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Política Social e Cooperação
no Centro-Oeste Brasileiro
Apoio:
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Comitê Científico Alexa Cultural
Presidente
Yvone Dias Avelino (PUC/SP)
Vice-presidente
Pedro Paulo Abreu Funari (UNICAMP)
Membros
Adailton da Silva (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Alfredo González-Ruibal (Universidade Complutense de Madrid - Espanha)
Ana Cristina Alves Balbino (UNIP – São Paulo/SP)
Ana Paula Nunes Chaves (UDESC – Florianópolis/SC)
Arlete Assumpção Monteiro (PUC/SP - São Paulo/SP)
Barbara M. Arisi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Benedicto Anselmo Domingos Vitoriano (Anhanguera – Osasco/SP)
Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira (PUC/SP – São Paulo/SP)
Claudio Carlan (UNIFAL – Alfenas/MG)
Denia Roman Solano (Universidade da Costa Rica - Costa Rica)
Débora Cristina Goulart (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Diana Sandra Tamburini (UNR – Rosário/Santa Fé – Argentina)
Edgard de Assis Carvalho (PUC/SP – São Paulo/SP)
Estevão Rafael Fernandes (UNIR – Porto Velho/RO)
Evandro Luiz Guedin (UFAM – Itaquatiara/AM)
Fábia Barbosa Ribeiro (UNILAB – São Francisco do Conde/BA)
Fabiano de Souza Gontijo (UFPA – Belém/PA)
Gilson Rambelli (UFS – São Cristóvão/SE)
Graziele Acçolini (UFGD – Dourados/MS)
Iraíldes Caldas Torres (UFAM – Manaus/AM)
José Geraldo Costa Grillo (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Juan Álvaro Echeverri Restrepo (UNAL – Letícia/Amazonas – Colômbia)
Júlio Cesar Machado de Paula (UFF – Niterói/RJ)
Karel Henricus Langermans (ECA/USP- São Paulo/SP)
Kelly Ludkiewicz Alves (UFBA – Salvador/BA)
Leandro Colling (UFBA – Salvador/BA)
Lilian Marta Grisólio (UFG – Catalão/GO)
Lucia Helena Vitalli Rangel (PUC/SP – São Paulo/SP)
Luciane Soares da Silva (UENF – Campos de Goitacazes/RJ)
Mabel M. Fernández (UNLPam – Santa Rosa/La Pampa – Argentina)
Marilene Corrêa da Silva Freitas (UFAM – Manaus/AM)
María Teresa Boschín (UNLu – Luján/Buenos Aires – Argentina)
Marlon Borges Pestana (FURG – Universidade Federal do Rio Grande/RS)
Michel Justamand (UNIFESP - Guarulhos/SP)
Miguel Angelo Silva de Melo - (UPE - Recife/PE)
Odenei de Souza Ribeiro (UFAM – Manaus/AM)
Patricia Sposito Mechi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Paulo Alves Junior (FMU – São Paulo/SP)
Raquel dos Santos Funari (UNICAMP – Campinas/SP)
Renata Senna Garrafoni (UFPR – Curitiba/PR)
Renilda Aparecida Costa (UFAM – Manaus/AM)
Rita de Cassia Andrade Martins (UFG – Jataí/GO)
Sebastião Rocha de Sousa (UEA – Tabatinga/AM)
Thereza Cristina Cardoso Menezes (UFRRJ – Rio de Janeiro/RJ)
Vanderlei Elias Neri (UNICSUL – São Paulo/SP)
Vera Lúcia Vieira (PUC – São Paulo/SP)
Wanderson Fabio Melo (UFF – Rio das Ostras/RJ)
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Liliane Capilé Charbel Novais
Evilasio Salvador
Organizadores
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© by Alexa Cultura
Direção
Gladys Corcione Amaro Langermans
Nathasha Amaro Langermans
Editor
Karel Langermans
Capa
K Langer
Revisão Técnica
Evilasio da Silva Salvador
Revisão de língua
Marisa de Lucca
Editoração Eletrônica
Alexa Cultural
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
268 p. : il. ; 14 x 21 cm
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-89677-67-3
CDD 361.61
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PREFÁCIO
Ivanete Boschetti1
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campus, das muitas reuniões de planejamento e elaboração do MIN-
TER e DINTER, dos processos de orientação e da calorosa acolhida
dessa cidade que é quente na temperatura e na simpatia, e refresca
seus visitantes com uma das mais belas Chapadas brasileiras. Trata-
-se, portanto, de uma atividade que não é somente tarefa de trabalho,
mas que registra o carinho e admiração por um corpo docente e dis-
cente imbuído de um compromisso e engajamento com o fortaleci-
mento do Serviço Social, para muito além de sua localidade geográ-
fica, como atesta a participação de docentes também nas entidades
da categoria como ABEPSS e CFESS.
Podemos afirmar que o/a leitor/a encontrará na coletânea que
segue uma diversidade temática que revela a riqueza das pesquisas
que estruturam a direção teórico-política do PPGPS/UFMT. Apesar
dessa diversidade, alguns elementos “costuram” as produções aqui
apresentadas ao público.
O primeiro a ser destacado é a preocupação e dedicação dos/
as autores/as com a vinculação de suas reflexões majoritariamente
ancoradas na tradição marxista ou, mais amplamente, no campo crí-
tico. Seja pelo ângulo da incursão no debate teórico metodológico da
necessária unidade entre exploração e opressão ou discussão sobre
gênero nas relações capitalistas patriarcais; seja pela ótica das expres-
sões de miserabilidade e pauperismo determinadas pela expropria-
ção de meios de produção, fundo público e direitos; seja pela pers-
pectiva da conformação de frações da sociedade civil que expressa
o avanço contemporâneo da extrema direita em sua ofensiva contra
a classe trabalhadora, especialmente na destruição dos direitos do
trabalho, e instituição de novas modalidades de tecnologia a serviço
do capital e da precarização das relações e condições de trabalho;
seja ainda pelo realce das bárbaras situações de exploração e abuso
sexual infantil e as contradições que cercam a lei de drogas no Brasil.
A miríade dos assuntos revela, como segundo elemento a ser
destacado, a interdisciplinaridade dos/as pesquisadores/as e douto-
randos/as que se agrupam em torno do Programa de Pós-Graduação
em Política Social e o atribuem uma rica possibilidade de interlocu-
ção teórica e política.
Sobressai dessa coletânea, igualmente o investimento da pes-
quisa em temas que não se restringem às particularidades regionais.
Ao contrário, as produções ganham relevância ao articular determi-
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nações estruturais dos processos analisados, com nítida perspecti-
va de totalidade, que constitui uma categoria essencial do método
dialético-materialista.
Tais considerações já justificariam sua publicação e leitura,
mas o conjunto de reflexões se preocupa em se ancorar teórica e
politicamente no tempo presente. Dito de outro modo, não foge à
exigência crítica de desnudar os agressivos e acelerados processos
em curso de avanço do ultraneoliberalismo empenhado em destruir
conquistas históricas e civilizatórias, a exemplo das contrarreformas
do trabalho, da previdência, da saúde, da educação, que transformam
direitos sociais em mercadorias para alimentar a sanha da acumula-
ção do capital. Também não se furtam de qualificar as posturas nega-
cionistas e antidemocráticas que se apoderam do Estado e o poten-
cializam como espaço de fomento da intolerância, da discriminação,
da violência contra mulheres, população LGBTQ, juventude negra,
quilombolas e povos originários. Que se esmera em (des)regulamen-
tações que favorecem a destruição das florestas, rios, cerrados e faz
avançar as mais destrutivas formas de exploração do capital sobre a
terra, a água, os minérios, as matas, e que estimula um agronegócio
exportador que enriquece os grandes latifúndios na mesma medida
em que aumenta a fome e a insegurança alimentar no Brasil.
Trata-se, portanto, de um livro que tem posição e a expres-
sa a partir de pesquisas e reflexões críticas e fundamentadas. E que,
certamente, contribuirá para consolidar o PPGPS/UFMT e mostrar
que a universidade pública é fonte pulsante de vida, de pesquisa, de
ciência, de produção, a serviço da transformação social.
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
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A POLÍTICA DA MISERABILIDADE:
como a financeirização e as políticas governamentais levam ao
empobrecimento do trabalhador
Jonas Albert Schmidt e Evilasio da Silva Salvador
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- 11 -
RELAÇÕES SOCIAIS, PODER E ABUSO SEXUAL INFANTIL:
ruptura ou continuidade pós-31 anos do Estatuto da Criança e do
Adolescente no Brasil?
Leila Chaban e Maria Lúcia Pinto Leal
- 125 -
POLÍTICAS SOCIAIS ENQUANTO MEDIAÇÃO DE SEGUNDA
ORDEM DO CAPITAL E FORMAS DE ESTRANHAMENTO
Lélica Elis Pereira de Lacerda
- 143 -
AS CONTRADIÇÕES NA IMPLEMENTAÇÃO DOS SERVIÇOS
DIGITAIS E DO TELETRABALHO NO INSTITUTO NACIONAL
DO SEGURO SOCIAL
Murilo Oliveira Souza e Maria Lucia Lopes da Silva
- 161 -
CRISE ECOLÓGICA:
expressão contemporânea da crise estrutural do capital
Mariele Schmidt Canabarro Quinteiro e Perci Coelho de Souza
- 179 -
A NOVA POLÍTICA ENTRA EM CENA:
trajetória e atualidade da nova direita na América Latina no século XXI
Ruteléia C. de Souza Silva
- 197 -
A APROPRIAÇÃO DO FUNDO PÚBLICO PELO CAPITAL POR
DENTRO DO SUS:
particularidades de sua expressão no Estado de Mato Grosso
Maria Salete Ribeiro e Sandra Oliveira Teixeira
- 219 -
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE GÊNERO NA
SOCIABILIDADE DO CAPITAL
Qelli Viviane Dias Rocha e Sandra Oliveira Teixeira
- 241 -
SOBRE OS (AS) AUTORES (AS)
- 261 -
- 12 -
APRESENTAÇÃO
É um trator, é um trator
As águas que correram dos meus óio
Águas que eu não esperava
As águas que correram dos meus óio.
Essas mesmas águas me lavavam
As águas que correram dos meus óio
Vindas da natureza
As águas que correram dos meus óio
Dos tambores do Mestre Beleza
Cátia de França
- 13 -
realidade em agosto de 2017, com as condições objetivas para sua
realização, recebendo docentes do Departamento de Serviço Social
da UFMT; da Universidade do Estado de Mato Grosso(UNEMAT); e
egressas(os) do PPGPS vinculados a diferentes órgãos públicos, tan-
to do poder executivo como do judiciário, o que reforça a importân-
cia do PPGPS da UFMT no cenário regional.
E, seguindo uma tendência da área de Serviço Social construí-
da pela ABEPSS foi concebida esta nova parceria, objeto da solida-
riedade do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UnB
com o PPGPS/ICHS/UFMT, com duração até julho de 2021, prorro-
gado até julho de 2022 em função da pandemia da COVID-19.
Os textos aqui apresentados resultam das pesquisas e refle-
xões dos Doutorandos do DINTER e das docentes do PPGPS/ICHS/
UFMT. Dispostos de forma intercalada, as temáticas circunscrevem-
-se na área de concentração Estado, Política Social e Direitos do PP-
GPS-UnB em sintonia com a área de concentração Política Social,
Estado, Sociedade e Direitos Sociais do PPGPS/UFMT.
Compartilhamos, assim, além das reflexões teóricas, uma histó-
ria ainda em construção de parceria e solidariedade, o que pode pare-
cer muito estranho nestes tempos bicudos, mas que acrescenta muito
na produção da análise da Política Social no cerrado brasileiro.
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PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS PARA
O DESVENDAMENTO DA UNIDADE
EXPLORAÇÃO-OPRESSÃO
Paulo Wescley M. Pinheiro1
Ivanete Boschetti2
INTRODUÇÃO
Nas reflexões sobre a articulação entre luta de classes e
opressões persistem polêmicas já conhecidas, entre elas se destacam
questionamentos como: se há alguma hierarquia, equivalência, in-
tersecção ou consubstância entre as diferentes formas de desigualda-
des; se o debate da predominância das classes sociais no capitalismo
é fundamentalmente economicista. Para essas e outras provocações
é fundamental demonstrar como a exploração e as opressões se pro-
cessam como uma unidade ontológica.
Nessa direção, é decisivo aprofundar questões do método
marxiano e da tradição marxista para superar reduções e equívo-
cos teóricos. Esse debate ilumina a potencialidade sobre o tema no
campo materialista e, principalmente, desvenda as manutenções e
complexidades das manifestações que permanecem vitais para a so-
ciabilidade do capital.
A produção teórica de Karl Marx elucidou os processos ba-
silares do modo de produção capitalista, evidenciando as leis gerais
que estruturam o advento e a manutenção do antagonismo de classes
na sociabilidade burguesa. Nessa realização teórico-metodológica
decifrou-se o princípio ontológico do ser social e as possibilidades
radicais de conhecimento da realidade e de sua transformação. Essa
condição é o ponto de partida para desvendar a complexificação do
modo de vida burguês, necessitando sempre de novos estudos e aná-
lises que captem a dinamicidade da hegemonia da sociedade do ca-
pital e suas novas formas de organização.
1 Docente assistente do Departamento de Serviço Social da UFMT. Mestre em Serviço
Social, Trabalho e Questão Social pela UECE. Doutorando em Política Social pela UnB.
2 Docente titular da Escola de Serviço Social da UFRJ. Mestre em Política Social pela
UnB. Doutora e pós-doutora em sociologia pela EHESS/Paris.
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Na tradição marxista, várias(os) intelectuais e militantes atra-
vessaram o último século formulando diferentes construções teó-
ricas, com distinções, limites e possibilidades, realizando distintas
ênfases metodológicas sobre as opressões e articulando uma leitura
radical e de totalidade sobre a diversidade, as particularidades e as
desigualdades constitutivas da sociedade de classes e da exploração
do trabalho.
Nessa perspectiva, aprofundamos as dimensões do método
pensando a substância da dimensão de unidade dialética que evi-
dencia questões de suprassunção e continuidade na descontinuidade
entre exploração e opressão. Essa é uma leitura que busca demons-
trar a síntese entre universalidade-particularidade-singuralidade,
realizando o desvendamento das questões de classe social, raça/etnia
e gênero/sexo, destacando a sociabilidade capitalista com diversas
determinações históricas que aprofundam a transmutação da diver-
sidade humana em desigualdades sociais.
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las(os) autoras(es) que pensaram a questão racial por uma perspec-
tiva revolucionária, pela luta radical anticolonialista e pelos debates
anti-imperialistas das particularidades regionais.
Frente a essa tarefa fundamental, não raramente, quem de-
bateu (e debate) as opressões sob a lente do materialismo histórico
e dialético foi (e ainda é) classificado como heterodoxo. Um pres-
suposto falso como demonstraremos com o debate sobre método.
Esse tipo de adjetivação advém, por dentro e por fora da tradição
marxista, trazendo a ideia de ortodoxia compreendida como uma
repetição amorfa das palavras de Marx e Engels, empobrecendo as
reflexões dos autores e produzindo um reducionismo explicativo de
viés estruturalista e economicista, portanto, muito distantes do que
Karl Marx e Engels enraizaram em sua teoria social, afinal:
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social, ou, nos termos de Lenin, a análise concreta de situações con-
cretas.
Isto posto, reconhecemos - e partimos desse princípio- que
os sujeitos individuais e coletivos que constituíram uma leitura da
realidade e direcionamento político pautados pelo estruturalismo e
economicismo podem, no máximo, serem colocados dentro de uma
derivação vulgarizada do marxismo.
Em contraposição a isso, reafirmamos que o processo coletivo
que buscou aprofundar a construção teórica e política marxiana, não
abrindo mão do rigor científico e da construção revolucionária, se
constituiu necessariamente pela busca das mediações de suas parti-
cularidades. Nesse sentido, a busca pelas determinações da realidade
de forma objetiva, rigorosa, essencialmente radical e crítica, portan-
to, disciplinada, rebelde e criativa, é detentora legítima da ortodoxia
teórico-metodológica.
Revelar questões de método demonstra que o debate marxista
sobre as opressões potencializou o fazer teórico e político como uma
práxis ortodoxa, orgânica, conectada com a realidade e, por isso,
crítica, desvendando não somente elementos essenciais da unidade
exploração-opressão, mas expressando a vivacidade do marxismo.
2.1. Questões do método marxista e a exploração-opressão
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Marx realizou um processo de abstração racional para encon-
trar a essência do capital em seu conteúdo material e histórico, indo
do “ real e pelo concreto, pelo pressuposto efetivo [...] à reprodução
do concreto por meio do pensamento” (MARX, 2011, p.54). Nesse
sentido, como coloca o próprio Marx, na construção de sua teoria
social buscou superar:
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epistemológicas, aprofundando a dimensão ontológica na tessitura
dialética entre objetividade e subjetividade, no desvendamento das
determinações, por uma perspectiva de totalidade que busca as me-
diações entre universalidade-particularidade-singularidade.
Assim, a noção de unidade, mais ampla do que uma sim-
ples relação, denota a complexidade de uma percepção que parte da
aparência para uma compreensão de uma essência que busca a não
ruptura entre os complexos da produção e reprodução social, do su-
jeito e da sociedade, do indivíduo e da coletividade, da cultura e da
história, de método e teoria. A noção de historicidade e desnatura-
lização do cotidiano são postulados para superação das dimensões
fenomênicas.
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parte do processo e também da coisa-em-si. Pensando a dinamicida-
de do real, cada dimensão do esquema tese-antítese-síntese são, em
si, “constituições sintéticas contraditórias” de outros processos. As-
sim, embora o processo de investigação sobre as determinações do
real e a formulação teórica precise da dissolução dos objetos em seus
processos, isto pressupõe a ideia de unidade, seja da coisa-em-si, seja
dos processos e mediações ali inter-relacionadas.
Em suma, a dialética materialista supera uma lógica pendular
de pensar o mundo, pois, um processo histórico presente não é re-
duzido a uma só coisa, sendo, ao mesmo tempo, algo radicalmente
novo e algo que resguarda elementos daquilo que o constituiu pelas
conexões anteriores.
O descortinamento da contradição inerente das determina-
ções sociais amplifica a lente crítica transmutando toda rigidez em
processualidade. O real, histórico e eminentemente social, é repleto
de determinações, onde coexistem elementos predominantes e cau-
salidades constitutivas que objetivam os tensionamentos próprios
dessa dinamicidade.
Para conhecer, o ser humano precisa de meios e quanto mais
complexo é o conhecimento mais complexo será o conjunto de téc-
nicas, instrumentos e procedimentos necessários. Por isso, em se
tratando do conhecimento científico numa perspectiva crítica - e de
teoria social para transformação política - é preciso pensar as dife-
rentes formas de materializar o método desenvolvido e expresso na
teoria marxiana a partir de tripla dimensão, indissociável: ontológi-
ca, reflexiva e procedimental.
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Método e teoria são uma unidade ontológica e não se relacio-
nam com constituição derivativa. É dentro da dimensão concreta da
historicidade que se pode desvendar as determinações das constru-
ções inerentes ao ser humano como ser social.
Essa construção não se processa como um conjunto de fatos
cronologicamente organizados, onde o passado pode iluminar o
presente, mas sim como “continuidade na descontinuidade”, onde os
fenômenos mais complexos do presente se constituem tanto de uma
processualidade construída dentro dos diversos complexos sociais,
tais quais os limites e as possibilidades das particularidades são de-
terminados pelo chão da história.
Se entendermos que práxis é um processo de ação e reflexão
que só existe em unidade, podemos evidenciar as minúcias da pro-
dução de conhecimento crítico e radical, afirmando a dimensão do
ser social, com a ampliação dos processos de humanização e socia-
lização que historicamente permite a sofisticação das relações, de-
mandando novos conhecimentos e acumulando possibilidades de
produzi-los de forma cada vez mais elaborada.
O elemento central é demonstrar que para chegar à raiz de
um fenômeno e de todas as suas determinações, o processo de cons-
trução necessita de uma direção teórico-metodológica que busque a
essência do objeto de estudo, evidenciando sua base histórica e ma-
terial, sua dinamicidade e suas possibilidades de transformação.
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ficação de sua socialização e seu conhecimento coletivo, onde “o ser
social é a única esfera da realidade na qual a práxis cumpre um papel
de ‘conditio sine qua non’ na conservação e no movimento das obje-
tividades, em sua reprodução e em seu desenvolvimento”. (LUKÁCS,
2012, p. 27).
O reconhecimento de elementos predominantes de uma uni-
dade faz parte da busca por sua essência e convive com a necessidade
de desenvolver ênfase metodológica neste aspecto, mas também em
todos os outros que cumprem papel particular na formulação estru-
tural de sustentação desse objeto.
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em desigualdades fundadas no advento da propriedade privada, mas
constituem algo ainda mais profundo, resguardando um ineditismo
que se materializa não somente por uma absorção circunstancial de
características culturais do campo das opressões, mas na desuma-
nização socialmente construída. Por tudo isso, o descortinamento
de mediações e das particularidades não são um mero detalhe, mas
tarefa fundamental para uma dimensão de totalidade.
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ploração salarial, configurando uma sociedade massivamente ju-
ridicizada sob a forma do contrato salarial e “civilizada”. Se Marx
criticava a origem idílica do capital, aqui se trata de uma figuração
idílica da historicidade regida pelo capital.
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Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo,
mestre de corporação e companheiro, em resumo, opressores e
oprimidos, em constante oposição […] A moderna sociedade bur-
guesa, que brotou da ruína da sociedade feudal, não aboliu os an-
tagonismos de classes. Não fez mais que estabelecer novas classes,
novas condições de opressão, novas formas de luta no lugar das que
existiram no passado.” MARX e ENGELS, 2005, p.40).
Netto (1998, p.26) vai destacar que essa forma de utilização
das categorias exploração e opressão, quase como sinônimas, de-
monstra uma característica própria do desenvolvimento do pensa-
mento marxiano e sua processualidade ainda imatura no Manifesto
Comunista. Essa formulação é importante para a compreensão mais
elaborada da crítica da economia política feita posteriormente:
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Na sociedade do capital, esta relação se estabelece com me-
diações capciosas, obscurecidas na equivalência do mercado, na tese
de emancipação política do projeto burguês e nas determinações
ideológicas que amortecem a visibilidade da essência da unidade ex-
ploração-opressão, expandindo as nuances dos aspectos valorativos
para além da esfera do trabalho e se manifestando também no inte-
rior das classes antagônicas. A naturalização da desvalorização da
força de trabalho de setores historicamente oprimidos, promovendo
maior pauperismo e a invisibilização da importância das atividades
da reprodução social são questões nevrálgicas desse processo.
Assim, a categoria exploração da força de trabalho tem em
seu cerne um fator objetivo, materialmente ancorado nas relações de
produção e na forma como elas espraiam suas determinações para os
sujeitos que a vivenciam. O processo de exploração resguarda objeti-
vidade e identidade com a forma como a sociedade produz e sociali-
za a riqueza social. No entanto, essa predominância do fator objetivo
não retira suas expressões subjetivas e sua realização particular atra-
vessada pelas dimensões históricas e cotidianas das opressões.
Na mesma direção, o caráter concentrado na reprodução so-
cial, elemento próprio das opressões no capitalismo, reflete um cará-
ter subjetivo pujante, mas não exclui dessa categoria as suas caracte-
rísticas objetivas. As expressões do campo das opressões existem, na
realidade, e não são um mero conjunto de simbologias, percepções
individuais e relações singulares. Elas têm função social para a lógica
burguesa, constituem sua estrutura e se manifestam promovendo a
perpetuação da coisificação humana em todos os planos da vida so-
cial.
Por isso, para compreender essa unidade é fundamental mer-
gulhar nas articulações feitas sobre classe-raça/etnia-gênero como
elementos estruturantes da sociedade do capital, mas, principalmen-
te, que fundamentalmente pensemos à perspectiva ontológica do ser
social, afinal
O trabalho, nesta sociedade hetero-patriarcal-racista-capitalista,
possui três divisões estruturais associadas entre si: a) a divisão so-
cial, fundada nas relações entre classes sociais; b) a divisão racial,
fundada nas relações sociais de raça; c) a divisão sexual, fundada
nas relações sociais de sexo. As relações sociais são perpassadas pela
apropriação do trabalho de um grupo ou classe sobre outro. São
essas relações sociais, mediadas por antagonismos e hierarquias,
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que processam a produção e a reprodução sociais, permeadas pela
exploração da força de trabalho e pelas opressões a elas vinculadas
(CISNE; SANTOS; 2018, p. 25).
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extrapolam a dimensão econômica e complexificam a relação capi-
tal-trabalho.
À GUISA DE CONCLUSÃO
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temáticas advém da constatação de que são determinações fundamen-
tais à sociedade do capital, sendo a superação de suas desigualdades
tarefas para o esgotamento da unidade exploração-opressão.
REFERÊNCIAS
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marxista. São Paulo, Martins Fontes, 2003.
MARINI, Ruy Mauro.. Dialética da dependência. Petrópolis, Rio de
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MARX, K. . O Capital. Crítica da Economia Política: livro I, v. 1, 27ª
ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
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– Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
______. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esbo-
ços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011.
______. Contribuição à crítica da economia política. 2 ed. – São
Paulo: Expressão Popular. 2008.
MARX, K; ENGELS, F.. Manifesto do Partido Comunista. 3 ed. Rio
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2005.
MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo, Edi-
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Comunista. In: MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Co-
munista. São Paulo: Cortez, 1998.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo,
Perseu Abramo, 2004.
SANTOS, Silvana M. Diversidade sexual: fonte de opressão e de li-
berdade no capitalismo.Argumentum., Vitória, v. 9, n. 1, p. 8-20,
jan./abr. 2017.
SCHNEIDER. Graziela Schneider (org.). A revolução das mulhe-
res: emancipação feminina na Rússia soviética: artigos, atas panfle-
tos, ensaios. Boitempo, São Paulo, 2017
SOUZA-LOBO, Elisabeth. A Classe operária tem dois sexos: traba-
- 32 -
lho, dominação e resistência. São Paulo: Perseu Abramo. Secretaria
Municipal de Cultura e Brasiliense, 2010.
TADDEI, PAULO EDUARDO DIAS. Marx e Freire: a exploração e
a opressão nos processos de formação humana. Dissertação apresen-
tada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal de Pelotas, Pelotas -RS, 201
TOLEDO, Cecília (org). A mulher e a luta pelo socialismo: clássi-
cos do marxismo. Marx, Engels, Lenin, Clara Zetkin, Trotsky. São
Paulo, Editora José Luis e Rosa Sundermann, 2012
ZETKIN. Clara. Lênin e o Movimento Feminino. Ed. Vitoria, 1956.
Disponível in: https://www.marxists.org/portugues/zetkin/1920/
mes/lenin.htm. Acesso em 18/08/2021
- 33 -
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ENTRE APROPRIAÇÃO E DESPOSSESSÃO:
as remoções involuntárias de moradias nas cidades
Betina Ahlert1
INTRODUÇÃO
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Coloca-se uma contradição evidente entre a efetivação do
direito à cidade e os processos de transformação urbana que acon-
tecem cotidianamente. Os benefícios proporcionados pelo desenvol-
vimento do espaço não são igualmente ofertados e usufruído por
todos/as. A contradição se coloca ainda mais evidente no atual mo-
mento histórico, resultante de um período de democratização e lutas
populares incorporadas na Constituição Federal de 1988, impacta-
das pelas contrarreformas, pelo golpe político e pelo avanço do con-
servadorismo, de forma a diminuir os direitos sociais que coadunam
com o direito à cidade, que se soma à reinvestidas em processos de
remoção forçada e despejos.
A análise apresentada neste capítulo é parte da pesquisa que
integra a tese de doutorado2 da autora, que foi realizada através de
pesquisa bibliográfica e de campo, na análise de dois programas de
remoção de famílias na cidade de Porto Alegre. Apesar do recorte
territorial da pesquisa de campo, pelos estudos realizados percebe-
mos que existem aspectos comuns que estruturam os processos de
remoção involuntária de famílias em diferentes contextos no Brasil.
O artigo discute incialmente a cidade mercantilizada, para
posteriormente localizar as remoções involuntárias de moradias e fa-
mílias nesse contexto, buscando entender a sua utilização como uma
das estratégias de mercantilização e valorização da terra. Por fim,
apresenta elementos vinculados à percepção e às vivências de famí-
lias que sofreram ações de desocupação sobre a insegurança de posse
e o atendimento prestado pelo Estado no processo de desocupação.
- 36 -
tido, no âmbito da teoria crítica, a cidade capitalista se caracteriza,
por um lado, pela concentração dos meios de consumo coletivos,
que criam modos de vida e novas necessidades sociais; e por outro,
e pela aglomeração do conjunto dos meios de produção – capital e
força de trabalho –, condição determinante para a perpetuação do
modelo econômico (LOJKINE, 1979). Ainda há de se considerar que
a urbanização passa a ser uma das estratégias do capital para lidar
com as crises na história da humanidade, em conjunto com os inves-
timentos nas guerras (HARVEY, 2013).
Lefebvre (1999) aponta como as cidades são importantes no
ciclo da mais valia através da análise das funções e estruturas da for-
ma urbana nos três momentos da acumulação: na formação da mais
valia, na sua realização e na sua distribuição. Assim, considera que
na formação da mais valia a cidade não é essencial, mas sim a indús-
tria e a produção agrícola. Contudo, ela dá as condições de fundo
para o desenvolvimento da sociedade burguesa e da força produtiva,
porque mantém a divisão do trabalho. Na realização da mais valia
a urbe passa a primeiro plano, em decorrência da existência de um
mercado e de um sistema bancário que permitem ao dinheiro cum-
prir sua função: parâmetros de valor de troca, circulação de merca-
dorias, meios de pagamento. Do ponto de vista da distribuição da
mais valia, a forma urbana passa ao nível mundial, já que existe um
mercado para além das fronteiras nacionais.
A estrutura que possibilita a mercantilização da cidade é a
propriedade privada de uma maneira geral e a propriedade privada
da terra, em particular. Essa última é que possibilita que o capitalista
tenha renda sem mesmo investir na mesma, posto que o Estado tem
papel fundamental de garanti-la e protegê-la (LEFEBVRE, 2009).
Enquanto representante da burguesia, o Estado passa a desenvolver
funções essenciais para a formação do espaço urbano como campo
de investimento gerador de mais valia (ROLNIK, 1995). Além disso,
é também ele que cria o marco regulatório e os instrumentos legais
que visam garantir a proteção da propriedade privada.
Não conseguiremos neste estudo aprofundar a análise so-
bre o papel das cidades para a manutenção da acumulação através
de uma leitura histórica, restringimo-nos a realizar apontamentos
sobre seu entendimento na teoria crítica e no contexto atual, a partir
do entendimento do regime de acumulação flexível, que tem como
- 37 -
pilares a mundialização da economia, a globalização e a financei-
rização do capital (CHESNAIS, 1996), que redirecionam os papéis
do Estado e do mercado. Para Behring (2008), nesse período houve
“uma reformulação das estratégias empresariais e dos países no âm-
bito do mercado mundial de mercadorias e capitais, que implica uma
divisão do trabalho e uma relação centro/periferia diferenciadas do
período anterior, combinada ao processo de financeirização” (BEH-
RING, 2008, p. 34).
No redirecionamento do papel do Estado e do mercado,
as cidades e a política urbana são fundamentais para a expansão
do neoliberalismo. A inserção do Brasil nessa etapa do capitalismo
está condicionada aos ajustes estruturais, que ditam as privatizações
e a forma de condução das políticas sociais baseada na redução de
investimentos. O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco
Mundial assumem um novo papel através dos financiamentos para
os países impactados pela crise econômica (SANTANA, 2013). Nes-
se pacote de financiamento, os organismos internacionais se colo-
cam como coordenadores políticos e econômicos “[...] dos interesses
capitalistas à medida que atuam como inteligência geral do capital,
isso porque embutidas no financiamento estão uma série de orienta-
ções políticas, econômicas e sociais, as quais podem ser consideradas
como prescrição de modelos de gestão” (SANTANA, 2013, p. 21-22)
destinado aos governos nacionais.
Nesse contexto, a mundialização financeira se estabelece a
partir de três elementos constitutivos: desregulamentação, desinter-
mediação e abertura de mercados financeiros nacionais, o que ga-
rante liberdade ao capital (CHESNAIS, 1996). Para atender as ne-
cessidades da mundialização, a cidade passa a ser a cidade global.
Nela, é necessária a superação da ideia da cidade como um sistema
racionalizado e automatizado de produção e consumo de massas,
onde está presente a estratificação de classe, e sua substituição pelo
individualismo e empreendimentismo, marcados pela posse e apa-
rência (HARVEY, 1989).
Na financerização do capital, alguns aspectos sobre as cidades
merecem ser destacados. O primeiro é que o capital financeirizado
acirrou a competição entre as cidades que buscam promover um
“bom clima para os negócios”, ao mesmo tempo em que a crise eco-
nômica e a diminuição dos investimentos públicos no campo social
- 38 -
trouxeram consequências como parques industriais e equipamen-
tos obsoletos e a popularização de áreas centrais. Por outro lado, a
dinâmica econômica global alterou geograficamente as relações de
produção, em decorrência da redução dos custos do transporte e de
barreiras espaciais, tornando a distância das matérias-primas e do
mercado aspecto de menor importância no rearranjo global.
A competição e sua consequente desregulamentação são
perpetuadas sob o discurso da necessidade de governos locais e na-
cionais receberem investimentos, de promoverem desenvolvimento,
de darem respostas às crises econômicas. A renda fundiária da terra
se restabelece de diferentes formas nas particularidades do capitalis-
mo financeiro. Nesse contexto, os organismos internacionais, além
de sua participação através dos programas de ajuste estrutural, no
sentido de promover a mercantilização e financeirização da mo-
radia, têm importância porque dissemina esse modelo de política
(ROLNIK, 2015).
O segundo aspecto, que de certa forma está relacionado ao
primeiro, é que as cidades representam possibilidades aos megane-
gócios, obras de infraestrutura e edificações (MARICATO, 2014).
Diante desse cenário, “dar determinada imagem à cidade através da
organização e de espaços urbanos espetaculares se tornou um meio
de atrair capital e pessoas (do tipo certo) num período [...] de com-
petição interurbana e de empreendimentismo urbanos intensifica-
dos” (HARVEY, 1989, p. 92).
O terceiro aspecto a destacar é que essa cidade global, que
pretende atender ao capital, se perpetua ainda pelo discurso de ins-
trumentos de gestão, como é o caso do Planejamento Estratégico
(FIX, 2011). Essa forma de planejamento assumiu um lugar central
na gestão das urbes, através das ideias de cidade-corporativa, cidade-
-pátria, cidade-mercadoria, cidade-empresa (ARANTES, VAINER;
MARICATO, 2000). Perpassa, portanto, uma lógica empresarial e de
retorno ao civismo e ao patriotismo, onde a cultura tem lugar central
por meio dos projetos de revitalização urbana. Ainda que na Moder-
nidade já houvesse ligação das cidades com a divisão social do traba-
lho e com a acumulação capitalista, nesse contexto, do planejamento
estratégico, “há algo novo a registrar [...] as cidades passaram elas
mesmas a serem geridas e consumidas como mercadorias” (ARAN-
TES, 2000, p. 26).
- 39 -
Nesse sentido, uma das principais estratégias engendradas no
contexto do empreendedorismo urbano são as Parcerias Público-
-Privadas (PPPs), que assumem um “novo papel da terra urbana na
produção financeirizada das cidades” (ROLNIK, 2015, p. 224). Não
é somente uma competição por localização e pelo uso mais rentável
da terra pelo mercado, “mas de uma nova forma de agenciamento
da terra [...] promovida por corporações que articulam engenharia,
gestão de obras e projeto e produtos financeiros” (ROLNIK, 2015, p.
224).
Para atender a esses aspectos, necessários à cidade mercan-
tilizada no capitalismo financeiro, reiteram-se processos de expro-
priações de terras e meios de produção e de despossessão através de
remoções de moradias e despejos forçados. A despossessão é uma
forma de multiplicar o valor da terra, muitas vezes acionada median-
te o discurso do interesse público (ROLNIK, 2015). Cabe, portan-
to, uma análise crítica do empreendedorismo urbano (FERREIRA,
2014), em primeiro lugar porque quem arca com os custos de sua
implementação são as pessoas empobrecidas, já que os beneficiados
costumeiramente são as empresas privadas, o capital imobiliário e
o capital da construção civil. Em segundo lugar porque, por mais
que o discurso pregue a emergência de um grande número de em-
pregos para sociedade sufocada pela crise, o que observamos é que
grande parte dos que são gerados está no campo da informalidade.
Em terceiro lugar porque existe um sentimento permanente de ins-
tabilidade no sistema urbano, pois não existem garantias em termos
do investimento. Em suma, os problemas sociais mais sérios estão
sendo mascarados através de projetos urbanos que são superficiais e
acabam por construir uma cidade marcada pela desigualdade e pela
urbanização da pobreza, governança autoritária e vigilância social,
tornando as cidades cúmplices de sua própria subordinação.
- 40 -
do campo e a realidade do trabalho superexplorado, condicionam
a forma como se dará a urbanização de baixos salários no Brasil
(MARICATO, 2015). Como a habitação nunca foi uma preocupa-
ção para o capital e poucas vezes para o Estado (MARICATO, 2015),
as ocupações de terras foram incentivadas e toleradas em diferentes
momentos históricos, já que possibilitavam locais de moradias para
os/as trabalhadores/as e suas famílias. Em contraponto, em outros
momentos foram controladas, vigiadas e violentamente removidas.
Além da violência policial, outras estratégias são utilizadas, como
incêndios criminosos em áreas de interesse privado, além dos me-
canismos ligados a manipulação e ao convencimento de lideranças
locais.
As remoções de moradias seguem sendo executadas sob di-
ferentes interesses e justificativas, dentre elas o discurso do risco, o
desenvolvimento urbano, a execução de obras públicas (e privadas),
os megaeventos e megaprojetos, o discurso do combate ao crime etc.
Escondem motivos outros como a busca pela homogeneidade eco-
nômica, o controle da ocupação de determinados territórios, a hi-
gienização – por meio das remoções de moradias, mas também das
regulações de ocupação do espaço público. Elas se somam a diversas
experiências de expulsões que acontecem no mundo em decorrên-
cia de crimes e desastres ambientais, guerras, entre outros (SASSEN,
2016). No que se refere aos países de capitalismo periférico, Davis
(2005) aponta que acontecem anualmente, em uma enorme escala
populacional, através de despejos forçados.
Apesar das remoções poderem afetar diferentes grupos popu-
lacionais, indiferente de serem possuidores ou não de documentos
formais de propriedade, de uma maneira geral atinge aqueles que
vivem na condição de insegurança de posse, em decorrência da so-
breposição que toma propriedade privada, em detrimento de outras
formas de ocupação. Essa situação coloca as pessoas em uma situa-
ção de maior vulnerabilidade jurídica, no que se refere a resistências
e negociações com o executor desses processos. As remoções for-
çadas nesse ínterim constituem uma crise de insegurança de posse,
que atinge principalmente as regiões centrais das cidades, ou as cha-
madas novas centralidades urbanas, e possuem, portanto, interesses
econômicos e privados.
- 41 -
As remoções forçadas são seu sinal mais visível e chocante. Não há
estatísticas globais e abrangentes sobre remoções forçadas, mas as
estimativas dos casos reportados por organizações humanitárias,
assim como os comunicados recebidos pela Relatoria Especial da
ONU para o Direito a Moradia Adequada, confirmam que as re-
moções forçadas ocorrem por toda parte e afetam milhões de pes-
soas por ano. [...] Os impactos negativos das remoções são enormes:
aprofundam a pobreza e destroem comunidades, deixando milhões
de pessoas em situação extremamente vulnerável (ROLNIK, 2015,
p. 149).
