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Ficha Técnica

Título: Tudo Passa


Título original: Все Течет
Autor: Vassili Grossman
Traduzido do russo por Nina Guerra e Filipe Guerra
Posfácio de Filipe Guerra
Edição: Cecília Andrade
Revisão: Clara Boléo
Capa: Rui Garrido
ISBN: 9789722051767

Publicações Dom Quixote


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Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.


1

O comboio de Khabárovsk chegava a Moscovo às nove da manhã. Um


jovem de pijama e poupa no cabelo coçou a cabeça e, pela janela, ficou a
olhar para o crepúsculo da manhã outonal. Bocejando, dirigiu-se às pessoas
com toalhas e saboneteiras que estavam no corredor:
– Cidadãos, quem é o último da fila?
Explicaram-lhe que uma senhora corpulenta marcara o lugar na bicha
depois do homem com um tubinho torcido de pasta dentífrica e um sabão nas
mãos.
– Porque é que só está aberta uma casa de banho? – perguntou o jovem.
– Estamos quase no terminus, não tarda que cheguemos à capital, mas os
encarregados da carruagem só se preocupam com o comércio que fazem, não
têm tempo de servir o passageiro de modo civilizado.
Passados alguns minutos, apareceu uma gorda de roupão, e o jovem disse-
lhe:
– Estou atrás da senhora, mas por enquanto vou até ao meu compartimento
para não estar a secar aqui no corredor.
No compartimento, o jovem abriu uma mala cor de laranja e admirou com
prazer as suas coisas.
Entre os seus vizinhos, um homem de nuca larga e inchada dormia,
ressonando; outro, um jovem careca de faces coradas, punha em ordem os
papéis da sua pasta; o terceiro, um velho magro, estava sentado, apoiando a
cabeça nos punhos castanhos, e olhava pela janela.
O jovem perguntou ao vizinho de bochechas coradas:
– Ainda o vai ler? É que tenho de arrumar o livrinho na mala.
Gostaria que o vizinho lhe admirasse a mala. Havia ali camisas de viscose,
um Breve Dicionário de Filosofia, calções de banho, óculos escuros com
armação branca. De lado, cobertas com um jornal distrital de pequeno
formato, estavam bolachas cinzentas caseiras, da aldeia.
O vizinho respondeu:
– Faça o favor… Já li este livro, Eugénia Grandet, no ano passado, numa
casa de repouso.
– É uma obra forte, nada a dizer – disse o jovem e guardou o livro na mala.
Pelo caminho, tinham jogado às cartas e, comendo e bebendo vinho,
falaram de filmes, de discos, de mobílias, das casas de repouso de Sótchi, da
agricultura socialista, discutiram quem tinha o melhor ataque, se o Spartak, se
o Dínamo…
O careca de bochechas coradas trabalhava como instrutor no Conselho
Nacional dos Sindicatos, num centro regional, o da poupa regressava a
Moscovo onde era economista no Comité Estatal de Planificação, depois de
umas férias na aldeia.
O terceiro companheiro de viagem, mestre de obras siberiano, e que estava
agora a ressonar no banco de baixo, não lhes agradou pela sua falta de
cultura: soltava palavrões, arrotava depois de comer e, quando soube que um
companheiro de viagem trabalhava no Comité de Planificação, na área das
ciências económicas, declarou:
– Economia política? Pois, é a ciência que ensina como os kolkhozianos
vão da aldeia para a cidade comprar pão aos operários.
Num entroncamento ferroviário, bebeu muito no bufete onde, pela
expressão dele, tinha ido «picar o ponto», e nunca mais deixava dormir os
vizinhos, gritando:
– No nosso trabalho, não se consegue nada pela lei, se quisermos cumprir o
plano temos de trabalhar como a vida o exige: «Dou-te isto, dás-me aquilo.»
Nos tempos do czar chamava-se «iniciativa privada», mas no nosso entender
é isto: deixa que o homem viva, o homem quer viver; isto é que é a
economia! Os meus montadores de armações durante todo um trimestre, até
termos recebido um novo crédito, assinaram as folhas de pagamento como
educadoras de infância. A lei vai contra a vida, mas a vida faz as suas
exigências! Cumprimos o plano, dão-nos um aumento de salário e um
prémio, mas, a propósito, podem também espetar-nos com dez anos no
lombo. A lei contra a vida, e a vida contra a lei.
Os jovens calaram-se, mas quando o mestre de obras ficou em silêncio, ou
melhor, não ficou em silêncio porque começou a ressonar alto, censuraram-
no:
– É preciso também estar de olho nestes. Disfarçados de nossos irmãos
operários.
– Interesseiro sem escrúpulos. E sem princípios. Como se fosse um
judeuzeco.
Estavam ressentidos porque aquele homem grosseiro, provinciano, os
desprezava.
– Nas minhas obras há trabalhadores presidiários, e à gente como vocês
chamam pridúrki1, mas quando chegar a altura de definir quem é que
construiu o comunismo, os heróis serão vocês – dissera-lhes, numa ocasião, o
mestre de obras e foi para o compartimento vizinho jogar ao burro.
O quarto companheiro de viagem não costumava, pelos vistos, andar em
carruagem de segunda classe. A maior parte do tempo manteve-se sentado
com as mãos nos joelhos, como que a tapar os remendos das calças. As
mangas da camisa preta de cetim não lhe chegavam aos pulsos, e os botões
brancos no colarinho e no peito davam à camisa um aspeto infantil. Costuma
haver qualquer coisa de cómico e de comovedor nesta combinação de botões
brancos infantis na roupa com as têmporas encanecidas e os olhos velhos,
extenuados.
Quando o mestre de obras disse com uma voz habituada a mandar:
«Paizinho, deixa-me o lugar à mesinha, vou tomar chá», o velho levantou-se
de um salto, como um soldado, e saiu para o corredor.
Na sua mala de madeira com a tinta descascada, ao lado da roupa gasta
havia um pão esboroado. Fumava tabaco barato e, depois de enrolar um
cigarro, ia até à porta da carruagem para que o fumo fedorento não
incomodasse os vizinhos.
De vez em quando, os vizinhos ofereciam-lhe chouriço, e o mestre de obras
deu-lhe um ovo cozido e um copinho de vodca.
Mesmo os que eram duas vezes mais novos do que ele tratavam-no por tu,
e o mestre de obras não parava de entrar com ele, dizendo que, chegado à
capital, o «paizinho» ia fingir-se solteiro e casar-se com uma jovem.
A certa altura começou na carruagem uma conversa sobre os kolkhozes, e o
jovem economista começou a censurar os mandriões da aldeia.
– Acabei de ver com os meus próprios olhos e de me convencer: juntam-se
ao lado do prédio administrativo a coçar-se. O presidente do kolkhoze e os
chefes das brigadas suam as estopinhas para os porem a trabalhar. E os
kolkhozianos ainda se queixam de que, se nos tempos de Stálin não lhes
pagavam nada, hoje também nada lhes pagam.
O inspetor sindicalista, baralhando pensativamente as cartas, apoiou-o:
– Porque é que lhes devem pagar se eles não cumprem os planos de
fornecimento? É preciso educá-los, mas assim – e abanou um grande punho
branco, o do camponês desabituado de trabalhar.
O mestre de obras passou a mão pelo peito grosso com fitas de
condecorações ensebadas:
– Nós, na frente de combate, tínhamos pão, o povo russo deu-nos o
alimento. E ninguém precisou de o educar.
– Certo – disse o economista. – Seja como for, o principal é que somos
russos. O homem russo não é brincadeira!
O inspetor, sorrindo, piscou o olho ao seu companheiro de viagem: isso
mesmo, o russo é o irmão mais velho, o primeiro entre os iguais!
– Aí é que está a chatice – disse o jovem economista. – É que eles são
russos, não são de uma minoria nacional qualquer! Um tipo foi falar comigo:
«Há cinco anos que andamos a comer folhas de tília, não recebemos nada
desde o ano quarenta e sete.» Mas trabalhar não é com eles. Não querem
perceber que, agora, tudo depende do povo.
Olhou para o mujique encanecido que ouvia a conversa em silêncio e disse:
– Não te zangues, paizinho. Vocês não cumprem o dever laboral, embora o
Estado se tenha virado para o camponês.
– É claro – disse o mestre de obras. – Não têm consciência nenhuma,
querem comer todos os dias.
Esta conversa, como a maioria das conversas de carruagem e não só, não
deu em nada. Um major da aviação, brilhando com os dentes de ouro,
espreitou para o compartimento e disse aos jovens em tom de censura:
– Então, camaradas? E que tal trabalhar?
E foram para o compartimento vizinho para acabar a série de jogos.
Mas já termina a grande viagem… Os passageiros guardam nas malas os
chinelos, põem em cima das mesinhas bocados de pão seco, ossos de frango
trincados até ficarem azulados, restos de chouriço esbranquiçado,
embrulhado na tripa.
Já passaram pelas carruagens as encarregadas soturnas, juntando a roupa de
cama amarrotada.
Dali a pouco, aquele mundo de carruagem ficará desfeito. As brincadeiras,
os rostos, os risos e as vidas contadas por acaso e os ocasionais desabafos
dolorosos serão esquecidos.
A gigantesca cidade, capital do grande Estado, está cada vez mais perto. E
as reflexões e as preocupações da viagem já se desvaneceram. As conversas
com uma vizinha de compartimento na plataforma fechada, onde corre em
frente dos nossos olhos, por trás dos vidros embaciados, a grande planície
russa e a água borbulha nos reservatórios de água da carruagem, foram
esquecidas.
O estreito mundo de carruagem, que dura só alguns dias, está a derreter-se,
um mundo igual, pelas suas leis, a todos os outros mundos criados pelos
homens e que se movimentam em linhas retas e curvas pelo espaço e pelo
tempo.
A força da gigantesca cidade é grande. Faz com que se apertem mesmo os
corações despreocupados daqueles que vão à capital de visita, para
percorrerem as lojas, para verem o jardim zoológico, o planetário. Quem cair
no seu campo de força, onde se esticam as linhas invisíveis da energia viva da
cidade de importância universal, sente de repente uma ansiedade, uma
emoção.
O economista por pouco não perdeu a vez na bicha para a casa de banho.
Agora, penteando o cabelo, voltou para o seu lugar e passou os olhos pelos
vizinhos de compartimento.
O mestre de obras, com os dedos trementes (bebeu-se muito pelo caminho),
estava a folhear as faturas.
O inspetor sindicalista já vestira o casaco e tornou-se acanhado e tímido ao
cair no campo de força da ansiedade humana – o que irá dizer-lhe a senhora
biliosa, de cabelo branco, supervisora dos inspetores do Conselho Nacional?
O comboio corre ao longo das casinhas de troncos rurais e das fábricas
construídas em tijolo, ao longo dos campos de repolho cor de estanho, ao
longo de plataformas de apeadeiros com charcos cinzentos no alcatrão,
deixados pela chuva noturna.
Nas plataformas estão pessoas sombrias, os habitantes dos arredores, de
impermeáveis de plástico por cima dos casacos. Os fios das linhas de alta
tensão pendem, bambos, sob as nuvens cinzentas. Nas vias de resguardo, os
vagões cinzentos, sinistros: «Estação Matadouro da Linha Circular».
Entretanto, o comboio ribomba e corre a uma velocidade que parece
maldosa, cada vez maior. Esta velocidade espalma, quebra o espaço e o
tempo.
O velho estava sentado, olhando pela janela, apoiando as têmporas nos
punhos. Muitos anos atrás, um jovem mal penteado, desgrenhado, ia sentado
da mesma maneira junto à janela da carruagem de terceira classe. E, embora
as pessoas que iam com ele naquela carruagem se tivessem desvanecido da
sua memória, e também as suas caras e os seus discursos, na cabeça
encanecida voltou a surgir o que, ao que tudo indicava, já não existia.
O comboio já entrava na cintura verde dos arredores de Moscovo. O fumo
cinzento, rasgado, agarrava-se aos ramos dos abetos, colava-se a eles
empurrado pelas rajadas de vento, fluía por cima das cercas das casas de
campo. Que familiares lhe são estas silhuetas de severos abetos nortenhos, e
que estranhas parecem, ao lado deles, as ripas azul-claras, os telhados
pontiagudos das casas de campo, os vidros multicores dos terraços, os
canteiros de dálias.
E o homem que, durante três longínquos decénios, não se tinha lembrado
nem uma vez de que existiam no mundo os arbustos de lilases, os amores-
perfeitos, os carreiros dos pomares, cobertos de areia, os carrinhos com
aparelhos de água gasosa, soltou um «ah!» ao voltar a convencer-se, de
maneira nova, de que a vida tinha corrido também sem ele, que tinha
continuado.
1 Pridúrki – no calão dos campos correcionais, presidiários que têm possibilidade de esquivar-se aos
trabalhos; normalmente são os mais perigosos criminosos comuns. (N. dos T.)
2

Ao ler o telegrama, Nikolai Andréevitch lamentou a gorjeta dada ao


carteiro – o telegrama, pelos vistos, não era para ele –, mas de repente
lembrou-se, e admirou-se: ah, o telegrama era do primo Ivan.
– Macha! Macha! – gritou à mulher.
Maria Pávlovna pegou no telegrama e disse:
– Sem óculos sou completamente cega, tu bem sabes. Dá-me os óculos. É
pouco provável que o registem em Moscovo…
– Ah, não fales do registo.
Nikolai Andréevitch passou a mão pelo sobrolho e disse:
– Imagina, o Ivan vem aí e encontra só campas, apenas campas.
Maria Pávlovna disse pensativamente:
– Os Sokolov… aquilo é um pouco embaraçoso. Vamos mandar uma
prenda, é claro, mesmo assim… é que Sokolov faz cinquenta anos, uma data
especial.
– Não faz mal, eu explico-lhes.
– E a partir do banquete de homenagem vai correr a notícia por toda a
Moscovo: que o Ivan voltou e foi da estação diretamente para a tua casa.
Nikolai Andréevitch brandiu o telegrama em frente da cara dela:
– Mas não compreendes o que significa o Ivan para a minha alma?
Estava irritado com a mulher: o disparate que Maria Pávlovna acabava de
lhe dizer já surgira na mente dele ainda antes de ela o ter pronunciado. Não
era a primeira vez que tal acontecia. Nikolai Andréevitch explodia ao ver nela
as suas próprias fraquezas, mas não compreendia que se indignava com as
imperfeições dele, e não dela. O rancor nas discussões com a mulher também
lhe desaparecia muito fácil e rapidamente porque gostava de si próprio: ao
perdoar à mulher, era a si que perdoava.
Neste momento, obcecava-o também o pensamento estúpido sobre o
cinquentenário de Sokolov. Então, como a notícia do regresso do primo o
comoveu e porque a sua própria vida, cheia de verdade e não verdade, se
levantou perante ele, sentiu vergonha por ter pena de faltar ao jantar de gala e
não beber vodca do belo jarro em casa dos Sokolov.
Teve vergonha da miséria das suas considerações: a ideia de que seria
preciso atarefar-se com o registo de Ivan, de que o regresso do primo seria
conhecido por toda a Moscovo e que este acontecimento o afetaria nas
eleições para a Academia, pois, bem, também a ele tinha passado pela cabeça
esta ideia…
Entretanto, Maria Pávlovna continuava a atormentar Nikolai Andréevitch,
exprimindo em voz alta, transformando numa evidência diurna os
pensamentos dele, ocasionais e ilusórios, ou seja, que não chegavam a tornar-
se reais.
– Que estranha tu és, mulher – disse ele –, parece que seria mais agradável
receber este telegrama se não estivesses em casa.
Estas palavras eram ofensivas, mas Maria Pávlovna sabia que o marido iria
abraçá-la a seguir e dizer: «Macha, Macha, teremos esta alegria juntos. Com
quem mais senão contigo?»
E foi, realmente, o que ele fez. E ela ficou parada com uma expressão
paciente e desagradável que significava: «As tuas palavras carinhosas não me
dão prazer nenhum, mas aguento.»
Logo que os seus olhos se cruzaram, contudo, o sentimento de amor varreu
todas aquelas maldades.
Viviam juntos, sem separações, havia vinte e oito anos – é difícil
compreender a essência das relações entre pessoas que vivem juntas há quase
um terço de século.
Agora ela, de cabelo branco, ia à janela, olhava para ele, de cabelo branco,
a entrar no automóvel. Mas em tempos, em jovens, costumavam almoçar no
pobre refeitório da rua Brônnaia.
– Nikolai – disse Maria Pávlovna baixinho –, o Ivan nunca viu o nosso
Vália. Quando foi preso, Vália ainda não tinha nascido. E agora que Ivan está
de volta, Vália está no túmulo há já oito anos.
E esta ideia deixou-a abalada.
3

Nikolai Andréevitch, à espera do primo Ivan, pensava na sua vida e


preparava o modo do seu arrependimento para com ele. Imaginava como iria
mostrar-lhe a casa. Um tapete da Turcoménia na sala de jantar, olha, não é
lindo? Macha tem bom gosto, para Ivan não é segredo quem era o pai dela, e
na antiga Petersburgo, graças a Deus, sabiam viver.
Como vai falar com Ivan? É que passaram décadas, toda uma vida. Não, a
conversa será precisamente noutro sentido: a vida não passou! Começa
precisamente agora!
Sim, será um grande encontro! Ivan volta numa altura espantosa, com
tantas mudanças depois da morte de Stálin, mudanças que abrangeram toda a
gente. Operários, camponeses. Há pão! E Ivan voltou do campo correcional.
E não só ele. E na vida de Nikolai Andréevitch também aconteceu uma
reviravolta que determinou muita coisa.
Desde os anos universitários, Nikolai Andréevitch sentia na pele o fardo do
azar. Este fardo era torturante sobretudo porque lhe parecia injusto. Era culto,
trabalhou muito, era considerado um conversador espirituoso, as mulheres
apaixonavam-se por ele. Tinha orgulho na sua reputação de homem honesto,
de princípios, e ao mesmo tempo a hipocrisia beata era-lhe alheia, gostava de
anedotas à mesa do jantar, era conhecedor de marcas de vinhos secos e, não
raro, menosprezando o vinho, preferia a vodca.
Quando os conhecidos louvavam o caráter de Nikolai Andréevitch, Maria
Pávlovna, olhando para o marido com os olhos cheios de raiva alegre,
costumava dizer:
– Se vivessem com ele sob o mesmo teto, ficariam a conhecer bem este
maravilhoso Nikolai: déspota, psicopata, um egoísta nunca visto.
Por vezes irritavam-se um com o outro insuportavelmente porque sabiam
de cor todas as suas fraquezas, todos os seus defeitos. Por vezes até lhes
parecia que seria melhor se se separassem. Mas era uma ilusão, pelos vistos
não podiam viver um sem o outro, seria um grande sofrimento para eles.
Maria Pávlovna apaixonou-se por Nikolai Andréevitch quando ainda era
aluna da escola secundária, e a sua voz, a testa alta, os dentes grandes, o
sorriso, tudo o que lhe parecia espantoso e maravilhoso trinta anos atrás ia-se
tornando para ela, com a passagem dos anos, cada vez mais querido.
Ele também a amava, mas o seu amor mudara, o que dantes tinha sido
essencial nas suas relações desaparecera, enquanto os aspetos que então não
lhe pareciam os mais importantes ocupavam agora o lugar principal.
Maria Pávlovna fora, em tempos, muito bonita – alta, de olhos escuros.
Ainda hoje os seus gestos são de uma leveza notável, e os olhos não
perderam o encanto jovem. Porém, já na juventude, e agora ainda mais, o seu
sorriso estragava o encanto do rosto – quando sorria, os dentes grandes,
espetados para a frente, ficavam à vista.
Desde os anos estudantis, Nikolai Andréevitch sentia dolorosamente o
quanto era azarado. Não eram os seus relatórios, minuciosamente preparados,
mas os discursos apressados do ruivo Radiónov ou do bebedolas Pijov que
emocionavam os participantes dos seminários estudantis…
Nikolai Andréevitch chegou a ter o cargo de colaborador científico da
categoria superior num famoso instituto de investigação, publicou dezenas de
trabalhos, defendeu uma tese de doutoramento. Mas apenas a sua mulher
sabia que tormentos e humilhações ele sofria.
A principal força viva na sua área científica era constituída por várias
pessoas, entre as quais um académico, duas que ocupavam cargos mais
baixos do que o de Nikolai Andréevitch, e mais um senhor que nem sequer
defendeu tese nenhuma. Esses homens davam a Nikolai Andréevitch o valor
de um bom interlocutor, respeitavam a sua probidade, mas, apesar de toda a
sinceridade e benevolência com que o tratavam, não o consideravam um
cientista.
Nikolai Andréevitch sentia permanentemente a atmosfera de tensão e
admiração que rodeava essas pessoas, sobretudo ao coxo Mandelstam.
A certa altura, uma revista científica londrina escreveu sobre Mandelstam:
«Grande continuador do trabalho dos fundadores da biologia moderna.»
Quando Nikolai Andréevitch leu esta frase, imaginou como seria ler
semelhantes palavras sobre ele próprio e depois morrer de felicidade.
Mandelstam portava-se mal: ora estava soturno e oprimido, ora se exprimia
em tom arrogante e didático; depois de ter bebido alguns copos em casa de
alguém, começava a ridicularizar cientistas seus conhecidos, chamando-lhes
medíocres e, a alguns, aventureiros e aldrabões. Este seu traço irritava muito
Nikolai Andréevitch, porque Mandelstam descompunha pessoas com quem
tinha amizade e que visitava. E Nikolai Andréevitch pensava que,
provavelmente, de visita em alguma outra casa, Mandelstam se referia
também a ele, Nikolai Andréevitch, como aldrabão e medíocre.
A mulher de Mandelstam – gorda, outrora bonita, que pelos vistos apenas
prezava jogos de azar e a fama científica do seu marido coxo – também
irritava Nikolai Andréevitch.
Ao mesmo tempo, sentia-se atraído por Mandelstam, dizia que para essas
pessoas especiais a vida nunca era fácil.
Mas quando Mandelstam lhe dava lições condescendentes, Nikolai
Andréevitch enraivecia-se, sofria e, ao voltar para casa, dizia que
Mandelstam era um arrivista.
Maria Pávlovna considerava o seu marido um homem de grande talento.
Nikolai Andréevitch contava-lhe sobre a condescendente indiferença dos
corifeus para com o seu trabalho, e a fé nele da parte da mulher tornava-se
cada vez mais tempestuosa. A sua admiração, a sua fé eram necessárias para
Nikolai Andréevitch como a vodca para um alcoólico. Ambos achavam que
havia pessoas com sorte e pessoas azarentas, mas que, em geral, todas eram
iguais em valor. Por exemplo, Mandelstam está marcado por uma sorte
especial, é uma espécie de Benjamim, filho da felicidade na ciência biológica,
e Radiónov, tal qual um tenor de ópera, está rodeado de admiradores –
embora o Radiónov, de nariz arrebitado e maçãs do rosto salientes, não tenha
qualquer semelhança com um cantor de ópera. Parecia que também Isaak
Khávkin tinha sorte, apesar de não lhe validarem o grau científico de doutor e
de, mesmo nos tempos mais calmos, por suspeita de ser adepto do vitalismo,
não lhe darem trabalho nos institutos científicos, pelo que ele, já de cabelo
branco, trabalhava num laboratório de sanitária e bacteriologia, andava de
calças rotas. Mas, veja-se: os académicos vão falar com ele, e no seu
miserável laboratório ele realiza um trabalho científico de que muita gente
fala e discute.
Quando começou a campanha de luta contra os seguidores de Weismann,
Virchow e Mendel2, Nikolai Andréevitch ficou triste com a severidade das
medidas tomadas contra muitos colegas. Tanto ele como Maria Pávlovna
ficaram desconcertados quando Radiónov não quis reconhecer os seus erros.
Radiónov foi despedido, e Nikolai Andréevitch, ao mesmo tempo que
censurava Radiónov pela sua atitude absurda de dom Quixote, arranjava-lhe
traduções do inglês.
Pijov foi acusado de servilismo perante o Ocidente e foi mandado trabalhar
para a região de Tchkálov. Nikolai Andréevitch escrevia-lhe, mandava-lhe
livros, e Maria Pávlovna preparou para a sua família uma encomenda na
altura da passagem do ano.
Os jornais começaram a publicar artigos satíricos que desmascaravam os
carreiristas, os aldrabões que, por vias vigaristas, obtiveram diplomas e graus
científicos; os médicos que tratavam as crianças doentes e as parturientes de
forma cruel e criminosa; os engenheiros que, em vez de hospitais e escolas,
construíam casas de campo para as suas famílias. Quase todos os
desmascarados na imprensa eram judeus, e os jornais mencionavam, com
uma especial aplicação, os seus nomes: «Srul Nakhmánovitch… Khaim
Abrámovitch… Israil Mendelevitch…» Se nalguma recensão era criticado
um livro escrito por um judeu que tinha um pseudónimo literário russo, o
apelido judaico do autor era posto ao lado, entre parênteses. Criava-se a
impressão de que na URSS apenas os judeus roubavam, eram corruptos,
criminosamente indiferentes aos sofrimentos dos doentes e escreviam livros
perversos e malfeitos.
Nikolai Andréevitch via que não eram só os guardas-varredores e os
passageiros bêbedos dos comboios suburbanos que gostavam dessas sátiras.
A ele indignavam-no, esses escritos, mas ao mesmo tempo sentia-se irritado
com os seus amigos judeus que levavam esses borrões tão a peito como se
fosse o Juízo Final. Queixavam-se de que os jovens judeus talentosos não
eram admitidos no doutoramento nem na faculdade de Física da universidade,
de que não lhes davam trabalho nos ministérios, na indústria ligeira e pesada,
de que os judeus que terminavam o curso superior eram mandados trabalhar
para a mais longínqua periferia. Diziam que, durante a redução de efetivos, os
despedimentos incidiam apenas, quase sempre, sobre os judeus.
É claro que tudo isso existia, mas os judeus imaginavam um grandioso
plano estatal que os condenava à fome, à degradação, à perdição. Ora Nikolai
Andréevitch achava que o problema consistia simplesmente na antipatia que
uma parte dos funcionários soviéticos e partidários tinham para com os
judeus, e que as secções de pessoal e os júris de admissão no ensino superior
não recebiam instruções nenhumas relativamente aos judeus. Stálin não era
antissemita e, pelos vistos, não tinha conhecimento dessas coisas.
Também não eram só os judeus os atingidos; o velho Tchurkóvski, Pijov e
Radiónov também passaram por desgraças.
Mandelstam, que chefiava o trabalho científico do Instituto, foi
despromovido e colocado como colaborador científico na secção em que
trabalhava Nikolai Andréevitch. Fosse como fosse, tinha a possibilidade de
continuar o seu trabalho, e o grau científico de doutor em Ciências garantia-
lhe um salário alto.
Porém, quando no jornal Pravda foi publicado um editorial sem assinatura
sobre os críticos teatrais cosmopolitas – Gúrvitch, Iuzóvski e outros – que
escarneciam do teatro russo, começou uma larga campanha de
desmascaramento dos cosmopolitas em todas as áreas da arte e da ciência, e
Mandelstam foi declarado antipatriota. A doutora Brátova escreveu, para o
jornal de parede, um artigo com o título «O desvinculado da terra materna»;
começava com as palavras: «Depois das suas longas viagens, Mark
Samuílovitch Mandelstam votou ao esquecimento os princípios da ciência
russa soviética…»
Nikolai Andréevitch foi logo a casa de Mandelstam, este mostrou-se
comovido, triste, e a sua arrogante mulher já não parecia tão arrogante.
Beberam vodca, Mandelstam rogou pragas a Brátova, sua aluna, com
palavras obscenas e, enfiando os dedos no cabelo, disse com angústia que os
seus outros alunos, jovens judeus talentosos, estavam a ser expulsos da
ciência.
– Então, como é, têm de vender quinquilharia nos quiosques? – perguntava.
– Não se enerve, toda a gente terá trabalho, você próprio e Khávkin, e até a
laboratorista Ánetchka Silberman – disse Nikolai Andréevitch em tom de
brincadeira –, resolve-se, toda a gente terá pão, e até com caviar.
– Meu Deus – respondeu Mandelstam –, não se trata do caviar, trata-se da
dignidade humana.
Porém, Nikolai Andréevitch enganou-se em relação a Khávkin, com ele as
coisas tornaram-se péssimas. Pouco tempo depois da publicação dos artigos
sobre os médicos assassinos, Khávkin foi preso.
A notícia de que os médicos cientistas e o artista Michoels3 tinham
cometido crimes monstruosos aturdiu toda a gente. Parecia que um negro
nevoeiro estava a pairar sobre Moscovo, penetrando nas casas, nas escolas,
nos corações humanos.
No artigo «Crónica», na quarta coluna do jornal, vinha escrito que todos os
médicos acusados reconheceram na instrução a sua culpa, pelo que já não
havia dúvida – eram todos criminosos.
Mesmo assim, parecia inconcebível, era difícil respirar, continuar a
trabalhar, sabendo que os professores médicos, académicos, tinham sido os
assassinos de Jdánov e de Cherbakov4 a quem tinham envenenado.
Nikolai Andréevitch lembrava-se do querido Vóvsi5, do maravilhoso ator
Michoels, e o crime de que foram acusados parecia incrível, impensável.
Mas se o confessaram! Se não tinham culpa, mas a reconheceram, era
lógico supor que estava a ser cometido um outro crime, ainda mais terrível do
que aquele que eles confessaram – um crime contra eles próprios.
Metia medo pensar nisso. Para duvidar da culpa dos acusados era preciso
ter uma grande coragem, porque então, neste caso, os criminosos teriam de
ser os chefes do Estado socialista e, então, Stálin era criminoso.
Os médicos conhecidos de Nikolai Andréevitch contavam que se tornara
aflitivo trabalhar nos hospitais e nas policlínicas. Sob a influência das
terríveis notícias, os doentes tornaram-se desconfiados, muitos recusavam-se
a ser tratados por médicos judeus. Os médicos contavam que apareceram
muitas queixas da população sobre tratamentos propositadamente incorretos.
Nas farmácias, as pessoas suspeitavam de que os farmacêuticos lhes tentavam
impor medicamentos venenosos; nos elétricos, nos mercados, nas instituições
contavam-se histórias de que, em Moscovo, tinham sido fechadas várias
farmácias em que os farmacêuticos judeus – agentes da América – vendiam
comprimidos com piolhos secos dentro; contava-se que nas maternidades os
recém-nascidos e as parturientes eram infetados com sífilis e que nos
ambulatórios odontológicos inoculavam aos doentes cancro do maxilar e da
língua. Falava-se de caixinhas de fósforos mortalmente venenosos. Algumas
pessoas recordavam circunstâncias da morte dos parentes que tinham falecido
havia muito, escreviam cartas para os órgãos de segurança, exigindo que se
instaurassem processos e se chamassem à responsabilidade os médicos
judeus. Mas o mais triste era o facto de que não só os guardas-varredores, os
carregadores e os motoristas semibêbedos e semialfabetizados, mas também
alguns doutores em ciências, escritores, estudantes universitários acreditavam
nesses boatos.
Esta atmosfera de desconfiança generalizada parecia insuportável a Nikolai
Andréevitch. A laboratorista, a nariguda Anna Naúmovna, chegava ao
trabalho pálida, com os olhos enlouquecidos, arredondados; uma vez contou
que uma vizinha dela, empregada da farmácia, vendera por distração um
medicamento errado a uma pessoa e, quando foi chamada para
esclarecimentos, aterrorizou-se tanto que se suicidou, deixando dois órfãos –
uma filha, estudante da escola profissional de música, e um filho em idade
escolar. Anna Naúmovna passou a ir a pé para o trabalho – nos elétricos, os
bêbedos encetavam com ela conversas sobre os médicos judeus que mataram
Jdánov e Cherbakov.
Nikolai Andréevitch sentia repulsa por Risskov, o novo diretor do Instituto.
Risskov dizia que já era altura de depurar a ciência russa dos nomes não
russos, e um dia até afirmou: «Chegou o fim da sinagoga judaica. Se
soubesse que ódio eu lhes tenho!»
Ao mesmo tempo, Nikolai Andréevitch não conseguiu reprimir uma
involuntária alegria quando Risskov lhe disse: «Os camaradas do Comité
Central dão grande valor ao seu trabalho, um trabalho de notável cientista
russo.»
Mandelstam já não trabalhava no Instituto, arranjou emprego de
metodólogo num centro de ensino. Nikolai Andréevitch pediu-lhe que o
visitasse, obrigou a mulher a telefonar-lhe; Mandelstam tornou-se nervoso,
desconfiado, e Nikolai Andréevitch ficou contente por Mandelstam adiar os
encontros com ele, encontros que se tornavam cada vez mais penosos. Em
tempos difíceis era mais agradável estar com pessoas animadas.
Quando Nikolai Andréevitch soube da detenção de Khávkin, lançou um
olhar inquieto ao telefone e disse à mulher em sussurro:
– Tenho a certeza de que Issaak é inocente, há trinta anos que o conheço.
Ela, de repente, abraçou-o, acariciou-lhe a cabeça.
– Tenho orgulho em ti – disse –, a tua alma sofre tanto com Khávkin e
Mandelstam, mas conheço bem as ofensas que eles te fizeram.
Os tempos eram difíceis. Nikolai Andréevitch foi obrigado a pronunciar-se
num comício sobre os médicos assassinos, a falar da vigilância e da falta de
vigilância, da benevolência imprudente.
Depois do comício, Nikolai Andréevitch conversou com o Professor
Margólin, da secção de química física, que também fizera um grande
discurso. Margólin exigira a pena capital para os médicos criminosos, lera o
texto de saudação a Lídia Timachuk6 que tinha desmascarado os médicos
assassinos e fora condecorada com a ordem de Lénin. Este Margólin era forte
em filosofia marxista, dirigia o curso de estudos do quarto capítulo do Breve
Curso da História do PCUS.
– Pois é, Samson Abrámovitch – disse Nikolai Andréevitch –, os tempos
são difíceis. Não é fácil para mim, mas imagino como será difícil para si
pronunciar-se sobre esses temas!
Margólin levantou o sobrolho fino e, esticando o lábio inferior fino e
pálido, perguntou:
– Desculpe, não percebi bem. O que está o camarada a insinuar?
– Nada de especial – disse Nikolai Andréevitch. – Bem, oiça… Vóvsi,
Etinger, Kógan… quem podia supor? Já estive internado na clínica de Vóvsi,
o pessoal gostava dele, e os pacientes acreditavam nele como em Maomé.
Margólin encolheu o ombro magro, mexeu a narina exangue e disse:
– Compreendi. Acha que para mim, judeu, é desagradável censurar esses
facínoras? Pelo contrário. Para mim, precisamente, o nacionalismo judaico é
muito nojento. E então quando os judeus, simpatizando com a América, se
tornam um obstáculo no caminho para o comunismo, nem sequer a mim
poupo, nem inclusive a minha própria filha.
Nikolai Andréevitch compreendeu que fizera mal em falar do amor por
Vóvsi por parte dos imprudentes doentes – se o homem não tem pena da
própria filha, é preciso falar com ele com fórmulas mais cinzeladas.
E Nikolai Andréevitch disse:
– É claro que o desespero do inimigo depende da nossa unidade político-
moral.
Sim, eram tempos difíceis, e havia só uma coisa que consolava Nikolai
Andréevitch: o seu trabalho corria bem.
Era como se, pela primeira vez, saísse do estreito espaço profissional,
entrando nas áreas vivas onde antes não era aceite. As pessoas começaram a
procurá-lo, a pedir-lhe conselhos, a alegrar-se com os seus pareceres. As
redações das revistas científicas, antes indiferentes, começaram a mostrar
interesse pelos seus artigos; uma vez telefonaram-lhe da Sociedade Nacional
de Relações Culturais com os Países Estrangeiros – instituição que nunca se
tinha dirigido a Nikolai Andréevitch – e pediram-lhe o manuscrito do seu
livro ainda não acabado: queriam avaliar, de antemão, o projeto da sua edição
nos países da democracia popular.
Nikolai Andréevitch viveu a chegada do êxito de modo especial, profundo,
com grandes emoções. Maria Pávlovna estava mais calma. No seu entender,
acontecia a Nikolai uma coisa que, inevitavelmente, teria de acontecer.
Entretanto, as mudanças na vida de Nikolai Andréevitch eram cada vez
maiores. As novas pessoas que encabeçavam o Instituto e estavam a
promover Nikolai Andréevitch, mesmo assim, não lhe agradavam, havia
nelas coisas que lhe repugnavam: a grosseria, a presunção extrema, a maneira
como catalogavam os oponentes científicos de cosmopolitas, de servidores e
agentes do capital, de mercenários do imperialismo. Mas Nikolai Andréevitch
sabia também ver nessa nova gente o essencial – a ousadia, a força.
Quanto a Mandelstam, não tinha razão chamando-lhes «idiotas
analfabetos» e «garanhões dogmáticos». O que eles possuíam não era
estreiteza de vistas, mas paixão, uma clareza de objetivos, orientada para a
vida e concebida pela vida. Por isso odiavam os talmudistas, os teóricos
abstratos.
Estes novos chefes do Instituto, apesar de sentirem em Nikolai Andréevitch
um homem de pontos de vista e hábitos diferentes, tinham simpatia por ele,
confiavam nele, homem russo. Recebeu uma carta calorosa de Lissenko7, este
deu alto valor ao manuscrito de Nikolai Andréevitch, propôs-lhe uma
colaboração.
Nikolai Andréevitch não gostava das teorias de Lissenko, mas a carta do
famoso académico agrónomo era-lhe agradável. Também não era justo
refutar perentoriamente os trabalhos de Lissenko. Além disso, os rumores de
que Lissenko era muito perigoso para os seus oponentes científicos e, nas
discussões científicas, gostava de recorrer aos argumentos policiais e a
denúncias eram exagerados.
Risskov sugeriu que Nikolai Andréevitch se pronunciasse, destronando
cientificamente os cosmopolitas expulsos da ciência biológica. Nikolai
Andréevitch recusou-se, embora visse o descontentamento do diretor – este
gostaria que a sociedade ouvisse uma indignada voz de um cientista russo
que não era membro do partido.
Nesse tempo correram rumores de que uma enorme cidade de barracas
estava a ser construída na Sibéria Oriental. Diziam que as barracas eram
destinadas aos judeus. Seriam deportados da mesma maneira que o tinham
sido os calmuques, os tártaros da Crimeia, os búlgaros, os gregos, os alemães
do Volga, os balcares e os tchetchenos.
Nikolai Andréevitch compreendeu que se enganava quando prometia a
Mandelstam pão com caviar.
Andava nervoso à espera do processo judicial dos médicos assassinos. De
manhã passava a vista pelas folhas dos jornais – começou? Como toda a
gente, pensava se o processo seria aberto e não parava de perguntar à mulher:
– Que achas, vão publicar o processo todos os dias, com as alegações do
acusador, com interrogatórios, com a última palavra dos réus, ou vão publicar
apenas uma notícia sobre a sentença da Comissão Militar?
Numa ocasião contaram a Nikolai Andréevitch, sob terrível segredo, que os
médicos seriam executados publicamente na Praça Vermelha, e depois disso
uma onda de pogroms judaicos varreria por certo o país e já estariam a
marcar para essa altura a deportação dos judeus para a taiga e o deserto de
Karakum, com vista à construção do canal do Turcomenistão. Esta
deportação seria organizada para proteger os judeus da ira justa, mas
implacável, do povo.
A deportação manifestaria o espírito internacionalista eternamente vivo
que, ao mesmo tempo que compreendia a indignação do povo, não podia
admitir linchamentos em massa.
Como tudo o que ocorria no país, também esta indignação espontânea
contra os crimes sangrentos dos judeus foi idealizada e planeada de antemão,
da mesma maneira que Stálin planeava as eleições para o Soviete Supremo –
eram preparadas com antecedência as características e a nomeação dos
deputados, e depois, de forma planificada, os candidatos eram
espontaneamente promovidos, fazia-se a sua campanha eleitoral e,
finalmente, as eleições nacionais realizavam-se. Da mesma maneira se
organizavam os tempestuosos comícios de protesto, as explosões da ira
popular e as manifestações da amizade fraterna. Da mesma maneira, muitas
semanas antes das paradas festivas, as reportagens da Praça Vermelha eram
aprovadas: «Neste momento, estou a olhar para os carros de combate que
avançam…» Da mesma forma antecipada, eram planeadas as iniciativas
pessoais de Isótov, de Stakhánov, de Dússia Vinográdova8, as inscrições em
massa nos kolkhozes; do mesmo modo eram nomeados e revogados os heróis
lendários da guerra civil, eram exigidas as subscrições públicas por parte dos
operários, do trabalho sem folgas nem feriados; da mesma forma era
estabelecido o amor de todo o povo pelo seu líder, eram escolhidos os
agentes secretos, os sabotadores e os espiões que trabalhavam para o
estrangeiro, e só depois, durante os complexos interrogatórios cruzados, eram
assinados os autos em que os contabilistas, os engenheiros, os juristas, que
havia pouco tempo ainda nem suspeitavam da sua pertença aos degenerados
contrarrevolucionários, confessavam a sua multilateral atividade terrorista e
de espionagem. Da mesma maneira eram nomeados como grandes e favoritos
do povo os escritores; eram decididos os textos das cartas que as mães liam
aos microfones, em vozes estereotipadas, dirigindo-se aos seus filhos
soldados; da mesma forma, era planeado de antemão o impulso patriótico de
Ferapont Golováti9; da mesma forma eram escolhidos os participantes em
debates livres quando, por qualquer razão, os debates livres se tornavam
necessários, e redigiam-se os discursos, de aprovação prévia obrigatória, dos
participantes nesses debates livres.
Mas, de repente, a 5 de março, Stálin morreu. Esta morte rompeu o
gigantesco sistema do entusiasmo mecanizado, da ira popular e do amor
popular estabelecidos por ordem do comité do partido.
Stálin morreu fora do plano, sem ordem dos órgãos de direção. Stálin
morreu sem ordem pessoal do próprio camarada Stálin. Nesta liberdade, neste
voluntarismo da morte havia qualquer coisa de dinamitador, contradizendo a
própria essência profunda do Estado. Grande perturbação abrangeu as mentes
e os corações.
Stálin morreu! Havia aqueles a quem o sentimento da desgraça colheu:
nalgumas escolas, os professores obrigavam os alunos a ajoelharem-se, e eles
próprios, de joelhos, banhados em lágrimas, liam o comunicado
governamental sobre o falecimento do líder. Nas reuniões de luto das
instituições e fábricas, havia muitos que entravam em histeria, ouviam-se as
exclamações loucas das mulheres, os choros, algumas caíam desmaiadas. Um
grande deus, ídolo do século vinte, morreu, e as mulheres choravam.
Havia outros a quem a felicidade inundava. A aldeia, que gemia sob o peso
férreo da mão de Stálin, suspirou de alívio.
Nos campos correcionais, muitos milhões de presos rejubilavam.
… As colunas de presos iam trabalhar no meio da profunda escuridão. O
rugido do oceano abafava os latidos dos cães-polícia. E, de repente, foi como
se a luz da aurora polar cintilasse pelas suas fileiras: Stálin morreu! Dezenas
de milhares de homens escoltados transmitiam em sussurro uns aos outros:
«Esticou o pernil… esticou o pernil…» E este sussurro de muitos milhares
estrondeava como rajadas de vento. A noite negra pairava sobre a terra polar.
Mas o gelo do oceano Ártico quebrou-se, e o oceano rugia.
Havia muitos, intelectuais e operários, a quem essa notícia trouxe ao
mesmo tempo amargura e o desejo de dançar de felicidade.
A perturbação chegou no momento em que a rádio transmitiu o
comunicado sobre a saúde de Stálin: «Respiração Chain-Stokes… urina…
pulso… tensão arterial…» O potentado divinizado revelava, de repente, a sua
enferma carne senil.
Stálin morreu! Nesta morte havia um imprevisto elemento livre,
infinitamente alheio à natureza do Estado stalinista.
Este imprevisto fez tremer o Estado, como já o fizera estremecer depois do
imprevisto que caiu em cima dele em 22 de junho de 1941.
Milhões de pessoas quiseram ver o falecido. No dia do funeral de Stálin,
não só Moscovo, mas também as regiões e os distritos acorreram à Casa dos
Sindicatos. A fila dos camiões vindos da periferia estendia-se por muitos e
muitos quilómetros.
Os engarrafamentos chegavam até Sérpukhov e, depois, também a estrada
entre Sérpukhov e Tula ficou engarrafada e bloqueada.
Multidões de milhões de pessoas iam a pé na direção do centro de
Moscovo. As correntes humanas, como ruidosos rios negros, colidiam umas
com as outras, achatavam-se, coladas contra as pedras, esborrachavam e
destroçavam carros, arrancavam dos gonzos os portões de ferro.
Neste dia, milhares de pessoas perderam a vida. A tragédia na praça
Khodínskaia, no dia da coroação do czar10, ficou ofuscada em comparação
com o dia da morte do terreal deus russo – o filho bexigoso de um sapateiro
da vila de Góri11.
Parecia que as pessoas marchavam para a morte num estado de fascinação,
enfeitiçadas por uma irremediável fatalidade cristã, ou budista, ou mística.
Foi como se Stálin, o grande pastor, apanhasse as ovelhas que lhe faltavam,
expulsando após a morte o elemento de casualidade do seu terrível plano
geral.
Nas reuniões, os correligionários de Stálin liam os monstruosos relatórios
da polícia de Moscovo e das morgues, e trocavam olhares. Estavam
desconcertados, numa perplexidade causada por um sentimento novo neles: a
ausência de medo da inevitável ira do grande Stálin. O patrão estava morto.
No dia 5 de abril, de manhã, Nikolai Andréevitch acordou a mulher, gritou
exaltadamente:
– Macha! Os médicos não eram culpados! Macha, foram torturados!
O Estado reconheceu a sua terrível culpa – reconheceu que foram utilizados
métodos ilícitos nos interrogatórios dos médicos presos.
A seguir aos primeiros minutos de felicidade, daquela ligeira clareza de
alma, um sentimento desconhecido, inesperado, turvo e angustiante atingiu
Nikolai Andréevitch. Teve-o pela primeira vez na vida.
Era um sentimento de culpa, novo, estranho e peculiar – de culpa pela sua
própria fraqueza, por aquele seu discurso no comício, pela sua assinatura na
carta que vilipendiava os médicos facínoras, pela sua prontidão em aceitar
uma mentira evidente, por essa aceitação ter nascido nele voluntária e
sinceramente, do fundo da alma.
Teria vivido justa e corretamente a sua vida? Teria sido verdadeiramente
honesto, como toda a gente o considera?
Não parava de lhe crescer na alma o arrependimento angustiante.
Na hora em que o divinamente impecável Estado confessou o seu crime,
Nikolai Andréevitch sentiu que este Estado tinha corpo terreno, mortal – o
Estado, tal como Stálin, sofria de taquicardia, de proteinúria.
O caráter divino e imaculado do Estado imortal, como vinha agora a
descobrir, não só oprimia o homem mas também o protegia, consolava-o na
sua fraqueza, justificava a sua nulidade; o Estado encarregava-se de levar aos
férreos ombros todo o peso da responsabilidade, libertava as pessoas da
quimera da moral.
E Nikolai Andréevitch sentiu-se como que nu, como se milhares de olhos
alheios estivessem a olhar para o seu corpo desnudo.
E o mais desagradável era estar, ele próprio, no meio da multidão,
observando com todos os outros as suas próprias mamas descaídas como as
de uma mulher, a sua barriga flácida, dilatada pelos excessos de gula, as
pregas de gordura nos flancos.
Pois é, afinal Stálin também fora atreito a taquicardia e a pulso filiforme, e
o Estado, afinal, também segregava urina, e ele, Nikolai Andréevitch, estava
afinal nu debaixo do seu fato de fazenda de lã.
Oh, esta contemplação de si próprio era muito desagradável: a lista da sua
vida era indizivelmente repugnante.
Constavam dela as reuniões do pessoal e do conselho científico, as reuniões
solenes festivas e as reuniões-relâmpago do laboratório, os seus artigos e dois
livros, os banquetes, as visitas às casas de pessoas más mas importantes, as
votações, as brincadeiras à mesa do jantar, as conversas com os chefes das
secções de pessoal, as assinaturas das cartas e uma receção no gabinete do
ministro.
Mas no rol da sua vida havia também outros registos: cartas que não foram
escritas, embora o grande deus as mandasse escrever. Havia silêncio onde o
deus mandava pronunciar a palavra, havia um número telefónico que era
necessário marcar, mas não foi marcado, havia visitas que era impossível não
fazer, mas não foram feitas, havia dinheiro, havia telegramas que não foram
enviados. Muita, muita coisa que não foi feita constava da lista da sua vida.
Mas era absurdo, agora que estava nu, continuar com o seu orgulho
habitual – de que nunca foi delator, de que, chamado à Lubianka, se recusou
a dar informação comprometedora sobre um colega preso, de que, ao ver na
rua a mulher de um companheiro deportado, não lhe virou a cara mas lhe
apertou a mão e lhe perguntou pela saúde dos filhos.
Grande coisa de que se orgulhar!…
Toda a sua vida se compunha de uma grande obediência, a desobediência
não existia na vida dele.
Também em relação a Ivan: este passou trinta anos nas prisões e nos
campos correcionais, e Nikolai Andréevitch, sempre com orgulho por nunca
ter renegado Ivan, durante todas essas dezenas de anos não lhe escreveu uma
única carta. Quando o próprio Ivan lhe escreveu, Nikolai Andréevitch pediu à
velha tia para lhe responder.
Dantes, tudo isso parecia muito natural, mas de repente incomoda, rói-o por
dentro.
Recordou que numa assembleia convocada por causa dos processos de
1937 votara pela pena capital para Ríkov e Bukhárin12.
Durante dezassete anos, foi como se tivesse esquecido essas reuniões, mas
de repente recordou-as.
Naquele tempo achou estranho, pareceu-lhe uma loucura que um professor
do Instituto de Indústria Mineira e o poeta Pasternak se tivessem recusado a
votar pela pena capital para Bukhárin. Pois se os próprios facínoras
confessaram a sua culpa durante o processo! Se foram interrogados
publicamente por Andrei Vichínski13, homem culto com ensino universitário!
Não havia dúvida da culpa deles, nem uma sombra de dúvida!
Sim, havia dúvida, mas só agora Nikolai Andréevitch se consciencializou
de que a havia. Apenas fingia que não a tinha. Porque, mesmo que tivesse, no
seu fundo, a certeza da inocência de Bukhárin, acabaria por votar a favor da
pena de morte. Era-lhe mais fácil não duvidar e votar, por isso fingiu para si
próprio que não tinha dúvidas. Também não podia abster-se da votação, já
que tinha fé nos grandes objetivos do partido de Lénin e Stálin.
Tinha a fé de que, pela primeira vez na história, se construía uma sociedade
socialista sem propriedade privada, e de que o socialismo precisava da
ditadura do Estado. Duvidar da culpa de Bukhárin, recusar-se a votar
significava duvidar do Estado poderoso, dos seus grandes objetivos.
Mas, em pura verdade, também nesta fé sagrada, algures no fundo da alma,
fermentava uma dúvida.
Será isto o socialismo? Kolimá, o canibalismo durante a coletivização, a
morte de milhões de pessoas? Por vezes perfurava-lhe o fundo da consciência
outra coisa: o terror era demasiado desumano, os sofrimentos de operários e
camponeses eram grandes demais.
Sim, sim, passou a vida em veneração, numa grande obediência, no medo
da fome, da tortura, dos trabalhos forçados na Sibéria. Mas também o
habitava um medo ainda mais ignóbil: o de ter um caviar de mais baixa
qualidade. E os sonhos juvenis da época do comunismo de guerra14 serviam
este desprezível medo caviar – o principal era não duvidar, votar e assinar
sem pensar em nada. Sim, sim, o medo pela sua própria pele, de ser esfolado
vivo, e o medo de perder o caviar de alta qualidade – era isso que alimentava
a força das suas ideias.
De repente, logo que o Estado cambaleou, murmurou que os médicos
tinham sido torturados. Então, amanhã, o Estado vai confessar que Bukhárin,
Zinóviev, Kámenev, Ríkov, Piatakov foram submetidos à tortura, que
Maksim Górki15 não foi morto pelos inimigos do povo. E depois de amanhã o
Estado vai reconhecer que milhões de camponeses foram mortos por nada.
E então ficará claro que não é o Estado todo-poderoso e impecável a
assumir a responsabilidade por todos os crimes cometidos, mas que é a ele,
Nikolai Andréevitch, que deve assacar-se a responsabilidade, a ele que não
duvidou, que votou tudo, que assinou tudo. Aprendeu a fingir tão bem e tão
habilmente perante si mesmo que ninguém, ninguém, nem ele próprio
repararam nesse fingimento. Orgulhava-se sinceramente da sua fé e da sua
pureza.
Este sentimento torturante, este desprezo de si eram, por momentos, tão
intensos que um protesto amargo, forte lhe surgia na alma: mas porquê,
porque foi que o Estado o confessou?! Seria melhor ter-se calado! Não tinha
o direito de confessar, e tudo ficaria na mesma.
E o que devia sentir então o professor Margólin que tinha declarado estar
pronto a exterminar não só os médicos assassinos mas também os seus
próprios filhos judeus em prol da grande causa do internacionalismo?
É insuportável assumir em consciência uma obediente ignomínia de muitos
anos. Porém, a pouco e pouco o sentimento penoso começou a abrandar.
Aparentemente, tudo mudou; mas afinal, ao mesmo tempo, tudo ficou igual.
Trabalhar no Instituto tornou-se incomparavelmente mais fácil, mais
calmo. Sobretudo quando Risskov provocou com a sua grosseria o
descontentamento das instâncias superiores e foi retirado do cargo de diretor.
O êxito, grande sonho de Nikolai Andréevitch, chegou finalmente – e não
era um êxito institucional, ministerial, mas verdadeiro, um grande êxito.
Sentia-se em muitas coisas: nos artigos de revistas, nas palavras dos
participantes de conferências científicas, nos olhos admirados das mulheres,
entre colegas laboratoristas, nas cartas que começou a receber.
Nikolai Andréevitch foi promovido a membro do Conselho Científico
Superior e, pouco tempo depois, a presidência da Academia nomeou-o diretor
científico do Instituto.
Nikolai Andréevitch quis trazer de volta os cosmopolitas e idealistas
expulsos do Instituto, mas foi-lhe impossível convencer a chefe da secção de
pessoal, mulher querida e bonitinha, mas extremamente teimosa. A única
coisa que conseguiu foi arranjar trabalho extranumerário aos despedidos.
E agora, olhando para Mandelstam, Nikolai Andréevitch pensava: será
verdade que, ainda há poucos anos, escreviam no estrangeiro sobre este
homem miserável e desamparado, que vinha ao Instituto para entregar maços
de traduções e resumos, como sendo um cientista destacado, quase um grande
cientista? Será verdade que Nikolai Andréevitch, em tempos, ansiava pela
aprovação, por parte de Mandelstam, do trabalho que fazia?
Antes, Mandelstam andava desleixado, mas agora aparecia no Instituto com
o seu melhor fato.
Nikolai Andréevitch brincou por causa disso, e Mandelstam respondeu:
«Um ator sem contrato deve andar sempre bem vestido.»
Era assim, recordando a sua vida passada, que Nikolai Andréevitch
pensava com estranha amargura e alegria sobre o encontro próximo com
Ivan.
Outrora, fora estabelecido na família como facto adquirido que Ivan
ultrapassava todos os seus coetâneos em intelecto e talentos, e Nikolai
Andréevitch convenceu-se disso, ou melhor, no fundo não se convenceu,
nada disso, mas aceitou-o com obediência.
Em criança, Ivan lia com facilidade e rapidez os livros de matemática e
física, compreendia-os, não com a obediência de um escolar mas à sua
própria e estranha maneira. Desde a infância, manifestou talento de escultor,
sabia transmitir em barro, de modo bastante vivo, uma expressão de rosto, um
gesto peculiar, um movimento específico. Ao lado do interesse pela
matemática – e isso foi realmente inédito – tinha atração pelo Antigo Oriente,
conhecia bem a literatura sobre os manuscritos e os monumentos partos.
Desde cedo que conviviam em Ivan traços aparentemente incompatíveis no
caráter de uma mesma pessoa.
Em pequeno, ainda aluno da escola, partiu a cabeça do seu adversário numa
briga e ficou detido na esquadra da polícia durante dois dias. Ao mesmo
tempo, era tímido, acanhado, sensível, e mantinha, num cubículo ao lado da
casa, o seu próprio hospital com animais desgraçados: um cão com uma pata
cortada, um gato cego, uma gralha triste com uma asa arrancada.
Na universidade, Ivan continuou a combinar no seu feitio a delicadeza, a
bondade e a timidez com uma implacável rispidez, pela qual até os familiares
lhe guardavam rancor.
Provavelmente, foram estas particularidades do seu caráter as responsáveis
por Ivan não corresponder às expectativas – a sua vida ficou destruída, e ele
fez tudo para que a destruição fosse definitiva.
Nos anos vinte, muitos jovens talentosos não tiveram possibilidade de
estudar por causa da sua origem social – não admitiam nas universidades os
filhos de fidalgos, de militares czaristas, de sacerdotes, de industriais e
comerciantes.
Ivan conseguiu a admissão – provinha de uma família de intelectuais
trabalhadores. Na faculdade, desenvencilhou-se com facilidade durante uma
cruel depuração baseada no critério de classe.
Se tivesse calhado a Ivan começar o caminho da vida hoje em dia, as
dificuldades ligadas à quinta alínea do questionário, a da origem étnica, não o
teriam atingido. Porém, mesmo que Ivan tivesse começado a vida hoje em
dia, teria seguido, pelos vistos, o mesmo caminho de azares.
Portanto, a causa não residia nas circunstâncias externas. O destino
malfadado e amargo de Ivan dependeu do próprio Ivan.
No círculo universitário de filosofia, teve discussões assanhadas com o
professor de materialismo dialético. As discussões continuaram até que o
círculo foi liquidado.
Um belo dia, numa aula, Ivan fez um discurso contra a ditadura, declarou
que a liberdade era um bem igual à vida e que a limitação da liberdade
mutilava as pessoas como golpes de machado que cortavam os dedos e as
orelhas, e que a liquidação da liberdade equivalia ao assassínio. Depois deste
discurso, foi expulso da universidade e deportado, por três anos, para a região
de Semipalátinsk.
Desde então passaram-se cerca de trinta anos, dos quais Ivan não passou
mais do que um ano em liberdade. Nikolai Andréevitch viu-o pela última vez
em 1936, pouco antes de mais uma detenção, e a seguir o homem passou
dezanove anos sem intervalo nos campos correcionais.
Os amigos de infância e da universidade lembraram-se dele durante muito
tempo, diziam: «Ivan seria agora académico», «É verdade, era um homem
muito especial, teve azar.» Mas alguns diziam: «Seja como for, é maluco.»
Ánia Zamkóvskaia, namorada de Ivan, lembrava-se dele, por certo, mais do
que os outros.
Mas o tempo fez o seu trabalho, e Ánia, agora a Anna Vladimirovna,
enfermiça, de cabelo encanecido, já não perguntava pelo Ivan quando os
amigos se encontravam.
Ivan saiu da consciência das pessoas, dos seus corações quentes ou frios, já
só existia ocultamente, surgia na memória das pessoas com dificuldade cada
vez maior.
Entretanto, o tempo trabalhava sem pressa, escrupulosamente – primeiro,
eliminou o registo de vida deste homem, que mudou para a memória das
pessoas; depois apagou também o registo da memória, enviando-o para a
subconsciência; e agora surgia raramente, assustando momentaneamente com
o imprevisto do seu aparecimento repentino.
O tempo continuava o seu trabalho muito simples de cavador, e Ivan já
levantara o pé para passar da cave escura da subconsciência dos amigos para
a residência permanente na não existência, no eterno esquecimento.
Porém, chegou um tempo novo, pós-stalinista, e o destino quis que Ivan
voltasse a dar um passo para a vida que já perdera tanto o pensamento sobre
ele como a sua imagem visual.
2 August Weismann (1834-1914) – zoólogo alemão, teórico da doutrina evolucionista. Rudolf Virchow
(1821-1902) – cientista e político alemão, criador da teoria da patologia celular. Gregor Mendel (1822-
1884) – cientista austríaco, «pai da genética». (N. dos T.)

