamente no plano da
certeza de todas as outras coisas dela “natureza”, isto é, da Psicologia, a certeza de que
Deus existe etemamente. Poupa, assim, o constante
depende tão absolutamente que, sem recurso às difíceis provas a priori. O raciocínio
esse conhecimento, é impossível jamais matemático, por exemplo, está assegurado, sem que
conhecer algo pe]rfeitamente1 43. eu tenha necessidade, ao efetuá-lo, de reativar as
“razões” da Meditação Terceira.
13. Pois, ainda que eu seja de tal 145 As provas a priori garantem a evidência atual
(é nisso que desempenham papel primordial e indis­
143 Diferença entre a essência de Deus e as essên­ pensável); a prova ontológica assegura a lembrança
cias matemáticas: aquela pode garantir a certeza das evidências. Cf. o comentário feito nas Segundas
destas. Respostas, 222.
136 DESCARTES

coisas como verdadeiras e certas, *que, pela qual me certifico da verdade, era
em seguida, outras razões me levaram levado a acreditar nelas por razões que
a julgar absolutamente falsas. reconheci depois serem menos fortes
15. Mas, após ter reconhecido do que então imaginara. O que mais
haver um Deus, porque ao mesmo poderão, pois, objetar-me? Que talvez
tempo reconheci também que todas as eu durma (como eu mesmo me objetei
coisas dependem dele e que ele não é acima) ou que todos os pensamentos
enganador, e que, em seguida a isso, que tenho atualmente não são mais
julguei que tudo quanto concebo clara verdadeiros do que os sonhos que ima­
e distintamente não pode deixar de ser ginamos ao dormir? Mas, mesmo que
verdadeiro: ainda que não mais pense estivesse dormindo, tudo o que se apre­
nas razões pelas quais julguei tal ser senta a meu espírito com evidência é
verdadeiro, desde que me lembre de absolutamente verdadeiro. E, assim,
tê-lo compreendido clara e distinta­ reconheço muito claramente que a cer­
mente, ninguém pode apresentar-me teza e a verdade de toda ciência depen­
razão contrária alguma que me faça ja­ dem do tão-só conhecimento do verda­
mais colocá-lo em dúvida; e, assim, deiro Deus: de sorte que, antes que eu
tenho dele uma ciência certa e verda­ o conhecesse, não podia saber perfeitá-
deira. E esta mesma ciência se estende mente nenhuma outra coisa. E, agora
também a todas as outras coisas que que o conheço, tenho o meio de adqui­
me lembro ter outrora demonstrado, rir uma ciência perfeita no tocante a
como as verdades da Geometria e ou­ uma infinidade de coisas, não somente
tras semelhantes: pois, que me poderão das que existem nele mas também das
objetar, para obrigar-me a colocá-las que pertencem à natureza corpórea, na
em dúvida? Dir-me-ão que minha natu­ medida em que ela pode servir de obje­
reza é tal que sou muito sujeito a enga­ to às demonstrações dos geômetras, os
nar-me? Mas. já sei que me não posso quais não se preocupam, de modo
enganar nos juízos cujas razões conhe­ algum, com sua existência1 4 6.
ço claramente. Dir-me-ão que outrora
tive muitas coisas por verdadeiras e 1 4 6 Esta Meditação Quinta contém a nona verdade
certas, as quais mais tarde reconheci da ordem das razões: temos certeza absoluta de que
serem falsas? Mas eu não havia conhe­ as propriedades das essências são as propriedades
cido clara nem distintamente tais coi­ das coisas e, no que concerne à essência de Deus, de
que aí estâ inscrita a existência necessária, portanto
sas e, não conhecendo ainda esta regra eterna.
Meditação Sexta147
Da Existência das Coisas Materiais e da Distinção
Real entre a Alma e o Corpo do Homem

1. Só me resta agora examinar sê objeto das demonstrações de Geome­


existem coisas materiais: e certamente, tria, visto que, dessa maneira, eu as
ao menos, já sei que as pode haver, na concebo mui clara e distintamente1 48.
medida em que são consideradas como Pois não há dúvida de que Deus tem o
poder de produzir todas as coisas que
1 4 7 Plano da Meditação: sou capaz de conceber com distinção;
A) §§1-16: problema da existência das coisas e nunca julguei que lhe fosse impos­
materiais:
§1: reconhecimento da possibilidade de sível fazer algo, a não ser quando
sua existência; encontrasse contradição em. poder con-
§§2-4: reconhecimento da probabili­ cebê-la1 49. Demais, a faculdade de
dade de sua existência: exame da imagi­
nação; imaginar, que existe em mim e da qual
§§5-16: análise da sensação e colocação vejo por experiência que me sirvo
do problema:
(§7): recordação das coisas que eu quando me aplico à consideração das
considerava como verdadeiras; coisas materiais, é capaz de me persua­
(§§8-12:) recordação dos motivos dir da existência delas1 50: pois, quan­
de meus “prejuízos”;
(§§12-15): recapitulação das ra­ do considero atentamente o que é a
zões extraídas da Meditação Pri­ imaginação, verifico que ela nada mais
meira e nova crítica dos prejuízos; é que uma aplicação da faculdade que
(§16): no ponto em que cheguei, no
que posso crer? conhece ao corpo que lhe é intima-
B) §§17-29: as três verdades últimas:
§§17-18: a décima verdade: distinção
real da alma e de corpo; 148 A existência das coisas materiais é primeira­
§§19-20: a décima primeira verdade: há mente reconhecida como possível, posto que as
coisas corporais que existem; idéias claras e distintas que tenho de suas essências
§§21-29: a décima segunda verdade: envolvem a possibilidade de sua existência.
união de fato da alma e do corpo. — 1 49 Alusão à complexíssima teoria da possibili­
Justificação e limitação do valor do sen­ dade, analisada por Guéroult (op. cit., II, págs.
timento natural como órgão de informa­ 26-39): l.° posso afirmar a possibilidade de uma
ção biológica. coisa quando tenho idéia clara e distinta de sua
C) §§30-41: minha natureza não será, no possibilidade ou quando não tenho idéia clara e dis­
entanto, intrinsecamente errônea? tinta de sua impossibilidade; 2.° devo manter em
§§30-32: colocação do problema e a re­ suspenso o meu juízo quando não tenho idéia clara
cusa da solução materialista; e distinta de sua possibilidade nem de sua impossi­
§§33-41: justificação de Deus em vista bilidade; 3.° posso negar a sua possibilidade quando
da dificuldade no dado psicofisiológico tenho idéia clara e distinta dessa impossibilidade.
do problema. 1 50 O exame da imaginação levará a reconhecer
D) §§42-43: conclusão. como provável a existência das coisas materiais.
138 DESCARTES

mente presente e, portanto, que exis- estabelecem a diferença entre o quilió­


te1 51 gono e os demais polígonos1 52
2. E, para tornar isso mais manifeo
to, noto primeiramente a diferença que 3. Quando se trata de considerar
há entre a imaginação e a pura intelec- um pentágono, é bem verdade que
ção, ou concepção. Por exemplo, quan­ posso conceber sua figura, assim comc
do imagino um iriângulo, não o’ conce­
bo apenas como uma figura composta a do quiliógono, sem o auxílio da
e determinada por três linhas, mas, imaginação; mas posso também imagi-
além disso, considero essas três linhas ná-la aplicando a atenção de meu espí­
como presentes pela força e pela apli­ rito a cada um de seus cinco lados e,
cação interior de meu espírito; e é
ao mesmo tempo, à área ou ao espaço
propriamenre isso que chamo imagi­
nar. Quando quero pensar em um que eles encerram. Assim, conheço cla­
quiliógono, concebo na verdade que é ramente que tenho necessidade de par­
uma figura comlposta de mil lados tão ticular contenção de espírito para ima­
facilmente quanto concebo que um ginar, da qual não me sirvo
triângulo é uma figura composta de
apenas três ladds; mas não posso ima­ absolutamente para conceber153; e
ginar os mil lados de um quiliógono esta particular contenção de espírito
como faço com os três lados de um mostra evidentemente a diferença que
triângulo, nem, por assim dizer, vê-los há entre a imaginação e a intelecção.
como presentes | com os olhos de meu ou concepção pura.
espírito. E conquanto, segundo o cos­
tume que tenho jde me servir sempre de 4. Noto, além disso, que esta virtu­
minha imaginação, quando penso nas de de imaginar que existe em mim, na
coisas corpóreaís, ocorra que, conce­ medida em que difere do poder de con­
bendo um quiliójgono, eu me represente
confusamente alguma figura, é, toda­ ceber, não é de modo algum necessária
via, evidente que essa figura não é um à minha natureza ou à minha essência,
quiliógono, posto que em nada difere isto é, à essência de meu espírito; pois,
daquela que me representaria se pen­ ainda que não a possuísse de modo
sasse em um miriágono, ou em qual­ algum, está fora de dúvida que eu
quer outra figura de muitos lados; e permanecería sempre o mesmo que sou
que ela não ser4e, de maneira alguma, atualmente: donde me parece que se
para descobrir as propriedades que
pode concluir que ela depende de algo
1 51 Para situar “a imaginação”, ora em exame, cf.
Regula XII: “Ê uma|só e mesma força que. . ., se 1 52 “Como (a alma) não pode traçar assim mil
se aplica à imaginação somente, enquanto coberta pequenas linhas e lhes dar uma figura no cérebro, a
de figuras variadas, se chama lembrar-se; se se apli­ não ser confusamente, resulta daí que ela não imagi­
ca à imaginação para! criar novas figuras, se chama na distintamente um quiliógono, mas apenas de
imaginar. . .” (Ed. Pléiade, pág. 79.) Aqui parece uma maneira confusa. . .” (Col. com Burman,
tratar-se do primeiro caso. Quanto à distinção entre ibid.)
imaginar e sentir, cf. Col. com Burman (A. T., V, 1 53 Sobre esta diferença entre a fínitude da imagi­
pág. 162): na sensação, “as imagens são traçadas nação e a “infinitude” do entendimento, cf. Medita­
pelos objetos externos, e estando estes presentes, ao ção Quarta, § 8. É a primeira presunção em favor
passo que na outra elas o são pela alma, sem obje­ da existência de um outro, além do pensamento, que
tos externos e, por assim dizer, com todas as janelas explicaria esta “particular contenção de espírito” e
fechadas”. que poderia muito bem ser o corpo.
MEDITAÇÕES 139

que difere de meu espírito1*5 4. E conce­ pórea que é o objeto da Geometria, a


bo facilmente que, se algum corpo saber, as cores, os sons, os sabores, a
existe ao qual meu espírito esteja con­ dor e outras coisas semelhantes, embo­
jugado e unido| de tal maneira que ele ra menos distintamente. E na medida
possa aplicar-se a considerá-lo quando em que percebo muito melhor tais coi­
lhe aprouver, pode acontecer que por sas pelos sentidos, por intermédio dos
este meio ele imagine as coisas corpó- quais, e da memória, elas parecem ter
reas: de sorte que esta maneira de pen­ chegado até minha imaginação, creio
sar difere somente da pura inteleccão que, para examiná-las mais comoda­
no fato de que o espírito, concebendo, mente, vem a propósito examinar ao
volta-se de alguma forma para si mesmo tempo o que é sentir, e ver se,
mesmo e considera algumas das idéias das idéias que recebo em meu espírito
que ele tem em si; mas, imaginando, por este modo de pensar, que chamo
ele se volta para o corpo e considera sentir, posso tirar alguma prova certa
nele algo de conforme à idéia que for­ da existência das coisas corpóreas1 5 6.
mou de si mesmo ou que recebeu pelos 6. E, primeiramente, recordarei em
sentidos. Concebo, digo, facilmente minha memória quais são as coisas
que a imaginação pode realizar-se que até aqui considerei como verdadei­
dessa maneira, se é verdade que há ras, tendo-as recebido pelos sentidos, e
corpos; e, uma vez que não posso sobre que fundamentos estava apoiada
encontrar nenhuma outra via para
minha crença. E, depois, examinarei as
mostrar como ela se realiza, conjeturo
razões que me obrigaram em seguida a
daí provavelmente que os há: mas não
colocá-las em dúvida. E, enfim, consi­
é senão provavelmente e, embora exa­
derarei o que devo a respeito delas
mine cuidadosamente todas as coisas,
agora acreditar1 5 7.
não verifico, no entanto, que, desta
idéia distinta da natureza corporal que 7. Primeiramente, pois1 58, senti
tenho em minha imaginação, possa que possuía cabeça, mãos, pés e todos
tirar algum argumento que conclua os outros membros de que é composto
necessariamente a existência de algum este corpo que considerava como parte
corpo1 5 5. de mim mesmo ou, talvez, como o
todo. Demais, senti que esse corpo es­
5. Ora, acostumei-me a imaginar tava colocado entre muitos outros, dos
muitas coisas além desta natureza cor- quais era capaz de receber diversas
comodidades e incomodidades e adver­
1 6 4 Segunda presunção. Esta contingência da pre­ tia essas comodidades por um certo
sença de imaginação em mim é fundamental em
relação à teoria das Matemáticas expostas nas sentimento de prazer ou de voluptuo-
Regulae: embora possam e devam apoiar-se na sidade e essas incomodidades por um
imaginação, as Matemáticas são essencialmente
obra do entendimento. O modelo matemático de sentimento de dor. E, além desse pra­
Descartes é a teoria das proporções de Eudoxo (li­ zer e dessa dor, sentia também em mim
vros V a VII de Euclides), que a Álgebra permite a fome, a sede e outros semelhantes
universalizar, e não a Geometria “imaginativa” de
Euclides, pela qual, segundo Baillet, seu biógrafo,
não sentia quase nenhuma estima. Este ponto nos 1 5 6 Depois do recurso ao entendimento e da aná­
parece capital para qualquer cotejo entre Descartes lise da imaginação, a análise da sensação.
e Kant e para todo estudo do conceito clássico de 1 5 7 Anúncio dos momentos da pesquisa.
“imaginação” nos séculos XVII e XVIII. 1 58 “Primeiramente, recordarei em minha memó­
1 5 5 Recapitulação: ao passo que a imaginação em ria quais são as coisas que até aqui considerei como
mim prova a existência dos corpos, a explicação verdadeiras, tendo-as recebido pelos sentidos”, a
que se lhe dá aqui só será verdadeira quando esta saber, que estou unido a um corpo e que as coisas
existência estiver comprovada. materiais existem.
140 DESCARTES

apetites, como também certas inclina­ daquelas que eu mesmo podia simular,
ções corporais para a alegria, a triste­ em meditando, ou do que as que
za, a cólera e outras paixões semelhan­ encontrava impressas em minha me­
tes; e, no exterior, além da extensão, mória, parecia que não podiam proce­
das figuras, dos movimentos dos cor­ der de meu espírito; de sorte que era
pos, notava neles a dureza, o calor e necessário que fossem causadas em
todas as outras qualidades que se reve­ mim por quaisquer outras coisas. Coi­
lam ao tato. Demais, aí notava a luz, sas das quais não tendo eu nenhum
cores, odores, sabores e sons, cuja conhecimento senão o que me forne­
variedade me fornecia meios de distin­ ciam essas mesmas idéias, outra coisa
guir o céu, a terra, o mar e geralmente me podia vir ao espírito, só que essas
todos os outros corpos uns dos outros. coisas eram semelhantes às idéias que
8. E, por certo, considerando as elas causavam.
idéias de todas essas qualidades que se 10. E já que eu me lembrava tam­
apresentavam ao meu pensamento, e bém que me servira mais dos sentidos
as quais eram as únicas que eu sentia do que da razão e reconhecia que as
própria e imediatamente, não era sem idéias que eu formava por mim mesmo
razão que eu acreditava sentir coisas não eram tão expressas quanto aquelas
inteiramente diferentes de meu pensa­ que eu recebia dos sentidos e, mesmo,
mento, a saber, corpos de onde proce­ que eram, as mais das vezes, compos­
diam essas idéias1 59. Pois eu experi­ tas de partes destas, eu me persuadia
mentava que elas se apresentavam ao facilmente de que não havia nenhuma
meu pensamento sem que meu consen­ idéia em meu espírito que não tivesse
timento fosse requerido para tanto, de antes passado pelos meus sentidos.
sorte que não podia sentir objeto 11. Não era também sem alguma
algum, por mais vontade que tivesse, razão que eu acreditava que este corpo
se ele não se encontrasse presente ao (que, por um certo direito particular,
órgão de um de meus sentidos; e não eu chamava de meu) me pertencia mais
estava de maneira alguma em meu propriamente e mais estreitamente do
poder não o sentir quando ele aí esti­ que qualquer outro. Pois, com efeito,
vesse presente. jamais eu podia ser separado dele
9. E, dado que as idéias que recebia como dos outros corpos; sentia nele e
pelos sentidos eram muito mais vivas, por ele todos os meus apetites e todas
mais expressas e mesmo, à sua manei­ as minhas afecções; e, enfim, eu era to­
ra, mais distintas do que qualquer uma cado por sentimentos de prazer e de
159 . e sobre que fundamento era apoiada
dor em suas partes e não nas dos ou­
minha crença. . enumeração até o § Í2 das tros corpos que são separados dele.
motivações dos “prejuízos da infância”. Os argu­ 12. Mas, quando examinava por
mentos serão os seguintes: a) a coerção (cf. Princí-
- pios, H, § 1: “Não está em meu poder fazer com que que desse não sei que sentimento de
ex.perim.exvtem.os um sentimento de preferência a dor segue a tristeza do espírito, e do
outro. . . ”); b) vivacidade particular das idéias sentimento de prazer nasce a alegria,
sensíveis; c) maior importância aparente das idéias
sensíveis, na qual se baseia a teoria escolástica do ou, ainda, por que esta não sei que
conhecimento e todo empirismo' em geral; d) não emoção do estômago, que chamo
posso ser separado de meu corpo como dos outros fome, nos dá vontade de comer, e a se­
corpos; e) é nele que sinto minhas afecções e meus
apetites (noção do corpo próprio); f) é em suas par­ cura da garganta nos dá desejo de
tes que sinto prazer e dor; g) o laço entre os estados beber, e assim por diante, não podia
fisiológicos e as afecções da alma (contrações do
estômago e fome) pode provir tão-somente de um apresentar nenhuma razão, senão que
ensinamento da natureza. a natureza mo ensinava dessa maneira;
MEDITAÇÕES 141

pois não há, certamente, qualquer afi­ 14. E a essas razões de dúvida
nidade nem qualquer relação (ao acrescentei ainda, pouco depois, duas
menos que eu possa compreender) outras bastante gerais. A primeira é
entre essa emoção do estômago e o de­ que jamais acreditei sentir algo, estan­
sejo de comer, assim como entre o sen­ do acordado, que não pudesse, tam­
timento da coisa que causa a dor e o bém, algumas vezes, acreditar sentir,
pensamento de tristeza que esse senti­ ao estar dormindo; e como não creio
mento engendra. E, da mesma manei­ que as coisas que me parece que sinto
ra, parecia-me que eu aprendera da ao dormir procedam de quaisquer
natureza todas as outras coisas que eu objetos existentes, não via por que
julgava no tocante aos objetos dos sen­ devia ter antes essa crença no tocante
tidos; porque eu notava que os juízos, àquelas que me parece que sinto ao
que eu me acostumara a formular a estar acordado. E a segunda é que, não
respeito desses objetos, formavam-se conhecendo ainda ou, antes, fingindo
em mim antes que eu tivesse o lazer de não conhecer o autor de meu ser, nada
pesar e considerar quaisquer razões via que pudesse impedir que eu tivesse
que me pudessem obrigar a formulá- sido feito de tal maneira pela natureza
los1 60. que me enganasse mesmo nas coisas
13. Mas, depois1 61, muitas expe­ que me pareciam ser as mais verdadei­
riências arruinaram, pouco a pouco, ras.
todo o crédito que eu dera aos senti­ 15. E, quanto às razões que me ha­
dos. Pois observei muitas vezes que viam anteriormente persuadido da ver­
torres, que de longe se me afiguravam dade das coisas sensíveis, não tinha
redondas, de perto pareciam-me qua­ muita dificuldade em rejeitá-las. Pois,
dradas, e que colossos, erigidos sobre parecendo a natureza levar-me a mui­
tas coisas de que a razão me desviava,
os mais altos cimos dessas torres, pare-
não acreditava dever confiar muito nos
ciam-me pequenas estátuas quando as
ensinamentos dessa natureza. E, embo­
olhava de baixo; e, assim, em uma infi­
ra as idéias que recebo pelos sentidos
nidade de outras ocasiões, achei erros
não dependam de minha vontade, não
nos juízos fundados nos sentidos exte­
pensava que se devesse, por isso, con­
riores. E não somente nos sentidos
cluir que procediam de coisas diferen­
exteriores, mas mesmo nos interiores:
tes de mim, posto que talvez possa
pois haverá coisa mais íntima ou mais
haver em mim alguma faculdade (ape­
interior do que a dor? E, ,no entanto, sar de ter até agora permanecido
aprendi outrora de algumas pessoas, desconhecida para mim) que seja a
que tinham os braços e as pernas cor­ causa dessas idéias e que as produ­
tados, que lhes parecia ainda, algumas za1,62
vezes, sentir dores nas partes que lhes 16. Mas, agora que começo a me­
haviam sido amputadas; isto me dava lhor conhecer-me a mim mesmo e a
motivo de pensar que eu não podia descobrir mais claramente o autor de
também estar seguro de ter dolorido minha origem, não penso, na verdade,
algum de meus membros, embora sen­
tisse dores nele. 1 62 Crítica dos argumentos a) e g) expostos
anteriormente: como já notara a Meditação Tercei­
160 É a definição do “pré-juízo”. ra, a “natureza” pode contravir a razão, e o argu­
1 61 “E, depois, examinarei as razões que me obri­ mento proveniente da coerção é abalado pela hipó­
garam em seguida a colocá-las em dúvida. . Os tese de uma faculdade desconhecida que podêria
§§ 13 e 14 recapitulam as razões tiradas da Medita­ produzir, sem o nosso conhecimento, as idéias
ção Primeira. sensíveis.
142 DESCARTES

que deva temerariamente admitir todas já que, de um lado, tenho uma idéia
as coisas que os sentidos parecem ensi- clara e distinta de mim mesmo, na me­
nar-nos, mas não penso tampouco que dida em que sou apenas uma çoisa
deva colocar em dúvida todas em pensante e inextensa, e que, de outro,
• geral1*63. tenho uma idéia distinta do corpo, na
17. E, primeiramente, porque sei medida em que é apenas uma coisa
que todas as coisas que concebo clara extensa e que não pensa, é certo que
e distintamente podem ser produzidas este eu, isto é, minha alma, pela qual
por Deus tais como as concebo, basta eu sou o que sou, é inteira e verdadei­
que possa conceber clara e distinta­ ramente distinta de meu corpo e que
mente uma coisa sem uma outra para ela pode ser ou existir sem ele1 6 6.
estar certo de que uma é distinta ou 18. Ainda mais, encontro em imim
diferente da outra, já que podem ser faculdades de pensar totalmente parti­
postas separadamente, ao menos pela culares e distintas de mim, as faculda­
onipotência de Deus; e não importa des de imaginar e de sentir, sem as
por que potência se faça essa separa­ quais posso de fato conceber-me clara
ção, para que seja obrigado a julgá-las e distintamente por inteiro, mas que
diferentes1 64. E, portanto, pelo pró­ não podem ser concebidas sem mim,
prio fato de que conheço com certeza isto é, sem uma substância inteligente
que existo, e que, no entanto, noto que à qual estejam ligadas. Pois, na noção
não pertence necessariamente nenhu­ que temos dessas faculdades, ou (para
ma outra coisa à minha natureza ou à servir-me dos termos da Escola) no seu
minha essência, a náo ser que sou uma conceito formal, elas encerram alguma
coisa que pensa, concluo efetivamente çspécie de intelecção: donde concebo
que minha essência consiste somente que são distintas de mim, como as
em que sou uma coisa que pensa ou figuras, os movimentos e os outros
uma substância da qual toda a essên­ modos ou acidentes dos corpos o são
cia ou natureza consiste apenas em dos próprios corpos que os sustentam.
pensar. E, embora talvez (ou, antes, 19. Reconheço, também, em mim
certamente, como direi logo mais) eu algumas outras faculdades, como as de
tenha um corpo ao qual estou muito mudar de lugar, de colocar-me em
estreitamente conjugado1 6 5, todavia, múltiplas posturas e outras semelhan­
tes, que não podem ser concebidas,
assim como as precedentes, sem algu­
1 63 “E, enfim, considerarei o que devo a respeito
delas agora acreditar.” Em outros termos, não se ma substância à qual estejam ligadas, e
trata mais “agora” de voltar aos “prejuízos” elimi­ nem, por conseguinte, existir sem ela;
nados pela prova da dúvida; mas tampouco se trata mas é muito evidente que essas facul­
de recusar os dados sensíveis em geral, sem anali­
sá-los à luz da veracidade divina. Começa, aqui, a dades, se é verdade que existem, devem
parte principal dessa Meditação, em que serão esta­ ser ligadas a alguma substância corpó-
belecidas as três últimas verdades. • rea ou extensa,, e não a uma substância
1 6 4 Ê o elemento essencial da prova da distinção:
Deus não pode deixar de fazer o que eu concebo inteligente, posto que, no conceito
clara e distintamente. Só este princípio basta para claro e distinto dessas faculdades, há
invalidar todas as conclusões derivadas da união de de fato alguma sorte de extensão que
fato entre a alma e o corpo. se acha contida, mas de modo nenhum
1 6 5 Notar a reserva: não sabemos ainda se a prova
poderá ser aplicada. Cf.: “E se Deus mesmo jun­ qualquer inteligência1 6 7. Demais, en-
tasse tão intimamente corpo e alma que fosse
impossível uni-los mais, e fizesse um composto des­
tas duas substâncias assim unidas, concebemos 166 É a décima verdade. Acerca das noções de dis­
também que permaneceríam realmente distintas, tinção real e modal, cf. Princípios, I, 60-61.
não obstante tal união, porque, qualquer que seja a 1 6 7 Esta distinção dos modos da substância exten­
ligação que Deus estabeleça entre elas, não poderia sa e dos módos da substância inteligente anuncia
desfazer-se do seu poder de separá-las. . . " (Princí­ que deve haver em mim outra coisa além do puro
pios, I, 60.) pensamento.
MEDITAÇÕES 143

contra-se em mim certa faculdade pas­ mente. Pois, não me tendo dado nenhu­
siva de sentir, isto é, de receber e ma faculdade para conhecer que isto
conhecer as idéias das coisas sensí­ seja assim, mas, ao contrário, uma
veis1*68; mas ela me seria inútil, e dela fortíssima inclinação para crer que
não me poderia servir absolutamente, elas me são enviadas pelas coisas cor­
se não houvesse em mim, ou em porais ou partem destas, não vejo
outrem, uma faculdade ativa1 6 9, capaz como se poderia desculpá-lo de embai-
de formar e de produzir essas idéias. mento se, com efeito, essas idéias par­
Ora, essa faculdade ativa não pode tissem de outras causas que não coisas
existir em mim enquanto sou apenas corpóreas, ou fossem por elas produzi­
uma coisa que pensa, visto que ela não das. E, portanto, é preciso confessar
pressupõe meu pensamento1 70, e, tam­ que há coisas corpóreas que exis­
bém, que essas idéias me são frequen­ tem1 72.
temente representadas sem que eu em 21. Talvez elas não sejam, todavia,
nada contribua para tanto e mesmo, inteiramente como nós as percebemos
amiúde, mau grado meu; é preciso, pelos sentidos, pois essa percepção dos
pois, necessariamente, que ela exista sentidos é muito obscura e confusa em
muitas coisas; mas, ao menos, cumpre
em alguma substância diferente de
confessar que todas as coisas que, den­
mim, na qual toda a realidade que há
òbjetivamente nas idéias por ela produ­ tre elas, concebo clara e distintamente,
isto é, todas as coisas, falando em
zidas esteja contida formal ou eminen­
temente (como notei antes). E esta geral, compreendidas no objeto da
Geometria especulativa, aí se encon­
substância é ou um corpo, isto é, uma tram verdadeirameme. Mas, no que se
natureza corpórea, na qual está conti­ refere a outras coisas, as quais ou são
da formal e efetivamente tudo o que
apenas particulares, por exemplo, que
existe objetivamente e por represen­ o sol seja de uma tal grandeza e de
tação nas idéias; ou então é o próprio uma tal figura, etc., ou são concebidas
Deus, ou alguma outra criatura mais
menos claramente e menos distinta­
nobre do que o corpo, na qual isto mente, como a luz, o som, a dor e ou­
mesmo esteja contido eminentemen­ tras semelhantes, é certo que, embora
te1 71. sejam elas muito duvidosas e incertas,
20. Ora, não sendo Deus de modo todavia, do simples fato de que Deus
algum enganador, é muito patente que não é enganador e que, por conse­
ele não me envia essas idéias imediata­ guinte, não permitiu que pudesse haver
mente por si mesmo, nem também por
alguma falsidade nas minhas opiniões,
intermédio de alguma criatura., na qual que não me tivesse dado também algu­
a realidade das idéias não esteja conti­ ma faculdade capaz de corrigi-la, creio
da formalmente, mas apenas eminente­ poder concluir seguramente que tenho
em mim os meios de conhecê-las com
1 68 Passagem à prova da existência das coisas certeza1 73.
materiais. Parte-se do reconhecimento em mim da
existência de uma sensibilidade passiva.
1 6 9 “Se acreditei que a ação e a paixão são apenas 1 72 Se Deus não nos proporcionou nenhum meio
uma única e mesma coisa a que se atribuíram dois de reconhecer ou de evitar um erro, é porque esta­
nomes diferentes...” (A Hyperaspistes, 27 de julho mos diante de uma verdade: processamento análogo
de 1641.) ao de uma prova por absurdo. Assim, fica estabele­
170 Se esta faculdade ativa pressupusesse meu cida a décima primeira verdade: certeza absoluta da
pensamento, eu haveria de sabê-lo. existência dos corpos. .
1 71 Esta faculdade ativa deve estar colocada numa 173 O valor do sentimento é especificado: ele vai
substância fora de mim que, em virtude do princípio mais longe do que a simples atestação da existência
de causalidade, será, ou mais “nobre” do que o dos corpos. Por menor que seja o valor objetivo da
corpo (causa eminente), ou o próprio corpo (causa verdade sensível, esta possui, no entanto, um valor.
formal). Ora, a primeira dessas possibilidades Sem embargo, não é ainda visível qual a verdadeira
infringiría o princípio da veracidade divina. função do sentimento e o fim que o justifica.
144 DESCARTES

22. E, primeiramente, não há dúvi­ quando meu corpo tem necessidade de


da dè que tudo o que a natureza me en­ beber ou de comer, simplesmente per­
sina contém alguma verdade. Pois, por cebería isto mesmo, sem disso, ser
natureza, considerada em geral, não advertido por sentimentos confusos de
entendo agora outra coisa senão o pró­ fome e de sede. Pois, com efeito, todos
prio Deus, ou a ordem e a disposição esses sentimentos de fome, de sede, de
que Deus estabeleceu nas coisas cria­ dor, etc., nada são exceto maneiras
das. E, por minha natureza, em parti­ confusas de pensar que provêm e
cular, não entendo outra coisa senão a dependem da união e como que da
complexão ou o conjunto de todas as mistura entre o espírito e o corpo.
coisas que Deus me deu. 25. Além disso, a natureza me ensi­
23. Ora, nada há que esta natureza na que muitos outros corpos existem
me ensine mais expressamente, nem em tomo do meu, entre os quais devo
mais sensivelmente do que o fato de procurar uns e fugir de outros. E,
que tenho um corpo que está mal dis­ certamente, do fato de que sinto dife­
posto quando sinto dor, que tem neces­ rentes sortes de cores, de odores, de
sidade de comer ou de beber, quando sabores, de sons, de calor e de dureza,
nutro os sentimentos de fome ou de etc., concluo, com segurança, que há
sede, etc. E, portanto, não devo, de nos corpos, de onde procedem todas
modo algum, duvidar que haja nisso essas diversas percepções dos sentidos,
alguma verdade1*7 4. algumas variedades que lhes corres­
24. A natureza me ensina, também, pondem, embora essas variedades tal­
por esses sentimentos de dor, fome, vez não lhes sejam efetivamente seme­
sede, etc., que não somente estou aloja­ lhantes. E, também, do fato de que,
do em meu corpo, como um piloto em entre essas diversas percepções dos
seu navio, mas que, além disso, lhe sentidos, umas me são agradáveis e ou­
estou conjugado muito estreitamente e tras desagradáveis, posso tirar uma
de tal modo confundido e misturado, conseqüência completamente certa,
que componho com ele um único isto é, que meu corpo (ou, antes, eu
todo1 7 5*. Pois, se assim não fosse, mesmo por inteiro, na medida em que
quando meu corpo é ferido não sentiría sou composto do corpo e da alma)
por isso dor alguma, eu que não sou pode receber diversas comodidades ou
sehão uma coisa pensante, e apenas incomodidades dos outros corpos que
percebería esse ferimento pelo entendi­ o circundam.
mento, como o piloto percebe pela 26. Mas há muitas outras coisas
vista se algo se rompe em seu navio; e que parece-me terem sido ensinadas
pela natureza, as quais, todavia, não
1 7 4 Depreende-se agora, o que de verdade contém recebi verdadeiramente dela, mas que
“o ensinamento da natureza”, ou, ainda, qual o
papel orig,inal do sentimento. Em seu -nível, desven- se introduziram em meu espírito por
da-se a décima segunda verdade: eu tenho um corpo certo costume que tenho de julgar
ao qual estou jungido. inconsideradamente as coisas; e,
1 7 5 Frase capital. Descartes não estabeleceu que
eu sou um entendimento + um corpo, porém que assim, pode ocorrer facilmente que
em mim há, além do mais, uma “mistura” dessas contenham alguma falsidade. Como,
duas substâncias. E esta mistura de fato corrige o por exemplo, a opinião que tenho
dualismo de direito. A idéia de que sou totalmente
corpo e totalmente çspírito anuncia um tema funda­ segundo a qual todo espaço, no qual
mental da Antropologia moderna. Pode-se dizer, nada há que se mova e cause impres­
por exemplo, que a Phénoménologie de la Percep-
tion de Merleau-Ponty constitui, em certo sentido, são em meus sentidos, é vazio; què, em
um comentário dessas linhas. um corpo que é quente, há alguma
MEDITAÇÕES 145

coisa de semelhante à idéia do calor ensine que dessas diversas percepções


que existe em mim; que, em um corpo dos sentidos devéssemos jamais con­
branco ou negro, há a mesma brancura cluir algo a respeito das coisas que
ou negrume que sinto; que, em um existem fora de nós, sem que o espírito
corpo amargo ou doce, há o mesmo as tenha examinado cuidadosa e madu­
gosto ou mesmo sabor e assim por ramente. Pois é, ao que me parece,
diante; que os astros e as torres, e somente ao espírito, e não ao com­
todos os outros corpos distantes, têm a posto de espírito e corpo, que compete
mesma figura e grandeza que parecem conhecer a verdade dessas coisas1 7 7.
ter de longe aos nossos olhos, etc.1*7 6 28. Assim, ainda que uma estrela
27. Mas, a fim de que nada haja não cause em meus olhos mais impres­
nisso que eu não conceba distinta­ são do que o fogo de uma vela, não há,
mente, devo definir com precisão o que todavia, em mim nenhuma faculdade
propriamente entendo quando digo que real ou natural que me leve a acreditar
a natureza me ensina algo. Pois tomo que ela não é maior do que esse fogo,
aqui a natureza numa significação mas que assim o julguei desde meus
muito mais limitada do que quando a primeiros anos sem nenhum funda­
denomino conjunto ou complexão de mento razoável. E, conquanto, ao me
todas as coisas, que Deus me deu; visto aproximar do fogo, sinta calor e,
que esse conjunto ou complexão com­ mesmo, sofra dor, aproximando-me
preende muitas coisas que pertencem perto demais, não há, todavia, nenhu­
apenas ao espírito, das quais não pre­ ma razão que me possa persuadir de
tendo falar aqui, ao falar da natureza: que haja no fogo alguma coisa de
como, por exemplo, a noção que tenho semelhante a esse calor, assim como a
desta verdade, de que aquilo que foi essa dor; mas tenho somente razão
uma vez feito já não pode de modo para acreditar que há alguma coisa
algum deixar de ter sido feito, e uma nele, qualquer que seja, que provoca
infinidade de outras semelhantes, que em mim estes sentimentos de calor ou
conheço pela luz natural, sem a ajuda de dor.
do corpo, e que compreende também 29. Do mesmo modo, também, em­
muitas outras que pertencem apenas bora haja espaços nos quais não
ao corpo e que aqui não mais estão encontro nada que provoque e que
incluídas sob o nome de natureza: mova meus sentidos, não devo concluir
como a qualidade que ele tem de ser daí que esses espaços não contêm em
pesado, e várias outras semelhantes, si nenhum corpo; mas vejo que, tanto
das quais não falo tampouco, mas nisso como em várias outras coisas
somente das coisas que Deus me deu, semelhantes, acostumei-me a perverter
como sendo composto de espírito e de e a confundir a ordem da natureza,
corpo. Ora, essa natureza me ensina porque, tendo estes sentimentos ou
realmente a fugir das coisas que cau­ percepções dos sentidos sido postos em
sam em mim o sentimento da dor e a mim apenas para significar ao meu
dirigir-me para aquelas que me comu­ espírito que coisas são convenientes ou
nicam algum sentimento de prazer; nocivas ao composto de que é parte, e
mas não vejo que, além disso, ela me sendo até aí bastante claras e bastante

i 7 e Não estarei indo longe demais ao conceder 1 7 7 Distinção das ordens. “A natureza” designa
esta “verdade” ao sentimento? Não redundará isso somente a substância composta, a zona de mistura
em justificar os “prejuízos da infância” e os erros de da alma e do corpo; e seu “ensinamento” em nada
uma Física “fenomenológica”, como a de Aristó­ concerne ao conhecimento: limita-se à informação
teles e dos escolásticos? biológica.
146 DESCARTES

distintas, sirvo-me delas, no entanto, impelidos pela natureza, como acon­


como se fossem regras muito certas, tece com os doentes, quando desejam
pelas quais possa conhecer imediata­ beber oü comer coisas que os podem
mente a essência e a natureza dos cor­ prejudicar. Dir-se-á talvez aqui qüe a
pos que existem fora de mim, da qual, causa de se enganarem eles é que sua
todavia, nada me podem ensinar senão natureza é corrompida; mas isso não
algo muito confuso e obscuro1*78. afasta a dificuldade, porque um
30 Mas acima já examinei suficien­ homem doente não é menos verdadei­
temente como, não obstante a sobe­ ramente criatura de Deus do que um
rana bondade de Deus, ocorre que haja homem que goza de plena saúde; e,
falsidade nos juízos que formulo dessa portanto, repugna tanto à bondade de
maneira. Somente ainda se apresenta Deus que ele tenha uma natureza enga­
aqui uma dificuldade relativa às coisas nadora e falível quanto o outro. E
que a natureza me ensina que devem como um relógio composto de rodas e
ser seguidas ou evitadas e, também no contrapesos não observa menos exata­
que concerne aos sentimentos interio­ mente todas as leis da natureza quando
res que ela pôs em mim; pois parece- é mal feito, e quando não mostra bem
me ter reparado nelas algumas vezes a as horas, do que quando satisfaz intei­
existência do erro, e, assim, que sou ramente ao desejo do artífice; da
diretamente enganado por minha natu­ mesma maneira também, se considero
reza1 79. Corrio, por exemplo, o gosto o corpo do homem como uma máqui­
agradável de algum alimento ao qual na, de tal modo construída e composta
se tenha misturado veneno pode convi­ de ossos, nervos, músculos, veias, san­
dar-me a tomar este veneno e, assim, gue e pele que, mesmo que não hou­
me enganar. Ê verdade, todavia, que vesse nele nenhum espírito, não deixa­
nisto a natureza pode ser escusada, ria de se mover de todas as mesmas
pois ela me leva somente a desejar o maneiras que faz presentemente, quan­
alimento no qual encontro um sabor do não se move pela direção de sua
agradável, e não a desejar o veneno, vontade, nem, por conseguinte, pela
que lhe é desconhecido; de maneira ajuda do espírito, mas somente pela
que disso não posso concluir outra disposição de seus órgãos, reconheço
coisa senão que minha natureza não
conhece inteira e universalmente todas facilmente que seria tão natural a este
as coisas: do que, certamente, não há corpo, sendo, por exemplo, hidrópico,
que espantar, posto que o homem, sofrer a secura da garganta que costu­
sendo de uma natureza finita, não pode ma significar ao espírito o sentimento
também ter senão um conhecimento de da sede, e dispor-se por esta secura a
uma perfeição limitada. mover seus nervos e suas outras partes
31. Mas nós nos enganamos tam­ da forma requerida para beber e assim
bém bastante frequentemente mesmo aumentar seu mal e prejudicar-se a si
nas coisas às quais somos diretamente mesmo, quanto lhe é natural, quando
não tem nenhuma indisposição, ser le­
1 78 Longe de ser “natural"”, o emprego dos aaaos vado a beber para sua utilidade por
sensíveis com vistas ao conhecimento é, pois, uma semelhante secura da garganta. E,
extrapolação ilegítima em relação ao ensinamento
da “natureza”. A falta só cabe a mim. ainda que, no concernente ao uso ao
1 7*9 Não haverá, todavia, erros inevitáveis e aos qual o relógio foi destinado por seu
quais me conduz o ensinamento da natureza? Acei­ artífice, eu possa dizer que ele se des­
tá-lo é pôr em causa, através da infalibilidade desta,
a bondade de Deus. Tomamos, assim, a um pro­ via de sua natureza quando não marca
blema de Teodicéia. bem as horas; e que, do mesmo modo,
MEDITAÇÕES 147

considerando a máquina do corpo hu­ homem, tomada desse modo, seja falí­
mano como formada por Deus para ter vel e enganadora1 81. •
em si todos os movimentos que costu­ 33. Para começar, pois, este exame,
meiramente estão aí, eu tenha motivo noto aqui, primeiramente, que há gran­
de pensar que ela não segue a ordem de de diferença entre espírito e corpo, pelo
sua natureza quando a garganta está fato de ser o corpo, por sua própria
seca e que beber prejudica-lhe a con­ natureza, sempre divisível e o espírito
servação; reconheço, todavia, que este inteiramente indivisível. Pois, com efei­
último modo de explicar a natureza é to, quando considero meu espírito, isto
muito diferente do outro180. Pois esta é, eu mesmo, na medida em que sou
não é outra coisa senão uma simples apenas uma coisa que pensa, nao
denominação, a qual depende inteira­ posso aí distinguir partes algumas,
mente do meu pensamento, que com­ mas me concebo como uma coisa
para um homem doente e um relógio única e inteira. E, conquanto, o espí­
mal feito com a idéia que tenho de um rito todo pareça estar unido ao corpo
homem são e de um relógio bem feito, todo, todavia um pé, um braço ou
e a qual não significa nada que Se qualquer outra parte estando separada
encontre na coisa da qual ela é dita; ao do meu corpo, é certo que nem por isso
passo que, pela outra maneira de expli­ haverá aí algo de subtraído a meu espí­
car a natureza, entendo algo que se rito. E as faculdades de querer, sentir,
encontra verdadeiramente nas coisas e, conceber, etc., nao podem propria­
portanto, não deixa de ter alguma mente ser chamadas suas partes: pois o
verdade. mesmo espírito emprega-se todo em
32. Mas, certamente, embora em querer e também todo em sentir, em
relação ao corpo hidrópico trata-se conceber, etc. Mas ocorre exatamente
apenas de uma denominação exterior, o contrário com as coisas corpóreas ou
quando se diz que sua natureza está extensas: pois não há uma sequer que
corrompida, pelo fato de que, sem ter eu não faça facilmente em pedaços por
necessidade de beber, não deixa de ter meu pensamento, que meu espírito não
a garganta seca e árida; todavia, com divida mui facilmente em muitas par­
tes e, por conseguinte, que eu não reco­
respeito à totalidade do composto, isto
é, do espírito ou da alma unida a este nheça ser divisível. E isso bastaria
para ensinar-me que o espírito ou a
corpo, não se trata de pura denomina­
alma do homem é inteiramente dife­
ção, mas, antes, de verdadeiro erro da
rente do corpo, se já não o tivesse
natureza, pelo fato de ter sede, quando
suficientemente aprendido alhures1 82.
lhe é muito nocivo o beber; e, portanto, 34. Noto também que o espírito nãò
resta ainda examinar como a bondade recebe imediatamente a impressão de
de Deus não impede que a natureza do todas as partes do corpo, mas somente
do cérebro, ou talvez mesmo de uma
1 80 Antes de passar à justificação de Deus, Des­ de suas menores partes, a saber, aquela
cartes afastará uma solução inaceitável. Trata-se de
compreender por “minha natureza” o corpo mate­
rial como máquina. Portanto, já não procede falar 1 81 Após o malogro da solução materialista, a difi­
de falha na natureza, assim como não procede dizer culdade subsiste, pois, totalmente.
que um relógio é “falível” quando não marca a hora 182 O que vai desculpar Deus é a consideração das
certa: não há patologia das máquinas. Mas esta dificuldades suscitadas de fato pela união entre a
solução, que consiste em reduzir a substância com­ alma e o corpo. Daí por que Descartes, aqui, come­
posta humana ao corpo físico (ou ao animal-má- ça pondo em evidência a incompatibilidade dos dois
quina), é evidentemente incompatível com a união termos a unir: o divisível e o indivisível; união,
substancial. Em Descartes, a psicofisiologia huma­ aliás, que jamais poderemos compreender, mas ape­
na não é materialista. nas constatar e descrever.
148 DESCARTES

onde se exerce a faculdade que cha­ mas somente algumas de suas partes
mam o senso comum, a qual, todas as que passam pelos rins ou pelo pescoço,
vezes que está disposta da mesma isso excite, não obstante, os mesmos
maneira, faz o espírito sentir a mesma movimentos no cérebro que poderiam
coisa183, embora as outras partes do nele ser excitados por um ferimento
corpo possam estar diversamente dis­ recebido no pé, em decorrência do que
postas, como o testemunha uma infini­ será necessário que o espírito sinta no
dade de experiências, que aqui não é pé a mesma dor que sentiria se aí tives­
necessário relatar1 8 4. se recebido um ferimento. E cumpre
35. Noto, além disso, que a natu­ julgar algo semelhante a respeito de
reza do corpo é tal que nenhuma de todas as outras percepções de nossos
suas partes pode ser movida por outra sentidos1 8 5.
parte um pouco distanciada, que não 36. Enfim, noto que, como de todos
possa sê-lo também da mesma forma os movimentos que se verificam na
por cada uma das. partes que estão parte do cérebro do qual o espírito re­
entre as duas, ainda que esta parte cebe imediatamente a impressão, cada
mais distante não aja de modo algum. um causa apenas um certo sentimento,
Como, por exemplo, a corda ABCD nada se pode desejar nem imaginar
que está inteiramente tensa, se chegar­ nisso de melhor, senão que esse movi­
mos a puxar e mexer a última parte D, mento faça o espírito sentir, entre
a primeira A não se mexerá de maneira todos os sentimentos que é capaz de
diferente da que poderiamos fazê-la causar, aquele que é mais próprio e
mexer-se, se puxássemos uma das par­ mais ordinariamente útil à conserva­
tes médias B ou C, e a última D, no ção do corpo humano quando goza de
entanto, permanecesse imóvel. E, da plena saúde1 8 6. Ora, a experiência nos
mesma maneira, quando sinto uma dor leva a conhecer que todos os senti­
no pé, a medicina me ensina que esse mentos que a natureza nos deu são tais
sentimento se comunica por meio de como acabo de dizer; e, portanto, nada
nervos dispersos no pé, que se acham se encontra neles que não tome paten­
estendidos como cordas desde esse tes o poder e a bondade de Deus, que
lugar até o cérebro, quando eles são os produziu1 8 7.
puxados no pé, puxam também, ao 37. Assim, por exemplo, quando os
mesmo tempo, o lugar do cérebro de nervos que estão no pé são movidos
fortemente, e mais do que comumente,
onde provêm e onde chegam, e aí exci­ seu movimento, passando pela medula
tam certo movimento que a natureza
instituiu para fazer sentir dor ao espíri­ 185 O sistema nervoso é apresentado como um
to, como se essa dor estivesse no pé. feixe de fios que partem da periferia para o centro.
Mas, já que esses nervos devem passar Por isso, qualquer que seja o nível do nervo de onde
se desencadeia o movimento (pé, perna, coxa, rins),
pela perna, pela coxa, pelos rins, pelas ele chegará sempre ao mesmo ponto.
costas e pelo pescoço, para estender-se 18 6 Seja qual for o ponto de partida da tração exer­
desde os pés até o cérebro, pode ocor­ cida sobre ela, a glândula só pode, portanto, receber
um único movimento, o que acarreta uma limitação
rer que, embora suas extremidades que considerável da integração nervosa. Deus precisou
se acham no pé não sejam movidas, escolher, para o conjunto dos movimentos indife-
rençáveis de cada nervo, a sinalização mais útil ao
homem.
183 A glândula pineal. 1 8 7 Essa solução do problema, conforme ao princí­
18 4 Somente ao nível da glândula pode o espírito pio do melhor, possibilita todavia o erro. Mas ela
receber as impressões sensoriais, e o sentimento só surge agora como o preço inevitável do mal míni­
varia em função da variação na disposição dessa mo, tomando-se, pois, compatível com a bondade
pequena glândula. de Deus.
MEDITAÇÕES 149

da espinha dorsal até o cérebro, provo­ dor como se ela estivesse no pé e o sen­
ca uma impressão no espírito que lhe tido será naturalmente enganado; por­
faz sentir algo, isto é, dor, como estan­ que o mesmo movimento no cérebro
do no pé, pela qual o espírito é adver­ não podendo causar no espírito senão
tido e excitado a fazer o possível para o mesmo sentimento e este sentimento
afugentar sua causa, como muito peri­ sendo muito mais freqüentemente exci­
gosa e nociva para o pé. tado por uma causa que fere o pé, do
38. Ê verdade que Deus podia esta­ que por alguma outra que esteja alhu­
belecer a natureza do homem de tal res, é bem mais razoável que ele leve
sorte que esse mesmo movimento no ao espírito a dor do pé do que a dor de
cérebro fizesse com que o espírito sen­ alguma outra parte188. E, embora a
tisse uma coisa inteiramente diferente: secura da garganta nem sempre prove­
por exemplo, que o movimento se nha, como de ordinário, do fato de que
fizesse sentir a si mesmo, ou na medida beber é necessário para a saúde do
em que está no cérebro, ou na medida corpo, mas algumas vezes de uma
em que está no pé, ou ainda na medida causa inteiramente contrária, como
em que situado em qualquer outro experimentam os hidrópicos, todavia é
lugar entre o pé e o cérebro, ou, enfim, muito melhor que ela engane neste
qualquer outra coisa, tal como ela caso do que se, ao contrário, ela enga­
possa ser; mas nada disso teria contri­ nasse sempre quando o corpo está bem
buído tão bem para a conservação do disposto; e, assim, em relação às ou­
corpo quanto aquilo que lhe faz sentir. tras coisas.
39. Da mesma maneira, quando 42. E certamente essa consideração
temos necessidade de beber, nasce daí me serve muito, não somente para
certa secura na garganta que move reconhecer todos os erros a que minha
seus nervos e, por intermédio deles, as natureza está sujeita, mas também
partes interiores do cérebro; e esse para evitá-los ou para corrigi-los mais
movimento faz com que o espírito facilmente: pois, sabendo que todos os
experimente o sentimento da sede por­ meus sentidos me significam mais
que, nessa ocasião, nada há que nos ordinariamente o verdadeiro do que o
seja mais útil do que saber que temos falso no tocante às coisas que se refe­
necessidade de beber, para a conserva­ rem às comodidades ou incomodi-
ção da saúde; e assim quanto aos dades do corpo, e podendo quase sem­
outros. pre me servir de vários dentre eles para
40. Donde é inteiramente manifesto examinar uma mesma coisa e, além
que, não obstante a soberana bondade disso, podendo usar minha memória,
de Deus, a natureza do homem, en­ para ligar e juntar os conhecimentos
quanto composto do espírito e do presentes aos passados, e meu entendi­
corpo, não pode deixar de ser, algumas mento, que já descobriu todas as cau­
vezes, falível e enganadora. sas de meus erros, não devo temer
41. Pois, se há alguma causa que
excite, não no pé, mas em qualquer 1 8 8 “Justificação” da ilusão dos amputados. Po-
uma das partes do nervo que está ten­ der-se-ia perguntar se Deus é inteiramente descul­
pado. Afinal de contas, por que colocou ele os
dido desde o pé até o cérebro, ou dados do problema da união de maneira que não
mesmo no cérebro, o mesmo movi­ haja solução perfeita? A Meditação Quarta, porém,
nos ensinou que ignoramos quais são os fins de
mento que se faz ordinariamente quan­ Deus e que a imperfeição do pormenor pode contri­
do o pé está mal disposto, sentir-se-á a buir para a perfeição do conjunto.
150 DESCARTES

doravante que se encontre falsidade elas me aparecem e quando, sem


nas coisas que me são mais .ordinaria­ nenhuma interrupção, posso ligar o
mente representadas pelos meus senti­ sentimento que delas tenho com a
dos1 89. E devo rejeitar todas as dúvi­ sequência do resto de minha vida,
das desses dias passados como estou inteiramente certo de que as per­
hiperbólicas e ridículas, particular­ cebo em vigília e de modo algum em
mente esta incerteza tão geral no que sonho. E não devo de maneira alguma
diz respeito ao sono que eu não podia duvidar da verdade dessas coisas se,
distinguir da vigília: pois agora encon­ depois de haver convocado todos os
tro uma diferença muito notável no meus sentidos, minha memória e meu
fato de que nossa memória não pode entendimento para examiná-las, nada
jamais ligar e juntar nossos sonhos uns me for apresentado por algum deles
com os outros e com toda a sequência que esteja em oposição com o que me
de nossa vida, assim como costuma for apresentado pelos outros. Pois, do
juntar as coisas que nos acontecem fato de que Deus não é enganador
quando despertos. E, com efeito, se segue-se necessariamente que nisso
alguém, quando eu estou acordado, me não sou enganado.
aparecesse de súbito e desaparecesse 43. Mas, como a necessidade dos
da mesma maneira, como fazem as afazeres nos obriga amiúde a nos
imagens que vejo ao dormir, de modo determinar antes que tenhamos tido o
que eu não pudesse notar nem de onde lazer de examiná-las tão cuidadosa­
viesse, nem para onde fosse, não seria mente, é preciso confessar que a vida
sem razão que eu consideraria mais do homem .está sujeita a falhar muito
um espectro ou um fantasma formado frequentemente nas coisas particula­
no meu cérebro e semelhante àqueles res; e, enfim, é preciso reconhecer a
que aí se formam quando durmo do
imperfeição e a fraqueza de nossa
que um verdadeiro homem. Mas quan­
natureza1 9 °.
do percebo coisas das quais conheço
distintamente o lugar de onde vêm e
1 30 Embora nos proporcione o fundamento da ver­
aquele onde estão, e o tempo no qual dade e nos desvende os mecanismos do erro, a
Metafísica não nos fornece, igualmente, o meio infa­
183 O mundo é restabelecido na sua verdade: dis­ lível de não falhar. De resto, ela nos ensinou tam­
pomos dos meios de evitar ao máximo o erro. bém a medir mais exatamente a nossa fmitude.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS
SEGUNDAS OBJEÇÕES1
RECOLHIDAS PELO R. P. MERSENNE
DA BOCA DE DIVERSOS TEÓLOGOS E FILÓSOFOS

Senhor, aperceberdes da obscuridade que os


outros nelas encontram, convém que
Visto que, para confundir os novos sejais advertido daquelas que precisam
gigantes do século12, que ousam atacar ser mais clara e mais amplamente
o Autor de todas as coisas, empreen­ explicadas e demonstradas; e, quando
destes firmar-lhe o trono demons­ nos tiverdes satisfeito nisso, não cre­
trando sua existência, e que vosso mos que alguém mais possa negar que
intento parece tão bem conduzido, que as razões, cuja dedução começastes
as pessoas de bem podem esperar que para a glória de Deus e a utilidade pú­
doravante não haverá quem, depois de blica, não devem ser tomadas por
ler atentamente vossas Meditações, demonstrações.
não confesse haver uma divindade Primeiramente, haveis de recordar-
eterna de que dependem todas as coi­ vos que não foi atualmente e em verda­
sas, julgamos oportuno vos advertir, e de, mas apenas por uma ficção do espí­
solicitar, ao mesmo tempo, que difun­ rito, que rejeitastes, tanto quanto vos
dais ainda sobre certas passagens, que foi possível, as idéias de todos os cor­
assinalaremos mais abaixo, uma tal pos, como coisas simuladas ou fantas­
luz, que nada reste em toda a vossa mas enganadores, para concluir que
obra que não seja, se possível, mui sois somente uma coisa pensante; de
clara e mui manifestamente demons­ medo que talvez, assim sendo, vós
trado. Pois, já que desde muitos anos, considereis que se possa concluir que
por contínuas meditações, exercitastes de fato e sem ficção3 não sois nada
de tal modo vosso espírito que as coi­ mais senão um espírito, ou uma coisa
sas que se afiguram a outrem obscuras que pensa; foi só o que achamos digno
e incertas podem parecer-vos mais cla­ de observação no tocante às vossas
ras, e que as concebeis, talvez, por uma duas primeiras Meditações, onde mos­
simples inspeção do espírito, sem vos trais claramente ser certo ao menos
que vós, que pensais, sois algo. Mas
1 O confronto do próprio texto das Objeções com detenhamo-nos um pouco nesse ponto.
as Respostas é indispensável. Particularmente por­ Até aí sabeis que sois uma coisa pen­
que mostra bem como é preciso ler as Meditações.
Os contraditores não levam em conta a ordem das sante, mas não conheceis ainda o que é
razões; não souberam ler a obra tal como se lê um essa coisa pensante. E como sabeis que
livro de Matemática. De sorte que, embora não seja não é um corpo que, por seus diversos
destituída de sentido, a maioria dos argumentos não
atinge o que Descartes'quis dizer. movimentos e choques, efetua essa
2 Trata-se dos libertinos. Os teólogos tomaram a
sério as intenções apologéticas de Descartes e criti­
caram a obra do ponto de vista da ortodoxia. 3 O grifo é do comentador. (N. dos T.)
156 DESCARTES

ação que denominamos pensamento? percebo existir em mim outro grau


Pois, embora acrediteis haverdes rejei­ qualquer, e, de todos os graus capazes
tado todas as espécies de corpos, podia de serem adicionados, constituir a
acontecer que vos enganásseis, não idéia de um ser perfeito? Mas, dizeis, o
tendo rejeitado a vós próprio, que sois efeito não pode apresentar nenhum
um corpo. Pois, como provais que um grau de perfeição, ou de realidade, que
CQrpo não pode pensar? Ou que movi­ não tenha estado anteriormente na sua
mentos corporais não são o próprio causa. Mas (além de verificarmos
pensamento? E por que o sistema todo todos os dias que as moscas e inúme­
de vosso corpo, que credes haver rejei­ ros outros animais, assim como as
tado, ou partes dele, as do cérebro, por plantas, são produzidos pelo sol, pela
exemplo, não podem concorrer para chuva e pela terra, nos quais não há
formar esses movimentos que chama­ nenhuma vida, como há nesses ani­
mos pensamentos? Eu sou, dizeis, uma mais, vida que é mais nobre do que
coisa pensante; mas como sabeis que
não sois, outrossim, um movimento qualquer outro grau puramente corpó­
corpóreo, ou um corpo movido? reo, de onde resulta que o efeito cobra,
de sua causa, alguma realidade, que no
Segundamente 4, da idéia de um ser entanto não existia na causa)5; mas,
soberano, que, sustentais, vós mesmo digo eu, essa idéia nada mais é que um
não podeis produzir, ousais concluir a ente de razão, que não é mais nobre do
existência de um soberano ser, de que .vosso espírito, que a concebe6.
quem somente pode proceder a idéia Além disso, como sabeis que esta idéia
que se acha em vosso espírito. Mas jamais se vos oferecería ao espírito, se
encontramos em nós próprios um fun­ tivésseis passado toda a vida num
damento suficiente, em que basta estar­ deserto, e nunca em companhia de pes­
mos apoiados para poder formar essa soas sapientes? E não se poderia ale­
idéia, embora não haja nenhum sobe­ gar que a hauristes dos pensamentos
rano ser, ou não saibamos se existe que vos haviam ocorrido anterior­
algum e sua existência não nos venha mente, dos ensinamentos dos livros,
mesmo ao pensamento; pois não vejo dos discursos e conversações de vossos
que, tendo a faculdade de pensar, amigos, etc., e não de vosso exclusivo
tenho em mim algum grau de perfei­ espírito, ou de um soberano ser exis­
ção? E não vejo também que outros, tente7? Portanto, cumpre provar mais
além de mim, possuem grau seme­ claramente que essa idéia não poderia
lhante? E isso me serve de base para estar em vós, se não houvesse nenhum
pensar em qualquer número que seja e
para juntar também um grau de perfei­ 5 A geração espontânea é apresentada como um
ção ao outro, até o infinito; da mesma fato da experiência. A respeito desta certeza na
aberração, característica do espírito “pré-experi-
maneira que, mesmo se houvesse no mental”, cf. a Formation de ITSsprit Scientifiqüe, de
mundo um único grau de calor ou de Bachelard.
6 A objeção não leva em conta a distinção feita
luz, poderia, não obstante, juntá-los e entre realidade formal e realidade objetiva da idéia.
supor sempre outros novos até o infini­ 7 Passagem típica: esses argumentos mostram o
to. Por que, analogamente, não poderia quanto os contraditores não souberam elevar-se ao
plano da Metafísica como ciência rigorosa, con­
acrescentar a qualquer grau de ser que forme Descartes .a compreende: interpretando as
Meditações como um “ensaio” (na acepção moder­
4 Esta segunda objeção, destinada a mostrar que a na) e não como um tratado científico, eles opõem
primeira prova a posteriori não é probante, é parti­ fatos extraídos da experiência corrente a verdades
cularmente confusa. que se situam ao nível do encadeamento das razões.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS .157

soberano ser; e então seremos os pri­ não sabeis ainda que sois uma' coisa
meiros anos render a vosso raciocínio, pensante, porquanto, segundo vós, tal
e dar-nos-emos todos as mãos. Ora, conhecimento depende do conheci­
que tal idéia procede dessas noções mento claro de um Deus existente, que
antecipadas, patenteia-se, parece, ainda não demonstrastes, nos lugares
assaz claramente do fato de os cana­ onde concluís que conheceis clara­
denses, os hurões e os outros homens mente o que sois. Adicionai a isso que
selvagens não possuírem neles tal um ateu conhece clara e distintamente
idéia, a qual podeis até formar do que os três ângulos de um triângulo
conhecimento que tendes das coisas são iguais a dois retos, embora esteja
corporais; de sorte que vossa idéia muito longe de crer na existência de
nada mais representa senão esse Deus, posto que a negou completa­
mundo corporal, que abrange todas as mente: porque, diz ele, se Deus existis­
perfeições que poderieis imaginar; de se, haveria um soberano ser e um sobe­
sorte que não podeis concluir outra rano bem, isto é,. um infinito; ora, o
coisa, exceto que há um ente corpóreo que é infinito, em todo gênero de
muito perfeito; a não ser que junteis- perfeição, exclui toda outra coisa que
algo mais, que eleve vosso espírito ao seja não somente toda espécie de ser e
conhecimento das coisas espirituais ou de bem mas, outrossim, toda espécie de
incorpóreas. Ainda aqui é possível não-ser e de mal; no entanto, há mui­
afirmar que a idéia de um anjo pode tos seres e muitos bens,, assim como
existir em vós, tanto quanto a de um muitos não-seres e muitos males; obje­
ser mais perfeito, sem que haja necessi­
ção à qual julgamos ser oportuno que
dade, para tanto, de que seja formada
vós respondais, de modo que aos ím­
em vós por um anjo realmente existen­
te, embora o anjo seja mais perfeito do pios nada mais reste a objetar, e que
que vós. Mas não tendes a idéia de possa servir de pretexto à sua impieda­
de.
Deus, assim comò a de um número ou
a de uma linha infinita; e, ainda que Em quarto lugar, negais que Deus
pudésseis tê-la, este número é inteira­ possa mentir ou enganar; conquanto se
mente impossível. Adicionai a isto que encontrem escolásticos que sustentam
a idéia de unidade e simplicidade de o contrário, como Gabriel, Arimi-
uma única perfeição que envolva e nensis e alguns outros, os quais pen­
contenha todas as outras constitui-se sam que Deus mente, falando absolu­
unicamente pela operação do entendi­ tamente, isto é, que ele significa algo
mento que raciocina, assim como se aos homens contra sua intenção, e con­
constituem as unidades universais, que tra o que decretou e resolveu, como
quando, sem acrescentar condição, diz
não estão nas coisas, mas somente no
aos ninivitas por seu profeta: Ainda
entendimento, como é visível pela uni­
quarenta dias, e Nínive será subver­
dade genérica, transcendental, etc.
tida, e ao dizer muitàs outras coisas
Em terceiro lugar, como ainda não que não aconteceram, porque não pre­
estais certo da existência de Deus e tendeu que tais palavras correspon­
dizeis, no entanto, que não podeis estar dessem à sua intenção ou a seu decre­
seguro de coisa alguma, ou conhecer to. Por que se empederniu e cegou o
coisa alguma clara e distintamente, se Faraó, e, se pôs nos profetas um espí­
primeiro não conheceis certa e clara­ rito de mentira, como podeis afirmar
mente que Deus existe, segue-se que que não podemos ser enganados por
158 DESCARTES

ele? Não pode Deus comportar-se com espírito que a governa e, se, ao contrá­
os homens como um médico com seus rio, expõe-se ao perigo, quando perse­
doentes, e um pai com seus filhos, que gue e abrange os conhecimentos^ obs­
tanto um como outro enganam tão curos e confusos do entendimento,
amiúde, mas sempre com prudência e notai que daí parece possível inferir
utilidade? Pois se Deus nos mostrasse que os turcos e os outros infiéis não só
a verdade inteira e nua, que olho ou, não pecam quando não abraçam a reli­
antes, que espírito possuiría bastante gião cristã e católica mas até mesmo
força para suportá-la8 ? pecam quando a abraçam, pois não
Ainda que, a bem dizer, não seja conhecem sua verdade nem clara nem
necessário supor um Deus enganador, distintamente. Ainda mais, se for ver­
para que sejais decepcionados nas coi­ dadeira essa regra que estabeleceis,
sas que pensais conhecer clara e distin­ não será dado à vontade abranger
tamente, visto que a causa dessa senão pouquíssimas coisas, visto que
decepção pode estar em vós, embora não conhecemos quase nada com a
nem sequer o sonheis. Pois como sa­ clareza e distinção que exigis, para
beis que vossa natureza não é tal que constituir uma certeza que não esteja
ela se engana sempre, ou ao menos sujeita a nenhuma dúvida. Tomai,
com muita freqüência? E onde vos pois, cuidado, se vos apraz, para que,
informaram que, ho tocante às coisas pretendendo firmar o partido da verda­
que pensais conhecer clara e distinta­ de, não proveis mais do que o necessá­
mente, é certo que nunca estivestes rio, e para que, em vez de apoiá-lo, não
enganado, e que não o podeis estar? o derrubeis.
Pois quantas vezes verificamos que as Em sexto lugar, nas vossas respostas
pessoas se enganam em coisas que às objeções precedentes, parece que
pensavam ver mais claramente do que deixastes de tirar a devida conclusão
o sol! Portanto, esse princípio do do seguinte argumento: O que entende­
conhecimento claro e distinto deve ser mos pertencer clara e distintamente à
explicado tão clara e distintamente natureza, ou à essência, ou à forma
que, doravante, ninguém dotado de imutável e verdadeira de qualquer
espírito razoável possa ficar decepcio­ coisa, pode ser dito ou afirmado com
nado nas coisas que julgar conhecer verdade desta coisa; mas (depois de
clara e distintamente9; de outro modo, observar assaz cuidadosamente o que é
ainda não vemos nada que possamos Deus) entendemos clara e distinta­
responder com certeza sobre a verdade mente que pertence à sua verdadeira e
de qualquer coisa. imutável natureza, que ele existeyQ.
Em quinto lugar, se a vontade nunca
pode falhar, ou não peca de maneira 10 O silogismo das Primeiras Respostas ao qual se
alude é o seguinte: o que concebemos clara e distin­
alguma, quando segue e se deixa con­ tamente pertencer à natureza de uma coisa, pode­
duzir pelas luzes claras e distintas do mos afirmar com verdade desta coisa; ora, concebe­
mos clara e distintamente que pertence à natureza
de Deus existir; logo, Deus existe. As Primeiras
8 Oposição — embaraçosa para o autor — do Respostas concedem que “a dificuldade da menor
Deus cartesiano ao Deus antropomórfico das não é pequena”: l.° devido à distinção que fazemos
Escrituras. entre essência e existência “em todas as outras coi­
8 O princípio de clareza e distinção é ele mesmo sas”; 2.° devido ao fato de que a idéia de Deus pre­
claro e distinto? Ou então não designa ele senão cisa corresponder a uma “natureza verdadeira e
uma certeza psicológica e subjetiva, não passando, imutável” e de que eu devo poder verificar qüe ela
por conseguinte, como dirá Leibniz, de “uma marca não foi forjada pelo meu entendimento. Descartes
de certeza obscura e sujeita ao capricho dos responde a essas duas dificuldades prejudiciais ao
homens”? fim das Primeiras Respostas. \
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 159

Cumpriría concluir: logo (após obser­ uma só palavra em vossas Meditações


var assaz cuidadosamente o que é sobre a imortalidade da alma humana,
Deus), podemos dizer ou afirmar com que, no entanto, devíeis principalmente
verdade que pertence à natureza de provar, dando-lhe mui exata demons­
Deus que ele exista. Daí não decorre tração para confundir essas pessoas
que Deus existe de fato, mas somente indignas da imortalidade, pois a
que deve existir, caso sua natureza seja negam, e talvez, a detestem. Mas, além
possível, ou não repugne em nada; isto disso, tememos que não haveis ainda
é, que a natureza ou a essência de provado suficientemente a distinção
Deus é inconcebível sem existência, de que existe entre a" alma e o corpo do
tal sorte que, se esta essência é, ele homem, como já notamos na primeira
existe realmente. Isso se relaciona com de nossas observações, à qual acres­
o argumento que outros propõem da centamos que não parece seguir-se,
seguinte forma: se não implica11 que dessa distinção da alma com o corpo,
Deus seja, é certo que ele existe; ora, que ela seja incorruptível ou imortal;
não implica que ele exista; portanto, pois quem sabe se sua natureza não é
etc. Mas o que está em discussão é a limitada pela duração da vida corpo­
menor, a saber, que não implica que ral, e se Deus não mediu de tal manei­
ele existe, cuja verdade alguns de nos­ ra suas forças e sua existência, que ela
sos adversários põem em dúvida e ou­ finde com o corpo?
tros negam. Demais, esta cláusula de Eis, Senhor, as coisas a que deseja­
vosso raciocínio (após termos assaz mos que forneçais maior luz para que
claramente reconhecido e observado o a leitura de vossas mui sutis, e, como
que é Deus) é suposta como verda­ estimamos, mui verdadeiras Medita­
deira, no que nem todo mundo está ções seja proveitosa a todo mundo.
ainda de acordo, já que vós próprio Daí por que seria muito útil, se, ao fim
confessais que não compreendeis o de vossas soluções, após terdes primei­
infinito senão imperfeitamente; o ramente adiantado algumas definições,
mesmo se deve dizer de todos os seus postulados e axiomas, concluirdes o
outros atributos: pois, sendo tudo o todo, segundo o método dos geôme­
que é em Deus inteiramente infinito, tras, em que sois tão bem versado12,
qual o espírito capaz de compreender a para que de uma só vez, e como de um
menor coisa que seja em Deus, se não só relance, vossos leitores possam
mui imperfeitamente? Como podeis, encontrar com o que se satisfazer, e
portanto, ter observado bastante clara para que preenchais seus espíritos com
e distintamente o que é Deus? o conhecimento da divindade.
Em sétimo lugar, não encontramos
12 Na realidade, “o método dos geômetras” (a
11 Implica = implica contradição (como em qual­ expressão tem aqui o sentido que lhe atribuem Spi-
quer outra parte). Nesta acepção, o termo será noza e Pascal) aqui invocado não é o que Descartes
empregado tanto nesta passagem como nas Respos­ pratica, pois ele sempre fez reservas sobre a exposi­
tas. ção sintética euclidiana.
RESPOSTAS DO AUTOR
ÀS SEGUNDAS OBJEÇÕES
RECOLHIDAS DE MUITOS TEÓLOGOS E FILÓSOFOS
PELO R. P. MERSENNE13