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so – ou bloqueio – à terra urbanizada para os moradores de menor
renda (Banco Mundial, 2013). É no interior dessa trama jurídico-
-administrativa que se tecem os mecanismos de inclusão/exclusão
na cidade (ROLNIK, 2015, p. 151-152).
- 43 -
As remoções e reassentamentos involuntários são parte de um
complexo sistema que se institui nas cidades. Eles retratam, por um
lado, a regulação seletiva e intencional do solo urbano que impulsio-
na a valorização imobiliária de determinadas áreas das cidades, nas
quais existe interesse de incorporadores imobiliários. Por outro, são
parte de um conjunto de “processos em curso de criminalização e
fortalecimento do estigma territorial” (ROLNIK, 2015, p. 252), como
as conhecidas leis de proibição de vendedores ambulantes, de circu-
lação de carroças, entre outras, que, na realidade, reinventam antigas
políticas higienistas e de controle.
Entre o direito à cidade e processos de remoção existe uma
incompatibilidade bastante óbvia: o desejo de desocupação dos atin-
gidos e a prerrogativa legal que o Estado possui na determinação das
áreas que deverão ser desocupadas. Parece-nos uma relação desigual
de poder que se institui entre Estado, mercado e população atingida,
apesar de o princípio da participação popular estar instituído nos
programas governamentais. Contudo, as críticas que possamos tecer
em relação às remoções de famílias não podem defender somente a
permanência das famílias em seu local de origem desacompanhadas
de melhorias urbanísticas e estratégias de diminuição da desigual-
dade social. Nesse contexto, é fundamental buscarmos identificar
como a população empobrecida vivencia a insegurança de posse em
seu cotidiano, sobre isso discorreremos na sequência, ao apresentar-
mos resultado de pesquisa em dois programas de remoção e reassen-
tamento de famílias.
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[...] a hegemonia da propriedade individual escriturada e registrada
em cartório sobre todas as demais formas de relacionamento com
o território habitado constitui um dos mecanismos poderosos da
máquina de exclusão territorial e de despossessão em marcha nos
contextos dos grandes projetos, sejam eles de expansão da infraes-
trutura e desenvolvimento urbano, sejam de reconstrução pós-de-
sastres. Na linguagem contratual das finanças, os vínculos com o
território são reduzidos à unidimensionalidade de seu valor eco-
nômico e a perspectiva de rendimentos futuros, para os quais a ga-
rantia de perpetuidade da propriedade individual é uma condição
(ROLNIK, 2015, p. 13).
- 45 -
da titularidade da propriedade do imóvel são vividas e percebidas
de diferentes formas. Apontamos alguns aspectos que emergiram
em pesquisa de campo3 para aprofundar essa reflexão. Inicialmente,
destacamos que as remoções e reassentamentos involuntários têm na
insegurança de posse a base para sua execução. Existe um sentimen-
to permanente de incerteza em relação à moradia que acompanha a
vida das lideranças comunitárias e dos moradores de áreas de ocu-
pação. Isso se dá pela inexistência do documento de propriedade e,
também, por diferentes motivos, dos quais dois merecem destaque:
em primeiro, muitos dos moradores dessas áreas, ou seus familiares,
já sofreram despejo em momentos anteriores, ou seja, as remoções
fazem parte da história familiar; segundo, pelo tempo que decorre
do período em que as famílias são cadastradas para desocupação e,
efetivamente, são removidas4.
Nesse caso, muitas vezes, durante anos as famílias sabem que
possivelmente serão removidas, mas não sabem quando ou como se
dará o processo, haja visto que o direito à informação é facilmente
desrespeitado nas ações de remoção. Fazem parte das narrativas dos
moradores, por exemplo, o fato de que eles não fazem melhorias no
imóvel de moradia porque sabem que serão demolidos e que per-
deriam o dinheiro investido, o que pode ocorrer, efetivamente anos
após o cadastramento das casas a serem desocupadas. A situação se
complexifica quando as remoções estão vinculadas a realização de
megaeventos esportivos, como aconteceu no Brasil entre os anos de
2014 e 2016 com, respectivamente, a Copa do Mundo de Futebol e as
Olimpíadas. Relatos apontam o sentimento de desespero despertado
na população empobrecida e atingida pelas obras públicas, por não
saber de seu futuro.
A contraposição entre propriedade privada e ocupação e evi-
dencia outras contradições. Uma delas se materializa quando áreas
lindeiras, umas com e outras sem titulação, recebem tratamento di-
3 A pesquisa de campo realizada para a tese de Doutorado da autora envolveu a realiza-
ção de entrevistas com lideranças comunitárias de duas áreas de remoção da cidade de
Porto Alegre, nos programas denominados Programa Integrado Socioambiental e Pro-
jeto Nova Tronco, observação dos participantes em reuniões com as Comissões de Mo-
radores e poder público e do Orçamento Participativo do território em questão. Ambos
programas trabalhavam com a remoção e o reassentamento de famílias para execução
de obras públicas, o primeiro de drenagem urbana, e o segundo de duplicação de uma
avenida. Ao todo, indicavam a remoção de mais de 3.000 moradias
4 A título de exemplo, no caso do Programa Integrado Socioambiental existiam famílias
cadastradas para remoção, sem terem sido atendidas, há cerca de 10 anos.
- 46 -
ferente na desocupação. A diferença se materializa tanto nos valores
de indenizados para moradores que necessitam desocupar, indife-
rentemente tanto ao tempo de moradia no local, quanto na forma
de negociação com as famílias que são proprietárias e com as famí-
lias que são ocupantes. Dessa forma, por mais que aqueles que são
desapropriados também necessitem desocupar seu imóvel, o valor
financeiro e a forma de repasse do recurso são diferentes daqueles
atendidos pela política de habitação de interesse social. Os que são
desapropriados recebem valores superiores, condizentes a avaliação
de mercado realizada, e podem questionar judicialmente o valor an-
tes da desocupação. Além disso, podem receber a indenização sob
a forma de dinheiro, pago em cota única. Já no caso das famílias
posseiras, observamos em nosso estudo que o valor pago resulta-
va em aproximadamente seis vezes menos do que aos proprietários.
Além disso, esse grupo de removidos, necessita indicar imóvel para
reassentamento, nas regras estabelecidas pela legislação municipal,
portanto, não possuía possibilidade de escolha em relação a diversos
aspectos relacionados à aplicação da indenização, tendo que fazer
uma compra assistida5 de uma casa, onde o poder público transferia
o valor da indenização para o vendedor.
Esse procedimento de compra assistida, ou seja, controlada
pelo poder público, estava baseado na crença de alguns gestores de
que se os ocupantes recebessem o pagamento em dinheiro o gasta-
riam de outras formas que não na aquisição do imóvel, e estariam
novamente em situação de vulnerabilidade habitacional. Se, por um
lado, isso pode demonstrar uma preocupação com um real atendi-
mento habitacional, por outro retira da família a autonomia no pro-
cesso, o que, possivelmente, trouxesse mais efetividade na constru-
ção de pertencimento no novo local de moradia.
Ao mesmo tempo em que a compra assistida permitia a
aquisição de um imóvel, onde não houvesse insegurança de posse,
já que regular, ela reproduzia uma série de questões, entre as quais
apontamos: i) reiterava a impossibilidade de permanência na região
5 Consiste em uma alternativa de reassentamento onde o poder público adquire uma
moradia no mercado imobiliário, indicada pela família para seu reassentamento. Impor-
tante destacar que na ocasião da pesquisa o valor de indenização era de R$ 52.340,00, e
que o imóvel indicado deveria possuir matrícula no registro de imóveis e não possuir
nenhuma pendência de tributos. Vários outros aspectos como o tempo necessário para a
compra, e ainda a rentabilidade gerada para os Tabelionatos poderia ser problematizada
ainda sobre esse tema.
- 47 -
de origem que já sofria valorização imobiliária, fazendo com que o
valor da indenização não alcançasse o preço dos imóveis no bairro;
ii) responsabilizava o beneficiário do programa habitacional de en-
contrar no mercado imobiliário um imóvel que atendesse às regras
e ao valor estabelecido pela prefeitura, o que restringia por demais
o número de imóveis ofertados no mercado; iii) os programas ha-
bitacionais que vinham utilizando do reassentamento com compra
assistida, não foram geridos de forma a considerar outras possibili-
dades de atendimento habitacional. Explicamos: quando pautados
pelo poder público indicavam também a possibilidade de a família
optar pelo reassentamento em unidade habitacional em área pró-
xima à de origem, que deveria ser construída pelo poder público.
Contudo, o que se observa são o descompasso nas formas de atendi-
mento e o descumprimento das combinações iniciais dos programas
pesquisados no que tange às formas de reassentamento, a considerar
ainda que o valor dispendido pelo poder público na compra assistida
é menor que o reassentamento em unidades habitacionais. Ao tempo
em que não foram executadas as moradias na região de origem, e
que a retenção de áreas é comum na formação da especulação nas
cidades, a população passa a desacreditar na permanência na região
de origem, o que efetivamente não aconteceu até a data em que este
artigo foi escrito.
Não existindo, na prática, a possibilidade de permanência
imediata no local, observamos que muitas famílias acabaram op-
tando pela alternativa de permanência provisória em imóveis alu-
gados através de aluguel social6. Muitas críticas foram realizadas à
generalização dessa forma de atendimento permeada por atrasos de
pagamento por parte do poder público, ausência de garantias para
locadores e locatários e processos de despejos. Observamos outro
aspecto fundamental, que é o fato de que o aluguel deveria ser alter-
nativa transitória de moradia, contudo, frequentemente essa provi-
soriedade durou anos para algumas famílias.
Na situação de aluguel social, a insegurança de posse se man-
tém ou é até mesmo acentuada quando comparada ao momento an-
6 O aluguel social se tratava de um programa de moradia provisória, composto por dois
grupos: no caso de famílias que necessitavam ocupar áreas de obras públicas; e no caso
de situações de complexa vulnerabilidade social. Operacionalmente. estava estruturado
através do paramento mensal, procedido pelo poder público, a locadores de casas onde
as famílias removidas passavam a habitar. Na ocasião da pesquisa, o valor correspondia
a até R$ 500,00 mensais.
- 48 -
terior de moradia. Ali, a insegurança estava relacionada a um pos-
sível processo de remoção ou reintegração de posse; nesse caso, está
relacionada ao efetivo despejo, diante dos constantes atrasos dos pa-
gamentos do aluguel social por parte do poder público.
Para Davis (2006), os trabalhadores urbanos que residem em
imóveis alugados ficam ainda mais vulneráveis, porque costumeira-
mente não conseguem se organizar enquanto coletivo. Isso aconte-
ce com as famílias que pesquisamos, já que a identidade coletiva é
construída em grande parte pelo território comum e, com a saída, o
vínculo comunitário acaba enfraquecendo. Além disso, o que obser-
vamos é que as condições de moradia e de infraestrutura dos bairros
onde existem imóveis nos valores do aluguel social não são neces-
sariamente melhores do que as de origem. Além do valor, que não
permite aluguéis em muitos lugares da cidade, a legislação municipal
permite locação em locais informais e fiscaliza um número reduzido
dos mesmos. Outra questão que diz respeito ao atendimento habita-
cional com aluguel social é que não existe sentimento de pertenci-
mento na relação das famílias com os imóveis.
[...] habitação que ele não pode considerar como lar – onde, final-
mente, pudesse dizer: aqui estou em casa – onde ele se encontra
muito mais em uma casa estranha, na casa de outro que o espreita
diariamente e que o expulsa se não pagar o aluguel. Igualmente, do
ponto de vista da qualidade, vê sua casa como oposto à habitação
humana situada no além, no céu da riqueza (MARX, 1974, p. 28).
- 49 -
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
- 50 -
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- 52 -
A POLÍTICA DA MISERABILIDADE:
COMO A FINANCEIRIZAÇÃO E AS
POLÍTICAS GOVERNAMENTAIS LEVAM AO
EMPOBRECIMENTO DO TRABALHADOR
Jonas Albert Schmidt1
Evilasio da Silva Salvador2
INTRODUÇÃO
Este texto tem por objetivo discutir o empobrecimento, a par-
tir da perda de renda dos trabalhadores, principalmente os bene-
ficiários dos regimes previdenciários públicos, como consequência
das escolhas das políticas públicas (econômicas e sociais) governa-
mentais. Para tanto, situa o debate das contrarreformas previdenciá-
rias, após a Constituição Federal de 1988, no âmbito da financeiri-
zação e das políticas sociais e problematiza as implicações para os/as
trabalhadores/as, a partir de breves indicadores econômicos.
- 53 -
Convém destacar que a relação capital-trabalho tem configu-
ração diferente nos países periféricos em relação aos países centrais.
Marini (2011) chama a atenção para o fato de que as economias de-
pendentes são baseadas em transferências de valores resultantes da
troca desigual no mundo capitalista e, portanto, têm como cerne a
superexploração da força de trabalho. Com isso, a cumulação capi-
talista e por corolário os recursos alocados pelo fundo público nas
políticas sociais têm particularidades de uma economia subordinada
e periférica no mundo capitalista.
De acordo com Mészáros (2002), enfrenta-se uma situação
de crise estrutural do capital, com parcela significativa da popula-
ção mundial vivendo em condições extremamente precárias. O de-
semprego estrutural reinante, o subemprego, os sistemas públicos de
saúde e educação deficientes, a fome e a proliferação de favelas – ape-
sar das promessas liberais de pleno emprego, progresso para todos e
fim da pobreza – são algumas das consequências nefastas de tal crise.
A estratégia do capital consiste em contornar os empecilhos
e resistências encontrados, quando não é possível superá-los direta-
mente, o que gera inúmeros antagonismos sociais, acirra as lutas de
classe, aumenta a vulnerabilidade dos trabalhadores e potencializa as
refrações da questão social (MÉSZÁROS, 2002).
A característica comum a todas as crises do capital dos últi-
mos 30 anos é o comparecimento do fundo público para socorrer
instituições financeiras falidas durante as crises bancárias, à custa
dos impostos pagos pelos cidadãos. A financeirização implica pres-
são sobre a política social, especialmente as instituições da segurida-
de social, pois aí está o nicho dos produtos financeiros. Com isso, as
propostas neoliberais incluem a transferência da proteção social do
âmbito do Estado para o mercado, a liberalização financeira passa
pela privatização dos benefícios da seguridade social. É no mercado
que devem ser comprados o benefício de aposentadoria, o seguro de
saúde, que são setores dominantes nos investidores institucionais.
Ou seja, benefícios da seguridade social são transformados em mais
um “produto” financeiro, alimentando a especulação financeira, tor-
nando as aposentadorias de milhares de trabalhadores reféns das cri-
ses internacionais.
No âmbito das transformações contemporâneas do capitalis-
mo ocorre o desenvolvimento de instituições especializadas - como
- 54 -
os investidores institucionais, os fundos de pensão, fundos coletivos
de aplicação, sociedades de seguros, bancos que administram socie-
dades de investimentos -, que faz da centralização dos lucros não
reinvestidos das empresas e das rendas poupadas das famílias, prin-
cipalmente por meio dos planos privados de previdência e da pou-
pança salarial, o caminho de uma acumulação financeira de gran-
de dimensão. De forma que a acumulação financeira acontece pela
centralização nessas instituições especializadas de lucros industriais
não reinvestidos e de rendas não consumidas que têm por finalidade
a função de valorizá-los na forma de ativos financeiros, buscando
mantê-los fora da produção de bens e serviços.
Um dos principais beneficiários dessas políticas são os fundos
de pensão, que têm apresentado um crescimento extraordinário no
país, com seus ativos evoluindo acima do crescimento do PIB. De
acordo com Granemann (2006), esse desempenho tem relação direta
com a erosão da previdência pública no Brasil. Essa tem sido uma
condição econômica e financeira, além de ideológica para a constru-
ção da previdência complementar, enquanto a previdência privada
faz a mediação para realização do capital portador de juros, mobili-
zando bilhões de recursos em “investimentos” em mercados de capi-
tais e capitais fictícios de dimensão especulativa. No lado ideológico,
a cultura de crise da previdência pública faz surgir a “confiança nas
instituições típicas da forma capital portador de juros como o lugar
eficiente para a garantia das aposentadorias” (GRANEMANN, 2006,
p. 10). Como afirma a autora, a opção por comportamentos especu-
lativos dos fundos de pensão é visível pelo predomínio de receitas
lastreadas nos títulos da dívida geridos pelo setor financeiro.
A canalização de recursos para a esfera financeira da econo-
mia é articulada pela inter-relação entre Orçamento Fiscal e Orça-
mento da Seguridade Social, que garante a rentabilidade do capital
portador de juros (SALVADOR, 2010).
Com o golpe de 2016 e a ascensão ao poder do presidente Te-
mer, ocorre um recrudescimento da ofensiva do capital, voltando
com carga a ortodoxia neoliberal com brutal corte de direitos so-
ciais, sobretudo, no campo do financiamento público, como denota
o Novo Regime Fiscal (NRF), aprovado pela Emenda Constitucional
n. 95. O NRF inviabiliza a vinculação dos recursos para as políticas
sociais, nos moldes desenhados na Constituição Federal de 1988, ao
- 55 -
congelar as chamadas despesas primárias do governo (exceto as des-
pesas financeiras com o pagamento de juros da dívida) por 20 anos,
limitando-se à correção pela inflação.
A formatação e a adequação das políticas sociais às finanças
têm como um dos elementos a contrarreforma do Estado. No caso
brasileiro, o melhor exemplo é a Previdência Social que sofreu cortes
de direitos e dificuldades de acesso aos benefícios na esfera públi-
ca (Emendas Constitucionais 20/1998 e 41/2003). Para Granemann
(2007, p. 59), “o novo modelo passa a enformar a organização dos
serviços sociais nas suas dimensões econômica, ideológica e política,
razão pela qual, independentemente da natureza pública ou privada,
esses serviços são ideologicamente denominados, inclusive mesmo
no âmbito da ação filantrópica dos capitais privados” nas diversas
formas de privatização do fundo público, estatal, transferidos para
os mais variados agentes privados.
A contrarreforma previdenciária do governo Bolsonaro (EC
103/2019) é um verdadeiro desmonte do sistema previdenciário,
tendo como um dos seus pontos centrais a implementação de um
regime financeiro capitalizado na Previdência Social, privatizando o
sistema previdenciário com sua entrega ao sistema financeiro e limi-
tando-se à contribuição dos empregados.
Retoma-se com força a agenda neoliberal, proposta ainda na
década de 1980 e implementada parcialmente nos países latino-ame-
ricanos de “reformas previdenciárias” inspiradas nas orientações do
Banco Mundial, que explicitou suas propostas no estudo Envelheci-
mento sem crise. Nesse documento, recomendava-se a substituição
do modelo de repartição (redistributiva) por um novo, caracterizado
pela implantação de um plano privado e obrigatório de capitaliza-
ção por cotas definidas individualmente para os trabalhadores. As
aposentadorias passam a ser baseadas em contribuições definidas e
os benefícios dependem da acumulação dos recursos, sem prévia ga-
rantia dos valores a receber.
A financeirização da riqueza no capitalismo atinge as políticas
sociais, o conjunto de seus direitos, do seu financiamento e do seu
orçamento. O cerne é a disputa no campo da economia política e de
uma forte pressão para mais recursos para o pagamento de juros e
amortização da dívida à custa do fundo público.
- 56 -
3. FINANCEIRIZAÇÃO E EMPOBRECIMENTO DO TRA-
BALHADOR COMO COROLÁRIOS DAS CONTRARRE-
FORMAS PREVIDENCIÁRIAS
- 57 -
viveram o bem-estar social, pois para Bin (2017, p. 25), “a Constitui-
ção de 1988 consagrou ainda direitos sociais que institucionalizaram
políticas associadas ao chamado estado do bem-estar”, e continua
afirmando que “é certo que em termos efetivos o Brasil permaneceu
bastante distante dos pioneiros do hemisfério norte”. Pereira (2016,
p. 79):
[...] refere-se ao processo de desenvolvimento e implementação de
medidas geridas pelo Estado e demandadas pela sociedade como
direitos devidos para suprir necessidades sociais e promover o bem-
-estar dos cidadãos – seja prevenindo contingências associadas ao
trabalho e a inseguranças sociais, seja combatendo-as quando ins-
taladas.
- 58 -
os demais atores, quer sejam países, outras empresas ou trabalhado-
res” (CHESNAIS, 1996, p. 37). Contudo, quando tratamos de polí-
ticas de governo, que não se confundem com políticas de Estado, já
que aquelas são escolhas do mandatário e sua equipe, trazem relação
direta quanto aos impactos econômicos na vida dos trabalhadores.
Neste sentido que tratamos sobre as escolhas econômicas, as quais
refletem diretamente na renda, seja ela o salário ou os benefícios de
aposentadorias e pensões, em relação aos itens básicos de sobrevi-
vência, em que pese, os alimentos.
A financeirização ultrapassa fronteiras, mundializou-se, e a
falta de normas comuns a todos os países dá a liberdade de agirem
de forma desmedida, e até contrariando leis de muitos países, o que
resulta nas instalações de suas corporações e trading company4 em
paraísos fiscais, pois a “estratégia é global para ela, mas é integra-
dora ou excludente para os demais atores, quer sejam países, outras
empresas ou trabalhadores” (CHESNAIS, 1996, p. 37). É o empo-
brecimento generalizado em detrimento a apropriação de um seleto
grupo de empresas.
É o capitalismo em sua fase financeirizada, quem sabe, mais
cruel fase, que produz mais-valia da mais-valia sem com isso re-
verter-se, ao menos em parte, em investimento produtivo e no de-
senvolvimento, seja ele tecnológico ou estrutural para que atinja as
pessoas, seja na mobilidade, progresso e avanço da medicina e na
diminuição dos impactos ambientais, por exemplo.
- 59 -
Contudo, a financeirização vai além do domínio do capital
privado, pois muito além dos monopólios, oligopólios e especula-
ções financeiras sobre o capital produtivo privado, lança mão sobre
os fundos públicos, sobre os Estado alcançando até mesmo os salá-
rios, aposentadorias e pensões dos trabalhadores. Neste sentido, as
políticas cambiais, que têm relação direta com as escolhas feitas pelas
políticas de governo, que dependendo destas escolhas podem bene-
ficiar alguns setores produtivos, ou grupos, em detrimento a outros.
Entretanto, estas políticas que definem a valorização ou desvaloriza-
ção da moeda corrente nacional, afeta diretamente os trabalhadores,
especialmente os de menor renda, já que boa parte de seus salários
ou aposentadorias são direcionados para a aquisição da cesta básica.
No ano de 2020 houve uma forte queda do real frente ao dólar, su-
pervalorizando a moeda estadunidense o que levou ao aumento das
exportações, favorecendo diretamente as commodities.
Sob a ótica da balança comercial é positivo, contudo, gera de-
sabastecimento ou elevação dos preços dos alimentos no mercado
interno, o que dificulta o acesso a estes itens pelas pessoas de menor
renda. Itens como o arroz, óleo de soja, presentes na mesa do brasi-
leiro, sofreram altas que superaram dezenas de vezes o aumento, no
mesmo período, da renda destes trabalhadores. O óleo de soja teve
elevação de 103,79%, ao passo que o arroz subiu nas prateleiras dos
supermercados, ou seja, na venda direta ao consumidor, o montante
de 76,01% no período. De um modo geral, segundo o IBGE, a alta
dos alimentos em 2020 foi de 14,09%. Para além destes itens básicos
da cesta básica brasileira, o leite longa vida teve elevação do preço
que chegou em 26,93%, e as frutas em geral, com subida de 25,40%
no período. A principal proteína animal consumida pelos brasilei-
ros, a carne bovina, teve majoração dos preços em 17,97%, assim
como produtos que também são muito consumidos no Brasil como
a batata inglesa e o tomate, que sofreram respectivamente, aumento
de 67,27% e 52,76% em 2020.
Estas fortes elevações dos preços dificultam, se não impedem,
o acesso a estes alimentos atingindo a qualidade nutricional das pes-
soas, em especial das crianças em fase de desenvolvimento físico e
cognitivo. Essa ciranda dos horrores que causam a falta de alimentos
ou dificultam o acesso a eles faz aumentar, por essa lógica, a procura
por atendimento na rede pública de saúde, por motivos de doenças
- 60 -
relacionadas à desnutrição e outras ligadas à baixa qualidade nutri-
cional dos alimentos (SCHMIDT, 2021). Ainda que essa situação
seja o reflexo das escolhas das políticas de governo, o próprio Minis-
tério da Saúde faz esse reconhecimento em relação “a desnutrição
corresponde a uma doença de natureza clínico-social multifatorial,
cujas raízes se encontram na pobreza”.
Na contramão desta elevação significativa dos alimentos, o
salário-mínimo nacional, que serve de referência para a renda do
trabalhador em todo o país, teve reajuste de apenas 5,45%, utilizan-
do-se do Índice Nacional de Preços ao Consumidor – INPC, apon-
tado pelo IBGE5, o qual mede o consumo médio das famílias que
ganham entre um a quatro salários mínimos, ao passo que o Índice
de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA, o qual considera o con-
sumo das famílias que ganham entre um e quarenta salários míni-
mos, terminou o ano de 2020 em 5,26%. O INPC que verifica o custo
das famílias de menor renda, ou seja, que ganham entre 1 e 4 sa-
lários-mínimos, que foi de 5,45% em 2020, como já apontado, está
na longe de gerar reflexos nos alimentos, que teve alta muito maior.
Essa diferença entre o aumento da renda em relação ao aumento dos
alimentos afeta negativamente as famílias mais pobres, pois é o que
representa a maior parte dos gastos, gerando maior impacto e perda
do poder de consumo destas famílias. Essa situação cria insegurança
alimentar, que segundo o IBGE6 teve aumento entre 2017 e 2018, re-
sultando em 10,3 milhões de pessoas que vivem em domicílios com
grau severo de insegurança alimentar. Nesta mesma análise, dos 68,9
milhões de domicílios no Brasil, 36,7% destes possuem algum grau
de insegurança alimentar. O que é grave, pois isso representa mais de
um terço do total.
Esse panorama nos faz concluir que as políticas governamen-
tais, em especial as cambias, as quais favorecem as commodities e por
consequência a balança comercial, cria no mesmo ritmo o aumento
dos preços dos alimentos, principalmente da cesta básica, o que atin-
ge diretamente o mais pobre. O empobrecimento do trabalhador,
nesta perspectiva inflacionária, reduz a capacidade de compra de
alimentos e na contramão, as renúncias tributárias garantem alívio
5 Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/precos-e-custos/
9258-indice-nacional-de-precos-ao-consumidor.html. Acesso em 13 jan. 2021
6 Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agen-
cia-de-noticias/noticias/28903-10-3-milhoes-de-pessoas-moram-em-domicilios-
-com-inseguranca-alimentar-grave. Acesso em 13 jan. 2021
- 61 -
financeiro para o capital e seus rentistas, Salvador (2017, p. 438) lem-
bra que “no período de 2010 a 2016, evoluíram de R$ 217,27 bilhões
(2010) para R$ 319,23 bilhões (2016), isto é, um crescimento 46,93%
acima da inflação”, só as renúncias tributárias do governo federal.
Salvador (2017, p. 438) ainda lembra que isso implicou “uma perda
de arrecadação equivalente a 20,68% das receitas do governo federal
ou 4,33% do PIB. Esses recursos que o fundo público deixa de contar
significam, em grande parte, um financiamento para o capital”. Nesta
lógica financeira, o capital e seus rentistas, agem de todas as formas
e assim, conseguem captar recursos até mesmo do prato dos mais
pobres (SCHMIDT, 2021). Mészáros (2009, p. 70) explica que:
- 62 -
Raquel Varela8 (2012) lembra que o Estado Social é pago por
quem é beneficiado por ele, e ainda afirma em seu ponto de vista que
“o capitalismo é doente terminal ligado apenas nos cofres públicos”.
Essa carga é ainda maior para os mais pobres, como lembra Ianni
(2019, p. 94), em que “a economia brasileira é uma totalidade hete-
rogênea, desigual e contraditória. Cria e recria disparidades. Combi-
na segmentos monopolísticos com oligopolísticos e concorrenciais.
Inclusive, e principalmente, está apoiada numa elevadíssima taxa de
exploração da classe operária e do campesinato”.
Tributos regressivos e a disparidade na correlação entre o au-
mento real dos salários, inclusive sobre as aposentadorias e pensões,
de um lado, e a inflação sobre os alimentos de outro, torna essa ba-
lança desfavorável ao trabalhador, os quais não recebem um signifi-
cativo reajuste nos últimos anos. Essa política cria o empobrecimen-
to endêmico típico dos países da periferia do capital (SCHMIDT,
2021).
O Brasil como um país que está entre as maiores safras do
mundo é por outro lado, o que mais reajusta para mais o seu produto
final no mercado de consumo interno, criando insegurança alimen-
tar entre os brasileiros de baixa renda. O agronegócio, nesta lógica
econômica, é um dos grandes beneficiados das renúncias fiscais que
afetam diretamente o financiamento das políticas sociais, em espe-
cial da previdência, o que pressiona a necessidade de uma solida-
riedade entre os trabalhadores, ainda maior, para a arrecadação dos
recursos para a previdência.
Um trabalhador aposentado que recebe um salário-mínimo
nacional, mesmo que seu benefício sofra reajustes positivos anuais,
este não acompanha a real inflação dos alimentos no mesmo período,
sendo o gerador do principal impacto orçamentário dessas famílias
mais pobres. Ao fazer os reajustes anuais dos benefícios de natureza
previdenciária, o Regime Geral de Previdência Social – RGPS, por
meio do Instituto do Seguro Social - INSS, assim como os regimes de
capitalização coletiva dos trabalhadores públicos (SCHMIDT, 2021),
conhecidos como Regimes Próprios de Previdência Social – RPPS,
criam a falsa impressão de que as aposentadorias e pensões acom-
panham a inflação anual e oficial, não fazendo com que os traba-
8 Disponível em: https://operamundi.uol.com.br/politica-e-economia/25401/capitalis-
mo-e-doente-terminal-ligado-apenas-nos-cofres-publicos-diz-historiadora-portuguesa.
Acesso em: 13 jan. 2021
- 63 -
lhadores aposentados e pensionistas percam seu poder de compra,
o que não é verdade, sobretudo em relação ao acesso aos alimentos
da cesta básica.
Para compreender esse panorama em que o trabalhador de
baixa renda vem empobrecendo, basta uma breve análise dos reajus-
tes dos benefícios previdenciários entre 2017 e 2020, fazendo uma
relação com elevação dos preços dos alimentos, no mesmo período,
o que nos dá informações suficientes sobre essa perda do poder de
compra com seu parco benefício. A inflação oficial informada pelo
governo federal leva em conta o INPC – Índice Nacional de Preço
ao Consumidor, que mede o consumo das famílias de menor renda,
que recebem entre um e quatro salários-mínimos, como já dissemos.
Destaca-se que esse valor é por grupo familiar, não é uma renda per
capita. Já em relação aos benefícios desse período analisado, no ano
de 2017, o reajuste nas aposentadorias e pensões foi de 2,07%. Esse
é o valor total do reajuste, ou seja, para que sofresse esse montante
de aumento, o beneficiário, seja da aposentadoria ou pensão, deveria
estar recebendo o benefício desde janeiro daquele ano, já que é uma
tabela de reajuste progressiva, ou seja, pago conforme os meses em
que recebeu benefício, sendo o índice máximo para quem recebeu
nos últimos 12 meses. Neste cenário, um aposentado ou pensionista
que recebeu benefício previdenciário no ano de 2017 obteve reajuste
no primeiro mês de 2018, no total de 2,07%, segundo a Portaria9 MF
nº. 15, de 16 de janeiro de 2018. Entretanto, a inflação do período
de 2018, ano em que os aposentados e pensionistas “desfrutaram”
de seus reajustes de pouco mais de dois por cento em sua renda, o
acumulado da inflação10 foi de 3,82%. Dessa forma, a diferença entre
o que foi reajustado em sua renda e o que precisou desembolsar para
compra de alimentos foi de 1,75% para mais. A conta não fecha, não
para o trabalhador.
A mesma lógica cruel de diferença negativa para a renda dos
aposentados e pensionistas beneficiários da previdência, em relação
aos alimentos, se repetem nos anos seguintes. No ano de 2019, o
reajuste das aposentadorias e pensões pagas durante o ano de 2018,
9 Disponível em” http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?vi-
sao=anotado&idAto=89503. Acesso em 14 jan. 2021
10 Disponível em: Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-
-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/23558-ipca-varia-0-15-em-dezembro-e-
-fecha-2018-em-3-75. Acesso em 14 jan. 2021
- 64 -
lembrando sempre que a base de cálculo é o exercício anterior, foi de
3,43%, como indica a Portaria11 ME nº. 9, de 15 de janeiro de 2019.
Tal percentual foi concedido a partir de janeiro de 2019, como sem-
pre acontece. Contudo, em 2019, a inflação12 sobre os alimentos da
cesta básica foi de 6,37%, mantendo-se em alta como nos anos an-
teriores. Na prática, o aposentado e pensionista receberam 2,94% a
menos que a alta dos alimentos que superou e muito essa marca. No-
vamente os benefícios previdenciários não acompanharam o prin-
cipal impacto no orçamento familiar, os alimentos que compõem a
cesta básica.
Seguindo esses exemplos, os benefícios pagos no ano de 2019,
o reajuste aplicado foi de 4,48%, como indica a Portaria13 ME nº.
3.659, de 10 de fevereiro de 2020. No entanto, a inflação sobre os ali-
mentos no acúmulo do mesmo ano foi de 14,09%, o que representou
a maior alta destes itens desde 2002, quando o acumulado atingiu
19,47% sobre a cesta básica brasileira. Mesmo se consideramos que o
reajuste dos benefícios em 2019 teve uma leve “melhora”, em relação
ao ano anterior, a inflação gerada pela subida dos alimentos supe-
rou quase três vezes mais em relação às aposentadorias e pensões.
Neste cenário, é importante destacar que no ano de 2020 o Brasil
teve recordes de safra. Assim, as políticas adotadas pelo governo de
Jair Messias Bolsonaro, em que pese a valoração da moeda estaduni-
dense, o que beneficia diretamente as commodities, por outro lado, o
mercado interno sofre com o encarecimento da cesta básica.
Finalizando o comparativo entre reajuste de aposentadorias
e pensões, em relação aos aposentados e pensionistas que recebem
o mínimo nacional, o percentual aplicado nestes benefícios a partir
de janeiro de 2021 foi de 5,45%, equivalente ao INPC, que oficial-
mente é o índice utilizado para medir a inflação brasileira. O gráfico
01 mostra a disparidade entre o reajuste dos benefícios e a inflação
acumulada sobre os alimentos desde 2017 até 2020.
- 65 -
Gráfico 1 – Comparação entre os reajustes dos benefícios previdenciários
concedidos pelos RPGS e RPPS, e a inflação dos alimentos
entre 2018 e 2020.
- 66 -
ríamos a acreditar que os trabalhadores, em especial os aposentados
e pensionistas, não tenham obtido ganho real em seus benefícios, e
por outro lado, ao menos não tiveram perda salarial em detrimento
a inflação. Entretanto, tais comparações com os preços dos alimentos
da cesta básica comprovam a tese de que, a cada ano, os benefícios
desta natureza, em especial para as pessoas de menor renda, têm
tendência de forte queda, ou melhor, redução real de seu poder de
compra, sendo que em alguns anos, como em 2020, essa perda foi
ainda maior.
Sabemos que outros itens que sofrem reajustes também são
utilizados como base para a definição da inflação no ano, contudo,
é o tipo de consumo que não gera o mesmo impacto nas famílias
de baixa renda, ainda que muitos destes itens tenham tido elevação
até mesmo mais alta. Entretanto, essas elevações de preços de outros
itens, vão afetar outras faixas de trabalhadores que, com benefícios
corrigidos na mesma proporção, utilizam-se desses serviços, como
é o caso das passagens aéreas e combustíveis, que em 2021 tiveram
aumento histórico que vai continuar refletindo em 2022. Contudo,
esse aumento vertiginoso dos combustíveis, também, afeta os tra-
balhadores de menor renda, uma vez que se utilizam do transporte
público, sendo que a tarifa sofre amento quando o preço do diesel
é inflacionado16. Assim como itens mais presentes no carrinho do
supermercado da classe média brasileira, em detrimento ao traba-
lhador mais pobre que possui, por sua vez, alimentação nutricional
menos rica, como é o caso das frutas e proteínas animais que, respec-
tivamente, tiveram aumento de 25,40% e 17,97% em 2020, segundo
o IBGE
Dessa forma, podemos concluir que é fantasiosa uma correla-
ção positiva entre os reajustes aplicados nos benefícios dos trabalha-
dores, sejam eles os públicos, quanto do setor privado, em detrimen-
to ao seu poder de compra, sob a ótica de que o índice utilizado para
tanto é o mesmo, ou seja, o INPC. Isso tudo comprova a tese de que
o governo garante os benefícios previdenciários dentro das metas
inflacionárias, mas não relaciona tais benefícios que. por sua vez. é
importante destacar, possuem natureza alimentar, com os principais
itens de consumo destes trabalhadores, o próprio alimento e outras
necessidades básicas como são os casos dos medicamentos, vestuá-
16 Vale desatacar que o preço do combustível afeta o preço de toda a cadeia alimentar.
- 67 -
rios e transportes. Essa é a política da miserabilidade, das escolhas
que enriquece o capital em detrimento ao esvaziamento do prato do
trabalhador.
REFERÊNCIAS
- 68 -
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Política Social) - Instituto de Ciências Humanas. Universidade de
Brasília, Brasília - DF: 2021.
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Onde nos leva esta crise económica? O Estado de bem-estar social
europeu tem futuro? Dívida pública: dívida de todos ou negócio
de alguns? Lisboa: Bertrand Editora, 2012.
- 69 -
- 70 -
AVANÇOS E DESAFIOS DA EDUCAÇÃO
PERMANENTE NO BRASIL CONTEMPORÂNEO:
REFLEXÕES TEÓRICAS E CONCEPÇÕES
POLÍTICAS
Vera Lúcia Honório dos Anjos 1
Cristiano Guedes2
INTRODUÇÃO
A Educação Permanente em Saúde (EPS) disseminada como
um novo mecanismo de formação para a transformação das práticas
em saúde (RAMOS, QUIULO, ANDRADE, 2018) e sua adoção pela
rede de serviços leva em conta necessidades sociais, extrapolando,
portanto, a finalidade de qualificar serviços e trabalhadores da saúde.
Conquistas importantes ocorreram na década de 2000, no âmbito
da EPS, com a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde
(PNEPS) criada em 2004.
A EPS foi concebida como estratégia de formação e desenvol-
vimento dos trabalhadores para o SUS, toma por objeto necessidades
do processo de trabalho e incorpora o ensino, a atenção à saúde, a
gestão do sistema e a participação e controle social no cotidiano das
práticas com vistas à necessidade de mudanças.
Este artigo com fulcro na tese de doutorado em andamento
objetiva apresentar uma reflexão sobre os avanços e limitações da
EPS no Brasil e a concepção político-doutrinária adotada como es-
tratégia político-pedagógica no âmbito do SUS.
- 71 -
a ideia de educação como prática da domesticação e como façanha
da liberdade, Freire (2003) abre caminho para entender a educação
como prática permanente, já que o ser humano, jamais para de se
educar. Destaca Freire, que, para muitos, formação e educação são
subordinadas à racionalidade econômica dominante para quem o
emprego é a medida de sucesso. Entretanto, há adesão aos princí-
pios da educação libertária como caminho para promover mudanças
(transformação qualitativa) nos processos/espaços do trabalho, mas
não se adota a reflexão crítica, que revelaria a alienação do trabalho e
a sua degradação, que, de modo inverso a isso, se conquistaria cons-
ciência crítica (GADOTTI,1984;FREIRE,2011;FERNANDES, 2016).