3 Solomon Michoels (1890-1948) – ator e encenador soviético de origem judaica, diretor do Teatro
Judaico de Moscovo. Morto pelos oficiais do Ministério de Segurança do Estado. (N. dos T.)

4 Andrei Jdánov (1896-1948) – homem de Estado e do partido soviético, deputado do Soviete


Supremo. Aleksandr Cherbakov (1901-1945) – homem de Estado e do partido soviético, deputado do
Soviete Supremo. (N. dos T.)

5 Miron Vóvsi (1897-1960) – médico soviético, académico. Foi preso durante o processo dos «médicos
assassinos». Libertado depois da morte de Stálin. (N. dos T.)

6 Lídia Timachuk (1898-1983) – médica cardiologista soviética. A sua carta sobre o tratamento
incorreto de A. Jdánov foi aproveitada na campanha de incriminação dos «médicos assassinos» em
1953. (N. dos T.)

7 Trofim Lissenko (1898-1976) – fundador da chamada «agrobiologia de Michúrin», académico. A


maioria dos métodos propostos por Lissenko não tinha justificação e foi criticada pelos cientistas russos
mais destacados. Ao nome de Lissenko está ligada a campanha de repressões contra os geneticistas
soviéticos. (N. dos T.)

8 Os mineiros Nikita Isótov e Aleksei Stakhánov e a tecelã Dússia (Evdokia) Vinográdova foram, em
1935, os iniciadores do movimento de reorganização do trabalho, com o objetivo de aumentar a
produção laboral. (N. dos T.)

9 Ferapont Golováti – camponês kolkhoziano, um dos iniciadores do movimento patriótico da recolha


de meios para o Exército Vermelho durante a Segundo Guerra Mundial. Ofereceu o dinheiro que
ganhou com a venda de várias arrobas de mel para a construção de dois aviões militares. (N. dos T.)

10 Em maio de 1896, nos dias de coroação do czar Nicolau II, durante a festa na praça Khodínskaia em
Moscovo, aconteceu uma tragédia. Atraído pelos rumores das grandes benesses que o governo ia
oferecer, o povo começou a afluir à praça. Devido à má organização, 1389 pessoas morreram e 1300
ficaram gravemente feridas no aperto. (N. dos T.)

11 Vila de Góri – lugar na Geórgia onde nasceu Ióssif Djugachvíli (Stálin). (N. dos T.)

12 Aleksei Ríkov (1881-1938) – político e homem de Estado soviético, comissário do povo (ministro)
do Interior em 1917, presidente do Conselho Nacional de Economia entre 1924 e 1930. Preso em 1937,
foi condenado e fuzilado um ano depois. Nikolai Bukhárin (1888-1938) – economista russo, político e
homem de Estado soviético, membro da Academia das Ciências da URSS. Em 1928, pronunciou-se
contra a intensificação da coletivização no campo, propondo a via evolucionária do desenvolvimento da
economia, declarando «aventureiro» o curso de Stálin da coletivização e industrialização totais. Em
1937 foi preso, acusado de atividade antissoviética e, em 1938, foi fuzilado. (N. dos T.)

13 Andrei Vichínski (1883-1954) – homem de Estado soviético, jurista. Nos anos 1935-1939,
procurador-geral da URSS. Neste cargo, foi um dos mais implacáveis executores das repressões
políticas. (N. dos T.)

14 Comunismo de guerra – assim era denominada a política do Estado soviético nos anos de 1918-
1921, nas condições de guerra civil. As suas características principais eram a extrema centralização da
gestão da economia, a nacionalização da indústria (grande, média e, em parte, pequena), a
monopolização por parte do Estado de muitos produtos agrícolas, a requisição de géneros alimentícios,
a proibição do comércio privado, a cessação do funcionamento do mercado financeiro, a distribuição
igualitária dos bens, a militarização do trabalho. (N. dos T.)

15 Grigóri Zinóviev (1883-1936) – revolucionário, político e homem de Estado soviético. Preso em


1934, condenado dois anos depois à pena capital e fuzilado. Lev Kámenev (1883-1936) –
revolucionário bolchevique, homem de Estado soviético e dirigente do partido. Em 1936 foi preso e
condenado (caso «Centro Trótski/Zinóviev»). Gueórgui Piatakov (1890-1937) – homem de Estado
soviético e do partido. Preso em 1936 como membro do «Centro Trótski», condenado à pena capital e
fuzilado. Maksim Górki (1868-1936) – escritor russo. Na Rússia soviética, era reconhecido como
«grande escritor proletário» e fundador do chamado «método do realismo socialista». A morte de Górki
foi incriminada aos médicos Kazakov, Lévin e Pletniov, no terceiro processo dos «médicos assassinos»
em 1938. (N. dos T.)
4

Apareceu apenas à noite.


O encontro: tudo se misturou – o desgosto por causa do rico almoço que
esperou demais, a inquietude, as exclamações sobre a cabeça branca, as
rugas, a vida que vivera. E os olhos de Nikolai Andréevitch banharam-se de
lágrimas – assim, nos barrancos argilosos e secos a água da chuva começa de
repente a borbulhar, a marulhar; e Maria Pávlovna chorou, voltando a fazer o
funeral do filho.
A cara escura e enrugada do homem do reino prisional, o seu casaco
acolchoado, as suas botas de soldado que pisavam desajeitadamente o soalho
não condiziam com o mundo de parquê, de armários de livros, de quadros, de
lustres.
Reprimindo a emoção, olhando para o primo com os olhos turvados pelas
lágrimas, Ivan Grigórievitch disse:
– Nikolai, antes de mais, não vou pedir-te nada: nem o registo de
residência, nem dinheiro, nada. A propósito, já fui aos banhos, não vos trago
bichos.
Nikolai Andréevitch, limpando as lágrimas, riu:
– Cabelo branco, rugas, mas és o mesmo, o mesmo, o nosso Ivan.
E fez no ar um gesto circular, depois espetou o dedo nesse círculo
imaginário.
– Insuportável, linear como um varão, mas, ao mesmo tempo, só o diabo
sabe como és bondoso.
Maria Pávlovna olhou para Nikolai Andréevitch – de manhã afirmara ao
marido que Ivan Grigórievitch teria de ir aos banhos, muito mais eficazes do
que a banheira que, a propósito, seria impossível lavar depois de Ivan lá
tomar banho, nem com ácido nem com lixívia.
Na conversa oca não havia só o vazio – os sorrisos, os olhares, os gestos
das mãos, as tosses ajudavam a descobrir, a explicar, a compreender de novo.
Apetecia muito a Nikolai Andréevitch falar de si próprio, mais do que
recordar a infância e enumerar os familiares falecidos, mais do que fazer
perguntas a Ivan. Mas, como era educado, ou seja, sabia fazer e dizer tudo
menos o que queria, disse:
– Seria bom irmos algures para uma casa de campo sem telefone, e então ia
ouvir-te uma semana, um mês, dois meses.
Ivan Grigórievitch imaginou-se sentado numa poltrona e bebericando vinho
na casa de campo, a falar das pessoas que desapareceram nas trevas eternas.
O destino de muitas delas parecia tão insuportavelmente triste que a mais
terna, a mais carinhosa e bondosa palavra dita sobre elas seria como um
toque da mão áspera, rude, no coração aberto, dilacerado. Era impensável
tocá-los.
E, abanando a cabeça, disse:
– Pois, pois, pois… contos das mil e uma noites polares.
Estava emocionado. Quem era o verdadeiro Nikolai? Aquele, de camisa de
cetim coçada, com um livro inglês debaixo do braço, animado, espirituoso e
obsequioso; ou este, de grandes bochechas flácidas, com uma calvície cor de
cera?
Ivan foi toda a vida um homem forte. As pessoas dirigiam-se a ele, desde
sempre, pedindo explicações, consolações. Por vezes, até os criminosos
comuns lhe pediam a opinião. Uma vez conseguiu fazer parar uma rixa à
navalha entre os «criminosos honestos» e os «sukas»16. Gozava do respeito de
pessoas diferentes – de engenheiros «sabotadores», de um velho e
esfarrapado oficial da antiga guarda imperial, de um tenente-coronel das
tropas de Deníkin17, mestre em manejar a serra de arco, de um ginecologista
de Minsk, acusado de nacionalismo judaico, de um tártaro da Crimeia que se
queixava de que o seu povo fora expulso das costas do mar quente e metido
na taiga, de um kolkhoziano que surripiou num kolkhoze um saco de batatas,
com intenção de, após ser solto, não voltar ao kolkhoze, obtendo, com o
papel da libertação, um passaporte urbano de seis meses.
Porém, neste dia Ivan Grigórievitch gostaria que umas mãos bondosas lhe
tirassem o peso dos ombros. E sabia que existia apenas uma força perante a
qual é divino, é bom sentirmo-nos pequenos e fracos – a força da mãe. Mas
há muito que não tinha mãe, e não havia quem o alijasse do peso.
Nikolai Andréevitch experimentava agora um estranho sentimento, surgido
involuntariamente.
Enquanto esperava por Ivan, pensava com enternecimento que seria
absolutamente sincero com ele, tão sincero como não fora com ninguém na
vida. Apetecia-lhe confessar a Ivan todos os remorsos que tinha, contar-lhe
resignadamente a sua fraqueza amarga e ignóbil.
Que Ivan o julgasse, se pudesse, que o compreendesse, se pudesse. Que lhe
perdoasse ou, se não lhe perdoasse, por não o compreender, tudo bem.
Emocionava-se, as lágrimas turvavam-lhe os olhos quando repetia
mentalmente os versos de Nekrássov:

O filho à frente do pai inclinou-se,


Lavou os pés ao velho…18

Gostaria de dizer ao primo: «Ivan, Vânia, é uma loucura, é estranho, mas


tenho inveja de ti, tenho inveja porque no campo terrível não tiveste de
assinar cartas ignóbeis nem votar pela pena capital de inocentes, nem fazer
discursos infames…»
De súbito e inesperadamente, porém, mal viu Ivan apoderou-se dele um
sentimento diametralmente oposto. Aquele homem de casaco acolchoado, de
botas de soldado, com a cara carcomida pelos frios e pelo ar das barracas,
abafado e impregnado de fumo de tabaco barato, pareceu-lhe alheio, nada
bondoso, hostil.
Tal sentimento surgia-lhe durante as suas viagens ao estrangeiro. No
estrangeiro, parecia-lhe impossível falar com pessoas bem cuidadas sobre as
suas dúvidas, partilhar com elas a amargura do que vivera.
Com os estrangeiros, em vez das suas preocupações, falava apenas do
principal e do incontestável, dos êxitos históricos da União Soviética.
Defendia-se deles, a si próprio e à sua pátria.
Alguma vez poderia pensar que Ivan lhe provocaria o mesmo sentimento?
Porquê? Por que razão? Mas era precisamente assim.
Tinha agora a impressão de que Ivan vinha para lhe invalidar a vida. Que ia
humilhá-lo, usar de condescendência e altivez para com ele.
Então, sentiu uma grande vontade de explicar a Ivan que tudo mudara, se
tornara diferente, que todas as antigas avaliações tinham sido riscadas, que
Ivan estava derrotado, que o seu destino amargo não era um puro acaso. Sim,
sim, um estudante azarento de cabelo branco… Que passado é o dele, o que
terá pela frente?
E, talvez porque Nikolai Andréevitch desejou com tanta veemência dizer
tudo isso a Ivan, acabou por dizer o absolutamente oposto.
– Que bom, é admirável. No essencial somos iguais, tu e eu. E quero dizer-
te: se agora, quando te encontrares com pessoas que não passaram a vida a
trabalhar como lenhadores e cavadores, mas que escreveram livros e assim
por diante, quando te surgir a sensação de dezenas de anos perdidos, de uma
vida perdida, afasta essa sensação! No essencial, és igual àqueles que faziam
a ciência, que tiveram êxitos na vida e no trabalho.
E sentiu como a sua voz tremeu de emoção e o seu coração se apertou
deliciosamente.
Viu o embaraço de Ivan, viu que os olhos da mulher voltaram a enevoar-se
de lágrimas emocionadas.
É que gostava de Ivan, toda a vida gostou dele.
Maria Pávlovna, pelos vistos, nunca tinha sentido a força espiritual do
marido com tanta plenitude como nestes momentos em que ele queria animar
o desgraçado Ivan. Ela é que sabia quem era o vencedor e quem era o
vencido.
Era de facto estranho, mas mesmo na hora em que o carro ZIS19 levou
Nikolai ao aeródromo de Vnúkovo, de onde voaria à Índia para apresentar ao
primeiro-ministro Neru a delegação de cientistas soviéticos, Maria Pávlovna
não sentiu com tanta profundidade o seu triunfo na vida. Agora, aquele amor
pelo homem grisalho de calçado grosseiro, combinado com as lágrimas pelo
filho morto e com a compaixão, era uma coisa muito especial.
– Ivan – disse ela –, preparei para si todo um guarda-roupa, já que você e
Nikolai são da mesma estatura.
Maria Pávlovna encetou esta conversa sobre os fatos velhos num momento
menos conveniente, e Nikolai Andréevitch disse:
– Oh, meu Deus, não vale a pena falar dessas insignificâncias. Bem, é do
fundo da alma…
– A alma não importa – disse Ivan Grigórievitch –, o problema é que és três
vezes mais largo do que eu.
Maria Pávlovna sentiu-se alfinetada pelo olhar fixo e, ao que parecia, um
pouco compassivo de Ivan. Pelos vistos, a modéstia do comportamento de
Nikolai Andréevitch não deixava que Ivan esquecesse a sua antiga atitude
condescendente para com ele.
Ivan Grigórievitch bebeu um copo de vodca, e cores castanho-escuras
transpareceram na sua cara.
Perguntou pelos velhos amigos.
Nikolai Andréevitch não se tinha encontrado com a maioria dos velhos
amigos durante dezenas de anos, muitos já não estavam vivos. Tudo o que o
ligava a eles – preocupações e problemas comuns – desvanecera-se; os seus
caminhos separaram-se, as lamentações e a tristeza por aqueles que
desapareceram sem direito a correspondência20 e para sempre foram
esquecidos. Não apetecia a Nikolai Andréevitch recordá-los, como não
apetece aproximarmo-nos de um solitário tronco seco rodeado apenas pela
terra morta e poeirenta.
Apetecia-lhe agora falar das pessoas que Ivan Grigórievitch não conhecia –
era a elas que os acontecimentos da vida de Nikolai estavam ligados. Ao falar
dessas pessoas, estava como que a aproximar-se do tema principal – a sua
própria história.
Sim, era precisamente em momentos destes que tinha de se libertar do
verme roedor próprio do intelectual, daquela sensação de culpa, da
ilegitimidade das coisas maravilhosas que lhe aconteceram. Não queria
arrepender-se, desejava afirmar-se.
E começou a falar das pessoas que o sujeitavam a um desprezo
condescendente, que não o compreendiam nem lhe davam valor – pessoas
que ele, neste momento, estava pronto a ajudar.
– Nikolai – disse de repente Maria Pávlovna –, conta a Ivan sobre Ánia
Zamkóvskaia.
E os esposos apanharam de imediato a emoção de Ivan Grigórievitch.
Nikolai Andréevitch disse:
– Ela escreveu-te, sim?
– A última carta foi há dezoito anos.
– Sim, sim, está casada. O marido é especialista em química física, numa
palavra, é daquela área atómica. Vivem em Leninegrado, na mesma casa,
imagina, em que ela vivia antes com a família. Normalmente, encontramo-la
durante as férias, no outono… Dantes perguntava sempre por ti, mas depois
da guerra, verdade seja dita, deixou de perguntar.
Ivan Grigórievitch pigarreou, disse em voz rouca:
– Pensei que ela tinha morrido: deixou de escrever.
– Bem, já te falei de Mandelstam – disse Nikolai Andréevitch. – Lembras-
te do velho Zaoziórski? Mandelstam foi o seu aluno preferido. Zaoziórski
caiu em 1937… Ia muito ao estrangeiro, encontrava-se muitas vezes,
livremente, com emigrados e fugitivos, com Ipátiev, Tchitchibábin… Então,
o Mandelstam… começou a subir na vida, mas já te contei o final, como ele
foi declarado cosmopolita e assim por diante… Tudo isso não interessa, é
claro, mas, verdade seja dita, graças a Zaoziórski, não lhe faltavam relações
científicas na Europa e na América.
Nikolai Andréevitch pensou que não estava a contar tudo aquilo em prol de
si próprio, mas para Ivan – porque Ivan tinha noções caducas, infantis, era
preciso familiarizá-lo com a atualidade. E logo a seguir um pensamento
relanceou na sua mente: «Meu Deus, como estou impregnado de incenso e
hipocrisia.»
Olhou para as mãos quietas e castanhas de Ivan e começou a explicar:
– Tu, provavelmente, não tens uma noção muito clara dessa terminologia –
cosmopolitismo, nacionalismo burguês –, do significado da quinta alínea no
questionário. O cosmopolitismo corresponde, mais ou menos, à participação
na conspiração monárquica na época do primeiro congresso da Internacional
Comunista. Aliás, nos campos correcionais viste essa gente toda. Os que
vinham substituir os expulsos também seriam corridos, por sua vez, e
tornavam-se teus vizinhos de barraca. Mas acho que essas coisas deixaram de
nos ameaçar, esse processo de substituição foi anulado. Durante essas
décadas, o nacional, na nossa vida, passou da área da forma para a área do
conteúdo: grandioso e simples. Mas muita gente é incapaz de compreender
esta simplicidade. Olha, quando uma pessoa é expulsa não quer percebê-lo
como uma lógica histórica, vê nisto apenas um absurdo, um erro. Mas o facto
não deixa de ser facto. Os nossos cientistas e técnicos criaram aviões russos
soviéticos, reatores atómicos e máquinas eletrónicas russas, e a esta soberania
deve corresponder uma soberania política: o homem russo entrou na área do
conteúdo, na base, no fundamento…
Começou a falar dos antissemitas, de como os odiava. Mas, ao mesmo
tempo, via que Mandelstam e Khávkin, pessoas incontestavelmente
talentosas, estavam cegas e defendiam que tudo o que estava a acontecer não
passava de antissemitismo. Do mesmo modo que Pijov, Radiónov e outros
não compreendiam que o essencial não era apenas a grosseria e a intolerância
de Lissenko, mas a ciência nacional que a nova gente estava a consolidar.
Os olhos atentos de Ivan Grigórievitch estavam cravados nele, e uma
inquietude remoeu a alma de Nikolai Andréevitch, como na infância quando,
sob o triste olhar da mãe, sentia vagamente que estava a falar de modo errado,
mau. Desejando apagar esta vaga sensação, Nikolai Andréevitch raciocinou
com mais peso e cordialidade.
– Passei por muitas provações – disse triste e sinceramente –, vivi tempos
difíceis, severos! É claro que não badalei como o sino de Herzen21, não
desmascarei Béria22 e os erros de Stálin; mas falar disso seria absurdo.
Ivan Grigórievitch baixou a cabeça, e era impossível perceber se estava a
dormitar, a devanear sobre qualquer coisa longínqua, ou se estava a refletir
nas palavras de Nikolai Andréevitch. As suas mãos dormiam, a cabeça
afundou-se-lhe nos ombros. Era assim mesmo que, no dia anterior, no
comboio, ouvia os seus companheiros de viagem.
Nikolai Andréevitch disse:
– Vivi mal nos tempos de Iagoda e nos de Ejov, mas agora quando não
existem Béria nem Abakúmov, Riúmin, Merkúlov, Kobúlov23, levantei
realmente a cabeça. Em primeiro lugar, durmo calmamente, não espero
visitas noturnas. E não só eu. E penso involuntariamente: não foi em vão que
aguentámos tempos cruéis. Uma nova vida nasceu, e todos somos seus
participantes na medida das nossas forças.
– Nikolai, Nikolai – disse baixinho Ivan Grigórievitch.
Estas palavras irritaram Maria Pávlovna. Tal como o marido, reparou na
expressão compassiva e soturna do convidado.
Disse ao marido com censura:
– Porque é que tens medo de dizer que Mandelstam e Pijov são pessoas
enfatuadas? E não vale a pena lamentar que a vida os pusesse no seu lugar.
Foi isso, e ainda bem.
Estava a criticar o marido, mas a sua crítica era dirigida ao convidado.
Então, preocupada com a rispidez das suas palavras, disse:
– Vou preparar a cama. O Ivan está muito cansado, esquecemo-nos disso.
Mas Ivan Grigórievitch, sabendo já que a sua visita não trouxera alívio ao
primo, antes um novo peso, perguntou sombriamente:
– Diz lá, assinaste ou não a carta que acusava os médicos assassinos? Ouvi
falar dessa carta no campo, contaram-mo os funcionários «substituídos».
– Meu querido, que estranho tu és… – disse Nikolai Andréevitch e
titubeou, calou-se.
Tudo gelou de angústia no seu íntimo, mas ao mesmo tempo sentiu que
estava a suar, que corava, que as suas faces ardiam.
Mas não caiu de joelhos, em vez disso respondeu:
– Meu amigo, meu querido amigo, a vida não era fácil também para nós,
não apenas para vós, lá nos campos.
– Por amor de Deus – disse apressadamente Ivan Grigórievitch –, não sou
juiz para ti nem para ninguém. Que juiz sou eu…? Que ideia… Antes pelo
contrário…
– Não, não, não estou a falar disso – replicou Nikolai Andréevitch –, quero
dizer que é muito importante, no meio das contradições, do fumo, da poeira,
não estar cego, ver o enorme caminho, porque se perdemos a vista somos
capazes de enlouquecer.
Ivan Grigórievitch disse em tom culpado:
– Ouve, que desgraça, pelos vistos confundo as coisas: tomo a visão pela
cegueira.
– Onde é que vamos deitar o Ivan? – perguntou Maria Pávlovna. – Onde
estará mais confortável?
Ivan Grigórievitch disse:
– Não, não, obrigado, não vou poder dormir em vossa casa.
– Mas porquê? Onde mais? Macha, vamos amarrá-lo!
Ivan respondeu:
– Não me amarreis, não vale a pena.
Nikolai Andréevitch calou-se, carregou o sobrolho.
– Perdoai-me, não é nada, é outra coisa… Simplesmente, não posso – disse
Ivan Grigórievitch.
– Ouve, Ivan… – começou Nikolai Andréevitch, mas calou-se.
Quando Ivan Grigórievitch se foi embora, Maria Pávlovna olhou para a
mesa cheia de petiscos, para as cadeiras afastadas.
– Foi recebido como um rei – disse ela. – Os Nesmeiánov não foram
recebidos melhor.
Era verdade: Maria Pávlovna – como às vezes acontece às pessoas
avarentas – preparara, desta vez, um almoço rico, de envergadura superior à
generosidade das pessoas mais hospitaleiras.
Nikolai Andréevitch aproximou-se da mesa.
– Pois, quem é louco sê-lo-á toda a vida – disse. A mulher levou as mãos às
têmporas dele e, beijando-lhe a fronte, disse:
– Não te aflijas, não vale a pena, meu idealista incorrigível.
16 Suka», no calão prisional, é um preso que não cumpre as regras dos criminosos profissionais,
colabora com as autoridades e concorda com o cumprimento dos trabalhos prisionais. (N. dos T.)

17 Anton Deníkin (1872-1947) – general, um dos principais dirigentes da contrarrevolução durante a


guerra civil de 1918-1920. (N. dos T.)

18 Nikolai Nekrássov (1821-1877) – poeta e escritor, crítico literário e editor russo, satírico,
invetivador de injustiças sociais. (N. dos T.)

19 ZIS – marca de automóveis ligeiros de seis lugares, produzidos na Fábrica de Automóveis de


Moscovo. (N. dos T.)

20 «Dez anos sem direito a correspondência» – sentença que significava, de facto, a pena capital. (N.
dos T.)

21 Aleksandr Herzen (1812-1870) – revolucionário, escritor, filósofo e publicista russo. Na emigração,


em Londres, editou, desde 1857, o primeiro jornal revolucionário russo Kólokol («O Sino»). (N. dos T.)

22 Lavrênti Béria (1899-1953) – comissário do povo (ministro) do Interior desde 1938, comissário-
geral de Segurança do Estado desde 1941, uma das personalidades mais próximas de Stálin. Depois da
morte de Stálin, foi preso, acusado de espionagem e fuzilado. (N. dos T.)

23 Guênrikh Iagoda (1891-1938) – comissário do povo (ministro) do Interior entre 1934 e 1936,
presidente da OGPU da URSS em 1934, comissário-geral da Segurança do Estado em 1936.
Organizador de perseguições e repressões políticas em massa. Em 1937 foi preso, acusado de crimes
comuns e políticos contra o Estado soviético, de organização de atentados contra Stálin, de preparação
de golpe de Estado. Fuzilado em março de 1938. Nikolai Ejov (1895-1940) – comissário do povo
(ministro) do Interior entre 1936 e 1938, comissário-geral da Segurança do Estado desde 1937,
executor de repressões políticas em massa. Fuzilado em resultado do processo-crime em que foi
acusado de preparação de golpe de Estado, de espionagem e, até, de ter cometido «atos de sodomia com
fins antissoviéticos e interesseiros». Víktor Abakúmov (1908-1954) – homem de Estado e militar
soviético, ministro da Segurança do Estado em 1946-1951. Participou em repressões políticas. Preso
em 1951 (em resultado da denúncia feita por M. Riúmin), foi acusado do crime lesa-pátria. Passados
três anos, foi fuzilado. Mikhaíl Riúmin (1913-1954) – oficial dos órgãos da Segurança do Estado. Tinha
alcunha de «anão sangrento». Foi um dos falsificadores do «caso dos médicos assassinos». Depois da
morte de Stálin, preso e fuzilado. Vsévolod Merkúlov (1895-1953) – político e homem de Estado
soviético, general. Ministro da Segurança do Estado em 1941, 1943-1946. Depois, ministro do Controlo
do Estado. Participou na condenação à pena capital dos oficiais polacos em Katin. Assinou penas
capitais aos «inimigos do povo» na Ucrânia Ocidental em 1941-1943. Em resultado, foram executadas
mais de 10 mil pessoas. Preso na mesma altura que Béria, fuzilado. Bogdan Kobúlov (1904-1953) –
coronel-general, um dos dirigentes dos órgãos da Segurança do Estado. Homem de confiança de Béria.
Organizou e realizou, em 1944, a deportação de tchetchenos, inguches, tártaros da Crimeia, búlgaros e
gregos. Torturou pessoalmente pessoas na Lubianka. Participou na liquidação dos oficiais polacos em
Katin (1940). Preso e fuzilado juntamente com Béria. (N. dos T.)
5

Ivan Grigórievitch acordou, deitado no banco da carruagem de segunda


classe, quando o dia estava a despontar, escutou o barulho das rodas, abriu os
olhos, começou a perscrutar o crepúsculo matinal para lá da janela…
Durante os seus vinte e nove anos prisionais, por várias vezes viu em
sonhos a sua infância. Uma vez sonhou com uma pequena enseada – na água
serena, vários caranguejos corriam de lado pelos pedregulhos do fundo, no
seu inaudível passo subaquático, e escondiam-se entre as algas… Estava a
andar lentamente pelos seixos rolados, sentindo com a planta do pé o terno
linho aquático, e dezenas de gotinhas oblongas, cor de mercúrio – alevins de
cavala, de carapau – jorraram e dispersaram-se… O sol alumiou as clareiras
verdes, os pequenos pinhais subaquáticos: parecia que a linda enseada, em
vez de água salgada, era feita de luz salgada…
Teve este sonho no vagão de trânsito e, embora um quarto de século tivesse
passado desde então, continuava a lembrar-se da mágoa que o envolveu
quando viu a cinzenta luz invernal e as cinzentas caras dos presos, e ouviu,
atrás da parede do vagão, o rangido de botas na neve, as marteladas sonoras
dos guardas pelo fundo do vagão.
Às vezes imaginava a casa na elevação da costa marítima, os ramos da
velha cerejeira por cima do telhado, o poço…
Levava a sua memória até uma agudeza martirizante, e então recordava o
brilho da folha grossa de magnólia, uma pedra achatada no meio do riacho.
Recordava o sossego e a frescura dos quartos de paredes caiadas, o desenho
da toalha da mesa. Recordava como lia, sentado com os pés no divã – o forro
de oleado era agradavelmente fresco nos dias estivais de calor. Às vezes
tentava recordar a cara da mãe, e o seu coração angustiava-se, ele carregava o
sobrolho, e os olhos cerrados enchiam-se de lágrimas, como na infância,
quando tentava olhar para o sol.
Recordava os montes com facilidade, com todos os pormenores, como se
estivesse a folhear um livro já lido – ei-lo a abrir-se sozinho na página
necessária.
Ao atravessar as silveiras e os olmos tortos, escorregando no solo
pedregoso, rachado, cinzento-amarelado, chegava até à passagem nos montes
e, lançando um olhar para trás, para o mar, entrava na fresca penumbra da
floresta… Os potentes carvalhos levantavam com facilidade nos seus ramos
grossos as colinas de folhagem rendilhada, um imponente silêncio reinava à
volta.
Em meados do século xix, a zona costeira era habitada pelos circassianos.
O velhinho grego, pai do hortelão Mefódi, ainda viu em criança pomares e
aldeias populosas de circassianos.
Quando os russos conquistaram a costa, os circassianos foram-se embora, e
a vida esmoreceu nos montes costeiros. Aqui e ali, as ameixeiras, as pereiras
e as cerejeiras curvadas, de volta à floresta, cresciam no meio dos carvalhos,
mas já não havia pessegueiros e damasqueiros – a sua vida curta terminara.
As sombrias pedras enegrecidas pelo fumo, restos de lares destruídos,
estavam espalhadas pela floresta, e as lajes tumulares jaziam, escuras,
afundadas na terra até ao meio, nos cemitérios esquecidos.
Todas as coisas inanimadas – pedras, ferro – eram absorvidas, com a
passagem dos anos, pela terra, dissolvendo-se nela, mas a vida verde, pelo
contrário, arrancava da terra. O silêncio por cima dos lares frios parecia
angustiante ao rapaz. De volta a casa, sentia com carinho especial o cheiro do
fumo da cozinha, os latidos dos cães, o cacarejo das galinhas.
Um dia chegou-se ao pé da mãe, que estava sentada à mesa com um livro,
abraçou-a, apertou a cabeça aos seus joelhos.
– Estás adoentado? – perguntou a mãe.
– Não, estou bem, estou muito feliz – murmurou o rapaz, beijando o
vestido da mãe, as suas mãos, e desfez-se em choro.
Era incapaz de explicar à mãe o seu sentimento – parecia-lhe que na
penumbra florestal alguém estava a queixar-se, a procurar pessoas
desaparecidas, a espreitar por trás das árvores, tentando ouvir as vozes dos
pastores circassianos, o choro das crianças. Inspirava o ar – não haverá cheiro
a fumo, a panquecas quentes?…
E, por qualquer razão, no regresso da floresta não tinha apenas alegria, mas
também vergonha ao sentir o fascínio da casa materna…
Pareceu-lhe que a mãe não percebeu nada das suas explicações, apenas
disse:
– Meu parvinho, que difícil será a vida para o teu coração sensível,
condolente…
Ao jantar, o pai trocou olhares com a mãe e disse:
– Ivan, sabes pelos vistos que antigamente a nossa Sótchi se chamava Posto
Dakhóvski, e as povoações nos montes se denominavam de Primeira
Companhia, Segunda Companhia…
– Sei – disse Ivan e fungou, melindrado.
– Eram acampamentos das tropas russas, os soldados levavam não só
espingardas mas também machados, pás, abriam caminho através do matagal
onde viviam os montanheses selvagens e cruéis.
O pai coçou a barba e acrescentou:
– Desculpa-me o estilo empolado. Estavam a abrir caminho para a
Rússia… então, também nós nos instalámos aqui… Eu, por exemplo,
contribuí para a organização de escolas; Iákov Iakovlevitch, digamos, plantou
vinhas, pomares; outras pessoas construíram hospitais, uma estrada. O
progresso exige sacrifícios, e não vale a pena lamentar o que é inevitável.
Compreendes porque estou a falar disto?
– Compreendo – respondeu o rapaz –, mas aqui ainda antes de nós havia
pomares que se tornaram bravos.
– Sim, sim, meu amigo – disse o pai. – Quem anda à chuva molha-se. A
propósito, ninguém expulsou daqui os circassianos, foram para a Turquia por
sua própria vontade. Teriam podido ficar e assimilar a cultura russa. Ora, na
Turquia viveram na miséria, muitos perderam a vida…
Ivan Grigórievitch recordava o passado – sonhava com a terra materna,
ouviam-se as vozes familiares, e no quintal o cão com os olhos vermelhos de
lágrimas senis levantava-se ao seu encontro.
Acordava sob o rumorejo do oceano florestal da Sibéria, por cima do qual
rolava a nevasca invernal.
Agora os dias da sua vida livre começavam a correr, mas continuava à
espera de qualquer coisa boa, jovem.
De manhã acordou no comboio com uma sensação de desesperada solidão.
O encontro com o primo, no dia anterior, encheu-o de amargura, Moscovo
ensurdeceu-o, oprimiu-o. Os gigantescos edifícios de muitos andares, as
correntes de carros, os semáforos, as multidões nos passeios – tudo isso lhe
era estranho, alheio. A cidade pareceu-lhe um enorme mecanismo adestrado –
ora imobilizado por ordem do sinal vermelho, ora posto de uma vez em
movimento com o sinal verde… Em mil anos da sua existência, a Rússia viu
muita coisa grandiosa. E nos anos soviéticos o país viu as vitórias militares
de envergadura mundial e grandes obras de construção, e cidades novas, e
barragens que fecharam a corrente do Dniepre e do Volga, e canais que
ligaram mares, e a potência dos tratores, e arranha-céus… A Rússia, durante
mil anos, só não viu uma coisa – a liberdade.
Foi de troleicarro até ao sudoeste de Moscovo. Ali, no meio da lama rural,
de lagos artificiais que ainda não tinham secado, haviam crescido edifícios
enormes, de oito e dez pisos. As isbás, as hortas, os barracões de aldeia
estavam a viver os seus últimos dias, apertados pelo grande avanço da pedra
e do alcatrão.
As futuras ruas da nova Moscovo entreviam-se no caos, no meio do rugido
dos camiões, e Ivan Grigórievitch vagueava pela cidade em crescimento onde
não havia ainda calçadas nem passeios, onde as pessoas caminhavam até às
casas pelas veredas serpenteantes entre montões de lixo. Por todo o lado, as
mesmas tabuletas: «Carne» e «Cabeleireiro». No crepúsculo, as tabuletas
verticais «Carne» ardiam em fogo vermelho, e as tabuletas «Cabeleireiro»
luziam num verde penetrante.
Essas tabuletas, surgidas juntamente com os primeiros moradores,
pareciam evidenciar a essência carnívora do homem.
Carne, carne, carne… O homem devorava carne. O homem não passava
sem carne. Aqui não havia ainda bibliotecas, nem teatros, nem cinemas, nem
oficinas de costura, não havia sequer hospitais, farmácias, escolas, mas
começou a luzir de imediato, a vermelho: carne, carne, carne…
E ao lado, a esmeralda das tabuletas de cabeleireiro. O homem comia carne
e cobria-se de pelo.
De noite, Ivan Grigórievitch foi à estação e ficou a saber que o último
comboio para Leninegrado partia às duas da madrugada; comprou um bilhete,
foi buscar as suas coisas ao depósito das bagagens.
Quando se viu na carruagem vazia e fria, surpreendeu-se com a sensação de
sossego.
O comboio estava a atravessar os subúrbios de Moscovo, os escuros
bosquetes e clareiras outonais voavam atrás da janela, e Ivan Grigórievitch
sentiu-se aliviado por escapar da gigantesca Moscovo elétrica, pétrea e
automobilística, e por não ter de ouvir o discurso do primo sobre o decurso
racional da história que havia desembaraçado um lugarzinho para ele, Nikolai
Andréevitch.
O feixe de luz da lanterna da encarregada da carruagem brilhou no banco
polido como na superfície da água.
– Paizinho, tem bilhete?
– Tenho, já o mostrei.
Durante anos tinha pensado na hora em que, posto em liberdade, voltaria a
encontrar-se com o primo, o único homem no mundo que conhecia a sua
infância, a sua mãe e o seu pai. Mas não se espantou com a paz e a leveza que
sentiu na carruagem do comboio noturno.
De manhã acordou com uma sensação de solidão tão densa que, como lhe
pareceu, uma criatura que respirasse o ar da terra seria incapaz de suportá-la.
Viajava para a cidade onde passara os seus anos estudantis, onde vivia o
seu amor. Quando, muitos anos atrás, ela deixou de lhe escrever, Ivan chorou
a sua morte: não duvidava de que apenas a morte seria capaz de interromper a
correspondência deles. Mas ela vivia, estava viva…
6

