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Instituto Missionário Palavra da Vida

André de Oliveira Pinto

O chamado divino à pureza e à santidade.


A natureza teológica das regras alimentares em Levítico 11.

Monografia apresentada ao Prof. Creuse Santos em


cumprimento parcial da disciplina Teologia Bíblica do
Antigo Testamento: Pentateuco.

Benevides - PA
2018
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 3
2 AS REGRAS ALIMENTARES EM LEVÍTICO 11............................................... 5
3 CONCLUSÃO .......................................................................................................... 13
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ...................................................................................... 14
3

1 INTRODUÇÃO

O Pentateuco, também chamado de Torá, pode ser considerado uma riqueza quando se
fala de revelação divina. Não há dúvidas de que os cinco primeiros livros da Bíblia possuem
uma apresentação ímpar sobre o caráter e os atributos de Deus, seus propósitos para a criação
e para a humanidade, suas formas de agir e intervir no curso da história e seu plano em formar
e separar um povo para a vinda daquele que salvaria a raça humana da catástrofe de Gênesis 3.
Todos aqueles que desejam conhecer verdadeiramente a Deus precisam gastar tempo
lendo, meditando e aplicando o que é ensinado nesses livros. Conhecer o Pentateuco é conhecer
a Deus.
Entre estes livros existe um de nome Levítico. Este livro trata basicamente de
regulamentos e procedimentos que os sacerdotes deveriam observar. O professor Roland K.
Harrison diz que:

Levítico é um manual de referência, bem organizado, para o sacerdócio do Antigo


Testamento, e consiste em duas divisões ou temas principais que têm como eixo o
capítulo dezesseis, que trata dos regulamentos que regem o dia anual da expiação.
(HARRISON, 1983, p. 12).

O livro de Levítico pode ser dividido em algumas seções. Vários autores propõem
divisões muito bem detalhadas e completas que contribuem muito para o estudo do livro, com
certeza vale a pena considerar essas propostas de esboço. Contudo, segue uma proposta de
divisão mais simples elaborada para este trabalho que torna a compreensão do livro um pouco
mais aplicável, com essa tentativa não se pretende competir com os grandes teólogos e
professores que já fizeram trabalhos excelentes, temos uma dívida para com eles.

ESBOÇO DE LEVÍTICO

I. Descrição dos tipos de sacrifícios (1.1 – 7.38)


II. Dedicação dos sacerdotes (8.1 – 10.20)
III. Diferenciação das coisas puras das impuras (11.1 – 15.33)
IV. Detalhes sobre algumas leis (16.1 – 27.34)
 Dia da Expiação (16)
 Importância do sangue no sacrifício (17)
 Padrão de santidade para todos (18 – 20)
 Padrão de santidade para os sacerdotes (21 – 22)
 Explicação sobre as ofertas e sobre festas religiosas (23 – 25)
4

 A seriedade da obediência e do arrependimento (26)


 Normas sobre votos e coisas dedicadas a Deus (27)

Note que o capítulo 11 faz parte da seção que faz diferença entre o que é puro e o que é
impuro. Este capítulo em especial explica sobre os alimentos (animais) considerados puros e
aqueles que são considerados impuros para o consumo. Perceba que a Torá (isto é, o
Pentateuco) apresenta basicamente três pontos no que diz respeito às leis alimentares para os
judeus:

 Proíbe o consumo de sangue (Dt 12.23);


 Proíbe que carne e derivados de leite sejam consumidos juntos (Êx 23.19);
 Explica que certos animais terrestres, pássaros, animais aquáticos e insetos são classificados como
impuros, portanto, não devem ser consumidos (Lv 11.1-47; Dt 12.3-21).