Mesmo seus defensores apregoando a EP como uma “alavan-
ca da transformação social”, sua introdução no mundo do trabalho
exclui a possibilidade de mudança radical ao promover a ilusão da
igualdade de oportunidades, baseada na formação individual que
objetiva tão somente a produtividade e o crescimento econômico;
logo, visa a contemplar apenas aqueles com melhores condições de
estudar. De todo modo, a expressão educação permanente, conside-
rada pelo autor um modelo de discurso idelógico importado, serviu
à época de seu surgimento para identificar a preocupação por uma
educação fora da escola. E, tem atraído a atenção de educadores
e tecnocratas para designar muitas coisas diferentes e até opostas,
como: educação de adultos, educação extraescolar, formação profissio-
nal, formação supletiva, reciclagem, educação formal etc (GADOT-
TI,1987, p.92).
A novidade desse movimento de educação fora da escola –
portanto, fora do sistema educacional – é a interação do discurso
sobre a EP e sua adoção como uma educação necessária ao longo da
vida, demandando formação contínua e sua evidência como neces-
sidade foi provocada pela sociedade que exige constante renovação
dos conhecimentos. Esses são pilares que resultaram em todo um
trabalho teórico que passou a ser desenvolvido por organismos in-
ternacionais (GADOTTI,1987).
Então, a EP assume um papel ativo na despolitização da popu-
lação, da educação e da formação à medida que oculta em si objetivos
que são, na verdade, uma exigência das sociedades modernas. São
determinações constantes do consumo de bens, que servem aos
interesses do capital, que decide, a aquisição de novos conhecimen-
tos e as qualificações dos trabalhadores que se submetem porque
dependem destes para se viver.
- 72 -
O estímulo e a promoção das qualificações são preestabeleci-
dos para tornar a empresa mais rentável, não há interesse de investir
no trabalhador para atender as suas necessidades. Se assim fosse, o
sistema proporia uma formação sindical que diretamente interes-
sasse ao trabalhador, e de tal modo que as relações de produção e
do processo de trabalho deveriam compor os objetivos da EP, mas,
como se sabe, esse conteúdo não interessa de modo algum ao capital
(GADOTTI,1987).
No Brasil, desde 1981, se desenvolveu experiências, como a
do Projeto de Formação em Larga Escala (PLE) que impulsionou a
emergência da EP, com abordagem pedagógica e ações formativas
no ambiente de trabalho, tendo influenciado a proposição da Opas/
OMS pautada na estratégia pedagógica e metodológica. Experiên-
cias que pavimentaram o caminho da Reforma Sanitária, à época, da
transição da ditadura civil-militar e início da chamada “Nova Repú-
blica”, com déficit público, processo inflacionário, ascensão dos mo-
vimentos sociais e grande debate político; na saúde, a expressão foi
o MRSB. O Estado, face à pressão dos movimentos sociais, busca le-
gitimidade perante a sociedade e, procurando dar respostas a ela, dá
início aos debates para instituir políticas sociais que, posteriormen-
te, se farão constar na CF/1988 (BRASIL,2006; CARVALHO,1993;
PAIM,2008).
Essa trajetória de Constituição como fato político e concepção
da EPS a partir da necessidade de processos educativos, determina-
da pelas condições da realidade social, são demonstrações de avan-
ços à medida que se traduzem em gatilhos para a materialidade da
RSB, e, guardadas as devidas proporções, têm provocado mudanças
na realidade de saúde. Em contrapartida, ou até paradoxalmente, as
limitações se assentam tanto na lentidão para sua implementação
como política, que tem relação com a disposição e interesse político
dos governantes, como a falta de compreensão de sua concepção,
ou é adotada ao sabor dos interesses e conveniências daquele que a
propõe.
- 73 -
trução física e econômica dos países assolados pela guerra, e promo-
ver o desenvolvimento econômico dos países-membros. Juntamente
com o FMI, e com finalidade suplementar, quando não simbiótica,
o BM assumia uma postura intervencionista e normativa nos países
que pretendia desenvolver, ou controlar, constituindo-se em formu-
lador de suas políticas econômicas e sociais (RIZOTTO,2000; CIS-
LAGHI,2015).
Percebe-se que a política favorecedora da economia do livre-
-comércio global assume função de expansão capitalista ao propiciar
financiamentos, empréstimos, condicionalidade de impostos, num
sistema financeiro baseado na dinâmica de endividamento, que afe-
tou os países periféricos em nome do desenvolvimento social, a in-
tegração ao mundo globalizado. Em sintonia, os países centrais têm
procurado manter a sua hegemonia e influência em determinadas
regiões do mundo, como o Brasil (RIZOTTO,2000). Essas evidên-
cias são observadas quando o BM muda seu foco de interesses para
cofinanciar o desenvolvimento econômico dos chamados países “em
desenvolvimento” ou “subdesenvolvidos”, como é o caso do Brasil.
O discurso do BM centra-se na satisfação das necessidades
humanas básicas e no combate à pobreza, ainda que a dedicação
prioritária seja de investimentos em infraestrutura (RIZOTTO,2000;
CISLAGHI,2015). Essa influência chega na área da saúde que passa
a se constituir em importante mercado a ser explorado pelo capital
e, mostra-se como uma forma de revigorar o liberalismo econômico.
O BM passa expandir suas ações no Brasil, agora nas áreas de
nutrição e formação de trabalhadores, com uma participação focada
na apresentação de diretrizes e orientações para as políticas nacionais,
com objetivo de promover importantes reformas dos setores do traba-
lho e da saúde (RIZOTTO,2000, p.153). E, através da OMS/Opas,
passa a exigir reformulações no setor de formação profissional. Uma
temática que já vinha sendo debatida junto a grupos de trabalho
abrangendo vários países da AL, a fim de formular novos conceitos
para o processo de formação profissional.
Assim, a partir de 1984 tem-se o Programa de Desenvolvi-
mento de RH como proposta de reorientar a EP na saúde na região
das Américas, sob alegação da Opas/OMS para adoção de novas re-
ferências metodológicas. Logo, lança propostas como o desenvolvi-
mento dos Sistemas Locais de Saúde (SILOS) e Atenção Primária em
- 74 -
Saúde (APS). Nesta, disseminava a proposta de sistemas de saúde
descentralizados, envolvia a participação social, enfatizando o for-
talecimento qualitativo dos serviços de saúde. Era essencial a elabo-
ração coletiva de uma proposta pedagógica para o desenvolvimento
dos profissionais de saúde que atendesse ao objetivo: identificar e
desenvolver novas formas de abordar os problemas de saúde levanta-
dos e, assim, capacitar pessoas da área, nesses países (FERNANDES,
2016; LEMOS, 2010).
A proposta tinha a intenção de contribuir para tirar o país da
sua condição de subdesenvolvido e, como resposta para atender a
demandas de reorientação no desenvolvimento do RH em saúde,
dos processos de comunicação e cooperação entre estes e as comu-
nidades (LEMOS,2010). Essa investida resultou na constituição, pela
Opas, de programas de EP baseados na noção de que o trabalho é o
eixo fundamental para a aprendizagem (FERNANDES,2016), com
a publicação de uma série de cadernos técnicos, revistas, boletins e
documentos orientativos e didáticos sobre as novas metodologias e
referenciais teóricos. Destaca-se a publicação da revista Educacion
Medica Y Salud, em 1966, para servir aos países das Américas em
relação a atividades de desenvolvimento de RH em ciências da saú-
de, o livro Educação Permanente em Saúde (1995), composto de uma
série de 10 fascículos, no qual um dos destaques é a mudança da
nomenclatura de educação continuada para educação permanente e,
também, o material que recebeu o título de Educação Permanente
do Pessoal da Saúde [1994] (DAVINI,1995; LEMOS,2010; FRAN-
ÇA,2016; LEITE et al 2020).
A disseminação das ideias de EPS abarca todo escopo e en-
volve a área da saúde, como premissa de subsidiar os processos de
estruturação dos SILOS e, realça também a meta da OMS Saúde para
Todos nos anos 2000 com base na descentralização, nas propostas de
APS, que motivou a adoção da terminologia educação permanente.
Tal reorientação se baseia na apropriação da EP, de modo a distin-
gui-la de ensino em serviço e educação continuada (EC), tomando a
EPS como forma de tornar a gestão de pessoas (RH) capaz de com-
preender as lacunas dos serviços e problemas de saúde da população.
A difusão dessa nomenclatura passa, nos anos 1980, a ser ado-
tada como vertente pedagógica para o desenvolvimento de pessoas
e de mudanças no cotidiano (DAVIN et al,1990). A reorientação da
- 75 -
EPS é evidenciada, na compreensão da Opas/OMS, como necessária
em virtude da insuficiência de ações no âmbito da EC, demanda por
descentralização de ações educativas e a busca de novas estratégias
voltadas a capacitação em epidemiologia (LEMOS, 2010).
Nesse contexto, a Opas/OMS passa a adotá-la numa dimensão
política referenciada à realidade de saúde. Logo, há uma mudança
conceitual, daquela época, que representa uma tentativa de respostas
às mudanças econômicas e político-culturais, denotando a necessi-
dade de ajustes/adequação às novas mudanças que o mundo do tra-
balho passa a estabelecer, sem, contudo, apontar a educação como
uma estratégia de cidadania, crítica e emancipatória e, assim, seguiu
conforme o receituário dos organismos internacionais.
Nesta direção, cabe enfatizar a compreensão, segundo a qual o
significado da educação inclui todos os momentos da nossa vida ati-
va em que a aprendizagem é a nossa própria vida”, e é decidida para o
bem e para o mal, tanto para nós próprios como para a humanidade
em geral (MÉSZÁROS,2008, p.48-53). Fernandes (2016, p.61) em
seus estudos, alerta que a educação é percebida como algo que pode
estar a serviço da manutenção da lógica do capital ou da emancipação
da cidadania na perspectiva da transformação social.
A propósito, Mészáros observa que o êxito no processo de
aprendizagem se dá somente a partir da uma ampla concepção de
educação, que pode ajudar a perseguir o objetivo de uma mudan-
ça verdadeiramente radical, viabilizando instrumentos de pressão,
e, por essa forma de abordagem, rompe-se a lógica mistificadora do
capital. O êxito vai depender de se tornar consciente esse processo de
aprendizagem de forma a maximizar o melhor e a minimizar o pior
(MÉSZÁROS,2008, p.48).
A compreensão de educação numa dimensão transformadora
não é considerada pela Opas/OMS, até por que ela representa o capi-
tal, mas adota a EP como possibilidade de mudanças a partir de re-
flexão referenciada da realidade de saúde. Tal compreensão influen-
ciou na elaboração de uma perspectiva teórico-metodológica para
a constituição de programas de EPS, objetivando o desenvolvimen-
to dos sistemas e reconhecendo que tais serviços são organizações
complexas e que só a aprendizagem na dimensão da EP será capaz
da adesão dos trabalhadores aos processos de mudanças. Essa opção
adotada abandona o objetivo de uma transformação social qualitati-
- 76 -
va, posto que o capital segue incontestável e as mudanças almejadas
são admitidas na perspectiva de reforma ou ajustes menores, com
objetivo de corrigir algum detalhe defeituoso da ordem estabelecida
(MÉSZÁROS,2008).
Considera-se um avanço ter inserido no centro dos debates a
discussão metodológica, conferindo-lhe importância, desde que se
tenha a concepção do processo de ensino-aprendizagem alinhada
com os princípios da EPS. Já como aspecto limitador, deve-se refletir
sobre o fato de os debates se restringirem a ajustes, melhorias e mu-
danças nas perspectivas de reformas e correções e não se aprofundar
o debate para as mudanças sociais qualitativas; tampouco se inserem
nesse debate reflexões sobre questões que geraram a necessidade de
incrementar processos educativos no âmbito da saúde.
- 77 -
diais nas relações de trabalho, de modo a tornar possível preparar
o indivíduo em suas potencialidades, buscando qualificar o atendi-
mento do serviço (BARCIA,1982). Por isso, os conceitos de EP, ensi-
no em serviço e EC carregam uma visão de mundo e apropriação de
uma determinada orientação.
A compreensão desses termos pode ser atribuída às exigên-
cias dos serviços de saúde, que têm determinado a necessidade da
organização dos profissionais por meio de processos educativos para
neles atuarem (FARAH,2006). E isso implica na apropriação dessa
orientação como forma de tornar a gestão de pessoas capaz de com-
preender as lacunas dos serviços e os problemas de saúde da popula-
ção, argumentos que convergem para difusão da EP pela Opas/OMS,
indicando-a como vertente pedagógica para o desenvolvimento de
pessoas e de mudanças no cotidiano (DAVINI et al,1990).
As terminologias: educação permanente, ensino em serviço e
educação continuada têm exposto uma polêmica conceitual, e as três
compõem dimensões da educação. Farah (2006) considera o ensino
em serviço o conjunto de práticas educativas planejadas para que se
atue de maneira mais efetiva e eficaz, de modo a alcançar diretamen-
te os objetivos da instituição. Essa estratégia estaria relacionada a de-
terminações planejadas para assegurar a efetividade de uma ação, ou
seja, uma situação pontual.
O conceito de EC considera necessário pensar o processo edu-
cacional de forma [...] “descendente”, ou seja, a partir de uma lei-
tura geral dos problemas, identificam-se temas e conteúdos a serem
trabalhados com os profissionais, geralmente sob o formato de cursos
(USP,2008, p.127).
A EC e o ensino em serviço orientam as necessidades de capa-
citação como instrumentalização técnica, sem levar em conta os pro-
cessos de trabalho e a decisão para realizá-los se dá de forma descen-
dente. A crítica da Opas/OMS é convergente: a EC contribui para a
atualização de conhecimentos, mas não para operar mudanças nos
serviços. Desse modo, a EPS é uma estratégia político-pedagógica-
-gerencial adequada, na medida em que a centralidade é o cotidiano
do trabalho (LEMOS,2010).
A expressão EC dá um enfoque técnico para desenvolver no-
vas habilidades e engloba as atividades de ensino após o curso de
graduação, com as mesmas finalidades: atualização, aquisição de no-
- 78 -
vas informações e/ou atividades de duração definida (LEITE et al,
2020). E suas ações têm um caráter de formação pontual com ob-
jetivo de responder às lacunas na atuação técnica dos profissionais.
O uso dos termos e expressões não é isonômico, na área da
educação é prática recorrente utilizar “educação continuada” para
processos de formação no próprio local de trabalho e, incorpora essa
ideia sem que haja interrupção ou fragmentação de acordo com a
finalidade que se almeja alcançar (OPAS,1988; VIEIRA et al,2006).
A distinção entre os conceitos de EC e EP não os faz serem
incompatíveis entre si para serem aplicados. Há distintos entendi-
mentos e não há compreensão comum quanto ao significado úni-
co ou mesmo consensual do termo, como se fossem considerados
sinônimos. A EP abarca a EC e o ensino em serviço e, de alguma
forma, a aprendizagem desenvolvida (nas relações pessoais, sociais
e profissionais) reverbera em mudanças e transformações do sujeito
e, logo, intenciona mudanças do mundo (Pascoal,2004; Farah,2006
e Lemos, 2010),
A EC é categorizada como uma ação que se desenvolve após a
graduação, como expressão de um processo de atualização, aprimo-
ramento e para adquirir conhecimento, relacionada mais à normati-
va para determinadas necessidades, domínio de uma habilidade téc-
nica, com adoção de metodologias formais, previamente definidas as
atividades e a duração. Quanto à educação/ensino em serviço, seria
composta de atividades educativas realizadas durante o processo de
trabalho.
Para a Opas/OMS, a EC se trata de uma estratégia pedagógica
de transmissão de conhecimentos para dar respostas às determina-
ções do cotidiano do trabalho, e, com essa estratégia, sustenta que
os planos de EP e em serviço têm sido realizados de forma fragmen-
tada, distantes dos reais problemas dos serviços e desvinculados de
análises contextualizadas do processo de saúde-doença e da estrutu-
ra político-institucional (DAVINI, 1995).
Para Opas/OMS, para superar o enfoque educativo do passa-
do sem desconsiderar as contradições estruturais, é preciso propor
métodos para qualificar a força de trabalho vinculada aos serviços de
saúde na AL, “tendo em vista haver […] una falta de corresponden-
cia entre la doctrina educacional y las características de los programas
concretos en términos de orientación, objetivos, contenidos, impacto”
- 79 -
(DAVINI,1995, p. 5). Sob essa premissa, a EP passa a ser uma nova
proposta ou alternativa para superar a EC que não tem propiciado
o desenvolvimento dos RH para melhorar a prestação de serviços
assistenciais (LEMOS,2010).
Ainda que não esteja explicitamente dito, não há indicação de
se identificar as razões necessárias e causas (gênese) que motivam
promover a transformação da prática. O fato de usar a expressão
transformações das práticas, necessariamente, não expressa, no sen-
tido genuíno, uma radical mudança estrutural, visto que a adoção da
EP é justificada pela necessidade de uma adequação às novas mu-
danças no mundo do trabalho, sem que para isso se discuta, apre-
sente e/ou considere o processo histórico que culmina nas desigual-
dades resultantes da exploração dos países mais pobres pelos mais
ricos ou, mesmo, os problemas de saúde que persistem nos países
subdesenvolvidos (MÉSZÁROS,2008; LEMOS,2010).
Parece relevante a atuação da Opas/OMS na visão de Lemos
(2010) ao adotarem como fundamento uma compreensão histórica
do processo e envolvendo uma dimensão política com análises es-
truturais e conjunturais esses organismos consideram a EPS uma pe-
dagogia superior, em função de esta se posicionar como um referen-
cial crítico da educação e permitir a conexão entre teoria e prática.
Em vista disso, a EP para Opas/OMS é um elemento para me-
lhorar a qualidade do serviço oferecido à população, sendo conco-
mitantemente uma ferramenta pedagógica de formação de trabalha-
dores e um agente gerenciador dos problemas do trabalho, capaz de
agir na busca coletiva de soluções, à medida que une o pensar e o fazer
(LEMOS,2010, p. 86). A EPS é definida como educação por meio
do trabalho em diferentes serviços, cuja a meta é promover a saúde
da população, mediante transformações técnicas e sociais (DAVINI,
1995).
Como indica Davini (1995), o conceito pela Opas/OMS tem
contornos e razão político-sanitária e de atualização à medida que
propõe instaurar novos programas, tanto para atender às demandas
dos serviços de saúde quanto de reorientação de políticas sanitárias.
E, também, superar deficiências e limitações no processo de forma-
ção, a obsolescência do conhecimento face ao processo científico-
-tecnológico, no sentido da incorporação de tecnologias e recupera-
ção de conhecimentos e habilidades esquecidos. Outra contribuição
- 80 -
é a concepção de que a EPS orienta para mudar as práticas técnicas e
sociais ao mesmo tempo, evidenciando aspectos da promoção huma-
na do trabalhador, do trabalho em equipe. Logo, implica na reflexão
crítica sobre a prática e o estímulo ao compromisso de transformar
a realidade a partir de problemas cotidianos capazes de promover
reflexão e gerar mudanças (DAVINI,1995).
Acrescentem-se a essa perspectiva às apontadas por Ricas
(1994), que sustentam que os programas de EPS devem estar ancora-
dos em análises do contexto político e socioeconômico da saúde, em
função das transformações que se espera responder aos princípios
de equidade e justiça social da saúde; desenvolver uma consciência
crítica frente ao reconhecimento da realidade na sua totalidade, para
que se tenha ação transformadora. Portanto, implica integração en-
tre teoria e prática, sobretudo análises e debates sobre as condições
de trabalho e respostas à dinâmica político-social de determinada
realidade. Assim, a EP é estratégica, com um enfoque integrado téc-
nico-organizacional e político, com contornos de reestruturação e
desenvolvimento dos serviços, no qual se propõe a transformar o
profissional em sujeito que assume a centralidade do processo de en-
sino-aprendizagem (LEITE, et al, 2020).
Vê-se que a EPS é dotada de uma dimensão abrangente e, en-
volve aspectos que exigiriam reflexão crítica da realidade quanto às
razões que têm gerado os problemas da saúde e, mesmo, suas ex-
pressões sociais, econômicas e políticas. Razões essas que revelam as
causas do adoecimento, da pobreza e, sobretudo, das possíveis ina-
dequações educacionais para atender aos problemas de saúde que
afligem, sobretudo, os países subdesenvolvidos.
- 81 -
à operacionalização da descentralização e a mudanças do modelo
de atenção, que têm requerido um novo perfil profissional para res-
ponder às necessidades de readequação dos serviços à população, de
modo a valorizar, sobretudo, cuidados e prevenção como direitos,
sendo essencial a qualificação dos trabalhadores como base para es-
truturar o sistema e promover a mudança desejada.
Dentre as mudanças a serem operadas para a implementa-
ção do SUS está o deslocamento da atenção à saúde antes centrada
na doença; da atenção à demanda espontânea para o atendimento
continuado; da ênfase à medicina curativa pela integralidade da as-
sistência, implicando a prioridade na formação de profissionais ca-
pazes de atuar para implementação dessas mudanças (FARIA e VIA-
NA,2002).
Para Fleury (1997, p.282), a produção intelectual da gestão de
serviços se volta para um discurso que é projeto da ação política, en-
quanto a produção intelectual científica se formula em discurso de
natureza teórica, que responde à explicação sobre a ação política. A
primeira se ocupa em encontrar respostas para questões do plane-
jamento normativo e a segunda objetiva o conhecimento à ação, na
perspectiva do saber teórico, da reflexão sobre a prática dos serviços.
Tais observações demonstram que a produção intelectual sobre o
trabalhador se traduz como problemática institucional (força e re-
lações de trabalho), portanto, um desafio tanto para o campo dos
estudos quanto para as instituições.
Essa temática ligada ao trabalhador, apropriada pelo Estado
como sua responsabilidade, considera-se aqui, com atraso, em fun-
ção dessa responsabilidade, instituída em 1988, na CF no seu artigo
200, a definição “de ordenar a formação de seus trabalhadores” e a
União, na figura do MS, demorou quase 15 anos para definir uma
política específica, universal, voltada a orientar os demais entes fede-
rados. Houve iniciativas e experiências exitosas, programas e proje-
tos, tentativas pontuais até que se materializasse essa indicação cons-
titucional em política social.
A elaboração da NOB-RH procura atender a necessidades
previstas pela RSB, como questões de formação e desenvolvimen-
to dos trabalhadores da área, e se traduz em uma das respostas aos
debates e manifestações da sociedade civil durante as conferências
de saúde e de RH. A sua elaboração assegurou a operacionalização
- 82 -
de seus conteúdos, além de servir de referência para a formulação
da política para essa área; contribuiu com a base legal para as ações
e os serviços de saúde que têm especificidades não encontradas em
outras atividades da administração pública (BRASIL,2003).
A NOB-RH impôs mudanças, cujas iniciativas e experiências
exitosas como a implantação dos Polos de Capacitação, Formação e
Educação Permanente de Pessoal para Saúde da Família possibilita-
ram aproximação de diversos atores de instituições de serviço e de
ensino público numa pactuação dos projetos e execução das ações
em cooperação, frente à insuficiência de políticas para o desenvol-
vimento de perfis profissionais adequados aos primeiros níveis de
atenção à saúde.
Com a implantação desses polos, a questão de trabalho e
formação na saúde entra na pauta como parte do processo de des-
centralização atribuído aos gestores estaduais e municipais. Porém,
tais ações tendem a ser insuficientes, pois para mudar o modelo de
atenção é preciso estar encadeado a outras iniciativas. Se somente os
agentes de saúde tiverem qualificação na lógica de mudança modelo
e as demais categorias profissionais continuarem em processos for-
mativos sob outra lógica (hospitalocêntrica e curativa), não haverá
impacto à mudança de modelo de atenção. A formação é insuficiente
e exige intervenção massiva, lembra Campos (2006, p.54), essa refle-
xão sugere que o princípio de mudança de modelo de atenção à saú-
de sofre implicações vinculadas à estrutura da saúde e da educação,
e estas podem estar imbricadas no sistema do lucro sobre a doença.
A experiência com os Polos recolocou a importância do tra-
balho, a necessidade de valorização dos profissionais na implantação
dos modelos assistenciais e a regulação das relações de trabalho. E
aqui, nesta reflexão, são considerados gatilhos a impulsionarem o
próximo passo: a publicação da Portaria nº 198/2004 que instituiu a
PNEPS, como proposta de ação estratégica a fim de contribuir para
transformar e qualificar as práticas de saúde, a organização das ações
e dos serviços, os processos formativos e as práticas pedagógicas na
formação e desenvolvimento dos trabalhadores. Logo, foram medi-
das que visavam superar as concepções tradicionais de educação.
Se o período da proposição da NOB-RH foi considerado déca-
da perdida para os recursos humanos, como enfatiza Machado (2006,
p.23), é porque o governo da época não a priorizou; tem-se, agora, o
- 83 -
aspecto que favoreceu a instituição da PNEPS com o novo governo em
2003, representando o retorno aos princípios de que a saúde é um bem
público e os trabalhadores que atuam são um bem público. Portanto, as
experiências acumuladas do MS até aqui e a posição política adotada
pelo governo facilitaram o incremento da PNEPS, já que esse gover-
no assumiu para si a responsabilidade definida constitucionalmente
como mudança positiva, a partir da estruturação da Secretaria de Ges-
tão do Trabalho e da Educação na Saúde.
Em 2007, no cenário do Pacto pela Saúde (Portaria GM//MS
nº325/2008), a PNEPS recebe influência de seus embates e debates,
levando em conta indicadores e medidas para o processo de gestão,
preconizados pelo Pacto. O resultado foi a revogação da Portaria GM
nº198 e a publicação da Portaria GM nº1996/2007. A PNEPS recebe
novos direcionamentos em razão da necessidade de se construírem
indicadores para acompanhamento e avaliação da EPS, seguindo a ló-
gica das diretrizes definidas no Pacto pela Saúde.
Neste ano, inscreve-se a retomada desse debate na agenda dos
governantes com a publicação, pelo MS, da Portaria nº3449/2017 que
disponibiliza recursos a Estados e municípios, estratégia para promo-
ver propostas visando ao seu fortalecimento, consolidação e imple-
mentação. Após um processo estratégico de discussão para atualizar
PNEPS.
Esse conjunto de normas se revela em avanços e em ameaças
que têm impedido essa política de se efetivar como no desenho que
a constituiu. A partir dessa experiência acumulada para constituição
como política, a reflexão sobre EPS indica a necessidade de se questio-
nar e refletir sobre os problemas, por serem de ordem estrutural e do
próprio sistema, atribuídos aos trabalhadores, e que não evidenciam o
compromisso e a responsabilidade do Estado no processo.
Outro avanço é quanto à mudança de nomenclatura: falar em
Recursos Humanos em Saúde (RHS) remete a um dos subsistemas do
SUS que, a partir da estruturação da Política de Gestão do trabalho,
assimila o conceito de Gestão de Pessoas em substituição ao RHS. Por-
tanto, é uma visão política na qual o trabalhador é percebido como
sujeito e agente transformador de seu ambiente e não mero “recurso
humano” realizador de tarefas. E o trabalho é visto como um processo
de trocas, de criatividade, coparticipação e corresponsabilização de enri-
quecimento e comprometimento mútuos (BRASIL,2011).
- 84 -
O acúmulo das experiências, seja com a realização de confe-
rências ou com a trajetória de discussões no interior das instituições
de ensino e serviços, evidenciou tanto a situação insustentável ao
fato (não existência de uma política de educação para os trabalhado-
res) como demonstrou a relevância da temática. Além disso, apon-
tou, a necessidade do Estado se organizar e adotar estratégias para o
desenvolvimento e qualificação dos trabalhadores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
- 85 -
ao enfrentamento da pandemia (GRANEMANN,2021). Apesar dos
desafios contemporâneos para a EPS, os ideiais da RSB estão pre-
sentes em processos educativos com a participação de profisionais
comprometidos com o combate da crise sanitária, com base no co-
nhecimento científico e defesa de direitos sociais.
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ESTADO, SOCIEDADE CIVIL E A RELAÇAO DO
TRABALHO EM REDE
Irenilda Angela dos Santos
INTRODUÇÃO
A violência urbana e de gênero é um dos fatores que mais in-
terfere no bem-estar das pessoas, tornando-se um dos grandes de-
safios a serem superados pela sociedade contemporânea. O modo
de produção capitalista impede que haja desapego de determinados
padrões para a classe trabalhadora, dependente de um salário que é
“negociado” diretamente com seu patrão.
Pertinente interligar, portanto, esses dois anseios prementes
dos trabalhadores: um Estado que seja forte para garantir bem-estar
e segurança, sendo que trabalho e segurança pública são alguns dos
direitos sociais que mais interessam aos trabalhadores, por permiti-
rem uma participação mínima na riqueza material e cultural cria-
da pela coletividade (COUTINHO, 2008, p. 63), sendo conquista
da classe trabalhadora que se materializa através das políticas so-
ciais.
Interessa-nos neste artigo discutir a rede de enfrentamento
à violência doméstica contra a mulher, formada por provocação da
sociedade civil, para atender Várzea Grande e Livramento, a partir
de 2017.
Apesar da Lei n.º 11.340 estar em vigor desde 2006 e prever
em seu texto que a política pública deve ser feita por um conjunto
articulado de ações tendo por diretrizes a integração operacional do
Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com
as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação,
trabalho e habitação, só depois de doze anos é que a sociedade civil e
o poder público resolveram se unir para executar tal política pública,
assim, a análise dessa relação é o objetivo geral deste artigo.
Buscamos discutir porque se demorou tantos anos para come-
çar a implementar a política pública em questão, bem como avaliar
os serviços oferecidos pela Rede de Enfrentamento à Violência Do-
méstica e Familiar Contra a Mulher.
- 91 -
Buscamos relacionar em Coutinho, os conceitos de democra-
cia e cidadania com trabalho em rede, pois os dois primeiros são
processos históricos, trazendo para a discussão o surgimento das re-
des de cooperação, segundo Harari e trazendo Boschetti, nas discus-
sões sobre direitos sociais.
A população pesquisada foi composta por profissionais, inte-
grantes da rede, bem como por alguns usuários dos serviços ofere-
cidos por ela, sendo empregada a observação como método de in-
vestigação; formulários, questionários, entrevistas e atas de reuniões
como instrumentais de coleta de dados.
- 92 -
seguem, de algum modo, coordenar suas ações, assim, todas essas
redes de cooperação foram ordens imaginadas e se sustentavam em
mitos partilhados.
Explica que um fenômeno objetivo existe independentemente
da consciência humana e das crenças, um fenômeno subjetivo é algo
que existe e depende da consciência e das crenças de um único in-
divíduo e um fenômeno intersubjetivo é algo que existe na rede de
comunicação ligando a consciência subjetiva de muitos indivíduos e
as ordens imaginadas são intersubjetivas. De modo que para mudá-
-las, é preciso mudar a consciência de bilhões de pessoas, e uma mu-
dança de tal magnitude só pode ser alcançada com a ajuda de uma
organização complexa como um partido político, um movimento
ideológico ou um culto religioso. E para construir tais organizações
complexas é necessário convencer muitas pessoas estranhas a coope-
rarem, e isso acontece quando elas acreditam em mitos partilhados.
É difícil mudar um paradigma, pois para mudar uma ordem
imaginada existente é preciso acreditar em uma ordem imaginada
alternativa, que a maioria das pessoas não quer aceitar porque a or-
dem que governa sua vida é imaginária, já que cada pessoa nasce
em uma ordem imaginada preexistente e seus desejos são moldados
desde o nascimento pelos mitos dominantes. Pensando sobre a vida
dos trabalhadores, basta voltar à época em que a burguesia se tornou
a classe dominante na França e na Inglaterra. O proletariado emer-
giu como um sujeito histórico politicamente organizado em torno de
associações coletivas e com relativa autonomia ideológica, enquanto
a concepção burguesa do mundo viveu uma fase apologética, pois foi
obrigada a ocultar as principais contradições do modo de produção
capitalista mistificando-o com uma ordem natural para conservar
o status quo ameaçado pelas lutas socialistas, (CASTELO, 2002, p.
618).
Ainda hoje, a participação do povo no exercício do poder po-
lítico não se concretizou nem mesmo nas democracias, quando a
esquerda chegou ao governo como mostra Saes, mesmo com esses
governos tendo efetivamente adotado medidas reformistas como a
expansão do setor público, a criação de leis de mínimos sociais ou a
adoção de políticas tributárias de inspiração redistributivista, o po-
der político continuou nas mãos dos grandes bancos, das sociedades
financeiras e das grandes empresas industriais. Na verdade, esses go-
- 93 -
vernos de centro-esquerda tiveram de se adaptar ao poder político
da classe que opera o poder econômico, gerindo a economia dentro
de limites fixados pelos interesses econômicos e políticos dessa clas-
se. (SAES, 2000, p. 30).
O estresse representado pela agricultura teve consequências
importantes: representou a base dos sistemas políticos e sociais de
grande escala e os camponeses, mesmo trabalhando mais de dez
horas por dia de segunda a segunda, quase nunca alcançaram a se-
gurança econômica e segurança alimentar que tanto ansiavam. Em
toda parte, brotaram governantes e elites vivendo do excedente dos
camponeses e deixando-os com o mínimo para a subsistência.
Tais excedentes confiscados alimentaram a política, a guerra,
as religiões e as elites, que construíram palácios, fortes monumentos
e templos, sendo estes excedentes que alimentavam a elite, os reis, as
cortes, os oficiais do governo, soldados, padres e pensadores. E isso
não mudou: A história é o que os vencedores contam, escrevem e
reproduzem, enquanto milhares de outras pessoas da classe traba-
lhadora estavam produzindo alimentos (HARARI, 2015, p. 113). A
história continua sendo a ordem pensada e imaginada pelas poucas
pessoas da classe detentora do poder e essas poucas pessoas forjam
a crença de todas as outras nos mitos partilhados pelas primeiras.
Como os humanos se organizavam em redes de cooperação em mas-
sa, uma vez que careciam de instintos biológicos para sustentar tais
redes? Eles criaram ordens imaginadas e desenvolveram sistemas de
escrita, onde as primeiras sustentavam essas redes que nunca foram
neutras nem justas. Sempre dividiram as pessoas em grupos hierar-
quizados: superiores e inferiores, com os primeiros desfrutando de
privilégios e poderes e os segundos sofrendo discriminação e opres-
são. Para exemplificar, cita que o Código de Hamurabi estabelecia
uma ordem hierárquica formada por homens superiores, comuns e
escravos.
A ordem imaginada constituída pelos detentores do poder
entre os norte-americanos, ao assinarem a Declaração da Indepen-
dência, também foi criada uma divisão entre negros e brancos, indí-
genas e também de gênero, demonstrando a grande contradição que
perdurou durante muitos anos até que, em 1860, uma parte do país
se voltou contra a outra, numa guerra que partiu o país ao meio.
Após a Guerra de Secessão, ocorreu a libertação dos negros,
que a partir dai deveriam gozar de liberdade, todavia, só mesmo na
- 94 -
década de 1960, com a luta de Martin Luther King, estes vieram a
gozar de direitos civis. Porém, mesmo assim, o preconceito, a discri-
minação, os baixos salários e a falta de oportunidade para os negros
permaneceram, tanto que até hoje a maioria dos que se encontram
privados de liberdade nos EUA é afro-americana, bem como são
também vitimas de mortes, por preconceito, pelas mãos de policiais
brancos.
O mesmo sistema discriminatório ocorreu com as mulheres,
pois pequenas mudanças só ocorreram após as mulheres ocidentais
brancas, de início apenas as de classe média, que insatisfeitas com
o seu estado de submissão resolveram reivindicar direitos de votar,
ter acesso à instrução e a terem profissão, provocando o início das
mudanças nos direitos das mulheres. O movimento feminista bra-
sileiro demorou um pouco mais a se mostrar, tendo sido iniciado
basicamente com as lutas das mulheres na década de 1970, porém,
até hoje ainda lutamos e reivindicamos por direitos iguais, igualdade
de salários, cota no fundo nacional de financiamento de campanha e
respeito à integridade física, patrimonial e psicológica, entre outros
direitos.
2. A SOCIEDADE CIVIL E A INTERDEPENDÊNCIA SIS-
TÊMICA
- 95 -
é recente e só será assim concebida a partir da crise de 1929, porém
as estruturas que criam a exclusão social não são transformadas e,
assim, as políticas sociais continuam sendo, via de regra, instrumen-
tos que servem para dar continuidade ao modelo econômico, então
adotado.
Nos países capitalistas os sistemas de proteção se originaram
na Europa Ocidental no contexto da Revolução Industrial e se am-
pliaram após a II Guerra Mundial, constituindo conquistas civiliza-
tórias que não foram capazes de emancipar a humanidade da escra-
vidão capitalista, mas instituíram sistemas de direitos e deveres que
alteraram o padrão de desigualdade entre as classes sociais. (BOS-
CHETTI, 2012, p.755). O período do Pós-Segunda Guerra Mundial,
capitalizado pelo Plano Marshal, oferece um cenário da centralidade
que estas políticas sociais passaram a ter dentro do sistema capitalis-
ta nestes países no pós-guerra. Este período, marca de forma clara
a consolidação dos sistemas de proteção social nos países europeus
capitalistas e que buscam pensar um modelo de certo equilíbrio na
relação capital trabalho, situação que garantiu um crescimento com
redistribuição de renda ao longo de uns 30 anos nos países europeus
capitalistas e também norte americano.
Porém, tais benesses que permitiram a consolidação dos siste-
mas de proteção aos cidadãos nacionais, se calcaram na apropriação
de riquezas de outros países dentro do conceito de países de baixo
desenvolvimento, como aqueles dos continentes da América do Sul
e Central, a África, a Ásia, entre outros. Dessa forma, essas políti-
cas sociais garantiram a mercantilização ainda maior da reprodução
das condições de vida da população trabalhadora, o que mostra que
a expansão dos mercados ocorreu sem romper com a organização
política das classes detentoras dos meios de produção ou com a or-
ganização política e social, garantindo a sustentabilidade do sistema
social, como nos fala (POLANYI, 2000).
São necessários esforços árduos e contínuos para salvaguardar
uma ordem imaginada, portanto, os intelectuais engajados na luta
pela classe oprimida são muito importantes para mantê-la, se encar-
regando de desenvolver teorias para atingir esse objetivo. (HARARI,
2015, p. 119).
Depois da Segunda Guerra Mundial, a teoria de Parsons,
passou a valorizar o aspecto social, tanto foi assim que em seu li-
- 96 -
vro Sistema Social, publicado em 1951, Parsons deu ênfase à índole
da interdependência sistêmica das forças estabilizadoras do sistema,
tornando subsidiário o caráter estimulante dos valores e ideias. Foi a
partir de então, que ele destacou a existência de quatro requerimen-
tos funcionais necessários à sobrevivência de uma sociedade ou de
qualquer sistema social: manutenção de padrões, obtenção de metas,
adaptação e integração. Segundo Parsons, 1974, p. 4, apud Pereira,
2011:
- 97 -
parentes e vizinhos, tornaram-se obsoletos ante o desenvolvimento
industrial, todavia, esse processo deu origem a organizações diferen-
tes das anteriores que cumpriram a função integradora: Agências de
Recrutamento, Sindicatos e Sociedades de Cooperação (MISHRA:
1989 apud PEREIRA, 2011).
Implícita nessa visão de mudança via processo de diferencia-
ção e recomposição da integração sobre novas bases, está a análise do
bem-estar como mecanismo integrador nas sociedades complexas,
mas em interdependência com as demais funções básicas do sistema.
Nas sociedades industrializadas, diferentes instituições desenvolvem
o bem-estar como reforço adicional à família e aos grupos de paren-
tesco.
Esta é a razão porque várias organizações formais e informais
oferecem resposta às necessidades que nas sociedades primitivas
eram supridas pela comunidade e parentesco. Em algumas comuni-
dades, a religião como organização e conjunto de crenças simboliza a
ideia de comunidade e assume, no processo de integração, um papel
importante. Em outras, estas mesmas religiões podem refrear qual-
quer processo de promoção de igualdade, quando calcadas em ideias
conservadoras e de ultradireita.
