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I — AS IDEIAS MOVEM O MUNDO1 que têm necessidade daqueles que têm É tempo de refletir sobre isto, pois esta-
posses. Por isso, os ricos se acham no direito mos no alvorecer da era da Filosofia no
Conta Aristóteles em uma de suas obras, de comandar, pois têm aquilo por que vale a mundo.
a Retórica (L. II, c. 16), que certa vez a es- pena comandar, desde que coloquemos o Não os convido a um Curso por diletan-
posa de Hieron, rei de Siracusa, perguntou ao problema da vida em termos de uma troca de tismo. Convido-os a tomar posição e lutar
poeta Simônides o que valia mais: ser rico, interesses práticos. Se viver se resume a por uma vida humana, tendo a consciência
ou ser sábio? "Rico", respondeu o poeta; conquistar bens materiais, os que têm clara de que o domínio sobre as próprias
"pois vejo os sábios estarem sempre batendo maiores bens deveriam ter o direito de dirigir idéias é tão necessário como o ar que
à porta dos ricos". os demais homens. respiramos, como o alimento do nosso corpo,
Não faltam os que julgam ser a riqueza o Como a vida, no entanto, não se reduz a para a saúde do nosso espírito. As doutrinas
poder por excelência. E porque os ricos são isto, diz Aristóteles que a figura do homem dos filósofos já não vivem nas Academias:
em geral poderosos, grande parte da humani- rico pode exprimir-se assim: tem todas as elas estão nas ruas. Nós as adquirimos sem o
dade luta por possuir maiores bens de for- características de um homem feliz, a quem saber. Nós as adquirimos num sistema
tuna, porque através destes bens espera vir a falta, no entanto, o bom senso. singularíssimo de crediário: nem sabemos
ter mais poderes. A aspiração do poder Conta-se que certa vez relataram a um como as adquirimos, e nunca sabemos por
aparece para o homem, de um modo geral, filósofo a resposta dada por Simônides à es- quanto tempo e nem o quanto pagaremos por
como o meio adequado de conquistar o exer- posa de Hieron, e ele acrescentou: "Bem, é elas.
cício da liberdade. Aquele que manda e é verdade que os sábios em geral batem à porta Estamos no alvorecer da era da Filosofia.
obedecido tem a impressão de estar no dos ricos, e que os ricos não batem à porta Ao afirmarmos isto não usamos de uma
exercício pleno da liberdade. O poder, que se dos sábios; mas, isto é porque os sábios sa- expressão literária, mas apontamos um fato
exterioriza, parece ser o sinal capaz de bem o de que precisam, e se os ricos não pro- histórico. O mundo está hoje dividido pelas
testemunhar uma experiência que é mais curam os sábios é porque não conhecem ideologias, que são as formas pelas quais as
difícil de realizar-se na intimidade do sujeito, quais são as suas necessidades" (atribuído a idéias assumem corpo e exercem sua ação
quando ele está a sós, ficando diante apenas Antístenes). eficaz na existência. As ideologias são os
de si mesmo. Para bom entendedor não estamos aqui conjuntos de fatores afetivos e voluntários
Nesta passagem aqui referida, Aristóteles enfrentando o problema social da que, envolvendo uma idéia, a transformam
analisa o que seja a psicologia do rico. distribuição das riquezas; não estamos em uma poderosa energia dinâmica.
Vivem (p. 10) os ricos cercados desta idéia abordando o problema do rico e do pobre; do (p. 12) Nos primórdios da História dos
de poder, pois ocupam a muitos outros rico bom e do (p. 11) mau rico, mas estamos povos, encontramos a valorização da força:
homens no cumprimento da sua vontade; e apenas focalizando um problema de valores é o poder militar que domina o mundo; os
isto ocorre naturalmente, pois são muitos os nesta antinomia: riqueza material e saber. chefes podem comandar segundo os
Nem sempre temos a nítida noção do poder caprichos de seu arbítrio, e todo um
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MENDONÇA, Eduardo Prado de. O mundo precisa que possuem as idéias. E o nosso objetivo é conceito de nobreza se constrói em torno do
de Filosofia. 9. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1988, p. 9- refletir sobre a força das idéias. poderio absolutista dos governantes.