Deste modo, a proposta aqui é fazer um estudo objetivo do último ponto que diz respeito
aos animais puros e impuros.
Apesar do livro tratar de assuntos relacionados aos sacerdotes (que eram da tribo de
Levi, por isso o nome “Levítico”), muitas leis descritas ali são para todos os hebreus e tinham
como propósito revelar o caráter santo de Deus. O tema de Levítico, portanto é um chamado
que Deus faz à santidade. Assim, os cristãos de hoje precisam muito desse livro a fim de
conhecerem melhor a Deus e aprenderem sobre a santidade. O professor Charles C. Ryrie
explica que as regras enfatizam santidade corporal e espiritual.
O capítulo 11 de Levítico revelará que o Deus Criador é Santo e deseja que seu povo
também seja santo. Estudar este capítulo abrirá os olhos de todos os filhos de Deus para a
grandiosidade da graça divina na vida do crente.
5

2 AS REGRAS ALIMENTARES EM LEVÍTICO 11

Após as regulamentações iniciais1, Levítico passa a tratar sobre a diferenciação entre


puro e impuro a partir do capítulo 11 até o capítulo 16. Curiosamente esta seção do livro começa
apresentando a lista dos animais que são considerados puros e impuros para o consumo.
As restrições quanto à comida no capítulo 11 são um complemento das regras sobre a
ingestão de carne. Os seres humanos tinham sido feitos para serem vegetarianos (Gn 1.29,30).
Mas depois do dilúvio Deus deu a Noé e sua família o direito de comer carne desde que o
sangue fosse adequadamente drenado (Gn 9.3,4).2 Pode se dizer, portanto, conforme explicam
Bill Arnold e Bryan Beyer, que Levítico 11 expande as restrições, baseando-se na distinção
entre animais puros e impuros.
Nunca é demais relembrar que todas as orientações registradas no livro enfatizam o
chamado divino de Israel para ser uma nação santa.3 Por isso, é fundamental imergir nesse tema
consciente de que não são apenas regras aleatórias, ou simplesmente regras moralistas de boa
convivência e saúde física. Tudo o que é tratado tem como propósito revelar o caráter santo de
Deus e convocar seu povo a santidade. R. K. Harrison informa que a lei oferece diretrizes
pormenorizadas para o benefício da comunidade, de tal maneira que todas as formas possíveis
de contaminação possam ser evitadas.4 Thomas D. Alexander esclarece que existem critérios
específicos para essa divisão.

É significativo que esta última parte do material seja imediatamente precedida por
regras sobre aos animais que os israelitas deveriam comer ou não (11.1-47). Essas
regras dividem todos os seres viventes, com base em critérios específicos, em dois
grupos: puros e impuros. Apenas os animais pertencentes à primeira categoria podem
ser comidos pelos israelitas. Essas regras são repetidas mais tarde em Deuteronômio
14.3-20. (ALEXANDER, 2010, p. 155).

Contudo, não é fácil identificar logo de início possíveis argumentos que relacionem o
desejo que Deus tem em que Israel seja santo com as regras alimentares. Também não foram
fornecidas no texto bíblico as razões que tornam certos animais impuros. Assim, explicar a

1
A descrição dos tipos de sacrifícios (1.1 – 7.38) e a dedicação dos sacerdotes (8.1 – 10.20).
2
ARNOLD, Bill T.; BEYER, Bryan E. Descobrindo o Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p.
121.
3
ALEXANDER, T. Desmond. Do paraíso à terra prometida: uma introdução aos temas principais do
Pentateuco. São Paulo: Shedd Publicações, 2010, p. 155.
4
HARRISON, Roland K. Levítico: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 109.
6

divisão entre alimentos (animais) puros e impuros não é tarefa fácil, além disso esse assunto
tem sido discutido durante muitos anos de estudo teológico.
Inicialmente, faz-se necessário observar nas Escrituras quais são os animais
considerados impuros para o consumo e quais os critérios estabelecidos por Deus para se
reconhecer esses animais. Abaixo segue uma tabela que ajudará o leitor a identificar com mais
clareza a lista de Levítico 11.

Puros Impuros
Terrestre Possui casco (unha) dividida e Animais que não apresentam
rumina. essas duas características.
Aquáticos Possui barbatanas e escamas. Animais aquáticos que não
(águas salgada ou doce) apresentam essas duas
características.
Aves Aves em geral. Aves de rapina, das espécies
(ou animais voadores) das cegonhas e das garças e
morcegos.
Insetos Insetos voadores, com quatro Andam ao invés de saltar.
patas e que saltam do chão.
Répteis Nenhum. Todos (rastejam pelo chão).

