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006, outubro 1949

A popularidade do romance policial e de


mistério é enorme. Desde o começo do século e,
principalmente, depois da primeira guerra
mundial, é crescente o sucesso desse gênero de
literatura. Os leitores possuem,
conseqüentemente, alto padrão de julgamento e
agora exigem o que há de melhor no gênero. Só
os romances genuinamente bons conseguem os
interessar. Os escritores recebem esse desafio a
seu talento e procuram responder à altura. Daqui
a necessidade de selecionar ao público as
melhores histórias.

Mistério magazine, uma seleção dirigida pelo


famoso Ellery Queen, e cujo primeiro número agora
apresentamos, seleciona as histórias mais notáveis e
sempre inéditas, tanto do ponto de vista do enredo quanto
da caracterologia, do estilo e da viabilidade. Amanhã será
uma estante clássica, uma enciclopédia das melhores
histórias policiais e de mistério escritas em nossa época.
Publicada originariamente em inglês, esta revista é agora
editada em francês, alemão, espanhol e português, com
circulação de milhões de exemplares, o que permite
enfrentar as despesas pra localizar e adquirir as melhores
histórias.

Os leitores brasileiros já estão familiarizados com o nome


Ellery Queen, pois inúmeras traduções em grandes tiragens
divulgam entre nós os romances policiais de sua autoria.
Mas o que talvez não saibam é que Ellery Queen é o
pseudônimo de dois escritores, dois primos que escrevem
em colaboração: Frederico Dannay e Manfredo B Lee. Em
1929, ainda muito jovens, estavam tranqüilamente em seu
escritório comercial, em Bruclem, quando, sem mais
aquela, resolveram escrever uma história pra concorrer ao
prêmio anual de romance policial. Escreveram O mistério
do chapéu romano e conquistaram, pasmos, o primeiro
prêmio. O livro foi impresso e alcançou tiragem inédita.
Frederico e Manfredo fecharam o escritório e se dedicaram,
de corpo e alma, ao romance policial.

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edição brasileira do Ellery Queen’s mystery magazine


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Estórias de detetive
Craig Rice
João J Malone em
Adeus, adeus!
James Yaffe
O departamento de crime impossível em
O problema do cogumelo do imperador
Hazel Hills
Senhor Riddle, conserto em geral, em
Atmosfera sufocante
Stuart Palmer
Hildegarda Withers em
O enigma do museu Negro
TS Stribling
Professor Poggioli em
O mistério da meia e do relógio
Octavus Roy Cohen
Jim Harvey em
Tranqüilamente
Estórias de escroque
Leslie Charteris
Santo em
O conto do dinheiro falso
Estórias de crime
James M Cain
Pastoral
John van Druten
O olho-de-gato

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Mistério magazine é a edição brasileira de Ellery Queen's mystery magazine. Copirraite de The American Mercury, inc. Publicação
mensal da Revista do Globo SA. Henrique d'Avila Bertaso, diretor. Mário de Almeida Lima, gerente. Porto Alegre, Rio Grande do
Sul, Brasil. Redação, gerência e oficinas: Rua Barros Cassal, 82 e 86, telefone 9-1112. Endereço telegráfico Reviglobo.
Preço: Número avulso em todo o Brasil Cr$4,00. Assinatura anual Cr$48,00
Escritório, Rio de Janeiro, rua México, 128, sobreloja, fone 22-6300. Escritório em São Paulo, rua Fortaleza, 35, fone 2-1108.
Escritório em Curitiba, rua doutor Muricy, 708, sala 134, caixa postal 612. Agentes e correspondentes nas principais localidades do
país.
Todos os direitos, inclusive o de tradução a outra língua, reservados pelo The American Mercury inc em Eua, Grã-Bretanha,
Austrália, México e todos os outros países que participaram da convenção internacional e da convenção pan-americana de direito
autoral

Os seguintes contos foram reimpressos com permissão dos


proprietários de direito autoral, a quem expressamos reconhecimento
O conto do dinheiro falso, de Leslie Charteris, do livro The bright buccaneer, direito
reservado em 1932 por Leslie Charteris. Pastoral, de James Cain, extraído de The
american mercury, direito reservado em 1928 por The american mercury, inc. O olho-de-
gato, de John van Druten, extraído do Atlantic Monthly, direito reservado em 1945 por
Atlantic montly, co. Adeus, adeus!, de Craig Rice, direito reservado em 1946 por The
american mercury, inc. O problema dos cogumelos do imperador, de James Yaffe,
direito reservado em 1945 por The american mercury, inc. Atmosfera sufocante, de
Hazel Hills, direito reservado em 1946 por The american mercury, inc. O enigma do
museu Negro, de Stuart Palmer, direito reservado em 1946 por The american mercury,
inc. O mistério da meia e do relógio, de TS Stribling, direito reservado em 1945 por
The american mercury, inc. Tranqüilamente, de Octavus Roy Cohen, extraído do livro
Detours (Desvios), direito reservado em 1927 por Octavus Roy Cohen.

Tradução de Lino Vallandro

Composto e impresso nas


oficinas gráficas da livraria do Globo
de José Bertaso & ciª
Rio Grande do Sul
Brasil

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Digitalizado em agosto de 2017

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Time, 28.01.1946
No número de 28 de janeiro de 1946 do magazine Time
(Tempo) Craig Rice viu reconhecida sua posição no mundo da
literatura detetivesca. A capa da revista exibiu um retrato em cores
pintado por Artzybasheff, cum fundo purpurino que mostrava um
esfumado espectro. Com seis braços, um sextópode (Inventamos a
palavra com premeditada malícia)1 subindo, horrendo, do teclado
duma máquina de escrever. O fantasma pensativo com o rosto
coberto por uma máscara negra e segurando nos seis tentáculos,
da esquerda à direita, um punhal, uma corda (enlaçada a meio
entre duas mãos), um vidro de veneno, uma pistola automática e
uma seringa hipodérmica. Notar a extraordinária circunspeção do
artista: Nenhum instrumento contundente. Os instrumentos
contundentes passaram de moda? E dentro da revista um artigo de
três páginas sobre o passado, o presente e o provável futuro da
dama conhecida pelo nome de Craig.
Aos leitores que não leram a reportagem do Time, damos aqui
os pontos principais: Entre as idades de 18 e 30 anos, Craig Rice
gozou doze anos de vida boêmia, três tentativas matrimoniais
malsucedidas e inúmeros fracassos no campo da poesia, da novela
e da música. O tipo de romance policial nitidamente ianque,
originado por Dashiell Hammett, foi denominado viril, brutal, maluco
e combinação de homicídio, hilaridade e álcool em abundância.
Craig Rice, disse o Time, é virtualmente a única mulher que faz parte

1
Sextópode, no inglês original sextopus. Trocadilho com sex, sexo. Hexápode é o animal de seis membros. Nota do digitalizador

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da escola. Ademais, esse gênero tipicamente ianque tem como
ramificação a farsa detetivesca, da qual Craig Rice também é um
expoente. Ela (ainda de acordo com o Time) cerca a vida
desregrada e a morte cruel com intensa atmosfera de excitação e
diversão. A excitação é proporcionada por uma espécie de
realismo condizente com a brutalidade dos quadrilheiros e outras
fealdades do mundo do crime e por um diálogo à maneira de
Hemingway.
Craig Rice também é Michael Venning e Daphne Sanders,
onze livros assinados por Craig Rice, três por Venning e um por
Sanders, na época da reportagem do Time. Quando o Who's who
pediu os dados biográficos de Michael Venning, Craig posou pro
retrato de Venning (por brincadeira) cuma barba postiça e um
casaco do marido. Nota íntima: O quarto principal da casa contém
o toucador Craig Rice, um móvel largo com enfeites de crinolina,
sustentado por duas pernas femininas com as respectivas ligas e
meias pretas rendadas. E quanto aos vidros de perfume no
toucador: Serão garrafas de uísque regeneradas?
O Time fez a seguinte declaração que atingiu o diretor deste
magazine no plexo solar, o derrubando durante dez segundos: As
mulheres sempre se distinguiram como escritoras policiais. Quando
o diretor se refez suficientemente dos efeitos desse baque, reuniu os
pulverizados restos de seu amor-próprio e perguntou se os redatores
do Time nunca ouviram falar sobre Edgar Allan Poe, Emile
Gaboriau, Wilkie Collins, Arthur Conan Doyle, R Austin Freeman,
Gilbert K Chesterton, Melville Davisson Post, EC Bentley, Ernest
Bramah, Freeman Wills Crofts, HC Bailey, Edgar Wallace, Philip
MacDonald, John Rhode, Anthony Berkeley, Francis Iles, Earl Derr
Biggers, SS van Dine, Dashiell Hammett, John Dickson Carr,
Georges Simenon, Erle Stanley Gardner, Rex Stout, Eric Ambler,
Raymond Chandler, e, pra não andar com muita cerimônia, Ellery
Queen, e pedimos desculpa aos outros homens-de-valor que se
distinguiram como autores policiais mas cujos nomes não foram
incluídos apenas porque as limitações de espaço nos impedem de
prosseguir indefinidamente. Além disso, chamamos a prestar
depoimento as seguintes testemunhas de renome: Cheiquespir: Que
todo homem seja senhor do tempo. Sir Walter Raleigh: A história
triunfou sobre o tempo. Oliver Wendell Holmes: O tempo é um
mentiroso! Ben Jonson: Esse velho embusteiro, o tempo. Longfellow:
O tempo, com mão audaciosa, arrancou metade das folhas do livro
da vida humana. Mílton: O tempo, esse ladrão sutil. Platão: Com o
decorrer dos anos se modificará e até se inverterão muitas opiniões.
No número de junho de 1949 Mistério magazine apresentou
Seu coração se partiria, primeiro conto de Craig Rice sobre João
José Malone. Entesourada em nosso cofre-forte está a segunda
história de Craig Rice a respeito de João José Malone, The bad
luck murders, que aparecerá num dos próximos números deste
magazine. E a esta introdução se segue o conto premiado de Craig
Rice, Adeus, Adeus!, a terceira história curta sobre esse advogado
beberrão e de vida agitada que é João José Malone. Também num
número futuro publicaremos o primeiro conto de Craig Rice
assinado por Michael Venning.
A defesa considera encerrada a tarefa.

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Adeus, adeus!
Craig Rice

U
ma mulher na multidão respirou convulsivamente, quase gritando. Perto de si um
homem de sobretudo cinzento cobriu os olhos com as mãos. A meia quadra uma
moça bonita, excessivamente pintada e bem-vestida, caiu ajoelhada no passeio
de concreto e começou a rezar. Mas a maior parte da multidão estava em silêncio e com
os olhos voltados ao alto, em cuja fascinação se misturavam o horror e o deleite.
22 andares acima da rua, numa estreita saliência do edifício, estava o que, daquela
distância, parecia uma pequena mancha escura. A multidão sabia que a mancha escura
era uma moça de casaco de pele de marta, agachada naquela saliência havia horas, a quem
um sacerdote, um policial e um psiquiatra eminente aconselhavam e rogavam na janela
aberta.
João José Malone, advogado de Chicago, não fazia parte da multidão. Apenas tentava
abrir caminho à entrada do hotel, onde o esperava um lucrativo cliente pronto pra pagar
um polpudo adiantamento antes de se entregar à prisão. Sabia que poderia aniquilar em
cinco minutos a acusação de roubo formulada contra o homem, mesmo diante dum júri
desfavoravelmente predisposto.
A importante tarefa de receber esse adiantamento a seu honorário foi um dos motivos
pro pequeno advogado a princípio não reparar na multidão. No bolso direito da calça
havia uma nota de 5 dólares toda amarrotada. E marcara encontro cuma loura muito
especial e muito dispendiosa pra dali a meia hora apenas. E aquele cliente pagaria o
adiantamento em dinheiro sonante.
João começava a perder a paciência com a multidão quando notou de repente que o
espaço fronteiro ao hotel estava cercado por um cordão de isolamento. Então levantou os
olhos. Murmurou, quase sonhadoramente, um homem a seu lado:
— Faz horas que ela está ali.
Durante um instante João ficou imóvel, gelado de horror. Escutava o que diziam em
torno, mesmo sem ter consciência de ouvir, e assim soube toda a história e sobre o corpo-
de-bombeiro, a polícia, o sacerdote e o psiquiatra.
Havia um bloco de gelo onde pouco antes estivera o estômago. A vida era tão
maravilhosa, mesmo com os restos requentados da ressaca da véspera, mesmo com
apenas 5 dólares no bolso e uma loura esperando! Se ao menos pudesse explicar isso à
indecisa mancha negra que se agarrava à saliência da parede, 22 andares acima. Indecisa!
Eis o ponto, a chave de tudo.
De repente começou a abrir caminho, impiedosamente e quase cegamente, no resto da
multidão. Atravessou correndo o espaço isolado onde os bombeiros seguravam redes
salva-vidas, passou no assustado policial que tentou lhe barrar a passagem, e entrou no
vestíbulo deserto. Gritou a um ascensorista pra manejar um dos elevadores vazios. Enfim
conseguiu atrair a atenção ameaçando subir sozinho, e foi levado ao 12º andar.
Era fácil encontrar o quarto. A porta estava aberta, derramando luz no corredor. Um
guarda postado à porta disse: João! tentando o deter, e foi empurrado a um lado. O
sacerdote, o psiquiatra famoso e o tenente investigador Klutchetsky, do departamento de
polícia, também foram arredados de sua frente.
Ante a janela parou e respirou lenta e profundamente. Embaixo, na saliência, estava
um rosto branco e dois olhos aterrorizados.
João falou em voz branda e calma:
— Não tenhas medo. Podes voltar muito bem a cá. Venhas caminhando devagar, com
as mãos na parede e olhando sempre a mim.

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O vulto escuro fez um movimento. A moça estava apenas algumas polegadas fora do
alcance do braço, mas ele sabia que ainda não era tempo de estender a mão.
— Nada há a temer. Mesmo que caísses, serias aparada com as redes. O pior que te
pode acontecer é um joelho esfolado e algumas contusões. — E cruzou os dedos ao dizer
essa descarada mentira — Estás em segurança como se estivesses em tua cama.
O advogado falava no mesmo tom que já empregara inúmeras vezes com testemunhas
nervosas.
Passou um minuto inteiro antes que ela começasse a se mover. Mas quando o fez foi
em direção à janela.
— Venhas. — Disse em tom persuasivo — Não é tão longe. Só um pouquinho mais,
agora. Tenhas calma.
Ela conseguiu avançar cerca de 50cm ao longo da saliência, e parou. Agora ele podia
agora ver claramente o rosto e a expressão de pavor.
— Não cairás.
Tinha de fazer um esforço confrangedor pra não estender a mão.
Dentro do quarto, e embaixo, na rua, os espectadores estavam silenciosos e com a
respiração suspensa.
Durante um momento pareceu que ela lhe sorrira. Não fora um sorriso, fora
simplesmente a distensão daqueles músculos imobilizados que lhe rodeavam a boca.
Quanto tempo faria que a moça estava agachada naquela saliência da parede? Não se
atrevia a calcular.
Tampouco se atrevia a desviar os olhos do rosto dela e olhar a baixo, de medo que a
jovem o imitasse.
Centímetro a centímetro ela se aproximava da janela. A uma distância dapenas alguns
centímetros, hesitou, quis olhar para baixo e ficou um pouco mais pálida. Pediu,
impaciente:
— Pelo amor-de-deus! Andes depressa! Com esta janela aberta está mais frio do que
um inferno escandinavo.
Foi a conta. Nessa vez ela sorriu e conseguiu alcançar o rebordo da janela, 22 andares
acima do solo, como uma menina que desliza numa porta de adega. Enfim a ergueu sobre
o peitoril, e Klutchetsky, se movendo rapidamente e respirando forte, bateu com a janela
e deu volta ao trinco.
O eminente psiquiatra se atirou à cadeira mais próxima, com o rosto matizado de
cinzento. Klutchetsky e o guarda uniformizado olhavam fixamente a moça. Começou o
sacerdote:
— És uma jovem perversa.
— Cales a boca! — João disse distraidamente. Olhou com atenção à moça, que ainda
se agarrava à moldura da janela.
Era uma jovem de pequena estatura e compleição delicada. Pálida, aflita e
desgrenhada como estava, era, ainda assim, algo de muito especial.
O rosto, branco como giz e decididamente sujo, tinha forma triangular e era
encantador. Os olhos assustados eram castanhos e grandes, orlados de pestanas compridas
e escuras. O cabelo emaranhado era louro mel. A boca, nua de batom e com marcas no
lábio inferior onde se cravaram os dentes, era uma flor pálida e anelante. João pensou:
— Mais um minuto e estaria compondo poesia.
O casaco de pele de marta era magnífico. O vestido rosa pálido, notou, provinha duma
das melhores lojas. Percebeu também que as meias rasgadas e enlameadas eram de náilon.
Jóias cintilavam nos pulsos finos da moça.
— Vejam só! — João exclamou jovialmente, tirando do bolso um charuto e
começando a desenrolar — Dóris Dawn!

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Dóris Dawn respirou fundo em primeira vez nas últimas horas. Circunvagou os olhos
no círculo de fisionomias hostis e se acolheu à segurança da visível e cálida cordialidade
de João. Ligeiro rubor começou a voltar ao rosto.
— Salvaste minha vida. Estive ali… anos, procurando criar coragem pra me arrastar
até uma janela. Os lugares altos… sempre…
A cor tornou a desaparecer do rosto. João resmungou:
— É melhor que ponhas um pouco de ruge. Estás com horrível aspecto.
Ela quase sorriu. Remexeu nos bolsos do casaco, tirou a caixinha de ruge e o batom,
e os deixou cair entre os dedos trêmulos. João os agarrou do chão. Batom rosado
Primrose, notou aprovadoramente. O matiz justo prà tez pálida da moça. Disse em tom
brando:
— Calma. Estás em segurança.
— Não estou. É por isso!
Se voltou a Klutchetsky:
— És um policial. Faças algo. Alguém tentou me matar!
Klutchetsky e o psiquiatra eminente trocaram olhares significativos. Klutchetsky disse
com ar fatigado:
— Muito bem, minha amiga. Agora nos acompanhes sem fazer barulho.
João interveio:
— Um minuto. Desde quando é costume, num caso de tentativa de homicídio, deter o
projetado cadáver?
— Olhes aqui, João — Klutchetsky volveu, parou e suspirou profundamente —
Apreciamos teu auxílio. Muito bem. Agora faças o favor de deixar o departamento de
polícia resolver os problemas a sua maneira.
— Mas não sou um problema! — Exclamou a jovem. — Alguém…
— Isto é o que pensas! — Klutchetsky respondeu — Não é assim?, doutor.
Pausou. O famoso psiquiatra inclinou vivamente a cabeça.
— Ele tentou me matar! — A moça insistiu, com respiração convulsiva — Tentará
outra vez. Ele me pôs a fora dessa janela e me deixou ali. Eu estava muito assustada pra
voltar a dentro. Fiquei me agarrando à parede até…
— E quem é esse ele? — Klutchetscky interrompeu ceticamente — Quê jeito tem?
— Não sei. Nunca o vi.
O oficial de polícia se voltou ao eminente psiquiatra:
— Vês o que eu queria dizer?, doutor.
Mais uma vez o psiquiatra inclinou a cabeça.
Dóris começou a soluçar com os olhos enxutos. Deu um passo a João.
— Acredita em mim. Não é? Não deixes que me arrastem a um hospital. São da
polícia. Faças com que o procurem. Faças com que me protejam.
— O que sempre pergunto é pra quê pagamos imposto. — João murmurou, acendendo
o charuto. Parou o tempo suficiente pra encarar com severidade o oficial e o subalterno.
— Mas o que precisas é dum bom advogado.
— Arranjes um pra mim!
João sorriu com ar tranqüilizador.
— Já arranjei.
— Escutes. — Klutchetsky disse — Esta é a terceira vez que tenta. É uma maluca.
Perguntes a doutor Updegraff.
— Um caso muito interessante. — Ronronou doutor Updegraff — Naturalmente,
depois que eu o tiver estudado durante algum tempo…
— Lérias! — João interrompeu com rudeza.
— Isso mesmo! — Disse doutor Updegraff.

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João pensou numa porção de coisas que gostaria de fazer a doutor Updegraff, todas
descaridosas e muitas impossíveis de mencionar. Pensou também no problema imediato.
Se por acaso Klutchetsky e doutor Updegraff estivessem com a razão, Dóris devia ser
levada a um hospital, e quanto mais cedo melhor. Mas se estivesse dizendo a verdade, e
acreditava que sim, ficaria mais em segurança na prisão, no momento.
— Como advogado desta moça…
Klutchetsky disse:
— Vamos, João. Ouviste a opinião do doutor. Talvez te lembres da mãe desta menina.
— Me lembro. Estive secretamente apaixonado por ela durante anos.
Refletiu que todos os homens impressionáveis que freqüentaram o teatro entre 1915
e 1926 deviam se lembrar de Diana Dawn, que suicidara no apogeu da carreira.
Klutchetsky tornou:
— Muito bem! Esta menina tomou veneno mas foi encontrada a tempo. Por sorte não
tomou muito. Depois tentou abrir os pulsos cuma lâmina de barbear mas não acertou a
veia e, de qualquer forma, a camareira a encontrou antes de sangrar muito. Agora tomou
um quarto aqui sob nome falso e resolveu saltar.
João ficou em silêncio um momento. Era possível que nessa vez Klutchetsky acertara,
e si não. Mesmo assim…
— E quanto a mensagem? Deixou alguma?
— Mensagem? — Bufou o tenente — O quê achas disso aí?
Fez um gesto circular com o braço, indicando as paredes.
João olhou e percebeu que o quarto estava cheio de espelho. Em cada um estava
escrito com batom: Adeus, Adeus! As letras eram da cor do sangue seco. A aporta do
banheiro tinha todo o comprimento ocupado por um espelho sobre o qual estava escrito,
de alto a baixo:
— Adeus, adeus, adeus, adeus, adeus…
— Não escrevi isso! — Exclamou Dóris.
João a fitou com atenção, depois tornou a olhar as letras vermelho escuro e disse a
Klutchetsky:
— Estou convencido.
O sacerdote murmurou algo sobre o excesso de maquiagem, os perigos da cidade, a
delinqüência juvenil e o sermão do próximo domingo. Doutor Updegraff resmoneou algo
sobre o significado do uso de batom em mensagem de despedida.
A moça deu um pequeno gemido trágico:
— Mas pensei que me ajudarias!
— Não contes a alguém, mas ajudarei mesmo. — João disse, e se voltou a
Klutchetsky.
— É melhor mandar o carro da polícia dar volta e entrar na travessa. Deve haver um
cardume de jornalista no vestíbulo. Desçamos no elevador de carga.
Klutchetsky agradeceu cum aceno de cabeça, mandou o jovem policial telefonar à
chefatura e disse a João:
— Terás de nos mostrar o caminho. Afinal, como sempre sabes onde estão o elevador
de carga nos hotéis?
— Tenho meus segredos, e todos são sagrados. — João respondeu com ar de modéstia
afetada.
Não acrescentou que entre esses segredos estava o conhecimento de que a saliência
da fachada media 75cm de largura com rebordo de ao menos 15cm de altura.
Um dos motivos pra não dizer isso era que não queria explicar como o descobrira.
Segurando firmemente o cotovelo de Dóris, foi com ela à porta. Doutor Updegraff e
o sacerdote se ofereceram com muito boa-vontade e até com solicitude, pra ficar atrás e

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enfrentar os repórteres. João resmungara algo desagradável sobre as pessoas que eram os
próprios agentes de publicidade, roubando assim o pão a ex-jornalistas honestos mas
indigentes.
Chegados à travessa, Klutchetsky agradeceu a João por os conduzir ao elevador de
carga, deu boa-noite e fez Dóris entrar na porta traseira do carro. Prontamente João
também se enfiou porta a dentro. Klutchctskv disse:
— Ei! Esperes um minuto! Não podes fazer isto!
— Posso, quero e faço. — João sorriu jovialmente — Nunca te lembraste de contar a
tua mulher aquele passeio que fizemos ao hipódromo quando ela estava de visita à prima
em Nova Iorque?
Fez uma pausa.
— Bem, bem… — Resmungou o oficial. Bateu com a porta do carro e se sentou ao
lado-do motorista fardado.
Quando o carro entrava na avenida Michigão, onde a multidão se dispersava e os
bombeiros se preparavam pra partir, a mão da moça se introduziu na dele como um
gatinho assustado e friorento que se introduz num leito de pluma.
— Sabes que não fui. — Murmurou a moça — Não podia ter sido. Não havia motivo.
Sempre gozei a vida. Sempre tive tudo o que queria. Até começar isto, sempre fui feliz.
— Sei. — João respondeu, também em voz baixa — Já te ouvi cantar.
Lhe prendeu os dedos entre os seus, tranqüilizadoramente.
— Mas não quero que acredites porque digo ou porque tens pena de mim. Quero que
acredites por saber algo que prove a verdade. Quero que leias meu diário íntimo. Então
saberás realmente.
Levou a mão ao bolso.
— Confiaste em mim. Confiarei em ti. Eis a chave de minha casa. É na rua Alegre
1117. Não te esquecerás. Não é? A chave da luz fica à direita da porta, e a biblioteca é
logo à esquerda do vestíbulo. Há uma escrivaninha na biblioteca. Meu diário está na
gaveta do meio, embaixo duma velha lista telefônica. Tens de ler. E, por favor, não
repares se encontrares pó em toda parte. Andei muito ocupada, pra fazer a limpeza. Minha
governante foi a Clínton, estado de Aioua, porque a nora teve um bebê.
João piscou os olhos. Dóris, cantora de rádio, passara horas agoniantes numa saliência
da fachada dum hotel, 22 andares acima da rua. Corria perigo de ser encerrada num
pavilhão de psicopata e, se fosse posta em liberdade, provavelmente correria perigo de
ser assassinada. Entretanto, se preocupava porque ele podia reparar no estado de sua casa.
Era incompreensível. Mas Dóris também o era.
— Escutes. Contes essa história do ele misterioso.
— Sinceramente nunca pude o ver bem. Naquela primeira vez…
O carro chegava à chefatura de polícia. Dóris concluiu:
— Tudo está no diário.
João lhe apertou a mão com força.
— Olhes. Não respondas a pergunta. Não fales com repórter. Digas sempre que
procurem teu advogado. Sou teu advogado. E não tenhas medo.
Um grande soluço de piedade subiu à garganta, Ela era tão linda e estava tão
apavorada! João tinha vontade de cingir confortadoramente a cintura com o braço, mesmo
que durante um momento mas Klutchetsky já abria a porta do carro.
— Ficarás em segurança. Armarei um pouco de confusão.
Armou tanto barulho que Dóris foi levada da chefatura numa ambulância do
departamento, alguns minutos antes da chegada dos repórteres, e internada num hospital
particular sob um nome suposto e cum guarda na porta. Na verdade João foi tão eficiente

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em armar confusão, que só depois de estar na rua, sob a fria chuva de primavera, percebeu
que se esquecera duns quantos detalhes importantes.
Em primeiro lugar: Se esquecera de dizer a Dóris o nome do advogado que contratara
pra defender os interesses dela. Além disso se esquecera de indagar o nome do hospital
particular, e o nome sob o qual a moça fora registrada.
Refletiu que, provavelmente, teria mais trabalho em encontrar sua cliente do que ela
em encontrar o advogado. Mas isso era pormenor secundário.
O mais importante era que, ao se constituir espontaneamente seu advogado, se
esquecera de mencionar a delicada questão do pagamento inicial. E, o que era muito pior,
nessa hora o cliente que fora procurar no hotel já devia ter contratado outro advogado.
Finalmente, a dispendiosa loura nunca esperara alguém mais de meia hora. E ele já
estava atrasado quase duas horas.
João suspirou desconsolado e lamentou gastar a maior parte dos últimos 5 dólares
comprando revistas e bombons pra Dóris na banca de jornal, antes da ambulância do
departamento a levar. Depois pensou em Dóris, e chegou à conclusão de que não
lamentava muito o que fizera.
Restava nos bolsos a esplêndida quantia de 87 centavos. Entrou ao bar da primeira
esquina e gastou 75 centavos em três copos de gim com cerveja enquanto recordava tudo
o que sabia a respeito de Dóris.
Diana Dawn, a mãe da moça, fora uma das mulheres mais belas de sua geração, ou
das doutras. E talentosa também, embora sem necessidade de o ser. Valia a pena comprar
uma entrada de teatro só prà olhar. Não era preciso que dissesse uma palavra ou cantasse
uma nota. Se casara cum homem tão rico quanto era bela e tivera profundo desgosto
quando ele morrera dum acidente numa partida de pólo pouco depois de nascer Dóris.
Parece que o tempo cicatrizara suficientemente as feridas pra permitir se casar de
novo. Nessa vez cum ator. João vasculhou a memória procurando o nome do homem, e
enfim o encontrou. Roberto Spencer. Parecia vagamente familiar, por alguma razão que
não conseguia descobrir. Foi então que pediu o terceiro gim com cerveja.
Fazia apenas alguns meses que Diana Dawn Stuart Spencer estava casada quando seu
segundo marido desaparecera da face da Terra. Não muito tempo depois, Diana se atirara
da extremidade do cais da marinha na água fria do lago Michigão, deixando sozinha no
mundo uma filha pequena e loura. A filha herdara a fortuna de Stuart, fora educada por
uma comissão de tutores, e com 18 anos surgira diante do mundo como Dóris Dawn,
cantora, decidida a abrir caminho com a própria força.
Largou o copo vazio, suspirou e apalpou os bolsos. Duas moedas de 5 centavos, duas
de 1 centavo e uma ficha telefônica. Procurou nos outros bolsos, sem se esquecer de
examinar o forro do casaco e as bainhas da calça. Às vezes encontrava inesperadamente
algum troco miúdo. Mas tal não aconteceu nessa vez. Pensou em arriscar as duas moedas
de 5 centavos no caça-níquel, calculou a probabilidade e desistiu. Fez o plano de tomar
um bonde e ir ao bar Corredor da cidade, de Joe Anjo, solicitar um pequeno empréstimo.
Depois se lembrou de que Joe Anjo fora a Gary, estado de Indiana, pra assistir o
casamento duma sobrinha. Terminou tomando um bonde na rua Estado e desembarcando
a duas quadras da rua Alegre 1117.
Era quase meia-noite quando entrou na casa minúscula e perfeita, embora
reconhecidamente empoeirada, que Carlos Stuart construíra pra sua jovem esposa e
deixado à filha. A casinha ficava no meio dum pequeno jardim quadrado, cercado por
altos muros. Menos de meia hora depois estava no jardim, cuma pá que encontrara na
entrada do fundo, e tremia sob a chuva, fazendo voto pra que a empresa fosse infrutífera.
Antes da 1h da madrugada telefonou chamando freneticamente capitão Dan von
Flanagan, da seção de homicídio. À 1:15h Flanagan chegou, tendo trazido, a pedido de

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João, dois robustos policiais com pás, o carro do necrotério, uma padiola e uma garrafa
de gim.
— Pensei que fosse brincadeira. — João disse em voz rouca, afagando o copo de gim
— Encontrei o diário justamente onde ela dissera que estava. — Fez um aceno de cabeça
indicando a pequena escrivaninha Chippendale. Comecei a ler.
— Que vergonha!, João. Ler o diário íntimo duma moça! — Observou von Flanagan.
O enorme policial parecia inquieto e pouco à vontade, na ponta duma delicada cadeira de
brocado. — O quê diz o diário?
— Foi ela quem sugeriu — João retrucou — De qualquer modo, eu queria conhecer
a explicação que ela dava às duas tentativas de suicídio. E este papel caiu de dentro do
diário.
Entregou uma folha de papel a von Flanagan:
Caves, caves, caves
sob o salgueiro do jardim
— Pareciam versos tirados de duas canções populares. Mas encontrei uma pá e cavei.
— Devias estar bêbedo. — Comentou von Flanagan.
— Quem? Eu?! — João perguntou, indignado. Bebeu o resto do copo de gim, tirou
do bolso um charuto e o acendeu cuma mão apenas ligeiramente trêmula.
— Não fiques nervoso. — Tornou von Flanagan — Não é a primeira vez que vês uma
caveira.
— Quem está nervoso? indagou João.
Fechou os olhos e ficou em pé sob uma árvore que gotejava a fria chuva de primavera,
firmando os pés no lodo e cavando cuma pequena e inadequada pá na terra ainda meio
gelada, até que órbitas vazias num rosto alvo e descarnado o fitaram.
De repente se abriu uma porta próxima, e João deu um pulo na cadeira.
Um policial de capote de oleado e botinas enlameadas disse:
— Encontramos quase todo o esqueleto, menos uma parte do pé esquerdo.
Fechou a porta ao sair, e João fechou os olhos. O policial tornou a abrir a porta e
acrescentou:
— Parece que foi enterrado com todas a roupa, e até as jóias. Johnson está limpando
o relógio.
Fechou a porta novamente. João espirrou.
— Espero que não tenhas te resfriado. — Disse von Flanagan, solícito.
— Nunca me resfrio.
Conseguiu finalmente acender o charuto, estendeu a mão à garrafa de gim e disse:
— Mas, por causa das dúvidas… — Tornou a espirrar — Agora, quanto ao diário.
Estava escrito por uma moça muito feliz, muito normal, que tinha todos os motivos pra
viver, inclusive dinheiro à vontade. Até o momento em que começou a sofrer coisas
estranhas.
Pegou o pequeno livro encadernado em couro e começou a ler em voz alta:
— Aconteceu algo estranho. Tudo é muito confuso. Não entendo. Tomei um coquetel
e fui me deitar cedo depois do espetáculo. Acordei num hospital. Nesse intervalo me
recordo de que vi muita agitação, e gente correndo dum lado a outro e que eu me sentia
enjoada e indisposta. Quiseram me convencer que tomei veneno, mas sei que não é
verdade. Disseram que escrevi com batom na cabeceira da cama Adeus, adeus! mas
quando me deixaram voltar até casa, já lavaram tudo e não pude saber se era mesmo eu
quem escrevera. Encontraram veneno em meu estômago mas sei que não tomei veneno.
— É maluca mesmo. — Comentou von Flanagan.

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— Esperes um momento! — João disse — Me lembrei de que naquela noite um
homem entrou a meu quarto. Entregou um telegrama. Mas não cheguei a ver o telegrama.
Estava na banheira, de modo que pus um roupão-de-banho e abri um pouquinho a porta,
dizendo ao homem pra deixar o telegrama em cima da escrivaninha e fechasse a porta ao
sair. Meu coquetel já estava preparado em cima da mesinha de cabeceira. Desconfio que
alguém esteja procurando me envenenar.
João parou, tornou a encher o copo e a acender o charuto, e observou:
— Depois disso houve um tom de inquietação no diário. As coisas de costume:
Encontros, festas, vestidos. Mas um quê de ansiedade.
Von Flanagan fez carranca e respondeu:
— Me lembro um pouco deste caso. Alguém telefonou à criada e disse pra ir depressa
até casa, que a patroa dela estava doente. Se não fosse isto a menina estaria morta, embora
sem tomar muito veneno.
— Algum tempo depois — disse João — ela escreveu: Alguém quer me assassinar.
Fez uma pausa, e então acrescentou:
— Deves te lembrar disso também. Foi encontrada num quarto de hotel, registrada
com outro nome. A camareira entrou e deu com ela no banheiro, com os pulsos abertos.
Parou novamente e depois continuou, franzindo as sobrancelhas:
— Se registrou no hotel, foi ao quarto e abriu os pulsos logo antes da hora em que a
camareira chegaria àquele quarto no cumprimento regular da função.
— Estupidez. — Comentou von Flanagan — Se é que realmente queria… hum…
passar desta a melhor. Saberia que seria encontrada a tempo.
— De acordo com o diário, um homem telefonou e disse que se fosse a tal hotel e se
registrasse com tal nome a procuraria com importante informação a respeito de Roberto
Spencer, o padrasto desaparecido havia muito tempo. Foi, atendeu à porta, e um homem
não identificado a obrigou a entrar ao banheiro, cortou os pulsos e a deixou ali,
inconsciente. A moça contou essa história à polícia mas riram dela. A frase Adeus,
adeus! estava escrita no espelho do banheiro.
Von Flanagan esfregou os pés nó assoalho, contrafeito.
— Tens de reconhecer que tudo isso é muito esquisito, João.
João não fez caso.
— Doravante o diário é a história duma moça assustada, que sabe que alguém tenta a
assassinar. Mas — João largou o charuto — lerei o último parágrafo.
Estou com medo horrível, mas tenho que saber a verdade. Prometeram que
se eu comparecer ao encontro dirão a mim o quê aconteceu a Roberto Spencer.
Preciso saber.
João fechou docemente o livro e disse:
— O pedaço de papel que mandava alguém cavar no jardim embaixo da árvore foi
encontrado entre estas duas páginas.
Pegou os restos do charuto, decidiu que não havia esperança de tornar a o acender e
começou a desembrulhar outro.
— Tomou veneno insuficiente pra matar. A criada foi chamada a tempo de a enviar
apressado a um hospital. Se registrou num hotel sob um nome falso e cortou os pulsos,
não de maneira fatal, logo antes da hora de chegar a camareira.
— O quê procuras provar? — Perguntou von Flanagan, inquieto.
— Nada. Mas o homem saberia que a saliência da fachada do hotel era larga o bastante
pra se empurrar um carrinho de criança ali sem perigo. Pensou que ela teria o tino
suficiente pra tornar a entrar na janela, e tomou o cuidado de fazer com que alguém a
visse e chamasse a polícia antes dela voltar a dentro. Evidentemente não sabia que ela

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tinha acrofobia e ficaria ali imóvel, muito assustada pra sair donde estava e sensata demais
pra saltar. Tampouco sabia que eu chegaria providencialmente.
— Não sei aonde queres chegar. Disse von Flanagan.
— O pior é que também não sei. — João respondeu pegando a garrafa de gim.
Novamente o jovem policial apareceu à porta, com as botinas e o impermeável ainda
mais enlameados:
— Encontramos um pouco do que resta das roupas dele.
— Pelo jeito, parece que estava ali havia muito tempo. Encontramos a carteira, o
relógio e outras coisas. Parece que era um tal Roberto Spencer.
João levou aos lábios a garrafa de gim e fechou os olhos.
— Pelo jeito deve ter sido assassinado. — Acrescentou o policial.
— Ao menos encontramos o que parece ter sido uma bala no que antigamente seria o
estômago dele.
— Vás embora! — João gemeu.
Largou a garrafa de gim e espirrou novamente.
— Apanharás pneumonia. — Disse von Flanagan, solícito.
O pequeno advogado sacudiu a cabeça.
— Com os rendimentos que tenho, não posso.
— É melhor eu voltar até lá — disse o jovem policial. — Johnson acha que ainda pode
encontrar o resto daquele pé esquerdo.
Se retirou, batendo a porta. Disse von Flanagan:
— João. Aquele bilhete. Estava escrito com a mesma letra que o diário?
João se assoou e respondeu cum não desconsolado. Era uma das coisas que o
preocupavam. Além do fato de que havia algo de exasperantemente familiar nos termos
do bilhete.
— Mas não foi escrito no mesmo papel. Foi escrito num bloco pra recado telefônico.
Se ao menos eu pudesse me lembrar…
Nesse momento, outro jovem policial apareceu à porta e disse:
— Há alguém aqui perguntando sobre senhorita Dóris. Achei que era melhor falar
contigo. Disse se chamar Roberto Spencer.
João cobriu os olhos com a mão e exclamou:
— Isto é demais!
— Mandes entrar, de qualquer forma. — Disse von Flanagan.
— De qualquer forma. — João repetiu — talvez ele possa nos ajudar a encontrar o
resto de seu pé esquerdo.
Tornou a espirrar. Tomou outro gole de gim. Então se lembrou de repente. Beto
Spencer, ator. Trabalhando atualmente numa comédia um tanto enfadonha e não muito
bem aceita. Roberto Spencer tinha um filho pequeno, entregue aos cuidados de parentes,
quando conhecera e desposara Diana.
— Há alguém consigo. — Disse o policial — Senhor Apt.
— João Apt — João acudiu — é um antigo agente teatral. Os amigos o chamam de
Jaques. Foi o empresário de Diana, e provavelmente de Roberto Spencer. É empresário
de Dóris, agora. Talvez o seja também de Beto Spencer. Não sei.
Reprimiu o próximo espirro.
Beto era um jovem alto, bonito e de olhar ansioso. Suas primeiras palavras foram:
— Dóris está bem? O quê aconteceu consigo? Pra quê todos estes policiais na casa?
Onde está? Quando poderei a ver?
Jaques Apt sorriu a João, a von Flanagan e ao jovem policial. Era um sorriso amistoso,
conciliador. Indicou o jovem ator cum movimento do ombro e disse:
— O desculpai. Está perturbado.