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Durante a Idade Média, o pensamento sério para ser resolvido por políticos. Chegou passa, no mais das vezes, na história, do
religioso pôde exercer uma influência capaz o momento em que a presença do filósofo simples resíduo de idéias filosóficas
de submeter governos, e estruturas de organi- aparece como inadiável, e a Filosofia é anteriormente difundidas. O homem é um
zação social. Assistimos, depois, a uma reclamada por sua irrefutável necessidade. animal racional, ele não pode agir sem usar
ascensão da burguesia: é o valor econômico Eis porque dizemos tranqüilamente que sua razão, e, quando ele não o faz de uma
a exprimir o domínio dos poderosos do estamos no alvorecer de uma era da forma consciente e filosófica, ele o faz
mundo; mas a marcha para a riqueza criou Filosofia. irrefletidamente e como diletante. Isto vale
graves problemas sociais, que passaram a Achamos da maior oportunidade repro- para todo mundo, mesmo para aqueles que se
obrigar a mudança da face do mundo. duzir aqui uma página de conhecido historia- acreditam desligados de qualquer filosofia:
Vemos, então, a ascensão do poderio dor da filosofia moderna, I. M. Bochenski: eles são precisamente filósofos diletantes,
político: a liderança política passa a ser a "Surge de início a questão da justa apre- que, manifestando um desprezo pelos
grande expressão do poderio moderno. É ciação da totalidade do esforço filosófico no trabalhos de homens de uma capacidade
certo que não desaparecem nem o poderio curso da história. Subestimamos-lhe muito intelectual infinitamente superior, constroem
militar, nem o poderio econômico; mas estes freqüentemente o alcance: a filosofia, diz-se, suas próprias filosofias, inúteis e medíocres.
já não bastam, e passam a ser submetidos, é um conjunto de especulações abstraías sem Pode-se fazer constatação semelhante no que
como instrumento do poderio político. A interesse para a existência; é às ciências se refere à Religião. Por natureza ela não
verdade é que o mundo nos apresenta hoje, práticas que nos devemos devotar, pois elas depende da Filosofia. Mas também ela deve
como sua característica geral por excelência, condicionam a técnica de todas as atividades ser tornada clara e inteligível, deve ser
uma luta de ideologias. São concepções em (não somente a do engenheiro, mas também sempre explicada, pois o homem é um ser
movimento, são as idéias no campo de a do pedagogo), como o faz a Sociologia, a pensante. De fato, se para esta explicação
batalha. A sorte da humanidade está sendo Economia Política e a Política. Pois, primum necessária não nos servimos de uma (p. 15)
decidida pelo debate das idéias. Hoje nós sa- vivere, deinde philosophari, e o philosophari filosofia racional, acabamos aqui como antes
bemos disto, em nossos dias nós podemos ter não tem (p. 14) importância na vida". Para o por sermos vítima dos preconceitos.
consciência disto, e já não é mais possível (p. autor, "esta concepção tão espalhada hoje é "De outra parte, nada mais falso que ne-
13) adiar o encontro programado pela radicalmente falsa, e trata-se de uma gar a importância da Filosofia para a vida.
história do mundo. perigosa aberração intelectual. Limitar o Certamente, o filósofo nem sempre tem um
À era de predomínio militarista da anti- saber a seus aspectos técnico-práticos é supor lugar destacado na realidade cotidiana. Seu
guidade, sucedeu uma era de predomínio re- que é sempre suficiente saber apenas como destino é, no mais das vezes, o de só ser
ligioso; a esta sucedeu uma era de predomí- isto ou aquilo se faz. Mas, antes da questão compreendido depois da morte. Sem dúvida,
nio econômico e, depois, uma era de predo- do como, é necessário colocar a do porquê. E houve filósofos que puderam ainda provar
mínio político. Houve quem dissesse que a somente a Religião e á Filosofia podem dar sua glória durante a vida — chamem-se
guerra era assunto muito sério para ser re- uma resposta ao último porquê. Que não se Plotino, Tomás de Aquino, Hegel, Bergson.