Alexander também propõe um resumo muito pertinente que ajuda a afixar as regras. Ele
afirma que os animais foram classificados como puros e impuros com base em um único
princípio para cada região:

a) Entre os animais terrestres, apenas os ruminantes e os de casco fendido eram puros;


todos os outros mamíferos eram impuros.
b) Apenas os peixes com barbatanas e escamas eram puros; todas as outras criaturas
marinhas eram impuras.
c) Aves de rapina e insetos voadores que andavam em vez de saltar eram impuros;
todos os outros pássaros e insetos eram puros.5

O autor também nos lembra que mesmo quando o princípio é dado, detalhes adicionais
são geralmente fornecidos para esclarecer casos específicos 6, por exemplo, o camelo, o coelho,
a lebre e o porco.

5
ALEXANDER, T. Desmond. Do paraíso à terra prometida: uma introdução aos temas principais do
Pentateuco. São Paulo: Shedd Publicações, 2010, p. 156.
6
Ibid. loc.cit
7

Ao longo dos anos, muitas tentativas foram feitas com vistas em compreender o
propósito por trás das exigências de Deus quanto a ingestão dos animais.
A primeira tentativa sugere que os animais classificados em dois grupos (puros e
impuros) representam características espirituais que os cristãos devem desenvolver em
contraste com os pagãos. Por exemplo, o animal que rumina manifesta o processo natural de
digerir interiormente, portanto é semelhante ao homem que medita na lei de Deus.
C. H. Mackintosh (1820-1896) é um dos teólogos clássicos que acreditava dessa forma.
Ele explica que a distinção de animais puros e impuros poderia ser interpretada de maneira mais
livre (alegórica) com princípios para a vida espiritual.

“Tudo o que tem unhas fendidas, e a fenda das unhas se divide em duas, e remói, entre
os animais, aquilo comereis.” Um só destes sinais seria insuficiente para determinar a
pureza segundo a lei cerimonial. Exigia-se a existência dos dois. Ora se estes dois
sinais bastavam para o israelita se orientar quanto à pureza ou impureza dos animais,
sem qualquer explicação acerca dos motivos ou significado das características, o
cristão, contudo, tem liberdade de inquirir sobre as verdades espirituais contidas
nessas leis cerimoniais (MACKINTOSH, 1964, p. 152).

Para Mackintosh o animal que rumina faz uma referência direta a todos aqueles que
lêem a Bíblia e a assimilam no íntimo, em outras palavras, são pessoas que meditam na Palavra
de Deus. Enquanto que a unha fendida representa o caráter da conduta do indivíduo.

Mas é preciso recordar que, além de remoer, o animal deveria ter as unhas fendidas.
Quem não conhecesse bem o guia do sacerdote e não tivesse experiência do
cerimonial divino, poderia declarar limpo qualquer animal só porque o via a remoer.
Isto teria sido um erro sério. Uma mais cuidadosa atenção ao guia divino mostraria
imediatamente que devia observar também o andar do animal – devia observar as
marcas deixadas por cada movimento -, devia olhar para o resultado de ter as unhas
fendidas (MACKINTOSH, 1964, p. 154).

Com esta interpretação o autor defende que o propósito para tais características dos
animais era completamente espiritual. A vida íntima (ruminar) e a conduta (unhas fendidas)
deveriam harmonizar-se. Isto explicaria porque o porco, por exemplo, não é contemplado como
animal puro: ele tem unhas fendidas (um andar aparentemente piedoso), mas não rumina (o
caminhar não é o resultado da vida íntima com Deus; apenas religiosidade).
Mackintosh usa o mesmo pensamento para os animais aquáticos. Ele afirma que existem
certas qualidades espirituais pertencentes à vida cristã que podem ser vistas nas propriedades
naturais com que Deus dotou as criaturas da água.
8

Se o peixe precisa de “barbatanas” para se mover na água e de “escamas” para resistir


à ação desse elemento, também o crente precisa de força espiritual para poder avançar
através da cena que o rodeia e, ao mesmo tempo, resistir à sua influência, impedindo
que ela penetre em si, mantendo-a no exterior (MACKINTOSH, 1964, p. 156).

