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ELLERY QUEEN

O ENIGMA DO
SAPATO HOLANDÊS

tradução de
lino vallandro

LIV RO S D O B RA S I L
INTRODUÇÃO

O Enigma do Sapato Holandês (título extravagante, o qual


ficará explicado no decorrer da leitura) é  a terceira aventura
dos Queens que se apresenta ao público. E  pela terceira vez
me vejo incumbido da apresentação. Parece que a  minha la-
boriosa linguagem, como prefaciador dos anteriores romances
de Ellery Queen, não desanimou nem o editor de Ellery, nem
esse omnipotente cavalheiro. Ellery afirma gravemente que
é esta a minha recompensa por ter providenciado a publicação
das suas memórias romanceadas. Pelo seu tom, desconfio que
ele emprega «recompensa» como sinónimo de «castigo»!
Com todos os meus privilégios de amigo íntimo, pouco
posso dizer, a  respeito dos Queens, que o  público ledor não
saiba ou não tenha deduzido de alusões encontradas aqui e ali
no Opus 1 e no Opus 21. Sob os seus nomes verdadeiros (se-
gredo que eles pedem que seja mantido), Queen père e Queen
fils foram peças integrantes, poderia mesmo dizer essenciais, do
maquinismo policial da cidade de Nova Iorque. Especialmente
na segunda e terceira décadas do século. A sua memória perma-
nece fresca e  viva entre certos ex-funcionários da metrópole;
está preservada de forma tangível nos arquivos de Center Street

1
  Mistério do Chapéu Romano (1929) e O Mistério do Pó Francês (1930),
O
editados em Portugal pela Editorial Minerva. (N. do E.)

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e nas relíquias criminais do seu antigo apartamento na Rua 87,
hoje transformado em museu particular mantido por alguns
sentimentais que têm excelentes razões para serem gratos.
Quanto à atualidade, basta dizer isto: o ménage inteiro dos
Queens, incluindo o velho inspetor Richard, Ellery, sua esposa,
o filhinho e o cigano Djuna, continua imerso na paz das colinas
italianas, e para todos os efeitos retirado do terreno da caça aos
criminosos…
Recordo nitidamente o estremecimento de horror, a vaga de
conjeturas que se irradiou de Nova Iorque, espalhando-se por
todo o mundo civilizado, quando se soube que Abigail Doorn,
a poderosa, fora assassinada como qualquer pobre diabo inde-
feso. Era ela, certamente, uma figura de projeção internacio-
nal — uma excêntrica, de quem a menor operação financeira,
a mais modesta obra de beneficência, o mais corriqueiro epi-
sódio familiar se convertiam automaticamente em notícias de
primeira página. Sendo uma inconfundível «personalidade de
imprensa», contava-se entre as talvez duas dúzias de pessoas da
última década que, por mais que lutassem e protestassem, não
logravam esquivar-se ao olho omnividente do mundo jornalís-
tico e, por conseguinte, do leigo.
A pertinácia de Ellery em esclarecer as estranhas e enigmáti-
cas circunstâncias que acompanharam a morte de Abigail Doorn,
a sua magistral maneira de lidar com as diversas pessoas envolvi-
das — algumas famosas, outras opulentas, outras simplesmente
notórias — e as suas surpreendentes revelações finais, reforça-
ram consideravelmente o prestígio do velho inspetor, e, em pri-
vado, desnecessário é dizer, aumentaram a reputação de Ellery
como conselheiro extraordinário do Departamento de Polícia.
Peço-lhes para não esquecerem que a  história em torno
da qual gira O Enigma do Sapato Holandês é verdadeira na sua

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essência, posto que os nomes foram discretamente alterados
e certos pormenores revistos por conveniência literária.
Nessa desorientadora investigação, Ellery atingiu indiscu-
tivelmente a plena florescência da sua agilidade mental. Nem
mesmo o intrincado caso de Monte Field ou a notável comple-
xidade do homicídio do francês exigiu mais daquele intelecto
assombroso. Creio firmemente que jamais, tanto na realidade
como na ficção, espírito dedutivo mais arguto sondou as tene-
brosas profundezas da psicologia criminal ou deslindou as mea-
das emaranhadas pela astúcia criminosa.
Que a leitura vos dê prazer!

Nova Iorque,
maio, 1931.
J. J. McC.