solvido por militares; pois, do mesmo modo, diga que o senso comum é suficiente para Mas, ainda assim, trata-se mais de uma
diremos que a vida humana é assunto muito isto: o que se chama o senso comum não simples moda que de uma plena
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compreensão. O filósofo não leva em conta vivendo entre seus pensamentos inofensivos, O homem moderno, de tanto se servir da
as exigências da hora e das modas do dia. É é na realidade uma potência terrífica. Seu máquina, passou a refletir o humano pelo
reprovável? Não é próprio do homem pensamento tem o efeito da dinamite. Ele mecânico. E assim se criou uma certa
ultrapassar a pura existência do instante? Fa- segue seu caminho, ganha homem por mentalidade mecanicista, pragmática,
zendo do momento presente o único objeto homem e toca as massas. Chega o momento ativista, que colocou de quarentena o
do saber não corremos o risco de rebaixar o em que triunfa de todos os obstáculos e contemplativo. Podemos mesmo dizer que
homem a besta? Quem vive sem cessar a regula a marcha da humanidade — ou ele perdeu o sentido da contemplação. De tal
vida do espírito, segundo suas convicções estende um lençol sobre suas ruínas. Eis modo se deixou empolgar pelo fazer, que
filosóficas, sabe que o que se passa é porque os que desejam saber em que direção perdeu a perspectiva do ser. E de tal forma
diferente: porque ela não se prende ao hic et está a rota fazem melhor prestar atenção não deixou-se apaixonar pela idéia da produção,
nunc do instante e que ela não pretende agir aos políticos, mas aos filósofos: o que os fi- que perdeu o senso da perfeição. Na
diretamente sobre a vida, a filosofia é lósofos anunciam hoje será a crença de ama- perspectiva do mais, esqueceu a perspectiva
justamente uma das maiores forças nhã" (La Philosophie Contemporaine en do melhor. Não sabe mesmo o que possa vir
espirituais que nos impedem de soçobrar na Europe, Paris, Payot, 1951, pp. 6-8). a significar vida contemplativa.
barbaria e nos ajudam a permanecer homem Achamos natural que um atleta recue e A idéia comum de vida contemplativa é
e a vir a sê-lo cada vez mais. tome distância para apanhar impulso e saltar a de um afastamento da realidade, a de uma
"Mas, isto não é tudo. Por mais fútil que um obstáculo; e no entanto, é comum estra- vida de abstração, ou, para usar uma palavra
possa parecer, a Filosofia é contudo uma po- nhar que se proponha um recuo reflexivo, à ao gosto da época, a de uma alienação. E, no
derosa força histórica. É necessário convir procura de maior apoio e fundamento para entanto, a contemplação não se opõe
com Whitehead, quando compara os (p. 17) sobrepujar os problemas, que são os radicalmente (p. 18) à ação: ela se prova
sucessos de um (p. 16) Alexandre, de um obstáculos da existência humana. Vivemos mesmo na ação, e podemos dizer que a vida
César e de Napoleão aos resultados, presos ao imediato. À medida em que o contemplativa está intencionada à ação:
infrutíferos em aparência, que obtém o homem mais desconhece a razão de ser de contemplata, aliis tradere, diria São Tomás
filósofo: é o pensamento que transforma a sua vida, tanto mais ele se agarra às de Aquino ("transmitir aos outros a
face da humanidade. Não é absolutamente pequeninas coisas do cotidiano. Tanto menos contemplação"). A vida contemplativa se
necessário, para dar-se conta disto, remontar, ele conhece o sentido de sua vida, e mais é opõe à vida operativa na medida em que a
como o metafísico inglês, até os pitagóricos. tomado de uma angústia e paixão, que vida operativa está dirigida a um fim externo,
Que se considere unicamente sobre o prodi- deixam a impressão de uma pressa de chegar a uma realização de produção, a uma ação
gioso destino de Hegel, este filósofo tão sem que ele saiba aonde. E quanto menos ele transcendente ou transitiva, que se termina na
difícil de compreender. Ele abriu o caminho se conhece a si mesmo tanto mais se obra realizada fora do sujeito que a realiza. A
tanto ao fascismo e ao nacional-socialismo empenha em transformar o mundo. Revolver vida contemplativa tem por fim a própria
quanto ao comunismo: é uma das forças que não é revolucionar, evolver não é evoluir, perfeição do sujeito da ação, e por isso se diz
estão em vias de transformar o mundo. O nem processamento é necessariamente propriamente da ação imanente, do ato consi-
filósofo, posto em ridículo pelo povo, progredir. derado no próprio sujeito, como expressão
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daquilo que ele é, daquilo que ele quer ser, vida contemplativa, que não se afasta da da Filosofia realiza um alargamento da visão
daquilo que ele pode ser, daquilo que ele realidade, mas, ao contrário, nela procura e das dimensões da existência, em extensão e
deve ser. Como entender, portanto, que a mergulhar profundamente, para atingir-lhe as profundidade e neste sentido podemos dizer
vida contemplativa é um alheamento da raízes mais íntimas, é que se coloca a que filosofar é viver mais.