Senhores, mas coisas que suponho não existirem


de modo algum, porque me são desco­
Foi com muita satisfação que li as nhecidas, não difiram efetivamente de
vossas observações sobre o meu peque­ mim que conheço: nada sei a respeito,
no tratado da Filosofia primeira; pois não discuto agora sobre isso, etc.,
deram-me a conhecer a benevolência pelas quais pretendi expressamente
que tivestes para comigo, a vossa pie­ advertir o leitor de que, naquele ponto,
dade para com Deus e o cuidado que não procurava ainda saber se o espírito
tomais para o avanço de sua glória; e era diferente do corpo1 4, mas exami­
só posso me regozijar, não apenas por­ nava somente aquelas de suas proprie­
que julgastes minhas razões dignas de dades de que posso ter claro e seguro
vossa censura, mas também porque conhecimento. E, posto que o observei
nada adiantais contra elas que não me aí muitas vezes, não posso admitir sem
pareça poder responder bastante co­ distinção o que acrescentais em segui­
modamente. da: Que não sei, no entanto, o que é
Em primeiro lugar, vós me advertis uma coisa que pensa. Pois, embora
para que eu me recorde: Que não foi confesse que não sabia ainda se essa
atualmente e em verdade, mas apenas coisa pensante não era diferente do
por uma ficção do espírito, que rejeitei corpo, ou se o era, não confesso com
as idéias ou os fantasmas dos corpos, isso que não a conhecia de modo
para concluir que sou uma coisa pen­ algum, pois quem jamais conheceu de
sante, de medo que talvez eu considere tal maneira alguma coisa que soubesse
que daí se segue que eu não sou senão nada haver nela exceto aquilo mesmo
uma coisa que pensa. Mas já mostrei, que conhecia1 5? Mas pensamos co-
na minha Meditação Segunda, que me
1 4 Não se tratava de provar “naquele lugar” a dis­
lembrava suficientemente disso, visto tinção real entre a alma e o corpo; de resto, não
haver colocado aí essas palavras: Mas sabemos ainda se há corpos. Como os teólogos não
também pode acontecer que essas mes­ prestaram atenção à ordem das razões, a primeira
objeção deles não tem qualquer alcance.
1 5 Ter certeza de que conheço uma coisa como
13 Observar-se-á nesse texto como e por que o diá­ completa não significa ter certeza de que conheço
logo entre Descartes e os contraditores é impossí­ completamente uma coisa. Quando concebo algo
vel; a diferença entre eles não é a de uma doutrina clara e distintamente, negando a seu respeito tudo o
para outra, mas de um pensamento retórico para mais, não estou certo por isso “que Deus nada pôs
um pensamento matemático, da dialética para o a.mais nessa coisa além do que o meu entendimento
rigor. conhece”. (Quartas Respostas.)
162 DESCARTES

nhecer tanto melhor uma coisa quanto mais útil para alcançar um firme e se­
mais particularidades dela conhece­ guro conhecimento das coisas do que
mos; assim, temos mais conhecimento acostumar-se, antes de estabelecer
daqueles com quem conversamos algo, a duvidar de tudo e principal­
todos os dias do que daqueles de que mente das coisas corporais, embora
só conhecemos o nome ou o rosto; e houvesse visto há longo tempo muitos
todavia não julgamos que esses nos livros escritos pelos céticos e acadê­
sejam inteiramente desconhecidos; micos sobre a matéria e não fosse sem
nesse sentido penso ter suficientemente certo fastio que ruminava um alimento
demonstrado que o espírito, conside­ tão comum, não pude todavia dispen-
rado sem as coisas que se costumam sar-me de lhe conceder uma Meditação
atribuir ao corpo, é mais conhecido inteira; e gostaria que os leitores
que o corpo considerado sem o espíri­ empregassem não apenas o pouco
to. E é tudo o que pretendia provar tempo necessário para lê-la, mas al­
nessa Meditação Segunda. guns meses, ou ao menos algumas
Mas bem vejo o que pretendeis semanas, em considerar as coisas de
dizer, a saber, que, havendo eu escrito que ela trata, antes de passar além;
apenas seis Meditações sobre a Filoso­ pois assim não duvido que aufiram
fia primeira, os leitores se espantarão lucro bem melhor da leitura do restan­
de que, nas duas primeiras, não con­ te.
clua nada mais senão o que acabo de Ademais, por não termos tido até
declarar nesse instante, e pôr isso hão agora quaisquer idéias das coisas per­
de achá-las demasiado estéreis e indig­ tencentes ao espírito que não fossem
nas de terem sido trazidas à luz1*6. A muito confusas e misturadas às idéias
isso respondo somente não temer que das coisas sensíveis, e por ter sido esta
aqueles que houverem lido com discer­ a primeira e principal razão pela qual
nimento o restante do que escrevi te­ não se pôde entender assaz claramente
nham ocasião de suspeitar que eu haja nenhuma das coisas que se diziam de
malogrado no trato da matéria; mas Deus e da alma, pensei que não faria
que me pareceu muito razoável que as pouco se mostrasse como é preciso dis­
coisas que exigem particular atenção, e tinguir as propriedades ou qualidades
devem ser consideradas separadamente do espírito das propriedades ou quali­
das outras, fossem postas em Medita­ dades do corpo, e como é preciso
ções separadas1 7. reconhecê-las; pois, embora muitos já
Eis por que, não conhecendo nada tenham dito que, para bem entender as
coisas imateriais ou metafísicas, é
1 6 “Isto poderia ser dito em quatro palavras e esta­ necessário distanciar o nosso espírito
ríamos todos de acordo. Se eu devesse gastar tantas
palavras e tempo para aprender uma coisa de tão dos sentidos, não obstante ninguém,
pouca importância, teria dificuldade de me resignar que eu saiba, mostrou ainda por que
a. isso”, é o que Descartes faz dizer a seu adversário meio é possível realizá-lo. Ora, o
no diálogo La Recherche de la Vérité. Kant terá de verdadeiro, e a meu juízo, o único meio
defender-se da mesma censura e fará muitas vezes
observar que é preciso distinguir entre o tema da para isso está contido na minha Medi­
finitude de nosso conhecimento, lugar-comum da tação Segunda1 8; mas é de tal ordem
Metafísica, e a demonstração e determinação preci­
sa dos limites de nosso conhecimento.
1 7 Cf. Cartas, a Mersenne, de 24 de dezembro de 18 Este “único meio” é “o método de segregação”
1640, sobre a diferença essencial entre a ordem das (Guéroult, t. I, 69): não posso me conceber 'clara e
matérias e a ordem das razões: “Não intento abso­ distintamente senão excluindo tudo de mim salvo o
lutamente dizer em um mesmo lugar tudo quanto pensamento (distinção real), não posso conceber as
pertence a uma matéria, porque me seria impossível faculdades não intelectuais de meu éspírito sem
prová-lo efetivamente. . .” incluir nelas o pensamento (distinção modal).
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 163

que não basta tê-lo encarado uma vez, dar algum. Pois, o que direis vós? Que
cumpre examiná-lo amiúde e conside­ essas coisas são realmente distintas,
rá-lo durante muito tempo, a fim de podendo cada qual existir sem a outra?
que o hábito .de confundir as coisas Mas eu tomaria a perguntar-vos de
intelectuais com as corporais, que se onde sabeis que uma coisa pode existir
enraizou em nós no curso de toda a sem a outra. Pois, para que isso consti­
nossa vida, possa ser expungido por tua um signo de distinção, é necessário
um hábito contrário, o de distingui-las, que seja conhec-ido.
adquirido pelo exercício de alguns Alegareis talvez que os sentidos vo-
dias. E isso me pareceu uma causa lo fazem conhecer, por que vedes uma
bastante justa para que não versasse coisa na ausência de outra, ou porque
outra matéria na Meditação Segunda. a tocais, etc. Mas a fé dos sentidos é
Perguntais aqui como demonstro mais incerta que a do entendimento; e
que o corpo não pode pensar; mas per­ pode acontecer de muitas maneiras que
doai-me se respondo que ainda não dei uma só e mesma coisa se apresente a
lugar a tal questão, tendo apenas nossos sentidos sob diversas formas,
começado a tratá-la na Meditação ou em diversos lugares e maneiras,
Sexta, pelas seguintes palavras: É sufi­ sendo assim tomada por duas. E enfim,
ciente que eu possa clara e distinta­ se vos recordais do que foi dito da cera
mente conceber uma coisa sem outra, ao termo da Meditação Segunda, sa­
para ser certo que uma é distinta ou beis que os corpos mesmos não são
diferente da outra, etc. E pouco depois: propriamente conhecidos pelos senti­
Ainda que eu tenha um corpo que me dos, mas só pelo entendimento; de tal
seja mui estreitamente ligado, no en­ modo que sentir uma coisa sem uma
tanto, porque, de um lado, possuo uma outra nada é senão ter a idéia de uma
idéia clara e distinta de mim próprio, coisa, e entender que essa idéia não é a
na medida em que sou apenas uma mesma que a idéia de uma outra: ora,
coisa que pensa, e não extensa, e que, isso só é cognoscível pelo fato de que
de outro, possuo uma idéia clara e dis­ uma coisa é concebida sem a outra; o
tinta do corpo, na medida em que é que não pode ser certamente conheci­
apenas uma coisa extensa, e que não do, se não se tem a idéia clara e dis­
pensa, é certo que eu, isto é, meu espí­ tinta dessas duas coisas: e assim esse
rito, ou minha alma, pela qual sou o signo de real distinção deve reduzir-se
que sou, é inteira e verdadeiramente ao meu para tomar-se certo.
distinta de meu corpo, e que pode ser Porque, se há os que negam haver
ou existir sem ele. Ao que é facil adi­ idéias distintas do espírito e do corpo,
cionar: Tudo o que pode pensar é espí­ nada posso fazer, exceto pedir-lhes que
rito, ou se chama espírito. Mas como o considerem assaz atentamente as coi­
corpo e o espírito são realmente distin­ sas contidas nessa Meditação Segunda,
tos, nenhum corpo é espírito. Logo, ne­ e notem que a opinião, por eles adota­
nhum corpo pode pensar. E certamente da, de que as partes do cérebro concor­
nada vejo nisso que possais negar; pois rem com o espírito para formar nossos
negareis vós que basta concebermos pensamentos não se baseia em nenhu­
claramente uma coisa sem outra, para ma razão positiva, mas apenas em que
sabermos que são realmente distintas? jamais experimentaram ter existido
Dai-nos, portanto, algum signo mais sem corpo, e que com muita freqüência
certo da distinção real, se é que se pode foram impedidos por ele em suas
164 DESCARTES

operações1*9; e isso é o mesmo que se logo direi mais amplamente, é mani­


alguém, pelo fato de levar desde a festa pela luz natural20.
infância ferros nos pés, julgasse que A isso acrescento que tudo qJanto
tais ferros constituíam parte de seu objetais aqui acerca das moscas, sendo
corpo, e lhe eram necessários para tirado da consideração das coisas
andar. materiais, não pode vir ao espírito
Em segundo lugar, quando dizeis: daqueles que, seguindo a ordem de mi­
Que temos em nós próprios um funda­ nhas Meditações, desviam seus pensa­
mento suficiente para formar a idéia de mentos das coisas sensíveis, para co­
Deus, nada dizeis em contrário à meçar a filosofar.
minha opinião. Pois eu mesmo afirmei
Não me parece tampouco que pro­
em termos expressos, ao fim da Medi­
vais algo contra mim, afirmando que a
tação Terceira: Que esta idéia nasceu
idéia de Deus que está em nós é apenas
comigo, e ela não me vem de outra
um ser de razão. Pois isso não é verda­
parte senão de mim mesmo. Confesso
de, se por um ser de razão se com­
também que poderiamos formá-la, em­
preende uma coisa que não existe, mas
bora não soubéssemos que hâ um
somente se todas as operações do
soberano ser, mas não se efetivamente
entendimento são tomadas por seres de
não existisse um ente assim; pois, ao
razão, isto é, por seres que partem da
invés, adverti que toda força de meu
razão; nesse sentido, todo esse mundo
argumento consiste em que não pode­
pode também chamar-se um ser de
ría ocorrer que a faculdade de formar
razão divina, isto é, um ser criado por
essa idéia existisse em mim, se eu não
um simples ato do entendimento divi­
tivesse sido criado por Deus.
no. E já adverti suficientemente, em
E o que dizeis das moscas, das plan­
vários lugares, que falava apenas da
tas, etc., não prova, de maneira algu­
perfeição ou realidade objetiva dessa
ma, que algum grau de perfeição, possa idéia de Deus, a qual não requer menos
estar num efeito, não tendo estado uma causa, onde esteja contido de fato
antes na causa. Pois é certo não haver tudo o que não está contido nela senão
perfeição nos animais destituídos de objetivamente ou por representação,
razão que não se encontre também nos do que a requer o artifício objetivo ou
corpos inanimados, ou, se há alguma representado, existente na idéia que
perfeição, esta lhes provém de outra qualquer artesão tem de uma máquina
parte, não sendo o sol, a chuva e a muito artificial.
terra as causas totais desses animais. E
seria algo bem afastado da razão se E por certo não vejo como se possa
alguém, pelo simples fato de não acrescentar algo para explicar mais
conhecer a causa que concorra para, a claramente que esta idéia não pode
geração de uma mosca e que possua estar em nós, se um soberano ser não
tantos graus de perfeição quantos há existe, a menos que o leitor, notando
numa mosca, não estando todavia se­ mais de perto as coisas que já escrevi,
guro de que haja outras além das que
conhece, aproveitasse a ocasião para 20 Tanta perfeição há na coisa quanto há pelo
menos nâ causa: tal é o princípio “manifesto pela
duvidar de uma coisa, a qual, como luz natural”. Contra este princípio, õs contraditores
não. invocam sequer uma verdade de experiência,
porém uma verossimilhança. Com efeito, no caso
presente, não têm eles certeza de que não haja ou­
1 9A objeção tirada de um dado de fato antropo­ tras causas da geração, além das causas aparentes
lógico, não vale contra um dado de fato eidético. que alegam.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 165

se livre a si mesmo dos prejuízos que lhes prestar grande atenção. Ora, de
lhe ofuscam talvez a luz natural, e se tudo isso, conclui-se mui manifesta­
acostume a dar crédito às primeiras mente que Deus existe21. E todavia,
noções, cujos conhecimentos são tão em favor daqueles cuja luz natural é
verdadeiros e tão evidentes, como nada tão fraca, que não vêem que constitui
mais pode sê-lo, de preferência às opi­ uma primeira noção que toda a perfei­
niões obscuras e falsas, mas que um ção que está objetivamente numa idéia
longo uso gravou profundamente em deve estar realmente em alguma de
nossos espíritos. suas causas, ainda a demonstrei de
Pois que nada exista em um efeito maneira fácil de conceber, mostrando
que não tenha existido de forma seme­ que o espírito que tem esta idéia não
lhante ou mais excelente na causa é pode existir por si próprio; e, portanto,
uma primeira noção, e tão evidente, não vejo o que podeis desejar mais
que não há nada mais claro; e esta para me dardes as mãos, como haveis
outra noção comum, que de nada nada prometido.
se faz, a compreende em si, porque, se Não vejo tampouco que tenhais pro­
se concorda que exista algo no efeito vado algo contra mim, dizendo que tal­
que não existiu na sua causa, cumpre vez eu tenha recebido a idéia que me
concordar também que isso procede do representa Deus dos pensamentos que
nada; e se é evidente que o nada não concebi anteriormente, dos ensina­
pode ser a causa de algo, é somente mentos dos livros, dos discursos de
porque, nesta causa, não haveria a meus amigos, etc., e não somente de
mesma coisa do que no efeito. meu espírito. Pois meu argumento terá
sempre a mesma força, se, dirigindo-
Constitui também uma primeira me àqueles de quem se diz que eu a
noção que toda a realidade, ou toda a recebi, eu lhes perguntar se.a têm por
perfeição, que só está objetivamente si mesmos, ou por outrem, em vez de
nas idéias, deve estar formal ou emi­ perguntá-lõ a mim próprio; e eu con­
nentemente nas suas causas; e toda cluirei sempre que este outro é Deus,
opinião que jamais nutrimos sobre a de quem ela é primeiramente derivada.
existência das coisas fora de nós Quanto ao que acrescentais neste
apóia-se tão-somente nela. Pois de ponto, de que ela pode ser formada da
onde nos podería advir a suspeita de consideração das coisas corporais, não
que existissem, se não do simples fato me parece mais verossímil do que se
de suas idéias virem pelos sentidos disserdes que não dispomos de qual­
ferir nosso espírito? quer faculdade auditiva, mas que, pela
Ora, que há em nós alguma idéia de simples visão das cores, chegamos ao
um ente soberanamente poderoso e conhecimento dos sons. Pois pode-se
perfeito, e também que a realidade afirmar que há mais analogia ou rela­
objetiva desta idéia não se encontra em ção entre as cores e os sons do que
nós, nem formal, nem eminentemente, entre as coisas corporais e Deus. E
isto tornar-se-á manifesto aos que pen­ quando pedis que eu adicione alguma
sarem seriamente no assunto, e quise­
rem dar-se ao trabalho de meditá-lo 21 Toda essa página é menos uma resposta do que
comigo; mas não podería enfiá-lo à uma retomada da primeira prova pelos efeitos cujas
força no espírito dos que lerem as mi­ articulações Descartes se limita a pôr em evidência
(localização do problema, axiomas, raciocínio por
nhas Meditações apenas como um exclusão). O que mais responder aos que não soube­
romance, para se desenfadar, e sem ram situar-se no plano da “luz natural”?
166 DESCARTES

coisa que nos eleve até o conhecimento as de um conhecimento sem fim, de


do ser imaterial ou espiritual, o melhor uma potência, de um número, de um
que posso fazer é remeter-vos à minha comprimento, etc., que também são
Meditação Segunda, a fim de ao menos sem fim, há algumas que se acham
saberdes que ela não é totalmente inú­ contidas formalmente na idéia que
til; pois o que poderia fazer eu aqui temos de Deus, como o conhecimento
com um ou dois períodos, se nada con­ e a potência, e outras que aí se encon­
segui adiantar com um longo discurso tram apenas eminentemente, como o
preparado unicamente para tal assun­ número e o comprimento22; o que por
to, e ao qual me parece não haver dis­ certo não seria assim, se tal idéia não
pensado menos diligência do que a fosse outra coisa em nós senão uma
qualquer outro escrito por mim publi­ ficção.
cado? E ela não seria tampouco concebida
E ainda que esta Meditação haja tão exatamente da mesma maneira por
tratado somente do espírito humano, todo o mundo; pois é notável que
nem por isso é menos útil para explicar todos os metafísicos concordem unani­
a diferença que há entre a natureza di­ memente na descrição dos atributos de
vina e a das coisas materiais. Pois, na Deus (ao menos dos que a simples
realidade, quero confessar aqui franca­ razão humana pode conhecer), de tal
mente que a idéia que temos, por exem­ sorte que não há coisa física nem sensí­
plo, do entendimento divino não me vel, nada de que tenhamos uma idéia
parece diferir da que temos de nosso tão expressa e tão palpável, a respeito
próprio entendimento, senão apenas de cuja natureza não haja entre os filó­
como a idéia de um número infinito di­ sofos maior diversidade de opiniões,
fere da do número binário ou do terná- do que se verifica no tocante à de
rio; e acontece o mesmo com todos os Deus.
atributos de Deus, de que reconhe­ E, indubitavelmente, os homens ja­
cemos em nós algum vestígio. mais poderiam distanciar-se do verda­
Mas, além disso, concebemos em deiro conhecimento desta natureza di­
vina, se quisessem somente voltar a
Deus uma imensidade, simplicidade,
atenção para a idéia que têm do ser
ou unidade absoluta, que abrange e
soberanamente perfeito23. Mas aque-
contém todos os seus outros atributos,
e da qual não encontramos em nós, ou 22 Sobre a recusa de conceder “verdadeira exten­
alhures, nenhum exemplo; mas ela é são” a Deus e a “toda substância que não é corpo”,
(assim como já disse antes) como que a cf. Cartas, a Morus, de 5 de fevereiro de 1649. “Eu
marca do obreiro impressa em sua afirmo que não há extensão a não ser nas coisas que
caem sob a imaginação, como dotadas de partes
obra. E, por seu intermédio, sabemos distintas umas das outras, e que são de uma gran­
que nenhuma das coisas que concebe­ deza e de uma figura determinadas, embora chame­
mos também outras coisas extensas, mas somente
mos estar em Deus e em nós, e que por analogia.”
consideramos nele por partes e como 23 Cf. Cartas, a Mersenne, de julho de 1641: “Ê
se fossem distintas, por causa da fra­ crível que ele não tenha conseguido compreender,
como afirma, o que eu entendo pela idéia de
queza de nosso entendimento, e que Deus. . . visto que não entendo por ela outra coisa
experimentamos como tais em nós, exceto o que ele próprio deve necessariamente ter
não convém a Deus e a nós na forma compreendido quando vos escreveu que não a
entendia de modo algum? . . . De qualquer maneira
denominada unívoca nas Escolas. que concebamos (Deus), temos uma idéia dele,
Assim também sabemos que, das mui­ posto que nada poderiamos exprimir por nossas
palavras, quando entendemos o que dizemos, sem
tas coisas particulares que não têm que daí mesmo seja certo que temos em nós à idéia
fim, cujas idéias possuímos, tais como da coisa que é significada por nossas palavras?’.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 167

les que misturam a esta algumas outras pode' ser concebida pelo exclusivo
idéias compõem por tal meio um Deus entendimento e que, de fato, não é
quimérico em cuja natureza existem outra coisa senão aquilo que ele nos
coisas que se contrariam; e, após tê-lo faz conhecer, seja pela primeira, seja
assim composto, não é de espantar que pela segunda, seja pela terceira de suas
neguem que tal Deus, que lhes é repre­ operações. E pretendo manter que, do
sentado por uma falsa idéia, existe. simples fato de alguma perfeição, que
Assim, quando vós falais aqui de um está acima de mim, tornar-se o objeto
ser corporal mui perfeito, se tomais a de meu entendimento, de qualquer
denominação mui perfeito de modo forma que se lhe apresente — por
absoluto, de maneira que entendais que exemplo, do simples fato de eu perce­
o corpo é um ser onde se encontram ber que nunca posso, enumerando,
todas as perfeições, dizeis coisas que se chegar ao maior de todos os números,
contrariam2*4, posto que a natureza do e daí eu conhecer que existe algo, em
corpo encerra muitas imperfeições, por matéria de números, que ultrapassa
exemplo, a que o corpo seja divisível minhas forças —, posso concluir ne­
em partes, que cada uma de suas par­ cessariamente não que existe na verda­
tes não seja a outra, e outras semelhan­ de um número infinito, nem tampouco
tes; pois é algo evidente por si que que sua existência implica contradi­
constitui maior perfeição não poder ser ção, como dizeis, mas que este poder
dividido do que poder sê-lo. Pois se que tenho de compreender que há sem­
entendeis apenas o que é mui perfeito pre alguma coisa a mais a conceber no
no gênero do corpo, isto não é de maior dos números, que eu jamais
modo algum o .verdadeiro Deus. posso conceber, não provém de mim
O que acrescentais da idéia de um mesmo, e que eu o recebi de algum
anjo, o qual é mais perfeito do que nós, outro ser que é mais perfeito do que
a saber, que não é necessário que tenha sou.
sido posta em nós por um anjo, estou E importa muito pouco que se dê o
facilmente de acordo; pois eu próprio nome de idéia a esse conceito de um
declarei, na Meditação Terceira, que número indefinido, ou que não Iho
ela pode compor-se das idéias que dêem. Mas, para entender qual é esse
temos de Deus e do homem. E isso não ente mais perfeito do que eu e saber se
me é de forma alguma, contrário. não é esse mesmo número, cujo fim
Quanto aos que negam possuir em si não posso encontrar, que é realmente
a idéia de Deus e em seu lugar forjam existente e infinito, ou se é outra coisa
algum ídolo, etc., esses, digo eu, negam qualquer, cumpre considerar todas as
o nome e concedem a coisa. Pois certa­ outras perfeições, as quais, além do
mente não penso que tal idéia seja da poder de me dar esta idéia, podem exis­
mesma natureza que as imagens das tir na mesma coisa em que existe este
coisas materiais pintadas na fantasia; poder; e assim verificamos que esta
mas, ao contrário, .creio que ela só coisa é Deus.
Enfim, quando Deus é dito inconce­
2 4 “O ser corporal mui perfeito” é uma expressão bível, por isso se entende uma plena e
contraditória se referirmos “corporal” à sua defini­ inteira concepção, que compreende e
ção cartesiana (extensão divisível); mas não, se
compreendermos apenas por corporal uma “subs­ abrange perfeitamente tudo quanto há
tância sensível”, como procedem os teólogos. As nele, e não essa concepção medíocre e
próprias palavras não têm o mesmo sentido. “Não imperfeita que há em nós, a qual no
se define bem o corpo como uma substância sensí­
vel.” (A Morus, 5 de fevereiro de 1649.) entanto basta para conhecer que ele
168 DESCARTES

existe. E nada provais contra mim, ensinada por ele sentir em si próprio
dizendo que a idéia da unidade de que não pode se dar que ele pense, caso
todas as perfeições que há em Deus é não exista. Pois é próprio de nosso
formada da mesma maneira que a uni­ espírito formar as proposições gerais
dade genérica e a dos outros univer­ pelo conhecimento das particulares.
sais. Mas, não obstante, ela é muito Ora, que um ateu possa conhecer
diferente; pois denota uma particular e claramente que os três ângulos de um
positiva perfeição em Deus, ao passo triângulo são iguais a dois retos, não o
que a unidade genérica nada acres­ nego2 6; mas sustento apenas que não
centa de real à natureza de cada conhece isso por uma ciência verda­
indivíduo. deira é certa, porque todo conheci­
Em terceiro lugar, onde afirmei que mento que se pode tornar duvidoso
nada podemos saber de certo, se não não deve ser denominado ciência, e
conhecermos primeiramente que Deus uma vez que se supõe tratar-se de um
existe, afirmei, em termos expressos, ateu, não pode ele ter certeza de não
que falava apenas da ciência dessas ser enganado nas coisas que lhe pare­
conclusões, cuja lembrança nos pode cem muito evidentes, como já foi mos­
retornar ao espírito, quando não mais trado mais acima; e, embora essa dúvi­
pensamos nas razões de onde as tira­ da talvez não lhe ocorra ao
mos2*5. Pois o conhecimento dos pri­ pensamento, pode no entanto ocorrer-
meiros princípios ou axiomas não cos­ lhe, se a examinar, ou se lhe for pro­
tuma ser chamado ciência pelos posta por outrem; e nunca estará fora
dialéticos. Mas, quando percebemos do perigo de concebê-la, caso não
que somos coisas pensantes, trata-se de reconheça primeiramente um Deus.
uma primeira noção que não é extraída
de nenhum silogismo; e quando al­ E não importa que talvez julgue
guém diz: Penso, logo sou, ou existo, haver demonstrações para provar que
ele não conclui sua existência de seu Deus não existe; pois, como essas pre­
pensamento como pela força de algum tensas demonstrações são falsas, é
silogismo, mas como uma coisa conhe­ sempre possível dar-lhe a conhecer a
cida por si; ele a vê por simples inspe­ sua falsidade; e levá-lo, então, a mudar
ção do espírito. Como se evidencia do de opinião. O que na verdade não será
fato de que, se a deduzisse por meio do difícil, se por todas as razões ele apre­
silogismo, deveria antes conhecer esta sentar somente a que acrescentais aqui,
premissa maior: Tudo o que pensa é ou a saber, que o infinito em todo gênero
existe. Mas, aó contrário, esta lhe é de perfeição exclui toda outra espécie
de ser, etc.
2 5 A Meditação Quinta fala da ciência das verda­ Pois, primeiramente, se se lhe per­
des mediatas. Esta é que é garantida por Deus, de
scrte. que não devo efetuar de novo a demonstração gunta de onde ficou sabendo que esta
para obter novamente a certeza. A questão dessa exclusão de todos os outros seres per­
garantia não se coloca, portanto, para os per se nota tence à natureza do infinito, nada terá
conhecidos intuitivamente. Por isso poderá Descar­
tes escrever, nas Quartas Respostas, referindo-se a para responder pertinentemente, posto
• esta passagem: “Fiz ver bastante claramente. . . que, .pelo nome infinito, não se costu-
que não incidi na falta que se chama círculo”, asse­
gurando através de Deus as coisas conhecidas
clara e distintivamente e a existência de Deus atra­ 2 6 Não se trata agora das garantias de minha ciên­
vés do pensamento claro e distinto. Pois distingui cia, mas das próprias verdades.. Descartes não
“as coisas que concebemos de fato mui claramente negou que um ateu pudesse ser matemático, mas
das que nos recordamos haver outrora concebido que pudesse manter a certeza de que as verdades
mui claramente”. evidentes são verdadeiras.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 169

ma entender aquilo que exclui a exis­ parece que lhe são atribuídas algumas
tência das coisas finitas, e que ele nada paixões humanas.
pode saber da natureza de uma coisa Pois todos conhecem suficiente­
que ele pensa não ser absolutamente mente a distinção que há entre essas
nada, e por conseguinte não ter nenhu­ maneiras de falar de Deus, de que a
ma natureza, exceto a que está contida Escritura se serve comumente, que se
na simples e ordinária significação do acomodam à capacidade do vulgo e
nome dessa coisa2*7* . contêm de fato alguma verdade, mas
Ademais, para que serviria o infinito apenas na medida em que esta se rela­
poder desse infinito imaginário, se não ciona aos homens, e as que expressam
pudesse jamais criar algo? E enfim, uma verdade mais simples e mais pura
por experimentarmos haver em nós e que não muda de natureza, embora
mesmos certo poder de pensar, conce­ não se lhes relacione de modo
bemos facilmente que tal poder possa algum29; destas é que cada qual deve
existir em alguém mais, e até maior do usar ao filosofar e foi delas que preci­
que em nós; mas, ainda que pensemos sei utilizar-me principalmente nas mi­
que aquele cresce ao infinito, não nhas Meditações, visto que mesmo aí
tememos por isso que o nosso se tome eu não supunha ainda que algum
menor. O mesmo sucede com todos os homem me fosse conhecido, e não me
outros atributos de Deus, inclusive o considerava tampouco composto de
do poder de produzir alguns efeitos corpo e espírito, mas um espírito
fora de si, desde que suponhamos que somente.
nada há em nós sem que esteja subme­
tido à vontade de Deus; portanto, é De onde se toma evidente que não
possível entendê-lo como totalmente falei nesse ponto da mentira que se
infinito sem qualquer exclusão das coi­ exprime por palavras, mas apenas da
sas criadas28. malícia interna e formal contida no
Em quarto lugar, quando digo que engano: se bem que, no entanto, essas
Deus não pode mentir, nem ser enga­ palavras que citais do profeta: Ainda
nador, penso convir com todos os teó­ quarenta dias, e Nínive será subver­
logos que alguma vez existiram e hão tida, não constituam mesmo uma men­
de existir no futuro. E tudo quanto ale­ tira verbal, porém uma simples amea­
gais em contrário não possui mais ça, cuja ocorrência dependia de uma
força do que se, tendo negado que condição; e quando é dito que Deus
Deus se encoleriza, ou que esteja sujei­ empederniu o coração do Faraó, ou
to às outras paixões da alma, me obje­ algo semelhante, não cumpre pensar
tardes as passagens da Escritura onde que o tenha feito positivamente, mas
apenas negativàmente, a saber, não
2 7 Passamos agora à prova da não existência de dando ao Faraó uma graça eficaz para
Deus alegada pelos teólogos. Em primeiro lugar, a que se convertesse.
definição do infinito é fabricada sob medida e tanto
mais arbitrariamente quanto o ateu se limita a tor­ Não desejaria, apesar de tudo, con­
nar explícito um nome, porquanto recusa a colocar denar aqueles que afirmam que Deus
uma essência. pode proferir por seus profetas alguma
28 Em segundo lugar, não se pode dizer que o infi­
nito seja exclusivo da pluralidade das coisas'cria­ mentira verbal, tais como o são aque­
das. Notar-se-á o caráter spinozista do raciocínio las de que se servem os médicos quan-
do ateu. A pluralidade existe, diz ele, logo o infinito
não existe. O infinito existe, logo é preciso que a
pluralidade seja ilusória, dirá Spinoza. As conclu­ 2 9 Distinção, que será retomada por Spinoza, entre
sões são inversas, mas a incompatibilidade é a a linguagem antropomórfica das Escrituras e a ver­
mesma. dade filosófica que ela reveste.
170 DESCÀRTES

do iludem seus doentes para curá-los, E assim vedes que, depois de se


isto é, que fosse isenta de toda malícia conhecer que Deus existe, é mister
que se encontra comumente no engano. supor que seja enganàdor, se quiser­
Mas, bem ao contrário, vemos às vezes mos pôr em dúvida as coisas que con­
que somos realmente enganados por cebemos clara e distintamente; e, como
este instinto natural que nos foi dado isso não se pode sequer supor, deve-se
por Deus, como quando um hidrópico necessariamente admitir tais coisas
sente sede; pois então é realmente inci­ como mui verdadeiras e mui certas3 °.
tado a beber pela natureza que lhe foi Mas, posto que observo a esta altura
concedida por Deus para a conserva­ que ainda vos deteis nas dúvidas que
ção do corpo, se bem que, não obstan­ propus na minha Primeira Meditação e
te, essa natureza o engane, pois que o que pensei hayer solucionado assaz
beber lhe deve ser prejudicial; mas exatamente nas seguintes, explicarei
expliquei, na minha Meditação Sexta, aqui de novo o fundamento em que me
como isso é compatível com a vontade parece possível apoiar toda a certeza
e a verdade de Deus. humana.
Mas nas coisas que não podenj Primeiramente, tão logo pensamos
assim explicar-se, a saber, nos nossos claramente qualquer verdade somos
juízos muito claros e muito exatos, os naturalmente levados a crer nela. E, se
quais, se fossem falsos, não seriam tal crença for tão forte que jamais pos­
corrigíveis por outros mais claros, nem samos alimentar qualquer razão de
mediante qualquer outra faculdade duvidar daquilo que acreditamos desta
natural, sustento ousadamente que não forma, nada mais há que procurar:
podemos ser enganados. Pois, sendo temos, no tocante a isso, toda a certeza
Deus o soberano ser, cumpre que seja que se possa razoavelmente desejar.
necessariamente também o soberano Pois, o que nos importa, se talvez
bem e a soberana verdade, e, portanto, alguém fingir que mesmo aquilo, de
repugna que venha dele qualquer coisa cuja verdade nos sentimos tão forte­
que tenda positivamente para a falsida­ mente persuadidos, parece falso aos
de. Mas, como em nós nada pode olhos de Deus ou dos anjos, e que, por­
haver de real que ele não nos tenha tanto, em termos absolutos, é falso?
dado (como foi demonstrado na prova Por que devemos ficar inquietos com
de sua existência), e como temos em essa falsidade absoluta, se não cremos
nós uma faculdade real para conhecer nela de modo algum e se dela não
o verdadeiro e distingui-lo do falso temos a menor suspeita? Pois pressu­
(como é possível provar pelo simples pomos uma crença ou uma persuasão
fato de possuirmos em nós as idéias do tão firme que não possa ser suprimida;
verdadeiro e do falso), se esta facul­ a qual, por conseguinte, é em tudo o
dade não tendesse ao verdadeiro, ao mesmo que uma perfeitíssima certeza.
menos quando dela nos servimos como Mas é realmente dubitável que tenha­
se dève (isto é, quando damos nosso mos qualquer certeza dessa natureza,
consenso apenas às coisas que conce­ ou qualquer persuasão firme e imutá­
bemos clara e distintamente, pois não vel.
se pode supor outro bom uso dessa E, por certo, é patente que não se
faculdade), não seria sem razão que i
Deus, que no-la concedeu, seria, tido 30 O papel “redutor” da dúvida é aqui claramente
por enganador. expresso. i
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 171

possa tê-la das coisas obscuras e con­ a tomaram dos sentidos ou de algum
fusas, por pouca obscuridade ou con­ falso preconceito. De nada vale, ou-
fusão que nelas observemos; pois tal trossim, que alguém suponha que tais
obscuridade, qualquer que seja, é coisas parecem falsas a Deus ou aos
causa assaz suficiente para nos fazer anjos, porque a evidência de nossa per­
duvidar dessas coisas. Tampouco po­ cepção não permitirá que ouçamos a
demos tê-la das coisas percebidas ape­ quem o tenha suposto e nos queira
nas pelos sentidos, não importa a cla­ persuadir32.
reza que ocorra em sua percepção, Há outras coisas que nosso entendi­
porque muitas vezes já notamos que no mento também concebe muito clara­
sentido pode haver erro, como quando mente, quando observamos de perto as
um hidrópico sente sede, ou a neve pa­ razões de que depende seu conheci­
rece amarela a quem sofre de icterícia; mento; e, por issó, não podemos,
pois este último não a vê menos clara e então, duvidar dele. Mas, dado que
distintamente desta forma do que nós a podemos esquecer as razões, e no
quem ela parece branca. Resta, portan­ entanto recordar as conclusões daí
to, que, se podemos tê-la, é somente extraídas, pergunta-se se é possível ter
das coisas que o espírito concebe clara uma firme e imutável persuasão sobre
e distintamente. essas conclusões, ao passo que nos
Ora, entre tais coisas, algumas há lembramos de que foram deduzidas de
tão claras e ao mesmo tempo tão sim­ princípios mui evidentes; pois esta
ples que nos é impossível pensar nelas lembrança deve pressupor-se para que
sem que as julguemos verdadeiras: por possam chamar-se conclusões. E eu
exemplo, que existo quando penso, que respondo que só podem tê-la os que
as coisas que foram alguma vez feitas conhecem de tal modo Deus a ponto
não podem não ter sido feitas e outras de saberem que não pode acontecer
semelhantes, das quais é manifesto que que a faculdade de entender, que lhes
possuímos perfeita certeza. foi dada por ele, tenha por objeto outra
coisa se não a verdade; mas que os ou­
Pois não podemos duvidar dessas tros não a têm. E isso foi tão clara­
coisas sem pensar nelas; mas não mente explicado ao fim da Meditação
podemos jamais pensá-las sem acredi­ Quinta que não penso dever aqui
tar que sejam verdadeiras, como acabo acrescentar-lhe algo.
de dizer; logo, não podemos duvidar Em quinto lugar, surpreendo-me de
delas sem as crermos verdadeiras, isto que negueis que a vontade corre o peri­
é, nunca podemos duvidar delas31. go de falhar, quando persegue e envol­
E de nada serve alegar que verifi­ ve os conhecimentos obscuros e confu­
camos muitas vezes que pessoas se sos do entendimento. Pois, o que é que
enganavam em coisas que pensavam pode tomá-la certa, se o que ela segue
ver mais claramente que o sol. Pois não é claramente conhecido? E qual
nunca vimos, nós nem ninguém, que foi o filósofo, ou o teólogo, ou o sim­
isso tenha acontecido aos que tiraram ples homem no uso da razão, que não
tão-só do entendimento toda a clareza haja alguma vez confessado que o peri-
de suas percepções, mas antes aos que
32 Os teólogos interpretaram a certeza como um
31 Uma vez que atingi a certeza, sabendo que satis­ estado psicológico entre outros. Para Descartes, o
fiz a suas condições, não mais posso duvidar diante termo é mais determinado: pensamento de um obje­
da evidência: a dúvida jâ não seria senão um artifí­ to tal que, devido ao próprio fato de eu pensá-lo,
cio sem qualquer sentido. não posso duvidar de sua verdade.
172 descartes

go de falhar a que nos expomos é tanto interior, pela qual, tendo Deus nos
menor quanto mais clara a coisa que aclarado sobrenaturalmente, possuí­
concebemos antes de lhe dar nosso mos confiança certa de que as coisas
consenso? E que pecam os que, sem propostas à nossa crença foram por ele
conhecimento de causa, pronunciam reveladas, e de que é inteiramente
algum julgamento? Ora, nenhuma con­ impossível que ele seja mentiroso e nos
cepção é dita obscura ou confusa, ex­ engane: e isso é mais seguro do que
ceto porque nela está contido algo que qualquer outra luz natural, e amiúde
não é conhecido. até mais evidente, por cauda da luz da
Portanto, aquilo que objetais no graça 33.
tocante à fé que se deve abraçar, não E por certo os turcos e os outros
tem. maior força contra mim do que infiéis, quando não abraçam a religião
contra todos os que alguma vez culti­ cristã, não pecam por não quererem
varam a razão humana; e, a bem dizer, dar fé às coisas obscuras, como sendo
não tem força alguma contra ninguém. obscuras; mas pecam, ou porque resis­
Pois, embora se diga que a fé tem por tem à graça divina que os adverte
objeto coisas obscuras, não obstante interiormente, ou porque, pecando em
aquilo pelo qual cremos nela não é outras coisas, tomam-se indignos
obscuro; é mais claro do que qualquer dessa graça. E direi atrevidamente que
luz natural. Tanto mais quanto cumpre um infiel que, destituído de toda graça
distinguir entre a matéria, ou a coisa à sobrenatural e totalmente ignorante de
qual concedemos nossa crença, e a que as coisas que nós outros cristãos
razão formal que move nossa vontade acreditamos foram reveladas por
a concedê-la. Pois só nessa razão for­ Deus, e, não obstante, atraído por al­
mal é que queremos que haja clareza e guns falsos raciocínios, se entregasse à
evidência. crença dessas mesmas coisas que- lhe
Quanto à matéria, ninguém jamais fossem obscuras, não seria por isso
negou que pode ser obscura, e até fiel, mas antes pecaria porque não se
mesmo a própria obscuridade; pois, serviría como se deve de sua razão.
quando julgo que a obscuridade deve E penso que jamais qualquer teó­
ser. subtraída de nossos pensamentos logo ortodoxo alimentou outros senti­
para poder dar-lhes nosso consenti­ mentos a esse respeito; e também aque­
mento sem nenhum perigo de falhar, é les que lerem minhas Meditações não
a obscuridade mesma que me serve de terão motivo de crer que eu não haja
matéria para formar um juízo claro e conhecido esta luz sobrenatural, por­
distinto. quanto, na Quarta, em que busquei
Além disso, cabe notar que a clareza cuidadosamente a causa do erro ou fal­
ou a evidência pela qual nossa vontade sidade, declarei, em palavras expres­
pode ser incitada a crer é de duas espé­ sas, que ela dispõe o interior de nosso
cies: uma que parte da luz natural, e pensamento a querer, e que, no entan­
outra que provém da graça divina. to, não diminui de modo algum a'
Ora, conquanto se afirme comu- liberdade.
mente que a fé pertence às coisas obs­
curas, todavia isso se refere apenas à 33 A graça mesma é uma luz (sobrenatural e não
sua matéria e não à razão formal pela mais natural) que ilumina nossa vontade. Esta pas­
sagem mostra quanto importa distinguir entre a
qual cremos; pois, ao contrário, esta concepção clara e distinta das coisas e a redução
razão formal consiste em certa luz real a coisas claras e distintas.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 173

De resto, peço-vos aqui que lembreis que pretendeis, a premissa maior devia
de que, no tocante às coisas que a von­ ser assim: Aquilo que concebemos
tade pode abranger, sempre estabeleci clara e distintamente pertencer à natu­
grande distinção entre a prática da reza de alguma coisa pode ser dito ou
vida e a contemplação da verdade. afirmado com verdade pertencer à
Pois, no que concerne à prática da natureza dessa coisa. E assim não con­
vida, tanto faz que eu'pense ser preciso feria senão uma inútil e supérflua repe­
seguir apenas as coisas que conhece­ tição. Mas a premissa maior do meu
mos mui claramente, como, ao contrá­ argumento foi a seguinte: Aquilo que
rio, que eu sustente que nem sempre se concebemos clara e distintamente per­
deve contar com o mais verossímil, tencer à natureza de alguma coisa
sendo preciso algumas vezes, entre pode ser dito ou afirmado com verdade
muitas coisas completamente desco­ dessa coisa. Isto é, se ser animal per­
nhecidas e incertas, escolher uma e se tence à essência ou à natureza do
lhe apegar, e em seguida crer nela não homem, pode-se assegurar que o
menos firmemente, enquanto não vir­ homem é animal; se ter os três ângulos
mos razões em contrário, do que se a iguais a dois retos pertence à natureza
tivéssemos escolhido por razões certas do triângulo retilíneo, pode-se assegu­
e mui evidentes, como já expliquei no rar que o triângulo retilíneo tem seus
Discurso do Método3 4. Mas, onde se três ângulos iguais a dois retos; se exis­
trata tão-somente da contemplação da tir pertence à natureza de Deus, pode-
verdade, quem jamais negou que é pre­ se assegurar que Deus existe, etc. E a
ciso suspender o julgamento em rela­ premissa menor foi a seguinte: Ora, é
ção às coisas obscuras e que não sejam certo que pertence à natureza de Deus
assaz distintamente conhecidas? Ora, existir. Daí é evidente que se deva con­
que em minhas Meditações só se veri­ cluir como eu o fiz, a saber: Logo,
fica essa contemplação da verdade, pode-se com verdade assegurar, quan­
além de se reconhecer este fato bas­ to a Deus, que ele existe; e não como
tante claramente por elas próprias, eu desejais: Logo, podemos assegurar
o declarei em palavras expressas no com verdade que pertence à natureza
fim da Primeira, ao dizer que nunca de Deus o existir.
seria demais duvidar, nem havería Portanto, para usar da exceção que
demasiada desconfiança naquele apresentais em seguida, deverieis negar
ponto, tanto mais que não me aplicava a premissa maior e dizer que aquilo
então às coisas concernentes à prática que concebemos clara e distintamente
da vida, mas apenas à busca da pertencer à natureza de alguma coisa
verdade. não pode por isso ser dito ou afirmado
Em sexto lugar, onde censurais a dessa coisa, anão ser que sua natureza
conclusão de um silogismo por mim seja possível, ou não repugne de modo
formulado, parece-me que vós próprios algum. Mas notai, peço-vos,- a fraqueza
pecais na forma; pois, para concluir o dessa exceção. Pois, ou pelo termo
possível entendeis, como se faz ordina­
3 4 Daí por que, contrariamente à Física e à Metafí­ riamente, tudo o que não repugna ao
sica, a Moral deverá recorrer à noção do provável e
à experiência. “Reencontramos entre a Ciência e a pensamento humano, acepção em que
Sabedoria. . . esta separação à qual Descartes pare­ é manifesto que a natureza de Deus, da
cia pôr fim e. . . que era uma das características forma como a descrevi, é possível, por­
dos moralistas da Renascença.” (Guéroult, op. cit.,
II, 237.) que nada supus nela, exceto o que,con­
174 DESCARTES

cebemos clara e distintamente dever menor, concerne apenas ao conceito da


pertencer-lhe, e assim não supus nada existência e da natureza de Deus,
que repugne ao pensamento ou ao con­ como se manifesta do fato de que, , se
ceito humano; ou então, supondes al­ negarmos a maior, dever-se-á provárla
guma outra possibilidade de parte do assim: |
próprio objeto, a qual, se não concorda Se Deus não existe ainda, implica
com a precedente, nunca pode ser que existe, porque não se poderia con­
conhecida pelo entendimento humano; signar causa suficiente para prodJzi-
e, portanto, não possui maior força lo; mas não implica que existe, como
para nos obrigar a negar a natureza de foi acordado na menor; logo, etc.
Deus ou sua existência do que para Ê se negarmos a menor, dever-se-á
derrubar todas as outras coisas que prová-la assim:
Não implica, de' modo algum, esta ’
caem sob o conhecimento dos ho­
coisa em cujo conceito formal nada há
mens3*5. Pois, pela mesma razão que se que encerre contradição; mas, no con­
nega que a natureza de Deus é possí­
ceito formal da existência ou da natu­
vel, ainda que não se encontre qual­
reza divina, nada há que encerre
quer impossibilidade da parte do con­
contradição; logo, etc. E assim a pala­
ceito ou do pensamento, mas que, ao
vra implica é tomada em dois sentidos
contrário, todas as coisas contidas diversos.
neste conceito da natureza divina Pois pode acontecer que não se con­
sejam de tal modo conexas entre si que ceba na própria coisa nada que impeça
nos pareça haver contradição em afir­ que ela possa existir, e no entanto se
mar a existência de alguma que não conceba algo da parte de sua causa
pertença à natureza de Deus, poder- que impeça que seja produzida.
se-à negar também que seja possível Ora, ainda que concebamos Deus só
que os três ângulos de um triângulo mui imperfeitamente, isso não impede
sejam iguais a dois retos, ou que aque­ a certeza de que sua natureza é possí­
le que pensa atualmente existe; e com vel, ou que ela não implica de modo
maior razão ainda se poderá denegar algum; nem, outrossim, que não possa­
que haja algo de verdadeiro em todas mos assegurar com verdade que a exa­
as coisas que percebemos pelos senti­ minamos assaz cuidadosamente e a
dos; e assim todo o conhecimento hu­ conhecemos assaz claramente (a saber,
mano será derrubado, mas não o será tanto quanto basta para conhecer que
com qualquer razão ou fundamento. ela é possível, e também que lhe per­
E pelo que toca a esse argumento tence a existência necessária). Pois
que comparais com o meu, a saber: Se toda a impossibilidade, ou, se me é per­
não implica que Deus seja, é certo que mitido servir-me aqui do termo da
ele existe; mas não implica de modo Escola, toda a implicação consiste
algum; logo, etc., materialmente é somente em nosso conceito ou pensa­
verdadeiro, mas formalmente constitui mento, que não pode conjuntar as
um sofisma. Pois, na premissa maior, o idéias que se contrariam umas j às
termo implica concerne ao conceito da outras3 6; e não pode consistir em qúal-
causa pela qual Deus pode ser, e, na 3 6 “Não há contradição nas coisas, mas apenas
nas idéias, porque são nossas idéias somente que
3 5 “Nós não podemos ter nenhum conhecimento julgamos de maneira tal que se opõem entre si. Ora,
das coisas a não ser pelas idéias que concebemos a as coisas não se opõem entre si porque todas podem
seu respeito e, por conseguinte, não devemos julgá- existir. . . Sucede o contrário com as idéias, porque
las a não ser segundo estas idéias e até pensar que nelas. julgamos coisas diferentes que, separada­
tudo quanto repugna estas idéias é absolutamente mente, não se contradizem, mas que nós julgamos
impossível e implica contradição.” (Cartas, a de modo que as tomamos uma só. Assim nasce a
Gibieuf, 19 de janeiro de 1642.) contradição.” (Col. com Burman, V, 161.)
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 175

quer coisa que esteja fora do entendi­ corpo humano, na medida em que dife­
mento, porque, pelo próprio fato de re dos outros corpos, compõe-se so­
uma coisa estar fora do entendimento, mente de certa configuração de mem­
se toma manifesto que ela não implica bros, e outros acidentes semelhan­
de modo algum, mas que é possível. tes38; e, enfim, que a morte do cor­
Ora, a impossibilidade com que nos po depende somente de alguma divi­
deparamos em nossos pensamentos são ou mudança de figura. Ora,
provém apenas de serem eles confusos não temos nenhum argumento, ou
e obscuros, e não pode haver nenhuma qualquer exenlplo, que nos persuada de
impossibilidade nos que são claros e que a morte ou o aniquilamento de
distintos; por conseguinte, a fim de uma substância tal como é o espírito
podermos estar seguros de que conhe­ deva decorrer de uma causa tão ligeira
cemos bastante a natureza de Deus como o é uma mudança de figura, que
para sabermos que não há qualquer não é senão um modo, e ainda um
repugnância em que ela exista, é sufi­ modo, não do espírito, mas do corpo,
ciente que entendamos clara e distinta­ que é realmente distinto do espírito. E
mente todas as coisas que percebemos não dispomos mesmo de qualquer
haver nela, embora tais coisas sejam argumento nem exemplo que nos possa
apenas em pequeno número em relação convencer de que há substâncias sujei­
às que não percebemos, posto que tas ao aniquilamento. O que basta para
estas também estejam nela; e que com concluir que o espírito, ou a alma do
isso notemos que a existência neces­ homem, na medida em que isso pode
sária é uma das coisas que percebe­ ser conhecido pela Filosofia natural, é
mos, assim, existir em Deus. imortal.
Em sétimo lugar, já dei a razão, no Mas caso se pergunte se Deus, por
resumo de minhas Meditações, pela seu absoluto poder, não determinou
qual nada disse aqui sobre a imortali­ talvez que as almas humanas cessem
dade da alma37; já mostrei também de existir, ao mesmo tempo que são
mais acima como provara suficiente­ destruídos os corpos a que estão uni­
mente a distinção que há entre o espí­ das, só a Deus compete respondê-lo. E
rito e toda espécie de corpo. como agora ele nos revelou que isso
Quanto ao que acrescentais, que da nunca ocorrerá, não deve subsistir a
distinção da alma com o corpo não se respeito nenhuma dúvida.
segue que ela seja imortal, porque, ape­ De resto, devo agradecer-vos muito
sar disso, se pode dizer que Deus a fez por vos terdes dignado tão obsequiosa-
de tal natureza que sua duração finda mente, e com tanta franqueza, adver­
com a da vida do corpo, confesso que tir-me não só das coisas que vos pare­
nada tenho a responder; pois não ali­ ceram dignas de explicação mas
mento tanta presunção a ponto de ten­ também das dificuldades que me po­
tar determinar, pela força do racio­ diam ser opostas pelos ateus, ou por
cínio humano, algo que depende alguns aborrecedores e maldizentes.
Pois, ainda que não veja nada, entre
apenas da pura vontade de Deus.
O conhecimento natural nos ensina as coisas que me propusestes, que não
que o espírito é diferente do corpo, e houvesse de antemão rejeitado ou
que é uma substância; e também que o
38 A substância extensa é indestrutível, mas não as
substâncias corporais particulares; os corpos não
3 7 No resumo, nota Descartes que as Meditações são verdadeiras substâncias, como os espíritos, mas
permitem estabelecer que a morte da alma não apenas especificações da extensão. E isso é tão ver­
decorre da corrupção do corpo; mas uma demons­ dade no tocante ao corpo humano (enformado por
tração da imortalidade da alma exigiría “a explica­ uma alma) como em relação & máquina (do animal),
ção de toda a Física”. apesar da diferença existente entre ambos.
176 DESCARTES

explicado em minhas Meditações — Sexta, e a omitir muitas coisas em todo


como, por exemplo, o que alegais esse tratado, porque pressupunham a
quanto às moscas produzidas pelo sol, explicação de muitas outras.
quanto aos canadenses, aos ninivitas, A maneira de demonstrar é dupla:
aos turcos e outras coisas parecidas, uma se faz pela análise ou resolu­
não pode vir ao espírito de quem, ção39, e a outra pela síntese ou
seguindo a ordem dessas Meditações, composição.
colocar à parte por algum tempo tudo A análise mostra o verdadeiro cami­
o que haja recebido dos sentidos para nho pelo qual uma coisa foi metodica­
cuidar do que lhe dita a mais pura e sã mente descoberta e revela como os
razão; daí por que pensava jâ ter rejei­ efeitos dependem das causas; de sorte
tado todas essas coisas —, ainda, digo, que, se o leitor quiser segui-la e lançar
que assim seja, julgo, no entanto, que cuidadosamente os olhos sobre tudo o
táis objeções serão muito úteis a meu que contém, não entenderá menos
desígnio, posto que não espero contar perfeitamente a coisa assim demons­
com muitos leitores dispostos a dedi­ trada e não a tomará menos sua do
car tanta atenção às coisas que escrevi, que se ele próprio a houvesse desco­
a ponto de, chegando ao Em, se recor­ berto.
darem de tudo quanto leram anterior­ Mas tal espécie de demonstração
mente; e os que o não fizerem cairão não é capaz de convencer os leitores
facilmente em dificuldades, às quais, teimosos ou pouco atentos: pois se se
como verão em seguida, eu teria satis­ deixa escapar, sem reparar, a menor
feito por essa resposta, ou ao menos das coisas que ela propõe, a necessi­
aproveitarão o ensejo de examinar dade de suas conclusões não surgirá de
mais cuidadosamente a verdade. modo algum; e não se costuma expres­
No que concerne ao conselho que sar nela mui amplamente as coisas que
me dais, de dispor minhas razões são bastante claras por si mesmas, em­
segundo o método dos geômetras, a bora sejam comumente as que cumpre
fim de que de uma só vez os leitores tomar mais em conta40.
A síntese, ao contrário, por um
possam compreendê-las, dir-vos-ei
caminho todo diverso, e como que exa­
aqui de que forma já tentei precedente­
minando as causas por seus efeitos
mente segui-lo, e como procurarei
(embora a prova que contém seja
fazê-lo ainda posteriormente.
amiúde também dos efeitos pelas cau­
No modo de escrever dos geômetras,
sas)41, demonstra, na verdade, clara­
distingo duas coisas, a saber, a ordem mente o que está contido em suas
e a maneira de demonstrar. conclusões, e serve-se de uma longa
A ordem consiste apenas em que as
coisas propostas primeiro devem ser 39 Cumpre distinguir a Análise como disciplina
conhecidas sem a ajuda das seguintes, (que, no Discurso, era posta ao mesmo nível que a
e que as seguintes devem ser dispostas Lógica e a Álgebra) e “a análise ou resolução”: esta
é parte da solução que consiste, segundo os gregos,
de tal forma que sejam demonstradas suposto que o problema esteja resolvido e reduzido
só pelas coisas que as precedem. E cer­ a contento de certas condições simples, em confron­
tar essas condições com as dos dados.
tamente empenhei-me, tanto quanto 4° A análise oferece o risco de tomar o leitor desa­
pude, em seguir esta ordem em minhas tento à ordem e, em Metafísica, levá-lo a esquecer
Meditações. E foi o que me levou a não que se trata de demonstrações. Consulte-se a res­
peito o prefácio de Louis Mayer, aos Princípios da
tratar na Segunda da distinção entre o Filosofia de Descartes de Spinoza (Spinoza, Plêia-
espírito e o corpo, mas apenas na de, págs. 205-207).
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 177

série de definições, postulados, axio­ dificuldade, exceto a de tirar bem as


mas, teoremas e problemas, para que, consequências, o que pode ser feito por
caso lhe neguem algumas consequên­ pessoas de toda espécie, mesmo pelas
cias, mostre como elas se contêm nos menos atentas, desde que se recordem
antecedentes, de modo a arrancar o apenas das coisas precedentes; e é fácil
consentimento do leitor, por mais obs­ obrigá-las a se recordarem, distin­
tinado e opiniático que seja; mas não guindo tantas proposições diversas
dá, como a outra, inteira satisfação aos quantas coisas haja a observar na difi­
espíritos dos que desejam aprender, culdade proposta, a fim de que se dete­
porque não ensina o método pelo qual nham separadamente em cada uma, e
a coisa foi descoberta. que se lhes possam citar em seguida,
Os antigos geômetras costumavam para adverti-las daquelas em que
utilizar-se apenas dessa síntese em seus devem pensar. Mas, ao contrário, no
escritos, não porque ignorassem intei- atinente às questões que pertencem à
ramente a análise, mas, em meu pare­ Metafísica, a principal dificuldade é
cer, porque lhe atribuíam tal posição conceber clara e distintamente as no­
que a reservavam para eles próprios, ções primeiras. Pois, ainda que por sua
como um segredo de importância. natureza não sejam menos claras,
Quanto a mim, segui somente a via sendo mesmo muitas vezes mais claras
analítica em minhas Meditações, por­ do que as consideradas pelos geôme­
que me parece ser a mais verdadeira e tras, não obstante, posto que parecem
a mais própria ao ensino; mas, quanto não acordar com muitos prejuízos que
à síntese, que é sem dúvida a que dese­ recebemos através dos sentidos, e aos
jais aqui de mim, ainda que no tocante quais nos habituamos desde a infância,
às coisas tratadas na Geometria ela são perfeitamente compreendidadas
possa ser utilmente colocada após a apenas pelos que são muito atentos e
análise, não convém, todavia, tão bem se empenham em apartar, tanto quanto
às matérias que pertencem à Metafísi­ podem, o espírito do comércio dos sen­
ca4142. Pois há essa diferença, que as tidos; eis por que, se as propuséssemos
primçiras noções supostas para de­ totalmente sós, seriam facilmente ne­
monstrar as proposiçõçs geométricas, gadas por aqueles cujo espírito é pro­
estando de acordo com os sentidos, penso à contradição.
são facilmente aceitas por cada qual; Esta foi a causa pela qual preferi
eis por que não apresenta qualquer escrever meditações e não disputas ou
questões, como fazem os filósofos, ou
41 A diferença entre análise e síntese é, portanto, teoremas ou problemas, como os geô­
na realidade, uma diferença na maneira de demons­ metras43, a fim de testemunhar com
trar, isto é, na maneira pela qual a demonstração se
impõe ao espírito do leitor. Ela não concerne à isso que as escrevi tão-somente para os
ordem. “A análise” nota Buillemin, “é uma constru­ que quiserem dar-se ao trabalho de
ção puramente intelectual e algébrica”, ao passo
que a síntese “se apresenta à imaginação antes de meditar seriamente comigo e conside­
aclarar a inteligência”. (Maths. Méta., págs. rar as coisas com atenção. Pois, pelo
165-166.) O autor acrescenta que, na acepção fato mesmo de que alguém se prepare a
moderna do termo “síntese”, a Matemática carte­
siana merece ser denominada “sintética”.
42 Em Metafísica, a síntese oferece uma desvan­ 43 A “meditação” é dessarte um gênero interme­
tagem suplementar em relação à análise: não só a diário entre dialética e retórica, de um lado, e apre­
ordem da descoberta não mais será respeitada, mas sentação sintética euclidiana, de outro. Não é um
ainda será difícil afastar os prejuízos nascidos da gênero autobiográfico, porém uma gênese analítica
inconveniência das noções metafísicas aos sentidos. dos elementos imitada do método algébrico.
178 DESCARTES

fim de impugnar a verdade, ele se toma conselho, procurarei aqui imitar a sín­
menos capaz de compreendê-la, por­ tese dos geômetras e efetuarei um resu­
quanto desvia o espírito da considera­ mo das principais razões que usei para
ção das razões que o persuadem dela demonstrar a existência de Deus e a
para aplicá-lo à busca das que a distinção que há entre o espírito e o
destro em. corpo humano: o que não servirá
Mas, não obstante, para testemu­ pouco, talvez, para aliviar a atenção
nhar o quanto condescendo com vosso dos leitores.
RAZOES

QUE PROVAM A EXISTÊNCIA DE DEUS


E A DISTINÇÃO QUE HÁ ENTRE O ESPÍRITO
E O CORPO HUMANO

DISPOSTAS DE UMA FORMA GEOMÉTRICA

Definições
I. Pelo nome de pensamento, com­ enformam o próprio espírito, que se
preendo tudo quanto está de tal modo aplica a esta parte do cérebro.
em nós que somos imediatamente seus III. Pela realidade objetiva de uma
conhecedores. Assim, todas as opera­ idéia, entendo a entidade ou o ser da
ções da vontade, do entendimento, da coisa representada pela idéia, na medi­
imaginação e dos sentidos são pensa­ da em que tal entidade está na idéia; e,
mentos. Mas acrescentei imediata­ da mesma maneira, pode-se dizer uma
mente, para excluir as coisas que se­ perfeição objetiva, ou um artifício
guem e dependem de nossos objetivo, etc. Pois, tudo quanto conce­
pensamentos: por exemplo, o movi­ bemos como estando nos objetos das
mento voluntário tem, verdadeira­ idéias, tudo isso está objetivamente, ou
mente, a vontade como princípio, mas por representações, nas próprias
ele próprio, no entanto, não é um idéias4 4.
pensamento. IV. As mesmas coisas são ditas
II. Pelo nome de idéia, entendo esta estarem formalmente nos objetos das
forma de cada um de nossos pensa­ idéias, quando estão neles tais como as
mentos por cuja percepção imediata concebemos; e são ditas estarem neles
eminentemente, quando, na verdade,
temos conhecimento desses mesmos
pensamentos. De tal modo que nada não estão aí, como tais, mas são tão
grandes, que podem suprir essa carên­
posso exprimir por palavras, ao com­ cia com a excelência delas 4 5.
preender o que digo, sem que daí
mesmo seja certo que possuo em mim 4 4 A realidade objetiva de uma idéia é seu con­
a idéia da coisa que é significada por teúdo na medida em que é dotado de valor represen­
minhas palavras. E assim não dou o tativo. Cumpre não confundi-la, pois, com seu valor
objetivo, ao qual ela não permite, por si só,
nome de idéia às simples imagens que prejulgar. ■
são pintadas na fantasia; ao contrário, 4 5 Se considerarmos que a idéia de Deus, enquanto
não lhes dou aqui esse nome, na medi­ idéia, é forçosamente inferior àquele de quem ela é
cópia, Deus será denominado causa eminente desta
da em que se encontram na fantasia idéia. Se considerarmos que não pode haver na rea­
corporal, isto é, na medida em que são lidade objetiva da idéia do perfeito, enquanto idéia
do perfeito, nada que seja menos perfeito do que o
pintadas em algumas partes do cére­ próprio ser perfeito, Deus pode então ser denomi­
bro, mas somente na medida em que nado causa formal de sua idéia.
180 DESCARTES

V. Toda coisa em que reside ime- que pressupõem a extensão, assim


diatamente como em seu sujeito, ou como da figura, da situação, do movi­
pela qual existe, algo que concebemos, mento local, etc., chama-se corpo. Mas
isto é, qualquer propriedade, qualida­ saber se a substância chamada espírito
de, ou atributo, de que temos em nós é a mesma que chamamos corpo, ou se
real idéia, chama-se substância. Pois se trata de duas substâncias diversas e
não possuímos outra idéia da subs­ separadas, eis o que 'será examinado
tância precisamente tomada, salvo que em seguida.
é uma coisa na qual existe formal, ou
eminentemente, aquilo que concebe­ VIII. A substância que.entendemos
mos, ou aquilo que está objetivamente ser soberanamente perfeita, e na qual
em alguma de nossas idéias, posto que não concebemos nada que encerre
a luz natural nos ensina que o nada qualquer falha, ou limitação de perfei­
não pode ter nenhum atributo real. ção, chama-se Deus.
IX. Quando dizemos que algum
VI. A substância, em que reside atributo está contido na natureza ou
imediatamente o pensamento, é aqui
chamada espírito. Todavia, tal nome é no conceito de uma coisa, é o mesmo
equívoco, pelo fato de o atribuírem que se disséssemos que tal atributo é
também às vezes ao vento e aos licores verdadeiramente dessa coisa e que se
muito sutis; mas não sei de outro mais pode assegurar que se encontra nela.
próprio. X. Duas substâncias são ditas real­
VII. A substância, que é o sujeito mente distintas quando cada uma pode
imediato da extensão e dos acidentes existir sem a outra.
Postulados
Postulo, primeiramente, que os leito­ concebê-lo distintamente, e de crer que
res considerem quão fracas são as é mais fácil conhecê-lo do que todas as
razões que até agora os levaram a dar coisas corporais.
fé a seus sentidos, e quão incertos'são Em terceiro lugar, que examinem
todos os juízos que depois apoiaram diligentemente as proposições que não
neles; e que revejam tão longamente e precisam de prova para serem conheci­
tão amiúde esta consideração em seus das 4 6, e cujas noções cada qual encon­
espíritos, até que por fim adquiram o tra em si mesmo, como as de que uma
hábito de não mais fiar-se tão forte­ mesma coisa não pode ser e não ser ao
mente nos sentidos; pois julgo isso mesmo tempo; que o nada não pode
necessário para tornar-se capaz de ser a causa eficiente de algo, e outras
conhecer a verdade das coisas metafí­
sicas, as quais não dependem em nada 4 6 Sobre essas noções primeiras situadas além de
dos sentidos. toda dúvida, cf. Princípios, I, §49: “Quando pensa­
mos que não se poderia fazer algo de nada, não cre­
Em segundo lugar, postulo que con­ mos, de modo algum, que esta proposição seja algo
siderem o próprio espírito, e todos existente ou a propriedade de alguma coisa, mas
aqueles de seus atributos de que reco­ tomamo-la como certa verdade eterna cuja sede é o
nosso, pensamento e que denominamos noção
nhecerem não poder de alguma forma comum ou máxima; do mesmo modo, quando se diz
duvidar, ainda que supusessem inteira­ ser impossível que uma mesma coisa seja e não seja
ao mesmo tempo, que o que foi feito não pode não
mente falso tudo quanto jamais recebe­ ter sido feito, que aquele que pensa não pode deixar
ram pelos sentido's; e que não cessem de ser ou de existir enquanto pensa e muitas óutras
de considerá-lo, sem que primeira­ semelhantes, estas são apenas verdades, e não coi­
sas que existam fora de nosso pensamento. . Cf.
mente tenham adquirido a prática de ibid., §§7 e 10.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 181

semelhantes; e que assim exercitem sível está contida, mas além disso a
essa clareza do entendimento que lhes necessária. Pois, daí só, e sem qualquer
foi dada pela natureza, mas que as raciocínio, conhecerão que Deus exis­
percepções dos sentidos acostumaram te; e não lhes será menos claro e evi­
a perturbar e obscurecer, que a exerci­ dente, sem outra prova, que lhes é
tem, digo eu, totalmente pura e liberta manifesto que dois é um número par, e
de seus prejuízos; pois, por este meio, a três um número ímpar, e coisas seme­
verdade dos axiomas seguintes lhes lhantes48. Pois há coisas que são
será fortemente evidente. assim conhecidas sem provas por
Em quarto lugar, que examinem as alguns, enquanto outros só as enten­
idéias dessas naturezas que contêm em dem por um longo discurso e raciocí­
si um conjunto de muitos atributos, nio.
como a natureza do triângulo, a do Em sexto lugar, que, considerando
quadrado ou de qualquer outra figura; com cuidado todos os exemplos de que
bem como a natureza do espírito, a falei nas minhas Meditações, de uma
natureza do corpo e, acima de todas, a clara e distinta percepção, e todos cuja
natureza de Deus ou de um ser sobera- percepção é obscura e confusa, habi­
namente perfeito. E que tomem nota de tuem-se a distinguir as coisas clara­
que se pode assegurar, com verdade, mente conhecidas das obscuras; pois
que existem em si próprias todas essas isso se aprende melhor por exemplos
coisas que concebemos claramente do que por regras, e penso que disso
estarem aí contidas47. Por exemplo, não se pode dar um exemplo, sem que
porque na natureza do triângulo retilí­ eu já não o haja aflorado um pouco.
neo está contido que seus três ângulos Em sétimo lugar, postulo que os lei­
são iguais a dois retos, e porque na tores, levando em conta que nunca
natureza do corpo ou de uma coisa reconheceram qualquer falsidade nas
extensa a divisibilidade acha-se com­ coisas que conceberam claramente e
preendida (pois não concebemos a que, ao contrário, nunca encontraram,
coisa extensa tão pequena que não pos­ senão por acaso, qualquer verdade nas
samos dividi-la ao menos pelo pensa­ coisas que conceberam apenas com
mento), é certo dizer que os três ângu­ obscuridade, considerem que seria algo
los de todo triângulo retilíneo são inteir amente des arr azo ado se, por al­
iguais a dois retos, e que todo corpo é guns prejuízos dos sentidos, ou por
divisível. algumas suposições feitas à vontade, e
Em quinto lugar, postulo que se fundadas em algo obscuro e desconhe­
detenham longamente em contemplar a cido, pusessem em dúvida as coisas
natureza do ser soberanamente perfei­ que o entendimento concebe clara e
to; e, entre outras coisas, que conside­ distintamente. Mediante isso, admiti­
rem que, nas idéias de todas as outras rão facilmente os seguintes axiomas
naturezas, a existência possível encon­
tra-se de fato contida, mas que, na 48 O conhecimento da necessidade da existência de
idéia de Deus, não só a existência pos­ Deus é, portanto, comparável ao das verdades mate­
máticas conhecidas sem prova. “O pensamento últi­
mo de Descartes é, pois, não cabe dúvidas, que o
47 Ê a premissa maior da prova apriori que é aqui argumento ontológico não comporta prova e que ele
postulada. Nas Meditações, ela era demonstrada reside inteiramente na percepção direta de uma rela­
pela primeira prova: “Aquilo mesmo que tomei há ção necessária inclusa em uma essência imediata­
pouco por uma regra, a saber, que as coisas que mente apreendida pela intuição; mas que nem por
concebemos mui clara e mui distintamente são isso deixa de permanecer totalmente comparável às
todas verdadeiras, só fica assegurado porque Deus é verdades matemáticas, pelo menos àquelas que são
ou existe e porque é um ser perfeito...” indemonstráveis.” (Guéroult, op. cit., I, pág. 352.)
182 DESCARTES

como verdadeiros e indubitáveis, em­ devessem ser propostos mais como


bora eu confesse que muitos deles teoremas do que como axiomas, se eu
pudessem ser melhor explicados e quisesse ser mais exato.

Axiomas ou Noções Comuns

I. Não há coisa existente da qual que o vemos? Mas essa visão não afeta
não se possa perguntar qual a causa de modo algum o espírito, a não ser na
pela qual ela existe. Pois isso se pode medida em que é uma idéia: uma idéia,
perguntar até mesmo de Deus: não que digo, inerente ao próprio espírito, e
tenha necessidade de alguma causa não uma imagem pintada na fantasia;
para existir, mas porque a própria e, por ocasião dessa idéia, não pode­
imensidade dé sua natureza é a causa mos julgar que o céu existe, a não ser
ou a razão pela qual não precisa de que suponhamos que toda idéia deve
qualquer causa para existir. ter uma causa de sua realidade obje­
II. O tempo presente não depende tiva que seja realmente existente; causa
daquele que imediatamente o prece­ que julgamos ser o céu mesmo; e assim
deu; eis por que não é necessário uma por diante 50.
menor causa para conservar uma VI. Há diversos graus de realidade
coisa, do que para produzi-la pela pri­ ou de entidade: pois a substância tem
mais realidade do que o acidente ou o
meira vez. modo, e a substância infinita mais do
III. Nenhuma coisa, ou perfeição que a finita. Eis por que também há
alguma dessa coisa atualmente existen­ mais realidade objetiva na idéia de
te, não pode ter o Nada, ou uma coisa substância do que na de acidente, e
não existente, como a causa de sua mais na idéia de substância infinita do
existência. que na de substância finita 51.
IV. Toda a realidade ou perfeição VII. A vontade se dirige voluntária
que existe numa coisa encontra-se for­ e livremente (pois isto é de sua essên­
mal, ou eminentemente, na sua causa cia), mas no entanto de modo infalível,
primeira e total. ao bem que lhe é claramente conheci­
V. Daí se segue também que a reali­ do. Daí por que, se ela chega a conhe­
dade objetiva de nossas idéias requer cer quaisquer perfeições que não pos­
uma causa, em que esta mesma reali­ sua, entregar-se-lhes-á imediatamente,
dade seja contida, não só objetiva, mas caso estejam ao seu alcance; pois reco-
também formal, ou eminentemente49.
50 Notar-se-á aqui, com Guéroult, o caráter funda­
E cumpre notar que este axioma deve mental do princípio da correspondência entre a
ser tão necessariamente admitido, que idéia e o ideado. O fato de certos pensamentos se
só dele depende o conhecimento de apresentarem certa ou erradamente como “produzi-
dos-por-seu-objeto” é “uma propriedade original
todas as coisas, tanto sensíveis como que não se pode adquirir pela experiência; é uma
insensíveis. Pois, como sabemos, por condição primeira de meu conhecimento, e mesmo
de minha percepção sensível”. (Guéroult, op. cit., I,
exemplo, que o céu existe? Será por 199.)
51 Dizer que as idéias das substâncias têm mais
49 Do axioma IV, segue-se que a causa da reali­ realidade objetiva que as dos acidentes, significa
dade objetiva da idéia há de ser uma realidade for­ ■ que “participam por representação em mais graus
mal. Daí a necessidade de uma causa atualmente de ser ou de perfeição do que as que me representam
existente para o efeito atualmente conservado. Esta somente modos ou acidentes”. É um princípio evi­
dependência entre os axiomas explica a reserva dente por luz natural que os acidentes são ihenos
acima: “Confesso que muitos dentre eles. . . deve­ que a substância. Daí por que será preciso alguma
ríam ser propostos mais como teoremas do que coisa a mais para criar a substância do que* para
como axiomas, se eu quisesse ser mais exato”. criar os acidentes.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 183

nhecerá que lhe é um maior bem ceito de uma coisa limitada, a exis­
possuí-las do que não as possuir 52. tência possível ou contingente acha-se
VIII. O que pode fazer o mais, ou o apenas contida, e no conceito de um
mais difícil, também pode fazer o ser soberanamente perfeito está com­
menos, ou o mais fácil. preendida a perfeita e necessária exis­
tência 5 3.
IX. E algo maior e mais difícil criar
52 Esta definição da vontade como apetência
ou conservar uma substância do que necessária do bem é de origem escolástica. Mas Gil­
criar ou conservar seus atributos ou son (Commentaire du Discours, pág. 333) observa
propriedades; mas não é algo maior ou que os escolásticos não poderíam utilizar essa
noção a fím de provar a existência de Deus. Com
mais difícil criar uma coisa do que efeito, é mister que o homem seja dotado de uma
conservâ-la, como já foi dito. vontade infinita para que se tome “um ser que, de
direito, queira para si todas as perfeições que Deus,
X. Na idéia ou no conceito de cada causa sui, quer para si e se dá”.
coisa, a existência está contida, porque 53 A fmitude da realidade objetiva nas idéias das
nada podemos conceber sem que seja coisas finitas é que exclui delas a existência necessá­
ria. Por meio dessas, posso conhecer com certeza a
sob a forma de uma coisa existente; possibilidade de seu objeto, mas nunca a existência
mas com a diferença de que no con­ deste.