Na sociedade industrial, novas modificações foram introdu-
zidas, aumentou a especialização no trabalho ao mesmo tempo em
que a complexidade social se intensificou: a família, a comunidade
e a igreja se enfraqueceram como organizações integradoras. Novas
estruturas surgiram e se ocuparam do bem-estar e nesse estágio se
destacou a intervenção do Estado de bem-estar Social, acompanha-
da da ação de assistência social, pública e privada, como parte do
mecanismo integrador por excelência da sociedade industrializada.
Muito embora tenha havido modificações para tentar huma-
nizar o capitalismo, as relações decorrentes desse sistema embrute-
cem as pessoas, ao gerar uma sociedade socialmente injusta e cada
vez mais indiferente ao outro, a violência aumenta e coibir ou criar
meios de minimizá-la é uma tarefa que demanda esforço coletivo, de
várias instituições e da sociedade civil.
Porém, ao contrário dos países capitalistas europeus e do nor-
te-americano, a expressão sociedade civil só se difundiu na reflexão
social brasileira por volta da década de 1970, sendo que para Grams-
ci, sociedade civil é parte integrante do Estado e somente por razões
- 98 -
analíticas pode dele ser destacada, e nessa mesma década o neoli-
beralismo transferiu para a sociedade civil, as responsabilidades so-
ciais, que deveriam ser estatais.
- 99 -
A pobreza e a riqueza são resultantes do modo de produção
de uma dada sociedade e sob a exploração capitalista, o bem-estar é
sempre uma conquista da classe trabalhadora, que luta por ela desde
os primórdios da ascensão do capitalismo como modo de produção.
Os Estados estão cada vez mais abertos às articulações dos
mercados globais, à supervisão do público global, do sistema jurídi-
co internacional e ONGs (movimentos resultantes de organizações
que ganharam forte protagonismo), todavia, isto significou um des-
compromisso dos entes públicos. O mundo capitalista é um império
global, governado por uma elite de vários países que se mantêm uni-
dos por cultura comercial e interesses em comum para, a cada dia,
terem e auferirem maior lucro. Cada vez mais profissionais de todas
as áreas são chamados para fazer parte do império e devem ponderar
se atenderão ao chamado ou se permanecerão fiéis aos interesses de
seu Estado e povo, porém, é cada vez maior o número dos que esco-
lhem o império. (HARARI, 2015, p. 172-173).
4. OS TRABALHOS DA REDE DE ATENDIMENTO: FOR-
MAS DE FAZER VALER A LEI MARIA DA PENHA
- 100 -
Em 2006, foi editada a Lei Maria da Penha, o que representou
um avanço, entretanto, não foi suficiente para diminuir os números
da violência doméstica no território brasileiro, pois valores sociais
que perpetuam a cultura machista e práticas de atendimento que re-
produzem estereótipos e preconceitos contra a mulher continuam
sendo uma constante na sociedade.
No que concerne aos dados sobre violência doméstica contra
a mulher, o Fórum Brasileiro de Segurança publicou no ano de 2017
a existência de 4.606 homicídios e feminicídios, sendo uma mulher
assassinada a cada 2 horas em 2016 no território brasileiro.
Desses, 621 casos foram classificados como feminicídios, de-
monstrando as dificuldades no primeiro ano de implementação da
Lei Maria da Penha (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2017).1
Institutos médico-legais com serviços diferenciados, casas de
amparo para acolhimento, unidades de saúde, delegacias, defenso-
rias, promotorias e varas especializadas, quando existentes, ainda
funcionam em sua maioria de forma precária e na maioria das vezes
faltam profissionais qualificados e dispostos a realizar um trabalho
intersetorial.
A não concentração desses equipamentos sociais em um úni-
co lugar para o atendimento das mulheres vitimizadas tem sido um
dos principais problemas enfrentados pelas mulheres em situação
de violência, tendo em vista que acabam percorrendo grandes dis-
tâncias entre um e outro órgão, o que as desestimulam a continuar
buscando seus direitos.
Diante disso, é necessário pensar meios de exigir a execução
da Lei Maria da Penha em sua integralidade, especialmente os arti-
gos referentes ao atendimento multidisciplinar.
Assim, a formação de uma rede de enfrentamento à violên-
cia doméstica contra a mulher respalda essa necessidade e, atuando
com atores interessados neste processo, começaram, então, a traçar
estratégias para a implantação da referida rede a partir de dezembro
de 2017, em Várzea Grande-MT. Após algumas reuniões foi sugerida
a data para o lançamento do projeto no dia 08 de março de 2018, e
o documento formalizando a Rede foi assinado pelos representantes
1 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Amostra de Do-
micílios. Censo 2010. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/
sociais/populacao/9662-censo-demografico2010.html&t=microdados>. Acesso em: 01
jun. 2018.
- 101 -
das instituições da sociedade civil e dos governos municipal e esta-
dual, na mesma data.
Formalizado o documento, foram fixadas as diretrizes com os
eixos de atuação: Eixo I – Rede de Atenção/Proteção Social da Vio-
lência Doméstica; Eixo II – Plano de Educação Permanente e capa-
citação para os agentes sociais; Eixo III – Núcleo Acadêmico de Pes-
quisa, um grupo de trabalho que passa a se reunir periodicamente: o
Grupo Reflexivo para Homens e Patrulha Maria da Penha.
Potencializar o atendimento prestado pelas instituições que
integram a rede é o principal objetivo dela, o que começa a se reali-
zar com a primeira etapa das capacitações continuadas voltadas para
os agentes sociais. O espaço onde são realizadas as capacitações é
cedido por uma universidade privada e os facilitadores que se dis-
põem a realizar a formação são profissionais que integram a rede ou
professores da Universidade Federal do Mato Grosso ou desta mes-
ma universidade privada de Várzea Grande, que nada cobram pelo
trabalho, o material de apoio é doado pelo Ministério Público e a
certificação é feita pela UNIVAG. Na primeira etapa, são cursos de
24 horas, nos quais diversos temas são debatidos com os agentes que
prioritariamente atendem às mulheres.
O objetivo da formação é oportunizar a compreensão da vio-
lência doméstica e familiar a partir da perspectiva teórica de gêne-
ro, a fim de potencializar o trabalho intersetorial e interinstitucional
da Rede de Enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a
mulher da região de Várzea Grande e Nossa Senhora do Livramento,
esta última, também abrangida pela rede porque o posto da Polícia
Civil localizado na cidade é de competência da comarca de Várzea
Grande.
No total, participaram do primeiro módulo 68 pessoas, do
segundo 43 pessoas, do terceiro 54 pessoas e no quarto tivemos 59
participantes.
Cada um dos temas abaixo elencados é explanado através de
palestras e oficinas de trabalho, por especialistas da Universidade Fe-
deral de Mato Grosso, UNIVAG, bem como Promotores, Assistentes
Sociais e Psicólogos com conhecimento teórico e vivencial do tema
proposto, os quais usufruíram de total liberdade para apresentar a
temática: 1. Abordagem sócio-histórica do movimento feminista;
2. Debates teóricos sobre gênero; 3. A construção social do gêne-
- 102 -
ro, críticas feministas, patriarcado e a correlação com a dinâmica
da violência doméstica; 4. Relações Raciais, gênero e sua correlação
com a violência doméstica e familiar contra a mulher; 5. Apanhado
histórico da violência doméstica e familiar no Brasil; 6. Violência do-
méstica no Brasil: antes e depois da Lei Maria da Penha; 7. Estrutura
jurídica da norma nº 11.340/06, aspectos inovadores, sistemática de
proteção à mulher, o sistema judicial; 8. Desconstruindo os mitos
e estereótipos da violência doméstica; 9. Relacionamentos abusivos
e violentadores: Compreensão da construção de relacionamentos
abusivos da infância a fase adulta; 10. Consequências da violência
doméstica para a saúde física e mental de mulheres; 11. O trabalho
em Rede e a importância do trabalho intersetorial programado; 12.
A efetividade da Rede de Enfrentamento à violência doméstica e fa-
miliar contra a mulher.
Na segunda etapa da capacitação, foram 20 horas de duração,
entre 14 de setembro e 11 de outubro de 2018, onde o objetivo geral
foi qualificar profissionais, de nível superior, lotados nos equipamen-
tos da política de Assistência Social (CREAS e CRAS) das cidades de
Várzea Grande e Nossa Senhora do Livramento. Após a capacitação,
deveriam exercer a função de facilitadores do grupo reflexivo para
homens com medidas protetivas deferidas pelo Poder Judiciário e
os objetivos específicos foram: compreender como as desigualdades
de gênero explicam as raízes da violência doméstica e familiar; am-
pliar o conhecimento sobre os direitos inerentes ao ser humano e as
novas estratégias de coibir a violência contra a mulher através da Lei
n.º 11.340/06; promover reflexão transformadora sobre os conflitos
inerentes aos relacionamentos íntimos, especialmente os conjugais e
familiares; conhecer a construção de masculinidades e sua correla-
ção com a violência doméstica e familiar.
A metodologia utilizada era a apresentação de aulas expositi-
vas com problematização dos temas, debates e oficinas de trabalho,
em 30 de outubro de 2018 a Rede promoveu uma solenidade para
a implantação de dois serviços: a Patrulha Maria da Penha e o SER
(Serviço Reflexivo para Homens).
A Patrulha Maria da Penha consiste em efetivar a proteção às
mulheres que têm medidas protetivas, através de visitas frequentes
a elas, da Guarda Municipal e da Polícia Militar que trabalham em
conjunto.
- 103 -
O SER é um serviço reflexivo para os homens que cometeram
algum tipo de violência e são encaminhados pelo Poder Judiciário
para participar das reuniões junto ao CREAS (Centro de Referên-
cia e Assistência Social) da cidade de Várzea Grande e ao CRAS da
cidade de Livramento, nesses encontros os homens participam de
palestras, oficinas e fazem reflexões sobre o seu comportamento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
- 104 -
passando a se envolver com o aprimoramento dessas políticas pú-
blicas.
Nota-se que a violência de gênero tanto em Várzea Grande
como em Livramento tem sido ao longo dos tempos naturalizada,
sendo necessário que haja um processo educativo desde a infância,
a partir do âmbito escolar e dos demais meios de socialização, para
que relações de igualdade sejam construídas sem a imposição da for-
ça física, com a finalidade de subjugar um gênero ao outro. A crian-
ça, o/a adolescente e a mulher que estão em situação de vulnerabili-
dade precisam do apoio da família, de amigos, das igrejas, de todos
os organismos sociais e principalmente dos serviços públicos para
serem acolhidos por uma rede de proteção.
As desigualdades, em especial a de gênero, não podem ser
tratadas como um fenômeno natural, mas sim como um processo
histórico construído socialmente e em razão deste fato é passível de
mudança.
Portanto, a intervenção na realidade de Várzea Grande através
da formação de uma Rede de Enfrentamento à Violência Domés-
tica e Familiar tem colaborado com o rompimento da violência de
gênero e da cultura de violência patriarcal existente na localidade,
trazendo mudanças significativas na sociedade.
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- 106 -
O USUÁRIO NA LEI DE DROGAS: UM DESAFIO
PARA O SISTEMA DE JUSTIÇA
Marcos Henrique Machado1
Liliane Capilé Charbel Novais2
Introdução
O uso de drogas ilícitas, pela ordem jurídica de cada país, consti-
tui um fenômeno histórico e multifatorial, acentuado na modernidade,
que envolve o poder político, o mercado, a saúde pública, a segurança
pública e os direitos sociais e humanos (ROSA, 2014). Neste artigo,
discorre-se sobre um dos maiores dilemas do Sistema de Justiça, a
aplicação da Lei de Drogas, no tocante à distinção entre traficantes e
usuários, causa de erros judiciários ao classificarem traficantes como
usuários e usuários como traficantes. Para esse enfoque, introduz-se
o tema “drogas ilícitas” no contexto mundial, com incursão sobre a
Política de Drogas Ilícitas no Brasil.
Pesquisadores têm desenvolvido pensamentos e firmado ex-
periências sobre o uso de drogas e seus efeitos, com fundamentos na
Antropologia, Medicina, Psicologia, Sociologia, Política Social, Eco-
nomia e Direito, especialmente nas perspectivas de saúde coletiva e
segurança pública (DEGASPERI, 2013; ZALUAR, 2007; MINAYO,
DESLANDES, 1998).
Nesse contexto, pode-se afirmar que, desde o início do século
XX, a temática “drogas ilícitas” passou a ser foco de discussões não
apenas de políticas de saúde, segurança pública e assistência social,
mas ampliou-se para o Sistema de Justiça em razão do elevado nú-
mero de ações penais por tráfico de drogas ilícitas em face de usuá-
rios de drogas, seja envolvidos em tráfico de pequenas porções ou
portando tais substâncias, geralmente para sustentar o próprio ví-
cio ou dependência e, também, em casos de violência doméstica ou
familiar derivados de atitudes e condutas decorrentes de alterações
comportamentais provocadas pelos efeitos químicos das drogas no
organismo humano, especialmente excitação, confusão mental, irri-
tabilidade, delírio e paranoia (DEMARTINI, 2015).
1 Desembargador do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, Doutorando DINTER Política
Social PPGPS-UnB/PPGPS-UFMT.
2 Professora Associada do Departamento de Serviço Social, PPGPS/ICHS/UFMT,
PGHIS/IGHD/UFMT.
- 107 -
No Brasil, a legislação define como drogas “as substâncias ou
produtos capazes de causar dependência”, assim especificadas no pa-
rágrafo único do art. 1º da Lei n.º 11.343/2006, que institui o Sistema
Nacional de Políticas Sobre Drogas – SISNAD. Segundo a Organiza-
ção Mundial de Saúde – OMS, “droga é toda a substância que intro-
duzida no organismo vivo modifica uma ou mais das suas funções”.
Engloba substâncias lícitas – bebidas alcoólicas, tabaco e certos me-
dicamentos – e as substâncias ilícitas como a cocaína, LSD, ecstasy,
entre outras. Capazes de provocar dependência são comercializadas
ilegalmente e estão associadas a algo ruim, perigoso, envolvendo
mitos e tabus. Podem ser classificadas segundo vários critérios: o
farmacológico, que trata da estrutura química das substâncias, seu
mecanismo de ação e principais características farmacológicas, po-
dendo subdividir-se em depressoras, estimuladoras e perturbadoras
(OMS, 1993).
O fundamento da política internacional sobre drogas ilícitas
foi fixado no proibicionismo, como destacam Rodrigues (2006),
Lima (2009) e Karam (2013), e ganhou densidade na Convenção In-
ternacional do Ópio, assinada em Haia em 23 de janeiro de 1912, du-
rante a Primeira Conferência Internacional do Ópio. Foi o primeiro
tratado internacional de controle de drogas, após o então presidente
dos EUA, Theodore Roosevelt, convocar uma conferência de 13 na-
ções, denominada de Conferência Internacional do Ópio, em 1909,
em Xangai, na China.
O conjunto de elementos humanos e sociais relacionados ao
uso recreativo ou abusivo envolvem: mortes prematuras por over-
dose, patologias causadas pela dependência química, notadamente
transtornos mentais (psiquiátricos e psicológicos), a transmissão
de doenças infectocontagiosas (HIV e Hepatite C) e comorbidades,
transformação funcional do Estado para atender dependentes quí-
micos por meio de programas de saúde (tratamento) e assistenciais
(reabilitação e reinserção social), como explica Braun (2007).
No mesmo contexto, estão alinhados: o recrutamento dos tra-
balhadores desempregados ou sem oportunidade de remuneração
por traficantes para transportarem, guardarem ou venderem drogas
ilícitas; a violência doméstica e familiar provocada pelas reações dos
usuários; a criminalidade difusa empregada (furtos, roubos, extor-
sões e latrocínios) para financiar o tráfico e proporcionar meios para
- 108 -
o consumo de criminosos, gerando mais violência pela disputa do
comércio ilícito.
Diante dessas variantes, impulsionadas e/ou derivadas do
mercado de drogas ilícitas, o consumo de drogas tornou-se pauta de
política social, desde as primeiras décadas do século XX.
No âmbito do Sistema Criminal de Justiça, há intensas discus-
sões visando atenuar as consequências jurídicas geradas pelo uso de
drogas, haja vista que o uso e abuso de drogas geram consequências
não apenas ao usuário (saúde, formação educacional, trabalho, rela-
ções civis, implicações legais) e à família (conflito relacional, aban-
dono moral e material, atos de violência), sobretudo quando aquele
passa a ser dependente de tratamento clínico ou incapaz de gerir a
própria vida, mas também à sociedade na qual o usuário convive e
compartilha seus atos.
Ocorre que inexiste uma distinção precisa entre o usuário e
o traficante. Este é o maior dilema do Sistema de Justiça, ou seja,
competente pela responsabilização penal dos indivíduos que estão
implicados em dispositivos da lei sobre drogas ilícitas no Brasil, vis-
to que o texto não estabelece taxativamente a quantidade de drogas
que identificaria objetivamente o consumidor e o comerciante, mas
tão somente descreve critérios interpretativos que podem levar à
conclusão das hipóteses de mercancia (importar, exportar, remeter,
preparar, produzir, fabricar, vender, expor à venda, oferecer, pres-
crever, ministrar, entregar ou fornecer para consumo), seja por cer-
tas condutas (adquirir, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer
consigo e guardar) e a quantidade for desproporcional à hipótese de
consumo individual.
Por outro lado, também se apresenta possível classificar o
usuário quando a quantidade é inexpressiva ou ínfima, em algumas
condutas (adquirir, ter em depósito, transportar, guardar e trazer
consigo), segundo premissas jurisprudenciais sobre a quantidade e a
natureza da droga, bem como mediante a persecução judicial sobre a
condição de usuário ou confirmação de dependência química.
- 109 -
za a produção, o comércio e todas as formas que possam caracterizar
difusão e o consumo de substâncias rotuladas como impróprias à
saúde e/ou ao convívio social.
O paradigma proibicionista foi introduzido e consolidado na
legislação brasileira no decorrer do século XX, com a edição do De-
creto-Lei n.º 891/1938, versado em três vertentes (prevenção, trata-
mento e repressão), consolidado pelas Leis n.º 6.368/76, 10.409/02 e
11.343/06, então vigentes.
Segundo Fiore (2012), o modelo proibicionista se refere à prá-
tica de governamentalidade que os Estados signatários da Conven-
ção da ONU de 1961 devam adotar, cabendo aos governos signatá-
rios elaborar dispositivos congruentes aos preceitos internacionais,
entre os quais a efetiva punição aos produtores, vendedores e con-
sumidores das substâncias listadas como impróprias para consumo.
Rodrigues (2006) destaca que o proibicionismo das drogas ilí-
citas é ancorado em dois pilares fundamentais, um jurídico-moral e
outro sanitário-social. Tem como meta suprimir desde a produção
até o comércio das substâncias designadas como impróprias para
consumo, recomendando punições incisivas aos transgressores, per-
passando por penas que vão desde a prisão até o confisco de bens.
No cenário internacional do tráfico de drogas ilícitas, o Brasil
é considerado um país-chave para a difusão da cocaína produzida
no Peru, Bolívia e Colômbia por sua posição geográfica estratégica e
maior quantidade de consumidores de drogas. Esses fatores motiva-
ram a Convenção de Viena (1988) que implementou o marco legal
sobre drogas da ONU, prevendo a criação de órgãos responsáveis
pelo controle e repressão do narcotráfico, bem como a efetiva imple-
mentação de programas e políticas relativas à prevenção do consu-
mo de drogas e tratamento a usuários (BRASIL, 1991).
A institucionalização dos postulados da ONU levou o Brasil a
montar seu quadro de políticas antidrogas, a partir da aprovação da
- 110 -
Estratégia Hemisférica Antidrogas (1996), que significou um novo
marco para a cooperação interamericana para garantir a realização
das recomendações previstas na estratégia. A Comissão Interame-
ricana para o Controle do Abuso de Drogas – CICAD optou por
adotar um plano de ação que entrou em vigor em 1997. Este plano
indicava o consenso dos países latino-americanos de que o tema das
drogas devereia ser tratado de forma ampla, abordando de forma
equilibrada a questão relativa à redução da demanda e à redução da
oferta (SILVA, 2013).
Na sequência, foi criado o Sistema Nacional Antidrogas, em
1998, por meio do Decreto n.º 2.632, como resultado da participação
brasileira na XX Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações
Unidas sobre o problema global das drogas e da adesão do governo
brasileiro aos três documentos, fruto da Conferência. Por ocasião da
referida reunião, a ONU procurou realçar o compromisso dos países
signatários das três convenções de enfrentamento do problema das
drogas, por meio do estabelecimento institucional de políticas que
abordassem o tratamento da questão em todas suas esferas.
Com o principal objetivo de integração de propostas de pre-
venção e repressão às drogas ilícitas, obedecendo às diretrizes in-
ternacionais, criou-se uma secretaria específica para tratamento do
problema das drogas no Brasil, a Secretaria Nacional Antidrogas
(SENAD). A criação de uma secretaria específica sobre o tema das
drogas ilícitas reuniu, num orgão, a política e controle sobre as dro-
gas, formando um arcabouço composto: a) pela legislação nacional;
b) programas de combate, prevenção ao consumo e tratamento ao
usuário; c) estratégias de defesa do território nacional; d) participa-
ção internacional sobre tema (BRASIL, 1998).
A política sobre drogas ilícitas brasileira está fundada nos se-
guintes eixos e subeixos: I) redução da demanda: prevenção, promo-
ção à saúde, cuidado, tratamento, acolhimento, apoio, mútua ajuda
e reinserção social; II) gestão: incluídas as ações de estudo, pesquisa,
avaliação, formação e capacitação; gestão de ativos; III) redução da
oferta: incluídas as ações de segurança pública, defesa, inteligência,
regulação de substâncias precursoras, de substâncias controladas e
de drogas lícitas, repressão da produção não autorizada, de combate
ao tráfico de drogas, à lavagem de dinheiro e crimes conexos, in-
clusive por meio da recuperação de ativos que financiem ou sejam
resultados dessas atividades criminosas.
- 111 -
Oficialmente, a Política Nacional Antidrogas brasileira foi ins-
tituída pelo Decreto Presidencial nº 4.345, de 26 de agosto de 2002,
reunindo todas as diretrizes governamentais sobre a questão das
drogas ilícitas, até então esparsas em leis e atos normativos.
Pela Resolução n.º 03/GSIPR/CH/CONAD, de 27 de outu-
bro de 2005, o Governo Federal instituiu a segunda Política Nacio-
nal sobre Drogas – PNAD, excluindo o prefixo “anti” e inserindo a
preposição “sobre”, adotando como foco a cooperação mútua entre
os Estados, municípios e organizações não governamentais para, de
forma especial, reduzir a demanda e oferta de drogas, similar à pri-
meira PNAD, exceto pela sua ênfase na redução de danos. Como ela
foi aprovada como uma resolução do Conselho Nacional de Políticas
sobre Drogas– CONAD, e não por decreto, não houve uma revoga-
ção formal da primeira PNAD, e as duas coexistiram formalmente
até 2019. A segunda PNAD propôs diretrizes normativas e nortea-
doras para que seus pressupostos e objetivos fossem aplicados, esti-
mulando e garantindo ações compartilhadas para que a sociedade
possa se conscientizar dos prejuízos causados pelo uso indevido das
drogas.
A Resolução n.º 1, de 9 de março de 2018, do CONAD, im-
plicou mudança significativa na condução da política sobre drogas
do País, de uma abordagem diversificada de atenção psicossocial,
norteada pela estratégia de redução de danos, para a ênfase na abs-
tinência.
- 112 -
julgamentos de primeiro e segundo graus de jurisdição; contraditó-
rio dos atos realizados pelo órgão de acusação; proibição de provas
ilícitas, entre as quais que envolvam sigilo e intimidade protegidos
por lei; motivação das decisões sob pena de nulidade; juiz imparcial
e competente conforme as normas de organização judiciária.
É comum, no Sistema de Justiça, a postulação de famílias de-
sesperadas, por não encontrarem solução junto ao setor de saúde
e sem recursos financeiros, buscarem a internação compulsória de
seus usuários e dependentes, numa verdadeira judicialização da saú-
de mental, e também a forma de assistência psicossocial (DENADAI,
2016).
Essa intervenção judicial tem ocorrido ora pautada por ór-
gãos do Ministério Público, que agem sob fundamento no direito
à saúde do próprio usuário (CF, art. 6º) ou de sua dignidade (CF,
art. 1º, III), legitimados na incapacidade relativa de todo e qualquer
dependente de drogas para gerir atos civis (CC, art. 4º, II e 1.767,
III), e no Decreto-Lei n.º 891/38 (arts. 27 a 29), que classificam a
toxicomania ou intoxicação habitual por substâncias entorpecentes
como doença de notificação compulsória passível de internação ju-
dicial (Lei n.º 10.216/01, art. 6º, III); ora por órgãos de Defensoria
Pública que atendem familiares de usuários, no exercício da assis-
tência jurídica aos necessitados (CF, art. 5º, XXXV e LXXI), que pos-
tulam internação involuntária (Lei n.º 10.216/01, art. 6º, III), para
desintoxicação e tratamento de dependência química, seja porque
não aceita se submeter aos protocolos e procedimentos do Centro
de Assistência Psicossocial do Sistema Único de Saúde – CAPS/SUS,
seja porque apresenta comportamento agressivo e aliena ou subtrai
objetos e bens móveis da família.
No campo propriamente penal, a Lei n.º 11.343/2006, ao
instituir o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas
(SISNAD), dispôs, além das medidas de prevenção do uso indevi-
do, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas,
normas repressivas à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de
drogas e define os crimes de tóxicos e disciplina o processo judicial.
Pela lei vigente:
- 113 -
metido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das dro-
gas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa
de comparecimento a programa ou curso educativo.
- 114 -
e as situações que configurariam porte para consumo próprio, seja
pela natureza subjetiva do raciocínio judicial para compreensão do
fato criminoso e suas circunstâncias, seja pela livre valoração da pro-
va conferida ao juiz (competente para a causa), seja pela moldura ou
até mesmo releitura do dispositivo legal empregado pela jurispru-
dência (entendimento consolidado pelos tribunais sobre determina-
das matérias julgadas).
As maiores repercussões da tênue linha jurídica entre o tra-
ficante e o usuário, embora haja a terceira figura, a do usuário-tra-
ficante (trafica para manter o uso, inclusive recebendo em drogas),
envolvem as escolhas dos institutos jurídicos previstos no ordena-
mento penal que devam ser aplicados em processos de tráfico de
drogas ilícitas, considerada a difusão e efeitos deletérios coletivos, o
juiz criminal tem poder e margem intelectiva para ser mais ou me-
nos rígido, relativizar a incidência de regras, excepcionalmente da
presunção de inocência ou sobrepor a ordem pública ao direito in-
dividual.
As situações mais sensíveis envolvem as condutas de adquirir,
ter em depósito, transportar, guardar e trazer consigo quando são
praticadas por usuário-traficante ou não comprovada a dependên-
cia química. Isso porque muitos traficantes-usuários recebem drogas
como pagamento para manterem o vício ou mesmo como moeda
(RIBAS, 2019).
Nessas ocorrências, o primeiro enquadramento legal é do po-
licial que faz a abordagem, após do promotor de Justiça e, ao final,
do juiz de Direito que julgará a acusação de tráfico. Para evitar a im-
precisão, juristas defendem a definição da quantidade como critério
objetivo para distinguir o usuário do traficante. Os críticos a essa
subjetividade da lei, ainda, atrelam a ausência de uma quantidade
determinada aos altos índices de encarceramento no Brasil.
Para evitar erro judicial no tratamento do usuário como tra-
ficante, mostra-se, também, necessário o juiz criminal se despir da
interpretação moral acerca do uso de drogas, impedir conclusões ju-
diciais movidas por padrões éticos ou crenças sociais de que apenas
medidas coercitivas são suficientes e satisfatórias quando, indubita-
velmente, o uso de drogas possui como matrizes o consumismo e as
desigualdades sociais identificadas pela falta de acesso ao trabalho e
às políticas sociais.
- 115 -
O Sistema de Justiça apresenta dificuldade em distinguir o tra-
ficante e o usuário além do limite legal, seja porque a função típica
de julgar está envolvida por extrema discricionariedade interpreta-
tiva, seja porque a jurisdição criminal é compelida pela mídia e pela
própria sociedade civil a agir como órgão de segurança pública, que
deve enfrentar a criminalidade com privação de liberdade e restrição
de direitos. São fartos os casos que a mesma quantidade de drogas
serviu para condenar por tráfico, mas também para desclassificar a
conduta para uso.
Afigura-se imperioso que o Sistema de Justiça tenha critérios
mais precisos, talvez adotando como parâmetros objetivo à determi-
nada quantidade mínima de droga para uso pessoal, ou um critério
uniforme sobre quantidade expressiva e inexpressiva de droga para
caracterizar ou descaracterizar o tráfico, respectivamente, de modo
a impedir juízos discricionários em elevado grau, ainda que condi-
cionados a um exame de dependência química ou que comprove a
condição de usuário.
- 116 -
concreto. Assim, cabe ao juiz reconhecer, com fundamentos nos cri-
térios legais objetivos, se a droga apreendida se destina ao consumo
pessoal ou ao tráfico de drogas.
A controvérsia inicia-se com a descrição dos tipos penais do
tráfico e da posse de drogas:
- 117 -
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso
educativo.
§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal,
semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena
quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência
física ou psíquica.
- 118 -
consumo4. Se alguém for encontrado na posse de muitas substâncias
entorpecentes, em uma residência que é famosa por ser “boca de
fumo”, há mais certeza de que havia tráfico de drogas.
Com base em pesquisas e estudos científicos, tornou-se possível
confirmar que o “tráfico” está organizado e dividido em dois campos
de atuação: o atacado e o varejo. O atacado seria o espaço da produção,
da comercialização, de investimentos em grande escala e da lavagem de
dinheiro. Enquanto o varejo seria o espaço dos pequenos vendedores de
drogas: o “matuto”, o “dono da boca”, o “gerente”, o “vapor”, e o “avião”
(ZALUAR, 1994).
A variedade das drogas apreendidas também é critério igual-
mente apropriado para diferenciação, especialmente para identificar
o usuário de droga específica e o dependente. A balança de precisão
utilizada para pesar a droga, em porções, na quantidade exata para o
usuário, é um elemento probatório, tendo em vista que, teoricamen-
te, não teria qualquer sentido um usuário possuir uma balança de
precisão, embora, se a aprendida em residência (e não local de pre-
paração), ou não estava sendo utilizada, é necessário maior incursão
sobre os detalhes da apreensão.
A forma como a droga está embalada também tem relevância
probatória. Caso a droga esteja fracionada em pequenas quantida-
des, embaladas em plástico ou papel alumínio, apontam que a droga
foi preparada para comercialização, para que sejam vendidas peque-
nas frações para cada usuário. Situação similar ocorre quando são en-
contrados apetrechos para preparar a droga, tais como rolos de papel
filme ou sacolas plásticas.
A apreensão de dinheiro com droga, principalmente quando
fracionada em notas pequenas, induz traficância. A suspeita aumen-
ta quando o acusado não consegue comprovar qualquer ocupação
lícita que possa justificar a quantia. Em todos os casos, deve ser ava-
liada a situação concreta e uma explicação plausível. Armas ou si-
mulacros (armas de brinquedo) com drogas podem demonstrar que
o acusado utiliza esses instrumentos para viabilizar a traficância por
meio de ameaça e violência. A posse de vários celulares é outra situa-
ção de anormalidade.
4 Conforme a legislação portuguesa, a quantidade para consumo médio
diário equivale a 0,1 grama (heroína), 0,2 gramas (cocaína) e 2,5 gramas
(maconha). A quantidade deve ainda ser multiplicada por 10, para que a
quantidade seja correspondente a um período de 10 dias.
- 119 -
As conversas por via aplicativos de mensagens e redes sociais
também podem ser analisadas (com prévia autorização judicial) para
demonstrar atividades que caracterizam tráfico de drogas. Anotações
em agendas, cadernos ou livros, como de nomes de usuários de dro-
gas, números de telefone, endereços e valores recebidos ou a receber,
também são indicativos de traficância. As relações sociais, ocupação
ou profissão definida, ausência de trabalho lícito, condições finan-
ceiras e as atividades que envolvam a vida do indivíduo, podem es-
clarecer se há comercialização ou posse de drogas para consumo. O
passado (antecedentes) e o presente (conduta), isto é, se o indivíduo
nunca foi processado por crime ou contravenção penal, não possuir
inquéritos em andamento nem qualquer indicação de que seja tra-
ficante, possivelmente, será tido como um usuário de drogas se as
demais circunstâncias demonstrarem isso.
Ao excluir a possibilidade de que o acusado seja “usuário”, o
juiz tem o “indício” necessário para enquadrar o réu como “trafican-
te” e condená-lo pelo crime de tráfico, conforme adverte Campos
(2015, p. 192):
- 120 -
Por essa razão, a primariedade, os bons antecedentes e a au-
sência de vínculo com organização criminosa são fatores imprescin-
díveis nesses casos para aplicação da pena alternativa, ao invés de
prisão, para separação precisa do traficante que faz do comércio sua
profissão daquele que trafica para conseguir manter seu vício. Nesse
contexto, é necessário não perder de vista a indispensável diferen-
ciação entre a pessoa do dependente e do “pequeno traficante” (GO-
MES; CINTI, 2012).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
- 121 -
de evitar conclusões judiciais movidas por padrões éticos ou cren-
ças sociais de que apenas medidas coercitivas são suficientes e sa-
tisfatórias quando, indubitavelmente, o uso de drogas possui como
matrizes o consumismo e as desigualdades sociais identificadas pela
falta de acesso ao trabalho e às políticas sociais. Amparado por um
sentimento de defesa social, o juiz criminal traz ínsito, na sua atua-
ção penal, o combate à criminalidade e não consegue distinguir o
traficante e o usuário além do limite legal, seja porque a função típica
de julgar está envolvida por extrema discricionariedade interpreta-
tiva, seja porque a jurisdição criminal é compelida pela mídia e pela
própria sociedade civil a agir como órgão de segurança pública, que
deve enfrentar a criminalidade com privação de liberdade e restrição
de direitos.
Sendo assim, afigura-se imperioso adotar critérios mais pre-
cisos, talvez adotando como parâmetros a determinada quantidade
mínima de droga para uso pessoal ou um critério uniforme sobre
quantidade expressiva e inexpressiva de droga para caracterizar ou
descaracterizar o tráfico, respectivamente, de modo a impedir juízos
discricionários em elevado grau, ainda que condicionados a um exa-
me de dependência química ou que comprove a condição de usuário.
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- 124 -
RELAÇÕES SOCIAIS, PODER E ABUSO SEXUAL
INFANTIL: ruptura ou continuidade pós-31 anos
do Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil?
Leila Chaban1
Maria Lúcia Pinto Leal2
INTRODUÇÃO
- 125 -
Direciona-se este trabalho para a centralidade do abuso se-
xual infantil e as estratégias de enfrentamento por meio do Estado e
forças sociais, com destaque para a conquista da proteção integral da
infância no Brasil com a consolidação do Estatuto da Criança e do
Adolescente - ECA (1990), que dispõe sobre o Sistema de Garantia
de Direitos (SGD). Desenvolve-se a partir da contextualização histó-
rica da infância, do patriarcado e das relações sociais estabelecidas
nos espaços de poder e dominação dos corpos, sobretudo do gênero
feminino. Utilizou-se da pesquisa bibliográfica e pesquisa documen-
tal através de plataformas de dados, como o Disque Direitos Huma-
nos e o Ministério da Saúde, acerca dos registros e das notificações
de abuso sexual no Brasil. Esses dados apontam a fragilidade da
Rede de Proteção Social e a insuficiência do Estado e da sociedade
no enfrentamento do abuso sexual infantil. Algumas notas conclusi-
vas impõem desafios ao tempo presente, em especial refletir sobre os
direitos conquistados há trinta e um anos, visto que esta sociedade
não rompeu com a barbárie que viola os direitos humanos e sexuais
da criança, roubando a sua infância e o seu desenvolvimento sau-
dável. Nesta direção, há que se considerar a criança como sujeito de
direitos e não mais como objeto, como também materializar o SGD
para além de seus setores isolados.
O fenômeno da violência sexual ocorre em todo o mundo, e
isso explica a imprescindibilidade em efetivar normativas interna-
cionais e nacionais voltadas à proteção integral de crianças e ado-
lescentes. No Brasil, por exemplo, é preciso fortalecer o Sistema de
Garantia de Direitos (SGD), considerando o caminho percorrido até
o momento para a conquista da proteção social integral de crianças
e adolescentes.
O contexto histórico de conquista dos direitos no campo da
proteção integral que assegura, à criança e ao adolescente, prioridade
absoluta no Brasil nos leva à Constituição Federal de 1988 e ao Esta-
tuto da Criança e do Adolescente — ECA (1990). Contudo, é neces-
sário discutir de que direitos estamos falando, após 31 anos do ECA,
ao estabelecer estratégias do Sistema de Garantia de Direitos, pois
não houve a interrupção da violação de direitos da infância. Estas
questões são pertinentes à identidade social de um país, que tem, em
seu processo histórico, um contexto de mobilização social na luta pe-
los direitos conquistados pela sociedade civil, junto a forças sociais,
- 126 -
pesquisadores(as) e instituições que, a partir do processo democráti-
co e participativo, delinearam estratégias, normativas e mecanismos
de enfrentamento da violência sexual5 infanto-juvenil.
Assim, este trabalho se estrutura da seguinte forma: a pri-
meira parte trata da contextualização histórica da infância, do pa-
triarcado e das relações sociais estabelecidas nos espaços de poder
e dominação dos corpos, sobretudo do gênero feminino. A segunda
parte trata da linha do tempo ao abordar a infância no contexto da
proteção integral no Brasil. Por fim, são delineadas as considerações
que apontam os avanços e desafios, a partir das reflexões críticas so-
bre a construção social da infância atrelada ao contexto das relações
sociais patriarcais hierarquizantes e desiguais. Pois, mesmo após a
conquista de direitos no Brasil, o fenômeno da violência sexual in-
fantil evidencia uma violência estrutural que atravessa a transforma-
ção das sociedades, a qual deve ser enfrentada.
- 127 -
infância uma fase abreviada, sendo a criança objeto de controle dos
adultos; tão logo apresentasse independência física, era inserida no
ambiente adultocêntrico.
Sobre a infância:
- 128 -
que as crianças subiam a bordo na condição de pajens e, além da via-
gem insalubre, eram vítimas de violência sexual, sendo violadas por
homens, mesmo em companhia de seus pais. Elas eram postas para
limpar excrementos e quando as embarcações eram atacadas por pi-
ratas serviam de escudos. As crianças que se salvavam dos naufrá-
gios eram entregues à própria sorte.
Fica claro que as crianças, nesse período, devido à sua fragi-
lidade, eram as primeiras vítimas, atingidas pelo abandono, maus
tratos em várias formas de violência. Esse processo histórico é pouco
narrado, sendo necessário provocar uma reflexão e permitir a com-
preensão deste processo na luta pelos direitos humanos das crianças
e adolescentes.
No período colonial, a escolarização chegou com atraso, con-
forme aponta Del Priore (2010, p. 7):
- 129 -
[...] compromete a infância, circunstanciando constrangimentos
múltiplos, gerando alienações múltiplas, e desencadeando, dessa
maneira, o dilema e o impasse de ser amplamente alienado, ou seja,
ser criança e ser adulto ao mesmo tempo; ser criança empobrecida e
trabalhar precocemente; ser criança, com responsabilidade adulta e
dessa forma não dispor de tempo para o lúdico; ser criança adultiza-
da; implicará em consequências para todo desenvolvimento digno
dessa criança. Além disso, ao mesmo tempo, acumular responsabi-
lidades e pressões que, sem dúvida, deixarão marcas indeléveis na
memória, afetando assim o processo de construção da identidade.