realidade? Pode haver maior senso de Filosofia. Passemos a algumas considerações
realidade do que este que se ocupa com a O drama por excelência da vida humana, específicas sobre as relações entre as idéias e
integridade do seu próprio ser? A vida nós o encontramos focalizado no Fausto de a vida do homem.
contemplativa é esta que se dirige à tomada Goethe, no qual nós vemos o Dr. Fausto, mo- l. Idéia e sentimento.
de posse de si mesmo, à clareza de vido pela ambição de possuir todos os bens Diz um adágio popular: "O que os olhos
consciência, ao domínio da vontade, ao do mundo, entregar a sua alma ao Diabo. não vêem o coração não sente". E diz com
discernimento intelectual. É a que cuida da Que significa possuir tudo, se a criatura razão. Não existe sentimento sem idéia.
formação de uma consciência justa, humana se perde a si mesma? O trágico da Quando a expressão popular diz "o que os
afastando de si os resíduos viciosos dos ambição que se transforma em valor absoluto olhos não vêem", está dizendo exatamente "o
preconceitos; é a que cuida da firmeza da está exatamente nisto: a ambição que se que não se sabe", "o que não se conhece", "o
vontade, defendendo-a de um envolvimento satisfaz com a pura ambição, em lugar de de que não temos idéia". Devemos lembrar,
imaginativo, pois o excessivo exercício da levar a criatura a possuir, leva-a a ser aliás, que, no grego, a palavra IDÉIA significa
função fabuladora, o pensamento que se possuída; ela não domina as coisas, mas é primariamente (p. 21) "visão", "o que é
arrasta nos vôos da imaginação despoliciada dominada por elas; não (p. 20) dirige, é visto", "a forma", a "figura", aquilo que é
a sacrifica e entibia; é a que cuida da (p. 19) dirigida. A ambição, que se elege critério objeto da visão. Quando hoje dizemos
justiça intelectual, pelo conhecimento e uso universal, é insatisfação insanável, é "idéia", dizemos a "visão intelectual", a
adequado de suas funções intelectuais, defen- permanente angústia. O próprio bom senso "representação mental", o "conceito" ou "no-
dendo a razão das inclinações afetivas e ensina pela prudência que é preciso saber o ção", a apreensão simples realizada pela inte-
sentimentais, que impedem a inteligência de que devemos querer, porque os bens parti- ligência. "O que os olhos não vêem o
atingir as conclusões verdadeiras e não culares podem esconder o que coração não sente". Os nossos sentimentos
comprometidas a priori pelas preferências verdadeiramente é o bem. Nesta linha da variam de acordo com as idéias que os
arbitrárias e irrefletidas. vida contemplativa, na consideração de todos acompanham.