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— Nada conseguiria perturbar Jaques Apt. — João refletiu.
O diminuto agente teatral sem dúvida nascera com sorriso amistoso e fisionomia
imperturbável, e não modificara a expressão durante os 60 e vários anos que já vivera.
Tinha olhinhos brilhantes, pele branca de cera e algumas falripas de cabelo prateado na
cabeça bem-feita. Usava um chesterfilde2 preto que parecia muito grande pro corpo
exíguo, e a indumentária era completada por um incrível e muito apropriado chapéu-coco.
— Estou profundamente preocupado. — Jaques Apt disse — Sou o empresário de
senhorita Dawn.
Se sentou numa cadeira de encosto vertical e pôs cuidadosamente o chapéu nos
joelhos, continuando:
— Gostaria que assegurasses…
— Onde está? —Beto perguntou, com desesperada rudeza na voz.
— A moça está em perfeita segurança. — Respondeu friamente von Flanagan. — E o
quê tens com isso?
— Estou apaixonado por ela — Beto declarou — e está apaixonada por mim.
João o fitou e engoliu um suspiro. Acariciara algumas idéias muito pessoais a respeito
de Dóris. Agora compreendeu que não tinha chance.
— Nos casaremos. — Beto acrescentou.
João se endireitou na cadeira, surpreso, mas nada disse.
Jaques Apt os olhou com ar radiante.
— Como duas pombinhas. E então não haverá mais dificuldade por causa do dinheiro.
— Dinheiro?
João perguntou. Era um de seus assuntos prediletos, agora mais que nunca.
— Não te preocupes com o dinheiro. — Beto disse — Onde está Dóris?
— Não te preocupes com Dóris — João retrucou, de mau humor. — Quê dinheiro?
— O testamento de Diana. — Jaques explicou — Possuía muito dinheiro, proveniente
daquele infeliz senhor Stuart. Deixou tudo ao segundo marido, Roberto Spencer. Pouco
antes de morrer. Quase como se tivera um pressentimento.
João franziu o rosto.
— Mas Roberto desaparecera antes disso.
— Exatamente. — Respondeu Jaques, sorrindo e inclinando a cabeça.
— Portanto, o testamento dizia que, até ele ser encontrado, Dóris receberia a renda de
todos os bens e teria o uso desta propriedade.
— Até ser encontrado. — João repetiu — Não especificava se vivo ou morto?
— Não. — Jaques disse. Parecia muito manso e inocente, fazendo girar o chapéu em
cima do joelho. — Um testamento muito curioso, admito. Mas Diana quis que fosse
assim. Roberto tinha defeito, mas ela o queria muito. Ele roubava dinheiro, mentia e quase
lhe arruinou a carreira, mas Diana gostou dele até o fim.
De súbito o homenzinho já não parecia tão inocente nem tão manso.
— Há uma cláusula: Se a filha falecer antes de Roberto voltar ou ser encontrado, o
dinheiro passaria aos herdeiros dele. Se a filha se casasse antes de Roberto voltar ou ser
encontrado, o dinheiro passaria às mãos da filha e do marido. Um testamento muito
complicado, mas é que Diana tinha mesmo uma personalidade muito complicada.
Era evidente que o jovem Beto não suportaria mais aquilo. Disse:

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Chesterfilde: George Stanhope, o sexto barão de Chesterfield, foi imortalizado ao emprestar seu nome a um célebre tipo muito
conhecido de poltrona e a um modelo de casaco, pois há rumor de que foi o inventor dessa peça de roupa ainda na metade do século
19. Mas não te deixes enganar pelo nome pomposo, chesterfilde é um dos sobretudos masculinos mais comuns, além de ser muito
popular na Europa, principalmente na Inglaterra, pátria do barão. http://www.canalmasculino.com.br/o-que-e-e-como-usar-o-casaco-
chesterfield/ Nota do digitalizador

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— Mas a todas estas não sabemos onde Dóris está. Não se casou. E ele ainda não foi
encontrado.
Nesse instante um dos jovens policiais entrou e disse:
— Johnson acabou de encontrar o resto do pé esquerdo. Parece que está inteiro.
— Ele? — Beto perguntou desvairadamente. Circunvagou os olhos arregalados na
peça. — Onde está Dóris?
— Aqui. — Disse a voz de Dóris.
João deu um pulo na cadeira e se virou. Disse uma voz grave, masculina:
— Olá, João. Lamento muito se te demos um susto.
A moça ainda estava muito pálida mas lavara e pintara novamente o rosto. O cabelo
cor-de-mel caía liso nos ombros. Envergava um uniforme de enfermeira, com meias e
sapatos brancos, mas o casaco de pele de marta estava vestido sobre o uniforme.
João espirrou e disse:
— Não estás aqui. Estás num hospital. És uma ilusão. Vás embora. Desapareças.
Sumas!
Jerry Kane riu.
— E tu, Jerry, — continuou João, respirando forte — como entraste aqui?
— Entramos na porta do fundo. — Jerry respondeu — Muito fácil, pois estamos em
nossa casa.
— Nossa?! — Explodiu o advogado.
Olhou fixamente Jerry, jogador profissional, proprietário de clubes noturnos e
negocista audacioso. Era um homem grande e forte mas estranhamente gracioso. O rosto
amorenado podia ser de dureza extrema ou cordial, sorridente e cativante. Ao longo duma
das faces havia uma antiga cicatriz. Seus negócios sempre se conservaram dentro dos
limites da lei, mas muito na fronteira. Ele era proprietário do clube noturno onde Dóris
cantava. A reputação com as mulheres era ainda pior que a de João.
Os outros ocupantes da sala emudeceram momentaneamente. Então todos falaram ao
mesmo tempo. Perguntas. As mesmas perguntas. Dóris disse:
— Descobri que tinha de sair daquele hospital porque havia probabilidade de saber
algo. Na verdade foi muito fácil. Subornei uma enfermeira pra chamar Jerry, quem
subornou o policial de guarda diante de meu quarto, o mandou embora e levou a mim um
uniforme de enfermeira. Tudo o que tive de fazer foi vestir o uniforme e sair
tranqüilamente.
— E — disse o homenzarrão — antes de chegarmos àqui, atravessamos a fronteira do
estado e nos casamos. Apresento senhora Kane.
O jovem Beto exclamou com voz angustiada:
— Dóris!
— Mas quê idiota! — Jaques disse.
Ela não lhes deu atenção.
— Nessa vez ninguém me impedirá de saber. É melhor, sinceramente, todos ficardes
me esperando aqui. — De repente uma pequena pistola reluziu em sua mão. — Mas não
procurai me reter.
— Dóris, filha… — Jerry Kane balbuciou. E depois: — Como, diabo!, conseguiste
minha pistola?
— A tirei de teu bolso. — Respondeu ela calmamente. O rostinho branco estava duro
como pedra — Se alguém tentar me deter ou me seguir, atirarei. Seja quem for. Até
mesmo Jerry. E amo Jerry. Sempre o amei.
De repente, foi embora.
Antes que alguém se movesse, Jaques disse:

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— É lástima que te casaras com ela, Jerry. Porque não herdará o dinheiro, no fim de
conta.
Jerry praguejou violentamente e correu à porta. De repente todos se lançaram à porta.
João os alcançou no passeio, a tempo de ver um carro se afastar ruidosamente rua a fora,
o carro de Jerry com Dóris na direção. Outros carros se movimentaram: O automóvel de
turismo de Beto e dois carros da polícia.
João ficou ali, tiritando.
Nunca alcançariam aquele automóvel de Kane. Nem o carro da polícia. E ali ficaram,
encalhados. E ninguém mais sabia aonde fora.
Nem um táxi à vista. Só se poderia encontrar um na avenida Chicago.
Avenida Chicago! De repente teve uma idéia: João deu meia-volta e desatou a correr
na rua. Uma quadra até a rua Estado, três quadras até avenida Chicago. Conseguiu chegar
à zona de segurança no momento em que um bonde se aproximava clangorosamente na
chuva, rumo leste.
— Noite úmida. — Observou o condutor.
— Vai ficar ainda mais úmida. — João profetizou sombriamente.
Deixou cair seu último níquel na caixa e começou a procurar nos bolsos uma
imaginária moeda de 2 centavos. O bonde chegara à curva da rodovia Beira-Lago quando
encontrou a ficha telefônica. A entregou triunfantemente ao condutor pra que a trocasse,
e mostrou a devida surpresa e decepção quando a ficha lhe foi devolvida. Continuou a
procurar os 2 centavos até que o bonde, agora vazio, estacou abruptamente no fim da
linha. O condutor disse:
— Terei de te fazer descer aqui. Sem pagar não podes fazer a viagem.
Olhou na janela e viu o contorno familiar do cais da marinha. Enfiou a mão no bolso
e disse;
— Tome um charuto.
O conversível de fabricação especial de Jerry Kane estava estacionado à entrada do
cais. Não havia outros carros perto. Suspirou.
Era uma situação que teria de enfrentar sozinho.
Sabia exatamente aonde ir. Subiu a escada do lado esquerdo do cais e começou a andar
ao longo do pavimento. O cais estava escuro e deserto, e a chuva dava ar de desolação.
Havia um ponto, logo além da fileira de banco. João cravou os olhos na escuridão em sua
frente e não viu sinal de moça em uniforme de enfermeira. Começou a correr.
Chegou ao ponto de onde Diana se atirara ao lago, anos atrás, e olhou sobre o
parapeito. Havia uma mancha branca na superfície negra. Tirou vivamente o sobretudo,
arrancou os sapatos dos pés e se atirou.
A água estava fria como gelo. Conteve a respiração depois dum terrível momento e
começou a nadar na direção da mancha branca.
A moça ainda estava viva. Se debatia nágua. Isso deu nova força a João, quem,
mantendo a cabeça dela erguida acima da superfície durante um minuto, conseguiu, como
por milagre, a desembaraçar do casaco de pele de marta que a arrastava ao fundo.
Um barco se aproximou. Era uma pequena canoa, cujo vulto escuro se desenhava
contra o negrume ela noite. João foi até lá, ajudando a moça. Um remo se destacou da
canoa e os empurrou a baixo.
Houve uma breve agonia provocada pela submersão, e a lembrança, ainda mais breve,
de todas as coisas que tornaram a vida tão agradável pra ele. Um rugir quase insuportável
lhe feriu os ouvidos ao subir novamente à superfície, ainda segurando a moça. Uma luz
que quase o cegou no momento em que tomava respiração.
Uma voz disse:
— Agarrai os dois antes que afundem outra vez.

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Mãos vigorosas se estenderam e o agarraram nas axilas. Um movimento rápido, e ele
foi puxado a dentro da lancha a motor que produzira aquele rugido quase insuportável e
lhe focara aquela luz nos olhos.
João ansiava se deixar cair sem sentido no convés, mas antes olhou e viu que a moça
também fora puxada a bordo e que respirava. Então, com as últimas forças que lhe
restavam, conseguiu apontar a canoa.
Ouviu um tiro. Continuou em pé o tempo suficiente pra olhar sobre a borda da lancha.
Viu a canoa se virar e começar a afundar.
— Devias calcular que eu tomaria conta duma lancha salva-vida. — Jerry disse — Eu
sabia aonde ela fora. Afinal, faz multo tempo que estou apaixonado por ela.
João se estendeu nas tábuas do convés, passou em revista todos os aspectos do caso,
e disse finalmente:
— Sabes? Acho que apanharei mesmo um resfriado.

Na sala de emergência do cais, capitão von Flanagan concordou que era uma lástima
o jovem Beto, um ator que se mostrava tão promissor, morrer na tentativa de salvar uma
das mais populares figuras do rádio e do palco de Chicago, senhorita Dóris Dawn.
Felizmente, senhor Jerry Kane chegara a tempo de salvar senhorita Dawn e senhor João
José Malone, eminente advogado.
Depois que os repórteres foram embora, assim como Dóris Dawn e seu marido, von
Flanagan disse:
— Muito bem, João. O quê, diabos!, aconteceu?
João se aconchegou no cobertor que alguma alma caridosa enrolara em torno de si,
espirrou e respondeu:
— Se Dóris Dawn morresse e o cadáver de Roberto Spencer fosse encontrado, o
herdeiro de Roberto se apossaria de vários milhões de dólares. Beto, naturalmente, era o
único herdeiro. Sendo um rapaz de imaginação, decidiu que seria melhor ela suicidar em
vez de ser assassinada dalgum modo vulgar. Assim, ninguém faria pergunta embaraçosa
sobre quem lucraria com a morte dela.
Parou, espirrou duas vezes e continuou:
— Mas ele também sabia que não era fácil dar a um assassínio a aparência de suicídio.
Principalmente — Tornou a parar durante um instante — com policiais espertos como
aqui nosso von Flanagan. Portanto, a projetada vítima tinha de cometer uma série de
tentativas de suicídio.
Espirrou mais uma vez.
— Minha avó sempre dizia que o uísque era a melhor coisa pra cortar uma
constipação. Á! Obrigado, meu amigo. É muita bondade.
— E eu acreditaria. — Disse lentamente von Flanagan. — Na verdade, depois das
duas primeiras tentativas, quero dizer, depois do que pareciam duas tentativas, caísse
daquele 12º andar, com Adeus, adeus! escrito em todos os espelhos, eu diria que fora
suicídio. E então, quando parecia que ela se atirara do cais no mesmo lugar donde a mãe
atirou há muitos anos. E depois dela encontrar o cadáver do padrasto e calcular que a mãe
o liquidara e enterrara ali. E com aquele bilhete que ela deixou dizendo bem direitinho
onde o corpo estava.
Parou, passou um lenço no rosto largo e vermelho, e acrescentou:
— Sabes o quê quero dizer.
— Sim. — João retorquiu — Sei o que tencionavam vos fazer acreditar.
— Mas aquele bilhete! — Disse von Flanagan — Por quê o escreveu?
— Não escreveu bilhete. — João respondeu.
O oficial de polícia franziu a testa.

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— Era sua letra: Caves, caves, caves sob o salgueiro do jardim.
— Foi ditado. — João explicou. Suspirou e acrescentou: — Não estás a par das
últimas canções populares, von Flanagan. Verifiques isso e vejas se tenho razão. O
assassino telefonou recomendando duas canções particularmente apropriadas a sua
maneira de cantar. Disse que tomasse nota dos títulos e comprasse as músicas. Foi o que
ela fez. Depois, a primeira vez que ele a visitou arrancou a folha do bloco-de-nota e a
meteu entre as páginas do diário íntimo. Te lembres que ele gozava confiança da moça e
provavelmente andava a vontade na casa toda.
Von Flanagan sacudiu tristemente a cabeça e exclamou, coçando a nuca:
— As coisas que certa gente faz!
— Te lembres que precisava providenciar o cadáver ser encontrado, pois doutro modo
nada herdaria. E aquilo daria a impressão de ser a última mensagem da suicida. Explicaria
a razão do suicídio: O remorso pelo crime da mãe. O caso deve a ter atormentado durante
anos. É por isso que ela consentiu em ir a todos aqueles encontros marcados: Porque lhe
disseram que se apuraria a verdade.
— E qual era a verdade? Por quê a mãe liquidou o sujeito?
Um instante de silêncio. Finalmente João respondeu:
— Porque, segundo o que averigüei, ele era um patife que estava estragando a vida e
a carreira dela e já devia ter sido assassinado anos antes.
Pensou se lhe faria muito mal fumar um charuto. Achou melhor experimentar. Levou
a mão ao bolso e encontrou uma repulsiva massa de fumo molhado.
— Tomes um dos meus. — Jaques disse, muito calmo.
Era um excelente Havana. João o aceitou, agradecendo e fazendo desejando que fosse
da marca preferida. Von Flanagan inquiriu:
— Mas como sabias que ela não queria se atirar daquele 12º andar?
João espirrou e suspirou ao mesmo tempo, quase sufocando.
— Por causa daquele Adeus, adeus! escrito nos espelhos.
— Não entendi. — Disse von Flanagan.
— Compreenderás quando pensares na tez de Dóris Dawn e na cor do batom com que
escreveram nos espelhos. — Respondeu João. — Nenhuma mulher em juízo normal
usaria batom daquela cor cuma pele como a de Dóris.
Von Flanagan se ergueu e disse, admirado:
— Quero saber como descobres essas coisas.
— Ainda que eu pudesse contar a ti a verdade, não acreditarias.
Durante alguns minutos depois de von Flanagan ter ido embora, João se conservou
encolhido nos cobertores, pensativo. Encontrara um assassino, salvara uma vida,
presenciara o que parecia o início duma união muito feliz. Mas ainda não tinha dinheiro
pra regressar até casa.
Subitamente se sentiu farto de tudo aquilo. Se virou e fitou Jaques, quem o olhou
também, com ar contrafeito. Então João disse:
— Se eu ficar aqui sentado mais tempo apanharei pneumonia dupla e terei de me
encher de penicilina. Além disso o uísque acabou e este charuto é nojento. Vamos, Jaques,
desembuches a verdade. Ou queres que eu o faça?
Jaques perguntou em voz baixa:
— Como soubeste que fui quem matou Roberto Spencer?
João tornou a espirrar.
— Deixes disso. Posso estar todo molhado fora mas meus miolos não estão. Pensei
assim: Eras o empresário de Diana. Estarias apaixonado por ela. Isso acontecia com todos
os que a viram uma vez. Sabia o que fazia, por isso o mataste. O que não sabias é que ela
o amava, e que se mataria de ansiedade pelo desaparecimento do marido.

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— O matei e enterrei. — Jaques confessou — O jovem Beto me arrancou aos poucos
o segredo do lugar onde estava enterrado o pai. Eu não sabia por quê queria o descobrir.
Talvez seja melhor chamares von Flanagan e contar tudo.
João bocejou e disse:
— Von Flanagan às vezes me irrita os nervos. — Deu um espirro duplo — Deve ter
sido um inferno pra ti, todo esse tempo, desde que ela se matou. Portanto, pra quê chamar
a polícia agora?
— Foi um inferno. — Jaques tornou, calçando um par de luvas de couro pardo — E
continuará sendo. Queres que te leve em meu carro a alguma parte?.
— Não, obrigado. Chamarei um táxi.
Se Lembrou que não tinha dinheiro pro táxi, e emendou:
— Talvez volte até casa a pé.
A porta se abriu e sua secretária Maggie entrou. O rosto corado e os olhos brilhando.
— Te procurei em toda a cidade. Me deves 7,5 horas de trabalho extraordinário.
Aquele ladrão resolveu se declarar inocente. Te esperou durante horas, depois mandou
por um mensageiro teu honorário adiantado. Tudo em dinheiro.
— Chames um táxi antes que a pneumonia me leve.
— E uma moça telefonou várias vezes nas últimas horas. Pediu apenas que dissesse
que era aquela loura.
João se ergueu cum salto, deixando cair os cobertores no chão.
— Telefones a ela e digas que irei até lá assim que mudar de roupa.
— Mas, senhor João, te resfriarás. — Objetou Maggie em tom lamurioso.
João parou à porta.
— Quem, eu? Nunca me resfrio.
Abanou com a mão, disse um jovial Adeus, adeus! e saiu assobiando O salgueiro
do jardim.

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Uma rotatória num subúrbio de Sacramento, Califórnia, Eua


Quando Rotatória (Cul de sac),3 de James Yaffe, apareceu na
edição ianque deste magazine, fez verdadeiro furor. E por boa
razão. O jovem escritor cometera uma colossal gafe, um clássico
do gênero, um erro próprio pra figurar nos livros, a gafe do ano na
literatura policial. E o diretor do magazine fez, clara e
indesculpavelmente, o papel de cúmplice, deixando passar o erro.
Nenhum de nós dois, autor e editor, conhecia um princípio
simples e fundamental da física. E semelhante ignorância sobre uma
lei básica conhecida pela maioria dos estudantes de ginásio
invalidava toda a solução. Sinclair-Cummings, o vilão do conto,
estava engarrafado num beco-sem-saída no escurecer. Dois
policiais que bloqueavam a entrada se preparavam pra o pegar.
O beco era rodeado, nos três lados, por armazéns de cinco
andares, cujas paredes eram de tijolo maciço e sem janela. Sinclair-
Cummings portava um importante pedaço de papel que, se
encontrado pela polícia, o faria passar na cadeia os melhores anos
de sua vida.
O problema de Sinclair-Cummings era fazer desaparecer
aquele papel. Não podia deixar que o encontrassem nalgum lugar
do beco, na roupa ou no corpo. Se aquela prova caísse em poder
dos policiais, perderia o direito à vida, à liberdade e a procurar sua
espécie particular de felicidade. Ora! Sinclair-Cummings portava
também um balão de látex, comprado naquele dia pra sua filhinha.
Rapidamente, antes que os policiais o agarrassem, encheu o balão,
amarrou nele o comprometedor documento cum pedaço de
barbante e o soltou. Segundo relatou o jovem Yaffe, a pressão
atmosférica fez o resto, o balão subiu acima dos cinco andares da
parede vizinha e sumiu até sempre.
Então aconteceu a verdadeira tragédia. Um balão cheio de ar
soprado por um ser humano não se eleva acima do solo. Uma lição
de aeronáutica primária que Yaffe e o diretor deste magazine não
esquecerão. Pra se elevar, o balão teria de ser enchido com gás
mais leve que o ar, e, como muitos leitores advertiram, Sinclair-
Cummings não tinha recipiente de hélio escondido na roupa.
Quando o balão do conto desapareceu no ar, o jovem senhor
Yaffe, com a colaboração negativa do diretor deste magazine,
violou as leis da física: Em único e traiçoeiro vôo da fantasia toda
a trama da história se desconjuntou, explodiu e se desintegrou sem
deixar traço de verossimilhança perceptível ao olhar humano.
As cartas que chamavam a atenção do diretor do magazine a
essa afronta à ciência começaram como fina garoa, se encorparam
a cada visita do carteiro, até que, finalmente, um dilúvio. A maior
parte dos leitores que pegaram a pena com esse fim mostrou muita
consideração pela juventude de Yaffe e pela ignorância do diretor.
Alguns não revelaram tanta consideração, protestaram, tripudiaram,

3
Cul-de-sac é uma expressão de origem francesa e doutras línguas românicas como normando, occitano, catalão, etc, cuja tradução
literal significa fundo de saco. É característica dos subúrbios anglófonos. Também designa beco-sem-saída e rua-sem-saída. O termo
é muito utilizado por arquitetos e projetistas. A tradução mais adequada ao português é balão-de-retorno, rotatória, queijo (em Goiás)
já que é nesse espaço ampliado onde terminam as ruas, constituindo solução adequada pro automóvel retornar, e minimizam a
potencial interferência do tráfego sobre as residências. https://pt.wikipedia.org/wiki/Cul-de-sac Nota do digitalizador

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empregaram linguagem rude, e infringiram doutros modos a regra
de ouro. Pois, sem dúvida, todos cometemos engano numa ou
noutra ocasião, e só quem nunca errou deve atirar a primeira pedra.
Mas a grande maioria dos leitores foi bondosa e tolerante. E
apresentamos sincero agradecimento à lealdade e moderação. Os
outros poucos, segundo esperamos, já devem ter arrefecido,
compreendendo que pode acontecer engano até no melhor dos
magazines. E é de caso pensado que dizemos: O melhor dos
magazines.
Mas em todas as circunstâncias, mesmo com a torrente de
cartas dos leitores, o jovem Yaffe continuou a ser nosso menino-
escritor favorito. Não perdemos facilmente a fé. Na verdade nunca
a perdemos.
Enviamos uma carta ao jovem Yaffe:
— Escrevas depressa outro conto, o melhor que já saiu de tua
pena. O remetas e deixes o magazine o publicar. Então
mostraremos a eles!
Leitores: Qual é o sinal distintivo dum campeão? No boxe um
campeão é o pugilista que derrubado ao solo durante 9s se levanta
estonteado e mesmo assim vence. Não. Ainda mais que isso: O
verdadeiro campeão se levanta cambaleando quase fora de
combate e nocauteia o adversário!
Leitores: Eis o novo conto de James Yaffe. Quando o lerdes
estareis vendo Jaiminho se erguer da lona, um legítimo campeão,
de coração pugnaz e palavras cantantes. Nossas fichas editoriais
continuam apostadas nesse notável rapaz, que recebe e devolve
os golpes!

O problema do cogumelo do
imperador
James Yaffe

N
o meio dessas distrações Agripina pressentiu uma oportunidade de
executar o negro desígnio que havia muito tempo abrigava no peito:
… Matar seu marido imperador Cláudio. Os instrumentos do crime
estavam prontos a um aceno da mão mas ainda era preciso considerar a escolha
do veneno: Se de efeito rápido a traição seria manifesta. Um lento corrosivo daria
morte demorada. Nesse caso o perigo estava em a conspiração ser descoberta
no intervalo… Portanto resolveu experimentar um composto de novos e
singulares ingredientes que iriam diretamente ao cérebro sem provocar imediata
dissolução… Contaram os escritores daquele tempo que um saboroso prato de
cogumelo foi o veículo do veneno.
Tácito, Os anais, livro 12
Paulo Dawn se reclinou na confortável poltrona cum suspiro de delicioso alívio. Após
duas semanas de intenso trabalho, até descobrir, finalmente, de que modo a engenhosa
senhora Cranfield assassinara o artista, seu protegido, sem tocar nas portas fechadas do
estúdio, o chefe e único membro do departamento de crime impossível da seção de
homicídio, estava na melhor disposição à indolência. E, naquele sossegado ambiente, a
sala-de-estar de professor Bottle, achava que poderia gozar o repouso. Bebericou o café
com o ar dum gato contente lambendo o pires de leite. Na cadeira oposta seu encanecido
amigo o observava com satisfação e após um instante quebrou o silêncio.
— Gostarias de esclarecer um crime impossível? — Começou mas não pôde ir a
diante.

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Paulo se sobressaltou.
— Ó! Meu-deus! Até tu!, professor. Já não tenho bastante trabalho com aquele velho
sabujo inspetor Fledge?
Frederick A Bottle, professor de história antiga, sorriu tranqüilizadoramente.
— Acredites, Paulo, não quero perturbar teu atual estado de agradável inércia. O crime
impossível ao qual me refiro pode ser investigado no aconchego e conforto desta sala. O
caso foi há cerca de 2000 anos.
Paulo arregalou os olhos por um momento, com a xícara de café diante dos lábios.
— Não achas que a pista deve estar um tanto apagada? Terminou o café cum trago.
Bottle riu.
— Bastante. Na verdade não espero que esclareças este caso. Apenas pensei que talvez
te interessasse como um problema. É a respeito dum prato de cogumelo.
— Cogumelo! Passa como historiador, não cozinheiro.
— E de fato sou. Mas é que esse cogumelo despertou a curiosidade de muitos
historiadores. Foram a causa de ao menos uma morte. Talvez mais: Deram início à
carreira dum dos vultos mais desprezíveis da história humana e marcam o princípio da
dissolução do império romano. Além disso, foram os principais atores do que, segundo
me consta, é o único crime impossível autêntico de importância histórica.
Paulo acendeu um cigarro e soltou destramente um anel de fumaça,
— Contes o caso de teu cogumelo latino.
Frederick Bottle se inclinou a diante e, com voz que conseguia ser dramática sem
perder a circunspeção, começou o relato.
— Imperador Cláudio, que morreu no ano 54 da era cristã, era estúpido e pomposo
que dispunha de poder excessivo. O tipo de governante cuja ingenuidade e inépcia
praticamente pediam pra ser assassinado.
Alguém bateu à porta da sala.
Uma figura alta e ossuda, com um rosto magro atrás dos óculos, os olhou ferozmente
do limiar da porta. Parecia que Deus, sem saber se criaria um homem ou uma mulher, não
conseguira criar uma coisa nem outra. A criatura tinha uma forma indefinida que apenas
sugeria a feminidade por usar o convencional uniforme branco das enfermeiras
diplomadas e tinha voz que lembrava uma porta se fechando com violência.
— Tua senhora está muito transtornada, professor Bottle. Quer te ver em seguida.
Bottle suspirou com desalento.
— Estou muito ocupado. Digas a Audrey que mais tarde subirei a seu quarto, senhorita
Poindexter.
— Tua senhora não está bem. Passará a noite agitada se não fores a ver agora.
— Obrigado, senhorita Poindexter. Não precisas dizer mais.
— Darei um sedativo, então. Mas isso não a acalmará.
E, assim dizendo. Senhorita Poindexter virou as costas abruptamente e se retirou.
— Audrey sempre foi muito nervosa. — Bottle observou, se levantando pra fechar a
porta. — Mas ficou muito pior desde que adoeceu.
— Não creio que a presença daquela Florence Nightingale petrificada seja capaz de
acalmar os nervos de alguém.
— Poindexter? Também não tolero a mulher, mas Audrey parece gostar dela. E, sem
dúvida, Poindexter a atende em tudo. Veste, lava, dá de comer e até prova a comida antes
de a servir, pra ver se não está muito quente, ou muito salgada, ou algo assim. Mas sobre
quê eu estava falando?
No cogumelo de imperador Cláudio. Um quebra-cabeça histórico que me desafiaste a
resolver.
— Perfeitamente.

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Bottle pigarreou à melhor maneira professoral, e continuou:
— Já expliquei que imperador Cláudio era fraco e imbecil. Há uma lenda pouco
lisonjeira, acerca de sua ascensão ao trono romano, que parece confirmar isso. De acordo
com ela, Cláudio, que morava no palácio imperial na ocasião do grande expurgo em que
assassinaram o imperador, foi encontrado pelos conspiradores escondido atrás das
cortinas do toucador de sua mãe, tremendo de medo. Quis a sorte que, nesse momento,
os conspiradores se preocupassem em decidir a quem poriam no trono após matar o
imperador. E ali estava Cláudio, com sangue imperial nas veias e não muito miolo na
cabeça. Em suma: O perfeito governante títere. De modo que lhe deram a coroa.
Governou com mão pouco firme durante mais duma dúzia de anos, se ocupando
principalmente de livros de filosofia e manjar. Quando subiu ao trono era casado com
Messalina. Mas estava enfarado da mulher, e em breve se desvencilhou dela, a acusando,
sem mais nem menos, de adultério e mandando a executar publicamente. E tornou a se
casar. Nessa vez com a sobrinha, a linda e inescrupulosa Agripina.
— O estudo da história romana deve fazer o diabo com o senso moral duma pessoa.
— Comentou Paulo.
— Nem por isso. Na realidade, os historiadores são as criaturas mais virtuosas deste
mundo. Pessoas como Cláudio e Agripina sempre nos parecem tão remotas.
E, um breve momento, houve algo semelhante a uma expressão muito remota nos
olhos do professor.
— Mas tenho de continuar a narrativa. Agripina era uma moça dotada de grande
engenho e de ambição ainda maior. Pra encorajar sua ambição tinha um filho dum
casamento anterior. Era um jovem perfeitamente desprezível mas o adorava e esperava o
fazer imperador. O nome do filho talvez tenhas ouvido falar: Nero. Compreendes como
a idéia de assassinar Cláudio ocorreu naturalmente a Agripina. Talvez mesmo tivesse a
intenção de o matar desde o momento em que acedeu em se casar. Na verdade isso é o
que Tácito acreditava quando descreveu o episódio em seu Anais. Mas Tácito sempre é
muito mais interessante do que exato. Seja como for, a idéia de assassinar Cláudio e pôr
Nero no trono começou com Agripina, e em breve virou conspiração organizada cum
incalculável número de personagens importantes envolvidas. As conspirações romanas
eram uma coisa das mais singulares. Praticamente toda a corte parecia as conhecer de
antemão, incluindo os conselheiros mais íntimos do imperador, amigos, família, e, às
vezes, o imperador. O resto da história é simples e hediondo. À tradicional maneira
romana, Agripina resolveu matar Cláudio por meio de veneno. Hesitou a princípio sobre
a qualidade do veneno a empregar: Não devia ter efeito muito rápido, pra não a delatar.
Não devia agir muito lentamente, pois o imperador poderia se salvar. Finalmente
encontrou um meio termo, uma espécie de veneno que, segundo fontes bastante
fidedignas, começaria a produzir efeito na vítima dentro de meia hora, geralmente menos,
e mataria em 24 horas.
Paulo, entre anéis de fumaça, perguntou indolentemente:
— Não sabes o nome?
— É impossível dizer. — Bottle encolheu os ombros — Pode ser uma porção de
substâncias diferentes. Se ao menos Tácito descrevesse mais pormenorizadamente a
morte de Cláudio, talvez diagnosticássemos o veneno pelos sintomas. Esse é um dos
incontáveis mistérios históricos que nunca serão esclarecidos.
— Não sei — respondeu Paulo em voz baixa. — Mas continues os desagradáveis
detalhes.
— É tudo horrível. Uma notória mercadora de veneno, chamada Locusta, foi
contratada por Agripina pra preparar a composição. Locusta, uma criatura odiosa,
evidentemente mantinha um próspero negócio de assassínio a preço moderado, pois

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Tácito, falando a seu respeito, informou que fora reservada entre os instrumentos de
estado pra servir aos propósitos da negra ambição. O veneno foi depois ministrado a
Cláudio num prato de suculento cogumelo, um de seus manjares favoritos. Comeu com
abundância e pouco depois começou a se sentir mal. Agripina, entretanto, ficou nervosa
ao presenciar o estado, e resolveu o liquidar imediatamente, em vez de esperar as 24 horas
a morte de Cláudio. Mandou chamar Xenofonte, o médico de mais confiança do
imperador, quem, naturalmente, também estava implicado na conspiração. Com o fim
ostensivo de auxiliar Cláudio a descarregar o estômago, Xenofonte pincelou a garganta
cuma pena, prática de uso muito comum naquela época. A pena, entretanto, fora
mergulhada num veneno mortífero. Cláudio, já debilitado pelo efeito do cogumelo
envenenado, entrou em convulsão, tendo morte violenta e quase instantânea.
Paulo inclinou a cabeça com ar pensativo.
— Deliciosamente sanguinário. Mas não entendi bem por quê falaste a mim sobre o
caso. Não há crime impossível nisso.
— Ainda não terminei. — Bottle disse cum sorriso enigmático — Não falei sobre
Halótus, o provador de veneno do imperador.
— Está interessante. Continues.
— A instituição dos provadores de veneno, como talvez saibas, era muito comum
entre os imperadores e patrícios romanos. Quase todos os poderosos da época viviam em
constante temor por sua existência, vendo a morte de tocaia em toda parte.
Conseqüentemente, mantinham sempre a seu lado um provador de veneno, cuja função
era ingerir pequenas porções de todos os alimentos e bebidas. Se houvesse algum veneno
na comida o provador indicaria a presença.
— E como o provador indicaria a presença de veneno?
— Morrendo! Então o cidadão eminente mandaria vir um novo jantar.
— E, suponho, um novo provador de veneno.
— Exatamente. Cláudio foi, talvez, o mais nervoso, mais assustado, mais desconfiado
de todos os imperadores. Tinha o provador de veneno constantemente ao lado. Esse
provador era um homem chamado Halótus, sobre quem Tácito fez breve menção em
Anais. Outras fontes nos revelam o medo que Cláudio tinha aos venenos. Seu
procedimento à mesa era mais ou menos assim: Antes de cada refeição observava
cuidadosamente enquanto Halótus provava de todos os pratos. Depois ficava esperando,
não alguns minutos, mas exatamente 1 hora, antes de começar a comer, com Halotus
sempre perto. Então se Halótus não sentisse efeito ao cabo de 1 hora, Cláudio comia à
vontade.
— Assim não saborearia muitas refeições quentes. — Observou Paulo.
— Não se importava. Estava mais interessado em permanecer vivo e saborear as
refeições frias. E isso nos leva diretamente ao crime impossível. Quando o cogumelo
envenenado foi servido a Cláudio, Halótus deve ter comido uma pequena porção. No fim
de 30 minutos se sentiria e se mostraria bastante indisposto. Depois de 1 hora, estaria
ainda pior. Então por quê Cláudio comeu aquele cogumelo, quando era evidente que
acabara de envenenar a cobaia humana? Ou então: Como é possível que o mesmo
cogumelo que envenenou Cláudio não fizera mal ao provador de veneno? A resposta,
naturalmente é que isso era impossível. O primeiro crime impossível da história. Se
passaram 2000 anos desde então. Já é tempo dalguém o resolver!
Na bem-aventurada inconsciência de imperadores romanos envenenados e de
perplexos detetives nova-iorquinos, um estético anel de fumaça se elevou
sonhadoramente às nuvens. Nenhuma porta batia nem dobradiça rangia na sala-de-estar
de professor Bottle, e fora não rugia sinistramente a tempestade. Mas ao espírito de Paulo
parecia ser aquela a atmosfera perfeita pro bater de porta, o ranger de dobradiça e o rugir

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de tempestade. Ultimamente contraíra um hábito que o irritava profundamente:
Transformar todos os cenários que encontrava na vida real na espécie de cenário irreal e
fantástico encontrado em novela policial. E, coisa curiosa, quanto mais se concentrava no
cogumelo encantado do imperador, mais se sentia parecido cuma personagem de ficção.
Era desagradável. Disse lentamente:
— Na realidade o homicídio é um assunto privado, íntimo, pessoal, e eminentemente
social. Como o teatro ou a democracia política, só floresce numa sociedade altamente
organizada. É por isso que me sinto embaraçado ao tentar esclarecer crime tão remoto.
— Gostarias de interrogar os suspeitos. Não é? Estudar as reações deles? Sondar seus
caracteres?
— Não sejas absurdo. Nunca estudo as reações de meus suspeitos. É ocupação inútil
e decepcionante. Os suspeitos podem ter reações de todos os tipos. Podem ligar e desligar
as reações como se liga e desliga a luz cum comutador. Podem se mostrar inocentes ou
culpados, assustados ou calmos, com assombrosa versatilidade. Não, professor. Prefiro
os crimes contemporâneos porque, depois de resolver um caso, tenho sempre a certeza de
que poderei confrontar a solução com os fatos e verificar se estava acertado.
Bottle inclinou maliciosamente a cabeça.
— És vaidoso! Eis a questão! Não te agrada um caso onde não poderás te vangloriar
e cantar vitória depois de tudo terminado. Estás, pura e simplesmente, aborrecido porque
não poderás ostentar tua argúcia diante do criminoso!
— Pode ser. Mas talvez eu tenha essa oportunidade, no fim de conta. Mas quero que
digas algo mais sobre as pessoas envolvidas nesse antigo mistério. É essencial eu travar
conhecimento mais íntimo com Cláudio, Agripina, Xenofonte e Halótus.
— Em primeiro lugar temos imperador Cláudio.
Bottle esperou um momento e tornou, com ar pensativo:
Mais que tudoa, acho que Cláudio se parecia a uma velha nervosa. Fátuo, covarde e
hipocondríaco, cuidava excessivamente de si e gastava mais tempo com o conforto de seu
corpo do que com o governo do seu império. Era vaidoso e estúpido mas também possuía
em alto grau a única qualidade positiva que parece ter sido característica de todos os
chamados maus imperadores. Era cruel. A história do fim que deu a sua primeira mulher,
Messalina, é muito pouco edificante. Tácito deixa bem claro que Cláudio, apesar de todos
os melindres pessoais, lançara sua quota de inimigo aos leões.
— Hipocondríaco?, professor. Como tens certeza?
— É claro que não posso. Mas parece lógico. Não é? Era considerado um homem de
constituição vigorosa e robusta, corpulento, bem nutrido e de saúde exuberante. Mas
lemos constantes referências a seus nervos fracos, enxaquecas e enfermidades súbitas,
geralmente provocadas pelas causas mais triviais. O quê pode haver de mais provável do
que ter sido um hipocondríaco? Mas deixes eu falar sobre a esposa de Cláudio, que era
uma personalidade muito mais forte e admirável.
— Realmente? Admiras a criminosa Agripina?
— Sim. De certo modo. Me dá a impressão duma individualidade firme, poderosa,
masculina. Uma mulher de grande força-de-vontade, de caráter férreo e intelecto sutil,
por mais desprezível que possa ter sido de acordo com todos os padrões morais.
Paulo fez uma careta:
— Me repugna. Como todos os assassinos deliberados.
— Sem dúvida. Mas não esqueças que o cidadão romano era muito mais tolerante que
nós ante homicídio intencional. Tinha de ser, pois, doutro modo seria obrigado a condenar

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90% dos amigos e parentes. Em qualquer caso, a habilidade que revelou no crime é o
suficiente pra nos merecer o máximo respeito.4
— Contes algo mais sobre Agripina.
— O quê mais direi? Presumindo que fosse uma assassina, é difícil compreender qual
o fator predominante de seu caráter. O quê a levou a matar o marido? A ambição ao
poder? O simples desejo de governar o país por intermédio do filho? É pouco provável,
pois, no fim de contas, já governava o país por intermédio de Cláudio. Teria sido
inspirada, então, por um extraordinário afeto maternal pelo filho? De acordo cuma velha
lenda, Agripina foi avisada por um oráculo, antes do nascimento de Nero, que o filho se
tornaria imperador e assassinaria a mãe. E teria respondido que não se importava com o
que lhe acontecesse, desde que o filho se tornasse imperador. Certamente há também a
hipótese, que me parece mais provável, de Agripina ter matado Cláudio porque não podia
suportar mais a vida com ele, o quê achas?
— Nada penso, mas estou sentindo até demais.
— Não te expressas com muita clareza. Falarei sobre Halótus, o provador de veneno,
e sobre Xenofonte, o médico.
— É supérfluo. Já sei por quê Cláudio morreu, enquanto o provador de veneno
permaneceu vivo. O mistério de 2000 anos está esclarecido. Pra falar verdade, está mais
que esclarecido.
Professor Bottle se inclinou a diante com vivacidade.
— O quê queres dizer com isso?
— Há duas soluções possíveis. Uma e outra são igualmente plausíveis e dramáticas.
Talvez igualmente corretas. A primeira solução gira em torno da natureza do veneno que
foi posto no cogumelo. Ou antes, em torno da natureza do veneno que foi posto no
cogumelo. Mas devo começar no princípio, com dois fatos de suma importância. Disseste
que Cláudio era um hipocondríaco desconfiado e timorato. Também deixou claro que
Cláudio adoeceu por causa do cogumelo, mas que foi realmente morto, não pelo
cogumelo e sim pela pena envenenada. Suponhamos que queres matar um hipocondríaco
cuma pena envenenada, professor. Como conseguiria convencer, a vítima, suspeitosa e
timorata, a deixar, sem perigo, que pincelasses tua garganta com aquela pena?
— Impossível. Se a vítima fosse muito desconfiada, nunca deixaria passar algo na sua
garganta.
— Ó! Sim. Deixaria, professor, se soubesse tirar partido da hipocondria dela. Se ela
acreditasse, como Cláudio foi levado a acreditar, que já fora envenenada e que aquela
pena era o único meio de lhe salvar a vida! Naturalmente, agora compreendes o que
aconteceu. O cogumelo foi servido a Cláudio sem veneno. Halótus os provou na presença
do imperador. Se passou 1 hora, depois da qual, visto que nada acontecera ao provador
de veneno, Cláudio não hesitou em comer também cogumelo. Mas assim que o imperador
terminou de comer o último cogumelo, Halótus deve ter começado repentinamente a
gemer, a se estorcer e a se dobrar em dois como se envenenado. Tudo uma simulação
habilmente preparada, é claro. Halótus fora subornado por Agripina pra fingir se sentir
envenenado no momento oportuno. Pra quê? Pra que Cláudio, que acabava de comer o
cogumelo, acreditasse estar também envenenado! Isso não seria difícil, visto que Cláudio
era um hipocondríaco e podia ser convencido facilmente de que não se sentia bem. E,
quando convencido de que também morreria, também podia ser convencido de que o
único meio de cura possível consistia em deixar que o médico pincelasse a garganta cuma
pena. Assim o crime impossível se tornou possível graças à mesma precaução com que o
imperador esperava o impedir.

4
Não creio que fora necessariamente habilidade de Agripina. O mais provável é que era um agente duma sociedade secreta. Todos os
fatos históricos o são. Nota do digitalizador

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Coisa bastante singular, professor Bottle não parecia muito satisfeito.
— Isso é tudo? Foi assim que se realizou o plano?
— Essa é uma das soluções. Mas há outra. Tens certeza que gostaria de ouvir?
— Claro que sim. Pode ser de grande importância histórica.
— Duvido. — Paulo suspirou e sacudiu a cabeça, quase tristemente. — Sou encanador
e quero cometer um homicídio. Provavelmente matarei a vítima cum cano. Sou
carpinteiro, e, quero assassinar alguém. Com certeza farei saltar os miolos do homem cum
martelo. Sou escritor policial, e quero cometer um crime. Indubitavelmente procurarei
seguir o modelo dum de meus romances. Sou Paulo, e quero matar um homem.
Seguramente inventarei um crime impossível. Suponhamos, pois, que sou professor de
história antiga, e quero cometer um assassínio. Não buscarei inspiração na história antiga?
Professor Bottle apertou com as mãos os braços de sua cadeira. Nada disse mas
parecia trêmulo.
Paulo prosseguiu com voz calma e inexorável:
— O assassínio de Cláudio é interessante, sem dúvida. Mas, no fim de conta, há tão
pouca informação a respeito do caso, tão poucos testemunhos dignos de crédito, que tentar
o esclarecer parece tolice e perda de tempo. Então por quê te deste ao trabalho de pedir
meu auxílio pra solucionar o problema? E por quê falsificaste e enfeitaste os fatos? Por
quê uma análise tão cuidadosa e pormenorizada dos caracteres de Cláudio e Agripina,
quando nada se sabe ao certo sobre as personalidades desses dois vultos históricos?
Paulo se inclinou a diante e a voz ficou mais forte.
— Um caso estranho, o de Cláudio e Agripina, ou ao menos o das duas pessoas que
encontrei hoje sob esses nomes. Quem era Cláudio? Um hipocondríaco, nervoso,
desconfiado, vaidoso e irritante, como a mulher que está de cama lá em cima! E quem era
Agripina? Uma pessoa brilhante, sutil, enérgica e até heróica, perseguida e caluniada,
levada a assassinar por motivos justificáveis, tal qual o homem sentado em minha frente!
Não há diferença neste mundo, salvo que os sexos estão trocados. E mesmo nesse ponto
a diferença é nula, pois Cláudio parecia uma velha nervosa e Agripina dava a impressão
de personalidade firme, masculina. E onde está Halótus, o provador de veneno? Lá em
cima, severo e inacessível num uniforme branco de enfermeira, provando
antecipadamente toda a comida de Cláudio, pra ver se está muito quente, muito salgada,
ou algo assim?
Paulo exclamou, se erguendo com repentina fúria:
— Meu-deus! Me convidaste a vir nesta noite pra planejar o assassínio de tua esposa.
A princípio Bottle não respondeu, mas enfim disse em voz baixa:
— Lamento.
— E como foi inútil tudo isso! Pensaste que as duas situações eram paralelas. Que a
explicação ao crime de Agripina forneceria a ti uma sugestão ao teu. Mas como ficaste
decepcionado! Na verdade a situação não é a mesma. O crime antigo, o assassínio de
Cláudio, dependia inteiramente da intervenção de Xenofonte com a pena envenenada.
Mas estamos no século 20 depois de Cristo! Como esperas usar uma pena envenenada?
— Não sei o quê esperava. Foi apenas uma idéia, Estupidez minha.
De repente Paulo se atirou a sua cadeira e começou a rir. Riu alto e durante longo
tempo, mal podendo falar.
— O quê eu disse a respeito do senso moral do historiador? Sirvas a mim um trago,
professor. Algo bem forte. E esqueçamos tudo.
Bottle ainda estava aturdido, desorientado.
— Não entendi. Por quê pareces tão contente?

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— Pareço contente? Estava pensando como tenho sorte em ser membro da seção de
homicídio, uma ocupação pacífica e morigerada, onde só travamos conhecimento com
pessoas decentes.

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Não há muito tempo uma moça nos procurou pra submeter o
manuscrito dum conto ao exame pessoal de Ellery Queen. Lemos o
conto e o achamos promissor. Sugerimos certas alterações: Na
personagem do detetive, na construção do enredo e no título. A
moça refez o conto, o apresentou novamente e o compramos. Assim
dizemos a todos os principiantes, de qualquer parte do mundo: Isso
pode acontecer aqui. Se tens talento, se tens força de vontade,
paciência e o ardente desejo de ser escritor policial, que te dê
coragem e estímulo a aceitação do primeiro conto de Hazel Hills
por este magazine.