Ivan Grigórievitch passou em Leninegrado três dias. Por duas vezes se


aproximou da universidade, foi a Okhta, ao Instituto Politécnico, procurou as
ruas onde viveram os seus conhecidos e não encontrou muitas vezes essas
ruas nem os prédios destruídos durante o cerco; e, quando encontrava tanto as
ruas como os prédios, nas placas pretas dos portões não havia nomes
familiares.
Passando pelos lugares que conhecia, às vezes estava calmo, distraído, a
sua mente enchia-se de caras de presos, de conversas no campo correcional,
mas outras vezes, impregnado de uma recordação da juventude, parava em
frente de um prédio familiar, num cruzamento familiar. Visitou o Hermitage
e saiu dele aborrecido e frio. Seria possível que as pinturas continuassem tão
belas durante todos aqueles anos em que se fez velho na prisão? Porque não
mudavam, por que razão os rostos das santas virgens divinas não
envelheciam e os seus olhos não cegavam de lágrimas? Aquela eternidade e
imutabilidade talvez não fossem a sua força, mas a sua fraqueza? Talvez
significasse que a arte traiu o homem que a criou?
A certa altura, dilacerou-o uma repentina recordação, embora,
aparentemente, casual e insignificante: aconteceu ajudar uma senhora idosa e
coxa a levar um cesto para um terceiro andar; e depois, quando descia a
correr pela escada escura, ficou aturdido de felicidade: a primavera, charcos
do degelo, o sol de março. Estava ao pé do prédio em que morava Ánia
Zamkóvskaia, e pareceu-lhe inacreditável voltar a ver as janelas altas e o
revestimento de granito das paredes, o mármore dos degraus, branco na
penumbra, a rede metálica do elevador. Tantas vezes tinha recordado este
prédio. Antigamente acompanhava Ánia a casa depois dos passeios noturnos,
e ficava em baixo, esperando que a luz se acendesse na sua janela. Ela dizia:
«Mesmo que voltes da guerra cego e sem pernas e braços, serei feliz no meu
amor.»
Ivan Grigórievitch viu plantas no peitoril da janela entreaberta. Ficou
algum tempo ao lado da porta, depois foi-se embora. O seu coração batia
calmamente – lá, atrás do arame farpado, a mulher que considerava morta
estava mais próxima da sua alma do que agora, quando parou debaixo da sua
janela.
Reconhecia e não reconhecia a cidade, muitas coisas permaneciam
imutáveis, como se Ivan Grigórievitch tivesse passado por essas ruas apenas
algumas horas antes, mas muitas outras eram novas. Outras tinham
desaparecido e no lugar delas nada surgira.
Mas Ivan Grigórievitch não compreendia que não só a cidade mudara, ele
próprio também era outro, o seu interesse, o seu olhar perscrutador tornara-se
diferente.
Agora via na cidade o que antes não via; era como se se mudasse de um
andar de vida para outro. Agora, revelavam-se-lhe as feiras da ladra, as
esquadras da polícia, as repartições dos documentos de identidade, os
refeitórios baratos, as secções de emprego, os anúncios de recrutamento de
mão de obra, os hospitais, as salas de espera para os passageiros em
trânsito… Enquanto o mundo de anúncios teatrais, de filarmónicas, de
alfarrabistas, de estádios, de salas universitárias, de salas de leitura e de
exposições se desvanecera, desaparecera numa quarta dimensão.
Porque para um doente crónico não existe na cidade nada além das
farmácias e dos hospitais, das clínicas e das juntas médicas. Para um bêbedo
a cidade resume-se a uma garrafa partilhada com outros dois bêbedos. E para
um apaixonado, a cidade tem apenas os ponteiros do relógio na rua que
marcam as horas dos encontros, os bancos nos bulevares, as moedas para o
telefone público.
Em tempos, nestas ruas havia caras familiares por todo o lado, as janelas
dos amigos luziam à noite. Mas agora os olhos familiares sorriam para ele do
catre prisional e os lábios pálidos sussurravam:
– Olá, Ivan Grigórievitch!
Dantes, aqui nesta cidade, conhecia de vista os empregados das livrarias e
das mercearias, dos quiosques de jornais, das tabacarias.
Lá, em Vorkutá, um carcereiro fora ter com ele para lhe dizer:
– Conheço-te, estiveste na prisão de trânsito em Omsk.
Hoje, no meio da multidão de milhares de leninegradenses, não via
ninguém conhecido e os desconhecidos pareciam-lhe estranhos. No largo
aspeto geral das caras acontecera uma grande mudança.
As ligações visíveis e invisíveis haviam desaparecido, rasgadas pelo tempo,
pelas deportações em massa depois do assassínio de Kírov24, dilaceradas
pelas tempestades, cobertas pela neve e pela poeira do Cazaquistão25, pela
fome durante o cerco – e ele caminhava sozinho, alheado…
O movimento das massas populares aos milhões fez com que gente de
olhos claros e maçãs de rosto salientes, vinda da periferia, enchesse as ruas de
Leninegrado, enquanto nas barracas dos campos correcionais Ivan
Grigórievitch encontrava cada vez mais os tristes petersburguenses que
pronunciavam os erres velarizados.
A avenida Névski e a vidinha provinciana das casas de madeira haviam-se
juntado, misturaram-se não só nos autocarros e nos apartamentos, mas
também nas páginas dos livros e das revistas, nas salas de conferências dos
institutos científicos.
Ivan Grigórievitch sentiu o espírito da caserna prisional, olhando para as
janelas da polícia de Leninegrado, ouvindo à mesa luxuosa os discursos do
seu primo, lendo a tabuleta da secção de documentos de identificação…
Parecia-lhe que o arame farpado já era desnecessário, que a vida fora dele já
se igualara na sua essência à barraca do campo correcional.
Uma enorme caldeira fervia, borbulhava, barulhava caoticamente, abraçada
pelo fogo, pelo fumo, pelo vapor, e entre as muitas pessoas cada qual achava
que era ela, precisamente ela, que compreendia a lei de ebulição da grande
caldeira, sabendo como foram preparadas as papas e quem devia comê-las.
Ivan Grigórievitch, de botas de soldado, estava de novo parado em frente
do cavaleiro divinamente descalço, com a coroa de louros na cabeça. Trinta
anos atrás, jovem, passava ao lado do monumento, e o Pedro de bronze
alardeava a sua força. Até que enfim Ivan Grigórievitch encontrava um
conhecido.
Parecia que nem trinta anos atrás, nem cento e trinta anos atrás, quando
Púchkin trouxe a esta praça o seu herói26, o maravilhoso Pedro era tão grande
como hoje. Já não havia no mundo força maior do que aquela de que ele se
encheu e que agora exprimia – a força majestosa do maravilhoso Estado. Esta
força crescia, erguia-se, reinava sobre os campos, as fábricas, as mesas de
trabalho dos poetas e dos cientistas, os canais e as barragens em construção,
as pedreiras, as serrações e os terrenos de corte das florestas; esta força era
capaz de apoderar-se tanto dos gigantescos espaços como das ocultas
profundezas do coração do homem enfeitiçado que lhe oferecia solenemente
a sua liberdade, o próprio desejo de liberdade.
Ivan Grigórievitch pernoitou na estação de comboios, na sala para os
passageiros em trânsito. Não gastava mais do que rublo e meio, dois rublos
por dia, e não tinha pressa de abandonar Leninegrado.
No terceiro dia esbarrou com um homem que conhecia e que recordara
muitas vezes durante a sua vida nos campos correcionais.
Reconheceram-se de imediato, embora o atual Ivan Grigórievitch já não
tivesse qualquer semelhança com o antigo estudante universitário do terceiro
ano e Vitáli Antónovitch Pinéguin, de gabardina cinzenta e chapéu de feltro,
tivesse um aspeto muito diferente do antigo jovem de farda estudantil coçada.
Ao ver a cara do aturdido Pinéguin, Ivan Grigórievitch disse:
– Julgavas que eu estava morto?
Pinéguin, perplexo, abriu os braços.
– Já há dez anos se dizia que tu…
Fixava os seus olhos vivos e inteligentes no fundo dos olhos de Ivan
Grigórievitch.
– Não te preocupes – disse Ivan Grigórievitch –, não sou fantasma nem
fugitivo, o que é ainda mais nojento. Tenho, como tu, um passaporte e tudo o
resto.
Estas palavras indignaram Pinéguin.
– Quando encontro um velho companheiro, não me interessa o seu
passaporte.
Chegara a grandes alturas, mas no seu fundo continuava a ser um bom
rapaz.
Fosse do que fosse que estava agora a falar – dos seus filhos, de «mudaste
incrivelmente, mas reconheci-te de imediato» – os seus olhos observavam
Ivan Grigórievitch ávida e ansiosamente.
– É assim, em termos gerais… – disse Pinéguin. – O que queres que te
conte mais?
«Contavas antes como é que tu…» – e Pinéguin ficou, por um instante,
empedernido, mas Ivan Grigórievitch, é claro, não pronunciou nada parecido.
– Mas não sei nada de ti – disse Pinéguin.
E outra vez ficou à espera – será que Ivan Grigórievitch vai responder: «Tu
próprio, quando foi preciso, soubeste contar coisas sobre a minha pessoa;
porque preciso, então, de te falar de mim?»
Mas Ivan Grigórievitch ficou calado e, depois, abanou a mão.
E Pinéguin de repente compreendeu: Ivan não sabe de nada nem podia
saber. Nervos, nervos… Que azar, e logo hoje que mandou o carro para a
inspeção técnica. Há dias lembrou-se de Ivan e pensou: e se algum parente
conseguir a sua reabilitação póstuma? A transformação de uma alma morta
numa alma viva! E agora, assim de repente, ali estava o Ivan em pessoa, à luz
do dia. Cumpriu trinta anos de cadeia e tem, pelos vistos, um papel no bolso
que reza: «Por ausência do corpo de delito…»
Voltou a olhar Ivan Grigórievitch nos olhos e percebeu definitivamente que
este não sabia de nada. Sentiu vergonha pelos apertos no coração, pelo suor
frio e por, mais um pouco, estar pronto a lamuriar-se, a vociferar.
E a certeza de que Ivan não lhe ia cuspir na cara nem o chamaria à
responsabilidade encheu Pinéguin de luz. Com uma gratidão pouco clara para
ele próprio, Pinéguin disse:
– Ouve, Ivan, só cá entre nós, homens simples… pois o meu pai era
ferreiro… se calhar, precisas de dinheiro? Como amigo, do fundo da alma…
Ivan Grigórievitch, sem censura, apenas com uma viva e triste curiosidade,
olhou Pinéguin nos olhos, e por um segundo, apenas por um breve segundo,
Pinéguin sentiu que daria tudo – as condecorações, a casa de campo, o poder,
a força, a bela mulher, os filhos bem-sucedidos que estavam a estudar o
núcleo atómico – apenas para não sentir aquele olhar.
– Pronto, fica bem, Pinéguin – disse Ivan Grigórievitch e seguiu na direção
da estação de comboios.
24 Serguei Kírov (1886-1934) – militante do Partido Comunista da URSS, homem de Estado. Foi
morto em circunstâncias pouco claras, em consequência de um atentado. A sua morte foi aproveitada
para repressões em massa contra pessoas inocentes. (N. dos T.)

25 O Cazaquistão era uma das regiões para onde se mandavam os deportados. (N. dos T.)

26 Trata-se de Evguéni, personagem do poema «O Cavaleiro de Bronze» de Aleksandr Púchkin. (N.


dos T.)
7

Quem tem culpa, quem será responsabilizado?…


É preciso pensar, não vamos dar uma resposta à pressa.
Cá estão as peritagens literárias e de engenharia falsas, os discursos
desmascarando os inimigos do povo, cá estão elas, as conversas cordiais e as
confissões amigáveis, transformadas em denúncias e relatórios dos agentes
secretos e dos bufos.
As denúncias precediam as ordens de detenção, utilizavam-se na instrução,
refletiam-se na sentença. Essas megatoneladas de mentira delatora pareciam
determinar os nomes das pessoas nas listas dos camponeses expropriados,
daqueles que eram privados dos direitos, dos passaportes, dos deportados, dos
fuzilados.
Num extremo da cadeia, duas pessoas conversavam à mesa, bebericando
chá, e a seguir, à luz do candeeiro sob o quebra-luz acolhedor, era escrita uma
confissão em estilo intelectual, ou então um ativista fazia o seu discurso
simples numa reunião do kolkhoze; no outro extremo da cadeia, eram os
olhos enlouquecidos, os rins esmagados, o crânio rachado pela bala, os
mortos de escorbuto na morgue de troncos do campo correcional, os dedos
dos pés supurados e gangrenosos, gelados na taiga.
No princípio era o Verbo… Verdade verdadeira.
O que fazer com os assassinos delatores?
Um homem de mãos trementes, com os olhos cavados de mártir, volta
depois de doze anos no campo correcional: Judas número um. Então, um
rumorzinho corre entre os seus amigos: ouviram dizer que o homem, em
tempos, se portara mal nos interrogatórios. Algumas pessoas deixaram de o
cumprimentar. Outros, mais espertos, são educados quando o encontram, mas
não o convidam para as suas casas. Outros, ainda mais espertos, profundos,
compreensivos, convidam-no, mas fecham-lhe as almas, não o deixam entrar
lá.
Todas essas pessoas têm casas de campo, contas na caixa de depósitos,
condecorações, carros. Sem dúvida, ele é magro, e eles são gordos, mas de
facto não se portaram mal nos interrogatórios. Ou seja, não podiam cometer
ignomínias nos interrogatórios… porque não foram interrogados. Tiveram
sorte: não foram presos. Que autêntica, que básica superioridade têm então
esses gordos sobre este magro? Porque também ele podia ser gordo, enquanto
eles podiam ser magros. Foi o acaso ou foi uma lei que determinou o destino
deles?
Era um homem normal. Tomava chá, comia a sua omeleta, gostava de
conversar com os amigos sobre os livros que lia, ia ao Teatro de Arte, às
vezes era bondoso. Mas era, verdade seja dita, muito impressionável,
nervoso, pouco seguro de si.
E apertaram muito com o homem. Não só lhe gritavam, também o
espancavam, não o deixavam dormir, não lhe davam água, obrigavam-no a
comer arenque salgado e ameaçavam-no com a pena capital. Contudo, fosse
como fosse, o homem cometeu um crime terrível – caluniou uma pessoa
inocente. Embora aquele caluniado, afinal, não chegasse a ser preso,
enquanto ele, forçado a caluniar, cumprisse sem culpa doze anos de trabalhos
forçados, voltando de lá semimorto, alquebrado, na miséria. Mas caluniou, é
um facto!
Não tenhamos pressa, vamos pensar a sério nesse delator.
Agora, o Judas número dois. Este não fez nem um dia de prisão. Tinha
fama de cabecinha de ouro, de maravilhoso conversador, mas agora as
pessoas semimortas libertadas dos campos correcionais contaram que ele era
agente secreto. Contribuiu para a destruição de muitas pessoas. Durante anos,
tinha conversas confidenciais com os seus amigos e, a seguir, fazia relatórios
por escrito e entregava-os aos chefes. A ele não arrancavam confissões por
meio da tortura, ele próprio manifestava esperteza, levando
impercetivelmente os seus interlocutores para os temas arriscados. Dois
homens denunciados por ele não voltaram do campo correcional, um outro
foi fuzilado por sentença da Comissão Militar do Tribunal Supremo. Os que
voltaram traziam uma lista de doenças, cada uma das quais garantia que a
severa junta médica lhes reconhecesse invalidez de primeiro grau.
Entretanto, o homem ganhou barriguinha e fama de gastrónomo, era
conhecedor de vinhos georgianos. A sua profissão, aliás, era na área da
elegante estética, colecionava, a propósito, edições únicas de poesia antiga.
Mas não tenhamos pressa, vamos pensar bem antes de pronunciar a nossa
sentença. O homem, desde criança, andava tolhido por um medo mortal – o
seu pai rico morrera, em 1919, no campo correcional com tifo exantemático,
uma tia e o seu marido general emigraram para Paris, o irmão mais velho foi
oficial da Guarda Branca. A mãe tinha um medo louco da polícia, do
administrador do prédio, do responsável pelo apartamento comunal, dos
escriturários da câmara municipal. A cada dia e cada hora, ele e os seus
parentes sentiam a sua inferioridade e viciosidade sociais. Na escola, ele
tremia em frente do secretário da célula; a bonitinha Gália, monitora dos
pioneiros, olhava para ele, ao que a ele parecia, com repugnância, como se
fosse um verme intocável. A ideia de que ela pudesse reparar nos seus olhos
apaixonados aterrorizava-o.
Então, algumas coisas se vão tornando claras. O rapaz ficou encantado com
a força do mundo novo e, como um passarinho, perscrutava os olhos
luminosos da vida nova que abrangia tudo. Apetecia-lhe muito iniciar-se
nela, ser aceite. Então, a vida nova assimilou-o. O passarinho não soltou
sequer um pio, não mexeu as asinhas quando o mundo terrível precisou da
sua esperteza e do seu charme. Ele depositou tudo no altar da pátria.
Tudo isto é verdade, não há dúvida. Mas que canalha, que canalha! E
reparem que, quando fazia denúncias, tirava disso proveito – comia bem,
deliciava-se. Mesmo assim, que desprotegido era – gente dessa precisa de
ama-seca, de mulherzinha cuidadosa. O que poderia ele fazer frente à terrível
força que dobrou a cerviz a metade do mundo, que virou todo um império do
avesso? Ora ele, com a sua delicadeza refinada era como uma renda,
embaraçava-se com o mínimo toque, uma expressão lamentosa aparecia-lhe
nos olhos.
Mas olhem – uma víbora mortalmente venenosa saía do seu pântano,
acercava-se, coleando, das pessoas, e quanto sofrimento lhes trazia!
E destroçava a vida de pessoas iguais a ele – amigos de longa data,
simpáticos, fechados, inteligentes, tímidos. Ele e só ele conhecia a chave que
lhes abria os corações. É que compreendia tudo – chorava a ler «O Prelado»
de Anton Tchékhov.
Mesmo assim, esperemos um pouco, pensemos ainda, não lhe lavremos a
sentença sem pensarmos duas vezes.
Agora, mais um camarada – Judas número três. Tem uma voz entrecortada,
ligeiramente rouca, de mestre de navio. Um olhar perscrutador, calmo. Nele,
há a convicção do senhor da vida. Ora é nomeado para trabalhar na ideologia,
ora no armazém de legumes. O questionário do seu currículo é de uma pureza
impecável, até luze. Os parentes são operários fabris dos quatro costados e
camponeses pobres.
Em 1937, este homem escreveu, de uma assentada, mais de duzentas
denúncias. A lista redigida por ele é variadíssima. Comissários dos tempos da
guerra civil, um poeta cançonetista, um diretor de uma fábrica siderúrgica,
dois secretários de um comité do partido distrital, um velho engenheiro
apartidário, três redatores – um de jornal, dois de editoras de livros –, um
diretor do refeitório de elite, um professor de filosofia, um chefe de gabinete
do partido, um professor de botânica, um canalizador da administração
predial, dois funcionários da secção agrária da administração regional… É
impossível enumerá-los a todos.
Todos os que denunciou eram homens soviéticos, não eram dos «antigos»,
entre as suas vítimas havia membros do partido, participantes na guerra civil,
ativistas. Especializou-se, principalmente, nos militantes do partido com
tendências fanáticas – dava cabo deles com entusiasmo.
Entre duas centenas de pessoas, poucos voltaram – alguns foram fuzilados,
outros morreram nos campos correcionais, de distrofia ou durante as
«depurações» no campo; aqueles que voltaram, estropiados física e
espiritualmente, arrastam miseravelmente os seus últimos dias.
Ora, para este homem, o ano de 1937 tornou-se uma época de triunfo. Este
rapaz de olhos perscrutadores era pouco culto, é verdade, todos à sua volta
eram mais fortes do que ele tanto pela educação como pelo passado heroico.
Nem uma migalha lhe cabia da parte daqueles que conceberam e realizaram a
revolução. Porém, dezenas de pessoas coroadas da glória revolucionária
caíam com uma fantástica facilidade a um único toque deste homem.
Foi a partir do ano trinta e sete que começou a subir muito na vida. Era
neste homem, afinal, que residia a bem-aventurança, a preciosíssima essência
da nova vida.
Com ele, aparentemente, tudo está claro – este deputado e membro do
bureau político fincou o pé nos ossos dos mortos, nos terríveis sofrimentos.
Mas não, não, não podemos ter tanta pressa, temos de refletir, de analisar
antes de pronunciar a sentença. Porque ele não sabia o que fazia.
Os seus mentores, os superiores disseram-lhe uma vez, em nome do
partido:
«É uma desgraça! Estamos rodeados de inimigos! Inimigos que se fingem
militantes do partido com provas dadas, participantes do trabalho clandestino,
participantes da guerra civil, mas na realidade são inimigos do povo, agentes
de espionagem, provocadores…» O partido disse-lhe: «És jovem e puro,
tenho fé em ti, rapaz, ajuda-me senão posso perecer, ajuda-me a vencer esses
diabos…»
O partido gritou com ele, bateu os pés de botas estalinistas: «Se te
mostrares indeciso, colocas-te na mesma fileira dos degenerados, e então
reduzo-te a pó! Não te esqueças, meu grande filho da puta, em que isbá
miserável nasceste, enquanto eu estou a levar-te para a luz; sê obediente, o
grande Stálin, teu pai, dá-te esta ordem: “Atacá-los!”»
Não, não, não foi por ajuste de contas pessoais… Ele, jovem comunista
rural, não tinha fé em Deus…
Era outra fé a que vivia nele – a fé de que a mão punitiva de Stálin era
implacável. E a incondicional obediência de um crente. E também uma
bendita timidez perante a enorme força e os seus líderes geniais – Marx,
Engels, Lénin, Stálin. Ele, soldadinho do grande Stálin, agia de acordo com a
vontade dele.
Paralelamente, é claro, também vivia nele a antipatia biológica, a repulsa
instintiva e subconsciente em relação às pessoas da geração revolucionária
intelectual e fanática, contra a qual o açulavam.
Cumpria o seu dever, não ajustava contas, mas escrevia as suas denúncias
também por instinto de conservação. Estava a ganhar um capital mais
precioso do que ouro ou terras – a confiança do partido. Sabia que na vida
soviética a confiança do partido era tudo: força, honras, poder. E acreditava
que a sua injustiça servia a justiça suprema, entrevia na denúncia uma
verdade.
Além disso, como é possível culpabilizá-lo quando as melhores cabeças
não conseguiam perceber o que era mentira e o que era verdade, quando os
corações puros ficavam perplexos perante a questão de saber o que é o bem, o
que é o mal.
Ele acreditava, ou antes, queria acreditar, ou melhor – era incapaz de não
acreditar.
De certo modo, esta atividade obscura desagradava-lhe, ah, mas o dever!
Ao mesmo tempo, este trabalho obscuro também, de certo modo, lhe
agradava, o embriagava, o entusiasmava. «Não te esqueças» – diziam-lhe os
mentores –, «não tens pai nem mãe, irmãos ou irmãs, tens apenas o partido.»
E um sentimento forte e tormentoso crescia nele: agindo sem refletir,
obedecendo, não se apoderava dele a impotência, mas antes uma terrível
força.
Entretanto, nos seus olhos de general sem bondade, na sua voz autoritária e
entrecortada, relanceavam de vez em quando as sombras de uma natureza
diferente, que permanecia secreta no seu íntimo – uma natureza aturdida,
embrutecida, criada e cultivada pelos séculos da escravidão russa, da falta de
direitos asiática…
Sim, sim, neste caso também é preciso ponderar. Porque condenar um
homem terrível também é pavoroso.
Mas temos mais um camarada – o Judas número quatro.
É morador de casa comunal, é pequeno ou médio funcionário, é ativista
kolkhoziano. Mas, seja quem for, a sua fisionomia é sempre a mesma: seja
jovem ou velho, homem feio ou um grandalhão russo esbelto e de cores
frescas, reconhece-se à primeira vista. É um consumista, ávido de pertences,
acumulador fanático do interesse material. O seu fanatismo na caça ao sofá-
cama, ao fagópiro, ao aparador de fabrico polaco, aos materiais de construção
deficitários, à roupa importada assemelha-se pela sua força ao fanatismo de
Giordano Bruno e Andrei Jeliábov27.
É o criador de um imperativo categórico oposto ao de Kant – o homem e a
humanidade, para ele, apresentam-se sempre na qualidade de um meio no
processo da caça aos objetos. Nos seus olhos, claros ou escuros, está
permanentemente presente uma expressão tensa, melindrada e irritada. Há
sempre alguém que lhe pisa o pé, e tem necessidade imutável de ajustar
contas com alguém.
A paixão do Estado em desmascarar os inimigos do povo é uma bênção
para ele. Esta paixão é como um vento largo a soprar por cima do oceano. A
sua pequena vela amarela incha de vento favorável. E, ao preço dos
sofrimentos daqueles a quem destrói a vida, ele arranja o almejado: um
espaço habitacional complementar, um aumento de salário, a isbá do vizinho,
um conjunto de móveis de fabrico polaco, uma garagem com aquecimento
para o seu carro, um pomar…
Ele despreza livros, música, belezas da natureza, amor, ternura materna.
Adora apenas objetos, os objetos.
Nem sempre, contudo, ele é guiado pelas considerações materiais. É muito
suscetível, as ofensas queimam-lhe a alma.
Escreve uma denúncia sobre um colega que dançou com a sua esposa e lhe
provocou ciúmes, sobre um brincalhão que o ridicularizou à mesa do jantar, e
até sobre um vizinho que, sem querer, o empurrou na cozinha comunal.
Há duas particularidades próprias dele: em primeiro lugar, é voluntário,
ninguém o intimidou nem obrigou, faz denúncias por sua própria iniciativa.
Em segundo, vê na denúncia o seu proveito direto e claro.
Mesmo assim, refreemos o punho levantado para lhe assestar o golpe.
Porque a sua paixão pelos bens foi gerada pela miséria. Oh, ele pode
contar-nos sobre um quarto de oito metros quadrados onde dormiam onze
pessoas, onde um paralítico ressonava, e os recém-casados se mexiam e
gemiam ao lado, e uma velha murmurava a sua reza, e um bebé de fraldas
molhadas se desfazia em choro.
Pode contar-nos sobre o pão da aldeia, feito de uma mistura de folhas
trituradas, de cor castanho-esverdeada, sobre a sopa moscovita de batatas
geladas, a mesma sopa três vezes por dia.
Pode contar sobre a casa onde não havia um único objeto bonito, sobre as
cadeiras com bocados de contraplacado em vez de assentos, sobre os copos
de vidro grosso e turvo, sobre as colheres de estanho e garfos a que restavam
dois dentes, sobre a roupa interior cheia de remendos, sobre um impermeável
de borracha sujo, debaixo do qual, em dezembro, se vestia um casaquinho
roto pespontado.
Contará como se espera o autocarro nas trevas matinais do inverno, falará
do inconcebível aperto no elétrico a seguir ao terrível aperto em casa…
Não será a sua vida animalesca que criou nele a sua paixão animalesca
pelos objetos, pelo covil espaçoso? Não foi a vida bestial que o bestializou?
Sim, sim, tudo isso é verdade. Mas note-se que não vivia pior do que
outros. Embora vivesse mal, a sua vida era melhor do que a vida de muitas,
muitas pessoas.
Mas essas muitas, muitíssimas pessoas não cometeram o que ele cometeu.
Vamos refletir sem pressas, depois lavraremos uma sentença.

ACUSADOR: Confirmam que escreveram denúncias sobre cidadãos


soviéticos?
AGENTES SECRETOS E DELATORES: Sim, de certo modo.
ACUSADOR: Reconhecem a culpa pela morte de pessoas soviéticas
inocentes?
AGENTES SECRETOS E DELATORES: Não. Negamo-lo categoricamente. O
Estado condenou essas pessoas à morte de antemão, e nós trabalhámos, por
assim dizer, para criar uma moldura exterior. No fundo, fosse o que fosse que
escrevêssemos, e a forma em que escrevêssemos, acusando ou justificando,
essas pessoas já estavam condenadas pelo Estado.
ACUSADOR: No entanto, por vezes escreviam por livre arbítrio, e nesse caso
eram vocês próprios quem apontava para a vítima.
AGENTES SECRETOS E DELATORES: Esta nossa liberdade de escolha é ilusória.
As pessoas eram exterminadas pelo método estatístico – eram destinadas a
extermínio as pessoas que pertenciam a determinados estratos sociais e
ideológicos. Conhecíamos estes parâmetros, o senhor com certeza os
conhecia também. Nunca denunciámos pessoas que pertenciam ao estrato
saudável, não sujeito à liquidação.
ACUSADOR: Como no Evangelho: empurra quem está a cair. Contudo, havia
casos, mesmo nos tempos severos, em que o Estado ilibava pessoas
caluniadas por vocês.
ADVOGADO: Sim, realmente esses casos aconteceram – são consequência de
erros. Mas apenas Deus não se engana. Além disso, lembre-se de que raros
eram os casos de ilibação, o que significa que os erros também eram raros.
ACUSADOR: Sim, os bufos e os agentes secretos eram mestres no seu
trabalho. Mesmo assim, respondam-me: por que razão faziam denúncias?
AGENTES SECRETOS E DELATORES (em coro): Obrigaram-me… bateram-me…
E eu fiquei hipnotizado pelo medo, pelo poder da violência ilimitada…
Quanto a mim, cumpri o meu dever partidário, tal como era compreendido
naquela altura.
Acusador: E você, camarada número quatro, porque está calado?
Judas número quatro: Sou um homem modesto, porque está a implicar
comigo? Sou um homem inculto, é mais fácil ofender-me do que aos cultos e
aos conscientes.
ADVOGADO (interrompendo): Deixe-me esclarecê-lo. O meu cliente, de
facto, fez denúncias, perseguindo interesses pessoais. Contudo, tenham em
conta que neste caso o interesse pessoal não contradizia o interesse do
Estado. O Estado não declinou as denúncias do meu cliente, portanto ele
estava a cumprir um trabalho útil para o Estado, embora numa primeira
abordagem superficial possa parecer que agiu exclusivamente por motivos
egoístas e pessoais. Agora, mais uma coisa. Nos tempos de Stálin, o
camarada advogado seria acusado de estar a subestimar o papel do Estado.
Sabia que os campos de força criados pelo nosso Estado, o peso do Estado de
mil biliões de toneladas, o supermedo e a superobediência que o Estado
provocava na alma humana eram tais que tornam absurdas quaisquer
acusações dirigidas a um homem fraco e desprotegido. É ridículo acusar uma
migalha de que estava a cair sobre a terra.
ACUSADOR: Compreendi o seu ponto de vista: não aceita que os seus
clientes assumam nem que seja uma pequena parte de culpa. Só o Estado é
que tem culpa. Mas digam-me, agentes secretos e delatores, será que não
aceitam culpa alguma, a mais pequena que seja?
AGENTES SECRETOS E DELATORES (trocam olhares, cochicham, depois o
agente secreto cientista toma a palavra): Deixe-me responder. Com toda a
sua aparente simplicidade, a sua pergunta não é tão simples como isso. Em
primeiro lugar, não tem sentido, mas isto não tem importância. Realmente,
por que razão é preciso procurar, hoje em dia, os culpados dos crimes
cometidos na época de Stálin? É como se nos mudássemos para a Lua e
intentássemos um litígio em relação aos quintais na Terra. Por outro lado,
tendo em consideração que as épocas não são muito afastadas uma da outra,
ou, como disse um poeta, «estão quase lado a lado no decurso da história»,
surgem muitas outras complicações. Por que razão nos pretende culpabilizar
obrigatoriamente, a nós, os fraquinhos? Comece pelo Estado, julgue-o.
Porque o nosso pecado é o pecado dele, então julgue-o sem medo, em voz
alta. Só pode agir sem medo, uma vez que está a agir em prol da verdade.
Então, força.
A seguir, responda, por favor: porque se lembraram disso precisamente
agora? Conheceram-nos a todos ainda em vida de Stálin. Encontravam-se
connosco sem problemas, aguardavam para serem recebidos à porta dos
nossos gabinetes, às vezes soltavam, em segredo e em vozinhas fracas, um ou
outro pio sobre nós. Mas nós também, reparem, falávamos em pios de
pardais. Vocês eram, do mesmo modo que nós, cúmplices da época de Stálin.
Sendo assim, por que razão vocês, cúmplices, podem julgar-nos, a nós, outros
cúmplices, como podem determinar a nossa culpa? Percebe o problema?
Talvez tenhamos culpa, mas não há juiz que tenha o direito moral de colocar
a questão sobre a nossa culpa. Lembre-se do que disse Lev Tolstói: não há
culpados no mundo! Mas no nosso Estado há uma nova fórmula – todos têm
culpa, todos juntos, não há no mundo nenhum inocente. Trata-se da medida,
do grau da culpa. Será que é ao camarada acusador que compete acusar-nos?
Apenas os mortos, aqueles que não sobreviveram, têm o direito de nos julgar.
Mas os mortos não fazem perguntas, os mortos guardam silêncio. Então,
permita-me que responda à sua pergunta com outra pergunta. De forma
humana, simples, do fundo da alma, à russa. Em que reside a causa desta
nossa e vossa maleabilidade, desta fraqueza geral, comum a todos e tão
vulgarizada?
ACUSADOR: Está a esquivar-se à resposta.
(Entra um secretário, entrega ao agente secreto cientista um envelope, diz:
«Do governo».)
AGENTE SECRETO CIENTISTA (lê a carta, estende-a ao acusador): Veja: por
motivo do meu sexagésimo aniversário, foram assinalados os meus mais que
modestos méritos na área da ciência pátria.
ACUSADOR (depois de ler o papel): Queira ou não queira, não deixo de ficar
contente por si, afinal somos todos soviéticos.
AGENTE SECRETO CIENTISTA: Sim, sim, é natural, obrigado. (Murmura para
os seus botões.) Permita-me que agradeça, por meio do seu jornal… às
instituições, às organizações e também aos camaradas e aos amigos…
ADVOGADO (põe-se numa posição solene e faz um discurso): Camarada
acusador e senhores jurados! O camarada acusador disse ao meu cliente que
ele se esquivara à resposta à seguinte pergunta: se se reconhece, em alguma
medida, culpado. Mas também os camaradas não lhe responderam a esta
outra pergunta: em que consiste a causa da nossa maleabilidade geral? Terá
sido a própria natureza humana a gerar os delatores, os agentes secretos, os
informadores, os bufos? Se calhar, trata-se de uma glândula de secreção
interna, de uma substância que borbulha nos intestinos. Talvez seja o barulho
dos gases intestinais, as mucosas, a atividade renal que os geram, nascendo
eles dos instintos sem olhos e narizes, instintos da alimentação, da
conservação, da reprodução?
Ah, que diferença isso faz – terão os delatores culpa ou não terão? Tenham
ou não tenham, o abominável é a própria existência deles. O que é
abominável é o lado animalesco, vegetal, mineral, físico-químico do homem.
Os bufos nascem precisamente desse lado mucoso, coberto de pelo, do lado
sórdido da essência humana. O Estado não gera pessoas. Os delatores
brotaram do género humano. O vapor quente do medo estatal aqueceu o
género humano, e as sementes dormentes incharam, ganharam vida. O Estado
é o solo. Se o solo não guardar as sementes, o trigo e as ervas daninhas não
crescerão dele. O homem tem de agradecer a si próprio pela porcaria humana.
Mas sabem o que é mais nojento nos delatores? Acham que a delação é a
sua pior característica?
Nada disso! As suas mais pavorosas características são as suas melhores
qualidades, e o mais triste é que eles são pessoas cheias de virtudes.
São filhos, pais, maridos amorosos, carinhosos… São capazes de façanhas
no trabalho, de façanhas de bondade.
Gostam da ciência, da grande literatura russa, da música maravilhosa,
alguns deles raciocinam ousadamente e com inteligência sobre os mais
complexos fenómenos da filosofia e da arte modernas…
E que amigos abnegados e bondosos podemos encontrar entre eles! Que
comovedores são quando visitam um amigo no hospital!
Que soldados pacientes e destemidos há entre eles, partilhando com o
camarada a sua última tosta, a última pitada de tabaco, retirando do campo de
batalha um soldado coberto de sangue!
E que talentosos poetas, músicos, físicos, médicos há entre eles, que
mestres – serralheiros, carpinteiros, de quem o povo diz com admiração:
mãos de ouro.
É isto que é assustador: têm muita, muita coisa boa na sua essência
humana.
Mas quem podemos julgar então? A natureza humana! É ela, ela própria
que gera esses montões de mentira, de ignomínia, de cobardia, de fraqueza.
Mas também gera o bom, o puro, o bondoso. Os delatores e os bufos são
cheios de virtude, vale a pena deixá-los ir para casa, mas que nojentos são:
nojentos com todas as suas virtudes, com toda a absolvição que lhes derem…
Mas quem brincou de modo tão feio quando disse: Homem – que orgulhoso
isto soa!?28
Não, não, eles não têm culpa, foram as forças sombrias, as forças de
chumbo que os incitaram. Viram-se premidos por mil biliões de toneladas, e
entre os vivos não há inocentes… Todos são culpados, tu, acusado, e tu,
acusador, e eu que reflito sobre o acusado, o acusador e o juiz.
Mas porque é que dói tanto, porque dá tanta vergonha pensar na nossa
indecência humana?
27 Andrei Jeliábov (1851-1881) – revolucionário russo, membro do Comité Executivo da organização
«Liberdade do Povo». Um dos organizadores do atentado contra o czar Alexandre II. Foi executado.
(N. dos T.)

28 Palavras de uma das personagens do drama No Fundo, de Maksim Górki. (N. dos T.)
8

«Mas que diabo me tentou a andar a pé», repetia Pinéguin. Não lhe apetecia
pensar naquelas coisas obscuras e más que estavam adormecidas dentro dele
há dezenas de anos e, de repente, acordaram. A essência não estava num ato
feio, a essência estava numa casualidade estúpida que o fez cruzar-se com o
homem a quem destruíra a vida. Se não se encontrassem na rua, o que estava
a dormir não teria acordado.
Mas acordou, e Pinéguin, sem dar por isso, pensava cada vez menos na
casualidade estúpida, preocupando-se e afligindo-se cada vez mais: «Nada a
fazer, facto é facto, fui precisamente eu que denunciei o Ivan, e poderia
passar sem isso, e quebrei a coluna vertebral ao homem, raios o partam. Não
fosse isso, e agora, ao encontrarmo-nos, seria tudo maravilhoso. Eh, diabo,
subiu-me uma porcaria à alma, como se tivesse metido a mão no saco de uma
senhora e esta me tivesse agarrado a mão, e tudo aos olhos dos meus
secretários, ajudantes, do meu motorista; oh, oh, que desgraça, nem apetece
viver depois deste nojo… Talvez toda a minha vida seja apenas uma
ignomínia. Era preciso viver de maneira absolutamente diferente.»
E, em grande perturbação, Pinéguin entrou no restaurante da Direção do
Turismo do Estrangeiro, onde todos, o maître d’hôtel, os empregados de
mesa e o porteiro o conheciam desde há muito.
Ao vê-lo, dois empregados do guarda-roupa saíram a correr de trás do
balcão, sussurrando: «Bem-vindo, bem-vindo» – e, roncando como cavalos,
estenderam as mãos impacientes até à vestidura de Pinéguin. Tinham olhos
perspicazes, olhos bons de despachados e espertos rapazes russos que
registavam perfeitamente na memória quem vinha, o que vestia, o que disse
de passagem. Contudo, no que respeita ao Pinéguin, com a sua insígnia de
deputado, recebiam-no de corações abertos, quase como seu chefe direto.
Sem pressas, sentindo com o pé a superfície macia e ao mesmo tempo
flexível do tapete, Pinéguin entrou no restaurante. Uma penumbra solene
envolvia a sala espaçosa, de teto alto. Pinéguin inspirou lentamente o ar
calmo, simultaneamente fresco e tépido, passou os olhos pelas mesas
cobertas de toalhas engomadas; os vasos lapidados com flores, os copos e os
cálices brilhavam modestamente. Dirigiu-se para um cantinho acolhedor, o
seu preferido, sob a folhagem rendilhada de um filodendro.
Estava a navegar entre as mesinhas com bandeiras de muitas potências do
mundo, e parecia que eram navios de linha e cruzadores, e que ele era
almirante no navio-chefe, passando a frota em revista.
Então, sob esta sensação de ser almirante, uma sensação que o ajudava a
viver, sentou-se à mesa, estendeu devagar a mão até à ementa com capa cor
de azeitona azulada, sólida como a do diploma de laureado, abriu-a e afundou
os olhos nas «Entradas frias».
Passando a vista pelos nomes de pratos, datilografados na sua língua
materna e nas outras principais línguas do mundo, folheou a página de cartão,
examinou «Sopas», mascou com os lábios e olhou de soslaio para «Pratos de
carne» e «Pratos de caça».
E no mesmo instante em que hesitou entre carne e caça, o empregado, ao
adivinhar as suas dúvidas, pronunciou:
– O filet mignon, hoje, está excecional.
Pinéguin guardou um longo silêncio.
– Bem, que seja o filet – disse.
Estava sentado, com os olhos semicerrados, na penumbra e no silêncio, e a
ponderável justeza da sua vida debatia-se com a perturbação e o terror que, de
repente, tinham ressuscitado nele, com o fogo e o gelo do arrependimento.
Mas já o veludo pesado que tapava a porta para a cozinha se mexia, e
Pinéguin determinou pela cabeça careca do empregado: «É o meu.»
A bandeja navegava até Pinéguin da semiescuridão, e ele via o salmão
cinzento-rosado entre os pequenos sóis de limão, o caviar moreno, a verdura
dos pepinos de estufa, os flancos arredondados do jarro de vodca e a garrafa
de água mineral.
Aliás, não era tão grande gastrónomo como isso, nem sequer tinha muita
fome neste momento, mas foi precisamente neste momento que o velho de
casaco acolchoado deixou de incomodar mais uma vez a sua justeza.
9

Ao chegar à estação dos comboios, Ivan Grigórievitch sentiu que não valia
a pena continuar a vaguear pelas ruas de Leninegrado. Parou no meio do
edifício frio e alto da estação e refletiu.
Talvez algumas das pessoas que passaram ao lado do velho sombrio,
olhando para o quadro negro dos horários, pensassem: ei-lo, o homem russo
regressado do campo correcional, está a matutar, a escolher um caminho.
Não, não estava a escolher um caminho.
Durante a sua vida, dezenas de juízes de instrução compreenderam que
Ivan Grigórievitch não era monárquico nem socialista-revolucionário, nem
socialista-democrata, que não participou na oposição trotskista nem na de
Bukhárin e Ríkov. Não era adepto da igreja nova nem da igreja velha, nem
dos adventistas.
Na estação, pensando nos dias penosos em Moscovo e Leninegrado,
recordou uma conversa com um general de artilharia czarista que era seu
vizinho de tarimba. O velho disse: «Não vou do campo para lado nenhum –
aqui há calor, conheço as pessoas, alguém me dará um bocado de açúcar,
outro vai dar-me um pastel da encomenda postal.»
Ivan viu lá velhos desses por mais de uma vez – já não queriam sair do
campo, o campo tornou-se a casa deles, tinham comida à hora certa, esmola
da boa gente, calor do fogareiro.
Na verdade, não tinham para onde ir: alguns guardavam no fundo dos seus
corações doentes uma recordação do brilho dos lustres de Tsárskoe Seló, do
sol invernal de Nice; outros lembravam-se de Mendeléev, vizinho deles, que
ia lá a casa tomar chá com a família deles, ou do jovem Blok, recordavam
Skriábin e Répin; outros ainda guardavam nas cinzas ainda tépidas a memória
de Plekhánov, de Guerchúni, de Trigóni29, de amigos do grande Jeliábov.
Havia casos em que os velhos postos em liberdade pediam que os aceitassem
de novo no campo, o furacão da vida lá de fora derrubava-os, não se
seguravam nas pernas fracas, trementes, as enormes cidades assustavam-nos
com o seu frio, com a sua falta de amigos.
Ivan Grigórievitch tinha vontade de voltar para dentro do arame farpado, de
reencontrar toda aquela gente habituada aos trapos quentes, à tigela de sopa
intragável, ao fogareiro da barraca. Apetecia-lhe dizer-lhes: «É verdade, a
liberdade mete medo!»
Então, contaria aos velhos de forças perdidas como tinha sido ver um
parente, como se aproximara da casa em que vivia a mulher amada, como
esbarrara com um colega da universidade que lhe propusera ajuda. E diria aos
velhos do campo correcional que não havia felicidade maior do que, cego,
sem pernas, rastejar de barriga para fora do campo e morrer em liberdade,
nem que fosse a dez metros do maldito arame.
29 Aleksandr Blok (1880-1921) – grande poeta simbolista russo. Iliá Répin (1844-1930) – pintor russo.
Gueórgui Plekhánov (1856-1918) – teórico e propagandista russo do marxismo, ativista do movimento
operário e socialista russo e internacional. Grigóri Guerchúni (1870-1908) – um dos fundadores e
líderes do partido dos socialistas-revolucionários. Em 1902, organizou o atentado contra o ministro do
Interior D. Sipiáguin e dos governadores das cidades de Khárkov e Ufá. Mikhaíl Trigóni (1850-1917) –
revolucionário russo, membro da organização «Liberdade do Povo». (N. dos T.)
10