(CUSTÓDIO, 2006, p. 121).
- 130 -
ser vista não como um arcabouço estático, mas como um conjunto
de relações complexas e em movimento, de acordo com as forças em
presença. (FALEIROS, 2001, p. 16).
- 131 -
muitas culturas, que o poder dominante na família seja o do homem,
o do provedor e também senhor e objeto de reverência” (FALEIROS,
2001, p. 67).
Ainda, neste sistema complexo, no contexto das relações de
poder patriarcal, para Cisne e Santos (2018, p. 43), o “patriarcado é
literalmente a autoridade do pai”, logo o que se vincula a este “mode-
lo patriarcal do homem, é o da força, virilidade, poder e dominação”.
As relações sociais de poder estabelecidas pelo sistema patriarcal, a
que se dá a centralidade aqui discutida, são transpassadas pelo abuso
sexual, seja no ambiente familiar ou fora dele, sempre estabelecido
por relações de poder.
Para Faleiros (2001, p. 68):
Existem vários tipos de violência intrafamiliar, desde a eliminação
das pessoas até maus-tratos, ameaças, violência psicológica, vio-
lência sexual, chantagens, negligência, humilhações, designações
de pessoas como doentes e incapazes. Nosso enfoque é violência
sexual, do abuso sexual, do incesto. O incesto, na perspectiva de
análise aqui adotada, está articulado à violência física, à transgres-
são social do tabu do incesto, à dominação do mais forte sobre o
mais fragilizado.
- 132 -
dessa violência, mas há uma relação de cumplicidade e silêncio entre
a mãe, o pai/padrasto, os irmãos e enteados e os vitimizados [...]”, que
expressam dois eixos fundamentais desta relação, o segredo familiar
e o poder. Há uma “cultura do silêncio” (LEAL, 2014, p. 78), que, na
verdade, é “uma estratégia utilizada para manter o clima de violência
intra e extrafamiliar, a qual é fortalecida pelas práticas coercitivas,
por pressões psicológicas, físicas, morais e religiosas”. Nesse senti-
do, é importante destacar que o ambiente familiar sempre foi um
ambiente privado, não havendo lugar para a cidadania, “da ausência
do público, da presença do poder privado, do chefe. A cidadania se
exercia fora do recinto doméstico, do domínio familiar”, ou seja, no
ambiente público (FALEIROS, 2001, p. 68).
A violência sexual, então, ocorre numa relação de poder, ul-
trapassando os limites dos direitos humanos, legais, de poder e de
regras sociais e familiares, e a criança e o adolescente passam por
um processo de desumanização — a criança torna-se um objeto para
satisfazer o desejo do outro. Este é um problema de saúde pública,
que ocasiona sérios prejuízos às vitimas, envolvendo aspectos psico-
lógicos e sociais. O problema é agravado pelo medo e pela vergonha
das vitimas, que, indefesas, sofrem abusos e violências por um longo
tempo e, quando finalmente criam coragem de denunciar o abusa-
dor, padecem diante da pressão da família e de pessoas próximas
que, muitas vezes, desacreditam em suas versões.
Para se ter uma noção da realidade recente do Brasil, o Siste-
ma Único de Saúde (SUS), em prol da prevenção, do enfrentamento
e da atenção integral às pessoas que vivenciam situação de violência,
lançou, em 2010, o Programa de Cuidado para a Atenção Integral
à Saúde de Crianças, Adolescentes e suas Famílias em Situação de
Violência, em atenção às crianças e adolescentes e suas famílias em
situação de violência, orientando sobre suas dimensões: acolhimen-
to, atendimento, notificação e seguimento na Rede de Cuidado e de
Proteção Social (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2018).
Conforme dados obtidos da Secretaria de Vigilância em Saú-
de, no Boletim Epidemiológico7 (2018) realizado de 2011 a 2017,
foi notificado o total de 58.037 (31,5%) registros de violência contra
crianças. Grande parte dessas notificações refere-se ao sexo femini-
no, o que representa 43.034 (74,2%), sendo 51,9% na faixa etária en-
7 Disponível em: <http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2018/junho /25/2018-
024.pdf>. Acesso em: 14 jul. 2021.
- 133 -
tre 1 a 5 anos de idade e 42,9% entre 6 e 9 anos de idade. Em relação
à raça/cor, 46% são pretas. O local da ocorrência do fato foi à resi-
dência (71,2%) e a escola (3,7%). Referente à natureza da ocorrência:
61% foram notificados como estupro e em 75,6% das notificações, a
violência sexual foi praticada por um autor.
Em se tratando das notificações referentes a crianças do sexo
masculino, foram registrados 14.996 (25,8%). Mostraram que os
locais das ocorrências dos fatos foram: residência (63,4%) e escola
(7,1%). Em relação à natureza da ocorrência, 64,6% foram notifi-
cados como estupro, e dos 72,2% dos casos notificados, a violência
sexual foi praticada por um autor. No que se refere ao autor da vio-
lência, 83,7% do sexo masculino e 35,4% com vínculo de amizade/
conhecimento com a vítima. Ainda, 39,8% possuem vínculo familiar
com a vítima.
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos8
(MMFDH, 2019) apresentou dados referentes a 2018 através do Dis-
que 100 (Disque Direitos Humanos): nas denúncias de violência se-
xual contra crianças e adolescentes, 73,44% eram vítimas do sexo
feminino e 18,60%, vítimas do sexo masculino.
Os dados de ambas as fontes remetem à compreensão de Cis-
ne e Santos (2018, p. 45) quanto às “relações patriarcais, que dizem
respeito às relações hierarquizantes de opressão e exploração entre
os sexos, as quais estão ainda fortemente presentes na sociedade, dai
a importância de considerarmos o patriarcado quando refletimos
criticamente sobre as relações de gênero”.
As questões que implicam a construção social da infância não
se vinculam apenas à garantia de direitos na proteção integral, mas
precisam considerar e tratar a criança como sujeito social em desen-
volvimento. Ao associar o abuso sexual ao sistema patriarcal, de do-
minação e poder do gênero masculino, é importante pontuar, con-
forme Saffioti (2004, p. 119), que o patriarcado, apesar de sua longa
existência, com aproximadamente 5.203 anos, em algum momento
poderá se extinguir.
- 134 -
2. A INFÂNCIA NO CONTEXTO DE SUJEITO DE DIREI-
TO À PROTEÇÃO INTEGRAL NO BRASIL
- 135 -
garantia do justo pelas leis, sem coação”.
Para a defesa dos direitos da criança e adolescente, houve um
desenvolvimento simultâneo de atores, como descreve Nogueira
Neto (2011, p. 2), para
- 136 -
Dessa forma, é essencial compreender que o SGD surgiu, em
2006, para assegurar a implementação do ECA (1990), marco legal
dos direitos fundamentais da criança e adolescente. Para garantir a
sua consolidação, o SGD se instituiu por meio da Resolução 113 do
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CO-
NANDA).
A partir do reconhecimento do SGD no Brasil, Nogueira Neto
(2011) afirma que as ações de enfrentamento da violência sexual se
intensificaram após a implementação do ECA (1990), dando maior
visibilidade para a o fenômeno da violência sexual no âmbito do-
méstico. Esta lei, “considerada uma das mais avançadas do Brasil,
trouxe uma nova referência da proteção integral, introduzindo na
sociedade brasileira obrigações ao Estado e à sociedade civil, garan-
tindo, assim, um novo paradigma de direitos e deveres às crianças e
adolescentes” (NOGUEIRA NETO, 2011, p. 13).
Nogueira Neto (2005) afirma que a proteção dos direitos da
infância e adolescência responsabiliza Estado, sociedade e família,
pois “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer for-
ma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade
ou opressão, punindo na forma da lei qualquer atentado, por ação
ou omissão, aos seus direitos fundamentais” (ECA, 1990, Art. 5º). A
violência deverá ser notificada, sendo uma obrigatoriedade, havendo
apuração de responsabilidade para aqueles que se omitirem, estando
sujeitos às penalidade legais.
Com o ECA (1990), crianças e adolescentes tornam-se su-
jeitos de direitos e deveres civis, humanos e sociais e passam a ser
considerados cidadãos, com direito à proteção e à segurança em seu
universo, respeitados os parâmetros estabelecidos pela Doutrina da
Proteção Integral.
O que se denomina SGD, para Nogueira Neto (2005, p. 14),
tem sua gênese na Convenção dos Direitos da Criança e do Adoles-
cente e que remete aos Artigos 86 e 90 do ECA (1990), não havendo
uma clareza direcionada ao sistema de garantia de direitos, e que
“se operacionaliza mais como um sistema estratégico do que pro-
priamente como um sistema de atendimento direto. Essa natureza
estratégica é própria, aliás, do sistema de promoção e proteção dos
direitos humanos em geral, do que ele é parte”. Caracteriza-se, pois,
numa atuação estratégico-articuladora entre as políticas para a efeti-
vidade no atendimento.
- 137 -
A violência sexual é uma violação dos direitos humanos e da
pessoa em desenvolvimento; dos direitos à integridade física e psi-
cológica, ao respeito e à dignidade e ao desenvolvimento físico, psi-
cológico, moral e sexual sadios (FALEIROS, 2004), como também
uma séria transgressão ética e social, um crime para o qual há poucas
estratégias legais eficientes para a responsabilização dos adultos que
o cometem.
Moreira e Sousa (2013) afirmam que a violência é um proble-
ma de alta complexidade, uma vez que os agressores não são pessoas
desconhecidas, são pais, mães, membros da família e/ou responsá-
veis, que mantêm com as crianças e adolescentes relações próximas e
vínculos afetivos. Posto isto,
- 138 -
teção social visa atender à população, sobretudo a infantil, de forma
integral. A articulação entre os setores pretende garantir o acesso a
informações e direitos sociais, garantindo o acesso aos serviços de
proteção social. Assim, a intersetorialidade funciona como uma po-
tencialidade na ampliação do acesso aos direitos sociais a caminho
da efetivação da rede de proteção social integral da criança abusada
sexualmente, principalmente em tempos de desmonte do Estado de
Direito no Brasil.
Contudo, a discussão, permeada pela construção social da in-
fância e a conquista sócio-histórica dos seus direitos fundamentais,
implica em avanços significativos, mas que ainda apresenta um hiato
nas estratégias eficazes para fortalecer o SGD. Seja na responsabili-
zação de adultos que violam os direitos humanos e sexuais, como
também em investir na formação de profissionais atuantes na rede de
proteção social, no devido orçamento público que garanta políticas
públicas efetivas para, assim, materializar estratégias para a realiza-
ção plena dos direitos da infância que reduzam as desigualdades e
injustiças sociais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
- 139 -
No percurso histórico do modo como eram (e ainda são) en-
xergadas e tratadas as crianças, em situações de abandono, explora-
ção, humilhação e maus-tratos, ao considerar avanços fundamentais,
ousamos refletir sobre qual modelo de sociedade queremos alcançar.
Enfrentar a violência sexual infantil significa a busca do rompimento
com este sistema estrutural de violação de direitos da criança, atra-
vés, em especial, do reconhecimento desta, como sujeito e não mais
como objeto. É preciso ultrapassar a objetificação dos corpos das
crianças e considerá-las como sujeitos em desenvolvimento, garan-
tindo sua integridade e cidadania.
O desenvolvimento saudável da criança é responsabilidade do
Estado, da sociedade e da família e efetivar mecanismos viáveis para
isso é, portanto, uma urgência.
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- 142 -
POLÍTICAS SOCIAIS ENQUANTO MEDIAÇÃO
DE SEGUNDA ORDEM DO CAPITAL E FORMAS
DE ESTRANHAMENTO
Lélica Elis Pereira de Lacerda1
INTRODUÇÃO
- 143 -
cado. Ocorre, porém, que sob a hegemonia do capital elas se limitam
a seus interesses enquanto medida estatal de gestão das refrações da
“questão social”, enquanto mediação de segunda ordem do capital
que repõe as demais mediações desta natureza: os meios estranhados
e os objetivos fetichistas de produção, o trabalho “estruturalmente
separado da possibilidade de controle”, o dinheiro, a família nuclear,
o mercado mundial e as várias formas de Estado do capital (MÉS-
ZÁROS, 2011).
As políticas sociais fazem parte da constituição de várias for-
mas de Estado do capital, cuja função está atrelada à coesão social
em torno da sociedade burguesa, com o papel peculiar de criar con-
dições materiais e espirituais para a reprodução da força de trabalho
mediante intensa atuação sobre as variáveis empíricas do cotidiano
da família trabalhadora (NETTO, 2007).
Numa sociedade em que os atos econômicos não se relacio-
nam às necessidades humanas, mas de lucros, existe a distinção entre
ações do Estado que regulam o plano econômico (política econômi-
ca) e as medidas que regulam a esfera social através das políticas so-
ciais, de forma distinta. As políticas sociais, então, irão gerir a satisfa-
ção de necessidades dos trabalhadores e suas famílias para além das
relações mercantis de compra e venda (LENHARDT; OFFE, 1984),
embora o faça em nome destas relações, respondendo à necessidade
de formatar os trabalhadores em assalariados, ao mesmo tempo em
que naturaliza a reprodução ampliada do capital.
Vivemos em uma complexa sociabilidade, fruto de milênios
de história humana, sendo os últimos vividos em sociedades funda-
das a partir da propriedade privada. A sociabilidade capitalista, em
específico, se ergue a partir a propriedade privada dos meios de pro-
dução sob a posse da burguesia, enquanto a esmagadora maioria de
trabalhadores, expropriada, vê-se obrigada a vender pelo salário sua
capacidade física e mental para o trabalho, não sendo dona de nada,
nem do seu tempo que é comprado pelo capital (MARX, 2011).
O salário se refere ao tempo de trabalho que o capital remu-
nera o trabalhador, mas, com a evolução das forças produtivas e o
exponencial aumento da produtividade, a maior parte do tempo de
trabalho não lhe é paga, sendo apropriada privadamente pelo patrão
na forma de lucros. Isto é a extração de mais-valia. O salário se refere
ao preço de mercado da força de trabalho, não apenas do trabalhador
- 144 -
individual, como o de sua família (MARX, 2011), que na sociedade
capitalista funciona como a célula econômica de consumo (privado)
e reprodução biológica da humanidade (MÉSZÁROS, 2009).
Existem poucas famílias que vivenciam o cotidiano dos deten-
tores do capital, donos do poder econômico e político, cidadãos que
efetivamente vivenciam o direito privado ou o direito de produzir e
ordenar a sociedade e a vida dos indivíduos que nela participam de
maneira desigual (ABREU, 2008) e deixarão no mundo o herdeiro
de seu capital. Existe um sem-número de famílias que herdaram sua
apartação dos meios de produção e, portanto, do poder político e
que se veem impelidas a viver do assalariamento, com salários cada
vez mais comprimidos pela necessidade do capital de se autoexpan-
dir desenfreadamente.
O poder de decisão numa sociedade onde um homem manda
no outro só poderia estar nas mãos do possuidor de propriedade pri-
vada, seja o patriarca no interior da família mandando na vida priva-
da, seja o chefe do Estado, na vida pública (MÉSAZÁROS, 2011). O
patriarca passa a ser o dono da propriedade, da esposa e dos filhos, e
a mulher, a partir de sua especificidade biológica, será a responsável
pelos filhos e o ambiente privado reproduzindo na família a relação
hierarquizada do espaço público, conforme o capital requer.
Por suas próprias contradições, para manter a propriedade
privada dos meios de produção, este sistema não pode se manter sem
reproduzir, com sucesso e de maneira constante, as relações de poder
historicamente específicas que mantêm a função de controle radi-
calmente separada e de maneira autoritária imposta sobre a força de
trabalho (MÉSZÁROS, 2011). Assim, a família, enquanto microcos-
mo do capital, tem a função de reproduzir a estrutura hierárquica
deste sistema, como consequência inevitável da determinação incor-
rigível deste modo de produção de relações de poder antagônicas,
em que o poder de controle está inteiramente separado dos produto-
res e cruelmente imposto sobre eles.
Convidado a participar da esfera econômica, de forma a ven-
der seu tempo de trabalho, o trabalhador é expulso do controle e
decisão acerca da organização da produção e distribuição racional,
tampouco participa livremente do consumo e isto porque este está
submetido à relação de exploração, na qual a produção é coletiva,
mas a apropriação é privada (MÉSZÁROS, 2009).
- 145 -
Na era dos monopólios, a exploração se intensifica tanto que
as famílias trabalhadoras passam a sofrer sistemática intervenção
estatal para poder cumprir privadamente sua função de regulação
necessária, mais ou menos espontânea, da atividade biológica repro-
dutiva (MÉSZÁROS, 2009) a partir da estrutura da sociedade do ca-
pital: a propriedade privada dos meios de produção.
O cuidado dos seres humanos uns com os outros é cada vez
mais institucionalizado porque, segundo Mészáros (2011), a emer-
gência e consolidação das instituições legais e políticas da sociedade
são paralelas à transformação da apropriação comunitária em pro-
priedade exclusivista, sendo, portanto, expressão das relações estra-
nhadas que, em nome da produção coletiva e consumo privado, es-
facela relações de solidariedade, transferindo-as artificialmente para
o Estado alheio aos trabalhadores, e esfacela as relações familiares e
comunitárias em nome dos lucros. Quanto mais extensa e exclusivis-
ta a necessidade, mais pronunciado e institucionalmente articulado
deve ser o papel do Estado centralizado e burocraticamente invasor,
buscando regular as contradições advindas do estranhamento do
trabalho repondo-as.
A solidariedade provida pelo Estado é hostil aos trabalhado-
res, tanto usuários quanto executores. Isto porque, embora as polí-
ticas sociais tenham nascido no âmbito da luta de classes, enquanto
conquista dos trabalhadores por maior acesso à riqueza social (do
corpo e do espírito), quando os trabalhadores abrem mão do proces-
so revolucionário e se contentam com o limitado e imediato bem-
-estar trazido pelas reformas, permanecem dentro dos limites do
capital.
O núcleo socializante das políticas sociais se limitará à dinâ-
mica do capital, de modo a ser mais uma entre as ações estatais para
viabilizar a produção e reprodução do capital e, para tanto, terá sua
função social amoldada à lógica do capital enquanto mecanismo de
coesão social em torno do projeto burguês. Por isso, sua dinâmica
institucional funciona como “gaiola de ferro” (NETTO, 2007) que
aprisiona as capacidades dos seus executores aos limites do capital.
- 146 -
realizará em cada período histórico à direcção que lhe foi impulsio-
nada pela última revolução [...] exclusivamente no quadro da forma
social originada pela última revolução [...]. (LUXEMBURGO, 2014,
p. 26).
- 147 -
Assim, para Mészáros (2011), o Estado não está na superes-
trutura da sociedade porque faz parte da própria base material do
capital (sua dimensão política), contribuindo não apenas para a for-
mação e consolidação das grandes estruturas de reprodução social,
como também seu funcionamento ininterrupto. O Estado expõe a
mesma divisão do trabalho hierárquico-estrutural das unidades re-
produtivas econômicas, mantendo sob controle os antagonismos
surgidos da disruptiva dualidade entre processo econômico e políti-
co de decisão, tornando sustentável a prática econômica de atribuir
ao “trabalho livre” o cumprimento de funções rigidamente econômi-
cas, numa condição incontestavelmente subserviente, reforçando a
dualidade entre produção e controle e toda a divisão hierárquica do
trabalho (MÉSZÁROS, 2011).
Em todas estas questões o papel totalizador do Estado moder-
no é essencial, ajustando suas funções reguladoras em sintonia com
o processo de reprodução socioeconômica, reforçando a dominação
do capital contra as forças que poderiam desafiar as imensas desi-
gualdades. Assim, em meio ao esbanjamento das elites e das estrutu-
ras perdulárias do Estado, irracionalmente bilhões de seres humanos
deixam de ter suas mínimas necessidades supridas em virtude da ne-
cessidade desenfreada de lucro no atual estágio de desenvolvimento
das forças produtivas que, por tamanha contradição, passam a ser
destrutivas, tornando difícil a correspondência dialética necessária
entre produção, consumo e necessidade (MÉSZÁROS, 2009).
Para manter esta dominação, o capital é impossibilitado de,
no controle sociometabólico, lidar com as causas, não importando
a gravidade de suas implicações em longo prazo, sendo necessário
deslocar aquelas que autoimpedem o capital para que não sejam de
forma alguma questionadas, sendo falsamente tratadas enquanto
disfunção temporária.
É uma resposta como todas as demais do Estado burguês: não
pode tocar na causa originária da falta de acesso à riqueza social
(propriedade privada dos meios de produção e trabalho alienado); e,
por isso, lida com os desdobramentos da exploração do trabalho de
forma fragmentada e com mecanismos burocráticos que canalizam
a luta política, arrefecendo a luta dos “debaixo”, afastando a ideia de
tornar-se classe dominante, introduzindo efeitos danosos, conforme
Carvalho (2011):
- 148 -
- o enfraquecimento da classe trabalhadora enquanto sujeito
político real;
- o esvaziamento progressivo do exercício da cidadania;
- a substituição quase total da solidariedade espontânea por
um processo de solidariedade mecânica emanada do Estado;
- a perda da visibilidade do homem enquanto ser singular e
social e, com isso, a perda de referências para a transformação da
sociedade;
- a voz das bases trabalhadoras, a voz do coletivo, perdeu mui-
to de sua importância à medida que um processo ativo de negocia-
ções sociais passou a operar via Estado e de forma corporativista.
- 149 -
Tudo isso, segundo Dias (1997), foi configurando o que se
convencionou a chamar de cidadania, base da nova dominação so-
cial. Abstrata e genérica, ela busca, em princípio, incorporar tudo
e todos à nova realidade estatal, para o que era preciso que a esfera
estatal recobrisse toda a sociedade e os indivíduos que componham
este Estado enquanto cidadão, embora a maioria seja de súditos pra-
ticamente sem direitos (DIAS, 1997). Quanto mais avança a crise
do capital, mais se torna necessário haver súditos sem direitos, para
concentrar mais-valia e o fundo público estatal no capital.
Os estranhamentos humanos no âmbito das Políticas sociais
enquanto mediações de segunda ordem do capital
As políticas sociais, enquanto mediação de segunda ordem
do capital, se limitam às relações capitalistas que emergem de bases
estranhadas que configuram o espaço onde se desenrola o exercício
profissional de seus executores terminais enquanto trabalhadores as-
salariados e, como tal, vivenciam os mesmos tipos de estranhamento
que os operários do setor produtivo, longamente estudado pelo mar-
xismo, porém, com expressões peculiares.
O trabalhador do setor produtivo é o apêndice da máquina
industrial que não detém o controle do seu processo de trabalho,
já que os meios de produção não lhe pertencem, o que o leva a não
deter o produto do seu trabalho que é apropriado privadamente pelo
patrão. Nestas condições, o trabalho, no lugar de um meio de satisfa-
ção, torna-se uma força que aprisiona, posto que quanto mais o capi-
tal cresce mais tem o poder de subsumir quem trabalha na relação de
exploração que leva os seres humanos a não se reconhecerem entre
si, tampouco como gênero humano (MARX, 2004).
No âmbito do Estado, os executores terminais de políticas so-
ciais são o apêndice da máquina burocrático-estatal que organiza o
trabalho de forma hostil ao trabalhador, porque a serviço do capi-
tal. O poder decisório está nas mãos das personificações do capital
(prefeitos, deputados, secretários, ministros etc.), por meio dos quais
as vontades férreas do capital são impostas submetendo as políticas
sociais às desumanizadoras exigências da ordem sociometabólica do
capital (MÉSZÁROS, 2011). Assim, os proletarizados da burocracia
estatal vivenciam estranhamentos similares aos do setor produtivo.
No plano ontológico-materialista, a objetividade não é produ-
to do pensamento ponente, mas algo ontologicamente primário: o
- 150 -
ser humano é um ser corpóreo dotado de forças naturais e somente
pode manifestar sua vida em objetos sensíveis reais. Segundo Lukács
(2013), a personalidade dos indivíduos se manifesta nas respostas
práticas que dão às questões que lhe são postas em sua vida cotidia-
na, requerendo condições objetivas para que efetive a alternativa que
mais o realize. Quando quem trabalha não encontra condições mate-
riais de realizar suas capacidades, não pode desenvolver plenamente
sua personalidade, redundando em estranhamentos.
O estranhamento humano não é, portanto, o fato da essên-
cia humana se desumanizar, mas dela objetivar-se em oposição a si
mesma, em oposição ao pensamento abstrato, de materializar seu
trabalho e todas as suas atividades vitais em um ambiente social hos-
til, que se volta contra o trabalhador. Por isso, embora seja um fenô-
meno que aconteça na esfera da subjetividade humana, o estranha-
mento é um fenômeno determinado pela dinâmica histórico-social,
assumindo formas históricas diferentes, cada vez mais marcantes,
não sendo uma condição humana universal (LUKÁCS, 2013).
Desenvolvemos uma sociedade altamente complexa (largo
afastamento das barreiras naturais) e cujo ambiente social é tão hos-
til às necessidades humanas dos trabalhadores a ponto de se orga-
nizar um complexo aparato institucional de solidariedade mecânica
para gerir as cada vez mais agudas e complexas refrações da “questão
social”. As políticas sociais materializam os direitos sociais da classe
trabalhadora de forma estranha e acima dos trabalhadores, buscan-
do compatibilizar suas necessidades humanas com as do mercado.
Assim, a sociedade cria a necessidade de formar profissionais com
habilidades para lidar com a educação das futuras gerações, cuidar
da saúde individual e coletiva, planejar e administrar o processo de
urbanização, enfrentar a miséria etc., mas as coloca na gaiola de ferro
do aparato burocrático burguês, cuja legalidade aprisiona tais habi-
lidades nos limites da gestão da barbárie social promovida pela di-
nâmica do capital, sob a reificação do ter, naturalização do racismo
e do patriarcado.
Por isso, as habilidades humanas desenvolvidas não servem
para a realização plena da personalidade dos trabalhadores, ao con-
trário, acaba até em extremos de sua deturpação, como mostra o es-
cândalo da máfia das próteses2, no qual os médicos usam da sua
2 Reportagem exibida pela rede Globo. Disponível em: <http://globotv.globo.com/rede-glo-
bo/fantastico/v/mafia-superfatura-proteses-e-indica-cirurgias-desnecessarias/3871226>.
- 151 -
exclusiva habilidade de reabilitar a saúde humana mediante proce-
dimentos cirúrgicos complexos para ganhar dinheiro, ao invés de
salvar vidas. Neste caso, as necessidades do ter se sobrepõem às ne-
cessidades humanas até mesmo em serviço vital da saúde, no qual
profissionais usam suas habilidades para fins mesquinhos e diame-
tralmente opostos às finalidades sociais para as quais foram desen-
volvidas.
Como todo assalariado, o mercado impele que o maior inte-
resse dos trabalhadores da burocracia estatal seja o pagamento e não
o tipo de trabalho em si (MARX, 2004), porque sem o salário não
é possível viver. É preciso ir para além da lógica mercantil indivi-
dualista para considerar a importância de outros elementos, como
o compromisso com o público atendido ou com o resultado de seu
trabalho e a apreensão da importância social de seu trabalho. Caso a
consciência do trabalhador não eleve de si e de sua individualidade,
permanecerá no emprego motivado pelos direitos trabalhistas que
ele usufrui e que não se veem na massa de trabalhadores: salários em
dia, estabilidade, bonificações e gratificações, aposentadoria etc. Tais
direitos, em vez de fomentar a solidariedade na luta com a classe tra-
balhadora para igualar-se por cima, podem, ao contrário, aburguesar
a consciência da burocracia estatal que se concebe como “aristocra-
cia proletária” que facilmente se coloca acima e em oposição aos tra-
balhadores em geral.
A contradição dialética entre desenvolvimento da capacidade
e desenvolvimento da personalidade, ou seja, o estranhamentonão se
trata de uma contraposição abstrata entre subjetividade e objetivida-
de, ou individualidade e sociabilidade; ao contrário, não há nenhum
tipo de subjetividade que não seja social nas raízes mais profundas
do seu ser. Por isso, a explicação da deturpação do uso das habilida-
des pelo mau-caratismo dos profissionais cai num moralismo que
não elucida nada. É preciso se perguntar que tipo de sociabilidade
gera determinados tipos de personalidade.
A deturpação de tais habilidades é fruto das relações de mer-
cado que buscam eternizar e naturalizar sua dinâmica, fazendo as
pessoas crerem que a plena realização de sua personalidade consiste
em comprar tudo o que precisa, manipulando
[...] de tal maneira o desejo dos homens de serem tidos como per-
sonalidade para que eles se satisfaçam justamente com a compra de
- 152 -
objeto de consumo ou serviço que constitui objeto de publicidade.
Este consumo o faz ser considerado como personalidade autêntica
pelo seu entorno. (LUKÁCS, 2013, p. 798).
- 153 -
materiais de existência, sua raça e sexo. Isto causa um estranhamento
humano tanto do alto escalão da burocracia estatal em relação aos
demais; quanto aos proletarizados da burocracia e os trabalhadores
em geral.
A diferenciação das condições objetivas de vida faz com que,
em geral, trabalhadores dos serviços sociais e população usuária não
se identifiquem humanamente, sobretudo quando o profissional é
branco e o usuário negro, há o reforço da supremacia branca ou, ain-
da, quando as questões do âmbito doméstico são naturalizadas como
responsabilidade das mulheres. Estes veem no profissional que os
atende o braço coercitivo do Estado que lhes impõe serviços e be-
nefícios para a satisfação de suas necessidades de forma alheia à sua
vontade e hostil às suas genuínas necessidades; os profissionais, por
sua vez, enxergam no usuário incapaz de sanar suas necessidades via
mercado (e visto alheio às relações sociais) um cidadão fracassado, já
que sua inserção na hierarquia do trabalho não lhe dá condições de
se suprir nas relações mercantis. A partir disso, fica fácil aos profis-
sionais centrarem-se apenas na sua remuneração e se alhearem das
demais questões em torno de seu trabalho. Já quanto às personifica-
ções do capital (MÉSZÁROS, 2011), não possuem qualquer identi-
ficação humana com a classe trabalhadora e, pela sua condição de
vida, têm os trabalhadores apenas como meio para sanar suas neces-
sidades particulares.
Portadoras do poder decisório sobre o aparato estatal, as per-
sonificações do capital impõem a dinâmica de funcionamento da
máquina burocrático-estatal conforme necessidades do capital, de
forma hostil aos trabalhadores, cabendo aos executores terminais
de serviços sociais o papel de apêndice da máquina que coloca em
prática sua capacidade física e mental de trabalho sob condições da-
das. Não está nas mãos dos executores terminais de políticas sociais
o controle das causalidades mais fundamentais que determinam as
condições de seu trabalho: não determinam os recursos investidos,
os equipamentos disponíveis, a equipe técnica contratada, a estrutu-
ra física, o público usuário etc.
Diante da ausência do controle do processo de trabalho nas
políticas sociais, os profissionais que atuam nos serviços sociais se
veem obrigados a limitar e adaptar suas capacidades físicas e espiri-
tuais de trabalho às condições objetivas dadas, sob pena de ruína: se
- 154 -
o enfermeiro não tem luvas cirúrgicas, atende com luvas reaprovei-
tadas e se não conta com equipe trabalha por três; se o professor não
tem equipamentos didáticos e turmas em quantidade adequada, dá
aula só com giz e saliva para salas superlotadas; se o assistente social
não conta com serviços e benefícios em quantidade e qualidade su-
ficientes, então cria regras de seleção etc., redundando num trabalho
inferior ao pré-idealizado, hostil e aquém das suas capacidades. Isto
no setor produtivo redundaria prejuízo privado do capitalista que
perderia mais-valia, mas no serviço público prejudicaria a parcela da
classe trabalhadora por ele atendida, que serve para reforçar e natu-
ralizar as leis do mercado.
Da parte do usuário – que no geral se localiza em posição in-
ferior na divisão hierárquica do trabalho, conferindo-lhe vida ainda
mais espoliada – sua personalidade se constitui a partir de experiên-
cias que colocam condições para existência sob pena de ruína: o psi-
copata se torna alheio ao sofrimento de terceiros, para não padecer
da dor de sua própria vida, sob pena de ruína; o adolescente no cri-
me precisa se tornar violento e alheio à vida de terceiros ou desistir
do crime, sob pena de ruína etc. “Aquilo que o homem considera
como sua personalidade, via de regra, é apenas a sua singularidade
que assumiu feição social” (LUKÁCS, 2013, p. 797). A resposta que o
Estado tem a dar para as suas questões são alheias e estranhas ao tra-
balhador (tanto o executor quanto o usuário dos serviços), repondo
as relações mercantis que o oprime e desrealiza.
Apesar da constatação fática do estranhamento dos meios
de trabalho no interior da máquina pública, cabe uma ressalva. En-
quanto no setor produtivo, a organização das máquinas subsume de
forma tão efetiva e real o trabalhador a ponto de controlá-lo em seu
ritmo de trabalho, garantindo o seu resultado pela padronização do
produto, no tipo de trabalho requerido pelos serviços sociais existem
infindáveis alternativas a se escolher na construção deste comple-
xo trabalho que incide em causalidades sociais, ainda que cerceados
pela burocracia estatal. O processo de trabalho não pode ser rigida-
mente organizado nem controlado, o que lhes confere certa autono-
mia profissional.
A competência profissional na execução terminal de políticas
sociais requer o autorreconhecimento na atividade que se exerce e
o compromisso humano com o trabalho para além do pagamento,
- 155 -
para que seja viável, dentro do campo de autonomia profissional re-
lativa, usar suas capacidades de trabalho para encontrar e/ou cons-
truir alternativas que busquem satisfazer as necessidades sociais das
comunidades trabalhadoras, sobretudo quando se foca na esfera po-
lítica do exercício profissional.
Mas o bom proveito da margem de autonomia profissional re-
lativa pode ser aniquilado por outro conjunto de estranhamentos.
Enquanto a generidade em si se complexifica, a relação homem-gê-
nero humano permanece muda, apenas enquanto potencialidade. A
sociedade dos monopólios mantém complexo aparato de manipula-
ção que cria a falsa compreensão da vida particular como única rele-
vante e viável, o que faz com que os homens reflitam sobre suas vidas
apenas na esfera individual e imediata, ignorando a esfera política e
coletiva de seu exercício profissional, o que lhes inviabiliza apreen-
der na historicidade as causalidades que perpassam a execução de
políticas sociais e as torna ideologicamente deturpadas. Sem refletir
na relação indivíduo-gênero humano, o trabalhador da burocracia
estatal torna-se um apêndice que preenche formulários, realiza en-
trevistas etc., sem refletir a finalidade social do serviço e seu impacto
na vida da família em questão e na sociedade.
Ao atuar sobre as refrações da questão social analisando a con-
dição de vida dos indivíduos desconexas da dinâmica macrossocial,
psicologiza-se a questão social (NETTO, 2007), responsabilizando
o trabalhador espoliado por sua posição na divisão hierárquica do
trabalho, ao mesmo tempo em que impõe acriticamente a relação de
mercado como a única humanamente viável. As violências do mer-
cado são naturalizadas, o Estado é tido por neutro e se reforça todas
as demais mediações de segunda ordem do capital que inviabilizam
que se coloquem as forças produtivas a serviço das necessidades hu-
manas.
O antagonismo dialético entre a generidade em si e para si,
na dimensão da sociedade global, é análogo à contradição entre o
desenvolvimento das forças produtivas, as capacidades humanas e
o desenvolvimento da personalidade humana no nível da vida in-
dividual. Assim como o desenvolvimento das capacidades humanas
não encontram condições objetivas de se realizar numa sociedade,
na qual as forças produtivas deram as costas para as necessidades hu-
manas e se desdobraram em estranhamentos, o desenvolvimento da
- 156 -
generidade-em-si alheio a ações conectadas com generidade-para-si
também é resultado das forças produtivas subsumidas ao capital, in-
tensificando os efeitos do estranhamento humano enquanto gênero.
Os estranhamentos e as lutas contra eles se desenrolam pri-
mordialmente no cotidiano. Lukács (2013) recobra Engels que afir-
ma que os atos singulares de um indivíduo nunca devem ser con-
siderados iguais a zero. Cada homem singular precisa se decidir a
favor ou contra seus estranhamentos em contato direto com outros
indivíduos. No plano ideológico, reveste-se de suma importância a
aprovação ou reprovação das reificações produzidas no decurso do
desenvolvimento social. O pré-requisito para o bom proveito da
autonomia profissional relativa está na opção por enfrentar os es-
tranhamentos com ações práticas, no plano individual e, sobretudo,
coletivo, muito embora o mais sórdido é que nos manipulam a tal
ponto que aprendemos a amar o que nos oprime.
Para romper com o próprio estranhamento é preciso, a fim
de realizar subjetivamente a ruptura, uma ação que possua cunho
social orientada para algum modo fenomênico da generidade para
si, alçando acima da própria particularidade impregnada de estra-
nhamentos. “[...] sem entrega a uma causa de cunho social, por mais
insignificante que seja, o homem permanece detido no nível de sua
particularidade e fica exposto sem defesa a toda tendência de estra-
nhamento [...]” (LUKÁCS, 2013, p. 782) e a entrega a uma causa não
opera como um princípio universal. Depende do que ela é capaz de
fazer no indivíduo: depende do quão intensa, pura e abnegada seja
sua entrega e, simultaneamente, o que a causa representa realmente
no desenvolvimento social.
Se considerarmos a entrega “à causa da humanidade”, temos
no socialismo uma posição peculiar neste complexo de problemas
(LUKÁCS, 2013). Isto porque é o único projeto político que viabiliza
o controle efetivo do poder político do Estado pelos trabalhadores
para promover ações em diálogo com o gênero para si, direcionadas
à constituição dos trabalhadores livremente associados, restituídos
do poder político historicamente expropriado.
As causas envolvidas no trabalho do executor terminal de po-
líticas sociais, pela natureza de sua função social coletiva de mate-
rialização dos direitos do trabalhador, são causas de cunho social
e trazem em si potencialidade de superação do estranhamento: li-
- 157 -
dam com necessidades imediatas da classe trabalhadora não satisfei-
ta pelo mercado e, por isso mesmo, colocam os sujeitos envolvidos
na luta em contato pela práxis política junto ao Estado, o que torna
muito mais viável a percepção de sua real natureza que precisa ser
apreendida e contestada na prática, para que os trabalhadores se tor-
nem a classe politicamente dominante.
A plena democracia é exigência para a superação da explo-
ração e dos estranhamentos, já que a base ontológica de toda luta
ideológica que almeja se desvencilhar do jugo do estranhamento é a
unidade prática entre o entendimento e a resolução das questões na
cotidianidade. É preciso constituir um Estado proletário que possa
ir à real causa dos problemas: que dê emprego socializando meios de
produção, que direcione as forças produtivas para oferecer a todos
os trabalhadores o melhor até então constituído em saúde, educação,
previdência social e que reorganize as forças produtivas de modo a
respeitar a base natural do ser social.
Isto só se torna viável se os trabalhadores se tornarem clas-
se dominante e desconstruírem as mediações de segunda ordem do
capital, erigidas a partir do trabalho assalariado e da propriedade
privada dos meios de produção para mediações de segunda ordem
socialista embasadas no trabalho associativo, livres e conscientes a
partir da propriedade comunal. Tais mediações requerem que se ele-
vem os sentidos humanos acima do lucro e a lógica do ter, colocan-
do em seu lugar a lógica das necessidades sociais e do ser. Somente
ações voltadas para o socialismo têm a capacidade de combater com
verdadeira eficácia a reificação e o estranhamento humano, elimi-
nando a propriedade e o ter dos sentidos humanos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo buscamos denotar a verdadeira natureza das po-
líticas sociais. Sob a hegemonia do capital enquanto ação do Estado
burguês, elas desempenham o papel de segunda ordem do capital
ao gerirem as “refrações da questão social” de forma fragmentada e
acima do poder decisório dos trabalhadores, de forma a manter in-
tacto o trabalho assalariado alheio do poder político e à propriedade
privada dos meios de produção.