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I

OPERAÇÃO

O  alter ego do inspetor Richard Queen, que apresentava


surpreendente contraste com a sua disposição costumeira, lé-
pida e prática, frequentemente o levava a emitir observações
didáticas sobre a  criminologia em geral. Essas reflexões pro-
fessorais eram habitualmente dirigidas ao seu filho e sócio nas
investigações criminais, Ellery Queen, nas ocasiões em que
ambos se encontravam a tomar um qualquer alimento diante
da lareira da sala de estar, a sós, sem contar com a sombra fugi-
dia de Djuna, o espetral garoto cigano que lhes atendia às ne-
cessidades domésticas.
— Os primeiros cinco minutos são os mais importantes —
dizia severamente o  velho. —  Lembra-te disso.  — Era o  seu
tema predileto. — Os primeiros cinco minutos podem poupar-
-nos uma porção de incómodos.
E  Ellery, criado desde a  meninice num regime de conse-
lhos detetivescos, resmungava, chupava o cachimbo e cravava
os olhos no fogo, imaginando quantas vezes um investigador
teria a fortuna de encontrar-se no teatro dum crime dentro de
trezentos segundos após a sua perpetração.
Expressava, então, as suas dúvidas, e o velho assentia triste-
mente com a cabeça — sim, não era muito frequente deparar-
-se tamanha sorte. No momento em que o investigador chegava

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ao local, já o rasto estava frio, muito frio. De modo que se fazia
o possível para compensar a maliciosa lentidão do destino.
— Djuna, dá cá o meu rapé!
Ellery Queen não era mais fatalista do que determinista,
pragmatista ou realista. A sua concessão única aos ismos e lo-
gias era a  crença implícita no evangelho do intelecto, o  qual
tem recebido muitos nomes e terminações na história do pen-
samento. Aqui afastava-se acentuadamente do profissiona-
lismo fundamental do inspetor Queen. Desprezava a institui-
ção dos espiões da Polícia, como estando abaixo da dignidade
do pensamento independente; desdenhava os métodos poli-
ciais de pesquisa, com as suas limitações canhestras — as li-
mitações de toda a organização dificultada pelos regulamen-
tos. «Estou com Kant, pelo menos até este ponto», gostava
de declarar. «A razão pura é o que há de melhor no meio de
toda a confusão humana. Pois o que um espírito pode conce-
ber, outro espírito poderá penetrar…»
Eis a  sua filosofia, posta nos termos mais simples. Por
pouco não abandonou essa sua fé durante a  investigação do
assassínio de Abigail Doorn. Quiçá pela primeira vez na sua
carreira intelectual intransigente, assaltaram-no dúvidas.
Não dúvidas acerca da sua filosofia, repetidas vezes compro-
vada em casos anteriores, mas acerca da sua capacidade men-
tal para deslindar o que outra mente concebera. Certamente
era egotista —  «concordando veementemente com Descar-
tes e Fichte», costumava dizer —, mas ao menos uma vez, no
extraordinário labirinto de sucessos de que se rodeou o caso
Doorn, ele não levou em conta o destino, esse importuno vio-
lador da propriedade privada da autodeterminação.

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Naquela crua manhã de segunda-feira, em janeiro de 192…,
ao descer uma sossegada rua das Sessenta da Zona Leste, um
crime o preocupava. Embrulhado num pesado sobretudo preto,
com o chapéu de feltro muito puxado sobre a testa ocultando
o brilho frio do pince-nez, a bengala a rechinar no pavimento ge-
lado, encaminhou-se para um conjunto de edifícios baixos soli-
damente agrupados no quarteirão seguinte.
Tratava-se de um problema particularmente exasperador. Al-
guma coisa devia ter acontecido entre o instante da morte e o
rigor mortis… Ia de olhar tranquilo, mas a pele das faces lisas
e morenas estava retesada, e a bengala batia com força no pa-
vimento.
Atravessou a  rua e  dirigiu-se rapidamente para a  entrada
principal do edifício maior do grupo. Diante dele apareciam
os degraus de granito vermelho de uma imensa escada curva
que subia de dois pontos diferentes da calçada e se unificava em
cima, num patamar de pedra. Sobre uma enorme porta dupla
com ferrolhos de ferro, via-se gravada em pedra a inscrição:

dutch memorial hospital1

Subiu os degraus a correr e, um pouco ofegante do esforço,


empurrou uma das enormes portas. Deu com um vestíbulo
tranquilo, de teto alto. O chão era de mármore branco, e as pa-
redes pesadamente revestidas de esmalte fosco. À  esquerda,
estava uma porta aberta com uma placa branca que dizia: es-
critório. À direita, outra porta igualmente assinalada: sala
de espera. Em frente, do outro lado do vestíbulo, podia ver-se
através dos vidros de uma porta giratória a grade de um amplo