Aquela sensação de sossego e tristeza surgiu em Ivan Grigórievitch quando


terminaram as diligências para a procura de casa e para o registo na cidade, e
ele, serralheiro de uma cooperativa de incapacitados, já tinha no bolso o
almejado carimbo de registo no passaporte e um abrigo – uma parte de
quarto, alugada a quarenta rublos mensais à viúva do sargento Mikhaliov,
morto na frente de combate.
Em casa de Anna Serguéevna, mulher magra, de cabelo quase branco, e
mesmo assim jovem, vivia um sobrinho de doze anos, filho da sua falecida
irmã, pálido, de casaquinho remendado e cerzido, incrivelmente tímido,
pacato, curioso, um rapazinho que só é possível aparecer numa família que
vive na miséria.
Na parede, havia uma fotografia de Mikhaliov – homem de cara sem
alegria, como se, já na altura em que foi fotografado, previsse o seu destino.
O filho de Anna Serguéevna estava a cumprir o serviço militar obrigatório
nas unidades de comboieiros. A sua foto – um rapaz de bochechas gordas, de
cabelo cortado à máquina – estava ao lado do retrato do pai.
Mikhaliov ficou entre os desaparecidos nos primeiros dias da guerra, e a
unidade em que serviu foi estraçalhada pelos tanques alemães perto da
fronteira, e não havia ninguém para testemunhar se Mikhaliov fora morto e
não enterrado, se fora morto pelos tiros de uma pistola-metralhadora alemã,
se se entregara e tinha sido feito prisioneiro – por isso o comissariado militar
não fez os papéis da pensão para a viúva.
Mikhaliova trabalhava como cozinheira num refeitório. Mesmo assim,
vivia mal. A sua irmã mais velha, kolkhoziana, uma ocasião mandou da
aldeia uma encomenda postal para o sobrinho órfão – bolachas de farinha de
centeio com farelo, mel turvo ainda com a cera.
Porém, a própria Mikhaliova, logo que surgia alguma possibilidade,
mandava alimentos para a irmã: farinha, óleo de girassol, até pão de trigo e
açúcar.
Ivan Grigórievitch espantava-se: por que razão ela, Anna Serguéevna,
trabalhando numa cozinha, era tão magrinha e pálida? No campo correcional,
o cozinheiro de cara gorda destacava-se na multidão dos presos.
Mikhaliova não fazia a Ivan Grigórievitch perguntas sobre a sua vida no
campo correcional. Quem lhe fez perguntas pormenorizadas foi o chefe da
secção de pessoal da cooperativa. Porém, Anna Serguéevna, sem perguntar
fosse o que fosse, apenas com os olhos habituados a compreender a vida,
descobriu muita coisa só de observar Ivan Grigórievitch.
Este era capaz de dormir nas tábuas, de beber água fervida sem chá nem
açúcar, de mastigar pão seco, usava grevas em vez de meias, não tinha roupa
de cama, mas Anna Serguéevna reparou que a sua camisa branca, embora tão
gasta que adquiriu uma cor amarelada, tinha sempre o colarinho limpo e que
de manhã o homem tirava uma caixa velha, amolgada, uma caixa que fora de
rebuçados, e lavava os dentes com escova, ensaboava com cuidado a cara, o
pescoço, os antebraços.
O silêncio noturno parecia estranho. Durante dezenas de anos, Ivan
Grigórievitch habituou-se aos ressonos, às fungadelas, aos murmúrios, aos
gemidos das centenas de pessoas que dormiam nas barracas, ao som das
matracas, ao rangido de rodas. Apenas lhe aconteceu ficar sozinho na
solitária e também, durante a instrução, quando foi isolado durante três meses
e meio. Contudo, o silêncio atual era diferente do silêncio tenso da solitária.
Arranjou emprego na cooperativa por um feliz acaso: conversou, num
jardim municipal, com um tísico curvado, que mais parecia um patim do
trenó posto verticalmente, e este homem contou-lhe que ia abandonar o
trabalho de contabilista numa cooperativa de deficientes, que se ia embora:
não queria ser enterrado na cidade onde o cemitério se situava num terreno
pantanoso e os caixões nos túmulos nadavam em água. Ora, o que o
contabilista queria era que, depois da morte, ficasse deitado com conforto,
por isso juntara dinheiro para um caixão de carvalho, comprara um bom
tecido vermelho para o forro, uma reserva de pregos de cobre, iguais aos que
serviam para pregar o forro de couro aos bancos da estação. Não gostaria de
ficar na água com todos os seus pertences.
Falava de tudo isso no tom de alguém que se ia mudar para uma nova casa,
mais confortável.
Foi por recomendação desse «proprietário do imóvel novo», como lhe
chamou mentalmente, que Ivan Grigórievitch conseguiu o trabalho de
serralheiro na cooperativa que produzia fechaduras, chaves, estanhagem e
soldadura de loiça de cozinha. Foi muito útil para Ivan Grigórievitch a
qualificação que adquiriu quando trabalhou durante algum tempo como
serralheiro na oficina de reparações do campo correcional.
Entre os operários, havia inválidos da Guerra Pátria; havia pessoas
mutiladas nas fábricas ou nos transportes; havia três velhos feridos ainda
durante a guerra de 1918, e também um ex-preso de longa data, um tal
Mordan, outrora operário da fábrica Putílov – foi condenado pelo artigo 5830
em 1936 e posto em liberdade depois da guerra. Mordan não quis voltar para
Leninegrado onde, durante o cerco, lhe morreram a mulher e a filha, alojou-
se em casa da irmã, nesta cidade a sul, e começou a trabalhar na cooperativa.
Os deficientes da cooperativa eram, na sua maioria, pessoas divertidas, com
inclinação para encararem a vida com humorismo; mas de vez em quando
algum deles era atingido por um ataque, e o grito do doente que estrebuchava
no chão misturava-se com os estrondos de martelos e os guinchos de limas.
Ao estanhador Ptachkóvski, de bigode branco, prisioneiro da guerra de
1914 (diziam que era austríaco, embora se fizesse passar por polaco) as mãos
ficavam-lhe hirtas de repente, e o homem petrificava-se, rígido, com o
martelo no braço levantado, com a cara imóvel, altiva. Para tirá-lo do torpor,
era preciso sacudi-lo pelo ombro. Ora, uma ocasião, o ataque de um inválido
contaminou muitos outros, e em vários cantos da oficina homens velhos e
novos começaram a debater-se no chão e a gritar.
Experimentava uma insólita sensação que, para Ivan Grigórievitch, era
maravilhosa: estava a trabalhar a contrato, feito por sua livre vontade, sem
escolta, sem sentinelas nas torres. E, coisa estranha: o trabalho é,
aparentemente, o mesmo, as ferramentas são familiares, mas ninguém o
insulta, não há um criminoso a levantar a mão para ele, a ameaçá-lo com a
moca.
Ivan Grigórievitch não tardou a descobrir de que modo as pessoas tentavam
esticar os seus salários miseráveis. Havia quem fabricasse panelas e chaleiras
por conta própria, com material comprado particularmente. Vendiam-se
através da cooperativa, a preço do Estado, nem mais nem menos. Outros
combinavam com os clientes a quem consertavam a tralha de modo
particular, e eram pagos sem fatura e sem recibo. O preço era o mesmo que o
do Estado, nem mais nem menos.
Mordan, com as mãos tão grandes que poderiam servir de pás com que se
limpa a neve dos passeios, durante um intervalo de almoço contou um caso
que acontecera no dia anterior no seu prédio. Num apartamento ao lado
moravam cinco vizinhos: um torneiro, um alfaiate, um montador de uma
fábrica de mecânica, duas viúvas – uma trabalhava numa fábrica têxtil, outra
era empregada de limpeza na câmara municipal. Então, no fim da semana, as
viúvas encontraram-se na esquadra – foram detidas na rua pelos agentes da
OBKhSS31 pela venda de bolsas de malha que, às escondidas uma da outra,
fabricavam de noite. A polícia fez busca ao apartamento e descobriu que o
alfaiate, durante a noite, costurava casacos de rapazes e senhoras, que o
montador instalara debaixo do soalho um aparelho elétrico para fazer wafers
vendidas na rua pela sua mulher, que o torneiro da fábrica «Tocha Vermelha»
era sapateiro noturno – fabricava sapatos elegantes para senhoras. E as viúvas
não só faziam bolsas de malha mas também tricotavam camisolas.
Mordan fez rir os seus ouvintes, imitando o montador que gritava que as
wafers eram para o consumo da família, enquanto o inspetor lhe perguntava:
foi para a família que preparou duas arrobas de massa? Cada transgressor
apanhou uma multa de 300 rublos, com informação para o seu local de
trabalho, e ainda foram ameaçados de deportação com o objetivo de depurar a
vida soviética dos elementos parasitários.
Mordan gostava de aplicar na conversa palavras cultas. Examinando uma
fechadura estragada, dizia com imponência:
– Sim, a chave não reage absolutamente à fechadura.
Quando, depois do trabalho, ia pela rua ao lado de Ivan Grigórievitch, disse
de repente:
– Não voltei para Leninegrado apenas porque a minha mulher e a minha
filha morreram. Não posso olhar com os meus olhos de operário para a vida
do operariado da Putílov. Nem à greve temos direito. Mas que operário se
pode ser sem direito à greve?
À noite, a senhoria voltava para casa. Trazia na bolsa comida para o
sobrinho – sopa na panela, um segundo prato no pote de barro.
– Não quer comer? – perguntou baixinho a Ivan Grigórievitch. – Dá para
todos.
– Mas estou a ver que a senhora não come – respondeu ele.
– Passo o dia a comer, tenho um trabalho assim – disse Anna Serguéevna e,
ao compreender o seu olhar, acrescentou: – Canso-me muito no trabalho.
Nos primeiros dias, a cara pálida da senhoria parecia pouco bondosa a Ivan
Grigórievitch. Depois percebeu que não, que era bondosa.
Às vezes, Anna Serguéevna contava coisas da aldeia. No kolkhoze, era
chefe de equipa e, durante algum tempo, até trabalhou como presidente do
kolkhoze. Os kolkhozes não cumpriam o plano: ou era a sementeira que tinha
sido escassa, ou era a seca, ou obrigavam o kolkhoze a um fornecimento de
cereais insuportável, ou todos os homens e os jovens tinham fugido para a
cidade… Assim, a mulher ficou extenuada, perdeu as forças… E uma vez
que o plano não era cumprido, os camponeses recebiam seis ou sete copeques
por dia de trabalho, cem gramas de cereal, e havia anos em que não lhes
davam nada. Mas as pessoas não gostam de trabalhar de graça. Os
kolkhozianos andavam esfarrapados. O pão de centeio puro, sem mistura de
batatas e bolotas, comia-se como se fosse uma guloseima, apenas nos dias de
festa. Uma vez, Anna Serguéevna levou para a aldeia, para a irmã mais velha,
pão de trigo, e as crianças tiveram medo de comê-lo – viam-no pela primeira
vez na vida. As isbás vão ficando decrépitas, a ruir, e as autoridades não dão
madeira aos camponeses.
Ivan Grigórievitch estava a ouvir e a olhar para ela. Emitia uma luz querida
de bondade, de feminilidade. Durante dezenas de anos ele não tinha visto
mulheres, mas ouvia na barraca, ano após ano, as infinitas histórias sobre
mulheres – sangrentas, tristes, sujas. E a mulher, naquelas histórias, ou era
indecente, abaixo de animal, ou pura, elevada, acima das santas. No entanto,
pensar permanentemente nelas era tão imprescindível para os presos como a
ração de pão, este pensamento acompanhava-os nas conversas, nos sonhos
puros e sujos.
Era estranho, sem dúvida: depois da sua libertação, Ivan Grigórievitch viu
mulheres bonitas e bem ataviadas nas ruas de Moscovo e Leninegrado,
sentou-se à mesa ao lado de Maria Pávlovna, senhora bonita de cabelo
branco; mas nem a mágoa que o abrangeu quando soube que o seu amor da
juventude o traíra, nem o espírito de abundância e conforto em casa de Maria
Pávlovna despertaram nele o sentimento que o envolvia ao ouvir Anna
Serguéevna, ao olhar para os seus olhos tristes, para o seu rosto querido,
murcho, mas ao mesmo tempo jovem.
Contudo, nada havia de estranho nisso. Não podia ser estranho o que,
constantemente, durante milénios, acontecia entre um homem e uma mulher.
Ela explicava a Ivan Grigórievitch:
– A alma não aguenta mandar trabalhar os famintos. «Que uma cozinheira
governe o Estado»: esta frase não é para mim32. As mulheres trabalham na
debulhadora, então cosem uma meia, prendem-na à aba da saia, enchem-na
de cereal. Tenho de as revistar e de as mandar a tribunal! Ora, pelo roubo de
propriedade do kolkhoze podem aplicar sete anos de prisão, pelo menos. Mas
as mulheres têm filhos. Estou deitada de noite e penso: o Estado paga o cereal
ao kolkhoze a seis copeques o quilo, mas vende o pão cozido a um rublo, e
no nosso kolkhoze, durante quatro anos, não nos deram nem um grama.
Então, como é? O kolkhoziano leva uma mancheia de cereal, do mesmo que
ele próprio semeou, e condenam-no a sete anos de cadeia. Não, não estou de
acordo. Bem, então os meus conterrâneos arranjaram-me emprego na cidade,
de cozinheira, para dar de comer às pessoas. Os operários dizem: «Seja como
for, na cidade é melhor. Nas obras de construção, a paga aos operários
(colocar uma porta, instalar uma fechadura) é dois rublos e meio; um cliente
privado, no fim de semana, paga cinquenta pelo mesmo trabalho. Significa
então que o Estado paga vinte e cinco vezes menos.» Mesmo assim, aos
camponeses tiram mais. Por mim, o Estado saca demasiado tanto dos
citadinos como dos aldeões. Está bem, casas de repouso, escolas, tratores,
defesa, percebo isso tudo, mas sacam demais às pessoas, não pode ser tanto.
Olhou para Ivan Grigórievitch.
– Se calhar, toda a vida está mal organizada por causa disso?
Os seus olhos desviaram-se devagar da cara dele para a cara do sobrinho, e
disse:
– Sei que não é conveniente falar disso. Mas já vi que homem é o Ivan
Grigórievitch, por isso perguntei. Mas você não sabe que pessoa eu sou, por
isso não responda.
– Não, porquê? Vou responder – disse Ivan Grigórievitch. – Dantes
pensava: a liberdade consiste na liberdade de palavra, de imprensa, de
consciência. Mas a liberdade é toda a vida de todas as pessoas, é isto: temos o
direito de semear o que queremos, fazer calçado, costurar casacos, cozer o
pão que semeámos, se quisermos vendemo-lo, se não quisermos não o
vendemos, e todos, o serralheiro, o metalúrgico, o pintor, podem viver e
trabalhar como lhes apetecer, e não como alguém mandar. Mas nem aqueles
que escrevem livros, nem aqueles que semeiam ou fazem botas têm
liberdade.
À noite, Ivan Grigórievitch estava deitado e ouvia na escuridão uma
respiração sonolenta, e era tão leve que não conseguia perceber se era da
criança ou da senhora.
Parecia-lhe agora estranho que, toda a sua vida tivesse sido como se
andasse em viagem, dia e noite metido num vagão rangente, ouvindo durante
dezenas de anos o barulho das rodas nos carris e agora, finalmente, tivesse
chegado e o comboio parasse.
E por causa dessa viagem de trinta anos, do estrondear de rodas de trinta
anos, um barulho continuava na sua cabeça, tinia-lhe nos ouvidos, e parecia-
lhe sempre que o comboio estava a andar, a andar…
Mas não era o barulho da viagem nos seus ouvidos, eram os vasos
sanguíneos que lhe tilintavam na cabeça, era a sua vida que se aproximava do
fim.
30 Artigo 58 do Código Penal soviético – entrou em vigor em fevereiro de 1927, previa
responsabilidade pela atividade contrarrevolucionária. (N. dos T.)

31 OBKhSS – Departamento para a Luta contra as Pilhagens da Propriedade Socialista. (N. dos T.)

32 A frase pertence a Vladímir Lénin (artigo «Os bolcheviques conseguirão manter o poder?»). (N. dos
T.)
11

Aliocha, sobrinho de Anna Serguéevna, era de estatura tão pequena que


parecia ter oito anos. Andava na sexta classe e, quando voltava da escola, ia
buscar água, lavava a loiça e sentava-se para fazer os trabalhos de casa.
Por vezes, levantava os olhos para Ivan Grigórievitch e dizia:
– Faça-me perguntas de história, por favor.
Quando Aliocha, um dia, estava a preparar as lições de biologia, Ivan
Grigórievitch, por não ter nada que fazer, começou a esculpir em barro as
figuras de animais desenhados no manual: a girafa, o rinoceronte, o gorila.
Aliocha ficou pasmado, tão bonitos lhe pareceram os animais de barro;
olhava para eles, mudava-os de lugar e, de noite, pô-los na cadeira ao seu
lado. Ao amanhecer, antes de sair para ir buscar leite, o rapazinho, num
sussurro emocionado, perguntou ao inquilino que estava a lavar-se no
corredor:
– Ivan Grigórievitch, posso levar os seus animais para a escola?
– Claro, fica com eles – disse Ivan Grigórievitch.
À noite, Aliocha contou a Ivan Grigórievitch que a professora de desenho
dissera:
– Diz ao vosso inquilino que ele deve ir estudar, obrigatoriamente.
Mikhaliova, pela primeira vez, viu Ivan Grigórievitch a rir e disse:
– Vá falar com a professora, não se ria, se calhar poderá ganhar algum
como trabalhador ao domicílio, senão, que vida é essa: trezentos e setenta
rublos por mês?
– Não faz mal, para mim chega – disse Ivan Grigórievitch –, quanto aos
estudos, teria de fazê-los trinta anos atrás.
E logo a seguir pensou: «Porque é que me preocupo? Significa que ainda
estou vivo, que não morri?»
Uma ocasião, Ivan Grigórievitch estava a contar a Aliocha a campanha de
Tamerlão e reparou que Anna Serguéevna largou a costura e ficou a ouvi-lo
com atenção.
– O seu lugar não é numa cooperativa – sorriu ela.
– Oh – disse Ivan Grigórievitch –, sou incapaz, os meus conhecimentos são
livros com páginas arrancadas, sem princípio e sem fim.
Aliocha percebeu que, provavelmente, era por isso que Ivan Grigórievitch
inventava coisas à sua maneira, enquanto os professores reproduziam o
manual do princípio ao fim.
Esta história insignificante do barro inquietou Ivan Grigórievitch. É claro,
não tinha um verdadeiro talento. Mas quantos jovens físicos, historiadores,
conhecedores de línguas antigas, filósofos, músicos, jovens Swifts e Erasmos
de Roterdão perderam a vida diante dos seus olhos, quantos «vestiram o
sobretudo de madeira»!
A literatura pré-revolucionária deplorava intensamente o destino de atores,
pintores e músicos servos da gleba. Mas quem, nos livros modernos, suspirou
recordando os rapazes e as raparigas que não chegaram a criar as suas
pinturas e a escrever os seus livros? A terra russa cria generosamente os seus
próprios Platões e Newtons de intelecto veloz33, mas com que terrível
facilidade ela devora estes seus filhos!
Os teatros e o cinema causavam-lhe angústia e inquietação – parecia-lhe
que alguém o obrigava à força a olhar para o palco e que seria para sempre.
Muitos romances e poemas davam-lhe a insuportável sensação de estarem a
encasquetar-lhe na cabeça, violenta e impertinentemente, alguma coisa. Era
como se os livros falassem de uma outra vida, desconhecida para ele, em que
não existiam barracas, regime severo, capatazes, carcereiros, juízes de
instrução, sistema de passaportes, como se não houvesse aqueles sentimentos,
sofrimentos, paixões, inquietudes com que viviam as pessoas à volta dele…
Os escritores inventavam pessoas, inventavam-lhes os sentimentos e
pensamentos, inventavam as casas em que essas pessoas viviam, os comboios
em que viajavam… A literatura que se denominava realista não era menos
convencional do que os romances bucólicos do século dezoito. Os
kolkhozianos, os operários, as mulheres da aldeia assemelhavam-se a paysans
esbeltos e ataviados, àquelas pastorinhas de cabelo frisado que tocavam
flautas e dançavam nos prados no meio de cordeiros brancos com fitas cor de
céu.
Durante os anos passados nos campos correcionais, Ivan Grigórievitch
conheceu bem as fraquezas humanas. Agora via que elas não faltavam de
ambos os lados do arame farpado… Os sofrimentos nem sempre purificavam.
A luta por um gole a mais da sopa prisional, por uma facilidade no trabalho
era cruel, e as pessoas fracas caíam até ao nível mais miserável. Agora, em
liberdade, Ivan Grigórievitch percebia de que modo miserável, como um
chacal, este ou aquele homem cuidado e arrogante teria raspado com a colher
as esvaziadas tigelas alheias, ou teria furoado à volta da cozinha prisional à
procura de cascas e folhas podres de repolho.
As pessoas que, esmagadas pela violência, pela subnutrição, pela falta de
calor, de tabaco, transformadas em «chacais» da prisão, com os olhos
errantes sempre à procura de migalhas de pão e pontas babosas de cigarros,
provocavam-lhe compaixão.
As pessoas do campo correcional ajudaram Ivan Grigórievitch a
compreender as pessoas em liberdade. Em liberdade, acabou por ver a mesma
fraqueza miserável, a crueldade, a avareza, o mesmo medo que nas barracas
do campo. As pessoas eram iguais. Tinha pena delas.
No entanto, nos romances e poemas as pessoas soviéticas, tal como na arte
medieval, exprimiam a ideia da igreja, da divindade; proclamavam o deus
verdadeiro, e o homem não existia independentemente, mas em nome de
deus, existia para glorificar deus e a sua igreja. Alguns escritores, fazendo
passar a mentira pela verdade, reproduziam com um cuidado especial os
pormenores da roupa, do ambiente, alojando no meio de um cenário teatral
vivo as suas fictícias personagens fiéis ao deus.
Tanto em liberdade como no campo correcional, as pessoas não queriam
reconhecer que eram iguais no seu direito à liberdade. Alguns presos
acusados do «desvio de direita» achavam que eram inocentes, mas
justificavam as repressões em relação aos acusados do «desvio de esquerda».
Tanto os «de direita», como os «de esquerda» não gostavam de espiões – ou
seja, aquelas pessoas que se correspondiam com parentes no estrangeiro,
aquelas pessoas que tinham pais russificados, mas com nomes polacos,
letões, alemães.
Por mais que os camponeses presos dissessem que tinham trabalhado toda a
vida, os presos políticos não acreditavam: «Sabemos como é, ninguém teria
expropriado os camponeses pobres!»
Ivan Grigórievitch disse ao antigo comandante da Guarda Vermelha, seu
vizinho de tarimba:
– Foi toda a vida fiel à ideia do bolchevismo, é herói da guerra civil, mas
está aqui acusado de espionagem.
O homem respondeu-lhe:
– Em relação a mim, foi um erro, é um caso especial, não se compara com
os outros.
Quando os criminosos de delito comum, depois de escolherem uma vítima,
começavam a martirizá-la, a roubar-lhe tudo, alguns presos políticos viravam
a cara, outros ficavam sentados com as fisionomias entorpecidas, imóveis,
outros fugiam, outros ainda fingiam-se adormecidos, puxavam os cobertores
para cima das cabeças.
Centenas de presos, entre os quais havia ex-militares, heróis, eram
impotentes perante os poucos criminosos comuns. Estes mandavam e
desmandavam, achavam-se patriotas, enquanto os «fascistas» políticos eram
para eles inimigos da pátria. As pessoas no campo eram semelhantes a grãos
de areia secos – cada um por si.
Um tinha a certeza de que o erro fora cometido apenas em relação a ele
próprio, defendendo que, em geral, «ninguém seria preso sem culpa».
Outros raciocinavam assim: em liberdade, achávamos que ninguém seria
preso sem culpa, mas agora percebemos na nossa própria pele que sim,
metem as pessoas na cadeia sem culpa. E não tiravam disso conclusões
nenhumas, suspiravam resignadamente.
Um funcionário da Internacional Comunista da Juventude, magro, com
gestos convulsos, talmudista e dialético, andou muito tempo a explicar a Ivan
Grigórievitch que não tinha cometido crimes nenhuns contra o partido, mas
que os órgãos de segurança tiveram razão em prendê-lo como espião e traidor
– sem ter cometido o crime, não deixava de pertencer ao estrato da população
hostil ao partido e que gerava traidores, trotskistas, oportunistas na prática,
gente lamurienta e de pouca fé.
Um homem inteligente, anteriormente funcionário regional do comité do
partido, conversou uma vez com Ivan Grigórievitch.
– Quando cortam a floresta, caem as lascas, mas a verdade partidária
continua a ser verdade, está acima da minha desgraça… – E, ao apontar para
si próprio, acrescentou: – Também fui uma lasca durante o corte da floresta.
Embaraçou-se quando Ivan Grigórievitch lhe disse:
– Mas a desgraça consiste precisamente em cortarem a floresta. Para que
cortam a floresta?
Nos campos correcionais, poucas vezes lhe calhou ver pessoas que,
realmente, tinham lutado contra o poder soviético.
Os antigos oficiais do exército czarista não iam parar à prisão por terem
formado uma organização monárquica. Estavam presos porque podiam,
potencialmente, formá-la.
Nos campos correcionais havia sociais-democratas e socialistas-
revolucionários. Muitos deles foram presos no período em que eram leais ao
poder soviético e politicamente passivos. Não foram presos por terem lutado
contra o Estado soviético, mas porque havia a probabilidade de virem a lutar
contra ele.
Quando mandavam os camponeses para os campos correcionais, não era
porque lutavam contra os kolkhozes. Foram presos e deportados aqueles que,
em certas condições, seriam, se calhar, capazes de se pronunciar contra os
kolkhozes.
Algumas pessoas iam parar aos campos por uma crítica insignificante:
alguém não gostou de livros e peças teatrais premiados pelo Estado, a outro
não agradaram radiotransmissores e canetas de tinta permanente de fabrico
nacional. Em certas condições, semelhantes pessoas seriam capazes de se
tornar inimigas do Estado.
Mandavam pessoas para os campos pela correspondência com tias e irmãos
que viviam no estrangeiro. Porque a probabilidade de essas pessoas se
tornarem espiões era maior do que entre aqueles que não tinham parentes no
estrangeiro.
Não era terror em relação aos criminosos mas em relação àqueles que, na
opinião dos órgãos de punição, tinham maiores probabilidades de se tornarem
criminosos. Mas havia pessoas diferentes que, de facto, eram inimigas do
poder soviético, que lutaram contra ele: os velhos socialistas-revolucionários,
os mencheviques e os anarquistas, ou então os partidários da independência
da Ucrânia, da Letónia, da Estónia, da Lituânia e que, durante a guerra, foram
partidários de Stepan Bandera34.
Os presos soviéticos consideravam-nos seus inimigos, mas admiravam-nos
como pessoas que tinham sido presas por serem culpadas.
Num campo, Ivan Grigórievitch conheceu Bória Romáchkin, adolescente
de idade escolar, condenado a dez anos de prisão – o rapaz, de facto, redigia
panfletos que acusavam o Estado de repressões contra pessoas inocentes, e
realmente datilografava-os e colava-os, de noite, nas paredes dos prédios de
Moscovo. Bória contou a Ivan Grigórievitch que, durante a instrução,
dezenas de funcionários do ministério de segurança, inclusivamente vários
generais, iam espreitá-lo – para todos era curioso ver um rapaz detido com
culpa. No campo, Bória também era famoso: toda a gente o conhecia, os
presos dos campos vizinhos faziam perguntas sobre ele. Quando Ivan
Grigórievitch foi transferido para outro campo, a 800 quilómetros, logo na
primeira noite houve quem lhe falasse de Bória Romáchkin – os rumores
sobre o rapaz corriam por Kolimá.
Mas há uma coisa espantosa: as pessoas condenadas com culpa, pela luta
real contra o Estado Soviético, achavam que todos os presos políticos eram
inocentes e dignos de liberdade, todos sem exceção. No entanto, aqueles que
ficaram presos em resultado dos processos falsos, inventados – e eram
milhões de pessoas – tinham tendência a ilibar-se apenas a si próprios e
tentavam provar a culpa de espiões, kulakes, sabotadores fictícios,
justificando a crueldade do Estado.
Na compleição espiritual dos presos e das pessoas que viviam em liberdade
havia uma diferença bastante profunda. Ivan Grigórievitch viu que as pessoas
no campo mantinham fidelidade à época que os gerou. Nos feitios e na
mentalidade de cada um deles viviam épocas diferentes da vida russa. Havia
participantes da guerra civil com as suas canções, os seus heróis, os seus
livros preferidos; havia anarquistas, soldados de Petliura35, com paixões não
apagadas do seu tempo, com as suas canções, poesias, os seus hábitos; havia
funcionários da Comintern dos anos vinte, com o seu entusiasmo, o seu
vocabulário, a sua filosofia, a sua maneira de ser, de pronunciar as palavras;
havia pessoas muito velhas – monarquistas, mencheviques, socialistas-
revolucionários – que guardavam o seu mundo de ideias, de comportamento,
de heróis literários, um mundo existente quarenta ou cinquenta anos atrás.
Num velho esfarrapado, a tossir, era possível reconhecer, à primeira vista,
um cavaleiro da guarda imperial fraco, desleixado, mas ao mesmo tempo
nobre, e no seu vizinho de tarimba, igualmente esfarrapado e com a cara
coberta de cerdas brancas, um social-democrata não arrependido, e, no
auxiliar curvado do posto médico, um comissário de comboio blindado.
Ora, em liberdade as pessoas idosas não mostravam os sinais
inconfundíveis dos tempos passados, o passado estava apagado nelas,
entravam com facilidade no ambiente novo – pensavam e sentiam em
correspondência com o dia atual; o seu vocabulário, os seus pensamentos e
paixões, a sua sinceridade mudavam flexível e obedientemente em
conformidade com o decurso dos acontecimentos e a vontade dos superiores.
Como se explica esta diferença? Será que no campo correcional a pessoa se
imobiliza como sob o efeito de anestesia?
No campo, Ivan Grigórievitch via constantemente a ânsia natural dos
presos em escaparem para fora do arame farpado, em voltarem para junto das
mulheres e dos filhos. Mas em liberdade encontrava por vezes alguém que
tinha saído do campo e a sua hipocrisia submissa, o medo de ter as suas
próprias ideias, o terror de voltar a ser preso eram tão grandes que parecia
atrás de grades ainda mais sólidas do que as dos trabalhos forçados.
Depois de sair do campo correcional, trabalhando por contrato livre,
vivendo ao lado de seres queridos, uma pessoa dessas, por vezes, condenava-
se a si própria à condição de presidiário ainda mais completa e profunda do
que aquela que lhe era imposta pelo arame farpado do campo.
Seja como for, em sofrimento, em sujidade, na bruma da vida prisional, a
liberdade era a luz e a força das almas encarceradas. A liberdade era imortal.
Na pequena cidade, vivendo em casa da viúva do sargento Mikhaliov, Ivan
Grigórievitch começou a sentir o significado da liberdade de modo mais
amplo e forte.
Na luta do quotidiano, nas artimanhas dos operários para ganharem com o
trabalho noturno mais um rublo, na batalha dos kolkhozianos pelo pão e pelas
batatas, pelo seu lucro natural ganho com o trabalho, Ivan Grigórievitch
entrevia não só um desejo de viverem melhor, de alimentarem bem os filhos
e de os vestirem. Na luta pelo direito a fazer botas, a tricotar uma camisola, a
semear o que o lavrador quiser, manifestava-se a ânsia natural de liberdade,
imutavelmente própria da natureza humana. Viu e conheceu a mesma ânsia
nos presos do campo. A liberdade parecia-lhe imortal de ambos os lados do
arame farpado.
Uma noite, depois do trabalho, começou a recordar palavras do campo
correcional. Meu Deus, tantas palavras para cada letra do alfabeto… E é
possível escrever sobre cada palavra artigos, poemas, romances…
Alamista… barraca… cabrada… desengomar… encanado… fazer tijolo…
grita… hóspede… ir de charola… larato… – e assim até ao fim do alfabeto.
Um mundo enorme, com a sua própria linguagem, a sua economia, o seu
código moral. Com as obras dedicadas a esse mundo é possível encher muitas
prateleiras. Mais do que com a «História das Fábricas» imaginada por
Górki36.
Eis um tema: a história do comboio de presos – organização, o comboio em
andamento, a guarda… Que ingénuos, acolhedores parecem ao preso dos
nossos dias os comboios dos anos vinte, a viagem de um deportado político
no compartimento da carruagem de passageiros com um guarda a filosofar e
a oferecer bolos ao escoltado. Tímidos embriões da cultura de campo
correcional: século de pedra encanecido, pintainho acabado de sair do ovo…
Agora, o comboio moderno de sessenta vagões que vai rumo à região de
Krasnoiarsk: uma cidade prisional móvel, vagões de mercadorias de quatro
eixos, janelinhas com grades, três pisos de tarimbas, vagões-armazéns,
vagões do estado-maior cheios de carcereiros, vagões-cozinhas, vagões de
cães de guarda – nas paragens, andam ao longo do comboio; o chefe do
comboio, rodeado que nem um padixá dos contos de fadas, pelo servilismo
dos cozinheiros, das escravas prostitutas; chamadas, quando um carcereiro
entra no vagão, enquanto outros guardas apontam aos presos, através das
portas abertas dos vagões, as suas pistolas-metralhadoras… As pessoas
apertam-se umas às outras, e o hábil carcereiro lança certos presos de uma
parte do vagão para outra e, por mais rápido que seja o preso a correr, o
carcereiro arranja sempre maneira de lhe dar uma paulada no traseiro ou na
cabeça.
Há pouco, já depois da Grande Guerra Pátria, foram instalados pentes de
aço sob o fundo dos vagões traseiros. Se um preso, pelo caminho, desmontar
o chão da carruagem e se atirar entre os carris, o pente apanha-o e lança-o
para debaixo da roda; para aqueles que tentam subir ao tejadilho do vagão
abrindo um buraco no teto, foram instalados projetores de luz cortante –
atravessam a escuridão desde a locomotiva até ao vagão da cauda e, se um
homem aparecer correndo pelos tejadilhos, a metralhadora apontada ao longo
do comboio não vai falhar. Sim, tudo se desenvolve. A economia do comboio
ganhou as suas formas: a mais-valia, o bem-estar delicioso dos oficiais de
escolta no vagão do estado-maior, o lucro tirado por conta da caldeira dos
presos e cães, as ajudas de custo para a viagem que são pagas na base dos
sessenta dias, presumível duração da viagem até aos campos da Sibéria
Oriental, a circulação de mercadorias dentro dos vagões, a cruel acumulação
inicial de capital com a paralela pauperização. Sim, tudo passa, tudo muda,
nunca se apanha o mesmo comboio.
Mas quem poderá descrever o desespero deste movimento que afasta os
homens das mulheres, estas confissões noturnas sob o estrondear férreo das
rodas, a submissão, a confiança, este mergulho no abismo do campo
correcional; cartas que eram atiradas da escuridão dos vagões para a
escuridão da grande caixa de correio da estepe – e essas cartas chegavam ao
destinatário!
No comboio ainda não há o hábito do campo, não há o cansaço nem a
cabeça atordoada pelas preocupações do campo; para o coração
ensanguentado tudo é insólito, terrível: meia-luz, rangido, tábuas ásperas,
ladrões histéricos, os olhos quartzosos dos guardas.
Levantaram um rapazinho nos ombros para ele olhar pela janela, e ele grita:
«Avô, para onde nos estão a levar?»
E todo o vagão ouve uma voz arrastada, trémula, senil:
– Para a Sibéria, filho, para os trabalhos forçados…
De repente, Ivan Grigórievitch pensou: será verdade que é este o meu
caminho, o meu destino? Foi nesses comboios que tudo começou. E agora
acabou.
Estas recordações do campo, que lhe surgiam muitas vezes, sem qualquer
ligação, atormentavam-no com o seu caráter caótico. Sentia, compreendia que
era possível desvendar o caos, que tinha capacidade de o fazer e que, agora
que o caminho prisional terminara, chegava a altura do esclarecimento, de
entrever as leis dentro do caos de sofrimentos, de contradições entre a culpa e
uma santa inocência, entre as confissões falsas dos crimes e a abnegação
fanática, entre o absurdo do assassínio de milhões de pessoas inocentes e fiéis
ao partido e o sentido férreo desses assassínios.
33 De uma poesia de Mikhaíl Lomonóssov (1711-1765), cientista russo de renome mundial, linguista e
poeta. (N. dos T.)

34 Stepan Bandera (1909-1959) – um dos líderes e ideólogos da Organização dos Nacionalistas


Ucranianos. Mais tarde, líder do «movimento de Bandera». (N. dos T.)

35 Símon Petliura (1879-1926) – um dos cabecilhas do movimento nacionalista ucraniano durante a


revolução e a guerra civil. (N. dos T.)

36 Em 1931, Maksim Górki publicou um artigo com a proposta de se criar uma espécie de enciclopédia
dedicada à história das fábricas. (N. dos T.)
12

Nos últimos dias, Ivan Grigórievitch andava taciturno, quase não falava
com Anna Serguéevna. Mas no trabalho pensava muito nela e em Aliocha, e
não deixava de olhar para o relógio de pêndulo na parede da oficina – quanto
faltava até voltar para casa?
E, por qualquer razão, nestes seus dias taciturnos, refletindo na vida do
campo correcional, recordava mais do que tudo o destino das mulheres
presas… Parecia que nunca antes tinha pensado tanto nas mulheres.
… A igualdade entre a mulher e o homem não foi estabelecida nas cátedras
universitárias nem nas obras dos sociólogos… A sua igualdade foi
demonstrada não só no trabalho fabril, não só nos voos cósmicos, não só no
fogo da revolução – foi firmada na história da Rússia, em todos os séculos
dos séculos, pelo sofrimento escravo, prisional, do campo correcional, do
comboio de trânsito.
Perante os séculos de escravidão, perante Kolimá, Norilsk, Vorkutá, a
mulher tornou-se igual ao homem.
O campo correcional confirmou também a segunda verdade, simples como
um mandamento: a vida dos homens e das mulheres é inseparável.
Uma força satânica reside na proibição, na barragem. A água dos riachos e
rios apertada pela barragem manifesta a sua força secreta, obscura. Esta força
oculta, invisível sob aquele seu marulho carinhoso, sob os reflexos do sol,
dos nenúfares que baloiçam, revela de repente a implacável raiva da água –
derruba pedras, faz girar as pás da turbina com louca velocidade.
É implacável a força da fome quando a barragem separa o homem do seu
pão. A necessidade natural e boa de se alimentar transforma-se numa força
que extermina milhões de vidas, obriga as mães a comerem os seus próprios
filhos – a força da crueldade e da bestialização.
A proibição que separa as mulheres presas dos seus homens estropia os
seus corpos e as suas almas.
Tudo o que é feminino – a ternura, o cuidado, a paixão, a maternidade – é o
pão e a água da vida. Tudo isso nasce na mulher porque há no mundo
maridos, filhos, pais, irmãos. Tudo isso preenche a vida do homem – porque
há no mundo a mulher, a mãe, a filha, a irmã.
Mas de repente a força da proibição entra na vida. E tudo o que era simples
e bom, o pão e a água potável da vida, revela a sua maldade baixa e as suas
trevas.
Como por milagre, a violência e a proibição transformam, inevitavelmente,
o bom no mau dentro da pessoa.
Entre o campo correcional de criminosos comuns masculino e o feminino
havia uma faixa de terreno deserto – chamava-se zona de fogo –, e as
metralhadoras abriam fogo mal um homem aparecia na terra de ninguém. Os
criminosos atravessavam, rastejando, a zona de fogo, cavavam passagens,
enfiavam-se debaixo do arame farpado, ou passavam por cima dele, e quem
não tinha sorte ficava nessa zona com a cabeça baleada ou as pernas cortadas
pelas rajadas das metralhadoras. Isto lembrava o movimento louco e trágico
do peixe na desova pelos rios atravessados pelas barragens.
Quando os serralheiros e os carpinteiros eram mandados trabalhar nos
sinistros campos femininos de regime severo, as mulheres, que durante
longos anos não viram caras masculinas nem ouviram a voz masculina,
assediavam esses homens, extenuavam-nos até à morte. Os criminosos
comuns tinham medo desses campos, onde as mulheres achavam felicidade
na possibilidade de tocarem no ombro do homem morto, eles tinham medo de
ir lá mesmo sob a proteção de armas de fogo.
A desgraça negra e sombria deformava os presos, transformava-os em
animais.
Nos trabalhos forçados, as mulheres obrigavam outras mulheres a relações
antinaturais. Surgiam nas barracas das mulheres personalidades absurdas –
mulheres de vozes roufenhas, de andar largo, de feitio masculino, de calças
enfiadas em botas de soldado. E ao lado delas, criaturas míseras, perdidas –
as suas concubinas.
As mulheres-machos bebiam tchifir37, fumavam tabaco forte,
embebedavam-se e espancavam as suas amiguinhas mentirosas e levianas,
mas também as protegiam de ofensoras e outras pretendentes com punhos e
navalhas. Este mundo de relações trágico e monstruoso era o amor no campo
de trabalhos forçados. Era assustador, não provocava risos nem conversas
obscenas entre os ladrões e assassinos, apenas o terror.
O frenesi sexual nos trabalhos forçados não conhecia o impedimento das
distâncias na taiga, nem do arame farpado, nem das paredes de pedra, nem
das fechaduras, avançava contra os cães-lobos de guarda, contra uma
navalha, atirava-se sob o fogo das metralhadoras. Assim, o peixe do oceano
Pacífico avança, com olhos saídos das órbitas e as espinhas dorsais partidas,
para o lugar de desova, despedaçando-se contra as rochas nas correntes e
cataratas dos rios montanhosos.
Mas, ao mesmo tempo, os presos guardavam nas almas o amor de mulheres
e mães, e as presas, noivas «à revelia», que nunca viram nem iam ver os seus
eleitos do campo, estavam prontas para qualquer tortura em nome da
fidelidade ao seu desgraçado eleito do campo correcional, em nome de uma
treta fantasiada.
Há coisas que serão perdoadas ao ser humano se ele, na imundície e no
fedor da violência prisional, continuar a ser humano.
37 Tchifir – bebida tradicional das prisões russas. Obtém-se pela preparação de um chá extremamente
concentrado. Produz um efeito narcótico. (N. dos T.)
13