Buscamos denotar que, enquanto tal, as políticas sociais nos
marcos do capital perpetuam relações mercantis de exploração e
- 158 -
dominação e, por isso, repõem estranhamentos, tanto do executor
terminal das políticas sociais, quanto do alto escalão e dos próprios
usuários das políticas sociais que passam a ser cidadãos passivos,
alheios ao poder político, naturalizado nas mãos do Estado acima
de seu controle.
Salientamos que a única forma de superar os estranhamentos
é a luta pelo socialismo, entendida como luta da classe trabalhadora
organizada para tomar para si o poder político e constituir suas me-
diações de segunda ordem, de modo a fazer surgir o trabalho asso-
ciativo, livre, consciente e universal.
REFERÊNCIAS
- 159 -
Paulo: Martin Claret, 2004.
MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro 1, v. 2.
Rio de Janeiro/RJ: Civilização Brasileira, 2011.
MÉSZÁROS, István. Estrutura Social e Formas de Consciência.
São Paulo, Boitempo. 2009.
MÉSZÁROS, István. Para além do Capital: Rumo a uma teoria de
Transição. São Paulo, Boitempo. 2011.
NETTO, José Paulo. Capitalismo Monopolista e Serviço Social.
São Paulo, Cortez, 2007.
- 160 -
AS CONTRADIÇÕES NA IMPLEMENTAÇÃO DOS
SERVIÇOS DIGITAIS E DO TELETRABALHO NO
INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL
Murilo Oliveira Souza1
Maria Lucia Lopes da Silva2
INTRODUÇÃO
- 161 -
atender” ( BRASIL, 2017b), no qual, entre as estratégias previstas,
encontrava-se a implantação do teletrabalho, o que ocorreu a par-
tir de 20193. À época, o INSS geria os benefícios do Regime Geral
de Previdência Social (RGPS), os benefícios de legislação especial
(pensão aos dependentes das vítimas do processo de hemodiálise
em Caruaru, pensão às vítimas de talidomida, entre outros) e be-
nefícios assistenciais (benefício de prestação continuada destinado
às pessoas idosas e às pessoas com deficiência que não dispõem de
condições de manterem-se ou de serem mantidas por suas famílias;
renda mensal vitalícia etc.)4.
Uma das justificativas do INSS, para a total digitalização de
seus serviços, é que “o envelhecimento da força de trabalho e a am-
pliação de competências do Instituto desequilibraram ainda mais a
relação entre a demanda e a oferta de seus serviços” (BRASIL, 2017b,
p. 17). Uma justificativa baseada “nas leis de mercado”, que ignora a
sua missão de prestar um serviço público de qualidade na gestão de
benefícios, e que grande parte daqueles que precisam de seus servi-
ços não reúnem condições para utilizar os serviços eletrônicos. Para
poderem usufruir seus direitos, estas pessoas recorrem a terceiros,
para ajudá-las no requerimento de benefícios, cumprimento de exi-
gências, etc. Pagam por estes serviços parte dos valores dos benefí-
cios que recebem (pensões, aposentadorias, etc). Os direitos são “co-
mercializados” para poderem ser usufruídos. Os “os intermediários”
- aqueles que agem entre os que buscam os direitos e o INSS - bar-
ganham o máximo que podem e às vezes consomem diversas pres-
tações inteiras dos benefícios. Tudo porque a desigualdade social é
desconsiderada e, nesse caso, alimentada pelo Estado na prestação
dos serviços públicos. O pior é que, procurando ou não, muitos di-
reitos não chegam nem a ser requeridos ou são indeferidos por falta
de atendimento adequado das exigências, o que fomenta recursos ao
poder judiciário e faz crescer as concessões de benefícios por decisão
judicial. Sob outra perspectiva, o INSS busca solucionar o quadro re-
duzido de servidores, em decorrência das aposentadorias, não com
a reposição da força de trabalho, mas com a elevação da produtivi-
3 A experiência piloto de teletrabalho no INSS foi autorizada em maio de 2019 pela Por-
taria/ME n.º 241. Disponível em: <https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-241-de-
-23-de-maio-de2019-127478690>. Acesso em: 10 ago. 2021.
4 A partir de fevereiro de 2021, por determinação do Decreto 10.620, o INSS passou a
administrar também as aposentadorias e pensões de servidores públicos das autarquias e
fundações públicas, vinculados ao Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), estes
servidores na esfera federal.
- 162 -
dade dos que permanecem no órgão, com a mediação da TIC, e por
meio de convênios com outras organizações para realizarem serviços
que seriam de sua competência. Portanto, a plena digitalização dos
serviços e a implantação do teletrabalho no INSS são processos com-
binados, marcados por grandes contradições entre a existência do
direito e o seu usufruto, a aposentadoria dos servidores do órgão e a
sobrecarga de trabalho dos que permanecem, a redução das unida-
des físicas de atendimento e os volumosos investimentos em novas
tecnologias para os atendimentos remotos e digitais, que limitam, ao
invés de favorecer, o acesso aos direitos para grande parte da popu-
lação. É sobre isso que trata este texto. O seu propósito é mostrar as
contradições que se revelam na implementação do atendimento di-
gital e do teletrabalho no INSS, denunciando que as leis de mercado
não servem para os serviços públicos, ou melhor, que “o equilíbrio
entre a oferta e procura de serviços” (para usar uma expressão do
INSS), por meio do uso da TIC, em descompasso com o perfil da
população e o quadro de servidores, não é a estratégia correta para
viabilizar os direitos. Ao contrário, alimenta as desigualdades sociais
e a exploração dessas desigualdades por organizações e indivíduos
que lucram com as condições adversas ao uso de tecnologias dos que
precisam do INSS.
O artigo está organizado a partir desta introdução seguida
pelo desenvolvimento, sob o título, contradições e falácias na imple-
mentação dos serviços digitais e do teletrabalho no INSS: para onde
vai o direito? Este desenvolvimento ocorre orientado por três eixos.
O primeiro trata da finalidade, o quadro de servidores, a rede física
de atendimento e as características socioeconômicas das pessoas que
procuram o INSS. O segundo versa sobre o projeto INSS digital, sua
implantação e relação com o teletrabalho. O terceiro eixo destaca si-
nais de prejuízos à população em face da completa digitalização dos
serviços do INSS. Ao final, as considerações finais.
- 163 -
2.1. A finalidade, o quadro de servidores, a rede física de
atendimento e as características socioeconômicas das pessoas que
precisam do INSS
5 O INSS foi criado por meio do Decreto Federal n.º 99.350, de 27 de junho de 1990,
que sofreu muitas alterações ao longo dos anos, seguindo as mudanças técnico-políticas
no curso de seus 31 anos.
- 164 -
Trabalho, mudando os órgãos estratégicos de formulação, gestão e
controle da Previdência Social para a Fazenda e o órgão de execução
(Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para o Ministério De-
senvolvimento Social e Agrário. Apesar das manifestações contrá-
rias, o governo não recuou. Em maio de 2017, por meio da MP n.º
782, art.15, a competência em matéria de Previdência foi explicitada
como da Fazenda. (SILVA, 2018, p. 146).
- 165 -
com o movimento de contrarreforma da previdência social e da or-
ganização dos serviços com uso da TIC, a partir da implantação do
teletrabalho e “projeto INSS digital: uma nova forma de atender”
(BRASIL, 2017b).
Em 2021, a estrutura organizacional do INSS conta com 104
Gerências Executivas, que agregam: 1.611 Agências da Previdência
Social (APS) de atendimento presencial para demandas gerais; 88
APS para demandas judiciais, às quais se aditam duas equipes de
demanda judiciais; 6 APS Móveis Flutuantes para atender às popu-
lações ribeirinhas; 4 APS de teleatendimento, que recepcionam do-
cumentos pelos serviços eletrônicos; 7 APS que processam serviços
de acordos internacionais; 57 unidades de PrevCidade oriundas de
convênios com prefeituras e 3 unidades móveis8. Esta é a rede física
para atender aos mais de cinco mil e quinhentos municípios brasi-
leiros.
Vale dizer que, em 2017, a situação era diversa, havia uma rede
física maior com mais servidores, mas a redução drástica de pessoal
já era previsível e nada foi feito para evitar:
O INSS [...] possui [...] quase 37 mil servidores ativos, que aten-
dem presencialmente mais de 4 milhões de pessoas todos os meses.
Conta [...] com [...] 1.729 [...] APS [...]. Do total de servidores ativos
[...] mais de 12 mil [...] se encontram em abono de permanência,
ou seja [...] reúnem as condições [...] para pleitear a aposentadoria.
(BRASIL, 2017b, p. 31).
- 166 -
(um mil, duzentos e cinquenta e dois reais e setenta e dois centavos)
(BRASIL, 2020, p. 06).
Nota-se que a maior parte do público que tem acesso à pre-
vidência, recebe benefícios com valores em torno de um salário mí-
nimo9, o qual se volta para o atendimento às necessidades básicas,
ficando em segundo plano, consumos como Internet e TIC. A Pes-
quisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-Con-
tínua), sobre 2019, mostra que o rendimento real médio per capita
nos domicílios particulares permanentes em que havia utilização da
Internet no Brasil:
- 167 -
Portanto, este é o perfil da maior parte da população que ne-
cessita dos serviços do INSS: pessoas idosas, que recebem benefícios
inferiores a um salário mínimo e meio, grande parte analfabeta, com
limites de acesso à internet e, em geral, não sabem utilizá-la. O que
significa para esta população ter que usar apenas os e-serviços ofer-
tados pelo INSS, sem atendimentos presenciais? É disso que tratam
as próximas seções.
- 168 -
sociais para recepcionarem requerimentos de benefícios e enviá-los
eletronicamente ao INSS. Essa arrancada foi crucial para digitalizar
os serviços e transferir responsabilidade do órgão para outras orga-
nizações, com o suporte das “plataformas colaborativas”. Mas isso se
agilizou a partir de 2017.
Com o uso da ferramenta de autenticação remota das pessoas,
KBA/OOW desenvolvida em anos anteriores pelo INSS e a DATA-
PREV, foi criado o e-serviço (serviço eletrônico) denominado “Meu
INSS”, que começou a funcionar em janeiro de 2017 para dar início
aos chamados serviços eletrônicos de mão dupla, que, por meio da
internet, possibilitam a interação com os usuários mediante a troca
de informações.
Assim, em 2017, concomitante à contrarreforma trabalhista
concretizada em julho, o INSS acelerou a digitalização dos serviços,
com “o projeto INSS DIGITAL: uma nova forma de atender” (BRA-
SIL, 2017b), que já previa o teletrabalho.
A proposta “foi implementada, inicialmente na forma de pro-
va de conceito, em ambiente controlado na região de Mossoró/RN,
com a parceria de municípios e entidades sindicais” (BRASIL, 2017b,
p. 11) e, após, em forma de pilotos, em outras regiões, até a digitali-
zação total em 2019, ano em que também foi iniciado o teletrabalho.
A prova de conceito em Mossoró foi acompanhada por uma
comissão de servidores constituída pela FENASPS, que apresentou
um relatório com críticas ao modelo. Entre estas, a recepção de do-
cumentos por estagiários que não conhecem a estrutura dos pro-
cessos e não o montam corretamente, gerando futuras exigências e
retrabalho; a sobrecarga de trabalho e cansaço visual dos servidores;
a recepção de requerimentos superior à capacidade do quadro de
servidores; o aumento do tempo de espera na APS devido à forma
usada para autenticar documentos; falhas da plataforma GET para
organizar arquivos e processos; identificação de cópias simples e au-
tenticadas; “aumento no tempo de análise, motivado pelo congestio-
namento de programas no mesmo monitor” (FENASPS, 2017, p. 1).
Com isso, a entidade concluiu que o sistema não cessa o problema
de “falta de servidores, [...] apenas aumenta o represamento de pro-
cessos, transformando a fila de agendamentos em “estoque virtual”
(FENASPS, 2017, p. 2).
- 169 -
A avaliação da entidade foi certeira. O sistema foi implantado
sob alegações e promessas fantasiosas que não foram cumpridas. Al-
gumas de suas justificativas:
- 170 -
A demagogia derreteu-se diante dos dados após a implemen-
tação do projeto. Em dezembro de 2016 havia 725.937 benefícios em
análise, destes, 351.326 estavam esperando conclusão há mais de 45
dias (BRASIL, 2016, p. 47). Em maio de 2021, o número de benefí-
cios em análise aumentou cerca de 62% em relação a 2016, alcançan-
do 1.902.757 benefícios. Destes, 1.216.421 esperavam conclusão há
mais de 45 dias (BRASIL, 2021a, p. 50). Isso representa 71,2% a mais
do que no ano de 2016. Onde ficou a agilidade do atendimento? E as
economias que seriam feitas? Em 2016, foram concedidos 5.132.451
benefícios e indeferidos 4.164,435, em 2020 o total de benefícios
concedidos caiu para 4.868.146 enquanto o de indeferidos aumentou
para 4.463.911 (BRASIL, 2021a, p.49). Sobre a rede física de atendi-
mento, em 2021, comparativamente ao ano de 2016, houve aumento
das unidades para o atendimento de demandas judiciais, de 86 APS
para 90 (88 APS e 2 equipes). Um aumento consoante à explosão da
judicialização do direito aos benefícios. Foram criadas 4 unidades
para recepcionar documentos por meios eletrônicos e 57 unidades
de convênios com as prefeituras. Essa reconfiguração aponta para o
total esvaziamento das unidades físicas de atendimento. Estes dados
nefastos, certamente, não são motivos para a satisfação da popula-
ção.
O aplicativo “Meu INSS” já realiza a dupla comunicação em
quase 100% dos serviços que o INSS oferece para o processamento
de benefícios. Por seis meses, no curso da pandemia, os atendimen-
tos foram totalmente remotos. Mas no período a demora no pro-
cessamento dos benefícios ampliou-se exponencialmente (BRASIL,
2021a).
O quadro de servidores caiu vertiginosamente durante estes
anos. O projeto INSS Digital, justificado também pelo número redu-
zido de servidores, apontou o teletrabalho e a elevação de produtivi-
dade como alternativas:
- 171 -
Todavia, a denúncia dos servidores é de um extenuante des-
gaste físico e mental devido às jornadas de trabalho prolongadas,
além do acúmulo de serviço sem que haja força de trabalho suficien-
te para solucioná-lo, fato que impõe a urgente necessidade de reali-
zação de concurso público para novas contratações como denuncia
a FENASPS:
- 172 -
responsável pelo processamento dos direitos previdenciários, como
aqueles que pretendem usufrui-los estão sendo prejudicados. Para
onde vai o direito?
- 173 -
Quanto a esta espécie de benefício, “do total de 1,6 milhão
de concessões judiciais, cerca de 177 mil eram urbanas e 1,4 milhão
eram rurais (89% do total)” (FIPE, 2021, p.22). Isso pode advir das
exigências para comprovar a atividade rural e da oferta dos serviços
apenas por meio eletrônico, incompatível com o perfil da população
rural.
Aliás, quanto à área de localização dos segurados, a pesquisa
revela que o maior percentual de judicialização é da área rural. Isso
fortalece a tese de que o antagonismo entre a oferta de serviços uni-
camente digitais e o perfil dessa população impõe prejuízos.
- 174 -
Pesquisa do Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER) sugere
que a judicialização pode estar relacionada com o número reduzido
de servidores:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
- 175 -
zação de seus serviços articulados ao regime de teletrabalho mos-
tra-se conflitante com o perfil de seus usuários, prejudicando-os. A
ampliação do tempo médio de concessão de benefícios, a redução
do número de concessões, o aumento dos indeferimentos, o cresci-
mento quantitativo de benefícios em análise há mais de 45 dias e das
concessões de benefícios por decisão judicial, associados à explosão
da ação dos intermediários, são alguns dos sinais destes prejuízos. A
expulsão destes usuários das unidades físicas de atendimento é uma
forma de silenciar seus gritos e escamotear esta realidade. Em outra
perspectiva, o número reduzido de servidores força a estratégia de
implantação do teletrabalho, impondo aos servidores sob este regi-
me jornadas de trabalho extenuantes para cumprir as metas ditadas
pela autarquia, o que tem provocado o adoecimento da categoria.
Neste contexto, os direitos dos usuários do INSS seguem a rota da
negação e da comercialização, enquanto os direitos dos servidores
do órgão são extirpados, todos sob a égide ultraneoliberal imposta
pela extrema direita que dirige o país. Reverter este curso é uma luta
necessária e urgente.
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- 176 -
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- 178 -
CRISE ECOLÓGICA: EXPRESSÃO
CONTEMPORÂNEA
DA CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL
Mariele Schmidt Canabarro Quinteiro
Perci Coelho de Souza
INTRODUÇÃO
- 179 -
talismo e distinção entre cidadania, emancipação política e humana,
bem como as implicações do neoliberalismo e neodesenvolvimentis-
mo para as políticas sociais.
- 180 -
(MORIN, 2003, p. 59). Fato que comprova a afirmação de Mészáros
(2009) de que o sistema do capital se moveu em direção à globaliza-
ção desde seu início, eis que, devido à irrefreabilidade de suas partes
constitutivas, ele não pode considerar-se completamente realizado
senão como um sistema global completamente abrangente.
A imigração de europeus nas Américas e na Austrália e a im-
plantação da civilização europeia é o processo de ocidentalização do
mundo. E isso só foi possível com a violência, a destruição, a escravi-
dão e a exploração feroz das Américas e da África.
Nos anos 1738 e 1790, entra em cena a Revolução Industrial
com a descoberta e o desenvolvimento da máquina a vapor, de fiar e
de tear e as empresas se expandiram e o trabalho, que antes era ma-
nual, passou a ser mais rápido, eficiente e produtivo. O trabalho do
homem foi substituído pelo das mulheres e das crianças. Nesta épo-
ca, prevalecia a lei do mercado, onde o empregador ditava as regras
sem a intervenção do Estado. (CASSAR, 2011, p. 15).
O Século XIX é marcado pelo desenvolvimento do imperia-
lismo europeu e através do colonialismo e da emancipação das co-
lônias acontece a ocidentalização do mundo. E, nas últimas décadas
do século, França, Alemanha, Inglaterra e Rússia, numa corrida ar-
mamentista desenfreada, se lançam pelo mundo. Importante lem-
brar das aberturas dos canais de Suez e Panamá, que interligam o
Mediterrâneo e os mares da Ásia, Atlântico e Pacífico. As linhas de
ferrovia Expresso-Oriente, Transamérica e Transiberiana ligam os
continentes. Dessa forma, a economia tornou-se mundial.
Neste contexto, verifica-se que os elementos constitutivos do
capital, quais sejam, capital monetário e mercantil e a produção de
mercadoria, remontam centenas de anos na história, onde foram
parte subordinada de sistemas específicos de controle do metabolis-
mo social, que prevaleceram em seu tempo. Mas nos últimos séculos,
quando o capital tomou forma de capitalismo burguês, conseguiu
garantir sua dominação como um sistema social global. Desvinculou
seus antigos componentes orgânicos dos elos dos sistemas orgânicos
precedentes e demoliu as barreiras que impediam o desenvolvimen-
to de novos componentes vitais. Percebe-se que o capital garante sua
dominação como um sistema orgânico global, como produção gene-
ralizada de mercadoria. (MÉSZÁROS, 2009, p. 09).
Morin (2003) destaca que a Europa havia espalhado a fé no
progresso pelo planeta inteiro. O progresso era identificado como
- 181 -
a própria marcha da história humana. Esta fé era o fundamento da
ideologia democrático-capitalista ocidental, na qual o progresso
prometia bens e bem-estar. Mészáros (2009) destaca que, desta for-
ma, o capital emergiu e triunfou sobre seus antecedentes históricos,
abandonando todas as considerações sobre as necessidades huma-
nas, desenhando-se a forma historicamente específica do sistema
capitalista: a versão capitalista burguesa.
Esta versão adotou o irresistível modo econômico de extração
de sobretrabalho como mais-valia estritamente quantificável. “Este
foi o modo mais dinâmico de realizar a expansão do sistema vitorio-
so.” (MÉSZÁROS, 2009, p. 03).
Entre 1863 e 1873, o comércio multinacional, cuja capital é
Londres, torna-se um sistema unificado. Esta mundialidade do mer-
cado é a expansão mundial do capitalismo, que toma forma de siste-
ma de controle do metabolismo social.
Este processo torna-se cada vez mais conflituoso a ponto de
eclodir a Guerra de 1914 a 1918, desencadeada por interações entre
grandes imperialismos e pequenos nacionalismos. Dessa forma, a
queda da Europa dá início a uma nova fase, na qual o progresso pre-
gado eclode em duas grandes guerras mundiais que fizeram regredir
as nações mais avançadas.
Nesse contexto, a economia mundial busca se redescobrir até
que a crise de 1929 revele o desastre da solidariedade econômica.
Nesse momento, um quarto da mão de obra dos países industrializa-
dos está desempregada. (MORIN, 2003, p. 42).
Boschetti (2016) conta que, na virada do século XIX para XX
predominavam o liberalismo e a crença no livre mercado, mas após a
crise de 1929 foram minimizados com a expansão do padrão fordis-
ta-keynesiano, da corrida armamentista e com a expansão do Estado
Social.
Na década de 1930, novos conflitos se instauram, o que eclode
na Segunda Guerra Mundial e, em 1945, o exército japonês invade
a China.
“Dos 100 milhões de homens e mulheres envolvidos no conflito
mundial, 15 milhões de homens armados foram mortos e houve 35
milhões de vítimas entre os civis; somente as duas bombas atômicas
lançadas em Hiroshima e Nagasaki causaram 72 mil mortos e 80 mil
feridos, encerrando com um trágico e prolongado massacre mun-
dial”. (MORIN, 2003, p. 40).
- 182 -
Com o final da Segunda Guerra, o planeta se polariza em dois
grandes blocos que iniciam uma Guerra ideológica sem remissão.
Em 1947, começa a Guerra Fria. O Globo muda de rosto com des-
membramentos e a liquidação dos impérios coloniais. O Terceiro
Mundo surge sob a forma de novas nações e o capitalismo se restau-
ra, após a década de 1970, sob a hegemonia neoliberal, pretenden-
do que o Estado não tenha nenhuma intervenção no mercado e na
economia.
No final do século XX, as manifestações das contradições ca-
pitalistas se estabelecem, desenhando, no cenário mundial, o que se
chamará de crise estrutural do capital.
Nesse contexto, destacam-se as implicações da crise estrutural
e da crise orgânica do capital para os direitos e as políticas sociais
na particularidade do capitalismo dependente brasileiro, que iniciou
seu desenvolvimento quando a economia mundial já estava consti-
tuída sob a hegemonia de forças imperialistas.
Diante disso, Beck (2010) pergunta: “Não deveríamos estar
discutindo o fato de que, desde o começo da industrialização, as
ameaças – fome, epidemias e catástrofes naturais - reduziram con-
tinuamente?
Mészáros (2009) explica que o sistema capitalista, em todas
as suas formas, tem sua expansão orientada e dirigida pela acumu-
lação, por isso, o que está em questão não é um processo delineado
pela satisfação das necessidades humanas. A questão é a expansão
do capital como um fim em si, servindo à preservação de um sistema
que não poderia sobreviver sem constantemente afirmar seu poder
como um modo de reprodução ampliado. Este sistema possui uma
estrutura hierárquica de subordinação do trabalho ao capital e este
antagonismo estrutural é irreformável e incontrolável.
- 183 -
sante busca de superlucros e superacumulação. A diferença entre
uma crise e outra é o grau de desenvolvimento do capitalismo, da
forma de organização das classes sociais e da hegemonia política no
âmbito do Estado.
A particularidade importante apresentada pela crise contem-
porânea, que teve início em 2008, é que o sistema capitalista se depa-
rou com uma manifestação da crise jamais experimentada: o encon-
tro com seus próprios limites intrínsecos.
A consequência disso foi que a economia, a demografia, o de-
senvolvimento, a ecologia se tornaram problemas de todo o mundo.
O capital, da forma como se impôs, determinou degradações múl-
tiplas e hoje a morte paira na atmosfera prometida ao aquecimento
devido ao efeito estufa (BECK, 2010, p. 230).
Duas escolas pretendem explicar a crise atual: a que explica
as crises pelo subconsumo das massas, ou seja, a superprodução de
bens de consumo, e a que explica pela superacumulação, que é a in-
suficiência de lucros para expandir os bens de capital (BOSCHET-
TI, 2016, p. 109). Mas Mandel (1990) explica que as duas escolas
cometem o erro de separar os dois elementos intimamente ligados
no modo de produção capitalista. Para o autor, as crises de supera-
cumulação e superprodução são complementares e indissociáveis às
relações de produção capitalista (BOSCHETTI, p. 109-110).
No mesmo sentido, Marx identifica que, no decorrer das cri-
ses do capitalismo, manifestam-se as suas contradições. É o momen-
to em que aparecem os antagonismos estruturais provocados pela
busca implacável de superlucros. E isto acontece por que “a essência
da produção capitalista será sempre de buscar o crescimento da pro-
dução, sem se preocupar com os limites do mercado, as possibilida-
des de consumo e as necessidades dos trabalhadores” (BOSCHETTI,
2016, p. 110).
Mas não se pode esquecer de identificar o que o fenômeno de
aparecimento da crise, seus detonadores, sua causa mais profunda e
sua função lógica imanente do modo de produção capitalista como
Mandel (1990) chamou à atenção:
- 184 -
ria e existência de poder de compra dessas mercadorias. Então, essa
venda insuficiente gera a redução do emprego, das rendas, dos inves-
timentos etc.
• Causas da Crise:
Com o crescimento, o aumento da composição orgânica do
capital é a causa da crise. A composição orgânica do capital é a corre-
lação entre a composição valor e a composição matéria ou técnica do
capital. Aquela composição corresponde à proporção entre capital
constante e capital variável. Esta composição trata-se da proporção
entre a massa dos meios de produção utilizados e o montante do
trabalho exigido para seu emprego.
- 185 -
Boschetti (2016) conta que as consequências da crise que teve
início em 2007/2008 já são conhecidas e impactam dolorosamente a
vida de milhões de trabalhadores em todo o mundo. E chama a aten-
ção para a afirmação de Chesnais (2008) de que a crise atual marca o
esgotamento de um modelo de crescimento.
Este esgotamento também acontece com o meio ambiente,
que se encontra desequilibrado e em completa extinção devido à
busca pela superprodução e superlucros do sistema capitalista.
Nesta perspectiva, identifica-se a crise ecológica como mani-
festação da crise estrutural do capital. E o esgotamento da natureza
é um aspecto inédito, ainda não enfrentado pelo sistema capitalista
nas crises anteriores.
Morin (2003) conta que o aspecto meta-nacional e planetário
do perigo ecológico surgiu com o anúncio da morte do oceano por
Ehrlich em 1969 e o Relatório Meadows, encomendado pelo Clu-
be de Roma em 1972. Após essas profecias apocalípticas mundiais,
houve um período de multiplicação das degradações ecológicas. Nos
anos 80, surgiram grandes catástrofes locais com amplas consequên-
cias, contaminação das águas, envenenamento dos solos, chuvas
ácidas, entre outras ameaças reais à saúde e à vida na Terra. Surgi-
ram também problemas globais relativos ao planeta como um todo:
como emissão de CO2 que intensifica o efeito estufa, envenenamento
dos micro-organismos que efetuam o serviço de limpeza alterando
importantes ciclos vitais, decomposição gradual da camada de ozô-
nio da estratosfera e o buraco de ozônio da Antártida.
A partir de então, a consciência ecológica tornou-se tomada
de consciência do problema global e do perigo global que ameaçam
o planeta. As reações a esses perigos foram, inicialmente locais e
técnicas. Em seguida, Associações e Partidos Ecológicos se multi-
plicaram e Ministérios de Meio Ambiente foram criados em muitos
países (Morin, 2003).
Beck (2010) relaciona questão social e questão ecológica, afir-
mando que da mesma forma como no século XIX a questão social
foi colocada, hoje a questão ecológica deve ser apresentada: no plano
teórico e político a possibilidades de ação institucionais e de socieda-
de que correspondem ao contexto de seu surgimento:
- 186 -
que tinha mal introduzido seu braço, agora seccionado, na máqui-
na? Era responsabilidade do engenheiro que tinha concebido o par-
que das máquinas? Do empresário que tinha aumentado a cadência
delas? (Beck, 2010, p. 09).
- 187 -
Devido ao aperfeiçoamento do Estado, do Governo e do Ho-
mem o conceito de cidadania foi redefinido. Rousseau propôs o des-
locamento da soberania, que estava depositada nas mãos do monar-
ca, para o direito do povo mudando o conceito de vontade singular
do príncipe para vontade geral do povo. A soberania é a vontade
geral (BREDARIOL, p. 17).
Atualmente, a cidadania surge com a ideia de direitos, o cida-
dão tem o direito de ter direitos. Aparecem novas configurações so-
bre a natureza dos direitos como a autonomia sobre o próprio corpo,
a moradia e a proteção ambiental, surgindo a necessidade de desvin-
culação deste novo conceito de cidadania das estratégias dominantes
do Estado. “A nova cidadania não deseja apenas ser uma forma de
integração social indispensável para a manutenção do capitalismo,
ela deseja a constituição de sujeitos sociais ativos que definam quais
são seus direitos” (BREDARIOL, 2006, p. 45).
Boschetti (2016) conta que Marshall (1976) conjuga três ele-
mentos designados de direitos civis, políticos e sociais como base
estruturante da cidadania e demonstra que a relação entre ampliação
de ações sociais pelo Estado e a garantia de direitos sociais na socie-
dade capitalista possui um caráter reformista no sentido de reformar
o Estado na direção de manter sua natureza capitalista, mas ampliar
suas funções sociais.
E, quando se fala de crise ecológica como expressão contem-
porânea da crise estrutural do capital, verifica-se que a crescente ex-
tinção do meio ambiente saudável é uma limitação ao sistema capita-
lista. E a função do Estado Social, neste cenário, é a sua intervenção
na violência do capitalismo para com a destruição da natureza com o
objetivo principal de garantir a continuidade do sistema.
A primeira ação do Estado com relação ao meio ambiente
ocorreu em 1.972, na Conferência de Estocolmo2, convocada pela
ONU – Organização das Nações Unidas com a temática “Preserva-
ção do Meio Ambiente em nível Internacional”, buscando a desace-
leração do desenvolvimento industrial mundial, o que não foi muito
bem recebido e aceito pelos países desenvolvidos nem pelos países
em desenvolvimento (CANABARRO; QUINTEIRO, 2015, p. 21).
Diante da ideia mal sucedida de preservação e consequente
desaceleração do desenvolvimento, a ONU - Organização das Na-
2 Foi na Conferência de Estocolmo, em 1972, que, pela primeira vez, o Meio Ambiente
foi discutido como um Direito Humano.
- 188 -
ções Unidas convocou uma Conferência na cidade do Rio de Janeiro,
RJ denominada Conferência de Cúpula da Terra - ECO-92, com a
finalidade de compatibilizar a atividade humana com um equilíbrio
dos fatores componentes do meio ambiente, dentre os quais se inclui
o homem, com a sua natural necessidade de transformar o mun-
do exterior3 (MAZZUOLI; IRIGARAY, 2009, p. 50). O conceito de
Desenvolvimento Sustentável foi, então, introduzido como forma de
justificar a continuidade da produção.
Restou claro que, ao mesmo tempo em que se discutiam for-
mas e mecanismos por meio dos quais se pudesse preservar o meio
ambiente e promover o desenvolvimento sustentável, buscava-se
também, com grande intensidade, a dinamização do comércio in-
ternacional com a abertura de mercados e o livre comércio, no con-
texto de vários foros negociadores internacionais, como a Rodada
Uruguai da Organização Mundial do Comércio (OMC); o Tratado
Norte-Americano de Livre Comércio (North American Free Trade
Agreementn – NAFTA); o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL)
e a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) (DRUMMOND,
2012).
Verifica-se que o Estado amplia sua função social de responsá-
vel pelo meio ambiente e, ao mesmo tempo, garante condições para
o desenvolvimento do capitalismo. Isto é realizado por meio da im-
plementação de ações capazes de:
• Oferecer à sociedade segurança com relação à crise ecoló-
gica, no sentido de que as ameaças e os riscos ambientais estão sob
seu controle;
• Apresentar alternativas capazes de demonstrar que produ-
ção capitalista pode continuar sem prejuízos ainda maiores ao meio
ambiente.
- 189 -
as futuras gerações4.
Desta forma, o Estado amplia suas ações sociais mantendo sua
natureza capitalista. Nestas ações, pode-se identificar o que Mandel
(1982) previu, quando conceituou o Estado Social como “o conjunto
destinado a providenciar as condições gerais de produção”.
Esta realidade de garantias, direitos e ações apresentada pelo
Estado frente à crise ecológica e à crise estrutural do capital demons-
tra claramente que a cidadania e a emancipação humana não se con-
fundem. Como bem assevera Boschetti (2016), a conquista de direi-
tos não é necessariamente o caminho para a emancipação humana:
- 190 -
desfrutar de um meio ambiente equilibrado). Para que estes direitos
possam ser efetivamente reconhecidos é necessário que apareça uma
nova sociedade, onde se tenha uma maior igualdade nas relações
sociais e, consequentemente, um novo sentido de responsabilidade
pública. É necessário que os cidadãos sejam reconhecidos como su-
jeitos de direitos de interesses válidos, de aspirações pertinentes e de
direitos legítimos.
A forma como vem sendo conduzida a questão da crise ecoló-
gica, os cidadãos não assumem seu papel de cidadão e o Estado não
reconhece as reais ameaças que estão por vir sobre a terra com a con-
tinuidade da destruição ambiental. Com esta análise, percebe-se o
significado do Estado Social no capitalismo e sua impossibilidade de
superar as desigualdades por meio dos direitos sociais (BOSCHET-
TI, 2016, p. 45).
- 191 -
A busca do sistema capitalista pelo objetivo de ser um siste-
ma global totalmente abrangente é finalidade perseguida desde o seu
início procurando “demolir todos os obstáculos que permaneciam
no caminho de sua plena expansão” (MÉSZÁROS, 2009).
Mészáros (2009) explica que a característica perseguida pelo
capitalismo, qual seja sua expansão global, faz parte da sua configu-
ração vital e é completamente desprovida de sua formação estatal. E
aponta que esta é uma grande contradição, claramente visível, por
que o sistema inexoravelmente global e desenfreado é uma determi-
nação intrínseca do próprio sistema. Portanto, o capitalismo, neces-
sitando de ações do Estado para justificar e garantir a exploração do
meio ambiente, demonstra sua incapacidade para atingir a lógica ob-
jetiva da irrefreabilidade do sistema em suas últimas consequências.
E quando o capitalismo dá as mãos ao Estado, necessitando
que este realize a sua função social de garantir a proteção ao meio
ambiente como forma de justificar a produção e a exploração, o sis-
tema capitalista encontra os seus próprios limites intrínsecos.
Mészáros (2009), ao analisar o capital do século XX, conta que
foi forçado a aceitar a hibridização – presença do Estado no processo
socioeconômico de produção – como forma de superar suas crises.
Com relação à crise ecológica, o capital busca no Estado a ga-
rantia de sua expansão e isso acontece sempre em doses maiores,
e a tendência é aumentar esta dependência devido ao fato de que
a natureza está no limite do esgotamento e a qualquer momento a
sociedade pode sentir-se ameaçada, a tal ponto que as políticas do
desenvolvimento sustentável atuais não servirão mais para justificar
a violenta exploração do meio ambiente pelo capital.
Neste contexto, o avanço da cidadania social representa mais
do que um conjunto de direitos sociais, a cidadania deve possibilitar
aos cidadãos a influência efetiva nos rumos do Estado. Mas esta pos-
sibilidade vem sendo extinta pelas práticas neoliberais e pela globali-
zação. Desta forma, o problema da possibilidade de influência efetiva
dos cidadãos nos rumos do Estado a capacidade transformadora da
cidadania aliada à democracia será aniquilada (BALIBAR, 2013, p.
14).
É necessário que o Estado apresente uma postura coerente e
verdadeira com relação à crise ecológica. Isto aconteceu com a Con-
ferência de Estocolmo, de 1972, já citada, quando a realidade do
- 192 -
meio ambiente foi apresentada e a solução foi a redução da produção
com a preservação do meio ambiente. Desta forma, garante-se o di-
reito a uma vida digna e um ambiente ecologicamente equilibrado.
Agindo em favor do capital, sendo utilizado pelo sistema para
garantir a continuidade da exploração ambiental, o Estado passa a
ser instrumento para disfarçar as manifestações da crise com políti-
cas que levam todo o povo a erro com relação à crise ecológica que se
instaurou. Passa a ser, também, instrumento para o neoliberalismo
que ressacha a intromissão no mercado e na economia, mas o busca
para superar a crise.
Diante das contradições do sistema, agora em evidência por
causa da crise estrutural que se instaurou, aparece o neodesenvolvi-
mentismo que pretende combinar desenvolvimento econômico com
redistribuição de renda, conciliando o desenvolvimento social. Bres-
ser-Pereira (2010) explica que o neodesenvolvimentismo não nega
a intervenção estatal, mas restringe a coordenação da esfera econô-
mica.
Globalização, neoliberalismo e neodesenvolvimentismo são
faces do sistema capitalista que pretendem garantir o desenvolvi-
mento do capital buscando tão somente a máxima lucratividade. O
meio ambiente, mesmo sendo findo e apresentando sintomas de es-
gotamento e ameaças reais e graves que podem eliminar a vida sobre
a Terra, não é o suficiente para frear as violentas investidas do capi-
talismo para alcançar a acumulação lucrativa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
- 193 -
chegar o momento da sua estagnação e possibilidade de extinção da
vida humana na Terra.
Conforme alerta Mészáros (2009), o fato de o capitalismo li-
dar desta forma com a ecologia não provoca a mínima estranheza,
mas o fato de pretender a todo o tempo demonstrar os benefícios de
um Estado-moderno-industrial não pode ser o motivo pelo qual a
sociedade vai ignorar a crise ecológica que o capitalismo gerou.
Neste contexto, a cidadania deve ser exercida de forma a bus-
car a efetiva garantia dos direitos fundamentais a uma vida digna e
a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Mas a crise eco-
lógica da forma como é apresentada pelo capitalismo faz com que o
Estado se posicione para a garantia da produção. E o pior é que ga-
rante a produção sob a nomenclatura de ações sociais para proteção
do meio ambiente.
Isto deixa clara a distinção prática de cidadania e de eman-
cipação humana, eis que o Estado age e reconhece os direitos dos
cidadãos, mas isso não garante a emancipação da exploração huma-
na. Ainda mais quando se trata da realidade do Brasil, um país que
vive o capitalismo dependente e que ainda não se desvencilhou das
características de uma colônia de exploração.
Mas todas as necessidades humanas, neste trabalho apresen-
tada em forma de crise ecológica, não importa ao capitalismo que
tem como única finalidade o lucro e a acumulação. A natureza e seu
esgotamento servirão ao capitalismo até seu último suspiro e a pos-
sibilidade de vida na Terra será também manipulada pelo capital.
Isto já é sentido com a globalização e com o desenvolvimento
de doutrinas chamadas de neoliberalismo e neodesenvolvimentis-
mo, que pretendem utilizar o Estado a favor do desenvolvimento do
capitalismo.
REFERÊNCIAS
- 194 -
tal. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.
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mentismo na América Latina. Texto para Discussão. n. 275. São
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DUARTE, Pedro Henrique Evangelista; GRACIOLLI, Edílson José.
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Brasil da Nova República. 2002.
