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Política Social e Cooperação
no Centro-Oeste Brasileiro

Apoio:

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Comitê Científico Alexa Cultural
Presidente
Yvone Dias Avelino (PUC/SP)
Vice-presidente
Pedro Paulo Abreu Funari (UNICAMP)
Membros
Adailton da Silva (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Alfredo González-Ruibal (Universidade Complutense de Madrid - Espanha)
Ana Cristina Alves Balbino (UNIP – São Paulo/SP)
Ana Paula Nunes Chaves (UDESC – Florianópolis/SC)
Arlete Assumpção Monteiro (PUC/SP - São Paulo/SP)
Barbara M. Arisi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Benedicto Anselmo Domingos Vitoriano (Anhanguera – Osasco/SP)
Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira (PUC/SP – São Paulo/SP)
Claudio Carlan (UNIFAL – Alfenas/MG)
Denia Roman Solano (Universidade da Costa Rica - Costa Rica)
Débora Cristina Goulart (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Diana Sandra Tamburini (UNR – Rosário/Santa Fé – Argentina)
Edgard de Assis Carvalho (PUC/SP – São Paulo/SP)
Estevão Rafael Fernandes (UNIR – Porto Velho/RO)
Evandro Luiz Guedin (UFAM – Itaquatiara/AM)
Fábia Barbosa Ribeiro (UNILAB – São Francisco do Conde/BA)
Fabiano de Souza Gontijo (UFPA – Belém/PA)
Gilson Rambelli (UFS – São Cristóvão/SE)
Graziele Acçolini (UFGD – Dourados/MS)
Iraíldes Caldas Torres (UFAM – Manaus/AM)
José Geraldo Costa Grillo (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Juan Álvaro Echeverri Restrepo (UNAL – Letícia/Amazonas – Colômbia)
Júlio Cesar Machado de Paula (UFF – Niterói/RJ)
Karel Henricus Langermans (ECA/USP- São Paulo/SP)
Kelly Ludkiewicz Alves (UFBA – Salvador/BA)
Leandro Colling (UFBA – Salvador/BA)
Lilian Marta Grisólio (UFG – Catalão/GO)
Lucia Helena Vitalli Rangel (PUC/SP – São Paulo/SP)
Luciane Soares da Silva (UENF – Campos de Goitacazes/RJ)
Mabel M. Fernández (UNLPam – Santa Rosa/La Pampa – Argentina)
Marilene Corrêa da Silva Freitas (UFAM – Manaus/AM)
María Teresa Boschín (UNLu – Luján/Buenos Aires – Argentina)
Marlon Borges Pestana (FURG – Universidade Federal do Rio Grande/RS)
Michel Justamand (UNIFESP - Guarulhos/SP)
Miguel Angelo Silva de Melo - (UPE - Recife/PE)
Odenei de Souza Ribeiro (UFAM – Manaus/AM)
Patricia Sposito Mechi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Paulo Alves Junior (FMU – São Paulo/SP)
Raquel dos Santos Funari (UNICAMP – Campinas/SP)
Renata Senna Garrafoni (UFPR – Curitiba/PR)
Renilda Aparecida Costa (UFAM – Manaus/AM)
Rita de Cassia Andrade Martins (UFG – Jataí/GO)
Sebastião Rocha de Sousa (UEA – Tabatinga/AM)
Thereza Cristina Cardoso Menezes (UFRRJ – Rio de Janeiro/RJ)
Vanderlei Elias Neri (UNICSUL – São Paulo/SP)
Vera Lúcia Vieira (PUC – São Paulo/SP)
Wanderson Fabio Melo (UFF – Rio das Ostras/RJ)

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Liliane Capilé Charbel Novais
Evilasio Salvador
Organizadores

Política Social e Cooperação


no Centro-Oeste Brasileiro

Embu das Artes - SP


2021

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© by Alexa Cultura

Direção
Gladys Corcione Amaro Langermans
Nathasha Amaro Langermans
Editor
Karel Langermans
Capa
K Langer
Revisão Técnica
Evilasio da Silva Salvador
Revisão de língua
Marisa de Lucca
Editoração Eletrônica
Alexa Cultural
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

P769 Política social e cooperação no centro-oeste brasileiro / Organizadores


Liliane Capilé Charbel Novais, Evilasio Salvador. – Embu das Artes, SP:
Alexa Cultural, 2021.

268 p. : il. ; 14 x 21 cm

Inclui bibliografia
ISBN 978-65-89677-67-3

1. Política social – Brasil, Centro-Oeste. 2. Sociedade. 3. Direitos sociais.


I. Novais, Liliane Capilé Charbel. II. Salvador, Evilasio.

CDD 361.61

Elaborado por Maurício Amormino Júnior

Índices para catálogo sistemático:


Política Social
Brasil Centro-Oeste
Direitos Sociais

Todos os direitos reservados e amparados pela Lei 5.988/73 e Lei 9.610


Alexa Cultural Ltda
Rua Henrique Franchini, 256
Embú das Artes/SP - CEP: 06844-140
alexa@alexacultural.com.br
alexacultural@terra.com.br
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www.alexaloja.com

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PREFÁCIO

Ivanete Boschetti1

Um galo sozinho não tece uma manhã:


ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
João Cabral de Melo Netto

Prefaciar esta obra coletiva que agrega textos elaborados por


docentes do Departamento de Serviço Social e Programa de Pós Gra-
duação em Política Social da UFMT e de doutorandos/as do Pro-
grama DINTER/UFMT/UnB, a maioria em co-elaboração com seus/
suas orientandos/as, me traz imensa satisfação. Especialmente por-
que acompanho, de longa data, o processo de luta desse importante
curso público para fortalecer o ensino e a pesquisa na área do Serviço
Social e da Política Social no Mato Grosso e na Região Centro-Oeste.
A inserção de seus professores e professoras nas lutas em defesa da
Universidade Pública, com participação ativa no movimento sindical
docente, se soma à pesquisa e docência, e faz um contraponto fun-
damental aos processos negacionistas da ciência e do conhecimento
científico que ganham corpo nesse Brasil profundo e de agudas desi-
gualdades estruturais e regionais. Mas, também, fiquei imensamente
feliz com o convite porque me incluo entre docentes da UnB, que
desde o final dos anos 1990 criaram uma importante articulação en-
tre as duas universidades para fomentar a pesquisa e o pensamento
crítico, em uma região com poucos cursos públicos, insuficientes in-
vestimentos em pesquisa e, até então, reduzidos cursos presenciais
privados.
Prefaciar esse livro, portanto, me remete à memória afetiva
das idas e vindas entre Brasília e Cuiabá, das aulas no cinquentenário
1 Assistente Social, professora titular da ESS/UFRJ. Mestre em Política Social pela UnB.
Doutora e Pós-doutora em Sociologia pela EHESS/Paris. Professora Titular da ESS/UFRJ.

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campus, das muitas reuniões de planejamento e elaboração do MIN-
TER e DINTER, dos processos de orientação e da calorosa acolhida
dessa cidade que é quente na temperatura e na simpatia, e refresca
seus visitantes com uma das mais belas Chapadas brasileiras. Trata-
-se, portanto, de uma atividade que não é somente tarefa de trabalho,
mas que registra o carinho e admiração por um corpo docente e dis-
cente imbuído de um compromisso e engajamento com o fortaleci-
mento do Serviço Social, para muito além de sua localidade geográ-
fica, como atesta a participação de docentes também nas entidades
da categoria como ABEPSS e CFESS.
Podemos afirmar que o/a leitor/a encontrará na coletânea que
segue uma diversidade temática que revela a riqueza das pesquisas
que estruturam a direção teórico-política do PPGPS/UFMT. Apesar
dessa diversidade, alguns elementos “costuram” as produções aqui
apresentadas ao público.
O primeiro a ser destacado é a preocupação e dedicação dos/
as autores/as com a vinculação de suas reflexões majoritariamente
ancoradas na tradição marxista ou, mais amplamente, no campo crí-
tico. Seja pelo ângulo da incursão no debate teórico metodológico da
necessária unidade entre exploração e opressão ou discussão sobre
gênero nas relações capitalistas patriarcais; seja pela ótica das expres-
sões de miserabilidade e pauperismo determinadas pela expropria-
ção de meios de produção, fundo público e direitos; seja pela pers-
pectiva da conformação de frações da sociedade civil que expressa
o avanço contemporâneo da extrema direita em sua ofensiva contra
a classe trabalhadora, especialmente na destruição dos direitos do
trabalho, e instituição de novas modalidades de tecnologia a serviço
do capital e da precarização das relações e condições de trabalho;
seja ainda pelo realce das bárbaras situações de exploração e abuso
sexual infantil e as contradições que cercam a lei de drogas no Brasil.
A miríade dos assuntos revela, como segundo elemento a ser
destacado, a interdisciplinaridade dos/as pesquisadores/as e douto-
randos/as que se agrupam em torno do Programa de Pós-Graduação
em Política Social e o atribuem uma rica possibilidade de interlocu-
ção teórica e política.
Sobressai dessa coletânea, igualmente o investimento da pes-
quisa em temas que não se restringem às particularidades regionais.
Ao contrário, as produções ganham relevância ao articular determi-

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nações estruturais dos processos analisados, com nítida perspecti-
va de totalidade, que constitui uma categoria essencial do método
dialético-materialista.
Tais considerações já justificariam sua publicação e leitura,
mas o conjunto de reflexões se preocupa em se ancorar teórica e
politicamente no tempo presente. Dito de outro modo, não foge à
exigência crítica de desnudar os agressivos e acelerados processos
em curso de avanço do ultraneoliberalismo empenhado em destruir
conquistas históricas e civilizatórias, a exemplo das contrarreformas
do trabalho, da previdência, da saúde, da educação, que transformam
direitos sociais em mercadorias para alimentar a sanha da acumula-
ção do capital. Também não se furtam de qualificar as posturas nega-
cionistas e antidemocráticas que se apoderam do Estado e o poten-
cializam como espaço de fomento da intolerância, da discriminação,
da violência contra mulheres, população LGBTQ, juventude negra,
quilombolas e povos originários. Que se esmera em (des)regulamen-
tações que favorecem a destruição das florestas, rios, cerrados e faz
avançar as mais destrutivas formas de exploração do capital sobre a
terra, a água, os minérios, as matas, e que estimula um agronegócio
exportador que enriquece os grandes latifúndios na mesma medida
em que aumenta a fome e a insegurança alimentar no Brasil.
Trata-se, portanto, de um livro que tem posição e a expres-
sa a partir de pesquisas e reflexões críticas e fundamentadas. E que,
certamente, contribuirá para consolidar o PPGPS/UFMT e mostrar
que a universidade pública é fonte pulsante de vida, de pesquisa, de
ciência, de produção, a serviço da transformação social.

Rio de Janeiro, setembro de 2021.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
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PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS PARA O DESVENDAMENTO


DA UNIDADE EXPLORAÇÃO-OPRESSÃO
Paulo Wescley M. Pinheiro e Ivanete Boschetti
- 15 -

ENTRE APROPRIAÇÃO E DESPOSSESSÃO:


as remoções involuntárias de moradias nas cidades
Betina Ahlert
- 35 -

A POLÍTICA DA MISERABILIDADE:
como a financeirização e as políticas governamentais levam ao
empobrecimento do trabalhador
Jonas Albert Schmidt e Evilasio da Silva Salvador
- 53 -

AVANÇOS E DESAFIOS DA EDUCAÇÃO PERMANENTE NO


BRASIL CONTEMPORÂNEO:
reflexões teóricas e concepções políticas
Vera Lúcia Honório dos Anjos e Cristiano Guedes
- 71 -

ESTADO, SOCIEDADE CIVIL E A RELAÇÃO DO


TRABALHO EM REDE
Irenilda Angela dos Santos
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O USUÁRIO NA LEI DE DROGAS:


um desafio para o sistema de justiça
Marcos Henrique Machado e Liliane Capilé Charbel Novais
- 107 -

- 11 -
RELAÇÕES SOCIAIS, PODER E ABUSO SEXUAL INFANTIL:
ruptura ou continuidade pós-31 anos do Estatuto da Criança e do
Adolescente no Brasil?
Leila Chaban e Maria Lúcia Pinto Leal
- 125 -
POLÍTICAS SOCIAIS ENQUANTO MEDIAÇÃO DE SEGUNDA
ORDEM DO CAPITAL E FORMAS DE ESTRANHAMENTO
Lélica Elis Pereira de Lacerda
- 143 -
AS CONTRADIÇÕES NA IMPLEMENTAÇÃO DOS SERVIÇOS
DIGITAIS E DO TELETRABALHO NO INSTITUTO NACIONAL
DO SEGURO SOCIAL
Murilo Oliveira Souza e Maria Lucia Lopes da Silva
- 161 -
CRISE ECOLÓGICA:
expressão contemporânea da crise estrutural do capital
Mariele Schmidt Canabarro Quinteiro e Perci Coelho de Souza
- 179 -
A NOVA POLÍTICA ENTRA EM CENA:
trajetória e atualidade da nova direita na América Latina no século XXI
Ruteléia C. de Souza Silva
- 197 -
A APROPRIAÇÃO DO FUNDO PÚBLICO PELO CAPITAL POR
DENTRO DO SUS:
particularidades de sua expressão no Estado de Mato Grosso
Maria Salete Ribeiro e Sandra Oliveira Teixeira
- 219 -
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE GÊNERO NA
SOCIABILIDADE DO CAPITAL
Qelli Viviane Dias Rocha e Sandra Oliveira Teixeira
- 241 -
SOBRE OS (AS) AUTORES (AS)
- 261 -

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APRESENTAÇÃO
É um trator, é um trator
As águas que correram dos meus óio
Águas que eu não esperava
As águas que correram dos meus óio.
Essas mesmas águas me lavavam
As águas que correram dos meus óio
Vindas da natureza
As águas que correram dos meus óio
Dos tambores do Mestre Beleza
Cátia de França

Nestes tempos de pouca chuva, muita queimada e baixa umi-


dade no ar temos a satisfação de apresentar esta Coletânea, que é
fruto da parceria entre a Programa de Pós-Graduação em Política
Social da Universidade de Brasília e o Programa de Pós-Graduação
em Política Social da Universidade Federal de Mato Grosso no de-
senvolvimento do Doutorado Interinstitucional em Política Social.
Historicamente, o PPGPS/UnB tem acolhido e incentivado a
qualificação docente no centro-oeste, em especial o curso de Serviço
Social da UFMT, na consolidação da graduação e na implantação da
Pós-Graduação stricto sensu. Por se tratar de um programa de refe-
rência, tem tido um papel fundamental no fortalecimento do sistema
nacional de Pós-Graduação na área Serviço Social.
Dentre essas estratégias merece registro o MINTER, Mestra-
do Interinstitucional que formou professoras e Assistentes Sociais da
UFMT no período de 1999 a 2001, possibilitando a consolidação de
um quadro docente alinhado à proposta de solidificação do Serviço
Social em Mato Grosso e comprometido com os desafios de implan-
tar um Mestrado em Política Social.
Em 2008, foi aprovado pela CAPES a criação do Mestrado
em Política Social, vinculado ao Departamento de Serviço Social,
do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFMT e, em 2009,
iniciou seu funcionamento de caráter interdisciplinar com objetivo
de atender a demanda local e regional da produção de conhecimento
em política social.
O Doutorado Interinstitucional em Política Social PPGPS/
UnB e PPGPS/UFMT foi acalentado por vários anos até se tornar

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realidade em agosto de 2017, com as condições objetivas para sua
realização, recebendo docentes do Departamento de Serviço Social
da UFMT; da Universidade do Estado de Mato Grosso(UNEMAT); e
egressas(os) do PPGPS vinculados a diferentes órgãos públicos, tan-
to do poder executivo como do judiciário, o que reforça a importân-
cia do PPGPS da UFMT no cenário regional.
E, seguindo uma tendência da área de Serviço Social construí-
da pela ABEPSS foi concebida esta nova parceria, objeto da solida-
riedade do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UnB
com o PPGPS/ICHS/UFMT, com duração até julho de 2021, prorro-
gado até julho de 2022 em função da pandemia da COVID-19.
Os textos aqui apresentados resultam das pesquisas e refle-
xões dos Doutorandos do DINTER e das docentes do PPGPS/ICHS/
UFMT. Dispostos de forma intercalada, as temáticas circunscrevem-
-se na área de concentração Estado, Política Social e Direitos do PP-
GPS-UnB em sintonia com a área de concentração Política Social,
Estado, Sociedade e Direitos Sociais do PPGPS/UFMT.
Compartilhamos, assim, além das reflexões teóricas, uma histó-
ria ainda em construção de parceria e solidariedade, o que pode pare-
cer muito estranho nestes tempos bicudos, mas que acrescenta muito
na produção da análise da Política Social no cerrado brasileiro.

Liliane Capilé Charbel Novais


Evilasio da Silva Salvador
(Orgs. MT/DF 2021)

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PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS PARA
O DESVENDAMENTO DA UNIDADE
EXPLORAÇÃO-OPRESSÃO
Paulo Wescley M. Pinheiro1
Ivanete Boschetti2

INTRODUÇÃO
Nas reflexões sobre a articulação entre luta de classes e
opressões persistem polêmicas já conhecidas, entre elas se destacam
questionamentos como: se há alguma hierarquia, equivalência, in-
tersecção ou consubstância entre as diferentes formas de desigualda-
des; se o debate da predominância das classes sociais no capitalismo
é fundamentalmente economicista. Para essas e outras provocações
é fundamental demonstrar como a exploração e as opressões se pro-
cessam como uma unidade ontológica.
Nessa direção, é decisivo aprofundar questões do método
marxiano e da tradição marxista para superar reduções e equívo-
cos teóricos. Esse debate ilumina a potencialidade sobre o tema no
campo materialista e, principalmente, desvenda as manutenções e
complexidades das manifestações que permanecem vitais para a so-
ciabilidade do capital.
A produção teórica de Karl Marx elucidou os processos ba-
silares do modo de produção capitalista, evidenciando as leis gerais
que estruturam o advento e a manutenção do antagonismo de classes
na sociabilidade burguesa. Nessa realização teórico-metodológica
decifrou-se o princípio ontológico do ser social e as possibilidades
radicais de conhecimento da realidade e de sua transformação. Essa
condição é o ponto de partida para desvendar a complexificação do
modo de vida burguês, necessitando sempre de novos estudos e aná-
lises que captem a dinamicidade da hegemonia da sociedade do ca-
pital e suas novas formas de organização.
1 Docente assistente do Departamento de Serviço Social da UFMT. Mestre em Serviço
Social, Trabalho e Questão Social pela UECE. Doutorando em Política Social pela UnB.
2 Docente titular da Escola de Serviço Social da UFRJ. Mestre em Política Social pela
UnB. Doutora e pós-doutora em sociologia pela EHESS/Paris.

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Na tradição marxista, várias(os) intelectuais e militantes atra-
vessaram o último século formulando diferentes construções teó-
ricas, com distinções, limites e possibilidades, realizando distintas
ênfases metodológicas sobre as opressões e articulando uma leitura
radical e de totalidade sobre a diversidade, as particularidades e as
desigualdades constitutivas da sociedade de classes e da exploração
do trabalho.
Nessa perspectiva, aprofundamos as dimensões do método
pensando a substância da dimensão de unidade dialética que evi-
dencia questões de suprassunção e continuidade na descontinuidade
entre exploração e opressão. Essa é uma leitura que busca demons-
trar a síntese entre universalidade-particularidade-singuralidade,
realizando o desvendamento das questões de classe social, raça/etnia
e gênero/sexo, destacando a sociabilidade capitalista com diversas
determinações históricas que aprofundam a transmutação da diver-
sidade humana em desigualdades sociais.

2. UNIDADE EXPLORAÇÃO-OPRESSÃO, MÉTODO E O


CAMINHO DA TRADIÇÃO MARXISTA
Para avançarmos na questão central sobre os processos de
exploração-opressão é imprescindível destacar questões teórico-
-metodológicas basilares e sublinhar tópicos como: os fundamentos
da postura metodológica de Marx; os elementos constitutivos da
dimensão de totalidade e da tríade universal-particular-singular; o
debate metodológico sobre “elemento predominante e ênfase meto-
dológica”; a questão da síntese e unidade dialética. Todas essas ques-
tões atravessam o fundamento ontológico do materialismo histórico
e dialético.
As condições do antagonismo capitalista e das expressões do
heteropatriarcado e do racismo na atual conjuntura são a materiali-
zação daquilo que foi desvendado teoricamente por pensadoras(es)3
e militantes comunistas, pelo feminismo materialista e marxista, pe-
3 No universo de reflexões de distintos sujeitos, espaços, tempos históricos e ênfases me-
todológicas destacamos as construções, diferenças e sínteses: das comunistas do início do
século XX como Clara Zetki (1956), além de Nadezhda Krupskaya, Alexandra Kollontai
e Inessa Armand, todas com textos compilados em Schneider(2017); do feminismo ma-
terialista francês de Danièle Kergoat (2010) e Falquet (2008); debate feminista marxista
de Frederici (2017), Arruzza, Bhattacharya e Fraser (2019), Safiotti (2004), Souza-Lobo
(2010), Hirata (2009), de Cisne (2014), de Santos (2017) e Santos & Cisne (2018); sobre
de raça e etnia em produções de Davis (2016) e do anticolonialismo e panafricanismo
marxista de Fanon (1968), de Moura (1994) e mais recentes como de Almeida(2018).

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las(os) autoras(es) que pensaram a questão racial por uma perspec-
tiva revolucionária, pela luta radical anticolonialista e pelos debates
anti-imperialistas das particularidades regionais.
Frente a essa tarefa fundamental, não raramente, quem de-
bateu (e debate) as opressões sob a lente do materialismo histórico
e dialético foi (e ainda é) classificado como heterodoxo. Um pres-
suposto falso como demonstraremos com o debate sobre método.
Esse tipo de adjetivação advém, por dentro e por fora da tradição
marxista, trazendo a ideia de ortodoxia compreendida como uma
repetição amorfa das palavras de Marx e Engels, empobrecendo as
reflexões dos autores e produzindo um reducionismo explicativo de
viés estruturalista e economicista, portanto, muito distantes do que
Karl Marx e Engels enraizaram em sua teoria social, afinal:

O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determina-


ções, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto
aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado,
não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida
efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intui-
ção e da representação. Na primeira via, a representação plena foi
volatilizada em uma determinação abstrata; na segunda, as deter-
minações abstratas levam à reprodução do concreto por meio do
pensamento. (MARX, 2011, p.54).

Isto posto, “o elemento determinante final na história é a pro-


dução e reprodução da vida real. Mais do que isso, nem eu e nem
Marx jamais afirmamos”, destacou Engels (1890) rebatendo os en-
tendimentos de críticos e apoiadores teóricos e políticos que con-
cluíram que a predominância ontológica da produção significaria a
condição de unicausalidade no mundo dos seres humanos.
As mediações da teoria social marxista que desembocam
numa complexa análise do real e proposição de um projeto de so-
ciedade radicalmente distinto do atual são complexas. Nos termos
do jovem Lukács (2003) a ortodoxia marxista nunca significou um
enquadramento do real à uma teleologia voluntarista, mas na capa-
cidade de realizar uma leitura da realidade objetiva e de buscar sua
transformação, sendo, portanto, ortodoxo, aquele que segue o méto-
do marxiano. Isto é, a ortodoxia consiste na capacidade de desenvol-
ver meios e uma postura teórica que busca a essência dos fenômenos
reais, em sua dinamicidade e historicidade fundada na materialidade

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social, ou, nos termos de Lenin, a análise concreta de situações con-
cretas.
Isto posto, reconhecemos - e partimos desse princípio- que
os sujeitos individuais e coletivos que constituíram uma leitura da
realidade e direcionamento político pautados pelo estruturalismo e
economicismo podem, no máximo, serem colocados dentro de uma
derivação vulgarizada do marxismo.
Em contraposição a isso, reafirmamos que o processo coletivo
que buscou aprofundar a construção teórica e política marxiana, não
abrindo mão do rigor científico e da construção revolucionária, se
constituiu necessariamente pela busca das mediações de suas parti-
cularidades. Nesse sentido, a busca pelas determinações da realidade
de forma objetiva, rigorosa, essencialmente radical e crítica, portan-
to, disciplinada, rebelde e criativa, é detentora legítima da ortodoxia
teórico-metodológica.
Revelar questões de método demonstra que o debate marxista
sobre as opressões potencializou o fazer teórico e político como uma
práxis ortodoxa, orgânica, conectada com a realidade e, por isso,
crítica, desvendando não somente elementos essenciais da unidade
exploração-opressão, mas expressando a vivacidade do marxismo.

2.1. Questões do método marxista e a exploração-opressão

A dimensão da dialética marxiana supera o caráter imediato


das investigações e potencializa a construção teórica a partir da tota-
lidade, entendendo a realidade como complexos de complexos, iden-
tificando a dinamicidade materialmente ancorada na vida social,
atentando para a necessária unidade entre as dimensões da univer-
salidade e da singularidade, mediada pelas particularidades, eviden-
ciando a historicidade e reconhecendo os processos de contradição
- unidade de contrários - e de continuidade na descontinuidade.
A trajetória marxiana, partiu de uma longa jornada teórica de
superações dialéticas, caminha em seu percurso para o desvenda-
mento da estrutura da sociedade burguesa apreendendo, criticando
e superando elementos da filosofia alemã, sobretudo do idealismo
hegeliano e do materialismo feuerbachiano, da construção política
do socialismo francês do século XIX e da economia política inglesa,
sobretudo, na crítica à Adam Smith e David Ricardo.

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Marx realizou um processo de abstração racional para encon-
trar a essência do capital em seu conteúdo material e histórico, indo
do “ real e pelo concreto, pelo pressuposto efetivo [...] à reprodução
do concreto por meio do pensamento” (MARX, 2011, p.54). Nesse
sentido, como coloca o próprio Marx, na construção de sua teoria
social buscou superar:

O materialismo tosco dos economistas, de considerar como quali-


dades naturais das coisas as relações sociais de produção dos seres
humanos e as determinações que as coisas recebem, enquanto sub-
sumidas a tais relações, é um idealismo igualmente tosco, um feti-
chismo que atribui às coisas relações sociais como determinações
que lhe são imanentes e, assim, as mistifica.” (MARX, 2011, p. 575).

Essa concepção metodológica desvenda o real como síntese de


múltiplas determinações, sintetizando uma postura que ultrapassa
dicotomias entre teoria e prática, trazendo a necessidade do conhe-
cimento profundo da realidade como premissa para transformá-la,
apresentando as contradições inerentes dos processos históricos e
abarcando a complexidade de estudos dos mais diversos fenômenos
existentes na sociedade.
Assim, a formulação do conhecimento parte da realidade ime-
diata, mas busca superar a mera descrição, formulando teoricamente
uma síntese que expresse suas mediações e sua essência histórica.
Os elementos fundamentais do método marxiano, constituí-
dos para a reflexão sobre uma dada sociedade permitem um salto na
percepção sobre a construção da ciência. Nesse sentido, a realidade
pode ser conhecida. Netto (2009, p.7) afirma que:

[...] a teoria não se reduz ao exame das formas dadas de um objeto,


com o pesquisador descrevendo-o detalhadamente e construindo
modelos explicativos para dar conta – à base de hipóteses que apon-
tam para relações de causa/efeito – de seu movimento visível, tal
como ocorre nos procedimentos da tradição empirista e/ou posi-
tivista. E não é, também, a construção de enunciados discursivos
sobre os quais a chamada comunidade científica pode ou não esta-
belecer consensos intersubjetivos, verdadeiros jogos de linguagem
ou exercícios e combates retóricos, como querem alguns pós-mo-
dernos.

O método marxiano e a tradição marxista buscam compreen-


der as determinações entre sujeito e objeto para além de questões

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epistemológicas, aprofundando a dimensão ontológica na tessitura
dialética entre objetividade e subjetividade, no desvendamento das
determinações, por uma perspectiva de totalidade que busca as me-
diações entre universalidade-particularidade-singularidade.
Assim, a noção de unidade, mais ampla do que uma sim-
ples relação, denota a complexidade de uma percepção que parte da
aparência para uma compreensão de uma essência que busca a não
ruptura entre os complexos da produção e reprodução social, do su-
jeito e da sociedade, do indivíduo e da coletividade, da cultura e da
história, de método e teoria. A noção de historicidade e desnatura-
lização do cotidiano são postulados para superação das dimensões
fenomênicas.

2.2. Unidade dialética como chave para a complexidade das


opressões

Desvendar o aspecto da “unidade” como síntese é fundamen-


tal para perceber que é possível se expressar na realidade aspectos
e fatos com ênfase em determinada substância de uma “tese” ou de
uma “antítese”, mas que sua separação só é possível em caráter super-
ficial ou, no máximo, por escolhas analíticas e descritivas.
A síntese é o conjunto onde o momento ascendente de um
complexo - caminho de ida - se une num processo transformador
com sua oposição no momento descendente - o caminho de vol-
ta - (a ideia, em Hegel, a história, em Marx). Unidade, portanto, é
a realização do movimento das relações com suas transformações,
multiplicidades e contradições. “Afirmação”, “negação” e “negação da
negação” são as mediações metodológicas da ”unidade”. O complexo
é composto pela multiplicidade, sendo uma identidade de opostos,
uma construção de afirmação, negação e negação da negação.
A unidade dialética pressupõe a crítica imanente como uma
construção mais profunda do que comumente se tem reduzido no
entendimento do esquema “tese-antítese-síntese”. A constituição da
condição de negação/superação/transformação é basilar para o des-
vendamento da unidade. Suprassunção é o movimento múltiplo de
negação, preservação e elevação do objeto/processo/complexo.
Não se trata de uma negação de um fato frente a outro para
buscar o novo, mas sim do entendimento de que a contradição faz

- 20 -
parte do processo e também da coisa-em-si. Pensando a dinamicida-
de do real, cada dimensão do esquema tese-antítese-síntese são, em
si, “constituições sintéticas contraditórias” de outros processos. As-
sim, embora o processo de investigação sobre as determinações do
real e a formulação teórica precise da dissolução dos objetos em seus
processos, isto pressupõe a ideia de unidade, seja da coisa-em-si, seja
dos processos e mediações ali inter-relacionadas.
Em suma, a dialética materialista supera uma lógica pendular
de pensar o mundo, pois, um processo histórico presente não é re-
duzido a uma só coisa, sendo, ao mesmo tempo, algo radicalmente
novo e algo que resguarda elementos daquilo que o constituiu pelas
conexões anteriores.
O descortinamento da contradição inerente das determina-
ções sociais amplifica a lente crítica transmutando toda rigidez em
processualidade. O real, histórico e eminentemente social, é repleto
de determinações, onde coexistem elementos predominantes e cau-
salidades constitutivas que objetivam os tensionamentos próprios
dessa dinamicidade.
Para conhecer, o ser humano precisa de meios e quanto mais
complexo é o conhecimento mais complexo será o conjunto de téc-
nicas, instrumentos e procedimentos necessários. Por isso, em se
tratando do conhecimento científico numa perspectiva crítica - e de
teoria social para transformação política - é preciso pensar as dife-
rentes formas de materializar o método desenvolvido e expresso na
teoria marxiana a partir de tripla dimensão, indissociável: ontológi-
ca, reflexiva e procedimental.

2.3. O fundamento ontológico do conhecimento da realida-


de e as mediações da unidade exploração-opressão
A convicção de que o ser humano pode conhecer a realidade,
buscar suas determinações, organizá-las intelectualmente e formular
um acúmulo coletivo de produção de conhecimento de várias di-
mensões (como o senso comum, a arte, a filosofia e a ciência) advém
de nossa condição fundamental como seres eminentemente sociais.
O reconhecimento ontológico do trabalho como categoria
fundante do ser social, possibilidade e potencializador de todas as
outras práxis, é o elemento mais substantivo da tradição marxista
para evidenciar o caráter essencialmente histórico da formação hu-
mana e de nossas alternativas materiais.

- 21 -
Método e teoria são uma unidade ontológica e não se relacio-
nam com constituição derivativa. É dentro da dimensão concreta da
historicidade que se pode desvendar as determinações das constru-
ções inerentes ao ser humano como ser social.
Essa construção não se processa como um conjunto de fatos
cronologicamente organizados, onde o passado pode iluminar o
presente, mas sim como “continuidade na descontinuidade”, onde os
fenômenos mais complexos do presente se constituem tanto de uma
processualidade construída dentro dos diversos complexos sociais,
tais quais os limites e as possibilidades das particularidades são de-
terminados pelo chão da história.
Se entendermos que práxis é um processo de ação e reflexão
que só existe em unidade, podemos evidenciar as minúcias da pro-
dução de conhecimento crítico e radical, afirmando a dimensão do
ser social, com a ampliação dos processos de humanização e socia-
lização que historicamente permite a sofisticação das relações, de-
mandando novos conhecimentos e acumulando possibilidades de
produzi-los de forma cada vez mais elaborada.
O elemento central é demonstrar que para chegar à raiz de
um fenômeno e de todas as suas determinações, o processo de cons-
trução necessita de uma direção teórico-metodológica que busque a
essência do objeto de estudo, evidenciando sua base histórica e ma-
terial, sua dinamicidade e suas possibilidades de transformação.

É, portanto, uma abstração grosseira, gnosiológico-formalista,


querer separar precisamente, no ser social, os processos materiais
dos processos ‹puramente› intelectuais. Quanto mais a sociedade
se socializa, mais inseparáveis, mais imbricados um no outro são
os dois processos justamente na produção material. Suas diferenças
ontológicas não são, naturalmente, negadas com isso. Mas o fato
ontológico primário de seu operar na esfera do ser social (e, fora
dessa esfera, não há nem algo espiritual, nem processos colocados
em andamento por posições teleológicas) é a sua inseparável
coexistência. Questões de prioridade, portanto, só podem
realmente ser sensatamente colocadas pelo reconhecimento dessa
inseparável coexistência na investigação de grupos de fenômenos.
Para a totalidade do ser social, permanece — como aquilo que move
historicamente — uma tal coexistência o fator ontológico funda-
mental. (LUKÁCS, 2018, p. 308).

Por isso, a noção de totalidade é a premissa para uma pers-


pectiva que vise atingir os aspectos mais profundos de um fenôme-
- 22 -
no. Mesmo quando num estudo que prima por um plano singular
ou particular, o objeto e o fenômeno não poderiam jamais serem
encarados de formas puramente isoladas.O arcabouço fundado na
tradição marxista sobre teoria, sua unidade dialética com o método
e seu fundamento ontológico direcionam o processo de ação e refle-
xão teórica por uma perspectiva transformadora que supera a forma
conservadora que reproduz na ciência e, em especial, nas reflexões
metodológicas.

Por essa razão, a ontologia do ser social pressupõe uma ontologia


geral. Porém, essa ontologia não pode ser de novo distorcida em
teoria do conhecimento. Não se trata aqui de uma analogia ontoló-
gica com relação entre a teoria do conhecimento geral e os métodos
específicos das ciências singulares. Trata-se, ao contrário, do fato
de que aquilo que é conhecido numa ontologia geral nada mais é
do que os fundamentos ontológicos gerais de todo ser. (LUKÁCS,
2012, pp. 27-8)

A ontologia do ser social, fundamentada no pensamento mar-


xiano e aprofundada por Lukács, busca a superação da vulgarização
materialista centrada na experiência imediata e também das abs-
trações idealistas, apresentando uma argumentação que demonstra
que a essência humana se constitui na capacidade de satisfazer suas
necessidades a partir da práxis, formulando de modo consciente,
ampliando suas possibilidades, afastando de suas barreiras naturais,
criando sociabilidade, modificando o meio e desenvolvendo valores
sociais. Para essa formulação, a categoria trabalho é elemento funda-
mental sendo

[...] um processo de que participam o homem e natureza, processo


em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e
controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com
a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças
naturais de seu corpo - braços e pernas, cabeça e mãos -, a fim de
apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à
vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modifican-
do-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. Desenvolve
as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o
jogo das forças naturais. Não se trata aqui das formas instintivas,
animais, de trabalho. (MARX, 2008, p. 211).

O processo de desenvolvimento do ser social é ancorado na


unidade entre ampliação de sua capacidade material e de complexi-

- 23 -
ficação de sua socialização e seu conhecimento coletivo, onde “o ser
social é a única esfera da realidade na qual a práxis cumpre um papel
de ‘conditio sine qua non’ na conservação e no movimento das obje-
tividades, em sua reprodução e em seu desenvolvimento”. (LUKÁCS,
2012, p. 27).
O reconhecimento de elementos predominantes de uma uni-
dade faz parte da busca por sua essência e convive com a necessidade
de desenvolver ênfase metodológica neste aspecto, mas também em
todos os outros que cumprem papel particular na formulação estru-
tural de sustentação desse objeto.

Quando atribuímos uma prioridade ontológica a determinada ca-


tegoria com relação a outra, entendemos simplesmente o seguinte:
a primeira pode existir sem a segunda, enquanto o inverso é onto-
logicamente impossível. É o que ocorre com a tese central de todo
materialismo, segundo a qual o ser tem prioridade ontológica com
relação à consciência. Do ponto de vista ontológico, isso significa
simplesmente que pode haver ser sem consciência, enquanto toda
consciência deve ter como pressuposto, como fundamento, algum
ente. Mas disso não deriva nenhuma hierarquia de valor entre ser
e consciência. Ao contrário, toda investigação ontológica concreta
sobre a relação entre ambos mostra que a consciência só se torna
possível num grau relativamente elevado do desenvolvimento da
matéria; a biologia moderna está em vias de provar como surgem
gradualmente, a partir dos originários modos físico-químicos de
reação do organismo ao ambiente, formas cada vez mais explícitas
de consciência, que, todavia, só podem alcançar sua completude no
nível do ser social (LUKÁCS, 2012, p.307).

Tomando por base essas afirmações é preciso perceber que


essas desigualdades reproduzidas vêm sendo construídas através de
uma base material implacável a partir de um dado momento da his-
tória da humanidade. Essas questões não são abstratas e desconexas,
mas intrinsecamente ligadas e relacionadas com o fundamento on-
tológico do ser social.
O desenvolvimento das dimensões estruturantes da sociabili-
dade burguesa é, ao mesmo tempo, inédito, com elementos particu-
lares desse modo de produção, mas também constituído do um cará-
ter de continuidade na descontinuidade dos processos de alienação
produzidos socialmente em modos de produção anteriores.
Essa síntese histórica não advém de uma somatória de fato-
res acumulados numa linha progressiva. Esse fenômeno se processa

- 24 -
em desigualdades fundadas no advento da propriedade privada, mas
constituem algo ainda mais profundo, resguardando um ineditismo
que se materializa não somente por uma absorção circunstancial de
características culturais do campo das opressões, mas na desuma-
nização socialmente construída. Por tudo isso, o descortinamento
de mediações e das particularidades não são um mero detalhe, mas
tarefa fundamental para uma dimensão de totalidade.