Atmosfera sufocante
Hazel Hills

E m torno da mesa de refeição, naquele domingo invernal, os três herdeiros estavam


sombrios, cada um a sua maneira. Leonardo, pequeno e com fisionomia de
esfinge, alinhado como planta de arquiteto, fumava cachimbo com ar muito
senhor de si. Sem dúvida, pensamos, metodicamente em termos de tração, compressão e
instrumentos de precisão. Sua irmã Quéia, loura e suave, sentada apaticamente, com o
rosto pousado nas mãos de longos dedos. Primo Franco se expandia em palavras e ação,
se levantando e tornando a se sentar, espalhando a cinza do cigarro ao acaso, tudo com
deliberado dramatismo.
— Isso é típico de tia Catarina!
— É uma tirana abominável com esses éditos absurdos. Sob pena de sermos
deserdados, temos de descer ao desjejum numa hora escandalosa, às 8h da manhã. Mas
pode demorar o quanto quiser e nos fazer esperar horas inteiras!
A voz de Quéia era lenta e cordata. Só o balancear do pé fino denunciava tensão
nervosa.
— Ora! Vamos! É exagero. Faz apenas 20 minutos que esperamos. Reconheço que
estou quase morta pra tomar o desjejum. Mas é preciso ficar nesse frenesi?, Franco. Cada
vez que passamos o fim-de-semana aqui, tenho medo que morras de apoplexia por causa
de tia Catarina.
— Se me incomodasse tanto, eu não viria, simplesmente.
— É claro que não te incomoda! — Franco retrucou em tom acusador — Tens um
bom emprego e o conservarás enquanto aquele velho estiver vivo, pois não se descartaria
de sua indispensável senhorita Lathrop nem que o mundo acabasse amanhã. De modo que
não tens por quê te preocupar com a má-vontade de tia Catarina. Agora, eu… Bom…
Como ator tenho a vida cheia de altos e baixos. Hoje sem vintém, amanhã nadando em
dinheiro. Às vezes fico farto de tudo isto. Só o que me faz agüentar firme é que a titia não
pode viver eternamente. Então receberei uma boa querença pra me sustentar até o dia do
triunfo.
— Não sejas tão egoísta! — Quéia obtemperou — Pensas que ninguém mais tem
sentimento. Achas que tenho vontade de passar o resto da vida servindo de ama-seca
àquele velho… Como chamaste? Senhor Hull? É aborrecido ter de conservar em ordem
os arquivos de todas as coisas que considera muito importante pra recordar. Às vezes
tenho vontade de atirar em sua cara o precioso tinteiro de cristal. Mas onde encontraria
outra pessoa que me pagasse tão bem?
— Á! — Exclamou Franco, desviando a palestra — Reconheceis que estão esperando
a morte de tia Catarina, e a adulando enquanto isso, tu e Leonardo?
— E se esperamos receber a herança, assim como esperas receber a tua, o quê tem de
mal? No fim de conta, Leonardo está em situação muito difícil. Agora que terminou a
guerra, não é tão fácil a um engenheiro encontrar emprego bem pago.
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Tendo refletido laboriosamente, Leonardo concluiu.
— Tia Catarina é uma legisladora mas costuma seguir com exatidão as leis que faz.
Esta é a primeira vez que a vejo em falta sem ser caso de doença.
Quéia e Franco interromperam a discussão, consideraram a idéia e concordaram
subitamente, inclinando a cabeça a Leonardo. Franco perguntou:
— O quê faremos? Pode ser que esteja doente. Mas se não estiver não quero ser a
pessoa que a incomodará.
— Nem eu. — Quéia acudiu — Mas se está doente é preciso fazermos algo. Que tal
se mandássemos Jessie?
— Tia Catarina a porá na rua se nada houver de grave. Conheces a lei: Ninguém a
deve chamar na manhã.
— Irei, se quiserdes. — Leonardo disse calmamente — Estou firmemente convencido
que tia Catarina adoeceu. Se não for assim, tenho certeza que ela, sendo rigorosa mas
justa, compreenderá minha ansiedade por essa demora excepcional.
Subiu a larga escada colonial, enquanto Quéia e Franco esperavam embaixo. O
ouviram bater, chamar tia Catarina bater e chamar novamente, experimentar o trinco da
porta e chamar com voz mais forte. Depois apareceu no alto da escada.
— A porta está fechada como de costume mas tia Catarina não responde. Acho melhor
verdes se Jessie ou alguma das outras criadas tem a chave.
Em poucos minutos, um pequeno e agitado grupo se reuniu diante do quarto de
senhora MacPherson, hesitando em tomar a última e violenta medida de arrombar a porta.
Franco disse com irritação:
— Vamos, Leonardo. Pelo amor-de-deus! Acabemos com isso duma vez!
Leonardo tergiversou. Uma coisa era bater a uma porta depois de madura reflexão, e
outra coisa a arrombar impulsivamente. Se apegou à última precaução:
— Experimentemos as janelas. Pode ser que alguma não esteja fechada.
Nessa vez Quéia falou com aspereza.
— Francamente, Leonardo: Depois de tantos anos, devias saber que tia Catarina todas
as noites fecha as janelas uma a uma e como a porta.
Três baques surdos, enquanto Franco e Leonardo lançavam todo seu peso contra a
maciça porta. Finalmente um rangido e um estrondo ao arrancar as dobradiças.
Tia Catarina pareceria estar adormecida, com o cabelo grisalho preso com grampos
em estreitos anéis, o rosto, calmo e rugoso, coberto de creme e inalterado nos macios
cobertores se não fosse o sangue, que, como tinta vermelha derramada num mata-borrão,
escorrera do lado esquerdo da cabeça na engomada fronha com monograma e no alvo
lençol de bainha aberta.

O esguio xerife coçou a cabeça grisalha, perplexo. Até então, na recatada aldeia de
Whittlebury, estado de Coneticute, o âmbito da atividade criminosa se estendera apenas
das condenáveis invasões de propriedade por malignas vacas, até o repreensível excesso
de velocidade de 55km/h de irresponsáveis visitantes estivais. Um caso de homicídio,
francamente, aturdia o xerife Brinley.
Sem dúvida. Sabia onde começar:
— Quem teria motivo pra assassinar senhora MacPherson?
O bom-senso respondeu: Não um gatuno, porque ela não tinha baixela de prata, pele
ou jóia de valor. Não as criadas, pois a velha senhora pagava salário dobrado, deixando
bem entendido que nada receberiam no testamento. Mas aqueles três sobrinhos se
apossariam duma boa soma de dinheiro, agora que senhora MacPherson estava morta.
O xerife considerou as outras perplexidades do problema. Difícil descobrir qual deles
cometera o crime. E, pior ainda: Como provar como algum deles entrara no quarto? A

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porta não só estava fechada a chave mas também aferrolhada dentro. E foi o xerife quem
abrira as janelas. Se recolheu em si. Parecia uma vergonha não descobrir algo. Como todo
homem, Brinley não gostava de se reconhecer incapaz de realizar uma tarefa.
Parafusou, mordendo desconsoladamente o interior da bochecha. Teve uma idéia,
fugiu, tornou a voltar. A examinou cautelosamente, achou que era boa e foi ao telefone,
iluminado por uma inspiração. Se senhor Riddle não pudesse ajudar, ninguém poderia.
Os habitantes de Whittlebury esqueceram que havia muito tempo senhor Riddle foi o
homem-mistério da localidade. Baixo, de articulações nodosas, cuma estreita franja
irregular de cabelo branco acima das orelhas saltadas, senhor Riddle apareceu na
estalagem local havia oito ou nove anos. Passava a maior parte do dia sentado na varanda,
mastigando, com ar satisfeito, a boquilha do cachimbo apagado, nunca tentando fazer
amizade mas sem ocultar o interesse de seus brilhantes olhos azuis ou a índole bonachona
estampada na fisionomia cordata e rosada.
Pouco a pouco a aldeia lhe tomara afeição, como raramente fazia com os forasteiros,
chegando até a perdoar o sotaque de cidade grande. Algum tempo depois comprara uma
pequena casa em mau estado de conservação, situada na praça do povoado. Cal e cera pra
assoalho, goma e prego, encanamento e eletricidade. E enfim uma tabuleta:
Senhor Riddle
Conserto em geral
No começo não fez muito negócio. Os habitantes da aldeia eram capazes de consertar
as torneiras estragadas. Mas em breve começaram a passar na oficina de senhor Riddle
pra pedir o amistoso auxílio em pequenos ou grandes problemas ou pra o ouvir,
fascinados, falar do fundo dum aparentemente inesgotável poço de sabedoria.
Descobriram também que sempre arranjava a peça de trator difícil de encontrar. E era
capaz de resolver situações rapidamente, como ao salvar a égua do agente do correio
quando ela escorregara ao rio e se enredara nos arreios, com risco de morrer afogada.
Assim, senhor Riddle ouviu atentamente o relato de Judd Brindley, mordiscando a
pequena boquilha do cachimbo apagado. Judd o encarou esperançosamente, pois senhor
Riddle sabia tudo.
— Isto não deve ser tão difícil. — Disse senhor Riddle, sorrindo ao xerife — Quantas
vezes uma coisa parece muito complicada ou impossível, como este quarto fechado
dentro, e no fim é mais que fácil? Como um automóvel que não quer andar: Mexemos
nas velas, examinamos a bateria, uma porção de coisa. No final de conta, qual era o
defeito? Acabou a gasolina!
Subiram ao andar superior. No meio do quarto de senhora MacPherson, senhor Riddle
estacou. Não olhava o cadáver em cima da cama, com as manchas horríveis, mas a
desordem que se via no soalho nu, junto ao toucador. Uma confusão de vidro estilhaçado,
pote quebrado, pó derramado.
— Devias sentir o cheiro. — Disse o xerife, sacudindo a cabeça.
— Quando entrei aqui era uma coisa espantosa. Tive de abrir as janelas antes de olhar
o cadáver.
Senhor Riddle se ajoelhou pra ler os rótulos pregados no fino vidro e na grossa
porcelana. Creme pra limpeza, pó-de-arroz, removedor de esmalte, máscara facial,
depilatório. Disse:
— Não é de admirar. Acetona no removedor de esmalte, algum composto de enxofre
no depilatório, coisas capazes de empestar toda a casa, ainda mais um quarto.
Se levantou e examinou os vidros e potes ainda intatos sobre o toucador, perfumes,
loção pra rosto e pra corpo.

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— Isto é característico de senhora MacPherson. Não é? Nunca quis saber de muito
enfeite mas cuidava bem de si e de tudo o que era seu. A casa não é luxuosa mas se gastou
muito tempo e dinheiro prà conservar em bom estado. O mesmo fazia com o rosto: Nada
de batom nem de rímel mas muito cuidado sensato.
Se voltou à cama. O médico esperava a ordem do xerife pra retirar o cadáver e
autopsiar. Até então presumira que senhora MacPherson morrera cerca das 4h da
madrugada. Uma faca ou lâmina muito afiada fizera um pequeno corte localizado com
exatidão na veia jugular, e a idosa senhora se esvaíra em sangue. O médico sugerira que
se o corte foi feito com destreza suficiente e ela estivesse profundamente adormecida
talvez não despertara. Senhor Riddle notou os comprimidos de hipnóticos em cima do
criado-mudo e achou que isso era muito provável.
Senhor Riddle examinou o quarto. Olhou a porta, ou o que restava dela, pois mesmo
danificada dava pra ver que ninguém tocara na fechadura ou nas dobradiças. Olhou as
janelas de duplas cortinas de chita, com as sanefas5 cuidadosamente alinhadas no centro.
Fechou e abriu os trincos com os dedos experimentados e notou que os vidros estavam
intatos. Olhou a neve, pois forneceria uma pista se não caíra dois dias atrás e não estivesse
cheia de pegadas de habitantes da casa, criadas e entregadores de armazém.
— Uma lástima! Essas marcas de escada seriam muito interessantes se eu e Jim
Anderson não as tivéssemos produzido ontem, ao limpar a neve do telhado. Senhora
MacPherson não costumava mudar de hábito com muita freqüência, mas quando resolvia
mandar fazer algo era pra fazer a em seguida. Vejas a neve, por exemplo. Nunca danificou
o telhado durante todos os anos em que estive aqui. Mas ontem mandou me chamar. Não
houve remédio além de vir imediatamente pra limpar a neve. Mas não é muito agradável
pensar que alguém a assassinou. Era uma senhora rigorosa e cheia de exigência mas nada
tinha de mesquinha.
Desceu à sala-de-estar pra falar com os herdeiros. Vários pequenos trabalhos pra
senhora MacPherson o levaram àquela casa durante visitas anteriores dos três sobrinhos,
de modo que já os conhecia bem. Quéia era uma espécie de supersecretária de senhor
Hull, o vice-presidente da cervejaria Stanton. Um trabalho árduo e monótono, pois senhor
Hull era um verdadeiro demônio com relação ao registro de todos os pormenores em seus
fichários, mas pessoalmente um tanto distraído. Quéia ficava quase louca procurando
saber as coisas que ele se esquecia de dizer. Mas não se atrevia a abandonar o emprego
porque sabia que ninguém pagaria tão bem.
Leonardo era perseguido pelo insucesso. Completara relativamente bem o curso da
escola de engenharia, mas não conseguira encontrar trabalho antes da guerra. Durante o
conflito gozara melhor situação mas agora estava mais uma vez em apuro. Senhor Riddle
se perguntava se não recusara colocação por a achar indigna de si. Bem poderia ter essa
espécie de orgulho, assim como desejo de conforto que exaltasse o ego.
Franco era um jovem ator mais ou menos típico, conseguindo alguns papéis
secundários de vez em quando, vivendo de empréstimo e expediente nos intervalos, talvez
explorando mais o encanto pessoal que outras virtudes mais sólidas.
Senhor Riddle conversou em separado, verificando que as declarações concordavam
em todos os pontos. Não que tivessem muita importância pra serem decisivos. Os três
primos vinham de 15 a 15 dias passar o fim-de-semana ali, chegando no sábado pro
almoço e partindo segunda-feira na manhã. De acordo com o hábito invariável de tia
Catarina, passaram a tarde no gabinete, lendo, conversando, fazendo tricô. O jantar, como
sempre, fora servido prontamente às 8h. Depois, como de costume, jogaram bridge até as

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Sanefa: Larga tira de tecido na parte superior da cortina ou reposteiro, vergas das janelas, etc. geralmente rematada com franja ou
galão. Nota do digitalizador

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10h. Então, igualmente como de costume, foram todos à cama. E não ouviram barulho
durante a noite.
Senhor Riddle, levando o xerife Brinley, se acomodou no gabinete pra refletir sobre
o problema. Mais uma vez recapitularam a situação. Senhor Riddle perguntou:
— Tens certeza, Judd, de que abriste os trincos daquelas janelas?
— Sim. Quando cheguei àqui estavam todos comentando que as portas e janelas
estavam fechadas e que precisaram arrombar a porta. E me lembro ter torcido os trincos
das duas janelas.
— Então pensemos noutra coisa. — Disse senhor Riddle, jovialmente. — Aqueles
cosméticos. Não sei por quê me preocupam. Não sei como se derramaram no chão.
O xerife se mostrou surpreso.
— Ora! Talvez senhora MacPherson se debatera um pouco ou o assassino os derrubara
acidentalmente.
— Se senhora MacPherson se debatesse tanto, haveria outros sinais de luta além
daqueles vidros e potes quebrados. Quanto a um acidente… — Parou, pensativo. — E se
supuser que não foi acidente?
Se levantou de repente e saiu, indo à escada.
No quarto de senhora MacPherson, abriu o trinco duma janela, a ergueu e tornou a
abaixar, fechou o trinco e sacudiu a cabeça. Fez o mesmo na outra janela, mas nessa vez
o rosto exibia ar satisfeito. Se aproximou do toucador e examinou de novo os frascos de
cosmético partidos, inclinando pensativamente a cabeça.
No quarto de Quéia encontrou roupa, um bloco-de-nota com diversos apontamentos
sobre assuntos comerciais e alguns lápis. Em adição à roupa de Leonardo havia dois livros
técnicos e uma pasta de couro cum jogo completo de instrumento de desenho. A roupa de
Franco eram complementadas por três manuscritos de peças teatrais e um estojo de
material pra caracterização.
Enfim senhor Riddle voltou à sala-de-estar, onde os três herdeiros esperavam,
inquietos. Conversou amavelmente durante alguns minutos. Soaram passos fora e Judd
entrou cum soldado da polícia estadual, que manteve a mão no coldre e observou
agressivamente o grupo. O sorriso amistoso de senhor Riddle desapareceu. Disse
abruptamente:
— Sabemos quem é o criminoso.
Os três herdeiros ficaram petrificados um instante. Quéia empalideceu um pouco
mais, Franco ficou nervoso e Leonardo manteve a mesma impassibilidade de sempre,
enquanto senhor Riddle continuava em tom calmo:
— Uma das características de meu trabalho é sempre entrar e sair das casas, ajudando
a consertar algo, mas há defeito que não conseguem descobrir. Este crime considero
assim. Comecei cum detalhe que não parecia bem, e dali passei a outros, até imaginar
como tudo sucedera.
— Pelo amor-de-deus! Digas logo aonde queres chegar! — Franco explodiu.
— Os cosméticos me preocupavam. Se houve luta seria absurdo que tudo o mais
estivesse em tão perfeita ordem no quarto. Se foram derrubados acidentalmente o ruído
seria forte o bastante pra acordar alguém. Mas ninguém ouviu ruído noturno. Então
questionei por quê seriam quebrados de propósito. O quê descobri então? Que todas as
coisas quebradas tinham cheiro horrível. Os perfumes e outras coisas de cheiro agradável
não foram tocados. Por quê aqueles cosméticos foram derramados intencionalmente? O
próprio xerife me deu a resposta. Disse que era tão forte o cheiro no quarto, que abriu as
janelas em seguida, pra ventilar a peça. Portanto alguém queria que aquelas janelas
fossem abertas o mais cedo possível.
— Mas quem? — Quéia interrompeu.

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Senhor Riddle fez um sinal a Judd, com ar carrancudo.
— Pra evitar transtorno é melhor pôr essas algemas em Leonardo Lathrop.
Leonardo mal se moveu. O rosto permaneceu inexpressivo. Disse em tom pedante:
— Francamente! Isto é ridículo! Não entendes de investigação policial. Todas essas
teorias sem prova servem apenas pra mostrar tua ignorância!
— Eu não diria isso, senhor Lathrop, antes de ouvir o resto.
O cortês desagrado de senhor Riddle era visível. Franco não pôde se conter mais:
— E aquelas janelas? Por quê tinham de ser abertas?
— Porque senhor Lathrop queria ocultar algo que não seria ocultado enquanto as
janelas não fossem abertas novamente. Achei que não havia muita probabilidade de se ter
usado mecanismo complicado, por isso procurei algo simples. E encontrei. Numa das
janelas o trinco está um pouquinho frouxo. A menos que se faça descer a janela com força,
a lingüeta do trinco gira na luva em vez de se prender nela. Isso quer dizer que a janela
não estava realmente fechada! Senhor Lathrop queria que a janela fosse aberta antes que
alguém notasse o trinco frouxo. Se não cometesse um erro ao escolher os cosméticos pra
quebrar, eu nunca pensaria em examinar novamente as janelas.
— Mesmo assim, Quéia ou Franco podiam ter feito isso tão bem quanto eu. — Disse
Lathrop friamente.
Quéia o fitou, surpreso com aquelas palavras.
— Ora! Tu… — Franco começou.
— Calai a boca e me deixai terminar! — Disse senhor Riddle asperamente — Podia
ter sido um deles, mas uma coisa me provou que não. Quando vi que alguém entrara na
janela, percebi logo que usara uma escada. É impossível usar uma escada sem deixar
marca, principalmente em relvado e canteiro-de-flor tão bem cuidados como os de
senhora MacPherson. A melhor maneira de evitar alguém observar marca da escada seria
fazer abundantes marcas em toda parte ao redor da casa. Quanto mais eu pensava nesse
detalhe, mais parecia apontar em tua direção, senhor Lathrop. Senhora MacPherson nunca
mandara tirar a neve do telhado. Por quê me chamaria de repente ontem na tarde? Porque
alguém se deu ao trabalho de a convencer de que isso era necessário. Senhora MacPherson
era uma pessoa de hábito constante. Seria preciso empregar argumento convincente. Qual
dos senhores três seria capaz de a persuadir nesse ponto? Um engenheiro, é claro! Alguém
que dissertasse cientificamente sobre o peso da neve e o dano produzido nas calhas.
Mais uma vez, Franco entrou em efervescência:
— Por-deus! Tens razão! Foi Leonardo quem sugeriu a limpeza. E, acredites, falou
como um compêndio sobre o assunto.
— A prova decisiva está em teu quarto, senhor Lathrop. Por si não prova muito, mas
combinada com o resto, é concludente. Tens um estojo de instrumento de desenho. Entre
eles há uma lâmina especial, quase idêntica a um bisturi e afiada como navalha. Seria
mais fácil de usar que uma faca comum e ninguém estranharia a ver contigo. Talvez a
análise revele que não a limpaste com cuidado suficiente.
Só depois de ser levado quase à porta pelo xerife e pelo policial, Leonardo cedeu.
— Muito bem! A matei! Por quê seria um joão-ninguém, trabalhando a vida inteira
em emprego aborrecido, enquanto ela vivia com todo o conforto e com mais dinheiro do
que era capaz de gastar!
Terminou numa torrente de impropério, com a voz tremendo histericamente no súbito
desencadear de antigos recalques.
Um ou dois dias depois senhor Riddle estava sentado no alpendre de sua pequena e
alva casa-oficina, com o cachimbo apagado entre os dentes.
— Sabes?, Judd. Algumas pessoas precisam tempo pra refletir. Se Leonardo tivera
tempo compreenderia que nossas provas contra si eram ínfimas. Vejas que era esse seu

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jogo desde o princípio. Calculou que se não se descobrisse o segredo do quarto fechado
ninguém seria acusado. Não se importaria ficar sob suspeita enquanto Quéia e Franco
estivessem na mesma situação. Mas entrou em pânico ao ver quanta coisa descobri.
Franco, por exemplo… Bom… Nunca teria paciência de planejar o crime daquele modo,
mas no fim se portaria mais à altura da situação.
— Quanto tempo achas que Leonardo levou planejando? Desde que chegou e viu que
nevou forte?
— Ó! Não! Leonardo não seria capaz de tomar decisão tão rápida. Eu não me
surpreenderia se me dissessem que levara um ano inteiro desenvolvendo um plano quase
infalível e esperando ter neve suficiente no telhado na ocasião duma visitas.
— Sim. Tinha muito a fazer: Examinar os cosméticos do toucador de senhora
MacPherson, afrouxar o trinco…
Senhor Riddle interrompeu, sacudindo a cabeça:
— Não afrouxou o trinco antecipadamente. Saberia que senhora MacPherson era
muito meticulosa, notaria algo assim e mandaria consertar em seguida. Não. Acho que
Leonardo não o fez antes daquela noite na hora do jantar. Talvez nem depois, quando foi
sua vez de ser o morto no jogo de bridge. Não correria o risco de deixar que ela
descobrisse o defeito quando era cedo demais pra mandar me chamar. E se tivesses
desistido, como Leonardo esperava, ele daria um jeito de arrumar o trinco antes que o
estado começasse a investigar.
O xerife sorriu orgulhosamente a senhor Riddle.
— Não há dúvida que me ajudaste a sair dum aperto. Tive bom palpite quando calculei
que serias capaz até de esclarecer um crime na primeira vez que te deparasses cum.
Mas se o xerife pudesse ler pensamento mudaria de opinião, pois senhor Riddle
pensou:
— A primeira vez? Eu não diria exatamente isso.

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Quando recebemos este conto Stuart Palmer era major Stuart
Palmer, do exército de Estados-Unidos, censor do departamento de
guerra pros filmes e argumentos de Roliúde. Também o então major
Stuart Palmer visitava a Europa na qualidade de guia e intérprete
oficial dum grupo de magnatas do cinema. Viajando em aviões-
transportes do exército, Stu e os chefes dos principais estúdios
cinematográficos visitaram o teatro do maior crime do mundo,
examinaram o mutilado e sangrento cadáver dum continente
assassinado, as capitais destruídas por bombas, os horrendos
campos-de-concentração e os campos-de-batalha então
mortalmente silenciosos. É um milagre que antes de missão de tal
magnitude major Palmer tivera tempo e coragem pra escrever mais
uma aventura de Hildegarda Withers. Tais são as válvulas-de-
escape que permitem que a vida continue.
Os leitores encontrarão novos comentários depois de ler

O enigma do museu Negro


Stuart Palmer

H uberto Holcomb jazia estendido de costas num espaço livre na ponta do longo e
estreito compartimento subterrâneo, além das fileiras de prateleira com os
sinistros e empoeirados objetos expostos. As lâmpadas de magnésio explodiam
quase no rosto, mas não se importava nem pestanejava, pois estava morto desde as
primeiras horas daquela tarde, entre as 2h e as 3h, segundo o médico-legista assistente.
Havia uma porção de policiais em traje civil ao redor do cadáver. Inspetor Oscar Piper,
parecendo, mais que nunca, um duende grisalho domesticado, contemplou o corpo, sem
entusiasmo perceptível, e olhou cuidadosamente todo o pavimento de pedra ao redor. Não
que esperasse encontrar algo, mas ao chefe da seção de homicídio cumpria agir como
quem sabe o que faz. Além do mais, isso lhe dava tempo pra refletir.
Mas não parecia haver indício além da longa corda de fina seda preta habilmente
entrançada que ainda rodeava o pescoço do morto, com as pontas estendidas em mais de
1,3m em cada direção, como uma manta de patinador extremamente longa.
Acendeu novamente o charuto e perguntou:
— Feita a identificação?
Hardesty, um sargento de traços grosseiros, inclinou a cabeça.
— A identificação preliminar. Pelos papéis encontrados nos bolsos. Documentos da
segurança social, cartas, e coisas assim. É Huberto Holcomb, 58 anos, residente à rua 73
Leste, 422, Manhatão.
— Fora mordomo ou algo parecido, no antigo hotel Grande. — Acudiu outro detetive.
— O quê disse o médico?
— Estrangulado, declarou o doutor Fink. Morte lenta e horrível. Nenhuma fratura de
vértebra ou do osso hióide.
Oscar inclinou judiciosamente a cabeça e olhou seu relógio, se voltou à porta na outra
extremidade do estreito corredor central. A voz normalmente áspera e cortante se
transformou em rugido.
— Breck!
A porta se abriu e um jovem patrulheiro suarento, novo na seção, enfiou a dentro o
rosto avermelhado e pasmo.
— Pronto, inspetor.
— Alguma mensagem?
— Não, senhor. Apenas um recado pra telefonar ao comissário logo que possível.
Oscar fez um gesto de contrariedade. Já falara com o comissário. Ao menos o escutara.
— Veio mais alguém? Eu esperava outra mensagem.
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— Não, senhor. Estiveram alguns jornalistas aí fora mas os expulsei. E também havia
alguns desses malucos que sempre querem ver o teatro dum crime. Basbaques. Uma
mulher, principalmente. Pensei que não poderia me ver livre dela, mas enfim consegui a
mandar embora.
— Muito bem! — Oscar aprovou distraidamente. Depois se voltou. — Um momento,
Breck. Essa basbaque que mandaste embora, por acaso não era uma mulher angulosa, de
meia-idade?
Breck sorriu.
— Decerto já estiveste às voltas consigo. Não é? Sim. Era isso mesmo. 1,75m de
altura e cerca de 60kg.
— Isso não interessa. Usava um chapéu que parecia feito por alguém que ouviu falar
sobre chapéu mas nunca viu um? Cara parecida com a da mãe dum craque do hipódromo?
— Ora! É isso mesmo, sim, senhor, Mas não te preocupes. Eu disse que estavas muito
ocupado com um homicídio e não podias ser molestado. De maneira que já desistiu.
Oscar suspirou.
— Acontece que aquela senhora é uma especial amiga minha. Passei a tarde inteira
procurando falar consigo: Digas o que quiseres. Não pode ter desistido assim tão
facilmente. Portanto vás a procurar em seguida!
De fato, bastou o desditoso policial abrir a porta do vestíbulo, e Hildegarda entrou
majestosamente, lançando a Oscar o costumeiro olhar de indignação.
— Francamente! Eu não esperava! — Então percebeu onde estavam — Oscar, isto é
o museu Negro!
— E daí? É um lugar dos diabos pra se cometer um assassínio, aqui, diante da
chefatura. Linda publicidade pra nós!
— Muito linda. — Concordou Hildegarda, distraída.
Se aproximou lentamente no estreito corredor, entre as prateleiras abarrotadas,
esbugalhando os olhos à coleção de relíquias horrendas. Viu facas, espadas e
machadinhas, cimitarras de lâmina recurva e navalhas retas, cris malaios de gume sinuoso
e estiletes de longas e aceradas pontas. Havia automáticas e revólveres, enormes pistolas
de sela que um homem mal levantaria cuma mão, pequenas derringers que podiam ser
escondidas facilmente na manga do casaco dum jogador, antiquados bacamartes e
modernas espingardas, carabinas de cano tão comprido quanto um homem alto e
marchetadas com prata.
Havia corda e máquina infernal, martelo, cacete, contrapeso de janela, grampo de
chapéu e centenas doutros artigos cuja utilidade mal se imaginaria. Mas o efeito geral era
mais que claro. Hildegarda estava entre um milhar de armas, cada uma das quais fora
exposta ali por ter servido de instrumento à morte dalguém. Aquilo era a versão ianque
do mundialmente famoso museu Negro, da Nova Scotland Yard. Hildegarda disse:
— Valha-me-deus! Olhes o pó e teia-de-aranha. Dá vontade de pegar uma vassoura!
Oscar abaixou a voz, pra que os detetives não o ouvissem na outra ponta do porão.
— Me dá vontade de sair daqui. Um momento, Hildegarda. O cadáver está ali a diante.
Mas antes que dês uma olhada, me deixes contar a história. Hoje, às 14h, três homens
foram introduzidos a este compartimento. Todos se desconheciam entre si e estavam
muito interessados no museu Negro. O zelador foi chamado ao telefone pra tratar dum
assunto banal. Durante a ausência aconteceu isto. Parece um trabalho improvisado. Ao
voltar, o homem ouviu alguém gritar socorro e bater com força na porta que fechara fora.
Quando entrou viu que Holcomb fora estrangulado. Cada sobrevivente apontava ao outro
e gritava: Foi ele! Vi!
Hildegarda fungou.
— Isso simplifica nosso problema. Apenas dois suspeitos.

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— Simplifica a tal ponto que estou a ser demitido. O comissário perdeu as estribeiras.
Me deu prazo até amanhã às 18h pra esclarecer este caso ou aceitar uma suspensão
indefinida sem vencimento. E é materialmente impossível esclarecer. O assassino foi
esperto o bastante pra contar exatamente a mesma estória que o espectador inocente. E
não se pode resolver o problema procurando o móbil do crime, pois Holcomb era uma
criatura inofensiva que ninguém teria razão pra eliminar.
— Ao menos é o que nos consta.
— Sim. De modo que mandei te chamar porque duas ou três vezes descobriste
casualmente a verdade, com tua sorte incrível, e…
— Minha sorte incrível! — Repetiu Hildegarda, indignada — Descobri casualmente,
é? Então…
Mas o que quer que diria se perdeu até sempre, pois Hildegarda ficou diante do
cadáver dum homenzinho rechonchudo, de calva lustrosa, com o rosto ainda purpúreo e
congestionado, e a corda de seda em torno do pescoço. Hildegarda exclamou com
respiração convulsiva, e desviou os olhos:
— Ó! Meu-deus!
— De acordo com o que nós supomos, quando o zelador saiu, os três visitantes se
separaram e caminharam cada um a seu lado, examinando os objetos que mais os
interessavam. Holcomb veio e um dos outros o seguiu, pegou aquela corda e o estrangulou
antes que o terceiro visitante visse ou fizesse algo.
— Á! Sim.
Hildegarda olhava um objeto próximo, uma garrafa de champanha cuja base fora
estilhaçada e tinha manchas pardacentas. O cartão encostado a ela dizia:
Garrafa usada por Stanik Bark no homicídio a Hyman Kinch no salão de baile
do hotel Grande em outubro de 1921
— Se queres ver agora o zelador.
— Eu preferia ver o cartão. Todos os objetos expostos aqui têm um. Se o criminoso
estendeu a mão e agarrou a arma mais próxima, isto é, a corda, qual o destino do cartão?
Oscar perguntou aos auxiliares se alguém vira um cartão caído no pavimento.
Ninguém vira. Todos começaram a procurar. Mas foi Hildegarda que deu o sinal de
encontrar a presa, talvez porque principiara a busca na extremidade oposta à onde estava
o cadáver. O cartão, ainda em seu lugar, dizia:
Laço de origem muçulmana, dos fanáticos da seita dos assassinos, usado por
Ab-el-Harum no homicídio a Margg Malone no parque central em agosto de
1917
— Me lembro dessa história. Também o vi queimado.
Hildegarda o olhou e fungou.
— Oscar, acho que já estive neste lugar o tempo suficiente. Parece ter um cheiro bem
definido.
— Compreendo o que queres dizer. Te lembres que eu costumava ter dessas coisas
em meu gabinete: As armas dos crimes que investigava. Mas terminei sentindo que me
deixavam nervoso.
Abriu a porta pra ela passar.
— Suponho que queres ver os suspeitos. Os dois são figuras ilustres e têm de ser
tratados com muita consideração. Um é Charley Thayer, o menino-prodígio da polícia, e
o outro é Dexter. Moore, o famoso correspondente-de-guerra.
— Sim, senhor. A morte gosta dum atirador brilhante. Não é? Mas, Oscar, enquanto
estamos aqui, quero trocar uma palavra com o zelador.
— Está bem.
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A conduziu a um pequeno cubículo embaixo da escada, onde encontraram um velho
barrigudo em uniforme policial mas sem o distintivo, com barba dum dia e um belo rosto
avelhentado, com olhos que pra Hildegarda pareciam cebolas cozidas e frias.
— Este é capitão Halverstadt, aposentado. Hal é o encarregado dos andares inferiores
do edifício das cortes criminais. Contes outra vez a história, veterano.
A voz do velho era lamurienta e dissonante.
— Bom… Temos ordem de não deixar entrar qualquer um no museu, pra que alguma
das armas não seja surripiada e usada outra vez. De modo que fazemos uma espécie de
giro regular no museu, geralmente às10h da manhã e às 14h. Hoje, 14h, só senhor
Holcomb, a vítima, chegara. Mas no último instante apareceram os outros dois.
— Juntos?
— Não, senhora. Um quando descíamos a escada, o outro quando eu abria a porta do
museu. Foi senhor Thayer que chegou em último. Os deixei entrar e começaria a palestra
que sempre faço pros visitantes, quando ouvi tocar o telefone aqui em meu gabinete. Por
isso tive de pedir licença pra 1 minuto. Mas, pra ter certeza que ninguém tiraria algo,
chaveei a porta ao sair.
— Quanto tempo estiveste fora? — Oscar perguntou.
— Cerca de 10 ou 15 minutos.
— E ao abrir a porta notaste algo que ajude a descobrir quem disse a verdade?
— Não, inspetor. Os dois pareciam assustados e muito agitados. Mas nenhum tinha a
roupa amarrotada ou algo assim. Falavam ao mesmo tempo. Eu não entendia muito do
que diziam.
— Mas vi o cadáver. Por isso detive os dois enquanto os rapazes vinham do outro lado
da rua.
— Estou vendo. — disse Hildegarda com voz sonhadora — Como disse o cego: Estou
vendo. A propósito, capitão: Os visitantes precisam explicar o motivo pra ver o museu?
Capitão Halverstadt hesitou.
— Tenho ordem pra não deixar entrar indivíduo suspeito que possa procurar arma pra
roubar. Agora, esse senhor Holcomb tinha boa razão. Disse que fora mártir-de-hotel6 no
Grande, e queria olhar a garrafa quebrada que figurou num assassínio enquanto trabalhava
lá. Senhor Thayer se declarou interessado na prevenção ao crime porque se apresentaria
como candidato a um cargo público numa chapa reformista, e senhor Moore disse que era
entendido em arma antiga e ouvira dizer que havia aqui uma derringer de 1854. Com
pessoa assim não fazemos muita pergunta.
— Nem mesmo o suficiente. — Hildegarda observou, com brandura — Digas,
capitão: Tens alguma idéia? Qual é tua teoria sobre o caso?
O velho piscou os olhos.
— Não é propriamente uma teoria. Vejas bem. É a atmosfera do lugar que começa a
pisar no espírito da gente quando se passou tanto tempo ali sozinho como eu. A gente
começa a pensar e a ouvir coisas. Todas aquelas facas, revólveres e pistolas velhas, todas
aquelas armas foram feitas e usadas pra matar. Às vezes a gente ouve a voz delas cá
dentro, cochichando. Parecem dizer:
— Vamos! Me uses outra vez. Quero fazer aquilo de novo.
Sacudiu a cabeça.
— Perdão. Eu estava sonhando em voz alta.
Ficou o olhando com olhos remelentos, ainda sacudindo a cabeça, até chegar ao alto
da escada. Oscar:
— Bem maluco, o coitado.

6
Mártir-de-hotel. Interpretação do policial ianque, não conhecendo o galicismo maître d’hôtel (mestre-de-hotel). Nota do digitalizador

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— Há mais coisas entre o Céu e a Terra… — Interpôs Hildegarda — Vejamos os
suspeitos, se não estão sendo esbordoados cum cano de borracha nalgum quartinho do
fundo.
Oscar sorriu.
— Oxalá pudéssemos resolver tudo tão facilmente assim, mas os bons tempos já se
foram. Além disso, os suspeitos não são pessoas em quem se possa aplicar a borracha.
Vamos aqui, um atalho.
A guiou noutro lance de escada e na ponte coberta que leva à chefatura. Então, em
vez de seguir no corredor ao gabinete, a conduziu a uma porta gradeada e guardada, e,
finalmente, ao longo dum corredor, até outra porta com a inscrição:
Departamento de detetive
Investigação preliminar
Privativo
A porta se abriu de repente e emergiu um advogado pequeno e sujo cum enorme
charuto apontado ao alto.
— Ó! Ó! — Exclamou Oscar.
Na esteira do homenzinho saiu um vulto elegante, de rosto bronzeado e cabelo
grisalho ondulado:
— Boa-noite, inspetor. Como vês, consegui um habeas-corpus. Sempre digo:
Apresentar denúncia ou largar logo o homem.
Tocou no cotovelo do cliente.
— Vamos, senhor Thayer.
Mas o outro parou, se aprumou e encarou Oscar.
— Um momento! Quero esclarecer dois pontos. Como candidato à assembléia, tenho
o direito de pedir que tomes especial cuidado em toda comunicação que fizer à imprensa.
prensa. E peço deixar claro o fato de que não estive detido, que já declarei
voluntariamente, que estarei pronto a cooperar com a polícia a toda hora do dia ou da
noite e que posso provar que nunca tive relação com a vítima deste infame assassínio.
— Vamos, senhor Thayer. — Insistiu o advogado, um pouco inquieto.
— Boa-noite, inspetor. — Charles Robin Thayer disse e foi embora.
Hildegarda ficou o olhando enquanto se afastava.
— Podia ter dado boa-noite a mim também. As mulheres gozam direito de voto no
estado de Nova Iorque. De qualquer modo, Oscar, ele não tem cara de assassino. Mas são
tão poucos os que têm!
Oscar a fez entrar no gabinete, onde um sargento se levantou, sacudindo a cabeça em
resposta ao olhar interrogativo do superior.
— Nada de novo nas declarações, senhor. Afirma que não tocou em objeto do museu.
Estava apenas olhando, reunindo material pruma palestra sobre a luta contra o crime e de
repente virou a cabeça e viu senhor Moore estender o corpo de senhor Holcomb no
pavimento, na outra extremidade da sala.
— Sei. Olhes aqui, Hildegarda.
Conduziu a professora ao outro lado do gabinete e fez deslizar um painel de madeira
da parede. Atrás do painel havia uma folha de vidro embaciado através do qual se via
uma pequena peça, iluminada por uma lâmpada que brilhava nos olhos dum homem
bronzeado e bem vestido sentado na ponta duma cadeira, rodeado por três detetives e
parecia muito menos preocupado que os inquisidores.
— É um vidro espelhado. Não nos podem ver nem ouvir.
— Parece que é Dexter Moore, o único suspeito restante.
Oscar inclinou afirmativamente a cabeça.

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— Esteve quatro anos no teatro-de-guerra europeu, a serviço da Midwest Press. Um
perito em arma-de-fogo, a acreditar no que diz. Gosta de as colecionar, as tirando de
cadáveres de alemães, búlgaros, romenos e outros.
— Horrível passatempo. Não é? — Hildegarda observou o homem com mais atenção.
— Não é tão bonito quanto o outro suspeito mas é corpulento e de ar decidido. Parece
muito autossatisfeito.
Observaram a pantomima. Os detetives, evidentemente se reportando a declarações
datilografadas, lançavam uma série de pergunta ao homem sentado na cadeira, quem de
vez em quando ele sacudia a cabeça com divertida paciência. Oscar disse:
— Moore terá de ser posto em liberdade em 1 minuto. A declaração é igual à de
Thayer mas ao revés! Além disso, não podemos deter um homem como suspeito quando
recebeu três medalhas e é um herói de manchete nos jornais. Mas, com os diabos!, alguém
cometeu aquele crime! Holcomb não se matou!
O painel se fechou. Oscar concluiu:
— E se eu não agir terei que sair procurando emprego.
Silenciosamente Hildegarda seguiu Oscar ao gabinete, onde ele se atirou, muito
desconsolado, à cadeira e pegou as cópias a papel-carbono das declarações gêmeas
assinadas Dexter N Moore e Charles Robin Thayer. As leu e as atirou a um lado.
— As de Moore têm mais adjetivo, mas as de Thayer rematam com clímax mais bem
calculado. Em substância, dizem o mesmo.
Hildegarda olhou as folhas de papel e inclinou a cabeça.
— Parecem genuínas. O que é natural, pois, qualquer que seja o culpado, foi esperto
o bastante pra inverter os pontos de vista.
— Sim. Se ao menos eu tivesse um móbil, pequeno que fosse…
Hildegarda, que olhara um muro de tijolo na janela aberta, se voltou vivamente.
— Oscar, um homem inocente pode mentir. Quero dizer: Um homem inocente de
homicídio. Pode odiar tanto a alguém a ponto de tentar o incriminar.
— Olhes, Hildegarda. Nem se conhecem. Comprovamos isso o mais claramente
possível. Nunca se encontraram. Thayer era secretário duma associação educacional do
interior do estado quando Moore foi à Europa. E faz apenas quatro dias que Moore voltou.
Não vejo…
— Oscar, te lembras da impressão que o museu Negro nos deu? Não está dentro dos
limites da possibilidade a mente humana fraquejar diante daqueles objetos expostos, da
aura venenosa e letal que emitem?
Oscar achou graça.
— Olhes, Hildegarda. Viste Thayer e Moore. Não pertencem ao tipo de homem capaz
de se transformar instantaneamente em maníaco homicida só por estar num museu
daquele. São cidadãos práticos, estáveis, ambiciosos. Experimentes outra vez.
— Talvez o faça. A propósito, Oscar, não te ocorreu que o crime nunca aconteceria
se não fosse a casualidade daquele chamado telefônico no momento justo? Se já houve
um telefonema tão…
Nesse instante a campainha telefônica retiniu furiosa.
— Alô. Ó! Sim, comissário. Sei…
Hildegarda acenou em despedida ao infeliz companheiro de luta e saiu sossegada.