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MAZZUOLI, Valério de Oliveira; IRIGARAY, Carlos Teodoro Hu-
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MORIN, Edgar e KERN, Anne Brigitte. Terra Pátria. Traduzido
do francês por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre: Sulina,
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TONET, Ivo. Expressões socioculturais da crise capitalista na
atualidade. In: Serviço Social: direitos sociais e competências pro-
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- 196 -
A NOVA POLÍTICA ENTRA EM CENA: TRAJE-
TÓRIA E ATUALIDADE DA NOVA DIREITA NA
AMÉRICA LATINA NO SÉCULO XXI1
Ruteléia C. de Souza Silva2
- 197 -
timamente influenciada pelo movimento paleo conservador, liderado
por intelectuais como Paul Gottfried, Sam Francis e Mel Bradford.
Gottfried cunhou esse termo durante os primeiros anos da década
de 1980, em um esforço para revitalizar a velha direita e combater
a crescente influência neoconservadora e neoliberal considerada,
muitas vezes, como nova direita nos EUA e Reino Unido (DROLET;
WILIAMS, 2018).
No entanto, ainda que a nova direita no cenário político global
tenha sido um dos movimentos políticos mais marcantes dos últi-
mos anos, sua legitimidade se concretiza por meio da manipulação
da linguagem e da interpretação superficial da realidade, que repro-
duzem consciências falsas/ilusórias das estruturas da sociedade do
capital.
A nova direita tem, portanto, sua ascendência e legitimidade,
neste novo século, relacionadas ao desenvolvimento de poderosos
quadros que atuam como aliados de oportunidades políticas e que
se manifestam pelo uso contínuo da manipulação, como pode ser
observado no movimento atual que conta com grupos políticos e
partidários em alguns países do globo, como Estados Unidos, Reino
Unido, França e em países da América Latina.
Desde os primeiros anos deste novo século, a nova direita tem
movimentado campanhas de forma a difundir suas ideias, de modo
a apresentar uma nova proposição que solucionaria seus desconten-
tamentos e desalentos, e angariaria eleitores para seus projetos polí-
ticos. Dentre estes, estão institutos, centros de estudo, revistas, think
tanks, que se articulam em ações pelo mundo afora, pois o capital
não admite fronteiras.
Sob a face da democracia liberal, constrói-se uma blindagem
que passa a dominar as decisões tomadas em órgãos estratégicos es-
tatais que passam a regular os núcleos políticos de decisão, como o
parlamento, os bancos centrais, os meios de comunicação, os par-
tidos, o poder judiciário, as organizações não governamentais, as
thinktanks5. No campo destas últimas, dentre as mais conhecidas
no cenário atual, está a norte-americana Atlas Economic Research
Foundation, organização sem fins lucrativos conhecida como Atlas
Network (Rede Atlas), cuja atuação ganha notoriedade em diversos
5 A utilização desse termo se tornou recorrente a partir dos anos 70, com a difusão de
instituições da sociedade civil, supostamente autônomas e de interesse social, voltadas
para a elaboração de consensos nas esferas política, econômica e científica.
- 198 -
países da América Latina, por meio do apoio e patrocínio a outras
instituições
Assumindo o discurso em torno da necessidade de reforçar os
movimentos de oposição libertária, essas instituições, de fato, procu-
ram reinventar a política. Mas ao invés de algo novo, esses movimen-
tos procuram dar maior robustez aos interesses do capital e conso-
lidar, de uma vez por todas, a guinada do pensamento conservador
liberal e a hegemonia norte-americana no cenário mundial. Por meio
dessas instituições, a nova direita começa a patrocinar e a promover
a formação de atores que se organizam para ocupar espaços públicos
e defender as suas posições sobre temas morais, identitários, de re-
gulação da atividade econômica, do papel do Estado e a hegemonia
branca, masculina e cristã. E nesse percurso, a nova direita também
vai se apropriar das estratégias de manipulação das redes sociais, que
se transformam em meios de comunicação em massa.
Da Europa às Américas, lideranças políticas da nova direita,
contando com a contribuição de manipuladores políticos6 e peritos
em mídia social espalhados mundo a fora, passam a aperfeiçoar e
a moldar a mensagem a ser disseminada, radicalizando a sua opo-
sição à democracia e ao socialismo. E não apenas: radicalizam os
discursos de ódio, as polarizações e as posturas negacionistas, como
também negam direitos humanos, manipulam e institucionalizam a
mentira, como práticas necessárias à normalidade política. Em nome
dessa normalidade, passam a perseguir: “[...] todas as formas e ex-
pressões do pensamento crítico e inventam a divisão da sociedade
entre o bom povo, que os apoia, e os diabólicos, que os contestam
[...]” (CHAUI, 2019, s.p.), além de defender a limpeza ideológica, so-
cial e política da sociedade.
Com esse discurso, lideranças políticas da nova direita alcan-
çam vitórias políticas nos pleitos eleitorais em diversos países: Donald
Trump, nos Estados Unidos; Jair Bolsonaro, no Brasil; Vladimir Putin,
na Rússia; Narendra Damodardas Modi, primeiro-ministro da Índia;
Shinzō Abe, ex-primeiro-ministro do Japão; e Viktor Mihály Orbán,
primeiro-ministro da Hungria; governos que contaram e ainda con-
tam com o apoio de neonazistas no parlamento alemão, de neofascis-
tas no italiano e de regimes autoritários que estão “[...] tomando forma
na Turquia e no Leste Europeu [...]” (BROWN, 2019, p. 9).
6 Como o estrategista americano, Steve Bannon; o guru bolsonarista, Olavo de Carvalho,
e Alexandr Dugin, conselheiro do líder russo, Vladimir Putin.
- 199 -
Nesse momento, é possível questionar: qual conexão existente
entre as ponderações até aqui apresentadas e o movimento de ascen-
são da nova direita na América Latina?
- 200 -
O fato é que, com a chegada do novo século (XXI), já em seus
primeiros anos, a nova direita no continente latino-americano
terá um papel de destaque, sobretudo, a partir do momento
que a burguesia se vê obrigada a apresentar um conjunto de
respostas diante da polarização da luta de classes em meio ao
contexto de aprofundamento da crise capitalista sobre a eco-
nomia da região. E ainda que no início deste século, alguns países
dessa região tenham experimentado uma guinada mais à esquerda,
grupos, movimentos e partidos políticos identificáveis com
a nova
direita ganham novo fôlego, embora esta identidade, em um primei-
ro momento, não seja assumida nem por eles próprios.
Esse é um momento histórico de fragilidade dos projetos
nacionais, propício para que as burguesias latino-americanas,
mais uma vez, possam entregar os anéis para preservar os de-
dos, alinhando-se ao hegemonismo e à dominação americana,
cuja essência, além de impor uma posição ainda mais subal-
terna da região na divisão internacional do trabalho, aprofun-
da os antagonismos sociais, as expropriações, o desemprego,
a transferência do fundo público, a precarização das políticas
sociais e a repressão contra as classes subalternas.
Em cada país, a retórica de ataques à democracia repre-
sentativa assume características próprias, segundo as estrutu-
ras internas e as particularidades da luta de classes em cada
sociedade nacional. No entanto, ainda que guardadas suas par-
ticularidades, tem se tornado unanimidade uma guerra aberta
às iniciativas populares, mediante a reiterada criminalização
e intimidação dos movimentos sociais, sempre acompanhada
da militarização da ordem pública, de uma cruzada moralista/
conservadora e da ofensiva ideológica liberal e anticomunista.
Dentre as mudanças que se gestaram na América Latina, em
março de 2010, a eleição do empresário Sebastián Pìñera como Pre-
sidente no Chile, em uma disputa com Michelle Bachelet, o que indi-
ca o revés sofrido pelos governos mais progressistas, que passaram a
ceder espaço para partidos e movimentos mais à direita, que encon-
tram um terreno bastante fértil para a expansão de seus ideais em
diversos níveis de governos e de representação social.
Dois anos mais tarde, em junho de 2012, forças direitistas con-
seguiram aprovar o impeachment do presidente paraguaio Fernando
- 201 -
Lugo. Também no ano de 2012, Nicolas Maduro – vice-presidente
da República Bolivariana da Venezuela –, assume interinamente a
presidência, logo após a vitória eleitoral de Hugo Chávez, afastado
em razão de grave enfermidade. E em 2013, Michelle Bachelet sai vi-
toriosa na disputa com Sebastián Pìñera, reassumindo a presidência
entre os anos de 2014 e 2017.
Já o ano de 2016 é marcado pelo impeachment de Dilma Rou-
sseff no Brasil. Enquanto o ano de 2017 é marcado pela eleição, em
abril, de Lenin Moreno como Presidente do Equador, que rapida-
mente rompe com o antecessor, Rafael Correa, e com sua política
progressista; e, em outubro, do declaradamente conservador Mau-
ricio Macri na Argentina, pondo fim ao ciclo de mandatos do casal
Kirchner.
Ainda no ano de 2017, no Chile, Piñera vence o pleito eleitoral
na disputa com o candidato governista Alejandro Guillier, reassu-
mindo o mando em 2018 até 2021. E no final de 2018, Jair Mes-
sias Bolsonaro é eleito Presidente do Brasil para o período de 2019 a
2022. De um modo geral, o Quadro a seguir (1) apresenta um dese-
nho das mudanças ocorridas nos países da América Latina a partir
dos anos 2000.
- 202 -
Quadro 1. Desenho político-partidário dos governos latino-americanos,
considerando os últimos anos da década de 1990 aos dias atuais.
Governos Partido
País Filiação Ideo-
Presidente Mandato Legenda
lógica
Centro-
Carlos Menem 1989-1999 Partido da Justiça
Esquerda
Partido União
Fernando de La Rúa 1999-2001 Esquerda
Cívica Radical
Partido União Cívi-
Adolfo Rodriguez Saá 2001 Esquerda
ca Radical
Centro-
Eduardo Duhalde 2002-2003 Partido Justicialista
Argen- Esquerda
tina Centro-
Néstor Kirchner 2003-2007 Partido Justicialista
Esquerda
Centro-
Cristina Kirchner 2007-2015 Partido Justicialista
Esquerda
Proposta Centro-
Mauricio Macri 2015-2019
Republicana Direita
Alberto Angel Fer- Centro-Es-
2019-Atual Partido Justicialista
nández querda
Ação Democrática
Hugo Banzer 1997-2001 Direita
Nacionalista
Ação Democrática
Jorge Queiroga 2001-2002 Direita
Nacionalista
Movimento Nacio-
Gonzalo Sánchez de Centro-Es-
2002-2003 nalista Revolucio-
Lozada querda
nário
Carlos Diego Mesa Frente Esquerdista
2003-2005 Esquerda
Bolívia Gisbert Revolucionária
Presidente da Supre-
Eduardo Rodríguez 2005-2006 -
ma Corte
Movimento para o
Evo Morales 2006-2019 Esquerda
Socialismo
Movimento Demo-
Jeanine Áñez 2019-2020 Direita
crático Social
Luis Alberto Arce Movimento para o
2020-Atual Esquerda
Catacora Socialismo
continua...
- 203 -
Governos Partido
País
Presidente Mandato Legenda Filiação Ideológica
Partido da Social
Fernando Henri-
1995-2003 Democracia Bra- Centro- Direita
que Cardoso
sileira
Luís Inácio Lula da Partido dos Traba-
2003-2011 Esquerda
Silva lhadores
Brasil Dilma Vana Rou- Partido dos Traba-
2011-2016 Esquerda
sseff lhadores
Michel Miguel Movimento Demo-
2016-2019 Centro
Elias Temer crático Brasileiro
Jair Messias Bol-
2019-Atual Sem Partido Direita
sonaro
Eduardo Frei Partido Democrata
1994-2000 Direita
Ruiz-Tagle Cristão
Partido Socialista do
Ricardo Lagos 2000-2006 Esquerda
Chile
Partido Socialista do
Michelle Bachelet 2000-2006 Esquerda
Chile
Partido da Renova-
Sebastián Piñera 2006-2010 Centro- Direita
ção Nacional
Chile Partido Socialista do
Michelle Bachelet 2014-2018 Esquerda
Chile
União Democrática
Independente (UDI)
Partido Regionalista
Sebastián Piñera 2018-Atual Independente Direita (*)
Democrático (PRI)
Partido da Evolução
Política (Evópoli).
Andrés Pastrana Partido Conserva-
1998-2002 Centro- Direita
Arango dor Colombiano
Partido Liberal
Álvaro Uribe Vélez 2002-2010 Centro-Esquerda
Colôm- Colombiano
bia Juan Manoel Partido Social da
2010-2018 Centro- Direita
Santos Unidade Nacional
Iván Duque Már- Partido Centro
2018-Atual Direita
quez Democrático
Miguel Angel Partido Unidade
1998-2000 Centro- Direita
Echeverria Social Cristiana
Abel Pacheco de la Partido Unidade
2000-2006 Centro-Direita
Espriella Social Cristiana
Oscar Rafael San- Partido da Liberta-
2006-2010 Centro-Esquerda
Costa chéz ção Nacional
Rica Laura Chinchilla Partido da Liberta-
2010-2014 Centro-Esquerda
Miranda ção Nacional
Luis Guilhermo Partido Ação Ci-
2014-2018 Centro-Esquerda
Solís dadão
Carlos Alvarada Partido Ação Ci-
2018-2022 Centro-Esquerda
Quesada dadão
continua...
- 204 -
Partido Comunista
Fidel Castro 1998-2008 Esquerda
de Cuba
Partido Comunista
Cuba Raúl Castro 2008-2018 Esquerda
de Cuba
Partido Comunista
Miguel Díaz 2019-Atual Esquerda
de Cuba
Frente Radical
Fabián Alarcón 1997-1998 Centro
Alfarista
Jamil Mahuad 1998-2000 Democracia Popular Centro- Direita
Gustavo Noboa 2000-2003 Democracia Popular Centro- Direita
Lucio Edwin Bor- Partido Sociedade
2003-2005 Direita
Equador búa Patriótica
Alfredo Palacio 2005-2007 Sem partido Sem partido
Rafael Correa 2007-2017 Partido Alianza País Esquerda
Lenín Moreno 2018-2020 Partido Alianza País Esquerda
Movimento Criando
Guillermo Lasso 2021-Atual Direita
Oportunidades
Armando Cal-
1994-1999 ARENA Direita
derón Sol
Francisco Flores
1999-2004 ARENA Direita
Pérez
Elías Antonio
2004-2009 ARENA Direita
El González
Salva- Frente Farabundo
dor Carlos Mauricio
2009-2014 Martí de Liberta- Esquerda
Cartagena
ção Nacional
Frente Farabundo
Salvador Sánchez 2014-2019 Martí de Liberta- Esquerda
ção Nacional
Nayib Bukele 2019-Atual Grande Aliança Direita
(*) Coligação
Continua...
- 205 -
Governos Partido
País
Filiação Ideo-
Presidente Mandato Legenda
lógica
Álvaro Enrique Arzú Partido Nacional do
1996-2020 Direita
Irigoyen Avanço
Alfonso Portillo Ca- Frente Republicana
2000-2004 Direita
brera da Guatemala
Partido Nacional de
Óscar Berger 2004-2008 Direita
Solidariedade
Unidade Nacional da Centro-Es-
Álvaro Colom 2008-2012
Guatemala Esperança querda
Otto Pérez Molina 2012-2015 Partido Patriota Direita
Alejandro Maldonado 2015-2016 Sem partido Sem partido
Frente de Convergên-
Jimmy Morales 2016-2019 Direita
cia Nacional
Alejandro Eduardo
2020-Atual Partido Vamos Centro-Direita
Giammattei Falla
Partido FamiliaLa- Centro- Es-
René Préval 1996-2001
valla querda
Partido FamiliaLa- Centro- Es-
Jean Bertrand Aristide 2001-2004
valla querda
Boniface Alexandre 2004-2006 Presidente da Corte Sem partido
Haiti
René Préval 2006-2011 Lespwa Esquerda
Michel Martelly 2011-2017 ReponsPeyizan Centro- Direita
PartiHaïtienTèt Kale
Jovenel Moïse 2017-2021 Centro- Direita
Centro
Partido Liberal de
Carlos Roberto Flores 1998-2002 Centro- Direita
Honduras
Partido Nacional de
Ricardo Maduro 2002-2006 Direita
Honduras
Partido Liberal de
Manuel Zelaya 2006-2009 Centro- Direita
Honduras
Honduras
Partido Liberal de
Roberto Micheletti 2009-2010 Centro- Direita
Honduras
Partido Nacional de
Porfirio Lobo Sosa 2010-2014 Direita
Honduras
Juan Orlando Her- Partido Nacional de
2014-atual Direita
nández Honduras
Partido de Ação
Vicente Fox 2000-2006 Direita
Nacional
Partido de Ação
Felipe Calderón 2006-2012 Direita
Nacional
México
Partido Revolucioná-
Enrique Peña Nieto 2012-2018 Centro
rio Institucional
Movimento Regene-
Andrés López Obrador 2018-Atual Esquerda
ração Nacional
continua...
- 206 -
Partido Liberal Cons-
Arnoldo Alemán 1997-2002 Direita
titucionalista
Aliança pela Repú-
Enrique Bolaños Geyer 2002-2007 Direita
blica
Nicarágua
Frente Sandinista de
Daniel Ortega Saavedra 2007-Atual Esquerda
Libertação Nacional
Ernesto Pérez Balla- Partido Revolucioná- Centro- Es-
1994-1999
dares rio Democrático querda
Mireya Moscoso 1999-2004 Partido Arnulfista Direita
Partido Revolucioná- Centro- Es-
Martín Torrijos Espino 2004-2009
rio Democrático querda
Mudança Demo-
Panamá Ricardo Martinelli 2009-2014 Centro- Direita
crática
Juan Carlos Varela 2014-2019 Partido Panameñista Direita
Partido Revolucioná-
Laurentino Cortizo 2019-Atual Esquerda
rio Democrático
Raúl Cubas Grau 1998-1999 Partido Colorado Direita
Luis Ángel González
1999-2003 Partido Colorado Direita
Macchi
Nicanor Duarte Frutos 2003-2008 Partido Colorado Direita
Paraguai Centro- Es-
Fernando Lugo 2008-2012 Aliança Patriótica
querda
Federico Franco 2012-2013 Partido Liberal Centro
Horacio Cartes 2013-2018 Partido Colorado Direita
Mario Abdo Benítez 2018-Atual Partido Colorado Direita
continua...
- 207 -
Governos Partido
País
Filiação
Presidente Mandato Legenda
Ideológica
Alberto Fujimori 1990-2000 Cambio 90 Direita
Centro- Es-
Valentín Paniagua 2000-2001 Ação Popular
querda
Alejandro Toledo 2001-2006 Peru Possível Centro
Aliança Popular
Centro- Es-
Alan García Pérez 2006-2011 Revolucionária Ame-
querda
ricana
Peru Partido Nacionalista Centro- Es-
Ollanta Humala 2011-2016
Peruano querda
Pedro Pablo Kuc- Peruanos para Mu- Centro-
2016-2018
zynski dança Direita
Peruanos para Mu- Centro-
Martín Vizcarra 2018-2021
dança Direita
José Pedro Castillo-
2021-Atual Peru Livre Esquerda
Terrones
Partido da Libertação Centro- Es-
Leonel Fernández 1996-2000
Dominicana querda
Partido Revolucioná- Centro- Es-
Hipólito Mejía 2000-2004
rio Dominicano querda
República Do- Partido da Libertação Centro- Es-
Leonel Fernández 2004-2012
minicana Dominicana querda
Partido da Libertação Centro- Es-
Danilo Medina 2012-2020
Dominicana querda
Luis Rodolfo Abi- Partido Revolucioná- Centro- Es-
2020-Atual
nader rio Moderno querda
Julio María Sangui- Centro-Di-
1995-2000 Partido Colorado
netti reita
Centro-Di-
Jorge Batlle 2000-2005 Partido Colorado
reita
Partido Frente Am- Centro- Es-
Uruguai José Mujica 2010-2015
plio querda
Partido Frente Am- Centro- Es-
Tabaré Vázquez 2015-2020
plio querda
Luis Alberto Aparicio
Centro-Di-
Alejandro Lacalle 2020-Atual Partido Nacional
reita
Pou
continua...
- 208 -
Partido Socialista
Hugo Chávez 1999-2000 Esquerda
Unido da Venezuela
Partido Socialista
Hugo Chávez 2000-2002 Esquerda
Unido da Venezuela
Pedro Francisco 12 a Golpe de
Carmona Estanga 13/04/2002 Estado
Venezuela
Diosdado Cabello 13 a Golpe de
Rondon 14/04/2002 Estado
Partido Socialista
Hugo Chávez 2002-2013 Esquerda
Unido da Venezuela
Partido Socialista
Nicolás Maduro 2013-Atual Esquerda
Unido da Venezuela
- 209 -
de esquerda, em contraposição às lideranças políticas da década de
1990, responsáveis por promover e consolidar o ideário neoliberal na
região. No entanto, essa onda cor-de-rosa ou essa virada à esquerda
sofre uma reversão já na segunda década do novo século e uma nova
guinada à direita se faz presente, com lideranças políticas progressis-
tas e/ou de esquerda substituídas por governos de direita.
Conforme declaram Verónica Giordano (2014) e o cientista
político chileno Cristóbal Rovira Kaltwasser (2014), em resposta à
virada à esquerda, a nova direita passa a adotar estratégias políticas
diferentes às adotadas entre os anos 80 e 90, e novos atores entram
em cena. Alguns desses atores estavam vinculados às thinktanks cria-
das ainda nos anos 1980 e que, nos anos 2000, renovaram seus qua-
dros, ganhando maior visibilidade, como o registrado com o Cedice
Libertad da Venezuela, que é considerado um dos mais importantes
thinktanks da América do Sul; e o LyD, que desde 2007 é conside-
rado o mais influente do Chile. Sem deixar de mencionar o papel
exercido pela Fundación Pensar, de Buenos Aires, incorporada pelo
PRO, partido do ex-presidente argentino Mauricio Macri; o Eléutera
Foundation, em Honduras; e, no Brasil, o Movimento Brasil Livre
(MBL), o Instituto Liberal e o Instituto Millenium.
Essas thinktanks, além de contribuirem para a criação de re-
des articuladoras latino americanas, como a Red Liberal de America
Latina (Relial), criada em 2004, e a Fundación Internacional para La
Libertad (FIL), fundada em 2002 e presidida por Mario Vargas Llosa,
intelectual e candidato à presidência do Peru em 1990, contribuírem
para a articulação dessas com organizações de direita na Europa,
como a alemã Friedrich Naumann Stiftung e a espanhola Fundación
para el Análisis y los Estudios Sociales (FAES), vinculada ao Partido
Popular da Espanha.
Mas as thinktanks não se apresentam de forma homogênea,
existem as que, ao invés da articulação, atuam de forma individual,
distante da política concreta, produzindo e popularizando a doutri-
na pura. Algumas destas se dedicam à guerra de ideias no campo
de orientações distintas, como o embate entre a Escola Austríaca
de Ludwig von Mises e o monetarismo da Escola de Chicago, sob
a influência de Friedrich Hayek. No entanto, ambas se convergem
em um objetivo comum: assegurar a ampliação das taxas de lucro e
da acumulação de capitais. Nesse sentido, convergem quando atri-
- 210 -
buem aos gastos infindáveis com aqueles considerados pelo marxis-
mo cultural como necessitados, perseguidos ou oprimidos, sendo estes
responsáveis por todos os males – colapsos econômicos, endivida-
mento público e fragilidades financeiras – de um Estado inchado e
regulador.
Outras, por sua vez, se dedicam à consultoria no campo das
políticas públicas e, ainda, existem aquelas que vão além das ativi-
dades intelectuais, como as que têm mobilizado segmentos em prol
da luta pela liberdade no Brasil, os mesmos que deflagraram a guerra
cultural contra os intelectuais de esquerda, como os Grupos afiliados
ao Atlas: Venha para a Rua (Vem Pra Rua / VPR); Estudantes pela Li-
berdade (EPL); e o Movimento Brasil Livre (MBL), todos participan-
tes da mobilização que levou milhões de pessoas às ruas em 2013.
Além dessas mobilizações no Brasil, ocorreram também: Oc-
cupy Wall Street, nos Estados Unidos, as realizadas pelos Indignados,
na Espanha, assim como outras realizadas mundo a fora. Elas trans-
formaram:
- 211 -
Nesse sentido, as novas tecnologias de informação e comuni-
cação, como é o caso das redes sociais, tem se constituído em impor-
tantes dispositivos para articulação de diversos atores políticos em
tornos de suas manifestações e reivindicações. E como expresso por
Sakamoto (2013, p. 234), as
- 212 -
E os impactos desse movimento, pouco a pouco, passam a
fazer parte da sociedade, alcançando desde as instituições, univer-
sidades e a grande mídia, até a militância política, além de se fazer
presente no discurso dos mais variados sujeitos. Tal propagação, no
entanto, ganha força por meio da utilização de bots, que são robôs
carregados por um tipo específico de programa computacional, que
realizam tarefas de forma autônoma a partir de algoritmos. Progra-
mados para executar uma série de funções, os bots nas redes sociais
são utilizados nos chats e para automatizar contas e perfis.
No cenário político – como registrado nas eleições presiden-
ciais dos EUA em 2016 – as contas controladas por robôs têm sido
usadas para promover engajamento político de usuários, fornecer
informações – muitas delas falsas – sobre temas de interesse público,
mas a partir de uma leitura particularista de quem as divulga. Nes-
se caso, os bots são usados para automatizar contas e perfis falsos,
como se fossem usuários comuns das redes sociais. Com tais carac-
terísticas essas contas e perfis são usados para alavancar conteúdos
e indivíduos de forma artificial e coordenada, estando programados
para seguir pessoas e até mesmo interagir em debates ou publicar e
curtir conteúdos.
Para além de perfis e contas automatizados, os bots são empre-
gados como instrumento de manipulação de movimentos políticos e
de radicalização de debates, produzindo entendimentos superficiais
sobre disputas e consensos para serem replicados em série. Assim,
conseguem criar a falsa impressão de que há uma enorme adesão a
determinado tema/posicionamento de interesse público. Com o uso
desses mecanismos para alavancar artificialmente a audiência, estes
têm sido utilizados massivamente em contextos eleitorais, principal-
mente, para disseminar processos de desinformação e manipulação
de opiniões, como tem ocorrido durante os pleitos eleitorais em di-
ferentes países.
De uma hora para outra, “[...] as redes sociais e inúmeros co-
municadores, guiados por teóricos da conspiração, [...]” se tornam
peças-chave na construção de “[...] uma narrativa capaz de fazer
ferver e depois direcionar [...] [um] caldeirão de emoções contra as
minorias, os políticos e as instituições democráticas. [...] marcas de
tempos loucos, violentos e doentios” (MANSO, 2020, p. 200).
Pautando a vida social a partir de seus interesses de classes,
reaquecem as ações bélicas e policialescas, investindo na despolitiza-
- 213 -
ção da vida pública, na intolerância, no extermínio, nos fundamen-
talismos e em paradigmas imperialistas garantidores da reprodução
ampliada do capital. Mobilizam partidos, movimentos e políticos
profissionais para disseminar seus ideais nas redes sociais, mediante
a propagação intencional e reiterada da mentira, e a naturalização
e banalização do ódio e da violência, com o uso abundante e recor-
rente de fakenews e de comunicações criminosas em massa, além do
aparelhamento dos órgãos de Estado.
- 214 -
dar maior robustez aos interesses do capital, de modo a consolidar,
de uma vez por todas, a guinada do pensamento conservador liberal
e a hegemonia norte-americana no cenário mundial. O fato é que
estamos diante de um cenário espetaculoso: se por um lado, a nova
direita procura se descolar dos contextos de ditaduras, por outro, por
meio de ameaças de ruptura, diretas e veladas, procura impor seu
modo de governo.
Para se opor, o caminho é não deixar de lado a luta de classes
e a organização política de atores comprometidos com a defesa do
acesso e alargamento dos direitos, na direção da emancipação hu-
mana, em contraposição à dominação ideológica e à exploração e
expropriação capitalista. O que requer uma forte confrontação social
e política, capaz de aglutinar forças populares ancoradas nas lutas e
resistências da classe trabalhadora, incorporando o conjunto dos mo-
vimentos sociais, dentre estes do movimento negro antirracista; das
comunidades indígenas e tradicionais; do movimento ambientalista
anticapitalista; e dos movimentos feministas e LGBTs; na luta con-
tra as múltiplas e reiteradas formas de exploração/opressão e domi-
nação. Sem, é claro, cair em ilusão de recuo das forças burguesas,
cujas concessões apenas são conferidas para aprofundar ainda mais
a nossa subalternidade. Logo, sem uma ruptura radical não há como
evitar o aprofundamento da barbárie.
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- 217 -
- 218 -
A APROPRIAÇÃO DO FUNDO PÚBLICO
PELO CAPITAL POR DENTRO DO SUS:
PARTICULARIDADES DE SUA EXPRESSÃO NO
ESTADO DE MATO GROSSO
Maria Salete Ribeiro1
Sandra Oliveira Teixeira2
INTRODUÇÃO
- 219 -
do fundo público para reprodução da força de trabalho é repassa-
da às instituições privadas. Uma delas pode ser ilustrada pelo SUS
matogrossense, gerido por meio das Organizações Sociais da Saúde
(OSS), objeto da pesquisa da tese denominada “Estado, Fundo Pú-
blico e Privatização da Política de Saúde em Mato Grosso”, em fase
de elaboração.
Apresentamos neste artigo alguns resultados de primeira
aproximação referente ao financiamento desse sistema, que na tra-
jetória de mais de 30 anos tem sido sucateado e constrangido pelo
subfinanciamento, enquanto se amplia a saúde como mercado ren-
tável ao capital.
A análise tem por base a crítica da economia política, fundo
público e política estadual de saúde, nesse estado, caracterizado por
grandes latifúndios agroexportadores, “o maior produtor de soja do
Brasil” (EMBRAPA, 2021), estruturado sob múltiplas formas de vio-
lência e expropriação (FARIA, et al. 2015). Isso posto, para cumprir
a determinação da inserção do país na divisão internacional do tra-
balho que mantém e amplia sua condição de dependência (LOPES,
2020).
Em tempos de fortalecimento das forças do capital, sob a or-
dem neoliberal, de extrema regressividade à classe trabalhadora, de
intensificação da exploração de classe, mais severa na periferia do
capital, onde se mantém e se intensifica a condição de dependência,
mas que atinge também os países centrais (FONTES, 2010), o debate
sobre o tema ganha relevância e, com esta expectativa, organizamos
este texto em duas seções. Na primeira parte, discute-se o “Estado,
fundo público e a política de saúde no contexto da hegemonia do
capital fictício”. Em seguida, abordam-se algumas formas de privati-
zação da política de saúde, ilustradas com dados da pesquisa e, final-
mente, as conclusões.
- 220 -
combinação de consenso e coerção, às demandas do trabalho, con-
forme Gramsci (1999; 2001), visto que se mantém como estrutura a
serviço do capital.
- 221 -
gual e combinado5, o Estado é a estrutura que assegura a manuten-
ção da dependência e subordinação aos países capitalistas centrais6.
Em razão disso, são adotados mecanismos de transferência do valor
produzido nos países dependentes aos centrais, desde seu passado
colonial, para o processo de acumulação de países imperialistas. Para
compensar tais transferências da parcela de mais valor, nestes países
recorre-se à superexploração da força de trabalho (MARINI, 1973;
AMARAL; CARCANHOLO, 2012), o que inclui particularidades
desta superexploração para mulheres e mulheres negras (MARINI,
1978; GONZALEZ, 1982). Além destas determinações estruturais,
há também, como alerta Carcanholo (2018), determinantes histó-
rico-conjunturais que trazem possibilidades e limites às economias
dependentes, como as disputas de classe em torno do fundo público
e de políticas sociais.
O Estado que na ordem capitalista liberal se reconfigurou para
salvar o sistema em colapso, na crise de 19297; agravada pelas duas
guerras mundiais, mas principalmente, porque o sistema estava sob
ameaça. Como afirma Iasi (2017, p. 76-77), “a chave explicativa foi
a Revolução Soviética de 1917”, quando o sistema se viu ameaçado
“com o levante dos de baixo”. Para impedir os avanços, sob a orien-
tação do Keynesianismo8 aliado ao modelo de produção fordista9,
5 O desenvolvimento desigual e combinado, no curso do capitalismo, teoria de Trotsky,
de acordo com Löwy (1995, p. 77), considera que o capitalismo, à medida que se torna
um sistema mundial, torna-se uma totalidade concreta, contraditória e exclui “a possi-
bilidade de uma repetição das formas de desenvolvimento de diversas nações”. [...] A
desigualdade do ritmo, que é a lei mais geral do processo histórico, manifesta-se com
o máximo de vigor e de complexidade nos destinos dos países atrasados. [...] Desta lei
universal da desigualdade dos ritmos decorre outra que Trotsky denominou de lei do
desenvolvimento combinado (MANDEL 1982; CARCANHOLO, 2013).
6 Kalmring e Nowak (2018) trazem alguns elementos acerca do impulso ilimitado de
acumulação do capital e suas implicações para a periferia: subordinação de colônias a
uma divisão do trabalho internacional desvantajosa, desigual em termos de comércio e
transferência de riqueza do feudalismo a expansão espacial do capital.
7 A Crise de 1929, numa leitura crítica marxista, deve ser entendida como produção
do próprio sistema. “[...] derivada das leis de movimento do capital (baseadas na lei
do valor), originadas no aumento da composição orgânica do capital nas condições de
reprodução ampliada, de onde surge a lei da queda tendencial da taxa de lucro (COG-
GIOLA, 2009, p.176).
8 Doutrina de J. Keynes, “revisão da teoria liberal com a intervenção do Estado na eco-
nomia sempre que necessário, a fim de evitar a retração econômica e garantir o pleno
emprego. [...] constatação da necessidade de regulação do processo de valorização do
capital – como condição para a redução da instabilidade e a atenuação dos ciclos e das
crises” (FILGUEIRAS e DRUCK, 2010, p. 2).
9 O Fordismo encerra um debate extenso, quando não polêmico, conforme Ferreira
(1991, p. 4-5), [...] para alguns, ele é aproximadamente sinônimo de taylorismo, produ-
- 222 -
emerge o Estado sob diferentes formas, a depender do contexto e da
correlação de forças entre as classes. Do New Deal estadunidense, as
ditaduras militares e civil-militares na América Latina, África e Ásia
(IASI, 2017, p. 77).
Foi no contexto após a Crise de 1929, que o fundo público,
como argumenta Oliveira (1998, p. 19-20), “passou a ser pressuposto
do financiamento da acumulação de capital de um lado, e, de outro,
do financiamento da reprodução do trabalho, atingindo globalmente
toda a população, por meio dos gastos sociais” e tornou-se elemento
estrutural na acumulação do capital. Não como antivalor, mas como
condição fundamental no processo de valorização (BEHRING,
2017), envolvendo toda a sua capacidade de mobilização de recur-
sos para intervir na economia, seja por meio das empresas públicas,
pelo uso das suas políticas monetária e fiscal, como pelo orçamento
público (SALVADOR, 2012, p. 7), este, compósito do mais valor (tra-
balho excedente) e, sobretudo, de trabalho necessário, consideran-
do a regressividade da carga tributária brasileira (BEHRING, 2017;
SALVADOR, 2010). Com isso,
- 223 -
capitalista; as decisões político-econômicas de distintos governos
neoliberais e o avanço do conservadorismo aprofundaram a condi-
ção de dependência do Brasil (CARCANHOLO, 2018; BARROCO,
2010). E uma das particularidades dessa crise reside no aprofunda-
mento da lógica de valorização do capital fictício (CARCANHOLO,
2010).
Neste contexto, apresentado de modo breve, diversas frações
da classe trabalhadora na luta por direitos sociais e, com isso, no
acesso à parcela do fundo público, lidam com sucessivas derrotas.
Em síntese, observa-se monetarização/financeirização de políticas
sociais; vilanização e mercantilização/privatização da seguridade
social; focalização de políticas sociais; contrarreformas nos direitos
sociais (GRANEMANN; 2007; SALVADOR, 2010; BEHRING, 2008;
VIANNA, 2010; BOSCHETTI, 2016).
Mendes e Marques (2009), em acordo com as produções que
vimos dialogando, observam que a financeirização do capital e de
expansão da sua forma fictícia, conjuntamente com a reconfiguração
do Estado que se amplia para manter a ordem capitalista, são deter-
minantes no subfinanciamento crônico do SUS desde sua criação.
Alguns elementos histórico-conjunturais têm contribuído neste sub-
financiamento: morosidade e descaracterização do regulamento de
vinculação orçamentária para política de saúde (PIOLA et al., 2013);
não instituição do orçamento de Seguridade Social (GUARDIA,
1997; SALVADOR, 2010); apropriação do fundo público pelo capital
portador de juros e pelo capital fictício como elemento de desmonte
do financiamento da seguridade social e de valorização do capital
(SALVADOR, 2010; 2018; MENDES, 2015); renúncias tributárias
sobre contribuições sociais (SALVADOR, 2014; MENDES, 2015); in-
centivos públicos ao mercado de plano de saúde (OCKÉ-REIS et al.
2006); financiamento para fortalecer o complexo industrial da saúde
por intermédio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social (BNDES) (SANTOS, et al., 2013); o padrão de ajuste fiscal
permanente (BEHRING, 2019), com o uso de mecanismos (desvin-
culação de receitas, superávit primário, responsabilidade fiscal) de
da apropriação sobre a da produção de valor: “toda a conexão com o processo real de
valorização do capital se perde assim até o último vestígio, e a concepção do capital como
autômato que se valoriza por si mesmo se consolida” (Marx, 1988, v. 5). Essa autonomi-
zação da lógica da apropriação é, no entanto, meramente relativa. A cobrança da impos-
sibilidade de autonomização absoluta é feita, justamente, pelas crises (CARCANHOLO,
2010, p. 5-6; CARCANHOLO, 2009).
- 224 -
subtração de recursos da seguridade social (SALVADOR, 2010) e
constrangimentos de contas públicas nos estados e municípios; a au-
torização de exploração do capital estrangeiro nos serviços de saúde.
Acrescenta-se, ainda, medidas de ajuste fiscal: a ampliação do
tempo de vigência e do percentual da Desvinculação de Receitas da
União e sua extensão para estados e municípios e a instituição do
chamado “Novo Regime Fiscal”, que instituiu limite para as despesas
primárias por um período de 20 anos, mas não restringiu gastos com
juros e outras despesas financeiras. Com as mudanças na base de
cálculo do financiamento federal da saúde (IPEA, 2021; FIOCRUZ,
2019; MENDES; CARNUT; GUERRA, 2018), o SUS passado “sub-
financiamento crônico” (MARQUES, 2017; MARQUES e MENDES
2005) para o desfinanciamento (MENEZES, et al. 2019). A redução
de seus recursos, entre 2018 e 2019, foi na ordem de R$ 17,6 bilhões
(SANTOS e FUNCIA, 2020).
Por fim, esse cenário acompanha e reforça a saúde como mer-
cadoria, mediante incentivos diretos e indiretos do fundo público,
como destacado anteriormente, mas quem vem da década de 1960,
com a formação do complexo médico-empresarial, fase de expansão
do capital no país (CORDEIRO, 1980). Também se vê a descaracte-
rização da atenção primária, que passa a cumprir as recomendações
dos organismos internacionais para países periféricos como o Brasil,
transformando-se em “cesta básica para os pobres”. Na continuidade,
apontamos algumas expressões da privatização por dentro do SUS
em Mato Grosso (MT).
- 225 -
nificadas, fazendo parte de cadeias produtivas competitivas no mer-
cado de commodities mundiais (CARVALHO, 2013). Essa inserção
violenta e desigual, no curso da modernização, reflete as desigualda-
des estruturais, onde 44% da população vivem hoje em situação de
miséria (CIRCUITO MATO GROSSO, 2016). Contraditoriamente,
o celeiro do agronegócio torna o Estado o maior produtor nacional
de grãos, com uma participação de 26,9% no PIB nacional e como
maior consumidor nacional de agrotóxico (19% do usado no Bra-
sil). Esse modelo de agricultura ignora os desgastes dos recursos
naturais, tornando as práticas agrícolas poluidoras e degradadoras,
porém, mais lucrativas em curto prazo (PIGNATI, et al. 2007) e da-
nosas à saúde humana e ao meio ambiente.