Proposição Primeira
A EXISTÊNCIA DE DEUS É CONHECIDA PELA SIMPLES CONSIDERAÇÃO
DE SUA NATUREZA
Demonstração

Dizer que qualquer atributo está acham isentos de todos os prejuízos,


contido na natureza ou no conceito de como foi afirmado no quinto postula­
uma coisa é o mesmo que dizer que tal do. Mas, como não é fácil chegar a tão
atributo é verdadeiramente dessa grande clareza de espírito, procura­
remos provar a mesma coisa por ou­
coisa, e que se pode assegurar que ele tras vias 5 4.
está nela (pela nona definição).
Ora, é certo que a existência neces­ 5 4 Aqui a prova a priori intervém em primeiro
lugar. Ela não mais depende da prova pelos efeitos,
sária está contida na natureza ou no porém de evidências cujo valor foi admitido. É a
conceito de Deus (pelo décimo axio­ principal modificação que a ordem sintética intro­
duz. Não obstante, a prova pelos efeitos continua
ma). sendo a única capaz de proporcionar uma certeza
Logo, é verdadeiro dizer que a exis­ completa. Cf. Princípios, I, § 16: “Nossa alma ou
nosso pensamento não teria dificuldade em se per­
tência necessária está em Deus, ou, suadir dessa verdade, se estivesse livre de seus
então, que Deus existe. prejuízos; mas, como estamos acostumados a dis­
tinguir em todas as outras coisas a essência da
E esse silogismo é o mesmo de que existência. . ., pode ocorrer que duvidemos que a
me servi em resposta ao artigo sexto idéia que possuímos dele (de Deus) seja uma daque­
las.. . que são possíveis, embora a existência não
dessas objeções; e sua conclusão pode se encontre necessariamente compreendida em sua
ser conhecida sem prova pelos que se natureza”.

Proposição Segunda
A EXISTÊNCIA DE DEUS É DEMONSTRADA POR SEUS EFEITOS, PELO
SIMPLES FATO DE SUA IDÉIA ESTAR EM NÓS
Demonstração

A realidade objetiva de cada uma de qual esta mesma realidade esteja conti­
nossas idéias requer uma causa na da, não objetiva, mas formal ou emi-
184 DESCARTES

eminentemente (pelo quinto axioma). sexto axioma), e que ela não pode estar
Ora, é certo que temos em nós a contida em ninguém mais exceto em
idéia de Deus (pela segunda e oitava Deus mesmo (pela oitava definição).
Logo, a idéia de Deus, que há em
definições), e que a realidade objetiva
nós, exige Deus como causa: por
dessa idéia não está contida em nós, conseguinte, Deus existe (pelo terceiro
nem formal, nem eminentemente (pelo axioma).

Proposição Terceira
A EXISTÊNCIA DE DEUS É AINDA DEMONSTRADA PELO FATO DE NÓS
PRÓPRIOS, QUE TEMOS EM NÓS A IDÉIA DE DEUS, EXISTIRMOS
Demonstração

Se eu tivesse o poder de me conser­ Ora, é certo que possuo em mim a


var por mim mesmo, teria, com maior idéia ou a noção de muitas perfeições
razão ainda, o poder de me atribuir que me faltam e, ao mesmo tempo, a
todas as perfeições que me faltam idéia de um Deus (pelas definições 2 e
(pelos axiomas 8 e 9); pois tais perfei­ 8).
ções não são mais do que atributos da Logo, a noção dessas mesmas per-
substância, e eu sou uma substância. feiçõés encontra-se também naquele
Mas não tenho o poder de me conce­
der todas essas perfeições, pois de por quem sou conservado.
outra maneira já as possuiria (pelo Enfim, aquele mesmo por quem sou
axioma 7). conservado não pode ter a noção de
Logo, não disponho do poder de me quaisquer perfeições que lhe faltem,
conservar por mim mesmo. isto é, que ele não tenha em si formal
Além disso, não posso existir sem ou eminentemente (pelo axioma 7);
ser conservado enquanto existo, quer pois, dispondo do poder de me conser­
por mim mesmo, supondo-se que eu
tenha o poder disso, quer por outrem var, como foi dito agora, disporia com
que tenha este poder (pelos axiomas 1 maior razão do poder de se dar ele pró­
e2). prio tais perfeições, se não as tivesse
Ora, é certo que existo, e todavia (pelos axiomas 8 e 9).
não disponho do poder de me conser­ Ora, é certo que tem a noção de
var por mim próprio, como acabo de todas as perfeições que reconheço me
provar. faltarem, e que concebo existirem ape­
Logo, sou conservado por outrem.
nas em Deus, como acabo de provar.
Além disso, aquele por quem sou
conservado tem em si formal, ou Logo, ele já as tem em si todas
eminentemente, tudo o que há em mim formalmente, ou eminentemente; e
(pelo axioma 4). assim ele é Deus.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 185

Corolário
DEUS CRIOU O CÉU E A TERRA, E TUDO O QUE NELES ESTÁ CONTIDO.
E, ALÉM DISSO, PODE FAZER TODAS AS COISAS QUE CONCEBEMOS
CLARAMENTE, DA MANEIRA COMO NÓS AS CONCEBEMOS
Demonstração
Todas essas coisas seguem-se clara­ por aquele em quem ela se encontra,
mente da proposição precedente. Pois não só o céu e a terra, etc., devem ter
provamos aí a existência de Deus, por sido criados, mas também todas as ou­
ser necessário que haja um ser existen­ tras coisas que conhecemos como
te, no qual todas as perfeições, de que possíveis.
hâ em nós alguma idéia, estejam conti­
das formal ou eminentemente. Logo, provando a existência de
Ora, é certo que temos em nós a Deus, provamos também a seu respeito
idéia de um poder tão grande, que, só todas essas coisas.

Proposição Quarta
O ESPÍRITO E O CORPO SÃO REALMENTE DISTINTOS

Demonstração

Tudo o que concebemos claramente 7) que podem existir uma sem a outra
pode ser feito por Deus da maneira (como acabo de provar) 5 5.
como nós o concebemos (pelo corolá­ Logo, o espírito e o corpo 'são real­
rio precedente). mente distintos.
E é preciso observar que me servi
Mas concebemos claramente o espí­ aqui da onipotência de Deus para tirar
rito, isto é, uma substância que pensa, dela a minha prova56; não que seja
sem o corpo, isto é, sem uma—subs­ necessário qualquer poder extraordi­
tância extensa (pelo postulado 2); e, de nário para separar o espírito do corpo,
outra parte, concebemos também cla- mas porque, não tendo tratado senão
r amente o corpo sem o espírito (como de Deus nas proposições anteriores,
cada um concorda facilmente). não podia tirá-la de oütro lugar exceto
dele. E não importa de modo algum
Logo, ao menos pela onipotência de por qual poder duas coisas sejam sepa­
Deus, o espírito pode existir sem o radas, para sabermos que são real­
corpo, e o corpo sem o espírito. mente distintas.
Pois bem, as substâncias que podem 5 5 A fim de que as substâncias estejam realmente
existir uma sem a outra são realmente separadas, basta provar que são substâncias e não
distintas (pela definição 10). substâncias existentes.
5 6 A prova através da onipotência de Deus, aqui
Ora, é certo que o espírito e o corpo imposta pela ordem sintética, ameaça dissimular
são substâncias (pelas definições 5, 6 e que o conceito essencial é o da “distinção real”.
RESPOSTAS DO AUTOR
ÀS QUINTAS OBJEÇÕES
FORMULADAS PELO SENHOR GASSENDI
Do Senhor Descartes ao Senhor Gassendi

Senhor,

501. Impugnastes minhas Medita­ niões quanto os artifícios de um orador


ções com um discurso tão elegante e para eludi-las 5 7, isto não deixa de me
tão cuidadosamente elaborado e que ser muito agradável, e tanto mais que
me pareceu tão útil para 'esclarecer infiro daí ser difícil apresentar contra
mais a verdade delas, que julgo muito mim razões diferentes daquelas que
vos dever por vos ter des dado ao traba­ estão contidas nas precedentes obje­
lho de nisto se empenhar e não ficar ções que haveis lido. Pois certamente,
pouco obrigado ao Reverendo Padre se houvesse algumas, elas não vos fe­
riam escapado; e imagino que todo o
Mersenne por vos ter induzido a
vosso desígnio nisto não foi senão
empreender tal trabalho. Pois ele reco­
advertir-me dos meios de que essas
nheceu muito bem, ele que sempre foi pessoas, cujo espírito é de tal maneira
muito ávido na busca da verdade, mergulhado nos sentidos e a eles
principalmente quando esta pode ser­ atado, que nada podem conceber senão
vir para aumentar a glória de Deus, imaginando e que, portanto, não são
que não havia maneira mais própria capazes de especulações metafísicas,
para julgar a verdade de minhas poderiam servir-se para eludir minhas
demonstrações do que submetê-las ao razões, e, ao mesmo tempo, dar-me
exame e à censura de algumas pessoas oportunidade de preveni-las. Por isso,
reconhecidas como doutas acima das não penseis que, respondendo-vos
outras, a fim de ver se eu poderia res­ aqui, eu considere responder a um per­
feito e sutil filósofo, tal como sei que
ponder pertinentemente a todas as difi­ sois; mas, como se fôsseis um destes
culdades que poderiam ser por elas
homens de carne dos quais tomais de
propostas. Para este fim, provocou
empréstimo o rosto, dirigir-vos-ei so­
muitas destas, obteve-as de alguns, e
mente a resposta que eu gostaria de
eu me rejubilo por terdes também ace­ dar-lhes.
dido a seu pedido. Pois, embora não
tenhais empregado tanto nas razões de 5 7 Retomada da familiar oposição entre Filosofia e
um filósofo para refutar minhas opi­ Retórica.
188 DESCARTES

DAS COISAS QUE FORAM OBJETADAS CONTRA


À PRIMEIRA MEDITAÇÃO

502. Dizeis que aprovais o desígnio não é bastante clarividente ou nossa


que tive de libertar o espírito de seus natureza é falível; pois é o mesmo que
antigos prejuízos que é tal que nin­ dizer que erramos porque somos sujei­
guém poderia encontrar algo nele pas­ tos ao erro. E, certamente, não se pode
sível de reformulação; mas desejáveis negar que não seja mais útil levar em
que o realizasse simplesmente e com conta, como fiz, todas as coisas onde
poucas. palavras, isto é, em suma, pode ocorrer que erremos, temendo
negligentemente e sem tantas precau­ dar-lhes muito levianamente nosso cré­
ções; como se fosse uma coisa tão fácil dito. Um filósofo não teria dito tam­
libertar-se de todos os erros dos quais bém que tomando todas as coisas
estamos imbuídos desde nossa infân­ como falsas não me despojo tanto dos
cia, e se pudesse fazer demasiado exa­ meus antigos prejuízos quanto me
tamente o que não se duvida de modo revisto de um outro inteiramente novo;
algum que é preciso fazer. Mas, certa­ ou, antes, empenhar-se-ia primeira­
mente, vejo bem que quisestes indicar- mente em demonstrar que tal suposi­
me que há muitos que dizem somente ção nos poderia induzir em erro; mas,
da boca para fora que cumpre evitar pelo contrário, afirmais um pouco de­
cuidadosamente a prevenção, mas que pois que não é possível que eu possa
entretanto nunca a evitam, porque não obter isto de mim, ou seja, duvidar da
se esforçam de maneira nenhuma para verdade e da certeza destas coisas que
se desfazer dela e se persuadem de que supus serem falsas; isto é, que possa
não se deve ter por prejuízo o que rece­ revestir-me deste novo prejuízo pelo
beram uma vez como verdadeiro. Sem qual temeis que eu me deixe envolver.
dúvida alguma, desempenhais aqui E um filósofo não se espantaria mais
perfeitamente o papel deles e nada com esta suposição do que ver alguma
omitis do que eles me poderiam obje­ vez uma pessoa que, para endireitar
tar, mas entretanto nada dizeis que um bastão que é curvo, curva-o do
revele, por pouco que seja, qual ó seu outro lado; pois não ignora que muitas
filósofo. Pois, onde dizeis que não vezes tomamos assim coisas falsas por
havia necessidade de fingir um Deus verdadeiras, a fim de esclarecer ainda
enganador, nem que eu dormia, um mais a verdade, como quando os astrô­
filósofo julgar-se-ia obrigado a acres­ nomos imaginam no céu um equador,
centar a razão pela qual isso não pode um zodíaco e outros círculos, ou quan­
ser posto em dúvida, ou, caso não dis­ do os geometras acrescentam novas li­
pusesse dela como de fato não dispõe, nhas às figuras dadas58 e, assim tam-
ter-se-ia abstido de dizê-lo. E não teria 58 Desde a décima segunda das Regras para a
também acrescentado que seria sufi­ Direção do Espírito, Descartes recorrera a suposi­
ciente neste ponto alegar, como causa ções metodológicas “para distinguir as noções das
coisas simples das que delas são compostas”. E
de nossa desconfiança, o pouco de luz acrescentava: “Pouco importa que não as julgue­
do espírito humano ou a fraqueza de mos mais verdadeiras do que esses círculos imagi­
nossa natureza; pois de nada serve, nários com os quais os astrônomos descrevem seus
fenômenos, desde que, com o seu auxílio, distinga-
para corrigir nossos erros, dizer que mos, em qualquer questão, qual conhecimento deve
nos enganamos porque nosso espírito ser verdadeiro ou falso”. .
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 189

bém, os filósofos em muitas ocasiões; e zelo da verdade, bem mostra que ele
aquele que chama isto recorrer a uma próprio não quer servir-se desta candu­
máquina, forjar ilusões, procurar des­ ra filosófica, nem pôr em uso as
vios e novidades e que diz que isto é razões, ms atribuir somente às coisas
indigno da candura de um filósofo e do os ouropéis e as cores da retórica.

DAS COISAS QUE FORAM OBJETADAS CONTRA


A MEDITAÇÃO SEGUNDA

503. I. Continuais aqui a divertir- mente conhecidas pelo espírito huma­


nos com fingimentos e disfarces de no, é sem dúvida inteiramente contrá­
retórica em lugar de nos contrapor rio à razão não querer rejeitar
boas e sólidas razões; pois fingis que seriámente estas coisas como incertas,
brinco quando falo gravemente, e to­ ou mesmo também como falsas, a fim
mais por uma coisa dita seriamente e de observar que aquelas que não
com alguma segurança de verdade o podem ser assim rejeitadas são, por
que propus apenas em forma de inter­ isso mesmo, mais seguras e, quanto a
rogação e segundo a opinião do vulgo, nós, mais conhecidas e mais evidentes.
para fazer, a propósito disso, em segui­ Quanto ao fato de eu ter dito que
da, uma investigação mais exata. Pois, não conhecia ainda suficientemente o
quando disse que era preciso tomar que é uma coisa pensante59, não é ver­
como incertos ou mesmo como falsos dade, como afirmais, que o tenha dito
todos os testemunhos que recebemos deveras, pois eu o expliquei no devido
dos sentidos, disse-o seriamente; e isto lugar; nem mesmo que eu tenha dito
é tão necessário para entender minhas ' que não duvidava de maneira alguma
Meditações, que aquele que não pode, daquilo em que consistia a natureza do
ou não quer admitir isto, não é capaz corpo e que não lhe atribuía a facul­
de objetar coisa alguma que possa dade de se mover a si mesmo; nem
merecer resposta. Mas, entretanto, é . também que eu imaginava a alma
preciso advertir a diferença que existe como um vento ou um fogo e outras
entre as ações da vida e a pesquisa da coisas semelhantes que somente referi
verdade, a qual inculquei tantas vezes; nessa passagem, segundo a opinião do
pois, quando se trata da conduta da vulgo, para mostrar em seguida que
vida, seria algo inteiramente ridículo elas eram falsas. Mas com qúe fideli­
não se referir aos sentidos; razão pela dade afirmais que eu atribuo à alma as
qual sempre foram ridicularizados faculdades de andar, de sentir, de ser
aqueles céticos que negligenciavam a alimentada, etc., para que acrescenteis
tal ponto todas as coisas do mundo imediatamente após estas palavras: Eu
que, para impedir que eles próprios se vos concedo tudo isto, desde que nos
lançassem em precipícios, deviam ser abstenhamos de vossa distinção entre
guardados pelos seus amigos; e é por o espírito e o corpo?-, pois, nesse
. isso que disse em algum lugar: que mesmo momento, disse expressamente
uma pessoa de bom senso não podia que a nutrição deveria ser referida ape­
duvidar seriamente dessas coisas; mas, nas ao corpo; e, no que se refere ao
quando se trata da pesquisa da verdade
e de saber que coisas podem ser certa­ 59 Cf. Meditação Segunda, § 5.
19.0 DESCARTES

sentimento e ao andar, refiro-os tam­ qual desejais ser chamado, tendes tão
bém, na maior parte, ao corpo e nada pouco comércio com o espírito que
atribuo à alma do que lhes diz respeito, não pudestes notar a passagem em que
exceto, apenas, que é um pensamento. corrigi esta imaginação do vulgo pela
504. Ademais, que razão tendes de qual fingimos que a coisa que pensa é
dizer que não havia necessidade de tão semelhante ao vento ou a algum outro
grande aparelhamento para provar corpo dessa espécie60? Pois corrigi-o,
minha existência! Certamente penso sem dúvida, quando mostrei que se
ter muita razão em inferir de vossas pode supor que não há vento, nem
próprias palavras que o aparelhamento fogo, nem qualquer outro corpo no
do qual me servi não foi ainda suficien­ mundo, e que, entretanto, sem mudar
temente grande, posto que não pude essa suposição, todas as coisas pelas
fazer ainda com que compreendésseis quais conheço que sou uma coisa que
bem a questão; pois, quando dizeis que pensa não deixam de permanecer em
poderia concluir a mesma coisa de sua totalidade 61. E, portanto, todas as
cada uma de minhas ações indiferente­ perguntas que me fazeis em seguida,
mente, vós vos enganais bastante, já por exemplo: Por que não poderia eu,
que não hâ nenhuma entre elas de que pois, ser um vento? Por que nãopode­
eu esteja inteiramente certo — refiro- ria preencher um espaço? Por que não
me àquela certeza metafísica, única poderia ser movido de várias manei­
certeza de que aqui se trata — exceto o ras? e outras semelhantes, são tão vãs
e tão inúteis que não necessitam de
pensamento. Pois, por exemplo, não resposta.
seria boa a seguinte consequência: eu 506. III. O que em seguida acres­
passeio, logo existo, senão na medida centais não é mais sólido, a saber: se
em que o conhecimento interior que eu sou um corpo sutil e tênue, por que
tenho disto é um pensamento, do qual nãopoderia ser alimentado?; e o resto.
somente esta conclusão é certa, não do Pois nego absolutamente que eu seja
movimento do corpo, o qual às vezes um corpo62. E, para acabar de uma
pode ser falso, como nos nossos vez por todas com essas dificuldades,
sonhos, embora nos pareça então que porque me objetais quase sempre a
passeamos; de maneira que, do fato de mesma coisa, e não combateis minhas
que eu penso passear, posso muito bem
inferir a existência de meu espírito, que 60 Texto de Gassendi: “Dizei-me, eu vos peço, ó
alma, ou o que quer que sejais, corrigistes até aqui
tem este pensamento, mas não a do este pensamento pelo qual vos imaginais ser algo
meu corpo que passeia. O mesmo semelhante ao vento ou a qualquer outro corpo
acontece com todos os outros. desta natureza, espalhado em todas as partes de
vosso corpo? Certamente não o fizestes”. Em ou­
505. II. Começais, em seguida, por tros termos: quem vos autoriza a sustentar que só o
uma figura de retórica bastante agra­ pensamento pode ser separado de mim? Por que
dável que se chama prosopopéia, a me não seria este pensamento um corpo?
51 Em suma, Gassendi não compreendeu o método
interrogar, não mais como um homem de redução, implicado pela dúvida hiperbólica. Ele
inteiro, mas como uma alma separada se coloca ao nível de uma investigação física e fisio­
lógica, quando se trata de uma separação de essên­
do corpo; no que parece que tenhais cias no plano metafísico.
querido advertir-me de que essas obje­ 62 Resta-vos provar, dizia Gassendi, que o corpo
ções não partem do espírito do sutil não é capaz de pensamento, “que esse corpo gros­
seiro e pesado em nada contribui para o vosso
filósofo, mas de um homem preso aos pensamento, conquanto jamais tenhais estado sem
sentidos e à carne. Dizei-me, portanto, ele e nunca tenhais pensado algo estando separado
dele. . . ” Para Descartes, essas constatações de fato
suplico-vos, ó carne, ou quem quer que não poderiam valer contra a certeza metafísica de
sejais, e qualquer que seja o nome pelo direito. 1
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 191

razões, mas, dissimulando-as como se 507. Cumpre também notar que


fossem de pouco valor ou apresentan­ não parece, ó carne, que saibais de al­
do-as defeituosas e imperfeitas, apro­ guma forma o que é usar de razão,
veitais a ocasião para me fazer várias posto que, para provar que a informa­
objeções que as pessoas pouco versa­ ção e a fé de meus sentidos não me
das em Filosofia costumam opor às devem ser suspeitas, dizeis que, “em­
minhas conclusões ou a outras que se bora sem me servir do olho, tenha me
lhes assemelham ou mesmo que nada parecido algumas vezes que sentia
têm em comum com elas, as quais, ou coisa que não se pode sentir sem ele,
são afastadas do tema, ou já foram no não experimentei, entretanto, sempre a
devido lugar refutadas e resolvidas, mesma falsidade”; como se não hou­
não é necessário que eu responda a vesse fundamento suficiente para duvi­
cada uma de vossas perguntas, pois de dar de alguma coisa, no fato de termos
outra maneira seria preciso repetir cem nela alguma vez reconhecido erro 6 4, e
vezes as mesmas coisas que escrevi como se pudesse acontecer que, todas
acima. Mas, satisfarei apenas em pou­ as vezes que nos enganamos, pudés­
cas palavras àquelas que me parecem semos nos aperceber disso; visto que,
poder deter pessoas um pouco entendi­ ao contrário, o erro consiste apenas no
das. E quanto àqueles que não se pren­ fato de ele não se revelar como tal.
dem tanto à força das razões quanto à Enfim, uma vez que me pedis frequen­
multidão das palavras, não faço tanto temente razões quando vós mesmos
caso de sua aprovação que queira per­ não tendes nenhuma e, entretanto, cabe
der o tempo em discursos inúteis para a vós tê-las, sou obrigado a vos adver­
conquistá-la. tir de que, para bem filosofar, não há
Primeiramente, portanto, notaria .necessidade de provar que todas aque­
aqui que não se acredita em vós quan­ las coisas, que não recebemos como
do adiantais, tão audazmente e sem
verdadeiras, são falsas, porque sua ver­
qualquer prova, que o espírito cresce e dade não nos é conhecida; mas é
se enfraquece com o corpo; pois do
fato de não agir tão perfeitamente no somente necessário cuidar muito seria­
corpo de uma criança quanto no de um mente de nada receber como verda­
homem perfeito e de muitas vezes suas deiro que não possamos demonstrar
ações poderem ser impedidas pelo ser tal6 5. E assim, quando percebo que
vinho e por outras coisas corpóreas, sou uma substância pensante e formo
segue-se somente que, enquanto está /
unido ao corpo, dele se serve como de 6 4 Ao fim de contas, dizia pouco mais ou menos
um instrumento para fazer estas espé­ Gassendi, os sentidos nem sempre nos enganam:
por que duvidar deles sistematicamente? Observa­
cies de operações com as quais. se ção que implicava a negação de um conhecimento
ocupa ordinariamente, mas não que o de entendimento puro e a impossibilidade de pensar
corpo o tome mais ou menos perfeito em imagem. Em compensação, a recusa cartesiana
do provável e a sistematização da dúvida pressu­
do que ele é em si; é a consequência põem a possibilidade de uma ciência rigorosa que
que tirais daí não é melhor do que se, dispensa a imaginação: a Metafísica.
do fato de um artesão não trabalhar 6 5 Cf. a polêmica de Pascal contra o Pe. Noel, que
bem todas as vezes que se serve de um o censurava por não haver refutado a tese da “maté­
ria sutil”: “(Eles) pensam já ter feito muito quando
mau utensílio, inferisseis que ele tira colheram os outros na impotência de mostrar que
sua perícia e a ciência de sua arte da ela não existe, privando-se eles próprios de todo o
bondade de seu instrumento 63. poder de lhes mostrar que ela existe. Mas nós não
encontramos maior razão em negar sua existência
porque não se pode prová-la, quanto em crer nela
63 Descartes é aqui levado a apresentar com todo o pelo único motivo de não se poder mostrar que ela
rigor a tese da separação entre a alma e o corpo. não existe”. (Plêiade, pág. 373)
192 DESCARTES

um conceito claro e distinto dessa d ade por causa do equívoco que reside
substância, no qual nada estâ contido na palavra alma6 7, mas eu a esclarecí
que pertença ao da substância corpo­ nitidamente tantas vezes que me enver­
ral, isso me basta plenamente para gonho de repeti-lo aqui; e é por isso
assegurar que, enquanto eu me conhe­ que direi apenas que os nomes foram
ço, nada sou senão uma coisa que ordinariamente impostos por pessoas
pensa; e isso é tudo o que assegurei na ignorantes, o que faz com que não con­
Meditação Segunda, da qual se trata venham sempre propriamente às cbisas
nesse momento; e não deveria admitir que significam; no entanto, desde que
que esta substância pensante fosse um foram aceitos, não temos liberdade de
corpo sutil, puro, tênue, etc., na medi­ mudá-los, mas podemos apenas corri­
da em que não tive nenhuma razão que gir suas significações quando vemos
disso me persuadisse; se tendes algu­ que não são bem compreendidas.
ma, a vós cabe no-la ensinar e não exi­ Assim, visto que os primeiros autores
gir de mim que prove que algo é falso dos nomes talvez não distinguiram em
quando não tive outra razão para não nós aquele princípio pelo qual somos
admiti-lo senão o fato de me ser desco­ alimentados, crescemos e realizamos,
nhecida essa razão. Pois fazeis o sem o pensamento, todas as outras fun­
mesmo que se, dizendo que estou ções que partilhamos com os animais,
atualmente na Holanda, dissésseis que daquele outro pelo qual nós pensamos,
não devo ser acreditado se não provar eles denominaram ambos os princípios
ao mesmo tempo que não estou na com o mesmo nome de alma; e, vendo
China ou em qualquer outra parte do pouco depois que o pensamento era
mundo; visto que talvez possa ocorrer diferente da nutrição, deram o nome de
que um mesmo corpo, pela onipotência espírito a esta coisa que em nós tem a
de Deus, esteja em muitos lugares. E faculdade de pensar e acreditaram que
quando acrescentais que devo também era a parte principal da alma. Mas eu,
provar que as almas dos animais não tendo cuidado que o princípio pelo
qual somos alimentados é inteiramente
são corpóreas e que o corpo em nada diferente daquele pelo qual pensamos,
contribui para o pensamento, fazeis disse que o nome alma, quando se refe­
ver não somente que ignorais a quem re ao mesmo tempo a um e a outro, é
pertence à obrigação de provar uma equívoco, e que, para tomá-lo precisa­
coisa mas também que não sabeis o mente como esse primeiro ato ou essa
que cada um deve provar; pois, quanto forma principal do homem, ele deve
a mim, não creio nem que as almas dos ser somente entendido como aquele
animais não sejam corpóreas nem que princípio pelo qual pensamos; dessa
o corpo em nada contribua para o maneira, chamei-o o mais das vezes
pensamento; mas somente digo que pelo nome de espírito, para evitar esse
não ê este o lugar de examinar essas
coisas66. 6 7 Gassendi: “Eu pensava falar a uma alma huma­
na ou então a esse princípio interno pelo qual o
508. IV. Buscais aqui a obscuri- homem vive, sente, se move e entende, e no entanto
falava apenas a um puro espírito; pois vejo que sois
6 6 O fim do parágrafo fornece bom exemplo da despojado não unicamente do corpo, mas também
“dialética” de Descartes: por que deveria eu provar de uma parte da alma”. Ele acredita, portanto, que
como falsas idéias que se apresentam apartadas Descartes rechaça da alma as faculdades não inte­
tão-somente pela evidência fenomenológica? Dialé­ lectuais ao mesmo título que o corpo. Isto significa
tica sempre útil contra as falsas ciências, que ape­ confundir a distinção real entre alma e corpo e a
nas exigem a prova da falsidade por não poder dar distinção modal entre o entendimento e as demais
a da verdade. faculdades.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 193

equívoco e essa ambiguidade. Pois não contrário, posto que não sabia então se
considero o espírito como uma parte o corpo era uma e mesma coisa que o
da alma, mas como toda a alma espírito ou se não o era, eu nada queria
pensante. adiantar, mas somente considerei o
509. Mas, dizeis, sentis dificuldade espírito até que, enfim, na Meditação
em saber se eu não considero, portan­ Sexta, não somente adiantei mas de­
to, que a alma pensa sempre. Mas por monstrei mui claramente que ele era
que nao pensaria ela sempre, uma vez realmente distinto do corpo. Mas vos
que é uma substância pensante? E que enganais nisto a vós mesmo, e muito,
maravilha há em que não nos lembre­ pois, não tendo a menor razão para
mos dos pensamentos que ela teve no mostrar que o espírito não é distinto do
ventre de nossas mães, ou durante a corpo, não deixais de afirmá-lo sem
letargia, já que não nos lembramos, prova alguma 6 9.
mesmo, de muitos pensamentos que 511. V. O que eu disse da imagina­
sabemos muito bem que tivemos quan­ ção é bastante claro, desde que se quei­
do adultos, sãos e despertos, pela ra examiná-lo cuidadosamente, mas
razão de, para nos lembrarmos de não é estranho se parecer obscuro
pensamentos que o espírito concebeu àqueles que jamais meditam e que não
uma vez, enquanto conjugado ao fazem reflexão alguma sobre o que
corpo, ser necessário que restem deles pensam. Mas devo adverti-los de que
alguns vestígios impressos no cérebro, as coisas que asseverei'não perten­
para os quais o espírito se volta e apli­ cerem ao conhecimento que tenho de
ca-lhes seu pensamento, a fim de mim mesmo não são, de modo algum,
lembrar-se; ora, que há de maravilhoso incompatíveis com aquelas que ante­
se o cérebro de uma criança ou de um riormente disse não saber se perten­
letárgico não é próprio para receber ciam à minha essência, na medida em
tais impressões 6 8 ? que pertencer à minha essência e per­
510. Enfim, onde eu disse que tal­ tencer ao conhecimento que tenho de
vez possa ocorrer que aquilo que eu mim mesmo são duas coisas inteira­
não conheço ainda (a saber, meu mente diferentes 7 0.
corpo) não seja diferente de mim que 512. VI. Tudo o que aqui alegais, ó
conheço (a saber, de meu espírito), que boníssima carne, não me parece tanto
nada sei disso, que não o discuto, 69 A objeção de Gassendi se relacionava com a
etc. . ., vós me objetais: Se vós não o Meditação Segunda, § 7. Como podeis afirmar que
sabeis, se não o discutis, por que dizeis nada sois exceto uma coisa que pensa e, ao mesmo
que não sois nada disso? Ora, não é tempo, admitir que “essas coisas que suponho nada
serem talvez sejam algo real que não difere absolu­
verdade que eu tenha adiantado algo tamente de mim que conheço”? Ele ignora, assim,
que não soubesse; pois, exatamente ao que nesta passagem a certeza de que nada sou além
de uma coisa pensante não adquiriu ainda validade
objetiva.
68 Cabe perguntar em que medida esse parágrafo 70 Cf. Segunda Meditação, § 8. Não sei, objeta
concorda com o princípio segundo o qual nada hâ Gassendi, se as coisas que caem sob a imaginação
em nós de que não tenhamos consciência. Mas a não pertencem à minha essência. É sempre o mesmo
doutrina, neste ponto, é mais complexa do que pare­ mal-entendido. Descartes verificou simplesmente:
ce. Por exemplo, Descartes pôde escrever: “Temos reconheci que existia sem recorrer às imagens das
realmente um conhecimento atual dos atos ou das coisas corporais e mesmo reputando essas coisas
operações dê nosso espírito, mas nem sempre de como falsas. Gassendi, por sua vez, transpõe, em
suas faculdades, a não ser em potência”. (Quartas afirmação ontológica, esta análise do simples
Respostas a Amauld.) De modo que, quando o espí­ conhecimento. Ora, neste ponto, assiste-me o direito
rito deixa de lembrar-se, conserva em potência cer­ de excluir o corpo do conhecimento de minha natu­
tas faculdades ou propriedades da res cogitans. reza, mas não de minha natureza.
194 DESCARTES

objeções quanto algumas murmura- que, quando nossa imaginação não é


ções que não têm necessidade de tão forte, não deixamos amiúde de
réplica. conceber algo de inteiramente diferente
VII. Continuais ainda aqui vossas daquilo que imaginamos, como quan­
murmurações, mas não é necessário do, em meio aos nossos sonhos, perce­
que me detenha neste momento mais bemos que sonhamos; pois então é
do que fiz em outros. Pois todas as bem um efeito de nossa imaginação o
questões que formulais a respeito dos fato de sonharmos, mas o fato de nos
animais são fora de propósito e não é apercebermos de nossos sonhos é obra
aqui o lugar de examiná-las; posto que que pertence tão-somente ao entendi­
o espírito, meditando em si mesmo e mento.
refletindo sobre o que ele é, pode 513. VIII. Aqui, como muitas
perfeitamente experimentar que pensa, vezes alhures, mostrais apenas que não
mas não experimentar se os animais entendeis aquilo que vos empenhais em
têm pensamentos ou se os não têm; e repreender; pois não fiz abstração do
nada disto pode descobrir senão quan­ conceito de cera do conceito de seus
do, examinando as operações dos ani­ acidentes, mas, antes, quis mostrar
mais, remonta dos efeitos às causas. como sua substância é manifestada
Não me detenho tampouco em refutar pelos acidentes e o quanto a sua
as passagens em que me fazeis falar . percepção, quando é clara e distinta, e
impertinentemente, posto que me basta quando uma reflexão exata no-la tor­
ter uma vez advertido o leitor de que nou manifesta, difere da percepção vul­
não guardais toda a fidelidade que é gar e confusa71. E não vejo, ó carne,
devida ao relato das palavras de sobre qual argumento vos fundais para
outrem. Mas apresentei muitas vezes a assegurar com tanta certeza que um
verdadeira marca pela qual podemos cão discerne e julga da mesma maneira
conhecer que o espírito é diferente do que nós, a não ser que, vendo que é
corpo, a qual é que toda a essência ou também composto de carne, vós vos
toda a natureza do espírito consiste persuadais de que as mesmas coisas
somente em pensar, quando toda a que se acham em vós encontram-se
natureza do corpo consiste somente no também nele. Quanto a mim, que não
seguinte ponto, que o corpo é uma reconheço no cão espírito nenhum, não
coisa extensa, e também que nada há penso que haja nele coisa alguma
de comum entre o pensamento e a semelhante às coisas que pertencem ao
extensão. Mostrei também, inúmeras espírito.
vezes, mui claramente, que o espírito 514- IX. Espanto-me por confes­
pode agir independentemente do cére­ sardes que todas as coisas que consi­
bro ; pois é certo que o cérebro é de ne­ dero na cera provam que conheço
nhum uso quando se trata de formar distintamente que eu sou, mas não de
atos de intelecção pura, e só o é de que modo sou ou qual é minha nature-
algum quando se trata de sentir ou de
imaginar algo; e, embora, quando o 71 Descartes não afirmou que se podia conhecer a
sentimento ou a imaginação está forte­ cera sem perceber seus acidentes, mas que só um
ato de interpretação ou de intelecção nos permite
mente agitado, como ocorre quando o reconhecer tratar-se do mesmo pedaço de cera.
cérebro está perturbado, o espírito não “Não são, de modo algum, nossos sentidos que nos
levam a descobrir a natureza do que quer que seja,
possa aplicar-se facilmente a conceber mas somente nossa razão quando aí intervém...”
outras coisas, experimentamos todavia (Princípios, I, 73.)
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 195

za, visto que um não se demonstra sem tem a virtude de conhecer-lhe a dureza,
outro 72. E não vejo o que podeis dese­ outro que pode conhecer a modifica­
jar de mais, no que se refere a isto, a ção dessa dureza ou a liquefação, etc.,
não ser que se vos diga qual é o odor e pois alguém pode conhecer a dureza
qual é o sabor do espírito humano, ou sem por isso conhecer a brancura,
de que sal, enxofre -e mercúrio é ele como é o caso de um cego de nascença
composto; pois quereis que, como por e assim por diante. Donde se vê clara­
uma espécie de operação química, a mente que não há coisa alguma de que
exemplo do vinho, nós o passemos se conheçam tantos atributos quanto
pelo alambique, a fim de saber o que os de nosso espírito, pois, na medida
entra na composição de sua essên­ em que os conhecemos nas outras coi­
cia73. O que certamente é digno de sas, podemos contar tantos outros no
vós, ó carne, e de todos aqueles que, espírito, pelo fato de que ele os conhe­
nada concebendo senão mui confusa­ ce; e, portanto, sua natureza é mais
mente, não sabem o que se deve pes­ conhecida do que a de qualquer outra
quisar de cada coisa. Mas, quanto a coisa7 4.
mim, jamais pensei que, para tomar 515. Enfim, vós me argüis aqui de
uma substância manifesta, fosse neces­ passagem pelo fato de que, nada tendo
sária outra coisa além de descobrir-lhe admitido em mim a não ser o espírito,
os diversos atributos; de sorte que, eu fale todavia da cerca que vejo e que
quanto mais atributos conhecemos de toco, o que no entanto não se pode
alguma substância, mais perfeitamente fazer sem olhos ou sem mãos; mas de­
também conhecemos-lhe a natureza; e, veis haver notado que adverti expressa­
do mesmo modo, podemos distinguir mente que não se tratava aqui da visão
mui diversos atributos na cera: um que ou do tato, que se fazem por inter­
ela é branca, outro que é dura, outro médio dos órgãos corpóreos, mas
somente do pensamento de ver e de
que, de dura, torna-se líquida, etc.; do tocar, que não necessita desses órgãos,
mesmo modo, hâ tantos atributos no como experimentamos todas as noites
espírito: um que ele tem a virtude de em nossos sonhos 7 5; e certamente vós
conhecer a brancura da cera, outro que o notastes muito bem, mas quisestes
apenas mostrar quantos absurdos e
72 Cf. Meditação Segunda, § 16. Gassendi: “Não injustas cavilações são capazes de
vejo de onde podeis inferir que se possa conhecer
claramente algo de vosso espírito, exceto que ele inventar aqueles que não se empenham
existe. . .” tanto em bem conceber uma coisa
73 Para Gassendi, a expressão “uma coisa pensan­
te” não me faz conhecer nada do todo. “Se alguém quanto em impugná-la e contradizê-la.
vos pedisse que lhe désseis um conhecimento do
vinho mais exato e mais pronunciado, pensarieis tê- 74 Doutrina antiescolástica e antiempirista do pri­
lo satisfeito ao dizer que o vinho é uma coisa lí­ mado do conhecimento espiritual sobre o corporal.
quida que se espreme da uva, que é ora branca, ora Cf. Regras, VII: “Nada pode ser conhecido antes da
rosada, etc., mas não tentarieis descobrir e manifes­ inteligência, pois é pela inteligência que as coisas
tar o interior de sua substância, mostrando como são cognoscíveis enão inversamente”.
essa substância é composta de aguardentes... e de 7 5 Mais uma vez Gassendi desconhece que se trata
muitas partes misturadas numa justa proporção?” do pensamento enquanto ato universal que se desen­
O conhecimento do eu estaria, portanto, na medida rola necessariamente através de qualquer conheci­
de uma análise química; ora, trata-se do conheci­ mento, seja ou não este conhecimento garantido
mento certo de mim mesmo enquanto pensante. objetivamente.
196 DESCARTES

DAS COISAS QUE FORAM OBJETADAS


CONTRA A MEDITAÇÃO TERCEIRA

516. I. Coragem; enfim apresentais tê-lo feito exatamente no seu lugar,


aqui contra mim alguma razão, o que primeiramente afastando os precon­
não notei tivésseis feito até este mo­ ceitos e, em seguida, explicando as
mento; pois, para provar que não é principais idéias e, enfim, distinguindo
uma regra certa que “as coisas que as claras e distintas das que são obscu­
concebemos mui clara e distintamente ras e confusas.
são todas verdadeiras”76, dizeis que 517. II. Certamente admiro vosso
uma porção de grandes espíritos, que raciocínio pelo qual desejais provar
parecem dever ter conhecido várias que todas as nossas idéias são estra­
coisas mui clara e distintamente, consi­ nhas ou provêm de fora e que não há
deraram que a verdade estava oculta nenhuma que tenhamos formado77,
no seio do próprio Deus, ou no pro­ pois, dizeis vós, o espírito não tem
fundo dos abismos; no que confesso somente a faculdade de conceber as
que é argumentar bastante bem com a idéias estranhas; mas também a de
autoridade de outrem; mas deverieis ajuntá-las, dividi-las, estendê-las, abre-
lembrar-vos, ó carne, que aqui falais a viâ-las, compô-las, etc., de muitas
um espírito de tal modo desligado das maneiras; donde concluís que a idéia
coisas corpóreas que não sabe mesmo de uma quimera que o espírito formula
se houve jamais homens antes dele e compondo, dividindo, etc., não é feita
que, portanto, não se comove muito por ele, mas provém de fora ou é estra­
com a autoridade deles. O que alegais nha. Mas poderieis também, da mesma
em seguida a respeito dos céticos é um maneira, provar que Praxíteles não fez
lugar-comum que não é mau, mas que nenhuma estátua, na medida em que
nada prova; não prova mais do que não retirou dele próprio o mármore
aquilo que dizeis ao afirmar que há sobre o qual pode talhá-las; poder-se-
pessoas que morreríam pela defesa de ia também dizer que não fizestes estas
suas falsas opiniões, porque não se objeções, pois as compusestes com
poderia provar que concebem clara e palavras que não inventastes mas que
distintamente o que afirmam com tomastes de empréstimo de outrem.
tanta obstinação. Enfim, é muito ver­ Mas, certamente, nem a forma de uma
dadeiro o que acrescentais, afirmando quimera não consiste nas partes de
que não é preciso tanto trabalhar em uma cabra ou de um leão, nem a de
confirmar a verdade dessa regra quan­ vossas objeções em cada uma das
to em fornecer um bom método para palavras de que vos servistes, mas
conhecer se nos enganamos ou não, somente na composição e no arranjo
quando pensamos conceber claramente dessas coisas. Admiro-me também de
alguma coisa; mas, igualmente, afirmo afirmardes que a idéia daquilo que em
geral se denomina uma coisa não pode
7 6 Resposta aos argumentos que tendem a abalar a
validade objetiva da regra da clareza e da distinção.
“Não significa isto que uma coisa não é verdadeira 77 Cf. Meditação Terceira, § 10. Gassendi,reduz
em si, embora seja clara e distintamente concebida, sucessivamente as idéias factícias, depois as inatas,
mas apenas que ela é assim clara e distintamente a tão-somente idéias adventícias (= que nos| vêjm
concebida?” de fora no curso de nossa existência).
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 197

existir no espírito, se as idéias de um a saber, por que, pois, em um cego de


animal, de uma planta, de uma pedra e nascença não há idéia alguma da cor,
de todos os universais não estiverem aí ou no surdo dos sons e da voz?, mos­
ao mesmo tempo; como se, para trais que não tendes nenhuma objeção
conhecer que sou uma coisa que pensa, consequente; pois, como sabeis que em
eu devesse conhecer os animais e as um cego de nascença não há nenhuma
plantas, porque devo conhecer aquilo idéia das cores, visto que às vezes
que se chama uma coisa, ou melhor, o experimentamos que, embora tenha­
que é em geral uma coisa13. Não sois, mos os olhos fechados, excitam-se em
também, mais verdadeiro em tudo o nós sentimentos de cor e de luz? E,
que dizeis a respeito da verdade. E ainda que se vos concedesse o que
enfim, já que impugnais apenas as coi­ dizeis, aquele que negasse a existência
sas de que nada afirmei, vós vos ar­ das coisas materiais não teria também
mais em vão contra fantasmas. boa razão para dizer que o cego de
518. III. Para refutar as razões nascença não tem as idéias das cores
pelas quais estimei que se poderia porque seu espírito estâ privado da
duvidar da existência das coisas mate­ faculdade de formá-las, como tendes
riais, perguntais aqui por que, então, razão de dizer que ele não tem essas
eu caminho sobre a terra, etc.; no que é idéias porque está privado da visão?
evidente que reincidis na primeira difi­ 520. O que acrescentais sobre as
culdade; pois tomais para fundamento duas idéias do sol nada prova, mas
o que estâ em controvérsia, e que pre­ quando tomais ambas as idéias por
cisa de prova, que é tão certo que uma só, porque se relacionam ao
caminhais sobre a terra que não se mesmo sol, é o mçsmo que se dissés­
pode, de maneira alguma, duvidar seis que o verdadeiro e o falso não dife­
.disso 7 9. rem quando se referem a uma mesma
519. E quanto às objeções que for­ coisa; e, quando negais que se deva dar
mulei a mim mesmo e às quais dei o nome de idéia àquela que inferimos
solução, quereis acrescentar esta outra,78 * das razões da astronomia, restringis o
79
nome de idéia somente às imagens pin­
78 Gassendi negava que pudéssemos entender tadas na fantasia, contra o que estabe­
naturalmente o que é “uma coisa” ou o que é “o
pensamento”. Não cumpre que uma idéia como a de lecí expressamente80.
“coisa” tenha sido formada por abstração a partir 521. IV. Fazeis o mesmo quando
“de um animal, de uma planta, de uma pedra, etc.?”
A esse psicologismo, Descartes opõe a evidência negais que se possa ter uma verdadeira
que denominaríamos hoje fenomenológica: quando idéia da substância, pelo fato de que,
ouço pronunciar a palavra, sei imediatamente o que
significa. Uma coisa é o aprendizado e outra a dizeis vós, a substância não é perce­
compreensão da essência à qual a palavra me reme­ bida pela imaginação, mas pelo tão-só
te. Gassendi, ao contrário, escreve: “Estas palavras
que pronunciais, não as aprendestes pela freqüen- entendimento. Mas eu já protestei múl­
tação dos homens.com os quais vivestes? E, já que tiplas vezes, ó carne, que não queria ter
lhes deveis as palavras, não lhes deveis também as comércio com aqueles que só se que­
noções designadas e entendidas por estas mesmas
palavras?” rem servir da imaginação e não do
79 “Se não credes ainda que haja uma terra, um entendimento.
céu e astros, por que, pergunto-vos, andais sobre a Mas, onde dizeis que a idéia da
terra, por que elevais os vossos olhos para contem­
plar o sol? Por que vos sentais à mesa e por que co­
meis para saciar vossa fome? E por que tomais da 80 Sobre a Meditação Terceira, § 13. “Se quiser­
pena para nos escrever vossos pensamentos?” Esta mos possuir um pensamento distinto do sol, é preci­
não é uma objeção, porém, simplesmente, uma recu­ so que recorramos à idéia que dele recebemos por
sa do método de investigação cartesiano. intermédio dos sentidos.”
198 DESCARTES

substância não tem realidade alguma como também talvez de qualquer outra
que não. haja tomado das idéias dos coisa que exista no ihundo, por peque­
acidentes segundo os quais ou à manei­ na que seja; e não é verdade que conce­
ra dos quais ela é concebida, mostrais bemos o infinito pela negação do fini­
claramente que não tendes idéia algu­ to, visto que, ao contrário, toda
ma da substância que seja distinta, limitação contém em si a negação do
pois esta não pode jamais ser. conce­ infinito82.
bida à maneira dos acidentes, nem 552. Não é verdade também que a
tomar-lhes de empréstimo sua realida­ idéia que nos representa todas as
de; mas, ao contrário, os acidentes são perfeições que atribuímos a Deus não
comumente concebidos pelos filósofos tem mais realidade objetiva do que têm
como substâncias, a saber, quando eles as coisas finitas. Pois confessais, vós
os concebem como reais; pois não se mesmo, que todas essas perfeições são
pode atribuir aos acidentes realidade ampliadas por nosso espírito, a fim de
alguma (isto é, entidade alguma mais que possam ser atribuídas a Deus; pen­
do que modal) que não seja tomada à sais, portanto, que as coisas assim
idéia da substância81. ampliadas não são maiores do que as
Enfim, onde dizeis que não forma­ que não o foram; e de onde nos pode
mos a idéia de Deus senão sobre aqui­ vir essa faculdade de ampliar todas as
lo que aprendemos e ouvimos dos perfeições criadas, isto é, de conceber
outros, atribuindo-lhe, a exemplo algo de maior e de mais perfeito do que
deles, as mesmas perfeições que vimos elas são, se não do simples fato de que
os outros atribuírem-lhe, eu desejaria temos em nós a idéia de uma coisa
que tivésseis também acrescentado de maior, a saber, do próprio Deus? E,
onde é, pois, que esses primeiros enfim, não é verdade também que
homens, de quem aprendemos e ouvi­ Deus seria pouca coisa se não fosse
mos essas coisas, obtiveram essa maior do que o concebemos; pois con­
mesma idéia de Deus. Pois, se a obtive­ cebemos que ele é infinito e nada pode
ram de si mesmos, por que não pode­ haver de maior do que o infinito. Mas
riamos nós obtê-la de nós mesmos? confundis intelecção com imaginação
Porque, se Deus lhas revelou, Deus e supondes que imaginamos Deus
existe consequentemente. como algum grande e poderoso gigan­
E, quando acrescentais que aquele te, como o faria aquele que, jamais
que chamauma coisa infinita dâ a uma tendo visto um elefante, o imaginasse
coisa que não compreende um nome semelhante a um oução de altura e de
que tampouco entende, não fazeis a largura desmesuradas, o que concordo
distinção entre a intelecção conforme convosco ser muito impertinente83.
ao alcance de nosso espírito, tal como
cada um reconhece suficientemente em 82 Sobre a Meditação Terceira, § 15. Gassendi
siratsmo ter do infinito, e a concepção nega a positividade da idéia de infinito. Ora, para
inteira e perfeita das coisas, isto é, que Descartes, “esta idéia é evidentemente positiva,
visto ser idéia do infinito apenas porque encerra a
compreende tudo o quê há de inteli­ realidade (objetiva) do infinito; pretender extraí-la
gível nelas, que é de tal ordem que nin­ do finito surge então como imediatamente absurdo,
guém a teve jamais não só do infinito pois seria querer tirar a realidade objetiva infinita
de uma realidade finita”. (Guéroult, op. cit., I, 190.)
83 Como no caso dos dois sóis, tudo se baseia na
81 Acerca da definição da substância, cf. Princí­ recusa de Gassendi de distinguir intelecção e imagi­
pios, I, 51. Acerca da necessidade de distinguir sem­ nação. Por conseguinte, não pode ele ter idéia posi­
pre os modos na substância e a própria substância, tiva do infinito. A posição de Gassendi é neste
cf. Princípios, I, 64. ponto bastante próxima da de Kant. I
OBJEÇÕES E RESPOSTAS .199

V. Dizeis aqui muitas coisas para vosso costume usar argumentos e pro­
fazer de conta que me contradizeis e var o que dizeis. Provais isto com o
entretanto nada dizeis contra mim, exemplo do dedo que não pode bater
posto que concluís a mesma coisa que em si mesmo e do olho que não pode
eu8 4. Mas, todavia, mesclais aqui e ver-se a si mesmo a não ser num espe­
acolá várias coisas com as quais não lho: ao que é fácil responder que não é
estou de acordo; por exemplo, que este o olho que se vê a si mesmo, nem o
axioma, nada hâ num efeito que não espelho, mas antes o espírito, o qual
tenha estado primeiramente em sua somente conhece não só o espelho
causa, se deve entender mais da causa como o olho e a si mesmo. Podemos
material do que da eficiente; pois é mesmo, também, dar outros exemplos,
impossível conceber que a perfeição da entre as coisas corpóreas, da ação que
forma preexista na causa material, mas uma coisa exerce sobre si, como quan­
tão-somente na causa eficiente, e tam­ do um tamanco se vira sobre si
bém que a realidade formal de uma mesmo; esta conversão não será uma
idéia seja uma substância, e muitas ou­ ação que ele exerce sobre si8 6 ?
tras coisas semelhantes. 525. Enfim, é mister observar que
523. VI. Se tivésseis algumas ra­ eu não afirmei que as idéias das coisas
zões para provar a existência das coi­ materiais derivavam do espírito, como
sas materiais, sem dúvida tê-las-íeis quereis aqui fazer crer; pois demons­
aqui relatado8 5. Mas, uma vez que trei expressamente depois que elas pro­
perguntais somente se é, então, verda­ cediam muitas vezes dos corpos, e que
deiro que eu não esteja certo de que é com isso que se prova a existência
haja alguma coisa diferente de mim das coisas corpóreas; mas somente
que exista no mundo, e que supondes apontei nessa passagem que não há
que não há necessidade de procurar as nelas tanta realidade que, por causa da
razões de uma coisa tão evidente, e seguinte máxima: Nada hâ num efeito
assim vos referis somente aos vossos que não tenha estado em sua causa,
antigos prejuízos, mostrais bem mais formal ou eminentemente, se deva con­
claramente que não tendes mais qual­ cluir que elas não puderam derivar do
quer razão para provar o que afirmais tão-só espírito; o que não impugnais de
do que se não houvésseis dito coisa maneira nenhuma8 7.
alguma. No que dizeis a respeito das 526. VII. Não dizeis nada aqui que
idéias, isto não tem necessidade de res­ não tenhais dito anteriormente e que eu
posta, porque retringis o nome de idéia não haja refutado inteiramente. Adver-
apenas às imagens pintadas na fanta­ tir-vos-ei aqui apenas, no tocante à
sia; e eu estendo-o a tudo o que conce­ idéia do infinito (a qual dizeis não
bemos com o pensamento. poder ser verdadeira a não ser que
524. Mas, pergunto-vos, de passa­
gem, por que argumento provais que 8 6 A objeção de Gassendi supunha que a cons­
nada age sobre si mesmo. Pois não é ciência de si podia ser apenas um desdobramento, a
contemplação exterior do eu como a de uma coisa.
Ora, para Descartes não existe diferença de natu­
8 4 Trata-se do princípio: “Há pelo menos tanta reza entre pensar e pensar que se pensa.
realidade formal na causa da idéia quanta realidade 8 7 Repreendendo Descartes por não ter provado
objetiva na própria idéia”. Gassendi prefere reser­ que eu pudesse produzir, por mim só, as idéias cor­
var a aplicação deste princípio à causalidade mate­ porais, Gassendi mostra que não compreendeu o
rial (o sêmen com respeito ao filho, o material com sentido da passagem: somente no caso da idéia de
respeito à casa) do que à causa eficiente (o pai ou o Deus é que posso estar certo de se tratar de uma
arquiteto). idéia que não poderia ser produzida por mim
8 5 Cf. Meditação Terceira, §§ 20, 21. mesmo.
200 DESCARTES

compreenda o infinito, e que o que dele erro quando negais que possamos ter
conheço é, quando muito, apenas uma uma verdadeira idéia de Deus: pois,
parte do infinito e mesmo uma parte ainda que não conheçamos todas as
minúscula, que não representa melhor coisas que existem em Deus, todavia,
o infinito que o retrato de um simples tudo o que conhecemos existir nele é
cabelo representa um homem inteiro), inteiramente verdadeiro. Quanto ao
advertir-vos-ei, digo, que repugna que que dizeis, que o pão não é mais per­
eu compreenda alguma coisa e que o feito do que aquele que o deseja, e que,
que eu compreendo seja infinito; pois, do fato de eu conceber que algo estâ
para ter uma idéia verdadeira do infini­ atualmente contido numa idéia, não se
to, ele não deve ser de maneira alguma segue que ela esteja atualmente na
compreendido, tanto mais que a in- coisa da qual é idéia, e também que
compreensibilidade mesma estâ conti­ formulo juízo sobre aquilo que ignoro,
da na razão formal do infinito88; e e outras coisas semelhantes, tudo isso,
entretanto é coisa manifesta que a digo, nos demonstra apenas que pre­
idéia que temos do infinito não repre­ tendeis temerariamente impugnar vá­
senta somente uma de suas partes mas rias coisas das quais não compreendeis
o infinito em sua totalidade, conforme o sentido; pois, do fato de alguém dese­
deve ser representado por uma idéia jar pão, não se infere que o pão seja
humana; embora seja certo que Deus mais perfeito do que ele, mas somente
ou algumà outra natureza inteligente que aquele que necessita de pão é
dele possa ter outra idéia muito mais menos perfeito do que quando não
perfeita, isto é, muito mais exata e necessita dele. E, do fato de alguma
mais distinta do que aquela que os ho­ coisa estar contida numa idéia, não
mens têm, da mesma maneira que dize­ concluo que essa coisa exista atual­
mos que aquele que não é versado na mente, a não ser quando não se pode
Geometria não deixa de possuir a idéia designar nenhuma outra causa para
de todo o triângulo, quando o concebe essa idéia exceto a própria coisa que
como uma figura composta de três ela representa como existente atual­
linhas, embora os geômetras possam mente; o que demonstrei que não se
conhecer várias outras propriedades pode dizer de muitos mundos, nem de
do triângulo e notar muitas coisas em qualquer outra coisa que seja, exceto
sua idéia que o não versado na Geome­ de Deus, apenas89. E não julgo tam­
tria não observa. Pois, como é sufi­ pouco do que ignoro, pois apresentei
ciente conceber uma figura composta as razões do juízo que formulava,
de três linhas para ter a idéia de todo o razões que são tais que não pudestes
triângulo, assim é suficiente conceber até agora refutar nem a mais frágil.
uma coisa que não estâ encerrada em 528. IX. Quando negais que tenha­
limites alguns para ter uma verdadeira mos necessidade do concurso e da
e inteira idéia de todo o infinito. influência contínua da causa primeira
527. VIII. Incorreis aqui no mesmo para sermos conservados90, negais
88 Se não posso compreender Deus, já que está 89 Podemos ter a idéia de muitas coisas que não
além do finito, posso ao menos entender que é existem atualmente, objetava Gassendi. Resposta: a
incompreensível. “Longe portanto de me tomar idéia de Deus em mim é a única de que estou certo
Deus incognoscível, a incompreensibilidade, embo­ que só poderia ser gerada por aquilo mesmo que ela
ra envolva certa limitação necessária de meu conhe­ representa como existente. A objeção pressupõe,
cimento (eu jamais poderia esgotar o infinito, pos­ pois, que Gassendi interpretou falsamente a aplica­
suir dele um conhecimento ‘adequado’, isto é, ção que é feita do princípio de clareza e distinção e
completo), é ao mesmo tempo... o que me permite que não atentou para o caráter eminentemente origi­
conhecer o infinito como tal.” (Guéroult, op. cit., t. nal da idéia de Deus.
I, 206.) 90 Cf. Meditação Terceira, § 33.
I
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 201

algo que todos os metafísicos afirmam atribuís à criatura a perfeição do cria­


como muito manifesto, mas em que as dor, na medida em que ela persevera
pessoas pouco letradas não pensam no ser independentemente de outrem;
amiúde, porque dirigem seus pensa­ e, ao mesmo tempo que atribuís ao
mentos apenas às causas que se chama criador a imperfeição da criatura, na
na Escola secundum fieri, isto é, das medida em que, se alguma vez ele qui­
quais os efeitos dependem quanto à sesse que deixássemos de ser, seria
sua produção e não às que se chama necessário que ele tivesse o nada como
secundum esse, isto é, das quais os o termo de uma ação positiva.
efeitos dependem quanto à sua subsis­ 530: O que dizeis, após isso, no que
tência e sua continuação no ser. concerne ao progresso ao infinito, a
Assim, o arquiteto é a causa da casa, e saber, que não há discordância alguma
o pai a causa de seu filho, quanto à em que haja um tal progresso, desdi­
tão-só produção; eis por que, uma vez zeis imediatamente depois; pois con­
estando a obra acabada, ela pode sub­ fessais, vós mesmo, que é impossível
sistir e permanecer sem essa causa; que possa haver tal nessas espécies de
mas o sol é a causa da luz que procede causas, que são de tal modo conexas e
dele e Deus é a causa de todas as coi­ subordinadas entre si, que o inferior
sas criadas, não somente no que depen­ não possa agir se a tanto não o impul­
de de sua produção, mas mesmo no sione o superior. Ora, trata-se aqui
que concerne à sua conservação ou à apenas dessas formas de causas, a
sua duração no ser. Eis por que ele saber, daquelas que dão e conservam o
deve sempre agir sobre seu efeito de. ser de seus efeitos e não daquelas cujos
uma mesma maneira para conservá-lo efeitos dependem delas apenas no
no primeiro ser que lhe deu. E isto se momento da produção, como são os
demonstra mui claramente pelo que pais; e, portanto, a autoridade de Aris­
expliquei a respeito.da independência tóteles não me é de modo algum con­
das partes do tempo, e que procurais trária neste momento92, assim como
em vão eludir, propondo a necessidade não o é aquilo que dizeis sobre Pando-
da sequência que existe entre as partes ra93; pois vós mesmo confessais que
do tempo considerado em abstrato, a posso de tal forma acrescer e aumentar
respeito da qual não se discute, aqui, todas as perfeições que reconheço exis­
mas somente a respeito do tempo ou tirem no homem que me será fácil
da duração da própria coisa, da qual reconhecer que são tais que nao pode-
não podeis negar que todos os momen­
tos não possam ser separados daqueles 92 Cf. Meditação Terceira, § 35. “Nunca podereis
provar que haja qualquer absurdo neste progresso
que os seguem imediatamente, isto é, ao infinito, se não provardes ao .mesmo tempo que o
que ela não possa deixar de ser em mundo teve um começo.” Gassendi concebe a possi­
cada momento de sua duração91. bilidade do progresso ao infinito, “quando é preciso
remontar a um primeiro motor que dá o impulso a
529. E quando dizeis que há em nós todos os outros” (“algo é movido por uma pedra
bastante virtude para nos fazer perse- que fora empurrada por um bastão que a mão
impulsionara”), mas não “nessas espécies de causas
verar no caso de que qualquer causa que são ordenadas de maneira que, sendo a primeira
corruptiva sobrevenha, não cuidais que destruída, a que dela depende não deixa de
subsistir”.
93 Cf. Meditação Terceira, § 36. “Eu desejaria
91 Distinção entre o tempo considerado em abs­ realmente perguntar-vos por que muitas coisas não
trato (como contínuo e infinitamente divisível) e o poderiam existir no mundo, das quais tendo
ponto de vista concreto da criação e da conservação contemplado separadamente as diversas perfeições,
por Deus no instante (o nada de tempo). “A dura­ tivésseis aproveitado a ocasião para pensar que
ção de cada coisa é um modo ou uma forma com seria feliz essa coisa em que elas se encontrassem
que consideramos esta coisa enquanto ela continua todas juntas?” Tal como a Pandora da mitologia, a
sendo...” (Princípios, I, 55.) quem cada deus dotou de uma qualidade diferente.
202 DESCARTES

riam convir à natureza humana; o que que temos de Deus forma-se sucessiva­
me basta inteiramente para demonstrar mente do aumento das perfeições das
a existência de Deus; pois sustento que criaturas; ela se forma inteiramente e
tal virtude, de aumentar e de acrescer de uma vez pelo fato de .concebermos
as perfeições humanas até o ponto de por nosso espírito o ser infinito, inca­
não mais serem humanas, mas infinita­ paz de qualquer espécie de aumento.
mente elevadas acima do estado e da 532. E, quando perguntais como
condição humanos, não poderia existir provo que a idéia de Deus existe em
em nós se não tivéssemos um Deus nós como a marca do operário im­
como o autor de nosso ser. Mas, para pressa sobre sua obra, qual é a manei­
não mentir, espanto-me muito pouco ra dessa impressão e qual a forma
de que não vos pareça que eu o tenha dessa marca*5, é o mesmo que se,
demonstrado bastante claramente; pois reconhecendo em qualquer quadro
até aqui não percebi que tivésseis tanto artifício que eu não julgasse pos­
compreendido bem qualquer de mi­ sível que esta obra saísse de outras
nhas razões. mãos senão as de Apeles, e que che­
531. X. Quando retomais aquilo gasse a dizer que tal artifício inimitável
que eu disse, a saber, que nada se pode é como que determinada marca que
actescentar nem diminuir à idéia de Apeles imprimiu em todas as suas
Deus* 4, parece que não cuidastes bem obras para distingui-las de todas as
do que dizem comumente os filósofos, outras, me perguntásseis qual é a
ou seja, que as essências das coisas são
forma dessa marca e qual a maneira de
indivisíveis; pois a idéia representa a
sua impressão. Certamente, parece que
essência da coisa, a qual se toma
seríeis então mais digno de riso do que
imediatamente a idéia de outra coisa se
se lhe acrescenta ou se lhe diminui de resposta. E quando prosseguis, se
esta marca não é diferente da obra,
algo: assim se figurou outrora a idéia
sois pois, vós mesmo, uma idéia, não
de uma Pandora; assim foram elabora­
sois nada além do que uma maneira de
das as idéias dos falsos deuses por
pensar, sois tanto a marca impressa
aqueles que não concebiam como é
necessária a idéia do verdadeiro Deus. quanto o sujeito da impressão, o que
Mas, desde que se concebeu uma vez a dizeis não será tão sutil quanto se,
idéia do verdadeiro Deus, ainda que tendo eu dito que o artifício pelo qual
nele se possam descobrir novas perfei­ os quadros de Apeles são distintos dos
ções que até então não se haviam per­ outros não é diferente dos próprios
cebido, sua idéia não foi, entretanto, quadros, objetásseis que tais quadros
acrescida ou aumentada, mas apenas não passam, portanto, de um artifício,
tornada mais distinta é mais expressa, que não são compostos de matéria al­
visto que essas novas perfeições deve­ guma e que são apenas uma maneira
ríam estar todas contidas nesta mesma de pintar, etc.?
idéia que se tinha anteriormente, já que 533. E quando, para negar que
se supõe que era verdadeira; da mesma tenhamos sido feitos à imagem e seme-
maneira que a idéia do triângulo não é
aumentada quando se notam nele mui­ 9 5 Cf. Meditação Terceira, § 39. A partir desse
ponto, Gassendi critica e escarnece o conhecimento
tas propriedades que até então se igno­ que as Meditações nos proporcionam de Deus.
ravam. Pois não penseis que a idéia “Como se pode concebê-lo por razão natural?. . .
Já o haveis visto face a face para poder assegurar,
fazendo comparação entre vós e ele, que lhe sois
9 4 Cf. Meditação Terceira, § 38. conforme?”
OBJEÇÕES E RESPOSTAS .203

lhança de Deus, dizeis que Deus tem, obra, como parece quando um pintor
pois, a forma de um homem e em faz um quadro que se lhe assemelha.
seguida relacionais todas as coisas nas 534. Mas, com quão pouca fideli­
quais a natureza humana é diferente da dade apresentais minhas palavras
divina, sois nisto mais sutil do que se, quando fingis que eu disse que não
para negar que quaisquer quadros de concebo essa semelhança que tenho
Apeles tenham sido feitos à seme­ com Deus na medida em que conheço
lhança de Alexandre, dissésseis que ser uma coisa incompleta e depen­
Alexandre se assemelha, portanto, a dente, visto que, ao contrário, só disse
um quadro e, todavia, que os quadros isso para mostrar a diferença existente
são compostos de madeira e de cores e entre Deus e nós, de medo que se acre­
não de carne como Alexandre? Pois ditasse que eu queria igualar os ho­
não é da essência de uma imagem ser mens a Deus e as criaturas ao criador !
em tudo semelhante à coisa de que ela Pois, nesse mesmo lugar, disse que não
é imagem, mas basta que se lhe asse­ concebia somente que eu era nisso
melhe em alguma coisa. E é mui evi­ muito inferior a Deus, e que aspirava,
dente que essa virtude admirável e mui no entanto, a essas maiores coisas que
perfeita de pensar que concebemos eu não possuía, mas também que essas
existir em Deus é representada por coisas maiores a que eu aspirava
encontravam-se em Deus atualmente e
aquela que existe em nós, ainda que
de maneira infinita, às quais no entan­
muito menos perfeita. E, quando prefe­
to encontrava em mim alguma coisa de
ris comparar a criação de Deus com a
semelhante, já que ousava de algum
operação de um arquiteto a fazê-lo
modo aspirar a elas.
com a geração de um pai, vós o fazeis Enfim, quando dizeis que hâ motivo
sem nenhuma razão; pois, embora de espantar porque todo o resto dos
essas três maneiras de agir sejam total­ homens não tem os mesmos pensa­
mente diferentes, a distância não é tão mentos de Deus que eu tenho, jâ que
grande entre a produção natural e a di­ ele imprimiu neles sua idéia do mesmo
vina quanto entre a artificial e a modo que em mim, é como se vos
mesma produção divina. Mas não pen­ espantásseis do fato de que, tendo todo
seis nem que digo que há a mesma mundo a noção do triângulo, cada um,
relação entre Deus e nós que a que entretanto, não notasse a mesma quan­
existe entre o pai e seus filhos; nem que tidade de propriedades, e que haja tal­
é verdadeiro também que jamais haja vez mesmo alguns que lhe atribuam
qualquer relação entre o operário e sua falsamente muitas coisas.