3. NOTAS SOBRE A COMPLEXIDADE CAPITALISTA E A


UNIDADE EXPLORAÇÃO-OPRESSÃO

Em O Capital, Marx identificou a essência da sociabilidade


mais complexa da alienação humana e, nesse processo, demonstrou
suas determinações na dimensão de seu nascedouro, no seu territó-
rio e no ethos hegemônico. Nessa tarefa, Marx não deu conta de toda
a complexidade da sociedade capitalista, mas de seu cerne e elemen-
to predominante.
Aquilo que Marx descreve como “acumulação primitiva” no
capítulo XXIV de O Capital e que alicerça a possibilidade de con-
solidação do Estado moderno, da estruturação da complexificação
da hegemonia burguesa e desenvolvimento das forças produtivas e,
portanto, do amadurecimento do capitalismo na Europa, se arregi-
menta no entesouramento a partir do processo violento nas colônias
de exploração, na escravização, no genocídio e no enraizamento do
ethos burguês.
Esse processo vai determinar as particularidades históricas do
capitalismo em cada território do globo, além de fortalecer a tessitu-
ra de uma estrutura patriarcal e racista dentro do modo de produção
calcado no trabalho livre. Por fim, uma dinâmica de luta de classes
muito mais complexa nos países forjados numa estrutura colonial,
com uma burguesia nacional subsumida aos ditames imperialistas,
naquilo que, nos termos de Marini (1990), se construirá num desen-
volvimento dependente e combinado do capitalismo no Brasil e em
toda a América Latina. Como destaca Fontes (2010, p.45):

A suposição de que a “acumulação primitiva” tenha sido algo de


“prévio”, “anterior” ao pleno capitalismo leva ainda à suposição de
que, no seu amadurecimento, desapareceriam as expropriações
“bárbaras” de sua origem, sob uma aceitadíssima expansão da ex-

- 25 -
ploração salarial, configurando uma sociedade massivamente ju-
ridicizada sob a forma do contrato salarial e “civilizada”. Se Marx
criticava a origem idílica do capital, aqui se trata de uma figuração
idílica da historicidade regida pelo capital.

Por tudo isso, o debate sobre a unidade exploração-opressão é


espinhoso. As reflexões sempre necessitam de atenção para que não
se vulgarize duas categorias complexas que se entremeiam resguar-
dando identidade e diferenças. TADDEI (2014) busca sintetizar:

No tocante aos mecanismos da exploração e da opressão, pode-se


dizer que a exploração é um fenômeno da infraestrutura, ou seja,
um fenômeno de ordem econômica, que tem por consequência a
divisão da sociedade em classes sociais. Já a opressão, é um fenô-
meno da superestrutura, de ordem político-cultural, que tem por
resultado a negação da vocação ontológica do ser humano de ser
mais. Ressalte-se, entretanto, que eles se relacionam e se influen-
ciam reciprocamente, em uma perspectiva de totalidade. (p.78)

Embora seja um ponto de partida interessante, tal definição
resguarda, ainda, do cuidado com as suas mediações. A articulação
histórica entre o processo de exploração e as diferentes opressões e
suas formas de materialização na sociedade do capital precisam ser
demasiadamente aprofundadas.
Marx, nos textos da juventude, por vezes, utilizou a cate-
goria exploração de modo mais amplo, dando a ela um significado
próximo do termo opressão, articulando, nesse sentido, tanto a ex-
ploração do trabalho stricto sensu como outras formas de expressões
de desigualdades vivenciadas por sujeitos da classe trabalhadora.
No Manifesto Comunista esse elemento mais amplo do ter-
mo exploração fica explícito quando Marx e Engels dizem que:

Uma vez terminada a exploração do operário pelo fabricante, isto é,


logo que o operário recebe seu salário, caem sobre ele as outras par-
tes da burguesia: o proprietário da casa, o merceeiro (der Krämer),
o penhorista” (MARX e ENGELS, 1990, p. 73).

No mesmo texto, os autores utilizam o termo opressão em


passagens para tratar das questões de classe, por exemplo, quando
vão caracterizar os burgueses e os proletários e iniciam tratando da
história da humanidade e seus antagonismos:

- 26 -
Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo,
mestre de corporação e companheiro, em resumo, opressores e
oprimidos, em constante oposição […] A moderna sociedade bur-
guesa, que brotou da ruína da sociedade feudal, não aboliu os an-
tagonismos de classes. Não fez mais que estabelecer novas classes,
novas condições de opressão, novas formas de luta no lugar das que
existiram no passado.” MARX e ENGELS, 2005, p.40).

Netto (1998, p.26) vai destacar que essa forma de utilização
das categorias exploração e opressão, quase como sinônimas, de-
monstra uma característica própria do desenvolvimento do pensa-
mento marxiano e sua processualidade ainda imatura no Manifesto
Comunista. Essa formulação é importante para a compreensão mais
elaborada da crítica da economia política feita posteriormente:

o Manifesto — mesmo considerando o caráter explorador do ca-


pital na sua relação com o trabalho — está longe de compreender
que o trabalhador não vende ao capitalista o seu trabalho (tal como
se afirma nas suas seções I e II), antes a sua força-de-trabalho. Não
se trata de uma simples precisão conceitual, introduzida posterior-
mente por Marx: trata-se do apuramento de uma distinção que per-
mitirá discernir o tempo de trabalho necessário do tempo de traba-
lho excedente, com o que a teoria do valor-trabalho é recriada por
Marx e a modalidade específica da exploração capitalista — com a
categoria rigorosa da mais-valia — pode ser apreendida pela teoria.

Assim, as similitudes e distinções categóricas se apresen-


tam com o processo de maturidade teórica de Marx, embora isso
não tenha sido um tema central em sua obra. Em O Capital, por
exemplo, exploração e opressão caminham com definições distintas,
onde a primeira se apresenta em questões próprias do processo de
trabalho, enquanto a segunda surge para apresentar o uso da força,
da violência ou ainda para explicitar as condições desfavoráveis no
processo de maturação da sociedade burguesa, da expropriação e da
universalização da lógica do capital para todos os âmbitos.
A centralidade do debate da exploração da força de trabalho
aparece ao mesmo tempo em que o autor não descarta a categoria
opressão para destacar essas questões que apontam a absorção pelo
Capital dos arranjos da organização do trabalho, oriundas de outras
formas de produção, condicionando antigos costumes à lógica da
centralidade do lucro, impondo o caráter de violência explícita ou de
ruptura cotidiana com o “pacto civilizatório burguês”.

- 27 -
Na sociedade do capital, esta relação se estabelece com me-
diações capciosas, obscurecidas na equivalência do mercado, na tese
de emancipação política do projeto burguês e nas determinações
ideológicas que amortecem a visibilidade da essência da unidade ex-
ploração-opressão, expandindo as nuances dos aspectos valorativos
para além da esfera do trabalho e se manifestando também no inte-
rior das classes antagônicas. A naturalização da desvalorização da
força de trabalho de setores historicamente oprimidos, promovendo
maior pauperismo e a invisibilização da importância das atividades
da reprodução social são questões nevrálgicas desse processo.
Assim, a categoria exploração da força de trabalho tem em
seu cerne um fator objetivo, materialmente ancorado nas relações de
produção e na forma como elas espraiam suas determinações para os
sujeitos que a vivenciam. O processo de exploração resguarda objeti-
vidade e identidade com a forma como a sociedade produz e sociali-
za a riqueza social. No entanto, essa predominância do fator objetivo
não retira suas expressões subjetivas e sua realização particular atra-
vessada pelas dimensões históricas e cotidianas das opressões.
Na mesma direção, o caráter concentrado na reprodução so-
cial, elemento próprio das opressões no capitalismo, reflete um cará-
ter subjetivo pujante, mas não exclui dessa categoria as suas caracte-
rísticas objetivas. As expressões do campo das opressões existem, na
realidade, e não são um mero conjunto de simbologias, percepções
individuais e relações singulares. Elas têm função social para a lógica
burguesa, constituem sua estrutura e se manifestam promovendo a
perpetuação da coisificação humana em todos os planos da vida so-
cial.
Por isso, para compreender essa unidade é fundamental mer-
gulhar nas articulações feitas sobre classe-raça/etnia-gênero como
elementos estruturantes da sociedade do capital, mas, principalmen-
te, que fundamentalmente pensemos à perspectiva ontológica do ser
social, afinal
O trabalho, nesta sociedade hetero-patriarcal-racista-capitalista,
possui três divisões estruturais associadas entre si: a) a divisão so-
cial, fundada nas relações entre classes sociais; b) a divisão racial,
fundada nas relações sociais de raça; c) a divisão sexual, fundada
nas relações sociais de sexo. As relações sociais são perpassadas pela
apropriação do trabalho de um grupo ou classe sobre outro. São
essas relações sociais, mediadas por antagonismos e hierarquias,

- 28 -
que processam a produção e a reprodução sociais, permeadas pela
exploração da força de trabalho e pelas opressões a elas vinculadas
(CISNE; SANTOS; 2018, p. 25).

Nessa direção, Santos (2017), debatendo sobre a diversida-


de humana, retrata cinco pressupostos para a compreensão do cam-
po das opressões: o trabalho, como fundamento ontológico do ser
social, as relações entre Estado, propriedade privada e família mo-
nogâmica; além disso, a autora assevera que a diversidade humana
advém do processo de individuação e não como resultado direto dos
movimentos reivindicatórios das últimas décadas; e, por fim, reflete
ainda sobre as particularidades brasileiras nas expressões peculiares
das opressões.
Assim, exploração-opressão resguarda uma unidade que, na
história da humanidade, ora aparece de modo explícito, ora ganha
contornos mais complexos, se manifestando para além dos proces-
sos produtivos, atingindo novos sujeitos, mas garantindo a perpe-
tuação da lógica de coisificação das relações e dos sujeitos oprimidos
para a reprodução de determinada estrutura social.
O capitalismo, com a sociabilidade onde os processos de
alienação estão mais sofisticados e complexificados, é uma totalida-
de contraditória estruturada na coisificação dos seres humanos e de
suas relações sociais. O processo de exploração do trabalho, produ-
ção, venda e consumo de mercadorias é um conjunto unitário como
fator predominante, mas que se realiza para além dele, necessitando
de todo o processo reprodutivo das formas particulares e cotidianas
de existir e, nelas, as opressões, historicamente persistentes desde o
advento da propriedade privada, evidenciam o cerne da desumani-
zação alienada que atravessa o ser social.
A sociedade do capital, como apogeu da alienação, realiza o
processo de desumanização e de não-identidade dos sujeitos com o
que é produzido coletivamente, com os valores sociais e com aqueles
que são sujeitos de uma unidade potencialmente diversa, promoven-
do relações desiguais, objetificadas e instrumentalizadas com os pro-
cessos de trabalho, com os seres humanos e com a natureza.
Reconhecer que existe dentro da classe trabalhadora a re-
produção de lógicas desumanizadoras é pensar a complexidade da
alienação, questionar a construção histórica desse processo e apro-
fundar as percepções de valores que determinam desigualdades que

- 29 -
extrapolam a dimensão econômica e complexificam a relação capi-
tal-trabalho.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Questões complexas exigem análises complexas e intervenções


distantes de qualquer reducionismo. Com caminhos diversos e ênfases
distintas, em suas divergências e diferenças, as contribuições críticas
no interior do marxismo sobre as opressões impõem o aprofundamen-
to metodológico e a dimensão ontológica para avançar no entendimen-
to e superação material de todas as formas da da unidade exploração-
-opressão.
A volta ao debate ontológico não é gratuita, posto que a funcio-
nalidade dos processos de opressão para a acumulação do capitalista
não é circunstancial. Complexos que surgem como elementos sociais a
partir do advento da propriedade privada, muito antes do capitalismo,
são transformados nos processos de desumanização atuais e atingem
particularmente as mulheres, negros e índígenas no mundo burguês,
produzindo valores e uma construção cotidiana heteropatriarcal e ra-
cista no antagonismo de classes.
Por isso, há mais ortodoxia marxista em leituras que manti-
veram os pilares marxianos em sua radicalidade para sublinhar ênfase
metodológica em aspectos que o mesmo Marx não realizou, do que na-
queles que reduziram o real aos aspectos imediatamente econômicos,
estes, sem dúvidas, essenciais ao modo de produção capitalista, mas
com leituras insuficientes por vieses anacrônicos.
A ênfase metodológica em uma determinada opressão ou em
setores oprimidos não retira necessariamente a dimensão materialista.
Sob a lente crítica do materialismo histórico e dialético pode se revelar
a complexidade do modo de produção burguês, sua forma de repro-
dução e manutenção, identificando as mediações necessárias para sua
superação que ultrapassa sua questão infra-estrutural e se espalha na
lógica desumanizante para todas as relações sociais.
Para isso, não basta somente reconhecer o debate de gênero/sexo
(incluindo sexualidade) e raça/etnia como questões fundamentais,
nem afirmá-las estruturantes sem argumentos consistentes. É preciso
demonstrar suas determinações ontológicas explicitando que, mais que
uma questão de absorção política, a necessidade de refletir sobre essas

- 30 -
temáticas advém da constatação de que são determinações fundamen-
tais à sociedade do capital, sendo a superação de suas desigualdades
tarefas para o esgotamento da unidade exploração-opressão.
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- 33 -
- 34 -
ENTRE APROPRIAÇÃO E DESPOSSESSÃO:
as remoções involuntárias de moradias nas cidades
Betina Ahlert1

INTRODUÇÃO

Esse estudo objetiva apresentar elementos para reflexão da


contraposição entre o direito à cidade e os processos de remoções in-
voluntárias de moradias e famílias de áreas urbanas. Parte do pressu-
posto de que é fundamental nos envolvermos nas cidades, de forma
a desnaturalizar as expressões da desigualdade que nela se materiali-
zam buscando a sua transformação.
A cidade é resultado do trabalho humano, obra coletiva,
possibilidade do ser humano, nas palavras de Robert Park recupera-
das por Harvey (2013, p. 01) “refazer o mundo em que vive mais de
acordo com os desejos do seu coração. Mas, se a cidade é o mundo
que o homem criou, é também onde ele está condenado a viver”. Esse
duplo aspecto toma concretude no modo de produção capitalista.
De lugar de produção, circulação e consumo de mercadorias,
a cidade passa a ser vendida e acessada via mercado e, por isso, é
permeada de uma gama de conflitos resultantes de relações sociais
instituídas através de interesses antagônicos. De um lado, ela repre-
senta valor de uso para a população que dela necessita para a sua so-
brevivência; e de outro, valor de troca para o conjunto de capitais que
a visualizam como possibilidade de renda e expropriação. O direito
à cidade se torna conceito fundamental nesse ínterim, ao representar
as possibilidades de apropriação e pertencimento à cidade (LEFEB-
VRE, 2001) pela classe trabalhadora, um direito coletivo de definir
em que cidade nós queremos viver, quais vínculos queremos ter, que
relação com a natureza, valores estéticos e estilos de vida desejamos
construir. Portanto, ele compreende a liberdade de refazer a cidade e
a si mesmo (HARVEY, 2013).
1 Assistente Social. Professora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-
-graduação em Política Social da Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: betina.
ahlert@ufmt.br. Lates: http://lattes.cnpq.br/9809171485283786. ORCID: https://orcid.
org/0000-0002-3858-7092.

- 35 -
Coloca-se uma contradição evidente entre a efetivação do
direito à cidade e os processos de transformação urbana que acon-
tecem cotidianamente. Os benefícios proporcionados pelo desenvol-
vimento do espaço não são igualmente ofertados e usufruído por
todos/as. A contradição se coloca ainda mais evidente no atual mo-
mento histórico, resultante de um período de democratização e lutas
populares incorporadas na Constituição Federal de 1988, impacta-
das pelas contrarreformas, pelo golpe político e pelo avanço do con-
servadorismo, de forma a diminuir os direitos sociais que coadunam
com o direito à cidade, que se soma à reinvestidas em processos de
remoção forçada e despejos.
A análise apresentada neste capítulo é parte da pesquisa que
integra a tese de doutorado2 da autora, que foi realizada através de
pesquisa bibliográfica e de campo, na análise de dois programas de
remoção de famílias na cidade de Porto Alegre. Apesar do recorte
territorial da pesquisa de campo, pelos estudos realizados percebe-
mos que existem aspectos comuns que estruturam os processos de
remoção involuntária de famílias em diferentes contextos no Brasil.
O artigo discute incialmente a cidade mercantilizada, para
posteriormente localizar as remoções involuntárias de moradias e fa-
mílias nesse contexto, buscando entender a sua utilização como uma
das estratégias de mercantilização e valorização da terra. Por fim,
apresenta elementos vinculados à percepção e às vivências de famí-
lias que sofreram ações de desocupação sobre a insegurança de posse
e o atendimento prestado pelo Estado no processo de desocupação.

1 REFLEXÕES SOBRE AS CIDADES NO CAPITALISMO

As cidades precedem o capitalismo, contudo, é na vigência des-


se modo de produção que elas se transformam e se tornam essenciais
para sua manutenção, “especificidades no processo de urbanização
acompanham as diferentes fases do capitalismo colonial-industrial
ou global financeiro nos países centrais ou periféricos” (MARICA-
TO, 2015, p. 17). Com a expansão dos processos de urbanização, as
cidades assumem um lugar estratégico na produção e reprodução
das relações sociais que mantêm a acumulação capitalista. Nesse sen-
2 Tese de Doutorado intitulada “Cidade do Estranhamento: remoções involuntárias no
espaço urbano”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Ponti-
fícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) no ano de 2017.

- 36 -
tido, no âmbito da teoria crítica, a cidade capitalista se caracteriza,
por um lado, pela concentração dos meios de consumo coletivos,
que criam modos de vida e novas necessidades sociais; e por outro,
e pela aglomeração do conjunto dos meios de produção – capital e
força de trabalho –, condição determinante para a perpetuação do
modelo econômico (LOJKINE, 1979). Ainda há de se considerar que
a urbanização passa a ser uma das estratégias do capital para lidar
com as crises na história da humanidade, em conjunto com os inves-
timentos nas guerras (HARVEY, 2013).
Lefebvre (1999) aponta como as cidades são importantes no
ciclo da mais valia através da análise das funções e estruturas da for-
ma urbana nos três momentos da acumulação: na formação da mais
valia, na sua realização e na sua distribuição. Assim, considera que
na formação da mais valia a cidade não é essencial, mas sim a indús-
tria e a produção agrícola. Contudo, ela dá as condições de fundo
para o desenvolvimento da sociedade burguesa e da força produtiva,
porque mantém a divisão do trabalho. Na realização da mais valia
a urbe passa a primeiro plano, em decorrência da existência de um
mercado e de um sistema bancário que permitem ao dinheiro cum-
prir sua função: parâmetros de valor de troca, circulação de merca-
dorias, meios de pagamento. Do ponto de vista da distribuição da
mais valia, a forma urbana passa ao nível mundial, já que existe um
mercado para além das fronteiras nacionais.
A estrutura que possibilita a mercantilização da cidade é a
propriedade privada de uma maneira geral e a propriedade privada
da terra, em particular. Essa última é que possibilita que o capitalista
tenha renda sem mesmo investir na mesma, posto que o Estado tem
papel fundamental de garanti-la e protegê-la (LEFEBVRE, 2009).
Enquanto representante da burguesia, o Estado passa a desenvolver
funções essenciais para a formação do espaço urbano como campo
de investimento gerador de mais valia (ROLNIK, 1995). Além disso,
é também ele que cria o marco regulatório e os instrumentos legais
que visam garantir a proteção da propriedade privada.
Não conseguiremos neste estudo aprofundar a análise so-
bre o papel das cidades para a manutenção da acumulação através
de uma leitura histórica, restringimo-nos a realizar apontamentos
sobre seu entendimento na teoria crítica e no contexto atual, a partir
do entendimento do regime de acumulação flexível, que tem como

- 37 -
pilares a mundialização da economia, a globalização e a financei-
rização do capital (CHESNAIS, 1996), que redirecionam os papéis
do Estado e do mercado. Para Behring (2008), nesse período houve
“uma reformulação das estratégias empresariais e dos países no âm-
bito do mercado mundial de mercadorias e capitais, que implica uma
divisão do trabalho e uma relação centro/periferia diferenciadas do
período anterior, combinada ao processo de financeirização” (BEH-
RING, 2008, p. 34).
No redirecionamento do papel do Estado e do mercado,
as cidades e a política urbana são fundamentais para a expansão
do neoliberalismo. A inserção do Brasil nessa etapa do capitalismo
está condicionada aos ajustes estruturais, que ditam as privatizações
e a forma de condução das políticas sociais baseada na redução de
investimentos. O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco
Mundial assumem um novo papel através dos financiamentos para
os países impactados pela crise econômica (SANTANA, 2013). Nes-
se pacote de financiamento, os organismos internacionais se colo-
cam como coordenadores políticos e econômicos “[...] dos interesses
capitalistas à medida que atuam como inteligência geral do capital,
isso porque embutidas no financiamento estão uma série de orienta-
ções políticas, econômicas e sociais, as quais podem ser consideradas
como prescrição de modelos de gestão” (SANTANA, 2013, p. 21-22)
destinado aos governos nacionais.
Nesse contexto, a mundialização financeira se estabelece a
partir de três elementos constitutivos: desregulamentação, desinter-
mediação e abertura de mercados financeiros nacionais, o que ga-
rante liberdade ao capital (CHESNAIS, 1996). Para atender as ne-
cessidades da mundialização, a cidade passa a ser a cidade global.
Nela, é necessária a superação da ideia da cidade como um sistema
racionalizado e automatizado de produção e consumo de massas,
onde está presente a estratificação de classe, e sua substituição pelo
individualismo e empreendimentismo, marcados pela posse e apa-
rência (HARVEY, 1989).
Na financerização do capital, alguns aspectos sobre as cidades
merecem ser destacados. O primeiro é que o capital financeirizado
acirrou a competição entre as cidades que buscam promover um
“bom clima para os negócios”, ao mesmo tempo em que a crise eco-
nômica e a diminuição dos investimentos públicos no campo social

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trouxeram consequências como parques industriais e equipamen-
tos obsoletos e a popularização de áreas centrais. Por outro lado, a
dinâmica econômica global alterou geograficamente as relações de
produção, em decorrência da redução dos custos do transporte e de
barreiras espaciais, tornando a distância das matérias-primas e do
mercado aspecto de menor importância no rearranjo global.
A competição e sua consequente desregulamentação são
perpetuadas sob o discurso da necessidade de governos locais e na-
cionais receberem investimentos, de promoverem desenvolvimento,
de darem respostas às crises econômicas. A renda fundiária da terra
se restabelece de diferentes formas nas particularidades do capitalis-
mo financeiro. Nesse contexto, os organismos internacionais, além
de sua participação através dos programas de ajuste estrutural, no
sentido de promover a mercantilização e financeirização da mo-
radia, têm importância porque dissemina esse modelo de política
(ROLNIK, 2015).
O segundo aspecto, que de certa forma está relacionado ao
primeiro, é que as cidades representam possibilidades aos megane-
gócios, obras de infraestrutura e edificações (MARICATO, 2014).
Diante desse cenário, “dar determinada imagem à cidade através da
organização e de espaços urbanos espetaculares se tornou um meio
de atrair capital e pessoas (do tipo certo) num período [...] de com-
petição interurbana e de empreendimentismo urbanos intensifica-
dos” (HARVEY, 1989, p. 92).
O terceiro aspecto a destacar é que essa cidade global, que
pretende atender ao capital, se perpetua ainda pelo discurso de ins-
trumentos de gestão, como é o caso do Planejamento Estratégico
(FIX, 2011). Essa forma de planejamento assumiu um lugar central
na gestão das urbes, através das ideias de cidade-corporativa, cidade-
-pátria, cidade-mercadoria, cidade-empresa (ARANTES, VAINER;
MARICATO, 2000). Perpassa, portanto, uma lógica empresarial e de
retorno ao civismo e ao patriotismo, onde a cultura tem lugar central
por meio dos projetos de revitalização urbana. Ainda que na Moder-
nidade já houvesse ligação das cidades com a divisão social do traba-
lho e com a acumulação capitalista, nesse contexto, do planejamento
estratégico, “há algo novo a registrar [...] as cidades passaram elas
mesmas a serem geridas e consumidas como mercadorias” (ARAN-
TES, 2000, p. 26).

- 39 -
Nesse sentido, uma das principais estratégias engendradas no
contexto do empreendedorismo urbano são as Parcerias Público-
-Privadas (PPPs), que assumem um “novo papel da terra urbana na
produção financeirizada das cidades” (ROLNIK, 2015, p. 224). Não
é somente uma competição por localização e pelo uso mais rentável
da terra pelo mercado, “mas de uma nova forma de agenciamento
da terra [...] promovida por corporações que articulam engenharia,
gestão de obras e projeto e produtos financeiros” (ROLNIK, 2015, p.
224).
Para atender a esses aspectos, necessários à cidade mercan-
tilizada no capitalismo financeiro, reiteram-se processos de expro-
priações de terras e meios de produção e de despossessão através de
remoções de moradias e despejos forçados. A despossessão é uma
forma de multiplicar o valor da terra, muitas vezes acionada median-
te o discurso do interesse público (ROLNIK, 2015). Cabe, portan-
to, uma análise crítica do empreendedorismo urbano (FERREIRA,
2014), em primeiro lugar porque quem arca com os custos de sua
implementação são as pessoas empobrecidas, já que os beneficiados
costumeiramente são as empresas privadas, o capital imobiliário e
o capital da construção civil. Em segundo lugar porque, por mais
que o discurso pregue a emergência de um grande número de em-
pregos para sociedade sufocada pela crise, o que observamos é que
grande parte dos que são gerados está no campo da informalidade.
Em terceiro lugar porque existe um sentimento permanente de ins-
tabilidade no sistema urbano, pois não existem garantias em termos
do investimento. Em suma, os problemas sociais mais sérios estão
sendo mascarados através de projetos urbanos que são superficiais e
acabam por construir uma cidade marcada pela desigualdade e pela
urbanização da pobreza, governança autoritária e vigilância social,
tornando as cidades cúmplices de sua própria subordinação.

2 REMOÇÕES INVOLUNTÁRIAS: EXPROPRIAÇÕES E


DESPOSSESSÃO NA CIDADE

As remoções involuntárias são parte da história das cidades e


do campo no Brasil. Na formação sócio-histórica desse país, a con-
centração de terras, a regulamentação do acesso à terra mediante a
compra com a Lei de Terras de 1850, a expulsão dos camponeses

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do campo e a realidade do trabalho superexplorado, condicionam
a forma como se dará a urbanização de baixos salários no Brasil
(MARICATO, 2015). Como a habitação nunca foi uma preocupa-
ção para o capital e poucas vezes para o Estado (MARICATO, 2015),
as ocupações de terras foram incentivadas e toleradas em diferentes
momentos históricos, já que possibilitavam locais de moradias para
os/as trabalhadores/as e suas famílias. Em contraponto, em outros
momentos foram controladas, vigiadas e violentamente removidas.
Além da violência policial, outras estratégias são utilizadas, como
incêndios criminosos em áreas de interesse privado, além dos me-
canismos ligados a manipulação e ao convencimento de lideranças
locais.
As remoções de moradias seguem sendo executadas sob di-
ferentes interesses e justificativas, dentre elas o discurso do risco, o
desenvolvimento urbano, a execução de obras públicas (e privadas),
os megaeventos e megaprojetos, o discurso do combate ao crime etc.
Escondem motivos outros como a busca pela homogeneidade eco-
nômica, o controle da ocupação de determinados territórios, a hi-
gienização – por meio das remoções de moradias, mas também das
regulações de ocupação do espaço público. Elas se somam a diversas
experiências de expulsões que acontecem no mundo em decorrên-
cia de crimes e desastres ambientais, guerras, entre outros (SASSEN,
2016). No que se refere aos países de capitalismo periférico, Davis
(2005) aponta que acontecem anualmente, em uma enorme escala
populacional, através de despejos forçados.
Apesar das remoções poderem afetar diferentes grupos popu-
lacionais, indiferente de serem possuidores ou não de documentos
formais de propriedade, de uma maneira geral atinge aqueles que
vivem na condição de insegurança de posse, em decorrência da so-
breposição que toma propriedade privada, em detrimento de outras
formas de ocupação. Essa situação coloca as pessoas em uma situa-
ção de maior vulnerabilidade jurídica, no que se refere a resistências
e negociações com o executor desses processos. As remoções for-
çadas nesse ínterim constituem uma crise de insegurança de posse,
que atinge principalmente as regiões centrais das cidades, ou as cha-
madas novas centralidades urbanas, e possuem, portanto, interesses
econômicos e privados.

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As remoções forçadas são seu sinal mais visível e chocante. Não há
estatísticas globais e abrangentes sobre remoções forçadas, mas as
estimativas dos casos reportados por organizações humanitárias,
assim como os comunicados recebidos pela Relatoria Especial da
ONU para o Direito a Moradia Adequada, confirmam que as re-
moções forçadas ocorrem por toda parte e afetam milhões de pes-
soas por ano. [...] Os impactos negativos das remoções são enormes:
aprofundam a pobreza e destroem comunidades, deixando milhões
de pessoas em situação extremamente vulnerável (ROLNIK, 2015,
p. 149).

A insegurança de posse tem por base o direito reconhecido


e sobreposto aos demais, que é o da propriedade privada. A grande
maioria dos processos de expulsão e remoções é resultado da ação
humana, que se materializa na sociedade através da relação entre
diferentes agentes. No Brasil, entendendo a ocupação do solo ur-
bano como conflituosa, podemos apontar agentes vinculados a um
conjunto de capitais (capital imobiliário, capital da construção civil,
capital financeiro, entre outros); à classe trabalhadora que vivencia
seu cotidiano de vida nas cidades; e ao Estado brasileiro, vincula-
do ao capital nacional e internacional. “Os mecanismos de aquisição
das terras públicas, assim como o aparato jurídico (ou sua ausência)
que sustenta os processos de expropriação, são profundamente de-
pendentes das relações políticas estabelecidas entre o Estado – que
expropria – e os indivíduos e comunidades – que são expropriados”
(ROLNIK, 2015, p. 228).
Nesse sentido, as políticas de regulação do solo e habitação
são perpassadas de contradições decorrentes da instituição de po-
líticas no sistema capitalista de produção, ou seja, em última ins-
tância não pretendem mudar a essência dos problemas sociais, mas
possibilitar a manutenção do sistema. E, dessa forma, desempenham
papel importante na relação entre a segurança e a insegurança da
terra, principalmente por meio da manutenção da propriedade pri-
vada individual como hegemônica diante de outras formas de posse
também nos programas habitacionais e fundiários (ROLNIK, 2015).

Fundamentalmente, a insegurança da posse é uma questão de eco-


nomia política – leis, instituições e processos de tomada de decisão
relacionados ao acesso e ao uso da moradia e da terra são atravessa-
dos pelas estruturas de poder existentes na sociedade. Assim, tanto
as formas de gestão do solo como as estratégias de planejamento
urbano têm uma enorme incidência sobre as possibilidades de aces-

- 42 -
so – ou bloqueio – à terra urbanizada para os moradores de menor
renda (Banco Mundial, 2013). É no interior dessa trama jurídico-
-administrativa que se tecem os mecanismos de inclusão/exclusão
na cidade (ROLNIK, 2015, p. 151-152).

É nesse contexto que as áreas ocupadas informalmente se ca-


racterizam como exército de reserva para a valorização imobiliária.
Com a valorização imobiliária, os custos de vida se tornam mais ele-
vados, dentre eles o valor dos aluguéis ou até mesmo a compra de
outra moradia no entorno, quando da necessidade de desocupação.
Costumeiramente, apropria-se o discurso do risco da área ocupada
e da necessidade de melhorias habitacionais para trabalhar o con-
vencimento da população atingida (ROLNIK, 2015; DAVIS, 2006).
Assim, a área desocupada pode ser “convertida em mobilização de
novas reservas de terra, sob a égide do argumento de ‘reconstruir
melhor’. Este pode ser mais um dos mecanismos de operação da des-
possessão” (ROLNIK, 2015, p. 242).
Os locais de onde são retiradas as moradias e as famílias que
as habitam passam por processos de valorização imobiliária, po-
tencializados exatamente pela retirada da população. Em realidade,
esta, em geral empobrecida, acaba por ser reassentada em locais dis-
tantes dos de origem, o que desencadeia dificuldades em relação ao
deslocamento na cidade, ao acesso à benefícios urbanos e locais de
trabalho. O que podemos observar é que, no caso daquelas que são
indenizadas, é impossível adquirir imóveis no entorno da região de
origem em decorrência do preço que os mesmos tomam no local: “é
na diferença entre o que é pago para os seus ocupantes para ‘liberar’
a terra e a expectativa de seu rendimento futuro que reside a base do
sucesso dessa forma de urbanismo especulativo” (ROLNIK, 2015, p.
228).
Acreditamos que os processos de remoção e reassentamento têm
vários aspectos a serem considerados, e que não conseguiremos aqui
abordá-los em sua totalidade. O que sugerimos ser importante apontar
é que são processos extremamente contraditórios. Ao tempo em que as
necessidades habitacionais são evidentes na realidade brasileira e a pre-
cariedade – em aspectos como o habitacional, a salubridade, a violência
urbana, a insegurança de posse e o risco geológico - é vivenciada pelas
famílias, a forma com que se efetivam as políticas de reassentamento
involuntário reproduzem a desigualdade social e urbana.

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As remoções e reassentamentos involuntários são parte de um
complexo sistema que se institui nas cidades. Eles retratam, por um
lado, a regulação seletiva e intencional do solo urbano que impulsio-
na a valorização imobiliária de determinadas áreas das cidades, nas
quais existe interesse de incorporadores imobiliários. Por outro, são
parte de um conjunto de “processos em curso de criminalização e
fortalecimento do estigma territorial” (ROLNIK, 2015, p. 252), como
as conhecidas leis de proibição de vendedores ambulantes, de circu-
lação de carroças, entre outras, que, na realidade, reinventam antigas
políticas higienistas e de controle.
Entre o direito à cidade e processos de remoção existe uma
incompatibilidade bastante óbvia: o desejo de desocupação dos atin-
gidos e a prerrogativa legal que o Estado possui na determinação das
áreas que deverão ser desocupadas. Parece-nos uma relação desigual
de poder que se institui entre Estado, mercado e população atingida,
apesar de o princípio da participação popular estar instituído nos
programas governamentais. Contudo, as críticas que possamos tecer
em relação às remoções de famílias não podem defender somente a
permanência das famílias em seu local de origem desacompanhadas
de melhorias urbanísticas e estratégias de diminuição da desigual-
dade social. Nesse contexto, é fundamental buscarmos identificar
como a população empobrecida vivencia a insegurança de posse em
seu cotidiano, sobre isso discorreremos na sequência, ao apresentar-
mos resultado de pesquisa em dois programas de remoção e reassen-
tamento de famílias.

3 A INSEGURANÇA DE POSSE A PARTIR DAS REFLE-


XÕES DOS ATINIGIDOS PELAS REMOÇÕES

A construção da cidade é permeada por diferentes atores
em constante relação, que a transformam de acordo com interesses
diversos e, por vezes, formam alianças. Nessa relação entre a cons-
trução do espaço e as alianças, em que se institui a hegemonia da
propriedade privada individual, impera e determina uma forma es-
pecífica de se relacionar com o território e com a terra, capaz de re-
produzir desigualdades socioespaciais e separar legalmente os ocu-
pantes tidos como formais, dos informais.

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[...] a hegemonia da propriedade individual escriturada e registrada
em cartório sobre todas as demais formas de relacionamento com
o território habitado constitui um dos mecanismos poderosos da
máquina de exclusão territorial e de despossessão em marcha nos
contextos dos grandes projetos, sejam eles de expansão da infraes-
trutura e desenvolvimento urbano, sejam de reconstrução pós-de-
sastres. Na linguagem contratual das finanças, os vínculos com o
território são reduzidos à unidimensionalidade de seu valor eco-
nômico e a perspectiva de rendimentos futuros, para os quais a ga-
rantia de perpetuidade da propriedade individual é uma condição
(ROLNIK, 2015, p. 13).

A diferenciação que se institui entre formalidade e informali-


dade da ocupação, mediante a existência – ou não – de documento
que comprove a propriedade individual, é tema recorrente no coti-
diano da cidade. Essa diferenciação reserva direitos distintos para
aqueles que possuem o título de propriedade, em relação àqueles que
não possuem. Desde a criação da Lei de Terras no Brasil em 1850, a
afirmação da propriedade individual “marca a definição dos meios
de acesso a terra, através da qual se proibiu outro tipo de titulação
das terras que não o da compra” (ALFONSIN, 1997, p. 36).
Outras formas de acesso como as ocupações e as favelas pas-
sam a ser, então, historicamente criminalizadas. A ordem legal de-
sempenha um papel fundamental na manutenção da estrutura de
acesso à terra e à moradia. Historicamente, a legislação brasileira de
regulação do solo contribuiu para a expansão e consolidação das fa-
velas como um elemento, ao mesmo tempo, marginal e estrutural na
cidade. Assim, essa situação ambígua torna-se parte integrante da
cidade e acentua processos de exclusão e dualização urbana (MA-
GALHÃES, 2013).
Essa legislação, ao promover a associação sistemática entre favelas
e ilegalidade, excluindo-as da chamada cidade formal e do campo
jurídico, sempre comportou a possibilidade de erradicação das fave-
las, confinando-as legalmente ao construí-las como espaços oficial-
mente inexistentes, o que criou entraves formais ao investimento
público nas favelas, bem como à regularização das edificações e dos
estabelecimentos comerciais aí fixados. A ordem legal estatal teria
contribuído para legitimar a precariedade nas favelas, bem como
para construir uma espécie de duplicidade de mundos na cidade.
(MAGALHÃES, 2013, p. 28 – grifos do autor).

No cotidiano de vida da classe trabalhadora que habita as


áreas de ocupação, a insegurança de posse e as reflexões em torno

- 45 -
da titularidade da propriedade do imóvel são vividas e percebidas
de diferentes formas. Apontamos alguns aspectos que emergiram
em pesquisa de campo3 para aprofundar essa reflexão. Inicialmente,
destacamos que as remoções e reassentamentos involuntários têm na
insegurança de posse a base para sua execução. Existe um sentimen-
to permanente de incerteza em relação à moradia que acompanha a
vida das lideranças comunitárias e dos moradores de áreas de ocu-
pação. Isso se dá pela inexistência do documento de propriedade e,
também, por diferentes motivos, dos quais dois merecem destaque:
em primeiro, muitos dos moradores dessas áreas, ou seus familiares,
já sofreram despejo em momentos anteriores, ou seja, as remoções
fazem parte da história familiar; segundo, pelo tempo que decorre
do período em que as famílias são cadastradas para desocupação e,
efetivamente, são removidas4.
Nesse caso, muitas vezes, durante anos as famílias sabem que
possivelmente serão removidas, mas não sabem quando ou como se
dará o processo, haja visto que o direito à informação é facilmente
desrespeitado nas ações de remoção. Fazem parte das narrativas dos
moradores, por exemplo, o fato de que eles não fazem melhorias no
imóvel de moradia porque sabem que serão demolidos e que per-
deriam o dinheiro investido, o que pode ocorrer, efetivamente anos
após o cadastramento das casas a serem desocupadas. A situação se
complexifica quando as remoções estão vinculadas a realização de
megaeventos esportivos, como aconteceu no Brasil entre os anos de
2014 e 2016 com, respectivamente, a Copa do Mundo de Futebol e as
Olimpíadas. Relatos apontam o sentimento de desespero despertado
na população empobrecida e atingida pelas obras públicas, por não
saber de seu futuro.
A contraposição entre propriedade privada e ocupação e evi-
dencia outras contradições. Uma delas se materializa quando áreas
lindeiras, umas com e outras sem titulação, recebem tratamento di-
3 A pesquisa de campo realizada para a tese de Doutorado da autora envolveu a realiza-
ção de entrevistas com lideranças comunitárias de duas áreas de remoção da cidade de
Porto Alegre, nos programas denominados Programa Integrado Socioambiental e Pro-
jeto Nova Tronco, observação dos participantes em reuniões com as Comissões de Mo-
radores e poder público e do Orçamento Participativo do território em questão. Ambos
programas trabalhavam com a remoção e o reassentamento de famílias para execução
de obras públicas, o primeiro de drenagem urbana, e o segundo de duplicação de uma
avenida. Ao todo, indicavam a remoção de mais de 3.000 moradias
4 A título de exemplo, no caso do Programa Integrado Socioambiental existiam famílias
cadastradas para remoção, sem terem sido atendidas, há cerca de 10 anos.