A mansa Máchenka… Já não está de meias finas e camisola de lã azul. É


difícil manter o asseio no vagão de mercadorias… Escuta com esforço a fala
estranha, como que não russa, de ladras, vizinhas de tarimba. Olha
horrorizada para a rainha do comboio – histérica, de lábios pálidos, amante
do famoso ladrão de Rostov.
Macha lavou um lencinho na caneca, limpou as plantas dos pés com os
restos de água, está a secar o lenço em cima do joelho, espreita na penumbra.
Os últimos meses são uma amálgama no nevoeiro: o choro da Iúlia de três
aninhos que comeu demais no seu dia de anos, as caras dos homens que
fizeram a busca, a roupa, os desenhos técnicos, os bonecos, a loiça no chão, o
ficus, prenda da mãe no dia do casamento, tirado do vaso, o último, à porta do
quarto, sorriso do marido, cheio da súplica da fidelidade – quando se
lembrava deste sorriso, Máchenka gritava, apertava a cabeça com as mãos;
depois, as semanas loucas, quando tudo era como dantes, mas ao lado da
panela de papas para Iúlia vivia o medo mortal da Lubianka; na bicha da sala
de informação da prisão interna uma voz do guichê: «Entrega recusada»; a
correria pelas casas dos parentes, decorando os endereços para não fazer
apontamentos; a venda apressada e desajeitada do armário com espelho e dos
livros, edição da «Academia»; a dor de a melhor amiga deixar de telefonar;
de novo, uma visita noturna e uma busca até à madrugada, a despedida de
Iúlia que, pelos vistos, não deram à avó, mas levaram para o asilo; a prisão de
Butírskaia onde se falava em sussurro, onde para a costura se utilizavam
fósforos e espinhas de peixe tiradas da sopa prisional; dezenas de lencinhos,
cuecas, sutiãs multicores, lavados, abanados – as presas secavam-nos desta
maneira; um interrogatório noturno, e foi pela primeira vez que a ameaçaram
com o punho, que a trataram por tu, que lhe disseram «puta», «prostituta».
Foi acusada de não ter denunciado o marido, ele foi condenado a «dez anos
sem direito a correspondência» por não ter denunciado uma organização
terrorista.
Macha não compreendia por que motivo ela e dezenas de mulheres como
ela tinham obrigação de denunciar os seus maridos, por que razão o seu
Andrei, e centenas de homens como ele, tinham de denunciar os colegas de
trabalho, amigos de infância. O juiz de instrução chamou-a para o
interrogatório apenas uma vez. Depois passaram-se oito meses de reclusão –
dia e noite, dia e noite. O desespero alternava com uma espera entorpecida do
destino, e de repente uma esperança, a certeza de ver em breve o marido e a
filha envolviam-na como uma onda do mar.
Finalmente, o carcereiro entregou-lhe uma tira estreita de papel de seda, e
Macha leu: 58-6-1238.
Contudo, mesmo depois disso mantinha a esperança: vão revogá-lo, o
marido será ilibado, Iúlia estará em casa – e ficam juntos, para nunca mais se
separarem. E o pensamento deste encontro banhava-a em fogo e frio.
De noite, acordaram-na: «Liubímova, com os pertences, sair!» No carro
negro, foi levada, sem passar pela prisão de trânsito de Krásnaia Présnia,
diretamente para a estação de mercadorias do caminho de ferro de Iaroslavl, e
metida no vagão…
O que persistia mais na sua memória era a manhã depois da detenção do
marido, como se essa manhã nunca terminasse. A porta da rua bateu, o motor
rugiu, e caiu o silêncio. O terror entrou na sua alma. O telefone tocava no
corredor, o elevador parava no patamar em frente da sua casa, a vizinha,
arrastando os chinelos, saía da cozinha, e os passos calavam-se de repente.
Limpou com um pano os livros espalhados pelo chão, pô-los na prateleira,
fez uma trouxa com a roupa atirada ao chão – tinha vontade de a pôr a ferver,
todas as coisas no quarto lhe pareciam emporcalhadas. Colocou o ficus no
vaso e afagou a sua folha rija – Andrei gozou com este ficus, declarou-o um
símbolo do modo de vida pequeno-burguês, e no fundo da alma Macha estava
de acordo com ele. Porém, nunca permitiu que se ofendesse este ficus ou que
se levasse para a cozinha: tinha pena da mãe, coitada, estava já velhinha,
trouxera a prenda, carregando com ela através de toda a Moscovo, e depois
até ao sexto andar pelas escadas, porque naqueles dias estavam a fazer
reparações no elevador.
Era o silêncio! Mas os vizinhos não dormiam. Tinham pena dela, tinham
medo dela e sentiam-se felizes porque não fora a eles que vieram com a
ordem de busca e detenção. Iúlia estava a dormir, Macha a arrumar o quarto.
Normalmente, não fazia as arrumações com tanto cuidado. Em geral, as
coisas eram-lhe indiferentes, nunca lhe interessaram lustres nem loiça bonita.
Havia quem a considerasse uma má dona de casa, mas Andrei gostava da
indiferença de Macha pelos haveres e pela desordem no quarto. Porém, agora
parecia-lhe que, se as coisas ocupassem os seus lugares, ia sentir-se mais
calma, aliviada.
Olhou-se ao espelho, depois olhou para o quarto arrumado. As Viagens de
Gulliver na prateleira, no mesmo sítio de ontem, de antes da busca, o ficus de
novo em cima da mesinha. E Iúlia, que até às quatro da madrugada chorou
agarrada à mãe, está a dormir. No corredor, era o silêncio, os vizinhos ainda
não tinham começado a fazer barulho na cozinha.
No seu quarto cerimoniosamente arrumado, Máchenka sentiu um
dilacerante desespero. Ficou toda alumiada pela ternura, pelo amor a Andrei,
e ao mesmo tempo, neste silêncio da casa, rodeada de objetos familiares,
sentiu como nunca a implacável força capaz de torcer o eixo do globo
terrestre – esta força avançou contra ela, contra Iúlia, contra o pequeno quarto
do qual costumava dizer:
– Não preciso de vinte metros quadrados com varanda, estou feliz aqui.
Iúlia! Andrei! Estão a levá-la para longe deles! O estrondear das rodas fere
a alma. Está cada vez mais longe de Iúlia, cada vez mais perto da Sibéria que
lhe deram em substituição da vida com os seres amados.
Já não tem a sua saia axadrezada, e uma ladra de lábios finos e pálidos
penteia o cabelo crepitante e eletrizado com o pente de Macha.
Pelos vistos, apenas no jovem coração feminino vivem simultaneamente
dois sofrimentos: o materno, o desejo louco de salvar a sua criança
desprotegida; e o infantil, a impotência perante a ira do Estado, o desejo de
esconder a cara no peito da mãe.
Estas unhas sujas e partidas, outrora cuidadas e envernizadas… a cor do
verniz interessava muito a Iúlia, e muitos anos atrás o papá dissera à Macha
de seis aninhos: «Tens unhas como escamas de um peixinho.» Já não há nem
vestígios do frisado, fê-lo um mês antes da detenção de Andrei quando
estavam a preparar-se para ir à festa de anos da amiga, aquela que deixou de
telefonar.
Iúlia, Iúlenka, tímida, nervosa, está no asilo. Macha geme baixinho, os seus
olhos turvam-se – não há maneira de proteger a filha das educadoras cruéis,
das crianças traquinas, maldosas, da roupa grosseira e rota do asilo, do
cobertor de soldado, da almofada de palha. O vagão range, as rodas batem,
Moscovo e Iúlia estão cada vez mais longe, a Sibéria cada vez mais perto.
Meu Deus, será verdade que tudo isto aconteceu? Parecia, por momentos,
que era tudo um sonho, apenas um sonho – esta penumbra abafada, a tigela
de alumínio, as ladras que fumam o tabaco fedorento nas tarimbas ásperas, a
roupa interior suja que faz comichão no corpo, a mágoa no coração: «Que
haja uma paragem o mais depressa possível, pelo menos os guardas vão
proteger-me das ladras» – e nas paragens, o medo mortal dos guardas que
gritam palavrões e ameaçam com as coronhas, e um só desejo: «Que o
comboio parta depressa» – e as própria ladras dizem: «Os guardas de
Vólogda são piores que a morte.»
Mas a desgraça não é isto agora, o barulho rangente das tarimbas, a geada
nas paredes do vagão mal o fogareiro se apaga, a crueldade dos guardas e os
desmandos das ladras. A desgraça é que o torpor que lhe envolveu a alma,
qual crisálida, nos oito meses que esteve na cela prisional, enfraqueceu no
comboio – é esta a desgraça.
Sente com todo o seu ser os nove mil quilómetros do seu movimento rumo
ao abismo tumular da Sibéria.
Aqui não há a absurda esperança prisional de que a porta da cela se abra e o
carcereiro grite: «Liubímova, sair em liberdade» – e que ela, ao sair para a
rua Novoslobódskaia, apanhe o autocarro para casa, onde Andrei e Iúlia estão
à sua espera.
No vagão não há o torpor, não há o cansaço embrutecedor do campo
correcional, há apenas um coração ensanguentado.
E se Iúlia molhar as calcinhas?… E a lavagem das mãos, e a constipação…
precisa de comer legumes, de noite cai-lhe sempre o cobertor, dorme nua.
Máchenka já não tem sapatos, tem botas de soldado, a sola de uma
desprendeu-se. Será que é ela, a Macha, Maria Konstantínovna, a mesma que
leu Blok, que estudou na faculdade de Letras, que escreveu poesias às
escondidas de Andrei? A Macha que corria para marcar hora no cabeleireiro
Ivan Afanássievitch da rua Arbat, a Macha que sabia não só ler livros mas
também preparar borch e bolo «Napoleão»39, e costurar, a Macha que
amamentou a filha? A Macha, sempre fascinada por Andrei, pela sua
laboriosidade e modéstia, a Macha que fascinava toda a gente com o seu
abnegado amor por Andrei e Iúlia, a Macha que sabia chorar e também
brincar, e poupar os tostões.
O comboio anda e anda, Macha adoece com tifo – a cabeça turva, escura,
pesada. Mas não, não tem tifo, está bem. E de novo aqui, no comboio, a
esperança encontrou caminho até ao seu coração. Que chegam ao campo e
lhe gritam: «Liubímova, sai das filas, chegou um telegrama, estás livre» – e
assim por diante: vai para Moscovo no comboio de passageiros, e já vê os
subúrbios, Sófrino, Púchkino, e finalmente a estação Iaroslávski, e vê Andrei
com Iúlia ao colo.
Então, a esperança atormenta-a – chegar mais depressa até ao ponto final
da Sibéria, receber o telegrama da libertação. Os pés magrinhos de Macha
parecem correr rapidamente ao lado do vagão que desacelera.
Ei-la, roubada pelas ladras, a apear-se do comboio – esconde os dedos
gelados nas mangas do ensebado casaco acolchoado, a cabeça coberta com
uma suja toalha felpuda. Ao lado, os sapatos de centenas de mulheres
moscovitas, condenadas a dez anos de trabalhos forçados por não terem
denunciado os maridos, rangem pela neve como pelos vidros.
Os pés de meias de seda marcham, os sapatos de salto alto tropeçam. As
mulheres têm inveja de Macha – viajou no vagão com as ladras, e não com
«as mulheres», foi roubada, mas agora tem um casaco acolchoado e pode
encher as botas de papel e trapos, ficam mais quentes.
As mulheres dos inimigos do povo tropeçam, apressam-se, caem, apanham
coisas que caíram das trouxas na neve, mas têm medo de chorar.
Macha olhou em volta: atrás, um barracão da estação, vagões de
mercadorias como um colar vermelho no corpo branco, e em frente
desenrola-se uma serpente escura – a prisão feminina de trânsito, por todo o
lado pilhas de madeira cobertas de neve, escoltas envergando peliças curtas
fabulosamente quentes, os cães de pelo quente e felpudo ladram. O ar,
maravilhosamente puro depois de dois meses no vagão fechado, é mais
cortante do que uma lâmina de barbeiro. O vento soprou, a neve seca como
fumo voou pelo descampado, a cabeça da coluna desapareceu na bruma
branca. O frio fustiga a cara, as pernas, Macha tem vertigens.
E de repente, através do cansaço, através do medo de ficar gelada e apanhar
gangrena, através do sonho de calor e de tomar banho, através do abalo ao
ver uma velha corpulenta de pince-nez deitada na neve com uma expressão
estranha, estupidamente caprichosa, a Macha de vinte e seis anos viu no
nevoeiro de neve o seu destino de grilheta… O seu destino anterior, atrás das
costas, à distância de milhares de verstás, foi lacrado. As torres, os guardas de
peliças de carneiro, o portão aberto ergueram-se do nevoeiro. Foi nesse
instante que Macha viu, com uma nitidez igual, as suas duas vidas: aquela
que desapareceu e a que chegou.
Corre, tropeça, sopra nos dedos gelados, e a loucura da esperança não a
abandona – vai chegar ao campo e, lá, comunicam-lhe a notícia da libertação.
É por isso que corre tanto, ofegando.
Que duro era o seu trabalho! Que dores na barriga e nos rins por ter
levantado o peso incomensurável, proibido para uma mulher, de cal gelada, a
padiola mesmo vazia parecia feita de ferro; que pesados eram os troncos, as
tábuas, as pás, as alavancas, as selhas de água suja, as latrinas cheias de
excrementos, os montões de roupa lavada.
Que duro era o caminho, no escuro da madrugada, até ao lugar do trabalho,
que insuportáveis eram as chamadas no frio ou no meio da lama; que
nauseabunda e almejada era a mistela de milho cozido com um bocado de
tripa, com escamas de peixe nojentas, que se colavam ao céu da boca; que
ignóbeis, que implacáveis eram os roubos na barraca, que feias eram as
conversas nas tarimbas durante a noite; que abomináveis eram os sons de
corpos a mexerem-se, os sussurros, aquele farfalhar; que desejoso era,
permanentemente, o pão negro, seco, tocado pelo bolor cinzento.
O criminoso comum Mukha que servia na casa das caldeiras obrigou Lena
Rudolf, de dezasseis anos, a viver com ele. Lena apanhou sífilis, perdeu as
unhas das mãos e dos pés, ficou careca, o posto médico transferiu-a para o
campo dos incapacitados, mas a mãe de Lena, Susana Kárlovna, de olhos
claros, bondosa, obsequiosa e que conseguia manter a sua elegância,
continuava a trabalhar, embora tivesse já o cabelo branco. Susana Kárlovna
fazia ginástica antes de amanhecer, esfregava o corpo com neve.
Macha trabalhava até à noite, como uma égua, como uma burra. O campo
era de regime severo, não tinha direito a correspondência, não sabia se o
marido estava vivo ou tinha sido executado, não sabia onde estava a sua Iúlia,
se ficou no asilo, se se perdeu como um bichinho sem nome, se a mãe a
encontrou, e também se a mãe estava viva, se o irmão Volódia estava vivo.
Macha parecia habituada a não saber nada dos seus familiares, parecia não
sonhar com uma carta, desejava ter um trabalho menos duro, que não fosse ao
frio, na taiga, onde no verão os mosquitos são cruéis, trabalhar na cozinha, no
hospital.
Mas as saudades amargas do marido e da filha continuavam, a esperança
não morrera, apenas parecia que tinha morrido. A esperança dormia. E Macha
sentia-a a dormir, como sentimos a criança que dorme ao nosso colo, e
quando a esperança acordava, o coração da jovem mulher enchia-se de
felicidade, de luz e de amargura.
Ainda verá Iúlia e o marido. É claro que não será hoje nem amanhã… Vão
passar anos, mas ela vê-los-á: o cabelo branco, que olhos tristes tu tens,
Andrei… Iúlenka, Iúlenka… aquela jovem fininha e pálida é a sua filha. E
Macha preocupa-se: será que Iúlia a vai reconhecer, lembrar-se dela, da sua
mãe dos trabalhos forçados, não irá virar-lhe as costas?
O chefe dos carcereiros Semissótov obrigou-a a ter relações com ele,
partiu-lhe dois dentes, deu-lhe um murro na têmpora, foi no primeiro outono.
Macha tentou enforcar-se, mas não conseguiu, a corda era fraca. Mas havia
mulheres que tinham inveja dela. Depois, uma indiferença desesperada, duas
vezes por semana arrastava-se atrás de Semissótov até ao armazém onde
havia uma tarimba de madeira coberta de pele de carneiro. Semissótov estava
sempre carrancudo, calado, e Macha tinha-lhe um medo louco, ficava
nauseada de medo quando Semissótov se embebedava e se enfurecia. Mas
uma vez ele deu-lhe cinco rebuçados, e Macha pensou: «Seria bom mandá-
los a Iúlia, para o orfanato» – e não os comeu, guardou-os debaixo do
colchão da sua tarimba. Depois roubaram-lhos. Uma vez Semissótov disse-
lhe: «Você é uma porca, sua puta, nem uma campónia se relaxava tanto.»
Tratava-a sempre por «você», mesmo quando estava muito bêbedo. Macha
ficou contente com as palavras de Semissótov, e mesmo assim pensou: se me
mandar embora, serei obrigada a trabalhar na cal outra vez.
Semissótov, uma noite, foi-se embora e não voltou. Mais tarde Macha veio
a saber: fora transferido. E estava contente, sentada à noite na tarimba da
barraca, e não era preciso ir ao armazém. Mas depois expulsaram-na do
escritório onde, nos tempos de Semissótov, ela lavava o chão e aquecia os
fogões – não tinha nada com que pagar este privilégio, e o seu lugar foi
ocupado pela ladra que, no vagão, lhe tirara a camisola de lã. Macha estava
contente, mas ao mesmo tempo ressentida: aquele homem nem lhe disse uma
palavra de despedida, tratou-a pior do que a um cão. A ela que, em tempos,
tinha um registo de residência permanente em Moscovo, que vivia no seu
próprio quarto com o marido e a Iúlia, que tomava banho na banheira, comia
do prato de porcelana.
O trabalho no campo era duro nos meses de inverno, era duro no verão, e
era duro nos meses primaveris e outonais, e Macha, em vez de recordar a rua
Arbat e Andrei, pensava no tempo em que, quando vivia com Semissótov,
lavava o chão do escritório. Era inacreditável ter tido tanta sorte.
Contudo, a esperança vivia no fundo da sua alma. Ainda vão encontrar-
se… É claro, já será velha, de cabelo branco, a Iúlia terá filhos, mas vão
encontrar-se, é impossível nunca se encontrarem mais.
Entretanto, a cabeça abarrotava de preocupação, de inquietude, de
desgraça. Ora a camisa se rasgava, ora apareciam abcessos, ora tinha dores de
barriga e era impossível arranjar autorização para ir ao posto médico, ora a
pele rebentava nos calcanhares e Macha andava coxeando, com as grevas
negras de sangue, ora uma bota de feltro ficava desfeita, ora era
indispensável, custasse o que custasse, lavar um pouco o corpo e a roupa sem
esperar pelo dia dos banhos, ora era preciso secar o casaco acolchoado todo
encharcado… E era preciso lutar por tudo – por uma marmita de água quente,
por uma linha para cerzir, por uma agulha emprestada, por uma colher com
cabo, por um trapinho para fazer um remendo. Como salvar-se dos
mosquitos, como proteger a cara e as mãos do frio de rachar, maldoso como
os guardas do campo?
As discussões com palavrões, as brigas entre as presas eram tão
insuportáveis como o trabalho.
E a vida na barraca continuava, era infinita.
A tia Tânia, empregada de limpeza da cidade de Oriol, sussurra: «Desgraça
para os que vivem na terra…» Tem uma cara grosseira, máscula, parece
cruel, frenética. Mas não há nela crueldade nem frenesi, há apenas bondade.
Que culpa levou esta santa a ir parar aos trabalhos forçados? Com uma
incompreensível docilidade, está pronta a lavar o chão, a fazer qualquer
trabalho por outra qualquer.
As velhas monjas, Varvara e Ksénia, cochicham, calam-se de imediato
quando as leigas pecadoras se aproximam delas. Vivem no seu mundo
especial: assinar um papel é pecado, dizer o seu nome leigo é pecado, beber
da mesma caneca com as leigas é pecado, vestir o casaco prisional é pecado.
Nem que as matem, continuam a persistir na sua santidade. A sua santidade
está na roupa delas, nos lenços brancos, nos lábios cerrados, mas nos seus
olhos há só frio e desprezo pelo sofrimento do campo, pelo pecado. Para a
sagrada virgindade delas são abomináveis as paixões femininas, as desgraças
femininas, o seu sofrimento de mães e mulheres – tudo isso lhes parece
impuro. O principal é observar a limpeza do lenço e da caneca, afastarem-se,
com lábios apertados, da pecaminosa vida do campo. As ladras odeiam-nas,
as «mulheres» antipatizam com elas e evitam-nas.
Mulheres, mulheres dos seus maridos, moscovitas, leninegradenses, de
Kíev, de Khárkov, de Rostov… tristes, com espírito prático e sem ele,
pecadoras, fracas, meigas, maldosas, risonhas, russas e não russas, todas de
casacos prisionais. Mulheres de médicos, engenheiros, pintores e agrónomos,
mulheres de marechais e químicos, mulheres de procuradores e de granjeiros
expropriados, de camponeses russos, bielorrussos, ucranianos. Todas foram
atrás dos seus maridos para as trevas selvagens dos túmulos-barracas.
Quanto mais famoso foi o inimigo do povo liquidado, tanto mais largo é o
círculo de mulheres que o seguiram no caminho das grilhetas: a mulher, a ex-
mulher, a primeira mulher, as irmãs, uma secretária, uma filha, uma amiga da
mulher, uma filha do primeiro casamento.
De algumas, diziam: «Admiravelmente simples, modesta…» De outras:
«Oh, absolutamente insuportável, arrogante, grande senhora, como se
estivesse aqui na sua antiga condição da gente do Kremlin.» Essas também
no campo têm as suas comensais, bajuladoras. Uma auréola de poder e
perdição fatal rodeia-as. Delas, dizem em sussurro: «Não, essas não sairão
daqui vivas.»
Havia velhas de olhos cansados e calmos, presas ainda nos tempos de
Lénin, com dezenas de anos de reclusão nas prisões e nos campos. Eram
populistas, socialistas-revolucionárias, socialistas-democratas. Os guardas
tinham-lhes respeito, as ladras também; estas velhas não se levantavam
quando o próprio chefe do campo entrava na barraca. Contam que uma delas,
Olga Nikoláevna, pequena velha de cabelo branco, antes da revolução era
anarquista, lançara uma bomba contra o coche do governador-geral de
Varsóvia e dera um tiro a um general de gendarmaria. Agora está sentada na
tarimba do campo correcional, lê um livro, bebe água fervida da caneca. Um
dia em que Macha voltava do armazém de Semissótov, a velha foi ter com
ela, afagou-lhe a cabeça e disse-lhe: «Minha pobre menina.» Ah, como
Macha chorou!
Perto de Macha é a tarimba de Susana Kárlovna Rudolf. Esta faz ginástica,
respira pelo nariz. O seu marido, cidadão americano de origem alemã,
socialista-cristão, viera com a família para a União Soviética, adquirira a
nacionalidade soviética. O Professor Rudolf foi condenado a dez anos sem
direito a correspondência e fuzilado na Lubianka; Susana Kárlovna e as suas
três filhas, Agnessa, Luísa e Lena, foram mandadas para os campos de
regime severo. Susana Kárlovna não sabe nada das filhas. A mais nova, Lena,
já não está com ela, foi transferida para o campo dos incapacitados. Susana
Kárlovna não cumprimenta a velha Olga Nikoláevna – esta chamou fascista a
Stálin, chamou assassino da liberdade russa a Lénin. Susana Kárlovna diz:
com o meu trabalho, contribuo para a criação do mundo novo, isto dá-me
força para suportar a separação do marido e das filhas. Susana Kárlovna
conta que, quando viviam em Londres, tinham amizade com Herbert Wells, e
em Washington encontravam-se com Roosevelt, o presidente gostava de
conversar com o marido dela. Susana aceita tudo, tudo é claro para ela, só
uma coisa lhe parece menos clara: viu que o homem que prendeu o Professor
Rudolf meteu no bolso uma moeda única, grande, do tamanho de uma mão de
criança, de ouro – valia cem dólares. A moeda tinha um perfil de índio com
penas gravado – e o homem que estava a fazer a busca levou a moeda para o
seu filho pequeno, sem pensar sequer que era de ouro.
Todas elas, puras, caídas, esfalfadas e de sete fôlegos, viviam no mundo da
esperança. A esperança ora dormia, ora acordava, mas nunca as abandonava.
Macha também guardava esperança – a esperança martirizava-a, mas com
ela era possível respirar mesmo quando causava dor.
Depois do inverno, longo como todo o prazo de condenação, chegou uma
pálida primavera, e Macha foi levada, com duas outras mulheres, para as
reparações da estrada que se estendia até à cidade socialista onde, nos chalés
de madeira, viviam os chefes e o pessoal livre.
Macha viu de longe, nas janelas altas, as suas cortinas de Arbat e a silhueta
de um ficus. Viu uma menina de pasta escolar a subir a escada e a entrar na
casa do chefe dos campos de regime severo.
O soldado da escolta disse: «Achas que vieste cá para ver um filme?»
Depois, quando à luz do ocaso estavam a voltar ao campo, a rádio de
Magadan começou a tocar música.
Macha e as duas mulheres que se arrastavam com ela, chapinhando na
lama, baixaram as pás e pararam.
As torres de vigia erguiam-se no pano de fundo do céu pálido, e as
sentinelas de peliças negras, como moscas grandes, estavam imóveis em cima
delas, e parecia que as barracas atarracadas tinham brotado da terra e
cogitavam se valeria a pena voltarem para debaixo da terra.
A música não era triste, mas alegre, de dança, e Macha estava a ouvi-la e a
chorar, a chorar como nunca tinha chorado. E duas mulheres ao seu lado,
uma camponesa expropriada e outra de Leninegrado, idosa, de óculos com as
lentes rachadas, também estavam a chorar. E parecia que as rachadelas das
lentes tinham sido traçadas pelas lágrimas.
O soldado embaraçou-se: era raro as presas chorarem, os seus corações
estavam gelados como o solo da tundra.
O soldado empurrava-as pelas costas e pedia:
– Está bem, chega, puta que vos pariu, peço-vos, suas putas… por favor.
Olhava em volta, não lhe passava pela cabeça que era a rádio que as fazia
chorar.
Nem a própria Macha, aliás, percebia porque se lhe enchera de mágoa e
desespero o coração, assim tão de repente; era como se tudo o que tivera na
vida se juntasse: o amor da mãe, o vestido de lã axadrezado que lhe ficava
muito bem, Andrei, a bela poesia, o focinho do juiz de instrução, a aurora por
cima do mar azul de súbito luminoso perto de Sukhúmi40, a tagarelice de
Iúlia, Semissótov, as velhas monjas, as brigas loucas das mulheres-homens, a
aflição que sentiu ao ver que a chefe de equipa começara, havia pouco, a
olhá-la fixamente, como a olhava Semissótov; por que razão, de rompante, a
música alegre de dança lhe fez sentir a camisa suja no corpo, as botas pesadas
como ferros de engomar, o casaco com cheiro a azedo; porque foi que, de
repente, uma pergunta lhe cortou o coração como uma lâmina: qual a culpa
dela, Macha, para sofrer este frio, esta depravação espiritual, esta submissão
perante o destino de grilheta?
A esperança, que sempre lhe apertara o coração com o seu peso vivo,
morreu…
Ao som dessa música alegre, Macha perdeu para sempre a esperança de
voltar a ver Iúlia perdida nos asilos, nos orfanatos da gigantesca União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas. Os jovens, nas residências comunais e nos
clubes, dançavam ao som da música alegre. E Macha compreendeu que o seu
marido não existia em lado nenhum, que fora fuzilado, que nunca mais o
veria.
Então, perdida a esperança, ficou completamente sozinha… Nunca verá a
sua Iúlia, nem hoje, nem na velhice, nunca.
Deus nosso Senhor, tende piedade dela, tende pena dela, ajudai-a.
Passado um ano, Macha saiu do campo. Antes de voltar para a liberdade,
ficou deitada numa barraca térrea sobre o soalho de pinho, e ninguém a
mandava trabalhar, ninguém lhe fazia mal; os auxiliares do posto médico
meteram Macha Liubímova numa caixa retangular, feita de tábuas
classificadas como defeituosas pela secção do controlo técnico, olharam pela
última vez para o seu rosto, em que havia uma expressão querida de fascínio
e confusão infantis, a mesma expressão que ela tivera quando, junto do
armazém de madeira serrada, ouvira a música alegre – primeiro, a alegria,
depois a compreensão de que não havia esperança.
E Ivan Grigórievitch pensou que, nos trabalhos forçados de Kolimá, o
homem não era igual à mulher em direitos – o destino do homem era menos
grave.
38 Artigo 58-6-12 do Código Penal: espionagem e não denúncia de um crime contrarrevolucionário.
(N. dos T.)

39 Borch – sopa ucraniana feita de beterraba, outros legumes e carne. Bolo «Napoleão» – bolo folhado
com recheio de creme. (N. dos T.)

40 Capital da Abkházia, na costa do Mar Negro. (N. dos T.)


14

Ivan Grigórievitch sonhou com a mãe. Ela ia a andar pelo caminho,


afastando-se dos camiões e dos tratores de reboque; não estava a ver o filho, e
Ivan gritou: «Mãe, mãe, mãe…», mas o barulho pesado dos tratores abafava-
lhe a voz.
Ivan não tinha dúvida de que a mãe, no meio da confusão do trânsito, teria
reconhecido o seu filho mesmo naquela figura de preso grisalho, bastava-lhe
ouvi-lo, bastava-lhe virar a cabeça, mas a mãe não o ouviu, não olhou.
Ivan Grigórievitch, desesperado, abriu os olhos, uma mulher meio vestida
estava inclinada sobre ele – chamou a mãe, e a mulher foi à beira dele.
Estava perto. Ivan sentiu de um golpe, com todo o seu ser, que a mulher era
bela. Ela ouviu-o a gritar no sono, e acudiu porque sentiu ternura e
compaixão por ele. Os olhos da mulher não choravam, mas Ivan viu neles
uma coisa maior do que as lágrimas de compaixão, viu o que nunca tinha
visto nos olhos de ninguém.
Era bela porque era bondosa. Pegou na mão dela. Ela deitou-se ao lado, e
Ivan sentiu-lhe o calor, o peito terno, os ombros, o cabelo. Parecia que não o
estava a sentir na realidade, mas no sonho: no real, nunca tinha sido feliz.
Toda ela era bondade, e Ivan percebia com todo o seu ser carnal que a
ternura, o calor, o sussurro dela eram maravilhosos porque o seu coração
estava cheio de bondade por ele, porque o amor era bondade.
A primeira noite de amor…
– Não apetece recordá-lo, dói muito, mas é impossível esquecê-lo.
Continua vivo… dorme, não dorme. Como um estilhaço no coração. É
impossível virar-lhe as costas. Não esqueço… era já bastante adulta.
«Meu querido, amei muito o meu marido. Eu era bonita, mas má, maldosa.
Tinha vinte e dois anos. Não terias gostado de mim, mesmo bonita. Eu sei,
sinto-o como mulher: para ti, não sou apenas uma mulher que se deitou
contigo. Olho para ti, não te zangues, como para Cristo. Tenho vontade de te
confessar tudo como perante Deus. Meu querido, meu desejado, quero
contar-te aquilo, recordar tudo o que aconteceu.
«No início da expropriação dos kulaks não havia fome, apenas as terras
ficaram reduzidas. A fome chegou no ano trinta e dois, no segundo ano
depois da expropriação.
«Eu era empregada da limpeza no Comité Executivo Distrital, e a minha
amiga na secção de administração de terras, e sabíamos muita coisa, posso
contar tudo, como tudo aconteceu, tal qual. O nosso contabilista costumava
dizer-me: “Davas uma ministra.” É verdade, apanho tudo num instante e
tenho uma boa memória.
«A expropriação começou em 1929, no final do ano, mas só ganhou grande
envergadura em fevereiro e março do ano trinta.
«Espera, lembrei-me: antes de serem presos, foi-lhes imposto um tributo. A
primeira vez pagaram, conseguiram pagar, da segunda vez venderam o que
lhes foi possível – tudo –, apenas para pagarem. Achavam que, se pagassem,
o Estado lhes perdoaria. Havia quem matasse o gado, fizesse vodca caseira
com os cereais – bebiam, comiam, tanto faz, diziam, chegou o fim da nossa
vida.
«Se calhar, noutras terras era diferente, mas na nossa foi assim: começaram
por prender apenas os chefes de família. A maioria deles tinham servido nas
unidades cossacas de Deníkin durante a guerra civil. As detenções foram
feitas apenas pela GPU41, os ativistas não participaram nisso. A primeira vaga
foi toda fuzilada, não ficou ninguém vivo. Quanto aos que tinham sido presos
nos finais de dezembro, ficaram nas prisões durante dois ou três meses e
depois foram deportados. Mas quando prenderam os pais de família, não
tocaram nas famílias, apenas sequestraram os bens, de maneira que a família
deixou de ser considerada proprietária, mas assumia a obrigação de tratar e de
manter em ordem a economia.
«Os dirigentes regionais mandavam para os distritos um plano, o número
de kulaks, os distritos dividiam esses números pelos sovietes rurais, e lá é que
se faziam as listas. Era de acordo com essas listas que prendiam as pessoas.
Quem fazia as listas? As troicas. Gente pouco séria decidia quem ficava vivo,
quem ia morrer. Então, é claro, aconteceu cada uma: subornos, vinganças por
causa de mulheres, ou de uma velha ofensa, e por vezes os pobres eram
acusados de ser kulaks, enquanto os mais ricos pagavam o resgate.
«Mas agora percebo que a desgraça não consistia no facto de as listas
serem feitas por vigaristas. Entre os ativistas, havia mais gente honesta do
que malandros, mas a malfeitoria de uns e outros era igual. O principal é que
todas essas listas eram criminosas, injustas, não fazia diferença quem seria
introduzido nelas. O Ivan é inocente, o Piotr é inocente também. Quem deu
esse número para toda a Rússia? Quem fez esse plano para todo o
campesinato? Quem o assinou?
«Os pais já estavam nas cadeias, portanto, quando no início do ano trinta
começaram a prender as famílias. Para tal, as forças da GPU não bastavam,
mobilizaram os ativistas, eram todos da terra, vizinhos, mas ficaram como
tontos, como enfeitiçados, ameaçando com as armas, chamando às crianças
prole degenerada dos kulaks, sanguessugas, mas as sanguessugas pareciam
não ter gota de sangue, brancas como cal. Os olhos dos ativistas são de vidro,
como os dos gatos. E olha que são todos desta mesma terra. Mas andam,
francamente, como que embruxados, tão convencidos deles próprios que nem
podem tocar em nada dos outros: uma toalha é suja para eles, a mesa dos
“parasitas” é-lhes repugnante, não se sentam a ela, o filhinho do kulak mete-
lhes nojo, a rapariga é pior do que um piolho. E olham para os expropriados
como para o gado, os porcos, e para eles tudo nos kulaks é repulsivo: o
caráter deles é nojento, e não têm alma, e cheiram mal, e todos têm doenças
venéreas, mas, sobretudo, são inimigos do povo e exploram o trabalho alheio.
Pelo contrário, os pobres e os jovens comunistas, e a polícia, são todos
heróis… Mas olha bem para esses ativistas: gente como outra qualquer, e há
muitos fedelhos entre eles, e os canalhas também não faltam.
«Essas palavras começaram a influenciar-me também, eu era novinha. Nota
que nas reuniões e nas aulas de instrução especiais, e na rádio, no cinema, nos
textos dos escritores, e nas palavras do próprio Stálin, insistia-se na mesma
coisa: os kulaks, os parasitas, queimam o pão, matam as crianças… E foi
anunciado abertamente: levantar contra eles a fúria das massas, exterminá-los
todos como classe maldita… E comecei a ficar enfeitiçada também, parecia-
me que toda a desgraça provinha dos kulaks e que, se fossem exterminados
todos, chegaria uma vida feliz para os camponeses. Nada de piedade para
com eles: não são gente, sabe-se lá o que são, uns animais quaisquer. E
tornei-me ativista. Ora, entre os ativistas havia gente de todo o género: havia
quem acreditasse e odiasse os parasitas, havia quem perseguisse apenas os
seus próprios interesses, mas a maioria era constituída pelos que cumpriam
ordens – esses estavam prontos a matar os próprios pais só para cumprirem as
instruções. E os piores não eram os que acreditavam numa vida feliz se os
kulaks fossem liquidados. Nem sempre as feras ferozes são as mais terríveis.
Os mais nojentos eram aqueles que tiravam proveito do sangue humano, que
alardeavam aos gritos a consciência, mas pilhavam e ajustavam contas
pessoais. E davam cabo das pessoas por interesse, pelos haveres, por um par
de botas, e era fácil, bastava escrever uma denúncia, sem sequer assinar, que
alguém mantinha jornaleiros, ou tinha três vacas, e pronto, estava criado um
kulak. Eu via tudo isso, inquietava-me, mas no fundo da alma não me afligia.
Se na quinta abatessem o gado contra as regras, ficaria nervosa, é claro, mas
não perderia o sono.
«… Lembras-te como me respondeste? Nunca me vou esquecer das tuas
palavras. São palavras de dia claro, iluminam. Perguntei-te como é que os
alemães podiam asfixiar nas câmaras de gás as crianças dos judeus, como
podiam viver depois disso, se para eles não haveria juízo, nem humano nem
divino. E tu respondeste: o juízo sobre o carrasco é só um: ele olha para a sua
vítima como se ela não fosse um ser humano e, ao fazê-lo, o próprio carrasco
deixa de ser homem, mata o homem em si próprio, torna-se o seu próprio
carrasco, e a sua vítima fica para sempre um ser humano, nenhum assassino
pode mudá-lo. Lembras-te?
«Agora compreendo porque fui trabalhar como cozinheira, porque não quis
ser presidente do kolkhoze. Aliás, já te contei isso uma vez.
«Agora recordo como foi a expropriação e vejo tudo com outros olhos.
Desenfeiticei-me, vi que eram seres humanos. Por que razão era tão fria,
gélida? Como as pessoas sofreram, que horrores lhes fizeram! E diziam: não
são gente, são kulaks malditos. Agora recordo, recordo e penso: quem é que
inventou essa palavra, kulaks, terá sido Lénin? Por que torturas eles
passaram! Para os matar, era preciso proclamar bem alto: os kulaks não são
gente. Tal qual como os alemães diziam: os judeus não são gente. Então,
Lénin e Stálin também o disseram: os kulaks não são pessoas. Isso não é
verdade! Pessoas! São pessoas! Foi isto que comecei a compreender. Todos
somos pessoas!
«Bem, no início do ano trinta começaram a expropriar as famílias. A maior
febre foi em fevereiro e março. Os chefes distritais apressavam as coisas: por
altura das sementeiras já não poderia haver kulaks, começaria uma vida nova.
A expressão que utilizávamos: a primeira primavera kolkhoziana.
«Os ativistas, é claro, tratavam do desalojamento. Não havia instruções
sobre a maneira de o fazer. Entre os presidentes de kolkhozes, havia quem
preparasse tantas carroças que não havia coisas para as encher… Diziam:
kulaks, ricos, mas as carroças iam quase vazias. Da nossa aldeia levaram os
expropriados a pé. Levavam apenas o que conseguiam transportar nas mãos:
roupa de cama, de vestir. A lama era terrível, arrancava as botas dos pés. Era
penoso olhar para eles. Iam em coluna, olhavam para trás, para as suas casas,
ainda com o calor do fogão no corpo… O que eles deviam sentir, meu
Deus… É que tinham nascido naquelas casas, tinha sido naquelas casas que
casaram as filhas. Tinham acendido o fogão mas a sopa ficara meio cozida,
leite por beber, das chaminés ainda saía o fumo, as mulheres choravam
baixinho porque tinham medo de gritar. E nós, como se nada fosse – ativistas,
palavras para quê? Tocámo-los como quem toca os gansos para o pasto. E no
fim da coluna, uma pequena carroça com a cega Pelagueia, o velho Dmítri
Ivánovitch que há dez anos não saía da isbá e a parvinha Marússia,
paralisada, filha de um kulak: um cavalo escoiceou-a na cabeça, ainda em
criança, ficou paralisada desde então.
«No centro distrital faltam prisões. Também, que prisões pode haver numa
cidade distrital? Um calabouço, nada mais. Ora, os presos são às chusmas:
uma coluna de camponeses de cada aldeia. Então, destinaram para eles os
cinemas, os teatros, os clubes, as escolas. Pouco tempo os mantiveram lá.
Levaram-nos para a estação, e ali, nas vias de resguardo, os comboios de
mercadorias vazios já estavam à espera deles. Levaram-nos sob escolta –
polícia, GPU – como se fossem assassinos: velhos e velhas, mulheres e
crianças – os pais de família já tinham sido presos no inverno. Entretanto, as
pessoas sussurravam: “Estão a levar os kulaks malditos”, falando deles como
quem fala dos lobos. Alguns até lhes gritavam: “Malditos sejam!” Mas eles
nem sequer choravam, empedernidos…
«Não vi como os transportaram, mas ouvi o que os outros contaram.
Alguns dos nossos, mais tarde, foram para lá dos Urais, onde os kulaks
estavam, para se salvarem da fome. Eu própria recebi uma carta da minha
amiga; além disso, alguns kulaks fugiram das colónias, falei com duas
pessoas dessas…
«Levaram-nos nos vagões fechados, com os pertences à parte, tinham
consigo apenas alguma comida. Numa estação de trânsito, escreveu-me a
amiga, meteram no comboio também os pais, e nesse dia houve nos vagões
grande alegria e muitas lágrimas… Viajaram mais de um mês, todas as linhas
estavam cheias, visto que estavam a deportar camponeses de toda a Rússia.
Dormiam apertados, não havia tarimbas nos vagões para o gado. É claro, os
doentes morreram pelo caminho, não chegaram ao destino. Mas o pior:
davam-lhes de comer, nos entroncamentos, um balde de sopa miserável e
duzentos gramas de pão.
«A escolta era militar. A escolta não lhes tinha raiva, uma vez que os
tratava como gado, assim me escreveu a amiga.
«Quanto ao que lhes aconteceu lá, os fugidos contaram-mo. O distrito
distribuiu-os pela taiga. Onde havia uma aldeia florestal, encheram as isbás
com os incapacitados, num grande aperto, como no comboio. Onde não havia
aldeias por perto, descarregaram-nos na neve. Os fracos morreram de frio. Os
que tinham forças começaram a cortar árvores, não arrancavam os cepos,
dizem, não era preciso. Rolavam troncos pela neve, construíam cabanas,
barracas, trabalhavam quase sem dormir, para salvar as famílias do frio;
depois, começaram a construir isbás, de dois quartos, um para cada família.
Calafetavam-nas com musgo.
«As economias florestais compraram à GPU os homens capazes de
trabalhar, encarregaram-se do abastecimento, os dependentes recebiam
rações. Isto chamava-se povoamento laboral, com um comandante e
capatazes. Contaram-me que lhes pagavam o mesmo que à gente local, só
que todo o salário ia para o pagamento das dívidas. O nosso povo é forte.
Passado pouco tempo, começaram a ganhar mais do que a gente local. Não
tinham o direito de sair para fora da povoação ou do terreno onde cortavam
árvores. Depois ouvi dizer que, durante a guerra, foram autorizados a
deslocar-se pelo distrito, e depois da guerra os heróis do trabalho obtiveram
autorização para sair das fronteiras dos distritos, alguns receberam
passaportes.
«A minha amiga escreveu-me: começaram a formar colónias dos kulaks
incapacitados, com abastecimento por meios próprios. Mas emprestaram-lhes
sementes e rações, da parte do NKVD, até à primeira colheita. Tinham um
comandante e os guardas, como nas povoações laborais. Depois, os kulaks
foram transferidos para as cooperativas, e ali já tinham, além do comandante,
chefes eleitos.
«Entre nós, entretanto, começou uma nova vida sem kulaks. Começaram
por nos obrigar a inscrever no kolkhoze: reuniões até ao amanhecer, gritos,
palavrões. Alguns gritavam: não queremos! E outros: está bem, de acordo, só
que não damos as nossas vacas. Depois apareceu o artigo de Stálin, «Êxitos
que subiram à cabeça». Outra confusão: gritava-se: Stálin proíbe que se
obrigue à inscrição à força. Começaram a entregar declarações, escritas em
tiras de jornal: quero sair do kolkhoze, serei trabalhador rural independente.
Depois, voltaram à inscrição obrigatória. Quanto aos haveres que ficaram
depois da expropriação dos kulaks, a maior parte foi roubada.
«Pensávamos que não havia nada pior do que o destino dos kulaks.
Enganámo-nos! Um machado caiu sobre a gente da aldeia, sobre todos, dos
velhos às crianças.
«Chegou a execução pela fome.
«Quanto a mim, já não lavava chão, tornei-me contabilista. Então, sendo eu
ativista, mandaram-me para a Ucrânia, para reforçar um kolkhoze. Entre eles,
explicaram-nos, o espírito de propriedade privada é mais forte do que na
RSFSR. Era verdade, as coisas lá ainda corriam pior do que entre nós.
Mandaram-me para perto – a nossa aldeia era na fronteira com a Ucrânia –, a
menos de três horas de viagem. O lugar era bonito. Cheguei, vi pessoas
normais, como quaisquer outras. E comecei a trabalhar na administração
como contabilista.
«Ali, percebi tudo. Não foi por acaso que o nosso velho contabilista me
chamou “ministra”. Digo-o apenas a ti, porque é como dizê-lo a mim própria,
nunca me vou gabar em frente de algum estranho. Mantinha na cabeça todos
os relatórios, nem precisava de papel. E quando nos davam instruções, e
quando a nossa troica se reunia, e quando os chefes bebiam vodca ouvia
todas as conversas.
«Como foi? Depois da expropriação dos kulaks, as áreas semeadas ficaram
muito reduzidas e as colheitas fracas. Os relatórios enviados, porém,
asseguravam que, sem os kulaks, a nossa vida prosperou definitivamente. O
soviete rural mente para o distrito, o distrito mente para a região, a região
mente para Moscovo. Relatam uma vida feliz para que Stálin fique contente:
deporão aos pés de toda a sua potência um mar de cereais kolkhozianos. Na
altura da primeira colheita kolkhoziana, Moscovo mandou os números de
fornecimento. Tudo como deve ser: o centro dá ordens às regiões, as regiões
aos distritos. Então, a nossa aldeia recebeu a ordem de fornecimento. Qual
quê, era impossível cumpri-la em dez anos! No soviete rural, com o susto, até
os abstinentes se embebedaram como cachos. Pelos vistos, Moscovo
depositava as maiores esperanças na Ucrânia. Depois, foi com a Ucrânia que
se enraiveceu mais. A conversa era a mesma: quem não cumprir será
considerado kulak ainda sobrevivente.
«Era natural que fosse impossível cumprir o plano de fornecimentos. As
áreas de sementeira tinham sido reduzidas, a colheita fora fraca. Onde
podíamos então arranjá-lo, a esse mar de cereais de kolkhoziano? Conclusão:
os cereais foram escondidos! Kulaks ainda vivos, os mandriões! Os kulaks
foram exterminados, mas o espírito kulak persiste, a propriedade privada
domina na cabeça do ucraniano.
«Quem assinou a ordem de assassínio em massa? Penso muitas vezes: será
que foi Stálin? Acho que em todos os tempos da história russa não houve
ordem como esta. Nem o czar, nem os tártaros-mongóis, nem os ocupantes
alemães assinaram uma ordem assim. A ordem foi: matar à fome os
camponeses da Ucrânia, do Don, de Kuban, matá-los juntamente com as
crianças. A ordem foi: confiscar também toda a reserva de sementes.
Procuravam cereais como se fossem bombas, metralhadoras, e não pão.
Furaram a terra toda com as baionetas, com varetas, revolveram o chão em
todas as caves, abriram todos os soalhos, procuraram nas hortas. A alguns
camponeses tiraram os cereais que tinham em casa – nos potes, nas selhas. A
uma mulher levaram o pão cozido, puseram-no na carroça e também o
mandaram para o centro distrital.
«As carroças chiavam dia e noite, o pó pairava sobre toda a terra, e não
havia depósitos, o cereal era descarregado no chão, e as sentinelas andavam à
volta dele. Enquanto não chegou o inverno, as chuvas molharam os cereais,
estes começaram a apodrecer, faltava lona ao poder soviético para cobrir o
pão dos camponeses.
«Ora, quando ainda levavam os cereais das aldeias, o pó levantou-se por
todo o lado, tudo se cobria desse pó como se fosse fumo: a aldeia, o campo e,
de noite, a lua. Um homem enlouqueceu: estamos a arder, o céu está a arder,
a terra está a arder! Grita! Não, o céu não ardia, era a vida que estava a arder.
«Então percebi: o principal para o poder soviético é o plano. Cumpre o
plano! Entrega o tributo, fornece o pão! O Estado em primeiro lugar. Quanto
às pessoas, não valem nada.
«Os pais e as mães queriam salvar os filhos, esconder pelo menos um
pouco de pão, mas disseram-lhes: o que vocês têm é um ódio mortal pelo país
socialista, querem frustrar o plano, parasitas, kulaks, canalhas. Não era
verdade, não queriam frustrar o plano, queriam salvar os filhos, salvar as
próprias vidas. As pessoas precisam de comer.
«Posso contar tudo, mas contar é apenas dizer palavras, mas isso foi vida,
sofrimento, morte à fome. A propósito, quando estavam a confiscar os
cereais, explicaram aos ativistas que iam dar de comer aos camponeses
recorrendo às reservas. Não era verdade. Não deram nem um grão aos
famintos.
«Quem confiscava era, na sua maioria, gente local do Comité Executivo
revolucionário, do comité distrital, e os jovens comunistas, também da terra,
e a polícia, e o NKVD, nalguns sítios até mandaram tropas, vi um homem de
Moscovo, mas este não se aplicava, estava sempre a querer ir-se embora…
Mais uma vez, como na altura da expropriação dos kulaks, as pessoas
tornaram-se como loucas, bestializadas.
«Grichka Saenko, polícia, estava casado com uma mulher da aldeia. Antes
vinha para as festas – divertido, dançava bem o tango e a valsa, e cantava
canções ucranianas, de aldeia. Agora, um velhinho de cabelo muito branco
foi ter com ele e disse: “Gricha, defende-nos, isto aqui é pior que matança,
porque é que o poder dos operários e camponeses faz ao campesinato coisas
que nem o czar tinha feito?…” Grichka deu-lhe um empurrão, depois foi ao
poço lavar as mãos, disse às pessoas: “Como posso pegar na colher se toquei
neste focinho de parasita?”
«O pó a pairar, dia e noite, enquanto estavam a levar o pão. A lua era
grande, do tamanho de metade do céu, era como pedra, e com essa lua tudo
parecia louco, e de noite fazia calor como debaixo da pele de carneiro, e o
campo, todo pisado, era terrível como uma execução.
«As pessoas andavam perdidas, o gado asselvajou-se, assustava-se, mugia,
queixava-se, e os cães uivavam muito de noite. E a terra ficou rachada.
«Pois é, depois chegou o outono, começou a chover, depois o inverno com
muita neve. E não havia pão.
«Era impossível comprá-lo no centro distrital porque havia o sistema de
cartões de racionamento. Na estação, no quiosque, também era impossível
porque os guardas armados não deixavam. E não havia venda de pão.
«A partir do outono, começaram a comer principalmente batatas, sem pão
era assim. Mais perto do Natal, começaram a matar o gado. Também era só
ossos, carne magra. Mataram as galinhas, é claro. Comeram toda a carne
rapidamente, e então deixou de haver leite, nem um gole, e não era possível
arranjar um ovo em toda a aldeia. Mas o pior era que estavam sem pão.
Levaram-lhes tudo até ao último grão. Na primavera, não havia sementes
para semear, tinham confiscado todas as reservas de sementes. A única
esperança eram os cereais de inverno. Mas estavam ainda sob a neve, ainda
faltava muito até à primavera, e a aldeia já começara a passar fome.
Comeram a última carne, o último painço, batatas, quem tinha famílias
grandes ficou sem nenhumas.
«Correram a pedir empréstimo, ao soviete rural, no distrito. Nem sequer
lhes responderam. E não era fácil chegar ao centro distrital (dezanove
quilómetros pela estrada), a pé, sem cavalos.
«Medo mortal. As mães olham para os filhos e, aterrorizadas, começam a
gritar. Gritam como se uma cobra lhes tivesse entrado em casa. Esta cobra é
morte, fome. O que fazer? Nas cabeças dos camponeses só um pensamento:
comer. Cãibras no estômago, espasmos na mandíbula, a boca enche-se de
saliva, a pessoa não para de engoli-la, mas a saliva não mata a fome. De noite
acordam – tudo silêncio: nem conversas, nem concertina. Como no túmulo,
apenas a fome anda, não dorme. As crianças nas casas choram desde manhã –
pedem pão. Mas o que é que a mãe lhes pode dar? Neve? E não há a ajuda de
ninguém. Os do partido têm sempre a mesma resposta – deviam trabalhar e
não mandriar. E ainda: procurai na vossa aldeia, esconderam na terra pão para
três anos.
«Porém, no inverno ainda não havia verdadeira fome. É claro que os
invadia a moleza, as cascas de batata faziam inchar os ventres, mas não havia
ainda pessoas intumescidas. Começaram a cavar bolotas na neve, e o moleiro
adaptou as mós, começou a moer bolotas, eis a farinha. Coziam pão de
bolotas, ou melhor, panquecas. São muito escuras, mais escuras do que o pão
de centeio. Alguns acrescentavam farelo ou cascas de batata trituradas. As
bolotas esgotaram-se depressa – o carvalhal era pequeno, e tinham sido logo
três aldeias que se atiraram a ele. Depois, um responsável veio da cidade e
disse: olhem para estes parasitas, tiram bolotas da neve com as mãos nuas, só
para não trabalharem.
«Nas escolas, os alunos das últimas classes foram às aulas quase até à
primavera, mas os mais pequenos deixaram de estudar no inverno. Na
primavera, fecharam a escola – a professora foi-se embora para a cidade. E o
auxiliar médico foi-se embora do posto médico – não tinha nada para comer.
Além disso, a fome não se cura com medicamentos. A aldeia ficou sozinha –
o deserto em volta e os famintos nas casas. E os representantes de todo o
género deixaram de vir da cidade – para quê? Não há nada que tirar aos
famintos, portanto não vale a pena ir. E não é preciso dar-lhes tratamento
médico, e não é preciso dar aulas. Quando o Estado não pode tirar nada ao
homem, este torna-se inútil. Para que o vão curar e ensinar?
«Ficaram sozinhos, o Estado afastou-se dos famintos. As pessoas
começaram a vaguear pela aldeia, a pedir umas às outras, os miseráveis aos
miseráveis, os famintos aos famintos. Quem tinha poucos filhos, ou era
solitário, ainda conseguiu guardar alguma coisa até à primavera, então os pais
de prole numerosa iam pedir-lhes. E, às vezes, davam-lhes uma mancheia de
farelo ou umas batatas. Ora, os membros do partido não davam nada – e não
era por avareza ou por raiva, mas porque tinham muito medo. Quanto ao
Estado, não deu aos camponeses uma única semente, embora o Estado
assente no pão camponês. Será que Stálin sabia? Os velhos contavam: havia
fomes nos tempos do czar Nicolau, mas davam ajuda e faziam empréstimos,
e os camponeses pediam esmola nas cidades, e organizavam-se cozinhas
especiais, e os estudantes faziam coletas de dinheiro. Mas com o governo
operário-camponês não deram nem uma semente, colocaram barreiras em
todos os caminhos – com tropas, polícia, NKVD –, não deixavam os famintos
sair das aldeias, não se podiam aproximar da cidade, havia guardas à volta
das estações, havia guardas nos mais pequenos apeadeiros. Não há pão para
vós, lavradores. Ora, na cidade davam aos operários oitocentos gramas pelos
cartões de racionamento. Meu Deus, é inimaginável tanto pão – oitocentos
gramas! Mas para as crianças da aldeia, nem um grama. Como os alemães
que asfixiavam as crianças judaicas com gás: não podem viver, são judeus.
Mas aqui nem se percebe – estes são soviéticos e aqueles são soviéticos, estes
são russos e aqueles são russos, e o poder é operário-camponês, então porquê
esta morte?
«Quando a neve começou a derreter, a aldeia mergulhou na fome até ao
pescoço.
«As crianças gritam, não dormem: de noite também pedem pão. As caras
das pessoas são como a terra, os olhos turvos, bêbedos. Andam sonolentas,
tateiam o chão com os pés, agarram-se com as mãos às paredes. Cambaleiam
de fome. Já andam menos, ficam deitadas. E deliram sempre com o rangido
de carroças – é Stálin que mandou farinha do centro distrital, para salvar as
crianças.
«As mulheres mostravam-se mais fortes do que os homens, agarravam-se
melhor à vida. E calhou-lhes mais sofrimento: é às mães que as crianças
pedem de comer. Algumas mulheres convencem os filhos, beijam-nos: «Não
griteis, aguentai, onde vou arranjar comida?» Outras ficam como enfurecidas:
«Para de ganir, mato-te!» – e batiam-lhes, para que não pedissem. E havia
mulheres que fugiam de casa, escondiam-se em casa dos vizinhos para não
ouvirem os gritos dos filhos.
«Já não havia cães nem gatos na aldeia – comeram-nos. Também era difícil
apanhá-los – tinham medo das pessoas, tinham olhos loucos. Coziam-nos,
eram só tendões, das cabeças faziam galantina.
«A neve derreteu, e as pessoas começaram a inchar, o inchaço da fome –
caras redondas, pernas como almofadas, barrigas cheias de líquido, não
param de urinar –, mal conseguem sair de casa para o fazer. E as crianças
camponesas… Viste nos jornais as crianças nos campos de concentração
alemães? Tal e qual: cabeças como balas de canhão, pesadas, pescoços finos
como os da cegonha, ossos a transparecerem da pele nos braços e nas pernas,
vê-se tudo, como se mexem, onde se juntam, todo um esqueleto coberto de
pele como gaze amarela. E as caras das crianças são senis, extenuadas, como
se as criancinhas já vivessem há setenta anos na terra, e na primavera já não
eram rostos: ora uma cabecinha de pássaro com bico, ora um focinho de rã –
lábios finos, esticados –, e alguns como peixinhos com as bocas abertas.
Caras não humanas, e os olhos, meu Deus! Meu Deus, camarada Stálin, viste
esses olhos? Se calhar, realmente ele não sabia, já que escreveu um artigo
sobre “voltas à cabeça”.
«O que é que não se comia nesse tempo! Ratos, ratazanas, gralhas, pardais,
formigas, minhocas. Começaram a triturar ossos e a fazer disso farinha,
cortavam o couro, as solas, as peles velhas, fedorentas, coziam a cola.
Quando as ervas brotaram, começaram a tirar da terra raízes, a cozer folhas,
rebentos, marchava tudo: dente-de-leão, bardana, campânula, epilóbio,
pequena-angélica, branca-ursina, urtiga… Secavam folhas de tília, moíam-
nas e faziam farinha, mas na nossa terra havia poucas tílias. As panquecas de
tília são verdes, piores que as de bolotas.
«E não havia ajuda! Mas já nem a pediam. Ainda hoje, quando começo a
pensar nisso, fico doida – será que Stálin virou as costas ao povo? Atrever-se
a um assassínio tão terrível! É que Stálin tinha pão. Portanto, estavam a matar
pessoas à fome propositadamente. Não queriam ajudar as crianças. Stálin
seria pior do que Herodes? Será que tirou o pão e os cereais às pessoas para
as matar à fome? Não, isso é impossível! Mas depois penso: foi, foi o que
aconteceu! E logo a seguir: não, não era possível!
«Bem, enquanto ainda tinham forças, iam através do campo até ao caminho
de ferro, mas não à estação, lá os guardas não os deixavam passar, apenas até
à beira da linha dos comboios. Quando o expresso Kíev-Odessa aparecia,
punham-se de joelhos e gritavam: pão, pão! Algumas pessoas levantavam nas
mãos os seus filhos medonhos. E por vezes os passageiros atiravam-lhes
bocados de pão, restos de comida. O pó assenta, o estrondo do comboio
desaparece ao longe, e a aldeia põe-se a rastejar ao longo da linha, à procura
de côdeas. Mas depois foi dada uma ordem: quando o comboio atravessava
terras famintas, a guarda do comboio fechava as janelas e as cortinas. Não
deixava que os passageiros olhassem pelas janelas. Aliás, os próprios aldeões
deixaram de ir à linha, já não havia forças para chegar aos carris, nem sequer
para sair de casa.
«Lembro-me que um velho trouxe ao presidente do kolkhoze um pedaço de
jornal, apanhou-o na linha. Com uma notícia: um francês, ministro famoso,
chegou de visita, e levaram-no à região de Dniepropetrovsk, onde a fome era
a mais terrível, ainda pior do que na nossa terra, ali as pessoas comiam
pessoas. Pois bem, levaram o ministro a uma aldeia, mostraram-lhe o jardim
de infância de um kolkhoze, e ele perguntou: «O que é que comeram ao
almoço?» E as crianças responderam: «Canja de galinha com pastel e
almôndegas de arroz.» Li-o com os meus próprios olhos, estou a ver ainda
esse bocado do jornal como se fosse ontem. O que é isto? Estão a matar às
escondidas milhões de pessoas e enganam todo o mundo! Canja de galinha!
Almôndegas! Enquanto aqui exterminaram todas as minhocas para as
comerem. E o velho disse ao presidente do kolkhoze: nos tempos do czar
Nicolau, os jornais escreviam sobre a fome para todo o mundo. Ajudem, os
camponeses morrem de fome! Mas vocês, seus Herodes, estão a fazer teatro?
«A aldeia uivava, via a sua própria morte à frente dos olhos. Uivava toda,
em coro – não uivava com o pensamento nem com a alma, mas como as
folhas ramalhando ao vento, ou como a palha range. Naquela altura, irritava-
me: porque uivam tão lastimosamente? Já não são gente mas continuam a
queixar-se? É preciso ter um coração de pedra para ouvir este uivo e
continuar a comer o pão da ração. Às vezes vou ao campo com a minha
ração, e ouve-se aquilo: o uivado. Sigo em frente, parece que já se silenciou,
continuo a andar, mas ouve-se de novo com toda a força – é a aldeia vizinha
que uiva. E parece que toda a terra levantou um uivo juntamente com as
pessoas. Deus não existe, quem os ouvirá?
«Um homem do NKVD disse-me: “Sabes o que dizem no centro regional
das vossas aldeias? Cemitérios da escola severa.” A princípio, nem percebi
estas palavras…
«E que bom tempo fazia! No início do verão eram chuvas, rápidas, leves, o
sol quente misturado com chuva – por isso o trigo erguia-se denso, como uma
parede, alto, acima da estatura humana. De cortar ao machado. Nesse verão
fartei-me de admirar o arco-íris e as tempestades, e a chuva tépida.
«No inverno, pensavam numa única coisa: haverá colheita? Faziam
perguntas aos velhos, recordavam os augúrios – toda a esperança se
depositava no trigo de inverno. E as esperanças justificaram-se, mas não
puderam fazer a colheita. Passei por uma isbá. As pessoas estão deitadas, ou
respiram ainda, ou já não respiram, um na cama, outro no catre do fogão, e a
filha dos donos de casa – conhecia-a – está no chão em delírio, trinca a perna
do banco. E foi assustador – ouviu-me entrar, não olhou, mas rosnou como
um cão quando trinca um osso e alguém se aproxima dele.
«A morte começou a ceifar a aldeia. Primeiro foram as crianças, os velhos,
depois a meia-idade. No início ainda enterravam os mortos, depois deixaram
de fazê-lo. Os mortos ficavam esquecidos nas ruas, nos quintais, e os últimos
dentro das casas. Caiu o silêncio. Toda a aldeia morreu. Quem foi o último a
morrer, não sei. Nós, empregados da administração, fomos transferidos para a
cidade.
«Fui parar, primeiro, a Kíev. Por esses dias começaram a vender pão. Que
confusão! As pessoas iam para as bichas ainda de noite, bichas de meio
quilómetro. Essas filas, por acaso, podem ser diferentes – numa, as pessoas
esperam calmamente, riem-se, comem sementes de girassol; noutra, escrevem
o seu número no papel; numa terceira, onde não brincam, escrevem o número
na palma da mão ou nas costas, a giz. Mas ali as bichas eram especiais –
nunca mais veria nada parecido. As pessoas abraçavam-se pela cintura e
ficavam assim, apertadinhas. Se alguém tropeçava, toda a bicha cambaleava,
parecia que uma onda passava por ela. E começava como que uma dança, de
um lado para o outro. E cada vez mais. Tinham medo de lhes faltarem as
forças para se agarrarem ao da frente e que as mãos se desapertassem. E esse
medo fazia com que as mulheres começassem a gritar e toda a bicha a uivar.
Depois parecia que toda a gente tinha enlouquecido, mas era como se
cantasse e dançasse. Ou então apareciam os jovens desordeiros, irrompendo
contra a fila, depois de estudarem onde seria mais fácil romper a cadeia. E
quando eles apareciam, toda a gente voltava a uivar de medo, mas parecia
que cantavam. Quem fazia bichas para comprar pão eram citadinos sem
direito ao racionamento, ou sem passaporte, ou então os vindos dos
subúrbios.
«Entretanto, o campesinato está a arrastar-se para a cidade. Nas estações de
comboios há cordões, buscas em todas as carruagens. Nas estradas, barreiras
por todo o lado – tropas, NKVD –, mesmo assim os famintos conseguem
chegar a Kíev, rastejando pelo campo, pelos descampados, pelos pântanos,
pelas florestas, arranjando maneira de contornar as barreiras nas estradas. Já
não se aguentavam nas pernas, rastejavam. O povo anda depressa, trata da
sua vidinha, alguns vão trabalhar, outros ao cinema, os elétricos correm, e os
famintos gatinham no meio das pessoas – crianças, homens, raparigas –, e
parece que não são gente, mas cãezinhos ou gatos nojentos. Mas a criatura
ainda quer ser como um humano, tem pudor – uma moça intumescida anda
como um macaco, a ganir, mas compõe a saia, tem vergonha, esconde o
cabelo sob o lenço; é da aldeia, foi a Kíev pela primeira vez. Mas quem
chegou à cidade foram os felizardos, um em cada dez mil. Mesmo para estes
não há salvação – um faminto está no chão, silva, pede, mas não pode comer,
uma fatia de pão está ao lado, mas o homem já não vê nada, está nas últimas.
«De manhã, plataformas puxadas por cavalos de carga andavam pela
cidade, apanhavam os corpos dos que morreram de noite. Vi uma dessas
plataformas cheia de crianças. Crianças como já disse: fininhas,
compridinhas, caritas como as dos pássaros mortos, bicos agudos. Esses
pássaros voaram até Kíev, mas para quê? E havia quem ainda piasse, as
cabecinhas mexiam-se, como que cheias de água. Perguntei ao carroceiro,
mas ele apenas abanou a mão: vão aquietar-se antes de eu chegar ao lugar.
Vi: uma rapariga rastejou, atravessando o passeio, um guarda-varredor deu-
lhe um pontapé, ela rolou para a calçada. Não olhou sequer, gatinhou
depressa, depressa, onde é que arranja ainda forças? Ainda sacudiu o pó do
vestido, não o queria sujo. Nesse mesmo dia, comprei um jornal de Moscovo,
li um artigo de Maksim Górki dizendo que as crianças precisavam de
brinquedos cultos. Górki não saberia das crianças que os cavalos levavam
para a lixeira – os brinquedos eram para elas, então? Ou saberia? E se se
calasse, como toda a gente se calava. Ou então escrevesse, como outros
escreviam, que essas crianças mortas comiam canja de galinha. O carroceiro
disse-me: a maioria dos mortos encontra-se ao lado da venda de pão – o
inchado mastiga um bocado de pão e morre. Esta Kíev ficou-me na memória,
embora passasse lá apenas três dias.
«O que eu percebi: a princípio, a fome impele a pessoa a sair de casa. Nos
primeiros tempos, a fome é como fogo, queima, morde, tortura, rasga os
intestinos e a alma – então, a pessoa foge de casa. Cava minhocas, colhe
ervas, até consegue penetrar em Kíev. E tem sempre a ânsia de fugir para
longe de casa. Mas chega o dia em que o faminto rasteja de volta a casa.
Significa que a fome o venceu, e o homem já não tem medo, deita-se na cama
e fica imóvel. E, uma vez que a fome levou a melhor, não é possível fazê-lo
levantar-se, não só porque não tem forças, mas porque não tem interesse, não
quer viver. Fica quieto – não me toques. Não lhe apetece comer, não para de
urinar e tem diarreia, e o faminto torna-se sonolento, que não lhe toquem, que
haja sossego. Os famintos ficam deitados e morrem aos poucos. Os
prisioneiros de guerra contaram a mesma coisa – se um soldado prisioneiro se
deitar na tarimba e deixar de querer a ração, significa que a sua morte está
próxima. Mas alguns enlouqueciam, não se acalmavam até ao fim. Eram
reconhecíveis pelos olhos – brilhavam. Essas pessoas cortavam os mortos e
coziam-nos, matavam os seus próprios filhos e comiam-nos. Quando o ser
humano morria nessas pessoas, erguia-se a fera. Vi uma mulher, trazida sob
escolta ao centro distrital: uma cara humana, mas os olhos de lobo. Diziam
que esses canibais eram todos fuzilados. Mas eles não têm culpa, a culpa é de
quem leva uma mãe a comer os seus filhos. Onde estão então os culpados?
Pergunta a quem quiseres, ninguém sabe. Porque foi a bem de todos que as
mães foram levadas a isso.
«Então, percebi – qualquer faminto é uma espécie de canibal. Come a sua
própria carne, ficam apenas os ossos, come a gordura até à última gota.
Depois, a mente dele fica obscurecida – quer dizer, comeu também o cérebro.
O faminto comeu-se a si próprio, todo.
«Também pensei: cada faminto morre à sua maneira. Numa casa, é uma
guerra, espiam-se uns aos outros, arrancam as migalhas uns aos outros. A
mulher contra o marido, o marido contra a mulher. A mãe odeia as crianças.
Mas noutra casa o amor é inabalável. Conheci uma mulher, mãe de quatro
filhos, a quem conta histórias para que esqueçam a fome, e já mal consegue
mexer a língua, pega-lhes ao colo, embora quase não tenha forças para
levantar as mãos vazias. Mas o amor continua vivo nela. Também se
observou que, onde há ódio, se morre mais depressa. Aliás, amor é amor, mas
também não salvou ninguém, toda a aldeia morreu. Não há vivos.
«Fiquei a saber mais tarde: a nossa aldeia tornou-se silenciosa. Nem vozes
de crianças se ouvem. Já não precisam de canja de galinha nem de
brinquedos. Não uivam. Não há ninguém para uivar. Contaram-me que foram
os soldados que ceifaram o trigo, só que não os deixaram entrar na aldeia,
viviam fora, em tendas. Explicaram-lhes que acontecera uma epidemia. Mas
eles queixavam-se de que chegava um cheiro terrível das aldeias. Foram
também as tropas que semearam o trigo de outono. No ano seguinte,
trouxeram colonos da região de Oriol – porque a terra é ucraniana, terra
negra, enquanto na zona de Oriol a colheita é sempre fraca. Deixaram
mulheres com crianças em barracas, na estação, e levaram os homens à
aldeia. Deram-lhes forquilhas e mandaram-nos entrar nas casas e retirar os
corpos – os mortos estavam lá, homens e mulheres, no chão, nas camas. O
cheiro era terrível. Os homens cobriram os narizes e as bocas com lenços, e
foram tirar os corpos, mas os corpos desfaziam-se aos bocados. Depois,
enterraram esses bocados por trás da aldeia. Foi então que percebi o que era
“o cemitério da escola severa”. Quando livraram as isbás dos mortos, levaram
para lá as mulheres, para lavarem o chão, para caiarem as paredes. Fizeram
tudo como devia ser, mas o cheiro persistia. Caiaram uma segunda vez,
cobriram o chão com um novo estrato de argila, mas o cheiro não
desapareceu. Não eram capazes de comer nem de dormir nessas casas,
voltaram para a região de Oriol. Mas é evidente que a terra não ficou vazia, é
uma grande terra!
«Como se aquelas pessoas nunca tivessem vivido. Mas viveram, e havia
muita coisa na sua vida. O amor, as mulheres que abandonavam os maridos,
os pais que casavam as filhas, as brigas dos bêbedos, as visitas, a cozedura do
pão… E que grandes trabalhadores eram! E cantavam. E as crianças andavam
na escola… E o cinema ambulante vinha, até os mais velhos iam ver os
filmes.
«E não restou nada. Mas onde está essa vida, onde está esse terrível
sofrimento? Será que não resta nada? Será que ninguém vai ser
responsabilizado por tudo isso? Será tudo esquecido, não ficará nada na
memória? E a terra cobrirá as pegadas?
«Olha, a nossa noite já passou, amanhece. Está na hora de nos levantarmos,
de irmos trabalhar.»
41 GPU – Direção Política do Estado. (N. dos T.)
15