DAS COISAS QUE FORAM OBJETADAS


CONTRA A MEDITAÇÃO QUARTA

535. I. Já expliquei suficientemente modo algum. E, quando dizeis que


qual é a idéia que temos do nada e entre as obras de Deus vejo algumas
como participamos do não-ser, cha­ que não estão inteiramente acabadas,
mando esta idéia de negativa e dizendo inventais uma coisa que não escrevi
que isso nada significa senão que não em parte alguma e em que jamais pen­
somos o soberano ser e que nos faltam sei; mas apenas disse que se certas coi­
muitas coisas; mas vós sempre procu­ sas fossem consideradas, não como
rais dificuldades onde não as há de fazendo parte de todo este Universo,
204 DESCARTES

mas como totalidades destacadas e suadam de bem conhecê-las98. Enfim,


coisas singulares, então elas poderiam já que me perguntais tão engenhosa­
parecer imperfeitas. Tudo o que dizeis mente quais idéias considero que meu
em seguida a respeito da causa final espírito teria recebido de Deus e de si
pode ser relacionado à causa eficien­ mesmo se, desde o momento em que
te9 6; assim, do uso admirável de cada tivesse sido infundido dentro do corpo,
parte nas plantas e nos animais, etc., é permanecesse até agora de olhosfecha­
justo admirar a mão de Deus que as dos, orelhas tampadas e sem uso ne­
fez e conhecer e glorificar o artesão nhum dos outros sentidos, respondo-
pela inspeção de suas obras, mas não vos também ingênua e sinceramente
para adivinhar para que fim foram que (desde que suponhamos que não
criadas todas as coisas. E, ainda que tenha sido impedido nem auxiliado
em matéria de Moral, onde é amiúde pelo corpo a pensar e a meditar) não
permitido utilizar conjeturas, seja algu­ duvido de que teria tido as mesmas
mas vezes piedoso e útil considerar o idéias que tenho presentemente, ou
fim que Deus se propôs para a conduta mesmo que as tivesse tido mais claras
do Universo, certamente na Física, e mais puras; pois os sentidos impe­
onde todas as coisas devem ser apoia­ dem-me em muitas ocasiões e em nada
das em sólidas razões, é uma coisa me auxiliam a concebê-las99. E, de
inteiramente ridícula. E não se pode fato, nada há que impeça todos os ho­
supor que haja alguns fins mais fáceis mens de reconhecer igualmente que
de descobrir do que outros; pois estão têm neles essas mesmas e semelhantes
todos igualmente escondidos no abis­ idéias senão porque são ordinaria­
mo imperscrutável de sua sabedoria9 7. mente ocupados demais pela conside­
ração das coisas corpóreas.
E não deveis também supor que não
536. II. Em toda esta parte, inter­
haja homem algum que possa com­ pretais mal o ser sujeito ao erro como
preender as outras causas; pois não há uma imperfeição positiva, embora isto
nenhuma que não seja muito mais fácil seja apenas (principalmente no que se
de conhecer do que aquela do fim que refere a Deus) a negação de uma maior
Deus se propôs na criação do Univer­ perfeição nas criaturas1 °°. E a compa­
so; e mesmo aquelas que aduzis para ração dos cidadãos de uma república
servir de exemplo da dificuldade que não se enquadra com as partes do Uni­
há em conhecê-las, são tão notórias verso; pois a malícia dos cidadãos,
que há poucas pessoas que não se per­
9 8 Trata-se da explicação mecanicista da fisiologia
9 6 “É de temer que rejeiteis o principal argumento do coração. “Ninguém, entre os naturalistas, conse­
pelo qual a sabedoria de Deus, sua potência, provi­ guiu ainda compreender e explicar essas coisas”,
acrescenta Gassendi.
dência e até existência podem ser provadás por’ 99 A posição de Gassendi é aqui muito forte e Des­
razão natural.” Gassendi é, assim, levado a defen­ cartes, por seu turno, parece passar da Fííosofia à
der o uso da finalidade em Anatomia' e Fisiologia Mitologia. É que se vê obrigado pelo adversário a
contra o mecanicismo. colocar-se no terreno da verdade psicológica e
9 7 “Nem todo mundo é tão feliz a ponto de ter empírica e a deixar a análise de essências. Mas essa
como vós, desde o nascimento, esta idéia de Deus ambiguidade (análise de essências ou descrição
tão perfeita e tão clara” que o dispense “de pesqui­ empírica) reside no âmago do cartesianismo.
sar qual o fim que Deus se propôs, ao criar todas as 109 Segundo Gassendi, Descartes não logrou des­
coisas”. O reconhecimento da necessidade da teleo- culpar Deus do erro enquanto defeito situado no ato
logia seria, assim, como que uma confissão de do juízo. Resposta de Descartes: introduzis na
modéstia. Para Descartes, a condenação da teleolo- possibilidade do erro um elemento positivo que não
gia constitui simplesmente o corolário da Física admito e concluís, por conseguinte, que Deus per­
mecanicista. manece a causa positiva do erro.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 205

enquanto relacionada à república, é e não~vos apartais facilmente de vossas


algo de positivo; porém, o mesmo não opiniões, nem abandonais de bom
se dá pelo fato de ser o homem sujeito grado vossos juízos. Assim, quando
a erro, isto é, de não possuir ele todas julgais que uma maçã ocasionalmente
as formas de perfeição, considerando- envenenada será boa para vosso ali­
se o bem do Universo101. Mas a mento, concebeis, na verdade, muito
comparação pode ser melhor estabele­ bem que seu odor, sua cor e mesmo seu
cida entre aquele que desejaria que o gosto são agradáveis, mas não conce­
corpo fosse coberto de olhos a fim de beis por isso que essa maçã vos deva
que parecesse mais belo, posto que não ser útil se dela fizerdes vosso alimento;
mas, porque assim o desejais, vós a jul­
hâ nele parte mais bela do que o olho,
gais dessa maneira. E assim confesso
e aquele que pensa que não deveria
realmente que não queremos coisa al­
haver criaturas no mundo que não fos­
guma da qual, de algum modo, não
sem isentas de erro, isto é, que não fos­
concebamos algo, mas nego que nosso
sem inteiramente perfeitas.
entender e nosso querer sejam de igual
Demais, o que supondes em seguida extensão1*03; pois é certo que podemos
não é de modo algum verdadeiro, a ter muitas vontades de uma mesma
saber, que Deus nos destina a más coisa, e no entanto podemos conhecer
obras e que nos dá imperfeições e ou­ dela muito pouca coisa; e quando não
tras coisas semelhantes. Como tam­ julgamos bem, não desejamos mal por
bém não é verdadeiro que Deus tenha causa disso, mas talvez alguma coisa
dado ao homem uma faculdade de jul­ de mal; e pode-se mesmo dizer, que
gar incerta, confusa e insuficiente para nada concebemos de mal, mas somente
essas poucas coisas que ele quis sub­ que se diz que concebemos mal quan­
meter a seu juízo. do julgamos que concebemos algo
537. III. Quereis qué vos diga, em além daquilo que efetivamente conce­
poucas palavras, ao que pode a vonta­ bemos.
de estender-se que ultrapasse os limites 538. Ainda que negueis, em segui­
do entendimento^ 02? Ê, numa palavra, da, que a indiferença da vontade seja
a todas as coisas nas quais erramos. de si mui manifesta, não quero entre­
Assim, quando julgais que o espírito é tanto tentar prová-lo a vós1 0 4, pois
um corpo sutil e tênue, podeis, na ver­ isto é tal que cada um deve senti-lo e
dade, conceber que ele é um espírito, experimentá-lo em si mesmo mais do
isto é, uma coisa que pensa, e também que persuadir-se disto pela razão; e
que um corpo tênue é uma coisa exten­ certamente não é uma maravilha se, no
sa; mas que a coisa pensante e a exten­ papel que interpretais, e dada a natural
sa sejam apenas uma mesma coisa, desproporção existente entre a carne e
isto certamente vós não o concebeis, o espírito, pareça que não cuidais e
mas somente quereis acreditá-lo, por­ não notais a maneira pela qual o espí­
que já acreditastes nisto anteriormente rito age no interior de si mesmo. Não
sejais portanto livre, se a tanto vos
1 01 Parece que o Universo seria mais perfeito, diz apraz; quanto a mim gozarei de minha
Gassendi, se cada uma de suas partes fosse isenta de
faltas, assim como uma república é melhor se todos
os cidadãos são gente de bem. 103 “Não vejo por que devíeis estender a vontade
102 Gassendi sustenta que o entendimento tem além dos limites do entendimento, visto que ela não
pelo menos tanta extensão quanto a vontade e que a julga coisas que o entendimento não concebe.”
responsabilidade do erro incumbe menos ao livre 104 A tese da dependência do livre arbítrio para
arbítrio por julgar mal do que ao entendimento por com o entendimento chega em Gassendi até a nega­
não conceber bem. ção do livre arbítrio.
206 DESCARTES

liberdade, pois não só a sinto em mim portanto, voltar-se para coisas às quais
mesmo como também vejo que, tendo o entendimento não a dirige, e no
o desígnio de combatê-la, em lugar de entanto era isto o que negáveis há
opor-lhe boas e sólidas razões, vós vos pouco e no que consiste presentemente
contentais simplesmente em negá-la. E o tema de nossa discussão; se ela é
talvez eu encontrasse mais crédito no determinada pelo entendimento, não é
espírito dos outros afirmando o que ela, portanto, que se mantém sob sua
experimentei, e que cada um pode tam­ guarda; mas somente ocorre que, como
bém experimentar em si mesmo, do ela se voltava anteriormente em dire­
que vós, que negais uma coisa pelo ção ao falso que lhe era por ele propos­
simples fato de que jamais talvez a ha­ to, da mesma maneira por acaso ela se
veis experimentado10 5. E, no entanto, volta agora para o verdadeiro, porque
é fácil julgar por vossas próprias pala­
vras que algumas vezes a experimen­ o entendimento Iho propõe. Mas, além
tastes: pois, quando negais que possa­ disso, eu desejaria saber qual é a natu­
mos impedir-nos de cair em erro, reza do falso que concebeis e como
porque não quereis que a vontade se pensais que pode ser objeto do entendi­
dirija a coisa alguma sem que a tanto mento. Pois, para mim, que não enten­
seja determinada pelo entendimento, do pelo falso nada que não seja a pri­
vós estais de acordo que podemos pro­ vação do verdadeiro, julgo haver uma
ceder de maneira a não perseverarmos inteira repugnância que o entendi­
nisto, o que não se pode fazer de modo mento apreenda o falso sob a forma ou
algum sem a liberdade que tem a von­ a aparência do verdadeiro, o que seria
tade de se dirigir a isto ou aquilo sem todavia necessário se ele jamais deter­
esperar a determinação do entendi­ minasse a vontade a abraçar a falsida­
mento; liberdade que, todavia, não de.
quereis reconhecer. Pois, se o entendi­ 539. IV. No que concerne ao fruto
mento determinou uma vez a vontade a destas Meditações, parece-me ter ad­
fazer um falso juízo, eu vos pergunto, vertido suficientemente no prefácio, o
quando ela começa pela primeira vez a que penso que lestes, que ele não será
querer cuidar de não perseverar no grande para aqueles que, não se dando
erro, o que é que a determina a ao trabalho de compreender a ordem e
tanto10 6? Se for ela própria, poderá, o nexo de minhas razões, cuidarem
10 5 Até agora a dialética parece mais brilhante do
apenas de procurar em todas as oca­
que convincente: por que deveria Gassendi apresen­ siões motivos de disputas. E quanto ao
tar razões onde Descartes se contenta em invocar o método pelo qual poderiamos discernir
testemunho do “que se pode sentir e experimentar
em si mesmo”? Qual a sua culpa, se se recusa a as coisas que concebemos de fato cla­
admitir o que não experimentou? Mas Descartes irá ramente das coisas de que apenas nos
justamente demonstrar (pelo absurdo) que seu
adversário não podia deixar de efetuar essa expe- persuadimos conceber clara e distinta­
frâáado livre arbítrio. mente, embora eu pense tê-lo ensinado
106 O dilema é o seguinte: Gassendi admite que
podemos nos coibir de perseverar no erro; mas de maneira bastante exata, como já o
como é determinada a vontade para isso? disse, não ousaria prometer que seria
A) ou por si própria — e a tese de Gassendi se
esboroa; facilmente compreensível aos que tra­
B) ou pelo entendimento — solução que engen­ balham tão pouco em se despojar de
dra um absurdo, pois cumpriría admitir que o enten­
dimento mesmo nos pode induzir a perceber o falso seus prejuízos, a ponto de se queixar de
sob a forma do verdadeiro. Vemos por aí no que a que fui demasiado longo e exato no
tese do livre arbítrio e da vontade responsável pelo
erro é inseparável do princípio da clareza e da mostrar o meio de se desfazer de tais
distinção. prejuízos.
OBJEÇOES E RESPOSTAS 207

DAS COISAS QUE FORAM OBJETADAS


CONTRA A MEDITAÇÃO QUINTA •

540. I. Na medida em que, após nada me atinge, pois os concebo de


haver aqui apresentado algumas de mi­ maneira bem diferente da deles. Mas,
nhas palavras, acrescentais que é tudo no que concerne às essências que
quanto disse no que se refere à questão conhecemos clara e distintamente,
proposta, sou obrigado a advertir o lei­ como a do triângulo ou de alguma
tor de que não cuidastes suficiente­ outra figura de Geometria, far-vos-ei
mente da sequência e da conexão facilmente confessar que as idéias das
daquilo que escrevi; pois creio que ela essências que existem em nós foram
é tal, para a prova de cada questão, tiradas das idéias das coisas singula­
que todas as coisas que a precedem res; pois o que vos leva a dizer que elas
para isso contribuem e grande parte são falsas é apenas que elas não se
das que a seguem: de sorte que não acordam com a opinião que conce­
poderieis relatar fielmente tudo quanto
disse de alguma questão se não apre­ bestes a respeito da natureza das coi­
sentásseis ao mesmo tempo tudo o que sas. E mesmo um pouco depois dizeis
escrevi a respeito das outras. que o objeto das Matemáticas puras,
541. Quanto ao que dizeis, afir­ como o ponto, a linha, a superfície e os
mando que vos parece duro ver estabe­ indivisíveis que deles são compostos,
lecer algo de imutável e de eterno além não pode ter nenhuma existência fora
de Deus, teríeis razão se se tratasse de do entendimento; donde se segue ne­
uma coisa existente, ou apenas se eu cessariamente que jamais houve um
estabelecesse algo de tal modo imutá­ triângulo no mundo, nem coisa alguma
vel que sua imutabilidade mesma não de tudo quanto concebemos pertencer
dependesse de Deus. Mas, assim como à natureza do triângulo, ou à de algu­
os poetas fingem que os destinos foram ma outra figura de Geometria, e por­
na verdade feitos e ordenados por Júpi­ tanto que as essências dessas coisas
ter, mas que, uma vez por ele estabele­ não foram tiradas de quaisquer coisas
cidos, ele próprio é obrigado a guar­ existentes. Mas, dizeis vós, elas são fal­
dá-los, da mesma maneira não penso, sas. Sim, segundo vossa opinião, uma
na verdade, que as essências das coisas vez que supondes que a natureza das
e essas verdades matemáticas que se coisas é tal que elas não lhe podem ser
podem conhecer sejam independentes conformes. Mas, se não sustentais tam­
de Deus, mas penso todavia que, como bém que toda a Geometria é falsa, não
Deus assim o quis e dispôs, elas são poderieis negar que nela se demons­
imutáveis e eternas107. Ora, que isto tram muitas verdades, que, não mu­
vos pareça duro ou não, pouco me dando e sendo sempre as mesmas, não
importa; para mim, basta que seja é sem razão que são chamadas imutá­
verdadeiro. veis e eternas.
542. O que alegais em seguida con­ 543. Mas o. fato de elas não serem
tra os universais dos dialéticos em talvez conformes à opinião que tendes
da natureza das coisas, nem mesmo
107 Alusão à teoria da criação das verdades àquela que Demócrito e Epicuro cons­
eternas. truíram e compuseram de átomos, não
208 DESCARTES)

é em relação a elas senão uma denomi­ a tenhamos concebido ela própria, mas
nação exterior, que não lhes causa antes o verdadeiro triângulo. Da
nenhuma transformação; e, todavia, mesma maneira que, quando lançamos
não se pode duvidar que elas sejam o olhar sobre um papel onde há alguns
conformes a esta verdadeira natureza traços dispostos e arranjados de tal
das coisas que foi feita e construída modo que representam o rosto de um
pelo verdadeiro Deus: não que haja no homem, a visão não excita tanto em
mundo substâncias que tenham com­ nós a idéia dos próprios traços quanto
primento sem largura, ou largura sem a idéia de um homem: o que não ocor­
profundidade; mas porque as figuras rería, se o rosto de um homem não nos
geométricas não são consideradas fosse conhecido de outro lugar, e se
como substâncias, mas somente como não estivéssemos mais acostumados a
os limites nos quais a substância está pensar nele do que em seus traços, os
contida- No entanto, não concordo quais mui amiúde não poderiamos dis­
com que as idéias dessas figuras nos tinguir uns dos outros se estivéssemos
tenham jamais caído sob os sentidos, um pouco distanciados. Assim, certa­
como cada um se persuade ordinaria­ mente, não poderiamos jamais conhe- •
mente; pois, ainda que não haja dúvida cer o triângulo geométrico através
que possam existir no mundo, tal como daquele que vemos traçado sobre o
os geômetras as consideram, nego, no papel, se nosso espírito não recebesse a
entanto, que existam quaisquer em sua idéia de outra parte1 0 8.
torno de nós, a não ser que sejam tão 544. II. Não vejo aqui a que gênero
pequenas que não nos impressionem os de coisas quereis que a existência per­
sentidos: pois são ordinariamente com­ tença, nem por que ela não pode ser
postas de linhas retas, e não penso que denominada uma propriedade109,
jamais tenha tocado nossos sentidos como a onipotência, tomando o nome
parte alguma de uma linha que fosse de propriedade para toda espécie de
verdadeiramente reta. Por isso, quando atributo ou para tudo o que pode ser
chegamos a olhar através de uma lune-
ta aquelas que nos haviam parecido as 108 Para refutar a doutrina cartesiana das essên­
cias como verdades eternas, Gassendi expunha que
mais retas, vemo-las inteiramente irre­ as essências são generalidades constituídas empiri-
gulares e curvadas em todas as partes, camente, que só tiram sua verdade das coisas singu­
como ondas. E, portanto, quando per­ lares de que são abstraídas. Responde Descartes:
Como poderiamos extrair as idéias geométricas do
cebemos pela primeira vez em nossa sensível, visto que elas jamais aí se encontram?
109 A recusa de Gassendi em considerar a exis­
infância uma figura triangular traçada tência como uma propriedade ou uma perfeição
sobre o papel, tal figura não nos pôde anuncia a crítica kantiana da prova ontológica.
ensinar como era necessário conceber Gassendi escreve, por exemplo: “O que existe e que,
além da existência, tem muitas perfeições, não tem a
o triângulo geométrico, posto que não existência como perfeição singular. . . mas como
representava melhor do que um mau forma ou ato pelo qual a coisa mesma e suas perfei­
desenho representa uma imagem per­ ções são existentes, e sem a qual nem a coisa nem
suas perfeições existiriam de modo algum... Se
feita. Mas, na medida em que a idéia uma coisa carece de existência, não se diz que está
verdadeira do triângulo já estava em privada de alguma perfeição, mas que é nula ou que
ela não é absolutamente”. Em Gassendi, como em
nós, e que nosso espírito podia conce- Kant, esta recusa provém da impossibilidade de
bê-la mais facilmente do que a figura considerar a existência de outro modo, a não ser
menos simples ou mais composta de como existência sensível, tal como notará Hegel
(Enciclopédia, Introdução § 51). Quanto à crítica de
um triângulo pintado, daí decorre que, Marx à posição kantiana, cf. a Dissertação sobre
tendo visto essa figura composta, não Demócrito eEpicuro, in fine. I
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 209

atribuído a uma coisa, como efetiva­ ter sido tão fácil de resolver. No que
mente deve ser aqui entendido. Mas, concerne ao que acrescentais em segui­
antes, a existência necessária é verda- da, já respondi suficientemente; e enga­
deiramente em Deus uma propriedade nai-vos grandemente quando dizeis
tomada no sentido menos amplo, por­ que não se demonstra a existência de
que apenas a ele convém, e porque só Deus como se demonstra que todo
nele faz parte de sua essência. Eis por triângulo retilíneo tem seus três ângu­
que também a existência do triângulo los iguais a dois retos; pois a razão é
não deve ser comparada com a exis­ semelhante nos dois casos, exceto que
tência de Deus, porque ela tem em a demonstração que prova a existência
Deus uma relação manifestamente di­ de Deus é muito mais simples e evi­
ferente com a essência, que não tem no dente do que a outra. E enfim, silencio
triângulo110; e não cometo mais aqui sobre o restante do que prosseguis,
o erro que os lógicos chamam de peti­ porque, quando dizeis que não explico
ção de princípio, quando coloco a exis­ bastante as coisas e que minhas provas
tência entre as coisas que pertencem à não são convincentes, penso que a me­
existência de Deus, do que quando, lhor título poder-se-ia dizer o mesmo
entre as propriedades do triângulo, co­ de vós e das vossas.
loco a igualdade da grandeza de seus 545. III. Contra tudo o que apre­
três ângulos com dois retos. Não é ver­ sentais aqui de Diágoras, de Teodoro,
dade também que a essência e a exis­ de Pitágoras-e de vários outros, opo­
tência em Deus, tanto quanto no triân­ nho-vos os céticos, que colocavam em
gulo, podem ser concebidas uma sem a dúvida as próprias demonstrações: de
outra, porque Deus é seu próprio ser e Geometria, e sustento que eles não o
o triângulo não. E, todavia, não nego teriam feito se tivessem tido o conheci­
que a existência possível seja uma per­ mento certo da verdade de um
feição na idéia do triângulo, como a Deus111; e mesmo se uma coisa pare­
existência necessária é uma perfeição cer verdadeira a mais pessoas, isto não
na idéia de Deus, pois isso a torna provará que essa coisa seja mais notó­
mais perfeita do que o são as idéias de ria e mais manifesta do que outra;
todas essas quimeras que supomos não prová-lo-á antes o fato de que aqueles
poderem ser produzidas. E, portanto, que têm um conhecimento suficiente de
não diminuístes em nada a força de uma e de outra reconhecem que uma é
meu argumento e permaneceis sempre primeiramente conhecida, mais evi­
enganado por este sofisma que dizeis11 * dente e mais segura do que a outra.

11 0 Gassendi considera sofisma a assimilação da 111 Gassendi invoca o exemplo dos geômetras
existência em Deus a uma propriedade necessária antigos para mostrar que o conhecimento da neces­
no triângulo: a existência de Deus e a existência do sidade das verdades geométricas independe do
triângulo é que deveríam ser postas no mesmo conhecimento da existência de Deus. De resto, pros­
plano. Ora, para Descartes, neste caso, não se leva segue ele, “essas demonstrações são de tal evidência
mais em conta a distinção essencial entre a exis­ e certeza que, sem esperar nossa deliberação, elas
tência necessária, inclusa na essência de Deus, e a nos arrancam, por si mesmas, o nosso consentimen­
existência somente possível, inclusa na do triângulo. to”, ao mesmo título que o Cogito.
210 DESCARTES

DAS COISAS QUE FORAM OBJETADAS


CONTRA A MEDITAÇÃO SEXTA

546. I. Já refutei acima o que ne­ forma do corpo humano e de algumas


gais aqui, a saber, que as coisas mate­ outras coisas muito simples, muito
riais, enquanto objeto das Matemá­ leves e imperceptíveis. Pois quem quer
ticas puras, possam ter qualquer que se represente Deus desta maneira,
existência. No que se refere à intelec- ou mesmo o espírito humano, tenta
ção de um quiliógono11 2, não é de imaginar uma coisa que não é absolu­
maneira alguma verdadeiro que seja tamente imaginável, e apenas figura
confusa, pois dele pode-se mui clara e uma idéia a que atribui falsamente o
mui distintamente demonstrar várias nome de Deus ou de espírito; pois na
coisas, o’que não se poderia de manei­ verdadeira idéia de espírito nada há
ra nenhuma fazer se o conhecéssemos contido senão o tão-só pensamento
apenas confusamente, ou, como dizeis, com todos os seus atributos, entre os
se lhe conhecéssemos apenas o nome; quais não há nenhum que seja corpó-
mas é mui certo que o concebemos mui reo.
claramente na sua totalidade e num só 547. II. Mostrais aqui claramente
momento, embora não o possamos que vos apoiais somente em vossos
assim claramente imaginar; donde é prejuízos, sem nunca vos desfazer
evidente que as faculdades de entender deles, posto que não quereis que tenha­
e de imaginar não diferem apenas mos a menor suspeita de falsidade em
segundo o mais e o menos, mas tam­ relação às coisas em que jamais nota­
bém como.maneiras de agir totalmente mos alguma; é por isso que dizeis que
diferentes. Pois na intelecção o espírito quando olhamos de perto e tocamos
não se serve senão de si mesmo, ao quase com a mão uma torre, estamos
passo que na imaginação ele contem­ certos de que ela é quadrada, se assim
pla alguma forma corpórea; e, ainda ela nos parece; e que, quando estamos
que as figuras geométricas sejam intei­ de fato acordados, não podemos estar
ramente corpóreas, todavia não é pre­ em dúvida se estamos despertos ou se
ciso que nos persuadamos de que essas sonhamos, e outras coisas semelhan­
idéias que servem para no-las fazer tes; pois não tendes nenhuma razão de
conceber sejam também corpóreas acreditar que tenhais alguma vez exa­
quando não se apresentem à imagina­ minado e observado bastante cuidado­
ção; e, enfim, isto não pode ser senão samente todas as coisas em que pode
digno de vós, ó carne, pensar que as acontecer que erreis; e talvez não fosse
idéias de Deus, do anjo e da alma do penoso demonstrar que vos enganais
homem sejam corpóreas ou quase algumas vezes em coisas que admitis
corpóreas, por terem sido tiradas da112como verdadeiras e como seguras.
Mas, quando-voltais a falar que pelo
112 Sobre a Meditação Quarta, §§ 2 e 3. Gassendi menos não se pode duvidar de que as
nega que se possa distinguir a imaginação e a inte­
lecção pura. “Se, desde o heptágono e o óctogono, coisas nos pareçam como elas são, vol­
quisermos percorrer todas as outras figuras até o tais ao que eu disse; pois isto mesmo
quiliógono e o miriágono. . . poderiamos dizer em
que lugar, ou melhor, em que figura a imaginação está em termos expressos na minha
cessa e só a intelecção permanece?” Meditação Segunda; mas aqui se trata­
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 211

va da verdade das coisas que existem algum vapor, algum ar, ou qualquer
fora de nós, no que não vejo que corpo que seja, por sutil e tênue que
tenhais dito coisa alguma de verda­ possa ser11 4; mas, quanto a saber se
deiro. efetivamente era diferente do corpo,
548. III. Não me detenho aqui em disse nessa ocasião que não era o
coisas que tantas vezes repisastes e que momento de discuti-lo. Tendo-o reser­
ainda nesta passagem repetis tão vã­ vado para esta Meditação Sexta, foi
mente; por exemplo, que há muitas nela que tratei amplamente de tal tema
coisas que adiantei sem prova, as quais e onde decidi esta questão por uma
afirmo, não obstante, ter demonstrado demonstração mui forte e verdadeira.
mui evidentemente; como também que Mas vós, ao contrário, confundindo a
somente quis falar do corpo grosseiro e questão que concerne a como pode o
palpável quando excluí o corpo de espírito ser concebido com aquela que
minha essência; ainda que, todavia, se refere ao que ele é efetivamente, não
meu desígnio tenha sido excluir de dais a entender outra coisa senão que
minha essência toda espécie de corpo, nada compreendestes distintamente de
por pequeno e sutil que possa ser11 3, e todas estas coisas.
outras coisas semelhantes; pois, que se 549. IV. Perguntais aqui como
poderá aqui responder a tantas pala­ considero que a espécie ou a idéia do
vras ditas e adiantadas, sem qualquer corpo, que é extenso, pode ser recebida
fundamento razoável, se não negá-las em mim que sou uma coisa inexten-
mui simplesmente? Contudo, direi de sa" 5. Respondo que nenhuma espécie
passagem que gostaria de saber sobre corporal é recebida no espírito, mas
o que vos fundamentais para dizer que que a concepção ou intelecção pura
falei mais do corpo maciço e grosseiro das coisas, corpóreas ou espirituais, é
do que do corpo sutil e tênue. É, decla­ feita sem qualquer imagem ou espécie
rais, porque eu disse que tenho um corpórea; e quanto à imaginação, que
corpo ao qual estou conjugado e tam­ não pode ser senão das coisas corpó­
bém que é certo que eu, isto é, minha reas, é verdade que para elaborar uma
alma, é distinta de meu corpo, onde é necessário uma espécie que seja um
confesso que não vejo por que tais verdadeiro corpo e à qual o espírito se
palavras não poderiam também ser aplique, mas não que seja recebida no
relacionadas ao corpo sutil e impercep­ espírito. O que dizeis da idéia do sol,
tível, assim como àquele que é mais que um cego de nascença forma pelo
grosseiro e palpável; e não creio que simples conhecimento que tem de seu
tal pensamento possa ocorrer ao espí­ calor, é facilmente refutável11 6; pois
rito de outrem além de vós. De resto, esse cego pode perfeitamente ter uma
mostrei claramente, na Meditação Se­ 11 4 Gassendj lembra que a Meditação Segunda
gunda, que o espírito poderia ser con­ não prova absolutamente que eu não seja “um
cebido como uma substância existente, vento, um fogo, um vapor, um ar”, o que Descartes
recusa em nome da ordem das razões.
antes mesmo que soubéssemos se há
11 5 Como poderia a idéia do corpo, pergunta Gas­
no mundo algum vento, algum fogo, sendi, representá-lo, se ela não fosse, por sua vez,
extensa? E se nosso espírito não fosse uma coisa
113 Sobre a Meditação Quarta, § 17. A dificul­ extensa, como poderia ela residir-nele?
dade, julga Gassendi, não está em saber se meu 11 6 Gassendi? se um cego de nascença dissesse que
espírito difere do “corpo maciço e grosseiro” -—■ o sol é uma “coisa que esquenta”, não teria disso
isso é certo —, mas em saber se o espírito não é uma idéia clara e distinta. Quem vos garante que
“um corpo sutil e fino difuso neste corpo espesso e tendes uma idéia clara e distinta de vós mesmo
maciço”. quando vos definis como uma “coisa que pensa”?
212 DESCARTES

idéia clara e distinta do sol como de houvesse alguém que quisesse dizer
uma coisa que aquece, embora não a que Bucéfalo é uma música, não seria
tenha como a idéia de uma coisa que em vão e sem razão que tal coisa seria
aclara e ilumina. E é sem razão que me negada por outrem. E certamente em
comparais a esse cego; primeiramente todo o resto que acrescentais aqui para
porque o conhecimento de uma coisa provar que o espírito tem extensão11 9,
que pensa se estende muito mais longe na medida, dizeis vós, em que ele se
do que aquele de uma coisa que aque­ serve do corpo que é extenso, não me
ce, e mesmo é muito mais amplo do parece que raciocinais melhor do que
que qualquer conhecimento que tenha­ se, pelo fato de Bucéfalo relinchar e
mos de qualquer outra coisa que seja, assim emitir sons que podem ser rela­
como mostrei no devido lugar, é tam­ cionados com a música, tirásseis a
bém porque não há ninguém que possa consequência de que Bucéfalo é, por­
mostrar que essa idéia do sol que o tanto, uma música. Pois, ainda que o
cego elabora não contenha tudo o que espírito seja unido a todo o corpo, não
se possa conhecer dele, exceto aquele se segue daí que ele seja extenso por
que, sendo dotado do sentido da vista, todo o corpo, pois não é próprio do
conhece, além disso, sua figura e sua espírito ser extenso, mas somente pen­
luz; mas, quanto a vós, não só não sar. E ele não concebe a extensão por
conheceis mais do que eu no tocante uma espécie extensa que exista nele,
ao espírito como também não perce­ embora imagine voltando-se e aplican­
beis aí tudo o que vejo11 7, de sorte que do-se a uma espécie corpórea que é
nisto seja antes vós que pareceis um extensa, como o disse anteriormente.
cego, e posso no máximo, do vosso E, enfim, não é necessário que o espí­
ponto de vista, ser chamado de vesgo rito seja da ordem e da natureza do
ou pouco clarividente, com todos os corpo, conquanto tenha a força ou a
demais homens. virtude de movê-lo.
550. De resto, não acrescentei que o 551. V. O que dizeis nessa passa­
espírito não era extenso para explicar gem, no que se refere à união entre o
como ele é e dar a conhecer sua nature­ espírito e o corpo, é semelhante às difi­
za, mas somente para advertir que se culdades precedentes. Nada objetais
enganam aqueles que pensam que ele é contra minhas razões, mas colocais
extenso11 8. Da mesma maneira que, se somente dúvidas que vos parecem deri­
var de minhas conclusões, embora
11 7 Por “pensamento”, Gassendi e Descartes não efetivamente não vos ocorram ao espí­
entendem a mesma coisa: Gassendi recusa-se a ver
o atributo principal da res cogitans no pensamento- rito senão porque desejais submeter ao
entendimento. Poder-se-á consultar, acerca dessa exame da imaginação coisas que de
questão, o debate que opôs Alquié e Guéroult no
Congresso Descartes de Royaumont (Descartes, sua própria natureza não estão sujeitas
Ed. Minuit, págs. 33-71). Alquié sustentava que a a tal jurisdição. Assim, quando quereis
res cogitans é algo mais do que o pensamento comparar aqui a mistura que se faz
enquanto entendimento, sendo este apenas um
modo de substância pensante ao mesmo título que a entre o corpo e o espírito com a de dois
vontade. “Não sei absolutamente”, replicava Gué­ corpos misturados, basta-me responder
roult, “de textos em que Descartes oponha um
suporte, uma qualidade oculta, um ser que não. que não se deve fazer entre essas coisas
pudesse ser atingido pelo pensamento visto que não comparação alguma, pois que são de
seria o pensamento...” (pág. 39). dois gêneros totalmente diferentes, e
118 Gassendi: “Dizeis que não sois uma coisa
extensa; certamente, fico sabendo por aí o que não
sois, mas não o que sois. . . Ter-se-ia uma idéia 11 9 Gassendi pergunta nesta passagem como pode
bastante clara e distinta do Bucéfalo se se conhe­ a alma ser unida ao corpo todo ou a parte do corpo,
cesse pelo menos que ele não é uma música?” se ela não é extensa.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 213

não se deve imaginar que o espírito de sua doutrina, e cuja amizade me


tenha partes, ainda que conceba partes será sempre muito cara; por isso pro­
no corpo. Pos, quem vos ensinou que testo, e ele próprio o pode saber, que
tudo aquilo que o espírito concebe procurarei sempre, tanto quanto me for
deve existir realmente nele? Certa­ possível, as ocasiões de adquiri-la. E
mente, se isto acontecesse, quando ele por isso que lhe suplico não ver mal se,
concebe a grandeza do Universo, teria refutando suas objeções, usei da liber­
também em si essa grandeza e assim dade comum aos filósofos; como tam­
não somente seria extenso mas seria bém de minha parte asseguro-lhe que
também maior do que o mundo inteiro. nelas nada encontrei que me não fosse
552. VI. Não dizeis nada aqui que mui agradável; mas sobretudo fiquei
me seja contrário, e no entanto falais maravilhado com o fato de um homem
muito; donde o leitor pode descobrir de seu mérito, num discurso tão longo
que não se deve julgar da força de vos­ e tão cuidadosamente elaborado, não
sas razões pela prolixidade de vossas ter apresentado nenhuma razão que
palavras. destruísse e derrubasse as minhas, e
Até aqui o espírito discorreu com a igualmente nada ter oposto contra mi­
carne e, como era razoável, em muitas nhas conclusões a que não me tenha
coisas não seguiu seus sentimentos. sido muito fácil responder1 20.
Mas agora eu levanto a máscara e
reconheço que verdadeiramente falo ao 120 A ironia de Descartes é feroz. Ele tem a sensa­
ção de que Gassendi nada compreendeu de suas
Sr. Gassendi, personagem tanto reco­ “razões”, e é verdade. Mas ainda assim as Quintas
mendável pela integridade de seus cos­ Objeções são as mais interessantes de todas, porque
são as melhores estruturadas: Gassendi é um filóso­
tumes e pela candura de seu espírito fo; fala em nome de uma doutrina constituída e
quanto pela profundeza e pela sutileza exprime um pensamento original.
CARTA
DO SENHOR DESCARTES AO SENHOR CLERSELIER,
SERVINDO DE RESPOSTA A UMA COLETÂNEA DAS PRINCIPAIS
INSTÂNCIAS FEITAS PELO SENHOR GASSENDI CONTRA
AS PRECEDENTES RESPOSTAS'2 ’

Senhor,

553. Devo-vos muita obrigação que se deram ao trabalho de fazê-lo


pelo fato de, vendo que negligenciei devem agora julgar, como eu, que
responder ao grosso livro de instâncias todas as objeções que esse livro con­
que o autor das Quintas Objeções ela­ tém são apenas fundamentadas em
borou contra minhas respostas, que algumas palavras mal compreendidas
tenhais pedido a alguns de vossos ami­ ou algumas suposições falsas; visto
gos que recolhessem as mais fortes que todas aquelas que eles notaram
razões desse livro e que me tenhais são de tal sorte e todavia foram tão
enviado o extrato que dele fizeram. diligentes que mesmo acrescentaram
Tivestes nisso mais cuidado pela algumas que não me lembro de ter
minha reputação do que eu mesmo; lido.
pois eu vos asseguro que me é indife­ Eles notam três objeções contra a
rente ser estimado ou desprezado por Primeira Meditação, a saber: l.° que
aqueles que semelhantes razões pode­ eu peço uma coisa impossível ao pre­
riam persuadir. Os melhores espíritos tender que sejam abandonadas todas
de meu conhecimento que leram o as formas de prejuízo; 2° que, pen­
livro dele me testemunharam que nada sando abandoná-los, revestimo-nos de
nele encontraram que os detivesse; é a outros que são mais danosos; 3.° e que
eles somente que desejo satisfazer. Sei o método de duvidar de tudo, que pro-
que a maioria dos homens repara me­ pus, não pode servir para encontrar
lhor nas aparências do que na verdade qualquer verdade.
e julga antes mal do que bem; eis por 554. A primeira das objeções fun­
que não creio que a sua aprovação da-se no fato de que o autor desse livro
valha a pena que eu faça tudo o que não considerou que a palavra prejuízo
seria útil para adquiri-la. Mas não não se estende a todas as noções que
deixo de me sentir à vontade em face existem em nosso espírito, das quais
da coletânea que me enviastes, e sinto- confesso ser impossível nos desfazer­
me obrigado a respondê-la mais por mos, mas somente a todas as opiniões
reconhecimento do trabalho de vossos que os juízos que fizemos anterior­
amigos do que por necessidade de mente deixaram em nossa crença; e, jâ
minha defesa; pois creio que aqueles que julgar ou não julgar é uma ação da
vontade, como expliquei no devido
121 Gassendi fizera novas objeções às Respostas de lugar, é evidente que ela está a nosso
Descartes e Clerselier mandara fazer extratos delas. alcance; pois,- enfim, para se desfazer
216 DESCARTES

de toda espécie de prejuízo, nada mais existo, o autor das Instâncias quer que
é preciso do que se resolver a nada eu suponha esta premissa maior: aque­
afirmar ou negar de tudo o que ante­ le que pensa é; e, assim, que tenha já
riormente se afirmou ou negou, senão esposado um prejuízo. No que ele se
após havê-lo novamente examinado, engana novamente quanto ao uso da
ainda que não se deixe de reter todas palavra prejuízo: pois, embora se
as mesmas noções na memória. Disse, possa dar esse nome a tal proposição
todavia, que seria difícil expulsar quando a proferimos sem atenção, e
assim de nossa crença tudo o que aí quando somente acreditamos que ela é
anteriormente se havia colocado, em verdadeira porque recordamos já tê-la
parte porque é necessário ter alguma assim julgado anteriormente, não se
razão de duvidar antes de se determi­ pode dizer, todavia, que ela seja um
nar a tanto (e foi por isso que propus prejuízo quando a examinamos, por­
as principais dessas razões em minha que parece tão evidente ao entendi­
Primeira Meditação), e em parte tam­ mento que este não poderia impedir-se
bém porque, qualquer que seja a reso­ de crer nela, ainda que seja a primeira
lução que tomemos de nada afirmar ou vez em sua vida que nela pense e que
negar, esquecemo-nos facilmente dela por conseguinte não tenha quanto a
em seguida se não a imprimirmos for­ isso qualquer prejuízo122. Mas o erro
temente na memória; eis por que dese­ que é aqui mais considerável é que esse
jei que se pensasse nisso cuidadosa­ autor supõe que o conhecimento das
mente. proposições particulares deve sempre
ser deduzido das universais, segundo a
555. A segunda objeção é apenas ordem dos silogismos da dialética123,
uma suposição manifestamente falsa; no que mostra saber bem pouco de que
pois, embora eu houvesse dito ser maneira se deve procurar a verdade;
mesmo necessário esforçar-se por pois é certo que para encontrá-la cum­
negar as coisas que anteriormente pre sempre começar pelas noções par­
eram tidas por demasiado asseguradas, ticulares, para em seguida chegar às
limitei expressamente que isto só se
gerais, embora seja possível também,
deveria fazer durante o tempo em que
reciprocamente, tendo-se encontrado
se dirigisse toda a atenção à procura as gerais, deduzir delas outras particu­
de algo mais certo do que tudo quanto lares. Assim, quando se ensina a uma
assim se poderia negar, tempo em cujo criança os elementos da Geometria,
transcurso é evidente que não se pode­ não a faremos entender em geral que,
ria deixar de se revestir de algum pre­ quando, de duas quantidades iguais,
juízo que fosse danoso. tiramos partes iguais, os restos perma­
556. A terceira também nada con­ necem iguais, ou que o todo é maior do
tém senão uma cavilação; pois, embo­ que suas partes, se não lhes mostrar­
ra seja verdadeiro que a dúvida apenas mos exemplos em casos particulares. E
não basta para estabelecer qualquer foi por não ter cuidado disso que nosso
verdade, ela não deixa de ser útil para autor enganou-se em tantos falsos
preparar o espírito a estabelecê-la raciocínios, com os quais engrossou
após, e é somente nisto que eu a seu livro; pois ele nada fez senão com­
empreguei. por falsas premissas maiores à sua fan-
557. Contra a Meditação Segunda, 122 O Cogito só se toma um prejuízo (ante a prova
da existência de Deus) quando não é reativado
vossos amigos notam seis coisas. A atualmente. !
primeira é que dizendo: penso, logo 123 Cf. Princípios, I, 49.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 217

tasia, como se eu tivesse delas dedu­ substância pensante haver julgado que
zido as verdades que expliquei. é intelectual, porque notou em si todas
558. A segunda objeção que ano­ as propriedades das substâncias inte­
tam aqui vossos amigos é que, para lectuais, e não pôde advertir aí nenhu­
saber que se pensa, é preciso saber o ma das pertencentes ao corpo, pergun-
que é o pensamento; o que não sei de ta-se-lhe ainda como sabe se não é um
modo algum, dizem eles, porque tudo corpo mais do que uma substância
neguei. Mas eu apenas neguei os pre­ imaterial.
juízos e nunca as noções, como estas, 561. A quinta objeção é seme­
que se conhecem sem qualquer afirma­ lhante: Embora eu não encontre exten­
ção ou negação. são em meu pensamento, não se segue
559. A terceira é que o pensamento que ele não seja extenso, já que meu
não pode existir sem objeto; por exem­ pensamento não é a regra da verdade
plo, sem o corpo. Onde>é preciso evitar das coisas. E também a sexta: Pode
o equívoco da palavra pensamento, acontecer que a distinção que descubro
que se pode tomar como a coisa pen­ por meu pensamento entre o pensa­
sante e também como a ação dessa mento e o corpo seja falsa. Mas cum­
coisa124; ora, nego que a coisa pen­ pre notar aqui particularmente o equí­
sante tenha necessidade de outro obje­ voco que existe nestas palavras: meu
to além de si mesma para exercer sua pensamento não é a regra da verdade
ação, embora ela possa também esten- das coisas; pois se quer dizer que meu
dê-la às coisas materiais quando as pensamento não deve ser a regra dos
examina. outros para obrigá-los a crer em uma
560. A quarta é que, embora eu coisa que penso verdadeira, estou de
tenha um pensamento de mim mesmo, pleno acordo; mas isto não vem aqui a
não sei se este pensamento é mais uma propósito, pois não quis obrigar nin­
ação corporal ou um átomo, que se guém a seguir minha autoridade; ao
move do que uma substância imaterial; contrário, adverti em diversos lugares
no que o equívoco do nome pensa­ que não nos devemos deixar persuadir
mento é repetido, e não vejo aqui nada apenas pela evidência das razões. Ade­
afora uma questão sem fundamento e mais, se tomamos indiferentemente a
que é semelhante à seguinte: julgais palavra pensamento por todas as espé­
que sois um homem porque percebeis cies de operações da alma, é certo que
em vós todas as coisas na ocorrência podemos ter muitos pensamentos dos
das quais chamais de homens aqueles quais nada se pode inferir no referente
em que elas se encontram; mas, como às coisas existentes fora de nós; mas
sabeis se não sois um elefante e não isso também não vem a propósito
um homem, por algumas outras razões nesse lugar, quando se trata apenas de
que não podeis perceber? Pois, após a pensamentos que são percepções cla­
ras e distintas e de juízos que cada um
124 A respeito dessa distinção, cf. Princípios, I, deve fazer consigo em seguida a essas
63-64. E nomeadamente: “Quando os consideramos
(o pensamento e a extensão) como as propriedades percepções1 2 5. Eis por que, no sentido
das substâncias de que dependem, distinguimo-los
facilmente dessas substâncias e os tomamos tais 125 Distinção entre: a) meu pensamento indivi­
como são verdadeiramente; ao passo que, se quiser­ dual; b) o pensamento na medida em que recobre
mos considerá-los sem substância, isso poderá não importa qual cogitatio; c) o pensamento claro e
levar-nos a tomá-los por coisas que subsistem por si distinto que, só ele, constitui autoridade. Para Des­
mesmas”. Todavia, esta distinção de razão entre a cartes, o pensamento (ou razão) não é uma facul­
cogitado e a res cogitans não significa que o ser dade psicológica que a gente declararia arbitraria­
pensante enquanto tal seja outra coisa senão o mente infalível, mas um domínio engendrado pela,
pensamento. evidência intelectual.
218 DESCARTES

em que essas palavras devem ser enten­ persuadiram delas; 4.° e que, do fàto
didas aqui, digo que o pensamento de de que me reconheço imperfeito, não se
cada um, isto é, a percepção ou conhe­ segue que Deus exista. Mas, se se toma
cimento que tem de uma coisa, deve a palavra idéia da maneira pela qual eu
ser para ele a regra da verdade dessa disse expressamente que a tomava, sem
coisa, isto é, que todos os juízos que se escusar pelo equívoco daqueles que
sobre ela tiver feito devem ser confor­ a restringem às imagens das coisas
mes a essa percepção para serem bons; materiais que se formam na imagina­
mesmo no tocante às verdades da fé, ção127, não se poderia negar que
devemos perceber alguma razão que temos alguma idéia de Deus, a não ser
nos persuada de que elas foram revela­ que não se entenda o que significam
das por Deus, antes de nos determi­ estas palavras: a coisa mais perfeita
narmos a crer nelas1 2 6; e, ainda que os que possamos conceber; pois é isto que
ignorantes façam bem em seguir o todos os homens chamam de Deus. E é
juízo dos mais capazes quanto às coi­ chegar a estranhos extremos, para que­
sas de difícil conhecimento, é preciso rer levantar objeções, dizer que não se
todavia que seja a sua percepção que entende o que significam as palavras
lhes ensine que são ignorantes e que que são mais comuns na boca dos
aqueles cujos juízos querem seguir não homens128; além do que, a confissão
o são tanto, talvez; de outra maneira, mais ímpia que alguém possa fazer é
fariam mal em segui-los e agiriam mais dizer de si mesmo, no sentido em que
como autômatos ou como animais do tomei a palavra idéia, que não tem
que como homens. Assim, é o erro nenhuma idéia de Deus: pois não con­
mais absurdo e mais exorbitante que siste somente em dizer que não o
um filósofo possa admitir o querer conhece pela razão natural, mas tam­
fazer juízos que não se relacionem às bém que, nem pela fé ou qualquer
percepções que ele tem das coisas; e outro meio, poderia saber coisa algu­
todavia, não vejo como nosso autor ma dele, porque se não se possui qual­
poderia escusar-se de ter caído nesse quer idéia dele, isto é, qualquer percep­
erro na maioria-de suas objeções; pois ção que corresponda à significação
ele não quer que cada um se detenha dessa palavra Deus, em vão se dirâ
em sua própria percepção, mas pre­ crer que Deus é, pois equivale a afir­
tende que se deva crer nas opiniões ou mar que se crê que nada é e assim se
nas fantasias que lhe apraz propor-nos, permanece no abismo da impiedade e
embora não as perceba de modo no extremo da ignorância.
algum. 563. O que acrescentam, dizendo
que, se eu tivesse essa idéia, eu a
562. Contra a Meditação Terceira, compreendería, é afirmado sem qual­
vossos amigos notaram: l.° que todo quer fundamento: pois, já que a pala­
mundo não experimenta em si a idéia vra compreender significa alguma limi­
de Deus; 2.° que, se eu tivesse essa tação, um espírito finito não poderia
idéia, eu a compreendería; 3.° que mui­ compreender Deus, que é infinito; mas
tos leram minhas razões e não se isto não impede que ele o perceba,
assim como se pode tocar uma monta­
12 B“Ainda que se diga que a fé tem por objeto nha, ainda que não se possa abraçâ-
coisas obscuras, não obstante a razão pela qual
acreditamos nelas não é obscura, mas é mais clara
do que qualquer luz natural.” (Segundas respostas.) 1 2 7 Cf. as definições 2 e 3 da exposição geométrica
Mesmo no domínio da fé, a decisão permanece das Segundas Respostas. j
racional e a vontade não pode dispensar as razões. 128 Cf. Cartas, aMersenne, julho de 1641.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 219

la129. Aquilo que dizem também de tas noções que existem em nós, dizen­
minhas razões, afirmando que muitos do em seguida que não se pode estar
as leram sem por elas serem persuadi­ certo de coisa alguma sem saber antes
dos, pode facilmente ser refutado, pois que Deus existe; 2.° e que o conheci­
hâ alguns outros que as compreen­ mento de Deus de nada serve para
deram e ficaram com elas satisfeitos; adquirir o das verdades matemáticas;
pois deve-se crer mais em um só que 3° e que ele pode ser enganador. Vede
diz, sem intenção de mentir, que viu ou a respeito minha resposta às Segundas
que compreendeu alguma coisa, do que Objeções e o fim da segunda parte da
em mil outros que a negam pelo sim­ Resposta às Quartas.
ples fato de que não puderam vê-la ou 566. Mas eles acrescentam no fim
compreendê-la: assim como na desco­ um pensamento que não sei se nosso
berta dos antípodas acreditou-se muito autor escreveu em seu livro de Instân­
mais no relato feito por alguns mari­ cias, embora seja um pensamento bas­
nheiros que fizeram a volta da terra do tante semelhante aos seus: Muitos
que em milhares de filósofos que não excelsos espíritos, dizem eles, acredi­
acreditaram que ela fosse redonda. E tam ver claramente que a extensão
já que alegam aqui os Elementos de matemática, a qual estabeleço como
Euclides, como se fossem fáceis para princípio de minha Física, não é- outra
todo mundo, peço a eles que conside­ coisa senão meu pensamento, e que ela
rem que entre aqueles que se estima não tem nem pode ter nenhuma subsis­
serem os mais sábios na Filosofia da tência fora de meu espírito, sendo ape­
Escola não há um entre cem que os nas uma abstração que faço do corpo
compreenda e que não há um em dez físico; eportanto que toda a minha Fí­
mil que entenda todas as demonstra­ sica só pode ser imaginária e fictícia,
ções de Apolônio ou de Arquimedes, como o são todas as Matemáticas
embora elas sejam tão evidentes e tão puras; e que, na Física real das coisas
certas quanto as de Euclides. que Deus criou, é preciso uma matéria
564. Enfim, quando afirmam que real sólida e não imaginária. Eis a
do fato de que reconheço em mim al­ objeção das objeções, e a suma de toda
guma imperfeição não se segue que a doutrina dos excelsos espíritos, que
Deus exista, com isso nada provam; aqui são alegados. Todas as coisas que
pois eu não a deduzí imediatamente podemos entender e conceber não são
disso sem acrescentar-lhe algo mais; e para eles senão imaginações e ficções
apenas me fazem recordar o artifício de nosso espírito e que não podem ter
desse autor que costuma truncar mi­ qualquer subsistência: donde se segue
nhas razões e não apresentar delas que nada há, exceto o que não se pode
senão algumas partes para fazê-las de modo algum entender, conceber ou
parecer imperfeitas. imaginar, que se deva admitir como
565. Nada vejo em tudo o que nota­ verdadeiro130: isto é, que é preci.so fe­
ram a respeito das três outras Medita­ char inteiramente a porta à razão e
ções a que não tenha já amplamente
130 A objeção — de espírito ao mesmo tempo
respondido alhures, como àquilo que empirista e aristotélico — pretende que “a extensão
objetam: l.° que cometi um círculo dos geômetras” não passa de uma ficção forjada
provando a existência de Deus por cer­ por nosso espírito. Descartes traduz: é uma ficção
porque podemos concebê-la clara e distintamente, e
não poupa trabalho em denunciar, por conseguinte,
129 O conhecimento da natureza de Deus pode ser um absurdo no antimatematicismo de seus adversá­
fiel sem ser total. rios.
220 DESCARTES

contentar-se em ser macaco ou papa­ procede apenas de uma suposição que


gaio e não mais homem, para merecer é falsa e que de modo algum pode ser
ser colocado ao nível desses excelsos provada, a saber, que, se a alma e o
espíritos. Pois, se as coisas que pode­ corpo são duas substâncias de natu­
mos conceber devem ser consideradas reza diversa, isto as impede de poder *
falsas pelo simples fato de podermos agir uma sobre a outra133; pois, ao
concebê-las, que restará se não que contrário, aqueles que admitem aci­
devemos apenas receber como verda­ dentes reais, como o calor, a gravidade
deiras aquelas que não concebemos, e e semelhantes, não duvidam que esses
compor com elas nossa doutrina imi­ acidentes possam agir sobre o corpo; e
tando os outros sem saber por que os todavia há mais diferença entre eles e o
imitamos, como procedem os maca­ corpo, isto é, entre os acidentes e uma
cos, e proferindo apenas palavras cujo substância do que entre duas substân­
sentido não entendemos, como fazem cias.
os papagaios? Mas tenho muito com o 568. De resto, já que estou com a
que me consolar, porque eles associam pena na mão, notarei ainda aqui dois
aqui minha Física às Matemáticas dos equívocos que encontrei neste livro
puras, às quais desejo antes de mais de Instâncias, porque são aqueles que
nada que ela se assemelhe1 31. me parecem poder mais facilmente
surpreender os leitores menos atentos;
567. Quanto às duas questões que e desejo assim testemunhar-vos que, se
eles acrescentam também ao fim, a aí tivesse encontrado algo mais que
saber, como a alma move o corpo se acreditasse merecer resposta, não o
não é material, e como pode dele rece­ teria negligenciado.
ber as espécies dos objetos corporais, 569. O primeiro encontra-se à pági­
somente me proporcionam aqui oca­ na 63, onde, no concernente ao que eu
sião de advertir que nosso autor não disse em certo lugar que, enquanto a
teve razão quando, a pretexto de me alma duvida da existência de todas as
opor objeções, propôs-me muitas ques­ coisas materiais, ela só se conhece
tões semelhantes cuja solução não era precisamente, praecise tantum, como
necessária para a prova das coisas que uma substância imaterial; e, sete ou
escrevi e que os mais ignorantes oito linhas abaixo, para mostrar que
podem formular mais objeções em um por estas palavras, praecise tantum,
quarto de hora do que as que todos os não entendo de modo algum uma total
mais sábios poderiam resolver durante exclusão ou negação, mas apenas uma
toda a sua vida; razão pela qual não abstração das coisas materiais, eu
me dei ao trabalho de responder a disse que, não obstante isso, não’se es­
nenhuma delas. E estas, entre outras, tava seguro de que nada houvesse na
pressupõem a explicação da união alma que fosse corpóreo; embora nada
existente entre o corpo e a alma, da
qual ainda não tratei132. Mas dir-vos- 133 Axioma da medida comum: “Só uma inteli­
gência pode atuar sobre uma inteligência”. Sobre a
ei que toda a dificuldade nelas contida rejeição a priori deste axioma por Descartes, cf.
Guéroult, II, págs. 80-81. “Que o espírito que é
131 Cf. Cartas, a Mersenne, de 27 de julho de incorporai possa mover o corpo, não há raciocínio
1638: “Toda a minha Física não é mais do que nem comparação extraída de outras coisas que nos
Geometria” (o que não significa de modo algu possam ensinar; mas, não obstante, não podemos
instauração de uma Física matemática na acepção duvidar disso, posto que experiências demasiado
atual). certas e demasiado evidentes no-lo mostram todos
os dias manifestamente.” (A Arnaud, 29 de julho de
13 2 Este será o objeto do Tratado das Paixões. 1648.)
OBJEÇÕES E RESPOSTAS .221

se conheça a respeito disso, tratam-me utilidade para conhecê-la1 3 4; ao passo


tão injustamente a ponto de querer per­ que, se apenas separarmos por abstra­
suadir o leitor de que, dizendo praecise ção essa substância de seus acidentes,
tantum, eu quis excluir o corpo e, isto é, se a consideramos sozinha sem
assim, de que me contradisse, em pensar em seus acidentes, isto impede
seguida, afirmando que não o preten­ que a possamos conhecer tão bem, de­
dia excluir. Nada respondo à acusação vido ao fato de ser pelos acidentes que
que me é feita a seguir, segundo a qual se manifesta a natureza da substân­
eu teria suposto algo na Meditação cia1 3 5.
Sexta sem tê-lo provado anteriormente, 571. Eis, Senhor, tudo o que creio
cometendo assim um paralogismo; dever responder ao alentado livro das
pois é fácil reconhecer a falsidade Instâncias; pois, embora satisfizesse
dessa acusação, que não é senão muito talvez mais aos amigos do autor se
comum em todo este livro, e que pode­ refutasse todas as suas instâncias, uma
ria fazer-me suspeitar que seu autor após outra, creio que não satisfaria
tanto aos meus, que teriam ocasião de
não teria agido de boa-fé, se não
me repreender por ter despendido
conhecesse seu espírito e não acredi­
tempo em uma coisa tão pouco neces­
tasse que foi ele o primeiro a ser
sária e por assim tomar senhores de
surpreendido por uma crença tão falsa.
meu lazer todos os que quisessem per­
570. O outro equívoco está na pági­ der o seu em propor-me questões inú­
na 84, onde ele pretende que distin- teis. Mas agradeço-vos pelos vossos
guere e abstrahere sejam a mesma cuidados. Adeus.
coisa; e todavia há uma grande dife­
rença, pois distinguindo uma subs­
i3 4 Cf. Princípios, I, 61, sobre a distinção modal.
tância de seus acidentes deve-se consi­ 13 5 Cf. Princípios, I, 62, sobre “a distinção que se
derar a ambos, o que é de muita faz pelo pensamento”.
AS PAIXÕES DA ALMA
PRIMEIRA PARTE

DAS PAIXÕES EM GERAL


E OCASIONALMENTE
DE TODA A NATUREZA DO HOMEM
Art. 1. O que é paixão em relação a agente e o paciente sejam amiúde
um sujeito é sempre ação a qualquer muito diferentes, a ação e a paixão não
outro respeito. deixam de ser sempre uma mesma
coisa com dois nomes, devido aos dois
Nada há em que melhor apareça sujeitos diversos aos quais podemos
quão defeituosas são as ciências que relacioná-la.
recebemos dos antigos do que naquilo
que escreveram sobre as paixões; pois, Art. 2. Que para conhecer as paixões
embora seja esta uma matéria cujo da alma cumpre distinguir entre as
conhecimento foi sempre muito procu­ suas funções e as do corpo.
rado, e ainda que não pareça ser das
mais difíceis, porquanto cada qual, Depois, também considero que não
sentindo-as em si próprio, não neces­ notamos que haja algum sujeito que
sita tomar alhures qualquer observa­ atue mais imediatamente contra nossa
ção para lhes descobrir a natureza, alma do que o corpo ao qual está
todavia o que os antigos delas ensina­ unida, e que, por conseguinte, devemos
ram é tão pouco, e na maior parte tão pensar que aquilo que nela é uma pai­
pouco crível, que não posso alimentar xão é comumente nele uma ação; de
qualquer esperança de me aproximar modo que não existe melhor caminho
da verdade, senão distanciando-me dos para chegar ao conhecimento de nos­
caminhos que eles trilharam. Eis por sas paixões do que examinar a dife­
que serei obrigado a escrever aqui do rença que há entre a alma e o corpo, a
mesmo modo como se tratasse de uma fim de saber a qual dos dois se deve
matéria que ninguém antes de mim atribuir cada uma das funções existen­
houvesse tocado; e, para começar, con­ tes em nós.
sidero que tudo quanto se faz ou acon­
tece de novo é geralmente chamado
pelos filósofos uma paixão em relação Art. 3. Que regra se deve seguir para
ao sujeito a quem acontece, e uma esse efeito.
ação com respeito àquele que faz com
que aconteça1; de sorte que, embora o E nisso não se encontrará grande
dificuldade, se se tomar em conta que
1 “Ora, sempre julguei que é uma e mesma coisa tudo o que sentimos existir em nós, e
que é denominada ação quando a relacionamos ao que vemos existir também nos corpos
termo de onde ela procede e paixão com respeito ao
termo no qual ela é recebida.” (A Hyperaspistes, inteiramente inanimados, só deve ser
agosto de 1641.) atribuído ao nosso corpo; e, ao contrá­
228 DESCARTES

rio, que tudo o que existe em nós, e que sos corpos dependem da alma3, ao
não concebemos de modo algum como passo que se devia pensar, ao contrá­
passível de pertencer a um corpo, deve rio, que a alma só se ausenta, quando
ser atribuído à nossa alma2. se morre, porque esse calor cessa, por­
que os órgãos que servem para mover
Art,. 4. Que o calor e o movimento dos o corpo se corrompem.
membros procedem do corpo, e os
pensamentos, da alma. Art. 6. Que diferença há entre um
corpo vivo e um corpo morto.
Assim, por não concebermos que o
corpo pense de alguma forma, temos
razão de crer que toda espécie de pen­ A fim de evitarmos, portanto, esse
samento em nós existente pertence à erro, consideremos que a morte nunca
alma; e, por não duvidarmos de que sobrevêm por culpa da alma, mas
haja corpos inanimados que podem somente porque alguma das principais
mover-se de tantas diversas maneiras partes do corpo se corrompe; e julgue­
que as nossas, ou mais do que elas, e mos que o corpo de um homem vivo
que possuem tanto ou mais calor (o difere do de um morto como um reló­
que a experiência mostra na chama, gio, ou outro autômato (isto é, outra
que possui, ela só, muito mais calor e máquina que se mova por si mesma),
movimento do que qualquer de nossos quando está montado e tem em si o
membros), devemos crer que todo o princípio corporal dos movimentos
calor e todos os movimentos em nós para os quais foi instituído, com tudo o
existentes, na medida em que não que se requer para a sua ação, difere
dependem do pensamento, pertencem do mesmo relógio, ou outra máquina,
apenas ao corpo. quando está quebrado e o princípio de
seu movimento pára de agir 4.
Art. 5. Que é erro acreditar que a alma
dá o movimento e o calor ao corpo. Art. 7. Breve explicação das partes do
corpo e de algumas de suas funções.
Por esse meio, evitaremos um erro
considerável em que muitos caíram, de Para tornar isso mais inteligível,
sorte que o reputo a principal causa explicarei, em poucas palavras, a
que até agora impediu que se pudessem forma toda de que se compõe a má-
explicar bem as paixões e as outras
3 A alma está implantada na máquina do corpo,
coisas pertencentes à alma. Consiste mas não é seu princípio de formação nem conserva­
em ter-se imaginado, vendo-se que ção. “Trata-se simplesmente de íntima associação
todos os corpos mortos são privados da alma com o todo e as partes da máquina já fei­
ta. . . Assim a natureza física realizaria mecanica­
de calor e depois de movimento, que mente uma máquina muito complicada, com dispo­
era a ausência da alma que fazia cessar sições tais que uma alma poderia de alguma forma
calçá-la, sem que tenha tido algo com a fabricação
esses movimentos e esse calor; e assim e a imbricação de suas partes.” (Guéroult, II, pág.
se julgou, sem razão, que o nosso calor ,181.)
natural e todos os movimentos de nos­ 4 No caso do homem, a deterioração da máquina
pão conduz apenas à sua destruição, mas também à
separação da alma e do corpo. A doutrina da união
2 Lembrança do princípio da distinção das subs­ da alma e do corpo na separação exclui, assim, radi­
tâncias enunciado na Meditação Sexta. calmente todo animismo ou vitalismo. !
AS PAIXÕES DA ALMA 229

quina de nosso; corpo 5. Não há quem dam de que todas as veias e artérias do
já não saiba que existem em nós um corpo sejam como regatos por onde o
coração, um cérebro, um estômago, sangue não pára de correr muito rapi­
músculos, nervos, artérias, veias e coi­ damente, começando seu curso na
sas semelhantes; sabe-se também que cavidade direita do coração pela veia
os alimentos ingeridos descem ao estô­ arteriosa, cujos ramos se espalham por
mago e às tripas, de onde o seu suco, todo o pulmão e se juntam aos da arté­
correndo para o fígado e para todas as ria venosa, pelo qual ele passa do pul­
veias, se mistura com o sangue que mão ao lado esquerdo do coração; de­
elas contêm, aumentando, por esse pois segue daí para a grande artéria,
meio, a sua quantidade6. Aqueles que cujos ramos, esparsos pelo resto do
ouviram falar, por pouco que seja, da corpo, se unem aos ramos da veia que
medicina sabem, além disso, como se levam de novo o mesmo sangue à cavi­
compõe o coração e como todo o san­ dade direita do coração, de sorte que
gue das veias pode facilmente correr essas duas cavidades são como eclu­
da veia cava para seu lado direito, e sas, através de cada uma das quais
daí passar ao pulmão pelo vaso que passa todo o sangue em cada volta que
denominamos veia arteriosa, depois faz pelo corpo. Demais, sabe-se que
retornar do pulmão ao lado esquerdo todos os movimentos dos membros
do coração pelo vaso denominado dependem dos músculos e que estes
artéria venosa7, e, enfim, passar daí músculos se opõem uns aos outros, de
para a grande artéria, cujos ramos se tal modo que, quando um deles se
espalham pelo corpo inteiro. E mesmo encolhe, atrai para si a parte do corpo
todos os que não foram cegados intei­ a que está ligado, o que provoca ao
ramente pela autoridade dos antigos, e mesmo tempo o alongamento do mús­
que quiseram abrir os olhos para exa­
culo que lhe é oposto; depois, se acon­
minar a opinião de Harvey no tocan­
tece numa outra vez que este último se
te à circulação do sangue8, não duvi­
encolha, leva o primeiro a alongar-se e
5 Sendo possível (arts. 3, 4, 5) e indispensável à
puxa para si a parte a que eles estão
inteligência das paixões a distinção entre as funções ligados. Enfim, sabe-se que todos esses
que dependem do corpo e as funções que dependem movimentos dos músculos, assim
da alma, Descartes irá agora descrever sucessiva­
mente as funções essenciais de um e de outro. Até o como todos os sentidos, dependem dos
§ 11, asfunções do corpo. nervos, que são como pequenos fios ou
6 Cf. Tratado do Homem (Plêiade, págs. 808-809): como pequenos tubos que procedem,
devido à fermentação que se produz no estômago,
“as partes mais sutis” dos alimentos formam o todos, do cérebro, e contêm, como ele,
quilo, que é levado para o fígado, onde sofre a ação certo ar ou vento muito sutil que cha­
da hematose. “Este licor aí se sutiliza. . . adquire mamos espíritos animais9.
cor e toma a forma do sangue. . . Ora, este sangue,
assim contido nas veias, só tem uma única passa­
gem manifesta por onde possa sair delas, a saber, a Art. 8. Qual é o princípio de todas
que conduz à concavidade direita do coração.”
7 Veia arteriosa: artéria pulmonar; artéria venosa: essas funções.
veia pulmonar.
8 Descartes recusava atribuir a ação do coração a Mas não se sabe comumente de que
uma contração muscular, mas aderia inteiramente à
teoria circulatória de Harvey. “A opinião do Sr. forma esses espíritos animais e nervos
Descartes sobre a circulação do sangue”, relata contribuem para os movimentos e os
Baillet, “granjeara-lhe grande crédito entre os dou­ sentidos, nem qual é o princípio corpo-
tos e contribuira maravilhosamente para restabe­
lecer nesta mátéria a reputação de William Harvey,
que se vira maltratada por diversos médicos dos 9 O Tratado do Homem dirá: “Um certo vento
Países-Baixos, a maioria dos quais ignorante ou muito sutil, ou melhor, uma chama muito viva e
obstinada em antigas máximas de suas faculdades.” muito pura”.
230 DESCARTES

ral que os faz agir; eis por que, embora mente, em todas as artérias e veias,
já tenha tratado algo do assunto em mediante o que leva o calor que adqui­
outros escritos1 °, não deixarei de dizer re no coração a todas as outras partes
aqui sucintamente que, enquanto vive­ do corpo e lhes serve de alimento.
mos, há um contínuo calor em nosso
coração, que é uma espécie de fogo aí Art. 10. Como se produzem no cérebro
mantido pelo sangue das veias, e que os espíritos animais.
esse fogo é o princípio corporal de
todos os movimentos de nossos mem­ Mas o que há nisso de mais notável
bros1 1. é que todas as partes mais vivas e mais
sutis do sangue que o calor rarefez no
Art. 9. Como se faz o movimento do coração entram incessantemente em
coração12 . grande quantidade nas cavidades do
cérebro. E a causa que as conduz para
O seu primeiro efeito é dilatar o san­ aí, de preferência a qualquer outro
gue que enche as cavidades do cora­ lugar, é que todo sangue saído do cora­
ção; e isso é causa de que esse sangue, ção pela grande artéria toma seu curso
tendo necessidade de ocupar maior em linha reta para esse sítio, e que, não
espaço, passe com impetuosidade da podendo entrar todo, porque o lugar
cavidade direita para a veia arterial, e possui apenas passagens muito estrei­
da esquerda para a grande artéria; tas, só passam as suas partes mais agi­
depois, cessando essa dilatação, torne tadas e mais sutis, enquanto o resto se
incontinenti a entrar da veia cava para espalha por todos os outros locais do
a cavidade direita do coração, e da corpo. Ora, tais partes do sangue
artéria venosa para a esquerda; pois há muito sutis compõem os espíritos ani­
pequenas peles nas entradas desses mais13; e não precisam, para tal efeito,
quatro vasos, dispostas de tal modo receber qualquer modificação no cére­
que fazem com que o sangue não possa bro, exceto a de serem separadas das
penetrar no coração senão pelas duas outras partes do sangue menos sutis1 4;
últimas, nem sair dele exceto pelas pois o que denomino aqui espíritos não
duas outras. O novo sangue que entra são mais do que corpos e não têm
no coração é aí imediatamente rarefei- qualquer outra propriedade, exceto a
to, do mesmo modo que o precedente; de serem corpos muito pequenos e se
é só nisso que consiste a pulsação ou o
batimento do coração e das artérias; 13 Em Galeno (De Usu Partium), os espíritos vitais
de sorte que esse batimento se reitera chegam pela carótida aos ventrículos do cérebro,
onde são transformados em espíritos animais e
tantas vezes quantas entra sangue disponíveis para a função sensório-motora. Em
novo no coração. E também só isso Descartes, a distinção clássica entre espíritos ani­
que dá ao sangue o seu movimento, e o mais (elaborados no cérebro), espíritos vitais (saí­
dos do coração) e espíritos naturais (produzidos no
faz correr, muito rápida e incessante- fígado) é abolida. “Não mais há entre essas três for­
mas de espíritos diferença qualitativa real, mas
’0 Nomeadamente na quinta parte do Discurso. somente uma diferença de calibre e mobilidade
11 “Uma observação errônea lhe informa que o entre elementos mais ou menos refinados.” (Mes-
coração é o mais quente de todos os órgãos. Tem, nard, “Espirit de la Physiologie Cartésienne”,
portanto, um ponto de partida: o coração é um foco Archives de Philosophie, vol. XIII.)
de calor, deve esquentar e dilatar o sangue que o 1 4 “E assim, sem outro preparo ou mudança, exce­
atravessa.” (Osório de Almeida, “Descartes Physio- to que elas são separadas das mais grosseiras e que
logiste”, Eludes Cartésiennes, Hermann, 1937.) retêm ainda a extrema velocidade que o calor do
12 Cf. a qujnta parte do Discurso e- Gilson, Le coração lhes deu, deixam de ter a forma do sangue
Rôle de la Pensée Médiévale dans la Formation du e se chamam espíritos animais.” (Tratado do
Svstème Cartésien, cap. 2. Homem.)
AS PAIXÕES DA ALMA .231

moverem muito depressa, assim como acham, a saber, quando não encon­
as partes da chama que sai de uma tram passagens abertas para sair, e às
tocha; de sorte que não se detêm em vezes correndo para o músculo oposto.
nenhum lugar e, à medida que entram Tanto mais que há pequenas aberturas
alguns nas cavidades do cérebro, tam­ em cada um desses músculos por onde
bém saem outros pelos poros existentes tais espíritos podem correr de um para
na sua substância, poros que os condu­ o outro e que estão de tal modo dispos­
zem aos nervos e daí aos músculos, tas que — quando os espíritos vindos
por meio dos quais movem o corpo em do cérebro para um deles possuem, por
todas as diversas maneiras pelas quais pouco que seja, mais força do que os
esse pode ser movido1*5. que vão para o outro1 6 — abrem
todas as entradas por onde os espíritos
Art. 11. Como se fazem os movimen­ do outro músculo podem passar para
tos dos músculos. ele e fecham, ao mesmo tempo, todas
por onde os espíritos desse podem pas­
Pois a única causa de todos os sar ao outro; dessa maneira, todos os
movimentos dos membros é que os espíritos antes contidos nesses dois
músculos se encolhem e seus opostos músculos se reúnem num deles mui
se alongam, como já foi dito; e a única prontamente e assim o inflam e o enco­
causa que faz um músculo encolher-se lhem, enquanto o outro se alonga e se
mais do que seu oposto é que recebe, distende.
por pouco que seja, mais espírito do
cérebro do que o outro. Não que os Art. 12. Como os objetos de fora
espíritos que vêm imediatamente do atuam sobre os órgãos dos sentidos.
cérebro bastem por si sós para move­
rem tais músculos, mas determinam os Resta ainda saber as causas que
outros espíritos, que já existem nesses levam os espíritos a não correrem sem­
dois músculos a saírem todos mui pre da mesma forma do cérebro para
prontamente de um deles e a passarem os músculos e a se dirigirem às vezes
ao outro; dessa maneira, aquele de mais a uns do que a outros1 7. Pois,
onde saem torna-se mais longo e mais afora a ação da alma, que é verdadei­
lasso e aquele no qual entram, sendo ramente em nós uma dessas causas,
rapidamente inflado por eles, se enco­ como direi mais abaixo, há ainda duas
lhe e atrai o membro a ele ligado. E outras que não dependem senão do
isso é fácil de conceber, desde que se corpo e que é preciso observar. A pri­
saiba que pouquíssimos espíritos ani­ meira consiste na diversidade dos
mais vêm continuamente do cérebro movimentos excitados nos órgãos dos
para cada músculo, mas que em cada sentidos por seu objetos, a qual já foi
um há sempre grande quantidade de por mim assaz amplamente explicada
outros encerrados no mesmo músculo na Dióptrica; mas, para que os que
que nele se movem muito depressa, às
1 6 “Os espíritos”, dirá Descartes no artigo seguin­
vezes girando apenas no lugar onde se te, “nem sempre correm do cérebro para os múscu­
los da mesma maneira. " Esta diferença na força de
1 5 Cumpre imaginar o encéfalo “como uma espé­ lançamento comanda a regulamentação dos espíri­
cie de reservatório central, o ventrículo, onde vem tos já contidos nos músculos e, por esse meio, os
abrir-se a tubagem dos nervos destinada a engolfar movimentos musculares.
todos os espíritos disponíveis: estes filtram-se atra­ 1 7 Por que esta diversidade no escoamento dos
vés dos poros do tecido coroidiano, que reveste espíritos? Primeira causa (arts. 11 e 12): os movi­
como um dossel o ventrículo”. (Mesnard, art. cil., mentos produzidos no cérebro por ocasião das
pág. 207.) impressões sensíveis.
232 DESCARTES

virem o presente escrito não tenham disso, é fácil conceber que os sons, os
necessidade de ler outros, repetirei odores, os sabores, o calor, a dor, a
aqui que há três coisas a considerar fome, a sede e, em geral, todos os obje­
nos nervos, a saber: a sua medula, ou tos, tanto dos nossos demais sentidos
substância interior, que se estende na externos como dos nossos apetites
forma de pequenos filetes a partir do internos, excitam também alguns mo­
cérebro, onde toma origem, até as vimentos em nossos nervos, que se
extremidades dos outros membros aos transmitem por meio deles até o cére­
quais esses filetes estão ligados; depois bro; e além de esses diversos movimen­
as peles que os envolvem e que, sendo tos do cérebro fazerem com que a alma
contíguas com as que envolvem o cére­
tenha diversos sentimentos, podem
bro, compõem pequenos condutos em
também fazer, sem ela1 9, que os espíri­
que ficam encerrados esses pequenos
filetes; depois, enfim, os espíritos ani­ tos sigam mais para certos músculos
mais que, levados por esses mesmos do que para outros, e, assim, que
condutos do cérebro até os músculos, movam nossos membros, o que prova­
são a causa de tais filetes permane­ rei aqui somente através de um exem­
cerem aí inteiramente livres e estendi­ plo. Se alguém avança rapidamente a
dos, de tal modo que a menor coisa mão contra os nossos olhos, como
que mova a parte do corpo à qual se para nos bater, embora saibamos tra­
liga a extremidade de algum deles leva tar-se de nosso amigo, que faz isso só
a mover, pelo mesmo meio, a parte do por brincadeira e tomará muito cuida
cérebro de onde vem, tal como ao se do para não nos causar nenhum mal,
puxar uma das pontas de uma corda temos todavia muita dificuldade em
move-se a outra18. impedir que se fechem; isso mostra que
não é por intermédio de nossa alma
Art. 13. Que esta ação dos objetos de que eles se fecham, pois é contra a
fora pode conduzir diversamente os
nossa vontade, a qual é, se não a única,
espíritos aos músculos.
ao menos a sua principal ação; assim
Expliquei também na Dióptrica porque a máquina de nosso corpo é de
como todos os objetos da visão comu­ tal modo composta que o movimento
nicam-se conosco apenas porque dessa mão contra os nossos olhos exci­
movem localmente, por intermédio dos ta outro movimento em nosso cérebro,
corpos transparentes que existem entre o qual conduz aos músculos os espíri­
eles e nós, os pequenos filetes dos ner­ tos animais que fazem baixar as
vos ópticos que se acham no fundo de pálpebras20.
nossos olhos, e em seguida os lugares
do cérebro de onde provêm esses ner­ Art. 14. Que a diversidade existente
vos; que os movem, digo eu, de tantas
maneiras diversas que nos fazem ver entre os espíritos também pode diversi­
diversidades nas coisas, e que não são ficar-lhes o curso.
imediatamente os movimentos que se
’9 Há, portanto, dois circuitos possíveis: a) movi­
efetuam no olho, mas sim os que se mento sensorial-sentimento da alma-ação; b) movi­
efetuam no cérebro, que representam mento sensorial-ação automática. O art. 16 especifi­
para a alma esses objetos. A exemplo cará o funcionamento desta ação automática.
20 Sobre a teoria cartesiana do reflexo, consultar o
livro indispensável de Canguilhem: La Formallon
1 8 Cf. Meditação Sexta, § 35. du Concept de Réflexe. . .
AS PAIXÕES DA ALMA 233

A outra causa21 que serve para con­ lido mais de certas partes do que de
duzir diversamente os espíritos ani­ outras, porque os nervos e os músculos
mais aos músculos é a agitação desi­ que respondem a essas partes o pres­
gual desses espíritos e a diversidade de sionam ou agitam mais, e porque, con­
suas partes. Pois, quando algumas de forme a diversidade das partes de onde
suas partes são mais grossas e mais vem mais, dilata-se diversamente no
agitadas do que as outras, passam coração, e em seguida produz espíritos
mais à frente em linha reta nas cavida­ dotados de qualidades diferentes.
des e nos poros do cérebro, e por esse Assim, por exemplo, o que provém da
meio são levadas a músculos diferentes parte inferior do fígado, onde está o fel,
daqueles para onde iriam se tivessem dilata-se no coração de maneira dife­
menos força. rente da do sangue oriundo do baço, e
este de modo diferente do do prove­
Art. 15. Quais são as causas de sua niente das veias dos braços ou das per­
diversidade. nas, e enfim este diferentemente do
suco dos alimentos, quando, tendo de
E essa desigualdade pode proceder novo saído do estômago e dos intesti­
das diversas matérias de que se com­ nos, passa rapidamente pelo fígado até
põem, como se vê nos que beberam o coração.
muito vinho cujos vapores, entrando
prontamente no sangue, sobem do Art. 16. Como todos os membros
coração ao cérebro, onde se convertem podem ser movidos pelos objetos dos
em espíritos que, sendo mais fortes e sentidos e pelos espíritos sem a ajuda
mais abundantes do que aqueles que aí da alma.
se encontram comumente, são capazes
de mover o corpo de muitas maneiras Enfim, é preciso notar que a má­
estranhas. Esta desigualdade dos espí­ quina de nosso corpo é de tal modo
ritos pode também proceder das diver­ composta que todas as mudanças que
sas disposições do coração, do fígado, ocorrem no movimento dos espíritos
do estômago, do baço e de todas as ou­ podem levá-los a abrir alguns poros do
tras partes que contribuem para a sua cérebro mais do que outros, e recipro­
produção; pois cumpre principalmente camente que, quando algum desses
observar aqui certos pequenos nervos poros está pouco mais ou menos aber­
insertos na base do coração, que ser­ to que de costume pela ação dos ner­
vem para alargar e estreitar as entra­ vos que servem aos sentidos22, isso al­
das dessas concavidades, por meio do tera algo no movimento dos espíritos e
que o sangue, dilatando-se nelas mais determina que sejam conduzidos aos
ou menos fortemente, produz espíritos músculos destinados a mover o corpo
diversamente dispostos. É preciso
notar também que, embora o sangue 22 O Tratado do Homem descreve com maior pre­
que penetra no coração provenha de cisão este mecanismo. “Se o fogo A se encontra
perto do pé B”, as partes do fogo estirarão um nervo
todos os outros lugares do corpo, toda­ e abrirão “no mesmo instante a entrada do poro
via acontece muitas vezes ser ele impe­ contra o qual este pequeno Tio termina... Ora,
estando assim aberta a entrada do poro, os espíritos
animais da concavidade entram nele, e são levados
21 Segunda causa: o efeito de lançamento variável por ele, em parte aos músculos que servem para reti­
segundo a desigualdade dos espíritos, podendo esta rar este pc deste fogo, em parte aos que servem para
desigualdade provir de causas diversas que o artigo volver os olhos e a cabeça a fim de olhá-lo, e em
seguinte especificará. A terceira causa: a ação da parte aos que servem para adiantar as mãos e do­
álma (cf. art. 12) será analisada nos arts. 34-36. brar todo o corpo para defendê-lo.”
234 DESCARTES

da forma como ele é comumente movi­ Art. 18. Da vontade.


do por ocasião de tal ação; de sorte
que todos os movimentos que fazemos Nossas vontades são, novamente, de
sem que para isso a nossa vontade con­ duas espécies; pois umas são ações da
tribua (como acontece muitas vezes alma que terminam na própria alma,
quando respiramos, andamos, come­ como quando queremos amar a Deus
mos e, enfim, quando praticamos todas ou, em geral, aplicar nosso pensa­
as ações que são comuns a nós e aos mento a qualquer objeto que não é
animais) não dependem senão da con­ material; as outras são ações que ter­
formação de nossos membros e do minam em nosso corpo, como quando,
pelo simples fato de termos vontade de
curso que os espíritos, excitados pelo passear, resulta que nossas pernas se
calor do coração, seguem naturàl- mexam e nós caminhemos.
mente no cérebro, nos nervos e nos
músculos, tal como o movimento de Art. 19. Da percepção.
um relógio é produzido para exclusiva
força de sua mola e pela forma de suas Nossas percepções também são de
rodas. duas espécies: umas têm a alma como
causa, outras o corpo2 4. As que têm a
Art. 17. Quais são as funções da alma como causa são as percepções de
alma. nossas vontades e de todas as imagina­
ções ou outros pensamentos que dela
Depois de ter assim considerado dependem; pois é certo que não pode­
todas as funções que, pertencem so­ riamos querer qualquer coisa que não
mente ao corpo, é fácil reconhecer que percebéssemos pelo mesmo meio que a
nada resta em nós que devemos atri­ queremos; e, embora com respeito à
buir à nossa alma, exceto nossos nossa alma seja uma ação o querer al­
pensamentos, que são principalmente guma coisa, pode-se dizer que é tam­
de dois gêneros, a saber: uns são as bém nela uma paixão o perceber que
ações da alma, outros as suas paixões. ela quer; todavia, dado que essa per­
Aquelas que chamo suas ações são cepção e essa vontade são efetivamente
todas as nossas vontades, porque senti­ uma mesma coisa2 5, a sua denomina­
mos que vêm diretamente da alma e ção faz-se sempre pelo que é mais
parecem depender apenas dela; do nobre, e por isso não se costuma cha-
mesmo modo, ao contrário, pode-se má-la paixão, mas apenas ação.
em geral chamar suas paixões toda
espécie de percepções ou conheci­ Art. 20. Das imaginações e outros
mentos existentes em nós, porque mui­ pensamentos que são formados pela
tas vezes não é nossa alma que os faz alma.
tsÃs como são, e porque sempre os re­
cebe das coisas por elas representa­ Quando nossa alma se aplica a ima-
das23
2 4 Arts. 19-20: a) as percepções que têm a alma
23 Trata-se da primeira definição das paixões, como causa.
muito geral, pois compreende todas as percepções e 2 5 “Não poderiamos querer coisa alguma sem
conhecimentos, isto é, tudo o que, na alma, não tem saber que a queremos, nem sabê-lo a não ser por
a alma como única origem. A partir daí, Descartes, uma idéia; mas não afirmo de modo algum que esta
por distinções sucessivas, irá delimitar as paixões idéia seja diferente da própria ação.” (Cartas, a
no sentido estrito. Mersenne, 28 de julho de 1641.)
AS PAIXÕES DA ALMA 235

ginar alguma coisa que não existe26, mesmo a nada29. Ora, ainda que algu­
como a representar úm palácio encan­ mas dessas imaginações sejam paixões
tado ou uma quimera, e também quan­ da alma, tomando a palavra na sua
do se aplica a considerar algo que é’ mais própria e mais perfeita significa­
somente inteligível e não imaginável, ção, é ainda que possam ser todas
por exemplo a sua própria natureza, as assim denominadas, se se tomar o
percepções que tem dessas coisas de­ termo em uma acepção mais geral,
pendem principalmente da vontade que todavia, posto que não têm uma causa
tão notável e tão determinada como as
a leva a percebê-las; eis por que se cos­
percepções que a alma recebe por
tuma considerá-las como ações mais
intermédio dos nervos, e parecem ser
do que como paixões2 2*7.
apenas a sombra e a pintura destas,
antes que as possamos distinguir bem
Art. 21. Das imaginações que só têm cumpre considerar a diferença que há
por causa o corpo. entre estas outras.