Este é o terreno da Filosofia, que, à or- estes problemas, que armam os alicerces da A força dos estóicos para resistir ao so-
dem do fazer, — preocupada apenas com o vida humana, a Filosofia representa um frimento está exatamente na sua concepção
como fazer, — acrescenta as dimensões mais convite para a vida do homem em plenitude, do mundo e da vida. Um estóico pagão,
largas da vida humana, quando o homem como ser racional. O convite da Filosofia não julgando que todos os prazeres do mundo são
passa a preocupar-se com o porque fazer e o é o de um afastamento da vida; muito ao apenas uma face externa de padecimentos e
para que fazer, além de vir a poder julgar contrário, no discernimento das idéias que insatisfações e que o bem é apenas não
convenientemente o que fazer diante dos povoam a vida humana, e são o eixo do sofrer, vê com alegria a morte. Um estóico
pólos da vontade e do dever. Nesta linha da mundo dos seres dotados de razão, o estudo cristão recebe a morte com resignação ou
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paciência porque tem a idéia da vida eterna. todos: a emoção estética é produzida por esta não tem correspondência com um objeto, e
E quantas vezes na vida sentimos mais experiência de ver esclarecido na ordem da nem exprime uma idéia, porque na geometria
prazer em pensar num acontecimento do que ação prática o que já era pensado e euclidiana não é possível pensar em círculo-
propriamente na sua experiência? E quantas conhecido. quadrado, pois não há composição possível
vezes deixamos de gozar uma experiência O próprio sentimento religioso apresenta dos dois conceitos tomados isoladamente,
realizada em nossa vida porque não tínhamos características diferentes, segundo a idéia sendo um exclusivo do outro. Na História da
a idéia nítida do seu valor? Um concerto a que o acompanha: é acompanhado de terror e Filosofia, às vezes encontramos coisas assim,
que assistimos, uma peça de teatro, um inquietação, se temos um culto fetichista, pois os homens de gênio também erram. A
espetáculo, e até mesmo um encontro, são cuja divindade se encontra nas forças da diferença entre o erro de um homem comum,
tanto mais apreciados por nós quanto mais natureza; é acompanhado de um pessimismo, e o do homem de gênio é que aquele erra
nos tivermos podido preparar para eles, se a divindade é pensada como existindo tolamente, sem qualquer razão de ser,
levando conosco uma idéia antecipada do difusamente no universo, como é o caso do enquanto o gênio por vezes erra, mas com
que está por acontecer. Bramanismo; é acompanhado de medo, se a bons argumentos, com (p. 24) boas razões,
O teatro grego explorou este fato, utili- divindade se apresenta sob a forma dos erra — poderíamos dizer — genialmente.
zando no terreno estético um recurso de preceitos e da Lei, como é o caso do Houve assim um filósofo alemão, Emanuel
grande efeito, com a identificação, em que Judaísmo; é acompanhado de (p. 23) Kant, que defendeu a idéia de uma vontade
um personagem (p. 22) aparece em cena com esperança, se a idéia de Deus o identifica que fosse apenas vontade, uma vontade que
a sua verdadeira identidade, após ter com o amor e a graça, como é o caso do não fosse vontade de coisa alguma, mas
aparecido veladamente. O espectador já sabe Cristianismo. fosse apenas forte, o que ele entendia por
que é ele, mas o outro ou os outros E se as idéias dão o tom dos nossos sen- "vontade pura". Não vamos entrar aqui nas
personagens não sabem. Em Electra, de timentos, podemos dizer que as idéias dão a razões que explicam os caminhos que o con-
Eurípedes, o irmão de Electra, após longos cor da própria existência. Os mesmos fatos duziram a tal vontade. É sempre transitiva, é
anos de separação, a encontra; mas antes de produzem em nós impressões e sentimentos sempre vontade de alguma coisa.
identificar-se, com ela conversa longamente; que variam de acordo com a idéia que a res- Dizemos com razão que um homem de
o momento de identificação produz na peito deles somos capazes de estabelecer. força de vontade é aquele que persegue com
platéia um forte impacto emocional: a 2. Idéia e vontade. firmeza alguma coisa. Um homem de
assistência já sabia quem era o personagem, As palavras, que têm como uma de suas vontade firme é aquele que sabe o que quer,
mas a realização prática e clara da idéia pro- funções exprimir o pensamento, por vezes o e sabe o que quer exatamente porque quer o
duzia esta emoção. O mesmo ocorre com escondem. E, por vezes, nos enganam, pare- que sabe. É a vontade que nos leva à ação. A
Ulisses, na Odisséia, de Homero: Ulisses é cendo exprimir alguma coisa, quando em firmeza de vontade se exprime pela firmeza
esperado no lar, de volta da guerra, embora verdade nada exprimem e não passam de dos atos, e conduz necessariamente à ação.