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Mais tarde, no pequeno apartamento da rua 73 Oeste, Hildegarda se inclinou sobre
seu aquário de curiosos peixes tropicais e dirigia gravemente a palavra a um fantástico e
bizarro acará-bandeira7 que a olhava fito e movia comicamente a boca de tubarão.
— O problema principal é o móbil do crime. Por quê alguém quereria matar um
inofensivo mestre-de-hotel aposentado?
Uma molinésia8 preta e nédia ultrapassou nadando o anjo-do-mar, que o seguiu
movendo furiosamente as barbatanas e a cauda.
— Ou alguém sentiu avassalador impulso assassino e escolheu a vítima mais
próxima?
Suspirou e apagou a lâmpada acima da cabeça, reduzindo o país das fadas a um lodoso
reservatório cheio dágua, areia e alga, e povoado por indefinidos lambaris cinzentos.
Pensou:
— Agora o tanque parece minha mente. Um lugar escuro e turvo. O melhor seria
consultar o travesseiro. Dormir. Espero sonhar.
E se foi deitar.
Sonhou. Pra falar verdade, Oscar achava que ela ainda sonhava quando entrou em seu
gabinete às 9h da manhã seguinte e anunciou que entregara aos cuidados duma substituta
seus pequenos alunos da escola Jefferson e que tencionava empregar o tempo em salvar
a preciosa pele do amigo:
— Não te preocupes. Meu subconsciente resolveu tudo pra mim durante o sono.
Sonhei…
— Meu velho pai, um homem excelente, sempre dizia que preferia escutar a chuva
num telhado de zinco a ouvir uma mulher contar seus sonhos. E se ainda estás preocupada
com aquele telefonema, esclareço que foi autêntico. Esses chamados passam todos no
quadro de ligação da chefatura. Capitão Halverstadt recebeu um ontem, logo depois das
14h. Era da Western union, um longo e complicado telegrama sobre uma acumulada de
três cavalos em Roquingão e assinado Sam.
— Á! Agora meu sonho. Sonhei jogar pôquer com os dois suspeitos. Chegou o
momento de mostrar as cartas mas um se recusou a pôr as cartas na mesa. Era o assassino.
Só não me lembro qual dos dois era.
— Magnífico!, Hildegarda.
— O significado é claro. Um homem inocente e um culpado devem reagir de modo
diferente ao mesmo estímulo. Esse é o princípio do detetor-de-mentira.9
— Sem dúvida, sem dúvida. E irei ao olho-da-rua se não resolver este caso antes do
comissário tomar o segundo coquetel da noite. E tudo por causa da morte dum sujeitinho
insignificante, que só servia pra escrever suas memória dos bons tempos, um livro que
provavelmente ninguém leria.
— Ó!, Oscar. Às vezes és brilhante!
Um sorriso vago mas satisfeito passou nos lábios do inspetor mas logo desapareceu
ao se fechar a porta atrás da visitante, quem se retirava. Oscar só tornou a ouvir notícia

7
Pterophyllum scalare é um pequeno grupo de peixes dágua doce conhecidos popularmente como acará-bandeira. Proveniente da
Amazônia e facilmente encontrado nos leitos dos rios da região e na América do Sul. Pertence à família dos Cichlidaes e são espécies
ornamentais. https://pt.wikipedia.org/wiki/Pterophyllum_scalare. Nota do digitalizador
8
A molinésia (Poecilia sphenops), em inglês molly, é um peixe muito resistente e por isso apreciado entre os aquaristas iniciantes.
Vivem em água salobra e no mar. Espécie com grande variação cromática, do albino ao negro. Muitas vezes é confundida com a
Poecilia velifera. http://peixesdeaquario.com.br/peixes-2/peixes-de-agua-doce/poecilideos/molinesia-ou-molly/ Nota do digitalizador
9
Detetor-de mentira ou polígrafo é composto por um conjunto de sensores que medem o ritmo da respiração, pressão sanguínea, ritmo
cardíaco e suor na ponta dos dedos. Se baseia na teoria de que as reações do organismo se alteram quando mentimos. Os antigos
polígrafos tinham agulhas móveis que traçavam uma folha de papel. Hoje o resultado é mostrado em tela de computador. Mas não
basta comprar um polígrafo e sair interrogando. O teste só vale se for feito por um examinador treinado, que saiba conduzir um
interrogatório específico cheio de armadilha. Por ser tão subjetivo é muito contestado. A prática do polígrafo é tão científica quanto
ler o futuro em folha de chá ou entranha de ganso, afirmou o psicofisiologista John J Furedy, da universidade de Toronto,
Canadá. Nos tribunais o teste não é aceito como prova definitiva, pois já foi demonstrado que muitas pessoas não passam mesmo
dizendo a verdade. https://mundoestranho.abril.com.br/tecnologia/como-funcionam-os-detectores-de-mentira/ Psicopatas conseguem passar mentindo. Nota do digitalizador

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sobre ela pouco depois do meio-dia, quando Hildegarda telefonou pedindo pra ir a seu
pequeno apartamento logo que pudesse. A curiosidade e a falta doutro fato promissor o
levaram à residência da professora em 15 minutos. A encontrou removendo calmamente
do rosto os sinais duma insólita maquilagem. Tinha o cabelo castanho grisalho levantado
a trás em violento penteado. O resto da apresentação pessoal estava igualmente
formidável e horripilante.
— Pelo amor-de-deus!, Hildegarda, pareces Carrie Nation!10
— Boa comparação, Oscar. Permitas me apresentar. Sou senhorita Míriam Whitehead
Jones, poetisa impressionista de fama mundial apenas nos círculos impressionistas, é
claro. Deixando separado meus desbotados louros, decidi pôr nas memórias duma vida
agitada cheia de reminiscência sobre os grandes e quase grandes que foram meus amigos
e… hum… meus íntimos. Procurei um editor pra minhas memórias. E como,
naturalmente, serão um pouco picantes precisava achar um editor que não se preocupasse
muito com o perigo de processo por calúnia.
— Ainda não entendi.
— Entenderás. Enfim encontrei o que procurava, embora tivesse de passar a manhã
inteira caminhando na avenida Madisão. Mas finalmente descobri senhor Hoonman, da
firma Klaus Hoppman & filhos, que parece ser o editor ideal. Não o apreciarias. É um
homenzinho empoeirado de pescoço descarnado e cabeça nua e reptiliana como tartaruga.
Mas parece se especializar na publicação de memórias como serão as minhas,
principalmente quando o autor contribui com a maior parte da despesa. Na verdade, eu
soube que já pôs em composição o primeiro volume de 40 anos de escândalo no hotel
Grande, de Huberto Holcomb.
Oscar respirou profundamente e inclinou a cabeça.
— Achas que descobriste um motivo. Que alguém podia não querer ser incluído nas
memórias de Holcomb. E que esse alguém…
— Oscar, se estivéssemos na rua Padeiro 221-B,11 eu pediria que tirasses da estante
os livros e índices costumeiros. Mas como não tenho a biblioteca de Sherlock Holmes,
conheces algum jornalista que possa ceder a mim o acesso aos arquivos do jornal?
Oscar hesitou.
— Hum… Conheço Weatherby, do Falcão do Bruclem. Trabalha lá desde o primeiro
ano. Mas o quê esperas encontrar?
— Não tenho idéia. Mas encontrarei dalguma maneira.
Pouco tempo depois estava sentada ante uma velha mesa de carvalho, numa pequena
sala apinhada de volumes bolorentos e esfrangalhados. Hildegarda espirrou, tornou a
espirrar e começou a remexer em intermináveis envelopes cheios de secos e farfalhantes
recortes de jornal. Mas o progresso era muito lento e os ponteiros de seu relógio se
moviam rapidamente.
Oscar, extremamente amofinado, compareceu ao encontro marcado às 17h, no
apartamento de Hildegarda.
— Não que tuas idéias extravagantes darão resultado. E o comissário está falando
sério. Mandei deter capitão Halverstadt, por via das dúvidas, pois teria ficado maluco de
tanto viver naquele lugar. Mas nada encontraram pra o acusar. Vigiamos Moore e Thayer,
mas se comportam como espectadores inocentes.

10
Carry Nation (Carrie Nation, Carry A Nation, Carrie Amelia Moore Nation) (25.11.1846–09.06.1911): Proibicionista e ativista
pró-abstenção. Era o membro mais famoso ou infame da WCTU, União cristã feminina pró-abstenção (Woman’s christian
temperance union). Atacava as tabernas cum machado. https://www.alcoholproblemsandsolutions.org/carry-nation-biography-carrie-
nation/ Nota do digitalizador
11
Rua Padeiro, Baker street em inglês, se refere a Sherlock Holmes, o detetive de Artur Conan Doyle. https://pt.wikipedia.org/wiki/Mrs._Hudson Nota do
digitalizador

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— Teus rapazes te comunicaram que tanto Thayer quanto Moore receberam
mensagem expressa hoje na tarde? Receberam. Fui quem enviou. Pedi pra virem. Acho
que virão, pois dei a entender a cada um que encontraria uma testemunha ocular do crime.
A testemunha é o outro, naturalmente.
— Vejas, Oscar: Encontrei nos arquivos de jornal o que esperava. Voilà12 o motivo.
Oscar agarrou sofregamente o recorte amarelado que ela tirou da vasta bolsa e leu:
— Os teuto-ianques afirmam fé na futura amizade. Num jantar de gala no hotel
Grande, na noite passada, eminentes nova-iorquinos, representando o bundes teuto-
ianque,13 Turnverein14 do Bruclem e outras organizações interessadas na cordialidade
germano-ianque, se encontraram pra brindar à nova Alemanha…
— Podes pular o resto da notícia até o último parágrafo — Hildegarda interrompeu
— Vês aqui? Entre os oradores, estavam Hans von Drebber, da embaixada alemã
em Uóxintão, Ludwig Kraus, o famoso escritor, e Carl Thayer, conhecido
educador de Álbani.
— Comecei a entender.
Hildegarda continuou, triunfante:
— Suponhamos que em suas memórias Huberto recordara aquele jantar nazista em
seu hotel, e mencionara os nomes de convidados eminentes. Suponhamos que senhor
Hoppman, o editor, percebendo que a revelação dessas antigas inclinações por parte de
Thayer arruinaria sua carreira política, tentara discreta chantagem antes da publicação.
Oscar inclinou a cabeça.
— Mas, Hildegarda, já que encontraste um motivo pra Thayer, por quê não cancelar
o convite dirigido a Moore?
— Como esteve sob suspeita, é justo estar presente pra ver seu nome inocentado. Além
disso, há alguns pontos ainda não perfeitamente esclarecidos. Conto contigo. Não te
esqueças que sou amadora, um moscardo voluntário do departamento de polícia, como
me fazes lembrar com tanta freqüência. Terás de tomar a direção dos trabalhos quando
chegar o momento. A propósito: Trouxeste o que pedi?
O inspetor procurou nos bolsos e depois apresentou a corda de seda que, segundo
esperava, constituiria o instrumento de prova #1 no processo-crime do estado de Nova
Iorque contra o assassino de Huberto Holcomb. Hildegarda a agarrou cuidadosamente e
a colocou na mesa, sob a luz da lâmpada.
Soaram aldrabadas na porta do apartamento. Um instante depois Dexter Moore estava
diante deles cum sorriso bonachão e malicioso, se parecendo demasiado com Richard
Harding Davis, pensou Hildegarda, pois preferia que os correspondentes estrangeiros
fossem como Ernie Pyle.15

12
Voilà (galicismo): Eis, aí está. Nota do digitalizador
13
Bundes. Em alemão essa palavra se originou do verbo binden, ligar (binden, band, hat gebunden) e também significa nacional. É
por isso que bundesland significa estado. Tem também Bundesrepublik Deutschland, República Federal da Alemanha, bundesliga,
liga nacional, bundeswehr, forças armadas (defesa nacional), de sich wehren, se defender. Assim como vários outros tipos de bundes:
Bundespolizei, bundestag, bundeswahl, bundesbank, bundespräsident… https://www.facebook.com/DeutschundDeutschland/posts/935789016478890 Nota do digitalizador
14
Turnverein (do alemão turnen, fazer ginástica, e verein, clube), associação de ginastas fundada pelo professor alemão e patriota
Friedrich Ludwig Jahn em Berlim, em 1811. O termo agora também denota um lugar de exercício físico. Os primeiros turnvereins
eram centros pra cultuar a saúde e o vigor através da ginástica, incluindo a utilização de equipamentos de ginástica moderna, como a
barra fixa, barras paralelas, cavalo-de-lado e cavalo-de-salto. As organizações também foram destinadas a preparar a juventude alemã
pra defender seu país contra a França napoleônica, e ginastas foram incentivadas a desenvolver um espírito de patriotismo e
deutschheit, germanidade. https://www.britannica.com/sports/turnverein Nota do digitalizador

15
Richard Harding Davis (Filadélfia, 18.04.1864 — Nova Iorque, 11.04.1916) Popular e famoso escritor e jornalista ianque.
Cobriu a guerra hispano-americana, a segunda guerra dos bôeres e a 1ª guerra mundial. Trabalhou, entre outras mídias, pro The times.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Richard_Harding_Davis. Ernest Taylor Ernie Pyle (03.08.1900 – Okinawa, 18.04.1945) Jornalista


e correspondente de guerra ianque. Conhecido em Eua na década de 1930 por artigos publicados em mais de 200 jornais sobre as
pessoas e os lugares que visitou no país e celebridade mundial pelo trabalho como correspondente na frente de batalha da 2ª guerra
mundial. https://pt.wikipedia.org/wiki/Ernie_Pyle Nota do digitalizador

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— Pensei que era entrevista particular. — Observou o visitante, formalizado.
— Não te preocupes comigo, senhor Moore. — Oscar disse jovialmente — Aqui sou
apenas um espectador inocente. Mas queremos acabar duma vez com este caso. Não é?
Moore deu alguns passos a dentro da sala e viu a corda de seda.
— És infantil o bastante pra crer perturbar nervos calmos como os meus mostrando a
arma do crime? Depois do que presenciei ontem no museu Negro…
Foi interrompido por novo martelar na aldraba da porta. Nessa vez era senhor Thayer,
que pusera um esmuque. Observou todos os presentes com o perfeito aprumo e o gestual
calculado do político profissional.
— Não entendi teu bilhete, senhorita Withers. E não acho agradável permanecer aqui
na companhia dum homem que sei ser um assassino.
— Te sentes, Thayer, e deixes esta senhora dizer o que pretende. — Dexter Moore
atalhou, cum sorriso corajoso e sombrio — Sabes qual de nós dois é o assassino.
Terminemos isso.
Hildegarda fungou.
— É o que quero fazer. Como compreendeis, é preciso que antes de deixarmos esta
sala estabeleçamos definitivamente, pra satisfação da polícia e do público, qual de vós é
o culpado.
— Será uma dissertação muito longa? — Thayer perguntou, olhando seu relógio.
— Espero que apenas o suficiente. Senhor Holcomb, por cujo homicídio estais ambos
sob suspeita, foi assassinado porque, ao escrever as memórias duma movimentada
existência de mestre-de-hotel num conhecido ponto de reunião da cidade que foi Nova
Iorque, tocou num antigo escândalo do passado dum de vós. Os editores da obra, pra se
proteger ou pra discreta chantagem, levaram o caso ao conhecimento do assassino. Sem
dúvida, se comunicaram com dúzias de pessoas mencionadas no manuscrito. Mas uma
delas tinha muito a perder com a publicação. Seguiu Holcomb, soube que esperava pra
visitar o museu Negro, se e afastou, pra enviar ao zelador um complicado telegrama que
levaria ao menos 10min ou 15min pra ser transmitido ao telefone. Sabeis que se pode
especificar a hora exata da entrega dum telegrama. Isso, segundo esperava, o deixaria
solitário com a desprevenida vítima. Mas quis o destino que os dois não ficassem sós.
Mesmo assim executou o plano, calculando que, na pior das hipóteses, seria a palavra
dum homem contra a doutro. Mas sabeis que não é impossível mergulhar no passado dum
homem e descobrir o segredo que o levaria a assassinar.
Oscar, na ponta dos pés, observava Thayer. Por isso quase engoliu o charuto quando
viu Dexter Moore se levantar cum salto:
— E daí? Admitamos que descobriras o quê aconteceu naquela noite no apartamento
do hotel Grande! Admitamos que saí na janela em traje menor, pois não sabia que o
homem nos ameaçou cuma pistola dágua! De qualquer modo, o hotel abafou o caso e
então eu era um simples jornalista. Mas se se soubesse agora…
Parou e engoliu em seco.
— Mas eu não seria capaz de matar pra preservar o segredo. Além disso, quem sabe
se senhor Thayer tem escândalo semelhante no passado?
— Pra falar verdade, — acudiu Oscar — conhecemos o segredo de senhor Thayer.
Foi um jantar, com alguns oradores que depois se tornaram famosos.
— Muito bem! — disse Thayer — E estais exatamente no mesmo ponto do princípio.
Qualquer de nós dois tinha um motivo. Mas digo que Dexter Moore matou Holcomb.
Disse que matei. Ao departamento de polícia compete provar qual de nós dois é o culpado.
Hildegarda olhou o aquário tropical no outro lado da sala. A lâmpada estava acesa. O
tanque era novamente um país das fadas, uma suave floresta tropical povoada por seres

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cintilantes, fosforescentes. Anjos-do-mar, néons, tetras dourados, molinésias e betas,
semelhantes a lindas borboletas, se moviam tranqüila e magicamente na água turquesa.
E então compreendeu tudo. Se virou subitamente aos dois homens:
— Duas negativas fazem uma afirmativa. Cada um de vós acusa o outro. Capitão
Halverstadt declara que nenhum de vós mostrava sinal de luta, que a roupa não estava em
desalinho. A polícia provou que nenhum dos dois conhecia Herbert Holcomb e que nunca
se encontraram, a não ser, talvez, entre as páginas do manuscrito da vítima. Mas é claro
como água, senhores. Cada um dos dois entrou ali pra matar Holcomb. Leram a intenção
nos olhos um do outro, e nesse momento nasceu a perversa inspiração de os matar juntos!
Dexter Moore riu asperamente.
— Não há prova. Nada que o inspetor possa entregar a um promotor público. Ainda é
a palavra de Thayer contra a minha, a minha contra a sua, a tua contra a nossa. Hildegarda
prometeu, erguendo a corda de seda:
— Tenho outra testemunha. Esta corda tem quase 2,90m de comprimento, senhores.
Nos velhos tempos, quando estas coisas eram usadas por assassinos, faziam um laço e
davam um breve safanão, quebrando o pescoço da vítima. De acordo com minha
enciclopédia, os haxaxim, ou comedores de haxixe, costumavam matar cristãos a dúzia
com isto. Mas, segundo declarou o médico-legista auxiliar, Holcomb foi estrangulado
lentamente! Isso leva tempo.
— Havia tempo suficiente. — Thayer acudiu — Eu estava muito interessado em certos
objetos expostos no outro extremo da sala.
— Havia tempo suficiente pra qualquer de vós se aproximar sorrateiramente atrás de
Holcomb e o estrangular. — Hildegarda prosseguiu veloz e desesperadamente — Mas
isso daria oportunidade de Holcomb resistir e se debater, mesmo fracamente. Arranharia
o rosto do assassino, deixaria marca na roupa. Por acaso se observou algum sinal dessa
luta? Não! Mas se cada um de vós segurasse uma ponta da corda, dando uma volta em
torno do pescoço e se postando fora de alcance, e cada um puxasse em seu lado até ele
cair, evitariam sinal de luta. Não respondais. Estou lendo em vossos rostos que isso é
verdade. Sabíeis que os indícios contra cada um se anulariam mutuamente, e arriscastes.
— Ainda se anulam mutuamente. — Thayer disse com tom fatigado — Olhes o
inspetor: Sabe que a acusação seria posta em ridículo num tribunal.
Oscar inclinou lentamente a cabeça. Hildegarda olhou muito o relógio. Uma expressão
de plácido triunfo assomou à fisionomia.
— Há algo que não será posto em ridículo no tribunal. Um pequeno detalhe que os
assassinos não sabiam nem saberiam. Os objetos expostos no museu Negro são
polvilhados cum pó invisível, conhecido pelos químicos como azul de oximetano. A
finalidade é evitar roubo, pois o azul de oximetano, depois de certo número de horas,
deixa na pele humana uma mancha indelével. E ambos declarastes que em nada tocastes
no museu Negro. Nem na corda homicida!
Os dois homens olharam incredulamente as mãos, e ficaram olhando com olhos
arregalados, pois uma mancha azul forte marcava a palma da mão direita. Então se seguiu
uma cena que Hildegarda preferiria não presenciar, pois ambos prorromperam em
confissão frenética e entrecortada de soluço, gritando, deblaterando, lutando contra os
detetives que acudiram do corredor do edifício. Finalmente foram levados dali.
O inspetor fez o triunfante chamado telefônico ao comissário e depois se atirou,
fatigado, a uma cadeira ao lado da velha amiga.
— Me deixaste aturdido um instante. Hildegarda! Quê história é essa do tal pó azul
de óxi-não-sei-quê polvilhado sobre os objetos expostos no museu Negro? Nunca ouvi
falar sobre isso.
Hildegarda sorriu.

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— Não era nos objetos do museu. O usamos na escola, no outono passado, pra pegar
uma criança que andava surripiando coisas no vestiário. Não produz a mancha depois
dalgumas horas mas sim depois dalguns minutos. Olhes tua mão, Oscar.
Oscar olhou, e susteve a respiração.
— Mas Hildegarda…
— O polvilhei na aldraba de minha porta.

Observações avulsas sobre a


composição literária
Agora que terminaste de ler O enigma do museu Negro,
podemos revelar uma interessante anedota relativa à trama,
concepção e realização das estórias policiais.
Uma semana depois de receber, ler e adquirir O enigma do
museu Negro, de Stuart Palmer, outro manuscrito, dum escritor
policial muito diferente e igualmente famoso chegou à escrivaninha
do diretor deste magazine. O manuscrito 2 produziu no diretor um
êxtase de horror literário, um arrepio estranho e sem precedente em
nossa experiência editorial. Pois imaginai: As linhas fundamentais do
enredo do segundo manuscrito eram idênticas às de O enigma do
museu Negro!
No conto de Palmer, três homens foram encerrados numa peça.
Quando a porta foi aberta, um dos três homens foi encontrado
assassinado. Cada sobrevivente apontou ao outro, gritando:
— Foi ele! Vi!
No manuscrito 2, três homens tomaram um elevador automático.
Quando se abriu a porta do elevador, um dos três homens foi
encontrado assassinado. Cada sobrevivente acusou o outro de
cometer o crime e contou a mesma história sobre o outro suspeito.
Tendo já aceito e pago a história de Stuart Palmer, não
podíamos, em sã consciência, adquirir e publicar o segundo
manuscrito. Mas agora, recordando o caso, pensamos se a maior
parte dos leitores concordaria com essa decisão. Não seria uma
experiência estimulante e compensadora ver como dois famosos
escritores trataram o mesmo tema fundamental e como cada um,
partindo da mesma situação, desenvolveu personagens, indícios e
conclusões diversos?
Não é uma idéia literária nova já foi explorada antes. Em Cartas
de Mark Twain, 1917, publicado por Alberto Bigelow Paine, se
encontrará a seguinte nota ao pé da página 275: A noveleta em
esqueleto mencionada na carta seguinte se refere a um plano
imaginado por [William Dean] Howells e Clemens (Mark Twain),
segundo o qual doze escritores deviam cada um escrever uma
história usando o mesmo tema sem saber o quê os outros fizeram.
Era uma verdadeira idéia à Mark Twain… O grande Mark chegou
a cumprir sua parte do acordo. O conto, com cerca de 5000
palavras, se intitula Um homicídio, um mistério e um casamento.
Nunca foi publicado nalgum livro autorizado de Mark Twain. A
única vez em que a história saiu à luz foi numa edição particular,
feita em 1945 pela Manuscript house (House of El Dieff), rua 51
Leste, 45, cidade de Nova Iorque, edição limitada a 16
exemplares, dos quais dois foram depositados na biblioteca do
Congresso, pra garantia da propriedade literária, deixando apenas
14 à disposição do público. A coleção de livro de conto policial
pertencente ao diretor deste magazine, a maior e mais notável
coleção do mundo, contém um dos 14 exemplares desse conto
policial desconhecido, da autoria de Mark Twain, e tentamos
publicar em Mistério magazine. Se diga de passagem, a House of
El Dieff é a razão social usada por Lew D Feldman, o único livreiro
do mundo que se especializou em primeira-edição de estórias

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detetivescas tanto em forma de manuscrito quanto de livro, de Poe
a Poirot, de tio Abner a príncipe Zaleski.

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A segunda das novas aventuras de


professor Poggioli
Existe apenas um livro de conto de Poggioli: Pistas das Caraíbas,
publicado por Doubleday Doran em 1929. Esse livro é considerado
um clássico moderno no terreno do conto policial. A seu respeito,
aquele sagaz aficionado que é Charles Honce escreveu em As
histórias policiais como literatura, impresso particularmente em
1940: …Nada se compara no terreno da literatura policial. Um dos
contos, Uma passagem a Benares, é estupendo e arrebatador.
Senhor Stribling está ocupado em escrever, especialmente pros
leitores de Mistério magazine, uma série inteiramente nova de
investigações de professor Poggioli. A primeira foi O mistério do
chefe de polícia. Eis a segunda, O mistério da meia e do relógio. E
temos uma terceira, cuidadosamente entesourada em nosso cofre-
forte secreto. Esperamos e planejamos publicar mais uma dúzia.
Quem leu O mistério do chefe de polícia se recorda como um
dos contos policiais mais ousados e mentalmente estimulantes que
já foram escritos. Essa qualidade de extrema invulgaridade e de
verdadeiro tratamento intelectual caracteriza todas as novas
estórias de Poggioli que senhor Stribling escreveu. De fato, em sua
última carta ao diretor do Ellery Queen's mytstery magazine, senhor
Stribling disse: A grande vantagem do EQMM é que não receia as
idéias. Parece uma revista destinada a pessoas inteligentes, o que
é algo assombroso na indústria editorial ficcional.
Conquanto O mistério da meia e do relógio não envolva
questão filosófica como O mistério do chefe de polícia, mais uma
vez realiza o invulgar: Poggioli, como personagem detetivesca, é
tratado de maneira heterodoxa, com realismo que não busca
inspiração em mundanismo carregado de sexo ou brutalidade
calculada. Eis o investigador particular realmente chegado à
maioridade e aprendendo os fatos da criminologia.
Sempre é interessante espiar atrás do bastidor. O diretor de
EQMM não resistiu à tentação de proporcionar um olhar rápido a
senhor Stribling, o homem, tal qual se revela numa de suas cartas.
Na época dessa correspondência, senhor Stribling residia em Praia
Maiame, Flórida. O diretor deste magazine o informou de
persistente enfermidade no seio de sua família. Em resposta, senhor
Stribling expressou pesar, mandou voto de pronto restabelecimento
e disse sobre si:
Gozo de tão despreocupada saúde [bato na madeira] que me
parece que a todos sucederia o mesmo. Atualmente meu único
transtorno é uma torção no braço esquerdo. Todos os dias, na
praia, faço ginástica na barra horizontal. Lentamente me acostumei
a me erguer cuma mão alguma delas. Mas meu braço esquerdo
teve um músculo deslocado, disse o treinador, e durante um mês
doeu muito, conquanto está voltando ao normal. Me divirto
bastante com os soldados na praia. São todos jovens, certamente,
e muitos se exercitam nas barras horizontais, mas até agora vi
apenas dois capazes de se erguer cuma mão, e ambos eram
diretores de educação física. Às vezes me aproximo a passo
trôpego, um velho sobrecarregado de anos, e paro pra olhar a
ginástica dos soldados. Depois me aproximo, levanto o queixo até
a barra cuma mão e torno a me afastar tremulamente ao longo da
praia, os deixando pensando: O quê, diabo!, é isso?
Naturalmente, é um pouco fantástico e engraçado.
Senhor Stribling, esse esplêndido jovem, tem 64 anos de idade.

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O mistério da meia e do relógio


TS Stribling

A
delicada e, alguns diriam, presunçosa missão que me levara ao hospital ianque
de Cuernavaca se desvaneceu completamente do espírito quando vi meu velho
amigo, Henrique Poggioli, professor de psicologia criminal na universidade do
estado de Orraio, parado no pátio, sem dúvida, noutra licença de fim-de-semana.
Depois de efusiva troca de saudação continuou a palestra com doutor Beveridge,
médico de serviço. Naturalmente falando sobre a especialidade de Henrique, o crime.
Doutor Beveridge lera no jornal da manhã a notícia de que fora encontrado o cadáver
duma mulher num velho poço espanhol, perto de Taxco. Nesse ponto doutor Beveridge
se voltou se a mim sugeriu casualmente que posso inserir o caso num conto policial.
Respondi que seria um começo muito corriqueiro, que todo leitor de estória policial
espera encontrar cadáveres mutilados em velhos poços, pois, doutro modo, que motivo se
poderia ter pra introduzir um velho poço na história? E não havia mistério em semelhante
achado, pois evidentemente o cadáver seria atirado do alto do poço.
Henrique sorriu e observou:
— Vieste nesta manhã ao hospital pra tratar de assunto aborrecido. Não é?
Tive de pensar pra recordar o motivo.
— Já que falaste sobre isso: Creio que sim. Mas como sabes? Não estou perturbado.
Porque seu gracejo em resposta à sugestão de doutor Beveridge foi um pouco abrupto,
pra não dizer acrimonioso. Calculei que fosse a transferência dalgum aborrecimento que
já trazia no espírito.
Eu conhecia demais a sutileza de meu velho amigo, pra mostrar espanto. Mas doutor
Beveridge ficou surpreso. Discutiu algum tempo a dedução de Henrique, depois se voltou
a mim e pediu que eu dissesse de quê se tratava.
Vendo a importância que ele dera ao caso, eu mal sabia como principiar minha queixa.
Era uma questão insignificante. Foi o que respondi, tentando me escusar, mas Beveridge
e Henrique não aceitaram a evasiva. Enfim eu disse, sem rodeio:
— É sobre uma das enfermeiras daqui, senhorita Ema Birdsong.
O médico ficou admirado,
— Ema Birdsong! O quê faria Ema pra desagradar alguém?
— Não a mim pessoalmente mas a todos nós ianques residentes em Cuernavaca.
Passei a explicar então que Ema atendia um menino doente, o pequeno José Méndez,
na quinta Catarina. Quando o garoto se restabelecera e Ema deixaria a casa, dona
Catarina, a avó da criança, convidara a enfermeira pra morar na quinta. Semelhante
convite era puro formalismo espanhol, mas a enfermeira voltara realmente à velha mansão
e ficara residindo lá.
— Ora! Eu soube de tudo isso via Conceição, minha criada mexicana. E faço voto pra
que não seja verdade. Mas, se for, quero protestar no interesse dos outros ianques. Os
nativos daqui põem a culpa de qualquer falta de civilidade dum ianque a todos os ianques
coletivamente, e ao fazer isso ela não procedeu bem com os compatriotas.
Henrique, como recém-chegado, achou graça. Mas o médico estivera vinte e tantos
anos no México, e ficou sério. Disse que minha criada interpretara mal o incidente.
Esclareceu que quando o pequeno José se restabelecera Ema não quisera permanecer na
quinta mas dona Catarina lhe pedira e implorara que fosse passar as noites lá. Ela, a dona,
dissera que era o maior benefício a fazer ao pequeno José. Muito a contragosto doutor
Beveridge permitira que Ema dormisse na quinta e se apresentasse em todas as manhãs
no hospital. Essa era a verdadeira situação. Eu voltaria ao assunto da mulher encontrada

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morta no poço porque no fim de conta os crimes são acontecimentos interessantes e
agradáveis, e não sei o quê faria a humanidade se cessassem de repente. Mas Henrique
me cortou os naipes dizendo:
— Se o menino estava bem, como disseste, doutor, por quê dona Catarina pediu à
enfermeira pra ficar?
— Eu quis dizer que o pequeno José estava fisicamente bem.
— Não está mentalmente bem? — Inquiri com preocupação, pois conhecia o menino
e a avó.
— Não tires conclusão precipitada. Há outros males além de colapso mental. O garoto
ganhou grande afeição a Ema. Dona Catarina pediu pra ela ficar quinta por causa da
criança.
Henrique passou a mão no queixo e perguntou, bem-humorado:
— O quê queres ocultar?, doutor.
— Não tenho consciência de ter ocultado…
— É possível que tenha consciência disso. Mas evidentemente estás ocultando algo.
Disseste que o menino tinha um distúrbio mental e que depois esse distúrbio era uma
grande afeição à enfermeira, o que não é distúrbio mas reação perfeitamente normal. De
modo que deve haver algo que, consciente ou subconscientemente, procuras ocultar, pois
tua explicação nada explica.
Doutor Beveridge ficou um pouco desconcertado.
— Creio que realmente há uma lacuna. — Bateu a cinza do cigarro e olhou a ponta em
brasa — Talvez procurei dissimular inconscientemente um pequeno detalhe. A
lamentável deformação psicológica do menino José não é o afeto à enfermeira mas
aversão à avó. Dona Catarina me disse que o netinho era muito infeliz consigo e parecia
amar Ema. Achava que todas as crianças devem ter a quem amar. Concordo. Foi por isso
que deixei Ema passar as noites na quinta.
O psicólogo perguntou se dona Catarina bebia, se era sádica ou fria e rigorosa.
— Nada disso. Não há criatura melhor no mundo. Procura agradar o pequeno José de
todos os modos possíveis mas o menino não quer saber dela.
— Por quê não o envias aos pais?
— Os pais do menino estão mortos.
Na pequena pausa que se seguiu, um táxi estacou diante do portão, e um momento
depois Ema entrou no hospital.
Eu conhecia Ema muito ligeiramente, mas todos os ianques domiciliados em
Cuernavaca se tratam com camaradagem. Por isso falei consigo quando entrou no pátio.
— As enfermeiras ianques andam em táxi em Cuernavaca?
Doutor Beveridge respondeu por ela, que todos os dias senhora Méndez a mandava no
carro da família. Objetei:
— Mas o carro vejo ali fora não é o dos…
Então, pra surpresa minha, Ema fez um ligeiro sinal com a cabeça a mim. Me calei,
pensando no motivo dum táxi ser um assunto delicado. A enfermeira percebeu minha
perplexidade, pois imediatamente me perguntou, com voz significativa, se vi o novo
aparelho de raio-x do hospital.
Doutor Beveridge respondeu por mim:
Ema, é um escritor. Não se interessa por máquina.
Ora! Se há algo que me irrite é ouvir classificar os escritores como se fôssemos outra
espécie animal. Por isso respondi a Ema que teria prazer em ver o aparelho, embora na
realidade não sentisse interesse em máquina. Então a segui à sala dos aparelhos elétricos,
junto ao pátio.
Chegados à sala, Ema apontou a um objeto volumoso sob uma coberta de pano.

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— Eis. — Disse, evidentemente pra cumprir a promessa de mostrar o aparelho, e
acrescentou com voz embaraçada: — Faz algum tempo que desejo falar contigo. Não te
incomodas que eu interrompa assim tua palestra. Não é?
Um tanto curioso, respondi que não. Então ela respirou fundo pra fortalecer a coragem,
e perguntou:
— Escreves conto policial. Não é?
Julguei entender por quê fora chamado a parte. Comecei a sorrir.
— Não serias uma dessas pessoas que têm um enredo magnífico? Se ao menos
pudessem escrever a estória…
Corou bruscamente.
— Ora! Não sou isso! Não perderia tempo inventando enredo de conto. Quero fazer
algum bem no mundo enquanto estou viva. Agora que já viste o aparelho, podemos voltar.
Se virou à porta.
— Esperes um instante. Lamento enfiar os pés pelas mãos.
— Não faz mal se não queres me auxiliar.
— Mas eu não sabia que precisavas auxílio.
— Por quê, então julgaste que eu sinalizara a ti pra me seguir a esta sala?
— Não sei.
Se abrandou um pouco. Já observei que, via-de-regra, as mulheres sempre se abrandam
a tempo de nos fazer trabalhar pra elas.
— É por causa daquele táxi no qual vim. Viste eu sacudir a cabeça pra que não falasse
sobre ele diante de doutor Beveridge. Não foi?
— Hum… sim. Mas por quê não falar sobre um táxi?
— É que há aí algo muito desagradável e misterioso.
— Num táxi?
— Sim. Ao menos naquele táxi.
— Então por quê andas nele?
— Não tenho outro remédio.
A olhei com espanto. Continuou:
— É a coisa mais misteriosa que já vi. Como escreves conto policial, pensei que me
ajudarias a esclarecer o mistério.
Sacudi a cabeça.
— Não, não posso.
— Mas esclareces mistérios em teus contos.
— Não. Invento mistérios, já sabendo a solução. O único trabalho é impedir que o
leitor a descubra antes do tempo.
A enfermeira ficou dolorosamente decepcionada ao me ouvir. Se virou novamente à
porta.
— Acho que podemos voltar.
Eu não estava apenas interessado. Estava penalizado.
— Por quê não consultas professor Poggioli? Provavelmente é o melhor analista
criminal de Estados-Unidos.
— Não é propriamente um crime. É apenas desagradável, misterioso e um pouco
assustador.
— Não faz mal. Responderá a toda pergunta. Ponhas a cabeça a fora da porta e peças
que venha ver o novo aparelho de raio-x.
Ema foi até a porta e o chamou. Henrique entrou. Disse, jovialmente:
— Então não pudeste responder às perguntas sobre o táxi. Hem?
A enfermeira ficou aturdida ante a penetração de meu amigo. Mas eu disse que não se
admirasse, porque, depois dele explicar como soubera, tudo pareceria muito simples.

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Então Henrique tomou a palavra e disse que quando eu falara sobre táxi ao ver Ema entrar
no hospital, sacudira a cabeça a mim, de modo que ele supusera haver contratempo com
relação ao táxi.
Henrique principiou a interrogar a enfermeira. A história era realmente muito estranha.
Parece que um mexicano muito elegante e aristocrático mas molesto e até ameaçador, lhe
pagava o táxi em todas as manhãs, da quinta ao hospital. Era por isso que ela não queria
que se falasse sobre o táxi diante de doutor Beveridge. Observei admirado:
— Mas acho que devias querer que se falasse sobre o caso!
— N-n-não... por causa do pequeno José... — Começou a enfermeira.
— Um minuto! — Henrique interrompeu — Não entremos logo no núcleo da história.
Comeces no princípio, senhorita Birdsong, e contes como um homem proporciona a ti
todas as manhãs um táxi com intenção sinistra, e por quê és obrigada a aceitar a condução.
— Parece esquisito. Não é? Na primeira vez que o vi estava parado junto à janela do
quarto de José, na viela que passa ao lado da quinta, fazendo nada, apenas parado ali,
olhando as rosas. Não gostei de sua cara.
A interrompi:
— Um momento, senhorita Birdsong. Por quê não gostaste da cara dum jovem rico,
elegante, aristocrático?
— Porque vi que era um rico ocioso. Estava simplesmente matando tempo. Nada
pensava além de satisfazer seus caprichos. — Respondeu veemente.
— Senhorita Birdsong, — Henrique interpôs brandamente — como podias concluir
que esse jovem só pensava em satisfazer seus caprichos, quando apenas relancearas os
olhos a si na janela do quarto?
— Eu… eu não disse que relanceei os olhos, doutor Poggioli, mas que o vi.
— Não é a mesma coisa?
— Não. Relancear os olhos é olhar rapidamente alguém. Ver é notar tudo o que a
pessoa faz enquanto a estamos observando.
— Entendi. Então fez algo mais além de olhar as rosas?
— Sim. — Respondeu inclinando a cabeça e apertando os lábios com aversão. —
Esperava alguém.
— Quem?
A enfermeira hesitou.
— Acho que não se deve falar sobre uma pessoa, a não ser que se possa dizer algo
favorável a ela.
Henrique inclinou a cabeça com ar compreensivo.
— Então era uma mulher?
— Como sabes?
— Porque disseste coisas desfavoráveis sobre tal homem sem te preocupares com isso
mas vacilas em falar sobre outra pessoa. De modo que deve ser uma mulher. Aliás: Uma
moça como tu.
Ema conteve a respiração, admirada.
— Por quê chegaste à conclusão de que só pensava em satisfazer seus caprichos?
— Isso é bastante claro. Um homem rico e elegante como ele, esperou junto à cerca
da quinta que Socorro, a criada, saísse pra lhe falar. E os dois ficaram conversando com
ar de intimidade, e mesmo de inquietação. Socorro olhou várias vezes aos lados, cuidando
que ninguém a visse.
Henrique inclinou a cabeça.
— Compreendo. Uma interpretação muito natural.
— Também não acreditas que foi assim?
— Ainda não sei. O quê mais aconteceu?

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— Nada mais naquele momento. Mas um pouco depois, quando saí pra vir ao hospital,
quem se aproximaria num táxi e pediria licença pra me trazer, além daquele homem que
vi flertando com Socorro?
— Recusaste?
— Claro que sim!
— E o quê fez?
— Foi embora naquela manhã.
— Mas voltou na manhã seguinte.
Ema lançou um olhar interrogativo a Henrique mas terminou respondendo
simplesmente:
— Sim.
— Então como te obrigou a aceitar o táxi?
O rosto da moça avermelhou de raiva.
— Ora! Simplesmente diminuiu a marcha do carro e começou a me acompanhar na
rua. Quando eu caminhava mais depressa mandava o chofer guiar mais depressa. Quando
eu ia mais devagar, também ia mais devagar. Uma vez, quando parei, também parou.
Perguntei: Por quê não continuas? Respondeu: Foi por isso que vim. Pra pôr um
táxi a tua disposição. Então eu disse: Pois bem! Não quero o táxi! Disse: Não és
obrigada a o aceitar. Mas se mudares de idéia o táxi está pronto pra te levar.
Protestei: Isto chama ainda mais a atenção do que se eu entrasse no carro!
Respondeu: Não pensei sobre isso. Mas é mesmo. Não é? Apelei: Escutes. Isso
fará eu perder o emprego. Estou trabalhando no hospital duma missão ianque.
Se te virem me seguindo assim, interpretarão mal. – Então por quê não
embarcas? Assim ninguém reparará. Embarquei. Não me ocorreu outra coisa a fazer.
Sacudi a cabeça. Vivi mais dum ano no México. Conhecia muitas loucuras que os
mexicanos eram capazes de fazer, mas aquela era a coisa mais maluca de que já ouvi
falar. Olhei Henrique, pra ver o quê pensava. Estava batendo com um dedo na coberta de
pano do aparelho de raio-x.
— Será possível que tente te afugentar da quinta?
— Achas que é isso? — Volveu a enfermeira, impressionada e atemorizada.
— S-s-sim, acho que é.
Nesse ponto um médico entrou no laboratório pra tirar radiografia, por isso nossa
conversação terminou. Henrique disse que pensaria sobre o caso e procuraria ver qual a
melhor providência a tomar, Ema se mostrou muito reconhecida e agradeceu como se ele
fosse algum ser sobre-humano prometendo auxílio.
Ficara tacitamente combinado que Henrique li seria meu hóspede enquanto estivesse
em Cuernavaca, de modo que, depois de nos despedirmos de doutor Beveridge e da
enfermeira, fomos a meu apartamento na rua Inácio Abade. Quando chegamos, ainda
estávamos discutindo a causa da estranha perseguição de Ema pelo mexicano. Henrique
desenvolveu gradualmente uma hipótese de ciúme.
Era perfeitamente absurda, certamente, mas seu raciocínio tinha uma estranha
coerência. Disse que a única ligação de Ema com a quinta era o menino. Se o tal mexicano
queria afugentar a enfermeira da quinta, era porque o menino a amava. O mexicano queria
que o menino só amasse a si.
— Mas isso é insensato! Como tens certeza de que o mexicano conhece o garoto?
— Deve conhecer muito bem todos os habitantes da quinta.
Durante a discussão minha criada mexicana, Conceição, andava discretamente dum
lado a outro, entre o refrigerador e a sala-de-estar, entre a sala-de-jantar e a cozinha, com
estranho ar de timidez e ironia, como se um ratinho desdenhoso. Se entendia ou não nosso
inglês era coisa que eu ignorava. Ao menos ela nunca falava o inglês. Mas observei que

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quando eu lhe dava uma ordem em castelhano, geralmente era obrigado a repetir em
inglês antes de Conceição compreender o que eu queria dizer.
Henrique passou a tarde desenvolvendo sua teoria sobre o parentesco do menino com
o mexicano desconhecido. Depois do jantar, no anoitecer, resolveu ir comigo à quinta
Catarina pra entrevistar o garoto e descobrir por quê a criança não gostava da avó. Parecia
sentir que dalgum modo isso esclarecesse o caso.
Claro que eu sabia que não. Tinha certeza que não podia haver relação entre a antipatia
dum menino à avó e um estranho mexicano que aborrecia uma enfermeira ianque. Eram
incompatibilidades lógicas. Mas de qualquer modo, em minha qualidade de anfitrião,
estava mostrando a cidade a meu hóspede, e como a quinta Catarina era a terceira atração
turística da cidade, depois da catedral e do mercado dos nativos, foi com prazer que o
acompanhei.
Era um típico anoitecer mexicano, um desses maravilhosos anoiteceres que levam um
ianque a pensar como podia a cidade ser tão suja e tão poética e encantadora. A quinta
mostrava um ar misterioso, entrevista atrás de alta cerca de ferro, com quatro ou cinco
luzes débeis apontando ao alto na penumbra dos eucaliptos e das roseiras. Tudo era
fragrante, com uma ligeira sugestão de esgoto à flor da terra.
Fui à alta cerca de ferro e estendi a mão pra tocar a campainha, quando ouvi uma voz
feminina dar um grito breve e reprimido. Me sobressaltei um instante, mas logo me
tranqüilizei ao ouvir uma voz de criança imitar a repreensão dum adulto.
— Por quê estás gritando?, Ema. Não há motivo pra ter medo.
Um momento depois, a mulher e a criança emergiram das sombras em direção a nós,
e a mulher disse baixo e em tom de nervosismo:
— Pensei que voltara.
— E o quê tem se voltasse? Não te comeria. Não é?
Já então a mulher nos reconhecera, e se adiantava vivamente.
— Ó! Sois vós! O… o professor decidiu algo?
Evidentemente empregava a ligeira obscuridade de linguagem com que os adultos
procuram confundir os ouvidos infantis.
Respondi no mesmo estilo, dizendo que Henrique achava possível obter
esclarecimento sobre o assunto falando com alguém na quinta. Perguntou Ema, chegando
ao portão:
— Queres dizer, falando com…?
— Sim. — Disse eu, cum aceno de cabeça.
— Ora! Mas o quê isso tem a ver com o caso?
— É apenas uma possibilidade. — Explicou Henrique atrás de mim — Nada de certo.
Ele e eu podíamos ter uma pequena palestra…
— Entendi. Entres.
Ema tentou abrir o alto portão mas viu que estava fechado a chave.
— Meu querido. Queres correr até lá dentro e pedir a chave a Socorro?
O menino, que estava parada uns três ou quatro metros atrás dela, disse que não.
— Ora! José, meu bem. Não queres ir pra mim?
O garoto repetiu a recusa, e depois dum momento acrescentou:
— E eu não quero conversar com ele.
Nós três ficamos imóveis, com a decepcionada certeza de termos sido compreendidos
desde o princípio. Ema chamou Socorro, quem pouco depois apareceu.
— Socorro, — explicou a enfermeira em tom de censura — pedi ao pequeno José pra
pedir a chave do portão mas se recusou.
— A cá, José. — Socorro repreendeu, e acrescentou: — A buscarei, senhorita.