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ferente na desocupação. A diferença se materializa tanto nos valores
de indenizados para moradores que necessitam desocupar, indife-
rentemente tanto ao tempo de moradia no local, quanto na forma
de negociação com as famílias que são proprietárias e com as famí-
lias que são ocupantes. Dessa forma, por mais que aqueles que são
desapropriados também necessitem desocupar seu imóvel, o valor
financeiro e a forma de repasse do recurso são diferentes daqueles
atendidos pela política de habitação de interesse social. Os que são
desapropriados recebem valores superiores, condizentes a avaliação
de mercado realizada, e podem questionar judicialmente o valor an-
tes da desocupação. Além disso, podem receber a indenização sob
a forma de dinheiro, pago em cota única. Já no caso das famílias
posseiras, observamos em nosso estudo que o valor pago resulta-
va em aproximadamente seis vezes menos do que aos proprietários.
Além disso, esse grupo de removidos, necessita indicar imóvel para
reassentamento, nas regras estabelecidas pela legislação municipal,
portanto, não possuía possibilidade de escolha em relação a diversos
aspectos relacionados à aplicação da indenização, tendo que fazer
uma compra assistida5 de uma casa, onde o poder público transferia
o valor da indenização para o vendedor.
Esse procedimento de compra assistida, ou seja, controlada
pelo poder público, estava baseado na crença de alguns gestores de
que se os ocupantes recebessem o pagamento em dinheiro o gasta-
riam de outras formas que não na aquisição do imóvel, e estariam
novamente em situação de vulnerabilidade habitacional. Se, por um
lado, isso pode demonstrar uma preocupação com um real atendi-
mento habitacional, por outro retira da família a autonomia no pro-
cesso, o que, possivelmente, trouxesse mais efetividade na constru-
ção de pertencimento no novo local de moradia.
Ao mesmo tempo em que a compra assistida permitia a
aquisição de um imóvel, onde não houvesse insegurança de posse,
já que regular, ela reproduzia uma série de questões, entre as quais
apontamos: i) reiterava a impossibilidade de permanência na região
5 Consiste em uma alternativa de reassentamento onde o poder público adquire uma
moradia no mercado imobiliário, indicada pela família para seu reassentamento. Impor-
tante destacar que na ocasião da pesquisa o valor de indenização era de R$ 52.340,00, e
que o imóvel indicado deveria possuir matrícula no registro de imóveis e não possuir
nenhuma pendência de tributos. Vários outros aspectos como o tempo necessário para a
compra, e ainda a rentabilidade gerada para os Tabelionatos poderia ser problematizada
ainda sobre esse tema.

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de origem que já sofria valorização imobiliária, fazendo com que o
valor da indenização não alcançasse o preço dos imóveis no bairro;
ii) responsabilizava o beneficiário do programa habitacional de en-
contrar no mercado imobiliário um imóvel que atendesse às regras
e ao valor estabelecido pela prefeitura, o que restringia por demais
o número de imóveis ofertados no mercado; iii) os programas ha-
bitacionais que vinham utilizando do reassentamento com compra
assistida, não foram geridos de forma a considerar outras possibili-
dades de atendimento habitacional. Explicamos: quando pautados
pelo poder público indicavam também a possibilidade de a família
optar pelo reassentamento em unidade habitacional em área pró-
xima à de origem, que deveria ser construída pelo poder público.
Contudo, o que se observa são o descompasso nas formas de atendi-
mento e o descumprimento das combinações iniciais dos programas
pesquisados no que tange às formas de reassentamento, a considerar
ainda que o valor dispendido pelo poder público na compra assistida
é menor que o reassentamento em unidades habitacionais. Ao tempo
em que não foram executadas as moradias na região de origem, e
que a retenção de áreas é comum na formação da especulação nas
cidades, a população passa a desacreditar na permanência na região
de origem, o que efetivamente não aconteceu até a data em que este
artigo foi escrito.
Não existindo, na prática, a possibilidade de permanência
imediata no local, observamos que muitas famílias acabaram op-
tando pela alternativa de permanência provisória em imóveis alu-
gados através de aluguel social6. Muitas críticas foram realizadas à
generalização dessa forma de atendimento permeada por atrasos de
pagamento por parte do poder público, ausência de garantias para
locadores e locatários e processos de despejos. Observamos outro
aspecto fundamental, que é o fato de que o aluguel deveria ser alter-
nativa transitória de moradia, contudo, frequentemente essa provi-
soriedade durou anos para algumas famílias.
Na situação de aluguel social, a insegurança de posse se man-
tém ou é até mesmo acentuada quando comparada ao momento an-
6 O aluguel social se tratava de um programa de moradia provisória, composto por dois
grupos: no caso de famílias que necessitavam ocupar áreas de obras públicas; e no caso
de situações de complexa vulnerabilidade social. Operacionalmente. estava estruturado
através do paramento mensal, procedido pelo poder público, a locadores de casas onde
as famílias removidas passavam a habitar. Na ocasião da pesquisa, o valor correspondia
a até R$ 500,00 mensais.

- 48 -
terior de moradia. Ali, a insegurança estava relacionada a um pos-
sível processo de remoção ou reintegração de posse; nesse caso, está
relacionada ao efetivo despejo, diante dos constantes atrasos dos pa-
gamentos do aluguel social por parte do poder público.
Para Davis (2006), os trabalhadores urbanos que residem em
imóveis alugados ficam ainda mais vulneráveis, porque costumeira-
mente não conseguem se organizar enquanto coletivo. Isso aconte-
ce com as famílias que pesquisamos, já que a identidade coletiva é
construída em grande parte pelo território comum e, com a saída, o
vínculo comunitário acaba enfraquecendo. Além disso, o que obser-
vamos é que as condições de moradia e de infraestrutura dos bairros
onde existem imóveis nos valores do aluguel social não são neces-
sariamente melhores do que as de origem. Além do valor, que não
permite aluguéis em muitos lugares da cidade, a legislação municipal
permite locação em locais informais e fiscaliza um número reduzido
dos mesmos. Outra questão que diz respeito ao atendimento habita-
cional com aluguel social é que não existe sentimento de pertenci-
mento na relação das famílias com os imóveis.

[...] habitação que ele não pode considerar como lar – onde, final-
mente, pudesse dizer: aqui estou em casa – onde ele se encontra
muito mais em uma casa estranha, na casa de outro que o espreita
diariamente e que o expulsa se não pagar o aluguel. Igualmente, do
ponto de vista da qualidade, vê sua casa como oposto à habitação
humana situada no além, no céu da riqueza (MARX, 1974, p. 28).

Ao recuperar esses aspectos, percebemos que a insegurança


de posse, tanto nas áreas de ocupação, quanto na condição de be-
neficiários do aluguel social, acabava fazendo com que as pessoas
encaminhassem imóveis para reassentamento através da compra as-
sistida, “vencidas pelo cansaço” em decorrência do tempo de espe-
ra em relação à construção de unidades habitacionais. Percebemos
ainda que o reassentamento através da compra assistida reproduz a
mesma localização dos grandes conjuntos habitacionais nas franjas
urbanas da cidade e até mesmo em outros municípios vizinhos, des-
considerando aspectos fundamentais do direito à cidade e mantendo
ativa a engrenagem da desigualdade socioterritorial fundamental na
cidade do capital.

- 49 -
CONCLUSÃO

Na perspectiva que assumimos de considerar a cidade en-


quanto resultado do trabalho humano coletivo, que, no capitalismo
é transformada também em mercadoria e apropriada privadamente,
nos é permitido referendar que no cotidiano da cidade os homens
e mulheres estão sujeitos à alienação, de forma a naturalizar a desi-
gualdade socioterritorial que perpetua na estrutura dos espaços ur-
banos. Os homens e as mulheres não se reconhecem na cidade que
aparece alheia e de forma estranhada a eles. O conceito de direito à
cidade permite retomarmos a importância da reapropriação da ci-
dade.
Contudo, diversas estratégias são utilizadas para tornar a ci-
dade interessante ao capital ao longo da história desse sistema de
produção, algumas delas se reinventam e perpetuam e, dentre elas,
destacamos as expulsões e remoções de moradias. Elas têm sido efe-
tuadas com justificativas que mascaram os desejos do mercado de
valorização e rentabilidade. Com isso, torna-se importante visuali-
zar como a população empobrecida, que é atingida pelos programas
governamentais que utilizam de remoções, percebe o seu cotidiano
através da insegurança de posse, sentimentos de ameaça de que a
qualquer momento pode sofrer despossessão da terra e da casa que
ocupa.

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- 52 -
A POLÍTICA DA MISERABILIDADE:
COMO A FINANCEIRIZAÇÃO E AS
POLÍTICAS GOVERNAMENTAIS LEVAM AO
EMPOBRECIMENTO DO TRABALHADOR
Jonas Albert Schmidt1
Evilasio da Silva Salvador2

INTRODUÇÃO

Este texto tem por objetivo discutir o empobrecimento, a par-
tir da perda de renda dos trabalhadores, principalmente os bene-
ficiários dos regimes previdenciários públicos, como consequência
das escolhas das políticas públicas (econômicas e sociais) governa-
mentais. Para tanto, situa o debate das contrarreformas previdenciá-
rias, após a Constituição Federal de 1988, no âmbito da financeiri-
zação e das políticas sociais e problematiza as implicações para os/as
trabalhadores/as, a partir de breves indicadores econômicos.

2. FINANCEIRIZAÇÃO E POLÍTICAS SOCIAIS3


O Capital Portador de Juros e seus “filhotes” na forma de ca-
pital fictício, como está identificado por Marx, no Livro 3, O Ca-
pital (MARX, 2017), é fundamental para o entendimento das rela-
ções econômicas e sociais da atualidade e da atual crise em curso no
capitalismo contemporâneo (CHESNAIS, 2005). Os juros da dívida
pública pagos no orçamento público ou a conhecida despesa “serviço
da dívida” do orçamento estatal (juros e amortização) são alimen-
tadores do capital portador de juros por meio dos chamados “in-
vestidores institucionais” que englobam fundos de pensão, fundos
coletivos de aplicação, sociedades de seguros e bancos que adminis-
tram sociedades de investimentos, portanto, operam no sentido da
captura do fundo público para uma fração da burguesia financeira.
1 Advogado previdenciarista, mestre em Política Social (UFMT) e doutor em Política
Social (UnB).
2 Professor da Universidade de Brasília (UnB), no departamento de Serviço Social e no
Programa de Pós-Graduação em Política Social.
3 Baseado em Salvador (2019).

- 53 -
Convém destacar que a relação capital-trabalho tem configu-
ração diferente nos países periféricos em relação aos países centrais.
Marini (2011) chama a atenção para o fato de que as economias de-
pendentes são baseadas em transferências de valores resultantes da
troca desigual no mundo capitalista e, portanto, têm como cerne a
superexploração da força de trabalho. Com isso, a cumulação capi-
talista e por corolário os recursos alocados pelo fundo público nas
políticas sociais têm particularidades de uma economia subordinada
e periférica no mundo capitalista.
De acordo com Mészáros (2002), enfrenta-se uma situação
de crise estrutural do capital, com parcela significativa da popula-
ção mundial vivendo em condições extremamente precárias. O de-
semprego estrutural reinante, o subemprego, os sistemas públicos de
saúde e educação deficientes, a fome e a proliferação de favelas – ape-
sar das promessas liberais de pleno emprego, progresso para todos e
fim da pobreza – são algumas das consequências nefastas de tal crise.
A estratégia do capital consiste em contornar os empecilhos
e resistências encontrados, quando não é possível superá-los direta-
mente, o que gera inúmeros antagonismos sociais, acirra as lutas de
classe, aumenta a vulnerabilidade dos trabalhadores e potencializa as
refrações da questão social (MÉSZÁROS, 2002).
A característica comum a todas as crises do capital dos últi-
mos 30 anos é o comparecimento do fundo público para socorrer
instituições financeiras falidas durante as crises bancárias, à custa
dos impostos pagos pelos cidadãos. A financeirização implica pres-
são sobre a política social, especialmente as instituições da segurida-
de social, pois aí está o nicho dos produtos financeiros. Com isso, as
propostas neoliberais incluem a transferência da proteção social do
âmbito do Estado para o mercado, a liberalização financeira passa
pela privatização dos benefícios da seguridade social. É no mercado
que devem ser comprados o benefício de aposentadoria, o seguro de
saúde, que são setores dominantes nos investidores institucionais.
Ou seja, benefícios da seguridade social são transformados em mais
um “produto” financeiro, alimentando a especulação financeira, tor-
nando as aposentadorias de milhares de trabalhadores reféns das cri-
ses internacionais.
No âmbito das transformações contemporâneas do capitalis-
mo ocorre o desenvolvimento de instituições especializadas - como

- 54 -
os investidores institucionais, os fundos de pensão, fundos coletivos
de aplicação, sociedades de seguros, bancos que administram socie-
dades de investimentos -, que faz da centralização dos lucros não
reinvestidos das empresas e das rendas poupadas das famílias, prin-
cipalmente por meio dos planos privados de previdência e da pou-
pança salarial, o caminho de uma acumulação financeira de gran-
de dimensão. De forma que a acumulação financeira acontece pela
centralização nessas instituições especializadas de lucros industriais
não reinvestidos e de rendas não consumidas que têm por finalidade
a função de valorizá-los na forma de ativos financeiros, buscando
mantê-los fora da produção de bens e serviços.
Um dos principais beneficiários dessas políticas são os fundos
de pensão, que têm apresentado um crescimento extraordinário no
país, com seus ativos evoluindo acima do crescimento do PIB. De
acordo com Granemann (2006), esse desempenho tem relação direta
com a erosão da previdência pública no Brasil. Essa tem sido uma
condição econômica e financeira, além de ideológica para a constru-
ção da previdência complementar, enquanto a previdência privada
faz a mediação para realização do capital portador de juros, mobili-
zando bilhões de recursos em “investimentos” em mercados de capi-
tais e capitais fictícios de dimensão especulativa. No lado ideológico,
a cultura de crise da previdência pública faz surgir a “confiança nas
instituições típicas da forma capital portador de juros como o lugar
eficiente para a garantia das aposentadorias” (GRANEMANN, 2006,
p. 10). Como afirma a autora, a opção por comportamentos especu-
lativos dos fundos de pensão é visível pelo predomínio de receitas
lastreadas nos títulos da dívida geridos pelo setor financeiro.
A canalização de recursos para a esfera financeira da econo-
mia é articulada pela inter-relação entre Orçamento Fiscal e Orça-
mento da Seguridade Social, que garante a rentabilidade do capital
portador de juros (SALVADOR, 2010).
Com o golpe de 2016 e a ascensão ao poder do presidente Te-
mer, ocorre um recrudescimento da ofensiva do capital, voltando
com carga a ortodoxia neoliberal com brutal corte de direitos so-
ciais, sobretudo, no campo do financiamento público, como denota
o Novo Regime Fiscal (NRF), aprovado pela Emenda Constitucional
n. 95. O NRF inviabiliza a vinculação dos recursos para as políticas
sociais, nos moldes desenhados na Constituição Federal de 1988, ao

- 55 -
congelar as chamadas despesas primárias do governo (exceto as des-
pesas financeiras com o pagamento de juros da dívida) por 20 anos,
limitando-se à correção pela inflação.
A formatação e a adequação das políticas sociais às finanças
têm como um dos elementos a contrarreforma do Estado. No caso
brasileiro, o melhor exemplo é a Previdência Social que sofreu cortes
de direitos e dificuldades de acesso aos benefícios na esfera públi-
ca (Emendas Constitucionais 20/1998 e 41/2003). Para Granemann
(2007, p. 59), “o novo modelo passa a enformar a organização dos
serviços sociais nas suas dimensões econômica, ideológica e política,
razão pela qual, independentemente da natureza pública ou privada,
esses serviços são ideologicamente denominados, inclusive mesmo
no âmbito da ação filantrópica dos capitais privados” nas diversas
formas de privatização do fundo público, estatal, transferidos para
os mais variados agentes privados.
A contrarreforma previdenciária do governo Bolsonaro (EC
103/2019) é um verdadeiro desmonte do sistema previdenciário,
tendo como um dos seus pontos centrais a implementação de um
regime financeiro capitalizado na Previdência Social, privatizando o
sistema previdenciário com sua entrega ao sistema financeiro e limi-
tando-se à contribuição dos empregados.
Retoma-se com força a agenda neoliberal, proposta ainda na
década de 1980 e implementada parcialmente nos países latino-ame-
ricanos de “reformas previdenciárias” inspiradas nas orientações do
Banco Mundial, que explicitou suas propostas no estudo Envelheci-
mento sem crise. Nesse documento, recomendava-se a substituição
do modelo de repartição (redistributiva) por um novo, caracterizado
pela implantação de um plano privado e obrigatório de capitaliza-
ção por cotas definidas individualmente para os trabalhadores. As
aposentadorias passam a ser baseadas em contribuições definidas e
os benefícios dependem da acumulação dos recursos, sem prévia ga-
rantia dos valores a receber.
A financeirização da riqueza no capitalismo atinge as políticas
sociais, o conjunto de seus direitos, do seu financiamento e do seu
orçamento. O cerne é a disputa no campo da economia política e de
uma forte pressão para mais recursos para o pagamento de juros e
amortização da dívida à custa do fundo público.

- 56 -
3. FINANCEIRIZAÇÃO E EMPOBRECIMENTO DO TRA-
BALHADOR COMO COROLÁRIOS DAS CONTRARRE-
FORMAS PREVIDENCIÁRIAS

A análise da previdência do trabalhador brasileiro, seja ele


do Estado ou setor privado, sob a ótica da formação do fundo pú-
blico e a captação desses recursos para o capital portador de juros,
composição do superávit primário, financeirizando de suas reservas,
exige também, o debate da seguridade social no Brasil, ainda que os
trabalhadores do Estado estejam fora dessa política social enquanto
regulamentação constitucional. Contudo, tal política social continua
sendo uma expressão da cidadania e uma conquista do ponto de vis-
ta da formalização de direitos sociais. Portanto, perpassamos pela
Constituição de 1988 e as profundas contrarreformas ocorridas nas
décadas seguintes, em especial aos objetivos que levaram o país a não
incluir os trabalhadores públicos na política de seguridade social,
mantendo-os dentro da estrutura administrativa do Estado, como
historicamente ela sempre foi. Iremos demonstrar que para além da
retirada estratégica do Estado na formalização e promoção destes
direitos sociais, o ataque também se dá no resultado desta política,
uma vez que os benefícios previdenciários vêm sofrendo redução
real frente à inflação.
Ao contrário dos fundos de previdência dos trabalhadores
públicos, que são fechados e formados exclusivamente pela contri-
buição patronal e do segurado, a política de seguridade social criada
numa formatação tridimensional em que se aglutinam a assistência,
saúde e previdência, esta solidária e no modelo PAYG – Pay As You
Go, sigla em inglês que expressa um regime de financiamento em
que não há formação de reservas, é intergeracional e os segurados
contribuem para os atuais benefícios. Portanto, nesta perspectiva
a seguridade é o principal sistema de proteção sociais do país, ain-
da que não seja capaz de fazer a (re)distribuição de renda de forma
vertical, progressiva por meio de impostos e contribuições, já que
o financiamento se dá por parte do salário do trabalhador, inclusi-
ve do ponto de vista fiscal, já que o Brasil faz tributação regressiva.
A Previdência Social é, sobretudo, um marco na conquista da efeti-
vação do Estado Social brasileiro, mesmo que tímido e não efetivo
em sua plenitude. Neste sentido, comparando-se a outros países que

- 57 -
viveram o bem-estar social, pois para Bin (2017, p. 25), “a Constitui-
ção de 1988 consagrou ainda direitos sociais que institucionalizaram
políticas associadas ao chamado estado do bem-estar”, e continua
afirmando que “é certo que em termos efetivos o Brasil permaneceu
bastante distante dos pioneiros do hemisfério norte”. Pereira (2016,
p. 79):
[...] refere-se ao processo de desenvolvimento e implementação de
medidas geridas pelo Estado e demandadas pela sociedade como
direitos devidos para suprir necessidades sociais e promover o bem-
-estar dos cidadãos – seja prevenindo contingências associadas ao
trabalho e a inseguranças sociais, seja combatendo-as quando ins-
taladas.

Nesta perspectiva, são conquistas da classe trabalhadora e,


ao mesmo tempo, concessão do Estado capitalista. Dessa forma, a
Previdência Social, enquanto política inserida na seguridade social,
no caso do regime geral de previdência, que é o sistema solidário e
intergeracional, que abrange os trabalhadores do setor privado, con-
tribuintes facultativos, estudantes e trabalhadores do setor público
que não possuem regime próprio, assim como os regimes próprios
de previdência social, o qual chamamos de regime de capitalização
coletiva dos trabalhadores públicos (SCHMIDT, 2021).
Ambos os regimes garantem renda e deveriam manter seu
poder de consumo, principalmente em relação ao que a Constituição
Federal menciona no art. 7º, IV em que deveria efetivamente aten-
der as “necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia,
alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte
e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o
poder aquisitivo”. Contudo, os benefícios previdenciários, ainda que
garantido o reajuste anual, na prática não atendem esse dispositivo,
em especial aos trabalhadores de menor renda. É importante desta-
car que os trabalhadores de menor renda, sejam seus salários, assim
como, seus benefícios previdenciários destinam a maior parte para
a aquisição de itens básicos de alimentação e moradia. Com isso, é
importante fazer a análise do reajuste dos benefícios em relação à
elevação dos preços dos alimentos que fazem parte da cesta básica
brasileira.
Neste cenário, a financeirização do capital, que para Chesnais
a “estratégia é global para ela, mas é integradora ou excludente para

- 58 -
os demais atores, quer sejam países, outras empresas ou trabalhado-
res” (CHESNAIS, 1996, p. 37). Contudo, quando tratamos de polí-
ticas de governo, que não se confundem com políticas de Estado, já
que aquelas são escolhas do mandatário e sua equipe, trazem relação
direta quanto aos impactos econômicos na vida dos trabalhadores.
Neste sentido que tratamos sobre as escolhas econômicas, as quais
refletem diretamente na renda, seja ela o salário ou os benefícios de
aposentadorias e pensões, em relação aos itens básicos de sobrevi-
vência, em que pese, os alimentos.
A financeirização ultrapassa fronteiras, mundializou-se, e a
falta de normas comuns a todos os países dá a liberdade de agirem
de forma desmedida, e até contrariando leis de muitos países, o que
resulta nas instalações de suas corporações e trading company4 em
paraísos fiscais, pois a “estratégia é global para ela, mas é integra-
dora ou excludente para os demais atores, quer sejam países, outras
empresas ou trabalhadores” (CHESNAIS, 1996, p. 37). É o empo-
brecimento generalizado em detrimento a apropriação de um seleto
grupo de empresas.
É o capitalismo em sua fase financeirizada, quem sabe, mais
cruel fase, que produz mais-valia da mais-valia sem com isso re-
verter-se, ao menos em parte, em investimento produtivo e no de-
senvolvimento, seja ele tecnológico ou estrutural para que atinja as
pessoas, seja na mobilidade, progresso e avanço da medicina e na
diminuição dos impactos ambientais, por exemplo.

[...] a mais importante das transformações por que vem passando


a economia do imperialismo, nesta sua terceira fase ainda em de-
senvolvimento, consiste no processo que alguns analistas designam
como financeirização do capital – tomando-a como a face contem-
porânea do capitalismo e dando como seu ponto de partida o ano de
1973 [...] propiciado pelos recursos informacionais, que garantem
comunicações instantâneas entre agentes econômicos situados nos
mais distantes rincões do planeta, esse processo tem suportes nas
gigantescas concentrações do sistema bancário e financeiro. Esta,
ao longo dos últimos trinta anos, acompanhou a concentração geral
operada na economia capitalista; contudo, teve efeitos específicos,
dada a amplitude que as atividades especulativas adquiriram neste
mesmo lapso de tempo: menos de 300 bancos (e corretoras de ações
e títulos) globais controlam, em finais do século XX, as finanças in-
ternacionais (NETTO; BRAZ, 2009, p. 230).
4 São empresas que atuam intermediando outras empresas e fábricas em operações de
importações e exportações.

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Contudo, a financeirização vai além do domínio do capital
privado, pois muito além dos monopólios, oligopólios e especula-
ções financeiras sobre o capital produtivo privado, lança mão sobre
os fundos públicos, sobre os Estado alcançando até mesmo os salá-
rios, aposentadorias e pensões dos trabalhadores. Neste sentido, as
políticas cambiais, que têm relação direta com as escolhas feitas pelas
políticas de governo, que dependendo destas escolhas podem bene-
ficiar alguns setores produtivos, ou grupos, em detrimento a outros.
Entretanto, estas políticas que definem a valorização ou desvaloriza-
ção da moeda corrente nacional, afeta diretamente os trabalhadores,
especialmente os de menor renda, já que boa parte de seus salários
ou aposentadorias são direcionados para a aquisição da cesta básica.
No ano de 2020 houve uma forte queda do real frente ao dólar, su-
pervalorizando a moeda estadunidense o que levou ao aumento das
exportações, favorecendo diretamente as commodities.
Sob a ótica da balança comercial é positivo, contudo, gera de-
sabastecimento ou elevação dos preços dos alimentos no mercado
interno, o que dificulta o acesso a estes itens pelas pessoas de menor
renda. Itens como o arroz, óleo de soja, presentes na mesa do brasi-
leiro, sofreram altas que superaram dezenas de vezes o aumento, no
mesmo período, da renda destes trabalhadores. O óleo de soja teve
elevação de 103,79%, ao passo que o arroz subiu nas prateleiras dos
supermercados, ou seja, na venda direta ao consumidor, o montante
de 76,01% no período. De um modo geral, segundo o IBGE, a alta
dos alimentos em 2020 foi de 14,09%. Para além destes itens básicos
da cesta básica brasileira, o leite longa vida teve elevação do preço
que chegou em 26,93%, e as frutas em geral, com subida de 25,40%
no período. A principal proteína animal consumida pelos brasilei-
ros, a carne bovina, teve majoração dos preços em 17,97%, assim
como produtos que também são muito consumidos no Brasil como
a batata inglesa e o tomate, que sofreram respectivamente, aumento
de 67,27% e 52,76% em 2020.
Estas fortes elevações dos preços dificultam, se não impedem,
o acesso a estes alimentos atingindo a qualidade nutricional das pes-
soas, em especial das crianças em fase de desenvolvimento físico e
cognitivo. Essa ciranda dos horrores que causam a falta de alimentos
ou dificultam o acesso a eles faz aumentar, por essa lógica, a procura
por atendimento na rede pública de saúde, por motivos de doenças

- 60 -
relacionadas à desnutrição e outras ligadas à baixa qualidade nutri-
cional dos alimentos (SCHMIDT, 2021). Ainda que essa situação
seja o reflexo das escolhas das políticas de governo, o próprio Minis-
tério da Saúde faz esse reconhecimento em relação “a desnutrição
corresponde a uma doença de natureza clínico-social multifatorial,
cujas raízes se encontram na pobreza”.
Na contramão desta elevação significativa dos alimentos, o
salário-mínimo nacional, que serve de referência para a renda do
trabalhador em todo o país, teve reajuste de apenas 5,45%, utilizan-
do-se do Índice Nacional de Preços ao Consumidor – INPC, apon-
tado pelo IBGE5, o qual mede o consumo médio das famílias que
ganham entre um a quatro salários mínimos, ao passo que o Índice
de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA, o qual considera o con-
sumo das famílias que ganham entre um e quarenta salários míni-
mos, terminou o ano de 2020 em 5,26%. O INPC que verifica o custo
das famílias de menor renda, ou seja, que ganham entre 1 e 4 sa-
lários-mínimos, que foi de 5,45% em 2020, como já apontado, está
na longe de gerar reflexos nos alimentos, que teve alta muito maior.
Essa diferença entre o aumento da renda em relação ao aumento dos
alimentos afeta negativamente as famílias mais pobres, pois é o que
representa a maior parte dos gastos, gerando maior impacto e perda
do poder de consumo destas famílias. Essa situação cria insegurança
alimentar, que segundo o IBGE6 teve aumento entre 2017 e 2018, re-
sultando em 10,3 milhões de pessoas que vivem em domicílios com
grau severo de insegurança alimentar. Nesta mesma análise, dos 68,9
milhões de domicílios no Brasil, 36,7% destes possuem algum grau
de insegurança alimentar. O que é grave, pois isso representa mais de
um terço do total.
Esse panorama nos faz concluir que as políticas governamen-
tais, em especial as cambias, as quais favorecem as commodities e por
consequência a balança comercial, cria no mesmo ritmo o aumento
dos preços dos alimentos, principalmente da cesta básica, o que atin-
ge diretamente o mais pobre. O empobrecimento do trabalhador,
nesta perspectiva inflacionária, reduz a capacidade de compra de
alimentos e na contramão, as renúncias tributárias garantem alívio
5 Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/precos-e-custos/
9258-indice-nacional-de-precos-ao-consumidor.html. Acesso em 13 jan. 2021
6 Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agen-
cia-de-noticias/noticias/28903-10-3-milhoes-de-pessoas-moram-em-domicilios-
-com-inseguranca-alimentar-grave. Acesso em 13 jan. 2021

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financeiro para o capital e seus rentistas, Salvador (2017, p. 438) lem-
bra que “no período de 2010 a 2016, evoluíram de R$ 217,27 bilhões
(2010) para R$ 319,23 bilhões (2016), isto é, um crescimento 46,93%
acima da inflação”, só as renúncias tributárias do governo federal.
Salvador (2017, p. 438) ainda lembra que isso implicou “uma perda
de arrecadação equivalente a 20,68% das receitas do governo federal
ou 4,33% do PIB. Esses recursos que o fundo público deixa de contar
significam, em grande parte, um financiamento para o capital”. Nesta
lógica financeira, o capital e seus rentistas, agem de todas as formas
e assim, conseguem captar recursos até mesmo do prato dos mais
pobres (SCHMIDT, 2021). Mészáros (2009, p. 70) explica que:

O capital, quando alcança um ponto de saturação em seu próprio


espaço e não consegue simultaneamente encontrar canais para nova
expansão, na forma de imperialismo e neocolonialismo, não tem
alternativa a não ser deixar que sua própria força de trabalho local
sofra as graves consequências da deterioração da taxa de lucro.

Mesmo que Mészáros (2009), ao se referir desse “ponto de sa-


turação do seu próprio espaço”, está se referindo num contexto das
sociedades pós-industriais e mais desenvolvidas e nos esclarece o ce-
nário atual. Essa lógica capitalista, portanto, se aplica nas periferias e
com agressividade em países que demonstram tamanha desigualda-
de como é o caso do Brasil, o qual leva milhares ao nível da extrema
pobreza e risco alimentar eminente com tais escolhas políticas, “são
os tentáculos do capital agarrando cada fagulha de dinheiro” (SCH-
MIDT, 2021, p. 127).
A captação de recursos pelo capital financeirizado, via tribu-
tação, nos obriga destacar que o próprio Estado Social é financiado
pelo trabalhador, direta e indiretamente, uma vez que as contribui-
ções previdenciárias, por exemplo, além de outras políticas sociais, são
consideradas pelos empresários/capitalistas como custo de produção
ou custo de folha. Dessa forma, atrela-se no preço/custo final da pro-
dução. Tais produtos7, nesta ciranda, são consumidos pelos próprios
trabalhadores, ou seja, é captado dos salários e ainda retorna ao capital
na forma de consumo. No sistema tributário brasileiro, as renúncias
fiscais beneficiam o capital e criam um esvaziamento do fundo público
garantidor dos benéficios, em especial, os pagos pela previdência.
7 Não nos referimos aos bens de luxo, e sim aos bens e serviços de consumo de acesso
geral, tais como alimentos, vestuário, eletrodomésticos, telefonia/comunicação, etc.

- 62 -
Raquel Varela8 (2012) lembra que o Estado Social é pago por
quem é beneficiado por ele, e ainda afirma em seu ponto de vista que
“o capitalismo é doente terminal ligado apenas nos cofres públicos”.
Essa carga é ainda maior para os mais pobres, como lembra Ianni
(2019, p. 94), em que “a economia brasileira é uma totalidade hete-
rogênea, desigual e contraditória. Cria e recria disparidades. Combi-
na segmentos monopolísticos com oligopolísticos e concorrenciais.
Inclusive, e principalmente, está apoiada numa elevadíssima taxa de
exploração da classe operária e do campesinato”.
Tributos regressivos e a disparidade na correlação entre o au-
mento real dos salários, inclusive sobre as aposentadorias e pensões,
de um lado, e a inflação sobre os alimentos de outro, torna essa ba-
lança desfavorável ao trabalhador, os quais não recebem um signifi-
cativo reajuste nos últimos anos. Essa política cria o empobrecimen-
to endêmico típico dos países da periferia do capital (SCHMIDT,
2021).
O Brasil como um país que está entre as maiores safras do
mundo é por outro lado, o que mais reajusta para mais o seu produto
final no mercado de consumo interno, criando insegurança alimen-
tar entre os brasileiros de baixa renda. O agronegócio, nesta lógica
econômica, é um dos grandes beneficiados das renúncias fiscais que
afetam diretamente o financiamento das políticas sociais, em espe-
cial da previdência, o que pressiona a necessidade de uma solida-
riedade entre os trabalhadores, ainda maior, para a arrecadação dos
recursos para a previdência.
Um trabalhador aposentado que recebe um salário-mínimo
nacional, mesmo que seu benefício sofra reajustes positivos anuais,
este não acompanha a real inflação dos alimentos no mesmo período,
sendo o gerador do principal impacto orçamentário dessas famílias
mais pobres. Ao fazer os reajustes anuais dos benefícios de natureza
previdenciária, o Regime Geral de Previdência Social – RGPS, por
meio do Instituto do Seguro Social - INSS, assim como os regimes de
capitalização coletiva dos trabalhadores públicos (SCHMIDT, 2021),
conhecidos como Regimes Próprios de Previdência Social – RPPS,
criam a falsa impressão de que as aposentadorias e pensões acom-
panham a inflação anual e oficial, não fazendo com que os traba-
8 Disponível em: https://operamundi.uol.com.br/politica-e-economia/25401/capitalis-
mo-e-doente-terminal-ligado-apenas-nos-cofres-publicos-diz-historiadora-portuguesa.
Acesso em: 13 jan. 2021

- 63 -
lhadores aposentados e pensionistas percam seu poder de compra,
o que não é verdade, sobretudo em relação ao acesso aos alimentos
da cesta básica.
Para compreender esse panorama em que o trabalhador de
baixa renda vem empobrecendo, basta uma breve análise dos reajus-
tes dos benefícios previdenciários entre 2017 e 2020, fazendo uma
relação com elevação dos preços dos alimentos, no mesmo período,
o que nos dá informações suficientes sobre essa perda do poder de
compra com seu parco benefício. A inflação oficial informada pelo
governo federal leva em conta o INPC – Índice Nacional de Preço
ao Consumidor, que mede o consumo das famílias de menor renda,
que recebem entre um e quatro salários-mínimos, como já dissemos.
Destaca-se que esse valor é por grupo familiar, não é uma renda per
capita. Já em relação aos benefícios desse período analisado, no ano
de 2017, o reajuste nas aposentadorias e pensões foi de 2,07%. Esse
é o valor total do reajuste, ou seja, para que sofresse esse montante
de aumento, o beneficiário, seja da aposentadoria ou pensão, deveria
estar recebendo o benefício desde janeiro daquele ano, já que é uma
tabela de reajuste progressiva, ou seja, pago conforme os meses em
que recebeu benefício, sendo o índice máximo para quem recebeu
nos últimos 12 meses. Neste cenário, um aposentado ou pensionista
que recebeu benefício previdenciário no ano de 2017 obteve reajuste
no primeiro mês de 2018, no total de 2,07%, segundo a Portaria9 MF
nº. 15, de 16 de janeiro de 2018. Entretanto, a inflação do período
de 2018, ano em que os aposentados e pensionistas “desfrutaram”
de seus reajustes de pouco mais de dois por cento em sua renda, o
acumulado da inflação10 foi de 3,82%. Dessa forma, a diferença entre
o que foi reajustado em sua renda e o que precisou desembolsar para
compra de alimentos foi de 1,75% para mais. A conta não fecha, não
para o trabalhador.
A mesma lógica cruel de diferença negativa para a renda dos
aposentados e pensionistas beneficiários da previdência, em relação
aos alimentos, se repetem nos anos seguintes. No ano de 2019, o
reajuste das aposentadorias e pensões pagas durante o ano de 2018,
9 Disponível em” http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?vi-
sao=anotado&idAto=89503. Acesso em 14 jan. 2021
10 Disponível em: Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-
-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/23558-ipca-varia-0-15-em-dezembro-e-
-fecha-2018-em-3-75. Acesso em 14 jan. 2021

- 64 -
lembrando sempre que a base de cálculo é o exercício anterior, foi de
3,43%, como indica a Portaria11 ME nº. 9, de 15 de janeiro de 2019.
Tal percentual foi concedido a partir de janeiro de 2019, como sem-
pre acontece. Contudo, em 2019, a inflação12 sobre os alimentos da
cesta básica foi de 6,37%, mantendo-se em alta como nos anos an-
teriores. Na prática, o aposentado e pensionista receberam 2,94% a
menos que a alta dos alimentos que superou e muito essa marca. No-
vamente os benefícios previdenciários não acompanharam o prin-
cipal impacto no orçamento familiar, os alimentos que compõem a
cesta básica.
Seguindo esses exemplos, os benefícios pagos no ano de 2019,
o reajuste aplicado foi de 4,48%, como indica a Portaria13 ME nº.
3.659, de 10 de fevereiro de 2020. No entanto, a inflação sobre os ali-
mentos no acúmulo do mesmo ano foi de 14,09%, o que representou
a maior alta destes itens desde 2002, quando o acumulado atingiu
19,47% sobre a cesta básica brasileira. Mesmo se consideramos que o
reajuste dos benefícios em 2019 teve uma leve “melhora”, em relação
ao ano anterior, a inflação gerada pela subida dos alimentos supe-
rou quase três vezes mais em relação às aposentadorias e pensões.
Neste cenário, é importante destacar que no ano de 2020 o Brasil
teve recordes de safra. Assim, as políticas adotadas pelo governo de
Jair Messias Bolsonaro, em que pese a valoração da moeda estaduni-
dense, o que beneficia diretamente as commodities, por outro lado, o
mercado interno sofre com o encarecimento da cesta básica.
Finalizando o comparativo entre reajuste de aposentadorias
e pensões, em relação aos aposentados e pensionistas que recebem
o mínimo nacional, o percentual aplicado nestes benefícios a partir
de janeiro de 2021 foi de 5,45%, equivalente ao INPC, que oficial-
mente é o índice utilizado para medir a inflação brasileira. O gráfico
01 mostra a disparidade entre o reajuste dos benefícios e a inflação
acumulada sobre os alimentos desde 2017 até 2020.