Essa forma de explicar a classificação dos animais é completamente arbitrária (apesar


de ser interessante como princípio para os cristãos), por isso alguns estudiosos discordam de tal
pensamento. Como todo bom exegeta sabe, não se pode afirmar que o texto pretende transmitir
algo que o autor do texto nunca pretendeu transmitir. Em outras palavras, ao escrever Levítico,
e especialmente o capítulo 11, Moisés não pretendia trazer princípios espirituais, tampouco
pode-se acreditar que os leitores originais interpretaram as regras alimentares dessa forma. Por
isso, a arbitrariedade da interpretação torna esta tentativa inapropriada. Contudo, a ideia básica
de que os dois tipos de animais simbolizavam pessoas provavelmente é correta.7
A segunda proposta que tem sido feita é a classificação por critérios de saúde. Ou seja,
algumas comidas eram impuras porque transmitiam doenças ao ser humano. Os autores Arnold
e Beyer explicam que nas sociedades antigas, onde não era possível nenhum tipo de refrigeração
em um clima quente, a carne era um grande risco à saúde.8
O professor de Antigo Testamento, Roland K. Harrison, acredita que essa abordagem é
de grande importância, visto que a passagem em consideração trata exclusivamente da carne
que pode, ou não, ser comida.

Conforme esta abordagem, os animais limpos são comparativamente seguros como


fontes de alimentos, ao passo que os impuros devem ser evitados por causa da
possibilidade de que sua carne transmitisse infecção. Estas preocupações têm sido
amplamente justificadas por estudos subsequentes na área geral da medicina
preventiva (HARRISON, 1983, p. 113).

De acordo com esta explicação, os animais proibidos, em geral, transmitiam parasitos


que invadem o corpo humano, por isso eram considerados impuros. Paul Hoff também
interpreta desta maneira. Sobre o porco, por exemplo, ele diz que se alimenta de carne
apodrecida, transmite enfermidades e até parasitos.9 Sobre as aves que são proibidas na lista de
Levíticos 11, Hoff afirma que é evidente que a razão pela qual são proibidas é por serem

7
ALEXANDER, T. Desmond. Do paraíso à terra prometida: uma introdução aos temas principais do
Pentateuco. São Paulo: Shedd Publicações, 2010, p. 156.
8
ARNOLD, Bill T.; BEYER, Bryan E. Descobrindo o Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p.
121.
9
A Trichinella spiralis é um pequeno organismo que ocorre em carne ou salsichas de porco, cruas ou malcozidas.
(R. K. Harrison, 1983, p. 114).
9