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A desaprovação conjunta de todos os adultos levou o pequeno José a virar as costas e
ir lentamente à quinta. Ficamos o olhando até que seu pequeno vulto apareceu iluminado
pela luz da entrada da casa. Então Socorro foi buscar a chave.
Henrique se voltou à enfermeira.
— Parece que te sobressaltaste quando aparecemos diante do portão. Sempre és
nervosa assim?
— Não. Pensei que voltara.
Henrique fez um movimento prà ver melhor entre as grades.
— Achei que ele só te incomodava na manhã, no táxi.
— Sim. — Respondeu com voz perturbada — Mas hoje na tarde, quando José e eu
saímos pra passear, se aproximou cum pequeno revólver, o deu a José…
— Á! Um revólver de brinquedo! — Henrique interrompeu.
— Sim. Se mostrou muito cortês e modesto, de maneira sarcástica. — Ema
estremeceu. — É o homem mais desagradável que já conheci. Quando se aproximou de
nós hoje na tarde, tão inesperadamente…
— Inesperadamente? O quê queres dizer com isso? Não veio simplesmente andando
na rua?
— Não. Saiu da viela. — Ema apontou — Ali onde o vi naquela primeira manhã, e
surgiu diante de nós tão de repente.
Foi interrompida por Socorro, que emergiu novamente da sombra e disse:
— Senhorita, não achei a chave do portão. Alguém a perdeu. Queres que vá buscar a
chave-mestra de dona Catarina?
Henrique ficou em silêncio um momento. A situação parecia depender inteiramente de
si. Enfim disse:
— Não. Assim está bem, Socorro. De qualquer modo já íamos embora.
Naturalmente, tanto Henrique quanto eu estávamos preocupados com o
desaparecimento da chave do portão. Caminhamos silenciosamente algum tempo na
escuridão da noite rumo a meu apartamento da rua Inácio Abade. Depois eu disse:
— Achas que Socorro deu a chave do portão àquele homem?
— Dera ou não, acho que ele não fará mal físico a Ema. — Henrique respondeu
pensativamente.
— Por quê dizes isso?
— Pelas maneiras de Socorro, perfeitamente calma. A chave se extraviou, como
Socorro disse, ou deu a chave ao homem tantas vezes que isso não a perturba mais.
— Mas não vejo quê relação há entre isso e o que ele pode fazer.
— É muito simples. Ele não entraria uma porção de vezes na quinta e faria mal físico
a alguém sem ser descoberto e perseguido pela lei, mesmo pela lei mexicana.
— Parece que assentas a segurança de Ema em base muito frágil. Acho que devíamos
dar parte à polícia e fazer com que vigiassem o…
— E o detivessem?
— Certamente. Se tentar algo!
— E o fazer adiar a tentativa, seja lá qual for, pra quando estivermos desprevenidos,
perdendo esta oportunidade de o pegar numa armadilha?
Fiquei desconcertado. Reconheci:
— Não me lembrara disso. Estava pensando em Ema.
— Estavas pensando no presente e eu no futuro de Ema.
— Entendi. Mas se o homem a matar hoje na noite, Ema não terá futuro.
— Não a matará. Socorro estava muito calma pra isso. Além do mais, pode ser que
perdera mesmo a chave.

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Eu não gostava de jogar com tão escassa probabilidade. Estava tão preocupado, que
depois de ir à cama não pude dormir. Ouvi o relógio da catedral dar todas as horas.
Quando bateu 1h me lembrei que naquele instante podia estar assassinando Ema. E pensar
que Henrique e eu estávamos ali deitados tranqüilos, quando sabíamos ser iminente uma
agressão e talvez uma tragédia se a chave não se extraviara realmente. Era horrível. Enfim
devo ter adormecido, pois na próxima vez que dei acordo de mim era dia claro.
Parece que Henrique levantara havia algum tempo. Tinha na mão o jornal da manhã.
Quando viu que eu estava acordado, gritou jovialmente.
— Escutes. Nesta madrugada um trem levando 40 turistas ianques foi
assaltado em A Vitória e roubado por bandidos armados, que depois o
mandaram prosseguir viagem à cidade do México. Os ladrões despojaram os
viajantes de dinheiro e jóia. É um crime fora-de-série. Eu estava pensando se o
aproveitaria num conto policial.
Eu tinha dor-de-cabeça. Respondi:
— Se ao menos os amigos dum escritor se esquecessem de possíveis enredos,
tornariam muito mais fácil e agradável a passagem do escritor na vida.
E então acrescentei, aludindo à maneira como tratara Ema:
— Parece que o dever dum criminologista é impedir o crime e não apenas o descobrir
depois de cometido.
— Ora, vamos! Como eu impediria que 40 turistas ianques fossem…
— 40, coisa nenhuma! Sabes que não estou falando sobre os 40 turistas ianques.
— Á! Aquilo! Não creio que acontecera algo. São quase 10h e ainda não soubemos
algo mais.
Então Conceição enfiou a cabeça na porta e disse em castelhano, com os olhos
arregalados de susto:
— Senhor, um homem veio buscar a polícia!
— Buscando o quê?
— Da polícia.
— Queres dizer que ele mandado pela polícia?
— Não. Veio buscar a polícia. — E olhou a Henrique — Ele não é da polícia?
Vesti um roupão. Henrique e eu saímos.
Um automóvel particular, um desses carros grandes, caros e vistosos os mexicanos
ricos sempre têm, esperava junto ao largo meio-fio da calçada, diante da porta de minha
casa. No assento traseiro estava um cavalheiro amável e delicado, com o chofer na frente.
O cavalheiro começou se desculpando, mas lera no jornal que Henrique, o criminologista
ianque, estava hospedado naquele endereço, e observara também no mesmo jornal que
uma ianque fora roubada. Disse que temia que não soubéssemos castelhano ou que não
lêssemos o jornal de Cuernavaca, e por isso tomava a extrema liberdade de chamar a
atenção dum grande criminologista ianque ao fato de que uma compatriota estava em
situação difícil. Esperava que considerássemos aquilo um gesto amistoso.
Tenho certeza que continuaria falando e se desculpando em excelente inglês no resto
do dia se eu não o interrompesse com um súbito pungir de remorso.
— Não foi Ema Birdsong, na quinta Catarina?
O cavalheiro mexicano consultou um jornal que tinha na mão.
— Sim. Creio que é isso, senhorita Ema.
— Estamos muito interessados. — Atalhei, lançando um olhar de censura a Henrique
— Iremos imediatamente.
— Posso vos conduzir em meu carro? — Ofereceu o samaritano.
— Não queremos te dar esse trabalho. Podes deixar isso por nossa conta. — Respondi
significativamente.

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O cavalheiro se conformou e mandou o chofer movimentar o carro em
— Por quê não fomos consigo? — Perguntou meu hóspede.
— Não compreenderias se eu explicasse! — Respondi com azedume.
Meu amigo me fitou.
— Por quê estás tão agitado?
— Pelo amor-de-deus, homem! Como podes ficar aí parado calmamente, falando desse
jeito? Foi roubada! Talvez também atacada, ferida, morta. E a culpa é nossa!
Henrique estalou a língua ante minha ingenuidade.
— Ora! Não pode ter sido ferida. Em caso contrário, o cabeçalho do jornal seria esse,
e não o caso do assalto ao trem.
— Henrique, és muito científico pra ser um bom amigo. Além disso pode ser que
estejas enganado. Estes jornais mexicanos apresentam as notícias de acordo com sua
veneta e não de acordo com os princípios da psicologia.
Apareceu um táxi. Assobiei à maneira ianque, depois me lembrei e assobiei à maneira
mexicana. Então o carro se aproximou. Fiz o trajeto extremamente compungido.
Quando chegamos à quinta tudo estava em confusão. A polícia estava lá. A
propriedade sendo revistada e os criados interrogados. O pequeno José observava tudo
com olhos duros e pouco infantis. Dona Catarina parecia repentinamente envelhecida.
Perguntei onde estava a enfermeira, e a desventurada senhora me indicou um quarto. Não
tive coragem de perguntar se Ema fora ferida. Quando entrei ao quarto e vi a moça ainda
fiquei em dúvida. Parecia muito pálida e abalada. Se mostrou contente em nos ver.
Perguntei se estava ferida. Sacudiu a cabeça.
— Ó, não! Nada disso.
Então perguntei se levara muita coisa de valor. A enfermeira sacudiu a cabeça como
se estivesse doente.
— Não. Nada de grande valor.
— O quê levou?
Uma meia.
— O quê?
— Uma meia.
A moça baixou a voz e continuou cum sussurro:
— Me despertou, falou comigo, pegou minha meia e foi embora.
Fitei Ema, tentando entender.
— Havia dinheiro na meia?
— Não é isso que me assusta mais. O quê quereria cuma meia?
Henrique estava atrás de mim, puxando o queixo, mergulhado em cogitação. Falou do
fundo do pensamento:
— Acho que este homem é o criminoso mais hábil que já conheci. Me virei,
impaciente.
— Expliques o quê queres dizer, mas expliques claramente! Meu-deus! Não é
momento pra…
— Me refiro ao roubo à meia e ao efeito psicológico que tencionava produzir. Se
roubasse dinheiro, jóia, seria coisa vulgar. Mas uma meia! Isso lança um ar de mistério,
quase de ameaça, sobre o fato. Sugere um fio dalguma trama desconhecida. É apavorante.
Ema está muito mais assustada do que se roubasse os anéis. Não é verdade?, senhorita
Birdsong.
— É rico. Não levaria dinheiro.
— Talvez não. De modo que a finalidade do roubo é simplesmente parecer misterioso,
te assustar, te afastar da quinta. Essa é a explicação, e não deves ter mais medo. Está
blefando.

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Ema ficou imensamente aliviada.
— Creio que é isso mesmo. Espero que seja. Mas por quê quer me fazer sair daqui? O
quê eu…
— Como já expliquei, não posso esclarecer isso. Não disponho de elemento suficiente.
Também é provável que não conheças bem a psicologia do mexicano. Revelaste à polícia
tudo o que sabes?
— Não, professor. Tenho medo de… Penses no que seria capaz de fazer se eu o
denunciasse à polícia. Poderia me assassinar.
— Mas seria posto na cadeia.
— Pode ser.
Henrique a interrompeu.
— Senhorita Birdsong, terás de tomar uma decisão: Abandonar o pequeno José e voltar
ao hospital ou recorrer à lei, combater com ela esse homem e permanecer aqui em
companhia de teu paciente.
— Mas a polícia o meteria na prisão só por ter roubado uma meia?
— Eis a questão! — Observei — Não pensei nisso. Não sei se é melhor comunicar à
polícia.
Ainda indecisos, saímos ao terreno da quinta, onde a polícia mexicana investigava. O
capitão da polícia explicava à senhora que haveria uma pessoa da casa implicada no
roubo, pois as trepadeiras da cerca de ferro estavam intatas. Isso provava que ninguém
pulou a cerca. E também provava que fora um ladrão amador, pois os profissionais sempre
quebravam alguns galhos das trepadeiras quando um criado os deixava entrar, pro criado
não ser suspeito de cumplicidade. De maneira que o gatuno tinha um cúmplice na quinta.
A qual horas foi cometido o roubo?
O roubo fora cometido às 4h da manhã. A senhora tinha certeza disso. Ouvira Ema
gritar, saíra da cama e olhara o relógio de seu quarto. Eram exatamente 4h.
— Como te lembraste de olhar o relógio naquele momento de excitação?, senhora.
— O relógio deu as horas quando eu me levantava.
— Exatamente. Podemos ver o relógio?
— Todos nós, criados, policiais e o resto do grupo, entramos no quarto da senhora, pra
ver o antigo relógio que estava num canto. Marcava então 10:03h.
— Está certo. — Afirmou o pequeno oficial, olhando seu relógio de bolso. — Estaria
certo naquele momento.
Se voltou a Ema:
— Reparaste na hora?
— Sim. 2h da madrugada.
— 2h da madrugada! — Exclamou o oficial — Mas dizes que eram 4h. O relógio dela
está certo!
Ema sacudiu a cabeça, em parte por obstinação, em parte por aturdimento.
— Quando acordei eram 2h. Olhei com atenção.
— Senhorita, se acordaste assustada por um ladrão, como reparaste na hora? —
Perguntou o oficial.
— Sou enfermeira. Aprendi a observar o momento exato dum evento. Eram 2h, não
4h.
— Podemos entrar em teu quarto e com tua permissão examinar teu relógio?
— Certamente. Venhas.
O grupo foi ao quarto da enfermeira. O relógio de Ema era de bronze dourado, e estava
em cima do toucador.
O oficial fez um sorriso largo e estendeu as mãos e disse, encolhendo os ombros:
— Não há mistério. Olhai. O relógio da senhorita está atrasado 2 horas.

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O relógio de Ema marcava 8:04h,
— Este relógio nunca se atrasou? — Inquiriu o oficial.
— Nunca.
Henrique então falou em inglês a Ema, com voz despreocupada:
— Está tudo bem agora. Não há mais perigo.
Nos despedimos da senhora e de Ema e saímos, deixando Ema um pouco assustada.
Eu estava preocupado por causa de si. Já fora da quinta perguntei a Henrique por quê não
havia mais perigo, agora que esse novo incidente do relógio parecia complicar a situação.
— Ora! Não compreendeste o motivo daquilo?
— Não.
— Acreditas mesmo que o relógio de Ema se atrasara exatamente 2 horas, nem 1
segundo a mais ou a menos desde a noite passada?
— Ora! Não pensei nisso. Seria estranho.
— Estranho? Seria impossível!
— Então o quê aconteceu?
— Reflitas!, homem. — Henrique disse como um professor falando a um aluno obtuso
— Na realidade, o roubo foi às 4h da madrugada. Sabemos pelo relógio da senhora, que
está certo agora, e pelo de Ema, atrasado 2 horas. Não entendes? O assaltante esteve no
quarto de senhorita Birdsong às 4h da madrugada. Antes de a acordar atrasou o relógio 2
horas: Das 4h às 2h.
— Mas por quê?
— Pra fazer Ema pensar que o seu quarto foi assaltado às 2h da manhã. Portanto, pra
a fazer declarar que o roubo foi cometido às 2h horas. Roubou apenas uma meia, mas
mesmo num roubo tão trivial, tão insignificante, evidentemente forjou um álibi pràs 2h
da madrugada. Na verdade estamos lidando cum homem timorato, na realidade. Não há
razão pra o temer mais do que a um cãozinho terriê. Mas o venceremos, com todas suas
artimanhas.
Não pude deixar de dizer com admiração:
— Henrique, meu velho, francamente: És extraordinário!
Mais tarde, quando estávamos de volta a meu apartamento, à rua Inácio Abade, o
telefone chamou. atendi com o pressentimento de novo alarma. Com efeito. Mal eu
dissera meu nome ao transmissor, e a voz de Ema gritou aflita em meu ouvido.
— Aqui é Ema! O pegaram. Fui chamada ao tribunal pra o identificar!
— Senhorita Birdsong, — disse eu, em tom tranqüilizador — não fiques tão
desconsolada. Queríamos deitar a mão nele. Agora conseguimos.
— S-sim. — Respondeu com voz trêmula — Mas tenho de o identificar. Estou com
medo!
— Escutes. Henrique chegou à conclusão que é um perfeito covarde. Disse que não
tens mais motivo pra o temer.
— Á! sim! — Exclamou, com gratidão. — Estimo muito saber isso. Mas podeis ir
comigo ao tribunal. Não tenho coragem de ir sozinha pra declarar contra aquele homem.
— Iremos contigo. Nos busques de passagem ao tribunal.
Eu estava em grande alvoroço, naturalmente, e até Henrique parecia excitado. Quando
Ema chegou num táxi, subimos. Mas no momento em que o carro partiu vi Conceição
parada no limiar da porta, com expressão singular no rosto pálido. Henrique disse no táxi:
— Escutai: Espera que Ema jure o ter visto em seu quarto às 2h da madrugada. Então
provará que naquela hora estava noutro lugar, não na quinta. O álibi será perfeito, e ele
terá de ser posto em liberdade. Mas o ludibriaremos. Senhorita Birdsong, deves explicar
como mexeram em teu relógio, o atrasando 2 horas. Deves insistir, notes bem!, que eram

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realmente 4h quando roubou a meia. O álibi cuidadosamente preparado pràs 2h perderá
todo o valor então. Entendido?
Ema inclinou afirmativamente a cabeça. As instruções claras de Henrique animavam
à enfermeira e a mim. Até começamos a rir um pouco a respeito do próximo julgamento
não com muita jovialidade, mas um pouco.
Quando entramos no tribunal, vi imediatamente o acusado no banco dos réus e tive a
sensação mais estranha de minha vida. Me virei a meu amigo e sussurrei:
— Santo-deus! Henrique, vês aquilo?
Ema me ouviu e perguntou, a meia-voz:
— O quê foi?
— Aquele homem no banco dos réus é o mesmo homem que foi de carro a meu
apartamento, hoje na manhã, pra nos avisar que foras roubada! — Murmurei.
Essa descoberta me deixou completamente enervado. Ema estava branca como lençol.
Henrique agarrou o braço e disse ao ouvido, em tom confiante:
— Faças exatamente o que eu disse. Seguindo minha instrução não haverá perigo.
Ema subiu ao banco das testemunhas e prestou juramento. Tudo se desenrolou sem
tropeço. A enfermeira identificou o homem, identificou a meia roubada, e declarou que o
roubo foi às 4h da manhã. O mexicano não apresentou defesa. Foi condenado a prisão.
Quando era conduzido a fora da sala, se curvou galantemente ao passar em Ema. Coisa
estranha: Não parecia guardar ressentimento. Sorria ao se afastar entre os dois policiais.
Deixamos o tribunal, tomamos um táxi e voltamos. Ema nos deixou na rua Inácio
Abade. Nossas últimas palavras foram prà tranqüilizar. Dissemos pra não temer, pois o
homem passaria algum tempo na cadeia e não continuaria a perseguindo.
Conceição estava à porta, esperando nosso regresso. Quando entrávamos disse:
— Prestaste declaração a favor dele. Eu sabia que seria assim. Todo mundo sabia.
— Não, Conceição. — Henrique corrigiu, com ar satisfeito — Senhorita Birdsong
declarou contra ele. O mandou à cadeia.
— Mas senhor. Socorro disse ao telefone que a senhorita jurou que ele esteve em seu
quarto hoje às 4h da madrugada!
— Isso mesmo. — Respondeu Henrique.
— Sim, senhor. Mas não esteve no quarto às 2h da madrugada? — Conceição
exclamou.
— O quê queres dizer com isso? — Henrique perguntou — Está claro que esteve!
— Não, senhor. Não às 4h. Ele esteve na quinta-feira às 6h da manhã. Todos os
relógios estavam com a hora errada. O de dona Catarina também. Socorro disse que
atrasara todos os relógios: O da senhora 2 horas e o da moça ianque 4 horas, como dissera
a ela pra fazer. Mais tarde Socorro acertou de novo o relógio da senhora e deixou o da
senhorita atrasado 2 horas.
— Mas por quê? — Perguntei.
— Pra que a senhorita tivesse dupla certeza de que ele viera às 4h. Queria que a
senhorita declarasse que ele estivera no quarto às 4h!
— Mas por quê?
Henrique estava estranhamente silencioso mas os lábios se moviam explodindo de
cólera. Conceição disse:
— Caramba!, senhor. Todo mundo em Cuernavaca sabe por quê! Às 4h senhor Carlos
Méndez estava em La Victoria, roubando os 40 ianques no trem! Ele levou 2 horas pra
vir de La Victoria, de modo que esteve na quinta às 6h. Mas se a moça ianque insiste que
o viu em seu quarto às 4h da madrugada, será condenado por pequeno furto. Então não
pode ser acusado de assalto e roubo na mesma hora!
Minha casa parecia oscilar.

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— Ele sempre encontra um meio de escapar, senhor. — Acrescentou Conceição, com
os olhos brilhantes. — Não sabes? É filho de dona Catarina, e pai do pequeno José.
— Mas Dona Catarina dissera que o pai do pequeno José estava morto!
— E está, pra si, senhor. Cuma vida como a que o filho leva, assaltando e roubando,
está morto pra si.

Henrique nunca discute esse caso. Pra quem está acostumado a tratar de crime
verdadeiramente sério e de processo importante, esse pequeno episódio, embora picante,
parece de pouca monta. Mas senhor Méndez, o notável criminoso, passou completamente
a perna em Henrique. Deixou o professor vencer uma escaramuça, mas a batalha principal
Henrique perdeu. Foi a maior derrota de professor Henrique Poggioli.

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Qual é o famoso detetive que tem duas residências em


Manhatão e pode ser encontrado às vezes no galpão de Detours
(Desvios)?
Esse detetive, ao que nos consta, reside apenas em dois livros
de conto: Jim Hanvey, detetive e Geléia-de-Mocotó-de-Cabra.16
Mas esse homem gordo, sentimental, com olhos de peixe e palito
de ouro, amigo de todos os escroques da região, o grande Jim
Hanvey, também tem uma história secreta a seu crédito. É um dos
dez contos sortidos do livro de Octavus Roy Cohen intitulado
Detours (Desvios), e, como uma crônica desconhecida de Jim
Hanvey, é também, no terreno do conto policial, uma descoberta
de estatura gargantuesca, como Jim.

Tranqüilamente
Octavus Roy Cohen

C
arlos Ellis parecia um próspero vendedor de livro. Entrou no quarto quase
saltitando. Os arregalados olhos azul claro cintilavam. Tinha maneiras vivas e
alertas e ressumava cordialidade em todos os poros do corpo um tanto
rechonchudo demais. Parou de repente diante da poltrona. Os olhos ingênuos se
enrugaram nos cantos. Exclamou com voz um tanto aguda e estridente:
— Valha-me-deus! És mesmo Jim Hanvey?
O enorme vulto sentado na cadeira se moveu um quase nada. Os olhos incolores de
Jim fitaram os do visitante, ligeiramente divertidos.
— Era assim que mamãe sempre me chamava.
— Foi uma grande surpresa! — Carlos exclamou, efervescente — Não és como eu
esperava. Devíamos ser amigos. Somos ambos robustos.
— Não sou robusto. Sou gordo.
Carlos o observou, francamente divertido. Tinha nos lábios uma cortês negativa à
autocensura de Jim, mas seu respeito à verdade o impediu de falar.
O corpo de Jim transbordava da vasta poltrona. Era imenso e quase informe, uma
massa de carne humana sobre a qual foi posta impiedosamente roupagem mal ajustada.
Jim era a personificação da imobilidade, o exemplo vivo da mais completa inércia.

16
Geléia-de-Mocotó-de-Cabra, versão do digitalizador. No texto em português no papel, Scrambled Yeggs, trocadilho de scrambled
eggs, ovos mexidos, com yegg, arrombador-de-cofre. Nota do digitalizador

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Apenas um leve movimento da cabeça e das mãos indicava a presença de vida no homem-
montanha. A primeira era uma excrescência canhestra e um tanto bulbosa que parecia
brotar diretamente dos ombros. Se distinguia principalmente pela multidão de queixos e
olhos de peixe que miravam o mundo como dois pedaços de ágata cinzenta. As mãos
brincavam ociosamente cuma grossa corrente de ouro que atravessava o colete malfeito,
e da qual pendia uma reluzente arma de ouro, que, a um exame mais cuidadoso, o visitante
descobriu ser um palito dobradiço. Carlos inclinou lentamente a cabeça.
— De fato. És terrivelmente gordo.
O contraste entre os dois homens não se limitava à diferença entre a robustez sadia e a
gordura desproporcionada. Carlos não estava longe de ser uma verdadeira sinfonia
indumentária. Tinha o corpo emoldurado por uma ajustada fatiota bege sob medida.
Usava camisa de seda listada de marrom e branco com colarinho da mesma fazenda.
Meias e gravata eram dum marrom mais carregado, e o chapéu e as luvas combinavam
com o castanho da bengala. A Jim dava a impressão duma gravura do que o homem bem-
vestido é condenado a usar.
Carlos era uma personagem notável. Saltitava ao caminhar, irradiando jovialidade no
quarto abafado e um tanto bagunçado. Parecia supremamente autoconfiante e satisfeito
com isso.
— Suponho que estejas um pouco surpreso em me ver. Não é?, Jim.
— Bom… — A voz grave de Jim parecia encher o quarto. — Eu não diria que não.
Como nunca ouvi falar sobre ti…
— Quanto a isso, tudo está perfeitamente bem. Ouvirás falar bastante sobre mim no
futuro. Até diria que me tornarei um fator importante em tua vida.
— Isso seria ótimo.
Carlos tirou um cigarro com monograma duma cigarreira de ouro chapeado. Depois
estendeu a cigarreira a Jim, mas a enorme cabeça se moveu numa lenta recusa.
— Não. Nunca pude suportar essas coisas.
Jim pegou um grande projétil negro, que acendeu com evidente satisfação, dizendo:
— Se não te incomoda…
Quando exalou a primeira nuvem de acre fumaça. Carlos pareceu se encolher. Olhou
desvairadamente em torno, enfim os olhos pousaram, esperançosos, numa janela. Jim
inclinou a cabeça com ar divertido.
— Podes abrir uma, se quiseres. Estes charutos não aumentam minha popularidade
pessoal.
Carlos voltou da janela. Se sentou e abordou o assunto pro qual viera.
— Em primeiro lugar, Jim, me deixes explicar que vim te procurar profissionalmente.
O negócio que me traz envolve o roubo de 25 mil dólares em dinheiro.
Silêncio um momento. Depois Jim falou:
— É bastante dinheiro, filho.
— Não é mesmo? E tenho o orgulho de informar que sou o homem que o roubou.
Só um amigo íntimo de Jim escutaria e prestaria atenção ao estalido metálico
produzido pelo súbito fechamento do palito de ouro. Exteriormente Jim não deu
demonstração de surpresa ou interesse. Os olhos de peixe pareceram ligeiramente mais
vidrados. Os lábios salientes se contraíram um pouco. E continuou fitando o elegante
jovem com olhos que aparentemente nada viam.
Carlos, o observando com atenção, se mostrou decepcionado.
— Justos-céus! Isso não te interessa?
A cabeça de Jim se moveu lentamente
— Claro que sim.

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— Calculei que te interessaria. — Era visível que a tranqüilidade de Jim desapontara
Carlos — É uma quantia considerável prum homem roubar sozinho. Não é? — Perguntou
orgulhosamente.
— Hum… Mais ou menos. Não há dúvida que muitos homens mais moços roubaram
mais que isso. Mas suponho que não tenhas muita experiência.
— Não. — Carlos respondeu com evidente pesar — Não muita. Se não surgissem
inesperadamente certas condições eu roubaria mais, é claro.
— Uma lástima. — Jim observou com simpatia — Um camarada inventa um plano
dando resultado. Então alguém se mete e estraga o negócio.
— E suponho que estejas terrivelmente curioso pra saber o motivo de minha visita.
— Um pouco.
— Contar como roubei o dinheiro e pedir auxílio.
Carlos se inclinou a diante, procurando indício de surpresa na fisionomia de Jim. Mas
as inclinações teatrais de sua alma se viram frustradas. Jim recebeu a declaração com
exasperante calma.
— Pode ser que se arranje.
— Tenho certeza de que isso seria possível. — Um tom de irritação ante a
impassibilidade de Jim se insinuara na voz de Carlos — Pra falar verdade, o fim de minha
visita é fazer um favor. Não te interessa?
— Claro que me interessa, filho. Sempre me interessei bastante por dinheiro roubado.
Apesar do aprumo com que falava, era evidente que Carlos perdera muito da
presunção. Continuava alerta como sempre, mas se mostrava menos autossatisfeito.
— Como provavelmente viste em meu cartão, sou empregado da associação de
empréstimo e construção de casa, na qualidade de guarda-livro. E como foi dessa firma
que roubei o dinheiro, naturalmente serás chamado pra tratar do caso. Não é assim?
— Hum…
— Por isso vim pra prestar um favor. Ora! — E o olhou com ar crítico — Não me dás
a impressão dum homem que gosta muito de fazer esforço contínuo.
— Dizes bem, filho.
— E se eu não viesse te procurar, no momento em que se descobrisse o desfalque serias
obrigado a abrir caminho num montão de detalhes exasperadores antes de provar minha
culpa, se conseguisses provar. Quero revelar tudo: Quanto dinheiro, como tirei e em qual
estado serão encontrados os livros, o que te poupará infindável trabalho e preocupação e
provavelmente facilitará um ajuste entre nós.
Carlos se inclinou avidamente, pondo as mãozinhas rosadas nos braços da cadeira de
Jim.
— Não achas que mostro muita consideração?
— Claro que sim.
— Suponho que o melhor que posso fazer é começar no princípio.
— Parece ser uma boa maneira de começar.
— Em primeiro lugar, não quero que tenhas impressão falsa. Creio que é mais ou
menos comum que os guarda-livros se considerem vítimas de injustiça e se apoderem de
pequenas quantias na errônea convicção de que o mundo lhes deva uma vida melhor.
Quero que compreendas que esse não é meu caso. O mundo, mais particularmente a
companhia na qual trabalho, pagou a mim em salário tudo o que me devia, tudo o que eu
merecia ganhar, até o último tostão. Meu trabalho é relativamente simples, não muito
penoso e me agrada. Pra ser franco, tenho prazer em lidar com colunas de algarismo.
Assim, vês, quando roubei o fiz sem me iludir. Enfim, não há circunstância atenuante.
Carlos parou. Os olhos vidrados de Jim se arregalaram. Depois, com enlouquecedora
lentidão, as pálpebras desceram, permaneceram fechadas um instante e se descerraram

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com o mesmo vagar. Carlos julgou que Jim não ouvira nem vira algo. Então veio a
desconfortável sensação de que Jim ouvira mais do que dava a entender e vira mais do
que desejava revelar.
— Há seis anos estou na Empréstimo e construção. Sou um empregado de confiança,
o que quer dizer que durante algum tempo tive todas as oportunidades pra abusar da
situação. E passei anos pensando como roubar da empresa, se algum dia desejasse o fazer.
Sabes? — Pousou confidencialmente a mão no ombro de Jim — Minha teoria favorita é
que não existe sistema de contabilidade tão seguro que não possa ser burlado por um
homem inteligente, e tenho certa presunção de que sou inteligente.
E acrescentou com vivacidade:
— Mas espero que não me julgues um egotista.
Jim disse secamente:
— Não há perigo.
— Como eu dizia, depois do primeiro ano que passei na Empréstimo e construção
tomei interesse acadêmico em elaborar um método capaz de burlar o complicado sistema
de escrituração da casa. Há dois anos resolvi o problema lindamente. E então, quando tive
oportunidade de fazer bom negócio. — Encolheu os ombros — Sabes como é.
— É claro que sei.
— E o mais lindo de tudo é que estou a salvo. Mas um homem inocente está em perigo.
Um exame da escrituração, feito pela companhia, me deixará livre de suspeita e levará
Kenneth F Harrison à cidade.
— Quem é?
— O caixa da Empréstimo e construção. — A fisionomia de Carlos se abriu num
sorriso beatífico. — Se ao menos conhecesses Kenneth compreenderias a graça da
situação. Aquele homem nasceu honesto. É tão honesto que às vezes fico enojado.
— E o comprometeste!
— Sim. Pra falar verdade, não esqueci detalhe. E me desculparás se continuo sorrindo,
pensando na cara de Kenneth quando for preso pelo roubo que cometi. Aquele homem é
tão visceralmente incapaz dalgum mal, que pode até se enforcar. De fato, eu não poderia
ter sido mais hábil na escolha dum… dum… Como se costuma dizer? Um otário!
— É uma palavra tão boa quanto qualquer outra. Agora, como confessas que roubaste
o dinheiro e tentaste comprometer Kenneth, o quê me impede de te mandar à cadeia?
Carlos tomou um ar ofendido.
— Justos-céus! É isso o que estou procurando esclarecer. Pareces terrivelmente
obtuso. Não compreendes que, se me prenderes só conseguirás fazer papel ridículo?
— Não seria a primeira vez. Mas por quê?
— Simplesmente por isto: Não poderias fazer com que me condenassem nem em mil
anos. Tomei todas as precauções.
Os olhos de Jim piscaram com intolerável lentidão.
— E esta confissão que fazes?
Carlos estalou desdenhosamente os dedos róseos.
— Nada vale. Afirmarias que confessei. Eu negaria. Se me prenderes não encontrarás
prova pra me condenar. Mas encontrarás prova o bastante contra Kenneth F Harrison pra
o conservar na cadeia até a chegada do milênio. Mas sabendo que desviei a suspeita sobre
Kenneth, não tocarás nele. Então o quê se pode fazer?
— Nada. — Jim rosnou.
— Precisamente. Estou encantado em ver que és tão suscetível à razão e à lógica.
— São palavras fortes, filho. Quanto surripiaste?
— 25 mil.
A declaração foi feita com genuíno orgulho.

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— Diabo! É o que eu chamaria de muito dinheiro.
— Não é? É isso! — Prosseguiu, se tornando repentinamente sério — Isso me traz ao
verdadeiro motivo de minha visita. Vejas: Empreguei os 25 mil dólares num negócio
garantido. Ao contrário do que geralmente acontece, está rendendo mais do esperado.
Dentro de 30 dias estarei em situação de restituir à Empréstimo e construção o dinheiro
que roubei, mais o juro de 8%, guardando pra mim 100 mil dólares de lucro líquido!
Jim ergueu a tremenda cabeça e encarou o elegante guarda-livro com renovado
interesse.
— Não digas!
— Sim, senhor. Tive muito cuidado na inversão do dinheiro. Sabia que não devia
falhar, pois naturalmente compreendo que uma oportunidade desta se apresenta apenas
uma vez na vida.
— É. E só pra sujeitos de sorte, por sinal.
— Agora, eis minha proposta: Dês 30 dias de prazo e a promessa de imunidade de
parte da companhia, e devolverei os 25 mil dólares com juro.
— E se não devolveres?
— Então a companhia não estará em pior situação que agora. Mas devolverei se me
prometerem imunidade.
— E se não prometermos?
Carlos retrucou sorrindo:
— Então deixarei que façam como quiserem. Naturalmente, me mandareis prender.
Senhor Kenneth, estando inocente, ficará chocado em se envolver. Não podereis me
condenar. Depois de ser submetido a julgamento e absolvido tomarei meus 125 mil
dólares e viverei feliz o resto da vida. De modo que tereis de escolher: Acusar um homem
inocente ou deixar o caso por isso mesmo. Em qualquer hipótese, a companhia terá um
prejuízo de 25 mil dólares. Ou então admitamos, pra argumentar, que consignareis minha
condenação. Como todas as provas apontam a outro homem, é certo que minha sentença
será extremamente leve. Receberei alegremente a condenação, cumprirei a pena. Quando
sair viverei muito bem, de dinheiro roubado e acrescido de meu lucro. Algo mais de 125
mil dólares. Eis a proposta, examinada em todos os ângulos. O quê preferes?
Jim se afundou mais na poltrona. Enfim a voz soou:
— Parece que teremos de fazer a ti a promessa que pedes, filho.
— Ótimo.
Jim levantou um dedo gordo, em advertência.
— Naturalmente, não posso garantir com certeza, Tenho de falar com os diretores da
companhia. Mas creio que se mostrarão razoáveis, desde que possam evitar um prejuízo
tão grande. As pessoas são assim, às vezes.
Fez um movimento brusco a diante.
— Não tens inconveniente em me contar como conseguiste dar o golpe. Não é?
— Encantado. — O jovem falava em tom ligeiramente protetor — Desejo mesmo te
poupar incômodo.
— Diabo! És o ladrão mais atencioso que já vi.
— Sempre penso nos outros.
Jim deu um risota.
— Principalmente em Kenneth Harrison. Hem?
Carlos atirou a cabeça a trás e riu.
— Principalmente no velho Kenneth. E agora, quanto a como roubei o dinheiro. Espero
que prestes atenção, pois é um plano um tanto complicado.
— Perfeitamente, filho. A diante.

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— Em primeiro lugar fazemos negócio muito mais extenso que algumas pessoas
julgariam. Embora não sejamos a maior associação de financiamento e construção da
cidade, somos uma das mais sólidas. Uma organização pequena, compacta, eficiente.
Todos os que trabalham nela, inclusive eu, são competentes e dignos de confiança.
— Sem dúvida é muito útil a uma companhia ter apenas empregados honestos.
Disse o outro, piscando de leve um olho:
— É verdade. Muitas vezes isso é útil aos empregados. De qualquer modo, temos um
número enorme de conta: Pessoas que nos pediram dinheiro emprestado pra financiar a
construção de sua casa. Esses empréstimos são pagos em prestações mensais, sendo que
algumas chegam a centenas de dólares. Calculo que a média seja de 60 dólares. E grande
parte das prestações é paga em dinheiro. Trabalhei cerca dum ano na Empréstimo e
construção quando comecei a me interessar pela quantidade de dinheiro com que lidava.
— Mas pensei que disseras ser o guarda-livro.
— E sou. Mas em nossa organização meu posto é imediatamente inferior ao do velho
Kenneth. E todos os dias sai durante duas horas pra almoçar. Enquanto está ausente ocupo
o guichê. Entendeste?
— Hum… Continues.
— Sempre fui um tanto estudioso, interessado em obter as coisas com facilidade,
principalmente dinheiro. E tinha a teoria de que não há sistema de escrituração que não
possa ser contornado, desde que se tenha o trabalho de elaborar o método com bastante
cautela.
— Há muitos outros que tiveram a mesma idéia, filho. Quase todos estão usando
roupas espalhafatosas, que não são passadas a ferro com muita freqüência.
Carlos deu de ombros.
— Os que foram bastante inábeis pra se deixar apanhar. Nada sabes sobre os homens
que não o foram. Pertenço a essa última classe. Desde quando resolvi elaborar um plano
que burlasse o sistema de contabilidade do escritório, se tornou parte de meu plano
estabelecer um álibi. Nessa ocasião eu não queria provar meu método. A idéia de roubar
veio depois.
— É o que habitualmente acontece.
— Parece que nosso sistema é impossível de burlar. — Carlos falava em tom sério,
como dissertando sobre o passatempo favorito diante duma assistência interessada —
Tomemos tu como exemplo. Suponhamos que és um cliente nosso. Tens de pagar a nós
50 dólares por mês. O pagamento deve ser feito, digamos, no dia 12. Na manhã do dia 12
examinarei meus livros e organizarei uma lista de todas as prestações vencendo nessa
data. Entregarei a lista ao caixa. Cada vez que uma das pessoas vier pagar, o velho Hanvey
marcará o nome na lista. Ao encerrar o expediente do dia aprovará a lista e a colocará em
cima da mesa do presidente. Esse é o item 1. O item 2 é este: Virás às 11h, digamos, e
pagarás os 50 dólares. Kenneth imediatamente fará um recibo no talão regulamentar. Eis
a parte de nosso sistema, mais difícil de burlar. Aquele talão é feito em triplicata. O recibo
será escrito numa página composta de 20 recibos impressos, que serão separados por
linhas picotadas, de modo que quando o velho Kenneth fizer o recibo de teus 50 dólares,
o arrancará do talão e entregará a ti e ficarás garantido pela assinatura de Kenneth no
recibo. Logo abaixo da página onde escreverá o recibo há outra página de recibos
picotados, uma cópia exata da primeira página. Teu recibo ficará reproduzido noutro
pedaço de papel imediatamente embaixo. Essa cópia será arrancada e entregue a mim, o
guarda-livro. Com ela virá o dinheiro, pois é parte de minhas atribuições fazer os
depósitos nos bancos. Até então, muito bem. Terás o recibo de 50 dólares. Terei uma
cópia exata do recibo. Mas embaixo daquela segunda página há uma terceira. Eis a
verdadeira dificuldade, pois essa terceira página não se comporá de 20 pedaços de papel

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separados por linhas picotadas. Essa página será o registro permanente. Noutras palavras:
Cada recibo não será apenas duplicado ao guarda-livro. Também copiado na página
permanente e numerada. Assim, quando se acabar um talão, conterá exatamente a terça
parte do primitivo número de páginas e fará parte dos arquivos. Como podes ver, não há
probabilidade de burlar o sistema. Não é?
Jim sacudiu lentamente a cabeça dum lado a outro. Os lábios espessos se contraíram
como pra assobiar, e os dedos grossos e espatulados mexeram distraidamente no palito
de ouro.
— Parabéns. Um homem capaz de imaginar um meio de contornar esse sistema estaria
se perdendo num posto de guarda-livro.
— Já vi que nos entendemos bem. E te lembres que não só burlei o sistema. Também
deixei tudo preparado pra quando desabar a tempestade o pobre Kenneth levar a culpa.
— Situação desagradável pra Kenneth. Não é?
— Ora, se! É honesto e estúpido.
— Muitos homens honestos o são. — Jim enrugou a fronte — Não vês inconveniente
em me responder a algumas perguntas sobre esse golpe. Não é?
— Estou sempre disposto a servir.
— Muito bem! Digas por quê vieste! Sei toda essa história da promessa de imunidade.
Mas me parece que se foste tão esperto como dizes não há modo de te pegar.
Carlos ficou sério.
— Há um meio. Não de me pegar mas de descobrir o desfalque. É um exame completo
da contabilidade. E esse exame começou agora, inesperadamente. Revelará uma
irregularidade nas contas, trazendo à luz uma lista de pagamentos em dinheiro que deviam
ter sido feitos e aparentemente não o foram. As pessoas que deviam ter feito esses
pagamentos e que realmente os fizeram serão chamadas pra explicar e apresentarão os
recibos assinados pelo punho do velho Kenneth. Mas não haverá no escritório livro nem
lançamento que mostre ter sido recebido o dinheiro.
— Como conseguiste isso?
— Adivinhes.
— Não posso. Sou muito bronco. Carlos pareceu lisonjeado.
— Cum talão em duplicata. O talão de recibo sobre o qual falei a ti é feito
especialmente pra nós por Kincaid & Garron. Os números de série são estampados em
triplicata. Um em cada recibo picotado e destacável e um na página de registro
permanente. Há algum tempo mandei fazer simplesmente um novo talão de recibo, mas…
— e fez uma pausa teatral — …tive o cuidado de mandar o fazer com os mesmos números
de série do talão em uso.
— Hum! Uma idéia inteligente!
— Ó! Sou mesmo inteligente, embora seja eu que o diga.
— E o quê fizeste com o talão falso?
— Muito fácil. Havia dúzias de ocasiões, durante o dia, quando o velho Kenneth
abandonava o guichê. Então era eu quem o substituía. Na primeira ocasião eu levava o
talão falso e escondia o outro. A cada pagamento em dinheiro feito por um cliente, o velho
Kenneth preenchia o recibo, o entregava ao cliente, dava a mim a cópia do recibo e o
dinheiro, fazia o registro permanente em meu talão e, pra se enforcar ainda mais, marcava
o pagamento na lista diária. Essa lista de pagamento era todos os dias entregue ao chefe
com a assinatura de Kenneth.
— E quando tomavas o lugar dele na hora do almoço?
— Sempre substituía o talão falso pelo legítimo, de modo que todo o dinheiro recebido
por mim ficava devidamente registrado no talão legítimo.