11 Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/


content/id/59253484. Acesso em 14 jan. 2021
12 Disponível em: Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noti-
cias/2012-agencia-de-noticias/noticias/26620-inflacao-fecha-2019-em-4-31-e-ultrapas-
sa-centro-da-meta. Acesso em 14 jan. 2021
13 Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-3.659-de-10-de-feve-
reiro-de-2020-242573505. Acesso em 14 jan. 2021

- 65 -
Gráfico 1 – Comparação entre os reajustes dos benefícios previdenciários
concedidos pelos RPGS e RPPS, e a inflação dos alimentos
entre 2018 e 2020.

Fonte: Ministério da Economia e IBGE


Elaboração própria
O gráfico 01 considera o ano em que os aposentados e pensio-
nistas receberam o benefício reajustado, em comparação à inflação
sofrida sobre os alimentos da cesta básica no mesmo período. A vi-
sualização gráfica deixa claro que os reajustes aplicados nos benefí-
cios previdenciários representam metade do aumento inflacionário
sofrido pelos alimentos que compõem a cesta básica, sendo que des-
de o ano de 2020 o mundo vem passando por uma crise sanitária
sem precedentes no último século, o que gerou desemprego, mor-
talidade em pessoas economicamente ativas e falência de pequenas
empresas. Em países com tamanha desigualdade social, como é o
caso do Brasil, esses impactos são ainda maiores. Portanto, optamos
por comparar o reajuste dos benefícios pagos pela Previdência Social
com o acumulado da inflação em relação aos alimentos, porque esses
são os principais itens que impactam diretamente no orçamento fa-
miliar ou individual das pessoas de baixa renda, como já afirmamos.
Nesta lógica comparativa, se analisarmos o índice oficial14 do
governo federal, o qual verifica o custo de vida das famílias com ren-
da de até quatro salários-mínimos, o qual, por usa vez, é o mesmo ín-
dice utilizado para o reajuste dos benefícios15 tanto do INSS quanto
dos RPPS’s, ou seja. o INPC, fatalmente, e de forma enganosa, leva-
14 O governo federal utiliza o IPCA como índice oficial da inflação, pois abrange famílias
que ganham até 40 salários-mínimos.
15 Os benefícios previdenciários são reajustados pelo INPC. Disponível em: https://
www.gov.br/inss/pt-br/assuntos/beneficios-acima-do-minimo-tem-reajuste-de-5-45.
Acesso em 04 jul. 2021.

- 66 -
ríamos a acreditar que os trabalhadores, em especial os aposentados
e pensionistas, não tenham obtido ganho real em seus benefícios, e
por outro lado, ao menos não tiveram perda salarial em detrimento
a inflação. Entretanto, tais comparações com os preços dos alimentos
da cesta básica comprovam a tese de que, a cada ano, os benefícios
desta natureza, em especial para as pessoas de menor renda, têm
tendência de forte queda, ou melhor, redução real de seu poder de
compra, sendo que em alguns anos, como em 2020, essa perda foi
ainda maior.
Sabemos que outros itens que sofrem reajustes também são
utilizados como base para a definição da inflação no ano, contudo,
é o tipo de consumo que não gera o mesmo impacto nas famílias
de baixa renda, ainda que muitos destes itens tenham tido elevação
até mesmo mais alta. Entretanto, essas elevações de preços de outros
itens, vão afetar outras faixas de trabalhadores que, com benefícios
corrigidos na mesma proporção, utilizam-se desses serviços, como
é o caso das passagens aéreas e combustíveis, que em 2021 tiveram
aumento histórico que vai continuar refletindo em 2022. Contudo,
esse aumento vertiginoso dos combustíveis, também, afeta os tra-
balhadores de menor renda, uma vez que se utilizam do transporte
público, sendo que a tarifa sofre amento quando o preço do diesel
é inflacionado16. Assim como itens mais presentes no carrinho do
supermercado da classe média brasileira, em detrimento ao traba-
lhador mais pobre que possui, por sua vez, alimentação nutricional
menos rica, como é o caso das frutas e proteínas animais que, respec-
tivamente, tiveram aumento de 25,40% e 17,97% em 2020, segundo
o IBGE
Dessa forma, podemos concluir que é fantasiosa uma correla-
ção positiva entre os reajustes aplicados nos benefícios dos trabalha-
dores, sejam eles os públicos, quanto do setor privado, em detrimen-
to ao seu poder de compra, sob a ótica de que o índice utilizado para
tanto é o mesmo, ou seja, o INPC. Isso tudo comprova a tese de que
o governo garante os benefícios previdenciários dentro das metas
inflacionárias, mas não relaciona tais benefícios que. por sua vez. é
importante destacar, possuem natureza alimentar, com os principais
itens de consumo destes trabalhadores, o próprio alimento e outras
necessidades básicas como são os casos dos medicamentos, vestuá-
16 Vale desatacar que o preço do combustível afeta o preço de toda a cadeia alimentar.

- 67 -
rios e transportes. Essa é a política da miserabilidade, das escolhas
que enriquece o capital em detrimento ao esvaziamento do prato do
trabalhador.

REFERÊNCIAS

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Onde nos leva esta crise económica? O Estado de bem-estar social
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- 69 -
- 70 -
AVANÇOS E DESAFIOS DA EDUCAÇÃO
PERMANENTE NO BRASIL CONTEMPORÂNEO:
REFLEXÕES TEÓRICAS E CONCEPÇÕES
POLÍTICAS
Vera Lúcia Honório dos Anjos 1
Cristiano Guedes2

INTRODUÇÃO
A Educação Permanente em Saúde (EPS) disseminada como
um novo mecanismo de formação para a transformação das práticas
em saúde (RAMOS, QUIULO, ANDRADE, 2018) e sua adoção pela
rede de serviços leva em conta necessidades sociais, extrapolando,
portanto, a finalidade de qualificar serviços e trabalhadores da saúde.
Conquistas importantes ocorreram na década de 2000, no âmbito
da EPS, com a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde
(PNEPS) criada em 2004.
A EPS foi concebida como estratégia de formação e desenvol-
vimento dos trabalhadores para o SUS, toma por objeto necessidades
do processo de trabalho e incorpora o ensino, a atenção à saúde, a
gestão do sistema e a participação e controle social no cotidiano das
práticas com vistas à necessidade de mudanças.
Este artigo com fulcro na tese de doutorado em andamento
objetiva apresentar uma reflexão sobre os avanços e limitações da
EPS no Brasil e a concepção político-doutrinária adotada como es-
tratégia político-pedagógica no âmbito do SUS.

1. CONTEXTUALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO PERMA-


NENTE
O debate em torno de EP vem da década de 1970, com Pau-
lo Freire e Moacir Gadotti e outros. Enquanto Gadotti aponta para
1 Doutoranda em Política Social: Universidade de Brasília – UnB-UFMT (DINTER) e
Assistente Social da Secretaria do Estado de Saúde de Mato Grosso – Escola de Saúde
Pública. veradosanjosmt@hotmail.com
2 Doutor em Ciências da Saúde, Professor do Departamento de Serviço Social e do Pro-
grama de Pós-Graduação em Política Social da Universidade de Brasilia, UnB.

- 71 -
a ideia de educação como prática da domesticação e como façanha
da liberdade, Freire (2003) abre caminho para entender a educação
como prática permanente, já que o ser humano, jamais para de se
educar. Destaca Freire, que, para muitos, formação e educação são
subordinadas à racionalidade econômica dominante para quem o
emprego é a medida de sucesso. Entretanto, há adesão aos princí-
pios da educação libertária como caminho para promover mudanças
(transformação qualitativa) nos processos/espaços do trabalho, mas
não se adota a reflexão crítica, que revelaria a alienação do trabalho e
a sua degradação, que, de modo inverso a isso, se conquistaria cons-
ciência crítica (GADOTTI,1984;FREIRE,2011;FERNANDES, 2016).
Mesmo seus defensores apregoando a EP como uma “alavan-
ca da transformação social”, sua introdução no mundo do trabalho
exclui a possibilidade de mudança radical ao promover a ilusão da
igualdade de oportunidades, baseada na formação individual que
objetiva tão somente a produtividade e o crescimento econômico;
logo, visa a contemplar apenas aqueles com melhores condições de
estudar. De todo modo, a expressão educação permanente, conside-
rada pelo autor um modelo de discurso idelógico importado, serviu
à época de seu surgimento para identificar a preocupação por uma
educação fora da escola. E, tem atraído a atenção de educadores
e tecnocratas para designar muitas coisas diferentes e até opostas,
como: educação de adultos, educação extraescolar, formação profissio-
nal, formação supletiva, reciclagem, educação formal etc (GADOT-
TI,1987, p.92).
A novidade desse movimento de educação fora da escola –
portanto, fora do sistema educacional – é a interação do discurso
sobre a EP e sua adoção como uma educação necessária ao longo da
vida, demandando formação contínua e sua evidência como neces-
sidade foi provocada pela sociedade que exige constante renovação
dos conhecimentos. Esses são pilares que resultaram em todo um
trabalho teórico que passou a ser desenvolvido por organismos in-
ternacionais (GADOTTI,1987).
Então, a EP assume um papel ativo na despolitização da popu-
lação, da educação e da formação à medida que oculta em si objetivos
que são, na verdade, uma exigência das sociedades modernas. São
determinações constantes do consumo de bens, que servem aos
interesses do capital, que decide, a aquisição de novos conhecimen-
tos e as qualificações dos trabalhadores que se submetem porque
dependem destes para se viver.

- 72 -
O estímulo e a promoção das qualificações são preestabeleci-
dos para tornar a empresa mais rentável, não há interesse de investir
no trabalhador para atender as suas necessidades. Se assim fosse, o
sistema proporia uma formação sindical que diretamente interes-
sasse ao trabalhador, e de tal modo que as relações de produção e
do processo de trabalho deveriam compor os objetivos da EP, mas,
como se sabe, esse conteúdo não interessa de modo algum ao capital
(GADOTTI,1987).
No Brasil, desde 1981, se desenvolveu experiências, como a
do Projeto de Formação em Larga Escala (PLE) que impulsionou a
emergência da EP, com abordagem pedagógica e ações formativas
no ambiente de trabalho, tendo influenciado a proposição da Opas/
OMS pautada na estratégia pedagógica e metodológica. Experiên-
cias que pavimentaram o caminho da Reforma Sanitária, à época, da
transição da ditadura civil-militar e início da chamada “Nova Repú-
blica”, com déficit público, processo inflacionário, ascensão dos mo-
vimentos sociais e grande debate político; na saúde, a expressão foi
o MRSB. O Estado, face à pressão dos movimentos sociais, busca le-
gitimidade perante a sociedade e, procurando dar respostas a ela, dá
início aos debates para instituir políticas sociais que, posteriormen-
te, se farão constar na CF/1988 (BRASIL,2006; CARVALHO,1993;
PAIM,2008).
Essa trajetória de Constituição como fato político e concepção
da EPS a partir da necessidade de processos educativos, determina-
da pelas condições da realidade social, são demonstrações de avan-
ços à medida que se traduzem em gatilhos para a materialidade da
RSB, e, guardadas as devidas proporções, têm provocado mudanças
na realidade de saúde. Em contrapartida, ou até paradoxalmente, as
limitações se assentam tanto na lentidão para sua implementação
como política, que tem relação com a disposição e interesse político
dos governantes, como a falta de compreensão de sua concepção,
ou é adotada ao sabor dos interesses e conveniências daquele que a
propõe.

2. A EDUCAÇÃO PERMANENTE SOB A MIRA DAS


AGÊNCIAS INTERNACIONAIS

O Banco Mundial (BM), até os anos 1960, ocupava-se da mis-


são precípua de conceder empréstimos a fim de financiar a recons-

- 73 -
trução física e econômica dos países assolados pela guerra, e promo-
ver o desenvolvimento econômico dos países-membros. Juntamente
com o FMI, e com finalidade suplementar, quando não simbiótica,
o BM assumia uma postura intervencionista e normativa nos países
que pretendia desenvolver, ou controlar, constituindo-se em formu-
lador de suas políticas econômicas e sociais (RIZOTTO,2000; CIS-
LAGHI,2015).
Percebe-se que a política favorecedora da economia do livre-
-comércio global assume função de expansão capitalista ao propiciar
financiamentos, empréstimos, condicionalidade de impostos, num
sistema financeiro baseado na dinâmica de endividamento, que afe-
tou os países periféricos em nome do desenvolvimento social, a in-
tegração ao mundo globalizado. Em sintonia, os países centrais têm
procurado manter a sua hegemonia e influência em determinadas
regiões do mundo, como o Brasil (RIZOTTO,2000). Essas evidên-
cias são observadas quando o BM muda seu foco de interesses para
cofinanciar o desenvolvimento econômico dos chamados países “em
desenvolvimento” ou “subdesenvolvidos”, como é o caso do Brasil.
O discurso do BM centra-se na satisfação das necessidades
humanas básicas e no combate à pobreza, ainda que a dedicação
prioritária seja de investimentos em infraestrutura (RIZOTTO,2000;
CISLAGHI,2015). Essa influência chega na área da saúde que passa
a se constituir em importante mercado a ser explorado pelo capital
e, mostra-se como uma forma de revigorar o liberalismo econômico.
O BM passa expandir suas ações no Brasil, agora nas áreas de
nutrição e formação de trabalhadores, com uma participação focada
na apresentação de diretrizes e orientações para as políticas nacionais,
com objetivo de promover importantes reformas dos setores do traba-
lho e da saúde (RIZOTTO,2000, p.153). E, através da OMS/Opas,
passa a exigir reformulações no setor de formação profissional. Uma
temática que já vinha sendo debatida junto a grupos de trabalho
abrangendo vários países da AL, a fim de formular novos conceitos
para o processo de formação profissional.
Assim, a partir de 1984 tem-se o Programa de Desenvolvi-
mento de RH como proposta de reorientar a EP na saúde na região
das Américas, sob alegação da Opas/OMS para adoção de novas re-
ferências metodológicas. Logo, lança propostas como o desenvolvi-
mento dos Sistemas Locais de Saúde (SILOS) e Atenção Primária em

- 74 -
Saúde (APS). Nesta, disseminava a proposta de sistemas de saúde
descentralizados, envolvia a participação social, enfatizando o for-
talecimento qualitativo dos serviços de saúde. Era essencial a elabo-
ração coletiva de uma proposta pedagógica para o desenvolvimento
dos profissionais de saúde que atendesse ao objetivo: identificar e
desenvolver novas formas de abordar os problemas de saúde levanta-
dos e, assim, capacitar pessoas da área, nesses países (FERNANDES,
2016; LEMOS, 2010).
A proposta tinha a intenção de contribuir para tirar o país da
sua condição de subdesenvolvido e, como resposta para atender a
demandas de reorientação no desenvolvimento do RH em saúde,
dos processos de comunicação e cooperação entre estes e as comu-
nidades (LEMOS,2010). Essa investida resultou na constituição, pela
Opas, de programas de EP baseados na noção de que o trabalho é o
eixo fundamental para a aprendizagem (FERNANDES,2016), com
a publicação de uma série de cadernos técnicos, revistas, boletins e
documentos orientativos e didáticos sobre as novas metodologias e
referenciais teóricos. Destaca-se a publicação da revista Educacion
Medica Y Salud, em 1966, para servir aos países das Américas em
relação a atividades de desenvolvimento de RH em ciências da saú-
de, o livro Educação Permanente em Saúde (1995), composto de uma
série de 10 fascículos, no qual um dos destaques é a mudança da
nomenclatura de educação continuada para educação permanente e,
também, o material que recebeu o título de Educação Permanente
do Pessoal da Saúde [1994] (DAVINI,1995; LEMOS,2010; FRAN-
ÇA,2016; LEITE et al 2020).
A disseminação das ideias de EPS abarca todo escopo e en-
volve a área da saúde, como premissa de subsidiar os processos de
estruturação dos SILOS e, realça também a meta da OMS Saúde para
Todos nos anos 2000 com base na descentralização, nas propostas de
APS, que motivou a adoção da terminologia educação permanente.
Tal reorientação se baseia na apropriação da EP, de modo a distin-
gui-la de ensino em serviço e educação continuada (EC), tomando a
EPS como forma de tornar a gestão de pessoas (RH) capaz de com-
preender as lacunas dos serviços e problemas de saúde da população.
A difusão dessa nomenclatura passa, nos anos 1980, a ser ado-
tada como vertente pedagógica para o desenvolvimento de pessoas
e de mudanças no cotidiano (DAVIN et al,1990). A reorientação da

- 75 -
EPS é evidenciada, na compreensão da Opas/OMS, como necessária
em virtude da insuficiência de ações no âmbito da EC, demanda por
descentralização de ações educativas e a busca de novas estratégias
voltadas a capacitação em epidemiologia (LEMOS, 2010).
Nesse contexto, a Opas/OMS passa a adotá-la numa dimensão
política referenciada à realidade de saúde. Logo, há uma mudança
conceitual, daquela época, que representa uma tentativa de respostas
às mudanças econômicas e político-culturais, denotando a necessi-
dade de ajustes/adequação às novas mudanças que o mundo do tra-
balho passa a estabelecer, sem, contudo, apontar a educação como
uma estratégia de cidadania, crítica e emancipatória e, assim, seguiu
conforme o receituário dos organismos internacionais.
Nesta direção, cabe enfatizar a compreensão, segundo a qual o
significado da educação inclui todos os momentos da nossa vida ati-
va em que a aprendizagem é a nossa própria vida”, e é decidida para o
bem e para o mal, tanto para nós próprios como para a humanidade
em geral (MÉSZÁROS,2008, p.48-53). Fernandes (2016, p.61) em
seus estudos, alerta que a educação é percebida como algo que pode
estar a serviço da manutenção da lógica do capital ou da emancipação
da cidadania na perspectiva da transformação social.
A propósito, Mészáros observa que o êxito no processo de
aprendizagem se dá somente a partir da uma ampla concepção de
educação, que pode ajudar a perseguir o objetivo de uma mudan-
ça verdadeiramente radical, viabilizando instrumentos de pressão,
e, por essa forma de abordagem, rompe-se a lógica mistificadora do
capital. O êxito vai depender de se tornar consciente esse processo de
aprendizagem de forma a maximizar o melhor e a minimizar o pior
(MÉSZÁROS,2008, p.48).
A compreensão de educação numa dimensão transformadora
não é considerada pela Opas/OMS, até por que ela representa o capi-
tal, mas adota a EP como possibilidade de mudanças a partir de re-
flexão referenciada da realidade de saúde. Tal compreensão influen-
ciou na elaboração de uma perspectiva teórico-metodológica para
a constituição de programas de EPS, objetivando o desenvolvimen-
to dos sistemas e reconhecendo que tais serviços são organizações
complexas e que só a aprendizagem na dimensão da EP será capaz
da adesão dos trabalhadores aos processos de mudanças. Essa opção
adotada abandona o objetivo de uma transformação social qualitati-

- 76 -
va, posto que o capital segue incontestável e as mudanças almejadas
são admitidas na perspectiva de reforma ou ajustes menores, com
objetivo de corrigir algum detalhe defeituoso da ordem estabelecida
(MÉSZÁROS,2008).
Considera-se um avanço ter inserido no centro dos debates a
discussão metodológica, conferindo-lhe importância, desde que se
tenha a concepção do processo de ensino-aprendizagem alinhada
com os princípios da EPS. Já como aspecto limitador, deve-se refletir
sobre o fato de os debates se restringirem a ajustes, melhorias e mu-
danças nas perspectivas de reformas e correções e não se aprofundar
o debate para as mudanças sociais qualitativas; tampouco se inserem
nesse debate reflexões sobre questões que geraram a necessidade de
incrementar processos educativos no âmbito da saúde.

3. CONCEITOS E PERCURSORES DA EDUCAÇÃO PER-


MANENTE

A constituição metodológica da EPS contou com Gaudêncio


Frigotto, Juan E. Díaz Bordenave, José Carlos Libâneo, que discorre-
ram sobre a educação problematizadora: pressupõem que a aprendi-
zagem se dá por meio de uma ação motivada, da codificação de uma
situação-problema. Nesse raciocínio, se inscreve a proposta de Freire
(2011), que observa a necessidade de uma EP para toda a sociedade,
evidenciando a necessidade de uma EP para toda a sociedade, evi-
denciando a discussão sobre a educação como prática de liberdade e
não como prática de domesticação. Indica, portanto, que a educação
é um ato político.
O uso recorrente da EP pela Opas/OMS ,no âmbito da saúde
em muitas obras e a associação de outras como educação continuada
e ensino em serviço, parece estar associado ao processo de formação
e desenvolvimento da força de trabalho para a saúde. Argumenta
Gadotti que a EP passou a ser um discurso de ideologias diferentes,
uma prática que já vinha sendo disseminada pela Unesco (GADOT-
TI,1984). A adoção ou aplicação da EP, segundo ele, buscava tornar
os trabalhadores mais rentáveis e adaptáveis às mudanças econômi-
cas e industriais.
Na saúde, a EPS foi apropriada como premissa para atender às
necessidades sociais que emergiam das constantes mudanças mun-

- 77 -
diais nas relações de trabalho, de modo a tornar possível preparar
o indivíduo em suas potencialidades, buscando qualificar o atendi-
mento do serviço (BARCIA,1982). Por isso, os conceitos de EP, ensi-
no em serviço e EC carregam uma visão de mundo e apropriação de
uma determinada orientação.
A compreensão desses termos pode ser atribuída às exigên-
cias dos serviços de saúde, que têm determinado a necessidade da
organização dos profissionais por meio de processos educativos para
neles atuarem (FARAH,2006). E isso implica na apropriação dessa
orientação como forma de tornar a gestão de pessoas capaz de com-
preender as lacunas dos serviços e os problemas de saúde da popula-
ção, argumentos que convergem para difusão da EP pela Opas/OMS,
indicando-a como vertente pedagógica para o desenvolvimento de
pessoas e de mudanças no cotidiano (DAVINI et al,1990).
As terminologias: educação permanente, ensino em serviço e
educação continuada têm exposto uma polêmica conceitual, e as três
compõem dimensões da educação. Farah (2006) considera o ensino
em serviço o conjunto de práticas educativas planejadas para que se
atue de maneira mais efetiva e eficaz, de modo a alcançar diretamen-
te os objetivos da instituição. Essa estratégia estaria relacionada a de-
terminações planejadas para assegurar a efetividade de uma ação, ou
seja, uma situação pontual.
O conceito de EC considera necessário pensar o processo edu-
cacional de forma [...] “descendente”, ou seja, a partir de uma lei-
tura geral dos problemas, identificam-se temas e conteúdos a serem
trabalhados com os profissionais, geralmente sob o formato de cursos
(USP,2008, p.127).
A EC e o ensino em serviço orientam as necessidades de capa-
citação como instrumentalização técnica, sem levar em conta os pro-
cessos de trabalho e a decisão para realizá-los se dá de forma descen-
dente. A crítica da Opas/OMS é convergente: a EC contribui para a
atualização de conhecimentos, mas não para operar mudanças nos
serviços. Desse modo, a EPS é uma estratégia político-pedagógica-
-gerencial adequada, na medida em que a centralidade é o cotidiano
do trabalho (LEMOS,2010).
A expressão EC dá um enfoque técnico para desenvolver no-
vas habilidades e engloba as atividades de ensino após o curso de
graduação, com as mesmas finalidades: atualização, aquisição de no-

- 78 -
vas informações e/ou atividades de duração definida (LEITE et al,
2020). E suas ações têm um caráter de formação pontual com ob-
jetivo de responder às lacunas na atuação técnica dos profissionais.
O uso dos termos e expressões não é isonômico, na área da
educação é prática recorrente utilizar “educação continuada” para
processos de formação no próprio local de trabalho e, incorpora essa
ideia sem que haja interrupção ou fragmentação de acordo com a
finalidade que se almeja alcançar (OPAS,1988; VIEIRA et al,2006).
A distinção entre os conceitos de EC e EP não os faz serem
incompatíveis entre si para serem aplicados. Há distintos entendi-
mentos e não há compreensão comum quanto ao significado úni-
co ou mesmo consensual do termo, como se fossem considerados
sinônimos. A EP abarca a EC e o ensino em serviço e, de alguma
forma, a aprendizagem desenvolvida (nas relações pessoais, sociais
e profissionais) reverbera em mudanças e transformações do sujeito
e, logo, intenciona mudanças do mundo (Pascoal,2004; Farah,2006
e Lemos, 2010),
A EC é categorizada como uma ação que se desenvolve após a
graduação, como expressão de um processo de atualização, aprimo-
ramento e para adquirir conhecimento, relacionada mais à normati-
va para determinadas necessidades, domínio de uma habilidade téc-
nica, com adoção de metodologias formais, previamente definidas as
atividades e a duração. Quanto à educação/ensino em serviço, seria
composta de atividades educativas realizadas durante o processo de
trabalho.
Para a Opas/OMS, a EC se trata de uma estratégia pedagógica
de transmissão de conhecimentos para dar respostas às determina-
ções do cotidiano do trabalho, e, com essa estratégia, sustenta que
os planos de EP e em serviço têm sido realizados de forma fragmen-
tada, distantes dos reais problemas dos serviços e desvinculados de
análises contextualizadas do processo de saúde-doença e da estrutu-
ra político-institucional (DAVINI, 1995).
Para Opas/OMS, para superar o enfoque educativo do passa-
do sem desconsiderar as contradições estruturais, é preciso propor
métodos para qualificar a força de trabalho vinculada aos serviços de
saúde na AL, “tendo em vista haver […] una falta de corresponden-
cia entre la doctrina educacional y las características de los programas
concretos en términos de orientación, objetivos, contenidos, impacto”

- 79 -
(DAVINI,1995, p. 5). Sob essa premissa, a EP passa a ser uma nova
proposta ou alternativa para superar a EC que não tem propiciado
o desenvolvimento dos RH para melhorar a prestação de serviços
assistenciais (LEMOS,2010).
Ainda que não esteja explicitamente dito, não há indicação de
se identificar as razões necessárias e causas (gênese) que motivam
promover a transformação da prática. O fato de usar a expressão
transformações das práticas, necessariamente, não expressa, no sen-
tido genuíno, uma radical mudança estrutural, visto que a adoção da
EP é justificada pela necessidade de uma adequação às novas mu-
danças no mundo do trabalho, sem que para isso se discuta, apre-
sente e/ou considere o processo histórico que culmina nas desigual-
dades resultantes da exploração dos países mais pobres pelos mais
ricos ou, mesmo, os problemas de saúde que persistem nos países
subdesenvolvidos (MÉSZÁROS,2008; LEMOS,2010).
Parece relevante a atuação da Opas/OMS na visão de Lemos
(2010) ao adotarem como fundamento uma compreensão histórica
do processo e envolvendo uma dimensão política com análises es-
truturais e conjunturais esses organismos consideram a EPS uma pe-
dagogia superior, em função de esta se posicionar como um referen-
cial crítico da educação e permitir a conexão entre teoria e prática.
Em vista disso, a EP para Opas/OMS é um elemento para me-
lhorar a qualidade do serviço oferecido à população, sendo conco-
mitantemente uma ferramenta pedagógica de formação de trabalha-
dores e um agente gerenciador dos problemas do trabalho, capaz de
agir na busca coletiva de soluções, à medida que une o pensar e o fazer
(LEMOS,2010, p. 86). A EPS é definida como educação por meio
do trabalho em diferentes serviços, cuja a meta é promover a saúde
da população, mediante transformações técnicas e sociais (DAVINI,
1995).
Como indica Davini (1995), o conceito pela Opas/OMS tem
contornos e razão político-sanitária e de atualização à medida que
propõe instaurar novos programas, tanto para atender às demandas
dos serviços de saúde quanto de reorientação de políticas sanitárias.
E, também, superar deficiências e limitações no processo de forma-
ção, a obsolescência do conhecimento face ao processo científico-
-tecnológico, no sentido da incorporação de tecnologias e recupera-
ção de conhecimentos e habilidades esquecidos. Outra contribuição

- 80 -
é a concepção de que a EPS orienta para mudar as práticas técnicas e
sociais ao mesmo tempo, evidenciando aspectos da promoção huma-
na do trabalhador, do trabalho em equipe. Logo, implica na reflexão
crítica sobre a prática e o estímulo ao compromisso de transformar
a realidade a partir de problemas cotidianos capazes de promover
reflexão e gerar mudanças (DAVINI,1995).
Acrescentem-se a essa perspectiva às apontadas por Ricas
(1994), que sustentam que os programas de EPS devem estar ancora-
dos em análises do contexto político e socioeconômico da saúde, em
função das transformações que se espera responder aos princípios
de equidade e justiça social da saúde; desenvolver uma consciência
crítica frente ao reconhecimento da realidade na sua totalidade, para
que se tenha ação transformadora. Portanto, implica integração en-
tre teoria e prática, sobretudo análises e debates sobre as condições
de trabalho e respostas à dinâmica político-social de determinada
realidade. Assim, a EP é estratégica, com um enfoque integrado téc-
nico-organizacional e político, com contornos de reestruturação e
desenvolvimento dos serviços, no qual se propõe a transformar o
profissional em sujeito que assume a centralidade do processo de en-
sino-aprendizagem (LEITE, et al, 2020).
Vê-se que a EPS é dotada de uma dimensão abrangente e, en-
volve aspectos que exigiriam reflexão crítica da realidade quanto às
razões que têm gerado os problemas da saúde e, mesmo, suas ex-
pressões sociais, econômicas e políticas. Razões essas que revelam as
causas do adoecimento, da pobreza e, sobretudo, das possíveis ina-
dequações educacionais para atender aos problemas de saúde que
afligem, sobretudo, os países subdesenvolvidos.

4. POLÍTICA NACIONAL DE EDUCAÇÃO PERMANEN-


TE EM SAÚDE

A interação educação-saúde resultou na instituição de uma


PNEPS, e, algumas limitações são evidentes como atribuir à educa-
ção o valor mágico e exclusivo para solucionar problemas e preocu-
pações da realidade, sem, para isso, considerar aspectos políticos e
econômicos. Logo, o conceito de EP também não é isento de ideolo-
gia e tudo acompanha uma intencionalidade.
A PNEPS é resultado de iniciativa do MS somada à força de
pressão dos técnicos e da população, via controle social. Vincula-se

- 81 -
à operacionalização da descentralização e a mudanças do modelo
de atenção, que têm requerido um novo perfil profissional para res-
ponder às necessidades de readequação dos serviços à população, de
modo a valorizar, sobretudo, cuidados e prevenção como direitos,
sendo essencial a qualificação dos trabalhadores como base para es-
truturar o sistema e promover a mudança desejada.
Dentre as mudanças a serem operadas para a implementa-
ção do SUS está o deslocamento da atenção à saúde antes centrada
na doença; da atenção à demanda espontânea para o atendimento
continuado; da ênfase à medicina curativa pela integralidade da as-
sistência, implicando a prioridade na formação de profissionais ca-
pazes de atuar para implementação dessas mudanças (FARIA e VIA-
NA,2002).
Para Fleury (1997, p.282), a produção intelectual da gestão de
serviços se volta para um discurso que é projeto da ação política, en-
quanto a produção intelectual científica se formula em discurso de
natureza teórica, que responde à explicação sobre a ação política. A
primeira se ocupa em encontrar respostas para questões do plane-
jamento normativo e a segunda objetiva o conhecimento à ação, na
perspectiva do saber teórico, da reflexão sobre a prática dos serviços.
Tais observações demonstram que a produção intelectual sobre o
trabalhador se traduz como problemática institucional (força e re-
lações de trabalho), portanto, um desafio tanto para o campo dos
estudos quanto para as instituições.
Essa temática ligada ao trabalhador, apropriada pelo Estado
como sua responsabilidade, considera-se aqui, com atraso, em fun-
ção dessa responsabilidade, instituída em 1988, na CF no seu artigo
200, a definição “de ordenar a formação de seus trabalhadores” e a
União, na figura do MS, demorou quase 15 anos para definir uma
política específica, universal, voltada a orientar os demais entes fede-
rados. Houve iniciativas e experiências exitosas, programas e proje-
tos, tentativas pontuais até que se materializasse essa indicação cons-
titucional em política social.
A elaboração da NOB-RH procura atender a necessidades
previstas pela RSB, como questões de formação e desenvolvimen-
to dos trabalhadores da área, e se traduz em uma das respostas aos
debates e manifestações da sociedade civil durante as conferências
de saúde e de RH. A sua elaboração assegurou a operacionalização

- 82 -
de seus conteúdos, além de servir de referência para a formulação
da política para essa área; contribuiu com a base legal para as ações
e os serviços de saúde que têm especificidades não encontradas em
outras atividades da administração pública (BRASIL,2003).
A NOB-RH impôs mudanças, cujas iniciativas e experiências
exitosas como a implantação dos Polos de Capacitação, Formação e
Educação Permanente de Pessoal para Saúde da Família possibilita-
ram aproximação de diversos atores de instituições de serviço e de
ensino público numa pactuação dos projetos e execução das ações
em cooperação, frente à insuficiência de políticas para o desenvol-
vimento de perfis profissionais adequados aos primeiros níveis de
atenção à saúde.
Com a implantação desses polos, a questão de trabalho e
formação na saúde entra na pauta como parte do processo de des-
centralização atribuído aos gestores estaduais e municipais. Porém,
tais ações tendem a ser insuficientes, pois para mudar o modelo de
atenção é preciso estar encadeado a outras iniciativas. Se somente os
agentes de saúde tiverem qualificação na lógica de mudança modelo
e as demais categorias profissionais continuarem em processos for-
mativos sob outra lógica (hospitalocêntrica e curativa), não haverá
impacto à mudança de modelo de atenção. A formação é insuficiente
e exige intervenção massiva, lembra Campos (2006, p.54), essa refle-
xão sugere que o princípio de mudança de modelo de atenção à saú-
de sofre implicações vinculadas à estrutura da saúde e da educação,
e estas podem estar imbricadas no sistema do lucro sobre a doença.
A experiência com os Polos recolocou a importância do tra-
balho, a necessidade de valorização dos profissionais na implantação
dos modelos assistenciais e a regulação das relações de trabalho. E
aqui, nesta reflexão, são considerados gatilhos a impulsionarem o
próximo passo: a publicação da Portaria nº 198/2004 que instituiu a
PNEPS, como proposta de ação estratégica a fim de contribuir para
transformar e qualificar as práticas de saúde, a organização das ações
e dos serviços, os processos formativos e as práticas pedagógicas na
formação e desenvolvimento dos trabalhadores. Logo, foram medi-
das que visavam superar as concepções tradicionais de educação.
Se o período da proposição da NOB-RH foi considerado déca-
da perdida para os recursos humanos, como enfatiza Machado (2006,
p.23), é porque o governo da época não a priorizou; tem-se, agora, o

- 83 -
aspecto que favoreceu a instituição da PNEPS com o novo governo em
2003, representando o retorno aos princípios de que a saúde é um bem
público e os trabalhadores que atuam são um bem público. Portanto, as
experiências acumuladas do MS até aqui e a posição política adotada
pelo governo facilitaram o incremento da PNEPS, já que esse gover-
no assumiu para si a responsabilidade definida constitucionalmente
como mudança positiva, a partir da estruturação da Secretaria de Ges-
tão do Trabalho e da Educação na Saúde.
Em 2007, no cenário do Pacto pela Saúde (Portaria GM//MS
nº325/2008), a PNEPS recebe influência de seus embates e debates,
levando em conta indicadores e medidas para o processo de gestão,
preconizados pelo Pacto. O resultado foi a revogação da Portaria GM
nº198 e a publicação da Portaria GM nº1996/2007. A PNEPS recebe
novos direcionamentos em razão da necessidade de se construírem
indicadores para acompanhamento e avaliação da EPS, seguindo a ló-
gica das diretrizes definidas no Pacto pela Saúde.
Neste ano, inscreve-se a retomada desse debate na agenda dos
governantes com a publicação, pelo MS, da Portaria nº3449/2017 que
disponibiliza recursos a Estados e municípios, estratégia para promo-
ver propostas visando ao seu fortalecimento, consolidação e imple-
mentação. Após um processo estratégico de discussão para atualizar
PNEPS.
Esse conjunto de normas se revela em avanços e em ameaças
que têm impedido essa política de se efetivar como no desenho que
a constituiu. A partir dessa experiência acumulada para constituição
como política, a reflexão sobre EPS indica a necessidade de se questio-
nar e refletir sobre os problemas, por serem de ordem estrutural e do
próprio sistema, atribuídos aos trabalhadores, e que não evidenciam o
compromisso e a responsabilidade do Estado no processo.
Outro avanço é quanto à mudança de nomenclatura: falar em
Recursos Humanos em Saúde (RHS) remete a um dos subsistemas do
SUS que, a partir da estruturação da Política de Gestão do trabalho,
assimila o conceito de Gestão de Pessoas em substituição ao RHS. Por-
tanto, é uma visão política na qual o trabalhador é percebido como
sujeito e agente transformador de seu ambiente e não mero “recurso
humano” realizador de tarefas. E o trabalho é visto como um processo
de trocas, de criatividade, coparticipação e corresponsabilização de enri-
quecimento e comprometimento mútuos (BRASIL,2011).

- 84 -
O acúmulo das experiências, seja com a realização de confe-
rências ou com a trajetória de discussões no interior das instituições
de ensino e serviços, evidenciou tanto a situação insustentável ao
fato (não existência de uma política de educação para os trabalhado-
res) como demonstrou a relevância da temática. Além disso, apon-
tou, a necessidade do Estado se organizar e adotar estratégias para o
desenvolvimento e qualificação dos trabalhadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observam-se avanços na constituição da EPS a partir da ne-


cessidade de processos educativos, determinada pelas condições da
realidade de saúde e surgimento de políticas específicas no âmbito do
SUS. As mudanças nos processos de educação trouxeram conquistas
materiais reivindicadas desde o MRSB. Outra conquista ocorreu, em
2018, quando o MS retomou o debate sobre esse tema, atualizou a
PNEPS e transferiu recursos financeiros a Estados e municípios que
estavam há longo período sem receber subsídios do governo federal.
Embora ocorrido conquistas no âmbito da EPS, persistente
interferência de interesses políticos com potencial de comprometer
o debate sobre as dificuldades e carências existentes em processos
educativos e formativos. São também raras as ações de mudanças na
rede de serviços pela via de processos educativos. O Estado está cada
vez mais submetido aos ideais neoliberais, se exime de suas respon-
sabilidades constitucionais pelas políticas sociais e dificulta o finan-
ciamento (BAHIA,2018; BEHRING,2008). A EC nº95/2016 congela
gastos públicos por duas décadas, e afeta o financiamento da EPS que
historicamente recebe recursos insuficientes o que compromete sua
atuação e êxito, assim como ocorre com todo o SUS na atual conjun-
tura (RAICHELIS e ARREGUI,2021).
O cenário para a EPS se agravou com o surgimento da crise sa-
nitária com a chegada da Pandemia da Covid-19 em 2020. A conjun-
ção de crise sanitária, econômica e política no Brasil repercutiu na
EPS, cujas ações têm se restringido majoritariamente ao protagonis-
mo de profissionais que percebem as exigências de processos educa-
tivos no seu cotidiano. A gestão do governo Bolsonaro compromete
a saúde pública com retirada de recursos e desrespeito aos princípios
do SUS, o que afeta a PNEPS que pode ser considerada fundamental

- 85 -
ao enfrentamento da pandemia (GRANEMANN,2021). Apesar dos
desafios contemporâneos para a EPS, os ideiais da RSB estão pre-
sentes em processos educativos com a participação de profisionais
comprometidos com o combate da crise sanitária, com base no co-
nhecimento científico e defesa de direitos sociais.