muitos o julgassem morto; de volta, primeiro ruídos, como o diria Crátilo, pensador grego. Mas, se os atos dependem da vontade, e a
identifica-se ao filho; ele vem disfarçado em Se, na geometria de Euclides, falarmos em vontade é determinada pela idéia, que dá o
mendigo; depois, identifica-se diante de círculo-quadrado, aí está uma palavra que modelo do seu exercício, podemos ver desde
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logo qual o papel das idéias na configuração parece mais fácil, parece-lhe o melhor. bem, o ato mau já não é tão mau. E isto
da atividade do homem, e saber a A obrigação do homem é de tal ordem porque haverá sempre uma contradição
significação vital das idéias. Elas, realmente, no sentido de possuir uma noção clara e interna no sujeito, pois a sua consciência
estão intencionadas ao real, e elas não só distinta do que seja o bem, que São Tomás estará inquieta, e o haverá de perseguir. A
representam o real, como também constroem de Aquino nos fala mesmo de um pecado de angústia crescente, derivada do divórcio
a realidade, na medida em que determinam a ignorância. Há uma ignorância invencível, entre a idéia e o comportamento, pedirá uma
vontade, e dirigem a ação da vontade, que, que é a dos loucos, como é a dos que jamais solução. Ainda aí a idéia manifesta a sua
por sua vez, se transforma nos atos da vida tiveram a oportunidade dos estudos. Mas, há força determinante.
prática que configuram a existência também uma ignorância culposa, uma (p. 27) 3. Idéia e ação.
particular e social do homem. ignorância que (p. 26) implica em omissão Finalmente, é necessário deixar bem cla-
(p. 25) Neste sentido, podemos indesculpável, um desinteresse pelo ro, e com toda a ênfase, a íntima relação
acrescentar que as idéias decidem a própria conhecimento dos valores e dos princípios de existente entre as idéias e os atos.
ordem moral da vida humana. Se é verdade que dependem os destinos da humanidade. Diz Karl Marx, em sua undécima tese
que o homem tem uma natureza moral, que o Diz um aforismo jurídico: Ignorantia juris sobre Feuerbach, em sua obra A ideologia
faz aspirar ao bem e rejeitar o mal, é também neminem excusat (A ignorância da lei não alemã, esta frase, que bem merece ser
verdade que, para o exercício da vida moral, escusa ninguém). O conhecimento da lei é pensada e comentada: "Até hoje, os filósofos
ele necessita distinguir com clareza o que é o um sinal de respeito pela vida em sociedade. só fizeram interpretar o mundo; devemos,
bem e o que é o mal; e não pode, por isso Não somos apenas nós que estamos em jogo agora, transformá-lo". Não são poucos os
mesmo, satisfazer-se com esta disposição nas nossas ações; elas têm conseqüências e homens, sejam marxistas, ou pragmatistas,
manifestada espontaneamente na sua produzem seus efeitos sobre aqueles com ou livres-pensadores, ou existencialistas, ou
natureza de aspirar necessariamente ao bem. quem convivemos. E mesmo que isto não que rótulo tenham, ou venham a ter, que
É preciso lembrar aqui que os próprios provocasse as reações devidas à delimitação estão prontos a aceitar como verdadeiras
criminosos, até na prática dos seus delitos, dos direitos, é necessário lembrar a estas palavras. Não são poucos os que
estão movidos por uma aspiração do maior responsabilidade que temos de nós mesmos, manifestam o seu desamor pelas teorias,
bem: o que lhes falta é o discernimento do em face do dom da vida que, afinal, não é preconizando o exercício prático, a ex-
que seja efetivamente o bem e uma educação criação nossa, mas, evidentemente, nos foi celência da ação, como a única solução a ser
da vontade para ser dócil ao que a dada. procurada, e a única verdadeiramente eficaz.
inteligência pode compreender A idéia do bem não exclui totalmente o Podemos aceitar que uma idéia sem apli-
verdadeiramente como sendo o bem. Aquele ato mau. Video meliora proboque deteriora cação na realidade seja como uma semente
que rouba, no ato mesmo de roubar, julga ser sequor (Vejo o que é melhor, mas sigo o que não tenha sido plantada. Mas, devemos
este um meio melhor do que conseguir o que pior), diria o célebre poeta latino Ovídio. aceitar também que, para ser fecunda, a
pretende alcançar através do próprio Mas, segundo Tomás de Aquino, a idéia do semente deve ser convenientemente tratada.
trabalho, que o obrigaria a um maior esforço, bem é sempre um obstáculo à prática do mal. Em geral, secamos as sementes, para
e maiores padecimentos. O caminho que lhe Poderíamos dizer que com a idéia nítida do podermos depois plantá-las com sucesso.