1
Hospital Holandês. (N. do T.)

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elevador, à  entrada do qual se encontrava sentado um velho
vestido de branco imaculado.
Um homem forte, de queixo duro e rosto vermelho, igual-
mente de calças e camisa brancas, mas com um boné de pala
preta, saiu do escritório quando Ellery se deteve para olhar em
torno.
— Horas de visita das duas às três  — disse rudemente.
— Não pode ver ninguém no hospital antes disso.
— Hem? — Ellery afundou mais nos bolsos as mãos enlu-
vadas. — Quero falar com o doutor Minchen. Depressa.
O empregado coçou o queixo.
— O doutor Minchen? Tem encontro marcado com o dou-
tor?
— Oh, ele há de receber-me. Eu disse depressa, se faz o
favor.  — Procurou no bolso e  tirou uma moeda de prata.
— Chame-o, sim? Estou com uma pressa dos diabos.
— Não posso aceitar gorjetas, senhor  — disse pesarosa-
mente o empregado. — E devo dizer ao doutor quem é que…?
Ellery piscou os olhos, sorriu e guardou o dinheiro.
— Ellery Queen. Não se permitem gorjetas? Qual é o seu
nome? Caronte?
O homem pareceu hesitar.
— Não, senhor. Isaac Cobb, porteiro — respondeu, mos-
trando um distintivo de níquel no casaco, e  afastou-se pesa-
damente.
Ellery entrou na Sala de Espera e sentou-se. A sala estava
vazia. Inconscientemente, franziu o nariz. Um cheiro ténue de
desinfetante beliscou-lhe a  sensitiva membrana das narinas.
A ponteira da sua bengala bateu nervosamente no pavimento
de ladrilhos.
Um homem alto e atlético, vestido de branco, irrompeu na
sala.

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— Ellery Queen, com os demónios!  — Ellery ergueu-se
logo. Apertaram calorosamente as mãos. — Que foi que o trouxe
aqui? Ainda anda farejando?
— A mesma coisa do costume, John. Um caso — murmu-
rou Ellery. —  Por via de regra, não gosto de hospitais. Dei-
xam-me deprimido. Mas preciso de certas informações…
— Tenho imenso prazer em ser-lhe útil. — O doutor Min-
chen falava em tom incisivo; tinha olhos azuis muito penetran-
tes e  sorriso breve. Pegando no braço de Ellery, conduziu-o
pela porta. — Mas não podemos conversar aqui, meu velho.
Venha ao meu gabinete. Sempre tenho tempo para uma pales-
tra consigo. Há já meses que não o vejo…
Passaram pela porta de vidro e  seguiram pela esquerda,
entrando num longo corredor pouco iluminado e  ladeado
de portas fechadas. O cheiro de desinfetante tornou-se mais
forte.
— Manes de Esculápio!  — gemeu Ellery. —  Este cheiro
horrível não o incomoda? Suporia que ninguém aguentasse um
dia inteiro aqui, sem morrer sufocado.
O doutor Minchen casquinou. Chegados à extremidade do
corredor, enfiaram por outro que formava um ângulo reto com
o que acabavam de percorrer.
— As pessoas acostumam-se. E é melhor aspirar o fedor do
lisol, bicloreto de mercúrio e  álcool do que a  multidão insi-
diosa de bactérias que anda por aí… Como vai o inspetor?
— Mais ou menos.  — Os olhos de Ellery anuviaram-se.
—  Um casozinho teimoso, neste momento; já tenho tudo,
menos um pormenor… Se é o que penso…
Tornaram a  dobrar um ângulo e  entraram numa passa-
gem paralela a primeira. À direita, em toda a extensão do cor-
redor, havia uma parede nua, só interrompida num ponto por
uma porta de sólida aparência com o  letreiro: anfiteatro.
ESHOL-2