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- 89 -
- 90 -
ESTADO, SOCIEDADE CIVIL E A RELAÇAO DO
TRABALHO EM REDE
Irenilda Angela dos Santos

INTRODUÇÃO

A violência urbana e de gênero é um dos fatores que mais in-
terfere no bem-estar das pessoas, tornando-se um dos grandes de-
safios a serem superados pela sociedade contemporânea. O modo
de produção capitalista impede que haja desapego de determinados
padrões para a classe trabalhadora, dependente de um salário que é
“negociado” diretamente com seu patrão.
Pertinente interligar, portanto, esses dois anseios prementes
dos trabalhadores: um Estado que seja forte para garantir bem-estar
e segurança, sendo que trabalho e segurança pública são alguns dos
direitos sociais que mais interessam aos trabalhadores, por permiti-
rem uma participação mínima na riqueza material e cultural cria-
da pela coletividade (COUTINHO, 2008, p. 63), sendo conquista
da classe trabalhadora que se materializa através das políticas so-
ciais.
Interessa-nos neste artigo discutir a rede de enfrentamento
à violência doméstica contra a mulher, formada por provocação da
sociedade civil, para atender Várzea Grande e Livramento, a partir
de 2017.
Apesar da Lei n.º 11.340 estar em vigor desde 2006 e prever
em seu texto que a política pública deve ser feita por um conjunto
articulado de ações tendo por diretrizes a integração operacional do
Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com
as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação,
trabalho e habitação, só depois de doze anos é que a sociedade civil e
o poder público resolveram se unir para executar tal política pública,
assim, a análise dessa relação é o objetivo geral deste artigo.
Buscamos discutir porque se demorou tantos anos para come-
çar a implementar a política pública em questão, bem como avaliar
os serviços oferecidos pela Rede de Enfrentamento à Violência Do-
méstica e Familiar Contra a Mulher.

- 91 -
Buscamos relacionar em Coutinho, os conceitos de democra-
cia e cidadania com trabalho em rede, pois os dois primeiros são
processos históricos, trazendo para a discussão o surgimento das re-
des de cooperação, segundo Harari e trazendo Boschetti, nas discus-
sões sobre direitos sociais.
A população pesquisada foi composta por profissionais, inte-
grantes da rede, bem como por alguns usuários dos serviços ofere-
cidos por ela, sendo empregada a observação como método de in-
vestigação; formulários, questionários, entrevistas e atas de reuniões
como instrumentais de coleta de dados.

1. AS REDES SE FORMAM ATRAVÉS DE ORDENS IMA-


GINADAS

Há cerca de 10 mil anos, os sapiens começaram a dedicar qua-


se todo o seu tempo e esforço a manipular a vida de algumas espécies
de plantas e de animais. Harari (2015, p. 87) relata que a Revolução
Agrícola foi a maior fraude da história que proporcionou aos agri-
cultores uma vida, em geral, mais difícil e menos gratificante que a
dos caçadores-coletores.
Os agricultores tinham mais posses e necessitavam de terra
para plantar, a perda do pasto para inimigos podia significar fome e,
por isso, havia muito menos possibilidade de acordos. O cultivo de
trigo proporcionou mais alimento e permitiu que o Homo sapiens se
multiplicasse exponencialmente: mantendo mais pessoas vivas em
condições piores. A provocação de Harari faz refletir sobre a escravi-
dão do ser humano à agricultura, ao conflito pela posse e proprieda-
de da terra e a fazer uma comparação ao que se tem hoje, mormente,
no Brasil: o que se planta e para quem se planta?
Segundo Harari, enquanto a evolução humana estava raste-
jando, a imaginação humana estava construindo redes impressio-
nantes de cooperação em massa. “Cooperação” soa muito altruísta,
mas nem sempre é voluntária e raramente é igualitária. A maior par-
te das redes de cooperação humana foi concebida para a opressão e
a exploração, os camponeses pagavam por tais redes de cooperação
com seus preciosos excedentes de alimentos. Até mesmo as prisões e
os campos de concentração são redes de ‘cooperação’, mesmo a con-
tragosto, e só podem funcionar porque milhares de estranhos con-

- 92 -
seguem, de algum modo, coordenar suas ações, assim, todas essas
redes de cooperação foram ordens imaginadas e se sustentavam em
mitos partilhados.
Explica que um fenômeno objetivo existe independentemente
da consciência humana e das crenças, um fenômeno subjetivo é algo
que existe e depende da consciência e das crenças de um único in-
divíduo e um fenômeno intersubjetivo é algo que existe na rede de
comunicação ligando a consciência subjetiva de muitos indivíduos e
as ordens imaginadas são intersubjetivas. De modo que para mudá-
-las, é preciso mudar a consciência de bilhões de pessoas, e uma mu-
dança de tal magnitude só pode ser alcançada com a ajuda de uma
organização complexa como um partido político, um movimento
ideológico ou um culto religioso. E para construir tais organizações
complexas é necessário convencer muitas pessoas estranhas a coope-
rarem, e isso acontece quando elas acreditam em mitos partilhados.
É difícil mudar um paradigma, pois para mudar uma ordem
imaginada existente é preciso acreditar em uma ordem imaginada
alternativa, que a maioria das pessoas não quer aceitar porque a or-
dem que governa sua vida é imaginária, já que cada pessoa nasce
em uma ordem imaginada preexistente e seus desejos são moldados
desde o nascimento pelos mitos dominantes. Pensando sobre a vida
dos trabalhadores, basta voltar à época em que a burguesia se tornou
a classe dominante na França e na Inglaterra. O proletariado emer-
giu como um sujeito histórico politicamente organizado em torno de
associações coletivas e com relativa autonomia ideológica, enquanto
a concepção burguesa do mundo viveu uma fase apologética, pois foi
obrigada a ocultar as principais contradições do modo de produção
capitalista mistificando-o com uma ordem natural para conservar
o status quo ameaçado pelas lutas socialistas, (CASTELO, 2002, p.
618).
Ainda hoje, a participação do povo no exercício do poder po-
lítico não se concretizou nem mesmo nas democracias, quando a
esquerda chegou ao governo como mostra Saes, mesmo com esses
governos tendo efetivamente adotado medidas reformistas como a
expansão do setor público, a criação de leis de mínimos sociais ou a
adoção de políticas tributárias de inspiração redistributivista, o po-
der político continuou nas mãos dos grandes bancos, das sociedades
financeiras e das grandes empresas industriais. Na verdade, esses go-

- 93 -
vernos de centro-esquerda tiveram de se adaptar ao poder político
da classe que opera o poder econômico, gerindo a economia dentro
de limites fixados pelos interesses econômicos e políticos dessa clas-
se. (SAES, 2000, p. 30).
O estresse representado pela agricultura teve consequências
importantes: representou a base dos sistemas políticos e sociais de
grande escala e os camponeses, mesmo trabalhando mais de dez
horas por dia de segunda a segunda, quase nunca alcançaram a se-
gurança econômica e segurança alimentar que tanto ansiavam. Em
toda parte, brotaram governantes e elites vivendo do excedente dos
camponeses e deixando-os com o mínimo para a subsistência.
Tais excedentes confiscados alimentaram a política, a guerra,
as religiões e as elites, que construíram palácios, fortes monumentos
e templos, sendo estes excedentes que alimentavam a elite, os reis, as
cortes, os oficiais do governo, soldados, padres e pensadores. E isso
não mudou: A história é o que os vencedores contam, escrevem e
reproduzem, enquanto milhares de outras pessoas da classe traba-
lhadora estavam produzindo alimentos (HARARI, 2015, p. 113). A
história continua sendo a ordem pensada e imaginada pelas poucas
pessoas da classe detentora do poder e essas poucas pessoas forjam
a crença de todas as outras nos mitos partilhados pelas primeiras.
Como os humanos se organizavam em redes de cooperação em mas-
sa, uma vez que careciam de instintos biológicos para sustentar tais
redes? Eles criaram ordens imaginadas e desenvolveram sistemas de
escrita, onde as primeiras sustentavam essas redes que nunca foram
neutras nem justas. Sempre dividiram as pessoas em grupos hierar-
quizados: superiores e inferiores, com os primeiros desfrutando de
privilégios e poderes e os segundos sofrendo discriminação e opres-
são. Para exemplificar, cita que o Código de Hamurabi estabelecia
uma ordem hierárquica formada por homens superiores, comuns e
escravos.
A ordem imaginada constituída pelos detentores do poder
entre os norte-americanos, ao assinarem a Declaração da Indepen-
dência, também foi criada uma divisão entre negros e brancos, indí-
genas e também de gênero, demonstrando a grande contradição que
perdurou durante muitos anos até que, em 1860, uma parte do país
se voltou contra a outra, numa guerra que partiu o país ao meio.
Após a Guerra de Secessão, ocorreu a libertação dos negros,
que a partir dai deveriam gozar de liberdade, todavia, só mesmo na

- 94 -
década de 1960, com a luta de Martin Luther King, estes vieram a
gozar de direitos civis. Porém, mesmo assim, o preconceito, a discri-
minação, os baixos salários e a falta de oportunidade para os negros
permaneceram, tanto que até hoje a maioria dos que se encontram
privados de liberdade nos EUA é afro-americana, bem como são
também vitimas de mortes, por preconceito, pelas mãos de policiais
brancos.
O mesmo sistema discriminatório ocorreu com as mulheres,
pois pequenas mudanças só ocorreram após as mulheres ocidentais
brancas, de início apenas as de classe média, que insatisfeitas com
o seu estado de submissão resolveram reivindicar direitos de votar,
ter acesso à instrução e a terem profissão, provocando o início das
mudanças nos direitos das mulheres. O movimento feminista bra-
sileiro demorou um pouco mais a se mostrar, tendo sido iniciado
basicamente com as lutas das mulheres na década de 1970, porém,
até hoje ainda lutamos e reivindicamos por direitos iguais, igualdade
de salários, cota no fundo nacional de financiamento de campanha e
respeito à integridade física, patrimonial e psicológica, entre outros
direitos.

2. A SOCIEDADE CIVIL E A INTERDEPENDÊNCIA SIS-
TÊMICA

Desde o início do processo de construção da cidadania, as


classes dominantes parecem ter visualizado a possibilidade de uma
dinâmica contínua de criação de direitos que agiria a favor dos in-
teresses de quem detém os meios de produção, em detrimento dos
direitos dos cidadãos da classe trabalhadora, esta, porém, continua
lutando pelos direitos de cidadania e, diante disso, as elites se uniram
e passaram a pensar através de seus intelectuais em como estagnar
o avanço dos direitos sociais. Após as revoluções políticas burguesas
que reorganizaram os aparelhos de Estado europeus em função do
princípio da igualdade jurídica, as classes dominantes desses países
começaram a se opor à instauração da igualdade política, sendo que
esses dispositivos antidemocráticos se conservaram até a Primeira
Guerra Mundial (SAES, 2000, p. 15-16).
A constituição das políticas sociais (instrumentos hábeis para
assegurar os direitos sociais) em sistemas de proteção social públicos

- 95 -
é recente e só será assim concebida a partir da crise de 1929, porém
as estruturas que criam a exclusão social não são transformadas e,
assim, as políticas sociais continuam sendo, via de regra, instrumen-
tos que servem para dar continuidade ao modelo econômico, então
adotado.
Nos países capitalistas os sistemas de proteção se originaram
na Europa Ocidental no contexto da Revolução Industrial e se am-
pliaram após a II Guerra Mundial, constituindo conquistas civiliza-
tórias que não foram capazes de emancipar a humanidade da escra-
vidão capitalista, mas instituíram sistemas de direitos e deveres que
alteraram o padrão de desigualdade entre as classes sociais. (BOS-
CHETTI, 2012, p.755). O período do Pós-Segunda Guerra Mundial,
capitalizado pelo Plano Marshal, oferece um cenário da centralidade
que estas políticas sociais passaram a ter dentro do sistema capitalis-
ta nestes países no pós-guerra. Este período, marca de forma clara
a consolidação dos sistemas de proteção social nos países europeus
capitalistas e que buscam pensar um modelo de certo equilíbrio na
relação capital trabalho, situação que garantiu um crescimento com
redistribuição de renda ao longo de uns 30 anos nos países europeus
capitalistas e também norte americano.
Porém, tais benesses que permitiram a consolidação dos siste-
mas de proteção aos cidadãos nacionais, se calcaram na apropriação
de riquezas de outros países dentro do conceito de países de baixo
desenvolvimento, como aqueles dos continentes da América do Sul
e Central, a África, a Ásia, entre outros. Dessa forma, essas políti-
cas sociais garantiram a mercantilização ainda maior da reprodução
das condições de vida da população trabalhadora, o que mostra que
a expansão dos mercados ocorreu sem romper com a organização
política das classes detentoras dos meios de produção ou com a or-
ganização política e social, garantindo a sustentabilidade do sistema
social, como nos fala (POLANYI, 2000).
São necessários esforços árduos e contínuos para salvaguardar
uma ordem imaginada, portanto, os intelectuais engajados na luta
pela classe oprimida são muito importantes para mantê-la, se encar-
regando de desenvolver teorias para atingir esse objetivo. (HARARI,
2015, p. 119).
Depois da Segunda Guerra Mundial, a teoria de Parsons,
passou a valorizar o aspecto social, tanto foi assim que em seu li-

- 96 -
vro Sistema Social, publicado em 1951, Parsons deu ênfase à índole
da interdependência sistêmica das forças estabilizadoras do sistema,
tornando subsidiário o caráter estimulante dos valores e ideias. Foi a
partir de então, que ele destacou a existência de quatro requerimen-
tos funcionais necessários à sobrevivência de uma sociedade ou de
qualquer sistema social: manutenção de padrões, obtenção de metas,
adaptação e integração. Segundo Parsons, 1974, p. 4, apud Pereira,
2011:

A manutenção de padrões relaciona o sistema cultural já que este


se organiza em torno das características de complexos de significa-
do simbólico, que contribuem para a continuidade dos padrões de
valores básicos. À obtenção de metas relaciona a personalidade dos
indivíduos, pois o sistema de personalidade é a “agência primordial
dos processos de ação”. À adaptação relaciona ao organismo
conductual, visto que se trata de um subsistema que inclui um
conjunto de condições a que as ações devem adaptar-se e compreende
o mecanismo primário de inter-relação com o ambiente físico,
sobretudo mediante a entrada e o processamento de informação ao
sistema nervoso central e a atividade motora para enfrentarem-se
as exigências do ambiente físico. À integração relaciona o sistema
social, destacando-se neste pré-requisito funcional a preocupação
com a coordenação das unidades constitutivas do sistema e com o
estabelecimento da harmonia e cooperação entre as partes.

Analisadas por essa lógica, as instituições de bem-estar per-


tencem ao subsistema integrativo, já que a sua principal função con-
siste em manter o conflito e a desarmonia social em níveis, os mais
baixos possíveis.
O enfoque sistêmico de Parsons incorporou novos elementos,
tais como: o poder, o governo e sua relação com os direitos de cida-
dania. Mesmo sofisticando sua análise a respeito do poder, a integra-
ção social continua sendo uma necessidade imperiosa em sua teoria,
à qual devem estar submetidos todos os fatos sociais emergentes,
inclusive o bem-estar.
Demonstrando maior preocupação com a análise do bem-
-estar, Smelser desenvolveu um raciocínio que encara o desenvolvi-
mento com uma relação conflituosa entre diferenciação e integração,
redundando na união entre estruturas diferenciadas de sociedades
sobre novas bases, assim, a mudança da indústria doméstica para a
da produção fabril criou problemas de integração. Os mecanismos
integradores que funcionavam no âmbito doméstico, mediados por

- 97 -
parentes e vizinhos, tornaram-se obsoletos ante o desenvolvimento
industrial, todavia, esse processo deu origem a organizações diferen-
tes das anteriores que cumpriram a função integradora: Agências de
Recrutamento, Sindicatos e Sociedades de Cooperação (MISHRA:
1989 apud PEREIRA, 2011).
Implícita nessa visão de mudança via processo de diferencia-
ção e recomposição da integração sobre novas bases, está a análise do
bem-estar como mecanismo integrador nas sociedades complexas,
mas em interdependência com as demais funções básicas do sistema.
Nas sociedades industrializadas, diferentes instituições desenvolvem
o bem-estar como reforço adicional à família e aos grupos de paren-
tesco.
Esta é a razão porque várias organizações formais e informais
oferecem resposta às necessidades que nas sociedades primitivas
eram supridas pela comunidade e parentesco. Em algumas comuni-
dades, a religião como organização e conjunto de crenças simboliza a
ideia de comunidade e assume, no processo de integração, um papel
importante. Em outras, estas mesmas religiões podem refrear qual-
quer processo de promoção de igualdade, quando calcadas em ideias
conservadoras e de ultradireita.
Na sociedade industrial, novas modificações foram introdu-
zidas, aumentou a especialização no trabalho ao mesmo tempo em
que a complexidade social se intensificou: a família, a comunidade
e a igreja se enfraqueceram como organizações integradoras. Novas
estruturas surgiram e se ocuparam do bem-estar e nesse estágio se
destacou a intervenção do Estado de bem-estar Social, acompanha-
da da ação de assistência social, pública e privada, como parte do
mecanismo integrador por excelência da sociedade industrializada.
Muito embora tenha havido modificações para tentar huma-
nizar o capitalismo, as relações decorrentes desse sistema embrute-
cem as pessoas, ao gerar uma sociedade socialmente injusta e cada
vez mais indiferente ao outro, a violência aumenta e coibir ou criar
meios de minimizá-la é uma tarefa que demanda esforço coletivo, de
várias instituições e da sociedade civil.
Porém, ao contrário dos países capitalistas europeus e do nor-
te-americano, a expressão sociedade civil só se difundiu na reflexão
social brasileira por volta da década de 1970, sendo que para Grams-
ci, sociedade civil é parte integrante do Estado e somente por razões

- 98 -
analíticas pode dele ser destacada, e nessa mesma década o neoli-
beralismo transferiu para a sociedade civil, as responsabilidades so-
ciais, que deveriam ser estatais.

3. A QUEDA DO SISTEMA DE PROTEÇÃO SOCIAL

Igualdade e liberdade individual são valores fundamentais,


entretanto, são, ao mesmo tempo, contraditórios, a igualdade só
pode ser assegurada se forem diminuídas as liberdades dos que estão
em melhores condições e toda a história política do mundo, desde
1789, pode ser vista como uma série de tentativas de superar essa
contradição. (HARARI, 2015, p. 172-173).
A partir dos anos 90, na União Europeia ocorreram e vêm
ocorrendo variadas transformações sociopolíticas, econômicas e
culturais que afetam os diferentes sistemas de proteção social ini-
ciando a configuração de uma “nova geração” de políticas sociais,
denominadas de “ativas” ou de “de ativação”.
Tais políticas fazem parte do processo de desestruturação de
um modelo de provisão – o chamado Welfare State – para a cons-
trução de um novo modelo de regulação estatal – o workfare – retri-
buição expressa na obrigatoriedade de participação dos cidadãos em
medidas de ativação voltadas ao mercado de trabalho.
Essa nova geração de políticas sociais é oriunda de agências
multilaterais, de caráter neoliberal, entre elas o Consenso de Washin-
gton, que ficou conhecido por um conjunto de princípios condutores
da economia, da sociedade e dos Estados Nacionais, acordados pelos
países desenvolvidos, em meados da década de 1980 que foram di-
fundidos e impostos pelas instituições financeiras multilaterais, es-
pecialmente o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, a
todos os países, impondo severas condições, em especial àqueles me-
nos desenvolvidos ou em desenvolvimento. (MOSER, 2011, p. 69).
Pelo ângulo econômico, as políticas sociais assumem a fun-
ção de reduzir os custos da reprodução da força de trabalho e elevar
a produtividade, bem como manter elevados níveis de demanda de
consumo, em época de crise. Pelo ângulo político, as políticas sociais
são vistas como mecanismos de cooptação e legitimação da ordem
capitalista pela via da adesão dos trabalhadores ao sistema. (BEH-
RING e BOSCHETTI, 2007).

- 99 -
A pobreza e a riqueza são resultantes do modo de produção
de uma dada sociedade e sob a exploração capitalista, o bem-estar é
sempre uma conquista da classe trabalhadora, que luta por ela desde
os primórdios da ascensão do capitalismo como modo de produção.
Os Estados estão cada vez mais abertos às articulações dos
mercados globais, à supervisão do público global, do sistema jurídi-
co internacional e ONGs (movimentos resultantes de organizações
que ganharam forte protagonismo), todavia, isto significou um des-
compromisso dos entes públicos. O mundo capitalista é um império
global, governado por uma elite de vários países que se mantêm uni-
dos por cultura comercial e interesses em comum para, a cada dia,
terem e auferirem maior lucro. Cada vez mais profissionais de todas
as áreas são chamados para fazer parte do império e devem ponderar
se atenderão ao chamado ou se permanecerão fiéis aos interesses de
seu Estado e povo, porém, é cada vez maior o número dos que esco-
lhem o império. (HARARI, 2015, p. 172-173).

4. OS TRABALHOS DA REDE DE ATENDIMENTO: FOR-
MAS DE FAZER VALER A LEI MARIA DA PENHA

Na década de 90 as redes ficaram conhecidas como instru-


mentos hábeis de cooperação para responderem aos desafios com-
plexos vividos pela humanidade. Novas tecnologias como compu-
tadores, internet e telefones móveis resultaram no intercâmbio de
informações de forma rápida, o que propiciou a articulação entre
instituições, grupos e pessoas fixadas em locais extremos. (CARREI-
RA e PANDJJARJAN, 2003, p. 22).
Nesse cenário surgiu a Rede Mulher de Educação, uma or-
ganização não governamental sem fins lucrativos, que facilitava a
interconexão entre grupos de mulheres de todo o país, constituin-
do-se em uma rede de serviços em educação popular feminista que
realizou o Projeto Superando Obstáculos na Prevenção e Combate à
Violência contra a Mulher. Na primeira fase promoveu a Oficina: Su-
perando Obstáculos nas Estratégias de Prevenção e Combate à Violên-
cia contra a Mulher, de 06 a 09 de novembro de 1998, em Campinas,
SP e na segunda fase promoveu a Oficina: Tecendo a Rede de Serviços
na Prevenção e Combate à Violência contra a Mulhernos Municípios –
Desafios e Propostas, em outubro de 2000, em Porto Alegre-RS.

- 100 -
Em 2006, foi editada a Lei Maria da Penha, o que representou
um avanço, entretanto, não foi suficiente para diminuir os números
da violência doméstica no território brasileiro, pois valores sociais
que perpetuam a cultura machista e práticas de atendimento que re-
produzem estereótipos e preconceitos contra a mulher continuam
sendo uma constante na sociedade.
No que concerne aos dados sobre violência doméstica contra
a mulher, o Fórum Brasileiro de Segurança publicou no ano de 2017
a existência de 4.606 homicídios e feminicídios, sendo uma mulher
assassinada a cada 2 horas em 2016 no território brasileiro.
Desses, 621 casos foram classificados como feminicídios, de-
monstrando as dificuldades no primeiro ano de implementação da
Lei Maria da Penha (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2017).1
Institutos médico-legais com serviços diferenciados, casas de
amparo para acolhimento, unidades de saúde, delegacias, defenso-
rias, promotorias e varas especializadas, quando existentes, ainda
funcionam em sua maioria de forma precária e na maioria das vezes
faltam profissionais qualificados e dispostos a realizar um trabalho
intersetorial.
A não concentração desses equipamentos sociais em um úni-
co lugar para o atendimento das mulheres vitimizadas tem sido um
dos principais problemas enfrentados pelas mulheres em situação
de violência, tendo em vista que acabam percorrendo grandes dis-
tâncias entre um e outro órgão, o que as desestimulam a continuar
buscando seus direitos.
Diante disso, é necessário pensar meios de exigir a execução
da Lei Maria da Penha em sua integralidade, especialmente os arti-
gos referentes ao atendimento multidisciplinar.
Assim, a formação de uma rede de enfrentamento à violên-
cia doméstica contra a mulher respalda essa necessidade e, atuando
com atores interessados neste processo, começaram, então, a traçar
estratégias para a implantação da referida rede a partir de dezembro
de 2017, em Várzea Grande-MT. Após algumas reuniões foi sugerida
a data para o lançamento do projeto no dia 08 de março de 2018, e
o documento formalizando a Rede foi assinado pelos representantes
1 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Amostra de Do-
micílios. Censo 2010. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/
sociais/populacao/9662-censo-demografico2010.html&t=microdados>. Acesso em: 01
jun. 2018.

- 101 -
das instituições da sociedade civil e dos governos municipal e esta-
dual, na mesma data.
Formalizado o documento, foram fixadas as diretrizes com os
eixos de atuação: Eixo I – Rede de Atenção/Proteção Social da Vio-
lência Doméstica; Eixo II – Plano de Educação Permanente e capa-
citação para os agentes sociais; Eixo III – Núcleo Acadêmico de Pes-
quisa, um grupo de trabalho que passa a se reunir periodicamente: o
Grupo Reflexivo para Homens e Patrulha Maria da Penha.
Potencializar o atendimento prestado pelas instituições que
integram a rede é o principal objetivo dela, o que começa a se reali-
zar com a primeira etapa das capacitações continuadas voltadas para
os agentes sociais. O espaço onde são realizadas as capacitações é
cedido por uma universidade privada e os facilitadores que se dis-
põem a realizar a formação são profissionais que integram a rede ou
professores da Universidade Federal do Mato Grosso ou desta mes-
ma universidade privada de Várzea Grande, que nada cobram pelo
trabalho, o material de apoio é doado pelo Ministério Público e a
certificação é feita pela UNIVAG. Na primeira etapa, são cursos de
24 horas, nos quais diversos temas são debatidos com os agentes que
prioritariamente atendem às mulheres.
O objetivo da formação é oportunizar a compreensão da vio-
lência doméstica e familiar a partir da perspectiva teórica de gêne-
ro, a fim de potencializar o trabalho intersetorial e interinstitucional
da Rede de Enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a
mulher da região de Várzea Grande e Nossa Senhora do Livramento,
esta última, também abrangida pela rede porque o posto da Polícia
Civil localizado na cidade é de competência da comarca de Várzea
Grande.
No total, participaram do primeiro módulo 68 pessoas, do
segundo 43 pessoas, do terceiro 54 pessoas e no quarto tivemos 59
participantes.
Cada um dos temas abaixo elencados é explanado através de
palestras e oficinas de trabalho, por especialistas da Universidade Fe-
deral de Mato Grosso, UNIVAG, bem como Promotores, Assistentes
Sociais e Psicólogos com conhecimento teórico e vivencial do tema
proposto, os quais usufruíram de total liberdade para apresentar a
temática: 1. Abordagem sócio-histórica do movimento feminista;
2. Debates teóricos sobre gênero; 3. A construção social do gêne-

- 102 -
ro, críticas feministas, patriarcado e a correlação com a dinâmica
da violência doméstica; 4. Relações Raciais, gênero e sua correlação
com a violência doméstica e familiar contra a mulher; 5. Apanhado
histórico da violência doméstica e familiar no Brasil; 6. Violência do-
méstica no Brasil: antes e depois da Lei Maria da Penha; 7. Estrutura
jurídica da norma nº 11.340/06, aspectos inovadores, sistemática de
proteção à mulher, o sistema judicial; 8. Desconstruindo os mitos
e estereótipos da violência doméstica; 9. Relacionamentos abusivos
e violentadores: Compreensão da construção de relacionamentos
abusivos da infância a fase adulta; 10. Consequências da violência
doméstica para a saúde física e mental de mulheres; 11. O trabalho
em Rede e a importância do trabalho intersetorial programado; 12.
A efetividade da Rede de Enfrentamento à violência doméstica e fa-
miliar contra a mulher.
Na segunda etapa da capacitação, foram 20 horas de duração,
entre 14 de setembro e 11 de outubro de 2018, onde o objetivo geral
foi qualificar profissionais, de nível superior, lotados nos equipamen-
tos da política de Assistência Social (CREAS e CRAS) das cidades de
Várzea Grande e Nossa Senhora do Livramento. Após a capacitação,
deveriam exercer a função de facilitadores do grupo reflexivo para
homens com medidas protetivas deferidas pelo Poder Judiciário e
os objetivos específicos foram: compreender como as desigualdades
de gênero explicam as raízes da violência doméstica e familiar; am-
pliar o conhecimento sobre os direitos inerentes ao ser humano e as
novas estratégias de coibir a violência contra a mulher através da Lei
n.º 11.340/06; promover reflexão transformadora sobre os conflitos
inerentes aos relacionamentos íntimos, especialmente os conjugais e
familiares; conhecer a construção de masculinidades e sua correla-
ção com a violência doméstica e familiar.
A metodologia utilizada era a apresentação de aulas expositi-
vas com problematização dos temas, debates e oficinas de trabalho,
em 30 de outubro de 2018 a Rede promoveu uma solenidade para
a implantação de dois serviços: a Patrulha Maria da Penha e o SER
(Serviço Reflexivo para Homens).
A Patrulha Maria da Penha consiste em efetivar a proteção às
mulheres que têm medidas protetivas, através de visitas frequentes
a elas, da Guarda Municipal e da Polícia Militar que trabalham em
conjunto.

- 103 -
O SER é um serviço reflexivo para os homens que cometeram
algum tipo de violência e são encaminhados pelo Poder Judiciário
para participar das reuniões junto ao CREAS (Centro de Referên-
cia e Assistência Social) da cidade de Várzea Grande e ao CRAS da
cidade de Livramento, nesses encontros os homens participam de
palestras, oficinas e fazem reflexões sobre o seu comportamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do estudo, percebe-se que é no âmbito das políticas


públicas e dos serviços sociais e jurídicos públicos que se concen-
tram as maiores forças positivas para ações eficientes à prevenção e
ao atendimento da violência de gênero e a violência de uma forma
geral, em especial a doméstica.
As instituições que participam da Rede de Enfrentamento
à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher perceberam as
seguintes dificuldades logo que ela foi formada: falta de denúncias
junto à Delegacia de Polícia em Livramento, tendo em vista que a
maior parte da população se concentra na área rural o que causa o
isolamento da vítima, favorecendo o agressor, contribuindo para a
desarticulação dos serviços de atendimento e baixa qualidade dos
mesmos nesta localidade.
Percebeu-se que devido à falta de dotação orçamentária para
a implementação de serviços como a instalação de um Instituto Mé-
dico Legal na cidade de Várzea Grande, local mais próximo de Li-
vramento, e a ausência de uma política integrada nas três esferas dos
Poderes para concretizar o que diz a Constituição Federal no que diz
respeito aos direitos humanos, a desarticulação entre os serviços já
instalados, a inexistência de um sistema de registro e a falta de elabo-
ração e monitoramento de um banco de dados estatísticos impossi-
bilitam que estas vítimas sejam de fato bem atendidas.
A prática recorrente das instâncias governamentais em não
priorizar os serviços públicos de cuidado e proteção às mulheres em
situação de violência e a tendência, muitas vezes, de querer transferi-
-los para Organizações da Sociedade Civil são fatores que fortalecem
a importância de tecer o trabalho em rede. Percebe-se que com a im-
plantação da Rede os servidores começaram a ter mais consciência
de que a responsabilidade pela prestação desses serviços é do Estado,

- 104 -
passando a se envolver com o aprimoramento dessas políticas pú-
blicas.
Nota-se que a violência de gênero tanto em Várzea Grande
como em Livramento tem sido ao longo dos tempos naturalizada,
sendo necessário que haja um processo educativo desde a infância,
a partir do âmbito escolar e dos demais meios de socialização, para
que relações de igualdade sejam construídas sem a imposição da for-
ça física, com a finalidade de subjugar um gênero ao outro. A crian-
ça, o/a adolescente e a mulher que estão em situação de vulnerabili-
dade precisam do apoio da família, de amigos, das igrejas, de todos
os organismos sociais e principalmente dos serviços públicos para
serem acolhidos por uma rede de proteção.
As desigualdades, em especial a de gênero, não podem ser
tratadas como um fenômeno natural, mas sim como um processo
histórico construído socialmente e em razão deste fato é passível de
mudança.
Portanto, a intervenção na realidade de Várzea Grande através
da formação de uma Rede de Enfrentamento à Violência Domés-
tica e Familiar tem colaborado com o rompimento da violência de
gênero e da cultura de violência patriarcal existente na localidade,
trazendo mudanças significativas na sociedade.

REFERÊNCIAS

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- 105 -
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crítica à concepção liberal de cidadania. p. 30. Instituto de Estudos
Avançados da Universidade de São Paulo, 2000.
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cidências possíveis. In: Vida em Rede: Conexões, relacionamentos e
caminhos para uma nova sociedade, 2011.

- 106 -
O USUÁRIO NA LEI DE DROGAS: UM DESAFIO
PARA O SISTEMA DE JUSTIÇA
Marcos Henrique Machado1
Liliane Capilé Charbel Novais2
Introdução
O uso de drogas ilícitas, pela ordem jurídica de cada país, consti-
tui um fenômeno histórico e multifatorial, acentuado na modernidade,
que envolve o poder político, o mercado, a saúde pública, a segurança
pública e os direitos sociais e humanos (ROSA, 2014). Neste artigo,
discorre-se sobre um dos maiores dilemas do Sistema de Justiça, a
aplicação da Lei de Drogas, no tocante à distinção entre traficantes e
usuários, causa de erros judiciários ao classificarem traficantes como
usuários e usuários como traficantes. Para esse enfoque, introduz-se
o tema “drogas ilícitas” no contexto mundial, com incursão sobre a
Política de Drogas Ilícitas no Brasil.
Pesquisadores têm desenvolvido pensamentos e firmado ex-
periências sobre o uso de drogas e seus efeitos, com fundamentos na
Antropologia, Medicina, Psicologia, Sociologia, Política Social, Eco-
nomia e Direito, especialmente nas perspectivas de saúde coletiva e
segurança pública (DEGASPERI, 2013; ZALUAR, 2007; MINAYO,
DESLANDES, 1998).
Nesse contexto, pode-se afirmar que, desde o início do século
XX, a temática “drogas ilícitas” passou a ser foco de discussões não
apenas de políticas de saúde, segurança pública e assistência social,
mas ampliou-se para o Sistema de Justiça em razão do elevado nú-
mero de ações penais por tráfico de drogas ilícitas em face de usuá-
rios de drogas, seja envolvidos em tráfico de pequenas porções ou
portando tais substâncias, geralmente para sustentar o próprio ví-
cio ou dependência e, também, em casos de violência doméstica ou
familiar derivados de atitudes e condutas decorrentes de alterações
comportamentais provocadas pelos efeitos químicos das drogas no
organismo humano, especialmente excitação, confusão mental, irri-
tabilidade, delírio e paranoia (DEMARTINI, 2015).
1 Desembargador do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, Doutorando DINTER Política
Social PPGPS-UnB/PPGPS-UFMT.
2 Professora Associada do Departamento de Serviço Social, PPGPS/ICHS/UFMT,
PGHIS/IGHD/UFMT.

- 107 -
No Brasil, a legislação define como drogas “as substâncias ou
produtos capazes de causar dependência”, assim especificadas no pa-
rágrafo único do art. 1º da Lei n.º 11.343/2006, que institui o Sistema
Nacional de Políticas Sobre Drogas – SISNAD. Segundo a Organiza-
ção Mundial de Saúde – OMS, “droga é toda a substância que intro-
duzida no organismo vivo modifica uma ou mais das suas funções”.
Engloba substâncias lícitas – bebidas alcoólicas, tabaco e certos me-
dicamentos – e as substâncias ilícitas como a cocaína, LSD, ecstasy,
entre outras. Capazes de provocar dependência são comercializadas
ilegalmente e estão associadas a algo ruim, perigoso, envolvendo
mitos e tabus. Podem ser classificadas segundo vários critérios: o
farmacológico, que trata da estrutura química das substâncias, seu
mecanismo de ação e principais características farmacológicas, po-
dendo subdividir-se em depressoras, estimuladoras e perturbadoras
(OMS, 1993).
O fundamento da política internacional sobre drogas ilícitas
foi fixado no proibicionismo, como destacam Rodrigues (2006),
Lima (2009) e Karam (2013), e ganhou densidade na Convenção In-
ternacional do Ópio, assinada em Haia em 23 de janeiro de 1912, du-
rante a Primeira Conferência Internacional do Ópio. Foi o primeiro
tratado internacional de controle de drogas, após o então presidente
dos EUA, Theodore Roosevelt, convocar uma conferência de 13 na-
ções, denominada de Conferência Internacional do Ópio, em 1909,
em Xangai, na China.
O conjunto de elementos humanos e sociais relacionados ao
uso recreativo ou abusivo envolvem: mortes prematuras por over-
dose, patologias causadas pela dependência química, notadamente
transtornos mentais (psiquiátricos e psicológicos), a transmissão
de doenças infectocontagiosas (HIV e Hepatite C) e comorbidades,
transformação funcional do Estado para atender dependentes quí-
micos por meio de programas de saúde (tratamento) e assistenciais
(reabilitação e reinserção social), como explica Braun (2007).
No mesmo contexto, estão alinhados: o recrutamento dos tra-
balhadores desempregados ou sem oportunidade de remuneração
por traficantes para transportarem, guardarem ou venderem drogas
ilícitas; a violência doméstica e familiar provocada pelas reações dos
usuários; a criminalidade difusa empregada (furtos, roubos, extor-
sões e latrocínios) para financiar o tráfico e proporcionar meios para

- 108 -
o consumo de criminosos, gerando mais violência pela disputa do
comércio ilícito.
Diante dessas variantes, impulsionadas e/ou derivadas do
mercado de drogas ilícitas, o consumo de drogas tornou-se pauta de
política social, desde as primeiras décadas do século XX.
No âmbito do Sistema Criminal de Justiça, há intensas discus-
sões visando atenuar as consequências jurídicas geradas pelo uso de
drogas, haja vista que o uso e abuso de drogas geram consequências
não apenas ao usuário (saúde, formação educacional, trabalho, rela-
ções civis, implicações legais) e à família (conflito relacional, aban-
dono moral e material, atos de violência), sobretudo quando aquele
passa a ser dependente de tratamento clínico ou incapaz de gerir a
própria vida, mas também à sociedade na qual o usuário convive e
compartilha seus atos.
Ocorre que inexiste uma distinção precisa entre o usuário e
o traficante. Este é o maior dilema do Sistema de Justiça, ou seja,
competente pela responsabilização penal dos indivíduos que estão
implicados em dispositivos da lei sobre drogas ilícitas no Brasil, vis-
to que o texto não estabelece taxativamente a quantidade de drogas
que identificaria objetivamente o consumidor e o comerciante, mas
tão somente descreve critérios interpretativos que podem levar à
conclusão das hipóteses de mercancia (importar, exportar, remeter,
preparar, produzir, fabricar, vender, expor à venda, oferecer, pres-
crever, ministrar, entregar ou fornecer para consumo), seja por cer-
tas condutas (adquirir, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer
consigo e guardar) e a quantidade for desproporcional à hipótese de
consumo individual.
Por outro lado, também se apresenta possível classificar o
usuário quando a quantidade é inexpressiva ou ínfima, em algumas
condutas (adquirir, ter em depósito, transportar, guardar e trazer
consigo), segundo premissas jurisprudenciais sobre a quantidade e a
natureza da droga, bem como mediante a persecução judicial sobre a
condição de usuário ou confirmação de dependência química.