A voz de Vassili Timoféevitch não era alta, os gestos eram indecisos.


Quando começava a falar com Ganna, ela baixava os seus olhos castanhos e
respondia em voz baixinha, quase não se ouvia.
Depois do casamento, ficaram ainda mais envergonhados: ele, homem de
cinquenta anos, a quem as crianças vizinhas tratavam por «avô», tinha
vergonha porque, tendo careca e cabelo branco, se casou com uma jovem e,
feliz no seu amor, sussurrava, olhando para ela: «Minha pombinha…
alminha». Ela, dantes, ainda miúda, imaginava o futuro marido: era Chiors42
e, ao mesmo tempo, o melhor tocador de concertina da aldeia, e escrevia
poesias que tocavam a alma como as de Tarás Chevtchenko43. Mas o seu
meigo coração compreendeu a força do amor do tímido homem idoso,
azarento, pobre e que nunca tinha vivido para si próprio, mas para os outros.
Ele também compreendia a jovem esperança da rapariga: virá um cavaleiro
aldeão e tirá-la-á da casa apertada do padrasto… Mas foi ele, de botas velhas,
com grandes e escuras mãos de campónio, tossicando com ar culpado, foi ele
que veio buscá-la, e agora está a olhar para ela com adoração, felicidade,
culpa, amargura. E ela também se sente culpada para com ele, e está meiga,
taciturna.
E o filho deles, Gricha, nasceu quieto, nunca chorava, e a mãe que, depois
do parto, parecia uma miúda magrinha, à noite ia junto do berço e, ao ver que
o bebé tinha olhos abertos, dizia-lhe:
– Mas chora pelo menos um pouquinho, Gríchenka, porque estás sempre
caladinho?
Também em casa os esposos falavam a meia-voz, e os vizinhos
espantavam-se:
– Porque falais tão baixo?
Coisa estranha: ela, jovem mulher, e ele, idoso e feio, eram muito parecidos
nos corações dóceis, na timidez.
Nunca se recusavam a trabalhar e até tinham vergonha de suspirar quando
o chefe da equipa os mandava ao campo injustamente, quando não era a vez
deles.
Um dia Vassili Timoféevitch foi levar o presidente do kolkhoze ao centro
distrital e, enquanto o presidente estava na repartição de terrenos e na das
finanças, ele atou os cavalos ao frade, entrou na loja e comprou uma prenda
para a mulher: doces de papoila, rebuçados, roscas, avelãs, um pouco, cento e
cinquenta gramas de cada coisa. Quando entrou em casa e desatou o lenço
branco, a mulher bateu os braços com uma alegria infantil e gritou: «Ah,
mãezinha!» E Vassili Timoféevitch, envergonhado, saiu ao átrio para que ela
não lhe visse os olhos felizes, cheios de lágrimas.
Pelo Natal, ela bordou-lhe uma camisa e nunca chegou a saber que Vassili
Timoféevitch Karpenko quase não dormiu naquela noite, ia descalço até à
cómoda, em cima da qual estava a camisa, acariciava-a com a mão, tateava o
ornamento simplório. Foi buscar a mulher à maternidade do hospital distrital,
ela tinha o filho ao colo, e parecia a Vassili Timoféevitch que não esqueceria
este dia nem que chegasse a viver mil anos.
Por vezes, sentia um pavor: seria concebível que uma felicidade daquelas
tivesse acontecido na sua vida, seria imaginável acordar assim a meio da
noite, escutar a respiração da mulher e do filho?
Uma pessoa pacata como ele, acanhada para com toda a gente, tinha direito
a esta felicidade?
Mas era verdade. Voltava do trabalho e via uma fraldinha a secar em cima
da sebe e um fuminho a sair da chaminé. Olhava para a mulher – estava
inclinada por cima do berço, ou a pôr na mesa um prato de borch e a sorrir a
qualquer coisa, olhava para as mãos dela, para o cabelo saindo de baixo do
lenço, ouvia-a a falar do bebé caladinho, ou da ovelha dos vizinhos. Às vezes,
ela saía ao átrio, e Vassili Timoféevitch tinha saudades, até se aborrecia à sua
espera, e quando ela voltava ficava feliz, e a mulher, ao apanhar o seu olhar,
sorria meiga e tristemente para ele.
Vassili Timoféevitch morreu primeiro, dois dias antes do pequeno Gricha.
Tinha dado quase todas as migalhas à mulher e ao filho, por isso morreu
antes deles. Provavelmente, não havia no mundo um sacrifício maior do que
o dele nem um desespero maior do que o que ele viveu, olhando para a
mulher desfigurada pela inchação mortal e para o filho moribundo.
Até à sua última hora, não censurou nem sentiu ira em relação à grande e
absurda coisa que o Estado e Stálin cometeram. Nem sequer fez a pergunta:
«Por culpa de quê?», qual a culpa por que ele e a mulher, meigos, submissos,
laboriosos, e o seu quietinho filho de um ano foram condenados à tortura da
morte pela fome.
Os esqueletos de farrapos apodrecidos passaram o inverno juntos. O
marido, a mulher, o filho pequeno, não separados depois da morte,
esboçavam sorrisos brancos.
Depois, na primavera, quando os estorninhos chegaram, um representante
da repartição de terrenos entrou em casa, tapando o nariz com o lenço, passou
os olhos pela candeia de querosene sem campânula, pelo ícone, pela cómoda,
pelos potes frios e pela cama, e disse:
– Aqui há dois e um garoto.
O chefe da equipa, parado no sagrado umbral do amor e da meiguice,
acenou com a cabeça, fez um apontamento numa tira de papel.
Saindo para o ar livre, o responsável olhou para as casas brancas, para os
pequenos pomares verdes e disse:
– Quando tirarem os cadáveres, não fará qualquer sentido reconstruir estas
ruínas.
E o chefe da equipa voltou a assentir.
42 Nikolai Chiors (1895-1919) – herói da guerra civil de 1918-1920, comunista.

43 Tarás Chevtchenko (1814-1861) – poeta, pintor, pensador, democrata revolucionário ucraniano. (N.
dos T.)
16

No trabalho, Ivan Grigórievitch ouviu histórias de subornos no tribunal


municipal, ouviu que na escola de radiotécnica era possível comprar
avaliações durante os exames de concurso, que o diretor da fábrica vendia
metais deficitários às cooperativas que produziam artigos de amplo consumo,
que o gerente do moinho, com dinheiro roubado, construíra uma casa de dois
pisos com parquê de carvalho, que o chefe da polícia pusera em liberdade um
famoso vigarista joalheiro, exigindo aos seus parentes o inverosímil suborno
de seiscentos mil rublos, ouviu que o próprio pai e patrão da cidade – o
primeiro secretário do comité distrital do partido – podia, por uma concussão,
dar ordem ao presidente do soviete urbano para conceder a tal e tal pessoa um
apartamento num prédio novo, na rua principal.
Uma manhã, os inválidos ficaram febris. Souberam da notícia sobre a
deliberação do tribunal da região no processo do fiel de armazém da mais rica
cooperativa da cidade, a «Artigos de pele». A cooperativa fabricava peliças,
casacos de inverno para as senhoras, gorros de pele de rena e de caraculo. E,
embora o principal acusado fosse um modesto fiel de armazém, o processo
foi grandioso – como um polvo, abraçou a vida e o trabalho de toda a cidade.
Há muito que estavam à espera da decisão do tribunal, discutia-se sobre isso
durante as horas de almoço. Havia quem afirmasse que o juiz de instrução
para os casos de importância especial, vindo de Moscovo, não teria medo de
tornar pública a conivência no crime de toda a administração da cidade.
Até as crianças sabiam que o procurador da cidade andava num automóvel
Volga oferecido pelo fiel de armazém, gago e careca; que para o secretário do
comité urbano do partido foram trazidos de Riga móveis oferecidos pelo fiel
de armazém: duas mobílias completas, uma de quarto de dormir e outra de
sala de jantar; que a esposa do chefe da polícia foi, por conta do fiel de
armazém, de avião à zona balnear de Ádler44, onde passou dois meses numa
casa de repouso do Conselho de Ministros, e que no dia da partida lhe foi
oferecido um anel de esmeralda.
Outros, céticos, diziam que o moscovita não se ia atrever a implicar no
processo os patrões da cidade e que toda a responsabilidade recairia sobre o
fiel de armazém e a direção da cooperativa.
De repente, o filho do fiel de armazém, estudante universitário, chegou de
avião do centro regional e trouxe uma notícia inesperada: o juiz de instrução
fechara o processo por ausência de corpo de delito, o fiel de armazém fora
posto em liberdade, o compromisso de não sair da cidade que o presidente e
dois membros da direção da cooperativa assinaram fora anulado.
Por qualquer razão, a decisão do importante jurista de Moscovo fez rir todo
o pessoal inválido – tanto os céticos como os otimistas. Durante a hora de
almoço, os incapacitados comeram pão, chouriço, tomates e pepinos, riram e
brincaram – a fraqueza humana do juiz de instrução para os processos de
maior importância e o poder absoluto do fiel de armazém gago e careca
pareceu-lhes cómica.
Ivan Grigórievitch pensou: não foi absolutamente por acaso que o caminho
aberto pelos homens desinteressados, pelos apóstolos descalços e fanáticos da
comuna, acabou por guindar ao poder gente pronta a quaisquer vigarices para
ter uma rica casa de campo, um carro, uma bolsa bem cheia.
À noite, depois do trabalho, Ivan Grigórievitch passou pela policlínica e foi
ao gabinete do médico de que Anna Serguéevna lhe falara. O médico já
acabara as consultas e estava a tirar a bata.
– Doutor, gostaria de saber do estado de saúde de Anna Serguéevna
Mikhaliova.
– Mas quem é você, o marido, o pai dela? – perguntou o doutor.
– Não, não sou parente dela, mas é a minha amiga íntima.
– Bem – disse o doutor –, nesse caso posso dizer-lhe: tem cancro de
pulmão. Nisso ninguém pode ajudar, nem o sanatório nem o cirurgião.
44 Cidade na costa do Mar Negro. (N. dos T.)
17

Passaram três semanas e Anna Serguéevna foi hospitalizada.


À despedida, disse a Ivan Grigórievitch:
– Pelos vistos, não nos foi destinada a felicidade neste mundo.
Durante o dia, quando Ivan Grigórievitch não estava em casa, a irmã de
Anna Serguéevna veio e levou Aliocha para a aldeia.
Ivan Grigórievitch entrou no quarto vazio. Silêncio. Pareceu-lhe que,
depois de ter vivido sozinho toda a vida, apenas nesta noite sentia a sério a
sua solidão.
Durante a noite não dormiu, pensou. Não foi destinado… Apenas a sua
longínqua infância lhe parecia cheia de luz.
Nos últimos dias, quando a felicidade o olhou nos olhos, lhe soprou na
cara, avaliou com toda a clareza a vida que lhe tinha calhado.
A dor que lhe causava a consciência da sua absoluta impotência, da
impossibilidade de ajudar Anna Serguéevna, de aliviar os seus últimos e
iminentes sofrimentos era muito grande. Então, coisa estranha, encontrou
como que um alívio na sua desgraça, refletindo nas dezenas de anos vividos
nas prisões e nos campos correcionais.
Pensava nisso, tentava compreender a verdade da vida russa, a ligação entre
os tempos passados e os modernos.
Tinha esperança de que Anna Serguéevna voltasse do hospital, e então ele
contar-lhe-ia tudo o que recordou, no que refletiu, o que compreendeu.
E ela iria partilhar com ele o peso e a clareza da compreensão. A
consolação na sua desgraça, o seu amor estavam nisso.
18

Ivan Grigórievitch recordava muito os meses passados na prisão interna do


NKVD e, depois, na prisão de Butírskaia.
Passou três vezes pela Butírskaia, mas o que se lhe gravou mais na
memória foi o verão de 1937 – ele andara este tempo todo como que no meio
do nevoeiro, semiconsciente, e apenas agora, passados dezassete anos, o
nevoeiro se dispersava – e Ivan começou a ver nitidamente o que acontecera.
As celas do ano trinta e sete estavam superlotadas – onde deviam caber
dezenas foram enfiadas centenas de presos. No ar abafado de julho e de
agosto, as pessoas encharcadas de suor, entorpecidas, estavam deitadas nas
tarimbas, apertadas umas contra as outras: virar-se de noite só era possível
sob a voz de comando do responsável pela cela, comandante da divisão de
cavalaria, todos de uma vez. Até à latrina, iam pisando os corpos, e ao pé
desta dormiam os recém-chegados. O sono neste monstruoso abafo e aperto
parecia mais um desmaio, um delírio tifoso.
Parecia que as paredes da prisão tremiam como as paredes de uma caldeira
sob uma enorme pressão interior. A vida da prisão estrondeava toda a noite
sem parar. No pátio, os carros forneciam cada vez mais presos de caras
lívidas, olhando para o grande reino prisional, os enormes carros negros
rugiam, levando os processados para os interrogatórios na Lubianka, para a
prisão de trânsito de Krásnaia Présnia, para as torturas de Lefórtovo, para os
comboios da Sibéria. Para esses últimos presos os guardas gritavam: «Com
os pertences!» – e os companheiros despediam-se deles. Nos corredores
banhados de uma forte luz elétrica, os pés dos presos arrastavam-se, as armas
da escolta tiniam – e, quando os presos se encontravam no corredor, um deles
era empurrado à pressa para um cubículo, um armário de parede, e ficava lá
no escuro, aguardando.
As janelas das celas estavam tapadas com grossos painéis de madeira, a luz
penetrava de fora por uma frincha estreita, as horas não eram adivinhadas
pelo sol ou pelas estrelas, mas pelo regime prisional. A luz elétrica ardia
todas as vinte e quatro horas, com uma força implacável, parecia que o calor
e o abafo torturantes provinham da incandescência branca das lâmpadas
elétricas. O ventilador uivava dia e noite, mas o ar quente de julho não dava
alívio às pessoas. De noite, o ar enchia os pulmões e o crânio de um feltro
cálido.
De madrugada, as pessoas voltavam dos interrogatórios noturnos,
tombavam extenuadas nas tarimbas, alguns soluçavam, gemiam, outros
ficavam sentados sem se mexerem, olhando em frente com os olhos
dilatados, outros esfregavam pernas inchadas, contavam febrilmente o que se
passara no interrogatório. Alguns eram trazidos, arrastados pelos guardas.
Aqueles que tiveram um interrogatório ininterrupto de muitos dias seguidos
eram levados de maca para o hospital prisional. No gabinete do juiz de
instrução, a cela de ar abafado e fétido parecia um lugar delicioso, as queridas
caras extenuadas dos vizinhos de tarimba eram recordadas com saudade.
Todas essas dezenas, centenas, todos esses milhares e dezenas de milhares
de homens – secretários dos comités distritais e regionais do partido,
comissários militares, chefes das secções políticas, diretores de fábricas e de
economias agrícolas, comandantes de regimentos, divisões, exércitos, navios,
agrónomos, escritores, zootécnicos, funcionários do ministério do Comércio
Externo, engenheiros, embaixadores, guerrilheiros vermelhos, procuradores,
presidentes dos comités das fábricas, professores catedráticos –
representavam toda a diversidade das camadas de vida erguidas pela
revolução. Ao lado de russos, estavam aqui bielorrussos, ucranianos, judeus
da Lituânia e da Ucrânia, arménios, georgianos, letões vagarosos, polacos,
habitantes das repúblicas da Ásia Central. Participaram na revolução e na
guerra civil quando eram soldados, operários, camponeses, estudantes de
universidades e liceus, artesãos que abandonaram o seu ofício. Eles
derrotaram os exércitos de Kornílov, Kalédin, Koltchak, Deníkin, Iudénitch,
Wrangel45, fluíram numa larga corrente das periferias para dentro da Rússia
arruinada e transformada num deserto. A revolução eliminou as quotas
limitativas, os privilégios da fidalguia e as benesses ligadas à riqueza, acabou
com a proibição, para os judeus e outros, de residência fora das zonas
delimitadas, e centenas de milhares de pessoas – camponeses, operários,
artesãos, estudantes, jovens das aldeias de Vólogda e das vilas judaicas –
começaram a mandar nos comités revolucionários, nas TcheKa distritais e
provinciais, nos sovietes de economia nacional, nos comités de provisões, nas
secções da educação política, nos comités de pobres. A construção de um
Estado novo e inédito começou. Vítimas, crueldades, provações – nada tinha
importância, eram em nome da Rússia e da humanidade trabalhadora, em
nome da felicidade do povo trabalhador.
Chegaram os anos trinta, e os jovens participantes na guerra civil tornaram-
se quarentões, ganharam brancas no cabelo. Para eles, a época da revolução,
dos comités de pobres, do primeiro e do segundo congressos da Internacional
Comunista foi um período jovem, feliz e romântico da vida. Estavam nos
seus gabinetes, com telefones e secretários, mudaram as túnicas militares para
casacos e gravatas, andavam de automóveis, ganharam gosto pelos bons
vinhos, pelas casas de repouso em Kislovodsk, pelos cuidados médicos de
doutores famosos. Contudo, a época dos chapéus militares «budiónovka»,
dos casacos de couro de comissário, época do painço, das botas rotas, das
ideias planetárias e da comuna mundial ficou, para eles, o ponto mais alto das
suas vidas. Não foi em prol das casas de campo e dos carros pessoais que
construíram o novo Estado. Foi em nome da revolução. Também em nome da
revolução e da Rússia nova, sem latifundiários nem capitalistas, eram
sacrificadas pessoas, cometiam-se crueldades e violências.
A geração dos soviéticos que foram mortos entre os anos de 1936 e de
1939 não era, obviamente, monolítica.
O primeiro golpe foi assestado aos fanáticos, destruidores do antigo
regime. O seu entusiasmo, o seu fanatismo, a sua abnegação à revolução
residiam no ódio para com os inimigos desta.
Odiavam a burguesia, a fidalguia, os pequeno-burgueses, os traidores da
classe operária – mencheviques e socialistas-revolucionários, os camponeses
ricos, os oportunistas, os militares do ex-exército czarista agora ao serviço do
poder soviético, a venal arte burguesa, o professorado universitário que se
vendeu à burguesia, esses janotas de gravata, os médicos com prática privada,
as mulheres que utilizavam pó de arroz e usavam meias de seda, os
universitários ricos, os padres cristãos ortodoxos e os rabinos, os engenheiros
de boné com cocar, os poetas que, à semelhança de Afanássi Fet46, escreviam
poesias depravadas sobre as belezas da natureza, odiavam Kautsky,
MacDonald47; não leram Bernstein, mas parecia-lhes horrível, embora no
destino deles ecoasse o lema deste homem: o objetivo é nada, o movimento é
tudo.48
Eles estavam a destruir o velho mundo e ansiavam pelo novo, mas eles
próprios não o construíam. Os corações dessas pessoas que inundaram a terra
de um mar de sangue, que acumulavam tanto ódio arrebatado, não tinham
raiva, como os corações de crianças. Eram corações de fanáticos, talvez
doidos. Odiavam em prol do amor.
Tornaram-se aquela dinamite com que o partido estava a destruir a velha
Rússia, desimpedindo o espaço para as novas obras de construção, para o
granito do grande sistema estatal.
Ao lado dos dinamitistas surgiram os primeiros construtores. A ênfase
deles estava orientada para a criação do aparelho partidário-estatal, para a
criação de fábricas, para a construção de caminhos de ferro e estradas, para a
escavação de canais, para a mecanização da nova agricultura.
Eram os primeiros industriais vermelhos, os pioneiros do ferro, da chita,
dos aviões soviéticos. Esses, sem se importarem com os dias e noites sem
sono, com o frio da Sibéria e o calor escaldante do deserto de Karakum,
cavavam os caboucos e erguiam as paredes do arranha-céus.
Gvakhária, Frankfurt, Zaveniáguin, Gugel49…
Poucos deles tiveram uma morte natural.
Ao lado deles, trabalhavam os líderes partidários, fundadores e governantes
das repúblicas, terras e regiões nacionais soviéticas – Póstichev, Kírov,
Vareikis, Betal Kalmikov, Faizulla Khodjáev, Mêndel Khataévitch, Eiche50…
Nenhum deles teve uma morte natural.
Eram pessoas de carateres vivos, notáveis: oradores, eruditos, conhecedores
da filosofia, amantes da poesia, caçadores, hedonistas.
Os seus telefones tocavam dia e noite, os seus secretários trabalhavam em
três turnos, mas, diferentemente dos fanáticos e sonhadores, sabiam também
descansar – gostavam de casas de campo espaçosas, da caça ao javali e às
cabras monteses, dos alegres almoços domingueiros de muitas horas, de
conhaque arménio e de vinhos georgianos. Já não usavam no inverno os
casacos de couro rotos, e a gabardina das suas túnicas militares estalinistas
era mais cara do que a fazenda inglesa.
Todos eles se destacavam pela energia, pela força de vontade e por uma
completa desumanidade. Todos eles – admiradores da natureza, amadores da
poesia e da música, brincalhões – eram desumanos.
Para eles, era claro que o mundo novo estava a ser construído para o povo.
Não os embaraçava o facto de que, entre os obstáculos que impediam a
construção do mundo novo, os mais difíceis eram os próprios operários,
camponeses, intelectuais.
Por vezes parecia que a potente energia, a inflexível vontade e a crueldade
sem limites dos líderes do mundo novo eram encaminhadas precisamente
para os esforços de obrigar o homem a trabalhar acima das suas forças,
fazendo ainda horas suplementares, sem feriados, a viver semifaminto, a
dormir em barracas, a ter um salário miserável, pagando ao mesmo tempo
impostos indiretos, empréstimos, tributos inéditos na história.
Além disso, o homem estava a construir o que lhe era inútil – o canal Mar
Branco-Báltico, minas no Ártico, caminhos de ferro polares, fábricas de
indústria pesada, escondidas na taiga, centrais hidroelétricas superpotentes no
meio do deserto da taiga. Muitas vezes parecia que não só para os homens,
mas para o próprio Estado, essas fábricas, esses mares e canais desertos eram
inúteis. Por vezes parecia que essas potentes obras de construção serviam
apenas para agrilhoar com um duro trabalho milhões de seres humanos.
Marx, Lénin, o maior dos marxistas, e Stálin, grande continuador da causa
deles, consideravam que a primeiríssima verdade da doutrina revolucionária
era a prioridade da economia em relação à política.
E ninguém entre os construtores do mundo novo refletiu no facto de que,
construindo as enormes fábricas pesadas inúteis para as pessoas e muitas
vezes para o Estado, estavam a refutar a tese de Marx.
Era a política, e não a economia, que estava na base do Estado fundado por
Lénin e construído por Stálin.
A política determinava o conteúdo dos planos quinquenais de Stálin, o
plano das grandes obras. A política triunfava completamente sobre a
economia em todas as ações de Stálin, do seu governo, do seu departamento
de planificação, do seu ministério da agricultura, do seu comité de
aprovisionamento, do seu ministério do comércio.
Os construtores, diferentemente das convicções da época da guerra civil,
não achavam que estava a realizar-se uma revolução mundial, uma comuna
universal. Mas acreditavam que o socialismo construído num só país, na
Rússia nova, era a aurora do dia socialista de todo o globo terrestre.
Mas chegou o ano de 1937, e as prisões ficaram cheias de centenas de
milhares de pessoas que pertenciam à geração da revolução e da guerra civil.
Foram elas que salvaram o Estado soviético, eram os seus pais e, ao mesmo
tempo, os seus filhos. Mas as prisões que construíram para os inimigos da
Rússia nova abriram-se para eles próprios, a terrível potência do regime por
eles criado recaiu sobre eles próprios, a força punitiva da ditadura, a espada
da revolução, forjada por eles, tombou sobre as suas cabeças. A muitos deles
pareceu que chegara o caos de uma qualquer loucura.
Para que foi que lhes arrancaram à força as confissões de crimes que nunca
cometeram, para que foi que os declararam inimigos do povo e os isolaram
da vida que eles próprios construíram e defenderam em combate?
Parecia-lhes uma loucura serem igualados àquela gente que eles odiavam e
desprezavam, que tinham exterminado com um cruel fanatismo, como cães
raivosos.
Foram parar a celas e barracas para ficar ao lado dos mencheviques, de ex-
industriais e ex-latifundiários que eles próprios não chegaram a exterminar.
A alguns deles parecia que acontecera um golpe de Estado, que o poder
tinha sido conquistado pelos inimigos que agora, utilizando a linguagem e os
conceitos soviéticos, estavam a dar cabo das pessoas que idearam e
construíram o Estado soviético.
Acontecia que nas tarimbas prisionais, lado a lado, estavam: um secretário
do comité distrital do partido, inimigo do povo desmascarado, e um novo
secretário do comité distrital que o desmascarou e, pouco tempo depois,
também ele foi desmascarado como inimigo do povo; passado um mês
aparecia na cela um terceiro, secretário do comité distrital que desmascarou o
segundo e, a seguir, também desmascarado como inimigo. Tudo se confundiu
– o estrondo e o tinido das rodas de comboios que iam para o Norte, os
latidos dos cães da guarda, o rangido das botas e dos sapatos leves das
senhoras pela crepitante neve da taiga, o rangido das penas dos juízes de
instrução, o rangido das pás na terra gelada, pás que abriam buracos para
enterrar pessoas mortas de escorbuto, de um ataque cardíaco, ou geladas; os
discursos de arrependimento daqueles que pediam condescendência nas
reuniões do partido e que repetiam com os lábios brancos e mortos em frente
do juiz de instrução: «Confesso que eu, feito agente a soldo dos serviços de
reconhecimento estrangeiros e incitado pelo meu ódio animalesco a tudo o
que é soviético, preparei atos terroristas contra as personalidades do Estado
soviético, forneci informação secreta a…»
O estrondo de tiros de pistola e de espingarda soava abafado pela pedra de
Butírskaia e Lefórtovo – nove gramas de chumbo no peito ou na nuca
daqueles milhares, dezenas de milhares de inocentes que foram
desmascarados em atos de terrorismo ou espionagem da maior gravidade.
Os construtores do mundo novo, ainda em liberdade, conjeturavam: «Vou
preso, não vou preso?» Toda a gente vivia à espera do toque de campainha
noturno, do farfalhar de pneus de automóvel parando ao portão de sua casa.
No caos, no absurdo, na loucura das acusações falsas, a geração da guerra
civil ia-se embora, novos tempos e nova gente chegavam.
45 Dirigentes das forças militares que lutaram contra o Exército Vermelho durante a guerra civil. (N.
dos T.)

46 Afanássi Fet (1820-1892) – poeta lírico russo. (N. dos T.)

47 Karl Kautsky (1854-1938) – um dos líderes e teóricos da social-democracia alemã e da II


Internacional. James MacDonald (1866-1937) – político e homem de Estado da Grã-Bretanha, um dos
líderes do partido trabalhista. (N. dos T.)

48 Palavras de Eduard Bernstein (1850-1932), líder da II Internacional e da ala direita da social-


democracia alemã. (N. dos T.)

49 Gueórgui Gvakhária (1901-1937) – revolucionário, homem de Estado, diretor de uma fábrica


metalúrgica. Avraámi Zaveniáguin (1901-1956) – homem de Estado e do partido soviético, vice-
ministro da Indústria Mecânica. (N. dos T.)

50 Pável Póstichev (1887-1939) – militante do partido comunista soviético, revolucionário e dirigente


sindical antes da revolução. Ióssif Vareikis (1894-1939) – homem de Estado e do partido soviético.
Betal Kalmikov (1893-1940) – um dos organizadores e líderes dos montanheses do Cáucaso do Norte
pelo poder soviético, homem de Estado e do partido soviético. Faizullá Khodjáev (1896-1938), Mêndel
Khataévitch (1893-1937), Robert Eiche (1890-1940) – homens de Estado e do partido soviéticos. (N.
dos T.)
19

Liova Mékler, Lev Mékler… Em liberdade, usava botas quarenta e cinco e


fato da fábrica de Moscovo do tamanho cinquenta e oito. Foi condenado
também pelo artigo 58: crime de lesa-pátria, terrorismo, diversões e mais
algumas insignificâncias.
Pelos vistos, não o fuzilaram porque foi um dos primeiros a ser preso e,
naquela altura, uma grande liberdade de execução de penas capitais ainda não
existia.
Passou, semicerrando distraidamente os olhos míopes, por todos os círculos
do inferno prisional e dos campos correcionais e não morreu porque as
chamas da fé que, desde a adolescência, lhe queimavam as entranhas o
preservaram do frio noturno de quarenta graus negativos e do vento cruel, da
distrofia e do escorbuto; não morreu quando o lanchão cheio de presos se
afundou no rio Enissei; não morreu de diarreia sangrenta.
Os criminosos comuns não o mataram à navalhada, a solitária não deu cabo
dele, o juiz de instrução não o espancou até à morte nos interrogatórios. Não
foi fuzilado durante a depuração em massa quando davam um tiro a cada
décimo na fila.
Donde lhe veio o fanatismo, a este filho de um lojista triste e manhoso da
vila Fastov, aluno de uma escola comercial, leitor dos livros da coleção
«Biblioteca de Ouro» e de Louis Boussenard, como foi que esse potente fogo
do fanatismo surgiu nele? Nem ele nem o pai tinham acumulado ódio ao
capitalismo nas minas ou nas oficinas cheias de fumo e poeira das fábricas.
Quem lhe deu a alma de combatente? O exemplo de Jeliábov e Kaliáev51, a
sabedoria do «Manifesto Comunista», os sofrimentos dos pobres que viviam
ao lado?
Ou, então, essas chamas pesadas, essas brasas, talvez se ocultassem no
abismo milenário da hereditariedade, prontas a levantar fogo na luta contra os
soldados do César romano, contra as fogueiras da inquisição espanhola, no
faminto frenesi da Tora e do Talmude, na autodefesa das milícias judaicas
durante os pogroms nas vilas de província?
Terá sido uma cadeia secular de humilhações, a angústia do cativeiro
babilónico, a humilhação do gueto e a miséria da vida por trás da linha
limítrofe de residência para os judeus que geraram e forjaram a frenética sede
que incandesceu a alma do bolchevique Lev Mékler?
A sua inadaptação à vida do dia a dia provocava ironia e veneração. A
algumas pessoas ele parecia um santo – líder dos jovens comunistas de
sandálias rotas, de camisa de chita com o colarinho desabotoado, sem chapéu,
com a cara coberta de pelos encaracolados; comissário de um regimento
militar de casaco de couro roto, de «budiónovka» com a estrela vermelha
desbotada, pálida, como que exangue. E era assim, esfarrapado, com a barba
por fazer, de gabardina com os botões caídos que Mékler, comissário do povo
da Justiça ucraniana, saía do automóvel e ia para o seu gabinete ministerial.
Parecia desamparado, a caminhar nas nuvens, mas as pessoas lembravam-
se do sentimento religioso com que era ouvido nos tumultuosos comícios da
frente de combate e como os combatentes iam atrás dele sob o fogo das
metralhadoras de Wrangel52.
Era um pregador, um apóstolo e um soldado da revolução socialista
mundial. Em prol da revolução, estava pronto, sem hesitar, a dar a sua vida, o
amor da mulher, de todos os seus familiares. Não prescindia apenas de uma
coisa: da felicidade de sacrificar à revolução tudo o que é precioso na terra
para um ser humano, de ser feliz subindo à fogueira pela revolução.
O futuro reino mundial parecia-lhe infinitamente belo, e em prol dele
Mékler estava pronto à mais implacável violência.
Pela sua natureza, era um homem bondoso, não esmagava a melga que lhe
sugava o sangue, mas enxotava-a com um piparote delicado. Ao apanhar em
flagrante um percevejo, embrulhava-o num papelinho e levava-o para a rua.
O seu serviço a favor do bem e da revolução foi marcado pelo sangue e
pela implacabilidade para com o sofrimento.
Na sua firmeza de princípios revolucionários, meteu na prisão o seu próprio
pai e fez depoimentos contra ele na TcheKa da província. Virou a cara, cruel
e sombriamente, à irmã que lhe pediu proteção para o seu marido sabotador.
Na sua brandura, era implacável para com todos os discordantes. A
revolução parecia-lhe uma criança indefesa, confiante, cercada de perfídia, da
crueldade dos facínoras, da imundície dos depravadores.
E era implacável com os inimigos da revolução.
Apenas uma mancha existia na sua consciência revolucionária: às
escondidas do partido, ajudava a sua velha mãe, viúva do homem fuzilado
pelos órgãos de punição, e quando ela morreu deu dinheiro para o seu funeral
religioso – era esta a última miserável vontade da mãe.
O seu vocabulário, a sua mentalidade, o seu comportamento tinham como
fonte os livros escritos em nome da revolução, o direito revolucionário, a
moral revolucionária, a poesia revolucionária e a sua estratégia, a marcha dos
seus soldados, a sua clarividência, as suas canções.
Era com os olhos da revolução que contemplava o céu estelar e a folhagem
de bétulas primaveris, da sua taça deliciosa bebeu o encanto do primeiro
amor, na sua sabedoria aprendeu a luta entre os patrícios e os escravos, entre
os senhores feudais e os servos da gleba, as batalhas entre os capitalistas e os
proletários. A revolução era a sua mãe, a sua terna namorada, o seu sol, o seu
destino.
Então, a revolução meteu-o na cela da prisão interna, partiu-lhe oito dentes,
pisou-o no chão com botas de oficial, praguejou, chamou-lhe judeu imundo,
exigiu-lhe que ele, filho, namorado e apóstolo dela, se reconhecesse seu
envenenador secreto, seu inimigo mortal.
É claro que não abdicou da revolução, a sua fé não ficou abalada nem por
um segundo nos interrogatórios de cem horas, não tremeu quando, prostrado
no chão, via a ponta da brilhante bota de bezerro junto à sua boca
ensanguentada.
Nesses interrogatórios de muitos dias seguidos, com tortura, a revolução
era bruta, embotada, cruel, a fidelidade e a dócil paciência do bolchevique
Lev Mékler provocavam-lhe fúria.
Assim fica furioso o dono quando o seu cão rafeiro não o larga e ele quer
enxotá-lo. Primeiro estuga o passo, depois grita ao cão e bate os pés, depois
levanta a mão, atira-lhe pedras. O cão afasta-se, para, mas quando o dono, ao
fazer cem passos, olha para trás, vê que o cão mutilado, imutável e
persistente, coxeando e apressando-se, se arrasta atrás dele.
E o mais repugnante e odioso para o dono são os olhos caninos: meigos,
tristes, cheios de amor e abnegação fanática.
Foi este amor que provocou a fúria do dono, o cão viu esta fúria e não
compreendeu a causa dela. Era incapaz de compreender que, cometendo em
relação a ele uma inédita injustiça, o dono queria acalmar, pelo menos um
pouco, a sua consciência. A meiguice, a fidelidade do cão levavam o dono à
loucura, odiava-o por este amor, mais do que aos lobos contra os quais o cão
defendera a casa da sua juventude. O dono queria abafar o amor do cão com a
grosseria.
O cão ia atrás do dono, aturdido com aquela crueldade súbita e inexplicável
do homem.
Porquê aquilo? Qual a culpa dele?
E não conseguia perceber que naquele súbito ódio por ele não havia nada
de absurdo, que tudo era real e razoável.
Manifestavam-se no ódio uma lei natural, uma lógica clara, matemática. No
entanto, ao rafeiro, aquilo afigurava-se-lhe uma alucinação, um absurdo
incompreensível, até tinha medo pelo dono e queria livrá-lo daquela perda da
razão, não por si, mas por ele. Não o podia abandonar porque o amava.
O dono, percebendo que o cão nunca deixaria de o seguir, já sabia que só
lhe restava estrangulá-lo ou dar-lhe um tiro.
Então, para que a execução do cão que o adorava, que o venerava como
deus não lhe oprimisse a consciência nem desse azo à censura dos vizinhos, o
dono resolveu transformar o cão, artificialmente, em seu inimigo – que o cão,
antes de morrer, confesse que queria matar o seu próprio dono.
Matar um inimigo é mais fácil do que matar um amigo.
É que naquela casa, a primeira, casa que construíra no meio de ruínas
sombrias e desertas, casa onde o homem era jovem, a casa das suas orações
puras, o cão era seu amigo, guardião, fiel companheiro.
Então, que o cão confesse que entrou em conluio com os lobos.
Mas o cão, nos seus últimos estertores da morte, sufocado pela corda ao
pescoço, olhou para o dono com meiguice e amor, com uma fé igual àquela
que levava à morte os primeiros mártires cristãos.
O cão nunca chegou a perceber uma coisa simples: o dono abandonara a
casa da sua juventude, casa de embriaguez e de oração, mudara-se para uma
casa nova feita de granito e vidro, e o rafeiro aldeão tornou-se para ele um
fardo absurdo, e não só um fardo – tornou-se desvantajoso para ele. Então,
matou-o.
51 Ivan Kaliáev (1877-1905) – revolucionário terrorista russo. Levou a cabo o atentado contra o grão-
príncipe Serguei, tio do imperador Nicolau II. Foi julgado e executado. (N. dos T.)
52 Piotr Wrangel, barão (1878-1928) – um dos dirigentes do Exército Branco no Sul da Rússia. (N. dos
T.)
20