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À  esquerda, passaram sucessivamente por uma porta com
a placa: dr. lucius dunning, medicina interna; um pouco
adiante, por outra abertura assinalada: sala de espera; e, fi-
nalmente, uma terceira porta diante da qual o companheiro de
Ellery estacou, sorrindo. A  porta tinha a  inscrição: dr. john
minchen, diretor clínico.
Era um aposento grande, de mobília esparsa, dominado
por uma escrivaninha. Junto às paredes, viam-se diversos ar-
mários onde rutilavam instrumentos metálicos sobre as pra-
teleiras de vidro. Havia quatro cadeiras, uma estante baixa
e larga, cheia de pesados volumes, e numerosos arquivadores.
— Sente-se, tire o sobretudo e conte-me o que há — disse
Minchen, sentando-se na cadeira giratória do outro lado da es-
crivaninha; reclinou-se com as mãos fortes, de dedos espatula-
dos, atrás da cabeça.
— Uma única pergunta — murmurou Ellery, atravessando
o  gabinete a  passos largos. Inclinou-se por cima da escriva-
ninha e cravando em Minchen um olhar ansioso perguntou:
— Existe alguma circunstância que possa abreviar o espaço de
tempo em que habitualmente começa o rigor mortis?
— Sim. De que morreu o paciente?
— De um tiro…
— Idade?
— Cerca de quarenta e cinco, acho eu.
— Patologia? Quero dizer, alguma doença? Diabetes, por
exemplo?
— Que eu saiba, não.
Minchen balanceou-se docemente na cadeira. Ellery re-
cuou, sentou-se e procurou um cigarro.
— Tome, fume dos meus — disse Minchen. — Bem, Ellery,
vou dizer-lhe. O rigor mortis é manhoso, e geralmente prefiro
examinar o cadáver antes de me pronunciar. Falei em diabetes

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por ser quase inevitável que uma pessoa de mais de quarenta
anos, atacada dessa doença, fique rígida cerca de dez minutos
após uma morte violenta…
— Dez minutos? Santo Deus! — Ellery esbugalhou os olhos
para Minchen, com o cigarro pendente dos lábios delgados e fir-
mes. — Dez minutos — repetiu consigo mesmo em voz baixa.
— Diabetes… John, permita-me que utilize o seu telefone!
— À  vontade.  — Minchen abanou a  mão e  recostou-se
na cadeira. Ellery disse rispidamente um número, falou com
duas pessoas, e conseguiu ligação para o gabinete do médico-
-legista.
— Prouty? É Ellery Queen… A autópsia de Jiménez não
revelou vestígios de açúcar no sangue?… Quê? Diabético cró-
nico, hem? Diabos me levem!
Repôs lentamente o auscultador, respirou fundo e arrega-
nhou os dentes. Tinham-lhe desaparecido do rosto as rugas de
preocupação.
— Tudo está bem, quando termina mal, John. Prestou-me
um precioso auxílio esta manhã. Mais um telefonema e  está
tudo acabado.
Ligou para a Sede da Polícia.
— Inspetor Queen… Pai? Foi O’Rourke… Positivamente.
A  perna partida… Sim. Partida depois da morte… cerca de
dez minutos… Excelente! E eu também.

— Não se vá, Ellery — disse Minchen afavelmente. — Tenho


algum tempo disponível, e há séculos que não o vejo.
Continuaram sentados, fumando. Ellery mostrava uma ex-
pressão singularmente calma.
— Fico aqui o  dia inteiro, se quiser  — riu-se. —  O  meu
amigo forneceu a palha que quebrou a espinha de um camelo