Entre as percepções que são causa­ Art. 22. Da diferença que existe entre
das pelo corpo, a maior parte depende as outras percepções.
dos nervos; mas há também algumas
que deles não dependem, e que se cha­ Todas as percepções que ainda não
mam imaginações28, como essas de expliquei vêm à alma por intermédio
que acabo de falar, das quais, não obs­ dos nervos30, e existe entre elas essa
tante, diferem pelo fato de nossa vonta­ diferença pelo fato de relacionarmos
de não se empenhar em formá-las, o umas aos objetos de fora, que ferem
que faz com que não possam ser incluí­ nossos sentidos, e as outras ao nosso
corpo, oü a algumas de suas partes, e
das no número das ações da alma, e outras enfim à nossa alma.
procedam apenas de que, sendo os
espíritos diversamente agitados, e en-' Art. 23. Das percepções que relacio­
contrando os traços de diversas im­ namos com osobjetos que existem fora
pressões que precederam no cérebro, de nós.
tomem aí seu curso fortuitamente por As que referimos a coisas situadas
certos poros mais do que por outros. fora de hós, a. saber, aos objetos de
Tais são as ilusões de nossos sonhos e nossos sentidos, são causadas, ao
também os devaneios a que nos entre­
29 Acerca desses devaneios, cf. Cartas, aElisabeth,
gamos muitas vezes estando despertos, de 6 de outubro de 1645. Se o sonho não suprime o
quando nosso pensamento erra negli­ pensamento, a imaginação aí se liberta da vontade:
não posso sair do sonho à minha vontade (é o corpo
gentemente sem se aplicar por si que é responsável pelo despertar). Permitindo às
representações resultantes do corpo viver uma vida
2 6 A imaginação voluntária (“se aplica”) ou cria­ própria, o sonho não ameaça, todavia, o Cogito,
dora também pertence a este grupo. visto que o pensamento passivo ainda acolhe aí as
imagens como imagens. Eis por que é sempre, possí­
27 O campo das paixões propriamente ditas já está vel passar da imaginação-paixão à imaginação
reduzido: só “as percepções que têm o corpo como controlada. (Cf. Cartas, a Elisabeth, maio ou junho
causa” merecem verdadeiramente esse nome. de 1645.)
28 Arts. 21 a 27: b) as percepções que têm o corpo 30 2.° as que dependem dos nervos. Podemos divi­
como causa. Distinguem-se: l.° as que não resultam di-las em três rubricas: a) percepções referidas aos
de uma mensagem sensorial e são produzidas pelo objetos (art. 23); b) às afecções do corpo (art. 24); c)
curso fortuito dos espíritos. à alma em particular (art. 25).
236 DESCARTES

menos quando nossa opinião não é julguemos que a primeira já existe em


falsa, por esses objetos que, provo­ nós e que a outra, a seguinte, não está
cando alguns movimentos nos órgãos ainda em nós, mas no objeto que a
dos sentidos externos, os provocam causa.
também no cérebro por intermédio dos
nervos, os quais levam a alma a senti- Art. 25. Das percepções que relacio­
los. Assim, quando vemos a luz de um namos com a nossa alma32.
facho e ouvimos o som de um sino,
esse som e essa luz são duas ações As percepções que se referem so­
diversas que, somente por excitarem mente à alma são aquelas cujos efeitos
dois movimentos diversos em alguns se sentem como na alma mesma e de
de nossos nervos, e por meio deles no que não se conhece comumente.nenhu­
cérebro, dão à alma dois sentimentos ma causa próxima à qual possamos
diferentes, os quais relacionamos de tal relacioná-las: tais são os sentimentos
modo aos objetos que supomos serem de alegria, de cólera e outros seme­
sua causa, que pensamos ver o próprio lhantes, que são às vezes excitados em
facho e ouvir o sino, e não sentir unica­ nós pelos objetos que movem nossos
mente movimentos que procedem nervos, e outras vezes também por ou­
deles31. tras causas. Ora, ainda que todas as
Art. 24. Das percepções que relacio­ nossas percepções, tanto as que se refe­
namos com o nosso corpo. rem aos objetos que estão fora de nós
como as que se referem às diversas
As percepções que relacionamos afecções de nosso corpo, sejam verda­
com o nosso corpo ou com qualquer de deiramente paixões com respeito à
suas partes são as que temos da fome, nossa alma, quando tomamos esse
da sede e de nossos demais apetites termo em sua significação mais geral,
naturais, aos quais podemos juntar a todavia costuma-se restringi-lo a fim
dor, o calor e as outras afecções que de significar somente as que se relacio­
sentimos como nos nossos membros, e nam com a própria alma, e apenas
não como nos objetos que existem fora essas últimas é que me propus explicar
de nós: assim, podemos sentir ao aqui sob o nome de paixões da alma.
mesmo tempo, e por intermédio dos
mesmos nervos, a frieza da nossa mão Art. 26. Que as imaginações que de­
e o calor da chama de que ela se apro­
pendem apenas do movimento fortuito
xima, ou então, ao contrário, o calor dos espíritos podem ser também pai­
da mão e o frio do ar a que está expos­
xões tão. verdadeiras quanto as percep­
ta, sem que haja qualquer diferença
ções que dependem dos nervos3 3.
entre as ações que nos fazem sentir o
quente ou o frio que existe em nossa
mão e as que nos fazem sentir aquele Resta notar aqui que exatamente as
que está fora de nós, a não ser que,
sucedendo uma dessas ações à outra, 32 Delimitação das paixões ao sentido restrito. Cf.
o “quadro sinótico” que resume essa classificação
no Ensaio sôbre a Moral de Descartes, de Lívio Tei­
31 As palavras importantes são “diversos” e “dife­ xeira, pág. 151.
rentes”. As percepções sensíveis nos informam não 33 Retorno às “imaginações” descritas no art. 21.
só sobre a existência dos corpos, mas também sobre “Sombra e pintura” das percepções (a, b), elas não
as variedades' geométricas desses corpos, às quais podem imitar as percepções que se referem àj alma
elas correspondem por intermédio da variedade dos (c). Razão suplementar para distinguir a terceira
movimentos que eles produzem no cérebro. categoria das duas primeiras. •
AS PAIXÕES DA ALMA 237

mesmas coisas que a alma percebe por çÕes da alma, que referimos particular­
intermédio dos nervos lhe podem ser mente a ela, e que são causadas, manti­
também representadas pelo curso for­ das e fortalecidas por algum
tuito dos espíritos, sem que haja outra movimento dos espíritos3 5.
diferença exceto que as impressões vin­
das ao cérebro por meio dos nervos Art. 28. Explicação da primeira parte
costumam ser mais vivas e mais dessa definição3 6.
expressas do que as excitadas nele
pelos espíritos; o que me levou a dizer Podemos chamá-las percepções
no art. 21 que as últimas são como a quando nos servimos em geral desse
sombra e a pintura das outras. É preci­ termo para significar todos os pensa­
so. também notar que ocorre algumas mentos que não constituem ações da
vezes ser essa pintura tão semelhante à alma ou vontades, mas não quando o
coisa representada, que podemos enga­ empregamos apenas para significar
nar-nos no tocante às percepções que conhecimentos evidentes; pois a expe­
se relacionam aos objetos fora de nós, riência mostra que os mais agitados
ou então quanto às que se relacionam por suas paixões não são aqueles que
a algumas partes de nosso corpo, mas melhor as conhecem, e que elas perten­
não podemos equivocar-nos do mesmo cem ao rol das percepções que a
modo no tocante às paixões, por­ estreita aliança entre a alma e o corpo
quanto são tão próximas e tão interio­ torna confusas e obscuras3 7. Podemos
res à nossa alma que lhe é impossível também chamá-las sentimentos, por­
senti-las sem que* sejam verdadeira­ que são recebidas na alma do mesmo
mente tais como ela as sente. Assim, modo que os objetos dos sentidos exte­
muitas vezes quando dormimos, e riores, e não são de outra maneira38
mesmo algumas vezes estando acorda­ conhecidos por ela; mas podemos cha-
dos, imaginamos tão fortemente certas
coisas que pensamos vê-las diante de 3 5 Definição das paixões no sentido estrito.
nós, ou senti-las no corpo, embora aí 3 6 Explicação da definição precedente do ponto de
não estejam de modo algum; mas, vista da alma. Em que podem as paixões ser deno­
minadas percepções (no sentido mais amplo do
ainda que estejamos adormecidos e termo), sentimentos (ou sensações), emoções?
sonhemos, não podemos sentir-nos 3 7 Não pode haver, portanto, conhecimento claro
das paixões. Lívio Teixeira observa: “Ele emprega
tristes ou comovidos por qualquer para o conhecimento das paixões a forma gramati­
outra paixão, sem que na verdade a cal do comparativo destinada a exprimir a relativi­
alma tenha em si esta paixão3 4. dade desse conhecimento: o conhecimento me­
lhor. . . Existe, pois, o conhecimento melhor ou
pior das paixões, não o conhecimento perfeito
Art. 27. A definição das paixões da delas”. (Op. cit., pág. 152.)
alma. 38 "Autrement se refere, pode-se interpretar razoa­
velmente, ao conhecimento pelas idéias claras e dis­
tintas, possível para o objeto das sensações, mas
Depois de haver considerado no que não para o fenômeno misto da paixão.” (Lívio Tei­
as paixões da alma diferem de todos os xeira, op. cit., pág. 153.) A ciência das paixões será,
portanto, um conhecimento claro e distinto de uma
seus outros pensamentos, parece-me vivência intrinsecamente obscura e confusa. Eis por
que podemos em geral defini-las por que, se Descartes quer explicar as paixões “na qua­
percepções, ou sentimentos, ou emo-34 * lidade de físico”, isso não significa “que pretenda
explicá-las unicamente pela Física, isto é, pela fisio-
logia do corpo, mas que deseja considerá-las segun­
34 A hipótese do sonho infirma apenas a validade do um método racional que procura evidências,
objetiva dos juízos sobre o mundo exterior. Ela apropriadas, todavia, à natureza mesma do objeto,
deixa intacto o vivido pela consciência enquanto a qual é aqui obscuridade e confusão intrínsecas”.
vivido. (Guéroult, t. II, pág. 253.)
238 DESCARTES

má-las melhor ainda emoções da alma, exclusão de outras, porque o corpo é


não só porque esse nome pode ser atri­ uno e de alguma forma indivisível41,
buído a todas as mudanças que nela em virtude da disposição de seus ór­
sobrevêm, isto é, a todos os diversos gãos, que se relacionam de tal modo
pensamentos que lhe ocorrem, mas uns com os outros que, quando algum
particularmente porque, de todas as deles é retirado, isso torna o corpo
espécies de pensamentos que ela pode todo defeituoso; e porque ela é de uma
ter, não há outros que a agitem e a natureza que não tem qualquer relação
abalem tão fortemente como essas com a extensão nem com as dimensões
paixões. ou outras propriedades da matéria de
que o corpo se compõe; mas apenas
Art. 29. Explicações de sua outra com o conjunto dos seus órgãos42,
parte. como transparece pelo fato de não
podermos de maneira alguma conceber
Acrescento que elas se relacionam a metade ou um terço de uma alma,
particularmente com a alma, para nem qual extensão ocupa, e por não se
distingui-las dos outros sentimentos tornar ela menor ao se cortar qualquer
que referimos, uns aos objetos exterio­ parte do corpo, mas separar-se inteira­
res, como os odores, os sons, as cores, mente dele quando se dissolve o con­
e os outros ao nosso corpo, como a junto de seus órgãos.
fome, a sede, a dor. Acrescento, ou-
Art. 31. Que há uma pequena glân­
trossim, que são causadas, sustentadas
dula no cérebro, na qual a alma exerce
e fortalecidas por algum movimento
dos espíritos, a fim de distingui-las de suas funções mais particularmente do
que nas outras partes.
nossas vontades, que podemos denomi­
nar emoções da alma que se relacio­ Ê necessário também saber que, em­
nam com ela, mas que são causadas bora a alma esteja unida a todo o
por ela própria, e também a fim de corpo, não obstante há nele alguma
explicar sua derradeira e mais próxima parte em que ela exerce suas funções
causa, que as distingue novamente dos mais particularmente do que em todas
outros sentimentos. as outras 43 ; e crê-se comumente que

Art. 30. Que a alma está unida a 41 Essa indivisibilidade própria ao organismo hu­
todas as partes do corpo conjuntamen­ mano resulta de sua união com a alma: “Nosso
corpo, enquanto corpo humano, permanece sempre
te39. o mesmo número durante o tempo em que está
unido à mesma alma. E inclusive, nesse sentido, é
indivisível. . .”. (Carta a Mesland, .citada in Gué-
Mas, para compreender mais perfei- roult, II, pág. 181.)
tamente todas essas coisas, é neces­ 42 Essa penetração da alma em todo o corpo per­
sário saber que a alma está verdadeira­ mite falar de uma “alma corporal” em um sentido
muito particular, que Descartes ressalta na carta de
mente unida ao corpo todo40, e que 26 de julho a Arnauld: “Se por corporal entende­
não se pode propriamente dizer que ela mos o que pertence ao corpo, embora seja de outra
esteja em qualquer de suas partes com natureza, a alma também pode ser dita corporal, na
medida em que está apta a unir-se ao corpo; mas se
por corporal entendemos o que participa da natu­
39 Constituindo as paixões um dos aspectos da reza do corpo, esse peso não é mais corporal do que
comunicação entre o corpo e a alma, serão agora a nossa própria alma”.
analisadas as modalidades desta. 43 Segunda modalidade da união: a alma deve ter
40 Primeira modalidade da união: a alma, justa­ sua sede em um órgão que governa o movimento
mente por não ter extensão alguma, não enforma dos espíritos animais. (Cf. Lívio Teixeira, op. cit.,
qualquer parte do corpo humano, em especial. pág. 154.)
AS PAIXÕES DA ALMA 239

esta parte é o cérebro, ou talvez o cora­ duas mãos, duas orelhas, e enfim todos
ção: o cérebro, porque é com ele que se os órgãos de nossos sentidos externos
relacionam os órgãos dos sentidos; e o são duplos; e que, dado que não temos
coração, porque é nele que parece senão um único e simples pensamento
sentirem-se as paixões. Mas, exami­ de uma mesma coisa ao mesmo tempo,
nando o caso com cuidado, parece-me cumpre necessariamente que haja
ter reconhecido com evidência que a algum lugar onde as duas imagens que
parte do corpo em que a alma exerce nos vêm pelos dois olhos, onde as duas
imediatamente suas funções não é de outras impressões que recebemos de
modo algum o coração, nem o cérebro um só objeto pelos duplos órgãos dos
todo 4 4, mas somente a mais interior de outros sentidos, se possam reunir em
suas partes, que é certa glândula muito uma antes que cheguem à alma, a fim
pequena, situada no meio de sua subs­ de que não lhe representem dois obje­
tância, e de tal modo suspensa por tos em vez de um só. E pode-se conce­
cima do conduto por onde os espíritos ber facilmente que essas imagens ou
de suas cavidades anteriores mantêm outras impressões se reúnem nessa
comunicação com os da posterior, que glândula, por intermédio dos espíritos
os menores movimentos que nela exis­ que preenchem as cavidades do cére­
tem podem contribuir muito para mo­ bro, mas não há qualquer outro local
dificar o curso desses espíritos, e, no corpo onde possam assim unir-se,
reciprocamente, as menores modifica­ senão depois de reunidas nessa glându­
ções que sobrevêm ao curso dos espíri­ la46.
tos podem contribuir muito para alte­
rar os movimentos dessa glândula4 5. Art. 33. Que a sede das paixões não
fica no coração.
Art. 32. Como se conhece que essa
glândula é a principal sede da alma. Quanto à opinião dos que pensam
que a alma recebe as suas paixões no
A razão que me persuade de que a coração, não pode ser de modo algum
considerável, pois se funda apenas no
alma não pode ter, em todo o corpo,
fato de que as paixões nos fazem sentir
nenhum outro lugar, exceto essa glân­
dula, onde exerce imediatamente suas aí alguma alteração 4 7; e é fácil notar
funções é que considero que as outras que essa alteração só é sentida, como
que no coração, por intermédio de um
partes do nosso cérebro são todas
pequeno nervo que desce do cérebro
duplas, assim como tempos dois olhos,
para ele, assim como a dor é sentida
4 4 Objetar-se-á a Descartes que a gente não tem
como que no pé, por intermédio dos
cérebro em excesso para pensar. Já Galeno, no De
Usu Parlium, escrevia: “Crer que esse corpo (a 4 6 A glândula pituitária, pregada no osso esfe-
glândula pineal) preside a passagem do espírito é nóide, satisfaria essa condição, mas não dispõe da
dar prova de ignorância e atribuir demasiado a essa mobilidade da pineal. (Cartas, a Mersenne, 24 de
glândula. Se assim fosse, uma glândula desempe­ dezembro de 1640.)
nharia o papel e teria a dignidade de cérebro”. Mes- 4 7 Trata-se de uma ruptura com a tese peripatética
nard, que cita esse texto no artigo já mencionado e estóica. Mme Rodis-Lewis, na sua edição do Trai-
(págs. 208-209), conclui daí que Descartes não té (pág. 91), assinala um texto de 1641 onde esse
conhecia Galeno, a não ser por uma obra de J. Syl- rompimento com a tradição é atenuado: “As pai­
vius, aparecida em 1555, onde o autor assume por xões, na medida em que pertencem ao corpo, têm
desventura, precisamente sobre este ponto, posição como sede principal o coração, visto ser o principal
oposta à do grande empírico. órgão que elas alteram; mas, na medida em que afe­
45 A mobilidade da glândula é uma das condições tam também a alma, aquela reside somente no cére­
essenciais que Descartes invoca a fim de convertê-la bro, pois só por meio dele é que a alma pode ser
em sede da alma. imediatamente tocada”.
240 DESCARTES

nervos do pé, e os astros são percebi­ mas que pode também ser diversa­
dos como que no céu por intermédio de mente movida pela alma48, a qual é de
sua luz e dos nervos ópticos; de sorte tal natureza que recebe em si tantas
que não é mais necessário que nossa impressões diversas, isto é, que ela tem
alma exerça imediatamente as suas tantas percepções diversas quantos
funções no coração para nele sentir as diferentes movimentos sobrevêm nessa
suas paixões do que é necessário que glândula; como também, reciproca­
ela esteja no céu para nele ver os mente, a máquina do corpo é de tal
astros. forma composta que, pelo simples fato
de ser essa glândula diversamente mo­
Art. 34. Como agem a alma e o corpo vida pela alma ou por qualquer outra
um contra o outro. causa que possa existir, impele os espí­
ritos animais que a circundam para os
Concebamos, pois, que a alma tem a poros do cérebro, que os conduzem
sua sede principal na pequena glândula pelos nervos aos músculos, mediante o
que existe no meio do cérebro, de onde que ela os leva a mover os membros.
irradia para todo o resto do corpo, por
intermédio dos espíritos, dos nervos e Art. 35. Exemplo da maneira como as
mesmo do sangue, que, participando impressões dos objetos se unem na
das impressões dos espíritos, podem glândula que fica no meio do cérebro.
levá-los pelas artérias a todos os mem­
bros; e, lembrando-nos do que já foi . Assim, por exemplo, se vemos
dito acima com respeito à máquina de algum animal vir em nossa direção, a
nosso corpo, a saber, que os pequenos luz refletida de seu corpo pinta duas
filetes de nossos nervos acham-se de imagens dele, uma em cada um de nos­
tal modo distribuídos em todas as suas sos olhos, e essas duas imagens for­
partes que, por ocasião dos diversos mam duas outras, por intermédio dos
movimentos aí provocados pelos obje­ nervos ópticos, na superfície interior
tos sensíveis, abrem diversamente os do cérebro defronte às suas concavida­
poros do cérebro, o que faz com que os des; daí, em seguida, por intermédio
espíritos animais contidos nessas cavi­ dos espíritos que enchem suas cavida­
dades entrem diversamente nos múscu­ des, essas imagens irradiam de tal
los, por meio do que podem mover os sorte para a pequena glândula envol­
membros de todas as diversas manei­ vida por esses espíritos, que o movi­
ras que esses são capazes de ser movi­ mento componente de cada ponto de
dos, e também que todas as outras cau­ uma das imagens tende para o mesmo
sas que podem mover diversamente os
espíritos bastam para conduzi-los a ponto da glândula para o qual tende o
diversos músculos; juntemos aqui que movimento que forma o pontó da
a pequena glândula, que é a principal
sede da alma, está de tal forma sus­ 48 É a terceira causa da diversidade no curso dos
espíritos que procedem do cérebro (cf. arts. 12 a
pensa entre as cavidades que contêm 16). Cabe notar que a correspondência entre as
esses espíritos que pode ser movida por impressões da alma e os movimentos da glândula
constitui uma descrição e de maneira alguma uma
eles de tantos modos diversos quantas explicação da união (cf. Lívio Teixeira, op. cit., pág.
as diversidades sensíveis nos objetos; 155).
AS PAIXÕES DA ALMA 241

outra imagem, a qual representa a lar nessa glândula, o qual é instituído


mesma parte desse animal, por meio pela natureza para fazer sentir à alma
do que as duas imagens existentes no essa paixão, e, como esses poros se
cérebro compõem apenas uma única relacionam principalmente com os pe­
na glândula, que, agindo imediata­ quenos nervos que servem para apertar
mente contra a alma, lhe faz ver a figu­ ou alargar os orifícios do coração, isso
ra desse animal. faz que a alma a sinta principalmente
como que no coração 4 9.
Art. 36. Exemplo da maneira como as Art. 37. Como todas parecem causa­
paixões são excitadas na alma. das por qualquer movimento dos espí­
ritos.
E, além disso, se essa figura é muito E como acontece coisa semelhante
estranha e muito apavorante, isto é, se
49 O mecanismo aqui descrito é muito complexo.
ela tem muita relação com as coisas De uma parte, verifica-se um condicionamento: a
que foram anteriormente nocivas ao ligação “instituída pela natureza” entre a abertura
de certos orifícios ventriculares e a paixão sentida
corpo, isto excita na alma a paixão do pela alma. De outra parte, verifica-se um auto-refor-
medo e, em seguida, a da ousadia, ou çamento circular (feed-back): “Os espíritos refleti­
então a do temor e a do terror, con­ dos pela imagem assim formada sobre a glândula”,
quer por ação direta sobre o coração, quer por uma
forme o diverso temperamento do variação no regime do sangue, modificam o regime
corpo ou a força da alma, e conforme dos espíritos animais que seguem do coração para o
cérebro, de modo que a alma, sentindo a paixão,
nos tenhamos precedentemente garan­ torna a lançar os espíritos no mesmo circuito. O que
tido pela defesa ou pela fuga contra as corresponde ao seguinte esquema:
coisas prejudiciais com as quais se
relaciona a presente impressão; pois
isso dispõe o cérebro de tal modo, em
certos homens, que os espíritos refleti­
dos da imagem assim formada na glân­
dula seguem, daí, parte para os nervos
que servem para voltar as costas e
mexer as pernas para a fuga, e parte
para os que alargam ou encolhem de
tal modo os orifícios do coração, ou
então que agitam de tal maneira as ou­
tras partes de onde o sangue lhe é
enviado, que este sangue, rarefazendo-
se aí de forma diferente da comum,
envia espíritos ao cérebro que são pró­
prios para manter e fortificar a paixão
do medo, isto é, que são próprios para
manter abertos ou então abrir de novo
os poros do cérebro que os conduzem
aos mesmos nervos; pois, pelo simples
fato de esses espíritos entrarem nesses
poros, excitam um movimento particu­
242 DESCARTES

com todas as outras paixões, a saber, sobre a glândula a presença de um ob­


que são principalmente causadas pelos jeto pavoroso, e que causa o medo em
espíritos que estão contidos nas cavi­ alguns homens, pode excitar, em ou­
dades do cérebro, enquanto tomam seu tros, a coragem e a audácia, isto por­
curso para os nervos que servem para que nem todos os cérebros estão dis­
alargar ou estreitar os orifícios do postos da mesma maneira, e o mesmo
coração, ou para impelir diversamente movimento da glândula que em alguns
em sua direção o sangue que se encon­ excita o medo faz com que, em outros,
tra nas outras partes, ou, de qualquer os espíritos entrem nos poros do cére­
outra maneira que seja, para sustentar bro que os conduzem, parte aos nervos
a mesma paixão, pode-se claramente que servem para mexer as mãos na de­
compreender, de tudo isso, por que fesa e parte nos que agitam e impelem
afirmei acima, ao defini-las, que são o sangue ao coração, da maneira
causadas por algum movimento parti­ requerida a produzir espíritos próprios
cular dos espíritos 5°. para continuar esta defesa e manter a
Art. 38. Exemplo dos movimentos do vontade de prossegui-la51.
corpo que acompanham as paixões e
não dependem da alma. Art. 40. Qual é o principal efeito das
paixões.
De resto, assim como o curso segui­
do por essesespíritos para os nervos do Pois cumpre notar que o principal
coração basta para imprimir movi­ efeito de todas as paixões nos homens
mento à glândula pela qual o medo é é que incitam e dispõem a sua alma a
posto na alma, do mesmo modo, pelo querer as coisas para as quais elas lhes
simples fato de alguns espíritos irem preparam os corpos; de sorte que o
ao mesmo tempo para os nervos que sentimento de medo incita a fugir, o da
servem para mexer as pernas na fuga, audácia a querer combater e assim por
causam eles um outro movimento na diante 5 2.
mesma glândula por meio do qual a
alma sente e percebe tal fuga, que Art. 41. Qual é o poder da alma com
dessa forma pode ser excitada no respeito ao corpo.
corpo pela simples disposição dos ór­
gãos e sem que a alma para tanto Mas a vontade é, por natureza, de
contribua. 51 Tal constatação, comenta Lívio Teixeira, “mos­
tra o caráter aleatório e não científico das paixões,
Art. 39. Como a mesma causa pode mas permite ao mesmo tempo compreender por que
excitar diversas paixões em diversos o mesmo fato produz efeitos diferentes: é que os cé­
homens. rebros não são dispostos do mesmo modo. . . Desse
modo, ainda que não se saiba como o corpo e a
alma se comunicam, pode-se explicar por que o
A mesma impressão que exerce mesmo fato produz efeitos diferentes”. (Op. cit.,
pág. 156.)
50 Comentário da expressão algum movimento dos 52 A “paixão” aparece, assim, como testemunho
espíritos (art. 27 e 29). O que significa “movimento exemplar da união íntima entre alma e corpo. Na
particular dos espíritos”? l.° que esse movimento medida em que produzem esta acomodação espon­
dos espíritos não é comumente fortuito; 2.° que não tânea é que “as paixões são todas boas” (art. 211).
é produzido pela variação da figura do movimento Cf. a definição das paixões dada no Tratado do
(como nas sensações ou “sentimentos”), mas pela Homem: “Movimentos. . . que servem para dispor
variação da quantidade de movimento com respeito o coração e o fígado, bem como todos os outros ór­
à normal. Do ponto de vista psicofisiológico, pode- gãos dos quais pode depender o temperamento do
se definir a “paixão” como emoção da alma ligada sangue e em seguida o dos espíritos, de tal sorte que
a um automatismo circular de auto-reforçamento os espíritos que nascem então estejam aptos a cau­
capaz de múltiplos condicionamentos. sar os movimentos exteriores que devem seguir”.;
AS PAIXÕES DA ALMA 243

tal modo livre que nunca pode ser outros, excitando, por esse meio, um
compelida; e, das duas espécies de movimento particular na glândula, que
pensamentos que distingui na alma, representa à alma o mesmo objeto e
das quais uns são suas ações, isto é, lhe faz saber que se trata daquele do
suas vontades, e os outros as suas pai­ qual queria lembrar-se.
xões, tomando-se esta palavra em sua
significação mais geral, que com­ Art. 43. Como a alma pode imaginar,
preende todas as espécies de percep­ estar atenta e mover o corpo.
ções, os primeiros estão absolutamente
em seu poder e só indiretamente o Assim, quando se quer imaginar
corpo pode modificá-los, assim como, algo que nunca se viu, essa vontade
ao contrário, os últimos dependem tem o poder de levar a glândula a
absolutamente das ações que os produ­ mover-se da maneira necessária para
zem, e a alma só pode modificá-los impelir os espíritos aos poros do cére­
. indiretamente, exceto quando ela pró­ bro por cuja abertura essa coisa pode
pria é sua causa53. E toda a ação da ser representada; assim, quando se pre­
alma consiste em que, simplesmente tende fixar a atenção para considerar
por querer alguma coisa, leva a peque­ por algum tempo um mesmo objeto, tal
na glândula, à qual está estreitamente vontade retém a glândula, durante esse
unida, a mover-se da maneira neces­ tempo, inclinada para um mesmo lado;
sária a fim de produzir o efeito que se assim, enfim, quando se quer andar ou
relaciona com esta Vontade. mover o próprio corpo de alguma
Art. 42. Como encontramos em nossa maneira, essa vontade faz com que a
memória as coisas de que nos quere­ glândula impila os espíritos para os
mos lembrar. músculos que servem para tal efeito.

Assim, quando a alma quer lem- Art. 44. Que cada vontade é natural­
brar-se de algo, essa vontade faz com mente unida a algum movimento da
que a glândula, inclinando-se sucessi­ glândula; mas que, por engenho ou por
vamente para diversos lados, impila os hábito, se pode uni-la a outros.
espíritos para diversos lugares do cére­
bro, até que encontrem aquele onde Todavia, nem sempre é a vontade de
estão os traços deixados pelo objeto de provocar em nós algum movimento ou
que queremos nos lembrar; pois esses algum outro efeito que pode levar-nos
traços não são outra coisa senão os a excitá-lo; mas isso muda conforme a
poros do cérebro, por onde os espíritos natureza ou o hábito tenham diversa­
tomaram anteriormente seu curso devi­ mente unido cada movimento da glân­
do à presença desse objeto, e àdquiri- dula a cada pensamento 5 4. Assim, por
ram, assim, maior facilidade que os
outros, para serem de novo abertos da 54 Nossa vontade não pode excitar quaisquer
movimentos em nós. Certos movimentos, reflexos
mesma maneira pelos espíritos que ou mecanismos adquiridos só podem ser executados
para eles se dirigem; de sorte que tais por ocasião de outros movimentos voluntários. A
espíritos, encontrando esses poros, en­ alma ignora como se efetuam esses movimentos que
são executáveis apenas mediatamente: “Esta incli­
tram neles mais facilmente do que nos nação da vontade é seguida pelo curso dos espíritos
nos nervos, e de tudo o que é requerido para o movi­
53 “Se existe algo absolutamente em nosso poder, mento, o que ocorre por causa da disposição conve­
são os nossos pensamentos, a saber, aqueles que niente do corpo, de que a alma pode realmente não
provêm da vontade e do livre arbítrio.” (Cartas, a ter de modo algum conhecimento. . .” (Cartas, a
Mersenne, 3 de dezembro de 1640.) Arnauld, 29 de julho de 1648.)
244 DESCARTES

exemplo, se se quer dispor os olhos mos rejeitar. Assim, para.excitarmos


para olhar um objeto muito distan­ em nós a audácia e suprimirmos o
ciado, essa vontade faz com que a pu­ medo, não basta ter a vontade de fazê-
pila se dilate; e se se quer dispô-los a lo, mas é preciso aplicar-nos a conside­
olhar um objeto muito próximo, essa rar as razões, os objetos ou os exem­
vontade faz com que a pupila se con­ plos que persuadem de que o perigo
traia; mas se se pensa apenas em alar­ não é grande; de que há sempre mais
gar a pupila, em vão teremos tal vonta­ segurança na defesa do que na fuga; de
de, pois nem por isso conseguiremos que teremos a glória e a alegria de
alargá-la, já que a natureza não uniu o havermos vencido, ao passo que não
movimento da glândula que serve para podemos esperar da fuga senão o pesar
impelir os espíritos ao nervo óptico da e a vergonha de termos fugido, e coisas
maneira necessária a dilatar ou a con­ semelhantes.
trair a pupila com a vontade de dilátar Art. 46. Qual é a razão que impede a
ou contrair, mas antes com a de olhar alma de dispor inteiramente de suas
objetos afastados ou próximos. E paixões.
quando, ao falar, pensamos apenas no
sentido do que queremos dizer, isto faz Há uma razão particular que impe­
com que mexamos a língua e os lábios de a alma de poder alterar ou estancar
muito mais rapidamente e muito me­ rapidamente suas paixões, a qual me
lhor do que se pensássemos em mexê- deu motivo de pôr mais acima, em sua
los de todas as formas necessárias para definição, que elas não são apenas cau­
proferir as mesmas palavras, dado que sadas, mas também mantidas e fortale­
o hábito que adquirimos de aprender a cidas por algum movimento particular
falar fez com que juntássemos a ação dos espíritos5 6. Esta razão é que elas
da alma, que, por intermédio da glân­ são quase todas acompanhadas de al­
dula, pode mover a língua e os lábios, guma emoção que se produz no cora­
mais com a significação das palavras ção, e, por conseguinte, também em
que resultam desses movimentos do todo o sangue e nos espíritos, de modo
que com os próprios movimentos. que, enquanto essa emoção não cessar,
elas continuam presentes em nosso
Art. 45. Qual é o poder da alma com pensamento da mesma maneira que os
respeito às suas paixões 5 5. objetos sensíveis aí permanecem pre­
sentes, enquanto agem contra os ór­
Nossas paixões também não podem gãos de nossos sentidos. E como a
ser diretamente excitadas nem suprimi­ alma, tornando-se muito atenta a qual­
das pela ação de nossa vontade, mas quer outra coisa, pode impedir-se de
podem sê-lo, indiretamente, pela repre­ ouvir um pequeno ruído ou de sentir
sentação das coisas que costumam uma pequena dor, mas não pode impe­
estar unidas às paixões que queremos dir-se, do mesmo modo, de ouvir o tro­
ter, e que são contrárias às que quere- vão ou de sentir o fogo que queima a

55 A possibilidade de ligar artificialmente certos 5 6 A vontade não pode vencer o automatismo cir­
automatismos a certos atos voluntários constituirá cular que está unido à paixão; neste caso, ela só
a base de um tratamento racional das paixões: pode reter os gestos aos quais a paixão me dispõe.
pode-se modificar a paixão mudando a represen­ Neste “esforço último” Lívio Teixeira vê “o último
tação da coisa a ela unida. reduto da vontade”. (Op. cit., pág. 158.)
AS PAIXÕES DA ALMA 245

mão, assim pode sobrepujar facilmente pode ser advertido em nós que repugne
as paixões menores, mas não as mais a nossa razão; de modo que não há
violentas e as mais fortes, a não ser de­ nisso outro combate exceto que, como
pois que se apaziguou a emoção do a pequena glândula que fica no meio
sangue e dos espíritos. O máximo que do cérebro pode ser impelida, de um
pode fazer a vontade, enquanto essa lado, pela alma, e, de outro, pelos espí­
emoção está em vigor, é não consentir ritos animais, que são apenas corpos,
em seus efeitos e reter muitos dos como já disse acima, acontece às vezes
movimentos aos quais ela dispõe o que .esses dois impulsos sejam contrá­
corpo. Por exemplo, se a cólera faz rios e que o mais forte impeça o efeito
levantar a mão para bater, a vontade do outro. Ora, podemos distinguir
pode comumente retê-la; se o medo in­ duas espécies de movimentos excitados
cita as pessoas a fugir, a vontade pode pelos espíritos na glândula: uns repre­
detê-las, e assim por diante. sentam à alma os objetos que movem
os sentidos, ou as impressões que se
Art. 47. Em que consistem os comba­ encontram no cérebro e não efetuam
tes que se costuma imaginar entre a qualquer esforço sobre a vontade; ou­
parte inferior e a superior da alma. tros efetuam algum esforço sobre ela, a
saber, os que causam as paixões ou os
E tão-somente na repugnância que movimentos dos corpos que as acom­
existe entre os movimentos que o panham; e, quanto aos primeiros, em­
corpo por seus espíritos e a alma por bora impeçam amiúde as ações da
sua vontade tendem a excitar ao alma, ou sejam impedidos por ela,
mesmo tempo na glândula é que con­ todavia, por não serem diretamente
sistem todos os combates que se costu­ contrários, não se verifica neles ne­
ma imaginar entre a parte inferior da nhum combate. Só os observamos
alma, denominada sensitiva, e a supe­ entre os últimos e as vontades que lhes
rior, que é racional, ou então entre os repugnam: por exemplo, entre o esfor­
apetites naturais e a vontade; pois não ço com que os espíritos impelem a
há em nós senão uma alma, e esta glândula a causar na alma o desejo de
alma não tem em si nenhuma diversi­ alguma coisa e aquele com que a alma
dade de partes5 7 : a mesma que é sensi­ a repele, pela vontade que tem de fugir
tiva é racional e todos os seus apetites da mesma coisa; e o que faz principal­
são suas vontades. O erro que se come­ mente surgir esse combate é que, não
teu em fazê-la desempenhar diversas tendo a vontade o poder de excitar
personagens que são comumente con­ diretamente as paixões, como já foi
trárias umas às outras' provém apenas dito, é obrigada a usar de engenho e
de não se haver distinguido bem suas aplicar-se a considerar sucessivamente
funções das do corpo, ao qual unica­ diversas coisas, das quais, se acontece
mente se deve atribuir tudo quanto que uma tenha a força de modificar
% por um momento o curso dos espíritos,
57 A representação precedente da relação entre a pode acontecer que a seguinte não a
vontade e as paixões apresenta a vantagem de con­
firmar a unidade da alma contra os que querem tenha e que os espíritos retomem o
dividi-la em faculdades; a doutrina dos espíritos curso logo depois, porque a disposição
animais confirma que o irracional no homem, não é
imputável às almas inferiores (vegetativa e sensiti­ precedente nos nervos, no coração e no
va), mas ao corpo. sangue não mudou, o que leva a alma a
246 DESCARTES

sentir-se impelida quase ao mesmo mas se deixa arrastar continuamente


tempo a desejar e a não desejar uma pelas paixões presentes, as quais,
mesma coisa; e daí é que se teve oca­ sendo muitas vezes contrárias umas às
sião de imaginar nela duas potências outras, a puxam, ora umas, ora outras,
que se combatem. Todavia, ainda se para seu partido e, empregando-a para
pode conceber algum combate, pelo combater contra si mesma, põem a
fato de muitas vezes a mesma causa alma no estado mais deplorável possí­
que excita na alma alguma paixão vel. Assim, quando o medo representa
excitar também certos movimentos no a morte como um extremo mal, que só
corpo, para os quais a alma em nada pode ser evitado pela fuga, se a ambi­
contribui, e os quais detém ou procura ção, de outro lado, representa a infâ­
deter tão logo os apercebe, como senti­ mia dessa fuga como um mal pior que
mos quando aquilo que excita o medo a morte, essas duas paixões agitam
faz também com que os espíritos en­ diversamente a vontade, que, obede­
trem nos músculos que servem para cendo ora a uma, ora a outra, se opõe
mexer as pernas na fuga, e com que continuamente a si própria, e assim
sejam sustados pela vontade que temos torna a alma escrava e infeliz.
de ser audazes.
Art. 48. Em que se conhece a força ou Art. 49. Que a força da alma não
a fraqueza das almas, e qual é o mal basta sem o conhecimento da verdade.
das mais fracas 5*8.
Na verdade, há pouquíssimos ho­
Ora, é pela sorte desses combates mens tão fracos e irresolutos que nada
que cada qual pode conhecer a força queiram senão o que suas paixões lhes
ou a fraqueza de sua alma; pois aque­ ditam. A maioria tem juízos determi­
les em quem a vontade pode, natural­ nados, segundo os quais regula parte
mente, com maior facilidade, vencer as de suas ações; e, embora muitas vezes
paixões e sustar os movimentos do tais juízos sejam falsos e fundados
corpo que os acompanham têm, sem mesmo em algumas paixões pelas
dúvida, as almas mais fortes; mas há quais a vontade se deixou anterior­
os que não podem comprovar a pró­ mente vencer ou seduzir, todavia,
pria força porque nunca levam a com­ como ela continua seguindo-os quando
bate a sua vontade juntamente com a paixão que os causou está ausente,
suas armas próprias, mas apenas com podemos considerá-los como suas
as que lhes fornecem algumas paixões armas próprias, e pensar que as almas
para resistir a algumas outras. O que são mais fortes ou mais fracas em vir­
denomino as armas próprias são juízos tude de poderem seguir mais ou menos
firmes e determinados sobre o conheci­ esses juízos e resistir às paixões pre­
mento do bem e do mal, consoante os sentes que lhes são contrárias59. Mas
quais ela resolveu conduzir as ações de há, entretanto, grande diferença entre
sua vida; e as almas mais fracas de as resoluções que procedem de alguma
todas são aquelas cuja vontade não se falsa opinião e as que se apoiam tão-
decide assim a seguir certos juízos,
59 Cf. terceira parte do Discurso: “Quando não
5 8 Outra vantagem: a possibilidade de distinguir as está em nosso poder discernir as opiniões mais
atitudes com respeito às paixões. As almas fortes verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis” (se­
dominam suas paixões por meio da só vontade gunda máxima da moral “provisória”). Ora, ver-se-
esclarecida. As almas mais fracas abandonam sua á que, no art. 170, Descartes prefere os juízos “cer­
vontade como presa das paixões contrárias que as tos e determinados”, embora errôneos, à
agitam. irresolução.
AS PAIXÕES DA ALMA 247

somente no conhecimento da verdade; alimento que comemos com apetite, a


visto que, se seguirmos as últimas, surpresa do achado pode mudar dé tal
estamos certos de não ter jamais do forma a disposição do cérebro que, em
que nos lamentar nem arrepender, ao seguida, não possamos mais ver esse
passo que o teremos sempre, se seguir­ alimento exceto com horror, ao passo
mos as primeiras, quando lhes 'desco­ que até então o comíamos com prazer.
brimos o erro 60. E pode-se notar a mesma coisa nos
animais; pois, embora não possuam a
Art. 50. Que não existe alma tão fraca menor razão, nem talvez61 nenhum
que não possa, sendo bem conduzida, pensamento, todos os movimentos dos
adquirir poder absoluto sobre as suas espíritos e da glândula que provocam
paixões. em nós as paixões não deixam de exis­
tir neles também e servem-lhes para
E é útil aqui lembrar que, como já
manter e fortalecer, não como em nós,
foi dito mais acima, embora cada
as paixões62, mas os movimentos dos
movimento da glândula pareça ter sido nervos e dos músculos que costumam
unido pela natureza a cada um de nos­ acompanhá-las. Assim, quando um
sos pensamentos desde o começo de cão vê uma perdiz, é naturalmente le­
nossa vida, é possível todavia juntá-los vado a correr em sua direção, e, quan­
a outros por hábito, assim como a do ouve um tiro de um fuzil, tal ruído o
experiência mostra nas palavras que incita naturalmente a fugir; mas, não
excitam movimentos na glândula, os obstante, adestram-se comumente de
quais, segundo a instituição da nature­ tal maneira os cães perdigueiros que a
za, representam à alma apenas os seus vista de uma perdiz os leva a deter-se e
sons, quando proferidas pela voz, ou a o ruído que ouvem depois, quando
figura de suas letras, quando escritas, e alguém atira à perdiz, os leva a correr
que, não obstante, pelo hábito adqui­ para ela. Ora, essas coisas são úteis de
rido em pensar no que significam saber para encorajar cada um de nós a
quando ouvimos o som delas, ou aprender a observar suas paixões; pois,
então, quando vemos suas letras, cos­ dado que se pode, com um pouco de
tumam fazer conceber mais essa signi­ engenho, mudar os movimentos do cé­
ficação do que a figura de suas letras, rebro nos animais desprovidos de
ou então o som de suas sílabas. Ê útil razão, é evidente que se pode fazê-lo
também saber que, embora os movi­ melhor ainda nos homens, e que
mentos, tanto da glândula como dos mesmo aqueles que possuem as almas
espíritos e do cérebro, que representam mais fracas poderiam adquirir um
à alma certos objetos sejam natural­ império absoluto sobre todas as suas
mente unidos aos que provocam nela paixões, se empregassem bastante en­
certas paixões, podem todavia, por há­ genho em domá-las e conduzi-las.
bito, ser separados destes e unidos a
outros muito diferentes, e, mesmo, que 61 Por que “talvez”? Sem dúvida, como nota Mme
esse hábito pode ser adquirido por uma Rodis-Lewis, porque a hipótese dos animais-má-
quinas “beneficia-se somente do máximo de proba­
única ação e não requer longa prática. bilidade”.
Assim, quando encontramos inopina- 62 Os animais não têm paixões, visto que a paixão
damente uma coisa muito suja num é um fenômeno especificamente psicofísico: eles só
possuem reflexos. Mas, como se podem condicionar
60 Unicamente a vontade de fazer o melhor possí­ os reflexos, a foriiori poder-se-á, por meio da razão,
vel não basta, portanto, se ela não tende ao menos a modificar o efeito das paixões. Cumpre observar
ser esclarecida pela razão. Ainda aqui verifica-se que não se trata aqui de uma terapêutica das pai­
quão distanciado está Descartes do voluntarismo xões: estas não são de modo algum fenômenos pato­
cego. lógicos. Cf. Lívio Teixeira, op. cit., pág. 219.
SEGUNDA PARTE

DO NÚMERO E DA ORDEM DAS PAIXÕES


E A EXPLICAÇÃO DAS SEIS PRIMITIVAS63

63 Plano desta parte:


Arts. 5 1-52: pesquisa de um critério para a enumeração das paixões;
53-69: enumeração das paixões;
70-137: estudo das paixões primitivas;
138-148: conclusões morais.
251

Art. 51. Quais as primeiras causas das Art. 52. Qual o seu emprego e como
paixões. podemos enumerá-las.

Já se sabe, pelo que se disse mais Observo, além disso, que os objetos
acima6 4, que a última e mais próxima que movem os nossos sentidos não
causa das paixões da alma não é outra provocam em nós diversas paixões de­
senão a agitação com que os espíritos vido a todas as diversidad.es que exis­
movem a pequena glândula situada no tem neles, mas somente devido às
meio do cérebro. Mas isso não basta diversas formas pelas quais nos podem
para podermos distingui-las umas das prejudicar ou beneficiar, ou então, em
outras; é mister procurar suas fontes e geral, ser importantes; e que o emprego
examinar suas primeiras causas; ora, de todas as paixões consiste apenas no
ainda que possam algumas vezes ser fato de disporem a alma a querer coi­
causadas pela ação da alma, que se sas que a natureza dita serem úteis a
determina a conceber estes ou aqueles nós, e a persistir nessa vontade, assim
objetos, e também pelo exclusivo tem­ como a mesma agitação dos espíritos
peramento do corpo ou pelas impres­ que costuma causá-las dispõe o corpo
sões que se encontram fortuitamente aos movimentos que servem à execu­
no cérebro, como acontece quando nos ção dessas coisas; eis por que, a fim de
sentimos tristes ou alegres sem que enumerá-las, cumpre apenas examinar,
possamos dizer o motivo 6 5, parece, no por ordem, de quantas maneiras dife­
entanto, pelo que foi dito, que todas rentes que nos importam 6 7 podem os
elas podem também ser excitadas pelos nossos sentidos ser movidos por seus
objetos que afetam os sentidos e que objetos; e farei aqui a enumeração de
tais objetos são suas causas mais co­
muns e principais; daí se segue que, 67 “. . . dita serem úteis a nós”: sobre o alcance
desta doutrina, cf. Col. com Burman. “É possível
para encontrar todas, basta considerar que, se um médico permitisse a seus doentes os ali­
todos os efeitos desses objetos 6 6. mentos e as bebidas que estes reclamam amiúde, a
saúde deles se restabelecesse bem melhor do que
com essas drogas que dão náusea. . . em tais casos,
6 4 No art. 34. a natureza chega a restabelecer-se sozinha: ela tem
6 5 Distinção das três causas possíveis da agitação perfeita consciência, interiormente, de seu estado, e
dos espíritos. o conhece bem melhor que um médico, que só vê o
6 6 Não são as diferenças entre os objetos, mas exterior.” “. . . que nos importam”: palavras essen­
entre os efeitos que podem produzir em nós que ser­ ciais; segundo Lívio Teixeira (op. cit., pág. 164) e
virão de base para a classificação. “Descartes diz Guéroult (op. cit., II, pág. 253), atestam que não se
que se devem considerar todos os efeitos dos objetos tratará de uma notação estritamente fisiológica das
exteriores sobre nós, o que entendemos incluir tanto paixões (é o programa que Mesnard atribui a
o estudo dos fenômenos fisiológicos como dos Descartes), mas que a ordem da enumeração obede­
psicológicos, que é realmente o que ele vai fazer.” cerá ao critério da prática e da conveniência
(Lívio Teixeira, op cit., pág. 162.) biológicas.
252 DESCARTES

todas as principais paixões, segundo a admiremos. E podemos assim nos esti­


ordem pela qual podem ser encontra­ mar ou nos desprezar a nós próprios;
das. daí provêm as paixões e, em seguida,
os hábitos 69 de magnanimidade ou de
orgulho e de humildade ou de baixeza.
A ORDEM E A ENUMERAÇÃO
DAS PAIXÕES Art. 55. A veneração e o desdém.

Mas, quando estimamos ou despre­


Art. 53. A admiração. zamos outros objetos que conside­
ramos como causas livres, capazes de
Quando o primeiro contato com fazer o bem ou o mal, da estima proce­
algum objeto nos surpreende, e quando de a veneração, e do simples desprezo,
nós o julgamos novo, ou muito dife­ o desdém.
rente do que até então conhecíamos ou
do que supúnhamos que deveria ser,
Art. 56. O amor e o ódio.
isso nos leva a admirá-lo e a nos
espantarmos com ele; e, como isso Ora, todas as paixões precedentes
pode acontecer antes de sabermos de podem ser excitadas em nós sem que
algum modo se esse objeto nos é percebamos de modo algum se o obje­
conveniente ou não 68, parece-me que a to que os provoca é bom ou mau70.
admiração é a primeira de todas as
Mas, quando uma coisa se nos apre­
paixões; e ela não tem contrário, por­
senta como boa em relação a nós, isto
quanto, se o objeto que se apresenta
é, como nos sendo conveniente, isso
nada tem em si que nos surpreenda,
nos leva a ter amor por ela; e, quando
não somos de maneira nenhuma afeta­
se nos apresenta como má ou nociva,
dos por ele e nós o consideramos sem
isso nos incita ao ódio.
paixão.
Art. 57. O desejo.
Art. 54. A estima ou o desprezo, a
generosidade ou o orgulho, e a humil­
Da mesma consideração do bem e
dade ou a baixeza.
do mal nascem todas as outras pai­
xões; mas, a fim de colocá-las por
À admiração está unida a estima ou
o desprezo, conforme seja a grandeza
de um objeto, ou sua pequenez que 69 Cf. Cartas, a Elisabeth, de 15 de setembro de
1645: “Tem-se razão de dizer na Escola que as vir­
tudes são hábitos”. “Os antigos denominavam habi-
68 Frase que proporciona a Mesnard o ensejo para tus qualidades de um gênero à parte, que são essen­
uma resposta à objeção anterior: como com­ cialmente disposições estáveis que aperfeiçoam na
preender esta frase, se a ordem da enumeração é a linha de sua natureza o sujeito em que se acham. A
da. conveniência biológica? Por que não situou Des­ saúde, a beleza, são hábitos do corpo. . . outros há­
cartes em primeiro lugar as paixões em que o san­ bitos têm como sujeito as faculdades da alma: tais
gue desempenha papel considerável (como a “ale­ como as virtudes intelectuais e morais. Adquirimos
gria”, que ele denomina “a primeira das paixões” na esta última espécie de hábito através do exercício e
carta a Chanut, de l.° de fevereiro de 1647)? Mme do costume; mas nem por isso se deve confundir o
Rodis-Lewis replica: “Isso não significa que a habitus com o hábito na acepção moderna do
admiração não tenha nenhuma importância vital”. termo, isto é, com o vezo mecânico e a rotina.”
(Descartes, Ed. Minuit, págs. 208-35.) O centro do (Maritain, Art et Scolaslique, pág. 18.)
debate reside na concepção da “união-da-alma- 70 São, portanto, todas derivadas da admiração.
com-o-corpo”: Guéroult não a substantivou em Agora, as paixões que vão ser descritas serão todas
excesso? E não terá ele concedido demasiada baseadas na representação do bem e do mal “com
importância ao “biológico” em Descartes? respeito a nós”.
AS PAIXÕES DA ALMA 253

ordem, distingo os tempos 71 e, consi­ ção, que nos dispõe a deliberar e tomar
derando que elas nos levam a olhar o conselho. À última opõe-se a coragem
futuro muito mais do que o presente, ou a ousadia, de que a emulação cons­
ou o passado, começo pelo desejo. titui uma espécie. E a covardia é con­
Pois, não somente quando se deseja trária à coragem, tal como o medo ou
adquirir um bem que ainda não se pos­ o pavor à ousadia.
sui, ou evitar um mal que se julga pas­
sível de sobrevir, mas também quando Art. 60. O remorso.
se deseja apenas a conservação de um
bem ou a ausência de um mal, que é E, se estamos determinados a algu­
tudo aquilo a que essa paixão pode ma ação, antes que seja suprimida a
estender-se, é evidente que ela encara irresolução, isso engendra o remorso
sempre o futuro. de consciência, o qual não considera o
tempo vindouro, como as paixões
Art. 58. A esperança, o temor, o precedentes, mas o presente ou o
ciúme, a segurança e o desespero. passado.

Basta pensar que a aquisição de um Art. 61. A alegria e a tristeza.


bem ou a fuga de um mal é possível
para sermos incitados a desejá-la. Mas, E a consideração do bem presente
quando consideramos, além disso, se excita em nós a alegria, a do mal, a
há muita ou pouca probabilidade de se tristeza, quando é um bem ou um mal
obter o que se deseja, aquilo que nos que nos é representado como nosso.
representa haver muita excita em nós a
esperança, e aquilo que nos representa Art. 62. A zombaria, a inveja, a pie­
haver pouca excita o temor, de que o dade.
ciúme constitui uma espécie. Quando a
esperança é extrema, muda de natureza Mas, quando nos é representado
e chama-se segurança-ou confiança, como pertencente a outros homens,
assim como, ao contrário, o extremo podemos considerá-los dignos ou in­
temor torna-se desespero. dignos disso; e, quando os conside­
ramos dignos, isso não provoca em nós
Art. 59. A irresolução, a coragem, a outra paixão além da alegria, posto
ousadia, a emulação, a covardia e o que para nós é algum bem ver que as
pavor. coisas acontecem como devem. Há
apenas a diferença de que a alegria
E podemos assim esperar e temer, procedente do bem é séria, ao passo
ainda que a realização do que aguarda­ que a procedente do mal é acompa­
mos não dependa de modo algum de nhada de riso e zombaria. Mas, se nós
nós; mas, quando nos é representado os considerarmos indignos deles, o
como dependente, pode haver dificul­ bem excita a inveja, e o mal, a piedade,
dade na escolha dos meios ou na exe­ que são espécies de tristeza. E deve-se
cução. Da primeira deriva a irresolu- notar que as mesmas paixões relacio­
nadas aos bens ou aos males presentes
71 Outro critério: a “distinção dos tempos”. Não podem amiúde referir-se aos que estão
se trata de uma dedução a priori das paixões, como por vir, enquanto a opinião que se tem
em Spinoza, “mas de um esforço como que externo
à natureza profunda das paixões”. (Lívio Teixeira, de que hão de advir os representa
op. cit., pág. 166.) como presentes.
254 DESCARTES

Art. 63. A satisfação de si mesmo e o Art. 68. Por que essa enumeração das
arrependimento. paixões é diferente da comumente
aceita.
Podemos também considerar a Eis a ordem que me parece melhor
causa do bem ou do mal, tanto pre­ para enumerar as paixões. Sei muito
sente como passado. E o bem que foi bem que nisso me afasto da opinião de
feito por nós mesmos nos dá uma satis­ todos os que até agora escreveram
fação interior, que é a mais doce de sobre elas, mas não o faço sem grande
todas as paixões, ao passo que o mal razão. Pois os outros tiram suas
provoca o arrependimento, que é a enumerações do fato de distinguirem
mais amarga. na parte sensitiva da alma dois apeti­
tes, que chamam um concupiscível e o
Art. 64. O favor e o reconhecimento. outro irascível12. E, como não conhe­
ço na alma nenhuma distinção de par­
Mas o bem praticado por outros é tes, o que já disse acima, isto não me
causa de que os tenhamos em favor, parece significar outra coisa senão que
ainda que não seja feito a nós; e, quan­ ela tem duas faculdades, uma de dese­
do o é, ao favor juntamos o reconheci­ jar e a outra de se irritar; e, posto que
mento. ela tem da mesma forma as faculdades
de admirar, amar, esperar, temer e,
Art. 65. A indignação e a cólera. assim, de receber em si cada uma das
outras paixões^ ou de praticar as ações
Do mesmo modo, o mal praticado a que essas paixões a impelem, não
por outros, não se relacionando a nós, vejo por que quiseram relacionar todas
faz somente com que desperte a nossa com a concupiscência ou a cólera.
indignação para com eles; e, quando se Além do que, tal enumeração não
relaciona conosco, suscita também a compreende todas as principais pai­
cólera. xões, como creio que esta o faz. Falo
apenas das principais, porque se pode­
riam ainda distinguir muitas outras
Art. 66. A glória e a vergonha. mais particulares, pois seu número é
indefinido.
Além disso, o bem que existe ou
existiu em nós, quando relacionado Art. 69. Que há somente seis paixões
com a opinião que os outros podem ter primitivas13.
a seu respeito, excita em nós a glória, e
o mal, a vergonha. Mas o número das que são simples e
72 As obras que tratam das paixões, numerosas no
Art. 67. Ofastio, o pesar e a alegria. século XVI, respeitavam ainda quase todas a divi­
são escolástica dos apetites entre o concupiscível e
o irascível (proveniente de Platão, cf. República,
E às vezes a duração do bem provo­ 436 a 441 c). No concupiscível a alma sofre apenas
ca o tédio ou o fastio, ao passo que a a força de atração ou de repulsão do bem e do mal;
no irascível, ela tende a enfrentar a dificuldade. A
do mal diminui a tristeza. Enfim, do distinção entre a alma e o corpo torna caduca esta
bem passado resulta o pesar, que é divisão que Descartes julga arbitrária.
uma espécie de tristeza, e do mal pas­ 73 A enumeração de Descartes é superior, pensa
ele, pelo fato de permitir distinguir as paixões primi­
sado resulta o júbilo, que é uma espé­ tivas. Mas Descartes não nos informa segundo qual
cie de alegria. critério se efetua esta distinção.
AS PAIXÕES DA ALMA 255

primitivas não é muito grande. Pois, Art. 71. Que nesta paixão não ocorre
passando em revista todas as que enu­ qualquer mudança no coração nem no
merei, pode-se facilmente notar que há sangue.
apenas seis que são tais, a saber: a
admiração, o amor, o ódio, o desejo, á E esta paixão tem a particularidade
alegria e a tristeza; e todas as outras de não notarmos de modo algum que
compõem-se de algumas dessas seis, seja acompanhada de qualquer mudan­
ou então são suas espécies 7 4. Por isso, ça no coração e no sangue, como acon­
para que sua multidão não embarace tece com outras paixões. A razão é
que, não tendo nem o bem nem o mal
nossos leitores, tratarei aqui separada­ por objeto, mas só o conhecimento da
mente das seis primitivas; e, em segui­ coisa que se admira, ela não se rela­
da, mostrarei de que forma todas ás ciona ao coração e ao sangue, dos
outras tiram daí sua origem. quais depende todo o bem do corpo,
mas apenas ao cérebro, onde ficam os
Art. 70. Da admiração; sua definição órgãos dos sentidos que servem a esse
e causa. conhecimento.