Passaram os anos, a névoa e a poeira que não deixavam ver claramente o


que estava a acontecer dispersaram-se. As coisas que pareciam um caos, uma
loucura, uma autoexterminação, ou uma coincidência de casualidades
absurdas, as coisas que, com a sua absurdez misteriosa e trágica, faziam as
pessoas enlouquecer, começaram pouco a pouco a definir-se em traços
nítidos, claros e proeminentes de uma vida nova, de uma atividade nova.
O destino da geração da revolução começou a descobrir-se de outro modo,
cheio de lógica, e não misticamente. Apenas agora Ivan Grigórievitch
começava a atingir com a mente o novo destino do país, um destino nascido
sobre os ossos da geração perecida.
Essa geração bolchevique formou-se nos anos da revolução, na época das
ideias da comuna mundial e dos famintos sábados comunistas53. Assumiu a
carga da herança da guerra mundial e da guerra civil – ruína, fome, tifo
exantemático, anarquia, banditismo; declarou, pela boca de Lénin, que havia
um partido capaz de levar a Rússia por um novo caminho. Recebeu, sem
hesitações, o fardo da herança de centenas de anos de arbitrariedade russa, em
que dezenas de gerações nasciam e se iam embora, conhecendo apenas um
direito – o do senhor da gleba.
A geração bolchevique dos tempos da guerra civil participou, sob a chefia
de Lénin, na destruição da Assembleia Constituinte e na liquidação dos
partidos revolucionários e democráticos, aqueles que tinham lutado contra o
absolutismo monárquico russo.
A geração bolchevique dos tempos da guerra civil não acreditava no valor
da liberdade pessoal, da liberdade de expressão e de imprensa nos moldes da
Rússia burguesa.
Como o próprio Lénin, essa geração considerava miseráveis,
insignificantes, aquelas liberdades com que sonhavam muitos operários e
intelectuais revolucionários.
O jovem Estado fez desmoronar os partidos democráticos, abrindo caminho
à construção socialista. No fim dos anos vinte, esses partidos foram
liquidados por completo, e as pessoas que estiveram nas prisões no regime
czarista voltaram a ficar atrás das grades, ou nos trabalhos forçados.
No ano trinta, o machado da coletivização total foi levantado.
Não tardou muito, este machado foi levantado de novo. Desta vez, o golpe
foi assestado à geração da guerra civil. Uma pequena parte desta geração
sobreviveu, mas a sua alma, a sua fé na comuna internacional, a sua
romântica força revolucionária desapareceram com aqueles que foram
liquidados em 1937. Os restantes, que continuaram a viver e a trabalhar,
adaptavam-se aos tempos novos, à gente nova.
Esta nova gente não acreditava na revolução, nem era uma prole da
revolução, era constituída pelos filhos do Estado criado por ela.
O novo Estado não precisou de santos apóstolos, de construtores possessos,
frenéticos, de adeptos fiéis. O novo Estado nem sequer precisou de
servidores, apenas de funcionários. E o problema do Estado consistia em que
os seus funcionários, às vezes, eram uma gente demasiado insignificante e
também avelhacada.
O terror e a ditadura engoliram os seus criadores. E o Estado, que parecia
apenas um meio, acabou por se tornar um fim! As pessoas que criaram este
Estado pensavam que era um meio de concretização do ideal delas. Mas
verificou-se que os seus sonhos e ideais eram apenas um meio do grande e
terrível Estado. O Estado servidor transformou-se num autocrata sombrio.
Não foi o povo que precisou do terror do ano de 1919; não foi o povo que
liquidou a liberdade de imprensa e de palavra; não foi o povo que precisou da
morte de milhões de camponeses – os camponeses eram precisamente a
maior parte do povo; não foi o povo que mandou encher as prisões e os
campos correcionais em 1937; não foi o povo que precisou das deportações
mortíferas para a taiga dos tártaros da Crimeia, dos calmuques, dos balcares,
dos búlgaros e dos gregos russificados, dos tchetchenos e dos alemães do
Volga; não foi o povo que pôs fim à liberdade de semear, ao direito à greve
operária; não foi o povo que estabeleceu o monstruoso descalabro dos preços
relativamente ao custo real das mercadorias.
O Estado tornou-se dono e senhor, o nacional deixou de ser forma
transformando-se em conteúdo, em essência, expulsou o caráter socialista
para o transformar em invólucro, em fraseologia, casca, aparência. Resta a lei
sagrada da vida que se definiu com trágica evidência: a liberdade do homem
está acima de tudo; não há no mundo qualquer objetivo ao qual seja lícito
sacrificar a liberdade humana.
53 Sábados comunistas – uma das formas de trabalho gratuito dos trabalhadores. O primeiro sábado
comunista foi realizado, por iniciativa dos trabalhadores da estação de comboios Moscovo-Kazan, em
abril de 1919. (N. dos T.)
21

Uma coisa estranha. Pensando no ano de 1937, nas mulheres mandadas


para os trabalhos forçados por causa dos maridos, recordando a coletivização
total e a fome nas aldeias, nas leis que puniam os operários com prisão por
causa de um atraso de vinte minutos ao trabalho, que puniam os camponeses
com oito anos de trabalhos forçados por causa de algumas espigas
escondidas, Ivan Grigórievitch não recordava o embigodado homem de botas
e túnica militares.
Recordava Lénin! Como se a sua vida não se tivesse rompido em 21 de
janeiro de 1924.
Ivan Grigórievitch, de vez em quando, apontava as suas reflexões sobre
Lénin e Stálin num caderno escolar deixado por Aliocha.
Todas as vitórias do partido e do Estado estão relacionadas com o nome de
Lénin. Mas Vladímir Lénin arcava também, de modo trágico, com todas as
crueldades que se cometiam no país.
Tanto os acontecimentos nas aldeias como o ano de 1937, como o
aparecimento da nova função pública e dos novos pequeno-burgueses, como
também o trabalho dos presos políticos, eram fundamentados na paixão
revolucionária de Lénin, nos seus discursos, artigos, apelos.
Então, com a passagem dos anos, era como se tudo estivesse a alterar-se
gradualmente: os traços da cara de Lénin, a imagem do estudante
universitário Vladímir Uliánov, do jovem marxista Túlin54, do deportado para
a Sibéria, do revolucionário emigrado, do publicista e pensador Vladímir
Lénin – a imagem do homem que proclamou a era da revolução socialista
mundial, do criador da ditadura revolucionária na Rússia, do homem que
liquidou todos os partidos revolucionários exceto um que lhe parecia o mais
revolucionário, do homem que liquidou a Assembleia Constituinte com
representantes de todas as classes e de todos os partidos da Rússia pós-
revolucionária, do homem que criou os Sovietes em que, na ideia dele,
apenas os operários e os camponeses revolucionários deveriam estar
representados. Os traços de Lénin, conhecidos pelos retratos, iam mudando, a
imagem de Vladímir Lénin, primeiro chefe do governo soviético, modificava-
se sempre.
A causa de Lénin era continuada, e a imagem do falecido Lénin enriquecia-
se com os traços com que se enriquecia a obra começada por ele.
Lénin era um intelectual, nasceu numa família de intelectuais
trabalhadores, os seus irmãos e irmãs eram intelectuais trabalhadores
revolucionários, o seu irmão mais velho Aleksandr55, membro da «Liberdade
do Povo», tornou-se herói e mártir da revolução.
Os autores de memórias referem que, sendo já líder da revolução, fundador
do partido, chefe do governo soviético, era imutavelmente um homem de
hábitos simples.
Não fumava nem bebia, e nem uma vez na vida, pelos vistos, insultou uma
pessoa com palavras obscenas. O seu lazer, as suas horas de descanso eram
puros, à maneira estudantil – música, teatro, livros, passeios. O seu vestuário
era sempre democrático, quase pobre.
Será possível que ele, o mesmo que, de casaco velho e gravata amarrotada
ia para a torrinha do teatro, ouvia a «Apassionata» de Beethoven, lia e relia o
Guerra e Paz, filho querido de sua mãe, adorado pelas irmãs, se tenha
tornado o fundador do Estado que viria a adornar com a sua maior
condecoração, a ordem de Lénin, os peitos de Iagoda, Ejov, Béria, Merkúlov,
Abakúmov?
A condecoração de Lídia Timachuk56 com a ordem Lénin aconteceu por
altura do aniversário da morte de Lénin. O que significava então este facto?
Que a causa de Lénin estava esgotada ou, pelo contrário, que estava a
triunfar?
Os anos de planos quinquenais passavam, dezenas de anos passavam, os
gigantescos acontecimentos cheios de atualidade incandescente
solidificavam-se, fumegando, em rochas cobertas do cimento do tempo,
transformavam-se em história do Estado soviético.

… Os séculos futuros vão completar,


Portanto, o retrato não acabado.57
Será que o poeta compreendia o sentido trágico das palavras que escreveu
sobre Lénin? Os traços do seu caráter, registados pelos biógrafos e
memorialistas, e que pareciam essenciais, que fascinavam milhões de
corações e cérebros, revelaram-se afinal casuais para o decurso da história; a
história do Estado russo não selecionou essas características humanas e
humanistas de Lénin, mas rejeitou-as como lixo inútil. A história do Estado
não precisou da «Apassionata» ouvida com a mão sobre os olhos nem da
adoração do Guerra e Paz, nem do modesto democratismo de Lénin, nem da
sua cordialidade e atitude atenciosa para com o peixe miúdo – secretários,
motoristas –, nem das suas conversas com crianças camponesas, nem do seu
amor pelos animais domésticos, nem da sua dor quando o amigo Mártov58 se
transformou em inimigo.
Pelo contrário, tudo o que foi provisório, ocasional, surgido em função das
circunstâncias peculiares da clandestinidade e do encarniçamento da luta dos
primeiros anos soviéticos, se revelou não transitório e determinante.
Há um traço do caráter de Lénin que é omitido pelos autores de memórias:
o que o levou a dar a ordem de busca à casa de Plekhánov em agonia, um
daqueles traços que determinaram uma completa intolerância em relação à
democracia política – foram esses que ficaram e se desenvolveram.
Um industrial ou um grande comerciante de origem camponesa, vivendo na
sua mansão, viajando no seu iate, mantém os traços do seu feitio camponês –
gosta da sopa de repolho fermentado, de kvas59, da grosseira e certeira palavra
popular. Um marechal de farda bordada a ouro mantém o amor pelo cigarro
improvisado de tabaco barato, lembra-se do humorismo simplório das
máximas dos soldados.
Mas serão essas características e essa memória significativas para os
destinos das fábricas, para a vida de milhões de pessoas ligadas às fábricas
pelo trabalho, pelo movimento das ações e pelo movimento das tropas?
O capital e a glória dos generais não se conquistam com o gosto pela sopa
de repolho ou pelo cigarro de tabaco grosseiro.
Uma das memorialistas descreve um passeio nos montes que fez, um
domingo, na companhia de Vladímir Lénin. Ofegando numa subida abrupta,
chegaram ao cume, sentaram-se numa pedra. Parecia que os olhos de Lénin
absorviam cada minúcia da beleza alpina. A jovem mulher imaginou,
emocionada, que poesia estava a encher a alma daquele homem. De repente,
ele suspirou e pronunciou: «Oh, que porcaria nos andam a fazer os
mencheviques!»
Este lindo episódio diz certas coisas sobre a natureza de Lénin: num prato
da balança está o mundo de Deus, no outro prato a causa do partido.
A Revolução de Outubro selecionou os traços característicos de Lénin de
que ela, revolução, precisava e rejeitou os desnecessários.
No decurso da história do movimento revolucionário russo, os traços de
amor pelo povo, próprios de muitos intelectuais revolucionários russos, com
uma resignação e uma prontidão para o sacrifício que talvez não tivessem
igual desde os tempos da cristandade antiga, misturaram-se com
características diametralmente opostas, mas também próprias de muitos
reformadores revolucionários russos: o desprezo e a implacabilidade em
relação ao sofrimento humano, a veneração do princípio abstrato, a prontidão
em exterminar não só os inimigos mas também os seus próprios
companheiros de causa, mal estes últimos se desviassem do conceito desses
princípios abstratos. A orientação linear e sectária por uma meta, a prontidão
em reprimir a liberdade viva atual em prol de uma liberdade fantasiada, de
violar os princípios morais da vida em prol de um princípio do futuro
manifestavam-se nos carateres de Pestel, Bakúnin, Netcháev60 e em certos
atos e declarações dos militantes da «Liberdade do Povo».
Não, não foram só o amor, não foi só a compaixão que conduziram
semelhantes pessoas pelo caminho da revolução. As fontes desses carateres
residem longe, muito longe, nas profundezas milenárias da Rússia.
Semelhantes carateres existiam também nos séculos passados, mas o século
vinte trouxe-os dos bastidores para o palco principal da vida.
Um caráter assim comporta-se no meio da humanidade como um cirurgião
nas enfermarias da clínica – o seu interesse pelos doentes, pelos seus pais,
mulheres e mães, as suas brincadeiras, a sua luta contra o fenómeno da
infância desamparada, a sua preocupação com os operários que chegaram à
idade de reforma, tudo isso são insignificâncias, treta, casca. A alma do
cirurgião está no seu bisturi.
A essência de semelhantes pessoas assenta na fé fanática na omnipotência
da faca cirúrgica. O bisturi cirúrgico é um grande teórico, um líder filosófico
do século vinte.
Durante a sua vida de cinquenta e quatro anos, Lénin não só ouviu a
«Apassionata», releu o Guerra e Paz, travou conversas cordiais com os
camponeses enviados das aldeias, não só se preocupou com o seu secretário
que não tinha casaco quente, não só admirou a natureza russa. Sim, sim, sem
dúvida – para lá de uma imagem existe uma fisionomia.
E é possível imaginar muitíssimos mais traços e particularidades de Lénin
que se manifestavam no seu dia a dia, o que é inevitável para todas as
pessoas, sejam líderes dos povos, médicos estomatologistas, costureiros de
senhoras.
Esses traços manifestam-se a qualquer hora, quando o homem lava a cara
de manhã, ou come papas, ou olha pela janela para uma mulher bonita com a
saia levantada pelo vento, ou palita os dentes com um fósforo, ou tem ciúmes
pela mulher e provoca os ciúmes dela, ou observa nos banhos as suas
próprias pernas e coça os sovacos, ou lê na casa de banho tiras do jornal,
tentando compor os bocados rasgados, ou solta gases e, para disfarçar o som,
tosse e cantarola.
Coisas destas ou parecidas existem na vida dos grandes homens e dos
pequenos, e existiam com certeza também na vida de Lénin.
Talvez a barriguinha lhe crescesse porque exagerava nos macarrões com
manteiga, preferindo-os aos legumes.
Talvez tivesse disputas, desconhecidas para o mundo, com a sua mulher
Nadejda Krúpskaia por causa da lavagem dos pés e dos dentes, ou porque não
queria mudar a camisa com o colarinho já ensebado.
Então, é possível, ultrapassando os redutos que criam uma imagem
supostamente humana, mas na realidade absolutamente convencional e
elevada do líder, rastejando de barriga, por lanços, chegar até à natureza
simples e verdadeira de Lénin, aquela que nenhum memorialista alguma vez
mencionou.
Mas que proveito terá este conhecimento das características e
particularidades verdadeiras, quotidianas, ocultas da história do
comportamento de Lénin na casa de banho, no quarto de dormir, na sala de
jantar? Será que nos vai ajudar a compreender melhor o líder da Rússia nova,
o fundador da nova ordem mundial? Será que este conhecimento vai
estabelecer uma verdadeira relação entre o caráter de Lénin e o caráter do
Estado que ele fundou? Para isso é preciso estabelecer a suposição de que os
traços de Lénin como líder político são equivalentes aos traços quotidianos
deste homem. Mas semelhante suposição seria absolutamente arbitrária, por
isso não deve ser feita. Porque uma ligação como esta pode ser tanto direta
como inversa.
Por exemplo, nas relações pessoais, particulares: quando pernoitava nas
casas dos amigos, ou ia passear com eles, ou prestava ajuda aos camaradas,
Lénin mostrava-se sempre delicado, brando, educado. Ao mesmo tempo tinha
constantemente uma atitude implacável em relação aos adversários políticos,
era grosseiro e brusco para com eles. Nunca admitiu a possibilidade de que os
seus adversários tivessem nem que fosse alguma razão e que ele próprio
alguma vez não a tivesse.
«Venal… lacaio… servo… a soldo de… agente… Judas vendido por trinta
dinheiros…», eram essas as palavras com que Lénin, muitas vezes, se referia
aos seus oponentes.
Nos debates, Lénin não tencionava convencer o seu adversário. Nas
discussões, em geral não se dirigia aos seus oponentes, dirigia-se às
testemunhas da discussão. O seu objetivo era, perante as testemunhas da
discussão, ridicularizar, desacreditar o seu adversário. Essas testemunhas da
discussão tanto podiam ser alguns amigos íntimos como milhares de
delegados de um congresso ou os milhões de leitores dos jornais.
Lénin não procurava a verdade numa discussão, procurava a vitória.
Precisava de vencer custasse o que custasse e, para alcançar a vitória, já se
sabe que há muitos meios bons: passar uma súbita rasteira, dar uma simbólica
bofetada e um simbólico, convencional, mas aturdidor murro na testa.
Portanto, os traços da vida quotidiana, da vida familiar de Lénin não
tinham nada que ver com as características do líder da nova ordem mundial.
Depois, quando a disputa se transferiu das páginas dos jornais e das revistas
para as ruas, para os campos de centeio e para os campos de batalha,
verificou-se que nisso também os meios cruéis eram bons.
A intolerância de Lénin, a sua irrefreável ânsia de alcançar o objetivo
proposto, o desprezo pela liberdade, a crueldade em relação aos discordantes
e a capacidade de, sem hesitar, varrer da face da terra não só fortalezas mas
também distritos, regiões, províncias que contestassem a sua razão ortodoxa
– todos esses traços não surgiram em Lénin apenas depois da Revolução de
Outubro. O jovem Vladímir Uliánov já possuía essas características. Essas
características têm raízes profundas.
Todas as suas capacidades, a sua vontade, a sua paixão obedeciam a um
único objetivo – conquistar o poder.
Em prol disso, sacrificou tudo; para conquistar o poder sacrificou, matou o
mais sagrado que existia na Rússia – a sua liberdade. Esta liberdade era
infantilmente insegura, inexperiente. Como podia ela, bebé de oito meses
nascido num país de escravidão milenar, ter experiência?61
Os traços de intelectual russo que pareciam um autêntico conteúdo da alma
e do caráter de Lénin, mal chegava a hora da verdade reduziam-se à forma
exterior mais insignificante, enquanto o seu verdadeiro caráter se manifestava
numa vontade inflexível, férrea e frenética.
O que levava Lénin pelo caminho da revolução? O amor pelas pessoas? O
desejo de acabar com as desgraças dos camponeses, com a miséria e a
ausência dos direitos dos operários? A fé na justeza do marxismo, na sua
própria razão partidária?
Para ele, a revolução russa não era a liberdade russa. Por outro lado, o
poder por que Lénin ansiava com tanta paixão não era uma necessidade sua,
pessoal.
Foi nisto que se revelou uma das particularidades de Lénin: a complexidade
de caráter gerada pela simplicidade de caráter.
Para ansiar com tanta força pelo poder é preciso possuir uma enorme
ambição política, um enorme amor ao poder. Estes traços são rudes e simples.
Mas este político ambicioso, capaz de tudo na sua ânsia de poder, era,
pessoalmente, de uma modéstia extrema. Não era para si que estava a
conquistar o poder. Aqui a simplicidade acaba, começa a complexidade.
Se imaginarmos o homem Lénin equivalente ao político Lénin, será um
caráter primitivo e grosseiro, descarado, arbitrário, implacável, loucamente
vaidoso, dogmaticamente gritante.
Se aplicarmos estes traços à vida quotidiana, às relações com a mulher, a
mãe, os filhos, o amigo, o vizinho, parecerá pavoroso.
Mas na realidade era uma coisa diferente. O homem no palco mundial
mostrou-se o oposto do homem na vida pessoal. Polos opostos.
Daqui resulta uma coisa diferente, complexa, por vezes trágica.
Uma louca paixão pelo poder político em combinação com um casaquinho
velho, com um copo de chá fraco, com um sótão de estudante.
A capacidade de, sem hesitar, arrastar na lama, de aturdir o adversário
numa discussão, em incompreensível combinação com um sorriso simpático,
com uma tímida delicadeza.
Uma implacável crueldade, o desprezo pela mais sagrada coisa da
revolução russa, a liberdade, e logo ao lado, no peito do mesmo homem, um
fascínio puro, juvenil, perante a bela música, perante os livros.
Lénin… A primeira imagem: deificada. A segunda, criada pelos inimigos
de Lénin: a de um simplório monolítico, uma combinação, uma fusão de
traços cruéis de líder da nova ordem mundial com traços primitivos e
grosseiros da sua vida quotidiana – os inimigos de Lénin viam nele apenas
estas características; e, finalmente, mais uma imagem, aquela que me parece
mais próxima da realidade, mas que é difícil de compreender.
54 Um dos nomes de guerra de Vladímir Uliánov (Lénin). (N. dos T.)

55 Aleksandr Uliánov (1866-1887) – irmão mais velho de Vladímir Uliánov (Lénin), revolucionário,
membro da fração terrorista da organização «Liberdade do Povo». Participou na preparação do atentado
contra o czar Alexandre III, mas foi preso. Juntamente com os seus camaradas foi condenado à pena
capital e enforcado. (N. dos T.)

56 Ver nota da pág. 27. (N. dos T.)

57 De uma poesia do poeta soviético Nikolai Poletáev (1889-1935). (N. dos T.)

58 Lev Mártov (1873-1923) – político, publicista, participante do movimento revolucionário na Rússia,


fundador da corrente menchevista no movimento social-democrata. (N. dos T.)

59 Kvas – bebida refrescante tradicional russa, feita à base de pão de centeio. (N. dos T.)

60 Pável Pestel (1793-1826) – coronel do exército russo, um dos líderes da Associação Secreta do Sul
antimonárquica e republicana. Foi preso depois da tentativa de derrubamento do poder autocrático
pelos dezembristas em 1825 e, passado meio ano, executado. Mikhaíl Bakúnin (1814-1876) –
revolucionário russo, um dos fundadores do movimento do anarquismo e do populismo. Serguei
Netcháev (1847-1882) – revolucionário russo, aventureiro e niilista. Organizador da «União da
Vingança Popular» que tinha como objetivo a preparação de uma «terrível revolução» pelos
revolucionários que «conhecem apenas a ciência da destruição, desprezam a opinião pública e a moral
social». Na sua atividade, recorria a métodos de falsificação e criminosos. Netcháev e os seus
companheiros serviram de protótipos para as personagens do romance Demónios de Fiódor
Dostoiévski. (N. dos T.)

61 Trata-se do intervalo entre a revolução democrática de fevereiro de 1917 e a revolução bolchevique


de outubro do mesmo ano. (N. dos T.)
22

Para compreender Lénin, não basta perscrutar as suas características


humanas, quotidianas. E as características de Lénin como político também
não são suficientes, é preciso estabelecer a correspondência do caráter de
Lénin, primeiro, com o mito do caráter nacional russo e, a seguir, com a
fatalidade, o caráter da história russa.
O ascetismo de Lénin, a sua modéstia natural aparentam-no aos peregrinos
russos, a sua retidão e a sua fé correspondem ao ideal popular de um mestre
da vida, a sua afeição à natureza russa, às florestas e prados, é próxima do
sentimento camponês. A sua recetividade em relação ao mundo do
pensamento ocidental, de Hegel e Marx, a sua capacidade de assimilar e
exprimir o espírito ocidental é a manifestação de um traço profundamente
russo, proclamado por Tchaadáev62, é aquela sensibilidade universal, aquela
capacidade russa, espantosamente profunda, de encarnar o espírito de outros
povos que Dostoiévski viu em Aleksandr Púchkin. Este traço assemelha
Lénin a Púchkin. Este traço era próprio de Pedro, o Grande.
A convicção inabalável, a obsessão de Lénin parecem semelhantes ao
frenesi e à fé do arcipreste Avvakum63. Avvakum é um fenómeno autóctone,
russo.
No século xix, os pensadores russos procuravam a explicação do caminho
histórico da Rússia nas particularidades do caráter nacional russo, na alma
russa, na religiosidade russa.
Tchaadáev, um dos homens mais inteligentes do século xix, proclamou o
espírito ascético, sacrificial do cristianismo russo, a sua natureza bizantina
não turvada por nada que lhe fosse estranho.
Dostoiévski achava que a verdadeira base da alma russa é a universalidade
humana, a tendência para a fusão com toda a humanidade.
O século xx russo gosta de repetir os vaticínios que foram feitos sobre ele,
no século xix, pelos pensadores e profetas da Rússia – Gógol, Tchaadáev,
Belínski, Dostoiévski.
Também, a quem não agradaria repetir o que eles disseram?
Os profetas do século xix predisseram que no futuro os russos tomariam a
liderança do desenvolvimento espiritual não só dos povos europeus mas dos
povos de todo o mundo.
Não era da glória militar dos russos, mas da glória do coração russo, da fé
russa e do exemplo russo que os profetas falavam.
«Eh, troica! Troica-ave…»64
«À alma russa, com o seu caráter que abrange e une toda a humanidade, foi
destinado acolher com amor fraternal todos os nossos irmãos e, talvez,
proferir finalmente a palavra definitiva da grande harmonia universal, da
definitiva concórdia fraternal de todas as tribos de acordo com a lei
evangélica de Cristo[…]»65
«Então, ocuparemos naturalmente o nosso lugar entre os povos, em que nos
foi predestinado agir, no meio da humanidade, não só como aríetes mas
também como ideias.»66
«Também tu, ó Rússia, não correrás assim, como uma troica célere e
inultrapassável? Fumega o caminho debaixo das tuas rodas, as pontes
estrondeiam […]»67
Mas ao mesmo tempo Tchaadáev descobre, de modo genial, um
impressionante traço da história russa: «[…] um facto colossal de
escravização gradual do nosso campesinato, que não é mais do que uma
consequência rigorosamente lógica da nossa história»68.
A implacável opressão do indivíduo acompanhou imutavelmente a história
milenar dos russos. Subjugação escrava ao monarca e ao Estado. Sim, os
profetas da Rússia viam e reconheciam também esses traços.
Então, ao lado da opressão do homem pelo príncipe, pelo senhor das terras,
pelo monarca e pelo Estado, os profetas da Rússia tinham consciência de que
a alma do homem russo possuía pureza, profundidade, clareza, força de
Cristo, inéditas para o mundo ocidental. Foi a ela, à alma russa, que os
profetas vaticinaram um grande e luminoso futuro. Estavam todos de acordo
com a ideia de que na alma dos russos a ideia do cristianismo estava
encarnada numa forma não estatal, ascética, bizantina, antiocidental e que as
forças próprias da alma popular russa se iam exprimir numa potente
influência sobre os povos europeus, iam purificar, transformar e iluminar no
espírito de fraternidade a vida do mundo ocidental, e que o mundo ocidental
ia seguir, confiante e alegre, o homem universal russo. Essas profecias dos
mais fortes cérebros e corações da Rússia tinham em comum uma
característica fatal. Todos eles viam a força da alma russa, adivinhavam a sua
importância para o mundo, mas não viam que as particularidades da alma
russa foram geradas pela inexistência da liberdade, que a alma russa era uma
escrava milenar. O que dará ao mundo uma escrava milenar, mesmo que se
torne todo-poderosa?
Então, o século xix aproximou aparentemente o momento, predito pelos
profetas da Rússia, em que a Rússia, tão aberta à prédica alheia e ao exemplo
alheio, a Rússia que tinha devorado e absorvido as influências espirituais
alheias estava, agora, a preparar-se para influenciar o mundo.
Durante cem anos a Rússia esteve a absorver a forasteira ideia de liberdade.
Durante cem anos a Rússia bebeu pela boca de Péstel, Riléev, Herzen,
Tchernichévski, Lavrov, Bakúnin, pela boca dos seus escritores, pela boca
mártir de Jeliábov, Sófia Peróvskaia, Timofei Mikháilov, Kibáltchitch, pela
boca de Plekhánov, Kropótkin, Mikhailóvski, pela boca de Sazónov e
Kaliáev, pela boca de Lénin, Mártov, Tchernov69, pela boca da sua
intelectualidade de origem não fidalga, dos seus estudantes universitários, dos
seus operários de vanguarda – bebeu as ideias dos filósofos e pensadores da
liberdade ocidental. Essas ideias eram oferecidas pelos livros, pelas cátedras
das universidades, pelos estudantes de Heidelberg e Paris, foram trazidas
pelas botas dos soldados de Bonaparte, pelos engenheiros e comerciantes
cultos, e pelos pequenos e pobres militares ocidentais com um sentimento de
dignidade que provocava inveja e admiração aos príncipes russos.
E chegou a hora – a revolução russa, fecundada pelas ideias de liberdade e
dignidade humana, realizou-se.
Então, o que foi que a alma russa fez com as ideias do mundo ocidental,
como as transformou no seu seio, como as cristalizou, que rebento se
preparou a receber, brotado da subconsciência da história?
«Rússia! Para onde corres tu?… Não há resposta…»70
Como pretendentes em frente de uma moça, dezenas, ou talvez centenas de
doutrinas revolucionárias, de crenças, de líderes, de partidos, de profecias, de
programas passaram perante a jovem Rússia que acabara de libertar-se das
correntes do czarismo… Ansiosos, com paixão e súplica, os líderes do
progresso russo devoravam com os olhos a cara da noiva.
Era amplo o círculo deles – moderados, fanáticos, trabalhistas, populistas,
defensores dos operários, defensores dos camponeses, industriais iluminados,
sacerdotes amantes da luz, anarquistas frenéticos.
Fios invisíveis, muitas vezes impercetíveis para eles próprios, ligavam-nos
com as ideias das monarquias constitucionais do Ocidente, dos parlamentos,
dos cardeais e bispos de elevadíssima cultura, dos industriais, dos senhores de
terras cultos, dos líderes de sindicatos operários, pregadores, professores
universitários ocidentais.
A grande escrava deteve o seu olhar ansioso, hesitante e apreciador em
Lénin. Tornou-se seu eleito.
Lénin, como num velho conto de fadas, adivinhou o seu pensamento
secreto, explicou-lhe o seu sonho estranho, interpretou o seu desígnio.
Mas será esta a verdade verdadeira?
Tornou-se seu eleito porque a escolheu e porque ela o escolheu.
Ela seguiu-o – ele prometeu-lhe montanhas de ouro e rios de vinho –,
seguiu-o primeiro com toda a vontade, acreditando nele, pelo alegre caminho
embriagado, iluminado pelas herdades senhoriais em chamas, depois
começou a andar aos tropeços, olhando para trás, aterrorizando-se com o
caminho que se abria à sua frente, mas sentindo cada vez mais o aperto da
mão férrea que a estava a conduzir.
Entretanto, ele ia em frente, cheio de fé apostólica, levava a Rússia, sem
compreender o feitiço que tomou conta dele. No passo obediente da noiva, na
sua nova submissão – depois do derrube do czar –, na sua louca
complacência, tudo o que ele trouxera para a Rússia do ocidente
revolucionário e amante de liberdade estava a naufragar, a perecer, a virar-se
do avesso.
Parecia a Lénin que a sua inabalável força ditatorial era garante da pureza e
segurança daquilo em que acreditava e que trouxe para o seu país.
Esta força dava-lhe felicidade, identificava-a com a justeza da sua fé, mas
de repente, por um instante, viu com medo que na sua firmeza inabalável em
relação à branda submissão e à credulidade russas residia a sua maior
impotência.
Então, quanto mais severos se tornavam os seus passos, quanto mais pesada
era a sua mão, quanto mais obediente à sua violência doutrinal e
revolucionária se tornava a Rússia, tanto menos poder ele tinha para lutar
com a força realmente satânica da antiguidade escrava.
À semelhança de uma solução de álcool de mil anos, o princípio escravo,
de servidão, estava a consolidar-se na alma russa. À semelhança da água
régia corrosiva, dissolveu o metal e o sal da dignidade humana, desfigurou a
vida espiritual do homem russo.
Durante novecentos anos, os vastos espaços da Rússia que, para um olhar
superficial, criavam uma sensação de grande envergadura espiritual, de
audácia e de liberdade, eram uma retorta muda de escravidão.
Durante novecentos anos, a Rússia abandonava as selvagens povoações
florestais, as isbás sem chaminés, cheias de fumo venenoso, as ermidas, as
casas senhoriais feitas de troncos e mudava-se para as fábricas dos Urais,
para as minas de carvão de Donetsk, para os palácios de Petersburgo, para o
Hermitage, para a criação da sua potente artilharia, para a metalurgia e
tornearias de Tula, para as suas fragatas e os seus martelos a vapor.
Para um olhar superficial, surgia uma clara sensação de iluminação e de
aproximação crescentes ao Ocidente.
Porém, quanto maior se tornava a semelhança superficial da vida russa à
vida ocidental, quanto mais o estrondo fabril da Rússia, o barulho das rodas
dos seus carros e comboios, as velas dos seus navios, a luz cristalina nas
janelas dos seus palácios lembravam a vida ocidental, tanto mais crescia um
oculto abismo entre a maior essência da vida russa e a vida do Ocidente.
O abismo consistia em que a evolução do Ocidente era fecundada pelo
crescimento da liberdade, enquanto o desenvolvimento da Rússia o era pelo
crescimento da escravidão.
A história do homem é a história da sua liberdade. O crescimento da
potência humana exprime-se, em primeiro lugar, no crescimento da sua
liberdade. A liberdade não é, como pensava Engels, uma necessidade
consciencializada. A liberdade é diametralmente oposta à necessidade, a
liberdade é uma necessidade superada. O progresso, na sua base, é o
progresso da liberdade humana. Aliás, a própria vida é liberdade, a evolução
da vida é evolução da liberdade.
O desenvolvimento russo revelou uma essência estranha: tornou-se um
desenvolvimento de não liberdade. Ano após ano, a servidão dos camponeses
tornava-se cada vez mais rija, o direito do camponês à propriedade da terra
tornava-se cada vez mais fraco, no entanto a ciência, a tecnologia, a
ilustração russas não deixavam de crescer, fundindo-se com o crescimento da
escravidão russa.
O nascimento do sistema estatal russo foi assinalado pela instalação
definitiva da servidão da gleba: foi anulado o último dia da liberdade do
camponês – o 26 de novembro, dia de São Jorge71.
Havia cada vez menos «gente livre», que vivesse onde lhe apetecia, o
número de servos não parava de multiplicar-se, enquanto a Rússia começava
a sair para o largo caminho da história europeia. O homem preso à terra
tornou-se preso ao dono da terra, e a seguir ao militar que representava o
Estado e o exército; e o senhor obteve o direito de julgamento do servo e,
depois, o direito da «tortura de Moscovo» (termo já existente quatro séculos
atrás): penduravam o homem pelas mãos atadas às costas, zurziam-no com o
chicote. No entanto, a metalurgia russa crescia, os armazéns de cereais
alargavam-se, o Estado e o exército fortaleciam-se, a aurora da glória militar
russa brilhava, a alfabetização aumentava.
A poderosa atividade de Pedro, o Grande, fundador do progresso científico
e industrial russo, foi ligada com o desenvolvimento igualmente forte da
servidão da gleba. Pedro igualou a condição dos servos agregados à terra com
a dos servos criados, transformou os assalariados livres em servos dos
senhores das terras, os lavradores livres do norte e os arrendatários do sul em
servos do Estado. Assim, no reinado de Pedro, além da servidão da gleba,
começou a florescer a servidão estatal, que contribuía para a ilustração e para
o progresso à maneira de Pedro, o Grande. Parecia a Pedro que estava a
aproximar a Rússia do Ocidente – aliás, não deixava de ser verdade –, mas o
abismo entre a liberdade e a não liberdade crescia cada vez mais.
Depois chegou o brilhante século de Catarina II, século de florescimento
maravilhoso das artes e da ilustração russas, século em que a servidão da
gleba russa atingiu o seu auge.
Assim, o progresso russo e a escravidão russa estavam presos um ao outro
como elos de uma corrente milenar. Cada arranque até à luz aprofundava o
buraco negro da servidão.
O século xix é um século peculiar da vida da Rússia.
Neste século, o princípio essencial da vida russa, a ligação da servidão com
o progresso, começou a ser abalado.
Os pensadores revolucionários da Rússia não deram o devido valor à
abolição dos camponeses servos que foi feita no século xix. Este
acontecimento, como demonstrou o século seguinte, foi mais revolucionário
do que os acontecimentos da Grande Revolução de Outubro: este
acontecimento minou a base das bases da Rússia milenar, base que tanto
Pedro como Lénin deixaram intacta: a dependência da evolução russa do
crescimento da escravidão.
Depois da libertação dos camponeses, os líderes revolucionários, os
intelectuais, os estudantes universitários lutaram tempestuosamente, com
paixão e abnegação, pela dignidade humana, tão ignota para a Rússia, pelo
progresso sem escravidão. Esta nova lei era completamente alheia ao passado
russo, e ninguém sabia como seria a Rússia se rejeitasse aquela ligação
milenar do seu desenvolvimento com a escravidão, que aspeto ia adquirir o
caráter russo.
Em fevereiro de 1917, o caminho de liberdade abriu-se para a Rússia. A
Rússia escolheu Lénin.
A quebra da vida russa feita por Lénin era gigantesca. Lénin destruiu
estruturas latifundiárias. Lénin liquidou os industriais e os comerciantes.
Mesmo assim, a fatalidade da história russa mandou que Lénin, por mais
louco e estranho que pareça, conservasse a maldição da Rússia: a ligação do
seu desenvolvimento com a não liberdade, com a escravidão.
Apenas quem atente na base das bases da velha Rússia – a sua alma escrava
– é revolucionário.
Mas aconteceu que a obsessão revolucionária, a fé fanática na justeza do
marxismo, a plena intolerância em relação aos opositores resultaram em que
Lénin contribuísse para o desenvolvimento gigantesco daquela Rússia que ele
odiava com todas as forças da sua alma fanática.
De facto, é trágico que um homem que se deliciava sinceramente com os
livros de Lev Tolstói e a música de Beethoven viesse a contribuir para uma
nova escravização dos camponeses e operários, para a transformação em
servos do Estado de destacadas personalidades da cultura russa, tais como o
escritor Aleksei Tolstói, o químico Semiónov72, o músico Chostakóvitch.
A discussão aberta pelos partidários da liberdade russa foi, finalmente,
resolvida – a escravidão russa, também desta vez, saiu vencedora.
A vitória de Lénin transformou-se na sua derrota.
Mas a tragédia de Lénin não foi apenas uma tragédia russa, tornou-se uma
tragédia de todo o mundo.
Teria ele pensado que, na hora da revolução por ele realizada, não seria a
Rússia que seguiria o socialismo europeu, mas a oculta escravidão russa que
iria para lá das suas fronteiras e se tornaria uma tocha a alumiar os novos
caminhos da humanidade?
A Rússia deixou de assimilar o espírito livre do Ocidente, mas os olhos
fascinados do Ocidente admiravam o quadro de desenvolvimento russo no
caminho da não liberdade.
O mundo viu a encantadora simplicidade deste caminho. O mundo
compreendeu a força do Estado popular baseado na não liberdade.
Aparentemente, o que foi previsto pelos profetas da Rússia cem ou cento e
cinquenta anos antes foi concretizado.
Mas que estranha e terrível foi esta concretização.
A síntese leninista da não liberdade com o socialismo aturdiu o mundo
mais do que a descoberta da energia atómica.
Os apóstolos europeus das revoluções nacionais viram o fogo no Leste. Os
italianos e, a seguir, os alemães começaram a desenvolver, à sua maneira, as
ideias do socialismo nacional.
Entretanto, o fogo ardia cada vez mais e foi apreendido pela Ásia, por
África.
As nações e os Estados podem desenvolver-se em nome da força e contra a
liberdade!
Não era um alimento dos mais saudáveis, era uma substância narcótica para
os azarentos, enfermos e fracos, atrasados e derrotados.
Graças à vontade, à paixão, ao génio de Lénin, a lei milenar russa de
desenvolvimento transformou-se numa lei internacional.
Foi esta a fatalidade da história.
A intolerância de Lénin, o seu ímpeto, a sua atitude implacável para com os
discordantes, o desprezo pela liberdade, o fanatismo da fé, a crueldade em
relação aos inimigos, tudo o que deu a vitória à causa de Lénin foi gerado e
forjado nas profundezas milenares da vida escrava russa, da não liberdade
russa. Foi por isso que a vitória de Lénin serviu a não liberdade. E ao lado,
incorpóreos e sem importância, os traços de um querido e modesto intelectual
trabalhador russo de nome Lénin continuavam a viver, fascinando milhões de
pessoas.
Então, será verdade que a alma russa continua enigmática como antes?
Não, o enigma não existe.
E será que alguma vez existiu? Que enigma pode haver na escravidão?
E será verdade que esta é uma lei russa e apenas russa de desenvolvimento?
Será possível que para a alma russa e apenas russa foi destinado desenvolver-
se com o crescimento da escravidão, e não com o crescimento da liberdade?
Será realmente uma manifestação da fatalidade da alma russa?
Não, obviamente que não.
Esta lei foi determinada por aqueles parâmetros – dezenas, ou talvez
centenas deles – em que decorria a história da Rússia.
A alma não tem nada que ver com isso. E se mil anos atrás os franceses,
alemães, italianos, ingleses se tivessem enraizado nesses parâmetros, nas
florestas e nas estepes, nos pântanos e nas planícies, no campo de força entre
a Europa e a Ásia, nas dimensões tragicamente enormes da Rússia – a lei da
história deles teria sido a mesma do movimento russo. Aliás, não só os russos
conheceram este caminho. Há bastantes povos em todos os continentes da
terra que, ora de longe, vagamente, ora de mais perto e com mais clareza
reconheciam na sua amargura o amargo caminho russo.
Já está na hora de os exegetas da Rússia compreenderem que apenas a
escravidão milenar criou o misticismo da alma russa.
Na própria admiração da pureza ascética bizantina, da mansidão cristã da
alma russa vive um involuntário reconhecimento do caráter inabalável da
escravidão russa. As fontes dessa mansidão cristã, dessa pureza ascética
bizantina são as mesmas que as fontes da paixão, da intolerância, da fé
fanática de Lénin – remontam a mil anos de escravidão da gleba.
Foi por isso que os profetas da Rússia se enganaram de modo tão trágico.
Onde está ela, essa «alma russa que abrange e une toda a humanidade», alma
à qual Dostoiévski predisse: «vai proferir as palavras definitivas da grande
harmonia definitiva e comum, da concórdia fraternal e definitiva de todos os
tempos de acordo com a lei evangélica de Cristo»?
Mas, meu Deus, onde está ela, essa alma que abrange e une toda a
humanidade? Terá sido no concatenado rangido do arame farpado que foi
estendido na taiga siberiana e à volta de Auschwitz que os profetas da Rússia
imaginavam ver a concretização das suas profecias sobre o futuro triunfo
mundial da alma russa?
Lénin é, em muitos aspetos, o oposto dos profetas da Rússia. Está
infinitamente distante das suas ideias da mansidão, da pureza cristã bizantina
e da lei evangélica. Mas o que é espantoso e estranho: situa-se, ao mesmo
tempo, ao lado deles. Seguindo um caminho muito diferente, Lénin não
tentou proteger a Rússia do pântano sem fundo da não liberdade,
reconhecendo, tal como eles, o caráter inabalável da escravidão russa. Lénin,
tal como eles, é filho da nossa não liberdade.
A servidão da alma russa vive tanto na fé russa como na descrença russa,
no manso humanismo russo, na temeridade, no arruaceirismo e na galhardia
russos, na sovinice e no espírito pequeno-burguês russos, na laboriosidade
submissa, na pureza ascética russas, na superaldrabice russa, na coragem
terrível frente ao inimigo dos soldados russos, na falta de dignidade do
caráter russo, na rebeldia arrojada dos amotinados russos, no frenesi dos
sectários religiosos… a alma serva está também na revolução leninista, na
capacidade de assimilar apaixonadamente as doutrinas revolucionárias do
Ocidente, na obsessão de Lénin, na violência de Lénin, nas vitórias do Estado
de Lénin.
Semelhantes almas nascem em todos os recantos do mundo onde existe a
escravidão.
Onde estará a esperança da Rússia se os seus próprios grandes profetas não
sabiam distinguir a liberdade da escravidão?
Onde estará a esperança se os génios da Rússia veem a beleza mansa e
clara da sua alma na sua submissa escravidão?
Onde estará a esperança da Rússia se o seu maior reformador, Vladímir
Lénin, em vez de a destruir, reforçou a ligação do desenvolvimento russo
com a não liberdade, com a servidão?
Onde está a época da alma russa livre, humana? Quando chegará essa hora?
Ou talvez não chegue nunca? Nunca?
62 Piotr Tchaadáev (1794-1856) – filósofo e publicista russo. Foi declarado «louco» pelo governo, por
causa das suas obras em que fez uma crítica arrasadora da realidade russa. A sua obra principal é
Cartas Filosóficas. (N. dos T.)

63 Arcipreste Avvakum (1610-1682) – arcipreste da cidade de Iúrievts-Povólski, adversário da reforma


da igreja do patriarca Níkon; escritor. Foi perseguido e morto. Os adeptos do velho rito cristão veneram
o arcipreste Avvakum como santo mártir. (N. dos T.)

64 Do livro Almas Mortas de Nikolai Gógol. «Troica» é uma atrelagem de três cavalos lado a lado, o
que permite atingir uma grande velocidade. (N. dos T.)