carnívoras ou por se alimentarem de lixo.10 O autor ainda reitera que não somente era proibido
comer estes animais, como também o contato com corpos de animais mortos contaminava o
israelita porque lhe contaminava a saúde. Em outras palavras, a razão desta classificação era a
higienização e saúde do povo de Israel em contraste com as mazelas sanitárias entre os outros
povos.
Apesar desta posição ser muito relevante para os dias atuais e para a saúde e bem-estar
da humanidade como um todo, pode-se levantar vários fatores contrários a esta proposta.
Primeiro fator, os animais considerados puros na lista também podem transmitir doenças
através de suas carnes. O boi, por exemplo, é hospedeiro de uma tênia chamada Taenia saginata
que pode chegar até 6 metros de comprimento. Um peixe com escamas, dependendo do lago
em que vive (lago contaminado ou poluído) pode transmitir bactérias ao ser humano. Segundo
fator - em contraste com os animais puros -, é que nem sempre o animal considerado impuro
irá transmitir doença. A carne de porco, por exemplo, dependendo da procedência e se for
cozida de maneira adequada é tão segura quanto qualquer outra carne.11 O terceiro fator, é a
falta de uma explicação clara de que o motivo para se abster destes animais era a saúde. Não
seria exagero esperar que o povo fosse avisado que a razão era a manutenção da saúde e a
higiene local. O quarto e último fator, porém talvez o mais esclarecedor, é justamente o fato de
na Nova Aliança as leis cerimoniais terem sido abolidas. Se o motivo da classificação era a
saúde, por que hoje o cristão não é obrigado a abster-se desses animais? Em outras palavras,
como poderia Jesus abolir regras que tinham o propósito de proteger a saúde de quem lhe
obedecia?12 Portanto, a explicação de que a razão era a saúde do povo não convence e é muito
superficial.13
Outra proposta de compreender as regras alimentares em Levítico 11, é que o povo
hebreu deveria evitar qualquer semelhança com os ritos sacrificiais pagãos, ou seja, era uma
forma de não estabelecer nenhuma associação com as outras religiões ao redor, tanto no
sacrifício quanto na dieta (carnes sacrificadas a ídolos). Porém, esta proposta tem pouca
aceitação visto que, embora alguns animais considerados impuros fossem usados nos cultos

10
HOFF, Paul. O Pentateuco. São Paulo: Editora Vida, 1999, p. 175.
11
ALEXANDER, T. Desmond. Do paraíso à terra prometida: uma introdução aos temas principais do
Pentateuco. São Paulo: Shedd Publicações, 2010, p. 156.
É interessante notar que R. K. Harrison discorda deste argumento, ele diz que não há nenhuma temperatura
“segura” em que a carne de porco possa ser cozinhada para garantir que os organismos parasíticos sejam mortos.
Para ver um exemplo que o autor utiliza em favor de seu ponto de vista, ler: HARRISON, Roland K. Levítico:
introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 115.
12
Ibid. p. 161.
13
Contudo, é claro que não se diz com isso que é errado aprender conceitos de dieta, saúde e higiene na lista de
Levítico 11. Cuidar com aquilo que comemos também demostra espiritualidade sadia e glorifica a Deus.
10

pagãos, não é possível provar que isso se aplique a todos os animais impuros da lista. Alexander
também recorda que é surpreendente a não inclusão do boi (novilho) na lista de animais
impuros, visto que este animal era proeminente nos rituais religiosos egípcios e cananeus.14
Harrison também nos alerta para o contexto em que a lei alimentar é estabelecida. Ele diz que
as considerações dietéticas são a preocupação predominante da passagem, mais do que as
sacrificiais. Enfim, mesmo que a teoria das associações de teor religioso possa explicar casos
específicos, ela não consegue explanar todas as distinções feitas entre animais puros e
impuros.15
Chega-se, enfim, àquela que talvez seja a proposta mais aceitável para as regras
alimentares. A explicação baseia-se na observação de que para os judeus o mundo animal era
estruturado da mesma maneira que o mundo humano. Alexander explica que os animais puros
e impuros formam paralelo com pessoas puras e impuras (i.e. israelita e não israelita).

Na categoria de animais puros podemos observar duas classes adicionais: animais


usados nos sacrifícios e os não usados em sacrifícios; estas correspondem às classes
humanas sacerdotal e não sacerdotal. Ao restringir sua dieta aos animais puros, os
israelitas estavam sendo lembrados da obrigação de ser um povo puro, distinto dos
outros. Como consequência, toda refeição em que se servia carne tinha implicações
religiosas para os israelitas; ela simbolizava o chamado divino para ser uma nação
santa. Essa ligação entre as regras alimentares e a eleição divina de Israel é refletida
com clareza em 20.24-26 (ALEXANDER, 2010, p. 157)