A POLÍTICA DE DROGAS ILÍCITAS NO BRASIL


O Brasil adota o modelo de política proibicionista sobre dro-
gas ilícitas, amparada em Convenções da ONU3, e, assim, criminali-
3 As convenções aprovadas no âmbito da ONU têm dois focos principais:
as ações relativas à redução da demanda e tratamento de usuários, com

- 109 -
za a produção, o comércio e todas as formas que possam caracterizar
difusão e o consumo de substâncias rotuladas como impróprias à
saúde e/ou ao convívio social.
O paradigma proibicionista foi introduzido e consolidado na
legislação brasileira no decorrer do século XX, com a edição do De-
creto-Lei n.º 891/1938, versado em três vertentes (prevenção, trata-
mento e repressão), consolidado pelas Leis n.º 6.368/76, 10.409/02 e
11.343/06, então vigentes.
Segundo Fiore (2012), o modelo proibicionista se refere à prá-
tica de governamentalidade que os Estados signatários da Conven-
ção da ONU de 1961 devam adotar, cabendo aos governos signatá-
rios elaborar dispositivos congruentes aos preceitos internacionais,
entre os quais a efetiva punição aos produtores, vendedores e con-
sumidores das substâncias listadas como impróprias para consumo.
Rodrigues (2006) destaca que o proibicionismo das drogas ilí-
citas é ancorado em dois pilares fundamentais, um jurídico-moral e
outro sanitário-social. Tem como meta suprimir desde a produção
até o comércio das substâncias designadas como impróprias para
consumo, recomendando punições incisivas aos transgressores, per-
passando por penas que vão desde a prisão até o confisco de bens.
No cenário internacional do tráfico de drogas ilícitas, o Brasil
é considerado um país-chave para a difusão da cocaína produzida
no Peru, Bolívia e Colômbia por sua posição geográfica estratégica e
maior quantidade de consumidores de drogas. Esses fatores motiva-
ram a Convenção de Viena (1988) que implementou o marco legal
sobre drogas da ONU, prevendo a criação de órgãos responsáveis
pelo controle e repressão do narcotráfico, bem como a efetiva imple-
mentação de programas e políticas relativas à prevenção do consu-
mo de drogas e tratamento a usuários (BRASIL, 1991).
A institucionalização dos postulados da ONU levou o Brasil a
montar seu quadro de políticas antidrogas, a partir da aprovação da

matriz na saúde, e o combate e repressão às atividades do narcotráfico e


às organizações criminosas, fundadas na defesa nacional e na segurança
pública interna. O sistema internacional funciona por meio da cooperação
técnica jurídica, policial e do compartilhamento de informações. A aborda-
gem envolve o comércio e o consumo, considerado de grande relevância à
redução da demanda e os cuidados aos dependentes, o controle da lavagem
de dinheiro, a fiscalização de precursores químicos (Special Session of the
General Assembly Devoted to Countering the World Drug Problem Together,
1998, p. 3-4).

- 110 -
Estratégia Hemisférica Antidrogas (1996), que significou um novo
marco para a cooperação interamericana para garantir a realização
das recomendações previstas na estratégia. A Comissão Interame-
ricana para o Controle do Abuso de  Drogas – CICAD optou por
adotar um plano de ação que entrou em vigor em 1997. Este plano
indicava o consenso dos países latino-americanos de que o tema das
drogas devereia ser tratado de forma ampla, abordando de forma
equilibrada a questão relativa à redução da demanda e à redução da
oferta (SILVA, 2013).
Na sequência, foi criado o Sistema Nacional Antidrogas, em
1998, por meio do Decreto n.º 2.632, como resultado da participação
brasileira na XX Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações
Unidas sobre o problema global das drogas e da adesão do governo
brasileiro aos três documentos, fruto da Conferência. Por ocasião da
referida reunião, a ONU procurou realçar o compromisso dos países
signatários das três convenções de enfrentamento do problema das
drogas, por meio do estabelecimento institucional de políticas que
abordassem o tratamento da questão em todas suas esferas.
Com o principal objetivo de integração de propostas de pre-
venção e repressão às drogas ilícitas, obedecendo às diretrizes in-
ternacionais, criou-se uma secretaria específica para tratamento do
problema das drogas no Brasil, a Secretaria Nacional Antidrogas
(SENAD). A criação de uma secretaria específica sobre o tema das
drogas ilícitas reuniu, num orgão, a política e controle sobre as dro-
gas, formando um arcabouço composto: a) pela legislação nacional;
b) programas de combate, prevenção ao consumo e tratamento ao
usuário; c) estratégias de defesa do território nacional; d) participa-
ção internacional sobre tema (BRASIL, 1998).
A política sobre drogas ilícitas brasileira está fundada nos se-
guintes eixos e subeixos: I) redução da demanda: prevenção, promo-
ção à saúde, cuidado, tratamento, acolhimento, apoio, mútua ajuda
e reinserção social; II) gestão: incluídas as ações de estudo, pesquisa,
avaliação, formação e capacitação; gestão de ativos; III) redução da
oferta: incluídas as ações de segurança pública, defesa, inteligência,
regulação de substâncias precursoras, de substâncias controladas e
de drogas lícitas, repressão da produção não autorizada, de combate
ao tráfico de drogas, à lavagem de dinheiro e crimes conexos, in-
clusive por meio da recuperação de ativos que financiem ou sejam
resultados dessas atividades criminosas.

- 111 -
Oficialmente, a Política Nacional Antidrogas brasileira foi ins-
tituída pelo Decreto Presidencial nº 4.345, de 26 de agosto de 2002,
reunindo todas as diretrizes governamentais sobre a questão das
drogas ilícitas, até então esparsas em leis e atos normativos.
Pela Resolução n.º 03/GSIPR/CH/CONAD, de 27 de outu-
bro de 2005, o Governo Federal instituiu a segunda Política Nacio-
nal sobre Drogas – PNAD, excluindo o prefixo “anti” e inserindo a
preposição “sobre”, adotando como foco a cooperação mútua entre
os Estados, municípios e organizações não governamentais para, de
forma especial, reduzir a demanda e oferta de drogas, similar à pri-
meira PNAD, exceto pela sua ênfase na redução de danos. Como ela
foi aprovada como uma resolução do Conselho Nacional de Políticas
sobre Drogas– CONAD, e não por decreto, não houve uma revoga-
ção formal da primeira PNAD, e as duas coexistiram formalmente
até 2019. A segunda PNAD propôs diretrizes normativas e nortea-
doras para que seus pressupostos e objetivos fossem aplicados, esti-
mulando e garantindo ações compartilhadas para que a sociedade
possa se conscientizar dos prejuízos causados pelo uso indevido das
drogas.
A Resolução n.º 1, de 9 de março de 2018, do CONAD, im-
plicou mudança significativa na condução da política sobre drogas
do País, de uma abordagem diversificada de atenção psicossocial,
norteada pela estratégia de redução de danos, para a ênfase na abs-
tinência.

O USO DE DROGAS ILÍCITAS E O SISTEMA DE JUSTIÇA

O “uso de drogas ilícitas” no Brasil repercute diretamente so-


bre a atuação do Sistema de Justiça, responsável pela aplicação da lei
que criminaliza as condutas de adquirir, guardar, ter em depósito,
transportar ou trazer consigo para consumo pessoal.
Isso porque a aplicação da lei de drogas depende e envolve
substantivamente o Sistema de Justiça, mediante atuação de juízes e
tribunais, os quais devem obedecer a legislação penal (material e pro-
cessual), observados os princípios do devido processo legal (direito a
um procedimento regular, com prazos e atos previamente definidos),
que podem ser assim resumidos: ampla defesa por todos os meios de
provas admitidos em direito, exercida a qualquer tempo antes dos

- 112 -
julgamentos de primeiro e segundo graus de jurisdição; contraditó-
rio dos atos realizados pelo órgão de acusação; proibição de provas
ilícitas, entre as quais que envolvam sigilo e intimidade protegidos
por lei; motivação das decisões sob pena de nulidade; juiz imparcial
e competente conforme as normas de organização judiciária.
É comum, no Sistema de Justiça, a postulação de famílias de-
sesperadas, por não encontrarem solução junto ao setor de saúde
e sem recursos financeiros, buscarem a internação compulsória de
seus usuários e dependentes, numa verdadeira judicialização da saú-
de mental, e também a forma de assistência psicossocial (DENADAI,
2016).
Essa intervenção judicial tem ocorrido ora pautada por ór-
gãos do Ministério Público, que agem sob fundamento no direito
à saúde do próprio usuário (CF, art. 6º) ou de sua dignidade (CF,
art. 1º, III), legitimados na incapacidade relativa de todo e qualquer
dependente de drogas para gerir atos civis (CC, art. 4º, II e 1.767,
III), e no Decreto-Lei n.º 891/38 (arts. 27 a 29), que classificam a
toxicomania ou intoxicação habitual por substâncias entorpecentes
como doença de notificação compulsória passível de internação ju-
dicial (Lei n.º 10.216/01, art. 6º, III); ora por órgãos de Defensoria
Pública que atendem familiares de usuários, no exercício da assis-
tência jurídica aos necessitados (CF, art. 5º, XXXV e LXXI), que pos-
tulam internação involuntária (Lei n.º 10.216/01, art. 6º, III), para
desintoxicação e tratamento de dependência química, seja porque
não aceita se submeter aos protocolos e procedimentos do Centro
de Assistência Psicossocial do Sistema Único de Saúde – CAPS/SUS,
seja porque apresenta comportamento agressivo e aliena ou subtrai
objetos e bens móveis da família.
No campo propriamente penal, a Lei n.º 11.343/2006, ao
instituir o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas
(SISNAD), dispôs, além das medidas de prevenção do uso indevi-
do, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas,
normas repressivas à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de
drogas e define os crimes de tóxicos e disciplina o processo judicial.
Pela lei vigente:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou


trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou
em desacordo com determinação legal ou regulamentar, será sub-

- 113 -
metido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das dro-
gas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa
de comparecimento a programa ou curso educativo.

Às mesmas sanções submete-se aquele que, para seu consumo


pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de
pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar de-
pendência física ou psíquica. Objetivamente, adotou-se a política de
desencarceramento (§ 1º). O uso é crime e apenado, mas não mais à
pena privativa de liberdade. Para determinar se a droga se destinava
ao consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da
substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvol-
veu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta
e aos antecedentes do agente (§ 2º).
Nesse ponto reside a zona cinzenta da lei nacional sobre as
condutas de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer
consigo, para consumo pessoal, substância entorpecente. Um indi-
víduo que guarda ou traz consigo pequena quantidade de droga, em
qualquer quantidade, pode estar sujeito à prisão cautelar e até a con-
denação por pena privativa de liberdade. Em caso de reincidência,
as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo (art. 28)
serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses (§ 4º).
A prestação de serviços à comunidade será cumprida em pro-
gramas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hos-
pitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados, sem fins
lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do con-
sumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas (§ 5º).
Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que
se refere o art. 28, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente
se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a: I -
admoestação verbal; II - multa. (§ 6º). Nessa hipótese, “o juiz de-
terminará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator,
gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambu-
latorial, para tratamento especializado” (§ 7º). Cabe ao juiz criminal
assegurar tratamento de saúde para desintoxicação e abstinência às
drogas consideradas ilícitas.
Não obstante a intenção do legislador distinguir o traficante
do usuário, a interpretação da lei penal nem sempre contempla cer-
teza ou convicção sobre os atos que caracterizam tráfico de drogas

- 114 -
e as situações que configurariam porte para consumo próprio, seja
pela natureza subjetiva do raciocínio judicial para compreensão do
fato criminoso e suas circunstâncias, seja pela livre valoração da pro-
va conferida ao juiz (competente para a causa), seja pela moldura ou
até mesmo releitura do dispositivo legal empregado pela jurispru-
dência (entendimento consolidado pelos tribunais sobre determina-
das matérias julgadas).
As maiores repercussões da tênue linha jurídica entre o tra-
ficante e o usuário, embora haja a terceira figura, a do usuário-tra-
ficante (trafica para manter o uso, inclusive recebendo em drogas),
envolvem as escolhas dos institutos jurídicos previstos no ordena-
mento penal que devam ser aplicados em processos de tráfico de
drogas ilícitas, considerada a difusão e efeitos deletérios coletivos, o
juiz criminal tem poder e margem intelectiva para ser mais ou me-
nos rígido, relativizar a incidência de regras, excepcionalmente da
presunção de inocência ou sobrepor a ordem pública ao direito in-
dividual.
As situações mais sensíveis envolvem as condutas de adquirir,
ter em depósito, transportar, guardar e trazer consigo quando são
praticadas por usuário-traficante ou não comprovada a dependên-
cia química. Isso porque muitos traficantes-usuários recebem drogas
como pagamento para manterem o vício ou mesmo como moeda
(RIBAS, 2019).
Nessas ocorrências, o primeiro enquadramento legal é do po-
licial que faz a abordagem, após do promotor de Justiça e, ao final,
do juiz de Direito que julgará a acusação de tráfico. Para evitar a im-
precisão, juristas defendem a definição da quantidade como critério
objetivo para distinguir o usuário do traficante. Os críticos a essa
subjetividade da lei, ainda, atrelam a ausência de uma quantidade
determinada aos altos índices de encarceramento no Brasil.
Para evitar erro judicial no tratamento do usuário como tra-
ficante, mostra-se, também, necessário o juiz criminal se despir da
interpretação moral acerca do uso de drogas, impedir conclusões ju-
diciais movidas por padrões éticos ou crenças sociais de que apenas
medidas coercitivas são suficientes e satisfatórias quando, indubita-
velmente, o uso de drogas possui como matrizes o consumismo e as
desigualdades sociais identificadas pela falta de acesso ao trabalho e
às políticas sociais.

- 115 -
O Sistema de Justiça apresenta dificuldade em distinguir o tra-
ficante e o usuário além do limite legal, seja porque a função típica
de julgar está envolvida por extrema discricionariedade interpreta-
tiva, seja porque a jurisdição criminal é compelida pela mídia e pela
própria sociedade civil a agir como órgão de segurança pública, que
deve enfrentar a criminalidade com privação de liberdade e restrição
de direitos. São fartos os casos que a mesma quantidade de drogas
serviu para condenar por tráfico, mas também para desclassificar a
conduta para uso.
Afigura-se imperioso que o Sistema de Justiça tenha critérios
mais precisos, talvez adotando como parâmetros objetivo à determi-
nada quantidade mínima de droga para uso pessoal, ou um critério
uniforme sobre quantidade expressiva e inexpressiva de droga para
caracterizar ou descaracterizar o tráfico, respectivamente, de modo
a impedir juízos discricionários em elevado grau, ainda que condi-
cionados a um exame de dependência química ou que comprove a
condição de usuário.

CRITÉRIOS LEGAIS DE DISTINÇÃO ENTRE O TRAFI-


CANTE E O USUÁRIO
A história brasileira sobre as drogas ilícitas filiou o país nos
postulados de repressão ao comércio e uso de drogas, de modo a
cristalizar uma cultura proibicionista dentro do Sistema de Justiça,
não apenas em relação ao traficante, mas também ao usuário. Por
conseguinte, há uma tendência punitiva sobre todas as condutas re-
lacionadas às drogas ilícitas.
A Lei n.º 11.343/2006 traz possíveis soluções para identificar
os usuários e os traficantes de drogas, porém não traz a quantidade
de entorpecentes para a caracterização dos agentes como traficantes
ou usuários. Explicitando, a Lei de Drogas não possui fórmulas pre-
cisas para separação de situações de tráfico e porte ou posse para
consumo. E não é simples diferenciar, na prática, a posse de drogas
ilícitas para consumo pessoal do tráfico de drogas, visto que o tráfico
se caracteriza, em regra, quando a substância entorpecente é encon-
trada com alguém. Podem se destinar ao comércio ou fornecimento
gratuito, ou ainda ao consumo pessoal.
Por isso, a discricionariedade judicial é uma atividade crucial
na aplicação dessa lei, para não incorrer em erro ou injustiça no caso

- 116 -
concreto. Assim, cabe ao juiz reconhecer, com fundamentos nos cri-
térios legais objetivos, se a droga apreendida se destina ao consumo
pessoal ou ao tráfico de drogas.
A controvérsia inicia-se com a descrição dos tipos penais do
tráfico e da posse de drogas:

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, ad-


quirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar,
trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo
ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou
em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500
(quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:
I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe
à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo
ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desa-
cordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, in-
sumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;
II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desa-
cordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se
constituam em matéria-prima para a preparação de drogas;
III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a proprie-
dade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que
outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou
em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o trá-
fico ilícito de drogas.
IV - vende ou entrega drogas ou matéria-prima, insumo ou produto
químico destinado à preparação de drogas, sem autorização ou em
desacordo com a determinação legal ou regulamentar, a agente po-
licial disfarçado, quando presentes elementos probatórios razoáveis
de conduta criminal preexistente. (Incluído pela Lei n.º 13.964, de
2019)
§ 2º Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga:
(Vide ADI n.º 4.274)
Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa de 100 (cem) a
300 (trezentos) dias-multa.
§ 3º Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa
de seu relacionamento, para juntos a consumirem:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento de 700
(setecentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa, sem prejuízo das
penas previstas no art. 28.
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou
trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou
em desacordo com determinação legal ou regulamentar será sub-
metido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;

- 117 -
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso
educativo.
§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal,
semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena
quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência
física ou psíquica.

A lei brasileira não adota o critério da quantidade para classi-


ficar o porte ou posse para consumo próprio, embora possa a quantia
de droga servir para caracterização de tráfico, se considerada expres-
siva ou excessiva. Note-se que são várias (dezoito tipos) as condutas
penais consideradas tráfico, entre as quais a posse de drogas, notada-
mente, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar.
Neste limbo jurídico, o usuário pode comprar gramas de subs-
tância determinada para consumo; comprar uma quantidade maior
a fim de guardar para utilização futura; pode guardar pequena quan-
tidade com o intuito de comercializar; ter depósito de várias porções
de substâncias entorpecentes para consumo ou mesmo vendê-las na
forma de varejo.
O legislador brasileiro descreveu circunstâncias inerentes à
conduta para diferenciar o traficante do usuário, in verbis:

Art. 28, § 2º - Para determinar se a droga destinava-se a consumo


pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância
apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às
circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antece-
dentes do agente. (Lei n.º 11.343/06).

Com base na soma das circunstâncias: natureza, quantidade


apreendida, local, condições da ação criminosa, fatores sociais e ca-
racterísticas pessoais do indivíduo que portava a droga, sua conduta
em sociedade e seus antecedentes criminais classifica-se ou não o
tráfico de drogas. De toda sorte, a quantidade de droga apreendida
é um dos principais critérios para distinguir o tráfico do consumo.
Em sentido contrário, a pequena quantidade reforça a possibilidade
da destinação para uso.
Frise-se que conforme o STF, em julgamento do HC 144716/
SP, adotou o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de Por-
tugal, fundamentado em parâmetros estabelecidos pelas normas
portuguesas para definir qual seria a quantidade aceitável para o

- 118 -
consumo4. Se alguém for encontrado na posse de muitas substâncias
entorpecentes, em uma residência que é famosa por ser “boca de
fumo”, há mais certeza de que havia tráfico de drogas.
Com base em pesquisas e estudos científicos, tornou-se possível
confirmar que o “tráfico” está organizado e dividido em dois campos
de atuação: o atacado e o varejo. O atacado seria o espaço da produção,
da comercialização, de investimentos em grande escala e da lavagem de
dinheiro. Enquanto o varejo seria o espaço dos pequenos vendedores de
drogas: o “matuto”, o “dono da boca”, o “gerente”, o “vapor”, e o “avião”
(ZALUAR, 1994).
A variedade das drogas apreendidas também é critério igual-
mente apropriado para diferenciação, especialmente para identificar
o usuário de droga específica e o dependente. A balança de precisão
utilizada para pesar a droga, em porções, na quantidade exata para o
usuário, é um elemento probatório, tendo em vista que, teoricamen-
te, não teria qualquer sentido um usuário possuir uma balança de
precisão, embora, se a aprendida em residência (e não local de pre-
paração), ou não estava sendo utilizada, é necessário maior incursão
sobre os detalhes da apreensão.
A forma como a droga está embalada também tem relevância
probatória. Caso a droga esteja fracionada em pequenas quantida-
des, embaladas em plástico ou papel alumínio, apontam que a droga
foi preparada para comercialização, para que sejam vendidas peque-
nas frações para cada usuário. Situação similar ocorre quando são en-
contrados apetrechos para preparar a droga, tais como rolos de papel
filme ou sacolas plásticas.
A apreensão de dinheiro com droga, principalmente quando
fracionada em notas pequenas, induz traficância. A suspeita aumen-
ta quando o acusado não consegue comprovar qualquer ocupação
lícita que possa justificar a quantia. Em todos os casos, deve ser ava-
liada a situação concreta e uma explicação plausível. Armas ou si-
mulacros (armas de brinquedo) com drogas podem demonstrar que
o acusado utiliza esses instrumentos para viabilizar a traficância por
meio de ameaça e violência. A posse de vários celulares é outra situa-
ção de anormalidade.
4 Conforme a legislação portuguesa, a quantidade para consumo médio
diário equivale a 0,1 grama (heroína), 0,2 gramas (cocaína) e 2,5 gramas
(maconha). A quantidade deve ainda ser multiplicada por 10, para que a
quantidade seja correspondente a um período de 10 dias.

- 119 -
As conversas por via aplicativos de mensagens e redes sociais
também podem ser analisadas (com prévia autorização judicial) para
demonstrar atividades que caracterizam tráfico de drogas. Anotações
em agendas, cadernos ou livros, como de nomes de usuários de dro-
gas, números de telefone, endereços e valores recebidos ou a receber,
também são indicativos de traficância. As relações sociais, ocupação
ou profissão definida, ausência de trabalho lícito, condições finan-
ceiras e as atividades que envolvam a vida do indivíduo, podem es-
clarecer se há comercialização ou posse de drogas para consumo. O
passado (antecedentes) e o presente (conduta), isto é, se o indivíduo
nunca foi processado por crime ou contravenção penal, não possuir
inquéritos em andamento nem qualquer indicação de que seja tra-
ficante, possivelmente, será tido como um usuário de drogas se as
demais circunstâncias demonstrarem isso.
Ao excluir a possibilidade de que o acusado seja “usuário”, o
juiz tem o “indício” necessário para enquadrar o réu como “trafican-
te” e condená-lo pelo crime de tráfico, conforme adverte Campos
(2015, p. 192):

[...] sob o dispositivo médio criminal e sua linha médica de enun-


ciação e punição, a linha de verificação e objetivação do dispositivo
percorrerá a regularidade da negação do uso de drogas. É a nega-
ção da possibilidade do simples uso de drogas (a rejeição da parte
médica do dispositivo) que, afinal de contas, reativa a incriminação
por comércio de drogas (a parte criminal/prisional do dispositivo).

A Lei de Drogas conceitua o “pequeno traficante como sendo


o réu primário, de bons antecedentes, que não se dedique às ativi-
dades criminosas, sem vínculo com organizações criminosas (Art.
33, § 4º), assegurando um vetor de diminuição da pena, hipótese
que absorve o traficante-usuário, o qual se envolve no tráfico para
sustentar seu vício. Aliás, essa figura (traficante-usuário) desafia o
Sistema de Justiça na aplicação da Lei de Drogas, visto que aquele
que trafica para manter seu vício pode ser um dependente, sobretu-
do, se cotejado o alastramento e efeitos da cocaína e seus derivados,
a velocidade da desconstrução da personalidade desse tipo de adicto,
a rapidez com que ele se envolve em crimes contra o patrimônio,
notadamente furto (CP, art. 155) para obtenção da porção diária da
droga, a celeridade com que se instala a dependência e a assustadora
inevitabilidade da vida marginal.

- 120 -
Por essa razão, a primariedade, os bons antecedentes e a au-
sência de vínculo com organização criminosa são fatores imprescin-
díveis nesses casos para aplicação da pena alternativa, ao invés de
prisão, para separação precisa do traficante que faz do comércio sua
profissão daquele que trafica para conseguir manter seu vício. Nesse
contexto, é necessário não perder de vista a indispensável diferen-
ciação entre a pessoa do dependente e do “pequeno traficante” (GO-
MES; CINTI, 2012).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A política de drogas assentada no proibicionismo tem custos


e consequências para a sociedade e para as pessoas, entre os quais a
criminalidade, a violência e a estigmatização do usuário.
Quando possível, a legislação sobre drogas deve identificar a
mercancia e o uso de substâncias psicoativas, em lei, distinguindo,
com a máxima descrição normativa, com a maior precisão herme-
nêutica, as situações de fato que caracterizem o direito de escolha,
inerente à autonomia pessoal de cada indivíduo, de uso recreativo
ou mesmo terapêutico sem regulação do Sistema de Saúde, daque-
las que envolvem tráfico para ganho pecuniário ou manutenção da
dependência.
O controle sobre as drogas ilícitas deveria abordar, separada-
mente, o tráfico e o consumo de um grupo de substâncias entorpe-
centes, concentrando a aplicação do direito penal sobre a produção e
o comércio, sobretudo, quando identificada a presença de associação
e organização criminosa dedicada ao tráfico destas substâncias ile-
gais.
Em meio ao melhor modelo de política sobre drogas ilícitas, o
Sistema de Justiça, na condição de órgão estatal incumbido constitu-
cionalmente de aplicar a lei derivada e inspirada nessa política, no-
tadamente de coibir atos considerados ilícitos e impor cominações
legais, por meio de atos judiciais fundamentados em base probatória
idônea, deveria preservar direitos fundamentais previstos na Cons-
tituição Federal, evitando pré-conceitos e preconcepções subjetivas,
fundadas nos jargões da livre consciência ou do livre convencimento
sem qualquer cotejo analítico e base empírica justificada.
Mostra-se, também, necessário que o Sistema de Justiça pos-
sa se despir da interpretação moral acerca do uso de drogas, a fim

- 121 -
de evitar conclusões judiciais movidas por padrões éticos ou cren-
ças sociais de que apenas medidas coercitivas são suficientes e sa-
tisfatórias quando, indubitavelmente, o uso de drogas possui como
matrizes o consumismo e as desigualdades sociais identificadas pela
falta de acesso ao trabalho e às políticas sociais. Amparado por um
sentimento de defesa social, o juiz criminal traz ínsito, na sua atua-
ção penal, o combate à criminalidade e não consegue distinguir o
traficante e o usuário além do limite legal, seja porque a função típica
de julgar está envolvida por extrema discricionariedade interpreta-
tiva, seja porque a jurisdição criminal é compelida pela mídia e pela
própria sociedade civil a agir como órgão de segurança pública, que
deve enfrentar a criminalidade com privação de liberdade e restrição
de direitos.
Sendo assim, afigura-se imperioso adotar critérios mais pre-
cisos, talvez adotando como parâmetros a determinada quantidade
mínima de droga para uso pessoal ou um critério uniforme sobre
quantidade expressiva e inexpressiva de droga para caracterizar ou
descaracterizar o tráfico, respectivamente, de modo a impedir juízos
discricionários em elevado grau, ainda que condicionados a um exa-
me de dependência química ou que comprove a condição de usuário.

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- 124 -
RELAÇÕES SOCIAIS, PODER E ABUSO SEXUAL
INFANTIL: ruptura ou continuidade pós-31 anos
do Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil?
Leila Chaban1
Maria Lúcia Pinto Leal2

INTRODUÇÃO

Este estudo3 aborda a concepção de infância e sua trajetória


histórica no contexto das relações sociais, da situação irregular da
criança e do adolescente como objeto (1927-1979) à concepção de
sujeito de direito no princípio da proteção integral na sociedade
contemporânea (1990). Traça uma breve contextualização colonial
rumo à trajetória de direitos conquistados na sociedade contempo-
rânea, determinada por normativas legais que responsabilizam au-
tores da violência sexual, porém não impedem sua interrupção — o
que evidencia os resquícios da colonialidade4 na interrupção da vio-
lência sexual, isto é, um sistema patriarcal estrutural estabelecido e
perpetuado nas relações sociais e na desigualdade de gênero, tanto
no âmbito intrafamiliar quanto institucional.

1 Professora do Curso de Serviço Social do Centro Universitário de Várzea Grande-


-MT (UNIVAG). Mestra em Política Social pela Universidade Federal de Mato Grosso
(UFMT). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universida-
de de Brasília (UnB/SER/PPGPS) e Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) no
desenvolvimento do DINTER.
2 Professora Emérita da Universidade de Brasília (UnB/SER/PPGPS). Pós-Doutorado
pelo Programa Pós-Colonialismos e Cidadania Global do Centro de Estudos Sociais da
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra/Portugal.
3 Este trabalho resulta do processo de conhecimento científico adquirido no âmbito do
Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade de Brasília, cujos estu-
dos e pesquisas permitem analisar e compreender a área da infância e o fenômeno da
violência sexual ao longo da transformação das sociedades.
4 O termo colonialidade refere-se à rearticulação da manutenção do poderna perspectiva
latino-americana. A colonialidade do poder é uma terminologia discutida na obra do
sociólogo peruano Aníbal Quijano, “o colonialismo foi eliminado, a relação colonial de
dominação entre raças não só se extinguiu como em muitos casos se tornou muito mais
ativa e decisiva na configuração do poder, passando de uma institucionalidade (colo-
nialismo) para outra (países independentes e/ou estados-nação) e, consequentemente,
rearticulando em escala global. É esse o conceito de colonialidade do poder”. (QUIJANO,
2006, p. 82).

- 125 -
Direciona-se este trabalho para a centralidade do abuso se-
xual infantil e as estratégias de enfrentamento por meio do Estado e
forças sociais, com destaque para a conquista da proteção integral da
infância no Brasil com a consolidação do Estatuto da Criança e do
Adolescente - ECA (1990), que dispõe sobre o Sistema de Garantia
de Direitos (SGD). Desenvolve-se a partir da contextualização histó-
rica da infância, do patriarcado e das relações sociais estabelecidas
nos espaços de poder e dominação dos corpos, sobretudo do gênero
feminino. Utilizou-se da pesquisa bibliográfica e pesquisa documen-
tal através de plataformas de dados, como o Disque Direitos Huma-
nos e o Ministério da Saúde, acerca dos registros e das notificações
de abuso sexual no Brasil. Esses dados apontam a fragilidade da
Rede de Proteção Social e a insuficiência do Estado e da sociedade
no enfrentamento do abuso sexual infantil. Algumas notas conclusi-
vas impõem desafios ao tempo presente, em especial refletir sobre os
direitos conquistados há trinta e um anos, visto que esta sociedade
não rompeu com a barbárie que viola os direitos humanos e sexuais
da criança, roubando a sua infância e o seu desenvolvimento sau-
dável. Nesta direção, há que se considerar a criança como sujeito de
direitos e não mais como objeto, como também materializar o SGD
para além de seus setores isolados.
O fenômeno da violência sexual ocorre em todo o mundo, e
isso explica a imprescindibilidade em efetivar normativas interna-
cionais e nacionais voltadas à proteção integral de crianças e ado-
lescentes. No Brasil, por exemplo, é preciso fortalecer o Sistema de
Garantia de Direitos (SGD), considerando o caminho percorrido até
o momento para a conquista da proteção social integral de crianças
e adolescentes.
O contexto histórico de conquista dos direitos no campo da
proteção integral que assegura, à criança e ao adolescente, prioridade
absoluta no Brasil nos leva à Constituição Federal de 1988 e ao Esta-
tuto da Criança e do Adolescente — ECA (1990). Contudo, é neces-
sário discutir de que direitos estamos falando, após 31 anos do ECA,
ao estabelecer estratégias do Sistema de Garantia de Direitos, pois
não houve a interrupção da violação de direitos da infância. Estas
questões são pertinentes à identidade social de um país, que tem, em
seu processo histórico, um contexto de mobilização social na luta pe-
los direitos conquistados pela sociedade civil, junto a forças sociais,

- 126 -
pesquisadores(as) e instituições que, a partir do processo democráti-
co e participativo, delinearam estratégias, normativas e mecanismos
de enfrentamento da violência sexual5 infanto-juvenil.
Assim, este trabalho se estrutura da seguinte forma: a pri-
meira parte trata da contextualização histórica da infância, do pa-
triarcado e das relações sociais estabelecidas nos espaços de poder
e dominação dos corpos, sobretudo do gênero feminino. A segunda
parte trata da linha do tempo ao abordar a infância no contexto da
proteção integral no Brasil. Por fim, são delineadas as considerações
que apontam os avanços e desafios, a partir das reflexões críticas so-
bre a construção social da infância atrelada ao contexto das relações
sociais patriarcais hierarquizantes e desiguais. Pois, mesmo após a
conquista de direitos no Brasil, o fenômeno da violência sexual in-
fantil evidencia uma violência estrutural que atravessa a transforma-
ção das sociedades, a qual deve ser enfrentada.

1. CONTEXTUALIZAÇÃO DA INFÂNCIA: PATRIARCA-


DO, RELAÇÕES SOCIAIS E ESPAÇOS DE PODER

Crianças e adolescentes sempre fizeram parte das sociedades


no Brasil e no mundo, e o que as difere são as classificações determi-
nadas por razões históricas, culturais, políticas e sociais (STEARNS,
2006). A infância é uma construção social, a qual sofreu variações de
acordo com os contextos históricos. Atualmente, considera-se infân-
cia um período de desenvolvimento que vai do nascimento, ou seja,
do zero aos doze anos de idade incompletos6. É a fase da vivência e
percepção do mundo a partir do olhar, tocar, saborear, sentir e agir
— tudo isso faz parte do universo infantil.
O historiador francês Philipe Ariès (1978), em seus estudos,
aponta que, por volta do século XII, as mulheres e as crianças eram
consideradas seres inferiores, sem necessidade de uma atenção di-
ferenciada. Essa visão orientou práticas e costumes que fizeram da
5 A Lei n.º 12.015/2009, sobre Crimes contra a Dignidade Sexual, considera como crime
de estupro de vulnerável, independentemente do sexo da vítima, qualquer tipo de rela-
cionamento sexual (conjunção carnal ou outro ato libidinoso) com crianças e adolescen-
tes com idade inferior a 14 anos. Considerado crime a prática de atos diante de menores
de 14 anos de idade ou a indução a presenciá-los (BRASIL, 2009).
6 Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
Art. 2º - Considera-se criança, para os efeitos desta lei, a pessoa até doze anos de idade
incompletos, e adolescentes aquela entre doze e dezoito anos de idade.

- 127 -
infância uma fase abreviada, sendo a criança objeto de controle dos
adultos; tão logo apresentasse independência física, era inserida no
ambiente adultocêntrico.
Sobre a infância:

Na Idade Média, no inicio dos tempos modernos e por muito tem-


po ainda nas classes populares, as crianças misturavam-se com os
adultos assim que eram capazes de dispensar a ajuda das mães ou
das amas poucos anos – depois de um desmame tardio – ou seja,
aproximadamente aos 7 anos de idade. A partir desse momento,
ingressavam imediatamente na grande comunidade dos homens,
participando com seus amigos jovens ou velhos dos trabalhos e dos
jogos de todos os dias. O movimento da vida coletiva arrastava em
uma mesma torrente as idades e as condições sociais, sem deixar a
ninguém o tempo da solidão e da intimidade (ARIÈS, 1978, p. 50).

Desse modo, percebe-se que não havia distinção entre o mun-


do adulto e o infantil. As crianças falavam e se vestiam como os adul-
tos; além disso, não havia restrição ao diálogo próximo das crianças,
que inclusive participavam de jogos sexuais: “[...] as pessoas se diver-
tiam com a criança pequena como um animalzinho. Se ela morresse,
como muitas vezes acontecia, alguns podiam ficar isolados, mas a
regra geral era não fazer muito caso, pois outra criança logo a substi-
tuiria” (ARIÈS, 1978, p. 26). As crianças eram preparadas e transfor-
madas em adultos sem passar pelas etapas da juventude.
Na construção dos significados, cabe destacar que a palavra
“infância” vem do latim, infantia; para Frota (2007), o termo se atri-
bui à pessoa que não é capaz de falar, ou seja, uma incapacidade da
primeira infância até os sete anos de idade, que representaria a idade
da razão. Para além da idade cronológica, ao observar o contexto so-
cial, a “infância tem um significado genérico e, como qualquer outra
fase da vida, esse significado é função das transformações sociais:
toda sociedade tem seus sistemas de classes de idade e a cada uma
delas é associado um sistema de status e de papel” (KUHLMANN
Jr., 1998, p. 16).
No que se refere à condição da infância, é necessário conside-
rar inicialmente o período de descoberta em 1500 e o povoamento
do Brasil em 1530, com a chegada de embarcações portuguesas do
século XVI trazendo maior número de homens, poucas mulheres e
crianças (DEL PRIORE, 2010). Desse modo, relata Del Priore (2010)

- 128 -
que as crianças subiam a bordo na condição de pajens e, além da via-
gem insalubre, eram vítimas de violência sexual, sendo violadas por
homens, mesmo em companhia de seus pais. Elas eram postas para
limpar excrementos e quando as embarcações eram atacadas por pi-
ratas serviam de escudos. As crianças que se salvavam dos naufrá-
gios eram entregues à própria sorte.
Fica claro que as crianças, nesse período, devido à sua fragi-
lidade, eram as primeiras vítimas, atingidas pelo abandono, maus
tratos em várias formas de violência. Esse processo histórico é pouco
narrado, sendo necessário provocar uma reflexão e permitir a com-
preensão deste processo na luta pelos direitos humanos das crianças
e adolescentes.
No período colonial, a escolarização chegou com atraso, con-
forme aponta Del Priore (2010, p. 7):

Desde o início da colonização, as escolas jesuítas eram poucas e,


sobretudo, para poucos. O ensino público só foi instalado, e mesmo
assim de forma precária, durante o governo do marquês de Pombal,
na segunda metade do século XVIII. No século XIX, a alternativa
para os filhos dos pobres não seria a educação, mas a sua trans-
formação em cidadãos úteis e produtivos na lavoura, enquanto os
filhos de uma pequena elite eram ensinados por professores parti-
culares. No final do século XIX, o trabalho infantil continua sendo
visto pelas camadas subalternas como “a melhor escola”.