O SUS em Mato Grosso está organizado em 16 regionais de
saúde, onde coexistem enormes desigualdades na capacidade ins-
talada e nos investimentos públicos e privados, entre as regiões do
agronegócio e as de baixo dinamismo econômico. A cobertura de
atenção básica à saúde está em torno de 75%, excetuando-se duas
regiões com cobertura de 50%. A atenção de alta complexidade é
concentrada na capital Cuiabá. A Rede de Urgência e Emergência
do SUS no Estado é formada por 101 unidades hospitalares, sendo
57 (cinquenta e sete) municipais, 8 (oito) estaduais, 1 (um) federal
e 35 (trinta e cinco) unidades privadas/conveniadas (CNES-DATA-
SUS, 2018). O modelo assistencial é o biomédico centrado na clínica
médica, na assistência à saúde atrelada aos níveis de especialidades,
apoio diagnóstico e terapêutico, gerando estrangulamento dos servi-
ços de saúde, retratada pela longa fila de espera (PEEPS-MT, 2019).
A análise do orçamento da Secretaria de Estado de Saúde de
MT, por subfunção, apenas ações finalísticas, conforme expresso no
Gráfico 1, mostra a redução ou estagnação dos recursos em todas
as subfunções, com exceção da subfunção “assistência hospitalar e
ambulatorial”, que aumentou em 42,42%, entre 2008 e 2018, passan-
do de R$ 605,8 milhões para R$ 862,8 milhões, tendo alcançado R$
1,186 bilhão em 2015.
Na modalidade fundo a fundo, os repasses do Estado aos mu-
nicípios para o cofinanciamento da Atenção Primária à Saúde (APS),
teve redução de 1,27% no período. Entre 2013 e 2017 teve oscilação
drástica nos valores liquidados, com destaque para 2014 e 2015, com
valores menores que R$ 50 milhões. Importante destacar que em 28
- 226 -
de dezembro de 2012, através da Lei n.º 9.870, o governador Silval
Barbosa reduziu em 50% os recursos do cofinanciamento da APS, e
só retornaram no governo Pedro Taques, regulamentado pela Porta-
ria n.º 107/2016/GBSES, de 23 de maio de 2016.
A análise no conjunto das subfunções finalísticas evidencia
que não houve ampliação significativa dos recursos para a saúde, e
sim uma priorização na atenção de média e alta complexidade, mer-
cado mais rentável ao capital.
- 227 -
mecanismo da venda típica, mas envolvem também no plano dos
argumentos uma afirmação de que tais mecanismos operarão como
mais e não menos Estado” (GRANEMANN, 2011, p. 54).
Tratam-se dos “novos modelos de gestão” do SUS, efetuados
através dos contratos de gestão e parcerias, mediante transferências
de recursos públicos para: Organizações da Sociedade Civil de Inte-
resse Público (OSCIP); Fundações Estatais de Direito Privado; Em-
presa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH e Organizações
Sociais da Saúde (OSS). As unidades federativas passaram a trans-
ferir serviços de saúde a entidades terceirizadas, tais como coope-
rativas, associações, entidades filantrópicas sem fins lucrativos (ou
com fins lucrativos) etc., qualificadas como OSS. A legislação que
cria e regulamenta as OSS permite que estas contratem funcionários
sem concurso público; que adquiram bens e serviços sem processo
licitatório e, ainda, sem a necessidade de prestar contas a órgãos de
controle internos e externos da administração pública, pois estas são
consideradas “atribuições privativas do Conselho de Administração
da OSS” (REZENDE, 2008). Como veremos a seguir, sob os auspí-
cios do gerencialismo, tais mecanismos possibilitam a transferência
de recursos da política de saúde diretamente para entidades priva-
das, cujas margens de lucro aumentam ainda mais mediante práticas
de corrupção e clientelismo.
Ao analisar o orçamento da Secretaria de Estado de Saúde,
no período delimitado à pesquisa 2008-2018, constatou-se o aumen-
to expressivo das despesas executadas na modalidade de aplicação
50 – Transferência a instituições privadas sem fins lucrativos, onde
também se inclui as OSSs e redução dos repasses fundo a fundo às
municipais. Essa redução ocorreu a partir de 2011 até 2016 (ATAS de
reuniões da CIB 2011-2012). A transferência para instituições priva-
das sem fins lucrativos, que foi de R$ 103,2 milhões em 2008, alcan-
çou R$ 587,0 milhões no ano de 2015. Com a ruptura dos contratos
com as OSSs a partir de 2018, se eleva os repasses fundo a fundo,
sendo importante ressaltar que nenhum dos hospitais do Estado dei-
xou de funcionar. Ao contrário, em 2019 foi estadualizado mais um,
o Hospital Santa Casa, sediado em Cuiabá.
- 228 -
Gráfico 2. Execução orçamentária da Secretaria de Estado de Saúde, por
Modalidade de Aplicação das despesas referentes à Sub-Função 302 - Am-
bulatorial e Hospitalar, período de 2008 a 2018, valor liquidado, todas as
fontes. Valores atualizados até julho de 2021 pelo IGP-DI/FGV.
- 229 -
viços, a trabalhar diuturnamente dentro de um hospital habilitado
em média complexidade com 52 leitos. Esta realidade se estende aos
demais hospitais geridos pelas OSSs, agravada pela falta de controle,
- 230 -
com o sistema do capital. Como afirma Mészáros (2011, p. 25-26),
[...] não importa quão corruptas possam ser tais práticas, elas estão
plenamente em sintonia com os contra-valores institucionalizados
da ordem estabelecida [...]. Considerando o período da pesquisa, po-
dem-se ilustrar tais práticas nos governos Blairo Maggi (2003-2010)
e Silval Barbosa (2010-2015). Maggi inaugurou a onda de expansão
das privatizações, que na área da saúde ficaram em “stand by” no
governo anterior, Dante de Oliveira (1995-2002), que desencadeou
as contrarreformas do Estado em Mato Grosso, alinhado com o Go-
verno de Fernando Henrique Cardoso (FHC).
Dentre os subsídios estatais ao capital, vimos a ampliação
das renúncias fiscais, como ocorreu no regime militar, em 2003, no
governo Blairo Maggi, considerado o maior plantador de soja do
mundo, quando foi aprovado o Plano de Desenvolvimento de Mato
Grosso, Lei n.º 7.958, constando concessão de incentivos fiscais e ele-
vando o patamar de projeção de renúncia fiscal em 2003, conforme
Leis de Diretrizes Orçamentárias – LDOs, de aproximadamente R$
42 milhões para a projeção em 2019 de R$ 3,8 bilhões, concedidos
a diversos segmentos econômicos, inclusive às empresas do Grupo
Maggi. Investigações posteriores e depoimentos de governadores
apontaram o uso desta legislação para atos de corrupção (SILVA,
2020, p.158-159).
No governo Maggi, foram compradas três unidades hospi-
talares sucatas e nenhuma delas foi colocada em funcionamento
(RIBEIRO, 2011, p. 4). Também nessa gestão se regulamentaram as
OSSs, Lei Complementar n.º 150, de 08 de janeiro de 2004, e fo-
ram inauguradas as operações com as OSSs, com a transferência de
toda a assistência farmacêutica do Estado. Contrato esse denuncia-
do pelo Ministério Público por ausência de licitação e superfatura-
mento (OLHAR JURÍDICO, 2021). As OSSs só passaram a gerir os
hospitais de execução direta no nível estadual durante governo
Silval Barbosa, com adoção de forte discurso anti-SUS, como
pode ser constatado a seguir:
- 231 -
de tecnologias, descompasso na evolução tecnológica em relação ao
setor privado, perca da competitividade; 4) Irregularidades sanitá-
rias graves, incapacidade de faturamento, falta de protocolos e pro-
cessos padrão [...]. (Conselho Estadual de Saúde, Ata de reunião, 16
mar. 2011, p. 03-04).
- 232 -
[...] a desorganização da SES-MT era tanta, que há relatos de diversos
pagamentos de fornecedores em duplicidades; valores retidos/
congelados (fixo) para desconto em folha de pagamento (referentes
ao quadro de pessoal, cedidos pela SES-MT); valores repassados na
íntegra, quando deveriam ser descontados os valores referentes ao
quadro de pessoal, cedidos pela SES-MT; lançamentos no FIPLAN
com históricos de fornecedores inexistentes [...]. A SES-MT não
fiscaliza, [...] não analisa a veracidade dos serviços cobrados, se fo-
ram realizados, se houve os procedimentos médicos, se não houve
maquiagem nos números, se as metas pactuadas foram cumpridas,
simplesmente pagam ou dão o famoso calote [...].
- 233 -
de pelo SUS, num Estado de profundas desigualdades que incidem
diretamente na condição de (não) saúde da população.
A defesa do SUS como política pública de Estado, gestor di-
reto do SUS e demais políticas sociais universais, se faz sem a ilusão
de que possam causar rachaduras nessa ordem societária que tem no
Estado a sua construção mais universal, contraditoriamente, é arena
das lutas de classe e é possível e necessário resistir ao capital para
vislumbrar uma sociedade emancipada (CISLAGHI, 2015). [...] A
humanidade e a existência estão ameaçadas pela continuidade in-
definida da ordem do capital [...] o que falta é a entrada em cena de
uma classe social que se encontra calada e sequestrada por um pro-
jeto que não é seu (IASI, 2017, p. 83) e que não entrará sem saúde e
não terá saúde na sua forma mercantilizada.
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- 240 -
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE GÊNERO
NA SOCIABILIDADE DO CAPITAL1
Qelli Viviane Dias Rocha2
Sandra Oliveira Teixeira3
TEMPO DE SILÊNCIO
“O silêncio dos pobres não vem apenas da clausura cultural em que
vivem. Vem também da usurpação da palavra, do querer e do es-
perar por parte daqueles que, ao pretenderem generosamente ser
solidários, acabam impondo-lhes um novo e mais grave silêncio, o
da fala postiça e inautêntica, anônima.” (MARTINS, 2000, p. 69).
- 241 -
Para expor em termos ontológicos, as categorias específicas do Ser
Social, o seu desenvolvimento a partir das formas de ser precedentes,
sua articulação com estas, sua fundamentação nelas, sua distinção em
relação a elas, é preciso começar pela análise do trabalho. É claro que
não se deve esquecer que, qualquer grau do ser, no seu conjunto e
nos seus detalhes, tem um caráter de complexo, isto é, que as suas
categorias, até mesmo as mais centrais e determinantes, só podem ser
compreendidas adequadamente no interior e a partir da constituição
complexa do nível de ser de que se trata. E é suficiente um olhar muito
superficial ao ser social para perceber a inextricável imbricação em
que se encontram suas categorias decisivas como o trabalho, a lingua-
gem, a cooperação e a divisão do trabalho e para perceber que aí sur-
gem novas relações da consciência com a realidade e, em decorrência,
consigo mesma, etc. (LUKÁCS, 2010a, online).
- 242 -
De acordo com os autores, com a reestruturação reprodutiva
(formas mais desregulamentadas de trabalho), reduziu-se o conjun-
to de trabalhadores estáveis e os empregos formais, decorrendo disto
uma redução do trabalhador tradicional (fabril, manual). No mesmo
bojo, mais em contratendência, há aumento do novo proletariado
que se caracteriza pelos empregados temporários, terceirizados e
subcontratados, o que se torna ainda mais aviltante no Brasil, país
com histórica inserção subordinada na divisão internacional do tra-
balho e suas particularidades na exploração generificada e racializa-
da da força de trabalho.
As recentes e recorrentes contrarreformas nos direitos traba-
lhistas e previdenciários, aprofundamento do ajuste fiscal e o avanço
do conservadorismo tem deteriorado às condições de vida dos tra-
balhadores e, de forma mais dura, das trabalhadoras.
De acordo com o DIEESE sobre a PEC 287/2020;
- 243 -
do nosso tempo aos cuidados e afazeres domésticos. Mesmo entre
nós mulheres, há grandes desigualdades em torno dos rendimentos
recebidos em razão da dupla discriminação no mercado de trabalho
sofrida pelas mulheres negras. O rendimento médio das mulheres
brancas é 70,5% maior do que o das mulheres negras, e 67,3% maior
do que o recebido pelas mulheres pardas.
- 244 -
cessária acuidade da apreensão dos complexos sociais ( família, es-
tado, aparato jurídico, político, sindical, educacional dentre outros),
na desnaturalização do que é Ser Mulher (gênero feminino) do pro-
cesso de reprodução biológica, a qual para além do aspecto natural é
um ato econômico e social.
Lessa ao tomar como referência os Estudos de Engels (1979)
em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, afir-
ma que são as especificidades das características da “sociedade pri-
mitiva” que levam o homem a desenvolver sua sociabilidade, pois
naquela época se não se unissem para “[...] potencializar sua força
individual na concorrência com outros animais, os homens (indiví-
duos “racionais”) seriam predados.”
São as transformações no mundo da produção, quer dizer, na
maneira como se produz o necessário para sobrevivência, que são
criadas, gestadas e transformadas as relações sociais, inclusive as de
gênero. Homens e mulheres nascem com características físicas e bio-
lógicas diferentes, mas são por meio dos processos de socialização
que estas diferenças se tornam desigualdades.
É, portanto, com o processo de complexificação do trabalho,
ou seja, de seu desenvolvimento, que também os processos de
sociabilidade se complexificarão. Em autores como Engels (1979), que
tomaram como ponto de partida Marx, passando pela interpretação
na contemporaneidade de autores que também o tiveram como
referência, como Paulo Netto (2011) verifica-se que, antes mesmo do
processo de trabalho criar excedente, se desenvolveu nas “comunida-
des primitivas” a diferenciação entre atividades de homens e de mu-
lheres (a primeira divisão do trabalho é a divisão sexual). Portanto, é
posterior a essa divisão, a divisão “social” do trabalho entre trabalho
artesanal e as ocupações agrícolas, entre a divisão e dicotomização
da cidade e do campo e “[...] na grande clivagem entre atividade ma-
nual e atividade intelectual” (PAULO NETTO, 2011, p. 57).
Em “A Reprodução: Problemas Gerais da Reprodução”, Lu-
kács chama a atenção para alguns complexos sociais fundamentais
no processo de complexificação do trabalho e da sociedade capita-
lista. Aqui se destaca a comunicação/linguagem. Para o autor, “[...]
à medida que progridem o trabalho, a divisão do trabalho e a coo-
peração, simultaneamente, a fala deve se elevar a níveis superiores.
Deve-se fazer sempre mais rica, flexível, diferenciada, etc., a fim de
- 245 -
que novos objetos e conexões possam se tornar comunicáveis” (LU-
KÁCS, 2010b).
Evidencia-se com isto que a comunicação é uma mediação
requerida pela divisão do trabalho, pois quanto mais crescente o do-
mínio do homem sobre a natureza, mas crescente é sua “vontade/
necessidade” de nomear as pessoas, coisas e relações. De acordo com
Lukács, esta necessidade advém da própria correlação entre os com-
plexos sociais.
Lukács, retomando Engels, destaca que o lugar das mulheres
na vida social depende do fato de que o aumento da riqueza atribua
funções econômicas ao homem, ou seja, com o advento da sociedade
capitalista o patriarcalismo, através do estabelecimento do casamen-
to monogâmico, se fortalece constituindo como norma social. Isto
é verificado, de acordo com Lukács (1979b) com as mais recentes
pesquisas etnográficas: “[...] as formas de relação biológica tão ele-
mentar como a sexual são, em última análise, determinadas pela es-
trutura social que se tem no respectivo estágio da reprodução.”
Para Branca Moreira Alves (1980, p. 38), a opressão da mu-
lher não tem origem na sociedade de classe, mas assume, através das
sucessivas transformações no mundo do trabalho, novas caracterís-
ticas, as quais com o advento da sociedade capitalista se enraízam.
Para a autora, a sociedade capitalista se apropria da função reprodu-
tora (feminina) e manipula as relações de gênero. “A necessidade de
garantir a primazia e segurança da paternidade levou o sexo femini-
no ao julgo secular.”
Neste processo de divisão e diferenciação entre trabalho (di-
visão sexual do trabalho), de modo geral, aos homens se destina o
trabalho externo e fora do lar e, às mulheres, os afazeres domésticos,
atribuindo ao homem, o espaço público (valorizado) e, à mulher, o
espaço privado (desvalorizado e/ou espaço banal, onde se forjam os
processos de naturalização da opressão de um gênero/masculino em
detrimento do outro/feminino). Mas há particularidades, visto que,
por exemplo, as mulheres negras sempre trabalharam fora de casa
(GONZALEZ, 1982; DAVIS, 2016).
Como no processo de desenvolvimento da sociedade capi-
talista os complexos sociais como a fala, educação e leis cumprem
papel fundamental, é a partir da dicotomização da vida que estes
complexos se constituem como bases que forjam e conformam a
- 246 -
afirmação/negação; identidade/ alteridade; naturalização/ banali-
zação; que permeiam a vida, as relações de produção e reprodução
sociais. É por meio destas estruturas firmadas e forjadas pelo capita-
lismo que os valores surgem.
Em relação à análise das relações de gênero, partindo da cons-
tituição e consolidação da sociedade capitalista burguesa é possível
verificar que a institucionalização do casamento monogâmico tratou
de disciplinar a mulher por meio da dicotomização público x priva-
do. Esta dicotomização estabeleceu espaços, papéis, formas de atua-
ção e participação dos gêneros (feminino e masculino).
Com a divisão social do trabalho, esta dicotomização (públi-
co x privado) passou a ser necessária para que os corpos, tanto de
homens quanto de mulheres, fossem modelados para responderem
às necessidades do mercado (modo de produção capitalista), isto é,
“[...] criar relações puramente sociais em que, através da capacidade
teleológica, fosse suscitada nas outras pessoas a vontade de operar
determinadas posições teleológicas” (LUKÁCS, online, grifo nosso).
Assim, os postos de trabalho, cujas atividades de concepção eram
intensas e respondiam imediatamente às demandas do capital, fo-
ram atribuídos predominantemente aos homens e, aqueles de maior
trabalho intensivo, frequentemente com menores níveis de qualifi-
cação, foram preferencialmente destinados às mulheres. Assim, aos
homens foram “oferecidas” as possibilidades de desenvolverem cer-
tas capacidades teleológicas que não foram oferecidas às mulheres.
TEMPOS DE PERGUNTAS
- 247 -
regras, delimitando qual papel cabe ao homem e qual à mulher. De
acordo com Saffioti (1987), “[...] a socialização dos filhos, por exem-
plo, constitui tarefa tradicionalmente atribuída às mulheres.” Esta
tarefa, além de atribuída às mulheres, exige que estas ratifiquem,
mesmo que simbolicamente, a dicotomização dos papéis. Assim,
desde criança são atribuídos símbolos distintos ao homem e a mu-
lher. Exemplo disso é a utilização de uma ideologia que determina
quais as cores são destinadas a cada criança: o azul para o menino e
o rosa para a menina. Meninos devem brincar de bola e carrinho, as
meninas de boneca e casinha, atribuindo, assim, características de
fragilidade e cuidadora às meninas e de força, proteção e responsa-
bilidade aos meninos.
Cabe destacar que estes papéis são transmitidos de geração
em geração de modo velado. Desta forma, a menina que antes cuida-
va apenas das bonecas, tem agora enquanto mulher, a responsabili-
dade do cuidado dos filhos atribuída tradicionalmente como função
sua e, quando há necessidade de delegar esse cuidado a outros para
poder, por exemplo, desempenhar trabalho remunerado fora do lar,
seja para a manutenção da casa e da família ou como complemento
do salário do marido, essa função é atribuída à outra mulher.
De acordo com Saffioti (1987), nas classes dominantes, tam-
bém a mulher não está isenta da educação dos filhos, podendo até
desfrutar da ociosidade do trabalho manual, desde que atribua o cui-
dado dos filhos às suas serviçais, deixando claro que é apenas o cui-
dado, e não a educação dos filhos, que é transferida a outras pessoas.
Portanto, os papéis atribuídos às mulheres não são apenas
diferentes dos atribuídos aos homens, mas também desvalorizados,
sendo as mulheres vistas como inferiores e em condição de subordi-
nação em relação aos homens.
Para Saffioti (1987), a vida da mulher varia segundo a classe
social em que esta se insere, pois cada uma vive a vida cotidiana de
forma diferenciada. Enquanto algumas trabalham oito horas por dia
fora de suas casas e mais quatro em serviços domésticos (dentro de
seus lares), como é o caso das trabalhadoras operárias ou das que
trabalham no campo, outras, as mulheres da classe dominante, têm
a sua disposição, serviçais que fazem todo o trabalho doméstico em
suas residências. Essa, a mulher burguesa, tem como função apenas
a supervisão do trabalho das empregadas contratadas e a educação
dos filhos. Para Saffioti (1987, p. 9):
- 248 -
[...] a mulher é socialmente responsável pela manutenção da or-
dem na residência e pela criação e educação dos filhos. Assim, por
maiores que sejam as diferenças de renda encontradas no seio do
contingente feminino, permanece esta identidade básica entre todas
as mulheres.
Destarte, verifica-se que a sociedade investe muito na natura-
lização deste processo. Este processo de “domesticação” (naturaliza-
ção e engessamento da ocupação do espaço privado/lar) pela mulher
contribuiu e ainda hoje contribui para que esta não desenvolva ou-
tras potências e capacidades, por exemplo, na ocupação do espaço
político (público).
De acordo com Avelar (2001), as mulheres são um ótimo
exemplo do longo caminho a ser percorrer na luta pela extensão real
dos direitos sociais. Entretanto, a dicotomização entre Estado e a so-
ciedade civil4 é intrínseca à ordem burguesa, que sempre tratou de
criar barreiras à constituição das mulheres enquanto categoria so-
cial. Estas barreiras impulsionaram a dicotomização entre homens
e mulheres e escamoteou a identidade de classe. Desta forma, a luta
pela participação política (feminina) sempre se deu à custa destas
(mulheres) se colocarem publicamente, ainda que sozinhas. Assim,
para que as políticas de “igualação” (AVELAR, 2001) tivessem início
foi preciso que muitas mulheres, grupos, associações e movimentos
sociais das quais elas faziam parte, colocassem em suas agendas as
demandas específicas das mulheres. Exemplo disto foram os movi-
mentos de luta por creches, carestia, a participação das mulheres nos
movimentos de saúde, educação, moradia e direitos humanos. Estes
constituem um marco importante deste processo.
Estes processos tendem a desconstruir a naturalização que en-
gessa e ratifica a subordinação feminina. Para Saffioti (1987, p. 9):
Há sociedades nas quais as mulheres não interrompem suas ativi-
dades extralar, inclusive a função da caça, quando tem um filho. Há
tribos indígenas brasileiras cujas mulheres, em seguida do parto,
banham-se nas águas de um rio e retomam imediatamente sua la-
buta. Nestas tribos, cabe ao pai fazer repouso e observar uma dieta
alimentar especial. Este costume chama-se couvade. Esta prática
revela que o próprio parto, quase sempre entendido apenas enquan-
to função natural, assume feições sociais diferentes no espaço e no
tempo. Ou seja, cada sociedade elabora distintos significados para
os mesmos fenômenos naturais.
4 MARX (1997); GRAMSCI (1991).
- 249 -
Ao descrever papéis naturalmente femininos e naturalmente
masculinos, a ideologia patriarcal capitalista cumpre umas de suas
mais importantes finalidades: a de mascarar a realidade. “Dada à
desvalorização do espaço doméstico, os poderosos têm interesse em
restaurar a crença de que este papel sempre foi desempenhado por
mulheres.” (SAFFIOTI, 1987, p.11, grifo nosso). Para essa ideologia,
que divide a sociedade entre fortes e fracos, dominantes e domina-
dos, é extremamente necessário legitimar a “superioridade” de pou-
cos e a “inferioridade” de muitos, ressaltando que isto não se passa
apenas com as mulheres, mas com outras categorias sociais discri-
minadas, como os negros, índios, homossexuais, donde decorrem
movimentos sociais, que visam o resgate da memória, destes con-
tingentes humanos que ajudam a fazer história. (SAFFIOTI, 1987).
Saffioti (1987, p. 11, grifo do autor), afirma:
- 250 -
De acordo com o autor, esta significação se dá por meio da
relação que cada indivíduo desenvolve a partir do concreto que, ini-
cialmente, se lhe apresenta de modo velado – mascarado, pois este é
um mundo simbólico com o qual organiza sua experiência pessoal
passando, por meio desta, a construir articulações e referências do
mundo e de si próprio.
Para Silva (2000), inicialmente parece ser fácil definir identi-
dade, uma vez que se torna o que se é: “sou mulher”, “sou negra”, “sou
lésbica”. Para o autor, a identidade assim concebida se caracteriza por
uma positividade, uma característica independente, um fato autôno-
mo. Seguindo o mesmo raciocínio, aponta Silva (2000), também a
diferença é concebida como entidade independente, passando a ser o
que não sou, ou seja, passa a ser o que o Outro é: “ela é branca”, “ela é
heterossexual”, “ela é mulher”. Assim como na identidade, a diferen-
ça é concebida como algo que remete a si própria. “A diferença, tal
como a identidade, simplesmente existe.”
Destarte, Tomaz Tadeu Silva (2000, grifo nosso) aponta que
identidade e diferença estão em uma relação estreita de dependên-
cia. A forma como expressa-se a identidade tende a esconder esta
relação. Assim, quando se diz “sou mulher”, faz-se referência a uma
identidade que se esgota em si mesma. Entretanto, o autor chama
atenção para o fato de que só é necessária esta afirmação porque
existem outros seres humanos (homens) que não são mulheres: “[...]
em um mundo imaginário totalmente homogêneo, no qual todas as
pessoas partilhassem a mesma identidade, as afirmações de identi-
dade não fariam sentido.”
A diferença de identidade só fora estabelecida porque, ao
invés de se desenvolver no gênero humano sua generalidade, de-
senvolve-se nele a unicidade/individualidade que, para Lessa, só foi
possível por meio do desenvolvimento da sociedade capitalista que
complexificou as relações de produção e reprodução da vida social.
Neste sentido:
- 251 -
a vida genérica não pode ser um portador adequado das necessi-
dades e possibilidades dos indivíduos que a compõem, torna-se de
tal modo repulsiva às individualidades que não resta a estas senão
buscar a proteção do isolamento. Todavia, isoladas do gênero, as
individualidades não apenas não podem construir suas identidades
a partir de seu pleno desenvolvimento e das humanamente ricas ob-
jetivações que tal desenvolvimento possibilita – mas, ainda mais mi-
seravelmente, apenas podem se constituir a partir dos gravíssimos
problemas de uma individualidade antinômica ao gênero. Ser hu-
mano, por isso, torna-se cada vez mais difícil. (LESSA, 2004, p. 7-8).
- 252 -
(1991) aponta que há no movimento feminista um recorte em
relação aos movimentos de mulheres, a autora afirma que o
movimento feminista seria inscrito por mulheres das classes
médias e burguesas e o movimento de mulheres inscrito por
mulheres trabalhadoras, cujas reivindicações eram socioeco-
nômicas e, neste sentido, estas remeteriam à situação estrutu-
ral das mulheres e aquelas (movimento feministas) à situação
conjuntural e/ou superestrutural das mulheres. Assim, o que
se questiona é: qual identidade de gênero da mulher? Ou quais
identidades de gênero das mulheres?
A sociedade tem atribuído historicamente e de modo
determinado o que é ser mulher, assim como o que é ser ho-
mem. Neste sentido, tem delimitado espaços, corpos, formas
de ser, agir, de se comportar e de pensar. Mead (apud Toledo)
diz que os papéis sexuais em diversas culturas não são estabe-
lecidos pela natureza, mas sim pela cultura, costumes, práticas
cotidianas dos povos e, sobretudo, pelas necessidades econô-
micas de sobrevivência.
Identidade e diferença, de acordo com Silva (2000), não são
criaturas do mundo natural ou transcendental, mas do mundo real e
concreto e, neste sentido, fabricadas no contexto de relações econô-
micas e sociais. É esta “fabricação” de identidades não só diferentes,
mas dicotomizadas e bipolares, que estabelece as relações entre ho-
mens e mulheres.
A delimitação de espaços, formas de ser, agir e estar no mun-
do de modo bipolar demonstra que a construção da identidade a
partir da diferença é uma relação social que está sujeita a vetores de
força e de poder. As identidades sociais tanto dos homens, quanto
das mulheres, não são simplesmente definidas, são construídas por
meio de uma imposição hierárquica. Esta imposição não se dá de
modo “harmonioso”, ao contrário, se dá através de disputas confli-
tuosas.
Essa disputa envolve aspectos simbólicos e materiais da so-
ciedade. De acordo com Tomaz Tadeu Silva (2000, grifo nosso), “[...]
a afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o
desejo de diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de
garantir o acesso privilegiado aos bens sociais.”
Esta diferenciação também tem por base demarcações de va-
lores (bom – mal; belo – feio, dentre outros). Como é a ideologia
- 253 -
burguesa quem estabelece esses parâmetros valorativos também por
meio dos aparelhos do Estado, é ela, que no processo de socialização,
faz com que sua cultura seja estabelecida, de modo que o indivíduo
internalize o real conforme este o é revelado ideologicamente. Neste
sentido, como aponta Lessa, esta diferenciação resulta na alienação
proveniente da construção de individualidades isoladas e, este iso-
lamento, faz com que o comportamento humano seja nômade, ca-
racterística da sociedade globalizada que, paradoxalmente na vida
cotidiana, impõe a experiência de existir se não em uma malha de
interações com todos os seres humanos.
4 – LEVANTA-NOS DO CHÃO
- 254 -
Assim, se as mulheres compõem uma categoria social no
contexto da sociedade capitalista burguesa atual, suas identidades ou
identidades correspondem no momento atual à identidade binária
que as colocam diante das relações com os homens de modo polari-
zado.
A força de trabalho é, segundo Lessa (2004), característica
individual e, ao mesmo tempo, genérica, pois é por meio das ne-
cessidades geradas, síntese das determinações mais pessoais, que a
força de trabalho, não existindo quanto expressão individual, está
imediatamente conectada ao desenvolvimento das ferramentas, for-
mas de energia, capacidade de produção de matérias-primas, etc. A
força de trabalho convertida em mercadoria especial em razão de
sua condição de ser fonte valor para o capitalismo tem transforma-
do a relação típica de cada indivíduo com o gênero em potencial de
exponenciar o lucro.
Paul Valéry (2002), em seu Discurso sobre a Estética, faz uma
análise interessante ao criticar a soberania do “belo ideal”. Neste dis-
curso, aponta para a necessidade de se utilizar uma análise dialética
em relação à arte questionando a existência de um pensamento puro
(grifo nosso) determinado pelos detentores do poder, ou seja, refor-
ça a importância de se considerar a diversidade de belezas dentro de
um contexto real de diversidades econômicas, culturais, de gênero,
de época, de ambiente, idade, enfim, reforça a importância de se per-
ceber que os monopolizadores do pensamento, devem ser analisados
na perspectiva de detentores de uma soberania abusiva e arbitrária.
Essa monopolização do conhecimento só é possível devido
à soberania de um pensamento individualista, ou seja, um pensa-
mento que é reflexo de uma sociedade “despedaçada em indivíduos
autônomos”, caracterizado como “mesquinho” e “fruto de uma vida
material”. Marx (1978) defende a ideia de que o pensamento, ao
contrário do que se percebe na sociedade capitalista, é social (parte
do concreto), posto que ao pensar, o homem reproduz tudo o que
apreendeu socialmente, ou seja, possui uma historicidade e, toda sua
ação e pensamento refletem diretamente na sociedade na qual está
inserido. Suas ideias não “brotam” do vazio. Daí surge na sociedade
capitalista a concepção que dá ao pensamento uma perspectiva alie-
nada que alimenta a idéia6 de que o pensamento seja uma concepção
6 Esta perspectiva parte do método funcionalista que defende que a sociedade é regida
por leis naturais donde suas relações devem ser apreendidas e estudadas de forma neutra
e objetiva. Esta perspectiva, defendida por Durkheim, incorpora a dimensão que nos leva
- 255 -
proprietária e que, para pensar, somente uma pessoa basta, sendo
desta forma, uma criação individualista e não social.
Essa concepção é o que sustenta a classe economicamente do-
minante, pois “toda formação é sempre ditada, sob o capitalismo,
pelas necessidades de produção”. Essa formação (ditada de acordo
com as necessidades de produção) é verificável quando se analisa a
falsa idéia de democracia (VIEIRA, 1992). Falsa democracia porque,
de certa forma, a gratuidade e acessibilidade às escolas, mídias, etc.,
representam a sustentação da ideologia dominante, pois possuem
o “consentimento” de toda a sociedade para, sutilmente, invadirem
suas vidas por intermédio de rádio, televisão, jornal, cinema e livros.
Afinal, como afirmado anteriormente a partir das idéias de Paul Va-
léry (2002), é a classe economicamente favorecida que dita o que
deve ser lido, o que deve ser visto, o que é belo, completando assim,
sua dominação política e econômica.
Embora cada sujeito possa sentir e, portanto, representar uma
carga do processo histórico, sua participação neste processo não é
única e/ou exclusiva, antes o contrário, traz na condição uma reali-
dade que tem abarcado todos os homens e que não é resultado par-
tícula/subjetivo, porque é resultado da forma pela qual se tem cons-
truído “individualidades solitárias e amedrontadas”.
De acordo com Lessa (2004, grifo nosso), “O fundamento
disto, deste paradoxo, está na mercadoria plenamente explicitada:
o fetichismo e a reificação fazem com que as pessoas deixem de en-
contrar nas outras pessoas a substância autenticamente humana de
que carecem. Perdem, então, as suas raízes genéricas.” Para o autor
resta-lhes apenas a construção de identidades a partir de si próprias.
Esta construção tem se dado em contextos históricos determinados.
à conclusões conservadoras que naturalizam as desigualdades sociais. Durkheim (apud
Behring e Boschetti 2009), diz que o fato social possui uma natureza exterior e coletiva,
cuja sede é a sociedade e não o indivíduo, que exerce coerção sobre a consciência indivi-
dual e é regido em relação aos processos de transformação. Quando não se percebe mais
a coerção exercida pelo fato social, este se torna um hábito a fim de desprender o fato so-
cial de toda contaminação. Este deve ser observado em seu estado de pureza. Pressupõe
a teoria Durkheimiana (funcionalista), que os fenômenos sociais existem em si, mesmo
destacados dos indivíduos conscientes que formulam representações à seu respeito. Isto
porque, para que estes fenômenos sejam explicados/analisados, é preciso que sejam com-
preendidos pela razão e não pelo sentimento. Todavia, cabe questionar de qual “razão”
faz menção o autor, até porque o mesmo diz que a assimilação dos fenômenos sociais se
dá por meio da coerção e que, no desenvolver deste, há um processo de enraizamento e
naturalização que faz com que este possa se tornar um hábito. Como exemplo, cita-se a
educação. Como então acreditar nesta neutralidade, se o próprio exemplo tomado pelo
autor (educação) representa, como é sabido, os interesses da classe que detém os meios
de produção/ (burguesia)?
- 256 -
À medida que o desenvolvimento das forças produtivas conseguiu
derrubar barreiras naturais, espaciais e temporais, também conse-
guiu abrir novas e profundas barreiras.
Assim, como a mercadoria tem se tornado obsoleta, no sen-
tido em que tem se tornado cada vez mais descartável, as relações
afetivas também o têm. Para Lessa, embora na vida cotidiana se ve-
rifique a interdependência entre as pessoas que, para viver estão in-
trinsecamente ligados uns aos outros, que a forma de viver, de sentir
e de pensar seria impossível se não se pudesse incessantemente ter
acesso aos produtos das atividades de outros, está também tem, pa-
radoxalmente, erguido barreiras que impõem o estranhamento e a
alienação do homem frente ao seu semelhante. Entretanto, o autor
destaca:
- 257 -
seu reconhecimento enquanto categoria e/ou classe social, possam
ao menos estranhar as formas de relações precedentes ao ingresso
como sujeitos noutras palavras, atuar em movimentos sociais, políti-
cos, político partidário, culturais e sindicais é uma forma de romper
com a fragmentação sob a qual os indivíduos estão se construindo
ou sendo construídos. “[...] nossas vidas são partícipes da história
universal no sentido mais puro do termo.” Invariavelmente, o que in-
dividualmente se produz e se carece têm uma relação imediata com
o que outros produzem ou carecem. Este movimento pode ser com-
preendido como uma aproximação/mediação da construção de uma
nova identidade. Embora ainda não se configure como a identidade
humana genérica, a identidade fora despertada.
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VIEIRA, Evaldo. Democracia e política social. São Paulo: Cortez, 1992.
- 260 -
SOBRE OS AUTORES E AUTORAS DESTA
COLETÂNEA
Betina Ahlert - Assistente Social formada pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), especialista de Saúde Mental Co-
letiva pela Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul (ESP/RS),
possui Mestrado e Doutorado pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Atualmente, trabalha como docen-
te no Departamento de Serviço Social, no Programa de Residência
Multiprofissional em Saúde do Adulto e do Idoso e no Programa de
Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal de Mato
Grosso (UFMT). Integrante do Grupo de Pesquisa Trabalho e Socia-
bilidade (UFMT). E-mail: betina.ahlert@ufmt.br.
- 261 -
de Serviço Social ICHS/UFMT e do Programa de Pós-Graduação
em Política Social ICHS/UFMT, trabalhando principalmente com
políticas públicas ambientais e agrárias; gênero e políticas sociais.
E-mail: irepanta@gmail.com.
- 262 -
Grupo de Pesquisa sobre Violência, Tráfico e Exploração Sexual de
Crianças, Adolescentes e Mulheres - VIOLES/SER/UnB. E-mail: lei-
la.chaban@univag.edu.br / leilachaban17@hotmail.com.
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do de Mato Grosso (2020-2021). Suplente do Presidente do Tribunal
de Justiça no Conselho Estadual de Segurança Pública do Estado de
Mato Grosso - CONESPMT (2020/2021). E-mail: marhen@terra.
com.br.
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Mariele Schmidt Canabarro Quinteiro. Advogada. Douto-
randa em Política Social DINTER UnB/UFMT, Mestre em Direitos
Humanos pela Universidade Federal do Pará – UFPA (2015), Gra-
duação em Direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso
– UNEMAT (2006). Professora Efetiva da Faculdade de Direito da
Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, desde 2006.
Líder do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão denominado “Clí-
nica de Direitos Humanos e Meio Ambiente da UNEMAT”. E-mail:
prof.marielequinteiro@gmail.com.
- 265 -
Urbanas e Serviço Social - Locuss-UnB. Coordena os projetos de ex-
tensão de ação contínua Quintas Urbanas da UnB: problemas e po-
tencialidades no DF e Entorno” e “O grito social das águas”. Grupo
de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho GEPT do ICS/UnB liderado
pelo Prof. Sadi Dal Rosso. Professor do curso de Serviço Social e
do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UnB. E-mail:
percicoelho@gmail.com.
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Vera Lúcia Honório dos Anjos - Graduada em Serviço So-
cial, com Mestrado em Saúde Coletiva pela UFMT. Profissional téc-
nica da Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso há 20 anos.
Desenvolve atividades profissionais na Escola de Saúde Pública do
Estado de Mato Grosso, relacionadas à educação permanente para
o SUS. Presidente do Conselho Regional de Serviço Social de Mato
Grosso, na Gestão Avançar na Luta no triênio 2014-2017. Atuou de
maio/2017 a janeiro/2018 na Secretaria Municipal de Saúde de Cuia-
bá, para estruturar e implantar o Núcleo de Educação Permanente.
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Política Social -
PPGPS/UnB-UFMT (DINTER), E-mail: veradosanjosmt@hotmail.
com.
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