Art. 72. No que consiste a força da


A admiração é uma súbita surpresa admiração.
da alma, que a leva a considerar com
atenção os objetos que lhe parecem O que não a impede de ter muita
raros e extraordinários. Assim, é cau­ força por causa da surpresa, isto é, da
sada primeiramente pela impressão súbita e inopinada ocorrência da im­
que se tem no cérebro, que representa o pressão que modifica o movimento dos
objeto como raro e, por conseguinte, espíritos, surpresa que é própria e ar­
digno de ser muito considerado; em ticular a esta paixão; de sorte que,
seguida, pelo movimento dos espíritos, quando se encontra em outras, como
que são dispostos por essa impressão a costuma encontrar-se em quase todas e
tender com grande força ao lugar do aumentá-las, é porque a admiração
cérebro onde ela se encontra7 5, a fim está unida a elas. E a sua força depen­
de fortalecê-la e conservá-la aí; como de de duas coisas, a saber, da novidade
também são dispostas por ela a passar e do fato de o movimento que a causa
daí aos músculos destinados a reter os possuir, desde o começo, toda a sua
órgãos dos sentidos na mesma situa­ força. Pois é certo que tal movimento
ção em que se encontram, a fim de que produz mais efeito do que aqueles que,
seja ainda mantida por eles, se por eles sendo de início fracos e só crescendo
foi formada. pouco a pouco, podem ser facilmente
desviados. É certo também que os
74 O art. 149 indicará simplesmente que essas seis objetos dos sentidos que são novos afe­
paixões “são como os gêneros de que todas as ou­ tam o cérebro em certas partes que não
tras constituem as espécies”. Exemplo de recurso a costumam ser afetadas; e, sendo estas
uma implicação dos gêneros e das espécies que Des­
cartes condenara no seu método. (Lívio Teixeira, partes mais tenras ou menos firmes
op. cit., pág. 166.) que as endurecidas por uma agitação
75 Cf. Cartas, a Elisabeth, de maio de 1646. “A
surpresa que ela contém causa os movimentos mais frequente, isso aumenta o efeito dos
rápidos de todos.” movimentos que esses objetos aí pro­
256 DESCARTES

vocam. O que não se julgará incrível, fortalecer e conservar outros nos quais
se se considerar que uma razão aná­ não vale a pena deter-se.
loga faz com que, estando a planta de
nossos pés habituada a um contato Art. 75. Para que serve particular­
bastante rude, devido ao peso do corpo mente a admiração.
que sustenta, sintamos muito pouco
esse contato quando andamos; ao
passo que outro muito menor e mais E pode-se dizer particularmente da
suave, como o das cócegas, nos é admiração que ela é útil porque nos
quase insuportável, por não nos ser leva a aprender e a reter’ em nossa
comum. memória coisas que dantes ignoráva-
mos; pois só admiramos o que nos pa­
rece raro e extraordinário; e coisa al­
Art. 73. O que é o espanto. guma pode parecer-nos assim senão
porque nós a ignorávamos, ou também
E essa surpresa tem tanto poder porque é diferente das coisas que
para levar os espíritos localizados nas conhecíamos; pois é essa diferença que
cavidades do cérebro ao lugar onde nos leva a chamá-la extraordinária.
está a impressão do objeto admirado Ora, ainda que uma coisa que nos era
que, por vezes, impele todos para lá e desconhecida se apresente de novo ao
os deixa de tal modo ocupados em nosso entendimento ou aos nossos sen­
conservar essa impressão que nenhum tidos, não a retemos por isso em nossa
deles passa ao cérebro, nem mesmo se memória, se a idéia que dela temos não
desvia de alguma forma das primeiras for fortalecida em nosso cérebro por
pegadas que seguiu no cérebro: o que alguma paixão, ou pela aplicação de
faz que o corpo inteiro permaneça nosso entendimento, que a nossa von­
imóvel como uma estátua e que só per­ tade determina a uma atenção e refle­
cebamos do objeto a primeira face que xão particulares. E as outras paixões
se apresentou, e por conseguinte não podem servir-nos para notar as coisas
possamos adquirir dele um conheci­ que parecem boas ou más, mas só dis­
mento mais particular. E isso o que se pomos da admiração para as que pare­
chama comumente estar espantado; e cem tão-somente raras. Por _ isso,
o espanto é um excesso de admiração vemos que os que não possuem qual­
que só pode ser mau. quer inclinação natural para essa pai­
xão são ordinariamente muito ignoran­
Art. 74. Para que servem todas as pai­ tes.
xões e no que elas prejudicam.
Art. 76. No que ela pode prejudicar e
Ora, é fácil saber, pelo que foi dito como se pode suprir sua falta e corrigir
acima, que a utilidade de todas as pai­ seu excesso.
xões consiste apenas em fortalecer e
fazer durar na alma pensamentos, os Mas acontece muito mais admirar­
quais é bom que ela conserve, e que mos em demasia e nos espantarmos ao
poderiam facilmente, sem isso, ser perceber coisas que merecem pouca ou
obliterados. Assim como todo o mal nenhuma consideração, do que admi­
que podem causar consiste em fortale­ rarmos demasiado pouco. E isso pode
cer e conservar esses pensamentos subtrair inteiramente ou perverter o
mais do que o necessário, ou então em uso da razão. Daí por que, emboraiseja
AS PAIXÕES DA ALMA 257

bom ter nascido com alguma inclina­ encontramos coisas raras que admira­
ção para esta paixão, porque isso nos mos, mais nos acostumamos a cessar
dispõe para a aquisição das ciências, de admirá-las e a pensar que todas as
devemos todavia esforçar-nos em se­ que podem apresentar-se depois são
guida para nos libertar dela o mais vulgares, todavia, quando é excessiva e
possível 7 6. Pois é fácil suprir a sua nos leva somente a deter a atenção na
falta por uma reflexão e atenção parti­ primeira imagem dos objetos que se
culares, a que a nossa vontade sempre apresentarem, sem adquirir deles outro
pode obrigar nosso entendimento conhecimento, deixa atrás de si um há­
quando julgamos que a coisa que se bito que dispõe a alma a deter-se do
apresenta vale a pena; mas não há mesmo modo em todos os outros obje­
outro remédio para impedir o admirar tos que se apresentem, desde que lhe
excessivo senão adquirir o conheci­ pareçam, por pouco que seja, novos. E
mento de muitas coisas e exercitar-nos é isso que faz durar a moléstia dos que
na consideração de todas as que pos­ são cegamente curiosos 7 7, isto é, que
sam parecer mais raras e mais estra­ procuram as raridades somente para
nhas. admirá-las e hão para conhecê-las:
pois tornam-se pouco a pouco tão
Art. 77. Que não são nem os mais
admirativos, que coisas de importância
estúpidos nem os mais hábeis os mais
nula não são menos capazes de retê-los
propensos à admiração.
do que aquelas cuja pesquisa é mais
útil.
De resto, embora só os embrute-
cidos e estúpidos não- sejam levados
naturalmente à admiração, isto não Art. 79. As definições do amor e do
significa dizer que os mais dotados de ódio 7 8.
espírito sejam os mais inclinados a ela;
mas são principalmente os que, embo­ O amor é uma emoção da alma cau­
ra possuam um senso comum assaz sada pelo movimento dos espíritos que
bom, não têm., todavia, em grande a incita a unir-se voluntariamente aos
conta sua própria suficiência. objetos que lhe parecem convenientes.
E o ódio é uma emoção causada pelos
Art. 78. Que o seu excesso pode espíritos que incita a alma a querer
converter-se em hábito quando se estar separada dos objetos que se lhe
deixa de corrigi-lo. apresentam como nocivos. Eu digo que
tais emoções são causadas pelos espíri­
E, conquanto essa paixão pareça tos a fim de distinguir o amor e o ódio,
diminuir com o uso, pois, quanto mais que são paixões e dependem do corpo,
tanto dos juízos que levam também a
7 6 A admiração pode estar na origem da ciência, alma a se unir voluntariamente às coi­
mas, enquanto paixão, ela nos distancia do exercí­ sas que ela considera boas e a se sepa­
cio da ciência. Encontram-se na correspondência de rar daquelas que considera más como
Descartes muitos ataques contra os amantes de
maravilhas. Por exemplo, a propósito da história de
uma jovem que apresenta todos os dias sobre o
corpo as chagas dos mártires cujas festas são cele­ 7 7 O excesso de uma paixão é uma doença, desde
bradas, escreve: “O bom padre Mersenne é tão que não se tome a palavra no sentido patológico.
curioso e fica tão alegre em ouvir alguma maravilha 78 O autor vai analisar as cinco outras paixões do
que escuta favoravelmente todos os que lhe contam ponto de vista psicológico (arts. 79-96) e depois
uma”. (A Huyghens, 12 de março de 1640.) fisiológico (arts. 96-136).
258 DESCARTES

das emoções que só esses juízos exci­ volência, isto é, unimos-lhe também
tam na alma79. voluntariamente as coisas que cremos
lhe serem convenientes: o que é um dos
Art. 80. O que significa unir-se ou principais efeitos do amor. E se julgar­
separar-se voluntariamente. mos que é um bem possuí-lo ou lhe
estar associado de outra forma que não
De resto, pela palavra voluntaria­ a voluntária, desejamo-lo: o que é tam­
mente, não pretendo falar aqui do bém um dos mais comuns efeitos do
desejo80, que é uma paixão à parte e se amor.
relaciona com o porvir; mas do con­
sentimento pelo qual nos consideramos Art. 82. Como paixões muito diferen­
presentemente unidos com o que ama­ tes combinam na medida em que parti­
mos, de sorte que imaginamos um todo cipam do amor.
do qual pensamos constituir apenas
uma parte, e do qual a coisa amada é a Não é necessário também distinguir
outra. Como, ao contrário, no ódio tantas espécies de amor quantos os
nos consideramos como um todo só diversos objetos que se podem amar;
inteiramente separado da coisa pela pois, por exemplo, embora a paixão
qual se tem aversão. que um ambicioso nutre pela glória,
um avarento pelo dinheiro, um bêbado
Art. 81. Da distinção que se costuma pelo vinho, um bruto pela mulher que
fazer entre o amor de concupiscência e deseja violar, um homem de honra por
o de benevolência. seu amigo ou por sua amante e um
bom pai por seus filhos, sejam muito
Ora, distinguem-se comumente duas diferentes entre si, todavia, por partici­
espécies de amor, uma das quais é cha­ parem do amor, são semelhantes. Mas
mada amor de benevolência, isto é, que os quatro primeiros têm amor apenas
incita a querer o bem para o que se pela posse dos objetos aos quais se re­
ama; a outra é chamada amor de fere sua paixão81, e não o têm pelos
concupiscência, isto é, que leva a dese­ objetos mesmos, pelos quais nutrem
jar a coisa que se ama. Mas me parece somente desejo misturado com outras
que essa distinção considera apenas os paixões particulares, ao passo que o
efeitos do amor, e não a sua essência; amor de um bom pai por seus filhos é
pois, tão logo nos unimos voluntaria­ tão puro que nada deseja deles e não
mente a algum objeto, de qualquer quer possuí-los de outra maneira senão
natureza que seja, temos por ele bene­ como o faz, nem estar unido a eles
mais estreitamente do que já o está;
79 Enquanto paixão, o amor não é apenas a anteci­ mas, considerando-os como outros
pação consciente do bem ao qual desejo estar tantos ele próprio, procura o bem deles
unido: esta antecipação torna-se inseparável de sua
ressonância orgânica. Sobre os sentimentos pura­ como o seu próprio, ou mesmo com
mente intelectuais, cf. art. 147. mais cuidado, porque, representando-
30 O amor, neste sentido, deve ser diferenciado do
desejo (o amor no sentido comum será, ao contrá­
rio, o desejo que nasce do agrado, cf. art. 90). Ele 31 A sexualidade está portanto afastada da essên­
não é a consciência da necessidade que se refere ao cia do amor. Sobre esta ideologia do amor (insepa­
alimento ou ao objeto sexual, mas reveste ao mesmo rável no século XVII do preciosismo) e seU| con­
tempo o amor pela glória, pelo dinheiro, pela pá­ teúdo social, poder-se-á consultar: René Bray, La
tria. . . É em outro nível, como há de indicar o arti­ Préciosité et les Précieux; Octave Nada, Le Senti-
go seguinte, que o amor poderá compor-se com o ment de l’Amour dans 1’Oluvre de Corneille;\Pau\
desejo. Bénichou, Morales du Grand Siècle. I
AS PAIXÕES DA ALMA 259

se formar com eles um todo, do qual país ou nossa cidade, e mesmo por um
nao é a melhor parte, prefere muitas homem particular, quando o estima­
vezes os interesses deles aos próprios e mos mais do que a nós próprios. Ora, a
não teme perder-se para salvá-los. A diferença que existe entre essas três
afeição que as pessoas de honra sen­ espécies de amor aparece principal­
tem por seus amigos é dessa natureza, mente através de seus efeitos; pois,
embora raramente seja tão perfeita; e a posto que em todas nos consideramos
que sentem pela amada participa unidos e juntos à coisa amada, esta­
muito dela, mas também participa um mos sempre prontos a abandonar a
pouco da outra. parte menor do todo que se compõe
com ela para conservar a outra; o que
Art. 83. Da diferença entre a simples faz com que, na simples afeição, se
afeição, a amizade e a devoção82.
prefira sempre a si próprio ao que se
ama e que, ao contrário, na devoção se
Pode-se, parece-me, com melhor prefira de tal modo a coisa amada ao
razão ainda distinguir o amor pela esti­ eu próprio que não se receia morrer
ma que se dedica ao que amamos em para conservá-la. Viram-se muitas
comparação com nós próprios; pois, vezes exemplos disso nos que se expu­
quando estimamos o objeto de nosso seram à morte certa em defesa de seu
amor menos que a nós mesmos, senti­ príncipe ou de sua cidade, e até, algu­
mos por ele simples afeição; quando o mas vezes, de pessoas particulares às
estimamos tal como a nós próprios, quais se haviam devotado.
isso se chama amizade; e, quando o
estimamos mais, a paixão que alimen­ Art. 84. Que não há tantas espécies de
tamos pode ser chamada devoção. ódio como de amor.
Assim, pode-se ter afeição por uma
flor, por um pássaro, por um cavalo; De resto,'ainda que o ódio seja dire­
porém, a não ser que se tenha o espí­ tamente oposto ao amor, não se distin­
rito muito desregrado, não se pode nu­ guem nele todavia tantas espécies, por­
trir amizade senão pelos homens. E que não se nota tanto à diferença que
eles são de tal modo objeto dessa pai­ existe entre os males de que se está
xão, que não há homem tão imperfeito separado voluntariamente como a que
que não se lhe possa dedicar amizade existe entre os bens a que se está unido.
muito perfeita, quando se pensa ser
amado por ele e se tem a alma verda­ Art. 85. Do agrado e do horror.
deiramente nobre e generosa, conforme
o que será explicado mais adiante nos E não encontro senão uma única
artigos 154 e 156. No que concerne à distinção considerável que seja aná­
devoção, seu principal objeto é, sem loga num e noutro. Consiste em que os
dúvida, a soberana Divindade, em rela­ objetos, tanto do amor como do ódio,
ção à qual não podemos deixar de ser podem ser representados à alma pelos
devotos quando a conhecemos como se sentidos exteriores, ou então pelos inte­
deve; mas podemos também sentir riores e por sua própria razão; pois
devoção por nosso príncipe, pelo nosso denominamos comumente bem ou mal
aquilo que nossos sentidos interiores
82 Acerca desse artigo, cf. Cartas, a Chanut, de l.° ou nossa razão nos levam a julgar
de fevereiro de 1647. conveniente ou contrário à nossa natu­
260 DESCARTES

reza; mas denominamos belo ou feio convenientes8 4.” Assim,'nãó se deseja


aquilo que nos é assim representado apenas a presença do bem ausente mas
por nossos sentidos exteriores, princi­ também a conservação do presente, e
palmente pelo da Visão, o qual por si demais a ausência do mal, tanto
só é mais considerado que todos os daquele que já sentem como daquele
outros83; daí nascem duas espécies de que se julga poder ainda colher no
amor, a saber, o que se tem pelas coi­ futuro.
sas boas e o que se tem pelas belas, ao
qual se pode dar o nome de agrado a Art. 87. Que é uma paixão que não
fim de não o confundir com o outro, tem contrário.
nem tampouco com o desejo, a que
muitas vezes se atribui o nome de Sei muito bem que comumente na
amor; e daí nascem, da mesma forma, Escola se opõe a paixão que tende à
duas espécies de ódio, uma das quais procura do bem, a única que se deno­
se relaciona com as coisas más e a mina desejo, àquela que tende à fuga
outra com as feias; e esta última pode do mal, a qual se denomina aversão.
ser chamada horror ou aversão, para Mas, desde que não há qualquer bem
distingui-la da outra. Mas o que há cuja privação não seja um mal, nem
nisto de mais notável é que essas pai­ qualquer mal considerado como coisa
xões de agrado e horror costumam ser positiva cuja privação não seja um
mais violentas que as outras espécies bem, e que, buscando, por exemplo, as
de amor ou de ódio, visto que o que riquezas, foge-se necessariamente da
chega à alma pelos sentidos toca mais pobreza e, ao fugir das doenças, procu-
fortemente do que aquilo que lhe é ra-se a saúde e assim por diante, pare-
representado pela razão, e que, no ce-me que é sempre um mesmo movi­
entanto, elas contêm comumente' mento que leva à busca do bem e
menos verdade; de sorte que, de todas conjuntamente à fuga do mal que lhe é
as paixões, são as que mais enganam e contrário85. Observo nisto apenas a
das quais é preciso mais cuidadosa­ diferença de que o desejo alimentado,
mente se guardar. quando se tende a algum bem, é acom­
panhado de amor e em seguida de
Art. 86. A definição do desejo. esperança e alegria; ao passo que o
mesmo desejo, quando se tende a
A paixão do desejo é uma agitação distanciar-se do mal contrário a esse
da alma causada pelos espíritos que a bem, é acompanhado de ódio, de temor
dispõem a querer para o futuro as coi­
sas que se lhe representam como 8 4 No desejo, síntese do “concupiscível” e do
“irascível”, a emoção só tem sentido com respeito à
volição. Para Spinoza, o desejo (definido como a
83 “O termo belo parece reportar-se mais particu­ idéia do esforço que o corpo existente desenvolve
larmente ao sentido da vista.” (A Mersenne, 18 de para perseverar no ser) não será mais uma paixão,
março de 1630.) O belo e o feio provocam senti­ porém a condição de todas as paixões, pois estas
mentos mais vivos porque são representados sem não passam de elaborações diversas do desejo pela
julgamento à base dos dados sensoriais. Em um ar­ imaginação. Daí uma diferença radical com Des­
tigo dos Etudes Cartésiennes (IX Congrès Int. cartes: a alma encarnada não sofre paixão, ela é
Philo., 1937, Hermann), Victor Basch demonstrou inteiramente paixão — ao mesmo tempo, a paixão,
haver em Descartes os elementos de uma estética não dependendo mais de um substrato psicológico,
sensualista e empirista: “O que comprouver a mais terá mais liberdade aparente em suas construções.
gente poder-se-á chamar o belo”. (A Mersenne, ibi- 85 Não sendo o desejo senão inclinação'para a
dem.) Cabe notar aqui a assimilação do agrado sen- ação, não pode ser modificado pela orientação
sorial ao sentimento do belo. desta.
AS PAIXÕES DA ALMA 261

e tristeza; o que é causa de o julgarem se primeiramente tanta emoção como


contrário a si mesmo. Mas, se se quer se um perigo de morte mui evidente se
considerá-lo quando ele se refere igual oferecesse aos sentidos, o que engendra
e simultaneamente a algum bem para repentinamente a agitação que leva a
procurá-lo e ao mal oposto para evitá- alma a empregar todas as suas forças
lo, pode-se ver mui evidentemente que para evitar um mal tão presente; e é
um e outro constituem apenas uma essa mesma espécie de desejo que se
única paixão. chama comumente de fuga ou aversão.

Art. 88. Quais são as suas diversas Art. 90. Qual é o que nasce do agrado.
espécies.
Ao contrário, o agrado foi particu­
Haveria mais razão de distinguir o larmente instituído pela natureza para
desejo em tantas espécies diversas representar o gozo do que agrada
quão diversos os objetos que se procu­ como o maior de todos os bens perten­
ram; pois,, por exemplo, a curiosidade, centes ao homem, o que faz desejar
que não é senão um'desejo de conhe­ ardentemente esse gozo. É verdade que
cer, difere muito do desejo de glória, e há diversas espécies de agrados e que
este do desejo de vingança, e assim por os desejos daí oriundos não são todos
diante. Mas aqui basta saber que há igualmente poderosos; pois, por exem­
tantos desejos quantas espécies de plo, a beleza das flores nos incita
amor ou de ódio e que os mais conside­ somente a mirá-las, e a dos frutos, a
ráveis e os mais fortes são os que nas­ comê-los8 6. Mas o principal é o prove­
cem do agrado e do horror. niente das perfeições que imaginamos
numa pessoa que pensamos capaz de
Art. 89. Qual é o desejo que nasce do tornar-se outro nós mesmos; pois, com
horror. a diferença do sexo, que a natureza
estabeleceu nos homens bem como nos
animais destituídos de razão, ela esta­
Ora, conquanto seja apenas um beleceu também certas impressões no
mesmo desejo que tende à busca de um cérebro que fazem com que, em certa
bem e à fuga do mal que lhe é contrá­ idade e em certo tempo, nos conside­
rio, assim como já foi dito, o desejo remos como defeituosos e como se não
que nasce do agrado não deixa de ser fôssemos senão a metade de um todo,
muito diferente daquele que nasce do do qual uma pessoa do outro sexo deve
horror; pois este agrado e este horror, constituir a outra metade, de sorte que
que verdadeiramente são contrários, a aquisição dessa metade é confusa­
não são o bem e o mal que servem de mente representada pela natureza
objetos a tais desejos, mas somente como o maior de todos os bens imagi­
duas emoções da alma que a predis­ náveis. E, ainda que se veja muitas pes­
põem a buscar duas coisas muito dife­ soas desse outro sexo, nem por isso se
rentes, a saber: o horror é instituído deseja muitas ao mesmo tempo, posto
pela natureza para representar à alma que a natureza não leva a imaginar que
uma morte súbita e inopinada, de sorte se necessite de mais de uma metade.
que, embora seja às vezes apenas o Mas, quando numa se observa algo
contato de um vermezinho, ou o rumor
de uma folha tremulante, ou a sua 8 6 Reafirmação de uma simples diferença de grau
sombra, que provoque o horror, sente- entre o agrado sensual e o prazer estético.
262 DESCARTES

que agrada mais do que aquilo que se gozo que ela frui do bem que seu
observa ao mesmo tempo nas outras, entendimento lhe representa como
isso determina a alma a sentir somente seu88. E verdade que, enquanto a alma
por ela todo o pendor que a natureza está unida ao corpo, essa alegria inte­
lhe dá para procurar o bem que ela lhe lectual não pode deixar de ser acompa­
representa como o maior que se possa nhada da outra, que é uma paixão;
possuir8 7; e esta inclinação ou este de­ pois, tão logo o nosso entendimento
sejo que nasce assim do agrado leva percebe que possuímos algum bem,
mais comumente o nome de amor do embora este bem possa ser tão dife­
que a paixão de amor acima descrita. rente de tudo quanto pertence ao corpo
Por isso, produz os mais estranhos que não seja de modo algum imaginá­
efeitos e é ele que serve de principal vel, a imaginação não deixa de provo­
matéria aos fazedores de romances e car incontinenti alguma impressão no
aos poetas. cérebro, da qual se segue o movimento
dos espíritos que excita a paixão da
Art. 91. A definição da alegria. alegria.

A alegria é uma agradável emoção Art. 92. A definição da tristeza.


da alma, na qual consiste o gozo que
ela frui do bem que as impressões do A tristeza é um langor desagradável
cérebro lhe representam como seu. no qual consiste a incomodidade que a
Digo que é nessa emoção que consite o alma recebe do mal, ou do defeito que
gozo do bem; pois, com efeito, a alma as impressões do cérebro lhe repre­
não recebe nenhum outro fruto de sentam como lhe pertencendo. E há
todos os bens que possui; e, enquanto também uma tristeza intelectual que
não extrai deles nenhuma alegria, não é a paixão, mas que quase nunca
pode-se dizer que não os desfruta mais deixa de acompanhá-la.
do qué se não os possuísse de modo
algum. Acrescento também que se Art. 93. Quais são as causas dessas
trata do bem que as impressões do cé­ duas paixões.
rebro lhe representam como seu, a fim
de não confundir esta alegria, que é Ora, quando a alegria ou a tristeza
uma paixão, com a alegria puramente intelectual excitam assim aquela que é
intelectual, que chega à alma pela uma paixão, sua causa é assaz eviden­
exclusiva ação da alma, e que se pode te; e vê-se, por suas definições, que a
considerar uma agradável emoção ex­ alegria provém da opinião que se tem
citada em si própria, na qual consiste o de possuir algum bem, e a tristeza da
opinião que se tem de encerrar algum
87 Há, portanto, na origem uma representação mal ou algum defeito. Mas acontece
“confusa” do gozo que incidirá num objeto determi­ amiúde que nos sentimos tristes ou ale­
nado, muitas vezes graças a um processo-de condi­
cionamento. “Quando eu era criança, amava uma gres sem que possamos tão distinta­
menina de minha idade que era um pouco vesga; mente advertir o bem ou o mal que são
motivo pelo qual a impressão que se produzia pela
vista em meu cérebro, quando eu mirava os seus
olhos esgazeados, juntava-se de tal modo à que se 88 Outro exemplo de emoção exclusiva da alma
produzia nele para excitar em mim a paixão do que não merece o nome de “paixão” no sentido
amor, que muito tempo depois, vendo pessoas estrá­ estrito. Mas, por meio da imaginação, esse senti­
bicas, sentia-me mais propenso a amá-las do que a mento puramente intelectual é convertido em pai­
amar outras. . . ” (Cartas, a Chanut, 6 de junho de xão. No plano da união, a distinção entre as dlias
1647.) “alegrias” é, portanto, de direito, e não de fato.
AS PAIXÕES DA ALMA 263

suas causas, a saber, quando este bem Mas a causa de ser a alegria de ordiná­
ou este mal provocam suas impressões rio seguida pelo prazer é que tudo o
no cérebro sem o intermédio da que se chama prazer ou sentimento
alma89, às vezes porque pertencem agradável consiste em que os objetos
apenas ao corpo, e outras vezes tam­ dos sentidos excitam nos nervos algum
bém, ainda que pertençam à alma, por­ movimento que seria capaz de prejudi­
que ela nao os considera como bem ou cá-los se não tivessem bastante força
mal, mas sob outra forma qualquer, para lhe resistir, ou se o corpo não esti­
cuja impressão está unida à do bem e vesse bem disposto; o que provoca
.
do mal no cérebro9091 uma impressão no cérebro, a qual,
sendo instituída pela natureza a fim de
Art. 94. Como essas paixões são exci­ testemunhar esta boa disposição e esta
tadas por bens e males que se referem força, a representa à alma como um
apenas ao corpo, e no que consistem o bem que lhe pertence, na medida em
prazer físico2^ e a dor. que está unida ao corpo, e assim excita
nela a alegria. E quase a mesma razão
Assim, quando gozamos de plena que nos leva a obter naturalmente pra­
saúde e o tempo é mais sereno do que zer em nos sentirmos comovidos por
de costume, sentimos em nós um todas as espécies de paixões, mesmo
contentamento que não provém de com a tristeza e o ódio, quando essas
nenhuma função do entendimento, mas paixões são causadas apenas pelas
somente das impressões que o movi­ estranhas aventuras a cuja represen­
mento dos espíritos provoca no cére­ tação assistimos num teatro93, ou por
bro; e sentimo-nos igualmente tristes outros meios semelhantes, que, não
como quando o corpo está indisposto, podendo nos prejudicar de maneira
embora não saibamos que ele o esteja. alguma, parecem aprazer nossa alma,
Assim, o prazer dos sentidos é seguido tocando-a. E a causa de que a dor pro­
de tão perto pela alegria, e a dor pela duz de ordinário a tristeza é que o sen­
tristeza, que a maioria dos homens não timento chamado dor provém sempre
os distingue de modo algum92. To­ de alguma ação tão violenta que ofen­
davia, diferem tanto que podemos de os nervos; de sorte que, sendo insti­
algumas vezes sofrer dores com alegria tuído pela natureza para significar à
e receber prazeres que desagradam. alma o dano que o corpo recebe por
essa ação, e a sua fraqueza no fato de
89 "Sem o intermédio da alma não significa que não lhe ter podido resistir, representa-
não tenhamos consciência desses estados, porque se lhe um e outro como males que lhe são
assim fosse elas não seriam paixões, mas apenas sempre desagradáveis, exceto quando
que a causa deles não é a idéia de algum bem que
possuímos ou de um mal que nos afeta. A causa causam alguns bens que ela aprecia
deles é um estado puramente fisjológico.” (Lívio mais do que a eles.
Teixeira, op. cit., pág. 174.)
90 Ou então sua causa pode ser uma associação
tornada inconsciente. “Assim, quando somos leva­
dos a amar alguém sem que saibamos a causa, 92 Assim como a alegria intelectual e a “paixão”
podemos crer que isso vem do fato de haver algo na qual ela se insere, cumpre distinguir o bem-estar
nele de semelhante ao que houve em outro objeto fisiológico e a paixão de alegria que ele produz.
que amamos anteriormente, embora não saibamos o 93 O estudo fisiológico começa pela descrição dos
que é.” (Cartas, a Chanut, 6 de junho de 1647.) movimentos corporais observados em cada uma das
91 Em francês chatouillement: prazer proveniente cinco paixões. Cf. Cartas, a Elisabeth, maio de
de cócegas. Traduzimos por “prazer físico” por 1646: “É verdade que tive dificuldade em distinguir
falta de correspondente exato para o termo. (N. dos os que pertencem a cada paixão porque elas nunca
T.) estão sós”.
264 DESCARTES

Art. 95. Como podem também ser em que servem à produção do sangue e
excitados por bens e males que a alma depois dos espíritos; pois, embora
não nota, ainda que lhe pertençam; todas as veias conduzam o sangue que
como são os prazeres que tiramos do elas contêm para o coração, acontece,
aventurar-se ou do lembrar-se do mal no entanto, às vezes, que o de algumas
passado. é impelido para ele com mais força do
que o de outras; e acontece também
Assim, o prazer que sentem muitas que as aberturas por onde entra no
vezes as pessoas jovens em empreender
coração, ou, então, aquelas por onde
coisas difíceis e em expor-se a grandes
sai, são às vezes mais largas ou mais
perigos, embora não esperem daí qual­
apertadas umas que as outras.
quer proveito ou qualquer glória, surge
neles porque o pensamento de que é
difícil aquilo que empreendem provoca Art. 97. As principais experiências
em seus cérebros uma impressão que, que servem para conhecer esses movi­
unida àquela que poderiam formar se mentos no amor.
pensassem que é um bem sentir-se bas­
tante corajoso, bastante feliz, bastante Ora, considerando as diversas alte­
destro ou bastante forte, para se arris­ rações que a experiência mostra em
car a tal ponto, é causa de que obte­ nosso corpo enquanto nossa alma é
nham prazer disso. E o contentamento agitada por diversas paixões, observo
que sentem os velhos quando se lem­ no amor, quando está só, isto é, quan­
bram dos males que sofreram provém do não se acha acompanhado de qual­
de que eles se representam ser um bem quer intensa alegria, ou desejo, ou tris­
o fato de terem podido, apesar de tudo, teza, que o batimento do pulso é igual
subsistir. e muito maior e mais forte que de cos­
tume; que se sente um doce calor no
Art. 96. Quais são os movimentos do peito, e que a digestão dos alimentos se
sangue e dos espíritos que causam as faz mui prontamente no estômago, de
cinco paixões precedentes3 4. modo que essa paixão é útil para a
saúde.
As cinco paixões que comecei a
explicar aqui se acham de tal modo Art. 98. No ódio.
unidas ou opostas umas às outras que
é mais fácil considerá-las todas em Observo, ao contrário, no ódio, que
conjunto do que tratar de cada uma o pulso é desigual e mais fraco, e amiú-
separadamente, assim como se tratou de mais rápido; que se sentem frialda-
da admiração; e diferentemente dessa, des entremescladas de certo calor áspe­
a causa dessas paixões não reside uni­ ro e picante no peito; que o estômago
camente no cérebro, mas também no deixa de cumprir sua função e tende à
coração, no baço, no fígado e em todas vomitar e rejeitar os alimentos ingeri­
as outras partes do corpo, na medida dos, ou ao menos a corrompê-los e a
convertê-los em maus humores.
9 4 Sobre o prazer ambíguo que o espetáculo trá­
gico proporciona, cf. Cartas, a Elisabeth, 6 de outu­ Art. 99. Na alegria. *
bro de 1645. Descartes já escrevia no Compendium
Musicae: “As elegias mesmas e as tragédias nos
agradam tanto mais quanto mais excitam em nós Na alegria, que o pulso é igual e
compaixão e dor. . . ”. mais rápido que de ordinário, mas que
AS PAIXÕES DA ALMA 265

não é tão forte ou tão grande como no vos do sexto par, aos músculos situa­
amor; e que se sente um calor agradá­ dos em torno dos intestinos e do estô­
vel que não fica apenas no peito, mas mago, da forma requerida a levar o
se espalha também por todas as partes suco dos alimentos, que se converteu
externas do corpo, com o sangue que em sangue novo, a passar prontamente
para lá aflui em abundância; e que no ao coração sem se deter no fígado, e,
entanto se perde às vezes o apetite, sendo aí impelido com mais força do
porque a digestão se faz pior do que de que o é em outras partes do corpo, a
costume. entrar no coração com maior abun­
dância e excitar nele um calor maior,
Art. 100. Na tristeza. por ser mais grosso do que aquele que
já foi rarefeito muitas vezes ao passar e
Na tristeza, que o pulso é fraco e repassar pelo coração; o que o faz en­
lento, e que sentimos em tomo do viar também espíritos ao cérebro cujas
coração como laços, que o apertam, e partes são mais grossas e mais agita­
pedaços de gelo que o gelam e comuni­ das que de ordinário; e esses espíritos,
cam sua frialdade ao resto do corpo; e fortalecendo a impressão que o pri­
que, apesar disso, não se deixa de ter meiro pensamento do objeto amável
por vezes bom apetite e sentir que o nele ocasionou, obrigam a alma a
estômago não deixa de cumprir o seu deter-se nesse pensamento; e é nisso
dever, contanto que não haja ódio mis­ que consiste a paixão do amor.
turado à tristeza.
Art. 103. No ódio.
Art. 101. No desejo.
Ao contrário, no ódio, o primeiro
Enfim, noto, de particular, no dese­ pensamento do objeto que produz
jo, que este agita o coração mais aversão conduz de tal modo os espíri­
violentamente do que quaisquer das tos existentes no cérebro para os mús­
outras paixões, e fornece ao cérebro culos do estômago e dos intestinos que
mais espíritos, os quais, passando daí impedem o suco dos alimentos de se
aos músculos, tornam todos os senti­ misturar com o sangue, apertando
dos mais agudos e todas as partes do todas as aberturas por onde costuma
corpo mais móveis. correr; e condu-los também de tal
modo aos pequenos nervos do baço e
Art. 102. O movimento do sangue e da parte inferior do fígado, onde fica o
dos espíritos no amor3 5. receptáculo da bile, que as partes do
sangue que costumam ser rejeitadas
Essas observações, e muitas outras para esses lugares deles saem e correm,
que seria demasiado longo relacionar, com o sangue que está nos ramos da
deram-me motivo para julgar que, veia cava, para o coração; o que causa
quando o entendimento se representa muitas desigualdades em seu calor,
qualquer objeto de amor, a impressão tanto mais que o sangue proveniente
que tal pensamento efetua no cérebro do baço não se aquece e não se rarefaz
conduz os espíritos animais, pelos ner- senão a custo, e que, ao contrário, o
procedente da parte inferior do fígado,
9 5 Estudo dos fenômenos circulatórios nas paixões onde há sempre fel, se abrasa e dilata
e de suas causas (arts. 102-111). mui rapidamente; daí. se segue que os
266 DESCARTES

espíritos que vão para o cérebro tam­ Art. 106. No desejo.


bém têm partes muito desiguais e
movimentos muito extraordinários; Enfim, a paixão do desejo tem isto
donde resulta que fortalecem nele as de próprio, que a vontade de obter
idéias de ódio que já encontram aí algum bem ou de fugir de algum mal
impressas, e dispõem a alma a pensa­ envia prontamente os espíritos do cére­
mentos cheios de acritude e amargura. bro a todas as partes do corpo capazes
de servir às ações requeridas para tal
Art. 104. Na alegria. efeito, e particularmente ao coração e
às partes que lhe fornecem mais san­
Na alegria não são tanto os nervos gue, a fim de que, recebendo-o em
do baço, do fígado, do estômago óu maior abundância do que de costume,
dos intestinos que atuam, mas os que envie maior quantidade de espíritos ao
existem em todo o resto do corpo, e cérebro, tanto para entreter e fortalecer
particular mente aquele que fica em nele a idéia dessa vontade, como para
torno dos orifícios do coração, o qual, passar daí a todos os órgãos dos senti­
abrindo e alargando tais orifícios, per­ dos e todos os músculos que podem ser
mite ao sangue, que os outros nervos empregados para obter o que se alme­
expulsam das veias para o coração, en­ ja.
trar e sair em maior quantidade que de
costume; e, como o sangue que então Art. 107. Qual é a causa desses movi­
penetra no coração já passou e repas­ mentos no amor9 6.
sou aí muitas vezes, vindo das artérias
para as veias, ele se dilata mui facil­ E do que foi dito acima deduzo as
mente e produz espíritos cujas partes, razões de tudo isso, que há tal ligação
sendo muito iguais e sutis, são próprias entre nossa alma e nosso corpo que,
para formar e fortalecer as impressões uma vez unida uma ação corporal a
do cérebro que dão à alma pensa­ um pensamento, nenhum dos dois pode
mentos alegres e tranquilos. apresentar-se-nos em seguida sem que
o outro também não se apresente:
Art. 105. Na tristeza. como se vê nos que, tomando com
grande aversão qualquer beber agem
Ao contrário, na tristeza, as abertu­ quando doentes, não podem comer ou
ras do coração são fortemente con­ beber depois nada que se aproxime do
traídas pelo pequeno nervo que as mesmo gosto sem sentir de novo a
envolve, e o sangue das veias não é de mesma aversão; e, analogamente, não
modo algum agitado, o que determina podem pensar na aversão que nutrem
que vá muito pouco para o coração; e, pelos remédios sem que o mesmo gosto
no entanto, as passagens por onde o lhes volte ao pensamento. Pois me pa­
suco dos alimentos corre do estômago rece que as primeiras paixões que a
e dos intestinos ao fígado permanecem nossa alma teve, quando começou a
abertas, o que faz com que o apetite estar unida a nosso corpo, se devem a
não diminua, exceto quando o ódio, o
qual muitas vezes está junto à tristeza, 9 6 Acerca dos arts. 107-111, cf. Cartas, a CHanut,
os fecha. 1.° de fevereiro de 1647. i
AS PAIXÕES DA ALMA 267

que algumas vezes o sangue, ou outro . ódio. E se pode ver a olho nu que há no
suco que entrava no coração, era um fígado inúmeras veias ou condutos
alimento mais -conveniente que o bastante largos, por onde o suco dos
comum para nele manter o calor, que é alimentos pode passar da veia porta
o princípio da vida; o que levava a para a veia cava, e daí para o coração,
alma a juntar voluntariamente a si esse sem se deter de modo algum no fígado;
alimento, isto é, a amá-lo, e ao mesmo mas há também uma infinidade de ou­
tempo os espíritos corriam do cérebro tras menores, onde ele pode deter-se, e
para os músculos, que podiam pressio­ que contêm sempre sangue de reserva,
nar ou agitar as partes de onde viera como faz também o baço; sangue esse
ao coração, para fazer que estas lhe que, sendo mais grosseiro do que aque­
enviassem mais; e tais partes eram o le que se acha em outras partes do
estômago e os intestinos, cuja agitação corpo, pode melhor servir de alimento
aumenta o apetite, ou também o fígado ao fogo que há no coração, quando o
e o pulmão, que os músculos do dia­ estômago e os intestinos deixam de Iho
fragma podem pressionar: eis por que fornecer.
desde então esse mesmo movimento
dos espíritos sempre acompanhou a Art. 109. Na alegria.
paixão do amor9 7.
Aconteceu também algumas vezes,
Art. 108. No ódio. no começo de nossa vida, que o sangue
contido nas veias era um alimento bas­
Algumas vezes, ao contrário, chega­ tante conveniente para manter o calor
va ao coração algum suco estranho, do corpo, e que elas o continham em
que não era próprio para manter o ta] quantidade que não havia a necessi­
calor, ou que podia mesmo extingui-lo; dade de buscar qualquer alimento
o que levava os espíritos que subiam alhures; o que excitou na alma a pai­
do coração para o cérebro a provocar xão da alegria e fez, ao mesmo tempo,
na alma a paixão do ódio; e ao mesmo com que os orifícios do coração se
tempo também esses espíritos iam do abrissem mais do que de costume e que
cérebro aos nervos que podiam impelir os espíritos corressem, abundante­
o sangue do baço e das pequenas veias mente, do cérebro, não só para os ner­
do fígado para o coração, a fim de obs- vos que servem para abrir esses orifí­
tar que aí entrasse esse suco nocivo; e, cios, mas também, em geral, para
demais, àqueles que podiam repelir todos os outros que impelem o sangue
esse mesmo suco para os intestinos e das veias para o coração, e impedem
para o estômago, ou também às vezes que a ele venha de novo o do fígado,
obrigar o estômago a vomitá-lo: daí do baço, dos intestinos e do estômago;
resulta que esses mesmos movimentos eis por que esses mesmos movimentos
costumam acompanhar a paixão do acompanham a alegria.
9 7 Existe uma ligação primitiva entre o movimento Art. 110. Na tristeza.
dos espíritos e os estados sinestésicos que resultam
do estado de calor do coração. Durante cada uma
dessas ligações, a alma experimenta pela primeira As vezes, ao contrário, acontece que
vez o sentimento que desencadeará em seguida o
processo de auto-refbrçamento do qual não era o corpo teve falta de alimento, e é o
originariamente senão o simples concomitante. que deve ter feito sentir à alma a sua
268 DESCARTES

primeira tristeza, ao menos a que não suficientemente a causa das diferenças


foi unida ao ódio. Isso mesmo fez tam­ do pulso e de todas as outras proprie­
bém com que os orifícios do coração dades que atribuí mais acima a essas
se estreitassem, porque só recebem paixões, sem que seja necessário que
pouco sangue, e porque uma parte bem eu me detenha para explicá-las mais.
grande desse sangue veio do baço, pois Porém, como só notei em cada uma o
este é como que o último reservatório que se pode observar quando ela está
que serve para fornecê-lo ao coração só, e que serve para conhecer os movi­
quando a ele não vem o suficiente de mentos do sangue e dos espíritos que
outras partes; eis por que os movimen­ as produzem, resta-me ainda tratar de
tos dos espíritos e dos nervos que ser­ muitos sinais exteriores que costumam
vem para estreitar assim os orifícios do acompanhá-las, e que se percebem bem
coração e para levar-lhe sangue do melhor quando muitas se acham mis­
baço acompanham sempre a tristeza. turadas em conjunto, como costumam
estar, do que quando se acham separa­
Art. 111. No desejo. das. Os principais destes signos são as
ações dos olhos e do rosto, as mudan­
Enfim, todos os primeiros desejos ças de cor, os tremores, a languidez, o
que a alma pode ter nutrido, quando desmaio, os risos, as lágrimas, os
recém-juntada ao corpo, consistiram gemidos e os suspiros.
em receber as coisas que lhe eram
convenientes e repelir as que lhe eram Art. 113. Das ações dos olhos e do
nocivas; e foi para estes mesmos efei­ rosto.
tos que os espíritos começaram desde
então a mover todos os músculos e
Não há nenhuma paixão que algu­
todos os órgãos dos sentidos em todas
ma ação particular dos olhos não
as formas que eles podem movê-los;
declare: e isso é tão manifesto em
esta é a causa de que agora, quando a
alma deseja alguma coisa, todo o alguns, que mesmo os criados mais
corpo’se torna mais ágil e mais dis­ estúpidos podem notar nos olhos do
posto a mover-se do que costuma ser amo se este está zangado com eles ou
sem isso. E quando acontece, além do não está. Mas ainda que percebamos
mais, estar o corpo assim disposto, facilmente tais ações dos olhos e saiba­
isso torna os desejos da alma mais for­ mos o que significam, nem por isso é
tes e mais ardentes9899
. fácil descrevê-las, porque cada uma se
compõe de muitas mudanças que ocor­
Art. 112. Quais são os sinais exteriores rem no movimento e na figura do olho,
dessas paixões33. as quais são tão particulares e tão
pequenas que cada uma delas é imper­
O que estabelecí aqui faz entender ceptível separadamente, embora o que
resulta de sua conjunção seja bastante
fácil de reparar. Pode-se dizer quase o
98 Esta embriogenia das paixões é indispensável à mesmo das ações do rosto que também
explicação do mecanismo delas. Do mesmo modo,
no plano da Física do corpo (e não mais da Psicofi- acompanham as paixões; pois, embora
siologia), a Embriologia é necessária para a sejam maiores que as dos olhos, é
compreensão da Fisiologia da nutrição. (Cf. Des- todavia incômodo distingui-las, e são
cription du Corps Humain.)
99 Estudo dos sinais externos que acompanham as tão pouco diferentes que. há homens
paixões: arts. 112-136. que fazem quase a mesma expressão
AS PAIXÕES DA ALMA 269

quando choram que outros quando lhe dá um ar mais ridente e mais


riem. É verdade que existem algumas alegre.
que são assaz notáveis, como as rugas
da fronte, na cólera, e certos movimen- Art. 116. Como a tristeza faz empali­
. tos do nariz e dos lábios na indignação decer.
$e na zombaria, mas não parecem ser
tão naturais quanto voluntárias. E em
A tristeza, ao contrário, estreitando
geral todas as ações, tanto do rosto os orifícios do coração, faz com que o
como dos olhos, podem ser modifi­
sangue corra mais lentamente nas
cadas pela alma, quando, querendo veias e com que, tornando-se mais frio
esconder sua paixão, ela imagina forte­
e mais espesso, tenha necessidade de
mente outra contrária; de sorte que
ocupar nelas menos lugar; de sorte
podemos utilizá-las tanto para dissi­
que, retirando-se das mais largas, que
mular nossas paixões como para decla­
são as mais próximas do coração,
rá-las. abandona as mais afastadas, e, sendo
as do rosto as mais visíveis, isto o faz
Art. 114. Das mudanças de cor. parecer pálido e descarnado, principal­
mente quando a tristeza é grande ou
Não podemos tão facilmente impe- sobrevêm prontamente, como vemos
dir-nos de ruborizar ou empalidecer no pavor, no qual a surpresa aumenta
quando alguma paixão nos dispõe a a ação que aperta o coração.
tanto, porque tais mudanças não de­
pendem dos nervos e dos músculos, Art. 117. Como se ruboriza muitas
como as precedentes, e provêm mais vezes estando-se triste.
imediatamente do coração, o qual se
pode chamar a fonte das paixões, na Mas acontece muitas vezes que não
medida em que prepara o sangue e os empalidecemos estando tristes, e que,
espíritos para produzi-las. Ora, é certo ao contrário, ruborizamos; o que se
que a cor do rosto não vem senão do deve atribuir às paixões que se juntam
sangue, o qual, correndo continua­ à tristeza, a saber, o amor ou o desejo,
mente do coração, através das artérias, e às vezes também o ódio. Pois tais
para todas as veias, e de todas as veias paixões aquecem ou agitam o sangue
para o coração, colore mais ou menos que vem do fígado, dos intestinos e de
o rosto, conforme preencha mais ou outras partes interiores, impelem-no
menos as pequenas veias que se diri­ para o coração, e daí, pela grande arté­
gem à sua superfície. ria, para as veias do rosto, sem que a
tristeza que aperta de um e de outro
Art. 115. Como a alegria faz rubori­ lado os orifícios do coração possa
zar. impedir isso, exceto quando é excessi­
va. Mas, ainda que seja apenas mode­
Assim, a alegria torna a cor mais rada, impede facilmente que o sangue
viva e mais vermelha porque, abrindo assim vindo às veias do rosto desça
as comportas do coração, faz com que para o coração, enquanto o amor, o
o sangue corra mais depressa em todas desejo ou o ódio para ele impelem
as veias e com que, tornando-se mais outro sangue das partes interiores; eis
quente e mais sutil, infle moderada­ por que este sangue, estando detido em
mente todas as partes do rosto, o que torno da face, a torna rubra, e mesmo
270 DESCARTES

mais rubra do que durante a alegria, espíritos ao cérebro que não podem ser
porque a cor do sangue parece tanto daí regularmente conduzidos para os
mais viva quanto corre menos rapida­ músculos.
mente, e também porque assim se pode
reunir mais nas veias da face do que Art. 119. Da languidez.
quando os orifícios do coração estão
mais abertos. Isto transparece princi­ A languidez é uma disposição para
palmente na vergonha, que é composta relaxar e ficar sem movimento, que é
de amor a si próprio e de um desejo pre­ sentida em todos os membros; provém,
mente de evitar a infâmia presente, o tal como o tremor, do fato de não irem
que faz vir o sangue das partes interio­ suficientes espíritos para os nervos,
res para o coração, depois daí, através mas de uma forma diferente; pois a
das artérias, para a face, e com isso causa do tremor é que não os há bas­
uma moderada tristeza que impede tantes no cérebro para obedecerem às
esse sangue de voltar ao coração. O determinações da glândula quando ela
mesmo transparece tão comumente os impele para algum músculo, ao
quando se chora; pois, como direi logo passo que o langor procede do fato de
mais, é o amor unido à tristeza que a glândula não os determinar a ir para
causa a maioria dàs lágrimas; e o alguns músculos de preferência a ou­
mesmo surge na cólera, onde amiúde tros.
um rápido desejo de vingança se mistu­
ra ao amor, ao ódio e à tristeza. Art. 120. Como ela é causada pelo
amor epelo desejo.
Art. 118. Dos tremores.
E a paixão que causa mais comu­
Os tremores têm duas causas diver­ mente este efeito é o amor, unido ao
sas: uma consiste no fato de chegarem desejo de uma coisa cuja aquisição não
às vezes muito poucos espíritos do cé­ se imagina possível no momento pre­
rebro para os nervos, e a outra de às sente; pois o amor ocupa de tal forma
vezes chegarem aí em demasia para a alma em considerar o objeto amado,
poderem fechar bem as pequenas pas­ que emprega todos os espíritos que se
sagens dos músculos que, segundo foi encontram no cérebro em representar-
dito no artigo 11, devem ser fechados lhe a imagem e detém todos os movi­
para determinar os movimentos dos mentos da glândula que não sirvam
membros. A primeira causa aparece na para tal efeito. E cumpre notar, no
tristeza e no medo, assim como quan­ tocante ao desejo, que a propriedade
do trememos de frio, pois estas paixões que lhe atribuí de tornar o corpo mais
podem, da mesma maneira que a frial- móvel só lhe convém quando se imagi­
dade do ar, espessar o sangue de tal na que o objeto desejado é tai que se
forma que não forneça ao cérebro bas­ pode desde esse momento fazer algo
tantes espíritos para enviá-los aos ner­ que sirva para adquiri-lo; pois se, ao
vos. A outra causa aparece amiúde nos contrário, se imagina que é impossível
que desejam ardentemente algo, e nos naquele momento fazer algo de útil
que estão fortemente comovidos pela para isso, toda a agitação do desejo
cólera, como também nos que estão permanece no cérebro, sem passar de
ébrios: pois estas duas paixões, assim modo algum aos nervos, e sendo aí
como o vinho, fazem ir às vezes tantos inteiramente empregada em fortalecer
AS PAIXÕES DA ALMA 271

a idéia do objeto desejado, deixa o meio que ele abafa o fogo, o qual cos­
resto do corpo languescente. tuma manter quando entra no coração
apenas com medida.
Art. 121. Que também pode ser causa­
da por outras paixões. Art. 123. Por que não se desmaia de
tristeza.
Ê verdade que o ódio, a tristeza e
mesmo a alegria também podem cau­ Parece que uma grande tristeza
sar certo langor quando são muito vio­ sobrevinda inopinadamente deve aper­
lentos, porque ocupam inteiramente a tar de tal modo os orifícios do coração
alma em considerar seu objeto, princi­ que pode também extinguir-lhe o fogo;
palmente quando se lhe junta o desejo mas, não obstante, não se observa que
de uma coisa para cuja aquisição em isso aconteça, ou, se acontece, é muito
nada podemos contribuir no momento raramente; a razão disso, creio, é que
presente. Mas, como nos detemos não pode haver no coração tão pouco
muito mais a considerar os objetos que sangue que não baste para manter o
unimos a nós voluntariamente do que calor, quando esses orifícios estão
aqueles de que nos separamos ou quase fechados.
quaisquer outros, e como a languidez
não depende de uma surpresa, mas Art. 124. Do riso.
necessita de algum tempo para se for­
mar, ela se encontra muito mais no O riso consiste em que o sangue que
amor do que em todas as outras procede da cavidade direita do coração
paixões. pela veia arteriosa, inflando de súbito e
repetidas vezes os pulmões, faz com
Art. 122. Do desmaio. que o ar neles contido seja obrigado a
sair daí com impetuosidade pelo gas-
O desmaio não está muito afastado nete, onde forma uma voz inarticulada
da morte, pois se morre quando o fogo e estrepitosa; e tanto os pulmões, ao se
que há no coração se extingue por inflarem, quanto este ar, ao sair, impe­
completo, e só se cai em desmaio lem todos os músculos do diafragma,
quando ele é de tal modo abafado que do peito e da garganta, mediante o que
ainda permanecem alguns restos de movem os do rosto que têm com eles
calor que podem em seguida reacen­ qualquer conexão; e não é mais que
dê-lo. Ora, há muitas indisposições do essa ação do rosto, com essa voz inar­
corpo que nos podem levar assim a ticulada e estrepitosa, que chamamos
tombar em desfalecimento; mas entre riso.
as paixões apenas a extrema alegria,
nota-se, dispõe desse poder; e creio que Art. 125. Por que ele não acompanha
a forma para causar tal efeito é que, as maiores alegrias.
abrindo extraordinariamente os orifí­
cios do coração, o sangue das veias Ora, ainda que pareça ser o riso um
entra nele tão de repente e em tão gran­ dos principais sinais da alegria, essa
de quantidade, que o calor não pode não pode todavia provocá-lo, exceto
rarefazê-lo assaz prontamente para quando é apenas moderada e há algu­
levantar as pequenas peles que fecham ma admiração ou algum ódio mistu­
as entradas dessas veias: é por esse rado com ela: pois verificamos por
272 QESCARTES

experiência que, quando estamos ex­ mão, há sempre algum pequeno motivo
traordinariamente alegres, nunca o de ódio, ou ao menos de admiração. E
motivo dessa alegria nos leva a estou­ aqueles cujo baço não é muito sadio
rar de riso, e não podemos mesmo ser estão sujeitos a ser não só mais tristes,
a ele levados por qualquer outra causa, mas também, por intervalos, mais ale­
exceto quando estamos tristes; e a gres e mais dispostos a rir que os
razão disso é que, nas grandes alegrias, outros: posto que o baço envia duas
o pulmão está sempre tão cheio de san­ espécies de sangue para o coração,
gue que não pode encher-se mais uma muita espessa e grosseira, que
repetidamente. causa a tristeza; a outra muito fluida e
sutil, que causa a alegria. E amiúde,
Art. 126. Quais são as suas principais depois de rir muito, sentimo-nos natu­
causas. ralmente inclinados à tristeza, porque,
estando esgotada a parte mais fluida
E só posso notar duas causas que do sangue do baço, a outra, mais gros­
façam assim subitamente inflar o pul­ seira, segue-a para o coração.
mão. A primeira é a surpresa da admi­
ração, a qual, estando unida à alegria, Art. 127. Qual é sua causa na indigna­
pode abrir tão prontarnente os orifícios ção.
do coração que grande abundância de
sangue, entrando de repente em seu Quanto ao riso que acompanha
lado direito pela veia cava, aí se rare- algumas vezes a indignação, é comu­
faz e, passando daí à veia, arteriosa, mente artificial e fingido; mas, quando
infla os pulmões. A outra é a mistura natural, parece vir da alegria que senti­
de algum líquido que aumenta a rarefa- mos ao verificar que o mal que nos
ção do sangue; e não encontro nada indignou não pode ofender-nos e, com
mais próprio para isso do que a parte isso, que estamos surpresos com a
mais fluida daquele que procede do novidade ou com o encontro inopinado
baço, parte que, sendo impelida para o deste mal; de modo que a alegria, o
coração por alguma ligeira emoção de ódio e a admiração para ele contri­
ódio, ajudada pela surpresa da admira­ buem. Todavia, quero crer que é possí­
ção e misturando-se com o sangue que vel também produzi-lo sem qualquer
vem dos outros lugares do corpo, o alegria, pelo . simples movimento da
qual a alegria faz entrar nele com aversão, que envia sangue do baço ao
abundância, pode levar este sangue a coração, onde é rarefeito e impelido
dilatar-se aí muito mais que de ordiná­ para o pulmão ao qual infla facilmente
rio; da mesma maneira que vemos uma se o encontra, quase vazio; e em geral
porção de outros líquidos se inflarem tudo o que pode inflar subitamente o
de repente, estando sobre o fogo, quan­ pulmão desta maneira causa a ação
do se lança um pouco de vinagre no exterior do riso, exceto quando a tris­
vasilhame em que se acham; pois a teza a transmuda na dos gemidos e dos
mais fluida parte do sangue prove­ gritos que acompanham as lágrimas. A
niente do baço é de natureza seme­ esse propósito, Vives escreveu de si
lhante à do vinagre. A experiência próprio que, estando uma vez muito
também nos mostra que, em tòdas as tempo sem comer, os primeiros boca­
circunstâncias que podem produzir dos que metia na boca o obrigavam a
este riso estrepitoso que vem do pul­ rir; o que podia provir do fato dé seu
AS PAIXÕES DA ALMA 273

pulmão, vazio de sangue devido à falta mais abundantes, desde que não sejam
de alimento, se encher prontamente com isso mais agitados, se convertem
com o primeiro suco que passava do também em água, o que é causa do
estômago para o coração, e que só a suor que surge quando se faz algum
imaginação de comer podia levá-lo, exercício. Mas então os olhos não
antes mesmo que o dos alimentos inge­ suam, porque, durante os exercícios do
ridos aí chegasse. corpo, como a maioria dos espíritos
vai para os músculos que servem para
Art. 128. Da origem das lágrimas. movê-lo, vão menos para os olhos,
através do nervo óptico. E é apenas
Assim como o riso jamais é causado uma e mesma matéria que compõe o
pelas maiores alegrias, também as lá­ sangue, enquanto está nas veias ou nas
grimas nunca provêm de extrema tris­ artérias, e os espíritos quando ele está
teza, mas somente da que é moderada no cérebro, nos nervos ou nos múscu­
e acompanhada, ou seguida, de algum los, e os vapores quando sai em forma
sentimento de amor, ou também de ale­ de ar, e enfim o suor ou as lágrimas
gria. E, para compreender bem a sua quando se espessa em água sobre a
origem, cumpre observar que, embora superfície do corpo ou dos olhos.
saia continuamente uma porção de
vapores de todas as partes de nosso
corpo, não há todavia nenhuma de Art. 130. Como o que causa dor ao
onde saiam tantos como dos olhos, por olho excita-o a chorar.
causa da grandeza dos nervos ópticos
e da multidão de pequenas artérias por E não consigo notar senão duas cau­
onde eles lhes vêm; e que, assim como sas que façam os vapores que saem dos
o suor se compõe apenas de vapores olhos se transmudarem em lágrimas. A
que, saindo das outras partes, se con­
primeira é quando a figura dos poros
vertem em água em suas superfícies,
por onde passam é mudada por qual­
do mesmo modo as lágrimas se tornam
vapores que saem dos olhos. quer acidente que seja: pois isso, retar­
dando o movimento desses vapores e
Art. 129. Da maneira como os vapores modificando sua ordem, pode levá-los
se transmudam em água. a se converterem em água. Assim,
basta que um argueiro caia no olho
para arrancar-lhe algumas lágrimas
Ora, como já escrevi nos Meteoros,
ao explicar de que forma os vapores do porque, excitando neles a dor, altera a
ar se convertem em chuva, que isso disposição de seus poros; de sorte que,
provém do fato de serem mais abun­ tornando-se alguns mais estreitos, as
dantes ou menos agitados que de ordi­ pequenas partes dos vapores passam
nário, assim creio que, quando os que neles menos depressa, e que, em vez de
saem do corpo são muito menos agita­ saírem como antes igualmente distan­
dos que de costume, ainda que não tes umas das outras, e permanecerem
sejam tão abundantes, não deixam de assim separadas, acabam por encon­
se converter em água, o que provoca os trar-se, porque a ordem destes poros
suores frios que procedem algumas está perturbada, mediante o que elas se
vezes da fraqueza, quando se está juntam e assim se convertem em
doente; e creio que, quando são muito lágrimas.
274 DESCARTES

Art. 131. Como se chora de tristeza. Art. 133. Por que choram facilmente
os velhos e as crianças.
A outra causa é a tristeza seguida de
amor ou de alegria, ou em geral de As crianças e os velhos são mais
qualquer causa que leva o coração a inclinados a chorar do que os de meia-
impelir mais sangue pelas artérias. A idade, mas é por razões diversas. Os
tristeza é aí requerida porque, res- velhos choram amiúde de afeição e de
friando todo o sangue, estreita os alegria; pois essas duas paixões unidas
poros dos olhos; mas, como à medida em conjunto enviam muito sangue ao
que os estreita diminui também a coração e daí muitos vapores aos
quantidade de vapores a que devem olhos; e a agitação desses vapores é de
dar passagem, isto basta para produzir tal forma retardada pela frialdade de
lágrimas se a quantidade desses vapo­ suas índoles que se convertem facil­
res não for ao mesmo tempo aumen­ mente em lágrimas, conquanto nenhu­
tada por alguma outra causa; e nada a ma tristeza as precedesse. Porque se al­
aumenta mais do que o sangue enviado guns velhos choram também mui
ao coração, na paixão do amor. Por facilmente por irritação, não é tanto o
isso vemos que os que estão tristes não temperamento de seus corpos mas o de'
derramam continuamente lágrimas, seus espíritos que os dispõe a tanto; e
mas apenas por intervalos, quando isso só acontece aos que são tão fracos
fazem alguma nova reflexão sobre os que se deixam sobrepujar inteiramente
objetos pelos quais têm afeição. por pequenos motivos de dor, medo ou
piedade. O mesmo ocorre com as
Art. 132. Dos gemidos que acompa­ crianças, que não choram quase de ale­
nham as lágrimas. gria, mas muito mais de tristeza,
mesmo quando ela não é acompa­
nhada de amor; pois têm sempre bas­
E então os pulmões também se en­
chem às vezes de repente pela abun­ tante sangue para produzir muitos
vapores, os quais, tendo seu movi­
dância do sangue que entra aí dentro e
que expulsa o ar que costumam conter, mento retardado pela tristeza, se con­
vertem em lágrimas.
o qual, saindo pélo gasnete, engendra
os gemidos e os gritos que costumam
acompanhar as lágrimas; e esses gritos Art. 134. Por que algumas crianças
são comumente mais agudos do que os empalidecem em vez de chorar.
que acompanham o riso, embora sejam
produzidos quase da mesma maneira; Todavia, há algumas que empali­
a razão disso é que os nervos que ser­ decem em vez de chorar quando estão
vem para alargar ou estreitar os órgãos zangadas; o que pode testemunhar
da voz, para torná-la mais grossa, ou haver nelas um juízo e uma coragem
mais aguda, estando unidos aos que extraordinários, a saber, quando isso
abrem os orifícios do coração durante provém do fato de considerarem a
a alegria e os contraem durante a tris­ grandeza do mal e se prepararem para
teza, fazem com que esses órgãos se forte resistência, tal como fazem os
alarguem ou se estreitem ao mesmo que sao mais idosos; mas trata-se mais
tempo. comumente de marca de má índqle, a
AS PAIXÕES DA ALMA 275

saber, quando isto provém do fato de presente, e que não são sempre as mes­
serem propensas ao ódio ou ao medo; mas ações que unimos aos mesmos
pois estas são paixões que diminuem a pensamentos; pois isso basta para dar
matéria das lágrimas, e vê-se, ao a razão de tudo quanto cada um de nós
contrário, que as que choram mui pode advertir de particular em si ou em
facilmente são propensas ao amor e à outrem, no tocante a esta matéria, e
piedade. que não foi ainda explicado1 00. E, por
exemplo, é fácil pensar que as estra­
Art. 135. Dos suspiros. nhas aversões de alguns, que os impe­
dem de suportar o odor das rosas ou a
A causa dos suspiros é muito dife­ presença de um gato, ou coisas seme­
rente da causa das lágrimas, embora lhantes, provêm apenas do fato de
pressuponham, como essas, a tristeza; terem'sido no começo de suas vidas
pois, ao passo que somos incitados a fortemente ofendidos por quaisquer
chorar quando os pulmões estão cheios objetos parecidos, ou então de terem
de sangue, somos incitados a suspirar compartilhado do sentimento de suas
quando se acham quase vazios, e quan­ mães, que se viram por eles ofendidas
do alguma imaginação de esperança quando grávidas; pois é certo que há
ou de alegria abre o orifício da artéria relação entre todos os movimentos da
venosa, que a tristeza estreitara, por­ mãe e os da criança que está em seu
que então, caindo o pouco sangue que ventre, de modo que o que é contrário
resta nos pulmões de repente no lado a uma prejudica a outra. E o odor das
esquerdo do coração por essa artéria rosas pode ter causado grande dor de
venosa, e sendo para aí impelido pelo cabeça a uma criança quando ainda se
desejo de alcançar esta alegria, o qual achava no berço, ou então um gato
agita ao mesmo tempo todos os mús­ pode tê-la amedrontado fortemente,
culos do diafragma e do peito, o ar é sem que ninguém tivesse reparado
impelido prontamente pela boca para nisso ou que em seguida restasse qual­
os pulmões, a fim de preencher neles o quer lembrança, embora a idéia da
lugar deixado por esse sangue; e é isso aversão que tivera então por estas
que se chama suspiro. rosas ou por este gato permaneça
impressa em seu cérebro até o fim da
Art. 136. De onde.provêm os efeitos vida.
das paixões que são particulares a cer­
tos homens. Art. 137. Do uso das cinco paixões
aqui explicadas, na medida em que se
De resto, para suprir aqui em pou­ relacionam ao corpoy 01.
cas palavras tudo quanto se poderia
acrescentar no tocante aos diversos
efeitos ou às diversas causas das pai­ Depois de ter dado as definições do
xões, contentar-me-ei em repetir o
1 00 “Todos os cérebros não se acham dispostos da
princípio em que se apóia tudo o que mesma maneira”, dizia o art. 39. A explicação do
escrevi, a saber, que há tal ligação mecanismo geral das paixões pode ser, pois, com­
entre a nossa alma e o nosso corpo pletada por uma psicologia individual e histórica.
Lívio Teixeira (págs. 179-80) mostra no que as li­
que, quando se uniu uma vez qualquer nhas que seguem antecipam certos temas da psica­
ação corporal com algum pensamento, nálise. Cumpre notar, no entanto, que, em Descar­
tes, a relação de associação se reduz à contigüidade
nenhum ds dois torna a apresentar-se de dois “traços” e que não é expressiva, como em
a nós sem que o outro também esteja Freud.
276 DESCARTES

amor, do ódio, do desejo, da alegria, centam alguma perfeição sem a qual se


da tristeza, e tratado de todos os movi­ pode subsistir.
mentos corporais que as causam ou as
acompanham, só nos resta considerar Art. 138. De seus defeitos e dos meios
aqui o seu uso. No tocante a isso, cum­ de corrigi-los.
pre observar que, segundo o que a
natureza instituiu, elas se relacionam Mas embora este uso das paixões
todas ao corpo e são dadas à alma ape­ seja o mais natural que elas possam ter
nas na medida em que a ele está unida; e embora todos os animais sem razão
de sorte que o seu uso natural é incitar conduzam a sua vida apenas por movi­
a alma a consentir e a contribuir nas mentos corporais semelhantes aos que
ações que podem servir para conservar costumam em nós acompanhá-las, e
o corpo ou para tomá-lo de alguma nas quais elas incitam nossa alma a
forma mais perfeito; e nesse sentido a consentir, no entanto nem sempre tal
tristeza e a alegria são as duas primei­ uso é bom, posto que há muitas coisas
nocivas ao corpo que não causam, no
ras a serem empregadas. Pois a alma
não é imediatamente advertida das coi­ começo, nenhuma tristeza ou que
proporcionam mesmo alegria, e outras
sas que prejudicam o corpo senão pelo que lhe são úteis, ainda que de início
sentimento que tem da dor, o qual pro­ sejam incômodas102. E, além disso,
duz nela primeiramente a paixão da
fazem parecer, quase sempre, tanto os
tristeza, em seguida o ódio pelo que
bens como os males que representam,
provoca esta dor, e em terceiro lugar o bem maiores e mais importantes do
desejo de se livrar dela; do mesmo que são, de modo que nos incitam a
modo, a alma não é imediatamente procurar uns e a fugir de outros com
advertida das coisas úteis ao corpo mais ardor e mais cuidado do que é
senão por uma espécie de prazer físico conveniente103, como vemos também
que, excitando nela a alegria, engendra que os animais são muitas vezes enga­
em seguida o amor por aquilo que se nados por meio de engodos, e que para
crê ser a sua causa, e enfim o desejo de evitar pequenos males precipitam-se
adquirir aquilo que pode fazer com que em outros maiores; eis por que deve­
se continue nesta alegria ou então que mos servir-nos da experiência e da
se goze ainda, depois, de outra seme­ razão para distinguir o bem do mal e
lhante. O que mostra que todas as conhecer seu justo valor, a fim- de não
cinco são muito úteis com respeito ao tomarmos um pelo outro e não nos
corpo, e mesmo que a tristeza antecede entregarmos a nada com excesso.
de alguma forma e é mais necessária
Art. 139. Do uso das mesmas pai­
que a alegria, e o ódio mais que o xões, na medida em que pertencem à
amor, porque importa mais repelir as alma, eprimeiramente do amor.
coisas que prejudicam e podem des­
truir do que adquirir as que acres- O que bastaria se tivéssemos em nós
i01 Última parte: conclusões práticas. Como 102 Primeira reserva: limitação da validade das
devem as paixões contribuir para a harmonia da mensagens vitais como guias da ação.
substância composta? A ordem do estudo será a 103 Segunda reserva: a paixão pode desencadear
seguinte: o das paixões do ponto de vista do corpo uma reação desproporcionada. Sobre este ponto, é
(art. 137); do ponto de vista da alma (art. 139); na possível a comparação com os animais-máquinas,
medida em que nos levam à ação (art. 143). por definição desprovidos de paixões. I
AS PAIXÕES DA ALMA 277

apenas o corpo, ou se este fosse a semos sê-lo ainda mais pelo amor ao
nossa melhor parte; mas, desde que é bem, ao qual é contrário, ao menos
somente a menor, devemos principal­ quando este bem e este mal são bas­
mente considerar as paixões na medida tante conhecidos; pois confesso que o
em que pertencem à alma, em relação ódio ao mal, que só se manifesta pela
' à qual o amor e o ódio provêm dò dor, é necessário com respeito ao
conhecimento1 0 4 e precedem a alegria corpo; mas não falo aqui senão daque­
e a tristeza, exceto quando essas duas le que resulta de um conhecimento
últimas tomam o lugar do conheci­ maís claro, e relaciono-o apenas com a
mento, de que são espécies. E, quando alma. Digo também que nunca existe
este conhecimento é verdadeiro, isto é, sem tristeza, porque, sendo o mal ape­
quando as coisas que ela nos leva a nas uma privação, não pode ser conce­
amar são verdadeiramente boas, e as bido sem algum sujeito real em que
que nos leva a odiar são verdadeira­ exista; e nada há de real que não tenha
mente mâs, o amor é incompara­ em si alguma bondade, de modo que o
velmente melhor do que o ódio; ele não ódio que nos afasta de algum mal afas­
poderia ser demasiado grande e nunca ta-nos, pelo mesmo meio, do bem a
deixa de produzir a alegria. Digo que que está unido1 0 5, e a privação desse
este amor é extremamente'bom porque, bem, sendo representada à nossa alma
unindo a nós verdadeiros bens, nos como um defeito que é seu, excita nela
aperfeiçoa outro tanto. Digo também a tristeza: por exemplo, o ódio que nos
que não poderia ser demasiado grande, distancia dos maus costumes de al­
pois tudo o que o mais excessivo pode guém distancia-nos pelo mesmo meio
fazer é nos unir tão perfeitamente a de sua convivência, na qual pode­
esses bens que o amor que temos parti­ riamos sem isso auferir algum bem
cularmente por nós mesmos não intro­ cuja privação nos irrita. E assim em
duz a aí qualquer distinção, o que creio todos os outros ódios pode-se notar
nunca poderá ser mau; e é necessária­ algum motivo de tristeza.
mente seguido de alegria, porque nos
representa o que amamos como um Art. 141. Do desejo, da alegria e da
bem que nos pertence. tristeza.