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— E quando, depois de fazer os lançamentos no talão falso, Kenneth entregava o
recibo e o dinheiro?
— Eu rasgava o recibo e embolsava o dinheiro. Meus livros conferem ponto a ponto
com o registro permanente. E quando o exame da escrita revelar a irregularidade estarei
a salvo. Segundo mostram meus livros, lancei e depositei escrupulosamente até o último
tostão do dinheiro recebido. Os lançamentos não estarão de acordo com os relatórios
diários mas conferirão com os recibos assinados pelo velho Kenneth no registro
permanente. É claro que chamarei inocentemente a atenção a esse fato, afirmando que
nunca recebi as cópias dos recibos nem o dinheiro correspondente. A irregularidade só
pode ser atribuída a si. Em suma: Os livros da companhia estão nessa situação: Quanto
ao período de minhas operações, nossos clientes têm recibos que se elevam a cerca de
100 mil dólares, e nossos livros revelam o pagamento de apenas75 mil dólares durante o
mesmo tempo. E revelam também que o velho Kenneth foi o ladrão. Já ouviste plano
mais perfeito?
— Parece muito bom.
— Justos-céus! Como poderia ser melhor?
— Não perguntes isso, filho. Sou apenas um homem honesto. Ninguém pode esperar
que eu tenha o cérebro dum velhaco.
— É um plano a toda prova. Posso garantir. Não há necessidade de perderes tempo
comprovando o que eu disse, mas calculo que terás de verificar.
— Não! Estou disposto a aceitar tua palavra.
— Ótimo!
Carlos ficou sério novamente, prosseguindo:
— Quero que apresentes minha proposta ao presidente e à diretoria. Tenho certeza de
que serão razoáveis. Dentro de 30 dias receberão de volta o dinheiro e o juro, desde que
me prometam imunidade. Senão, que façam o que bem entenderem. Se quiserem me
prender e processar, estou de pleno acordo. Não poderão me condenar, nem que se
arrebentem. Depois de julgado e absolvido ficarei rindo deles. Não me importaria muito
se me condenassem, mas não podem. Se fizerem questão de ter um bode expiatório, já
preparei atenciosamente o velho Kenneth presse papel. — Sorriu — Só pra ver a cara
daquele cantor de salmo quando lhe deitarem a unha, se o fizerem! Mas não sei se ficará
mais chocado por isso do que por ver que seu digno amigo Carlos foi capaz de roubar. A
honestidade é o hábito mais pernicioso de Kenneth.
Caiu o silêncio entre os dois, interrompido apenas pelo tique-taque do despertador
barato que em cima da chaminé e pelo barulho dum bonde embaixo, na rua. Depois soou
a voz lenta de Jim:
— Creio que não dirá o que fizeste com esse dinheiro. Não é?
— Certamente que não. Estou disposto a te comprazer dentro de certo limite. Mas isso
não seria razoável. Não é?
— Não!
— Excelente! Mais uma vez estamos de acordo. Dá gosto fazer negócio contigo.
— Obrigado, filho. Também não és idiota. Na verdade, posso até dizer que me pareces
o escroque mais promissor que já conheci.
Carlos corou, lisonjeado.
— Um elogio de sir Huberto vale mil vezes mais que outro.
O rosado visitante se levantou e estendeu a mão. A enorme e viscosa manopla de Jim
a apertou. Carlos disse:
— Vou andando. Tentes dar a triste notícia aos diretores da companhia. Mas se o velho
Kenneth estiver presente não te esqueças de ter um ataúde no jeito. É capaz de esticar.
— Farei o possível, filho.

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Durante longo tempo depois que a porta se fechara sobre Carlos, o vulto gelatinoso de
Jim permaneceu imóvel na poltrona.
Finalmente se levantou, passou a mão na roupa informe, tentando se ajeitar, pôs um
chapéu que era ao menos 1 número menor que a cabeça e saiu. Meia hora depois parou
diante do portal da associação de empréstimo e construção de casa.
Era um prédio pequeno mas vistoso, com fachada de mármore branco e majestosas
colunas jônicas. O detetive abriu caminho entre os transeuntes e entrou bamboleando. No
escritório, um homem de camisa listada ergueu a cabeça e sorriu.
Os olhos de Jim se fixaram no guichê que tinha o letreiro Caixa. Imediatamente
reconheceu Kenneth F Harrison, o velho Kenneth.
Kenneth parecia ter a palavra probidade gravada em cada linha da fisionomia
sobrenaturalmente grave. Alto e magro, quase descarnado, pernas invulgarmente longas
e mãos e braços de surpreendente graça. Rosto fino e um tanto cadavérico e profundos
olhos negros que olhavam fixamente sob hirsutas sobrancelhas. O imaginou
instantaneamente de casaca severa e chapéu alto: Domingo, igreja, caridade, puritanismo,
dureza implacável, código moral rígido.
Jim procurou o presidente. Alguns minutos depois se encerrou com esse trivialíssimo
cavalheiro. Conversaram algum tempo em voz baixa. Então o banalíssimo cavalheiro se
mostrou invulgarmente excitado. Pegou o telefone e manteve algumas conversações
frenéticas. Dentro de 1 hora Jim estava diante de toda a diretoria.
A sessão foi longa e tempestuosa. Quando terminou convocaram Carlos, quem
transpôs garbosamente o limiar da porta e sorriu com ar de superioridade aos diretores
reunidos em assembléia. Era evidente que os olhava do alto: Homens todos do mesmo
jaez, peados pela ética e preceitos de honestidade. Recebeu cum sorriso a saraivada de
invectiva que lançaram.
Jim não pôde deixar de admirar a placidez do jovem guarda-livro. Apesar de muito
afetado, conservava uma pose graciosa e o inato senso dramático dava ar de inexpugnável
superioridade.
Foi Jim quem terminou dirigindo a conversação a assunto de importância mais
premente.
— Se aqueles 25 mil dólares forem devolvidos dentro de 30 dias, terás a promessa de
imunidade. Mas notes bem: 30 dias é o limite absoluto.
Carlos fez um sinal de assentimento.
— Ótimo. Calculei que estes senhores se renderiam ao bom-senso quando vissem seus
bolsos ameaçados.
Relanceou o olhar um tanto altaneiro ao círculo de fisionomias votadas.
— Suponho que meu posto está vago, é claro.
Jim sacudiu lentamente a cabeça.
— Não, filho. Não é bem assim. Discutimos isso. Achamos que não nos pregarás peça
durante o próximo mês. E preferimos saber onde estás.
— Me convém. — Anunciou o jovem guarda-livro.
— E — interpolou o presidente — esperamos que durante esses 30 dias não prossigas
em tuas iniqüidades.
— Certamente que não. — E fez um gesto verdadeiramente magnífico — Dou a
palavra-de-honra.
O silêncio espantado que se seguiu foi pontilhado pelo profundo e irreprimível riso de
Jim.
Durante dois dias Jim andou constantemente no escritório da Empréstimo e
construção, sempre ao lado do perito-contador que fazia o exame da escrituração. Carlos
os observava tolerante e divertido. Depois, repentinamente, Jim desapareceu da cidade.

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A princípio a ausência de Jim causou apreensão ao empavesado guarda-livro. Se
surpreendia ao descobrir quando contaria com a presença do vulto pesadão de Jim.
Parecia que estava a salvo enquanto o detetive investigasse aquela parte de seu plano que
sabia ser invulnerável.
Mas com Jim ausente, não se sentia tão tranqüilo quanto queria. Jim era uma
inesgotável fonte de surpresa. Antes de visitar o homenzarrão, ficara a par da fama de
Jim, sabia que era um dos mais notáveis investigadores do país. A aparência pessoal de
Jim fora um choque, pois parecera tão indiferente, letárgico e pesado, que Carlos, homem
de espírito vivo e penetrante, percebia a existência dum perigo oculto atrás daquele
exterior balofo.
Mas como nos sete dias seguintes Jim não reapareceu, Carlos se permitiu uma atitude
mais otimista. No fim de conta, pensou, aquele insignificante desfalque de 25 mil dólares
não era o único caso em que Jim estava interessado no momento. Havia certeza de que,
efetuado o acordo entre o guarda-livro e os patrões, Jim esquecera o assunto, os
arquivando na memória pra futura referência pra caso Carlos não cumprir a promessa de
devolução em 30 dias.
Quanto mais refletia sobre essa possibilidade, mais certeza tinha de que sua conclusão
era correta. Compreendia não passar de arraia-miúda na carreira dum investigador
profissional. O que parecia importante e vital seria um caso de reduzido interesse prum
homem da experiência de Jim.
No fim de conta, dera um golpe inteligente, e, de acordo com seu ponto de vista amoral,
tinha direito aos frutos da especulação. A inversão do dinheiro fora realizada sobre uma
base sólida, e parecia ter assegurado o dividendo de 400%. Ninguém perderia algo. A
firma da qual tomou emprestado o dinheiro o receberia com juro de 8%. E poderia se
aposentar e viver dos rendimento em modesto conforto. Assobiava enquanto se dedicava
ao afazer, aparentemente sem dar fé da desaprovação com que o seguiam os olhos fundos
de Kenneth, o caixa da companhia.
Mas o alegre assobiar cessou abruptamente quando, um dia, a campainha do telefone
soou e foi chamado ao aparelho. Na outra ponta do fio soou a voz hesitante, arrastada,
preguiçosa, de Jim. Parecia que Jim voltara à cidade e desejava palestrar naquela noite
com Carlos. Tinha compromisso? Tinha. Mas estava disposto a o cancelar. E no resto do
dia executou a tarefa com ar preocupado. Não que tivesse medo de Jim, mas não podia
esquecer que era um transgressor da lei representada por Jim.
Pontualmente às 20h Jim foi introduzido no pequeno apartamento de quarto e banheiro
que Carlos ocupava no segundo andar duma modesta pensão. A peça que servia de
dormitório e sala estava mobiliada como se esperaria: Ostentosa, quase efeminada.
Carlos se levantou pra receber o ponderoso visitante, com visível esforço pra ocultar a
apreensão.
Jim se sentou, fitou Carlos com os olhos de peixe, acendeu um dos atrozes charutos,
mexeu no palito de ouro e balbuciou um cumprimento.
— Filho, és mesmo bamba.
Carlos se mostrou cauteloso.
— Á! Sim?
— Sem dúvida. Tiro o chapéu.
— Obrigado. Mas acho que não entendi bem o quê queres dizer.
— Não?! — Jim parecia surpreso — Mas é algo que não podes entender. Como sabes,
fiquei cerca duma semana fora da cidade. Sentiste falta de mim?
— Não muita.
— Ora!, Charles. Não estás sendo sincero. Sabes que sentiste falta de mim.
— Justos céus! O quê isso tem que ver com a coisa?

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Jim encolheu os ombros maciços.
— Gosto de saber quando as pessoas sentem minha falta. — Um cintilar quase humano
iluminou um instante os olhos aparentemente mortos — Adivinhes onde estive.
— Onde?
— Em Ardmor, estado de Oclarroma.
Se Jim notou o súbito retesamento do corpo rechonchudo de Carlos, não demonstrou.
Tampouco pareceu ter notado a audível aspiração, a palidez que cobriu instantaneamente
o rosto do guarda-livro e o fundo rubor subseqüente.
Se estabeleceu um silêncio entre ambos. Tendo feito a comunicação, Jim
aparentemente perdera todo o interesse na palestra. Carlos decidiu não ser o primeiro a
falar. Temia se trair. Mas o silêncio se tornou insuportável, e, como por iniciativa própria,
os lábios repetiram o nome:
— Ardmor?
Jim inclinou pesadamente a cabeça.
— Hum… Vila interessante.
A mente de Carlos funcionava com rapidez. Nada tinha nada a temer, mas…
— O quê descobriste em Ardmor?
Jim baixou afetuosamente os olhos ao palito de ouro e respondeu com voz lenta:
— Uma porção de coisa. E nenhuma que te faça baixar em meu conceito, filho. Não
há dúvida que és esperto.
— Por quê?
Carlos tinha a garganta seca.
— Eu estava um pouco desconfiado do emprego que deras ao dinheiro. Como sabes,
quando um guarda-livro tira dinheiro do patrão, geralmente se revela um péssimo
negociante. O dinheiro vai água a baixo. Eu estava com medo que acontecesse isso, de
modo que fui a Oclarroma pra averiguar o quê fizeste.
— Como… Como sabias que inverti o dinheiro em Ardmor?
— Ora! Não era uma coisa tão difícil. Eu trabalho pruma organização bastante vasta,
cuma porção de homens. Além disso, fizeste muitos negócios daqui mesmo, da cidade.
Decerto queres saber o quê descobri em Ardmor. Não é? Só pra ter certeza que não quero
te iludir.
— Sim. Digas.
Jim falou com lentidão exasperante, piscando os olhos de maneira enlouquecedora:
— Não sei como tiveste notícia que uma das grandes petroleiras começaria extensa
perfuração perto de Ardmor. Sabias que os negócios andavam parados lá ultimamente,
exceto as especulações arriscadas. Compreendeste que quando começassem a perfurar
haveria alta no preço dos terrenos petrolíferos. Então tudo o que fizeste foi comprar 25
mil dólares de terreno a preço médio de 8 dólares por acre. Quando a perfuração começou
negociaste pra vender as terras com lucro líquido de 400%. Acertei?
— Não digo que não.
— Muito bem! Pensei que cometerias engano. Sou muito pateta às vezes. Mas não és,
filho. Acredites. Quando soube que investias o dinheiro em terras petrolíferas, fiquei
assustado. Pensei: Mais um trouxa que quer ganhar 1 milhão com petróleo. Foi um alívio
quando descobri que eras mesmo sabido e arrancarias teu lucrinho dos verdadeiros
trouxas. Não caíste na esparrela. Te meteste num jogo perigoso, mas ao lado dos espertos.
Sabias que no momento em que principiassem a perfurar em grande escala os papalvos
se lançariam avidamente aos terrenos, esperando encontrar petróleo. Pretendes embolsar
teu lucro com a venda das terras e deixar que fiquem rezando prà descoberta das jazidas.
Tenho de te felicitar por não te agarrares com unhas e dentes aos terrenos na esperança

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de ser encontrado. És um bom negociante. Parece que tens miolo tanto pra atividade
honesta quanto pra ilícita. É um dom.
Enquanto Jim falava, a fisionomia de Carlos se desanuviou um pouco. Não era possível
duvidar das maneiras cordiais de Jim nem da sinceridade de seu tributo. No fim de conta
Carlos só tinha como remédio acreditar na afirmação. Sabia que fora extremamente
cauteloso no investimento do dinheiro roubado. Não era idiota pra o arriscar visando
ganhar 1 milhão. Se contentava com o modesto lucro de 100 mil dólares, e apreciou o
cumprimento de Jim.
— Obrigado. Estimo ouvir, dum homem com tua experiência e discernimento, que
mereço possuir uma modesta fortuna.
— Sem dúvida. Tens muita sagacidade e boa cabeça. — Jim se ergueu penosamente
da cadeira — Acho que já irei. Há um ótimo filme que quero ver, no Vaudette. Ainda não
viste. Não é?
— Já vi.
— Diabo! Lamento muito. Pensei que talvez fosses comigo.
Carlos sacudiu a cabeça. Da porta Jim lançou última advertência.
— Não passes dos trinta dias!
— Não.
— Excelente. Prometeste à companhia que pagarias até então. Eu sentiria muito se
faltasse à palavra.
— Podes confiar implicitamente em mim.
Enquanto os passos elefantinos ecoavam na escada sem tapete, Carlos se atirou à
cadeira que Jim ocupara.
Apesar do tom amistoso de Jim, Carlos estava bastante perturbado. Não imaginara que
fosse tão fácil descobrir o campo de sua atividade. Na melhor das hipóteses, aquilo
representava um obstáculo a transpor. Fumou pensativamente, sem sorriso no rosto
gorducho. Enfim se voltou ao telefone e pediu um número. Uma conversação breve e um
tanto áspera. 5 minutos depois Carlos saiu da pensão.
Alugou um flamante automóvel novo numa garagem e tomou foi ao campo.
Atravessou um lindo subúrbio e chegou finalmente a uma larga estrada de concreto que
serpenteava num vale coberto de bosque. A Lua, quase cheia, banhava a campina com
resplendor prateado, mas Carlos não tinha olhos pra contemplar a plácida grandeza do
cenário. Guiava com menos prudência que a habitual, com os olhos pregados na faixa
clara da estrada que se desenrolava rapidamente diante dos faróis.
Chegou a uma encruzilhada e deixou a faixa de concreto e dobrou à direita, seguindo
a estrada de macadame,17 menos freqüentada. Rodou devagar, talvez 800m, deixou
abruptamente o caminho e estacionou o carro num carvalhal.
Apagou a luz e acostumou os olhos à penumbra. Suas maneiras perderam grande parte
da jovialidade usual. Se diria que estava mais que um pouco preocupado.
Enfim apareceu na estrada outro par de farol. Ao se aproximar do bosque, o carro
diminuiu a marcha, e no meio do suave ronronar do motor alguém assobiou baixinho três
vezes. Carlos respondeu imediatamente. Então o recém-chegado virou o carro em direção
ao bosque e o estacionou junto ao de Carlos. Apagou a luz, e os dois se apertaram as
mãos. O homem perguntou:
— O quê há?
A resposta de Carlos foi quase lacônica.
— Muita coisa.

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Macadame: Tipo de pavimento rodoviário desenvolvido pelo engenheiro escocês John Loudon McAdam, cerca 1820. Nota do
digitalizador

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Os olhos já se acostumaram à penumbra. Na luz tênue que se filtrava nos ramos
entrelaçados dos carvalhos, examinou o rosto do recém-chegado.
Era um rosto comprido, de expressão um tanto pesarosa. Mais pesarosa que severa,
como se o dono deplorasse a iniqüidade dos outros. Abaixo do rosto se via um corpo
alongado. A atitude era de extremo nervosismo, e Carlos não estava tão divorciado do
senso-de-humor, que pudesse reprimir uma risadinha. Disse, arreganhando os dentes:
— Kenneth F Harrison, o superconspirador do bosque enluarado.
A voz do outro chegou sibilante e assustada:
— Psiu! Não digas meu nome tão alto.
— Nada há a temer. As árvores não têm ouvido.
— Não sei se têm. — Foi a nervosa resposta do caixa da associação de empréstimo e
construção de casa — Quisera não ter me metido nesta embrulhada.
— Á! Sim? Justos-céus! Te lamentas quando, ao que te conste, tudo corre de vento-
em-popa. Isso me surpreende.
— Não estou acostumado a negócio ilícito.
— Vivendo e aprendendo.
— Além disso, acho que fiquei demasiadamente em teu poder. Fui um idiota em
permitir que deixasses aquelas provas contra mim.
— Ora! Não amoles! Já não os convenci de que nada tinhas com a coisa? Eras meu ás
de trunfo.
— Não sou jogador de carta! — Kenneth retrucou, com brusquidão.
— Hum… É uma boa coisa, o jogo. Especialmente o pôquer. Nos ensina a adivinhar
o quê o outro pensa. Principalmente o quê pensa que pensamos! É por isso que estou
preocupado.
— Preocupado? Tu?
— Sim. Também sou humano. Acabei de ter uma entrevista um pouco inquietante,
com Jim.
— Ó!
Um silêncio seguido por tom lamurioso:
— Tive medo daquele homem desde o começo. É um detetive famoso.
— É um toleirão gordo e preguiçoso. Talvez não inteiramente tolo, mas quase. Tem
muita sorte e homens espertos a seu serviço. Uma vasta organização. Pessoalmente não
vale grande coisa.
— Mas e a entrevista? Não estava viajando?
— Estava. Foi a Ardmor.
Carlos contemplou com não pequena satisfação o efeito explosivo da notícia. O alto e
desconjuntado vulto pareceu vergar. Um brilho sobressaltado assomou aos olhos.
— Ardmor?
— O disseste. — Era o pequeno e vivo Carlos quem dominava a cena — E descobriu
todos os detalhes de nosso plano.
— Meu-deus! — Kenneth gemeu — Estamos perdidos!
— Ora! Estamos tão bem quanto antes. Basta ter mais cuidado.
— Mas Jim é um grande detetive!
— Grande, coisa nenhuma! Não atirei areia em seus olhos? Conseguiria isso cum
grande detetive? Me dás náusea. És um desertor nato.
— Se descobriu nosso plano…
— E o quê descobriria? Isso complicará um pouco o negócio. Nada mais. Espero que
não percas a coragem agora. Nunca tiveste muita, desde o princípio.
— O quê faremos?

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— É justamente o que quero discutir contigo. Jim soube, naturalmente, que operei sob
o nome duma companhia. Também deve saber os nomes das pessoas com quem
combinamos o negócio, os sujeitos que comprarão nossos terrenos. Sem dúvida, mandou
alguns de seus homens vigiar os compradores. Além disso, sendo chefe do corpo
detetivesco da protetora dos banqueiros, serás informado quando a turma de Ardmor visar
um cheque a minha ordem. Só o que temos a fazer é o despistar nesse ponto.
— Só?! Só?! Isto já não é o bastante?
— Justos-céus! Não! O negócio está pronto pra ser fechado. Nesta noite irei a Vista
do Vale, pra telefonar a Hastings em Ardmor, cujo pessoal está mais ansioso pra comprar
do que nós pra vender. Explicarei que por motivos particulares tenho de fechar o negócio
em segredo, e por dinheiro. Terá de vir trazendo 120 e tantos mil dólares em moeda
sonante. Será recebido por ti.
— Mas não posso me envolver nisso.
— Não serás envolvido. Te descreverei sem dizer teu nome. Levarás minha credencial
e a escritura dos terrenos. Sem dúvida, trará um advogado. Quando verificarem que a
escritura está em ordem entregarão o dinheiro. O porás em tua caixa do cofre-forte do 4º
banco nacional até termos oportunidade de o retirar. E é só.
— Mas suponhamos que Jim descubra.
— Não descobrirá. Não desconfia de ti. Ninguém suspeitaria que és mais que um
homem honesto. Além disso, se houver perigo, tens de te arriscar.
— E se Hastings não concordar com o plano?
— Concordará. Não tenhas dúvida. Te lembres que pensa que o negócio é uma
pechincha. Temos que fazer tudo isso porque Jim ficará de olho em mim, com intenção
de se apoderar dos 120 e tantos mil dólares, creio que quase 130 mil, quando chegarem à
cidade.
— Não podes comprar Jim?
— Ora! Nem todos os homens são baratos.
Se separaram. Kenneth murmurava apreensivamente enquanto se afastava. Carlos
observou a partida com asco. Desprezava a fraqueza, e o velho Kenneth era visceralmente
fraco. Carlos monologou:
— Pobre-diabo! Nunca devia ter se metido em negócio ilícito. É uma vergonha prà
classe.
Quando o automóvel de Kanneth desapareceu, Carlos recuou o carro à estrada e tomou
rumo à vizinha cidade de Vista do Vale. De lá telefonou a Hastings, em Ardmor.
A conversa com Hastings foi breve e precisa. Parece que Hastings ficou surpreso, mas
não tanto quanto Carlos esperara. Mais duma vez transacionara em segredo. Mostrou
hesitação em trocar o dinheiro pela escritura cum intermediário, mas Carlos não precisou
discutir muito pra o convencer de que seria isso ou nada.
— E quando virás com teu advogado e o dinheiro? — Carlos perguntou.
— Sexta-feira, 20:20h.
— Muito bem! Estará esperando no hotel Quincy. Perguntes sobre GH Charlton. Estará
no quarto. Poderás subir imediatamente. Tudo será feito discretamente.
— GH Charlton?
— Isso mesmo.
— Quais são seus sinais? Sei que há pouca probabilidade de engano mas quero ter
certeza de que é o mesmo homem.
— Os sinais? — Carlos hesitou um momento e sorriu ao transmissor — Só falta uma
casaca pra ser um perfeito empresário fúnebre.
No dia seguinte Carlos informou a Kenneth o combinado. O velho Kenneth estava
preocupado e inquieto.

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Felizmente, pra eles, Jim não apareceu naquele dia no escritório. Mas um dia depois o
vulto informe entrou bamboleando, com os múltiplos queixos ocultando o estreito
colarinho rodeando o quase inexistente pescoço. Cumprimentou Carlos com jovialidade.
— Os 30 dias terminarão na próxima semana.
Carlos o olhou, ofendido.
— Sabes que não faltarei a minha palavra. Receberás o dinheiro, com juro, no 30º dia.
— Antes não?
— Certamente não. Estou apressando o negócio pra ter o dinheiro nesse dia.
Jim suspirou.
— Diabos!, filho. Não queria te apurar. Estás me facilitando muito as coisas.
Carlos sorriu interiormente. No fim de conta sabia que era mais esperto que aquele
detetive balofo. Achou que Jim realmente estava agradecido por lhe poupar o intenso
trabalho de investigar. E na verdade pouco importava à companhia, desde que recebesse
de volta o dinheiro.
Os dois dias seguintes se arrastaram interminavelmente. Quinta-feira na noite, Carlos
e o sócio se reencontraram no carvalhal. O rechonchudo Carlos fez derradeiro e valente
esforço pra insuflar em Kenneth um pouco de sua ilimitada autoconfiança. Kenneth
perguntou:
— E onde estarás amanhã na noite?
— Em meu quarto, é claro. Não percebes que Jim sabe quando deve esperar aqueles
homens? Com certeza me vigiará. Te lembres de os encontrar no hotel Quincy. O quarto
já está reservado em nome de GH Charlton.
O velho Kenneth ainda não se convencera de estar em segurança. Lamentava
amargamente todo aquele caso, não por viravolta moral mas porque se sentia diante de
perigos imprevistos. Tinha a desconfortante sensação de haver sido habilmente manejado
pelo prazenteiro sócio. Mas nada podia fazer.
Sexta-feira foi um dia de interminável agonia pra Kenneth. Se Carlos sentia apreensão,
não demonstrou. Na verdade Carlos achava que o plano tinha de funcionar bem. Mesmo
que não fosse assim, estaria a salvo.
Mais tarde Carlos foi jantar no Bon Ton, pois descobrira que Jim costumava jantar ali.
Teve a satisfação de ver Jim entrar, se sentar num canto e comer a fartar. Mais tarde os
olhares se cruzaram, e trocaram um sorriso de cordial saudação. O êxito daquele pequeno
rasgo teatral encheu Carlos de cálido prazer. Parecia a última e hábil pincelada dum
mestre. Sentiu piedade ao ponderoso detetive, que mastigava entusiasticamente uma vasta
fatia de presunto cozido.
Enquanto isso Kenneth debicava o jantar com enorme falta de apetite, pois estava
excruciantemente nervoso. O instinto o aconselhava fugir. A avareza o prendia à rota
prescrita por Carlos. No fim de conta, 50 mil dólares em dinheiro não era um prêmio
desprezível. Sempre desejara ter 50 mil dólares. Era a meta que se fixara arbitrariamente
alguns anos antes.
Às 7:30h telefonou à seção de informação da estação União e soube que o trem vinha
no horário. Às 8h se registrou no hotel Quincy sob o nome de GH Charlton e foi
imediatamente ao quarto, onde ficou esperando.
Os segundos se arrastavam como minutos e os minutos como horas. Às 8:40h soou a
campainha do telefone. Hastings e seu advogado foram convidados a subir ao quarto,
Kenneth estava nervoso. Entregou a escritura pra exame imediato. Os homens de
Oclarroma a leram com atenção. O advogado inclinou lentamente a cabeça. O veredicto:
— Em perfeita ordem.
Hastings tirou duma pasta um maço de dinheiro. A primeira impressão do velho
Kenneth foi de espanto ao ver tão vultuosa e desejada quantia ocupar tão pouco espaço.

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Com os dedos trêmulos contou 128 mil dólares em moeda corrente. Os visitantes
partiram. Kenneth fechou a porta a chave e experimentou três vezes a fechadura. Separou
28 mil dólares, os embrulhou cuidadosamente num pedaço de papel pardo trazido pra
isso. Deixando o hotel, foi até sua casa, onde escondeu o saquinho de pano que continha
os 100 mil dólares. Com o pacote de papel pardo nas mãos, tornou a sair.
Numa loja de esquina, onde não o conheciam, comprou uma caixa de fino charuto.
Pediu ao empregado juntar o pacote contendo os 28 mil dólares com a caixa de charuto.
As duas coisas juntas não faziam grande volume. Então endereçou o embrulho a Carlos
e pediu entrega imediata. Falou pessoalmente com o mensageiro e deu uma gorjeta de 50
centavos.
20 minutos depois Carlos recebeu o pacote. Primeiro destruiu cuidadosamente o
envoltório endereçado com a letra de Kenneth. Então, cum sorriso satisfeito nos lábios
vermelhos, contou o dinheiro.
Estava em paz consigo e com o mundo. Nem um instante punha em dúvida a promessa
de imunidade que recebeu. Em seu poder estava o equivalente do dinheiro roubado, com
juro a 8% e uma pequena quantia de inhapa.
Sentiu calor percorrendo o corpo. Durante anos planejara aquele golpe. Um modesto
roubo que exigia paciência, habilidade e extrema atenção. Coroara o esforço desarmando
um detetive que, embora julgasse muito exagerada a reputação, era famoso.
Excetuando apenas a descoberta das operações de Ardmor por Jim, o plano funcionara
com precisão mecânica. E mesmo aquilo, contornando sem perigo, fora um obstáculo até
certo ponto desejável. Na verdade achava que fora um pouco imprevidente em não contar
com a probabilidade de Jim descobrir a inversão de capital em terras petrolíferas. Era
muito fácil investigar uma coisa dessa. Mas havia dobrada satisfação em pensar que,
embora não previra o obstáculo, o transpusera sem perder o tino.
No dia seguinte entregaria o dinheiro a Jim. Último e esplêndido gesto de desdém pela
incômoda maquinaria legal. Então tranqüilamente repartiria o lucro com o velho Kenneth
e gozaria existência modesta com o rendimento de 50 mil dólares. Vejamos, a 8%. Sem
dúvida, pensou. Um homem com essa sagacidade obteria 8% com segurança e seriam
4000 dólares por ano, renda maior do que jamais conseguira ganhar a custa de árduo
labor. O telefone tilintou, interrompendo abruptamente a agradável meditação.
— Alô? — Reconheceu imediatamente a voz arrastada, e os lábios entreabriram em
sorriso. — És Carlos?
— Sim. És Jim?
— Tal e qual.
Uma pausa, e:
— Onde estiveste durante toda a noite?
— Aqui.
— Não procuraste te comunicar comigo. Não é?
— Não. Eu queria dizer que sim, mas acho que se ficaste em casa isso não me
adiantaria.
— Nem um pouco. Como vão as coisas?, Jim.
— Assim, assim. O quê fazes?
— Nada. Por quê não vens?, pra conversar. Tenho algo que talvez te interesse.
— Pois não, filho. Acho que nos entendemos a mil maravilhas.
Enquanto esperava a Jim, arrumou o quarto com alguns destros retoques quase
femininos. Ajustou aqui e endireitou ali, distribuiu charuto, cigarro e um frasco pra bolso
na mesa.

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Uma batida na porta, e Jim entrou pesadamente. Atirou o chapéu ao sofá, errou a
pontaria e o deixou caído no chão. Acendeu um dos horrendos charutos, recusou um trago
e bocejou confortavelmente.
— Ótimo quartinho arranjaste aqui, filho.
— Muito bom. Quero em breve me mudar a um apartamento.
— Formidável. Não te incomodas se eu aparecer de vez em quando?
Carlos ficou imensamente satisfeito.
— Seria um grande prazer, se não tens objeção.
— Quase todos meus melhores amigos são escroques, Carlos. Os homens honestos são
muito cacetes.
— Era lisonjeiro — Carlos refletiu — ser incluído na elite do mundo criminoso.
Sensação deliciosamente nova.
— Como vai o negócio?
— Mais ou menos. Poderia até dizer que vai bem.
— Ainda não vendeste tuas terras?
— Já.
Observando com atenção, julgou perceber um movimento de surpresa. O lento cerrar
das pálpebras sobre os olhos de peixe revelaram o interesse.
— Sério?
— Perfeitamente.
— És um negociante esperto, filho. Não deixas a erva crescer sob os pés!
O momento era bom demais pra ser desperdiçado. Tomando ar de despreocupação,
pegou o envelope contendo o dinheiro e o atirou ao regaço de Jim.
— Acho que seria melhor liquidar nosso negocinho duma vez. Contes o dinheiro.
Jim abriu desajeitadamente o envelope e encontrou um maço com notas novas e
estalantes. Assobiou baixinho.
— 24 mil… e 5. És mesmo bamba. 6… 7. Sim. Todo o dinheiro está aqui, mais o juro.
— Espero que tenhas feito o negócio como querias.
— Eu disse que faria. Não é?
— Claro que sim. Deves estar muito satisfeito.
— Francamente, estou. Acho que me saí menos mal prum amador.
— Menino, podes dizer que te saíste muito bem. És uma honra pra tua classe.
Jim mergulhou profundamente a mão no vasto bolso lateral do enorme casaco, donde
tirou um pacote algo maior que o entregue por Carlos, e disse, com doçura:
— Acho melhor juntar tudo. Fico nervoso carregando tanto dinheiro.
Um pressentimento de desastre acometeu Carlos. Não entendia o motivo. As maneiras
de Jim certamente não mudaram. Não havia indicação de ameaça na atitude ou na inflexão
da voz branda e arrastada.
— Carregando o quê?
— Tanto dinheiro.
— Quanto?
Respondeu sem levantar os olhos, como se comentando sobre o tempo.
— 128 mil dólares.
Carlos respirou audivelmente. Sufocava. Sacudiu a cabeça.
— Não entendi.
— Nada há pra entender. Recebi os 28 mil dólares de ti. O resto, de Kenneth.
— Est… Estás mentindo?
As palavras escaparam abruptamente, quase sem pensar. Jim ergueu os olhos com ar
de reprovação.

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— Ora!, filho. Eu não diria isso a um estranho. Nunca minto quando não é preciso.
Olhes aqui.
Abriu o outro pacote.
— Contes, filho. São os mesmos 100 mil que aquele sujeito de Ardmor, Hastings,
pagou a Kennet há menos de 2 horas.
Seria muito difícil se refazer num instante desse golpe esmagador. Justamente quando
as coisas pareciam estar chegando a um final satisfatório, ali aparecia aquele detetive
trapalhão e enorme, com o lucro do negócio de Oclarroma e uma tranqüila explicação que
indicava perfeito conhecimento da cumplicidade de Kenneth no caso. Jim perguntou
sossegadamente:
— O quê há? Estás preocupado com teu companheiro? Não queremos pôr Kenneth na
cadeia. Fizestes ótimo investimento do dinheiro da companhia. Os diretores estão muito
agradecidos, ou estarão quando eu contar.
Carlos tinha a impressão de que o quarto girava com indevida rapidez. Ante os olhos
estonteados, as frases Por quê? e Como? pareciam saltar do espaço e martelar o cérebro.
Os lábios formularam a pergunta:
— O quê… O quê te levou a suspeitar de Kenneth?
Jim o fitou benignamente.
— Disseste a mim.
— Eu?
— Claro! Naquele primeiro dia. Ora!, filho. Precisas aprender que não se pode
confidenciar sem revelar tudo até o fim. Procuraste a mim naquele dia e contaste uma
estorieta notável, a melhor que já ouvi. Gostei muito dela, entre outras razões, porque me
fez pensar. Às vezes gosto de pensar. É tão interessante! Eis o que pensei: Rapaz
esperto. E se vê que tem outro motivo pra me contar tudo isso. Pois se tem um
motivo, devo descobrir qual. O plano é bom demais pra ser verdadeiro. Deu um
bom golpe e não se contenta em parar ali. Ou seja: Está sendo esperto demais.
Portanto procura acobertar alguém. Ora!, filho. Em seguida vi que aquilo concordava
lindamente com minha impressão de que não estavas sozinho no negócio. Muito
arriscado, pensei. E só havia duas pessoas com quem podias estar de combinação. Uma
era o presidente. A outra era o caixa. Eu podia tirar a sorte cuma moeda, cara ou coroa.
Mas facilitaste a coisa, pois me disseste que era o caixa.
— C-c-como eu disse?
— Explicando que tipo inocente era. Não pode haver um homem tão ingênuo quanto
dizias que Kenneth era, sem ser também velhaco. Após concluir que era Kenneth, foi fácil
investigar suas atividades. Nesta noite, quando voltou até casa, pedi emprestados os 100
mil dólares.
Jim tornou a acender o charuto.
— Não é simples? Não é claro como água?
Não respondeu imediatamente. Não sabia se era tão simples quanto Jim pretendia ou
se subestimara injustificavelmente a capacidade de Jim. Preferiu a segunda idéia.
E então sentiu no íntimo crescer uma cólera nascida da aguda e pungente decepção
ante o súbito desmoronar dos sonhos. Queria chorar. A figura gargantuesca do detetive
parecia o escarnecer. Sua voz ficou aguda de histeria.
— Confiei em ti e me iludiste. Me fizeste uma ursada. Me traíste. Tu… tu…
— São palavras rudes. Se eu fosse tu não ficaria tão rabugento.
— Mas… mas… — Parecia a ponto de chorar — Faltas a tua palavra. Prometeste…
Jim completou, com voz arrastada. Não havia sarcasmo no tom, mas algo muito
semelhante ao pesar:
— 100 mil dólares de imunidade. Penses nisso, filho.

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Pode haver muitos mistérios com relação a Leslie Charteris,
personalidade, hábitos de trabalho e feroz e fantástica formação,
mas podemos ter certeza de que sabemos qual o escritor policial
prefere. Em suas notas autobiográficas pro Twentieth century authors
(Autores do século 20), escreveu, e o citamos fielmente: Meu
escritor favorito sou eu.
Leslie prefere a si. Mas o principal motivo não está em sua
presunção mas no fato de ter criado o mais famoso escroque fictício
de nosso tempo. Santo é um ladrão de primeira-classe, o mais
simpático robinhude da literatura contemporânea. Fanfarrão,
exuberante, audacioso, segue a magnífica tradição de AJ Raffles e
Arsênio Lupin. Saudamos a primeira aparição de Santo neste
magazine. Leslie pode gostar mais de si, mas preferimos seu alter-
ego, o brilhante bucaneiro, alegre salteador e benévolo bandido
que é Simão Templar, aliás Santo, aliás Sebastião Tombs.

O conto do dinheiro falso


Leslie Charteris

S
imão Templar disse em tom de oratória:
— O segredo do contentamento é aceitar as coisas como chegam. Assim como
o cotidiano trabalho de escritório do magnata da Cíti está pra quando assina as
supremas fusões de empresa, está o pão-com-manteiga do pirata pra suas grandes
aventuras. No fim de conta, não se pode passar a vida inteira em fuga e captura
sensacional, com pistolas atirando em todas as direções. Mas sempre existem pessoas que
nos entreguem seu dinheiro. Não é preciso as procurar. É só pôr um monóculo e assumir
adequada expressão de patetice, e vêm mansamente depositar as carteiras em nossas
mãos.
Simão apresentava essa pérola de sentenciosidade à aprovação de seu auditório
habitual. E é lamentável que nenhum dos ouvintes refutou a filosofia. Patrícia Hoim o
conhecia muito bem. E até Pedro já naquela época percorrera o caminho da ilegalidade
de Santo o tempo suficiente pra saber que tais observações inevitavelmente anunciavam
outro dos pequenos golpes aos quais se referira. Não era estrita verdade Simão precisar
pão-com-manteiga. Mas gostava também de geléia. Um mundo generoso sempre lhe
fornecera ambas as coisas em abundância.
Benito Lucek deixara Nova Iorque cum mercado em baixa e viera tentar a sorte no
velho-mundo. Possuía meia dúzia de belos trajes, tão bem ajustados que davam a
impressão de que se romperiam dos pulsos aos quadris se a tensão arterial subisse dois
graus. Tinha um sortimento de camisa de seda rósea e cor-de-malva na mala-roupeiro,
lustrosos sapatos de bico fino, um prendedor de pérola pra gravata18 e nada menos de três
anéis. A fisionomia irradiava honestidade, candura e bom-humor. E só esses dotes lhe
valiam em mercado uma boa quantia de vários algarismos em dinheiro sonante. E ainda
tinha bastante capital, sem o qual nenhum negociante do ramo começaria a trabalhar.
Era um dos últimos grandes expoentes de sua amena profissão. E embora em Nova
Iorque lhe disseram, que o terreno estava esgotado, tinha fagueira esperança de encontrar
solo virgem pruma nova colheita exitosa entre a ignorante burguesia européia. Até onde
podia saber, o campo mal fora tocado na orla oriental do Atlântico. Chegou pra o explorar.
Se instalou num confortável apartamento do terceiro andar do hotel Parque Lane,
converteu o capital a cédulas inglesas e se lançou a campo.

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No texto impresso em português uma pérola de gravata, mas só pode ser pearl tie clip, prendedor de pérola pra gravata. Nota do
digitalizador

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Nas mais populares colunas de anúncio pessoal apareceram tentadores avisos de que
aquele visto por Simão era um bom espécime: Qualquer senhora ou senhor de reduzidos
meios, que se interesse por um empreendimento que promete grandes lucros com risco
insignificante, deve escrever em estrita confidência, informando pessoas, à caixa #…
Benito sabia tudo o que se poderia saber a respeito de carta. Era um grafólogo prático
muito sagaz um psicólogo dedutivo de vasta experiência. A partir duma carta de duas
páginas superficialmente fornecendo os mais vagos esclarecimentos sobre o autor, podia
elaborar mentalmente um completo estudo psicológico, que se ajustava sem ruga à pessoa
em questão, 99 vezes em 100. E se a imagem mental que formou de certo senhor Tombs,
cuja resposta a seu anúncio estava incluída entre várias dezenas doutras, seria classificada
como uma daquelas centésimas vezes, talvez a culpa não fosse inteiramente de Benito.
Simão também era um especialista em carta, embora sua arte fosse mais criadora que
interpretativa.
Patrícia entrou numa manhã e o encontrou dedicado a outra tarefa de criação, à qual
não era menos afeiçoado, e inquiriu depois de o olhar:
— O quê fazes nessa roupa?
Simão se mirou longamente ao espelho. O traje azul-marinho era bem cuidado mas
despretensioso e tinha aparência de longo uso, como se fosse o único que tinha e fora
conservado com desesperado orgulho. Os sapatos eram velhos e vigorosamente lustrados.
As meias eram de lã cinza escuro caprichosamente cerzidas. Usava uma camisa barata de
popelina listrada e um rijo colarinho branco sem a graça salvadora duma linha elegante.
A gravata era azul-marinho, como o traje, e estava um tanto no fio. Atravessava o colete
uma antiquada corrente de relógio, de prata. Seria quase impossível imaginar algo menos
parecido com o Simão dos tempos normais, que sempre conseguia imprimir a seus trajes
de Savile row19 flamante personalidade, e cujas camisas, meias e gravatas eram a inveja
dos jovens que bebiam consigo nos poucos clubes aos quais pertencia.
— Sou um laborioso funcionário duma seguradora. Ganho 300 libras por ano, com
vagas perspectivas de ser aumentado a 350 daqui a 15 anos. Tenho uma mulher anêmica,
sete filhos e uma casa com meias-paredes em Streatham. Simão estava passando
reflexivamente os dedos no rosto, o examinando ao espelho.
— Acho um pouco bonito demais pro papel. Mas logo arrumaremos isso.
Começou a trabalhar no rosto com os rápidos e decididos retoques nos quais era
extraordinário mestre. As sobrancelhas, escovadas em direção ao nariz, ficaram grisalhas
e hirsutas. O cabelo também ficou grisalho e foi colado ao crânio com tanta habilidade
que qualquer barbeiro diria que estava ficando um pouco ralo no alto da cabeça. Sob os
movimentos ágeis dos dedos, sombras sutis apareceram nas frontes, embaixo dos olhos e
ao redor do queixo. Tão tênues que mesmo a 1m de distância a artificialidade não seria
descoberta mas colocada tão engenhosamente que parecia modificar toda a forma e
expressão facial. E conversava enquanto trabalhava.
— Se tu, Patinha, já leste uma estória onde um homem se disfarça como alguma outra
pessoa tão perfeitamente que até os amigos, secretárias e criados da outra pessoa se
deixam iludir, saibas que o autor está te enganando. No palco isso se conseguiria até certo
ponto. Mas na vida real, onde o disfarce será examinado à luz do dia e a pequena distância,
é impossível.
Santo acrescentou, sem corar:

19
Savile row: A elegância masculina tem nome, endereço e data de nascimento. Os mandamentos da moda masculina nasceram numa
pequena rua no bairro de Mayfair, em Londres. É uma das ruas mais tradicionais de Londres. Se arrisca a exagerar dizer que a moda
masculina como conhecemos surgiu nessa viela. Pode até não ter nascido mas é o centro nervoso do que entendemos como elegância
em moda masculina. Desde o século 18, nos ateliês instalados naquelas calçadas, alfaiates passam o dia trabalhando obsessivamente
pros ternos terem corte perfeito. http://www.louie.com.br/loja/blog/savile-row-a-elegancia-masculina-tem-nome-endereco-e-data-de-
nascimento.html Nota do digitalizador

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— Sou o maior ator característico que nunca entrou em palco e sei que isso é verdade.
Mas quando se trata de criar uma nova personagem inventada por nós, de maneira que
não sejamos reconhecidos depois, então se pode fazer algo.
Se virou repentinamente, e ela susteve a respiração. Ficara perfeito. Os ombros
estavam arredondados e curvados. A cabeça se inclinava um pouco a diante, como fixada
nessa posição por anos passados diante duma escrivaninha. E a fitou com a expressão
estólida e impassível apropriada ao papel, o dum homem de meia-idade, subnutrido,
sedentário, sem esperança nem ambição, constantemente preocupado, com a capacidade
de prazer esmagada pela taxação desenfreada que se encarrega de assegurar aos paladinos
de Whitehall as tardes de golfe. Um homem resignado à sombria falta de propósito de sua
vida, economizando e restringindo despesa durante 50 semanas no ano pra se deixar
roubar numa desinteressante quinzena de agosto na beira-mar. Um homem que discutia
solenemente os malabarismos dos políticos como se tivessem verdadeira importância,
acreditando que os bovinos discursos deles poderiam fazer algo pra aliviar o fardo,
mantendo, com o rígido estoicismo e o de milhões doutros homens da mesma espécie, a
estabilidade dum país que se esboroava.
— Estou bem?
Sob o ponto de vista de Benito dificilmente estaria melhor. Os olhos penetrantes de
Benito absorveram toda a atmosfera num rápido olhar avaliador, que abrangeu todos os
pormenores, desde o cabelo grisalho e um pouco ralo no alto, até os sapatos
vigorosamente engraxados.
— Muito prazer em te conhecer, senhor Tombs. Entres e tomes um coquetel. Espero
que aceites um.
Conduziu o convidado ao suntuoso saguão. Tombs se sentou com cuidado na ponta
duma cadeira. É impossível dar àquele homem criado por Santo outro nome além de
Tombs. O Simão conhecido por Patrícia nunca existiria dentro daquela figura estóica de
ombros curvados.
— Talvez, um copo de xerez.
Benito pediu amontilado,20 sabendo que o único xerez que Tombs já provara fora
comprado no armazém mais próximo de casa. Mas Benito era perito em deixar as pessoas
à vontade. Simão que se mantinha invisível atrás da cadeira de Tombs não pôde deixar
de admirar sua técnica. O anfitrião tagarelou com lhaneza irresistível que em pouco tempo
levou Tombs a se inclinar a trás na cadeira, rindo com ele e pedindo outra rodada de xerez
com a sensação de ter finalmente encontrado um homem próspero que o compreendia e
apreciava. Quando foram almoçar, Benito reagiu com riso contagioso a uma avinhada
pilhéria sobre a bolsa, que Tombs desenterrara do fundo da memória.
— Salmão defumado?, senhor Tombs, ou um pouco de caviar? Depois comeríamos
trufa en cocotte rossini21 guarnecida com creme, fuagrá e trufa. E pombo assado com
cogumelo e geléia de groselha vermelha. Prefiro uma refeição leve no meio-dia, pra não
me faz passar a tarde inteira sonolento, e uma garrafa de Liebfraumilch22 fora do gelo, pra
acompanhar?