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teimoso… Afinal de contas, não devo ser tão severo comigo
mesmo. Não tendo estudado os mistérios da profissão galé-
nica, era-me impossível saber isso da diabetes.
— Oh, nós não somos totalmente inúteis — disse Minchen.
— Na verdade, eu andava com o assunto da diabetes na cabeça.
Justamente, a  personagem mais importante do hospital, um
caso crónico de diabetes mellitus, sofreu um acidente grave no
edifício, esta manhã. Caiu do alto de uma escada. Rutura da ve-
sícula biliar; Janney está-se a preparar para a operar imediata-
mente.
— Que pena! Quem é essa personagem tão importante?
— Abby Doorn. — Minchen ficou sério. — Tem mais de
setenta anos e,  embora esteja bem conservada para a  idade,
a sua condição de diabética torna bastante delicada a opera-
ção. O único aspeto compensador do caso é que ela está em
estado de coma, e não será preciso anestesia. Todos esperáva-
mos que a  velha fosse à  faca por causa de uma ligeira apen-
dicite crónica, no próximo mês, mas eu sei que Janney esta
manhã não lhe tocará no apêndice… só para não complicar
a situação dela. Não é tão grave como eu provavelmente lhe
estou a fazer supor. Se a paciente não fosse Mrs. Doorn, Janney
consideraria interessante o  caso, e  nada mais.  — Consultou
o relógio. — A operação é às dez e quarenta e cinco; são quase
dez. Gostaria de presenciar o trabalho de Janney?
— Eu…
— Ele é  maravilhoso, como sabe. O  melhor cirurgião do
Leste. É  cirurgião-chefe do hospital, em parte graças à  ami-
zade de Mrs. Doorn, e naturalmente pela sua maestria no bis-
turi. Porque não fica? Janney há de salvá-la; vai operar no An-
fiteatro, do outro lado do corredor. Janney garante que tudo
há de correr bem, e quando ele o diz, pode-se ficar tranquilo.
— Suponho que não tenho outro remédio — disse Ellery

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lastimosamente. — A falar verdade, nunca assisti a uma ope-
ração. Acha que posso ter algum ataque? Sou um bocadinho
nervoso, John… — Riram-se. — Ela é milionária, filantropa,
mulher de prestígio, potência financeira… Maldita mortali-
dade da carne!
— É um golpe para todos nós — disse Minchen pensativo,
estendendo confortavelmente as pernas debaixo da escrivani-
nha. — Sim, Abigail Doorn… Decerto sabe que foi ela a funda-
dora deste hospital, Ellery? Ideia sua, dinheiro seu, na verdade,
uma instituição sua… Ficámos todos abalados, asseguro-lhe.
Janney mais que os outros. Ela tem sido a sua fada madrinha
praticamente durante toda a  vida. Custeou-lhe os estudos na
Johns Hopkins, em Viena, na Sorbonne… a bem dizer, fez dele
o homem que é hoje. Como era de esperar, Janney insistiu na
intervenção, e por certo a realizará ele mesmo. Não há nervos
mais firmes na classe.
— Como se deu o acidente? — perguntou Ellery, curioso.
— Destino, penso eu… Sabe, às segundas-feiras de manhã,
ela vem cá sempre inspecionar as enfermarias de caridade, sua
ideia predileta; e hoje, quando ia a descer uma escada no ter-
ceiro andar, entrou em estado de coma diabético, despenhou-
-se pela escada abaixo e  foi cair sobre o  ventre… Por sorte,
Janney estava aqui. Examinou-a logo, e um exame superficial
mostrou que a vesícula biliar se rompera com a queda, abdó-
men inchado, intumescido… Bem, só havia uma coisa a fazer.
Janney começou a aplicar-lhe o tratamento de emergência: in-
sulina-glicose…
— Que foi que originou o coma?
— Descobrimos que foi negligência da parte de Sarah
Fuller, a dama de companhia de Mrs. Doorn, mulher de meia-
-idade, que está com Abby há vários anos; governa a casa e faz-
-lhe companhia. Sabe, o estado de Abby requeria três injeções

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diárias de insulina. Janney sempre insistiu em aplicá-las pes-
soalmente, embora, na maioria desses casos, o próprio doente
possa injetar a insulina. A noite passada, Janney foi retido por
um caso muito importante. Como sempre faz quando não
pode ir a casa dos Doorns, telefonou a Hulda, filha de Abby.
Mas Hulda não estava em casa, e ele encarregou essa tal Fuller
de dizer a Hulda, quando chegasse, que desse a injeção. Sarah
Fuller parece que se esqueceu; Abby, geralmente, não se preo-
cupa muito com o  tratamento; resultado: a  dose não foi ad-
ministrada na noite passada. Hulda, hoje, dormiu até tarde,
ainda sem saber do recado de Janney. E novamente Abby ficou
sem a sua injeção esta manhã. Para cúmulo, teve uma refeição
abundante. E pronto. O teor de açúcar no sangue logo superou
a quantidade de insulina, e seguiu-se inevitavelmente o coma.
Quis a má sorte que o ataque se desse no alto de uma escada.
E aí está.
— Lamentável!  — murmurou Ellery. —  Suponho que
todos foram avisados, não? Vai haver uma deliciosa reunião de
família aqui, aposto.
— Mas não na Sala de Operações — disse Minchen, car-
rancudo. — Ficam todos na Sala de Espera, aqui ao lado. A fa-
mília não pode entrar no Anfiteatro, não sabia disso? Bem!
Que tal, se déssemos uma voltinha por aí? Gostaria de mos-
trar-lhe o estabelecimento. Embora seja eu que o diga, é um
hospital modelo.
— Concordo consigo, John.
Deixaram o gabinete de Minchen e seguiram pelo Corre-
dor Norte, tomando o mesmo caminho da vinda. Minchen in-
dicou a porta que levava ao Anfiteatro, do qual iam, mais tarde,
assistir à intervenção, e também a porta da Sala de Espera.
— Provavelmente, algumas pessoas da família estão ali den-
tro agora — comentou Minchen. — Não se pode permitir-lhes