65 Do Diário do Escritor de Fiódor Dostoiévski. (N. dos T.)

66 Piotr Tchaadáev, Artigos e Cartas, Moscovo, 1989. (N. dos T.)

67 Nikolai Gógol, Almas Mortas. (N. dos T.)

68 Piotr Tchaadáev, Artigos e Cartas. (N. dos T.)


69 Kondráti Riléev (1795-1826) – poeta russo, dezembrista, um dos cinco líderes da revolta de
dezembro de 1825 que, por sentença do tribunal, foram executados. Nikolai Tchernichévski (1828-
1889) – filósofo utopista russo, revolucionário democrata, economista, crítico literário, publicista e
escritor. Piotr Lavrov (1823-1900) – teórico do populismo revolucionário russo, filósofo, publicista,
sociólogo. Sófia Peróvskaia (1853-1881) – revolucionária, um dos dirigentes da «Liberdade do Povo».
Foi presa e executada por ter organizado o assassínio do czar Alexandre II. Timofei Mikháilov (1859-
1881) – revolucionário russo, membro da «Liberdade do Povo», participou no atentado contra
Alexandre II. Foi preso e executado. Nikolai Kibáltchitch (1853-1881) – líder social, revolucionário
terrorista, membro da «Liberdade do Povo». Preso e executado juntamente com Jeliábov e Peróvskaia.
Piotr Kropótkin (1842-1921) – revolucionário russo, teórico do anarquismo, geógrafo, historiador,
literato. Nikolai Mikhailóvski (1842-1904) – publicista e sociólogo russo, um dos teóricos do
populismo, crítico literário. Egor Sazónov (1879-1910) – revolucionário russo, membro do partido
socialista-revolucionário. Em 1904, matou o ministro do Interior V. Pleve. Suicidou-se nos trabalhos
forçados em Nértchinsk. Víktor Tchernov (1873-1952) – político russo, revolucionário, um dos
fundadores do partido dos socialistas-revolucionários e seu principal ideólogo. O primeiro e último
presidente da Assembleia Constituinte. (N. dos T.)

70 Citação do livro Almas Mortas de Nikolai Gógol. (N. dos T.)

71 No dia de São Jorge outonal, até 1649, os camponeses tinham direito a mudar-se para outro senhor.
(N. dos T.)

72 Aleksei Nikoláevitch Tolstói (1882-1945) – escritor russo soviético. Nikolai Semiónov (1896-1986)
– um dos fundadores da química física russa. (N. dos T.)
23

Lénin morreu. Mas o leninismo não morreu. O poder conquistado por


Lénin não fugiu das mãos do partido. Os camaradas de Lénin, os seus
ajudantes, correligionários e discípulos continuaram a obra de Lénin.

… aqueles que deixou depois da morte,


Têm de vestir de betão
A corrente tempestuosa do país.
As palavras: Lénin morreu – não são para eles,
A sua morte não os desanimou.
Continuam a obra, ainda mais severos e sombrios.73

A ditadura do partido conquistada por Lénin, o exército, a polícia, a


VTchK, os cursos de alfabetização, as faculdades operárias, tudo isso, criado
por ele, continuou a existir. Lénin deixou vinte e oito volumes de obras.
Então, quem de entre os seus correligionários poderia assimilar da forma
mais profunda e plena, de exprimir com o seu caráter, coração e cérebro a
essência do leninismo? Quem ergueria a bandeira de Lénin, quem a levaria,
quem construiria um grande Estado fundado por Lénin, quem levaria o
partido de novo tipo de vitória em vitória, quem consolidaria a nova ordem
na terra?
Seria o brilhante, temperamental, magnífico Trótski? Seria o encantador
Bukhárin, teórico dotado de um perspicaz talento de síntese? Ou o Ríkov de
olhos expressivos, com prática do trabalho de Estado, homem a quem os
interesses do povo, dos operários e dos camponeses eram mais
compreensíveis do que para todos os outros? Ou Kámenev, capaz de
quaisquer batalhas complexas nas discussões parlamentares, com experiência
requintada na direção estatal, culto e seguro de si? Ou Zinóviev, conhecedor
do movimento operário internacional, polemista de classe internacional?
O caráter e o espírito de cada um deles eram próximos, consonantes com
umas ou outras facetas do caráter de Lénin. Mas verificou-se que essas
facetas do caráter de Lénin não eram essenciais, principais, não definiam o
âmago, a raiz do fenómeno novo que estava a nascer.
Aconteceu, de modo fatal, que a todos os traços do caráter de Lénin que se
exprimiam nas personalidades do quase genial Trótski, de Bukhárin, de
Ríkov, de Zinóviev e de Kámenev viria a ser atribuído caráter subversivo,
levando todos esses líderes ao cadafalso.
O âmago do caráter de Lénin não estava nesses traços nem nessas facetas.
O que neles residia era a fraqueza de Lénin, a sua heresia, a sua
extravagância, as suas ilusões – a essência do novo não estava neles.
Porque também o caráter de Lunatchárski74 coincidia, em certos aspetos,
com aquela faceta de Lénin que o levava a ouvir a «Apassionata» e a admirar
o Guerra e Paz. Mas não seria ao pobre do Lunatchárski que estaria
destinado realizar, severa e sombriamente, a obra principal do partido
leninista. Não foi a Trótski, Bukhárin, Ríkov, Kámenev e Zinóviev que a
história encarregou de exprimir a mais profunda essência de Lénin.
O ódio de Stálin pelos líderes da oposição era o seu ódio por aqueles traços
do caráter de Lénin que contradiziam a essência de Lénin.
Stálin matou os mais próximos amigos e correligionários de Lénin porque
eles, cada um à sua maneira, impediam a realização do principal, daquilo em
que residia a essência de Lénin.
Lutando contra eles, exterminando-os, era como se Stálin estivesse a lutar
também contra Lénin, a exterminar também Lénin. Mas, ao mesmo tempo,
foi precisamente Stálin quem firmou vitoriosamente Lénin e o leninismo,
quem ergueu e instalou por cima da Rússia a bandeira leninista.
73 Versos de um poema do poeta russo Serguei Essénin (1895-1925). (N. dos T.)

74 Anatóli Lunatchárski (1875-1933) – escritor russo soviético, político e líder social, tradutor,
publicista, crítico literário e de arte, académico. Entre 1917-1929, comissário do povo (ministro) de
Educação. (N. dos T.)
24

O nome de Stálin foi inscrito na história da Rússia para todo o sempre.


A Rússia pós-revolucionária, olhando para Stálin, conheceu-se a si própria.
Vinte e oito volumes de obras de Lénin – discursos, relatórios, programas,
estudos económicos e filosóficos – não serviram à Rússia para se
compreender a si própria e ao seu destino. Um caos maior do que o
babilónico foi provocado pela mistela da revolução de modelo ocidental com
a ordem russa de desenvolvimento e vida.
Não só os marinheiros e os soldados da cavalaria de Budiônni75, não só os
camponeses e os operários russos mas também o próprio Lénin foram
incapazes de compreender até ao fundo o que aconteceu. O rugido da
tempestade revolucionária, as leis da dialética materialista, a lógica de O
Capital de Marx misturaram-se com as cantigas vulgares ao som das
concertinas, com o barulho dos aparelhos de destilação de vodca caseira, com
os apelos dos oradores e dos propagandistas, dirigidos aos marinheiros e
alunos de faculdades operárias, para não confiarem na heresia venenosa de
Kautsky, Cunow e Hilferding76.
O fogo, a revolta, o desvario que se apoderaram da Rússia levantaram do
fundo da caldeira russa uma pesada borra de ressentimento e raiva,
acumulados durante séculos de sofrimento do povo escravo.
Do romantismo revolucionário, das loucuras da «Proletkult»77, das verdes
repúblicas de produção caseira, da bravura embriagada e do motim dos
mujiques, da fúria dos marujos do cruzador «Almaz»78 estava a erguer-se um
chefe da polícia novo, poderoso, inédito.
O ardente desejo do povo de se tornar dono da terra de lavoura, que foi
compreendido por Lénin e cumprido por iniciativa de Lénin, era hostil ao
Estado fundado por Lénin, incompatível com este Estado. O desejo de o povo
se tornar dono da terra foi liquidado implacavelmente.
Em 1930, o Estado fundado por Lénin tornou-se senhor absoluto de todas
as terras, florestas e águas da União Soviética, afastando definitivamente o
campesinato da propriedade do lavradio.
A confusão, as contradições, a névoa reinavam não só nos entroncamentos
ferroviários, nos cais e nos tejadilhos dos comboios, não só nas esperanças
das aldeias e nas cabeças inflamadas dos poetas. A confusão e a névoa
reinavam na área da teoria revolucionária, nas contradições aturdidoras entre
a prática e as construções cristalinas do primeiro teórico do partido.
A palavra de ordem principal de Lénin era «Todo o poder aos Sovietes!»,
mas o decurso posterior da vida demonstrou que os Sovietes criados por
Lénin não tinham nem têm até hoje poder nenhum – são instituições
meramente formais ou burocrático-executivas.
Toda a ênfase teórica do jovem Lénin estava orientada para a luta contra o
populismo, os socialistas-revolucionários, para provar que o caminho do
desenvolvimento capitalista era inevitável para a Rússia. Mas toda a ênfase
de Lénin em 1917 era orientada para provar que a Rússia, contornando a via
capitalista ligada com liberdades democráticas, podia e devia seguir o
caminho da revolução proletária.
Poderia Lénin supor que, ao fundar a Internacional Comunista e ao
proclamar, no Segundo Congresso da Comintern, «Proletários de todos os
países, uni-vos!», lema da revolução mundial, estava a preparar o terreno para
o crescimento, inédito na história, do princípio da soberania nacional?
Essa força do nacionalismo estatal e o furioso nacionalismo das massas
populares privadas de liberdade e de dignidade humana tornaram-se a
principal alavanca, a ogiva nuclear da nova ordem, determinaram o destino
do século vinte.
Stálin assentou a cabeça à Rússia pós-revolucionária, pós-leninista, deu
borlas a quem merecia, e a quem não as merecia tirou-lhas juntamente com as
cabeças.
O partido dos bolcheviques tinha pela frente tornar-se um partido do Estado
nacional. A fusão do partido e do Estado encontrou a sua expressão na
personalidade de Stálin. Em Stálin, no seu caráter, no seu intelecto e na sua
vontade, o Estado exprimiu o seu próprio caráter, a sua vontade, o seu
intelecto.
Parecia que Stálin estava a construir o Estado fundado por Lénin à sua
própria imagem e semelhança. Mas, é claro, não era isso que acontecia – a
sua imagem era um simulacro do Estado, por isso se tornou seu patrão.
Por vezes, no entanto, sobretudo no fim da vida, devia parecer-lhe, pelos
vistos, que o Estado era seu criado.
O caráter do regime estatal soviético exprimiu-se em Stálin, no seu caráter
que juntou um asiático e um marxista europeu. Do regime estatal,
precisamente! Em Lénin encarnava-se o princípio histórico nacional russo.
Em Stálin, o regime estatal russo soviético. O regime estatal russo, gerado
pela Ásia e disfarçado de Europa, não é histórico, está acima da história.
O seu princípio é universal, inabalável, aplicável a todos os regimes da
Rússia durante a sua história milenar. Graças a Stálin, as categorias
revolucionárias da ditadura, do terror, da luta contra as liberdades burguesas,
herdadas de Lénin (que as dizia provisórias), foram transferidas para a base,
para o fundamento, para a essência, fundiram-se com a não liberdade russa
nacional, tradicional, milenar. Graças a Stálin, essas categorias
transformaram-se em conteúdo do Estado, enquanto as obsolescências
sociais-democráticas foram desalojadas e resumidas a uma forma, a um
cenário teatral.
O caráter de Stálin juntou todos os traços da Rússia esclavagista, impiedosa
em relação às pessoas.
Foi um dignitário asiático que se manifestou na sua incrível crueldade, na
sua incrível perfídia, na sua capacidade de fingimento e hipocrisia, nos
rancores que guardava e no seu caráter vingativo, na sua grosseria, no seu
humorismo.
No seu conhecimento das doutrinas revolucionárias, na utilização da
terminologia do Ocidente progressista, no conhecimento da literatura e do
teatro de que a intelectualidade democrática russa gostava, nas suas citações
de Gógol e Chedrin79, na sua habilidade em utilizar os mais sofisticados
métodos de conspiração, na sua imoralidade, manifestou-se um
revolucionário do tipo de Netcháev80, aquele para quem todos os meios são
justificados pelo futuro objetivo. Porém, não há dúvida de que o próprio
Netcháev teria estremecido se visse até que envergadura monstruosa Stálin
levou os princípios netchaevistas.
Na sua fé no papel burocrático e na força policial como a força principal da
vida, na sua secreta paixão pela farda e pelas condecorações, no seu inédito
desprezo pela dignidade humana, na sua veneração das hierarquias e da
burocracia, na sua prontidão em matar uma pessoa em nome da letra sagrada
da lei e logo a seguir passar por cima da lei em prol da arbitrariedade
monstruosa, manifestou-se uma natureza de alto funcionário policial, de
gendarmaria.
É nisso que consiste o caráter de Stálin, nessa junção de três pessoas de
nome Stálin.
Esses três Stálin criaram o sistema estatal stalinista – o sistema para o qual
a lei é apenas um instrumento de arbitrariedade, e a arbitrariedade é a lei,
sistema que, com as suas raízes milenares, remonta ao passado da servidão da
gleba que transformou os camponeses em escravos, que remonta ao jugo
tártaro-mongol que transformou em servos aqueles que eram senhores dos
camponeses, sistema que está na fronteira entre a Ásia pérfida, vingativa,
hipócrita e cruel, e a Europa iluminada, democrática, mercantil e venal.
Este asiático de botas de cabrim que citava Chedrin, que vivia pelas leis da
vendetta e ao mesmo tempo utilizava o vocabulário da revolução, pois bem,
foi ele que introduziu clareza no caos pós-revolucionário, que realizou, que
imprimiu o seu próprio caráter no caráter do Estado.
O princípio essencial do Estado por ele construído assenta num Estado sem
liberdade.
Neste país, as gigantescas fábricas, os mares artificiais, os canais, as
centrais hidroelétricas não servem o homem, servem o Estado sem liberdade.
Neste Estado o homem não semeia o que quer semear, o homem não é
dono do campo em que trabalha, não é dono das macieiras e do leite; a terra
dá o seu fruto por instruções do Estado sem liberdade.
Neste Estado, não só as pequenas etnias, mas nem sequer o povo russo tem
liberdade. Onde não há liberdade humana não pode haver também liberdade
nacional, porque a liberdade nacional é, antes de mais, liberdade do homem.
Neste Estado não há sociedade, porque a sociedade se baseia na
proximidade livre e no antagonismo livre entre os homens, mas no Estado
sem liberdade a proximidade e a hostilidade livres são inconcebíveis.
O princípio milenar de crescimento da ilustração, da ciência e da potência
industrial russas por meio do crescimento da não liberdade humana, princípio
cultivado pela Rússia dos boiardos, por Ivan, o Terrível, por Pedro, o Grande,
por Catarina II, na época de Stálin atingiu o seu pleno triunfo.
E é realmente espantoso que Stálin, depois de destruir por completo a
liberdade, tenha continuado a ter medo dela.
Talvez tenha sido precisamente esse medo da liberdade que levou Stálin a
recorrer àquela hipocrisia nunca vista.
A hipocrisia de Stálin exprimiu claramente a hipocrisia do seu Estado. Esta
hipocrisia manifestava-se, sobretudo, no fingimento da liberdade. O Estado
não cuspia em cima da liberdade morta! O mais precioso, vivo, radioativo
conteúdo da liberdade e da democracia foi mortificado e transformado numa
figura empalhada, em casca verbal. Assim fazem os selvagens, quando os
mais sofisticados sextantes e cronómetros lhes caem nas mãos: utilizam-nos
como adornos.
A liberdade mortificada tornou-se um adorno do Estado, mas um adorno
nada inútil. A liberdade morta começou a desempenhar o papel principal
numa gigantesca encenação, num espetáculo teatral de envergadura inédita. O
Estado sem liberdade criou uma maqueta de parlamento, de eleições, de
sindicatos, uma maqueta de sociedade e de vida social. No Estado sem
liberdade, as maquetas da administração de kolkhozes, da direção das uniões
de escritores e artistas plásticos, as maquetas da direção de comités
executivos de distritos e de regiões, as maquetas dos bureaux e dos plenários
dos comités distritais, regionais e dos comités centrais dos partidos
comunistas das repúblicas discutiam problemas e tomavam decisões que já
tinham sido tomadas noutro lugar. O próprio Presidium do Comité Central do
Partido era teatro.
Este teatro estava contido no caráter de Stálin. Este teatro estava contido no
caráter do Estado sem liberdade. Foi por isso que o Estado precisou de Stálin
que, através do seu próprio caráter, criou o caráter do Estado.
Mas afinal o que era real e não teatro? Quem tomava de facto decisões e
não só fingia tomá-las?
A força real era Stálin. Ele é que decidia. Mas, obviamente, não podia
decidir em relação a todos os assuntos do Estado: autorizar que Semiónova,
professora da escola, tirasse férias, decidir o que o kolkhoze «Aurora» ia
semear, ervilhas ou couves.
Embora o princípio do Estado sem liberdade exigisse que fosse exatamente
assim, que Stálin tomasse todas as decisões sozinho, isso era fisicamente
impossível, e as questões de segunda ordem eram resolvidas pelos homens de
confiança de Stálin, fazendo-o sempre da mesma maneira: de acordo com o
espírito stalinista.
Apenas por isso eram homens de confiança de Stálin, ou então homens de
confiança dos seus homens de confiança. Um traço comum unia as suas
decisões: eram tomadas no espírito de Stálin, fossem quais fossem, fosse o
projeto de construção de uma central hidroelétrica no baixo Volga, fosse o
envio da ordenhadeira Aniuta Feoktístova para um curso de dois meses. É
que a essência consistia em que o espírito stalinista e o espírito estatal eram
um só.
Os homens de confiança de Stálin-Estado eram sempre visíveis em
quaisquer reuniões, reuniões-relâmpago ou congressos – ninguém discutia
com eles, já que eles falavam por Stálin-Estado.
O facto de que o Estado sem liberdade agia sempre em nome da liberdade e
da democracia, tinha medo de dar um passo sem mencionar os seus nomes,
testemunhava a força da liberdade. Stálin não tinha medo de quase ninguém,
mas teve medo da liberdade, permanentemente e até ao fim da sua vida – ao
matá-la, lisonjeava a morta.
Quanto à opinião de que os acontecimentos dos tempos da coletivização e
dos tempos de Ejov eram manifestações absurdas de poder ilimitado e sem
controlo nas mãos de um homem cruel, é errada.
Na realidade, o sangue derramado nos anos trinta e trinta e sete era
necessário ao Estado. Sem ele, o Estado não teria sobrevivido. Porque foi a
não liberdade que derramou este sangue para superar a liberdade. Este
fenómeno já vem de longe, começou nos tempos de Lénin.
A liberdade foi coartada não só na área da política e da atividade social.
Foi-o também na agricultura – o direito de semear e de fazer a colheita
livremente; a liberdade foi cerceada na poesia e na filosofia, no ofício de
sapateiro, nas leituras, na mudança de residência; no trabalho dos operários, a
quem o Estado, e só ele, podia determinar as normas de trabalho, as
condições de segurança e os salários.
A não liberdade triunfava indivisamente desde o oceano Pacífico até ao
Mar Negro. Estava em tudo e por todo o lado. Em tudo e por todo o lado a
liberdade foi morta.
Era uma ofensiva vitoriosa, e era possível concretizá-la apenas à custa de
rios de sangue: é que a liberdade é vida, então, subjugando a liberdade, Stálin
matava a vida.
O caráter de Stálin manifestou-se no gigantismo dos planos quinquenais,
essas pirâmides trovejantes do século vinte que correspondiam aos
monumentos e palácios luxuosos da antiguidade asiática que encantaram a
alma de Stálin. Essas gigantescas obras de construção não serviam ao homem
para nada, do mesmo modo que os gigantescos templos e mesquitas eram
inúteis para Deus.
Com uma força proeminente, o caráter de Stálin encontrou a sua expressão
nos órgãos de segurança criados por ele.
As torturas nos interrogatórios, a atividade exterminadora da oprítchnina81,
criada para liquidar não só pessoas mas também estados sociais, os métodos
de instrução que se tinham desenvolvido desde Maliuta Skurátov até ao
conde Benkendorf82 – tudo isso encontrou os seus equivalentes na alma de
Stálin, na atividade do aparelho repressivo criado por ele.
O mais sinistro, contudo, era a equivalência que unia na natureza de Stálin
o elemento revolucionário russo ao elemento de polícia secreta, poderosa e
desenfreada, e também russa.
Esta junção da revolução com a fiscalização policial que se deu na natureza
de Stálin e se refletiu nos seus órgãos de segurança também tinha o seu
protótipo no Estado russo.
A união de Degáev, intelectual e membro da «Liberdade do Povo», e mais
tarde agente da polícia secreta, com o coronel Sudéikin, chefe da polícia
política, união que aconteceu nos anos em que Ióssif Djugachvíli era ainda
criança, tornou-se o protótipo dessa aliança sinistra.
Sudéikin, inteligente, cético, conhecedor e apreciador da força
revolucionária da Rússia, contemplador irónico da mediocridade do czar e
dos ministros que estava a servir, aproveitou o revolucionário Degáev para os
seus fins policiais. O militante da «Liberdade do Povo» Degáev serviu, ao
mesmo tempo, na revolução e na polícia.
Não estava previsto que os planos de Sudéikin se cumprissem. O que ele
queria era, com a ajuda da revolução, sendo conivente com ela e, a seguir,
fabricando casos falsos, intimidar o czar, apropriar-se do poder, tornar-se
ditador. Queria, encabeçando o governo, não deixar pedra sobre pedra da
revolução. Mas os sonhos atrevidos de Sudéikin não se realizaram. Degáev
matou Sudéikin.
Mas Stálin venceu. Na sua vitória, às escondidas de todos e dele próprio,
vivia a vitória do sonho de Sudéikin – atrelar ao carro dois cavalos: a
revolução e a polícia secreta.
Stálin, gerado pela revolução, acabou com a revolução e os revolucionários
por meio do aparelho policial.
Talvez a mania da perseguição de que sofria fosse provocada pelo medo
escondido na sua subconsciência – o mesmo medo que Sudéikin tinha de
Degáev?
O revolucionário da «Liberdade do Povo», submisso, dominado pela
polícia política, mesmo assim continuava a meter medo ao coronel da polícia;
mas o mais terrível era que ambos os personagens, pérfidos amigos-inimigos,
conviviam no covil apertado e escuro da alma de Stálin.
E talvez aqui, ou algures por perto, esteja a explicação do fenómeno que
criou a maior perplexidade às testemunhas do ano de 1937 – para que era
preciso, exterminando pessoas inocentes e fiéis à revolução, elaborar enredos
pormenorizados e falsos do início até ao fim sobre a sua participação em
conspirações inventadas, nunca existentes?
Com torturas insuportáveis que duravam dias, semanas, meses, às vezes
anos, os órgãos de segurança obrigavam os desgraçados contabilistas,
engenheiros, agrónomos a participarem em espetáculos teatrais,
desempenhando papéis de facínoras, agentes ao serviço do estrangeiro,
terroristas, sabotadores.
Porque se fazia tudo aquilo? Milhões de pessoas fizeram milhões de vezes
esta pergunta a si próprias.
Sudéikin, ao elaborar as suas encenações, tinha em mente enganar o czar.
Mas Stálin não precisava de enganar o czar – ele próprio era o czar.
Sim, sim, mas apesar disso, com as suas encenações, Stálin tentava enganar
um czar que, invisível, a despeito da sua vontade, vivia na escuridão secreta
da sua alma. O potentado invisível continuava a viver por todo o lado onde,
aparentemente, a não liberdade triunfava indivisa. Foi o único de quem Stálin
teve um medo mortal até ao fim dos seus dias.
Era a liberdade, em nome da qual, em fevereiro de 1917, começou a
revolução russa, e foi ela que Stálin, até à sua morte, não conseguiu vencer
com a violência sangrenta.
E o asiático que vivia na alma de Stálin tentava enganar a liberdade, usava
de manha, no seu desespero de acabar definitivamente com ela.
75 Semion Budiônni (1883-1973) – cabo militar soviético, participante da guerra civil, comandante do
Primeiro Exército de Cavalaria, marechal, três vezes Herói da União Soviética. (N. dos T.)

76 Karl Kautsky (1854-1938) – economista, historiador e publicista alemão. Teórico do marxismo


clássico. Heinrich Cunow (1862-1936) – historiador, sociólogo, etnógrafo e publicista alemão, um dos
teóricos da social-democracia alemã. Rudolf Hilferding (1877-1941) – marxista, líder da social-
democracia e político da Alemanha e da Áustria. Quando Hitler chegou ao poder, Hilferding emigrou
para França. Foi entregue aos nazis pelo governo de Vichy e morreu na prisão da Gestapo em Paris. (N.
dos T.)

77 «Proletkult» (Organização Proletária de Cultura e Educação) – organização de amadores de cultura,


educação, arte e literatura junto ao comissariado do povo (ministério) da Educação, de 1917 a 1932. A
ideologia desta organização consistia em que qualquer obra de arte reflete os interesses de uma só
classe, e por isso o proletariado devia criar a sua própria cultura a partir do zero. Rejeitando a herança
cultural russa, o Proletkult prejudicou muito o desenvolvimento artístico no país. (N. dos T.)

78 Cruzador «Almaz» – navio da Marinha Imperial Russa, construído em 1903. Em janeiro de 1918,
tomou parte numa revolta e estabelecimento do poder soviético em Odessa. Deixou uma memória
sinistra porque os marinheiros transformaram o cruzador numa espécie de calabouço. (N. dos T.)

79 Mikhaíl Saltikov-Chedrin (1826-1889) – escritor russo, autor de obras satíricas de forte crítica
social. (N. dos T.)

80 Serguei Netcháev (1847-1882) – ativista do movimento revolucionário russo, aventureiro político e


organizador de células terroristas. (N. dos T.)

81 Oprítchnina – denominação da política interna do czar Ivan, o Terrível em 1565-1572, com o fim de
enfraquecer a influência económica e política da grande aristocracia feudal, de realizar medidas de
escravização ainda mais profunda dos camponeses. Foi criado um aparelho especial e um exército
incontestavelmente obedientes ao czar, não sujeitos ao julgamento dos órgãos gerais e do tribunal do
Estado. Os fidalgos de oprítchnina recebiam terras confiscadas aos grandes senhores feudais que
sofreram também repressões muito cruéis. (N. dos T.)

82 Maliuta Skurátov (Grigóri Skurátov-Bélski) – um dos mais cruéis dirigentes e organizadores do


terror do czar Ivan, o Terrível. Aleksandr Benkendorf (1781-1844) – homem de Estado russo, um dos
principais realizadores da política reacionária do czar Nicolau I. Iniciador e, mais tarde, chefe da polícia
política. (N. dos T.)
25

Depois da morte de Stálin, a causa de Stálin não morreu. Do mesmo modo


que a causa de Lénin não morreu com a morte deste.
O Estado sem liberdade construído por Stálin está vivo. A potência da
indústria, das Forças Armadas, dos órgãos repressivos, criada por Stálin, não
fugiu das mãos do partido. A não liberdade, como antes, triunfa
inabalavelmente de um mar até ao outro. A lei do teatro que penetra tudo não
foi abalada, o mesmo sistema de eleições está em vigor, os sindicatos estão
acorrentados e escravizados como antes, os camponeses continuam sem
qualquer liberdade e privados de passaportes, os intelectuais do grande país
continuam a trabalhar, a fazer barulho, a zunir talentosamente nos seus
recintos de lacaios. Mantêm-se os mesmos botões no painel da direção do
país e o mesmo poder ilimitado do grande operador.
Porém, sem dúvida, muita coisa mudou inevitavelmente, era impossível
que não mudasse.
O Estado sem liberdade entrou na sua terceira etapa. A primeira: fundação
por Lénin. A segunda: construção por Stálin. Agora, a terceira etapa: o
acabamento, o Estado sem liberdade está construído, posto em
funcionamento, como dizem os construtores.
Muitas das coisas que foram necessárias no período de construção
tornaram-se inúteis. Acabou a época da destruição das casinhas velhas na
área de construção, do desalojamento dos moradores dos palacetes, das casas,
das cabanas destruídas.
O arranha-céus está povoado de novos habitantes. É claro, verificou-se que
tem muitas coisas não acabadas, mas já não há necessidade de recorrer
constantemente aos métodos de extermínio utilizados pelo antigo capataz, o
antigo patrão.
O fundamento do arranha-céus, a não liberdade, continua inabalável.
Mas o que virá a seguir? Será que este fundamento é mesmo inabalável?
Será que Hegel tinha razão e tudo no mundo é razoável? Será que o
desumano é real? Será razoável?
A força da revolução popular que começou em fevereiro de 1917 era tão
grande que nem o Estado ditatorial conseguiu abafá-la. Então, enquanto o
Estado, em prol de si próprio, estava a percorrer o seu terrível e cruel
caminho de crescimento e acumulação, levava no seu seio, sem dar por isso,
a liberdade.
A liberdade realizava-se na profunda escuridão e em profundo segredo.
Pela superfície da terra, um rio que se tornou realidade para todos corria com
estrondo, varrendo tudo no seu caminho. O novo Estado nacional,
proprietário de todos os incontáveis tesouros – fábricas, reatores atómicos,
todos os campos –, potentado indiviso de cada respiração viva, celebrava a
vitória. Como se a revolução tivesse acontecido em favor dele, em prol do
seu poder e triunfo milenar. Mas o potentado de metade do mundo não era
apenas o cangalheiro da liberdade.
A liberdade realizava-se a despeito do génio de Lénin, criador inspirado do
novo mundo. A liberdade realizava-se a despeito da violência
incomensurável, cósmica de Stálin. Ela realizava-se porque os seres humanos
continuavam a ser humanos.
O homem, que fez a revolução em fevereiro de 1917, o homem, que por
ordem do novo Estado criou os arranha-céus, as fábricas e os reatores
atómicos não terá outro desenlace a não ser a liberdade. Porque, criando um
novo mundo, o homem continuou a ser homem.
Ivan Grigórievitch compreendia tudo isso, por vezes com clareza, por vezes
nebulosamente.
Por mais altos que sejam os arranha-céus, por mais potentes que sejam os
canhões, por mais ilimitados que sejam o poder do Estado e a força do
império, tudo isso é apenas fumo e nevoeiro que vai desaparecer. O que se
mantém, se desenvolve e vive é a verdadeira força – a liberdade. Viver
significa ser livre. Nem tudo o que é real será razoável. Tudo o que é
desumano é também absurdo e inútil!
E Ivan Grigórievitch não se admirava por ver que a palavra «liberdade»
estava na sua boca quando, estudante, era levado para a Sibéria, e que agora
esta palavra continuava a viver, não desaparecia da sua cabeça.
26

Estava sozinho no quarto, mas refletia como se estivesse a conversar com


Anna Serguéevna.
«… Ouve, nos tempos mais difíceis costumava imaginar os abraços de uma
mulher. Pensava: eles são tão bons que encontramos neles o esquecimento,
deixamos de recordar as desgraças do passado, como se nunca tivessem
existido. Mas afinal, estás a ver, é precisamente a ti que devo contar o mais
penoso, e tu também falaste uma noite inteira. Afinal, a felicidade é partilhar
contigo aquela angústia que não se partilha com ninguém, só contigo.
Quando voltares do hospital, conto-te sobre a hora mais grave da minha vida.
Foi uma conversa na cela, numa madrugada depois do interrogatório. Na cela
tinha um vizinho, Aleksei Samóilovitch, já não está vivo, morreu naquela
altura, acho que era o homem mais inteligente que conheci na vida. Mas o
seu intelecto era pavoroso para mim. Não era mau, o mau não é pavoroso. O
seu intelecto não era mau, mas impassível, irónico em relação à fé.
Aterrorizava-me, mas o pior era que me atraía, eu não conseguia resistir. E a
minha fé na liberdade deixava-o indiferente.
«A sua vida correu mal. Aliás, foi uma vida como outra qualquer, nada de
especial, e estava na prisão pelo artigo 58-10, coisa muito vulgar entre nós.
«Mas tinha uma cabeça poderosa. O seu pensamento levantava-me como
uma onda, e eu até estremecia, como a terra com o golpe da onda oceânica.
«Voltei para a cela depois do interrogatório. A lista das violências é
infinita: fogueiras, técnicas de extermínio – castelos prisionais de muitos
andares, enormes como cidades regionais, campos correcionais. A pena de
morte começou com a moca que partia os crânios, com a corda de cânhamo.
Mas hoje em dia o carrasco liga o interruptor e mata cem pessoas, ou mil, ou
dez mil. Já não precisa de levantar o machado. O nosso século é um século da
maior violência do Estado sobre o homem. Mas a força e a esperança das
pessoas existe. Foi precisamente o século vinte que abalou o princípio
hegeliano do processo histórico mundial: “Tudo o que é real é razoável” –
princípio que, nas inquietas discussões de dezenas de anos, foi assimilado
pelos pensadores russos do século passado. E é precisamente hoje, na época
do triunfo da potência do Estado sobre a liberdade humana, que, derrubando
a lei hegeliana, os pensadores russos de casacos acolchoados prisionais estão
a elaborar o princípio superior da história mundial: “Tudo o que é desumano
é absurdo e inútil.”
«Sim, sim, sim, nos tempos do pleno triunfo da desumanidade tornou-se
evidente que tudo o que foi criado pela violência é absurdo e inútil, não tem
futuro, desaparece sem deixar rasto.
«É a minha fé, e foi com ela que voltei à cela. Mas o meu vizinho
costumava dizer-me:
«– Não tem sentido defender a liberdade, era antigamente que se via nela a
lei e a razão do desenvolvimento. Mas agora ficou claro: o desenvolvimento
histórico não existe em geral, a história é um processo molecular, o homem é
sempre igual a si próprio, não se pode fazer nada com ele, não há evolução.
Mas existe uma lei que é simples – a lei da conservação da violência. Tão
simples como a lei da conservação da energia. A violência é eterna, por mais
que se faça para a liquidar, não desaparece, não diminui, apenas se modifica.
Ora está na escravidão, ora na invasão tártaro-mongol. Ora se muda de
continente para continente, ora se torna violência de classes, ora passa a ser
racista, ora se transfere da esfera material para a religiosa, ora atinge as
pessoas de cor, ora os escritores e artistas. Mas a quantidade geral da
violência mantém-se sempre igual na terra, enquanto os pensadores tomam o
caos das suas metamorfoses por uma evolução e procuram as suas leis. No
entanto, o caos não tem leis nem evolução, nem sentido, nem objetivo. Olha
que Gógol, génio da Rússia, decantou a troica-ave, prevendo o futuro na sua
corrida, mas não foi com a troica de Gógol que surgiu o futuro. Ei-la, a
troica83: o destino burocrático russo, uma troica sem fisionomia, um tribunal
especial. Troica que condena ao fuzilamento, que elabora listas dos
camponeses condenados à expropriação, que expulsa um jovem da
universidade, que recusa um cartão de racionamento a uma velha pertencente
“às classes do antigo regime”.
«Então, da sua tarimba, levanta o dedo acusador contra Gógol:
«– Enganou-se, senhor Gógol, não compreendeu, não observou como era
devido a nossa troica-ave. A história das pessoas não está na corrida da
troica, mas no caos, na eterna transformação de um tipo de violência noutro.
A troica-ave corre, mas tudo está imóvel, imobilizado, é o homem e o seu
destino, sobretudo, que estão imóveis. A violência é eterna, por mais que se
faça para a eliminar. A troica corre e não quer saber da desgraça russa. Aliás,
o que interessa à desgraça russa – que a troica corra ou esteja parada? Então,
afinal não é da troica de Gógol que se trata, mas daquela ali, que está a
assinar as sentenças da pena capital…
«Estou a ouvi-lo, deitado na tarimba, e tudo o que eu, meio morto, tenho de
vivo é a minha fé: a história humana é a história da liberdade, da mais
pequena à maior, a história de toda a vida, desde a ameba até ao género
humano, é a história da liberdade, sim, e da transição da liberdade menor para
a liberdade maior, e da própria vida que também é liberdade. E esta fé dá-me
força, e ponho-me a apalpar, no meio dos farrapos prisionais, um pensamento
precioso, luminoso: “Tudo o que é desumano é absurdo e desaparece sem
deixar rasto.”
«Entretanto, Aleksei Samóilovitch, ao ouvir-me a mim, semimorto, diz:
«– Isso é apenas uma ilusão consoladora, porque a história da vida é a
história da violência não superada, a violência é eterna e indestrutível, ela
modifica-se, mas não desaparece nem diminui. A própria palavra “história”
foi inventada pelas pessoas, a história não existe, a história é o processo de
malhar no ferro frio, o homem não evolui do inferior até ao superior, o
homem é imóvel como uma rocha de granito, a sua bondade, o seu intelecto,
a sua liberdade são imóveis, o humano não cresce no homem. Que história do
homem pode haver se a sua bondade é imóvel?
«Então senti que nunca poderia ter na vida minutos mais penosos do que
aqueles. Estou deitado na tarimba e… meu Deus, o que é isto? É
precisamente um homem inteligente que me está a causar esta mágoa
insuportável, esta execução. Até respirar me é insuportável. E tenho apenas
um desejo – não ver, nem ouvir, nem respirar. Morrer. Mas o alívio chegou
de outro lado: voltaram a arrastar-me para o interrogatório, não me deixaram
recuperar o fôlego. Senti alívio. E tenho fé em que a liberdade esteja
iminente. Prò diabo com a troica-ave que voa, troveja e assina sentenças. A
liberdade vai unir-se à Rússia!
«Não estás a ouvir-me? Quando é que voltas para mim do hospital?»
Num dia de inverno, Ivan Grigórievitch levou Anna Serguéevna para o
cemitério. Não lhe fora destinado partilhar com ela tudo o que recordou, no
que refletiu, o que apontou durante os meses da sua doença.
Levou os pertences da falecida para a aldeia, passou um dia com Aliocha e
voltou ao trabalho na cooperativa.
83 Troica significa, em russo, um conjunto de três partes. Por exemplo, três cavalos atrelados, que
Nikolai Gógol compara à Rússia na sua corrida vertiginosa. Mas a «troica» adquiriu outro significado
desde o verão de 1919 quando os grupos de três pessoas que exerciam funções de luta contra os
elementos contrarrevolucionários se transformaram, pouco a pouco, numa espécie de tribunal que tinha,
inclusivamente, o direito de lavrar sentenças de pena capital. (N. dos T.)
27

No verão, Ivan Grigórievitch partiu para a cidade à beira-mar, onde, no


sopé de um monte verde, estava a casa do seu pai.
O comboio rodava ao longo da costa, juntinho ao mar, e numa curta
paragem Ivan Grigórievitch saiu da carruagem, olhou para a água verde e
negra, movediça, a cheirar à frescura salgada.
O mar e o vento existiam também naqueles dias em que o juiz de instrução
o chamava para o interrogatório noturno e quando estavam a cavar o túmulo
para um preso que morreu pelo caminho, e quando os cães de guarda
ladravam sob as janelas da barraca e a neve rangia sob os pés da escolta.
O mar é eterno, e esta sua liberdade eterna, aos olhos de Ivan Grigórievitch,
assemelhava-se à indiferença. O mar não queria saber de Ivan Grigórievitch
quando ele vivia a sua vida nas terras para lá do círculo polar, e, quando a sua
vida acabar, tudo isto será indiferente para a liberdade estrondosa e dançante.
Pensou: isto não é liberdade, é um espaço astronómico na terra, um
fragmento de eternidade, móvel e indiferente.
O mar não é liberdade, é um simulacro dela, um símbolo dela… Mas que
bela é a liberdade se um simples simulacro enche o homem de felicidade!
Depois de pernoitar na estação, de manhã cedo foi procurar a sua casa. O
sol outonal levantava-se no céu desanuviado, e era impossível distingui-lo do
sol primaveril.
Caminhava no silêncio deserto e sonolento, sentia-se tão perturbado que lhe
parecia que, desta vez, o coração que tinha aguentado tudo não ia aguentar.
Nestes momentos, o mundo tornou-se divinamente imóvel, o querido
santuário da sua infância era eterno e imutável. Os seus pés, em tempos,
pisavam estas pedras frescas, os seus olhos infantis perscrutavam estes
montes arredondados, tocados pela ferrugem outonal. Estava a ouvir o
barulho do riacho que corria até ao mar no meio do lixo urbano – cascas de
melancias e espigas de milho trincadas.
Um velho abkhaze de camisa de cetim preto com cinto fino de couro ia
pela rua na direção do mercado, levando um cesto de castanhas.
Se calhar, tinha sido a este homem imutável na sua velhice encanecida que
Ivan Grigórievitch comprara, na infância, castanhas e figos. E o ar matinal do
Sul, fresco e tépido, com cheiro a mar, a céu dos montes, a fumo e alho da
cozinha, a rosas, era o mesmo. E as casinhas com cortinas corridas, com
guarda-ventos fechados eram as mesmas. E as mesmas crianças de quarenta
anos atrás, sem terem crescido, e os mesmos velhos, sem terem ido para os
túmulos, estavam a dormir por trás dos guarda-ventos.
Saiu para a estrada, começou a subir o monte. O riacho marulhava. Ivan
Grigórievitch lembrava-se da sua voz.
Nunca tinha visto a sua vida na íntegra, mas desta vez viu-a.
E, ao vê-la, não sentiu rancor pelas pessoas.
Todos eles, aqueles que o levaram, empurrando-o à coronhada para o
gabinete do juiz de instrução, e aqueles que não o deixaram dormir nos
interrogatórios, e aqueles que fizeram discursos ignominiosos sobre ele nas
reuniões, e aqueles que abdicaram dele, e aqueles que lhe roubaram o pão no
campo correcional, que o espancaram – todos eles, na sua fraqueza, grosseria
e raiva cometeram o mal, mas não porque desejavam fazer-lhe mal.
Traíam, caluniavam, renegavam porque de outra maneira não poderiam
sobreviver. E mesmo assim eram seres humanos. Seria possível que essas
pessoas desejassem que ele, tendo perdido o seu amor, andasse, sozinho e
velho, na direção da sua casa abandonada?
As pessoas não desejavam mal a ninguém, mas faziam o mal durante toda a
vida.
E mesmo assim eram seres humanos. E, coisa estranha, milagrosa: quer
quisessem ou não, não deixavam que a liberdade morresse, e até os mais
terríveis deles a guardavam nas suas almas pavorosas, deformadas e mesmo
assim humanas.
Ivan não conseguiu nada na vida, depois da sua morte não deixará livros,
pinturas, descobertas. Não criou escola nem partido, não teve discípulos.
Por que razão a sua vida foi tão dura? Não pregava, não ensinava ninguém,
continuava a ser como foi de nascença – um homem.
Já se abria aos seus olhos o declive do monte, as copas dos carvalhos
começavam a avistar-se por trás da passagem montanhosa. Na infância andou
por ali, na penumbra florestal, olhava para os vestígios da vida desaparecida
dos circassianos – árvores de fruto tornadas bravas, restos de cercas à volta
das habitações.
Talvez a casa materna continuasse lá tão imutável como as ruas e o riacho
que acabava de ver: imutáveis.
Mais uma curva do caminho. Pareceu-lhe por um instante que uma luz
incrivelmente forte, nunca vista, inundava a terra. Mais uns passos – e no
meio daquela luz veria a casa, e a mãe sairia ao encontro do seu filho
pródigo, e ele cairia de joelhos em frente dela, e as suas belas e jovens mãos
pousariam na cabeça careca e encanecida dele.
Viu um matagal de espinheiros, de lúpulo. Não havia casa nem poço,
apenas algumas pedras brancas jaziam no meio das ervas poeirentas,
queimadas pelo sol.
Ficou parado ali – curvado, de cabelo branco, mas o mesmo, imutável.
POSFÁCIO
O Autor e o Livro

Vassili Grossman nasceu em 1905, na cidade ucraniana de Berdítchev. Fez


o curso de química na Universidade Estatal de Moscovo, trabalhou como
engenheiro químico nas minas de Donbass, depois no laboratório químico em
Donetsk. Publicou o seu primeiro livro (sobre a vida dos mineiros) em 1934.
Nos anos trinta escreveu contos e um romance dedicado ao movimento
revolucionário desde 1905 até à Primeira Grande Guerra. Esteve na frente de
combate, como repórter militar, todos os anos da guerra contra a Alemanha
nazi até à vitória. Participou na batalha de Stalinegrado. Em 1942, escreveu O
Povo é Imortal, novela dedicada aos feitos do povo na guerra; e, em 1945, O
Inferno de Treblinka com que abriu o tema do holocausto e, em coautoria
com Iliá Erenburg, O Livro Negro, coletânea de documentos e testemunhos
sobre os crimes contra os judeus no território da URSS e da Polónia nos anos
do holocausto, editada em Israel e nos Estados Unidos, mas não autorizada na
União Soviética. De 1946 a 1959, trabalhou nos romances Por uma Causa
Justa e Vida e Destino.
Quando, em 1961, durante a busca à casa do escritor Vassili Grossman, os
oficiais do KGB confiscaram o manuscrito do seu romance Vida e Destino,
levaram também o romance não acabado Tudo Passa, última obra do escritor,
em que trabalhou desde 1955.
O escritor não foi preso, não foi mandado para os trabalhos forçados da
Sibéria – os tempos eram «vegetarianos», era o degelo de Khruchiov. Os seus
livros sim, foram feitos prisioneiros políticos, condenados a não menos de
200 ou 300 anos de prisão, como lhe declarou Mikhaíl Suslov, membro do
Bureau Político do Partido. Uma verdadeira pena de morte! Mas, como disse
profeticamente Mikhaíl Bulgákov, «os manuscritos não ardem». Uma cópia
do romance Vida e Destino, escondida e guardada pelo poeta Semion Lípkin,
foi levada nos anos setenta para o Ocidente e publicada, primeiro na Suíça e
depois, no ano de 1988, na União Soviética. Quanto ao romance Tudo Passa,
Grossman reescreveu-o e completou-o, tendo acabado este trabalho em 1963,
pouco antes da sua morte. Com este livro, concluiu a sua grande obra épica
sobre o destino humano em condições de regime totalitário.
Se a história de Vida e Destino abrange os anos da Segunda Guerra
Mundial, sobretudo o ano de 1942, em que se desenrolou a batalha de
Stalinegrado, e as reflexões do autor se centram na análise do sistema estatal
totalitário, estabelecendo o paralelismo entre o regime stalinista e o regime
nazi hitleriano, nas relações entre a implacável máquina ditatorial e o ser
humano manipulado ou destruído por ela, nas ideologias que proclamam que
é justo sacrificar os seres vivos em nome do chamado futuro bem comum, e
também no problema: será que um homem fraco e indefeso é capaz de fazer
frente a um sistema todo-poderoso armado até aos dentes?, o livro Tudo
Passa conta uma história da época pós-stalinista, história de um ex-preso
político, um entre milhões de reabilitados postos em liberdade «por ausência
de corpo de delito», que volta a Moscovo depois de trinta anos de trabalhos
forçados na Sibéria e descobre que tudo mudou para ficar na mesma. Está
livre, mas onde? No país em que, como antes, não há liberdade. O grande
ditador desapareceu, a violência desenfreada abrandou, mas as pessoas
continuam sem direito a construir a sua vida por sua livre vontade, a ganhar o
seu pão de acordo com as suas capacidades, a ter e pronunciar em voz alta a
sua opinião, a viver em condições humanas. O mesmo patrão, o Estado
centralizado encabeçado pelo partido único e omnipotente, continua a impor
as suas leis e regras policiais. E a palavra liberdade torna-se a palavra-chave
deste livro. Sem liberdade a vida não existe – é esta a convicção do escritor e
do seu herói.
Grossman precisava de dizer até ao fim o que não disse no seu livro
anterior. Não contava com a possibilidade de publicação, por isso não sentia
impedimento, qualquer «censor interior». Queria descobrir a própria
natureza, a génese do totalitarismo, toda a verdade até ao fim.
As reflexões histórico-filosóficas que pertencem, convencionalmente, ao
personagem central, contêm as ideias do escritor sobre a liberdade e a «não
liberdade». O homem que passou praticamente toda a vida na escravidão
prisional conseguiu manter viva a sua dignidade, a sua alma humana, resistiu
à força que destrói o ser humano não só física mas também moralmente. E
sabe que foi resistente graças à sua fé, a fé na liberdade. Esta fé dá-lhe força.
O mesmo tema já aparece em Vida e Destino – os combatentes cercados pelo
inimigo num prédio semidestruído de Stalinegrado tornam-se invencíveis
porque as circunstâncias terríveis os tornaram livres, livres do controlo dos
comissários políticos, da polícia militar, da burocracia soviética que, mesmo
na frente de combate, preza mais a papelada dos relatórios do que as vidas
humanas.
Então, raciocina o escritor juntamente com o seu herói, como é possível
que depois de tantas lutas pela liberdade, em prol da liberdade do povo de
acordo com todos os lemas e manifestos, o povo continue escravo? Pelo mau
feitio do chefe do Estado? Grossman refuta esta explicação e procura as
causas na história milenar do país – escravidão, servidão, «não liberdade»,
ausência da democracia desde sempre. E logo depois de desenhar este quadro
desesperado, afirma: seja como for, a liberdade existe, não morre nunca. O
ser humano, enquanto vive, traz em si, na sua natureza, este inestimável valor
– a liberdade. A esperança está viva.
Filipe Guerra
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