20
Amontilado: Vinho generoso próprio do Marco de Xerez e de Montilla-Moriles, na Andaluzia, Espanha. Pelas características
enológicas se situa entre o fino e o oloroso. https://pt.wikipedia.org/wiki/Amontillado Nota do digitalizador
21
Trufa en cocotte rossini (Trufa em caçarola à moda rossini). Há vários pratos à rossini: Ovos, trufa, bife… Filé minhão à rossini:
Prato criado em homenagem ao conhecido compositor de ópera Gioacchino Rossini (1792–1868) que viveu em Paris até 1837, quando
por motivo de saúde foi viver em Nápoles. Freqüentador assíduo do café Anglais (Inglês), em Paris, onde preferia o prato que levou
seu nome. Composto por um turnedo (prato de bife) de filé minhão, sobre um crutão (fatia de pão torrada e amanteigada), cuma fatia
de fuagrá (fígado de ganso) frito em manteiga com fatias de trufa, deglaçado com vinho Madeira. Deglaçar é técnica culinária de usar
um líquido pra retirar alimento preso no fundo da panela, normalmente após fritar ou selar carne ou outro alimento) se usa bebida
alcoólica pra remover o resíduo preso no fundo da panela http://www.posto7.com.br/receitafiletrossini.htm Nota do digitalizador
22
Liebfraumilch (leite da mulher amada): Vinho branco semidoce de origem alemã produzido nas regiões de Hesse-Renânia, Mosela-
Saar-Ruwer, Pfalz, Rheingau, Hesse-Renânia, Nahe, Francônia, Nahe e Ahr. https://pt.wikipedia.org/wiki/Liebfraumilch Nota do
digitalizador

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Percorria o cardápio e a lista de vinho com insinuante perícia que parecia fazer de
Tombs um parceiro em pé de igualdade no exercício da virtude gastronômica. E Tombs,
cuja imaginação raramente voava acima dum rosbife com pudim de Iorquexer e uma
garrafa de borgonha australiano,23 ficou ainda mais comunicativo e recordou outra
anedota que provocara estrondosa gargalhada na rua Buraco-da-agulha24 quando tinha 20
anos.
Benito fez tão bem o trabalho que o sórdido aspecto mercantil da entrevista não teve
ensejo de se apresentar durante a refeição. Mas conseguiu descobrir tudo o que queria
saber sobre a vida particular e as opiniões do convidado. Se liquefazendo
irremediavelmente ao calor cordial da hospitalidade de Benito, Tombs ficou quase
humano. E Benito o estimulava com tranqüila maestria.
— Sempre achei que a seguradoria deve ser uma profissão interessante, senhor Tombs.
Nela é preciso ter olho-vivo. Decerto sempre tendes cliente que espera tirar mais do que
gastou!
Tombs, que nunca achou interessante a profissão e que nunca descobriu tentativa de
fraude, a menos que outro departamento da companhia chamasse a atenção a ela, sorriu
prudentemente.
— Essa espécie de moralidade mista sempre me interessou. — Benito disse, como se
a idéia ocorresse naquele momento — Um homem incapaz de roubar 6 centavos doutro
homem que encontra na rua não tem dúvida em roubar meias-coroas do governo fazendo
corte na declaração-de-renda pra pagar imposto ou contrabandear uma garrafa de
aguardente ao voltar da França. Se procuras um sócio pra tua empresa, nunca sonharias
em atribuir valor exagerado ao ativo. Mas se tua casa for assaltada não terás escrúpulo
em superavaliar os objetos roubados quando reclamar o pagamento do seguro
correspondente.
Tombs encolheu os ombros.
— Acho que eu o faria, pois companhias poderosas são considerados presa legítima.
— Provavelmente há tendência à ilegalidade no melhor dos homens. Muitas vezes
pensei o quê faria em determinada circunstância. Suponhamos, por exemplo, que ao
voltares até casa em táxi numa noite encontrasses no assento uma carteira com 1000 libras
esterlinas em pequenas notas, fáceis de trocar, sem o nome do dono na carteira. Alguém
não seria tentado a ficar com a carteira?
Tombs girou um garfo na mão, hesitando apenas um instante. Mas Simão estava atrás
da cadeira e sabia ser aquela a pergunta da qual dependia o futuro de Benito, o ponto que
fora introduzido tão hábil e despreocupadamente e que determinaria de modo decisivo se
Tombs era o homem que Benito queria encontrar. Mas não havia sinal de ansiedade ou
atenção concentrada no rosto franco de Benito, quem verteu o resto do Liebfraumilch ao
copo de Tombs, quem ergueu os olhos.
— Acho que eu o faria. Parece desonestidade, mas eu procuraria me colocar no lugar
da pessoa exposta à tentação, em vez de teorizar sobre o caso. Posto diante de 1000 libras,
e precisando de dinheiro pra levar minha mulher a viajar, eu poderia facilmente… hum…
sucumbir. Não que eu esteja insinuando…
— Meu caro amigo, não pretendo te censurar. — Benito disse cordialmente — Eu
também faria o mesmo. Refletiria que um homem que anda com 1000 libras na carteira

23
A principal região produtora australiana é famosa pelas castas típicas da Borgonha, França. http://revistaadega.uol.com.br/artigo/yarra-valley-uma-nova-terra-para-
Nota do digitalizador
chardonnay-e-pinot-noir_1662.html#ixzz4r0ItmRjt
24
Rua Buraco-da-agulha (Threadneedle street) é uma rua da cidade de Londres, entre a Portal do bispo, na zona nordeste e a
concentração de banco na sudoeste. É uma das nove ruas que convergem aos bancos. A rua é famosa por ser o local do banco da
Inglaterra, conhecido como a velha senhora da Buraco-da-Agulha e ponto-de-referência desde 1734. A bolsa de Londres também
ficou ali até 2004, quando se mudou à vizinha praça Pai-nosso. A casa-de-câmbio Báltico foi fundada na Virgínia e a cafeteria Báltico
na rua Buraco-da-Agulha em 1744. Agora em Santa Maria Axe. https://en.wikipedia.org/wiki/Threadneedle_Street Nota do
digitalizador

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devia ter muito mais no banco. É a velha história da presa legítima. Podemos ser
governados por uma porção de leis, mas nossa consciência ainda é muito primitiva
quando não temos medo de ser apanhados.
Então um silêncio durante o qual Tombs terminou o último anjo-a-cavalo,25 limpou
furtivamente o prato com o último pedaço de torrada e aceitou um cigarro da cigarreira
de platina de Benito. A pausa foi a primeira oportunidade pra recordar que se encontrara
com o simpático Benito pruma proposta de negócio, tal qual Benito queria que
acontecesse. Quando um garção se aproximou com a conta, Tombs sugeriu:
— Quanto a… hum… a teu anúncio.
Benito assinou na conta e empurrou a cadeira a trás.
— Venhas a minha sala-de-estar, pra conversar sobre o assunto.
Subiram no elevador, com Benito exalando despreocupadamente baforada de fumaça
de cigarro turco, e seguiram num corredor coberto por luxuoso tapete. Benito tinha
instintivo senso de valor dramático. Sem dizer palavra e sem dar a impressão de ser
intencionalmente reservado, abriu a porta do apartamento e fez Tombs entrar.
A sala-de-estar era pequena mas confortavelmente mobiliada. Um grande pacote de
papel pardo, descuidadamente aberto, cobria o centro da mesa. Numa das cadeiras um
volume semelhante. Benito apanhou uma braçada do conteúdo, a despejou no assoalho,
num canto e perguntou, displicente:
— Sabes o quê são estas coisas?
Tirou um punhado do que restava na cadeira e o pôs diante dos olhos de Tombs. Era
de cor geralmente verde. Enquanto Tombs olhava, pestanejando, palavras e desenhos se
formavam em sua frente, e piscou ainda mais os olhos.
— Notas de 1 libra. — Benito disse, e apontou ao monte que despejara num canto —
Há mais aí. — Alisou o papel pardo do embrulho negligentemente aberto na mesa,
revelando pilhas de notas dispostas em grossos e uniformes maços — Uma quantidade
ilimitada. Te sirvas.
Os olhos azuis de Tombs se arregalavam cada vez mais, com as pálpebras piscando
rapidamente como pra dissipar uma alucinação.
— São mesmo notas de 1 libra todas elas?
— Todinhas.
— Tuas?
— Parece que sim. Ao menos fui quem as fez.
— Deve haver milhares, aí.
Benito se atirou na cadeira de braços que acabara de desimpedir.
— Sou um dos homens mais ricos do mundo, senhor Tombs. Acho que sou o mais rico
porque posso fazer dinheiro com a velocidade com que dou volta a uma manivela. Quero
dizer exatamente o que disse há pouco. Fui eu quem fez essas notas!
Tombs tocou a pilha de nota com as pontas dos dedos, como esperando que o
mordessem. Os olhos estavam mais esbugalhados que nunca. Sussurrou:
— Decerto não queres dizer que são falsas!
— Não. Leves essas notas ao banco mais próximo, digas ao caixa que tem algumas
dúvidas sobre elas e peças pra examinar. As leves ao banco da Inglaterra. Não há nota
falsa em todo esse monte, mas fui eu quem as fez! Te sentes, pra eu contar.

25
Anjo-a-cavalo era o aperitivo favorito dos jantares vitorianos britânicos. Parece que o nome veio por causa do toucinho
enrolado parecer asa de anjo. A popularidade desse delicioso aperitivo voou através da lagoa cerca da virada ao século 20 e é popular
em casamento e outras celebrações no nordeste de Eua. http://www.whats4eats.com/appetizers/angels-on-horseback-recipe Nota do
digitalizador

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Tombs se sentou, rígido. Os olhos voltavam continuamente aos montes de riqueza
depositados na mesa e no assoalho, como se a cada olhar ficaria mais aliviado que
surpreso se as visse desaparecer.
— É assim, senhor Tombs. Confidencio porque te conheço há uma ou duas horas e
tive tempo de formar opinião sobre ti. Gosto de ti. Estas notas foram impressas cuma
matriz-de-prova roubada ao banco da Inglaterra por um homem que trabalhava lá, do
departamento de gravação. Quando faziam as matrizes, fizeram uma além do que
precisavam. A entregaram pra destruir mas não a destruiu. Era o homem sobre quem
falávamos, o homem do táxi. Tinha uma autêntica matriz pra imprimir nota de 1 libra, e
a guardaria pra si se o quisesse. Só precisaria fabricar uma imitação que ninguém
examinaria atentamente. Com rápido olhar não se pode distinguir muito num clichê, e
depois cortar dois sulcos nela prà cancelar. Então a falsa matriz seria encerrada no cofre-
forte e provavelmente nunca tornariam à examinar, e ficaria com a autêntica. Nem sabia
o quê faria com a matriz quando a tivesse, mas a guardou. Depois ficou com medo de ser
descoberto, e fugiu. Foi a Nova Iorque, donde vim. Se hospedou na casa onde eu morava,
em Bruclem. O conheci um pouco, embora fosse sempre muito quieto e parecesse ter
preocupação o atormentando. Não perguntei o quê nem me importei com aquilo. Então
teve pneumonia. Ninguém mais prestara atenção a ele, de modo que me senti levado a o
ajudar. Fiz o que pude pelo homem. Não foi muito, mas soube apreciar meu auxílio.
Paguei parte do aluguel que devia. O médico concluiu que o homem estava quase morto
de inanição. Desembarcara em Nova Iorque apenas com algumas libras, e, acabado o
dinheiro, se alimentara com o resto que lhe davam nas casas de pasto. Estava morrendo
de fome com 1 milhão de libras em seu poder Mas eu não sabia disso então. Foi piorando.
E então, numa noite, foi preciso dar oxigênio, mas o médico disse que de qualquer modo
o infeliz não chegaria a ver a manhã seguinte. As privações o deixaram muito fraco pra
se restabelecer. Voltou a si pouco antes do fim, e eu estava ali. Me olhou e disse:
Obrigado, Benito. E então me contou sua história, e o que fizera. Guardes a matriz.
Pode ser que te sirva. Morreu na manhã. A dona da casa pediu pra eu arrumar tudo
logo e desocupar o quarto, pois chegaria outro hóspede. Levei as coisas dele a meu quarto.
Não eram muitas, mas encontrei a matriz. Talvez imagines o quê aquilo significava pra
mim, depois que refleti sobre o caso. Eu não passava dum ajudante de garagem, ganhando
alguns dólares por semana. Era outra vez a história do homem do táxi. Mas eu
economizara alguns dólares. Precisava encontrar o tipo de papel adequado e imprimir as
notas. Eu nada sabia sobre o lado técnico da coisa. Custaria dinheiro. Mas se eu fizesse
tudo direito, o legado daquele pobre homem me tornaria milionário. Morrera de fome
porque tivera medo de experimentar. Seria eu capaz de o fazer?
Benito fechou momentaneamente os olhos como se revivendo a luta contra a
consciência.
— Já sabes qual foi minha decisão. Foi preciso tempo e paciência, mas era a maneira
mais rápida que eu conhecia de fazer 1 milhão. Foi há seis anos. Não sei quanto dinheiro
tenho no banco, mas sei que é mais do que poderei gastar. E foi assim nos três últimos
anos. Então comecei a pensar nas outras pessoas que precisavam de dinheiro, e tentei
tranqüilizar a consciência, as ajudando. Então eu operava em Estados-Unidos, é claro,
trocando esse dinheiro inglês, em pequenos maços, nos bancos de todo o país. E comecei
a o distribuir em instituições de caridade, pessoas indigentes, tudo o que me ocorria. Isso
estava muito bem, mas um dia comecei a pensar: Aquele homem que me deu a matriz era
inglês. Uma parte do dinheiro devia ser dada a pessoas que precisassem na Inglaterra. Foi
por isso que vim. Já contei que o homem deixara a mulher aqui ao fugir? Levei dois meses
prà encontrar, empregando os melhores agentes. Mas finalmente a descobri empregada
numa casa-de-chá. Está com a independência assegurada ao resto da vida, embora pense

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que um tio inexistente morreu e deixou o dinheiro. Mas se eu encontrar outro homem cuja
esposa precise de dinheiro e ele não possa dar, quero o auxiliar também.
Tombs engoliu em seco. Entre outros talentos, Benito era um mestre da elocução. A
narrativa era feita de maneira a dar nó na garganta dum ouvinte impressionável.
— Queres dinheiro?, senhor Tombs.
Tombs tossiu.
— Eu… ainda não me refiz da surpresa que me causou tua história.
Pegou um punhado de notas, olhou com atenção, as enrolou nos dedos e tornou às
largar um tanto abruptamente, experimentalmente, como se quisesse descobrir se,
afastando a tentação, sentiria um calor de virtude triunfante que compensasse a perda
material. Parece que a experiência não foi muito satisfatória, pois a boca se franziu em
anelante expressão.
— Já disseste a mim a teu respeito e a respeito de tua senhora, que tem saúde delicada
e precisaria fazer uma longa viagem marítima. Suponho também haver dificuldade com
a educação de teus filhos, e que não os mencionara. Pois agora podes remediar tudo isso.
Podes adquirir quantas dessas notas quiseres. 20 libras por 100 é o preço que faço ti. É
exatamente o que pago no papel especial e na impressão das notas. Claro que o homem
que arranjei pra imprimir ganha boa comissão. 4 xelins cada é o preço de custo, e podes
te tornar milionário se quiseres.
Tombs engoliu audivelmente.
— Est… tás brincando comigo? — Tartamudeou pateticamente.
— Certamente não. Faço com prazer.
Benito se levantou e pôs afetuosamente a mão no ombro de Tombs.
— Sei que tudo isto deve ter sido um choque. Se levas tempo pra te acostumar à idéia.
Por quê não vais até casa pra refletir? Venhas almoçar novamente comigo amanhã, e
tragas o dinheiro pràs pagar. Telefones às 7h e me avises se devo o esperar.
Pegou algumas notas e as enfiou no bolso de senhor Tombs.
— Leves algumas amostras e as experimentes num banco, se ainda não acreditas.
Tombs inclinou a cabeça, pestanejando e observou com sorriso débil:
— Agora sou o homem do táxi. Quando se encontra realmente a carteira. . .
— Quem sai perdendo? — Benito perguntou, com retórica suavemente persuasiva —
O banco da Inglaterra, em última análise. Nunca estudei economia, mas creio que terão
de pagar o dinheiro. Contudo, ficarão em pior situação por causa dos poucos milhares de
libras que tirares? Ora! Isso pra si não é mais que um tostão pra ti. Penses bem.
— É o que farei. — Disse Tombs, com derradeiro e demorado olhar à mesa.
— Há algo mais. Não digas algo do que contei a ti. Nem a tua senhora. Espero que
trates o caso tão confidencialmente quanto trataria negócio de tua seguradora. Entendeste
o motivo. Não é? Uma história como a que contei se espalharia como incêndio na
campina. Chegando ao banco da Inglaterra não renderia mais dinheiro. Mudariam o
projeto das notas e recolheriam as antigas o mais depressa possível.
— Entendi, senhor Lucek.
Entendeu perfeitamente. Tão bem que a extasiada história que contou a Patrícia Hoim,
ao voltar até casa, era quase incoerente. A contou enquanto removia a caracterização e
trocava de roupa. Quando terminou, estava imaculado e airoso, como ela sempre o vira.
Enfim, alisou as notas que Benito lhe dera na despedida e as guardou cuidadosamente na
carteira. Olhou o relógio.

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— Assistamos uma série, meu bem. Depois compraremos um pote26 de caviar e o
regaremos cum galão de Cordon rouge.27 Mano Benjamim pagará!
— Mas tens certeza que essas notas são boas?
Santo riu.
— Minha querida, foram todas impressas pelo banco da Inglaterra. O conto do dinheiro
falso não passa disso. Muitas vezes pensei por quê ainda não o terão procurado passar
neste Gott in himmel!28
Simão pulou repentinamente da cadeira, berrando. A sobressaltada moça o fitou.
— O quê foi?!
— Apenas uma idéia. Às vezes me assaltam assim, no fundilho da calça. Esta é um
verdadeiro primor.
A arrastou estrepitosamente à prometida comemoração, sem dizer quê idéia o fizera
pular como um gamo novo, praguejando em língua estrangeira. Mas às 7h em ponto
encontrou tempo pra telefonar ao hotel Parque Lane.
— Farei o que o homem do táxi faria, senhor Lucek.
— Senhor Tombs, isto é uma esplêndida notícia. Esperarei às 13h. Quanto levarás?
— Acho que só … hum… apurarei 300 libras. Isso dá pra comprar 1500. Não é?
— Darei logo 2000, senhor Tombs. Terei tudo pronto quando chegares.
Tombs se apresentou no hotel 12:55h. Embora usasse o mesmo traje da véspera, vinha
com ar festivo, ao qual contribuíam com colorido um par de luvas de camurça branca,
novas e um cravo encarnado na lapela.
— Entreguei meu pedido de demissão no escritório hoje na manhã. E espero nunca
mais tornar a ver aquela casa.
Benito o felicitou mas pediu desculpa.
— Acho que teremos de adiar nosso almoço. Investiguei o caso duma senhora que
também respondeu a meu anúncio, uma pobre e idosa viúva de Derbixer. O marido a
abandonou há 20 anos. E o único filho, que a sustentava desde então, morreu ontem num
desastre de automóvel. Parece que ela precisa da pronta intervenção duma fada-madrinha.
Irei agora mesmo a Derbixer, pra ver o quê se pode fazer.
Tombs enxugou uma perfunctória lágrima e acompanhou Benito ao apartamento. Um
par de valises usadas e uma mala-roupeiro, do tamanho dum casebre de arrabalde,
estavam prontas, empilhadas e endereçadas, confirmando a intenção de Benito. Apenas
um dos pacotes de dinheiro estava visível, negligentemente empurrado a um canto da
mesa.
— Trouxeste o dinheiro?, senhor Tombs.
Tombs puxou a desbeiçada carteira e tirou um maço de notas novas de 5 libras, com
mãos ligeiramente trêmulas. Benito pegou o dinheiro, o olhou de relance e o largou em
cima da mesa com a indiferença dum milionário. Indicou a Tombs uma poltrona que
ficava de costas à janela e se sentou numa cadeira no lado oposto da mesa.
— 2000 notas de 1 libra é muita coisa pra pôr no bolso. Farei um pacote pra ti.
Sob o olhar guloso de Tombs, tirou os quatro maços superiores da pilha e os atirou,
um a um, aos joelhos do visitante. Tombs os agarrou e examinou sofregamente, correndo

26
No texto impresso em português, um balde de caviar, a bucket of caviar, mas bucket também pode ser pote ou pacote,
não necessariamente balde do tamanho do de limpeza. Nota do digitalizador

27
Cordon rouge. Produzida na França, é o champanhe oficial da Fórmula 1 e uma das mais conceituadas no mundo.
Champanhe mumm Cordon rouge brut surpreende tanto pelo buquê potente, quanto pelo paladar redondo e aveludado.
http://www.superadega.com.br/champanhe-mumm-cordon-rouge-brut-750ml/p Nota do digitalizador
28
Gott in Himmel. A expressão em alemão, equivalente a Meu deus-do-céu!, no contexto, nesta terra de meu-deus. Nota do
digitalizador

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o polegar nas pontas dos maços. As notas de libra giraram diante dos olhos como as
imagens dum cinema de brinquedo.
— Podes contar, se quiseres. Deve haver 500 em cada maço.
Mas Tombs sacudiu a cabeça.
— Aceito tua palavra, senhor Lucek. Estou vendo que são todas notas de 1 libra. Deve
haver uma porção aqui.
Benito sorriu e estendeu a mão com o ar dum homem pragmático, Tombs entregou
novamente os maços de nota, e Benito tornou a se sentar, os reunindo em forma de cubo
sobre uma pilha de papel pardo. Enrolou o papel em torno dos maços e dobrou as
extremidades livres com eficiência e rapidez que honrariam um caixeiro de loja. E os
olhos cobiçosos de Tombs observavam cada movimento seu com a atenção duma
assistência muda mas séria que procura descobrir o truque dum prestidigitador. Tombs
perguntou morbidamente:
— Não achas que seria uma horrível tragédia pruma pobre viúva empregar toda sua
economia nessas notas e depois descobrir que foi enganada?
Os olhos escuros de Benito se cravaram sobressaltados no rosto do visitante.
— Hem? O quê disseste?
Mas a fisionomia cansada de Tombs tinha a expressão inocente dum carneiro.
— Algo sobre o qual pensei, senhor Lucek.
Benito sorriu, mostrando expansivamente os dentes de pérola, e continuou fazendo o
pacote. O olhar de Tombs continuou concentrado nele com efeito quase mesmérico mas
Benito não se perturbou. Passou quase 1 hora naquela manhã, fazendo preparativo e os
provando. Os cordões da janela atrás de Tombs foram cortados, deixando apenas um fio.
O peso do caixilho descansava numa pequena cavilha de aço introduzida na armação. Da
cavilha de aço, um cordão escuro, fino mas muito forte, descia até o assoalho, correndo
em torno dum prego cravado na base do rodapé, e desaparecia embaixo do tapete.
Deslizava em torno doutro prego cravado no assoalho embaixo da mesa e, passando num
buraco do tapete, subia ao longo dum pé a mesa, se prendendo ao puxador da gaveta.
Benito terminou de fazer os nós no pacote, e procurou algo pra cortar as pontas do
barbante.
— Eis!, senhor Tombes.
Então, num dos movimentos que fazia, pegou a ponta do cordão preso à gaveta e o
puxou. A janela caiu com estrondo.
Tombs não virou a cabeça.
Era a coisa mais espantosa que já acontecera na vida de Benito. Era sobrenatural,
incrível. Era um fenômeno tão extraordinário que a boca se abriu involuntariamente,
enquanto uma bola de incrédula estupefação crescia na boca do estômago e comprimia
os pulmões. O assaltou a sensação de inverossímil desfeita que teria um veterano
passageiro de ônibus o qual, ao se preparar pra tomar um veículo em movimento, o visse
fugir subindo verticalmente no ar e desaparecendo nos telhados das casas. Era
simplesmente uma dessas coisas que não podem acontecer.
E, naquela fantástica oportunidade, acontecera. Na gaveta entreaberta à qual se
encostava o ventre de Benito, logo abaixo do nível da mesa e fora de alcance do olhar
fixo de Tombs, havia outro pacote de papel pardo, igual ao que Benito acabara de
preparar. Isso é, exteriormente. Dentro havia uma diferença, pois, enquanto o volume que
Benito fizera diante dos olhos de Tombs continha indubitavelmente 2000 legítimas notas
de 1 libra. No interior do segundo pacote havia apenas uma coleção de velhos jornais e
revistas, cortados exatamente do mesmo tamanho. E nunca em toda a carreira de Benito,
depois que o peixe mordera a isca, os dois pacotes deixaram de ser oportunamente
permutados. Era pra isso que fora preparada a providencial queda do caixilho da janela,

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e ali estava o simples segredo do conto do dinheiro falso. A vítima, quando chegasse até
casa e abrisse o pacote, descobrindo que fora lograda, não podia se queixar à polícia sem
confessar que estivera pronta a ser cúmplice duma fraude. E, 49 vezes em 50, achava
melhor sofrer o prejuízo em silêncio. Elementar, mas eficiente. Mas todo o plano podia
ser transtornado pela incrível apatia duma vítima que deixava de reagir ao estímulo de
um ruído súbito e estrondoso como qualquer pessoa normal.
— Pa… parece que a janela caiu.
Benito observou roucamente. Se sentia como um herói de melodrama que dera um tiro
ao vilão ao chegar o fim do terceiro ato, e o visse se recusar, sorrindo, a cair morto de
acordo com as indicações da peça ensaiada.
— Sim. Ouvi. — Tombs concordou cordialmente.
— O… o cordão deve ter se partido.
— Provavelmente foi o que aconteceu.
— Uma coisa esquisita, tão… tão de repente. Não é?
— Muito esquisita. — Tombs anuiu, mantendo cortesmente a palestra.
Benito começou a suar. O pacote substituto estava a 15cm de sua mão. Se aqueles
olhos firmes e fixos se desviassem apenas 2 segundos faria a permuta com a mesma
facilidade com que desabotoava a camisa. Mas não teve essa oportunidade. Era um
impasse ao qual nunca sonhara. E a necessidade de inventar rapidamente um estratagema,
pra enfrentar a situação, o levava à beira do pânico. Perguntou com suarenta cordialidade:
— Tens um canivete? Algo pra cortar a ponta deste cordão.
— A arrebentarei.
Se levantou e se aproximou à mesa. Benito recuou o corpo como um cavalo assustado.
— Não te incomodes, por favor, senhor Tombs. Eu… eu…
— Não é incômodo.
Benito agarrou o pacote e o deixou cair. Era um excelente estrategista e recitador
dramático mas não homem de violência. Em caso contrário talvez fosse tentado a agir
doutra maneira. Aquele foi o único artifício que lhe ocorreu pra salvar a situação.
Empurrou a cadeira a trás e se abaixou, procurando, a apalpadela, cuma mão o pacote
caído e com a outra o pacote substituto. Ao levantar o pacote caído embaixo da mesa,
talvez pudesse trocar.
A mão esquerda encontrou o pacote no assoalho. A direita continuou procurando aqui
e ali dentro da gaveta, no começo com discrição, depois freneticamente mergulhou na
gaveta. As unhas arranharam a madeira. Percebeu que não podia ficar indefinidamente
naquela posição. Então começou a se endireitar lentamente, cum frio junto ao coração.
Quando os olhos chegaram à altura da gaveta, viu que o pacote falso fora
inexplicavelmente empurrado ao fundo. Pela muita utilidade que tinha naquele lugar,
tanto fazia estar ali ou no meio do deserto de Arizona.
Tombs sorria benignamente.
— Na verdade é muito fácil.
Tirou o pacote da mão inerte de Benito, o colocou em cima da mesa, enrolou a ponta
do barbante em torno do dedo, e deu um puxão. O barbante arrebentou.
— Um truquinho meu.
Agarrou o pacote e estendeu a mão.
— Senhor Lucek, quero que saibas como estou grato. Não retardarei mais tua visita
à… hum… à viúva. Adeus, senhor Lucek.
Apertou efusivamente os dedos flácidos de Benito e se afastou em direção à porta.
Havia algo quase vivaz no andar, uma cintilação nos olhos azuis que certamente não
existira antes, e no sorriso uma seráfica benevolência deixou Benito em brasa. Aquele

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sorriso não era de Tombs, funcionário da seguradora. Benito exclamou com respiração
convulsiva:
— Ei! Um momento!
Mas a porta se fechou. Benito se ergueu cum salto, ofegante.
— Ei! Esperes!
Abriu a porta de repelão e topou com a querubínica e rosada cara de lua cheia dum
cavalheiro muito alto e robusto, de superabundante casacão e chapéu-coco, no limiar. O
corpulento cavalheiro disse, com ar grave:
— Bom dia, senhor Lucek. Posso entrar?
Dando por concedida a permissão, entrou à sala.
O pacote em cima da mesa atraiu sua atenção, pegou dois maços da pilha e os
examinou. Apenas as notas de cima de cada maço eram legítimas notas de 1 libra, como
todas as dos quatro maços que Tombs levara. O resto se compunha de folhas de papel
cortadas do mesmo tamanho.
— Muito interessante!
— Quem, diabos!, és?
O rosto redondo e rosado se virou com súbita autoridade.
— Sou o inspetor-chefe Teal, da Scotland Yard. Fui informado que tens em teu poder
certo número de notas falsas.
Benito tornou a respirar, hesitante.
— Absurdo!, senhor Teal. Não encontrarás dinheiro falso aqui.
Então o olhar querubínico do detetive pousou no maço de notas de 5 libras que Tombs
deixara em pagamento. As agarrou e examinou cuidadosamente uma a uma.
— Hum… Não muito boas falsificações.
E chamou o sargento, esperando no corredor.

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É um genuíno prazer apresentar outro conto de James M Cain,
um de nossos favoritos escritores rijos. Cain intitulou o conto Pastoral.
De acordo com a definição do dicionário, pastoral é uma cantata
lírica de sentimento e simplicidade idílicos. Notar bem essas
palavras, pois é nosso dever advertir: Toda semelhança entre o
conto de Cain e o verdadeiro significado de pastoral é pura
caincidência!29

Pastoral
Pastorale, 1928
James M Cain

P arece que Burbie será enforcado. Se for, só poderá culpar a si, quem sempre
pensou ser tão esperto.
Saiu da cidade com 16 anos. Fugiu num circo itinerante, o Lynne leste, acho
que era, e passou dez anos fora. Quando voltou pensava que sabia muito. Tem desses
olhos azuis aguados que parecem saltar da cara. Matava o tempo escutando a conversa
dos rapazes, sentado no salão de bilhar, na barbearia ou noutros lugares onde freqüentava,
e depois piscando o olho a nós como se fizessem papel de bobo ou algo assim e ninguém
mais percebesse.
Mas quando se procurava descobrir o que tinha na cabeça, não se achava muita coisa.
Claro que sempre tinha trabalho, pintando parede ou ajudando em casa nova, e assim a
diante, mas o que gostava mesmo de fazer era jogar beisebol no time do colégio. Brigaram
feio por causa disso, porque era tão velho que ninguém acreditava que estivesse no
colégio e os outros times sempre protestavam.30 Por isso não pôde jogar mais. Outra coisa
da qual gostava era cantar em festa e reunião. Acho que gostava mais disso que doutra
coisa. Porque dizia que estivera no palco a maior parte do tempo em que andou fora. Pode
ser verdade, pois era bom mesmo, principalmente quando se vestia como caipira do tempo
antigo e recitava versos decorados.
Quando voltou à cidade viu Lida. Parecia inevitável, pois Lida era mais ou menos a
mesma coisa como mulher que Burbie como homem. Ela trabalhava antigamente numa
loja, vendendo pano às mulheres e fazendo chapéu nas horas vagas. Mas só ficava na
seção de fazenda quando não tinha outro jeito. Geralmente ia aonde os rapazes estavam
tomando coca-cola, sempre sirigaita, perguntando se gostavam de coca-cola com
amônia31 ou com limão, e se podia tomar um gole do copo deles. Mas no que ela pensava
era a roupa que vestia e se alguém sugeriria encontro pro sábado na noite. Era roupa bem
espalhafatosa feita por ela. Ouvi alguns dizendo que não era difícil marcar encontro.
Quem comparecia ao encontro quase nunca saía desapontado. Não sei por quê Lida se
casou com aquele velho. Decerto se cansou de trabalhar na loja e viu a enorme granja
onde ele morava, a cerca de 3km da cidade.
Quando Burbie voltou ela se casara havia cerca dum ano e estava insatisfeita.32 Então
começaram a se encontrar no pomar do fundo da casa do velho, pois o marido se deitava
logo depois de jantar. Então escapulia, pra se encontrar com Burbie. Pensava que ninguém
sabia. Mas todos sabiam, porque Burbie, depois de voltar à cidade cerca das 22h, entrava

29
Por causa de problemas na tradução recorri ao texto original em inglês, pra restaurar vários pontos inconsistentes.
Nota do digitalizador
https://books.google.com.br/books?id=6d6pnxkUCUYC&pg=PA17&lpg=PA17&dq=james+cain+pastorale+east+lynne&source=bl&ots=wr5uIBF9iJ&sig=RjJmkn6-wSL_sFlmLSveFlhEU8c&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwiJpb_09vTVAhXICpAKHT9fDDkQ6AEIKjAA#v=onepage&q=james%20cain%20pastorale%20east%20lynne&f=false

30
e os outros times sempre protestavam. No texto impresso em português e os outros quadros sempre dando em grito. Nota
do digitalizador
31
Amônia: Provavelmente bicarbonato de amônio ou hidrogeno carbonato de amônio, NH4HCO3. Nota do digitalizador
32
Quando Burbie voltou ela se casara havia cerca dum ano e estava insatisfeita. No texto impresso em português Quando
Burbie voltou ela se casara havia cerca dum ano, e estava no ponto. No original em inglês By the time Burbie got back
she’d been married about a year and she was about due. O único significado pra about due que faz sentido no contexto é estava
insatisfeita. Nota do digitalizador

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no salão de bilhar e se sentava, muito calmo. Então alguém perguntava Olá, Burbie.
Onde estiveste? Burbie olhava aos lados e a um dos rapazes e piscava o olho. Era assim
que Burbie espalhava a história.
Da maneira como Burbie contou o caso, pois contou muitas vezes depois que ficou
religioso na prisão, não passou muito tempo até que os dois começassem a pensar que
seria uma boa idéia matar o velho. Achavam que de qualquer jeito não duraria muito,
sendo melhor acontecer logo a ter de esperar um ou dois anos. Parece que o velho já
estava meio prevenido. Os dois achavam que se o velho botasse Lida na rua não seria
fácil ficar com o dinheiro dele, mesmo que morresse logo. Nessa época a Klux33 já atuava
na região. Achou melhor se casar com Lida, senão poderia ser obrigado a sair da cidade
outra vez.34
Foi assim que meteu Hutch na história, pois tinha medo de matar o velho, e precisava
ajuda. E então se lembrou que seria bom se Lida não estivesse perto e o caso parecesse
roubo. Eu não meteria Hutch na coisa, porque Hutch era ruim. Também estivera algum
tempo fora, mas não como Burbie, pois fora condenado,35 preso por violar um saco de
correspondência quando guiava a carroça do correio da estação à agência. Passou dois
anos em Atlanta.
Mas o que quero dizer é que não era só ladrão. Era ruim. Tinha olhar feio, como quando
mandava vir dois ovos fritos do restaurante, se sentava e comia com a cabeça baixa e o
braço dobrado em volta do prato, como se com medo que alguém roubaria a comida, e
pegava a faca com o polegar perto da ponta, como faz um negro cuma navalha. Ninguém
conversava muito com Hutch. Acho que era por isso que não ouvira falar sobre os
encontros de Burbie com Lida e engoliu tudo o que Burbie disse: Que o velho tinha uma
panela de dinheiro escondida na chaminé, na peça do fundo.
Numa noite no começo de março Burbie e Hutch foram até lá e fizeram o trabalho.
Burbie afastara Lida de casa. Ela disse que precisava comprar na cidade. Foi na Nº6,36 de
modo que todos sabiam que Lida não estava. Hutch a viu embarcar e foi correndo falar
com Burbie, perguntando se era boa ocasião. E era justamente isso o que Burbie queria.
Porque ela e Burbie já puseram o dinheiro na panela, pra Hutch não desconfiar da tramóia.
De qualquer modo, botaram 23 dólares na panela, tudo trocado em moeda, pra fazer um
monte grande. Era todo o dinheiro que Burbie tinha. Pode se dizer que era toda sua
economia da vida.
Então Burbie e Hutch entraram na carroça de Hutch. Porque Hutch estava outra vez
trabalhando de carroceiro, e foram à casa do velho. Entraram no fundo e amarraram o
cavalo no fundo da casa pra ninguém ver da estrada. Bateram na porta do fundo e disseram
estar passando ali de volta à cidade e pararam pra se aquecer um pouco porque estava frio
como o diabo. O velho os deixou entrar e lhes deu um copo de cidra forte. Ficaram um
pouco mais embriagados. Já estavam bastante bêbados porque cada um trouxera um
frasco de uísque de milho no bolso traseiro, pra dar coragem.
Então Hutch foi atrás do velho e bateu na cabeça cuma chave-inglesa escondida no
casaco.
33
Klux, a Ku klux klan. Nota do digitalizador
34
Alguns trechos do texto impresso em português são difíceis discernir, sugerindo problemas de tradução. Quando Burbie voltou
ela se casara havia cerca dum ano, e estava no ponto […] Os dois achavam que se o velho botasse Lida na rua não
seria fácil ficar com o dinheiro dele, mesmo que morresse logo. Nesse tempo a Klux já andava falando. Burbie achou
melhor que ele e Lida se casassem, senão ele poderia ser obrigado a sair da cidade outra vez. No trecho Burbie achou
melhor que ele e Lida se casassem (so Burbie figured it would he better if him and Lida was to get married) a tradução caiu
no tradicional vício de mau uso do pronome, criando dificuldade pra entender a quem se refere. No caso, o pronome him, não a quarta
pessoa mas a terceira. Ou seja: Seu em vez de dele. Não pode ser dele, porque o velho já é casado com Lida. Nota do digitalizador
35
Também estivera algum tempo fora, mas não como Burbie, pois fora condenado. No texto impresso em português Também
tinha estado algum tempo fora, mas não como Burbie, Hutch tinha sido mandado. Was sent pode significar foi despedido ou
foi preso. Nota do digitalizador
36
No.6: Butique de couro, pele e roupa e bota de couro de época. Praça do mercado, central Nova Iorque, NY 10013. Nota do
digitalizador

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Então Hutch ficou fulo contra Burbie porque não havia mais de 23 dólares na panela.
Hutch nada disse e ficou sentado, olhando o dinheiro empilhado na mesa e a Burbie.
Então Burbie começou a engambelar Hutch. Disse que, palavra-de-honra, esperara
encontrar 1000 dólares na panela, pois o velho era rico. E, palavra-de-honra, que era
verdadeira surpresa ter tão pouco ali. E, palavra-de-honra, que estava aborrecido porque
foi quem pensou primeiro naquilo. E, palavra-de-honra, que a culpa era toda sua, e que
deixaria Hutch ficar com todo o dinheiro. Não tiraria um pouco pra si, de tão aborrecido
que estava. Hutch nada dizia. Só olhava a Burdie e ao dinheiro.
Enquanto Burbie falava ouviram uma gritaria diante da casa e alguém tocando a buzina
dum automóvel. Hutch pulou e puxou o dinheiro com a mão a dentro do bolso, e a chave-
inglesa também, e reescondeu a panela na chaminé. Então agarrou o corpo do velho, com
Burbie levou o corpo a fora, o atiraram à carroça e foram embora. Saíram com a carroça
sem ser vistos porque chegaram e saíram no fundo. A gente do automóvel era um grupo
de velhos da Igreja Metodista, que sabia que Lida estava fora e não gostavam muito dela,
e foram dar adeus ao marido. Quando entraram e viram ninguém, calcularam que o velho
fora à cidade. Então foram embora.
Hutch e Burbie se meteram numa enrascada porque ali estavam com o velho na carroça
e não tinham idéia aonde ir ou o quê fazer ao corpo. Burbie começou a choramingar. Mas
Hutch continuava sentado, calado, guiando o cavalo.
Logo chegaram aonde construíam um trecho de estrada. Estava tudo esburacado e
havia uma porção de caixa de ferramenta na beira do caminho. Hutch apeou e arrancou a
fechadura duma caixa com a chave-inglesa, tirou uma picareta e uma pá e as jogou à
carroça, tornou a subir e continuaram rodando algum tempo até chegar ao bosque de
Woodping Nanny, que alguns dizem ter um fantasma nas noites escuras, cerca de 5km da
granja do velho. Hutch entrou com a carroça ali, pouco depois chegou a uma espécie de
clareira e parou. E então falou em primeira vez:
— Caves a sepultura!
Burbie começou a cavar. Cavou durante duas horas, até ficar tão cansado que mal
podia ficar em pé. Mas cavara quase nada porque a terra estava gelada. Mesmo com a
picareta ele mal podia abrir um buraco raso. Mas Hutch o fez parar de qualquer maneira,
atiraram o corpo à cova e cobriram de terra. Mas a cabeça ficou fora. Então Hutch
empurrou a cabeça a baixo o melhor que pôde e amontoou folhas secas e terra encima,
subiram à carroça e foram embora.
Depois de percorrer um trecho, Hutch começou a xingar Burbie. Disse que mentira e
Burbie jurou que não. Então Hutch disse que mentia e o socou. Depois que Burbie caiu
no fundo da carroça, Hutch começou a chutar. Logo Burbie contou a história de Lida.
Quando terminou de contar, Hutch fez o cavalo voltar. Burbie perguntou por quê
voltavam. Hutch disse que buscariam um, presente pra Lida. Os dois voltaram até a
sepultura e Hutch fez Burbie cortar a cabeça do velho com a pá. Burbie tinha asco mas
Hutch o obrigou, e depois dalgum tempo Burbie conseguiu cortar a cabeça. Então Hutch
a atirou dentro da carroça e foram outra vez rumo à cidade.
Antes de sair do bosque Hutch tomou um trago de uísque e começou a berrar. Falava
consigo como se delirando, dizendo que faria Burbie pôr a cabeça numa caixa, a amarrar
com barbante e a levar de presente a Lida, prela ter uma bela surpresa ao abrir a caixa.
Disse que Burbie tinha de fazer aquilo logo que Lida voltasse e então o mataria. Disse Te
matarei! Diabos te levem! Te matarei! como uma espécie de cantilena, muitas vezes
seguidas.
Então tomou mais um gole de uísque, se levantou e berrou. Chicoteou o cavalo, que
começou a correr. Quer dizer, começou a galopar. Chicoteou mais forte. Então começou
a gritar o mais alto possível. A diante!, bichão. Ao leste! Eis o velho vaqueiro estrada

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a fora! Ui-huu-u-u! E entraram à estrada, com o cavalo correndo como louco, Hutch
gritando, Burbie tremendo, e a cabeça rolando dum lado a outro no fundo da carroça,
pulando ao alto quando passavam num buraco. Burbie quase morrendo quando a cabeça
batia no pé.
Depois dalgum tempo o cavalo se cansou e não quis correr mais. Tiveram de deixar o
animal ir a passo, Hutch se sentou e resmungou. Então Burbie começou a imaginar o quê
faria com a cabeça. Então se lembrou dum arroio que cruzariam e que não cruzaram na
ida porque tomaram outro caminho. Resolveu atirar a cabeça ao arroio quando Hutch não
estivesse olhando. E assim fez. Chegaram perto do arroio. No caminho da ponte há uma
ladeira. Quando carroça se inclinou pra descer a ladeira a cabeça rolou entre os pés de
Burbie, quem a segurou firme. Quando chegaram no meio da ponte estendeu a mão e
atirou a cabeça.
Em seguida Hutch berrou e se atirou ao fundo da carroça porque a cabeça ao cair fez
um barulho que parecia um tiro de pistola. Burbie se esquecera de que a noite estava fria
e que o arroio congelara. Não muito. Uma camada fina, de 2,5cm de espessura, mas o
bastante pra se partir com estrondo, em várias direções, quando a cabeça caiu. Foi o que
assustou Hutch. Por isso, quando se levantou e viu a cabeça no meio do gelo, ao luar,
percebeu o que Burbie fizera, disse que o mataria ali mesmo e estendeu a mão à picareta.
Burbie pulou a fora e saiu correndo. Só parou quando chegou até casa. Trancou a porta,
se meteu na cama e puxou as cobertas sobre a cabeça.
No outro dia na manhã um sujeito entrou correndo na cidade e disse que houve o diabo
na ponte. Todos fomos até lá. A primeira coisa que vimos foi aquela cabeça em cima do
gelo, meio virada a um lado, a carroça e o cavalo de Hutch amarrados no parapeito da
ponte, o cavalo quase morto de frio. E o que vimos depois foi o buraco no gelo onde
Hutch caíra. Então vimos o corpo de Hutch no fundo, perto dum pilar da ponte.
A primeira coisa que fizemos foi pegar a cabeça. Acreditai: Uma cabeça caída num
gelo fino é coisa difícil de alcançar. Tivemos de a laçar. Então tiramos Hutch do fundo.
Depois de resgatar Hutch, vimos que tinha a chave-inglesa e os 23 dólares nos bolsos do
casaco e o quartilho de uísque no bolso traseiro. Estava duro como tábua. Imagino que,
depois de Burbie fugir, desceu no pilar, tentou pegar a cabeça e caiu.
Mas nada sabíamos então. Quando pegamos a cabeça vimos que era o velho. Na tarde
alguns rapazes acharam o corpo sem cabeça. A panela foi encontrada e os velhos da Igreja
Metodista contaram a história da visita. Com mais uma coisa e outra, calculamos que tudo
fora obra de Hutch, principalmente porque estaria bêbado, cumprira pena na cadeia e tudo
o mais. Ninguém pensou em Burbie. Fizeram o enterro. Lida chorou como desesperada.
Todos discutiam o quê Hutch queria fazer com a cabeça. As coisas continuaram assim
durante três semanas.
Numa noite, no salão de bilhar, discutiam de novo o caso da cabeça. Alguém uma coisa
e outro outra, quando Benito Heath, uma espécie de policial da zona, começou a
desenrolar uma história comprida e boba dizendo que Hutch imaginara que se não
descobrissem a cabeça não provariam o crime. Então, no meio daquela lengalenga, Burbie
olhou aos lados, como sempre fazia, e piscou o olho. Benito Heath continuou a história.
No fim, Burbie se inclinou a diante e começou a falar com Benito. Dois minutos depois
não se ouvia homem respirar naquela sala, porque todos estavam escutando Burbie,
Já contei como Burbie era bom pra recitar numa festa. Bom… Aquilo também era uma
espécie de recitação. Burbie falou como se aprendera tudo de cor. A voz tremia, de vez
em quando parecia chorar e enxugava os olhos, como quem não podia falar mais. Então
continuou.
O que mais falou foi sobre as loucuras que fizera na vida, que foi por causa da bebida
e das mulheres que se estragara, sobre todas as mulheres que conhecia e cafés e bares

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onde estivera. Muita coisa era mentira, porque se os cafés fossem tão grão-finos o
expulsariam. Então contou como se arrependera da vida que levava, e como, palavra-de-
honra, voltara a sua aldeia, pra deixar de fazer loucura e mudar de rumo. Falou sobre
Lida, dizendo que ela não o deixara mudar de rumo. Então contou como fora embelecado
por ela até ter a idéia de matar o velho. E contou como fizeram o trabalho, a história do
dinheiro e a da cabeça, e tudo o mais.
Dava a impressão dum trecho que costumava recitar, chamado O retrato no assoalho,
que tratava dum vagabundo que desenhou no assoalho dum bar o retrato da mulher que o
deitara a perder. Mas o engraçado é que não estava envergonhado como fingia. Se via que
estava era orgulhoso. Estava orgulhoso de todas aquelas mulheres, das bebidas que
tomara, de Lida, da história do velho e da cabeça, e de ter sido esperto o bastante pra não
cair ao arroio como Hutch. Ao terminar gritou e se atirou ao chão. Decerto pensou que
morreria ali como o vagabundo que desenhou a cara da mulher no assoalho do bar. Mas
não morreu. Ficou estendido durante um minuto, até Benito o levantar, o pôr no carro e o
levar à cadeia.
E lá está. Começou a trabalhar e ficou religioso. Sempre que recebe visita canta hino
e conta a estória. Ouvi dizer que agora sabe contar direitinho e chorar justamente quando
é preciso. E Lida também foi, até lá, só que nada diz, a não ser pra confessar que é tão
culpada quanto Hutch e Burbie. Por isso Burbie será enforcado. Se não se julgasse tão
esperto estaria livre até agora.
Acho que porque ocultara o caso durante tanto tempo precisava desembuchar.