Art. 140. Do ódio. Quanto ao desejo, é evidente que,


quando procede de um verdadeiro
O ódio, ao contrário, não pode ser conhecimento, não pode ser mau,
tão pequeno que não prejudique; e desde que não seja excessivo e esse
nunca existe sem tristeza. Digo que conhecimento o regule. Ê evidente
não pode ser demasiado pequeno por­ também que a alegria não pode deixar
que não somos incitados a qualquer de ser boa, nem a tristeza de ser má,
ação pelo ódio ao mal, que não pudés- em relação à alma, porque é na tristeza
que consiste toda incomodidade que a
104 E não mais da sensação física, como no esque­ alma recebe do mal, e é na alegria que
ma precedente (sentimento de dor — paixões de consiste todo gozo do bem que lhe per­
tristeza, ódio, desejo; sentimento de prazer — pai­ tence; de maneira que, se não tivés­
xões de alegria, amor, desejo). Entre as paixões
engendradas pela sensação e as paixões engen­ semos corpo, eu ousaria dizer que não
dradas pelo conhecimento, Descartes assinala duas
diferenças: l.a inversão da ordem no esquema gené­ 0 5 Retomada da equação ontológica entre não-ser
tico; 2.a privilégio do amor sobre o ódio. e mal, ser e bem.
278 DESCARTES

poderiamos nos abandonar demais ao mal, ainda que seja apenas para evitá-
amor e à alegria, nem evitar demais o lo; e, muitas vezes, mesmo uma falsa
ódio e a tristeza; mas os movimentos alegria vale mais que uma tristeza cuja
corporais que o acompanham podem causa é verdadeira. Mas não ouso
ser todos nocivos à saúde, quando são dizer o mesmo do amor em relação ao
muito violentos, e, ao contrário, ser-lhe ódio; pois, quando o ódio é justo, afas-
úteis quando são apenas modera­ ta-nos apenas do objeto que contém o
dos1*0 6. mal de que é bom estar separado, ao
passo que o amor que é injusto nos une
Art. 142. Da alegria e do amor, com­ a coisas que podem prejudicar, ou, ao
parados com a tristeza e o ódio. menos, que não merecem ser tão consi­
deradas por nós como o são, o que nos
De resto, posto que o ódio e a tris­ avilta e nos rebaixa.
teza devem ser rejeitados pela alma,
mesmo quando procedem de verda­ Art. 143. Das mesmas paixões, na
deiro conhecimento, com maior razão medida em que se referem ao dese-
devem sê-lo quando provêm de alguma jo109.
falsa opinião. Mas é de duvidar que o
amor e a alegria sejam bons ou não E é mister notar exatamente que o
quando se acham tãô mal fundados; e que acabo de dizer dessas quatro pai­
parece-me que, se os considerarmos xões só se verifica quando são conside­
precisamente naquilo que são em si radas precisamente em si próprias e
próprios com respeito à alma, podere­ não nos levam a nenhuma ação; pois,
mos'dizer que, embora a alegria seja na medida em que excitam em nós o
menos sólida e o amor menos vanta­ desejo, por cujo intermédio regulam os
joso do que quando possuem um me­ nossos costumes, é certo que todas
lhor fundamento, não deixam de ser aquelas cuja causa é falsa podem
preferíveis à tristeza e ao ódio tão mal prejudicar, e que, ao contrário, todas
fundados1 0 7 : de modo que, nos recon­ aquelas cuja causa é justa podem ser­
tros da vida em que não podemos evi­ vir, e mesmo que, quando são igual­
tar o azar de sermos enganados108, mente mal fundadas, a alegria é comu­
agimos sempre melhor pendendo para mente mais nociva que a tristeza,
as paixões que tendem para o bem do porque esta, infundindo retenção e
que para aquelas que dizem respeito ao receio, predispõe de alguma maneira à
1 0 6 Por estar a alma unida a um corpo, o amor e a prudência, ao passo que a outra torna
alegria, intrinsecamente bons, podem ser excessivos inconsiderados e temerários os que se
e o ódio e a tristeza, intrinsecarríente maus, não lhe abandonam.
devem no entanto ser banidos em absoluto. Vê-se
aqui no que a Moral, enquanto baseada na Psicofi-
siologia, difere de uma Moral de “espíritos puros”. Art. 144. Dos desejos cuja realização
Vê-se também no que é perigoso falar de uma Moral
de Descartes: os preceitos podem diferir segundo as só depende de nós.
condições em que o problema é colocado.
107 Ê a concessão extrema que Descartes pode Mas, dado que essas paixões não
fazer na linha de uma Moral psicofisiológica. Des­
cartes expressará opinião diferente na carta a Elisa-
beth, de 6 de outubro de 1645, na qual a mesma 109 Com essa última rubrica, aparece a Moral
questão é examinada, não mais psicologicamente, própriamente dita. A questão da verdade ou da fal­
porém na perspectiva do bem absoluto. sidade da paixão, que permanecia bastante secun­
1 Q 8 É preciso ainda adquirir a certeza de que o dária nos parágrafos precedentes, passa agcira ao
“verdadeiro conhecimento” é impossível no imedia­ primeiro plano. Daí a oposição entre os arts.1142 e
to. 143. !
AS PAIXÕES DA ALMA 279

podem levar a nenhuma ação, exceto rar com atenção a bondade do que é de
por intermédio do desejo que excitam, desejar.
é particularmente esse desejo que deve­
mos ter o cuidado de regular; e é nisso Art. 145. Dos que não dependem
que consiste a principal utilidade da senão de outras causas, e o que é a
Moral110: ora, como disse há fortuna.
pouco111, esse desejo é sempre bom,
quando segue um verdadeiro conheci­ Quanto às coisas que não dependem
mento, assim não pode deixar de ser de modo algum de nós, por boas que
mau, quando se funda em algum erro. possam ser, jamais devemos desejá-las
E me parece que o erro mais comu­ com paixão11 5, não só porque podem
mente cometido no tocante aos desejos não acontecer, e por isso nos afligir
é o de não distinguirmos suficiente­ tanto mais quanto mais tivermos dese­
mente as coisas que dependem inteira­ jado, mas principalmente porque, ocu­
mente de nós das que não dependem de pando nosso pensamento, elas nos des­
modo algum112: pois, quanto às que viam de dedicar nossa afeição a outras
dependem tão-somente de nós, isto é, coisas cuja aquisição depende de nós.
de nosso livre arbítrio, basta saber que E há dois remédios gerais contra esses
são boas para não poder desejá-las desejos vãos: o primeiro é a generosi­
com demasiado ardor11 3, porque é se­ dade, de que falarei abaixo; o segundo
guir a virtude fazer as coisas boas que é que devemos amiúde refletir sobre a
dependem de nós, e é certo que nunca providência divina, e nos representar
se poderia ter um desejo ardente de­ que é impossível que alguma coisa
mais pela virtude, além de que, não aconteça de maneira diferente da deter­
podendo deixar de lograr o que deseja­ minada desde toda a eternidade por
mos dessa forma, porquanto só de nós esta providência; de sorte que ela é
é que depende, recebemos sempre a como uma fatalidade ou uma necessi­
satisfação que daí esperávamos11 4. dade imutável que cumpre opor à for­
Mas a falta que se costuma cometer tuna para destruí-la como uma quime>
nesse particular nunca é desejar dema­ ra que provém apenas do erro de nosso
siado, mas somente desejar demasiado entendimento116. Pois não podemos
pouco; e o soberano remédio contra desejar senão o que consideramos de
isso é libertar o espírito, tanto quanto uma maneira como possível, e não
possível, de toda espécie de outros podemos considerar possíveis as coisas
desejos menos úteis, e depois procurar que só dependem de nós na medida em
conhecer muito claramente e conside­ que pensamos que dependem da fortu­
na, isto é, que julgamos que possam
110 A Moral não é, portanto, entendida como téc­ acontecer, e que outrora aconteceram
nica de regulamentação deduzida da explicação do outras semelhantes. Ora, essa opinião
fenômeno psicofísiológico, mas como resposta à
pergunta: como devemos regrar a paixão do desejo? baseia-se apenas no fato de não conhe-
Ela aparece como técnica concernente a uma pai­
xão particular.
111 No art. 141. 11 5 Segunda parte da resposta. Cf. Cartas, a Elisa­
11 2 Quanto à retomada por Descartes dessa distin­ beth, maio de 1646.
ção estóica — que permitira responder à questão 11 6 O desconhecimento da concatenação universal
ética —, cf. Cartas, a Elisabeth, 4 de agosto de dos fenômenos provoca não a ilusão do livre arbí­
1645. trio, como em Spinoza, mas a crença na fortuna,
ii3. É a primeira parte da resposta. isto é, numa providência caprichosa cujas decisões
.i.1 4 Nota epicurista: a virtude é concebida como são imprevisíveis em si (e que nada tem a ver com o
um meio a serviço da felicidade. Deus cartesiano).
280 DESCARTES

cermos todas as causas que contri­ sar que, com respeito a nós, nada
buem para cada efeito; pois, quando acontece que não seja necessário e
uma coisa que estimamos depender da como que fatal, de sorte que não pode­
fortuna não ocorre, isso testemunha mos sem erro desejar que aconteça de
que alguma das causas necessárias outra forma11 9. Mas, como a maioria
para produzi-la falhou, e, por conse­ de nossos desejos se estende a coisas
guinte, que era absolutamente impossí­ que não dependem de nós nem todas
vel, e que jamais aconteceu outra de outrem, devemos exatamente distin­
semelhante, isto é, produção da qual guir nelas o que depende apenas de
houvesse faltado também uma causa nós, a fim de estender nosso desejo
semelhante: de modo que, se não tivés­ tão-somente a isso; e quanto ao mais,
semos ignorado isso de antemão, embora devamos considerar sua ocor­
nunca a teríamos considerado como rência inteiramente fatal e imutável, a
possível, nem, por conseguinte, a tería­ fim de que nosso desejo não se ocupe
mos desejado11 7. de modo algum com isso, não devemos
Art. 146. Dos que dependem de nós e deixar de considerar as razões que
de outrem. levam mais ou menos a esperá-la, a fim
de que essas razões sirvam para regu­
Ê mister, portanto, rejeitar inteira­ lar nossas ações120: pois, por exem­
mente a opinião vulgar de que há fora plo, se tivéssemos de tratar de algo em
de nós uma fortuna que faz com que as um lugar onde pudéssemos ir por dois
coisas sobrevenham ou não sobreve­ caminhos diversos, um dos quais cos­
nham, a seu bel-prazer, e saber que tuma ser muito mais seguro do que o
tudo é conduzido pela providência outro, embora talvez o decreto da
divina, cujo decreto eterno é de tal providência seja tal que, se formos
modo infalível e imutável que, exce­ pelo caminho considerado mais segu­
tuando as coisas que este mesmo ro, seremos certamente roubados, e
decreto quis pôr na dependência de que, ao contrário, poderemos passar
nosso livre arbítrio118, devemos pen­ pelo outro sem qualquer perigo, não
devemos por isso ser indiferentes à
11 7 Não é, pois, a ignorância que é condenável, escolha de um ou de outro, nem repou­
mas o fato de julgar possível ou impossível um
acontecimento cuja modalidade (possível ou impos­ sarmos sobre a fatalidade imutável
sível) só poderemos conhecer quando ele for atual. desse decreto; mas a razão quer que
Primado do atual sobre o virtual, definição da
providência como uma causalidade motriz sem fis­ escolhamos o caminho que costuma
suras: vemos que a aproximação com os estóicos ser o mais seguro; e nosso desejo deve
não é apenas literal. Sobre o antiplatonismo e o ser realizado nesse particular quando
antiaristotelismo dos estóicos, cf. V. Goldschmidt,
Système Stoicien, págs. 84-85: “Eles haviam cons­ nós o seguimos, qualquer que seja o
truído um pressuposto metafísico. . . capaz de ali­ mal que daí nos sobrevenha, porque,
cerçar e orientar uma explicação científica do sendo este mal em relação a nós inevi­
mundo, levada até os ínfimos pormenores: pois
nada absolutamente, nem ser nem acontecimento, tável, não temos nenhum motivo de
prescinde de causa ou de fim”. De outro lado, a aspirar a sermos dele isentos, mas
referência ao encadeamento universal, no espírito
do Pórtico, toma inacolhível uma interpretação somente executar da melhor forma o
dessa passagem como afirmação do determinismo
científico. 119 Doutrina estóica da cooperação com o destino.
11 8 Segundo Crisipo e Epicteto, a própria autono­ 120 A afirmação da fatalidade deve apenas nos
mia e a liberdade que temos de usar as coisas impedir de desejar com paixão as coisas que não
conformemente à nossa natureza entram na ordem dependem de nós, mas não excluir os juízos prová­
providencial. veis e nos conduzir ao fatalismo e à indiferença'.
AS PAIXÕES DA ALMA 281

que nosso entendimento pode conhe­ alegria no mais íntimo da alma, emo­
cer, assim como suponho que o execu­ ção que possui tanto poder que a triste­
tamos. E é certo que, quando nos exer­ za, e as lágrimas que a acompanham
citamos em distinguir assim a em nada podem diminuir sua força. E
$ fatalidade da fortuna, habituamo-nos quando lemos aventuras estranhas
facilmente a regrar de tal modo nossos num livro, ou quando as vemos repre­
desejos, na medida em que sua realiza­ sentadas num teatro, isso excita às
ção não depende senão de nós, que eles vezes em nós a tristeza, outras vezes a
podem sempre nos proporcionar intei­ alegria, ou o amor, ou o ódio, e geral­
ra satisfação. mente todas as paixões, segundo a
diversidade dos objetos que se ofere­
Art. 147. Das emoções interiores da cem à nossa imaginação; mas com isso
alma. temos prazer de senti-las erguerem-se
em nós, e esse prazer é uma alegria
Acrescentarei somente mais uma intelectual que pode tanto nascer da
consideração que me parece servir tristeza como de todas as outras
muito para nos impedir de receber paixões.
qualquer incomodidade das paixões;
nosso bem e nosso mal dependem Art. 148. Que o exercício da virtude é
principalmente das emoções interiores um soberano remédio contra as pai­
que são excitadas na alma apenas pela xões.
própria alma, no que diferem dessas
paixões, que dependem sempre de Ora, posto que essas emoções inte­
algum movimento dos espíritos; e, em­ riores nos tocam mais de perto e têm,
bora essas emoções da alma estejam por conseguinte, muito mais poder
muitas vezes unidas às paixões que se sobre nos do que as paixões que se
lhes assemelham, podem amiúde tam­ encontram com elas, e das quais dife­
bém encontrar-se com outras, e mesmo rem, é certo que, contanto que a alma
nascer das que lhe são contrárias121. tenha sempre do que se contentar em
Por exemplo, quando um marido chora seu íntimo, todas as perturbações que
sua mulher morta, que (como acontece vêm de outras partes não dispõem de
às vezes) ele ficaria irritado de vê-la poder algum para prejudicá-la; mas
ressuscitada, pode suceder que seu antes servem para aumentar a sua ale­
coração seja oprimido pela tristeza que gria, pelo fato de, vendo que não pode
nele provocam o aparato dos funerais e ser por eles ofendida, conhecer com
a ausência de uma pessoa a cujo conví­ isso sua própria perfeição. E, para que
vio estava acostumado; e pode suceder a nossa alma tenha assim do que estar
que alguns restos de amor ou de pieda­ contente, precisa apenas seguir estrita­
de que se apresentam à sua imaginação mente a virtude1.22. Pois, quem quer
arranquem verdadeiras lágrimas de
122 A ação moral não resulta, portanto, do conhe­
seus olhos, não obstante sentir secreta cimento do verdadeiro, mas da tendência para o
melhor. Ela se define menos pela espera objetiva do
121 A tranquilidade da alma pode ficar assim bem do que pelo intento de esperá-lo. Essa dissocia­
resguardada pelas emoções da própria alma que ção da sabedoria e da ciência permite, portanto,
podem estar em contradição com as paixões. uma aproximação com a “vontade boa” kantiana.
282 DESCARTES

que haja vivido de tal maneira que sua nunca têm poder suficiente para per­
consciência não possa censurá-lo de turbar a tranquilidade de sua alma.
nunca ter deixado de fazer todas as 123 Guéroult (op. cit., II, 264), assinalando que
esse texto desmente o art. 50, acrescenta: “Pode-se
coisas que julgou serem as melho­ tentar conciliar esses textos concebendo que, no
res123 (que é o que chamo aqui seguir homem que tem consciência de haver agido para o
que ele cria ser o melhor, isto é, virtuosamente, este
a virtude), recebe daí uma satisfação pesar não poderia perturbar a tranquilidade da
alma. Na realidade, Descartes oscila entre duas
tão poderosa para tomá-lo feliz que os posições diferentes sem poder optar definitivamente
mais violentos esforços da paixão por nenhuma delas”.
TERCEIRA PARTE

DAS PAIXÕES PARTICULARES


Art. 149. Da estima e do desprezo. Art. 150. Que essas duas paixões são
apenas espécies de admiração.
Após haver explicado as seis pai­
xões primitivas, que são como os gêne­ Assim, essas duas paixões são ape­
ros de que todas as outras constituem nas espécies de admiração125, pois,
espécies, observarei aqui sucintamente quando não admiramos a grandeza
o que há de particular em cada uma nem a pequenez de um objeto, não lhe
dessas outras, e manterei a mesma damos nem mais nem menos impor­
ordem segundo a qual as enumerei tância do que a razão nos dita que
mais acima1 2 4. As duas primeiras são devemos dar, de forma que o estima­
a estima e o desprezo; pois, embora mos ou o desprezamos então sem pai­
esses nomes signifiquem ordinaria­ xão; e, conquanto muitas vezes a esti­
mente apenas as opiniões desapaixo­ ma seja excitada em nós pelo amor, e o
nadas que se têm do valor de cada desprezo pelo ódio, isso não é univer­
coisa, todavia, dado que dessas opi­ sal e provém apenas do fato de estar­
niões nascem às vezes paixões às quais mos mais ou menos inclinados a consi­
não foram atribuídos nomes particula­ derar a grandeza ou a pequenez de um
res, parece-me que esses possam ser- objeto em virtude de termos mais ou
lhes atribuídos. E a estima, na medida menos afeição por ele.
em que é uma paixão, é uma inclina­ Art. 151. Que podemos estimar-nos ou
ção da alma para representar a si o desprezar-nos a nós próprios.
valor da coisa estimada, inclinação
causada por movimento particular dos Ora, essas duas paixões podem em
espíritos de tal modo conduzidos ao geral referir-se a todas as espécies de
cérebro que fortalecem as impressões objetos; mas são principalmente notá­
que servem para este efeito; como, ao veis quando as referimos a nós mes­
contrário, a paixão do desprezo é uma mos, isto é, quando é nosso próprio
inclinação da alma para considerar a
125 O começo da Terceira Parte leva a com­
baixeza ou a pequenez daquilo que preender melhor o papel e a importância da admira­
despreza, causada pelo movimento dos ção, que havia sido isolada das cinco outras paixões
espíritos que fortalecem a idéia desta primitivas na Segunda Parte. A admiração institui a
pequenez. estima e o desprezo, isto é, as paixões valorizantes
que se apresentam sempre misturadas a outras pai­
xões (amor, ódio), sem se confundirem, no entanto,
124 Nos arts. 53 a 67. com elas.
28.6 DESCARTES

mérito que estimamos ou despreza­ Art. 153. No que consiste a generosi­


mos; e o movimento dos espíritos que dade.
as causa é, então, de tal modo mani­
festo que muda mesmo a expressão, os Assim creio que a verdadeira gene­
gestos, o andar e em geral todas as rosidade, que leva um homem a esti­
ações dos que concebem uma melhor mar-se ao mais alto ponto em que pode
ou pior opinião de si próprios que de legitimamente estimar-se, consiste ape­
ordinário1 2 6. nas, em parte, no fato de conhecer que
nada há que verdadeiramente lhe per­
tença, exceto essa livre disposição de
Art. 152. Por que motivo podemos suas vontades, nem por que deva ser
estimar-nos. louvado ou censurado senão pelo seu
bom ou mau uso130, e, em parte, no
E, como uma das principais partes fato de ele sentir em si próprio uma
da sabedoria é saber de que forma e firme e constante resolução de bem
por que motivo cada qual deve esti­ usá-la, isto é, de nunca carecer de von­
mar-se ou desprezar-se127, procurarei tade para empreender e executar todas
aqui dizer minha opinião1 28. Noto em as coisas que julgue serem as melho­
nós apenas uma coisa que nos possa res131; o que é seguir perfeitamente a
dar a justa razão de nos estimarmos, a virtude.
saber, o uso de nosso livre arbítrio e o
império que temos sobre as nossas Art. 154. Que ela impede que se des­
vontades; pois só pelas ações que preze os outros.
dependem desse livre arbítrio é que
podemos com razão ser louvados ou Os que têm esse conhecimento e sen­
censurados e ele nos faz de alguma timento de si próprios persuadem-se
maneira semelhantes a Deus, tornan­ facilmente de que cada um dos outros
homens também os pode ter de si, por­
do-nos senhores de nós próprios, con­
que nisso nada há que dependa de
tanto que não percamos, por covardia,
outrem132. Daí por que nunca despre­
os direitos que ele nos concede1 29.
zam ninguém; e, embora vejam muitas
12 6 Enquanto passionais, os julgamentos de estima vezes que os outros cometem faltas que
e desprezo exprimem um desvio em relação à nor­ fazem aparecer suas fraquezas, sen­
mal, isto é, ao juízo “que a razão nos dita”. tem-se todavia mais inclinados a des­
12 7 No prefácio dos Princípios, a sabedoria é defi­
nida como o perfeito conhecimento de tudo o que culpá-los do que a censurá-los e a crer
um homem pode saber tanto para a conduta de sua que é mais por falta de conhecimento
vida como para a preservação da saúde e a inven­
ção de todas as artes. A idéia que o homem deve
formular de seu valor é, portanto, uma “das princi­ 13 0 “Sob esse aspecto, a generosidade é o conheci­
pais partes” desse saber. mento da resposta a uma das mais altas questões
12 8 Deve ser comparado com “creio que...” do que a mente humana pode propor-se, a saber: por
art. 153: a especulação ética não nos oferece a segu­ que devemos estimar-nos ou desprezar-nos? E o
rança da ciência. Efetivamente, ver-se-á o quanto a problema dos fins morais.” (Lívio Teixeira, op. cit.,
Moral de Descartes está impregnada de elementos pág. 193.)
ideológicos. 131 Segundo aspecto da generosidade: ela é não só
129 “O livre arbrítrio é por si a coisa mais nobre conhecimento, porém esforço da vontade.
que possa existir em nós, na medida em que nos 132 A generosidade permite o reconhecimento do
torna de algum modo parecidos a Deus e parece nos outro enquanto livre: nessa medida, ela permite a
eximir de lhe ser sujeitos.” (Carts, a Cristina da realização dos atos de generosidade (na acepção
Suécia, 20 de novembro de 1647.) corrente do termo). I
AS PAIXÕES DA ALMA 287

do que por falta de boa vontade que as são naturalmente levados afazer gran­
cometem; e, como não pensam ser des coisas, e todavia a nada empreen­
muito inferiores aos que possuem mais der de que não se sintam capazes; e,
bens ou honras, ou mesmo mais espíri­ como nada estimam mais do que fazer
to, mais saber, mais beleza, ou em bem aos outros homens e desprezar o
geral que os superam em algumas ou­ seu próprio interesse, por esse motivo
tras perfeições, também não se julgam são sempre perfeitamente corteses, afá­
muito acima dos que superam, porque veis e prestativos para com todos. E
todas essas coisas lhes parecem muito com isso são inteiramente senhores de
pouco consideráveis em comparação suas paixões135, particularmente dos
com a boa vontade, pela qual tão-so­ desejos, do ciúme e da inveja, porque
mente eles se apreciam, e que supõem não há coisa cuja aquisição dependa
também existir, ou ao menos poder deles que julguem valer bastante para
existir, em cada um dos outros ho­ ser muito desejada; e do ódio para com
mens 1 3 3. os homens, porque os estimam a todos;
e do medo, porque a confiança que
Art. 155. Em que consiste a humildade depositam na sua própria virtude os
virtuosa. tranquiliza; e enfim da cólera, porque,
apreciando muito pouco todas as coi­
Assim, os mais generosos costumam sas dependentes de outrem, nunca con­
ser os mais humildes; e a humildade cedem tanta vantagem a seus inimigos
virtuosa consiste apenas em que a a ponto de reconhecer que são por eles
reflexão que fazemos sobre a debili­ ofendidos.
dade de nossa natureza e sobre as fal­
tas que podemos ter cometido outrora, Art. 157. Do orgulho.
ou somos capazes de cometer agora,
que não são menores do que as que Todos os que concebem boa opinião
podem ser cometidas por outros, é de si próprios por alguma outra causa,
causa de não nos preferirmos a nin­ qualquer que seja, não têm verdadeira
guém e de pensarmos que os outros, generosidade, mas somente orgulho,
tendo seu livre arbítrio tanto quanto que é sempre muito vicioso, embra o
nós, também podem usá-lo bem. seja tanto mais quanto a causa pela
qual nós nos estimamos for mais injus­
Art. 156. Quais são as propriedades da ta; e a mais injusta de todas é quando
generosidade e como ela serve de remé­ se é orgulhoso sem nenhum motivo;
dio contra todos os desregramentos^3 4 isto é, sem que se pense por isso haver
das paixões. em si qualquer mérito pelo qual se
deva ser estimado, mas só porque não
Os que são generosos dessa forma se faz caso do mérito, e porque, imagi­
133 Ela possibilita também a fundação de uma nando-se que a glória não passa de
Moral universal, isenta de preconceitos de casta ou uma usurpação, crê-se que os que se
de “classe”. Embora a “boa vontade” cartesiana
nada tenha a ver com a “vontade boa” kantiana, atribuem mais glória são os que a têm
vemos surgir, aqui, uma exigência bastante compa­
rável de universalidade ética. 135 A generosidade não extirpa as paixões: é a
13 4 Cumpre distinguir desregramento e excesso reguladora destas. Daí sua importância em Moral,
das paixões, pois o excesso constitui apenas um dos pois a principal utilidade daquela é justamente a
casos do desregramento. “regulação do desejo” (art. 144).
28,8 DESCARTES

mais. Esse vício é tão des arr azo ado e resolutos, e, como se não dispusés­
absurdo, que eu teria dificuldade em semos do uso inteiro de nosso livre
acreditar que existem homens que se arbítrio, de não podermos impedir-
deixam levar por ele, se jamais alguém nos de fazer coisas das quais sabemos
tivesse sido louvado injustamente; mas que nos arrependeremos depois136137; e
a lisonja é tão comum em toda parte também no fato de crermos que não'
que não há homem, por defeituoso que podemos subsistir por nós próprios,
seja, que não se veja muitas vezes esti- nem passar sem muitas coisas cuja
.mado por coisas que não merecem ne­ aquisição depende de outrem. Assim é
nhum louvor, ou mesmo que merecem diretamente oposta à generosidade; e
censura; o que dá ocasião aos mais acontece muitas vezes que os que pos­
ignorantes e aos mais estúpidos de suem o espírito mais baixo são os mais
incidirem nesta espécie de orgulho1 3 6. arrogantes e soberbos, da mesma ma­
neira como os mais generosos são os
Art. 158. Que os seus efeitos são mais- modestos e os mais humildes.
contrários aos da generosidade. Mas, enquanto os que têm o espírito
forte e generoso não mudam de
humor nas prosperidades ou adversi-
Mas, qualquer que seja a causa pela
qual alguém se estima, se for diferente dades que lhes ocorrem, os que o têm
da vontade que se sente em si mesmo débil e abjeto são conduzidos apenas
de usar sempre bem o próprio livre pela fortuna, e a prosperidade não os
arbítrio, da qual eu disse que vem a infla menos que a adversidade os torna
generosidade, ela produz sempre um humildes. Mesmo se vê amiúde que se
orgulho mui censurável, e que é tão rebaixam vergonhosamente perante
diversa dessa verdadeira generosidade aqueles de quem esperam algum pro­
que produz efeitos inteiramente contrá­ veito ou temem algum mal, e que ao
rios; pois todos os outros bens, como o mesmo tempo se elevam insolente­
espírito, a beleza, as riquezas, as hon­ mente acima daqueles de quem não
ras, etc., costumando ser tanto mais esperam nem temem coisa alguma.
apreciados quanto em menos pessoas
Art. 160. Qual é o movimento dos
se encontrem, e sendo mesmo para a
maioria de tal natureza que não podem espíritos nessas paixões.
ser comunicados a muitos, isso leva os
orgulhosos a esforçarem-se por rebai­ De resto, é fácil reconhecer que o
xar todos os outros homens, e, sendo orgulho e a baixeza não são somente
escravos de seus desejos, têm a alma vícios, mas também paixões, porque a
sua emoção aparece fortemente no
incessantemente agitada pelo ódio, in­
veja, ciúme ou cólera. exterior dos que são subitamente infla­
dos ou abatidos por alguma nova
Art. 159. Da humildade viciosa. circunstância; mas é de duvidar que a
generosidade e a humildade, que são
virtudes, possam também ser paixões,
Quanto à baixeza ou humildade
porque seus movimentos aparecem
viciosa, consiste principalmente no
fato de nos sentirmos fracos ou pouco 137 A humildade viciosa engendra o oportunismo e
a frouxidão (o retrato que segue é o do “arrivista”);
136 A generosidade, virtude ética, opõe-se ao orgu­ mas,' fundamentalmente, ela consiste em assumir
lho, produto da adulação social. Esta distinção com complacência a nossa fraqueza e, em caso de
entre o valor moral e os falsos valores sociais é um necessidade, nos desculpar dela. No que já está pró­
dos aspectos mais importantes desta Terceira Parte. xima da “má-fé” no sentido sartriano.
AS PAIXÕES DA ALMA 289

menos, e porque se afigura que a virtu­ que os qué menos se conhecem são os
de não concorda tanto com a paixão mais sujeitos a’se ensoberbecerem e a
como o faz o vício. Todavia, não vejo se humilharem mais do que devem,
razão que impeça que o mesmo movi- porque tudo quanto lhes acontece de
,;mento dos espíritos que serve para for- novo os surpreende e faz com que, atri-
-:talecer um pensamento, quando tem buindo-o a si próprios, se admirem e
um fundamento que é mau, não o que se estimem õu se desprezem, con­
possa fortalecer também, quando o seu forme julguem que o que lhes sucede é
fundamento é justo; e como o orgulho oü não em seu proveito. Mas, como
e a generosidade consistem apenas na. muitas vezes após uma coisa que os
boa opinião que temos de nós próprios, ensoberbeceu sobrevêm outra que os
e só diferem em que esta opinião é humilha, o movimento de suas paixões
injusta num e justa na outra, parece- é variável;-1 ao contrário, nada há na
me que podemos relacioná-los a uma
generosidade que não seja compatível
mesma paixão, que é excitada por um
com a humildade virtuosa, nem aliás
movimento composto pelos da admira­
que as possa mudar, ó que torna seus
ção, da alegria e do amor, tanto do que
movimentos firmes, constantes e sem­
temos por nós próprios como do que pre muito semelhantes a si próprios.
temos pela coisa que leva alguém a se
estimar: como, ao contrário, o movi­ Mas não surgem tão de surpresa, por­
mento que excita a humildade, quer quanto os que se estimam dessa manei­
virtuosa, quer viciosa, é composto dos ra conhecem suficientemente quais são
da admiração, da tristeza e do amor as causas que os fazem estimarem-se;
que se sente por si próprio, misturado todavia, pode-se dizer que essas causas
com o ódio que se nutre pelos próprios são tão maravilhosas (a saber, o poder
defeitos, que fazem com que a gente se de usar nosso livre arbítrio, que nos
despreze; e toda a diferença que obser­ leva a nos apreciarmos a nós mesmos,
vo nesses movimentos é que o da admi­ e as imperfeições do sujeito em quem
ração goza de duas propriedades: a está esse poder, que nos levam a não
primeira, que a surpresa a torna forte nos estimarmos demais) que todas as
desde o começo, e a outra, que é igual vezes que no-las representamos de
em sua continuação, isto é, que os espí­ novo proporcionam sempre nova ad­
ritos continuam movendo-se na mesma miração.
proporção no cérebro. Dessas proprie­
dades a primeira encontra-se bem mais Art. 161. Como pode ser adquirida a
no orgulho e na baixeza do que na generosidade.
generosidade e na humildade virtuosa;
e, ao contrário, a última se nota mais
naquelas do que nessas duas outrasj a É mister notar que o que chamamos
razao disso é que o vício provem comumente virtudes são hábitos da
ordinariamente da ignorância138, e alma que a dispõem a certos pensa­
mentos, de modo que são diferentes
13 8 Como observa Lívio Teixeira, é assaz difícil destes pensamentos, mas podem pro­
encontrar um critério objetivo que possa separar
orgulho e generosidade ( vício e virtude), dado duzi-los e reciprocamente serem por
que nascem do mesmo mecanismo psicofísiológico. eles produzidas. Ê preciso notar tam­
Aparentemente, o critério é puramente fisiológico:
variação ou regularidade no movimento dos espíri­ bém que tais pensamentos podem ser
tos. Na realidade, é de ordem intelectual (conheci­ gerados somente pela alma, mas ocor­
mento ou ignorância que engendra a surpresa). Cf. o
adágio canis peccans est ignorans que. Descartes' re muitas vezes que algum movimento
relembra aMerserin,e (27 de abril de 1637). dos espíritos os fortaleça e, nesse caso,
290 DESCARTES

são ações de virtude e ao mesmo ção bem merece ser observada1 43.
tempo paixões da alma139; assim, em­
bora não haja virtude à qual o bom Art. 162. Da veneração.
nascimento pareça contribuir tanto
como a que nos leva a nos apreciarmos A veneração ou o respeito é umã|
apenas segundo o nosso'justo valor, e inclinação da alma não só para esti-<
ainda que seja fácil crer que todas as mar o objeto que reverencia mas tam­
bém para se lhe submeter com algum
almas postas por Deus em nossos cor­
temor, a fim de procurar tomá-lo favo­
pos não são igualmente nobres e for­ rável; de maneira que só alimentamos
tes1 40 (o que me levou a chamar esta veneração pelas causas livres que jul­
virtude de generosidade1 41, segundo o gamos capazes de nos fazerem bem ou
uso de nossa língua, de preferência a mal, sem que saibamos qual dos dois
magnanimidade, segundo o uso da hão de fazer; pois temos amor e devo­
Escola, onde não é muito conhecida), é ção mais do que simples veneração por
certo, no entanto, que a boa formação aquelas de quem não esperamos senão
muito serve para corrigir os defeitos do o bem e temos ódio por aquelas de
nascimento, e que, se nos ocuparmos quem não esperamos senão o mal; e, se
muitas vezes em considerar o que é. o não julgarmos que a causa deste bem
livre arbítrio e quão grandes são as ou deste mal seja livre, não nos subme­
vantagens advindas do fato de se ter teremos a ela para procurar torná-la
uma firme resolução de usá-lo bem, favorável. Assim, quando os pagãos
assim como, de outro lado, quão inú­ mostravam veneração pelos bosques,
teis e vãos são todos os cuidados que fontes ou montanhas, não eram pro­
afligem os ambiciosos, podemos exci­ priamente essas coisas mortas que
tar em nós a paixão e em seguida reverenciavam, mas as divindades que
adquirir a virtude da generosidade1 42, julgavam presidi-las. E o movimento
dos espíritos que provoca esta paixão
sendo esta como que a chave de todas compõe-se daquele que excita a admi­
as outras virtudes e um remédio geral ração e daquele que excita o medo, de
contra todos os desregramentos das que falarei adiante.
paixões; parece-me que tal considera-
Art. 163. Do desdém.
13 9 Além de seus aspectos intelectual e volitivo, a
generosidade é também uma paixão: a regularidade
do curso dos espíritos que a opõe às paixoes-vícios Do mesmo modo, o que chamo des­
não a subtrai às leis do fenômeno passional. dém é a inclinação da alma para des­
140 “O entendimento de alguns não é tão bom
quanto o de outros”, observa Descartes na dedica­ prezar uma causa livre, julgando a seu
tória dos Princípios e “os que, com vontade cons= respeito que,-embora por sua natureza
tante de bem fazer e cuidado muito particular de se seja capaz de fazer bem ou mal, está,
instraÍT, têm também excelente espírito, alcançam
sem dúvida um grau mais elevado de sabedoria do 1 43 “Não é claro”, pergunta Henri Lefebvre a pro­
que os outros.” (Ibid.) Pode haver ainda diferenças pósito desse texto, “que Descartes se dirige às duas
na “força da alma” evocada nos arts. 36 e 48. classes dominantes do século XVII, a burguesia e o
141 A fim de sublinhar o seu caráter em parte feudalismo? Que lhes propõe um ideal comum que
inato. lhes permitiría a reconciliação?. . . Ideologica­
142 A paixão de generosidade predispõe à virtude mente, essa coexistência momentânea exigiu a
de generosidade, entendida como habitus implan­ determinação de uma figura do homem, aceitável ao
tado na alma. Esta não coincide de pronto com mesmo tempo pela burguesia e pela classe feudal.”
aquela. (Descartes, Ed. Minuit, págs. 249 a 255.). |
AS PAIXÕES DA ALMA 291

no entanto, tão abaixo de nós que não disposição da alma que a'persuade de
nos pode causar nem um nem outro. E que a coisa desejada não advirá; e é de
o movimento dos espíritos que o excita notar que, embora essas duas paixões
é composto dos que provocam a admi­ sejam contrárias, é possível tê-las as
ração, a segurança ou a ousadia. duas juntas, a saber, quando se repre­
sentam ao mesmo .tempo diversas
Art. 164. Do uso dessas duas paixões. razões, das quais umas fazem julgar
que a realização do desejo é fácil e ou­
São a generosidade, a fraqueza do tras a fazem parecer difícil.
espírito ou a baixeza que determinam o
bom e o mau uso dessas duas paixões: Art. 166. Da segurança e do desespero.
pois, quanto mais a alma é nobre e E nunca uma dessas paixões acom­
generosa, tanto maior é a inclinação panha o desejo sem que não deixe
para tributar a cada qual o que lhe algum lugar à outra: pois, quando a
pertence144; e assim não se tem esperança é tão forte que expulsa intei­
somente uma mui profunda humildade ramente o temor, ela muda de natureza
perante Deus, mas também se rende e se chama segurança ou confiança; e,
sem repugnância toda a honra e o res­ quando estamos certos de que aquilo
peito que é devido aos homens, a cada que desejamos advirá embora conti­
um segundo o grau e a autoridade que nuemos a querer que advenha, deixa­
tem no mundo, e desprezam-se apenas mos, no entanto, de ser agitados pela
os vícios. Ao contrário, os que pos­ paixão do desejo, que levava a buscar
suem o espírito baixo e fraco estão com inquietação sua ocorrência; do
sujeitos a pecar por excesso, às vezes mesmo modo, quando o receio é tão
por reverenciarem e temerem coisas extremo que tira todo lugar à esperan­
que são dignas unicamente de despre­ ça, converte-se em desespero; e esse
zo, e outras vezes por desdenharem desespero, representando a coisa como
insolentemente as que mais merecem impossível, ( extingue inteiramente o
respeito; e passam amiúde mui pronta­ desejo, o qual só se dirige às coisas
mente da extrema impiedade à supers­ possíveis.
tição, depois da superstição à impieda­
de, de sorte que não há vício nem Art. 167. Do ciúme.
desregramento de espírito de que não
sejam capazes. O ciúme é uma espécie de temor que
se relaciona ao desejo de conservar a
Art. 165. Da esperança e do temor. posse de algum bem; e não provém
tanto da força das razões que fazem
A esperança é uma disposição da julgar que se pode perdê-lo como da
alma para se persuadir de que advirá o grande estima que se lhe concede, a
que deseja, a qual é causada por um qual leva a examinar até os menores
movimento particular dos espíritos, a motivos de suspeita e a tomá-los por
saber, pelo da alegria e do desejo mis­ razões fortemente consideráveis.
turados em conjunto; e o temor é outra Art. 168. Em que essa paixão pode ser
144 A generosidade, envolvendo uma justa aprecia­
honesta.
ção da liberdade, impede, assim, o desregramento
das paixões que concernem às “causas livres”. . E, porque se deve ter mais cuidado
292 DESCARTES

ém conservar os bens que são muito Art. 170. Da irresolução.


grandes do que os que são menores,
essa paixão pode ser justa e honesta A irresolução também é uma espécie
em certas ocasiões. Assim, por exem­ de receio que, retendo a alma como
plo, um capitão que guarda uma praça suspensa entre várias ações possíveis, é
de grande importância tem o direito de causa de que não execúte nenhuma, e
ser cioso, isto é, de desconfiar de todos assim que disponha de tempo para
os meios pelos quais seria possível escolher antes de se decidir, no que
surpreendê-la; e uma mulher honesta verdadeiramente apresenta certa utili­
não é censurada de ser ciosa de sua dade que é boa; mas, quando dura
honra, isto é, de preservar-se não só de mais do que o necessário, e quando
proceder mal mas também de evitar leva a empregar no deliberar o tempo
até os menores motivos de maledi­ requerido para o agir, é muito má. Ora,
cência. afirmo que é uma espécie de receio,
Art. 169. Em que é censurável. conquanto possa acontecer, quando se
deve escolher entre muitas coisas cuja
Mas rimos de um avarento quando é bondade parece muito igual, que se
ciumento de seu tesouro, isto é, quando permaneça incerto e irresoluto sem que
o come com os olhos e não se afasta se sinta por isso nenhum receio; pois
dele com medo de que Iho roubem; esta espécie de irresolução provém
pois não vale a pena guardar o somente daquilo que se apresenta, e
dinheiro com tanto zelo. E despreza-se não de qualquer emoção dos espíritos;
um homem que sente ciúme de sua eis por que não é uma paixão, a não
mulher, porque isso testemunha que ser que o temor de falhar na escolha
não a ama seriamente e que alimenta aumente a incerteza. Mas este receio é
má opinião de si ou dela: digo que não tão comum e tão forte em alguns que
a ama seriamente; pois, se nutrisse um muitas vezes, embora nada tenham a
verdadeiro amor por ela, não teria a escolher e vejam apenas uma só coisa
menor inclinação para dela desconfiar; a tomar ou a deixar, ele os retém e faz
mas não é a ela que propriamente ama, com que se detenham inutilmente a
mas somente o bem que imagina con­ procurar outras; e então é um excesso
sistir em sua posse exclusiva; e não de irresolução que vem de um desejo
temeria perder este bem, caso não jul­ demasiado grande de bem proceder1 4 6
gasse que é indigno dele ou então que e de uma fraqueza do entendimento, o
sua mulher é infiel1*45. Além disso, qual, não tendo noções claras e distin­
esta paixão relaciona-se apenas a sus­ tas, as tem somente muito confusas: eis
peitas e desconfianças, pois não é por que o remédio contra este excesso
propriamente ser ciumento esforçar-se é o de acostumar-se a formar juízos
por evitar qualquer mal, quando se tem certos e determinados no tocante a
justo motivo de receá-lo. todas as coisas que se apresentem e a
crer que se desempenha sempre o dever
145 Esta condenação do ciúme é, sem dúvida, o
melhor exemplo do recuo da moral aristocrática
(sentimento exacerbado da honra, vaidade social li­ 1 4 6 Cf. o comentário de Lívio Teixeira: “Correr o
gada à posse sexual). Para o generoso, a mulher é risco de errar é não só um mal menor que a irresolu­
uma “causa livre” que só merece que a gente se lhe ção ou a inação mas é condição de todo o bem pos­
apegue na medida em que se lhe reconhece liber­ sível, uma vez que se tenha o homem esforçado para
dade e que se lhe concede confiança. A aproxima­ alcançar os melhores juízos possíveis”. (Op. cit.,
ção com certas análises de Simone de Beauvoir é págs. 205-206.) Cf. Cartas, a Elisabeth, deli.0 de
fácil. setembro de 1645 e de 15 de setembro de 1645.
AS PAIXÕES DA ALMA 293

quando se faz o que se julga ser o jeto da ousadia seja a dificuldade, da


melhor, ainda que talvez se julgue qual resulta comumente o temor ou
muito mal. mesmo o desespero, de modo que é nos
assuntos mais perigosos e mais deses­
Art. 171. Da coragem e da ousadia. perados que mais se emprega ousadia e
coragem, é preciso, não obstante, que
A coragem, quando é uma paixão e se espere ou até que se tenha certeza
não um hábito ou inclinação natu­ que o fim proposto será logrado, para
ral1 47, é certo calor ou agitação que opor-se com vigor às dificuldades com
dispõe a alma a se entregar poderosa­ que nos deparamos. Mas este fim é
mente à execução das coisas que ela diferente desse objeto; pois não se
quer fazer, de qualquer natureza que poderia estar certo e desesperado de
sejam; e a ousadia é uma espécie de uma mesma coisa ao mesmo tempo.
coragem que dispõe a alma à execução Assim, quando os Décios se atiravam
das coisas que são as mais perigosas. ao meio dos inimigos e corriam de
encontro a uma morte certa, o objeto
de sua ousadia era a dificuldade de
Art. 172. Da emulação. conservar-lhes a vida durante essa
ação, dificuldade para a qual dispu­
E a emulação também é uma de nham apenas do desespero, pois esta­
suas espécies, mas em outro sentido; vam certos de morrer; mas seu fim era
pois pode-sfe considerar a coragem animar os soldados com seu exemplo e
como um gênero que se divide em tan­ fazê-los conquistar a vitória, em que
tas espécies quantos os objetos diferen­ depositavam esperança; ou então esse
tes, e tantas outras quantas as suas fim era também conquistar a glória
causas: na primeira forma a ousadia é após a morte, de que estavam segu­
uma de suas espécies, na outra, a emu­ ros1 48.
lação; e esta última não é mais do que
um calor que dispõe a alma a empreen­ Art. 174. Da covardia e do medo.
der coisas”que espera lograr com êxito,
porque as vê já logradas por outros; e A covardia é diretamente oposta à
assim trata-se de uma espécie de cora­ coragem, e é um langor ou uma frieza
gem, cuja causa externa é o exemplo. que impede que a alma se entregue à
Digo causa externa porque deve haver, execução das coisas que efetuaria, se
além desta, outra interna, que consiste fosse isenta dessa paixão; e o medo ou
em se ter o corpo de tal modo disposto o pavor, que é contrário à ousadia, não
que o desejo e a esperança possuam, é apenas uma frieza mas também uma
mais força para enviar grande quanti­ perturbação e um espanto da alma que
dade de sangue ao coração do que o re­ lhe subtrai o poder de resistir aos
ceio ou o desespero para impedi-lo. males que ela pensa estarem próximos.
Art. 173. Como a ousadia depende da Art. 175. Do uso da covardia.
esperança.
Ora, ainda que não possa persua-
Porque é de notar que, embora o ob-
1 48 Cf. o art. 83, sobre a devoção. Alusão aos Dé­
1 4 7 Nova distinção entre a paixão e o hábito cios, heróis da história romana, que se devotaram
homônimo. Cf. Cartas, a Elisabeth, de 6 de outubro aos deuses infernais para obter a vitória numa
de 1645. batalha.
294 DESCARTES

dir-me de que a natureza haja dado aos mau, . abster-nos-íamos de fazê-lo,


homens qualquer paixão que seja sem­ tanto mais que a vontade só se dirige
pre viciosa e não tenha nenhum uso às coisas que possuem alguma aparên­
bom e louvável, todavia é difícil para cia de bondade; e, se tivéssemos certe­
mim adivinhar em que essas duas za de que aquilo que já se fez é mau,
podem servir. Parece-me apenas que a deveriamos sentir arrependimento e
covardia tem certo emprego quando não apenas remorso. Ora, o uso dessa
nos isenta de labores que poderiamos paixão está em se examinar se a coisa
ser incitados a tomar por razões veros­ de que se duvida é boa ou não, ou de se
símeis, se outras razões mais certas, impedir que a façamos outra vez,
que os fizeram julgar inúteis, não hou­ enquanto não estivermos certos de que
vessem provocado esta paixão; pois, seja boa. Mas, porque pressupõe o
além de isentar a alma desses labores, mal, o melhor seria que jamais hou­
também serve então para o corpo, pelo vesse motivo de senti-la; e pode-se pre­
fato de que, retardando o movimento veni-la através dos mesmos meios
dos espíritos, impede a dissipação de pelos quais é possível livrar-se da
suas forças. Mas vulgarmente é muito irresolução.
nociva, porque desvia a vontade das
ações úteis; e, como provém apenas do Art. 178. Da zombaria.
fato de não se ter suficiente esperança
oú desejo, basta aumentar em si pró­ A derrisão ou zombaria é uma espé­
prio essas duas paixões para corrigi-la. cie de alegria mesclada de ódio que
resulta do fato de se perceber algum
Art. 176. Do uso do medo. pequeno mal numa pessoa que julga­
Pelo que concerne ao medo ou ao mos digna dele: temos ódio por esse
pavor, não vejo como possa jamais ser mal e alegria por vê-lo em quem é
louvável e útil; por isso não constitui digno dele; e, quando isto sobrevêm
uma paixão particular, mas somente inopinadamente, a surpresa da admira­
um excesso de covardia, de espanto e ção é causa de cairmos na gargalhada,
de receio, que é sempre vicioso, assim conforme o que já foi dito mais acima
como a ousadia é um excesso de cora­ sobre a natureza do riso. Mas esse mal
gem que é sempre bom, contanto que deve ser pequeno; pois, se for grande,
seja bom o fim que se propõe; e, por­ não se pode crer que quem o tem o
que a principal causa do medo é a sur­ mereça, a não ser que sejamos de índo­
presa, nada há de melhor para se livrar le muito má ou lhe dediquemos muito
dele do que usar de premeditação e ódio.
preparar-se para todos os aconteci­
mentos cujo temor possa causá-lo. Art. 179. Por que os mais imperfeitos
costumam ser os mais zombeteiros.
Art. 177. Do remorso.
E vemos que os que possuem defei­
O remorso de consciência é uma tos muito patentes, por exemplo, os
espécie de tristeza que vem da dúvida que são coxos, caolhos, corcundas, ou
sobre se uma coisa que se faz ou se fez que receberam alguma afronta em pú­
é boa e pressupõe necessariamente a blico, são particularmente inclinados à
dúvida: pois, se estivéssemos inteira­ zombaria; pois, desejando ver todos os
mente seguros de que o que se faz é outros tão desgraçados como eles, dsti-
AS PAIXÕES DA ALMA 295

mam muito os males que lhes aconte­ sar com razão apenas dos bens de for­
cem e consideram-nos dignos deles. tuna; pois, quanto aos da alma ou
mesmo do corpo, na medida em que os
Art. 180. Do uso da troça. temos de nascença, é suficiente para
sermos dignos deles tê-los recebido de
Pelo que respeita à troça modesta, Deus, antes de estarmos capacitados a
que repreende utilmente os vícios, cometer qualquer mal.
fazendo-os parecer ridículos, sem que
entretanto a gente mesma se ria disso Art. 183. Como pode ser justa ou
nem testemunhe nenhum ódio contra injusta.
as pessoas, não é uma paixão, mas
uma qualidade de homem de bem, que
patenteia a alegria de seu humor e a Mas quando a fortuna envia bens a
tranquilidade de sua alma, as quais alguém que verdadeiramente não os
constituem marcas de virtude e muitas merece, e quando a inveja não é provo­
vezes também a finura de seu espírito, cada em nós senão porque, amando
por saber dar uma aparência agradável naturalmente a justiça, ficamos des-
às coisas de que zomba. gostosos pelo fato de ela não ser obser­
vada na distribuição desses bens, é um
Art. 181. Da utilidade do riso na troça. zelo que pode ser desculpável, mor­
mente quando o bem que invejamos a
E não é desonesto rir quando se outros é de tal natureza que pode
ouvem as troças de um outro; elas converter-se em mal nas mãos deles;
podém mesmo ser tais que significaria como1 49 é o caso de algum cargo ou
estar pesaroso não se rir delas; mas, serviço em cujo exercício eles possam
quando troçamos nós próprios, é mais comportar-se mal, e desejamos para
' conveniente abstermo-nos disso, a fim nós o mesmo bem e somos impedidos
de não parecermos surpresos com as de tê-lo, porque outros menos dignos o
coisas que dizemos, nem admirados possuem, isso torna essa paixão mais
com a finura que temos em inventá- violenta, e ela não deixa de ser descul­
los; e isto faz com que surpreendam pável, desde que o ódio nela contido se
tanto mais aos que as Ouvem. relacione apenas com a má distribui­
ção do bem que se inveja e não com as
Art. 182. Da inveja. pessoas que o possuem ou o distri­
buem. Mas há poucas que sejam tão
O que se chama comumente inveja é justas e tão generosas a ponto de não
um vício que consiste numa perversi­ alimentar ódio por aqueles que os
dade de natureza que leva certa gente a impedem de adquirir um bem que não
se desgostar com o bem que vê aconte­ é comunicável a muitos, e que haviam
cer aos outros homens; mas sirvo-me
desejado para eles próprios, embora os
aqui dessa palavra para significar uma que o adquiriram sejam tanto ou mais
paixão que nem sempre é viciosa. A in­ dignos. E o que é ordinariamente mais
veja portanto, enquanto é uma paixão, invejado é a glória; pois, embora a dos
é uma espécie de tristeza mesclada de
outros não impeça que a ela possamos
ódio que nasce do fato de se ver acon­
tecer o bem àqueles que julgamos 1 49 No que Descartes afasta-se de Aristóteles, para
indignos dele: o que só podemos pen­ quem a inveja é sempre viciosa. Cf. art. 195.
296 DESCARTES

aspirar, ela torna, todavia, o seu acesso Art. 186. Quais são os mais compas­
mais difícil e encarece o seu preço. sivos.

Art. 184. De onde vem que os invejo­ Os que se sentem muito fracos e
sos estejam sujeitos a ter a tez plúm­ muito expostos às adversidades da for­
bea. tuna parecem ser mais inclinados do
que os outros a esta paixão, porque se >
De resto, não há nenhum vício que representam o mal de outrem como
prejudique tanto a felicidade dos ho­ podendo acontecer-lhes; e assim são
mens como o da inveja: pois, os que comovidos à piedade mais pelo amor
trazem esta mácula, além de se afligi­ que dedicam a si próprios do que pelo
rem a si próprios, perturbam também que dedicam aos outros.
ao máximo de seu poder o prazer dos
outros e têm ordinariamente a tez Art. 187. Como os mais generosos são
plúmbea, isto é, mesclada de amarelo e tocados por essa paixão.
preto como que de sangue pisado: daí
vem que a inveja seja chamada livor Entretanto, os que são mais genero­
em latim; o que concorda muito bem sos e têm o espírito mais forte, de
com o que foi dito mais acima dos modo que não temem nenhum mal em
movimentos do sangue na tristeza e no relação a si próprios e se mantêm para
ódio; pois este faz com que a bile ama­ além do poder da fortuna, não estão
rela, proveniente da parte inferior do isentos de compaixão quando vêem a
fígado, e a negra, proveniente do baço, imperfeição dos outros homens e
espalhem-se do coração pelas artérias ouvem suas queixas; pois é uma parte
em todas as veias; e aquela faz com da generosidade ter boa vontade para
que o sangue das veias tenha menos com todos. Mas a tristeza desta comi­
calor e corra mais lentamente do que seração não é mais amarga1 50; e,
de ordinário, o que basta para tornar como a que é causada pelas ações
lívida a cor. Mas como a bile, tanto a funestas que se vê representarem num
amarela quanto a negra, pode também teatro, ela está mais no exterior e no
ser enviada às veias por muitas outras sentido do que no interior da alma, a
causas, e como a inveja não as impele qual tem, entretanto, a satisfação de
para aí em quantidade bastante grande pensar que cumpre o seu dever, pelo
para mudar a cor da tez, a não ser que fato de compadecer-se dos aflitos. E há
seja muito grande e de longa duração, nisto a diferença de que, ao passo que
não se deve pensar que todos os que o vulgo tem compaixão dos que se las­
apresentam essa cor sejam propensos a timam, porque pensa que os males que
ela. sofrem são muito deploráveis, o princi­
pal objeto da compaixão dos maiores
Art. 185. Da compaixão. homens é a fraqueza dos que vêem
lastimar-se, porque não julgam que ne­
A compaixão é uma espécie de tris­ nhum acidente que possa acontecer
teza misturada de amor ou de boa von­ seja um mal tão grande quanto a
tade para com aqueles a quem vemos covardia dos que não podem sofrer
sofrer algum mal de que os julgamos com constância; e, embora odeiem os
indignos. Assim, é contrária à inveja vícios, nem por isso odeiam os que a
em virtude de seu objeto, e à zombaria
por considerá-los de outra maneira. 1 50 Cf. Cartas, a Elisabeth, de 18 de maio de 1605.
AS PAIXÕES DA ALMA 297

eles estão sujeitos, e sentem por eles serve senão para produzir um orgulho
apenas compaixão1 51. e uma arrogância impertinente: é o que
se pode observar particularmente nos
Art. 188. Quais são os que não são que, crendo-se devotos, são apenas
por ela tocados. carolas e supersticiosos; isto é, que, à
sombra de irem amiudadamente à igre­
Mas só os espíritos malignos e inve­ ja, de recitarem muitas preces, de usa­
josos odeiam naturalmente todos os rem cabelos curtos, de jejuarem, de
homens, ou então os que são tão bru­ darem esmola, pensam ser inteira­
tais, e de tal forma estão cegados pela mente perfeitos, e imaginam-se tão
boa fortuna, ou desesperados pela má, grandes amigos de Deus, que nada
que pensam que nenhum mal possa poderiam fazer que lhe desagradasse, e
acontecer-lhes, são insensíveis à com­ que tudo quanto lhes dita sua paixão é
paixão. bom zelo, embora ela lhes dite às vezes
os maiores crimes que os homens pos­
Art. 189. Por que esta paixão excita a. sam cometer,’ como trair cidades,
chorar. matar príncipes, exterminar povos in­
teiros, só porque não seguem as suas
opiniões1 52.
Além disso, chora-se mui facilmente
nessa paixão, porque o amor, enviando
muito sangue ao coração, faz com que Art. 191. Do arrependimento.
saiam muitos vapores pelos olhos, e
porque a frialdade da tristeza, retar­ O arrependimento é diretamente
dando a agitação desses vapores, os contrário à satisfação de si próprio, e é
faz transformarem-se em lágrimas, se­ uma espécie de tristeza proveniente de
gundo o que foi dito acima. se julgar que se praticou qualquer má
ação; e é muito amarga, porque sua
causa procede apenas de nós; o que
Art. 190. Da satisfação de si próprio.
não impede, no entanto, que seja muito
útil quando é verdade que a ação de
A satisfação que sempre têm os que
que nos arrependemos é má e quando
seguem constantemente a virtude é um
temos disso um conhecimento certo,
hábito de sua alma que se chama
visto que ela nos incita a proceder me­
tranquilidade e descanso de consciên­
lhor outra vez. Mas acontece muitas
cia; mas a que se adquire de novo
vezes que os espíritos fracos se arre­
quando se praticou recentemente algu­
ma ação que se julga boa é uma pai­ pendem de coisas que praticaram sem
saber seguramente que eram más;
xão, a saber, uma espécie de alegria, a
persuadem-se disso unicamente porque
qual creio ser a mais doce de todas,
o .temem; e se houvessem feito o
porquanto sua causa depende apenas
contrário, arrepender-se-iam da mesma
de nós próprios. Todavia, quando essa
maneira: o que constitui neles uma
causa não é justa, isto é, quando as
imperfeição digna de compaixão; e os
ações de que se tira muita satisfação
não são de grande importância, ou são 1 52 “Os que são verdadeiramente pessoas de bem
mesmo viciosas, ela é ridícula e não não adquirem a reputação de ser devotos tanto
quanto os supersticiosos e hipócritas.” (Dedicatória
1 61 Esta piedade do generoso, no fim de contas dos Princípios.) Essa passagem dá testemunho da
desdenhosa, permite-nos medir quão distante está a separação instituída entre moral e religião: a fé não
generosidade da caridade cristã. poderia dispensar a moralidade definida laicamente.
298 DESCARTES

remédios contra esse defeito são os Art. 194. Da ingratidão.


mesmos que servem para sanar a
irresolução1 53. Quanto à ingratidão, não é uma pai­
xão, pois a natureza não pôs em nós
Art. 192. Do favor. nenhum movimento dos espíritos que a
excite; mas é apenas um vício direta­
O favor é propriamente um desejo mente oposto ao reconhecimento, na
de que aconteça o bem a alguém para medida em que esse é sempre virtuoso
com o qual temos boa vontade; mas e um dos principais laços da sociedade
sirvo-me aqui dessa palavra para signi­ humana; eis por que tal vício só per­
ficar tal vontade na medida em que é tence aos homens brutais e tolamente
provocada em nós por alguma boa arrogantes que pensam que todas as
ação daquele para com o qual temos coisas lhes são devidas, ou aos estúpi­
boa vontade; pois somos naturalmente dos que não fazem nenhuma reflexão
levados a amar os que fazem coisas sobre os benefícios que recebem, ou
que estimamos boas, ainda que daí não aos fracos e abjetos que, sentindo a sua
nos advenha nenhum bem. O favor, imperfeição e as suas necessidades,
procuram baixamente o socorro dos
nesse sentido, é uma espécie de amor, e
outros, e, depois de havê-lo recebido,
não de desejo, embora o desejo de que
odeiam-nos, porque, não tendo vonta­
suceda o bem a quem favorecemos o de de lhes prestar outro semelhante, ou
acompanhe sempre; e está comumente não tendo esperança de podê-lo, e ima­
unido à piedade, porque as desgraças ginando que todo mundo é tão merce­
que vemos ocorrer aos infelizes são nário como eles e que não se pratica
causa de que efetuemos maior reflexão nenhum bem exceto com esperança de
sobre seus méritos. ser por ele recompensado, pensam que
os enganaram.
Art. 193. Do reconhecimento.
Art. 195. Da indignação.
O reconhecimento também é uma
espécie de amor excitado em nós por A indignação é uma espécie de ódio
alguma ação daquele por quem o senti­ ou de aversão que se nutre natural­
mos, e pela qual cremos que ele nos fez mente contra os que praticam algum
algum bem, ou ao menos que teve a mal, de qualquer natureza que seja; e
intenção de fazê-lo. Assim, o reconhe­ muitas vezes está misturado com a in­
cimento contém tudo o que há no favor veja ou com a compaixão; mas seu ob­
e mais o fato de se fundar numa ação jeto é totalmente diferente, pois só fica­
que nos toca e que sentimos desejo de mos indignados contra os que fazem o
retribuir', eis por que possui muito bem ou o mal às pessoas que não o
mais força, principalmente rias almas, merecem, mas temos inveja dos que
por pouco nobres e generosas que recebem esse bem, e sentimos compai­
sejam. xão pelos que recebem esse mal. É ver­
dade que de alguma maneira repre­
1 53 “Não hâ motivo de se arrepender, quando se senta praticar o mal possuir um bem
fez o que se julgou o melhor”, escreve Descartes a
Elisabeth (6 de outubro de 1645) mas, nessa mesma de que não se é digno; o que foi talvez
carta, ele matiza a afirmação. a causa pela qual Aristóteles e sêus
AS PAIXÕES DA ALMA 299

seguidores, supondo que a inveja é do que nos que o são verdadeiramente;


sempre um vício1*5 4, deram o nome de pois, embora os que amam a virtude
indignação à que não é viciosa. não possam ver sem alguma aversão
os vícios dos outros, não se apaixonam
Art. 196. Por que ela está às vezes senão contra os maiores e extraordi­
unida à compaixão e outras vezes à nários. Ê ser difícil e tristbnho o sentir
zombaria. muita indignação por coisas de pouca
importância; é ser injusto senti-las
É também, de certo modo, receber o pelas que não são em nada censurá­
mal o fazê-lo: daí resulta que alguns veis; e é ser impertinente e absurdo não
juntam à sua indignação a compaixão, restringir essa paixão às ações dos
e outros a zombaria, conforme estejam homens, e estendê-la às obras de Deus
dotados de boa ou má vontade com ou da natureza, como o fazem os que,
relação aos que vêem cometer faltas, e não estando jamais contentes com a
é assim que o riso de Demócrito e os sua condição nem com a sua fortuna,
prantos de Heráclito podem ter proce­ ousam achar o que dizer da conduta
dido da mesma causa1 5 5. do mundo e dos segredos da providên­
cia.
Art. 197. Que ela é muitas vezes
acompanhada da admiração e não é Art. 199. Da cólera.
incompatível com a alegria.
A indignação é também amiúde A cólera também é uma espécie de
acompanhada de admiração: pois cos­ ódio ou de aversão que alimentamos
tumamos supor que todas as coisas contra os que praticaram algum mal,
serão feitas da maneira que julgamos ou procuraram prejudicar, não indife­
boa. Eis por que, quando acontecem de rentemente a quem quer que seja, mas
outro modo, isso nos surpreende e nos particularmente a nós. Assim, contém
admira. Ela tampouco é incompatível tudo o que a indignação contém e
com a alegria, embora esteja mais ainda mais o fato de fundar-se numa
ordinariamente unida à tristeza: pois, ação que nos toca e de que desejamos
quando o mal que nos indigna não nos vingar; pois esse desejo a acompa­
pode prejudicar-nos e consideramos nha quase sempre; e ela é diretamente
que não queríamos fazer algo seme­ oposta ao reconhecimento, como a
lhante, isto nos proporciona certo pra­ indignação ao favor; mas é incompara­
zer; e é talvez uma das causas do riso velmente mais violenta que essas três
que acompanha às vezes tal paixão1 5 6. outras paixões, porque o desejo de
repelir coisas nocivas e de se vingar é o
mais imperativo de todos. O desejo
Art. 198. De seu uso.
unido ao amor que se tem por si pró­
prio é que fornece à cólera toda a agi­
De resto, a indignação se nota muito
tação do sangue que a coragem e a
mais nos que querem parecer virtuosos
ousadia podem causar; e o ódio faz
1 5 4 Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, II, cap. 7, que seja principalmente o sangue bilio­
§§ 15-16. so, vindo do baço e das pequenas veias
1 5 5 Exemplo tradicional: Demócrito rindo das toli­ do fígado, que receba esta agitação e
ces dos homens e Heráclito deplorando-as.
156 Cf. art. 127. entre no coração, onde, devido à sua
300 DESCARTES

abundância e à natureza da bile a que Art. 201. Que há duas espécies de cóle­
está misturado, excita um calor mais ra e os que têm mais bondade são os
áspero e mais ardente do que o que mais sujeitos àprimeira.
podem aí excitar o amor ou a alegria.
Isso nos adverte de que se podem
Art. 200. Por que os que ela faz enru- distinguir duas espécies de cólera: uma
bescer são menos de recear do que os que é muito rápida e se manifesta
que ela faz empalidecer. muito por fora, mas que no entanto
tem pouco efeito e pode facilmente
aplacar-se; outra que não aparece
E os sinais exteriores dessa paixão tanto no início, mas que rói mais o
são diferentes, conforme os diversos coração e tem efeitos mais perigosos.
temperamentos das pessoas e a diversi­ Os que possuem muita bondade e
dade das outras paixões que a com­ muito amor são os mais sujeitos à pri­
põem ou se lhe juntam. Assim, há os meira; pois ela não nasce de um pro­
que empalidecem ou tremem quando fundo ódio, mas de uma pronta aver­
se encolerizam e há os que enrubescem são que os surpreende, porque, sendo
ou mesmo choram; e julga-se comu­ propensos a imaginar que todas as coi­
mente que a cólera dos que empali­ sas devem seguir segundo a maneira
decem é mais de temer do que a cólera que julgam ser a melhor, tão logo
dos que enrubescem: a razão disso é acontecem de outra forma admiram-se
que, quando não se quer, ou não se e ofendem-se, amiúde, mesmo sem que
pode tirar vingança de outra forma, ex­ a coisa os haja tocado em particular,
visto que, tendo muita afeição, interes-
ceto pela expressão ou por palavras,
emprega-se todo o calor e toda a força sam-se por aqueles a quem amam tal
como por si próprios1 5 7. Assim, o que
desde o início da comoção, o que é
seria, para outro, motivo apenas de
causa de enrubescer; além do que, às
indignação, é para eles motivo de cóle­
vezes, o pesar e a piedade que se tem ra; e porque a inclinação que têm para
por si próprio, porque a gente não amar os leva a ter muito calor e muito
pode vingar-se de outra maneira, são sangue no coração, a aversão que os
causas de chorar. E, ao contrário, os surpreende não pode enviar para ele
que se reservam e se decidem a uma tão pouca bile que não cause de início
maior vingança tornam-se tristes por­ grande emoção neste sangue; mas esta
que se julgam a isso obrigados pela emoção quase não dura, porque a
ação que os põe em cólera; e sentem força da surpresa não continua e por­
algumas vezes receio dos males que que, tão logo se apercebem de que o
podem seguir-se da resolução por eles motivo que os irritou não devia emo­
tomada, o que os toma primeiro páli­ cioná-los tanto, arrependem-se1 58.
dos, frios e trêmulos; mas, quando che­
gam em seguida a executar a sua vin­ 157 Cf. Cartas, a Chanut, l.° de fevereiro de 1647.
gança, esquentam-se tanto mais 1 58 “São comumente os melhores homens que,
vendo de um lado a morte de um filho e de outro o
quanto mais frio sentiram no começo, perigo de um irmão, são por isso mais violenta­
tal como vemos que as febres que se mente comovidos. Eis por que as faltas assim come­
tidas, sem nenhuma malícia premeditada, são, pare-
iniciam pelo frio costumam ser as mais ce-me, as mais desculpáveis.” (Cartas, a Huyghens,
fortes. 1648.) !
AS PAIXÕES DA ALMA 301

Art., 202. Que são as almas fracas e remédio que se possa encontrar contra
baixas que se deixam dominar pela seus excessos, porque, levando-nos a
outra. apreciar muito pouco todos os bens
que podem ser arrebatados, e ao
A outra espécie de cólera, em que contrário, a estimar muito a liberdade
predomina o ódio e a tristeza, não é de e o império absoluto de nós próprios,
começo tão aparente, a não ser talvez e, ainda, a deixar de tê-lo quando qual­
porque faz empalidecer o rosto; mas quer pessoa nos pode ofender, ela faz
sua força é aumentada pouco a pouco com que tenhamos apenas desprezo ou
pela agitação de ardente desejo de se quando muito indignação em face das
vingar excitado no sangue, o qual, injúrias com que os outros costumam
estando misturado com a bile que é ofender-se1 59.
impelida para o coração da parte infe­
rior do fígado e do baço, provoca nele Art. 204. Da glória.
um calor fortemente áspero e picante.
E como são as almas mais generosas O que recebe aqui o nome de glória
que sentem mais reconhecimento, é uma espécie de alegria fundada no
assim são as mais orgulhosas, mais amor que se tem por si próprio e que
baixas e mais débeis que se deixam provém da opinião ou da esperança de
mais dominar por essa espécie de cóle­ sermos louvados por alguns outros.
ra; pois as injúrias parecem tanto Assim, é diferente da satisfação inte­
maiores quanto mais o orgulho nos rior que nasce da opinião de se ter feito
leva a nos estimarmos a nós próprios, alguma boa ação; pois às vezes somos
e também tanto maiores quanto mais louvados por coisas que não cremos
apreciamos os bens que elas tiram, os ser boas e censurados por outras que
quais se estimam tanto mais quanto .cremos ser melhores: mas uma e outra
mais fraca e mais baixa é a alma, por­ são espécies de estima que temos por
que são bens que dependem de outrem. nós próprios, bem como espécies de
alegria; pois é motivo de nos apre­
ciarmos o ver que somos apreciados
Art. 203. Que a generosidade serve de pelos outros1 60.
remédio contra seus excessos.
Art. 205. Da vergonha.
Demais, ainda que essa paixão seja
útil para nos dar vigor a fim de repelir A vergonha, ao contrário, é uma
ãs injúrias, não há, todavia, nenhuma espécie de tristeza também fundada no
de que se devam evitar os excessos amor a si próprio e que provém da opi­
com mais cuidado, porque, pertur­ nião ou do temor de sermos censura-
bando o juízo, levam muitas vezes a 1 59 Cf. Cartas, a Chanut, l.° de novembro de
cometer faltas de que depois se tem 1646. A generosidade, por implicar o conhecimento
do verdadeiro valor do homem, o livre arbítrio, é o
arrependimento, e mesmo porque algu­ meio de nos curar da cólera, sem que possamos ser
mas vezes impedem que essas injúrias acusados de covardia. A gente só se livra da cólera
sejam tão bem repelidas como pode­ livrando-se da excessiva auto-estima e da suscetibi-
lidade è injúria daí decorrente. Nisso Descartes se
riamos fazer se sentíssemos menos aparta uma vez mais do ideal aristocrático.
emoção. Mas, como nada há que a 1 60 Análise que pode ser aplicada à glória come-
tome mais excessiva do que o orgulho, liana — ao mesmo tempo estima por si próprio e
creio que a generosidade é o melhor amor-próprio social.
302 DESCARTES

dos; é, além do mais, uma espécie de em que uma e outra são boas, as.sim
modéstia ou de humildade e descon­ como a ingratidão se opõe ao reconhe­
fiança de ,si próprio: pois, quando a cimento e a crueldade à compaixão. E
gente se estima tanto que não pode a principal causa do descaramento
imaginar-se desprezada por ninguém, decorre de termos recebido muitas
não se pode facilmente ter vergonha. vezes grandes afrontas; pois não há
pessoa que, quando jovem, não imagi­
Art. 206. Do uso dessas duas paixões. ne que o louvor é um bem e a infâmia
um mal muito mais importantes à vida
Ora, a glória e a vergonha têm o do que se verifica por experiência mais
mesmo uso pelo fato de nos incitarem tarde, quando, tendo-se recebido algu­
à virtude, uma''pela esperança e a oútra mas afrontas assinaladas, a gente se vê
pelo temor; é somente necessário ins­ inteiramente privada de honra e des­
truir o juízo no tocante ao que é verda­ prezada por todos. Eis por que se tor­
deiramente digno de censura ou lou­ nam descarados os que, não medindo o
vor, a fim de não ficarmos bem e o mal senão pelas comodidades
envergonhados de proceder bem e não do corpo, vêem que continuam gozan­
auferirmos vaidade de nossos vícios, do destas, após tais afrontas, tanto
como acontece a muitos. Mas não é quanto antes, ou mesmo às vezes bem
bom despojar-se inteiramente dessas mais, porque ficam desobrigados de
paixões, tal como faziam outrora os cí­ muitas coerções que a honra lhes
nicos; pois, ainda que o povo julgue impunha e porque, se a perda de bens
muito mal, dado que não podemos estiver unida à sua desgraça, encon-
viver sem ele, e que nos importa ser­ tram-se pessoas caridosas que Ihos
mos estimados por ele, devemos mui­ dão.
tas vezes seguir suas opiniões mais do
que as nossas, no tocante ao exterior Art. 2Ó8. Do fastio.
de nossas ações1 61.
O fastio é uma espécie de tristeza
Art. 207. Da impudência. proveniente da mesma causa de que
proveio antes a alegria; pois somos de
A impudência ou o descaramento, tal forma compostos, que a maioria
que é um desprezo pela vergonha, e das coisas de que desfrutamos são
amiúde também pela glória, não é uma boas em relação a nós apenas por certo
paixão, porque não há em nós nenhum tempo, e tornam-se em seguida incô­
movimento particular dos espíritos que modas: o que transparece principal­
a excite; mas é um vício oposto à ver­ mente no beber e no comer, que são
gonha, e também à glória, na medida úteis apenas enquanto temos apetite e
são nocivos quando não mais o temos;
161 O Discurso falava das “opiniões mais modera­ e, porque cessam de ser então agradá­
das e mais afastadas do excesso que fossem comu-
mente recebidas ná prática pelos mais sensatos veis ao gosto, chamou-se essa paixão
daqueles com os quais eu devia viver”. Confissão de fastio.
oportunismo e conformismo? Esse conformismo,
responde Lívio Teixeira, “vem da clareza com què
se percebem as limitações da Moral social, bem Art. 209. Do pesar.
como as dificuldades que deparam aqueles que se
propõem transformâ-la. Este conformismo social de O pesar é também uma espécie de
Descartes é, antes de tudo, uma atitude de inteli­
gência e boa vontade, em uma palavra, de generosi­ tristeza, que é uma particular amargu­
dade”. (Op. cit., pág. 209.) ra, pelo fato' de estar sempre unida a
AS PAIXÕES DA ALMA 303

algum desespero e à memória do pra­ estar unidos, confesso que há poucas


zer que o gozo nos deu; pois nunca pessoas que se tenham suficientemente
lamentamos senão os bens de que preparado dessa maneira contra todas
gozamos e que se acham de tal modo as espécies de recontros, e que esses
perdidos que não alimentamos nenhu­ movimentos excitados no sangue pelos
ma esperança de recuperá-los ao objetos das paixões seguem primeiro
tempo e à maneira em que os lamenta­ tão prontamente das simples impres­
mos. sões que se fazem no cfebro e da
disposição dos órgãos, ainda que a
Art. 210. Do júbilo. alma não contribua para tanto, de
qualquer maneira, que não há nenhu­
Enfim, o que chamo júbilo é üma ma sabedoria humana capaz de resis­
espécie de alegria que apresenta de tir-lhes quando não estamos para isso
particular o fato de sua doçura ser bem preparados. Assim, muitos não
aumentada com a lembrança dos poderiam abster-se de rir, quando lhes
males que sofremos e dos quais nos fazem cócegas, embora não colham
sentimos aliviados, da mesma maneira daí nenhum prazer; pois a impressão
como nos sentimos livres de algum pe­ da alegria e da surpresa que outrora os
sado fardo que tivéssemos carregado fez rir pelo mesmo motivo, estando
por longo tempo sobre nossos ombros. desperta em sua fantasia, faz com que
E nada vejo de muito notável nessas seus pulmões sejam subitamente infla-
três paixões; por isso as coloquei aqui . dos, contra a vontade, pelo sangue que
apenas para seguir a ordem da enume­ o coração lhes envia. Assim, os que
ração que fiz mais acima; mas parece- têm, por natureza, forte pendor para as
me que essa enumeração foi útil para emoções da alegria e da compaixão, ou
mostrar que não omitimos nenhuma do medo, ou da cólera, não podem
que fosse digna de alguma considera­ impedir-se de desmaiar, ou de chorar,
ção particular. ou de tremer, ou de ter o sangue todo
agitado como se tivessem febre, quan-
Art. 211. Um remédio geral contra as . do a sua fantasia é fortemente tocada
paixões. pelo objeto de alguma dessas paixões.
Mas o que se pode sempre fazer em tal
E agora que as conhecemos todas, ocasião, e que eu julgo poder apresen­
temos muito menos motivo de as temer tar aqui como o remédio mais geral e o
do que tínhamos antes; pois verifi­ mais fácil de praticar contra todos os
camos que são todas boas por natureza excessos das paixões, é, sempre que se
e que só devemos evitar o seu mau uso sinta o sangue assim agitado, ficar
ou os seus excessos, contra os quais os advertido e lembrar-se de que tudo
remédios que expliquei poderiam bas­ quanto se apresenta à imaginação
tar, se cada um tivesse cuidado bas­ tende a enganar a alma e a fazer com
tante para praticá-los. Mas, como que as razões empregadas em persua­
incluí entre esses remédios a premedi- dir o objeto de sua paixão lhe pareçam
tação e a indústria pela qual se podem muito mais fortes do que são, e as que
corrigir os defeitos naturais, exercitan- servem para dissuadir muito mais fra­
do-nos em separar em nós os movi­ cas. E quando a paixão persuade ape­
mentos do sangue e dos espíritos dos nas de coisas cuja execução sofre algu­
pensamentos aos quais costumam ma delonga, cumpre abster-se de
304 DESCARTES

pronunciar na hora qualquer julga­ der-se, quando é possível sem dèsonra


mento e distrair-se com outros pensa­ salvar-se, e que, se a partida é muito
mentos até que o tempo e o repouso te­ desigual, vale mais efetuar uma hones­
nham apaziguado inteiramente a ta retirada ou tomar quartel do que
emoção que se acha no sangue. E, expor-se brutalmente a uma morte
enfim, quando ela incita a ações no certa.
tocante às quais é necessário tomar
uma resolução imediata, é mister que a Art. 212. Que é somente delas que
vontade se aplique principalmente a depende todo o bem e todo o mal desta
considerar e a seguir as razões contrá­ vida.
rias àquelas que a paixão representa,
ainda que pareçam menos fortes: como
quando se é inopinadamente atacado De resto, a alma pode ter os seus
por algum inimigo e a ocasião não per­ prazeres à parte; mas, quanto aos que
mite que se empregue algum tempo em lhe são comuns com o corpo, depen­
deliberar. Mas o que me parece que os dem inteiramente das paixões: de
que estão acostumados a refletir sobre modo que os homens que elas podem
as suas ações podem sempre fazer é, mais emocionar são capazes de apre­
quando se sentirem tomados de medo, ciar mais doçura nesta vida. Ê verdade
esforçarem-se por desviar o pensa­ que também podem encontrar nela
mento da consideração do perigo, mais amargura, quando não sabem
representando-se as razões pelas quais bem empregá-las e quando a fortuna
há muito mais segurança e mais honra lhes é contrária; mas a sabedoria é
na resistência do que na fuga; e, ao principalmente útil neste ponto, porque
contrário, quando sentirem que o dese­ ensina a gente a tornar-se de tal forma
jo de vingança e a cólera os incitam a seu senhor e a manejá-las com tal des­
correr inconsideradamente para aque­ treza que os males que causam são
les que os atacam, lembrar-se-ão de muito suportáveis, tirando-se mesmo
pensar que é uma imprudência o per­ certa alegria de todos.
CARTAS
A Elisabeth

[Egmond-du-Hoef, 21 de maio de 1643]

Minha Senhora,

O favor com que Vossa Alteza me E posso dizer, com verdade, que a
honrou, fazendo-me receber suas or­ questão proposta por Vossa Alte­
dens por escrito, é maior do que jamais za1 parece-me ser a que me podem for­
ousaria esperar e ele alivia melhor as mular com mais razão, em .virtude dos
minhas faltas do que aquele que eu escritos que publiquei. Pois, havendo
almejara com paixão, que era o de duas coisas na alma humana, das
recebê-las de viva voz, se me fosse quais depende todo conhecimento que
dada a honra de prestar-lhe reverência podemos ter de sua natureza, uma das
e oferecer-lhe os meus mui humildes quais é que ela pensa e a outra, que,
préstimos, quando estive ultimamente estando unida ao corpo, pode agir e
em Haia. Pois eu teria maravilhas em padecer com ele, quase nada disse da
demasia para admirar ao mesmo última e empenhei-me apenas em acla­
tempo; e, vendo emanar discursos mais rar bem a primeira, porque o meu prin­
do que humanos de um corpo tão cipal intuito era provar a distinção que
semelhante ao que os pintores conce­ há entre a alma e o corpo; para o que,
dem aos anjos, ficaria extasiado da somente esta podia servir e a outra
mesma maneira que me parecem dever seria nociva2. Mas, como Vossa Alte­
ficar os que, vindos da terra, entram de za vê tão claro que não se poderia
novo no céu. E isso ter-me-ia tomado dissimular-lhe qualquer coisa, esfor-
menos capaz de responder a Vossa çar-me-ei aqui por explicar a maneira
Alteza, que sem dúvida já observou em pela qual concebo a união da alma
mim este defeito, quando tive anterior­ com o corpo e como tem ela a força de
mente a honra de lhe falar; e a clemên­ movê-lo.
cia de V. A. quis consolá-la, confian­ Primeiramente, considero haver em
do-me os traços de seus pensamentos nós certas noções primitivas, as quais
sobre um papel, onde, relendo-os mui­ são como originais, sob cujo padrão
tas vezes e acostumando-me a conside­ formamos todos os nossos outros
rá-los, deixam-me verdadeiramente
1 A saber: como pode a alma mover o corpo?
menos deslumbrado, porém com tanto 2 As Meditações insistiram na separação das subs­
maior admiração, ao observar que não tâncias e, por razões metodológicas, deixaram na
parecem somente engenhosos à pri­ sombra a substância psicofísica, isto é, a união de
fato no homem , das duas substâncias separadas.
meira vista, mas tanto mais judiciosos Mas não se deve falar de um corte entre a alma e o
e sólidos quanto mais são examinados. corpo humano em Descartes.
310 DESCARTES

conhecimentos. E não há senão muito Por isso, visto que, nas Meditações
poucas dessas noções; pois, após as que Vossa Alteza se dignou ler, procu­
mais gerais, do ser, do número, da rei fazer conceber as noções que só
duração, etc., que convêm a tudo quan­ pertencem à alma, distinguindo-as das
to possamos conceber, possuímos, em que pertencem só ao corpo, a primeira
relação ao corpo em particular, apenas coisa que devo explicar em seguida é a
a noção da extensão, da qual decorrem maneira de conceber as que pertencem
as da figura e do movimento; e, quanto à união da alma com o corpo, sem as
à alma somente, temos apenas a do que pertencem só ao corpo, ou só à
pensamento, em que se acham com­ alma. A isso me parece que pode servir
preendidas as percepções do entendi­ o que escrevi no fim da minha Res­
mento e as inclinações da vontade; posta às Sextas Objeções; pois não
enfim, quanto à alma e ao corpo em podemos buscar essas noções simples
conjunto, temos apenas a de sua união, em outra parte exceto em nossa alma
da qual depende a noção da força de que, por sua natureza, as tem todas em
que dispõe a alma para mover o corpo, si, mas que nem sempre as distingue
e o corpo para atuar sobre a alma, cau­ suficientemente umas das outras, ou
sando seus sentimentos e suas pai­ não as atribui aos objetos aos quais
xões3 devemos atribuí-las.
Considero também que toda a ciên­ Assim, creio que confundimos até
cia dos homens consiste tão-somente agora4 a noção da força com que a
em bem distinguir essas noções e não alma atua no corpo e aquela com que
atribuir cada qual senão às coisas a um corpo atua em outro; e que atri-.
que pertencem. Pois, ao querer expli­ buímos ambas não à alma, pois não a
car alguma dificuldade por uma noção conhecíamos ainda, porém às diversas
que não lhe pertence, não podemos dei­ qualidades dos corpos, como a gravi­
xar de nos equivocar, assim como ao dade, o calor e as outras, que imagina­
querer explicar uma dessas noções por mos serem reais, isto é, possuírem uma
outra; pois, sendo primitivas, cada existência distinta da do corpo e, por
uma delas só pode ser entendida por si conseguinte, serem substâncias, embo­
mesma. E já que a prática dos sentidos ra as denominássemos qualidades. E
nos tornou as noções da extensão, das nos servimos, para concebê-las, ora de
figuras e dos movimentos muito mais noções que se encontram em nós para
familiares do que as outras, a principal conhecer o corpo, ora das que aí se
causa de nossos erros está em que encontram para conhecer a alma, con­
pretendemos comumente nos servir forme o que lhes atribuímos fosse
dessas noções para explicar as coisas a material ou imaterial5. Por exemplo,
que não pertencem, como quando se supondo que a gravidade é uma quali­
quer utilizar a imaginação para conce­ dade real, da qual não possuímos qual­
ber a natureza da alma, ou então, quer outro conhecimento, exceto que
quando se quer conceber a maneira tem a força de mover o corpo, no qual
pela qual a alma move o corpo,
4 Isto é: quando estávamos ainda sob o domínio
mediante aquela pela qual um corpo é dos “prejuízos da infância”, antes de termos alcan­
movido por outro corpo. çado as noções claras e distintas. |
5 Sempre possuímos a idéia da união, mas 'aplica­
mo-la, descabidamente, aos fenômenos naturais que
3 Exemplo de distinção das “regiões” que, como devem explicar-se apenas por figuras e por movi­
dirá Descartes, é a característica da ciência. mentos.
CARTAS 311

se â^ha, para o centro da terra, não nos explicar-me, e seria demasiado presun­
é jdifícil conceber como ela move esse çoso se ousasse pensar que minha res­
COTpo, nem como está unida a ele; e posta deve satisfazê-la inteiramente;
não pensamos que isso se realiza pelo mas procurarei evitar uma e outra,
contato real de uma superfície com nada mais acrescentando aqui, exceto
outra, pois experimentamos, em nós que, se sou capaz de escrever ou de
próprios, que não dispomos de uma dizer algo que lhe possa agradar, terei
noção particular para conceber tal sempre por mui grande favor tomar a
coisa; e creio que usamos mal essa pena, ou ir a Haia, para tal fim, e que
noção, aplicando-a à gravidade, que nada há no mundo que me seja tão
não é algo realmente diferenciado do caro como poder obedecer a seus dita­
corpo, como espero mostrar na Física, mes. Mas não consigo achar aqui lugar
mas que nos foi dada para conceber a para a observância do juramento de
maneira pela qual a alma move o Hipócrates que ela me impõe, pois que
corpo 6. ela nada me comunicou que não mere­
Não testemunharia conhecer assaz o ça ser visto e admirado por todos os
incomparável espírito de Vossa Alteza, homens. Só posso dizer, a este respeito,
se empregasse mais palavras para que, apreciando infinitamente a carta
que recebi de Vossa Alteza, usá-la-ei
6 O exemplo é retomado nas Sextas Respostas: como os avaros usam seus tesouros, os
“Pensava que a gravidade conduzisse os corpos
para o centro da terra como se ela tivesse em si
quais escondem quanto mais os esti­
algum conhecimento deste centro”. Como ele julga mam, e, recusando sua vista ao resto
que a gravidade deve explicar-se pelo exclusivo do mundo, aplicam seu soberano con­
impulso da matéria sutil, Descartes rejeita com des­
prezo a noção de atração. (Cartas, a Roberval, 20 tentamento em contemplá-los. Assim,
de abril de 1646.) Deve-se notar que Galileu, por estarei à vontade para desfrutar sozi­
seu turno, concebe o fenômeno da queda como um nho do bem de vê-la; e minha maior
“movimento natural”, o único que ele retém da Físi­
ca escolástica. “Ele abandona tanto quanto pode os ambição é poder dizer-me, e ser verda-
erros da Escola”, dirá Descartes. deiramente, etc.
A Elisabeth

Egmond-du-Hoef, 28 de junho de 1643.