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que andem de um lado para o outro… Mais duas salas de opera-
ções no Corredor Oeste — prosseguiu, ao dobrarem o ângulo.
— Temos sempre bastante que fazer… contamos com um dos
mais numerosos corpos de cirurgiões do Leste… Do outro lado,
aqui à esquerda, fica a principal sala de operações, chamada An-
fiteatro, que tem dois compartimentos especiais: uma Antessala
e uma Unidade de Anestesiologia. Como vê, há uma porta que
conduz deste Corredor Oeste à Antessala, e outra entrada, para
a Unidade de Anestesiologia, aqui à esquina, no Corredor Sul…
É no Anfiteatro que se realizam as operações mais importan-
tes; também é usado para demonstrações aos internos e às en-
fermeiras. Temos outras salas de operações lá em cima, é claro.
Estranha quietude reinava no hospital. De quando em
quando, um vulto de branco escoava-se pelos longos corredo-
res. Pareciam ter sido completamente eliminados os ruídos. As
portas giravam em gonzos bem lubrificados e não faziam baru-
lho ao fechar-se. Suave luz difusa banhava o interior do edifício.
À exceção do odor químico, o ar era muito puro.
— A  propósito  — disse Ellery subitamente, ao entrarem
sem pressa no Corredor Sul —, se não me engano disse-me há
pouco que Mrs. Doorn não seria anestesiada para a intervenção.
É só por se encontrar em estado de coma? Eu tinha a impressão
que se aplicava anestésico em todos os casos cirúrgicos.
— Pergunta justa — reconheceu Minchen. — E é verdade
que na maioria dos casos, praticamente todos, se emprega
anestésico. Mas os diabéticos são pessoas esquisitas. Sabe, ou
antes, suponho que não sabe que toda a  intervenção cirúr-
gica num diabético crónico é  perigosa. Até a  pequena cirur-
gia pode ser fatal. Tivemos um caso há poucos dias. Entrou
um paciente no dispensário com uma chaga no dedo do pé…
algum pobre diabo. O médico de serviço… ora, não passou de
um desses acidentes imprevisíveis na rotina dos dispensários.

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Limpou-se o pé, o paciente foi para casa. Na manhã seguinte,
encontraram-no morto. A autópsia revelou que o homem es-
tava cheio de açúcar. Provavelmente nem ele próprio sabia…
«Mas, como eu ia dizendo, operar um diabético é uma difi-
culdade tremenda. Quando a intervenção é absolutamente ne-
cessária, institui-se um processo de preparação que, num pe-
ríodo relativamente curto, permite restabelecer o  conteúdo
normal de açúcar no sangue do paciente. E mesmo enquanto se
realiza a operação, aplicam-se incessantemente injeções alter-
nadas de insulina e glicose para manter no nível normal o teor
de açúcar. Terão de fazer isso com Abby Doorn. Ela está a ser
submetida agora a esse tratamento insulina-glicose, ao mesmo
tempo que fazem análises do sangue para verificar a diminui-
ção de miligramas de açúcar. Esse tratamento de emergência
leva cerca de hora e meia, talvez duas horas. Geralmente pro-
longa-se o tratamento por um mês, mais ou menos… a restau-
ração demasiado rápida pode afetar o fígado. Mas com Abby
Doorn não temos outro remédio; não podemos abandonar
nem por meio dia aquela rutura da vesícula biliar.
— Sim, mas quanto ao anestésico?  — perguntou Ellery.
—  Tornaria ainda mais perigosa a  operação? É  por isso que
confiam no estado comatoso para evitar os efeitos do choque?
— Exatamente. Mais perigosa e mais complicada. Temos de
aceitar o que os deuses nos dão. — Minchen deteve-se, com a
mão na maçaneta de uma porta com o dístico: sala de exa-
mes. — Naturalmente, um anestesista ficará ao pé da mesa de
operações, pronto para intervir sem perda de um instante, no
caso de Abby voltar a si do coma… Entre aqui, Ellery. Desejo
mostrar-lhe como se trabalha num hospital moderno.
Empurrou a  porta e  fez sinal a  Ellery para que entrasse.
Ellery notou que um painel da parede, iluminado por uma pe-
quenina lâmpada elétrica, brilhou ao abrir-se a porta, indicando