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Em 1903 sir James Barrie realizou o que se denominaria o
truque-do-chapéu37 no campo da dramaturgia: Teve
simultaneamente três peças em representação no palco londrino:
Quality street, (Rua Qualidade) The admirable Crichton (O
admirável Crichton) e Little Mary (Mariazinha). Não sabemos
quantos outros teatrólogos praticaram sozinhos a façanha. O
número não deve ser grande mas sabemos sobre outro inglês que
realizou a tríplice proeza, nessa vez no palco de Nova Iorque. Em
dezembro de 1945 John van Druten teve seu nome nas marquises
de três diferentes teatros ao mesmo tempo: The voice of the turtle (A
voz da tartaruga), I remember mama (Me lembro de mamãe) e The
mermaids singing (As sereias cantando).
Como Elmer Rice, outro teatrólogo contemporâneo, John van
Druten começou a vida profissional como advogado, mas
prontamente abandonou as leis pelo teatro. Também como Elmer
Rice, que tinha apenas 22 anos quando sua primeira peça foi
apresentada com sucesso na Bróduei, John van Druten era muito
moço quando despertou numa manhã e ficou famoso: Tinha 24
anos de idade quando Young woodley alcançou êxito sensacional
nambos lados do Atlântico. Desde então apareceram peças
memoráveis como The distaff side (Ao lado da roca), Old
acquaintance (Velho conhecido) e There's always Juliet (Julieta
sempre está lá).
John van Druten é considerado poeta, sofisticado, erudito. Os
leitores encontrarão um pouco de cada uma dessas qualidades no
último conto de John van Druten: A poesia do estilo, a sofisticação
no crime e a erudição intuitiva que é sempre característica sutil do
espírito verdadeiramente criador.

O olho-de-gato
John van Druten

O
inconveniente era que já não podia distinguir o que recordava do que lera ou
ouvira contar. Pois, naturalmente, lera tudo o que pudera encontrar sobre o
assunto, desde que ouviu a história quando tinha 14 anos. E fora publicada muita
coisa a esse respeito, não apenas livros sobre crimes famosos, que quase sempre
continham um capítulo relativo ao caso Cawthra, mas também uma peça teatral e duas
novelas baseadas nele, e um filme baseado numa das novelas. Jim vira e lera tudo.
Portanto era muito natural que depois de todo esse tempo suas lembranças e leituras
se fundissem e já não pudesse determinar donde vinha este ou aquele pormenor. Quanto
ao broche de olho-de-gato, sabia que o recordava, porque o temera quando criança. Mas
senhora Pamphlett e a colcha de renda de tia Lílian seriam realmente recordações?
Achava que sim. Mas lera tanta coisa sobre elas que já não podia ter certeza. Fora há 27
anos, no outro lado do mundo, quando tinha apenas sete anos.
Mas ao menos senhora Pamphlett e a colcha de renda existiram, enquanto havia outras
coisas que julgava recordar e que não encontrara nos relatos. Por exemplo: Em nenhum
lugar havia referência a Alberto. Mas tinha certeza de que o recordava. Qual seria seu
papel no caso?
Não havia quem revelasse, ninguém a quem perguntar. Todos os que saberiam estavam
mortos ou a 650km de distância. Exceto ela, tia Vivi, quem ninguém sabia onde estava.
Desaparecera depois do julgamento. Jim lera nalgum livro que ela fora à América.

37
Truque-do-chapéu: Na era vitoriana o termo hat-trick se referia a um comum truque onde o mágico aparecia envergando uma
cartola. Consistia em colocar a cartola, com a abertura virada a cima, encima duma mesa. O mágico retiraria três coelhos da cartola,
um de cada vez. A expressão é muito usada se referindo a marcação de três pontos num encontro, em futebol e outras modalidades. O
termo foi utilizado em primeira vez num jogo de críquete, pra descrever a atuação de HH Stephenson em 1858. O termo foi usado
num artigo de jornal em primeira vez em 1878. https://pt.wikipedia.org/wiki/Hat-trick Nota do digitalizador

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Supunha que mudara de nome. De qualquer maneira, estava perdida. Só ela revelaria a
verdade sobre aquelas coisas.
Houvera uma tarde, por exemplo, quando ia a caminho do colégio e a encontrara com
Alberto na rua. Ela o acompanhara depois até casa e pedira que nada dissesse, que não
contasse a alguém que vira Alberto, principalmente a seu pai. Dera 6 pences como prêmio
por seu silêncio. Ficara muito tempo indeciso sobre como os gastar, pois nunca tivera
tanto dinheiro duma só vez. Certamente aconteceu. Não imaginaria algo assim.
Aqui em Chicago, em 1939, era difícil acreditar que tudo aquilo acontecera. Kilburn,
o cinzento subúrbio do noroeste de Londres, em 1912 parecia por si um lugar
inverossímil. Teria realmente vivido ali, ido ao colégio da estrada de Salisbúria e
comprado caramelo de alcaçuz na confeitaria da esquina? Que ligação havia entre aquele
menino e um jovem corretor-de-seguro, casado, com cabelo ralo, com 34 anos e que
morava numa pequena casa em Evanston? Nenhuma que ele pudesse encontrar, exceto a
continuidade. E isso era o mais estranho.
Nascera em Estados-Unidos, e sua mãe morrera no parto. Quando contava três anos,
seu pai o levara à Inglaterra. Julgava recordar a viagem mas não tinha certeza. Talvez
fosse a viagem de volta que fluía à memória. Em Londres, tia Lílian se tornara sua
madrasta. A recordava, ou julgava a recordar, como uma mulher alta e lânguida, de
enormes olhos lúgubres e desalinhada cabeleira preta que parecia muito pesada. Era muito
enfermiça. Ficava deitada nos sofás, embrulhada num roupão, fazendo renda. A memória
de Jim evocava metros e metros de renda.
Moravam numa casa de meias-paredes, com escuras e fuliginosas sempre-vivas no
jardim da frente, numa longa rua de residências exatamente iguais. Nas fotografias que
vira depois em reportagens sobre o episódio, a casa parecia menor que na lembrança. No
portão estava a placa de bronze de seu pai, anunciando:
Frederick C Cawthra
Professor de música
No fundo da casa havia um jardim oblongo do qual senhor Cawthra gostava muito.
Jim costumava ir até lá com ele nas tardes de verão, quando o pai se dedicava à
jardinagem. Arrancava tanchagem38 do trecho de grama que chamavam relvado, buscava
a enxada e o regador do galpão de ferramenta, procurando ajudar em tudo.
Exceto aquelas tardes, parecia ter passado a maior parte do tempo na cozinha,
atrapalhando Ana, a criada de todo o serviço, ou ouvindo histórias de crime e doença. A
mulher tinha uma família grande, que incluía uma irmã tísica e um irmão epiléptico, e
gostava de falar sobre isso. A cozinha ficava no porão, onde sempre havia chá bom e
forte, e pudim de pão frio.
Em cima a casa era escura, inverno e verão, pois tia Lílian não suportava a luz solar e
mantinha as persianas descidas. Da peça do fundo vinha o som do piano, com os alunos
praticando A oração da donzela e A dança dos guizos de prata. Às vezes se ouvia uma
voz de menina, cantando O jardim do sono ou As montanhas azuis da Alsácia. Enquanto
isso tia Lílian ficava estendida no sofá com os olhos fechados, passando água-de-colônia
nas frontes e dizendo que aquilo a matava. Às vezes, quando ele estava deitado na noite,
ouvia os dois altearem a voz lá embaixo, brigando,
Senhor Cawthra era um homenzinho de barba pontuda e olhos que piscavam. Era
afável e jovial, e quando levava Jim a passear, sempre se divertiam juntos. No princípio
costumavam sair sozinhos. Depois tia Vivi passou a os acompanhar. Tia Vivi era o nome

38
Tanchagem (Platango major): Planta medicinal da família das plantagináceas, também conhecida como tansagem, acatá, carrajá,
tanchagem-terrestre ou erva-de-ovelha, muito usada como remédio caseiro contra gripe, resfriado e inflamação de garganta, útero e
intestino. https://www.tuasaude.com/tanchagem/ Nota do digitalizador

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que Jim lhe dava. Seu verdadeiro nome era Violeta Delcey. Segundo diziam os livros, seu
pai a conhecera em 1911, e viera morar com eles no ano seguinte. Era caixeira do
magazine local, chamado Bon marché, e vinha caçar senhor Cawthra pra receber lição de
música. Tinha deliciosa voz de meio-soprano. Jim achava a interpretação dela de Canção
da flor, de Fausto, a coisa mais linda que já ouvira.
Também não tinha certeza do quê fazia parte das recordações ou provinha das leituras.
Os livros a descreviam como uma moça quieta, modesta, de fala doce e cabelo castanho
avermelhado. Um deles, mais rebuscado que os outros, dizia que a moça tinha o rosto
pálido e grave duma madona. Jim julgava recordar um nariz arrebitado que dava ao rosto
ar impertinente. De acordo com as narrativas, ela se tornara amante de seu pai. Tia Lílian
fazia violentas cenas de ciúme, chorando e ameaçando se matar. Jim podia quase jurar
que se recordava de a ter ouvido numa dessas ocasiões. Também em conformidade com
as histórias, Violeta sentia agudamente quão desagradável era sua situação, e tentara
terminar as relações e deixar a casa. Senhor Cawthra declarara que os dois cessaram de
ser amantes, mas que ele lhe pedira que ficasse porque ela era muito boa pro menino. Jim
pensou:
— Boa pra mim? O teria sido?
Rememorando agora, parecia que eles sempre tinham segredos que ocultavam ao pai,
ou a tia Lílian. Que costumavam visitar casas quando iam passear sós, tomavam chá com
as criadas na cozinha e que às vezes estavam rapazes presentes e havia conversas
entremeadas de riso. E depois, quando voltavam, tia Vivi o levava a uma casa-de-chá, pra
tomar sorvete de 3 pences, e dizia pra nada contar em casa. E havia também o marinheiro
Alberto.
Mas, noutro lado, se lembrava de tia Vivi lendo em voz alta livros de estória, sentada
na poltrona grande consigo no colo e rodeando a cintura com o braço, enquanto o cabelo
vermelho fazia cócega no rosto. E quando Jim tinha dor-de-ouvido, ela costumava ir se
sentar a sua cama, trazendo saquinhos de sal e cantando até que passasse a dor e
adormecesse.
Ela usava um broche que, lhe dissera uma vez, era de olho-de-gato. E isso o assustara,
porque Jim pensava que era um olho verdadeiro, extraído da cabeça dum gato e
petrificado de algum modo. Mesmo quando ele lhe confessara isso depois dum pesadelo,
e tia Vivi lhe corrigira o engano, Jim não perdera completamente o receio. Até agora o
broche continuava a ser algo sinistro em sua memória. Não se recordava de a ter visto
usar outro objeto de adorno, e a imagem sempre aparecia vestida graciosamente, com
blusa branca e saia cinzenta lisa, e uma cinta de couro envernizado. Essa era a Violeta
dos fatos relatados. Como a conciliar com a tia Vivi da lembrança?
No verão de 1912 tia Lílian adoecera o bastante pra ficar acamada. Era um verão
quente. Tia Bete e tio Harvey estavam em visita, vindos de Eua. Eram da família da mãe
de Jim, não tinham filho, e imediatamente se afeiçoaram a ele. Se hospedaram numa
pensão logo a diante, na mesma rua, porque o único quarto-de-hóspede na casa era aquele
ocupado por Violeta, e agora era necessária a presença dela ali pra cuidar de tia Lílian.
Jim passava os dias com os tios, e terminara se mudando à pensão, pois a casa estava em
desordem com a doença de tia Lílian, e ele atrapalhava. Depois de Jim ter ficado algum
tempo em sua companhia, tia Bete perguntara se gostaria de voltar com eles a Eua. Disse
ela anos depois, quando contava toda a história:
— Fizemos o plano de te adotar logo que te vimos. Eras tão parecido com a pobre
Gertrude, e dava a impressão dum menino tão infeliz! Aquilo não era casa para se criar
uma criança. Vimos isso no momento em que pusemos o pé ali, embora tua tia Lílian
estivesse de cama e Violeta cuidasse dela e se portasse com discrição. Mas surpreendi
alguns olhares entre ela e teu pai. Aquilo me revelou tudo o que precisava saber, por isso

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falamos com ele sobre o assunto, nosso plano de te trazer conosco. Ele não fez objeção.
Naturalmente, naquele tempo não tínhamos idéia do quê aconteceria.
Depois duma ou duas semanas em Londres, seus tios foram à Escócia, donde viera a
família de tio Harvey, duas gerações atrás. Jim os acompanhou. Quando estavam lá tia
Lílian morreu. Voltaram apressadamente a Londres. Jim julgava recordar o enterro e um
bolo de cariz que lhe deram. Tia Vivi toda de preto, cum grande chapéu preto e uma
pérola no grampo do chapéu.
De qualquer modo, partiram a Eua duas semanas depois, segundo dissera tia Bete,
Então viera à casa de Rockford, em Ilinóis, e o colégio, os novos companheiros de
brinquedo. Nova vida, novos interesses. Tudo era diferente. Sentia falta do pai, às vezes.
Quando perguntava sobre ele, tia Bete dizia És nosso filho agora, e o levava à cozinha,
onde lhe dava algo pra comer. Um dia ela dissera que seu pai morrera. Jim ficara surpreso,
e chorara um pouco na cama naquela noite. Depois esquecera o pai.

Quando tinha 14 anos, tia Bete contara toda a história. Tio Harvey morrera dois anos
antes, e ela também estava doente na ocasião. Devia saber ou pressentir que não viveria
muito tempo. Mandara o chamar a seu quarto, numa abrasadora tarde de verão. Se sentara
na cama larga e, afastando o cabelo grisalho da testa úmida e vermelha, relatara da
maneira mais suave possível os fatos do caso Cawthra.
— É horrível o que tenho pra contar, Jim, e sempre me horrorizou a idéia de ter de
fazer essa revelação, desde que vieste viver conosco. Mas se eu não contar, outra pessoa
o fará, e não de maneira agradável.
Ele se sentara ao lado da cama e se mexera, inquieto. Queria estar com os outros
rapazes, e não ali a escutando.
— Venhas e dês a mim tua mão, Jim.
Ele se sentara na cama alta e pusera com relutância a mão na de tia Bete, úmida e
maltratada pelo trabalho.
— É a respeito de teu pai. Hoje, como nos primeiros dias, não sei como contar, embora
tivera sete anos pra pensar nisso. Teu pai foi enforcado por assassinar tua tia Lílian. E
isso é tudo. Acho preferível que saibas por mim em vez de, mais tarde, por algum
mexeriqueiro intrometido.
Papai, tia Lílian. Fazia tanto tempo que não pensava neles. Seus nomes evocaram outra
existência: A casa escura com as persianas descidas, o som do piano na sala do fundo.
— Tudo aconteceu aquele verão, quando estivemos lá e te trouxemos. O caso já está
morto e esquecido, e espero que nunca mais penses sobre isso, a não ser se não puder o
evitar. Tio Harvey e eu fizemos de ti nosso filho desde então, e te demos nosso nome por
amor a tua pobre mãe. E isso nada tem a ver contigo, exceto que aconteceu e que ele era
teu pai. Deus o perdoe.
Ela lhe poupara os pormenores, dizendo apenas que fora com algum veneno contra
erva-daninha. Jim, recordando as tardes de verão quando costumavam borrifar as roseiras
enfezadas pra destruir os pulgões, não pudera evitar uma imagem pueril de seu pai
voltando o pulverizador a tia Lílian ou a forçando a beber do balde em que era mergulhado
o pulverizador.
— Por quê fez isso? Por quê queria a matar?
— Foi por causa daquela moça, Violeta Delcey. Queria se casar com ela.
Jim, que começava então a aprender os fatos relativos ao sexo, pensara se a tia estaria
usando eufemismo em consideração a sua suposta inocência. Corara. Aquela parte da
história o afetava mais que qualquer outra.
Depois disso tia Bete se recusara a falar novamente no assunto, dizendo que ele já
sabia o suficiente. Quando, no ano seguinte, fora se submeter a uma operação no hospital,

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dissera a Jim que, se acontecesse algo, ele encontraria num envelope, numa gaveta secreta
da escrivaninha, os recortes de jornal sobre o caso de seu pai:
— Podes ler ou não. Como queiras. Teu tio e eu os guardamos pra quando tivesses
idade pra saber.
Nada acontecera a ela então, exceto voltar do hospital e passar mais um ano sofrendo.
Mas Jim lera os recortes de jornais. Mal a tia saíra da casa, ele se ajoelhara numa das
cadeiras de veludo verde da sala-de-estar, com as amareladas folhas de jornal espalhadas
sobre o pano da mesa em sua frente. Lera com avidez e sensação de culpa, como se fosse
um livro obsceno.
Passara semanas aterrorizado à lembrança da casinha e à imagem de seu pai se
introduzindo no galpão de ferramenta do qual se recordava tão bem, tirando o veneno da
prateleira, o misturando no remédio de tia Lílian e o levando na estreita escada ao quarto
dela. Piores ainda eram as descrições dos sintomas de tia Lílian, da exumação, da
autópsia. Eram espantosas, mas o fascinavam, e naquela noite se regalou morbidamente
com os pormenores, no quarto.

Agora, aquilo tudo era uma história tão antiga e familiar como se fosse um livro que
lera muitíssimas vezes. A história do crime era muito simples. Tia Lílian adoecera em
julho de 1912. O médico a atendera, diagnosticando gastrite. Fizera a prescrição, e dentro
duma ou duas semanas ela estava melhor. Fora nesse período que Violeta cuidara dela.
Quando a doente estava fora de perigo, Violeta deixara a casa pra tirar férias.
Jim calculara que isso seria quando ele estava na Escócia com os tios. Senhor Cawthra
e a mulher ficaram sós com a criada Ana em casa. Tia Lílian estava novamente em pé, e
passava o tempo no sofá, tomando três vezes por dia um tônico receitado pelo médico,
Geralmente era senhor Cawthra quem dava o remédio. De repente ela tivera uma recaída.
Os antigos sintomas voltaram. Em três dias estava morta. O médico dera um atestado de
óbito, e o enterro se realizara em Kensal Green. Violeta interrompera as férias
especialmente pra assistir a cerimônia. Era evidente que a moça nada tinha com o crime.
Duas semanas depois do enterro, o que, segundo calculara Jim, seria logo após sua
partida a Eua, ela voltara à casa pra morar com senhor Cawthra, agora acompanhados
apenas por Ana. As amigas de tia Lílian ficaram escandalizadas, e uma delas, chamada
senhora Pamphlett, fora visitar a casa pra interrogar Ana sobre o que acontecia lá.
Encontrando Violeta ausente, fizera um giro de inspeção e descobrira que a moça se
mudara ao melhor quarto, e que senhor Cawthra dormia no quartinho anteriormente
ocupado por ela. Pensou senhora Pamphlett:
— Aquilo era inominável.
Mas ainda pior era o fato de que na cama de casal onde sua pobre amiga soltara o
último suspiro, e onde a outra dormia agora, estava uma colcha-de-renda que tia Lílian
acabara de fazer pouco antes de falecer e que prometera a senhora Pamphlett, quem
manteve segunda conferência com Ana, que tomara antipatia a Violeta depois que a moça
se tornara dona da casa. Ana, estimulada, deu voz a tenebrosa suspeita. Outras amigas se
uniram a elas, e se requereu uma ordem de exumação. Foi encontrado arsênico em grande
quantidade no corpo, e a polícia visitou a casa. Encontrou o veneno no galpão de
ferramenta mas não encontrou senhor Cawthra e Violeta. Os dois fugiram.
Foram descobertos dez dias depois em Bolonha, vivendo como pai e filha numa
pequena pensão, onde poderiam permaneceriam insuspeitos se Violeta não precisasse ir
a um dentista e não se negasse a procurar um profissional francês. Havia apenas um
dentista inglês na cidade, e por acaso o homem lera nesse dia a descrição dada pela polícia,
nos jornais de Londres. Foi o broche de olho-de-gato que a denunciou. O dentista o
reconheceu e deu parte à polícia local. Defrontado pelos investigadores, senhor. Cawthra

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confessou logo o crime mas afirmou apaixonadamente que Violeta nada sabia. Depois
dalgumas dificuldades os dois foram extraditados e submetidos a julgamento, que foi
extremamente breve. Senhor Cawthra confirmou a confissão, parecendo ter perdido toda
esperança e interesse. Disse no depoimento:
— Cometi o crime. E mesmo que não o cometera, ela sabe que fui acusado. Não mais
haveria felicidade pra nós. Ela é tudo o que me interessa na vida.
O resto do depoimento dizia respeito à inocência da moça. Era sua única preocupação
então. O julgamento de Violeta como cúmplice se realizou dois dias depois do seu. Foi
absolvida sem ter sido chamada testemunha. Três semanas após, senhor Cawthra foi
enforcado em Pentonville.
Foi a única preocupação de senhor Cawthra e sua solicitude à moça que prenderam a
imaginação popular, fazendo de si quase um herói e um mártir, e rodeando com aura de
romance e tragédia o que doutro modo seria uma história vulgar e sórdida. Fora esse
aspecto que atraíra o dramaturgo e os novelistas que a exploraram. Todos os três
contavam a mesma história básica, introduzindo as mesmas personagens centrais: A
esposa lamurienta, irritadiça ou viperina. O marido paciente e bondoso, que a assassinara
por motivos de respeitabilidade, a fim de se casar com a outra mulher, a quem amava com
ternura e intensidade que pareciam banhar de esplendor a monótona vida suburbana. E a
moça, meiga, retraída e refinada, que por sua doçura e devoção inspirara profunda paixão
que nunca sonharia, e que fora arrastada à fuga e ao julgamento num tribunal.
A história e a interpretação se tornaram tão familiares a Jim, que, como o público em
geral, as aceitava sem restrição. A única coisa que o preocupava era o enigma do
desacordo entre as imagens da Violeta real e a da fictícia, e a alegre e misteriosa tia Vivi
das suas recordações. Gostaria de assegurar a si que essas recordações eram infiéis. No
fundo sabia que não eram.
Mas tudo aquilo acontecera há tanto tempo! Desde então acontecera tanta coisa, a si
assim como ao mundo. Se casara cuma mulher que nada sabia sobre o caso ou sobre sua
parte nele. Tinha uma casa, um emprego e o futuro com o qual se preocupar. O quê
importava o passado remoto? Importava apenas aos novelistas, teatrólogos e
compiladores de livro de criminologia. Pra si era pouco mais que uma história de mistério
lida na infância e interrompida antes de chegar à solução, num volume que se perdera
depois e não encontrara.
E então, numa tarde a viu numa loja de São Luís, que Jim fora visitar a negócio. Diante
dum balcão, a poucos passos de distância. Ao primeiro olhar viu que era Violeta. Estava
mudada. Envelhecera, engordara. E o cabelo avermelhado estava ruivo pálido. Mas o
nariz arrebitado, a linha da boca descaída em expressão descontente, e os olhos no nível
do rosto, o levaram de repente, através dos anos, a seu quartinho da casa de Kilburn onde
ela costumava ir se sentar na cama estreita e cantar pra si.
Um momento depois, a dúvida o assaltou. Seria realmente ela? Como ter certeza? Não
era possível que a recordasse bem, passado tanto tempo. A fitou e a dúvida cresceu. Era
loucura pensar naquilo. Era ridículo acreditar que pudesse a reconhecer agora. Então,
quando abandonaria a idéia, a mulher se virou e Jim viu que ela usava o broche de olho-
de-gato que costumava o assustar quando pequeno.
Sentiu o coração parar um momento e começar a bater com violência, o sufocando.
Passara em sua frente e ia à saída. Um momento mais e a perderia. A seguiu
apressadamente, deixando o pedido incompleto no balcão. Enquanto se aproximava,
pensou como falar. Se perguntasse És Violeta Delcey? certamente negaria.
A alcançou na porta da loja. Quando ela passava, disse calmamente, tão calmamente
quanto possível, na excitação que o sufocava:
— Olá, tia Vivi!

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Ela se sobressaltou, e olhou em torno, pra ver quem falara, e sorria, cum músculo se
contraindo incontrolavelmente no canto da boca.
— Falaste comigo?
Imediatamente Jim reconheceu a voz inglesa e pseudo-refinada, com sons vocálicos
impuros. Fazia anos que não ouvia uma voz como aquela.
— Não te lembras de mim?
O olhou um momento e baixou os olhos, mostrando a indignação duma mulher
abordada por um desconhecido.
— Não me lembro.
E fez um movimento pra se afastar.
Ele segurou o braço.
— Sou Jim Cawthra. — Disse, pronunciando o nome que deixara de usar havia quase
30 anos.
— Jim! — Exclamou ela, espantada. — O pequeno Jim?
— Isso mesmo.
Viu que tremia, se esforçando pra rir e tratar a situação como simples coincidência da
vida social.
— Vejam só!
Também sua voz tremia. perguntou, insistente:
— Não podemos ir a algum lugar?, pra conversar. Quero falar contigo.
Foram a um estabelecimento perto da loja, o escolhendo porque estava escuro e vazio,
e se sentaram num canto afastado. Violeta pediu um banana-esplite. Engordara bastante
naqueles anos. Tinha um ar de matrona. O rosto perdera os contornos delicados dos quais
ele se recordava. Era o rosto duma mulher de hábitos imoderados e cheia de
ressentimento.
— Como me reconheceste? Eras um menino pequeno quando te vi na última vez. E
também mudei.
— Por isso.
— Jim apontou o broche. Ela baixou os olhos ao objeto.
— Ó! Isto! Imagines ainda te lembrares!
— Eu tinha medo dele antigamente. Não te lembras? Pensava que era um verdadeiro
olho de gato.
— Á! Sim? Quê bobagem! Não sei por quê ainda o uso. Hábito, creio. E é uma tolice,
pois foi este broche que pôs a perder o jogo uma vez.
Deu uma risota. Ele a fitou. Não podia ter sido Violeta quem falara. Mas podia ser tia
Vivi. Jim se lembrava daquela risada. Trazia à memória as tardes de visita às cozinhas
dos outros e excitadas conversas com as criadas.
— Moras aqui em São Luís?
Ela sacudiu a cabeça.
— Não direi. Nada revelarei a respeito de minha situação atual.
— Eu não te delataria.
— Pode ser que não. Mas não quero me arriscar. O que fui é coisa passada. Ninguém
sabe disso. Eu não te teria acompanhado até aqui se não fosse… Bom… És diferente.
Eras muito pequeno naquela época. Haverá oportunidade de falar sobre os velhos tempos.
— Pensas muito naquilo?
Era uma pergunta que ele fizera a si freqüentemente. Violeta tornou a sacudir a cabeça.
— Não muito. De vez em quando, é claro. Não se pode evitar. Mas não adianta.
Tomou uma colherada de nata batida. Ele não sabia o quê perguntar, o quê dizer. O
quê queria saber? Foi horrível? Era o que realmente queria perguntar, mas parecia uma
pergunta tão boba! Além disso, o quê ela responderia? Sim ou não. E nenhuma dessas

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respostas o ajudaria. Queria saber o quê significara tudo aquilo pra ela, que impressão
teve, tudo o que passara e depois saíra livre. Mas não sabia como fazer a pergunta de
modo que a mulher entendesse.
— Queres contar algo sobre aquilo?
Foi a melhor maneira que encontrou prà interrogar.
— O quê queres saber?
Jim não poderia dizer. Recorreu a uma questão de fato, antes que de ponto de vista.
— Nunca suspeitaste o quê ele fizera? Ele nunca contou. Não é?
— Claro que não. Não queria que eu soubesse. Isso era o ponto principal. Tinha certeza
que eu nada quereria consigo se soubesse.
— Mas quando estavas cuidando dela na primeira vez que esteve doente? Ele já
começara. Não é?
— Á! Isso foi só pra que ela ficasse doente e chamasse o médico. Pra conseguir depois
o atestado de óbito. Foi o que eu calculei depois. Acho que havia inseticida no remédio
que me dava pra levar a ela. Mas sempre era quem preparava a dose. Nunca deixou que
eu fizesse isso. Acho que pra eu não ser envolvida no caso. Sempre teve muita
consideração comigo.
— O amavas? — As perguntas começavam a ocorrer espontaneamente.
Violeta o fitou com os olhos arregalados.
— Se eu o amava? — Repetiu, com ar incrédulo — Como o amaria? Tinha idade o
bastante pra ser meu pai. Mas sempre me tratou com muito respeito e bondade. Não
acreditarias como era bondoso. Naturalmente estava louco por mim.
— Mas eras sua amante. Não é?
Se mostrou ofendida.
— Amante? Não sei o quê queres dizer.
De nada servia insistir no ponto.
Quando fostes embora juntos, quando fugistes, o quê pensaste? Não disse o quê havia?
— Não. Eu sabia que havia transtorno, é claro. Um dia peguei a tal senhora não-sei-
quê na cozinha, falando com a criada. Aquela moça sempre me odiara, tomando partido
por senhora Cawthra contra mim. Calculei que estivesse contando coisas. De modo que
não foi surpresa pra mim quando Fredinho disse que andavam correndo muitos diz-que-
diz, e que seria uma boa idéia se fôssemos embora durante algum tempo, até acabar tudo.
Disse que podíamos nos casar no continente. Nos casaríamos, como sabes. Se não fosse
assim eu não querer saberia de si. Desde o princípio disse que queria se casar comigo e
que se casaria logo que ela morresse. Sabes que ela andava sempre adoentada. Acho que
desde o princípio tinha esperança de que ela não duraria. Suponho que se cansou de
esperar, como eu.
— O quê queres dizer com isso?
— Não te cansarias? Eu disse que não tolerava mais aquilo. Quero dizer: Eu não ficava
mais moça com o correr do tempo e não passaria o resto da vida esperando que a outra
morresse.
— E o quê disse?
— Chorou. — Violeta respondeu com ar frívolo — Disse que não podia viver sem
mim e que se eu desse mais algum tempo tentaria arranjar um divórcio ou algo assim. Eu
disse que daria três meses de prazo e que depois teria de dar a resposta a senhor Joplin.
— Senhor Joplin?
— Sim. Não te lembras da papelaria Joplin? O velho Joplin fazia tempo que andava
atrás de mim.
Na memória de Jim se abriu um armário esquecido. Viu um homem alto e curvado,
com estreitas raias de cabelo pegadas num crânio lustroso, óculos de aro de ouro e um

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proeminente pomo de Adão, lhe entregando uma brochura rósea da coleção Livros pros
garotos em troca de seus tostões semanais. O velho Joplin! Fazia anos que não se
lembrava do homem.
— Te casarias consigo?
— Pode ser. Tinha uma boa casa de negócio e era louco por mim. E eu não estava
ficando mais moça com o correr do tempo. Foi o que eu disse a Fredinho, quem
compreendeu.
— Quando foi isso?
— Mais ou menos um mês antes que ela começasse a ter coisas.
Era estranho ouvir novamente a velha expressão.
— Só depois de estarmos na França é que comecei a suspeitar, mas então já nada podia
fazer. Naturalmente eu sabia que não podiam me acusar, mas aquilo não foi muito
agradável. Fiquei morta de medo no tribunal, porque a gente nunca sabe como esses
advogados torcerão as coisas, mas tratou de me livrar de tudo. Eu sabia que Fredinho faria
isso. Sabia que podia confiar nele. Teu pai sempre foi um cavalheiro.
Violeta consultou o relógio.
— Tenho que ir.
— Ainda não.
— É preciso.
Começou a reunir suas coisas.
— Digas só uma coisa mais.
— O quê?
— Quem era Alberto?
Aquela recordação tinha de ser esclarecida. Violeta o olhou, perplexa.
— Alberto? Não me lembro dalgum Alberto.
— Um marinheiro.
A compreensão iluminou o rosto da mulher, quem disse, rindo:
— Á! Alberto. Imagines te lembrar dele. Sim. Alberto… Como era o sobrenome?
Esqueci.
— Quem era?
— Um amigo quem tratou muito mal. Foi quando comecei a estudar canto com
Fredinho. Eu tinha aborrecimento com Alberto. Me lembro de que quando estava com
dor-de-cabeça, achei que não suportaria mais e comecei a chorar. Fredinho procurou me
consolar. Foi assim que começou tudo. Perguntou a mim. Então contei a história. Foi
quando começou a gostar de mim. Acho. Engraçado. Eu não me lembrava mais de
Alberto.
— Mas continuaste a o ver. Me lembro que uma vez o encontrei consigo. Pediste a
mim nada contar em casa.
— Eu não queria aborrecer Fredinho, pois estava sendo tão bom pra mim. Dera a
entender que estava tudo acabado entre mim e Alberto, e não queria que Fredinho se
incomodasse sabendo que não era verdade. Me lembro de ter pensado se ouviria notícia
sobre Alberto, quando começou o julgamento. Mas é claro que não ouvi. Era um sujeito
ruim. Isso é que é verdade. Mas muito bonito e tinha certo quê. Não sei que fim teve.
Parece que teve uma idéia repentina. Sorriu, baixando os olhos ao broche.
— O quê é? Te lembraste dalgo?
— Me lembrei agora mesmo. Foi Alberto quem me deu este broche! Imagines me
esquecer disso!
Mexeu no broche, depois o desprendeu e ficou o olhando como se não o visse havia
muito tempo. Era algo insignificante, pensou Jim. Esquisito aquilo parecer sinistro
durante tantos anos. Julieta prosseguiu, recolocando o broche:

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— Sim. Alberto disse que dava sorte ou algo parecido. Parece que deu mesmo. Tive
sorte. A propósito: Já contei que estou casada?
— Não.
— Ó! Sim! Faz quase 20 anos que me casei. Vamos muito bem. No mês que vem
compraremos um Plymouth novo. Também não tenho de quê me queixar. Mas há um
inconveniente em ninguém saber quem sou.
— Qual?
O rosto assumiu expressão enfatuada e quase maliciosa.
— Ninguém sabe sobre algo. E quem me olha agora não acreditaria que já encontrei
quem me quisesse o bastante pra cometer um crime e ser enforcado por minha causa.
E suspirou filosoficamente:
— Mas acho que não se pode ter tudo o que se quer.

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Durante vários anos os próprios editores de Ellery Queen julgavam se tratar duma só
pessoa. O assunto se complicou quando surgiu um novo autor, Barnaby Roos, que
começou a escrever romances policiais contra a técnica de Ellery Queen. Os leitores
esperavam, ansiosamente, um e outro livro dos contestantes. Oito romances foram
escritos nessa batalha. Resultado: Barnaby Roos era o próprio Ellery Queen: E Ellery
Queen, por sua vez, não era ele, era Frederic Dannay e Manfred B Lee. Só recentemente
se divulgou a trama.
Ao escolherem o romance policial entre os demais generos literários, Frederic Dannay e
Manfred B Lee, ou seja Ellery Queen, sabiam que, ao contrário do que ainda pensam
alguns críticos menos avisados, o género não é fácil. Grandes talentos, e até gênios da
literatura universal, o cultivaram. Mas Ellery Queen escreveu, publicou e venceu.

O romance policial é uma invenção recente. Não tem antecedente literário aquém do
século 19. Édipo rei, de Sófocles, escrito no ano -415, caberia perfeitamente dentro do
género se o leitor não conhecesse de antemão o enredo.39
Tanto melhor pro género se essa peça de Sófocles é
uma das mais importantes em toda a literatura
mundial, a ponto de influir, poderosamente, na
nomenclatura e técnica da ciência psicológica
moderna.

Edgar Allan Poe, o gênio isolado da literatura


ianque, foi quem estabeleceu as bases definitivas do
romance policial quando, em 1841, escreveu Os Assassínios da
rua Morgue. Esse livro apresentou os seis elementos básicos do
género: 1 ● O crime aparentemente perfeito. 2 ● O suspeito
erroneamente indicado pelas provas circunstanciais. 3 ● A ação
desnorteada da polícia. 4 ● O espírito ágil e a observação
penetrante do detective, cujo talento é anunciado por maneiras
e hábitos excêntricos. 5 ● O admirador pouco sagaz que conta a
história. 6 ● O axioma de que a prova superficialmente
convincente é sempre sem importância.

39
Há A história de Rampsinitos, um enredo detetivesco no antigo Egito, relatado por Heródoto em História e incluída na coletânea
Mar de histórias (em 10 volumes). Nota do digitalizador

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Conan Doyle, a partir de 1887, aprofundou e
humanizou a tradição do gênero, enriqueceu o
esquema básico e introduziu outro elemento
importante na fórmula: A tecnologia. Foi seu
Sherlock Holmes quem popularizou os valores
mais abstratos da química, da física e,
principalmente, da psicologia objetiva. É curioso
observar que o romance policial é, na literatura, um
fenômeno quase inteiramente anglo-ianque. Afora
os franceses Gaboriau, Gaston Leroux e Maurice
Leblanc (o criador de Arsène Lupin) e o belga
Georges Simenon, são raríssimos os autores de
primeira categoria que não escrevem em inglês.

As duas principais linhas em que o


romance se desenvolveu também
provêm de Poe. Uma, a sensacional,
vai acumulando sensação sobre
sensação até o último capítulo tudo
explicar. Outra, a puramente
intelectual, apresenta quase toda a ação
ou primeiro capítulo e, nos demais,
mostra o detective seguindo pista sobre
pista até a lógica dedução final, A primeira linha é, dum mudo geral, característica dos
romances policiais ianques. A segunda, dos ingleses.

Provando a nobreza desse gênero de literatura, que inclui os


contos de mistério, temos grandes escritores que, entre uma
e outra obra-prima, se dedicaram ao conto detetivesco. É o
caso de Maupassant, Dickens, Chesterton e do próprio Poe.
Maupassant com O Horla, Chesterton criando padre
Brown, Dickens escrevendo O mistério de Edwin Drood,
livro incompleto, pois o autor de Grandes esperanças
morreu quando escrevia o último capítulo, de sorte que até
agora já apareceram cinco ou seis soluções ao mistério,
além de farta literatura sobre o assunto.

Mistério magazine, apresentando as histórias policiais e de


mistério que amanhã serão clássicas, espera encontrar, em
língua portuguesa, um número crescente de leitores e tem, desde
já, todos os elementos necessários pra manter esse interesse
despertado.

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