Considerado o trabalho “uma distração para a criança” (DEL


PRIORE, 2010, p. 7), para que não houvesse tempo de “fazer o que
não presta”, a criança começava a trabalhar muito cedo. Ressalta-se,
nesta conjuntura, que o “sistema colonial implantou estruturas e
ideologias hegemônicas de dominação, exploração e abusos aos seres
humanos, [que] tiveram cristalizados em seus corpos a história da
violência e da expropriação do sujeito”, como explica Leal (2014, p.
83). Assim, “mulheres e crianças tornaram-se objetos não só do tra-
balho doméstico, mas também da lavoura, e objetos de prazer sexual.
[...] os abusos e a violência sexual são descritos por historiadores”,
(LEAL, 2014, p. 83) dando legitimidade às circunstâncias sociais e
históricas.
Nesse sentido, a exploração física ou sexual infantil, em suas
diversas formas,

- 129 -
[...] compromete a infância, circunstanciando constrangimentos
múltiplos, gerando alienações múltiplas, e desencadeando, dessa
maneira, o dilema e o impasse de ser amplamente alienado, ou seja,
ser criança e ser adulto ao mesmo tempo; ser criança empobrecida e
trabalhar precocemente; ser criança, com responsabilidade adulta e
dessa forma não dispor de tempo para o lúdico; ser criança adultiza-
da; implicará em consequências para todo desenvolvimento digno
dessa criança. Além disso, ao mesmo tempo, acumular responsabi-
lidades e pressões que, sem dúvida, deixarão marcas indeléveis na
memória, afetando assim o processo de construção da identidade.
(CUSTÓDIO, 2006, p. 121).

Os reflexos da desigualdade estrutural, datada no Brasil des-


de a sua colonização, estão presentes na sociedade contemporânea,
principalmente no contexto da pobreza, ou melhor, da infância po-
bre à mercê da servidão. Na trajetória de transformação das socieda-
des, a situação persiste, visto que, no processo histórico,

[as] relações sociais com a família, com a Igreja, com o Estado e


com outros estamentos da sociedade perpetuaram valores morais,
religiosos e culturais, reproduzindo dominadores e subjugados em
seus papéis. (RIZZINI; PILOTTI, 2009, p. 15).

A questão central é a condição estrutural da criança, um ser


indefeso e em desenvolvimento, submetido a condições degradantes
no processo evolutivo da sociedade. É preciso relacionar este fato
com relações e posições desiguais na complexa “inserção econômica,
social e cultural” (FALEIROS, 2001, p 15), ao se referir à cultura do
autoritarismo e impunidade historicamente construídos.
Ao contextualizar a questão da violência nas relações de po-
der, Faleiros (2001, p. 15) considera que o poder se estrutura “[...]
historicamente pela dominação do adulto, do macho, predominan-
temente da raça branca, que tornou dominador no processo de ins-
titucionalização do poder e em sua socialização”. Tal constatação diz
respeito às práticas de abuso sexual cometidas nos ambientes intra-
familiar, extrafamiliar e institucional.
Nesse sentido, entende-se que relação de poder é

[...] uma relação social onde se exercita a força, legitimada ou não,


para se manter ou também resistir à dominação em suas diferentes
formas. Esse exercício depende tanto do lugar onde é exercido como
dos movimentos das forças em presença, que reforçam ou desgas-
tam as relações estruturadas/estruturantes. A estrutura, assim, deve

- 130 -
ser vista não como um arcabouço estático, mas como um conjunto
de relações complexas e em movimento, de acordo com as forças em
presença. (FALEIROS, 2001, p. 16).

Desse modo, as relações de poder são formas cruéis de de-


sigualdade, como assinala Saffioti (1987, p. 6), que caracterizam o
entendimento de categorias fundamentais para a compreensão da
relação entre o sistema patriarcal e “fenômenos cruéis”. Em sua aná-
lise, Saffioti (1987, p. 60) afirma que o patriarcado é “o mais antigo
sistema de dominação-exploração”, tendo “o homem estabelecido
seu domínio sobre a mulher há cerca de seis milênios”. Entendido
como o sistema de relações sociais que garante a subordinação do
gênero feminino ao masculino, não se constituiria, entretanto, no
único princípio estruturador da sociedade brasileira.
Desse modo, nesta relação de poder, são estabelecidos papéis
sociais; para Davis (2016, p. 45), “o lugar da mulher sempre tinha
sido em casa, mas durante a era pré-industrial a própria economia
centrava-se na casa e nas terras cultiváveis ao seu redor”. Na divisão
de tarefas, os homens lidavam com o solo (com a ajuda constante da
esposa); às mulheres eram atribuídas as tarefas domésticas, “fazendo
tecidos, roupas, velas, sabão”, isto é, atendendo às necessidades de
uso da família. Existia, ainda, a tarefa de procriar e servir ao marido;
e na atribuição de mães, “eram definidas como instrumentos passi-
vos para a reposição da vida humana”.
Importante destacar que o poder engloba também o contexto
familiar, marcado pelo uso e o abuso sexual. Nas análises de Faleiros
(2001, p. 66), a questão principal, para se compreender a relação de
poder na família, é a “relação de gênero, pela imposição ou reconhe-
cimento do lugar do homem, do provedor, do macho, do forte em re-
lação ao papel social atribuído à mulher de cuidadora, de nutriz, de
responsável por afazeres domésticos”. E, portanto, “o poder de ‘chefe’
se exerce no domínio do outro, na submissão e no uso (abuso) do
outro como servo, como objeto de prazer, como mandado, em rela-
ções que são consideradas ‘naturais’ ou eternas” (FALEIROS, 2001,
p. 66).
Os reflexos que geram questionamentos são vistos pelo che-
fe como desobediência e desordem, resultando, então, em ameaça,
castigo e, principalmente, culpabilização e punição. Assim, o poder,
“em geral, é centrado no chefe adulto e masculino. É tradição, em

- 131 -
muitas culturas, que o poder dominante na família seja o do homem,
o do provedor e também senhor e objeto de reverência” (FALEIROS,
2001, p. 67).
Ainda, neste sistema complexo, no contexto das relações de
poder patriarcal, para Cisne e Santos (2018, p. 43), o “patriarcado é
literalmente a autoridade do pai”, logo o que se vincula a este “mode-
lo patriarcal do homem, é o da força, virilidade, poder e dominação”.
As relações sociais de poder estabelecidas pelo sistema patriarcal, a
que se dá a centralidade aqui discutida, são transpassadas pelo abuso
sexual, seja no ambiente familiar ou fora dele, sempre estabelecido
por relações de poder.
Para Faleiros (2001, p. 68):
Existem vários tipos de violência intrafamiliar, desde a eliminação
das pessoas até maus-tratos, ameaças, violência psicológica, vio-
lência sexual, chantagens, negligência, humilhações, designações
de pessoas como doentes e incapazes. Nosso enfoque é violência
sexual, do abuso sexual, do incesto. O incesto, na perspectiva de
análise aqui adotada, está articulado à violência física, à transgres-
são social do tabu do incesto, à dominação do mais forte sobre o
mais fragilizado.

A respeito das formas de violência que se estabelecem nas re-


lações sociais de poder, Leal (2014, p. 77) afirma que “a violência no
contexto intrafamiliar (abuso sexual) não é uma questão nova, ela
atravessa os tempos e se constitui em uma relação historicamente
construída a partir das relações de força e poder (gênero, etnia e de
classes sociais)”.
Do mesmo modo, Saffioti (2011, p. 18-19) destaca que o abuso
sexual, “sobretudo incestuoso, deixa feridas na alma, que sangram,
no início sem cessar e, posteriormente, sempre que uma situação ou
um fato lembre o abuso sofrido. A magnitude do trauma não guar-
da proporcionalidade com relação ao abuso sofrido”. Tal violência
atinge um número muito maior de meninas, cerca de 90%, e de me-
ninos 10%, conforme pesquisa realizada entre as décadas de 1988
a 1992 por Saffioti (1992), constatando-se que “pais vitimizam não
apenas suas próprias filhas, como também seus filhos. Num país tão
machista quanto o Brasil, este é um segredo muito bem guardado”
(SAFFIOTI, 2011, p. 19).
Quanto à violência no núcleo familiar, conforme Faleiros
(2001, p. 71), “o autoritarismo e o machismo são os fundamentos

- 132 -
dessa violência, mas há uma relação de cumplicidade e silêncio entre
a mãe, o pai/padrasto, os irmãos e enteados e os vitimizados [...]”, que
expressam dois eixos fundamentais desta relação, o segredo familiar
e o poder. Há uma “cultura do silêncio” (LEAL, 2014, p. 78), que, na
verdade, é “uma estratégia utilizada para manter o clima de violência
intra e extrafamiliar, a qual é fortalecida pelas práticas coercitivas,
por pressões psicológicas, físicas, morais e religiosas”. Nesse senti-
do, é importante destacar que o ambiente familiar sempre foi um
ambiente privado, não havendo lugar para a cidadania, “da ausência
do público, da presença do poder privado, do chefe. A cidadania se
exercia fora do recinto doméstico, do domínio familiar”, ou seja, no
ambiente público (FALEIROS, 2001, p. 68).
A violência sexual, então, ocorre numa relação de poder, ul-
trapassando os limites dos direitos humanos, legais, de poder e de
regras sociais e familiares, e a criança e o adolescente passam por
um processo de desumanização — a criança torna-se um objeto para
satisfazer o desejo do outro. Este é um problema de saúde pública,
que ocasiona sérios prejuízos às vitimas, envolvendo aspectos psico-
lógicos e sociais. O problema é agravado pelo medo e pela vergonha
das vitimas, que, indefesas, sofrem abusos e violências por um longo
tempo e, quando finalmente criam coragem de denunciar o abusa-
dor, padecem diante da pressão da família e de pessoas próximas
que, muitas vezes, desacreditam em suas versões.
Para se ter uma noção da realidade recente do Brasil, o Siste-
ma Único de Saúde (SUS), em prol da prevenção, do enfrentamento
e da atenção integral às pessoas que vivenciam situação de violência,
lançou, em 2010, o Programa de Cuidado para a Atenção Integral
à Saúde de Crianças, Adolescentes e suas Famílias em Situação de
Violência, em atenção às crianças e adolescentes e suas famílias em
situação de violência, orientando sobre suas dimensões: acolhimen-
to, atendimento, notificação e seguimento na Rede de Cuidado e de
Proteção Social (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2018).
Conforme dados obtidos da Secretaria de Vigilância em Saú-
de, no Boletim Epidemiológico7 (2018) realizado de 2011 a 2017,
foi notificado o total de 58.037 (31,5%) registros de violência contra
crianças. Grande parte dessas notificações refere-se ao sexo femini-
no, o que representa 43.034 (74,2%), sendo 51,9% na faixa etária en-
7 Disponível em: <http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2018/junho /25/2018-
024.pdf>. Acesso em: 14 jul. 2021.

- 133 -
tre 1 a 5 anos de idade e 42,9% entre 6 e 9 anos de idade. Em relação
à raça/cor, 46% são pretas. O local da ocorrência do fato foi à resi-
dência (71,2%) e a escola (3,7%). Referente à natureza da ocorrência:
61% foram notificados como estupro e em 75,6% das notificações, a
violência sexual foi praticada por um autor.
Em se tratando das notificações referentes a crianças do sexo
masculino, foram registrados 14.996 (25,8%). Mostraram que os
locais das ocorrências dos fatos foram: residência (63,4%) e escola
(7,1%). Em relação à natureza da ocorrência, 64,6% foram notifi-
cados como estupro, e dos 72,2% dos casos notificados, a violência
sexual foi praticada por um autor. No que se refere ao autor da vio-
lência, 83,7% do sexo masculino e 35,4% com vínculo de amizade/
conhecimento com a vítima. Ainda, 39,8% possuem vínculo familiar
com a vítima.
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos8
(MMFDH, 2019) apresentou dados referentes a 2018 através do Dis-
que 100 (Disque Direitos Humanos): nas denúncias de violência se-
xual contra crianças e adolescentes, 73,44% eram vítimas do sexo
feminino e 18,60%, vítimas do sexo masculino.
Os dados de ambas as fontes remetem à compreensão de Cis-
ne e Santos (2018, p. 45) quanto às “relações patriarcais, que dizem
respeito às relações hierarquizantes de opressão e exploração entre
os sexos, as quais estão ainda fortemente presentes na sociedade, dai
a importância de considerarmos o patriarcado quando refletimos
criticamente sobre as relações de gênero”.
As questões que implicam a construção social da infância não
se vinculam apenas à garantia de direitos na proteção integral, mas
precisam considerar e tratar a criança como sujeito social em desen-
volvimento. Ao associar o abuso sexual ao sistema patriarcal, de do-
minação e poder do gênero masculino, é importante pontuar, con-
forme Saffioti (2004, p. 119), que o patriarcado, apesar de sua longa
existência, com aproximadamente 5.203 anos, em algum momento
poderá se extinguir.

8 Disponível em: <https://www.mdh.gov.br/todas-as-noticias/2019/maio/criancas-e-


-adolescentes-sao-vitimas-em-mais-de-76-mil-denuncias-recebidas-pelo-disque-100>.

- 134 -
2. A INFÂNCIA NO CONTEXTO DE SUJEITO DE DIREI-
TO À PROTEÇÃO INTEGRAL NO BRASIL

No cenário atual, a criança é um ser dotado de particularida-


des e cuidados especiais, e, principalmente, um sujeito de direitos
historicamente adquiridos. Crianças e adolescentes tornaram-se vi-
síveis, e, de acordo com o ECA (1990), não mais se admite que sejam
vítimas de violência, negligência e opressão.
Historicamente, em 1959 ocorreu um dos momentos mais
simbólicos para o avanço das conquistas da infância. As Nações Uni-
das aprovaram e publicaram a Declaração Universal dos Direitos da
Criança, documento de relevante impacto nas ações de cada nação
acerca da infância. Assim, a ONU (1959) reafirmava “a importância
de se garantir a universalidade, objetividade e igualdade na conside-
ração de questões relativas aos direitos da criança”:

A criança passa a ser considerada, pela primeira vez na história,


prioridade absoluta e sujeito de Direito, o que por si só é uma pro-
funda revolução. A Declaração enfatiza a importância de se inten-
sificar esforços nacionais para a promoção do respeito dos direitos
da criança à sobrevivência, proteção, desenvolvimento e participa-
ção. A exploração e o abuso de crianças deveriam ser ativamente
combatidos, atacando-se suas causas. Fundada nos princípios da
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e neste instru-
mento dos Direitos da Criança (1959) a Conferência Mundial sobre
os Direitos Humanos promoveu em 1989 a Convenção das Nações
Unidas sobre os Direitos da Criança (UNICEF-ONU, 1959).

Dessa forma, os direitos pressupõem o reconhecimento re-


cíproco de prerrogativas e deveres dos indivíduos como membros
livres e iguais em certa comunidade. É importante ressaltar que o
Estado assume como tarefa proteger a criança até mesmo contra seus
familiares e outros agentes, públicos ou privados.
Assim, todos os sujeitos atores, incluindo o próprio Estado,
tomam posição, decidem abster-se de ações que possam violar o di-
reito das crianças — sujeitos de direito integrais perante a lei — de
viverem e se desenvolverem livres da violência sexual. Nesse sentido,
Leal (2014, p. 70) se refere à relevância de posicionamento coletivo
no tocante ao poder, enquanto “capacidade coletiva para tomar de-
cisões concernentes à existência pública de uma coletividade, de tal
maneira que seja expressão de justiça, espaço de criação de direitos e

- 135 -
garantia do justo pelas leis, sem coação”.
Para a defesa dos direitos da criança e adolescente, houve um
desenvolvimento simultâneo de atores, como descreve Nogueira
Neto (2011, p. 2), para

[...] um efetivo processo de mobilização social e de incidência políti-


ca, contra-hegemônico. Foi comprovadamente um frutífero proces-
so de mobilização social e de incidência política, desenvolvido pela
sociedade civil organizada.

Este processo resultou no ECA (1990), pressupondo a necessi-


dade de um conjunto articulado, sob a forma de um SGD, integrado
por Conselhos de Direitos, Conselhos Tutelares, Poder Judiciário,
Políticas de Segurança, Políticas Públicas, Organizações da Socieda-
de Civil, entre outros, e institui o Conselho Tutelar, conforme o art.
131: “órgão que tem a função precípua de zelar para que a criança e
adolescente não tenham seus direitos violados”, e, caso isso ocorra,
que haja mecanismos ágeis para os encaminhamentos das situações
em que ocorreu a violação.
Nas análises de Nogueira Neto (2011, p. 12), conforme ins-
titui o ECA (Lei Federal n.º 8.069, de 13 de julho de 1990), são
estabelecidas “normas gerais para a ‘proteção integral à criança e ao
adolescente’; repetindo o reconhecimento deles como “sujeitos de
direitos” e simultaneamente como ‘pessoas em condição peculiar de
desenvolvimento’. São direitos constituídos, em favor da infância e
da adolescência, direitos fundamentais.
E, nesta perspectiva, o ECA (1990) fundamenta
[...] um sistema de promoção e proteção (ou defesa) desses direi-
tos fundamentais, através de medidas administrativas e judiciais.
Norteando a implementação desse sistema garantidor de direitos,
o Estatuto (artigo 88) institucionaliza-o, em obediência aos seguin-
tes princípios: (a) prioridade absoluta para o atendimento direto
de crianças e adolescentes; (b) prevalência do melhor interesse da
infância e da adolescência, (c) descentralização política e adminis-
trativa do atendimento, (d) participação popular paritária na gestão
pública, [...] (g) mobilização social [...] formalizando um sistema
de garantia de direitos, através da criação de instâncias públicas e
de mecanismos político-institucionais que devem dar conta da pro-
moção desses direitos (políticas públicas, da defesa desses direitos
(especialmente pelo acesso à Justiça) e do controle interno e externo
dessas ações públicas de promoção e defesa de direitos. (NOGUEI-
RA NETO, 2011, p. 12).

- 136 -
Dessa forma, é essencial compreender que o SGD surgiu, em
2006, para assegurar a implementação do ECA (1990), marco legal
dos direitos fundamentais da criança e adolescente. Para garantir a
sua consolidação, o SGD se instituiu por meio da Resolução 113 do
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CO-
NANDA).
A partir do reconhecimento do SGD no Brasil, Nogueira Neto
(2011) afirma que as ações de enfrentamento da violência sexual se
intensificaram após a implementação do ECA (1990), dando maior
visibilidade para a o fenômeno da violência sexual no âmbito do-
méstico. Esta lei, “considerada uma das mais avançadas do Brasil,
trouxe uma nova referência da proteção integral, introduzindo na
sociedade brasileira obrigações ao Estado e à sociedade civil, garan-
tindo, assim, um novo paradigma de direitos e deveres às crianças e
adolescentes” (NOGUEIRA NETO, 2011, p. 13).
Nogueira Neto (2005) afirma que a proteção dos direitos da
infância e adolescência responsabiliza Estado, sociedade e família,
pois “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer for-
ma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade
ou opressão, punindo na forma da lei qualquer atentado, por ação
ou omissão, aos seus direitos fundamentais” (ECA, 1990, Art. 5º). A
violência deverá ser notificada, sendo uma obrigatoriedade, havendo
apuração de responsabilidade para aqueles que se omitirem, estando
sujeitos às penalidade legais.
Com o ECA (1990), crianças e adolescentes tornam-se su-
jeitos de direitos e deveres civis, humanos e sociais e passam a ser
considerados cidadãos, com direito à proteção e à segurança em seu
universo, respeitados os parâmetros estabelecidos pela Doutrina da
Proteção Integral.
O que se denomina SGD, para Nogueira Neto (2005, p. 14),
tem sua gênese na Convenção dos Direitos da Criança e do Adoles-
cente e que remete aos Artigos 86 e 90 do ECA (1990), não havendo
uma clareza direcionada ao sistema de garantia de direitos, e que
“se operacionaliza mais como um sistema estratégico do que pro-
priamente como um sistema de atendimento direto. Essa natureza
estratégica é própria, aliás, do sistema de promoção e proteção dos
direitos humanos em geral, do que ele é parte”. Caracteriza-se, pois,
numa atuação estratégico-articuladora entre as políticas para a efeti-
vidade no atendimento.

- 137 -
A violência sexual é uma violação dos direitos humanos e da
pessoa em desenvolvimento; dos direitos à integridade física e psi-
cológica, ao respeito e à dignidade e ao desenvolvimento físico, psi-
cológico, moral e sexual sadios (FALEIROS, 2004), como também
uma séria transgressão ética e social, um crime para o qual há poucas
estratégias legais eficientes para a responsabilização dos adultos que
o cometem.
Moreira e Sousa (2013) afirmam que a violência é um proble-
ma de alta complexidade, uma vez que os agressores não são pessoas
desconhecidas, são pais, mães, membros da família e/ou responsá-
veis, que mantêm com as crianças e adolescentes relações próximas e
vínculos afetivos. Posto isto,

[o] enfrentamento desse problema requer não só medidas proteti-


vas imediatas, mas ações de atendimento psicossocial destinado às
crianças e aos adolescentes em situações de violência, bem como
aqueles que são identificados como os agressores. Além disso,
requer ações preventivas por meio de grupos de pais, de educadores,
de profissionais da área da saúde, que possibilitam a troca de
experiência e reflexão sobre as relações familiares. (MOREIRA;
SOUSA, 2013, p. 13).

Sabe-se que é essencial realizar a denúncia para que se possa


enfrentar esta problemática social, pois a omissão, além de permitir
a continuidade do abuso sexual e a impunidade do agressor, favorece
a perpetuação dos crimes e produz vítimas com graves perturbações
de toda ordem. Os mecanismos de denúncia, nos principais órgãos
para a notificação da queixa, são: os Conselhos Tutelares, as Delega-
cias de Polícia, as Delegacias Especializadas e o Disque 100.
Desse modo, para assegurar que crianças e adolescentes este-
jam a salvo da violação de direitos, é fundamental o alinhamento do
Estado com a sociedade civil, para definir a agenda de ações em rede
de proteção social, em níveis nacional, estadual e municipal, delinea-
das pelo Sistema de Garantia de Direitos da Infância e Adolescência
no Brasil. Nesse sentido, proteção social é “um conjunto de iniciati-
vas públicas ou estatalmente reguladas para a provisão de serviços e
benefícios sociais visando a enfrentar situações de risco social e pri-
vações sociais” (YAZBEK, 2014, p. 80 apud JACCOUD, 2009, p. 58).
Destaca-se que a viabilidade da intersetorialidade entre as po-
líticas públicas e sociais na perspectiva de garantia de direitos e pro-

- 138 -
teção social visa atender à população, sobretudo a infantil, de forma
integral. A articulação entre os setores pretende garantir o acesso a
informações e direitos sociais, garantindo o acesso aos serviços de
proteção social. Assim, a intersetorialidade funciona como uma po-
tencialidade na ampliação do acesso aos direitos sociais a caminho
da efetivação da rede de proteção social integral da criança abusada
sexualmente, principalmente em tempos de desmonte do Estado de
Direito no Brasil.
Contudo, a discussão, permeada pela construção social da in-
fância e a conquista sócio-histórica dos seus direitos fundamentais,
implica em avanços significativos, mas que ainda apresenta um hiato
nas estratégias eficazes para fortalecer o SGD. Seja na responsabili-
zação de adultos que violam os direitos humanos e sexuais, como
também em investir na formação de profissionais atuantes na rede de
proteção social, no devido orçamento público que garanta políticas
públicas efetivas para, assim, materializar estratégias para a realiza-
ção plena dos direitos da infância que reduzam as desigualdades e
injustiças sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A trajetória percorrida nesta breve reflexão sobre a infância


no contexto das relações sociais patriarcais — hierarquizantes e atra-
vessadas pela desigualdade de gênero — mostra que é necessário
avançar no enfrentamento da violência sexual. Pois, passadas mais
de três décadas da conquista dos direitos das crianças e adolescentes
no Brasil, ainda é preciso construir uma nova realidade que rompa
com a desigualdade social, sobretudo a de gênero.
Problematizar o abuso sexual infantil como uma prática
perversa, uma violação de direitos humanos, que, em sua maioria,
ocorre no ambiente familiar, significa compreender a complexidade
estrutural deste fenômeno que atravessa a sociedade — colonial, re-
publicana, democrática —, para enfrentá-la.
O que este estudo revela, na dinâmica de transformação das
sociedades, é que o sistema patriarcal está regido pela dominação
e pelo controle, o que se constata nos dados apresentados sobre a
recorrente violação de direitos da criança e, por sua vez, nas (ainda
persistentes) relações sociais de poder.

- 139 -
No percurso histórico do modo como eram (e ainda são) en-
xergadas e tratadas as crianças, em situações de abandono, explora-
ção, humilhação e maus-tratos, ao considerar avanços fundamentais,
ousamos refletir sobre qual modelo de sociedade queremos alcançar.
Enfrentar a violência sexual infantil significa a busca do rompimento
com este sistema estrutural de violação de direitos da criança, atra-
vés, em especial, do reconhecimento desta, como sujeito e não mais
como objeto. É preciso ultrapassar a objetificação dos corpos das
crianças e considerá-las como sujeitos em desenvolvimento, garan-
tindo sua integridade e cidadania.
O desenvolvimento saudável da criança é responsabilidade do
Estado, da sociedade e da família e efetivar mecanismos viáveis para
isso é, portanto, uma urgência.

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- 142 -
POLÍTICAS SOCIAIS ENQUANTO MEDIAÇÃO
DE SEGUNDA ORDEM DO CAPITAL E FORMAS
DE ESTRANHAMENTO
Lélica Elis Pereira de Lacerda1

INTRODUÇÃO

O Serviço Social é uma profissão que nasce no capitalismo


monopolista, de modo a executar políticas sociais, sendo estas o es-
paço que conforma as ações profissionais de assistentes sociais. Por
mais que as políticas sociais nasçam da luta dos trabalhadores com
núcleo socializante, nos marcos do capital este é entravado pelo tra-
balho estranhado e a propriedade privada dos meios de produção,
base das mediações de segunda ordem do capital, subsumindo-as às
necessidades do capital, moldando-as enquanto mediação de segun-
da ordem do capital, gerindo as refrações da questão social sob os
interesses do capital de coesão social e autorreprodução ampliada.
Enquanto mediação de segunda ordem do capital, ela se es-
trutura a partir de bases estranhadas e repõe os estranhamentos típi-
cos da sociedade erguida a partir do trabalho assalariado (LUKÁCS,
2013). No bojo deste debate, o objetivo deste artigo é analisar as Po-
líticas Sociais como mediação de segunda ordem do capital.
Para tanto, num primeiro momento buscamos elucidar de que
forma as políticas sociais atuam enquanto mediação de segunda or-
dem capitalista para, posteriormente, apontar os principais aspectos
das relações estranhadas na execução terminal de políticas sociais.

AS POLÍTICAS SOCIAIS ENQUANTO MEDIAÇÃO DE


SEGUNDA ORDEM DO CAPITAL
As políticas sociais nascem com núcleo socializante, pois se
tratam de serviços e benefícios que dão acesso à classe trabalhadora
à riqueza material e espiritual para além da compra e venda no mer-
1 Professora-Doutora do Departamento de Serviço Social da UFMT. Pesquisadora do
PPGPS, do GEPPROC-UFMT e do Grupo de Pesquisa Ética e Direitos Humanos: Prin-
cípios Norteadores para o Exercício Profissional da Assistente Social – UEL.

- 143 -
cado. Ocorre, porém, que sob a hegemonia do capital elas se limitam
a seus interesses enquanto medida estatal de gestão das refrações da
“questão social”, enquanto mediação de segunda ordem do capital
que repõe as demais mediações desta natureza: os meios estranhados
e os objetivos fetichistas de produção, o trabalho “estruturalmente
separado da possibilidade de controle”, o dinheiro, a família nuclear,
o mercado mundial e as várias formas de Estado do capital (MÉS-
ZÁROS, 2011).
As políticas sociais fazem parte da constituição de várias for-
mas de Estado do capital, cuja função está atrelada à coesão social
em torno da sociedade burguesa, com o papel peculiar de criar con-
dições materiais e espirituais para a reprodução da força de trabalho
mediante intensa atuação sobre as variáveis empíricas do cotidiano
da família trabalhadora (NETTO, 2007).
Numa sociedade em que os atos econômicos não se relacio-
nam às necessidades humanas, mas de lucros, existe a distinção entre
ações do Estado que regulam o plano econômico (política econômi-
ca) e as medidas que regulam a esfera social através das políticas so-
ciais, de forma distinta. As políticas sociais, então, irão gerir a satisfa-
ção de necessidades dos trabalhadores e suas famílias para além das
relações mercantis de compra e venda (LENHARDT; OFFE, 1984),
embora o faça em nome destas relações, respondendo à necessidade
de formatar os trabalhadores em assalariados, ao mesmo tempo em
que naturaliza a reprodução ampliada do capital.
Vivemos em uma complexa sociabilidade, fruto de milênios
de história humana, sendo os últimos vividos em sociedades funda-
das a partir da propriedade privada. A sociabilidade capitalista, em
específico, se ergue a partir a propriedade privada dos meios de pro-
dução sob a posse da burguesia, enquanto a esmagadora maioria de
trabalhadores, expropriada, vê-se obrigada a vender pelo salário sua
capacidade física e mental para o trabalho, não sendo dona de nada,
nem do seu tempo que é comprado pelo capital (MARX, 2011).
O salário se refere ao tempo de trabalho que o capital remu-
nera o trabalhador, mas, com a evolução das forças produtivas e o
exponencial aumento da produtividade, a maior parte do tempo de
trabalho não lhe é paga, sendo apropriada privadamente pelo patrão
na forma de lucros. Isto é a extração de mais-valia. O salário se refere
ao preço de mercado da força de trabalho, não apenas do trabalhador

- 144 -
individual, como o de sua família (MARX, 2011), que na sociedade
capitalista funciona como a célula econômica de consumo (privado)
e reprodução biológica da humanidade (MÉSZÁROS, 2009).
Existem poucas famílias que vivenciam o cotidiano dos deten-
tores do capital, donos do poder econômico e político, cidadãos que
efetivamente vivenciam o direito privado ou o direito de produzir e
ordenar a sociedade e a vida dos indivíduos que nela participam de
maneira desigual (ABREU, 2008) e deixarão no mundo o herdeiro
de seu capital. Existe um sem-número de famílias que herdaram sua
apartação dos meios de produção e, portanto, do poder político e
que se veem impelidas a viver do assalariamento, com salários cada
vez mais comprimidos pela necessidade do capital de se autoexpan-
dir desenfreadamente.
O poder de decisão numa sociedade onde um homem manda
no outro só poderia estar nas mãos do possuidor de propriedade pri-
vada, seja o patriarca no interior da família mandando na vida priva-
da, seja o chefe do Estado, na vida pública (MÉSAZÁROS, 2011). O
patriarca passa a ser o dono da propriedade, da esposa e dos filhos, e
a mulher, a partir de sua especificidade biológica, será a responsável
pelos filhos e o ambiente privado reproduzindo na família a relação
hierarquizada do espaço público, conforme o capital requer.
Por suas próprias contradições, para manter a propriedade
privada dos meios de produção, este sistema não pode se manter sem
reproduzir, com sucesso e de maneira constante, as relações de poder
historicamente específicas que mantêm a função de controle radi-
calmente separada e de maneira autoritária imposta sobre a força de
trabalho (MÉSZÁROS, 2011). Assim, a família, enquanto microcos-
mo do capital, tem a função de reproduzir a estrutura hierárquica
deste sistema, como consequência inevitável da determinação incor-
rigível deste modo de produção de relações de poder antagônicas,
em que o poder de controle está inteiramente separado dos produto-
res e cruelmente imposto sobre eles.
Convidado a participar da esfera econômica, de forma a ven-
der seu tempo de trabalho, o trabalhador é expulso do controle e
decisão acerca da organização da produção e distribuição racional,
tampouco participa livremente do consumo e isto porque este está
submetido à relação de exploração, na qual a produção é coletiva,
mas a apropriação é privada (MÉSZÁROS, 2009).

- 145 -
Na era dos monopólios, a exploração se intensifica tanto que
as famílias trabalhadoras passam a sofrer sistemática intervenção
estatal para poder cumprir privadamente sua função de regulação
necessária, mais ou menos espontânea, da atividade biológica repro-
dutiva (MÉSZÁROS, 2009) a partir da estrutura da sociedade do ca-
pital: a propriedade privada dos meios de produção.
O cuidado dos seres humanos uns com os outros é cada vez
mais institucionalizado porque, segundo Mészáros (2011), a emer-
gência e consolidação das instituições legais e políticas da sociedade
são paralelas à transformação da apropriação comunitária em pro-
priedade exclusivista, sendo, portanto, expressão das relações estra-
nhadas que, em nome da produção coletiva e consumo privado, es-
facela relações de solidariedade, transferindo-as artificialmente para
o Estado alheio aos trabalhadores, e esfacela as relações familiares e
comunitárias em nome dos lucros. Quanto mais extensa e exclusivis-
ta a necessidade, mais pronunciado e institucionalmente articulado
deve ser o papel do Estado centralizado e burocraticamente invasor,
buscando regular as contradições advindas do estranhamento do
trabalho repondo-as.
A solidariedade provida pelo Estado é hostil aos trabalhado-
res, tanto usuários quanto executores. Isto porque, embora as polí-
ticas sociais tenham nascido no âmbito da luta de classes, enquanto
conquista dos trabalhadores por maior acesso à riqueza social (do
corpo e do espírito), quando os trabalhadores abrem mão do proces-
so revolucionário e se contentam com o limitado e imediato bem-
-estar trazido pelas reformas, permanecem dentro dos limites do
capital.
O núcleo socializante das políticas sociais se limitará à dinâ-
mica do capital, de modo a ser mais uma entre as ações estatais para
viabilizar a produção e reprodução do capital e, para tanto, terá sua
função social amoldada à lógica do capital enquanto mecanismo de
coesão social em torno do projeto burguês. Por isso, sua dinâmica
institucional funciona como “gaiola de ferro” (NETTO, 2007) que
aprisiona as capacidades dos seus executores aos limites do capital.

[...] Se a revolução é acto de criação política na história de classe,


a legislação é a expressão, no plano político, da existência vegetati-
va e contínua da sociedade. O trabalho legal das reformas não tem
nenhuma força motriz própria, independente da revolução; só se

- 146 -
realizará em cada período histórico à direcção que lhe foi impulsio-
nada pela última revolução [...] exclusivamente no quadro da forma
social originada pela última revolução [...]. (LUXEMBURGO, 2014,
p. 26).

Portanto, dentro dos limites do capital, as políticas sociais fa-


rão parte do aparato burocrático-legal do Estado burguês, moldado
pelo ato político que funda a sociabilidade capitalista, a Revolução
Francesa, na qual a burguesia ascendente se aliançou aos campone-
ses para vencer o poder da nobreza. Por isso, a burguesia não poderia
simplesmente virar as costas ao campesinato e abertamente promo-
ver seu processo de expropriação dos trabalhadores para viabilizar
a extração de mais-valia. Torna-se necessário ocultar a exploração,
para o que o Estado exerça papel fundamental (DIAS, 1997).
O conceito de cidadania nos marcos do capital abrange a to-
dos que indistintamente são considerados “sujeitos de direitos” no
plano formal, promovendo a identificação de todos perante a lei,
obscurecendo a constituição das relações sociais concretas de clas-
ses sociais e as desigualdades estruturais que, permanentemente, se
constitui e reforça, viabilizando o efetivo domínio burguês sobre a
sociedade. Essa igualdade (abstrata e formal) entre os homens via-
biliza a dominação de uma classe, um sexo e uma raça sobre a outra
e o faz transformando o que há de mais particular (o direito à livre
exploração) em algo absolutamente “universal” (DIAS, 1997).
Isso porque, diferentemente da aparente neutralidade do Es-
tado, ele surge na história humana quando sua organização social se
complexifica e constitui uma sociabilidade cindida em classes an-
tagônicas, cujas contradições passam a ser inconciliáveis. O Estado
vem dar resposta à necessidade da classe social dominante de manter
sua dominação, seja pela coerção ou coesão social. A existência do
Estado está ligada à longa história de fundação da propriedade pri-
vada e é a confissão de que a sociedade se embaraçou numa insolú-
vel contradição, se dividiu em antagonismos inconciliáveis que não
pode se desvencilhar (LÊNIN, 2012). O Estado, enquanto governan-
te dos destinos coletivos de forma alheia ao trabalhador, legitima sua
atuação enquanto mediação de segunda ordem do capital e promove
a subordinação do homo legalis ao homo economicus, ou do cidadão
ao homem burguês, sendo o direito vivido - e o aparato institucional
e a máquina burocrática do Estado amoldados - conforme as neces-
sidades do capital.

- 147 -
Assim, para Mészáros (2011), o Estado não está na superes-
trutura da sociedade porque faz parte da própria base material do
capital (sua dimensão política), contribuindo não apenas para a for-
mação e consolidação das grandes estruturas de reprodução social,
como também seu funcionamento ininterrupto. O Estado expõe a
mesma divisão do trabalho hierárquico-estrutural das unidades re-
produtivas econômicas, mantendo sob controle os antagonismos
surgidos da disruptiva dualidade entre processo econômico e políti-
co de decisão, tornando sustentável a prática econômica de atribuir
ao “trabalho livre” o cumprimento de funções rigidamente econômi-
cas, numa condição incontestavelmente subserviente, reforçando a
dualidade entre produção e controle e toda a divisão hierárquica do
trabalho (MÉSZÁROS, 2011).
Em todas estas questões o papel totalizador do Estado moder-
no é essencial, ajustando suas funções reguladoras em sintonia com
o processo de reprodução socioeconômica, reforçando a dominação
do capital contra as forças que poderiam desafiar as imensas desi-
gualdades. Assim, em meio ao esbanjamento das elites e das estrutu-
ras perdulárias do Estado, irracionalmente bilhões de seres humanos
deixam de ter suas mínimas necessidades supridas em virtude da ne-
cessidade desenfreada de lucro no atual estágio de desenvolvimento
das forças produtivas que, por tamanha contradição, passam a ser
destrutivas, tornando difícil a correspondência dialética necessária
entre produção, consumo e necessidade (MÉSZÁROS, 2009).
Para manter esta dominação, o capital é impossibilitado de,
no controle sociometabólico, lidar com as causas, não importando
a gravidade de suas implicações em longo prazo, sendo necessário
deslocar aquelas que autoimpedem o capital para que não sejam de
forma alguma questionadas, sendo falsamente tratadas enquanto
disfunção temporária.
É uma resposta como todas as demais do Estado burguês: não
pode tocar na causa originária da falta de acesso à riqueza social
(propriedade privada dos meios de produção e trabalho alienado); e,
por isso, lida com os desdobramentos da exploração do trabalho de
forma fragmentada e com mecanismos burocráticos que canalizam
a luta política, arrefecendo a luta dos “debaixo”, afastando a ideia de
tornar-se classe dominante, introduzindo efeitos danosos, conforme
Carvalho (2011):

- 148 -
- o enfraquecimento da classe trabalhadora enquanto sujeito
político real;
- o esvaziamento progressivo do exercício da cidadania;
- a substituição quase total da solidariedade espontânea por
um processo de solidariedade mecânica emanada do Estado;
- a perda da visibilidade do homem enquanto ser singular e
social e, com isso, a perda de referências para a transformação da
sociedade;
- a voz das bases trabalhadoras, a voz do coletivo, perdeu mui-
to de sua importância à medida que um processo ativo de negocia-
ções sociais passou a operar via Estado e de forma corporativista.