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que a Sala de Exames se encontrava ocupada. Estacou aprecia-
tivamente no limiar.
— Lindo, hem? — disse Minchen, sorrindo.
— O que é aquilo ali?
— Fluoroscópio. Existe um em cada sala de exames. Na-
turalmente, há a mesa de exames comum, o pequeno esterili-
zador, o armário de medicamentos, a prateleira de instrumen-
tos… Pode ver por si mesmo.
— O instrumento — disse didaticamente Ellery — é uma
invenção do homem para copiar o seu Criador. Céus, não bas-
tam cinco dedos? — Riram-se ambos. — Eu ficaria sufocado
aqui. Nunca largam as coisas em qualquer parte?
— Não, enquanto John Quintus Minchen for chefe — sor-
riu o médico arreganhando os dentes. — Na verdade, fazemos
respeitar a ordem como um fetiche. Tome, por exemplo, os ar-
tigos acessórios. Todos estão guardados nestas gavetas — deu
um piparote num grande armário branco que estava a um canto
— e inteiramente fora das vistas e conhecimento de pacientes
e visitantes abelhudos. Todas as pessoas do hospital que preci-
sam sabem onde encontrá-los. Isto simplifica muito as coisas.
Abriu uma gaveta grande de metal no fundo do armário.
Ellery curvou-se e  contemplou uma exibição estonteante de
ligaduras sortidas. Outra gaveta continha tecidos e algodão hi-
drófilo; outra ainda algodão para curativos; e  outra, espara-
drapo.
— Tudo isto é organização — murmurou Ellery. — Os su-
bordinados perdem pontos quando aparecem com roupa suja
ou sapatos desatados, não é assim?
Minchen deu uma risadinha.
— Não errou por muito. O regulamento do hospital torna
obrigatório o  uso do uniforme da casa, que para os homens
é  sapatos de lona brancos, calças e  casaco branco; e,  para as

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mulheres, linho branco. Até o guarda, lá fora, como viu, está
também de branco. Os ascensoristas, pessoal da limpeza e da
cozinha, empregados de escritório, todos usam o  uniforme
do mesmo padrão, desde a hora em que põem o pé no edifí-
cio do hospital até largarem o serviço.
— Tenho a cabeça a andar à roda — gemeu Ellery. — Deixe-
-me sair daqui.
Quando emergiam mais uma vez no Corredor Sul, avista-
ram um rapaz alto, de sobretudo claro e chapéu na mão, que se
aproximava a passos apressados. Olhou na direção deles, vaci-
lou, depois virou-se subitamente para o Corredor Leste à sua
direita e desapareceu.
A fisionomia franca de Minchen sombreou-se.
— Ia-me esquecendo de Abigail, a poderosa — murmurou.
— Ali vai o procurador dela, Philip Morehouse. Rapaz inteli-
gente. Dedica todo o seu tempo aos interesses de Abby.
— Já soube da notícia, pelo que vejo — observou Ellery.
— Terá assim um interesse tão pessoal em Mrs. Doorn?
— Eu diria antes na encantadora filha de Mrs. Doorn — vol-
veu secamente Minchen. — Ele e Hulda compreendem-se às
mil maravilhas. É um verdadeiro romance, na minha opinião.
E pelo que todos dizem, Abby, à sua maneira imponente de se-
nhora do castelo, vê o caso com bons olhos… Bem! Creio que
o clã se está a reunir… Olá! Aí está o velho mestre em pessoa.
Acaba de sair da Sala de Operações A… Olá, doutor!

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