A distinção entre animais puros e impuros, portanto, tipificavam a distinção entre o povo
de Deus (puros) e os gentios (impuros). Os animais representavam esses dois grupos de pessoas.
Essa compreensão fica ainda mais clara na Nova Aliança, quando todos os animais são
considerados puros diante de Deus (At 10.28). Assim também, na Nova Aliança tanto judeus
como gentios agora podem ser considerados puros, pois o próprio Deus os purifica (Sl 24.1; At
10.9-16). Logo, quando o Novo Testamento explica a abolição da regra alimentar não é por
acaso ou simplesmente porque Deus mudou de ideia. Há, sem dúvida, um caráter teológico
nesse conceito. Se as razões fossem por saúde, nada deveria mudar, pois os animais impuros
(e.g. porco) continuam transmitindo doenças. Ou ainda, se a razão fosse estabelecer uma
distinção dos cultos e refeições dos povos pagãos, o apóstolo Paulo não teria explicado que o
crente agora, dando graças a Deus, pode comer carne sacrificada a ídolos (1 Co 10); seria mais
sensato, por sua vez, continuar mantendo distância desses alimentos.

14
Ibidem. p. 157.
15
Ibid. loc.cit.
11

Assim, o Novo Testamento traz luz sobre as regras alimentares. Elas também podem ser
consideradas sombras daquilo que Deus haveria de realizar no mundo: unir judeus e gentios em
um só povo, declarado puro, graças a obra de Jesus na cruz (Ef 2).
Todavia, Alexander recorda que mesmo a distinção entre povos puros e impuros
explique o motivo das regras alimentares, ainda é preciso explicar os motivos de alguns animais
serem considerados puros e outros impuros.16 O autor questiona se essa classificação era
arbitrária, ou havia razões particulares para designar alguns animais como puros e outros como
impuros.

Embora a maioria dos estudiosos aceite a existência de algum motivo por trás da
categorização dos animais em puros e impuros, nenhuma explicação desfruta de apoio
unânime. Um fator, no entanto, merece consideração especial.
Um fator comum entre muitos animais impuros é sua dependência da morte de outras
criaturas para sobreviver. Se analisarmos os animais considerados impuros
perceberemos que a maioria é de animais carnívoros (ALEXANDER, 2010, p. 158).

Se olharmos para a lista, em geral, os animais terrestres impuros têm garras e são
carnívoros, enquanto que os animais de unhas fendidas e que ruminam, obviamente, não comem
carne. Todas as espécies de aves listadas como impuras são aves de rapina ou aves que comem
carne (e.g. urubu), em outras palavras, estas aves precisam se alimentar de outros animais.
Quando observamos os insetos17, é permitido comer somente aqueles que voam, têm quatro
pernas e podem saltar (v. 21), um exemplo é o gafanhoto, note que ele se alimenta de vegetação
e cereais. Porém, o besouro, por exemplo, é um inseto que voa, em geral tem quatro pernas18,
mas ao invés de saltar ele anda, sua dieta consiste de restos orgânicos ou de outros insetos que
ele devora as vezes ainda vivos.

A ideia de que animais associados à morte devem ser considerados impuros (...); em
Levítico, a morte e a impureza estão geralmente ligadas - o oposto de vida e santidade.
A consumir animais puros, os israelitas de distanciavam da morte, percebida como a
fonte da impureza (ALEXANDER, 2010, p. 158).

Enfim, a discussão entre as regras alimentares aponta para duas propostas que podem
ser consideradas satisfatórias. Em resumo, a classificação dos animais entre puros e impuros

16
Ibidem. p. 158
17
Os insetos alados imundos não foram especificados conforme a maneira dos mamíferos e das aves, mas, sim,
foram classificados pela descrição daqueles que andam sobre quatro pés. Esta frase dificilmente pode ser uma
descrição dos insetos como sendo dotados de quatro patas, visto que as Insectae, como classe, normalmente têm
seis patas. A referência, evidentemente, diz respeito aos movimentos deles, que se assemelham ao engatinhar ou
ao correr dos animais de quatro patas.
18
Nem todo besouro tem somente quatro patas, mas as explicações consistem numa análise didática da espécie.
12

tipificam os dois grupos de pessoas no Antigo Testamento: os judeus (puros) e gentios


