vivia uma coelha chamada Flória com os seus quatro filhotes numa toca funda, fresquinha, quando o calor apertava, e aconchegadora nos dias em que o vento faz tremer o esqueleto a qualquer vertebrado. A comida era coisa que raramente preocupava a Flória. Bastava sair à porta da sua toca e não lhe faltavam rebentos frescos, tenrinhos, apetitosos, a fazerem crescer água na boca a qualquer coelho mais guloso. Só no fim do verão, antes das primeiras chuvas, quando a vegetação começava a amarelecer, é que a coelha Flória, depois de tomar as devidas precauções, se aventurava a ir até às hortas dos homens. Quando voltava, com a barriguita cheia de couve, feijão-verde e alface, passava pelas brasas em frente à soleira da porta da sua toca. Esta soneca era para ela a mais apetitosa e não a trocava pela melhor coisa deste mundo. Quando acordava, passava largos minutos a espreguiçar-se. Enfim… tinha aquilo a que se costuma chamar uma vida regalada. Mas isto estava a mudar. Nos últimos dias andava nervosa. Ouvia, cada vez com mais força, um barulho esquisito, estranho, preocupante… Lá longe, por enquanto. Este misterioso ruído começou a preocupá-la. Sobretudo porque tinha a certeza de que aquele inquietante vrum… vrum… vrum… Cada dia se aproximava mais da sua toca. Naquela tarde, não conseguiu fazer a sesta e encontrava-se sentada à porta de casa quando viu a sua vizinha Anafada, uma lebre que media quase tanto de largura como de comprimento, e que passava, pachorrentamente, uns metros abaixo. Perguntou-lhe: - Olha lá, Anafada, que barulhos infernais são aqueles que se ouvem lá para os lados das hortas? - Não sei bem. Fui matar a sede ao ribeiro e estava um grupo de raposas debaixo do castanheiro velho. Acho que eram aquelas que vivem lá para as bandas do Cabeço… Elas estavam a dizer, com ar de preocupação, que vai passar aqui uma estrada muito larga! - O quê?! Bem me dizia o coração que não era nada de bom! Mas tinha esperança de que não fosse assim tão trágico! O que há de ser de nós? O que acontecerá aos meus filhos? – questionou-se a coelha Flória, com a voz trémula e as lágrimas sustidas a custo. - Tenho vindo a pensar nisso. E eu que mal me consigo arrastar. Ainda bem que não tenho filhotes. Mas temos de ter calma, alguma solução se há de arranjar. - Como?! Não vês que estamos todos cercados e encurralados por casas, hortas, searas, fábricas, pela barragem… sei lá que mais!? Além deste, não conheço outro local onde possamos sobreviver! - As raposas estavam a dizer o mesmo. No entanto, talvez alguém mais viajado, mais conhecedor de terras distantes, conheça alguma floresta, ainda que pequena, onde, sem grandes sobressaltos e com poucos perigos, consigamos arranjar um buraco – respondeu a lebre, pondo em prática toda a sua experiência adquirida ao longo da sua já longa vida. - Oxalá! Olha, vou para dentro. Estou tão preocupada, mais pelos meus filhos do que por mim, que nem me apetece conversar. Até amanhã! - Até amanhã, e tem calma – despediu-se também a lebre Anafada. A coelha entrou e fechou a porta. Quando os seus filhotes sentiram o barulho da fechadura, vieram abraçar a mãe. O mais pequenote, de nome Espertezas, que não costumava deixar “fazer o ninho atrás da orelha”, perguntou: - Mamã, porque estás tão nervosa e com os olhos tão vermelhos? - Vi ali em baixo um cão enorme, quase tão grande como um burro! – desculpou-se a coelha Flória. - Não deve ser por isso! Já estiveram muitos cães a farejar e de sentinela à nossa porta e tu nunca tiveste medo! – insistiu o Espertezas. - Mas este cão era muito grande, maior do que um burro! - Se era assim tão grande, ficamos mais descansados! – disse o Espertezas, com grande calma. - Porquê? – perguntaram os três irmãos, ao mesmo tempo. - Ora essa! Porque não cabe na porta e não pode entrar aqui dentro – respondeu o Espertezas, com ar de grande sábio. - Tens razão! – disseram os seus irmãos simultaneamente. - Vá, está na hora de irem dormir – interrompeu a mãe, dando a conversa por encerrada. Os filhotes rapidamente adormeceram, mas a coelha não conseguia pregar olho. Pé ante pé, abriu a porta e saiu para a rua. Sem saber onde estava e o que fazia, encostou-se a uma árvore. - Boa noite, Flória! A Flória assustou-se e deu um salto. - Não tenhas medo! Sou eu, o teu amigo bufo Noitivanas! Não é costume andares a esta hora fora de casa! - Não consigo dormir! A Anafada disse que vai passar por aqui uma enorme estrada e eu não sei para onde hei de ir com os meus filhos! – lamentou- se a Flória. - Olha que a lebre tem razão! Pensei que já sabias. As máquinas devem chegar aqui na próxima semana! A coelha não conseguiu conter mais as lágrimas, rompeu em grande pranto e começou a gritar: - Ai, os meus filhos! Ai, os meus queridos filhos! O Noitivanas desceu da árvore, abeirou-se da sua amiga, passou-lhe a asa pelo focinho e disse- lhe: - O que é isso?! Não chores! Como sabes, eu viajo muito todas as noites. Às vezes, vou para uma pequena floresta, a última que ainda existe nestas redondezas, que fica a uma légua para além da última casa. Amanhã, fazes as malas e, pela calada da noite, atravessas a povoação e mudas-te para lá com os teus pequenos. Esse vai ser o vosso novo lar! “Nosso Amiguinho” Rosa-Dos-Ventos, Julho, 2020, Ano 52, Nº 571, Santa casa da Misericórdia do Porto, CPAC, Edições Braille.