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Assim, quando ela parece seca, e sem vida, é fazem do capricho o critério de seleção de que pensamos, ou acabamos pensando de
que ela é fonte de vida. Quando tratamos as suas preferências. Queremos a firmeza sadia acordo com o nosso modo de viver. E, por
idéias, examinando-as em si mesmas, parece dos que sabem o que significa a força das isso mesmo, é preciso não menosprezar a
que as retiramos da vida. A verdade, no idéias, e o respeito e o cuidado com que elas força das idéias. A civilização grega floresce
entanto, é que a sua clareza inteligível e merecem ser tratadas. até os nossos (p. 30) dias, e o mundo
abstraía é que lhe garante toda a força vital. (p. 29) E, enfim, é necessário refletir ocidental está marcado por ela exatamente
(p. 28) O homem tem radicado no seu bem sobre esta verdade de fato: na vida porque aquilo que Renan denominou "o
ser o senso da liberdade. Ele quer humana, ou vivemos de acordo com o que milagre grego" consistiu no culto do "logos",
naturalmente ser livre. E ele se sente livre pensamos, ou acabamos pensando de acordo na descoberta da razão, e por isso mesmo a
quando tem o domínio dos seus atos, pois só com o nosso modo de viver. Eis o que Grécia antiga foi o berço generoso dos
assim pode agir com equilíbrio e segurança. devemos considerar muito cuidadosamente, filósofos por excelência, de cujas doutrinas
Mas não pode haver ação firme de sua parte, para não nos enganarmos a nós mesmos. ainda se alimenta a humanidade. Devemos
se não possui idéias claras sobre o que quer Seria bom que cada um pudesse saber ser dignos da nossa civilização e das nossas
fazer. nitidamente, para ter consciência do papel origens.
Ignoranti quem portam petat, nullus suus que está cumprindo na existência, se as Só por isso a Filosofia tem garantida a
ventus (Não há vento favorável para quem idéias que dirigem a sua vida são fruto de sua presença no mundo, à procura do escla-
não sabe a que porto se dirige), afirmava uma reflexão crítica, ou são apenas a formu- recimento das idéias, como o único e efetivo
Sêneca, o famoso estóico latino. Não lação teórica justificativa de um modo caminho para a solução dos problemas da
dizemos novidade afirmando que a maioria impensado de viver. Esta reflexão, que vida humana, na sua essência, cumprindo
das pessoas é infeliz exatamente porque consideramos fundamental para os que esta missão de ajudar ao homem, em
procura ser feliz, e não sabe o que possa ser a realmente desejam ser homens livres, primeiro lugar, a tomar consciência do que
felicidade. segundo a dignidade de sua natureza, seja a força das idéias.
As idéias obscuras, vagas, imprecisas, exprime ainda uma vez o poderio das idéias: As idéias caracterizam os sentimentos; as
não podem garantir a firmeza das ações. E elas têm tanta força que podem chegar até a idéias determinam a vontade; da clareza das
isto é tanto verdade que, para prová-lo, pode- enganar, ao próprio homem a respeito de si idéias depende, enfim, a firmeza das ações.
mos recorrer a um fato, que, embora sendo mesmo, quando verificamos que, por vezes, As idéias não estão apartadas da vida: mas
uma contrafação da verdadeira e justa fir- as idéias que parecem dirigir a sua vida são estão na existência como o eixo em torno de
meza das ações, o demonstra: a firmeza dos apenas a expressão de um tipo de que o mundo humano efetivamente gira. Esta
loucos, garantida pelo seu monoideísmo, ou comportamento formado pelos hábitos é, de fato, a força das idéias, e assim é que as
idéia fixa. Os teimosos, cuja fixação de adquiridos no decorrer da vida, porque ele se idéias movem o mundo.
idéias é fruto do capricho, nos dão uma outra deixou levar pela onda das circunstâncias,
confirmação. omitindo-se quanto à obrigação que teria de
Não queremos a firmeza das ações na or- decidir racionalmente a sua própria vida. Na
dem da firmeza dos loucos, ou dos que vida humana, ou vivemos de acordo com o

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