Minha Senhora,

Sinto-me grandemente obrigado Primeiramente, portanto, noto gran­


para com Vossa Alteza pelo fato de, de diferença entre essas três espécies de
após haver suportado que eu me tenha noções, pelo fato de só concebermos a
mal explicado em minhas [cartas] alma através do entendimento puro; o
precedentes, no tocante à questão que corpo, isto é, a extensão, as figuras e os
lhe aprouve propor-me, se dignar ainda movimentos também podem ser conhe­
de ter a paciência de me ouvir sobre o cidos só pelo entendimento, porém
mesmo assunto e me dar ocasião de será melhor ainda pelo entendimento
advertir as coisas que omitira. Delas, com a ajuda da imaginação; e, enfim,
as principais me parecem ser que, de­ as coisas.que pertencem à união da
pois de haver distinguido três gêneros alma e do corpo não são conhecidas
de idéias ou de noções primitivas que senão obscuramente pelo entendimento
conhecemos cada qual de uma maneira
só, ou mesmo pelo entendimento com
particular e não pela comparação de
uma com a outra, a saber, a noção que a ajuda da imaginação8; mas são
conhecidas mui claramente pelos senti­
temos da alma, a do corpo e a da união
dos. Daí resulta que aqueles que ja­
que há entre a alma e o corpo, devia
mais filosofam e que se servem apenas
explicar a diferença existente entre
essas três espécies de noções e entre as de seus sentidos nunca duvidam de que
a alma move o corpo e de que o corpo
operações da alma pelas quais nós as
não atua sobre a alma; mas conside­
obtemos, e dizer os meios de tomar
cada uma delas familiar e fácil para ram ambos como uma única coisa, isto
nós; em seguida, tendo dito por que eu é, concebem sua união; pois conceber
me servia da comparação da gravida­ a união que há entre duas coisas é
de, mostrar que, embora se queira con­ concebê-las como uma só. E os pensa­
ceber a alma como material (o que é mentos metafísicos, que exercitam o
propriamente conceber sua união com entendimento puro, servem para nos
o corpo), não se deixa de conhecer, tomar familiar a noção da alma; e o
depois, que é separável deste. O que é, estudo das Matemáticas, que exercita
como o julgo, toda a matéria que principalmente a imaginação na consi­
Vossa Alteza aqui me prescreveu7. deração das figuras e dos movimentos,
nos acostuma a formar noções do
7 Elisabeth respondera mais óu menos assim: não corpo bem distintas; e, enfim, usando
entendo por que, ao denunciar a falsidade da noção somente a vida e as conversações
de gravidade, quereis nos persuadir, quando se trata
do corpo humano, de “que um corpo pode ser impe­
lido por algo imaterial”. 8 Em Matemática.
314 DESCARTES

comuns, e abstendo-se de meditar e car-se às meditações exigidas para


estudar as coisas que exercitam a conhecer bem a distinção existente
imaginação, é que se aprende a conce­ entre a alma e o corpo.
ber a união da alma e do corpo9. Mas julguei que foram essas medita­
Tenho quase medo de que Vossa Al­ ções, mais do que os pensamentos que
teza vá pensar que não falo aqui seria­ requerem menos atenção, que a leva­
mente; mas isso seria contrário ao res­ ram a encontrar obscuridade na noção
peito que lhe devo e que não deixarei que temos da união deles11, não me
jamais de lhe render. E posso dizer, parecendo que o espírito humano seja
com verdade, que a principal regra que capaz de conceber bem distintamente,
sempre observei em meus estudos, e ao mesmo tempo, a distinção entre o
aquela que julgo me ter mais servido corpo e a alma e a sua união; isto por­
para adquirir algum conhecimento, foi que é necessário, para tanto, concebê-
que nunca empreguei senão mui pou­ los como uma única coisa, e conjunta­
cas horas, por dia, nos pensamentos mente concebê-los como duas, o que se
que ocupam a imaginação, e mui pou­ contraria. E, para tal efeito (supondo
cas horas, por ano, nos que ocupam o que Vossa Alteza mantivesse ainda as
entendimento só, e que dediquei todo o razões que provam a distinção da alma
resto de meu tempo ao relaxamento e do corpo fortemente presentes em seu
dos sentidos e ao repouso do espírito; espírito, e não querendo de modo
conto mesmo, entre os exercícios da algum suplicar-lhe para se desfazer
imaginação, todas as conversações sé­ delas, a fim de se representar a noção
rias e tudo aquilo a que se precisa dar da união que cada qual experimenta
atenção1 °. É o que me levou a retirar- sempre em si mesmo sem filosofar; a
me para o campo; pois, ainda que na saber, que é uma só pessoa, que tem
cidade mais ocupada do mundo eu em conjunto um corpo e um pensa­
pudesse dispor de tantas horas para mento, os quais são de tal natureza que
mim quanto eu emprego agora no estu­ este pensamento pode mover o corpo e
do, não poderia entretanto empregá-las sentir os acidentes que lhe sobrevêm),
tão utilmente, uma vez que meu espí­ servi-me anteriormente da comparação
rito estaria fatigado pela tensão reque­ da gravidade e de outras qualidades
rida pela azáfama da vida. É isso que que imaginamos comumente estarem
tomo a liberdade de escrever aqui a unidas a alguns corpos, assim como o
Vossa Alteza, para testemunhar-lhe pensamento está unido ao nosso; e não
que admiro verdadeiramente que, den­ me preocupei em que essa comparação
tre as ocupações e os cuidados que claudicasse pelo fato de não serem
nunca faltam às pessoas que são ao reais essas qualidades, assim como é
mesmo tempo de elevado espírito e de costume imaginá-las, porque acreditei
elevado nascimento, ela pudesse apli­ que Vossa Alteza já se achasse inteira-
9 Hâ portanto, uma “região”, a da união entre a ' mente persuadida de que a alma é uma
alma e o corpo, onde o senso comum goza de privi­ substância distinta do corpo.
légio com respeito aos filósofos e aos matemáticos. Mas, visto que Vossa Alteza nota
Quanto mais fácil lhe é compreender esta união,
tanto mais difícil é para o metafísico conhecê-la, de­
pois que foi levado a pensar a alma e o corpo como 11 Em suma, Descartes censura a princesa por pe­
separados. cado de intelectualismo e por ser mais cartesiana do
10 Descartes opõe-se aqui de antemão a todos os que ele próprio. Convém notar que Elisabeth era
seus intérpretes idealistas (cf. Valéry): ele é primei­ uma matemática digna de nota, como demonstram
ramente homem, a seguir matemático, metafísico as soluções de problemas que ela enviou a
algumas horas por ano. Descartes. 1
CARTAS 315

que é mais fácil atribuir matéria e Enfim, como creio ser necessário
extensão à alma do que atribuir-lhe compreender bem, uma vez na vida, os
capacidade de mover um corpo e de princípios da Metafísica, porque são
ser movida por ele, sem possuir maté­ eles que nos fornecem o conhecimento
ria, suplico-lhe que queira livremente de Deus e de nòssa alma, creio tam­
atribuir esta matéria e esta extensão à bém que seria muito prejudicial ocupar
alma; pois isto não é mais do que arniúde o entendimento para meditar
concebê-la unida ao corpo12. E, depois neles, porque ele não poderia aplicar-
de haver bem concebido tal coisa e tê- se tão bem às funções da imaginação e
la experimentado em si própria, ser- dos sentidos; mas que o melhor é
Ihe-á fácil considerar que a matéria contentar-se em reter na memória e na
que Vossa Alteza terá atribuído a esse crença as conclusões que foram algu­
ma vez tiradas e depois empregar o
pensamento não é o pensamento
tempo restante para o estudo, nos
mesmo; e que a extensão dessa matéria
pensamentos em que o entendimento
é de natureza diferente da extensão
atua com a imaginação e os sentidos.
desse pensamento, pelo fato de ser a A extrema devoção que dedico ao
primeira determinada em certo lugar, serviço de Vossa Alteza me faz esperar
do qual exclui qualquer outra extensão que minha franqueza não lhe será
de corpo, o que não faz a segunda. E desagradável e ter-me-ia empenhado
assim Vossa Alteza não deixará de aqui num discurso mais longo, onde
voltar facilmente ao conhecimento da tentaria esclarecer dessa vez todas as
distinção entre a alma e o corpo, não dificuldades da questão proposta; mas
obstante tenha concebido a sua união. uma deplorável nova que acabo de
receber de Utrecht, onde o Magistrado
12 A união não é uma soma das duas substâncias, me intimou, para verificar o que escre­
porém sua mistura total. Pode-se dizer que a alma
tem, de algum modo, extensão, visto que se espalha ví de um de seus ministros, conquanto
em todas as partes do corpo. No entanto, nem por seja um homem que me caluniou mui
isso se toma divisível, pois está inteira em cada indignamente, e o que escrevi sobre ele,
parte. Possui, portanto, uma “extensão”, sem ser para minha justa defesa, não seja
uma substância extensa. Trata-se, sem dúvida, da
definição mais precisa que Descartes dá do orga­ senão demasiado notório a todo
nismo humano como totalidade ■—■ Ganzheit. Cabe mundo, compele-me a terminar aqui,
notar aqui como Descartes logra encerrar ao máxi­ para ir consultar os meios de me livrar,
mo noções impossíveis de exprimir no pathos meca-
nicista do claro e do distinto (cf. Guéroult, op. cit., o mais cedo que eu possa, dessas
II, págs. 186-191). chicanices. Sou, etc.
A Elisabeth

Egmond, 4 de agosto de 1645.


Minha Senhora,

Quando escolhi o livro de Sêneca, mente), não fosse a diferença que hâ


De Vita Beata, para propô-lo a Vossa entre heur (boa sorte) e beatitude, que
Alteza como assunto que lhe poderia consiste no fato de a heur depender
ser agradável, só tive em vista a repu­ apenas das coisas que se acham fora
tação do autor e a dignidade da maté­ de nós, donde resulta que são conside­
ria, sem pensar na maneira como ele a rados mais felizes do que sábios aque­
trata, a qual, havendo-a depois consi­ les aos quais sobreveio algum bem que
derado, não achei bastante exata para não procuraram, ao passo que a beati­
que merecesse ser seguida. Mas, a fim tude consiste, parece-me, no perfeito
de que Vossa Alteza possa julgar mais contentamento de espírito e numa
facilmente, procurarei explicar aqui de satisfação interior, que os que são mais
que modo me parece que esta matéria' favorecidos pela fortuna não possuem
deveria ser tratada por um filósofo ordinariamente e que os sábios adqui­
como ele, que, não estando iluminado rem sem ela. Assim, vivere beate, viver
pela fé, só possuía a razão natural em beatitude, não é outra coisa senão
como guia1 3. ter o espírito perfeitamente contente e
Ele diz muito bem, no começo, que satisfeito.
vivere omnes beate volunt, sed ad Considerando, depois disso, o que é
pervidendum quid sit quod beatam quod beatam vitam efficiat, . isto é,
vitam efficiat, caliganP 4. Mas é preci­ quais são as coisas que nos podem dar
so saber o que é vivere beate; diria em esse soberano contentamento, observo
francês vivre heureusement (viver feliz - existirem duas espécies: a saber, as que
dependem de nós, como a virtude e a
13 A Moral exposta será a Moral segundo a razão sabedoria, e as que não dependem de
natural. Para justificar esse ponto de vista, Descar­ modo algum, como as honras, as
tes coloca-se às vezes.sob o patrocínio dos filósofos
pagãos, “que nada sabiam da beatitude sobrenatu­ riquezas e a saúde. Pois é certo que um
ral” e “só consideravam os bens que podemos con­ homem bem nascido, que não está
siderar nesta vida”. (Cartas, a Cristina, 20 de doente, que não carece de nada e- que,
novembro de 1647.) Cf. Col. com Burman: “Quanto
a mim, redigi minha filosofia de maneira a não cho­ além disso, é tão sábio e tão virtuoso
car ninguém e que ela possa ser recebida por toda quanto outro que é pobre, malsão e
parte, mesmo entre os turcos”.
1 * Todos querem viver felizes, mas não vêem niti­ contrafeito, pode gozar de um conten­
damente o que faz a felicidade. tamento mais perfeito do que ele.
318 DESCARTES

Todavia1*5, como um vaso pequeno causa dos diversos objetos aos quais se
pode ficar tão cheio como outro maior, estendem1 6.
ainda que contenha menos líquido, A terceira, que consideremos, en­
assim, tomando o contentamento de quanto nos conduzimos assim, o quan­
cada qual pela plenitude e pelà realiza­ to pudermos, segundo a razão, que
ção de seus, desejos regrados segundo a todos os bens que não possuímos
razão, não duvido que os mais pobres encontram-se também inteiramente
e os mais desgraçados pela fortuna ou fora de nosso poder tanto uns como
pela natureza possam estar inteira­ outros, e que, por este meio, nos acos­
mente contentes e satisfeitos, assim tumemos a não desejá-los; pois nada
como os outros, embora não desfrutem há, como o desejo, o pesar ou o
de tantos bens. E não é senão desta arrependimento, que nos possa impedir
espécie de contentamento que se trata de estar contentes: mas se fizermos
aqui, pois a outra não está de nenhum sempre tudo o que nos dita a nossa
modo em nosso poder e sua busca razão, nunca teremos qualquer motivo
seria supérflua. de nos arrependermos, ainda que os
Ora, parece-me que cada um pode acontecimentos nos levassem a ver, em
ficar contente consigo mesmo, sem seguida, que nos havíamos enganado,
nada esperar de outras partes, con­ porque isso não se deu por culpa
tanto que observe apenas três coisas, nossa. E o que faz com que não deseje­
às quais se relacionam as três regras mos ter, por exemplo, mais braços ou
da Moral, que estabelecí no Discurso mais línguas do que temos, mas que
do Método. desejemos realmente ter mais saúde ou
A primeira é que nos esforcemos mais riquezas, é apenas porque imagi­
sempre por servir-nos, da melhor ma­ namos que tais coisas poderíam ser
neira possível, de nosso espírito, para adquiridas por nossa conduta, ou,
conhecer o que devemos ou não fazer então, que são devidas à nossa nature­
em todas as circunstâncias da vida. za, e que esta não é a mesma das
A segunda, que mantenhamos a outras: opinião de que podemos nos
firme e constante resolução de execu­ desfazer, considerando que, como se­
tar tudo quanto a razão nos aconse­ guimos sempre o conselho de nossa
lhar, sem que nossas paixões ou nossos razão, nada omitimos do que estava
em nosso poder, e que as moléstias e os
apetites nos desviem; e é a firmeza
desta resolução, que creio dever ser to­ infortúnios não são menos naturais no
mada pela virtude, embora eu não homem do que a prosperidade e a
saúde.
saiba de alguém mais que a tenha algu­
ma vez explicado assim; mas dividi- De resto, nem todas as espécies de
ram-na em muitas espécies, a que desejos são incompatíveis com a beati-
foram dados diversos nomes, por tude; a não ser os que são acompa­
nhados de impaciência e tristeza. Não
1 5 O termo é importante. Descartes admite que
mais vale possuir as duas espécies de bens do que 1 6 Não há senão uma virtude, diversificada pelos
apenas o segundo. Mas, como se verifica que a pri­ objetos aos quais se estende, “assim como todas as
meira pode não estar ao nosso alcance, não deve­ ciências reunidas não são nada mais do que a sabe­
mos apegar-nos à busca desses bens que não depen­ doria humana, que se mantém sempre una, sempre a
dem de nós, se nós não os possuímos. Atitude mesma, por variados que sejam os objetos aos quais
eudemonista exposta em linguagem estóica. elas se aplicam. . . ” (Regulàe, reg. 1.)
CARTAS 319

é também necessário que nossa razão cionando um verdadeiro conhecimento


jjimais se engane1 7; basta que nossa do bem, impede que a virtude seja falsa
consciência nos testemunhe que nunca e mesmo, acordando-a com os praze­
carecemos de resolução e virtude, para res lícitos, toma o seu uso tão fácil, e
executar todas as coisas que julgamos fazendo-nos conhecer a condição de
as melhores, e assim a virtude só é sufi­ nossa natureza, limita de tal modo nos­
ciente para nos deixar contentes nesta sos desejos que cumpre confessar que a
vida. Mas, não obstante, dado que, maior felicidade do homem depende
quando ela não é iluminada pelo enten­ deste reto uso da razão1 9 e por conse­
dimento, pode ser falsa, isto é, a vonta­
de e a resolução de praticar o bem guinte, que o estudo que serve para
podem levar-nos a coisas más, quando adquiri-lo é a mais útil ocupação que
as cremos boas, o contentamento que se possa ter, como é, sem dúvida, a
delas resulta não é sólido18; e dado mais agradável e a mais doce.
que se opõe comumente esta virtude Em conseqüência disso, parece-me
aos prazeres, aos apetites e às paixões, que Sêneca deveria ter nos ensinado
ela é muito difícil de pôr em prática, ao todas as principais verdades, cujo
passo que o reto uso da razão1 9,propor- conhecimento é requerido para facili­
tar a prática da virtude, e regrar nossos
1 7 Nunca posso ter certeza de que optei pelo desejos e nossas paixões, e assim des­
melhor; o que põe em causa a possibilidade de uma
Moral como ciência que o Discurso anunciava. frutar da beatitude natural; o que teria
1 8 Apesar da importância da “virtude” (segunda tomado o seu livro o melhor e o mais
regra), o primado cabe ao conhecimento racional
— ou pelo menos ao mais racional possível — do útil de quantos um filósofo pagão sou­
melhor. A “firme e constante resolução” não bera escrever. Todavia essa é apenas a
proporciona, no entanto, “contentamento” quando
está a serviço de uma decisão que não foi ponde­ minha opinião, que submeto ao julga­
rada assaz racionalmente. mento de Vossa Alteza; e se me
19 Essa frase resume a inspiração radicalmente
eudemonista do texto: o “reto uso da razão” consti­ fizer tanto favor que me advirta no que
tui um meio ordenado para a felicidade. O tom estou falhando, dever-lhe-ia mui gran­
estóico não deve, pois, iludir; os bens da alma são de obrigação e testemunharia, corrigin-
preferíveis porque permitem acesso mais seguro ao
contentamento. . do-me, que sou,

Minha Senhora
de Vossa Alteza
o mui humilde e mui obediente servidor,
DESCARTES

De Egmond, 4 de agosto de 1645.


A Elisabeth

Egmond, 18 de agosto de 1645.


Minha Senhora,

Embora eu não saiba se minhas últi­ dessas coisas, deter-me-ei um pouco


mas [cartas] foram entregues a Vossa em cada capítulo..
Alteza, e nada possa escrever, no No primeiro, repreende os que se­
tocante ao tema que tomei para ter a ' guem o costume e o exemplo mais do
honra de entretê-la, que não deva pen­ que a razão. Nunquam de vita judica-
sar que saiba melhor do que eu, não tur, diz ele, semper creditur20 No
deixo, todavia, de continuar na crença entanto, aprova realmente que tome­
de que minhas cartas não serão para mos conselhos daqueles que cremos
Vossa Alteza mais importunas do que serem os mais sábios; mas quer que
os livros que se acham em sua biblio­ usemos também o próprio juízo para
teca; pois, na medida em que não con­ examinar-lhes as opiniões. E nisso sou
têm quaisquer novidades que tenha o fortemente do seu parecer; pois, embo­
interesse de conhecer prontamente, ra muitos não sejam capazes de encon­
nada a convidará a lê-las nas horas em trar por si mesmos o caminho reto, há
que tiver quaisquer negócios, e eu uns poucos, todavia, que não o podem
consideraria o tempo que despendi em reconhecer suficientemente, quando ele
escrevê-las como bem empregado, se lhes é claramente mostrado por algum
Vossa Alteza lhes der apenas o tempo outro; e, seja como for, há motivo para
que tiver desejo de perder. estarmos satisfeitos em nossa cons­
ciência, e para assegurar-nos de que as
Disse anteriormente o que me pare­ opiniões que temos, com respeito à
cia que Sêneca devia ter tratado em seu Moral, são as melhores que se possam
livro; examinarei agora o que ele trata. ter,-quando, em vez de nos deixarmos
Não notei aí, em geral, senão três coi­ conduzir cegamente pelo exemplo, to­
sas: a primeira é que se esforça por mamos o cuidado de procurar o conse­
explicar o que é o soberano bem, e que lho dos mais hábeis, e quando empre­
dá a seu respeito diversas definições; a gamos todas as forças de nosso
segunda, que disputa contra a opinião espírito em examinar o que se devia
de Epicuro; e a terceira, que responde seguir. Mas, enquanto Sêneca se aplica
aos que objetam aos filósofos que eles aqui a ornar sua elocução, não é sem-
não vivem segundo as regras que pres­
crevem. Mas, a fim de ver mais parti­ 20 A respeito da vida, jamais se julga, crê-se
cularmente de que maneira ele trata sempre.
322 DESCARTES

pre assaz exato na expressão de seu consiste em seguir assim a ordem do


pensamento; como, ao dizer: Sanabi- mundo e tomar de boa parte todas as
mur, si modo separemur a coetu2 f pa­ coisas que nos acontecem2 5. O que
rece ensinar que basta ser extravagante não explica quase nada, e não se vê
para ser sábio, o que, todavia, não é bem a conexão disso com o que acres­
sua intenção. centa logo em seguida, que esta beati­
No segundo capítulo, não sabe tude não pode sobrevir, nisi sana mens
senão repetir, em outros termos, o que est2 6, etc., a não ser que entenda tam­
disse no primeiro; e acrescenta somen­ bém que secundum naturam vivere é
te que aquilo que se estima comumente viver segundo a verdadeira razão.
ser o bem não o é. No quarto e quinto capítulos, dá ou­
Depois, no terceiro, após haver tras definições do soberano bem, das
usado ainda muitas palavras supér­ quais todas têm alguma relação com o
fluas, diz enfim a sua opinião sobre o sentido da primeira, mas nenhuma o
soberano bem: a saber, que rerum
explica suficientemente; e elas fazem
naturae assentitur21 22 e que ad illius parecer, por sua diversidade, que Sêne-
legem exemplumque formari sapientia
ca não compreendeu claramente o que
est23, e que beata vita est conveniens
queria dizer; pois, na medida em que
naturae suae24. Todas essas explica­
se concebe melhor uma coisa, fica-se
ções me parecem muito obscuras; pois mais determinado a expressá-la apenas
não resta dúvida de que, pela natureza,
não pretende entender nossas inclina­ de uma só maneira. A que me parece
melhor achada está no quinto capítulo
ções naturais, visto que elas nos levam
onde diz que beatus est qui nec cupit
comumente a seguir a voluptuosidade,
nec timet beneficio rationis21, e que
contra a qual discute; mas a sequência
de seu discurso faz julgar que, por beata vita est in recto certoque judicio
rerum naturam, entende a ordem esta­ stabilita28. Mas enquanto não nos
belecida por Deus em todas as coisas ensinar as razões pelas quais nada
existentes no mundo, e que, conside­ devemos temer nem desejar, tudo isso
rando essa ordem como infalível e nos ajudará muito pouco.
independente de nossa vontade, diz Começa, nesses mesmos capítulos, a
que: rerum naturae assentiri et ad illius discutir contra os que colocam a beati­
legem exemplumque formari, sapientia tude na voluptuosidade, e continua nos
est, isto é, que é sabedoria aquiescer à seguintes, Eis por que, antes de exami­
ordem das coisas e fazer aquilo para o ná-los, expressarei aqui meu senti­
qual acreditamos ter nascido; ou mento sobre esta questão.
então, para falar como cristão, que é Noto, primeiramente, que há dife­
sabedoria submeter-se à vontade de rença entre a beatitude, o soberano
Deus e segui-la em todas as nossas
ações; e que beata vita est conveniens 2 5 Descartes não pode aceitar a submissão estóica
naturae suae, isto é, que a beatitude à ordem da natureza universal. Numa Moral cen­
trada no livre arbítrio, a virtude também deve cons­
tituir um esforço para a ação eficaz.
21 Tomar-nos-emos sábios, contanto que saiamos
da multidão. 26 Se o espírito não é são.
22 Ele concorda com a natureza das coisas. 2 7 É feliz aquele que não deseja nem teme, graças à
23 Conformar-se com a lei da natureza e com o seu razão.
exemplo, eis a sabedoria. 28 A vida feliz firma-se sobre um julgamento reto e
2 4 A vida feliz está de acordo com a sua natureza. seguro. |
CARTAS 323

bem2*9 e o fim último ou o alvo a que Pois, tendo Aristóteles considerado


devem tender nossas ações: pois a bea- o soberano bem de toda a natureza hu­
titude não é o soberano bem; mas o mana em geral, isto é, o que pode pos­
pressupõe, e ela é o contentamento ou suir o mais completo de todos os
a satisfação de espírito que vem do homens, teve razão de compô-lo de
fato de o possuirmos. Mas, pelo fim de todas as perfeições de que é capaz a
nossas ações, pode-se entender um e natureza humana; mas isto de nada
outro; pois o soberano bem é, sem dú­ serve para o nosso uso.
vida, a coisa que devemos propor-nos Zenão, ao contrário, considerou
como escopo em todas as nossas aquele que cada homem em seu parti­
ações, e o contentamento de espírito cular pode possuir; eis por que lhe
que daí resulta, sendo o atrativo que assistiu boníssima razão ao dizer que
nos incita a procurâ-lo, é também a consiste apenas na virtude, porque não
bom título chamado nosso fim. há, entre os bens que podemos ter,
Noto, ademais, que Epicuro tomou outro, exceto ela, que dependa inteira­
a palavra voluptuosidade numa acep­ mente de nosso livre arbítrio. Mas
ção diferente da que tomaram aqueles representou esta virtude tão severa e
que disputaram contra ele30. Pois tão inimiga da voluptuosidade, tor­
todos os seus adversários restringiram nando todos os vícios iguais, que só
a significação do termo aos prazeres houve, parece-me, melancólicos, ou
dos sentidos; e ele, ao contrário, a espíritos inteiramente separados do
estendeu a todos os contentamentos do corpo, que pudessem ser seus sectá­
espírito, como se pode facilmente jul­ rios31.
gar pelo que Sêneca e alguns outros Enfim, Epicuro não cometeu erro,
escreveram a seu respeito. ao considerar no que consiste a beati-
Ora, houve três opiniões principais, tude, e qual o motivo, ou o fim a que
entre os filósofos pagãos, sobre o sobe­ tendem nossas ações, ao dizer que é a
rano bem e o fim de nossas ações, a voluptuosidade em geral, isto é, o
saber: a de Epicuro, que disse que era contentamento do espírito; pois ainda
a voluptuosidade; a de Zenão, que pre­ que o exclusivo conhecimento de nosso
tendeu que fosse a virtude; e a de Aris­ dever nos pudesse obrigar a praticar
tóteles que a compôs de todas as boas ações, isto não nos faria, entre­
perfeições, quer do corpo quer do espí­ tanto, gozar de qualquer beatitude, -se
rito. Essas três opiniões podem, pare­ daí não nos adviesse nenhum prazer.
ce-me, ser acolhidas como verdadeiras Mas como se atribui amiúde o nome de
e acordadas entre si, desde que sejam voluptuosidade a falsos prazeres, que
favoravelmente interpretadas. são acompanhados ou seguidos de
inquietude, aborrecimentos e arrepen­
2 9 “Eu distingo entre o soberano bem, que consiste dimentos, muitos acreditaram que esta
no exercício da virtude, ou, o que é o mesmo, na opinião de Epicuro ensinava o vício; e,
posse de todos os bens cuja aquisição depende de
nosso livre arbítrio, e a satisfação de espírito que com efeito, ela não ensina virtude32.
segue desta aquisição. Daí por que, vendo que cons­
titui maior perfeição conhecer a verdade, mesmo
que ela seja em nossa desvantagem, do que ignorá- 31 Zenão está certo ao fazer da virtude o soberano
la, confesso que mais vale ser menos alegre e ter bem. Mas a virtude não deve definir-se por si
mais conhecimento.” (Cartas, a Elisabeth, 6 de mesma. Ela só tem sentido com respeito ao conten­
outubro de 1645.) tamento que ela nos pode levar a atingir.
30 Descartes, aqui, restabelece a verdade histórica 3 2 Mas ela induz a seguir a virtude, o que não pode
sobre Epicuro, amiúde mascarado como hedonista fazer o estoicismo, ao confundir o exercício da vir­
grosseiro. tude e a beatitude.
324' DESCARTES

Mas como, quando existe em alguma Eis por que julgo poder concluir
parte um prêmio para atirar ao alvo, aqui que a beatitude não consiste
suscita-se o desejo de atirar àqueles a senão no contentamento do espírito,
quem se mostra este prêmio, sem que isto é, no contentamento em geral;
por isso possam ganhá-lo, se não vêem pois, embora haja contentamentos que
o alvo, e os que o vêem não são por dependem do corpo, e outros que dele
isso induzidos a atirar, se não sabem não dependem de modo algum, não há
que há um prêmio a ganhar, assim a todavia qualquer outro, exceto no espí­
virtude, que é o alvo, não se faz desejar rito: mas, para haver um contenta­
muito, quando a vemos totalmente só; mento que seja sólido, é preciso seguir
e o contentamento, que é o prêmio, não a virtude3 4, isto é, ter uma vontade
pode ser adquirido, a não ser que a firme e constante de executar tudo o
sigamos33. que julgarmos ser o melhor e empregar
toda a força de nosso entendimento em
33 A imagem do arqueiro e do tiro ao alvo encon-
tra-se muitas vezes entre os moralistas antigos. Ela bem julgar. Reservo para outra vez o
é criticada pelo estoicismo, que se recusa a compa­ considerar o que Sêneca escreveu a
rar o fim da sabedoria com um fim exterior à ação. este respeito; pois minha carta já está
(Cf. Cícero, De Finibus, UI, 7.)
3 4 Conclusão epicurista: é o enunciado mesmo do demasiado longa, e só me resta o espa­
imperativo hipotético kantiano. ço necessário para escrever que sou,

Minha Senhora,
de Vossa Alteza
o mui humilde e mui obediente servidor,
DESCARTES

De Egmond, 18 de agosto de 1645.


A Elisabeth

Egmond, l.° de setembro de 1645.

Minha Senhora,

Como reinasse ultimamente incer­ aquilo que disse em geral de todos os


teza se Vossa Alteza estava em Haia homens só deve ser entendido quanto
ou em Rhenen, enderecei minha carta aos que possuem o livre uso de sua
por Leyde, e a que me fez a honra de razão, e com isso que sabem o cami­
escrever só me foi entregue depois que nho que é preciso trilhar para chegar a
o mensageiro, que a levara a Alckmar, esta beatitude. Pois não há quem não
daí partiu. O que me impediu de poder deseje tomar-se feliz; muitos, porém,
testemunhar mais cedo quão orgulhoso não conhecem o meio3 5; e amiúde a
me sinto do fato de o julgamento, que indisposição que há no corpo impede
fiz do livro que Vossa Alteza se deu ao que a vontade seja livre. Como acon­
trabalho de ler, não ser diferente do tece também quando dormimos; pois o
seu, e de minha maneira de raciocinar maior filósofo do mundo não poderia
lhe parecer bastante natural. Conven­ impedir-se de ter maus sonhos, quando
ço-me de que, se V. A. tivesse o lazer seu temperamento a tanto o dispõe.
de pensar, tanto quanto eu o fiz, nas Todavia a experiência mostra que, se
coisas de que ele trata, nada poderia se concebeu muitas vezes um pensa­
escrever que já não houvesse melhor mento quando se teve o espírito em
observado do que eu; mas como a liberdade, este reaparece em seguida,
idade, o nascimento e as ocupações de qualquer que seja a indisposição que
V. A. não o puderam permitir, talvez o sinta o corpo; assim, posso dizer que
que escrevo possa servir para poupar- meus sonhos jamais me representam
lhe um pouco o tempo e minhas falhas algo de incômodo, e sem dúvida tira-se
mesmas fomeçam-lhe ocasião de notar grande vantagem do fato de haver-se,
a verdade. desde há muito, acostumado a não nu­
Como, quando falei de uma beati­ trir pensamentos tristes3 6. Mas não
tude que depende inteiramente de podemos responder absolutamente por
nosso livre arbítrio e que todos os ho­
mens podem adquirir sem nenhuma 3 5 A Moral é, portanto, encarada como a técnica
apta a assegurar nossa felicidade nesta vida. Desse
assistência de alhures, V. A. observou ponto de vista, ela é comparável à Medicina.
muito bem que hâ moléstias que, tiran­ 3 6 Embora o sono represente uma das situações-
do o poder de raciocinar, tiram tam­ limites da união, visto que a vontade é nele reduzida
à ineficácia (não depende de mim acordar, nota
bém o de gozar de uma satisfação de Descartes), o Cogito mantém aí seus direitos e eu
espírito racional; e isto me informa que posso, em certa medida, controlar meus sonhos.
326 DESCARTES

nós mesmos, a não ser enquanto nos podem servir para facilitar o uso da .'J
pertencemos, e significa menos perder virtude3 7; pois todas as ações de nossa
a vida do que perder o uso da razão; alma que nos conseguem alguma per- J
pois, mesmo sem os ensinamentos da feição são virtuosas, e todo o nosso í
fé, só a Filosofia natural leva nossa contentamento consiste apenas no
alma a esperar um estado mais feliz, nosso testemunho interior de possuir- f
após a morte, do que aquele em que se mos alguma perfeição. Assim, jamais
encontra presentemente; não há coisa poderiamos praticar qualquer virtude
que ela lhe faça temer como mais (isto é, fazer o que nossa razão nos
deplorável do que estar ligada a um persuade que devemos fazer), se daí
corpo que lhe rouba inteiramente a não recebéssemos satisfação e prazer.
liberdade. Mas há duas espécies de prazer: uns
Quanto às outras indisposições, que que pertencem ao espírito só e outros
não perturbam totalmente o senso, mas que pertencem ao homem, isto é, ao
alteram apenas os humores, e fazem espírito enquanto unido ao corpo; e
com que a gente se sinta extraordina­ esses últimos, apresentando-se confu­
riamente inclinada à tristeza, à cólera samente à imaginação, parecem muitas
ou a alguma outra paixão, dão sem dú­ vezes maiores do que são, principal­
vida pena, mas podem ser sobrepuja­ mente antes de os possuirmos, o que é
das, e até proporcionam à alma motivo fonte de todos os males e de todos os
de uma satisfação tanto maior quanto erros da vida. Pois, segundo a regra da
foram mais difíceis de vencer. E creio razão, cada prazer dever-se-ia medir
também o mesmo de todos os impedi­ pela grandeza da perfeição que o pro­
mentos exteriores, como do brilho de duz, e é assim que medimos aqueles
um grande nascimento, dos galanteios cujas causas nos são claramente co­
da corte, das adversidades da fortuna e nhecidas. Mas amiúde a paixão nos faz
também de suas grandes prosperi- julgar certas coisas melhores e mais
dades, as quais ordinariamente obstam desejáveis do que o são; pois, quando
que se possa desempenhar o papel de nos demos muito trabalho em adquiri-
las e perdemos, entretanto, a ocasião
filósofo mais do que o fazem as des­ de possuir outros bens mais verdadei­
graças. Pois, quando temos tudo quan­ ros, o gozo nos faz conhecer seus defei­
to desejamos, esquecemos de pensar tos, e daí provêm os desdéns, os pesa­
em nós, e quando, em seguida, a sorte res e os arrependimentos. Eis por que o
muda, vemo-nos tanto mais surpresos verdadeiro ofício da razão é examinar
quanto mais nos fiávamos nela. Enfim, o justo valor de todos os bens cuja
pode-se dizer em geral que não há aquisição pareça depender de alguma
coisa capaz de nos subtrair inteira­ maneira de nossa conduta, a fim de
mente o meio de nos tornarmos felizes, que nunca deixemos de envidar todos
desde que ela não perturbe nossa os nossos cuidados no esforço de obter
razão; e que nem sempre as que pare­ aqueles que são, com efeito, os mais
cem mais aborrecidas são as que mais desejáveis; no que, se a fortuna se opõe
prejudicam. a nossos desígnios e impede seu bom
Mas, a fim de saber exatamente o êxito, teremos ao menos a satisfação
quanto cada coisa pode contribuir
para o nosso contentamento, cumpre 3 7 Esboço de um cálculo dos prazeres em função
considerar quais são as causas que o da grandeza da perfeição que os produz. A função
produzem, e isso constitui também um da razão, diz ainda Descartes, consiste em “saber
exatamente o quanto cadá coisa pode contribuir
dos principais conhecimentos que para nosso contentamento”. (6 de outubro de 1645.)
CARTAS 327

(de ifâda haver perdido por nossa falta, apenas. Digo comumente; pois nem
Jtó não deixaremos de desfrutar de toda todos os do espírito são louváveis, por­
JÉya beatitude natural cuja aquisição haja que podem ser fundados em alguma
[estado ao nosso alcance. falsa opinião, como o prazer que se
Assim, por exemplo, a cólera pode sente em maldizer, que se funda apenas
[às vezes excitar em nós desejos de vin- em que alguém pensa dever ser tanto
■r gança tão violentos que nos levará a. •mais estimado quanto menos o forem
imaginar maior prazer em castigar os outros; e eles podem também enga­
nosso inimigo do que em conservar nar-nos por sua aparência, quando al­
nossa honra ou nossa vida, induzindo- guma forte paixão os acompanha,
nos a expor imprudentemente uma e como ocorre no que dá a ambição.
outra por esse motivo. Ao passo que, Mas a principal diferença existente
se a razão examina qual o bem ou a entre os prazeres do corpo e os do espí­
perfeição em que se baseia este prazer rito consiste em que, sendo o corpo
que tiramos da vingança, não encon­ sujeito a mudança perpétua e depen­
trará nenhum outro (ao menos quando dendo mesmo sua conservação e seu
tal vingança não serve para impedir bem-estar desta mudança, todos os
que nos ofendam de novo), exceto que prazeres que lhe concernem quase não
isso nos faz imaginar que dispomos de duram38 39; pois procedem apenas da
alguma sorte- de superioridade e algu­ aquisição de algo que é útil ao corpo,
ma vantagem sobre aquele de quem no momento em que os recebe; e, tão
nos desafrontamos. O que constitui logo cessa de lhe ser útil, eles também
amiúde apenas vã imaginação, que não
cessam, ao passo que os da alma
merece ser estimada em comparação
com a honra ou a vida, nem sequer em podem ser imortais como ela, contanto
comparação com a satisfação que que tenham um fundamento tão sólido
teríamos de ver-nos senhores de nossa que nem o conhecimento da verdade
cólera, abstendo-nos de nos vingar. ou qualquer falsa persuasão os des­
E algo semelhante acontece em truam.
todas as outras paixões; pois não há De resto, o verdadeiro uso de nossa
uma única que não nos represente o razão para a conduta da vida consiste
bem ao qual ela tende com mais brilho apenas em examinar e considerar sem
do que merece, e que não nos leve' a paixão o valor de todas as perfeições,
imaginar prazeres bem maiores antes tanto do corpo como dó espírito, que
que os possuamos, os quais não encon­ podem ser adquiridas por nossa condu­
tramos em seguida, quando os ta, a fim de que, sendo de ordinário
temos3 8 O que faz comumente repro­ obrigados a nos privar de algumas,
var a voluptuosidade, porque nos ser­ escolhamos sempre as melhores40. E,
vimos desta palavra apenas para signi­ como as do corpo são as menores,
ficar prazeres quefiios enganam muitas
vezes por sua aparência, e nos fazem pode-se dizer em geral que, sem elas,
negligenciar outros muito mais sólidos,
mas cuja expectativa não toca tanto, nome 38 Os prazeres do corpo não são suspeitos em
de um ideal ascético: verifica-se apenas que
como são comumente os do espírito são passageiros e proveitosos a curto prazo.
40 Toda esta passagem ilustra as páginas de Max
Scheler sobre a subordinação dos valores vitais aos
38 A crítica das paixões será uma crítica da repre­ valores de utilidade e a diferença entre o ascetismo
sentação imaginativa que nos leva a sobrestimar os moderno e o antigo ou evangélico. (Cf. L 'Homme
prazeres e uma previsão do prazer efetivo. du Ressentiment, Von Umsturze der Werte.)
328 DESCARTES

há meio de se tomar felizes41. Toda­ isentar-nos de ter paixões; basta que as,
via, não sou, de modo algum, de opi­ assujeitemos à razão e, uma vez assiin"
nião que devamos desprezá-las inteira­ domesticadas, algumas são tanto maisj
úteis quanto mais pendem para o-
mente, ou mesmo que devamos excesso. E jamais terei outra mais^
excessiva do que aquela que me leva:
41 Não se trata, pois, senão do pior: a.inspiração
essencialmente epicurista toma a sobrepor-se ao ao respeito e à veneração que vosí devo^
estoicismo aparente. e me faz ser,

Minha Senhora,
de Vossa Alteza
o mui humilde e mui obediente servidor,
DESCARTES

De Egmond, l.° de setembro de 1645.


A Chanut

[Egmond], l.° de fevereiro de 1647.


Senhor,

A amável carta que acabo de rece­ somente por sua vontade mas também
ber de vossa parte não me permite realmente e de fato, na maneira que lhe •
repousar enquanto não lhe houver convém estar unida, o movimento de
dado resposta; e, embora proponhais sua vontade, que acompanha o conhe­
nela questões que outros mais eruditos cimento que ela tem de ser-lhe um
do que. eu teriam muito trabalho para bem, é sua alegria; e se está ausente, o
examinar em pouco tempo, todavia, movimento de sua vontade que acom­
porque sei que, mesmo se eu empre­ panha o conhecimento que ela tem de
gasse muito tempo nisso, não poderia ser dele privado, é sua tristeza; mas
resolvê-las inteiramente, prefiro pôr aquele que acompanha o conheci­
prontamente sobre o papel aquilo que mento que ela tem de que seria bom
o.zelo, que me incita, me ditará do que adquiri-lo é seu desejo. E todos estes
pensar.com mais vagar e não escrever movimentos da vontade nos quais con­
em seguida nada melhor. sistem o amor, a alegria e a tristeza, e
Quereis saber minha opinião no o desejo, na medida em que são pensà-
tocante a três coisas: 1 — o que é o mentos racionais, e não paixões, po-
amor; 2 — se só a luz natural nos ensi­ der-se-iam achar em nossa alma, ainda
na a amar a Deus; 3 — qual dos dois que esta não tivesse corpo algum42.
desregramentos e maus usos é pior, o Pois, por exemplo, se ela percebesse.
do amor ou o do ódio ? que há na natureza muitas coisas a
conhecer, que são muito belas, sua
Para responder ao primeiro ponto,
vontade dirigir-se-ia infalivelmente a
distingo entre o amor que é puramente
intelectual ou racional e o que é uma amar o conhecimento destas coisas,
isto é, a considerá-lo como lhe perten­
paixão. O primeiro consiste, parece-
cendo. E se notasse, ademais, possuir
me, apenas em que, quando nossa
este conhecimento, isso dar-lhe-ia ale­
alma percebe algum bem, seja presen­
gria; se considerasse que não o pos­
te, seja ausente, que julga lhe ser
suía, isso, dar-lhe-ia tristeza; se pen­
conveniente, ela se lhe junta volunta­ sasse que^he seria bom adquiri-lo, isso
riamente, isto é, considera-se a si pró­
dar-lhe-ia desejo. E. nada haveria em
pria, com este bem, qual um todo, de
todos esses movimentos de sua vonta-
que ele é uma parte e ela a outra. Em
seguimento do que, se ele está presente,
42 Delimitação do domínio puramente racional da
isto é, se ela o possui, ou é por ele pos­ ciência das paixões: os sentimentos que concernem
suída, ou, enfim, caso se lhe una não à alma somente.
330 DESCARTES

de que lhe fosse obscuro, nem do que dispõe incontinenti o coração aos
ela não dispusesse de um mui perfeito movimentos que excitam a paixão dejk
conhecimento, desde que refletisse amor e, quando o coração se achag|
sobre os seus pensamentos. assim disposto por outras causas, isto®
Mas, enquanto nossa alma estâ leva a alma a imaginar qualidades^
unida ao corpo, este amor racional é amáveis em objetos em que ela veria sój?
ordinariamente acompanhado do defeitos em outros tempos. E não éW
outro, que se pode chamar sensual ou maravilha que certos movimentos do
sensitivo, e que, como disse sumaria­ coração estejam assim naturalmente
mente de todas as paixões, apetites e unidos a certos pensamentos, com os
sentimentos, na página 461 de meus quais não têm qualquer semelhança;
Príncipes em francês43*, não é mais do pois, pelo fato de nossa alma ser de tal
que um pensamento confuso provo­ natureza que pode estar unida a um
cado na alma por algum movimento corpo, possui também a propriedade
dos nervos, pensamento que a dispõe a de que cada um de seus pensamentos
este outro pensamento mais claro em pode associar-se de tal modo a alguns
que consiste o amor racional. Pois, movimentos ou outras disposições
como na sede, o sentimento que se tem deste corpo, que, quando as mesmas
da secura da garganta é um pensa­ disposições nele se encontram outra
mento confuso que dispõe ao desejo de vez, induzem a alma ao mesmo pensa­
beber, mas não é este desejo mesmo; mento; e, reciprocamente, quando o
assim, no amor sente-se não sei que mesmo pensamento retoma, a alma
calor em tomo do coração e uma gran­ prepara o corpo para receber a mesma
de abundância de sangue no pulmão, disposição. Assim, ao aprendermos
que nos fazem abrir até os braços uma língua, juntamos as letras ou a
como para abraçar algo, e isto toma a pronúncia de certas palavras, qjie são
alma inclinada a juntar a si voluntaria­ coisas materiais, às suas significações,
mente o objeto que se lhe apresenta. que são pensamentos; de sorte que, ao
Mas o pensamento pelo qual a alma ouvirmos novamente as mesmas pala­
sente este calor é diferente daquele que vras, concebemos as mesmas coisas; e,
a une ao referido objeto; e acontece ao concebermos as mesmas coisas,
mesmo às vezes que tal sentimento de recordamo-nos das mesmas pala­
amor se acha em nós, sem que nossa vras4 5.
vontade se aplique a amar algo, porque Mas as primeiras disposições do
não encontramos objeto que julguemos corpo que acompanham assim os nos­
digno disso. Pode acontecer também, sos pensamentos, ao ingressarmos no
ao contrário, que conheçamos um bem
45 Vale notar este paralelismo entre o condiciona­
que merece muito e que nos juntemos a mento linguístico e o condicionamento passional.
ele voluntariamente, sem alimentar, Ele mostra sobretudo quão distante está Descartes
por isso, qualquer paixão, porque o da noção moderna de “sentido” entendido como
significação (por exemplo, psicopatológica ou esté­
corpo não está a isso disposto. tica) essencialmente inseparável de seu portador
Mas, de ordinário, esses dois amores material. Para Descartes, há as significações univer­
acham-se juntos 4 4: pois há tal ligação sais, de uma parte, e os signos materiais aos quais
elas correspondem em cada língua, de outra. Esse
entre um e outro que, quando a alma caráter totalmente convencional da linguagem liga-
julga que um objeto é digno dela, isto se ao pensamento “claro e distinto”: visto que a lin­
guagem é inteiramente arbitrária, podemos manejar
as palavras de maneira que correspondam exata­
43 Isto é, arts. 189 e 190 da quarta Parte. mente a idéias “naturais”, compreensíveis intuitiva­
4 4 A distinção de direito dos dois amores não im­ mente. Em geral, devemo-nos fiar apenas nas
pede a sua união de fato, graças a um processo de evidências e fazer da linguagem apenas o veículo
condicion amento. das evidências.
CARTAS 331

mundo, juntaram-se sem dúvida mais diversas impressões; e embora, alguns


estreitamente com eles do que os que anos depois, começasse a obter outras
os acompanham mais tarde. E, para alegrias e outros amores, além dos que
examinar a origem do calor que se dependem apenas da boa constituição
sente em tomo do coração e a das ou­ e conveniente nutrição do corpo, toda­
tras disposições do corpo que acompa­ via, o que houve de intelectual em suas
nham o amor, considero que, desde o alegrias ou amores veio sempre acom­
primeiro momento em que nossa alma panhado dos primeiros sentimentos
se uniu ao corpo, é verossímil que que teve deles, e mesmo também dos
tenha sentido alegria e logo depois movimentos ou funções naturais que
amor, seguido talvez do ódio e da tris­ estavam então no corpo; de modo que,
teza; e que as mesmas disposições do na medida em que o amor era causado,
corpo, que então causaram nela estas antes do nascimento, somente por um
paixões, tenham acompanhado depois, alimento conveniente que, entrando
naturalmente, seus pensamentos. Julgo abundantemente no fígado, no coração
que sua primeira paixão foi a alegria, e no pulmão, excitava neles mais calor
porque não é crível que a alma fosse que de costume, resulta daí que agora
posta no corpo, a não ser quando ele este calor acompanha sempre o amor,
estivesse bem disposto, e quando estâ embora provenha de outras causas
assim bem disposto isto nos dá, natu­ muito diferentes. E se eu não temesse
ralmente, alegria. Digo também que o estender-me demasiado, poderia mos­
amor veio após porque, escoando-se trar, por miúdo, que todas as outras
incessantemente a matéria de nosso disposições do corpo, que se encon­
corpo, como a água de um rio, e sendo traram no começo de nossa vida com
necessário que venha outra em seu estas quatro paixões, ainda as acompa­
lugar, é pouco verossímil que o corpo nham. Mas direi apenas que se trata de
estivesse assim bem disposto, se não sentimentos confusos de nossa infân­
houvesse também perto dele alguma cia, que, permanecendo unidos aos
matéria muito própria a servir-lhe de pensamentos racionais pelos quais
alimento, e que a alma, unindo-se amamos aquilo que julgamos digno;
voluntariamente a esta nova matéria, são causa de que a natureza do amor
tivesse amor por ela46; assim como, nos seja difícil de conhecer47. Acres­
mais tarde, se aconteceu faltar este ali­ cento a isso que muitas outras paixões,
mento, a alma teve daí a tristeza. E se como a alegria, a tristeza, o desejo, o
veio outro em seu lugar, que não fosse temor, a esperança, etc., se mesclam
próprio para nutrir o corpo, teve ódio diversamente ao amor, impedindo que
por ele.
Eis as quatro -paixões que creio 4 7 Nossas paixões atuais acham-se ligadas a uma
haverem estado em nós como primei­ afetividade confusa de origem orgânica, proveniente
ras e as únicas que possuímos antes de do princípio do prazer, que se poderia comparar à
“fome de prazer”, desviada pelo “recalque primá­
nosso nascimento; e creio também que rio”, segundo a psicanálise. Não obstante, esses tex­
eram então apenas sentimentos ou tos evocam apenas superficialmente o freudismo:
pensamentos muito confusos; porque a seria impossível, no contexto cartesiano, empreen­
der, por exemplo, a formação do sintoma (por
alma se achava de tal forma presa à impossibilidade do recalque puro e simples e neces­
matéria que não podia ainda aplicar-se sidade de tomar como “representante” um afeto
arcaico bastante ambíguo para que o eu possa tole­
a outra coisa salvo a receber dela as rá-lo). O homem passional de Descartes está ligado
apenas a uma infância abstrata; o condicionamento
46 O amor é um atrativo que suscita na alma o de­ não é a regressão. Em suma, é a falta da dimensão
sejo de tudo fazer com vistas a manter “todas as histórica e da dimensão do sentido que invalida
disposições requeridas para conservar a união”. toda aproximação entre Descartes e Freud.
332 DESCARTES

se reconheça no que ele consiste mente por alguns ídolos que chamam
propriamente. O que é principalmenté com seu nome; do mesmo modo que
notável no tocante ao desejo; pois é to­ Ixíoh, no dizer dos poetas, abraçava
mado tão comumente pelo amor que uma nuvem em vez da Rainha dos
isso leva a distinguir duas espécies de Deuses. Todavia, não alimento a
amores: uma que se chama amor de menor dúvida de que possamos amar
benevolência, no qual este desejo não verdadeiramente Deus pela exclusiva
aparece tanto, e a outra que se chama força de nossa natureza. Não asseguro,
amor de concupiscência, o qual não é de forma alguma, que tal amorl seja
senão um desejo muito violento, basea­ meritório sem a graça e deixo o desen­
do num amor amiúde fraco. redar disso aos teólogos; mas ouso
Mas seria preciso escrever um alen­ dizer que, com respeito a esta vida, é a
tado volume para tratar de todas as mais arrebatadora e a mais útil paixão
coisas que pertencem a esta paixão; e, que possamos ter; e, mesmo, que ela
embora sua índole seja a de fazer com pode ser a mais forte, embora haja
que nos comuniquemos o mais possí­ necessidade, para tanto, de meditação
vel, de modo que me incita a tentar mui atenta, porque somos continua­
aqui dizer-vos mais coisas do que sei, mente distraídos pela presença de ou­
quero no entanto conter-me, no temor tros objetos.
de que a longura desta carta vos enfa­ Ora, o caminho que julgo devermos
de Assim, passo à vossa segunda seguir, para chegar ao amor a Deus, é
questão, a saber: se só a luz natural o de considerá-lo um espírito, ou uma
nos ensina a amar a Deus e se se pode coisa pensante, donde, como a natu­
amá-lo pela força desta luz. Vejo que reza de nossa alma possui alguma
há duas fortes razões para duvidar semelhança com a suá, acabamos
disso; a primeira é que os atributos de persuadindo-nos de que é uma emana­
Deus que consideramos mais comu­ ção de sua soberana inteligência et
mente acham-se elevados tão acima de divinae quasi partícula aurae49. Do
nós que não concebemos de maneira mesmo modo, como nosso conheci­
alguma que nos possam ser convenien­ mento parece poder aumentar gradati­
tes, o que é causa de não nos unirmos a vamente até o infinito, e como, sendo o
eles voluntariamente; a segunda é que de Deus infinito, está ele no alvo a que
em Deus nada há que seja imaginável, visa o nosso, se não considerarmos
o que faz com que, mesmo se tivés­ nada mais, podemos chegar à extrava­
semos por ele algum amor intelectual, gância de desejarmos ser deuses e
não pareça possível dedicar-lhe qual­ assim, por um erro mui grande, amar
quer amor sensitivo, porque deveria somente a divindade em vez de amar a
passar pela imaginação para vir do Deus. Mas se, além disso, advertimos a
entendimento ao sentido. Eis por que infinidade de seu poder, pela qual ele
não me espanto se alguns filósofos se criou tantas coisas, de que somos ape­
persuadem de que só há a religião cris­ nas a menor parte; a extensão de sua
tã que, ensinando-nos o mistério da providência, que o faz ver com um só
encarnação, pelo qual Deus se abaixou pensamento tudo o que foi, é, será e
àté tomar-se semelhante a nós, nos poderia ser; a infalibilidade de seus
toma capazes de amá-lo48; e que
aqueles que, sem o conhecimento deste 48 Descartes admite que só a religião cristã nos
mistério, parecem nutrir paixão por al­ permite amar a Deus, mas não — como Pascal.:—
que só ela nos permite reconhecê-lo.
guma divindade, não a nutrem, por 49 Horácio, Sátiras, II, 2, v. 79, “quase uma parce­
isso, pelo verdadeiro Deus, mas so­ la do sopro divino”.
CARTAS 333

decretos, que, embora não perturbem aparte muito do comércio dos sentidos,
nosso livre arbítrio, não podem de para se representar as verdades que
forma alguma ser mudados; e enfim, nela provocam este amor; daí resulta
de um lado, a nossa pequeneza e, de que não parece que ela possa comuni­
outro, a grandeza de todas as coisas cá-lo à faculdade imaginativa para tor-
criadas, reparando de que modo elas ná-lo uma paixão. Mas, apesar disso,
dependem de Deus e considerando-as não duvido de que ela lha comuni­
de maneira que tenham relação com que52. Pois, embora nada possamos
sua onipotência, sem encerrá-las numa imaginar do que existe em Deus, o
esfera, como procedem os que preten­ qual é o objeto de nosso amor, pode­
dem que o mundo seja finito50: a mos imaginar o nosso amor mesmo,
meditação de todas essas coisas enche que consiste em querermos unir-nos a
um homem que as entende bem de uma algum objeto, isto é, à vista de Deus,
alegria tão extrema que, longe de ser considerar-nos pequeníssima parte de
injurioso e ingrato com Deus a ponto toda a imensidade das coisas que ele
de desejar ocupar-lhe o lugar, pensa jâ criou; porque, conforme sejam objetos
ter vivido o bastante por haver Deus diversos, podemos unir-nos a eles ou
lhe feito a graça de levá-lo a tais juntá-los a nós, de diversas maneiras; e
conhecimentos; e, unindo-se-lhe total e a simples idéia desta união basta para
voluntariamente, ama-o tão perfeita- excitar o calor em tomo do coração e
mente que nada mais deseja no mundo, causar violentíssima paixão 53.
exceto que seja feita a vontade de É verdade também que o uso de
Deus. E isso é causa para ele não mais nossa língua e a civilidade dos cumpri­
temer a morte, nem as dores, nem as mentos não permitem que digamos,
desgraças, porquanto sabe que nada aos que pertencem a uma condição
pode acontecer-lhe, salvo o que Deus muito acima da nossa, que os amamos,
houver decretado; e ele ama de tal mas somente que os respeitamos, hon­
forma este divino decreto, estima-o tão ramos, estimamos e que empregamos
justo e tão necessário, sabe que deve zelo e devoção no serviço deles; e a
depender tão inteiramente dele, que, razão disso parece-me ser que a amiza­
mesmo na expectativa da morte ou de de dc homem para homem toma de
algum outro mal, se pudesse, por certa maneira iguais aqueles em quem
impossível que seja, mudá-lo, não teria ela é recíproca; e, assim, que, enquanto
vontade de fazê-lo. Mas, se não recusa nos esforçamos por nos fazer amar por
os males ou as aflições, porque lhe vêm algum grande, se lhe disséssemos que o
da providência divina, recusa ainda amamos, poderia pensar que o trata­
menos todos os bens ou prazeres líci­ mos de igual e que lhe fazemos mal.
tos de que pode gozar nesta vida, por­
que também vêm dele; e, recebendo-os 51 A submissão à vontade de Deus ajusta-se assim
ao naturalismo moral: a concordância entre minha
com júbilo, sem ter qualquer receio vontade e a de Deus não atua necessariamente em
pelos males, seu amor o toma perfeita- detrimento de minha felicidade nesta vida.
mente feliz51. 62 Distinção entre a via do entendimento puro, que
leva ao conhecimento da verdade, e a via imagina­
É certo ser necessário que a alma se tiva, que conduz ao amor desta verdade.
63 “Por aí Descartes encontraria em certa medida
50 O conhecimento da infinidade positiva de Deus ,os caminhos de Inácio de Loiola. . . Quando se
nos impede de confundir esta infinidade com a inde- trata de engendrar um sentimento religioso vivo e
finidade do progresso de nosso conhecimento e verdadeiro, uma paixão, por exemplo, o amor de
proíbe, no fim de contas, qualquer teoria humanista Deus, Descartes, como Inácio de Loiola, recomenda
do progresso. A transcendência de Deus (indispen­ a representação imaginativa, isto é, concreta (por
sável à ciência) opõe, assim, obstáculo ao natura­ impressão distinta) de nossa união com o ser infini­
lismo e ao humanismo. to.” (Guéroult, op. cit., II, pág. 226.)
334 DESCARTES

Mas, como os filósofos não costumam que nós, por exemplo, se amamos uma
dar diversos nomes às coisas conve­ flor, um pássaro, um edifício, ou coisa
nientes a uma mesma definição, e semelhante, a mais alta perfeição a que
como não sei de outra definição de possa atingir este amor, segundo seu
amor, exceto que é uma paixão que nos verdadeiro uso, não pode levar-nos a
leva a juntar-nos voluntariamente a pôr nossa vida em qualquer risco para
algum objeto, sem distinguir se este ob­ a conservação destas coisas, porque
jeto é igual a nós, ou maior, ou menor elas não são partes mais nobres do
do que nós, parece-me que, para falar a todo que compõem conosco, assim
linguagem deles, devo dizer que se como nossas unhas e nossos cabelos
pode amar a Deus. quanto ao nosso corpo; e seria uma
E se eu vos perguntasse, em sã cons­ extravagância pôr o corpo todo em
ciência, se não amais de modo algum a risco para a conservação dos cabelos.
esta grande Rainha, junto à qual estais Mas quando dois homens amam-se
presentemente, em vão poderieis afir­ mutuamente, a caridade quer que cada
mar que lhe devotais respeito, venera­ um dele estime seu amigo mais do que
ção e admiração, e eu não deixaria de a si próprio; eis por que sua amizade
julgar que lhe dedicais também mui não será de modo algum perfeita, se
ardente afeição. Pois o vosso estilo não estiverem prontos a dizer, um em
corre tão bem, quando falais dela, que, favor do outro: Me me adsum quifeci,
embora eu creia em tudo o que dizeis a in me convertite ferrum, etc.54. Da
respeito, porque sei que sois muito sin­ mesma maneira, quando um particular
cero e o ouvi também dizer de outros, se une voluntariamente a seu príncipe,
não acredito entretanto que pudésseis ou a seu país, se o seu amor é perfeito,
descrevê-la como o fazeis, se não tivés­ ele deve estimar-se apenas como parte
seis muito zelo, nem que pudésseis muito pequena do todo que compõe
estar junto de tão grande luz sem dela com eles, e assim não temer ir de
receber calor. encontro a uma morte certa a seu ser­
E muito menos é verdade que o viço, mais do que se teme tirar um
nosso amor pelos objetos que se achàm pouco de sangue do braço para fazer
acima de nós seja jnenor do que o que que o resto do corpo se porte melhor. E
temos pelos outros; creio que, por sua vemos todos os dias exemplos deste
natureza, é mais perfeito, e que leva a amor, mesmo em pessoas de baixa
abraçar com mais ardor os interesses condição, que dão as vidas de bom
daquilo que se ama. Pois pertence à grado para o bem do seu país, ou para
natureza do amor fazer com que nos a defesa de um grande pelo qual se
consideremos com o objeto amado afeiçoam. Em consequência disso, é
como um todo de que somos apenas evidente que nosso amor para com
uma parte, e que transfiramos de tal Deus deve ser incomparavelmente o
modo os cuidados que habitualmente maior e o mais perfeito de todos.
temos por nós mesmos à conservação Não receio que esses pensamentos
deste todo, que dele não retemos para metafísicos dêem demasiado labor a
nós em particular senão uma parte tão vosso espírito; pois sei que ele é muito
grande ou tão pequena quanto cremos
ser uma parte grande ou pequena do capaz em tudo; mas confesso que can­
todo ao qual demos o afeto: de sorte sam o meu, e que a presença'dos obje-
que, se nos unimos voluntariamente a 5 4 Virgílio, Eneida, IX, 427. “Fui eu quem p fez;
um objeto que estimamos menor do voltai o ferro contra mim.” !
CARTAS 335

tos sensíveis não permite que eu me tuosa do que se ocupassem o espírito


detenha aí por muito tempo. Eis por com outros pensamentos.
que passo à terceira questão, a saber: Quanto ao segundo ponto, não en­
qual dos dois desregramentos épior, o contro nele qualquer dificuldade: pois
do amor, ou o do ódio? Mas acho-me o ódio é sempre acompanhado de tris­
mais impedido a respondê-la do que às teza e pesar; e, qualquer que seja o pra­
duas outras, porque haveis explicado zer que algumas pessoas sintam em
muito menos a vossa intenção e porque fazer mal aos outros, creio que a
esta dificuldade' pode entender-se em voluptuosidade delas é semelhante à
diversos sentidos, que me parecem dos demônios, que, segundo a nossa
dever ser examinados separadamente. religião, não deixam de estar danados,
Pode-se dizer que uma paixão é pior embora imaginem continuamente vin­
do que outra, porque ela nos toma gar-se de Deus, atormentando os ho­
menos virtuosos; ou porque ela repug- mens nos infernos. Ao contrário, o
na mais ao nosso contentamento; ou, amor, por mais desregrado que seja,
enfim, porque nos arrasta a excessos proporciona prazer e, embora os poe­
maiores e nos dispõe a infligir maior tas dele se queixem muitas vezes em
mal aos outros homens. seus versos, creio, não obstante, que os
Quanto ao primeiro ponto, acho-o homens se absteriam naturalmente de
duvidoso. Pois, considerando as defini­ amar se não encontrassem nele mais
ções dessas duas paixões, julgo que o doçura do que amargura; e que todas
amor que temos por um objeto que não as aflições, cuja causa se atribui ao
o merece nos pode tomar piores do que amor, provêm apenas das outras pai­
o ódio que temos por outro que deve­ xões que o acompanham, a saber, dese­
riamos amar; porque há mais perigo jos temerários e esperanças mal funda­
em estar unido a uma coisa que é má, e das.
de ser como que transformado nela, do
Mas se se pergunta qual dessas duas
que em estar separado voluntariamente
paixões nos arrasta a maiores excessos
de uma coisa que é boa. Mas, quando
e nos toma capazes de infligir maior
tomo em conta as inclinações ou hábi­
mal ao resto dos homens, parece-me
tos que nascem dessas paixões, mudo
que devo dizer que é o amor; posto que
de parecer: pois, vendo que o amor,
por mais desregrado que seja, tem sem­ possui naturalmente mais força e mais
pre o bem por objeto, não me parece vigor do que o ódio; e que amiúde a
que possa corromper tanto nossos cos­ afeição que se tem por um objeto de
tumes como o ódio, que se propõe ape­ pouca importância causa incompara­
nas o mal. E vemos, por experiência, velmente maiores males do que pode­
que a gente de mais bem toma-se ría fazê-lo o ódio a outro de mais
pouco a pouco maliciosa quando se vê valor. Provo que o ódio tem menos
obrigada a odiar alguém; pois, ainda vigor do que o amor pela origem de um
que seu ódio seja justo, representam-se e de outro. Pois, se é verdade quç os
tão amiudadamente os males que rece­ nossos primeiros sentimentos de amor
bem de seus inimigos e também os que vieram do fato de nosso coração rece­
desejam a eles, que isto os acostuma ber abundância da nutrição que lhe era
pouco a pouco à malícia. Ao contrá­ conveniente e, ao contrário, que nossos
rio, os que se entregam a amar, mesmo primeiros sentimentos de ódio foram
que seu amor seja desregrado e frívolo, causados por um alimento nocivo que
não deixam de se tomar amiudada­ vinha ao coração e que agora os mes­
mente gente mais honesta e mais vir­ mos movimentos acompanham ainda
. 336 DESCARTES

as mesmas paixões, assim, como foi hâ ruína está pronto a provocar, a fim de
pouco dito, é evidente que, quando que isso sirva de ceva à extravagância
amamos, o mais puro sangue de nossas de seu furor. Dir-se-á talvez que o ódio
veias corre abundantemente para o é a causa mais próxima dos males que
coração, o que envia uma porção de se atribuem ao amor, porque, se ama­
espíritos animais ao cérebro e assim mos alguma ■ coisa, odiamos, pelo
nos dá mais força, mais vigor e mais mesmo meio, tudo o que lhe é contrá­
coragem; ao passo que, se alimen­ rio. Mas o amor é sempre mais culpa­
tamos ódio, a amargura do fel e a do do que o ódio dos males que se [pro­
agrura do baço, misturando-se com o duzem dessa maneira, tanto mais que é
nosso sangue, é causa de que ele não a primeira causa deles, e que o amor a
um só objeto pode assim engendrar o
I aflua tanto, nem tais espíritos venhamI ódio a muitos outros. Depois, além
ao cérebro, e assim que se permaneça
mais fraco, mais frio e mais tímido. E disso, os maiores males do amor não
a experiência confirma meu dizer; pois são os que ele comete dessa maneira
os Hércules, os Rolando e, em geral, os por intermédio do ódio; os principais e
que apresentam mais coragem amam os mais perigosos são os que ele pro­
mais ardentemente do que os outros; e, duz, ou deixa produzir, para o exclu­
sivo prazer do objeto amado, ou para o
ao contrário, os que são fracos e seu próprio. Lembro-me de uma tirada
covardes são mais inclinados ao ódio. de Théophile, que pode ser aqui apre­
A cólera pode, na realidade, tomar os sentada como exemplo; ele faz com
homens ousados, mas ela toma seu que uma pessoa perdida de amor diga:
vigor do amor que se tem por si pró­
prio, o qual lhe serve sempre de funda­ Dieux, que le beau Paris eut une belleproie!
mento, e não do ódio que se limita ape­ Que cet amantJit bien,
nas a acompanhá-lo. O desespero Alors qu ’il alluma 1’embrasement de Troie,
também leva a efetuar grandes esfor­ Pour amortir le sien /5 5
ços de coragem e o medo leva a exer­ O que demonstra que mesmo os
cer grandes crueldades; mas há dife­ maiores e mais funestos desastres
rença entre essas paixões e o ódio. podem constituir às vezes a ceva a um
Resta-me ainda provar que o amor amor mal regrado e servir a tomá-lo
que se tem por um objeto de pouca mais agradável quanto . mais aumen-
importância pode causar maior mal, tam-lhe o preço. Não sei se meus
sendo desregrado, do que o ódio a pensamentos concordam nisso com os
outro de maior valor. E a razão que vossos; mas asseguro-vos realmente
dou para isso é que o mal que vem do que concordam em que, como me
ódio se estende somente ao objeto prometestes muita benevolência, assim
odiado, ao passo que o amor desre­ sou com forte paixão, etc.
grado nada poupa, salvo o seu objeto,
o qual tem, de ordinário, tão-somente 5 5Théophile, Stances pour Mlle de M. “Deuses,
que bela presa fez o belo Páris! Como esse amante
pouca extensão, em comparação com procedeu bem, quando ateou o incêndio de Tróia,
todas as outras coisas, cuja perda e para amortecer o seu!”

D’Egmond, l.° de fevereiro de 1647


Índice

Prefácio ............................................................................................... • 7
Nota ..................................................................................................... 9
Introdução .................................................................... *................. 11
Discurso do método .............................................................................. 33
Primeira parte ............................................................................. 37
Segunda parte ............................................................................... 42
Terceira parte ............................................................................... 49
Quarta parte ................................................................................. 54
Quinta parte .................................................................................. 59
Sexta parte .................................................................................... 70
MEDITAÇÕES .................................................................................... 81
Aos Senhores Deão e Doutores da Sagrada Faculdade de Teo­
logia de Paris ................................................................................ 83
Resumo das Seis Meditações ....................................................... 87
Primeira Meditação: Das coisas que se podem colocar em dúvida 93
Meditação Segunda: Da natureza do espírito humano; e de co­
mo ele é mais fácil de conhecer do que o corpo ........................ 99
Meditação Terceira: De Deus; que ele existe ............................. 107
Meditação Quarta: Do verdadeiro e do falso ............................. 123
Meditação Quinta: Da essência das coisas materiais; e, nova­
mente, de Deus, que ele existe ..................................................... 131
Meditação Sexta: Da existência das coisas materiais e da dis­
tinção real entre a alma e o corpo do homem ............................ 137
OBJEÇÕES E RESPOSTAS .............................................................. 153
Segundas Objeções ...................................................................... 155
Segundas Respostas .................................................................... 161
Quintas Respostas às Quintas Objeções ................................... 187
AS PAIXÕES DA ALMA .................................................................. 223
Primeira parte: Das paixões em geral e ocasionalmente de
toda a natureza do homem ......................................................... 225_ j
Segunda parte: Do número e da ordem das paixões e a explica­
ção das seis primitivas ................................................................ 249
Terceira parte: Das paixões particulares ................................... 283
CARTAS ............................................................................................... 307
A Elisabeth, 21 de maio de 1643 ................................................ 30"9
À mesma, 28 de junho de 1643 ................................................... 313
À mesma, 4 de agosto de 1645 ................................................... 317
À mesma, 18 de agosto de 1645 ................................................ 321
à mesma, l.° de setembro de 1645 ............................................ 325
A Chanut, l.° de fevereiro de 1647 ............................................ 329
Este livro integra a coleção
OS PENSADORES — HISTÓRIA DAS GRANDES IDÉIAS DO MUNDO OCIDENTAL
Composto e impresso nas oficinas da
Abril S.A. Cultural e Industrial, caixa postal 2732, São Paulo

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