(impuros). E o motivo de alguns animais serem considerados impuros pode ser associado a
dieta deles. Os animais impuros se alimentavam de outros animais (ou seja, alguns animais
precisavam morrer para que estes pudessem viver) ou de seus cadáveres (cadáveres eram
diretamente associado a impureza, os judeus eram proibidos de tocar em cadáveres, caso
contrário ficariam cerimonialmente impuros), e esta razão liga-se teologicamente ao valor da
vida e da santidade.
No Novo Testamento, Jesus restringe ainda mais a lei de Levítico 11. No texto de
Marcos 7, Jesus é confrontado pelos judeus sobre a impureza de seus discípulos em não lavarem
as mãos para comer. Jesus, contudo, afirma que nada há fora do homem que, entrando nele, o
possa contaminar; mas o que sai do homem é o que o contamina (Mc 7.15). Com essa
declaração, Jesus mostra que não existe ninguém que é puro, todos são impuros, pois o coração
é a raiz das impurezas. Em outras palavras, não existe puro e impuro, judeu e gentio, todos são
impuros. Por isso, alimento nenhum pode contaminar o homem (v. 19). Ou seja, ao mesmo
tempo em que Jesus está dizendo que todos os alimentos podem ser consumidos, o que é uma
boa notícia, ele também está afirmando a pior notícia que alguém poderia receber: todos são
impuros, pois o coração é a fábrica de impurezas.
Portanto, ninguém pode fazer nada para evitar sua própria contaminação. Se abster de
alimentos impuros não é suficiente, visto que o interior do homem é o que o contamina. Para
que o homem seja puro é necessário que Deus por seu livre favor decida torná-lo puro. Essa é
a mensagem da graça em Levítico 11. Deus pode purificar todo aquele que ele deseja, assim
como purificou os alimentos impuros (cf. At 10.9-16, 28; 1 Jo 1.9). E a purificação é mediante
o sangue de Jesus (Ef 2.11-18; Hb 9.11-14).
13

3 CONCLUSÃO

Graça. Entre tantos benefícios de se estudar Levítico 11, é preciso destacar a graça de
Deus. Todo o enredo bíblico aponta para o Cristo e para a comunhão que agora todos podem
ter com Deus por meio de Jesus. A essência da refeição, portanto, está na comunhão com Deus.
É necessário glorificar a Deus em tudo (1 Co 10.31), e as regras alimentares ensinam que,
realmente, todas as áreas da vida do crente devem glorificar a Deus. Mesmo na mais singela
refeição, é necessário que todo cristão dê graças a Deus pelo alimento, não pensando somente
na garantia do sustento, ou na bondade de Deus em providenciar a comida, mas intimamente
dar graças a Deus com uma postura de adoração e reflexão teológica a respeito da santidade
dele. Hoje é possível se alimentar dos animais considerados impuros no Antigo Testamento
porque Deus os purificou, da mesma forma todo aquele que foi purificado pelo sangue de Jesus
agora é considerado puro e pode desfrutar das ricas bênçãos de estar em comunhão eterna com
o Santo de Israel. Alimentemo-nos todos os dias alegres e com corações encharcados da
santidade e da graça de Deus.

E todas as alegrias imensuráveis que Ele dá,


Foram trazidas com agonias desconhecidas.

Isaac Watts, teólogo inglês (1674-1748)


14

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ARNOLD, Bill T.; BEYER, Bryan E. Descobrindo o Antigo Testamento. São Paulo: Cultura
Cristã, 2001, p. 121.
HOFF, Paul. O Pentateuco. São Paulo: Editora Vida, 1999, p. 175.
ALEXANDER, T. Desmond. Do paraíso à terra prometida: uma introdução aos temas
principais do Pentateuco. São Paulo: Shedd Publicações, 2010, p. 156.
HARRISON, Roland K. Levítico: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1983, p.
115.
MACKINTOSH, C. H. Estudos sobre o livro de Levítico. Diadema, SP: Despósito de
Literatura Cristã, 1964.
RYRIE, Charles C. A Bíblia anotada: edição expandida. São Paulo: Mundo Cristão; Barueri:
Sociedade Bíblica do Brasil, 2007.

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