As políticas sociais, por meio de sua burocracia estatal bur-


guesa, materializam e reforçam a cidadania passiva, típica da so-
ciedade burguesa aos trabalhadores, promovendo a naturalização
da sua apartação do comando coletivo entregue às mãos do Estado.
Com isso, quando se pensa em solução de questões coletivas, pen-
sa-se na intervenção estatal como remédio para os defeitos e con-
tradições assumidos e, dentre os tantos remédios estão as políticas
sociais com seus serviços e benefícios. Com a omissão da luta de
classes, investiu-se na ideia de que Estado e a economia repousam
sobre o saber científico que permitiria expansão de técnicas e saberes
que introduziriam melhoria real das condições materiais de vida da
classe trabalhadora; quando, de fato, o que impera é o direito privado
de produzir e ordenar a sociedade e a vida dos indivíduos que nela
participam de maneira desigual (ABREU, 2008), em conformidade
com as necessidades de autoexpansão do capital.
Por isso, afirmamos que as políticas sociais, dentro dos limites
do capital, embora possuam um núcleo socializante, foram subsumi-
das aos interesses do capital, conforme alertava Luxemburgo (2014,
p. 27):

[...] o regime capitalista tem uma característica particular; todos os


elementos da sociedade futura, ao progredirem, em vez de se orien-
tarem para o socialismo, pelo contrário, afastam-se [...] no seio das
quais os antagonismos capitalistas, a exploração, a opressão da força
de trabalho, se exasperam ao extremo [...] Para libertar o núcleo so-
cialista da ganga capitalista, é preciso que o proletariado conquiste o
poder político e que o sistema capitalista seja totalmente destruído.

- 149 -
Tudo isso, segundo Dias (1997), foi configurando o que se
convencionou a chamar de cidadania, base da nova dominação so-
cial. Abstrata e genérica, ela busca, em princípio, incorporar tudo
e todos à nova realidade estatal, para o que era preciso que a esfera
estatal recobrisse toda a sociedade e os indivíduos que componham
este Estado enquanto cidadão, embora a maioria seja de súditos pra-
ticamente sem direitos (DIAS, 1997). Quanto mais avança a crise
do capital, mais se torna necessário haver súditos sem direitos, para
concentrar mais-valia e o fundo público estatal no capital.
Os estranhamentos humanos no âmbito das Políticas sociais
enquanto mediações de segunda ordem do capital
As políticas sociais, enquanto mediação de segunda ordem
do capital, se limitam às relações capitalistas que emergem de bases
estranhadas que configuram o espaço onde se desenrola o exercício
profissional de seus executores terminais enquanto trabalhadores as-
salariados e, como tal, vivenciam os mesmos tipos de estranhamento
que os operários do setor produtivo, longamente estudado pelo mar-
xismo, porém, com expressões peculiares.
O trabalhador do setor produtivo é o apêndice da máquina
industrial que não detém o controle do seu processo de trabalho,
já que os meios de produção não lhe pertencem, o que o leva a não
deter o produto do seu trabalho que é apropriado privadamente pelo
patrão. Nestas condições, o trabalho, no lugar de um meio de satisfa-
ção, torna-se uma força que aprisiona, posto que quanto mais o capi-
tal cresce mais tem o poder de subsumir quem trabalha na relação de
exploração que leva os seres humanos a não se reconhecerem entre
si, tampouco como gênero humano (MARX, 2004).
No âmbito do Estado, os executores terminais de políticas so-
ciais são o apêndice da máquina burocrático-estatal que organiza o
trabalho de forma hostil ao trabalhador, porque a serviço do capi-
tal. O poder decisório está nas mãos das personificações do capital
(prefeitos, deputados, secretários, ministros etc.), por meio dos quais
as vontades férreas do capital são impostas submetendo as políticas
sociais às desumanizadoras exigências da ordem sociometabólica do
capital (MÉSZÁROS, 2011). Assim, os proletarizados da burocracia
estatal vivenciam estranhamentos similares aos do setor produtivo.
No plano ontológico-materialista, a objetividade não é produ-
to do pensamento ponente, mas algo ontologicamente primário: o

- 150 -
ser humano é um ser corpóreo dotado de forças naturais e somente
pode manifestar sua vida em objetos sensíveis reais. Segundo Lukács
(2013), a personalidade dos indivíduos se manifesta nas respostas
práticas que dão às questões que lhe são postas em sua vida cotidia-
na, requerendo condições objetivas para que efetive a alternativa que
mais o realize. Quando quem trabalha não encontra condições mate-
riais de realizar suas capacidades, não pode desenvolver plenamente
sua personalidade, redundando em estranhamentos.
O estranhamento humano não é, portanto, o fato da essên-
cia humana se desumanizar, mas dela objetivar-se em oposição a si
mesma, em oposição ao pensamento abstrato, de materializar seu
trabalho e todas as suas atividades vitais em um ambiente social hos-
til, que se volta contra o trabalhador. Por isso, embora seja um fenô-
meno que aconteça na esfera da subjetividade humana, o estranha-
mento é um fenômeno determinado pela dinâmica histórico-social,
assumindo formas históricas diferentes, cada vez mais marcantes,
não sendo uma condição humana universal (LUKÁCS, 2013).
Desenvolvemos uma sociedade altamente complexa (largo
afastamento das barreiras naturais) e cujo ambiente social é tão hos-
til às necessidades humanas dos trabalhadores a ponto de se orga-
nizar um complexo aparato institucional de solidariedade mecânica
para gerir as cada vez mais agudas e complexas refrações da “questão
social”. As políticas sociais materializam os direitos sociais da classe
trabalhadora de forma estranha e acima dos trabalhadores, buscan-
do compatibilizar suas necessidades humanas com as do mercado.
Assim, a sociedade cria a necessidade de formar profissionais com
habilidades para lidar com a educação das futuras gerações, cuidar
da saúde individual e coletiva, planejar e administrar o processo de
urbanização, enfrentar a miséria etc., mas as coloca na gaiola de ferro
do aparato burocrático burguês, cuja legalidade aprisiona tais habi-
lidades nos limites da gestão da barbárie social promovida pela di-
nâmica do capital, sob a reificação do ter, naturalização do racismo
e do patriarcado.
Por isso, as habilidades humanas desenvolvidas não servem
para a realização plena da personalidade dos trabalhadores, ao con-
trário, acaba até em extremos de sua deturpação, como mostra o es-
cândalo da máfia das próteses2, no qual os médicos usam da sua
2 Reportagem exibida pela rede Globo. Disponível em: <http://globotv.globo.com/rede-glo-
bo/fantastico/v/mafia-superfatura-proteses-e-indica-cirurgias-desnecessarias/3871226>.

- 151 -
exclusiva habilidade de reabilitar a saúde humana mediante proce-
dimentos cirúrgicos complexos para ganhar dinheiro, ao invés de
salvar vidas. Neste caso, as necessidades do ter se sobrepõem às ne-
cessidades humanas até mesmo em serviço vital da saúde, no qual
profissionais usam suas habilidades para fins mesquinhos e diame-
tralmente opostos às finalidades sociais para as quais foram desen-
volvidas.
Como todo assalariado, o mercado impele que o maior inte-
resse dos trabalhadores da burocracia estatal seja o pagamento e não
o tipo de trabalho em si (MARX, 2004), porque sem o salário não
é possível viver. É preciso ir para além da lógica mercantil indivi-
dualista para considerar a importância de outros elementos, como
o compromisso com o público atendido ou com o resultado de seu
trabalho e a apreensão da importância social de seu trabalho. Caso a
consciência do trabalhador não eleve de si e de sua individualidade,
permanecerá no emprego motivado pelos direitos trabalhistas que
ele usufrui e que não se veem na massa de trabalhadores: salários em
dia, estabilidade, bonificações e gratificações, aposentadoria etc. Tais
direitos, em vez de fomentar a solidariedade na luta com a classe tra-
balhadora para igualar-se por cima, podem, ao contrário, aburguesar
a consciência da burocracia estatal que se concebe como “aristocra-
cia proletária” que facilmente se coloca acima e em oposição aos tra-
balhadores em geral.
A contradição dialética entre desenvolvimento da capacidade
e desenvolvimento da personalidade, ou seja, o estranhamentonão se
trata de uma contraposição abstrata entre subjetividade e objetivida-
de, ou individualidade e sociabilidade; ao contrário, não há nenhum
tipo de subjetividade que não seja social nas raízes mais profundas
do seu ser. Por isso, a explicação da deturpação do uso das habilida-
des pelo mau-caratismo dos profissionais cai num moralismo que
não elucida nada. É preciso se perguntar que tipo de sociabilidade
gera determinados tipos de personalidade.
A deturpação de tais habilidades é fruto das relações de mer-
cado que buscam eternizar e naturalizar sua dinâmica, fazendo as
pessoas crerem que a plena realização de sua personalidade consiste
em comprar tudo o que precisa, manipulando

[...] de tal maneira o desejo dos homens de serem tidos como per-
sonalidade para que eles se satisfaçam justamente com a compra de

- 152 -
objeto de consumo ou serviço que constitui objeto de publicidade.
Este consumo o faz ser considerado como personalidade autêntica
pelo seu entorno. (LUKÁCS, 2013, p. 798).

Aqui, a questão não é só a exaltação da mercadoria, mas o


prestígio pessoal que será proporcionado ao comprador. Compram-
-se casa, carro, roupas e faz-se sexo não pelo prazer do usufruto, mas
pela imagem social de sucesso que se busca passar. A partir desta
base, há a tendência de formar homens aburguesados e reforçar a
ilusão de que essa diferenciação superficial das particularidades ad-
quiridas no mercado seja o único caminho para se expressar a per-
sonalidade, igualada a ganhar prestígio social. É a velha categoria do
ter pretendendo determinar o ser (LUKÁCS, 2013).
Na vida cotidiana do trabalhador, o ter não se mostra como
simples carecer para satisfação de necessidades, mas, pelo contrário,
como competição entre pessoas e grupos na tentativa de elevar o va-
lor pessoal mediante a quantidade e qualidade do ter. Por isso, a luta
dos trabalhadores em geral é muito facilmente arrefecida, cooptada
e fragmentada pela oferta de migalhas que oportunizem maior pos-
sibilidade imediata de ter. No setor público, onde as migalhas não
saem do bolso privado do patrão, mas dos cofres públicos, tais ofer-
tas são ainda mais recorrentes, através das quais o servidor substitui
a luta democrática organizadas por direitos por relações autoritárias
de paternalismo, coronealismo etc.
A deturpação dos sentidos humanos pelo ter é um dos prin-
cipais elementos que os executores terminais de políticas sociais uti-
lizam para naturalizar o estranhamento, vivenciando mudamente
suas condições de trabalho, abdicando de se engajar com o resultado
do seu trabalho – o que em políticas sociais precarizadas implicaria
em luta – fazendo o trivial do trabalho burocrático, estranhado em
relação ao gênero humano.
Assim, aquilo que por sua natureza tem relação do gênero para
si, como educação para formação de seres humanos inteiros, servi-
ços de saúde para oferecer toda a tecnologia e técnicas de promoção
e tratamento prolongando a vida humana etc., tudo fica restrito ao
gênero em si – o trabalho limitado a procedimentos burocrático-for-
mais para reprodução da força de trabalho.
A divisão hierárquica do trabalho constrói diversos universos
paralelos dividindo os seres humanos de acordo com suas condições

- 153 -
materiais de existência, sua raça e sexo. Isto causa um estranhamento
humano tanto do alto escalão da burocracia estatal em relação aos
demais; quanto aos proletarizados da burocracia e os trabalhadores
em geral.
A diferenciação das condições objetivas de vida faz com que,
em geral, trabalhadores dos serviços sociais e população usuária não
se identifiquem humanamente, sobretudo quando o profissional é
branco e o usuário negro, há o reforço da supremacia branca ou, ain-
da, quando as questões do âmbito doméstico são naturalizadas como
responsabilidade das mulheres. Estes veem no profissional que os
atende o braço coercitivo do Estado que lhes impõe serviços e be-
nefícios para a satisfação de suas necessidades de forma alheia à sua
vontade e hostil às suas genuínas necessidades; os profissionais, por
sua vez, enxergam no usuário incapaz de sanar suas necessidades via
mercado (e visto alheio às relações sociais) um cidadão fracassado, já
que sua inserção na hierarquia do trabalho não lhe dá condições de
se suprir nas relações mercantis. A partir disso, fica fácil aos profis-
sionais centrarem-se apenas na sua remuneração e se alhearem das
demais questões em torno de seu trabalho. Já quanto às personifica-
ções do capital (MÉSZÁROS, 2011), não possuem qualquer identi-
ficação humana com a classe trabalhadora e, pela sua condição de
vida, têm os trabalhadores apenas como meio para sanar suas neces-
sidades particulares.
Portadoras do poder decisório sobre o aparato estatal, as per-
sonificações do capital impõem a dinâmica de funcionamento da
máquina burocrático-estatal conforme necessidades do capital, de
forma hostil aos trabalhadores, cabendo aos executores terminais
de serviços sociais o papel de apêndice da máquina que coloca em
prática sua capacidade física e mental de trabalho sob condições da-
das. Não está nas mãos dos executores terminais de políticas sociais
o controle das causalidades mais fundamentais que determinam as
condições de seu trabalho: não determinam os recursos investidos,
os equipamentos disponíveis, a equipe técnica contratada, a estrutu-
ra física, o público usuário etc.
Diante da ausência do controle do processo de trabalho nas
políticas sociais, os profissionais que atuam nos serviços sociais se
veem obrigados a limitar e adaptar suas capacidades físicas e espiri-
tuais de trabalho às condições objetivas dadas, sob pena de ruína: se

- 154 -
o enfermeiro não tem luvas cirúrgicas, atende com luvas reaprovei-
tadas e se não conta com equipe trabalha por três; se o professor não
tem equipamentos didáticos e turmas em quantidade adequada, dá
aula só com giz e saliva para salas superlotadas; se o assistente social
não conta com serviços e benefícios em quantidade e qualidade su-
ficientes, então cria regras de seleção etc., redundando num trabalho
inferior ao pré-idealizado, hostil e aquém das suas capacidades. Isto
no setor produtivo redundaria prejuízo privado do capitalista que
perderia mais-valia, mas no serviço público prejudicaria a parcela da
classe trabalhadora por ele atendida, que serve para reforçar e natu-
ralizar as leis do mercado.
Da parte do usuário – que no geral se localiza em posição in-
ferior na divisão hierárquica do trabalho, conferindo-lhe vida ainda
mais espoliada – sua personalidade se constitui a partir de experiên-
cias que colocam condições para existência sob pena de ruína: o psi-
copata se torna alheio ao sofrimento de terceiros, para não padecer
da dor de sua própria vida, sob pena de ruína; o adolescente no cri-
me precisa se tornar violento e alheio à vida de terceiros ou desistir
do crime, sob pena de ruína etc. “Aquilo que o homem considera
como sua personalidade, via de regra, é apenas a sua singularidade
que assumiu feição social” (LUKÁCS, 2013, p. 797). A resposta que o
Estado tem a dar para as suas questões são alheias e estranhas ao tra-
balhador (tanto o executor quanto o usuário dos serviços), repondo
as relações mercantis que o oprime e desrealiza.
Apesar da constatação fática do estranhamento dos meios
de trabalho no interior da máquina pública, cabe uma ressalva. En-
quanto no setor produtivo, a organização das máquinas subsume de
forma tão efetiva e real o trabalhador a ponto de controlá-lo em seu
ritmo de trabalho, garantindo o seu resultado pela padronização do
produto, no tipo de trabalho requerido pelos serviços sociais existem
infindáveis alternativas a se escolher na construção deste comple-
xo trabalho que incide em causalidades sociais, ainda que cerceados
pela burocracia estatal. O processo de trabalho não pode ser rigida-
mente organizado nem controlado, o que lhes confere certa autono-
mia profissional.
A competência profissional na execução terminal de políticas
sociais requer o autorreconhecimento na atividade que se exerce e
o compromisso humano com o trabalho para além do pagamento,

- 155 -
para que seja viável, dentro do campo de autonomia profissional re-
lativa, usar suas capacidades de trabalho para encontrar e/ou cons-
truir alternativas que busquem satisfazer as necessidades sociais das
comunidades trabalhadoras, sobretudo quando se foca na esfera po-
lítica do exercício profissional.
Mas o bom proveito da margem de autonomia profissional re-
lativa pode ser aniquilado por outro conjunto de estranhamentos.
Enquanto a generidade em si se complexifica, a relação homem-gê-
nero humano permanece muda, apenas enquanto potencialidade. A
sociedade dos monopólios mantém complexo aparato de manipula-
ção que cria a falsa compreensão da vida particular como única rele-
vante e viável, o que faz com que os homens reflitam sobre suas vidas
apenas na esfera individual e imediata, ignorando a esfera política e
coletiva de seu exercício profissional, o que lhes inviabiliza apreen-
der na historicidade as causalidades que perpassam a execução de
políticas sociais e as torna ideologicamente deturpadas. Sem refletir
na relação indivíduo-gênero humano, o trabalhador da burocracia
estatal torna-se um apêndice que preenche formulários, realiza en-
trevistas etc., sem refletir a finalidade social do serviço e seu impacto
na vida da família em questão e na sociedade.
Ao atuar sobre as refrações da questão social analisando a con-
dição de vida dos indivíduos desconexas da dinâmica macrossocial,
psicologiza-se a questão social (NETTO, 2007), responsabilizando
o trabalhador espoliado por sua posição na divisão hierárquica do
trabalho, ao mesmo tempo em que impõe acriticamente a relação de
mercado como a única humanamente viável. As violências do mer-
cado são naturalizadas, o Estado é tido por neutro e se reforça todas
as demais mediações de segunda ordem do capital que inviabilizam
que se coloquem as forças produtivas a serviço das necessidades hu-
manas.
O antagonismo dialético entre a generidade em si e para si,
na dimensão da sociedade global, é análogo à contradição entre o
desenvolvimento das forças produtivas, as capacidades humanas e
o desenvolvimento da personalidade humana no nível da vida in-
dividual. Assim como o desenvolvimento das capacidades humanas
não encontram condições objetivas de se realizar numa sociedade,
na qual as forças produtivas deram as costas para as necessidades hu-
manas e se desdobraram em estranhamentos, o desenvolvimento da

- 156 -
generidade-em-si alheio a ações conectadas com generidade-para-si
também é resultado das forças produtivas subsumidas ao capital, in-
tensificando os efeitos do estranhamento humano enquanto gênero.
Os estranhamentos e as lutas contra eles se desenrolam pri-
mordialmente no cotidiano. Lukács (2013) recobra Engels que afir-
ma que os atos singulares de um indivíduo nunca devem ser con-
siderados iguais a zero. Cada homem singular precisa se decidir a
favor ou contra seus estranhamentos em contato direto com outros
indivíduos. No plano ideológico, reveste-se de suma importância a
aprovação ou reprovação das reificações produzidas no decurso do
desenvolvimento social. O pré-requisito para o bom proveito da
autonomia profissional relativa está na opção por enfrentar os es-
tranhamentos com ações práticas, no plano individual e, sobretudo,
coletivo, muito embora o mais sórdido é que nos manipulam a tal
ponto que aprendemos a amar o que nos oprime.
Para romper com o próprio estranhamento é preciso, a fim
de realizar subjetivamente a ruptura, uma ação que possua cunho
social orientada para algum modo fenomênico da generidade para
si, alçando acima da própria particularidade impregnada de estra-
nhamentos. “[...] sem entrega a uma causa de cunho social, por mais
insignificante que seja, o homem permanece detido no nível de sua
particularidade e fica exposto sem defesa a toda tendência de estra-
nhamento [...]” (LUKÁCS, 2013, p. 782) e a entrega a uma causa não
opera como um princípio universal. Depende do que ela é capaz de
fazer no indivíduo: depende do quão intensa, pura e abnegada seja
sua entrega e, simultaneamente, o que a causa representa realmente
no desenvolvimento social.
Se considerarmos a entrega “à causa da humanidade”, temos
no socialismo uma posição peculiar neste complexo de problemas
(LUKÁCS, 2013). Isto porque é o único projeto político que viabiliza
o controle efetivo do poder político do Estado pelos trabalhadores
para promover ações em diálogo com o gênero para si, direcionadas
à constituição dos trabalhadores livremente associados, restituídos
do poder político historicamente expropriado.
As causas envolvidas no trabalho do executor terminal de po-
líticas sociais, pela natureza de sua função social coletiva de mate-
rialização dos direitos do trabalhador, são causas de cunho social
e trazem em si potencialidade de superação do estranhamento: li-

- 157 -
dam com necessidades imediatas da classe trabalhadora não satisfei-
ta pelo mercado e, por isso mesmo, colocam os sujeitos envolvidos
na luta em contato pela práxis política junto ao Estado, o que torna
muito mais viável a percepção de sua real natureza que precisa ser
apreendida e contestada na prática, para que os trabalhadores se tor-
nem a classe politicamente dominante.
A plena democracia é exigência para a superação da explo-
ração e dos estranhamentos, já que a base ontológica de toda luta
ideológica que almeja se desvencilhar do jugo do estranhamento é a
unidade prática entre o entendimento e a resolução das questões na
cotidianidade. É preciso constituir um Estado proletário que possa
ir à real causa dos problemas: que dê emprego socializando meios de
produção, que direcione as forças produtivas para oferecer a todos
os trabalhadores o melhor até então constituído em saúde, educação,
previdência social e que reorganize as forças produtivas de modo a
respeitar a base natural do ser social.
Isto só se torna viável se os trabalhadores se tornarem clas-
se dominante e desconstruírem as mediações de segunda ordem do
capital, erigidas a partir do trabalho assalariado e da propriedade
privada dos meios de produção para mediações de segunda ordem
socialista embasadas no trabalho associativo, livres e conscientes a
partir da propriedade comunal. Tais mediações requerem que se ele-
vem os sentidos humanos acima do lucro e a lógica do ter, colocan-
do em seu lugar a lógica das necessidades sociais e do ser. Somente
ações voltadas para o socialismo têm a capacidade de combater com
verdadeira eficácia a reificação e o estranhamento humano, elimi-
nando a propriedade e o ter dos sentidos humanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo buscamos denotar a verdadeira natureza das po-
líticas sociais. Sob a hegemonia do capital enquanto ação do Estado
burguês, elas desempenham o papel de segunda ordem do capital
ao gerirem as “refrações da questão social” de forma fragmentada e
acima do poder decisório dos trabalhadores, de forma a manter in-
tacto o trabalho assalariado alheio do poder político e à propriedade
privada dos meios de produção.
Buscamos denotar que, enquanto tal, as políticas sociais nos
marcos do capital perpetuam relações mercantis de exploração e

- 158 -
dominação e, por isso, repõem estranhamentos, tanto do executor
terminal das políticas sociais, quanto do alto escalão e dos próprios
usuários das políticas sociais que passam a ser cidadãos passivos,
alheios ao poder político, naturalizado nas mãos do Estado acima
de seu controle.
Salientamos que a única forma de superar os estranhamentos
é a luta pelo socialismo, entendida como luta da classe trabalhadora
organizada para tomar para si o poder político e constituir suas me-
diações de segunda ordem, de modo a fazer surgir o trabalho asso-
ciativo, livre, consciente e universal.

REFERÊNCIAS

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Conhecimento e Crítica. 9 ed. São Paulo: Cortez, 2001.
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cia como valor universal ou regra do jogo? Sobre o uso do con-
ceito de sociedade civil. In: A liberdade (im)possível na ordem do
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Disponível em: <http://www.consultapopular.org.br>. Acesso em:
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MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1840. São

- 159 -
Paulo: Martin Claret, 2004.
MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro 1, v. 2.
Rio de Janeiro/RJ: Civilização Brasileira, 2011.
MÉSZÁROS, István. Estrutura Social e Formas de Consciência.
São Paulo, Boitempo. 2009.
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Transição. São Paulo, Boitempo. 2011.
NETTO, José Paulo. Capitalismo Monopolista e Serviço Social.
São Paulo, Cortez, 2007.

- 160 -
AS CONTRADIÇÕES NA IMPLEMENTAÇÃO DOS
SERVIÇOS DIGITAIS E DO TELETRABALHO NO
INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL
Murilo Oliveira Souza1
Maria Lucia Lopes da Silva2

INTRODUÇÃO

No curso da história, o trabalho sofreu grandes mutações. Na


sociedade capitalista, as revoluções tecnológicas imprimem fortes
marcas ao processo de trabalho e ao trabalho, como atividade téc-
nica deste processo, em momentos particulares. Em contextos em
que há uma tendência de queda da taxa de lucro estas mudanças
são mais acentuadas, pois o capitalismo move-se em busca de lucro
e, assim, procura manter a acumulação em níveis elevados, mesmo
em tempos de crise. Imprimir mudanças ao trabalho, alterando a
composição orgânica do capital (Marx, 2017), com a elevação dos
investimentos em capital constante (meios de produção) em relação
ao capital variável (força de trabalho), com destacado uso de tec-
nologias é sempre uma alternativa dos capitalistas. O teletrabalho é
uma modalidade de trabalho que vem ganhando força nos setores
privado e público, com uso destacado de tecnologias de informação
e comunicação (TICs).
No Brasil, a contrarreforma trabalhista realizada por meio da
Lei n.º 13.467/2017, acentuou o uso do teletrabalho e o caracteriza
como “a prestação de serviços preponderantemente fora das depen-
dências do empregador, com a utilização de tecnologias de infor-
mação e de comunicação que, por sua natureza, não se constituam
como trabalho externo” (BRASIL, 2017a, art. 75-B).
Em 2017, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) co-
meçou a implementar o “projeto INSS Digital: uma nova forma de
1 Advogado. Doutorando em Política Social pelo Programa de Pós-Graduação em Polí-
tica Social PPGPS/UnB/DINTER/UFMT.
2Assistente Social. Doutora em Política Social. Professora Associada do Departamento
de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Política Social (PPGPS) da Uni-
versidade de Brasília.

- 161 -
atender” ( BRASIL, 2017b), no qual, entre as estratégias previstas,
encontrava-se a implantação do teletrabalho, o que ocorreu a par-
tir de 20193. À época, o INSS geria os benefícios do Regime Geral
de Previdência Social (RGPS), os benefícios de legislação especial
(pensão aos dependentes das vítimas do processo de hemodiálise
em Caruaru, pensão às vítimas de talidomida, entre outros) e be-
nefícios assistenciais (benefício de prestação continuada destinado
às pessoas idosas e às pessoas com deficiência que não dispõem de
condições de manterem-se ou de serem mantidas por suas famílias;
renda mensal vitalícia etc.)4.
Uma das justificativas do INSS, para a total digitalização de
seus serviços, é que “o envelhecimento da força de trabalho e a am-
pliação de competências do Instituto desequilibraram ainda mais a
relação entre a demanda e a oferta de seus serviços” (BRASIL, 2017b,
p. 17). Uma justificativa baseada “nas leis de mercado”, que ignora a
sua missão de prestar um serviço público de qualidade na gestão de
benefícios, e que grande parte daqueles que precisam de seus servi-
ços não reúnem condições para utilizar os serviços eletrônicos. Para
poderem usufruir seus direitos, estas pessoas recorrem a terceiros,
para ajudá-las no requerimento de benefícios, cumprimento de exi-
gências, etc. Pagam por estes serviços parte dos valores dos benefí-
cios que recebem (pensões, aposentadorias, etc). Os direitos são “co-
mercializados” para poderem ser usufruídos. Os “os intermediários”
- aqueles que agem entre os que buscam os direitos e o INSS - bar-
ganham o máximo que podem e às vezes consomem diversas pres-
tações inteiras dos benefícios. Tudo porque a desigualdade social é
desconsiderada e, nesse caso, alimentada pelo Estado na prestação
dos serviços públicos. O pior é que, procurando ou não, muitos di-
reitos não chegam nem a ser requeridos ou são indeferidos por falta
de atendimento adequado das exigências, o que fomenta recursos ao
poder judiciário e faz crescer as concessões de benefícios por decisão
judicial. Sob outra perspectiva, o INSS busca solucionar o quadro re-
duzido de servidores, em decorrência das aposentadorias, não com
a reposição da força de trabalho, mas com a elevação da produtivi-
3 A experiência piloto de teletrabalho no INSS foi autorizada em maio de 2019 pela Por-
taria/ME n.º 241. Disponível em: <https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-241-de-
-23-de-maio-de2019-127478690>. Acesso em: 10 ago. 2021.
4 A partir de fevereiro de 2021, por determinação do Decreto 10.620, o INSS passou a
administrar também as aposentadorias e pensões de servidores públicos das autarquias e
fundações públicas, vinculados ao Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), estes
servidores na esfera federal.

- 162 -
dade dos que permanecem no órgão, com a mediação da TIC, e por
meio de convênios com outras organizações para realizarem serviços
que seriam de sua competência. Portanto, a plena digitalização dos
serviços e a implantação do teletrabalho no INSS são processos com-
binados, marcados por grandes contradições entre a existência do
direito e o seu usufruto, a aposentadoria dos servidores do órgão e a
sobrecarga de trabalho dos que permanecem, a redução das unida-
des físicas de atendimento e os volumosos investimentos em novas
tecnologias para os atendimentos remotos e digitais, que limitam, ao
invés de favorecer, o acesso aos direitos para grande parte da popu-
lação. É sobre isso que trata este texto. O seu propósito é mostrar as
contradições que se revelam na implementação do atendimento di-
gital e do teletrabalho no INSS, denunciando que as leis de mercado
não servem para os serviços públicos, ou melhor, que “o equilíbrio
entre a oferta e procura de serviços” (para usar uma expressão do
INSS), por meio do uso da TIC, em descompasso com o perfil da
população e o quadro de servidores, não é a estratégia correta para
viabilizar os direitos. Ao contrário, alimenta as desigualdades sociais
e a exploração dessas desigualdades por organizações e indivíduos
que lucram com as condições adversas ao uso de tecnologias dos que
precisam do INSS.
O artigo está organizado a partir desta introdução seguida
pelo desenvolvimento, sob o título, contradições e falácias na imple-
mentação dos serviços digitais e do teletrabalho no INSS: para onde
vai o direito? Este desenvolvimento ocorre orientado por três eixos.
O primeiro trata da finalidade, o quadro de servidores, a rede física
de atendimento e as características socioeconômicas das pessoas que
procuram o INSS. O segundo versa sobre o projeto INSS digital, sua
implantação e relação com o teletrabalho. O terceiro eixo destaca si-
nais de prejuízos à população em face da completa digitalização dos
serviços do INSS. Ao final, as considerações finais.

2. CONTRADIÇÕES E FALÁCIAS NA IMPLEMENTA-


ÇÃO DOS SERVIÇOS DIGITAIS E DO TELETRABALHO
NO INSS: PARA ONDE VAI O DIREITO?

Aqui, em três seções, pretende-se mostrar contradições do


processo de atendimento digital e implementação do teletrabalho no
INSS e sinais de prejuízos à população.

- 163 -
2.1. A finalidade, o quadro de servidores, a rede física de
atendimento e as características socioeconômicas das pessoas que
precisam do INSS

A Constituição Federal de 1988 é um marco em relação aos


direitos e garantias do trabalho e da Previdência Social à classe tra-
balhadora. Instituiu a seguridade social que necessitou de regulação
e de uma nova estrutura organizacional para assegurar os direitos.
Mas os primeiros passos nesta direção já feriram o seu significado:

O ponto de partida do movimento de contrarreforma da segurida-


de social no Brasil ocorreu a partir do processo de regulamentação
deste sistema, pelos direitos isolados de saúde (1990), previdência
social (1991) e assistência social (1993), roubando-lhe o sentido de
sistema articulado e organizado horizontalmente, atribuindo à saú-
de, à previdência e à assistência social a conformação de políticas
verticais, organizadas no âmbito da seguridade social. (SILVA, 2021,
p. 36).

Seguindo essa lógica de apartação dos direitos, foram criadas


estruturas administrativas separadas para processá-los. Em 1990, a
criação do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)5 anunciou a
tentativa de voltar atribuir à previdência social o sentido de seguro
e não de seguridade social, ao ressaltar em seu nome a ideia de se-
guro. Feito o registro, é preciso dizer que, atualmente, a finalidade
do INSS é reconhecer e manter os direitos dos segurados vinculados
ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS), direitos à aposen-
tadoria e à pensão dos servidores públicos federais vinculados ao
Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), lotados em autarquias
e fundações públicas federais, e direitos aos benefícios especiais e
assistenciais geridos pelo órgão.
Desde que foi criada, a autarquia INSS vinculou-se a um mi-
nistério que trata de matéria de previdência. Em 2016, foi extinto o
Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS), ao qual o INSS
era vinculado. Isso provocou sua realocação:

A primeira medida do governo Temer quanto ao desmonte da Pre-


vidência Social foi a extinção do Ministério da Previdência Social e

5 O INSS foi criado por meio do Decreto Federal n.º 99.350, de 27 de junho de 1990,
que sofreu muitas alterações ao longo dos anos, seguindo as mudanças técnico-políticas
no curso de seus 31 anos.

- 164 -
Trabalho, mudando os órgãos estratégicos de formulação, gestão e
controle da Previdência Social para a Fazenda e o órgão de execução
(Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para o Ministério De-
senvolvimento Social e Agrário. Apesar das manifestações contrá-
rias, o governo não recuou. Em maio de 2017, por meio da MP n.º
782, art.15, a competência em matéria de Previdência foi explicitada
como da Fazenda. (SILVA, 2018, p. 146).

No governo Bolsonaro, o Ministério da Fazenda passou a cha-


mar-se Ministério da Economia e o Ministério do Desenvolvimento
Social tornou-se Ministério da Cidadania. As divisões dos órgãos e
funções sobre previdência social permaneceram como no governo
anterior, sob as novas siglas, ou seja, o INSS ligado ao Ministério
da Cidadania, mas as diretrizes eram do Ministério da Economia.
Porém, em 28 de julho de 2021, a Medida Provisória n.º 1.058 criou
o Ministério do Trabalho e Previdência que recebeu do Ministério
da Economia competências sobre o tema. O INSS ficou onde estava.
Portanto, esta autarquia não está isenta da contrarreforma
do aparelho do Estado, nem da expansão das novas tecnologias de
informação e comunicação, que tem ocorrido combinado com a re-
dução de direitos da classe trabalhadora, incluindo os servidores do
INSS, cujo quadro de ativos tem sido reduzido, sem as reposições
necessárias, o que tem sido usado para justificar a digitalização dos
serviços e a implantação do teletrabalho.
Este ano, o Ministério da Economia divulgou o quantitati-
vo de cargos públicos efetivos vagos no Poder Executivo Federal6.
Quanto ao INSS, reconheceu 23.610 cargos vagos, que podem ser
preenchidos por concurso público. Todavia, não parece ser esta a
intenção do governo, apesar da luta dos servidores do INSS. Sobre o
tema, a Federação Nacional de Sindicatos de Trabalhadores em Saú-
de, Trabalho, Previdência e Assistência Social (FENAPS) diz que o
Presidente do INSS solicitou ao Ministério da Economia que realize
concurso para preencher 7.575 vagas7 - número bem inferior ao ne-
cessário.
Assim como o quadro de servidores, a rede física de atendi-
mento do INSS encolheu e sofreu reconfiguração, em consonância
6 Informações obtidas por meio de download de arquivo disponível no endereço ele-
trônico: <http://repositorio.dados.gov.br/segrt/LotOrgao_DistOcupVagas%20-%20
202107.xlsx>. Acesso em: 12 ago. 2021.
7 Disponível em: <http://fenasps.org.br/2021/06/19/apos-cinco-anos-de-luta-inss-acata-
-reivindicacoes-da-fenasps-e-dos-trabalhadores-as-pedindo-concurso-publico/>. Aces-
so em: 12 ago. 2021.

- 165 -
com o movimento de contrarreforma da previdência social e da or-
ganização dos serviços com uso da TIC, a partir da implantação do
teletrabalho e “projeto INSS digital: uma nova forma de atender”
(BRASIL, 2017b).
Em 2021, a estrutura organizacional do INSS conta com 104
Gerências Executivas, que agregam: 1.611 Agências da Previdência
Social (APS) de atendimento presencial para demandas gerais; 88
APS para demandas judiciais, às quais se aditam duas equipes de
demanda judiciais; 6 APS Móveis Flutuantes para atender às popu-
lações ribeirinhas; 4 APS de teleatendimento, que recepcionam do-
cumentos pelos serviços eletrônicos; 7 APS que processam serviços
de acordos internacionais; 57 unidades de PrevCidade oriundas de
convênios com prefeituras e 3 unidades móveis8. Esta é a rede física
para atender aos mais de cinco mil e quinhentos municípios brasi-
leiros.
Vale dizer que, em 2017, a situação era diversa, havia uma rede
física maior com mais servidores, mas a redução drástica de pessoal
já era previsível e nada foi feito para evitar:
O INSS [...] possui [...] quase 37 mil servidores ativos, que aten-
dem presencialmente mais de 4 milhões de pessoas todos os meses.
Conta [...] com [...] 1.729 [...] APS [...]. Do total de servidores ativos
[...] mais de 12 mil [...] se encontram em abono de permanência,
ou seja [...] reúnem as condições [...] para pleitear a aposentadoria.
(BRASIL, 2017b, p. 31).

A previsão se concretizou, o resultado é uma quantidade mí-


nima de servidores para atender às demandas e ao avanço dos ser-
viços digitais, cujo “crescimento e sua natureza, [...] merecem uma
avaliação crítica, ao mesmo tempo cautelosa e rigorosa, de modo a
evitar conclusões superficiais ou precitadas” (ANTUNES; FILGUEI-
RAS, 2021, p. 59-60). No caso do INSS, para que se entenda a inci-
dência dos serviços digitais no acesso aos direitos, é preciso mostrar
algumas características da população que busca o órgão.
No mês de maio de 2021, o valor médio dos benefícios conce-
didos pelo INSS era de R$ 1.516,66 (um mil, quinhentos e dezesseis
reais e sessenta e seis centavos) (BRASIL, 2021b, p. 06). Um valor
médio de benefícios abaixo de um salário mínimo e meio. Em abril
de 2020, o valor médio destes benefícios era menor, R$ 1.252,72
8 Informações obtidas da Intranet/INSS em 10 de agosto de 2021.

- 166 -
(um mil, duzentos e cinquenta e dois reais e setenta e dois centavos)
(BRASIL, 2020, p. 06).
Nota-se que a maior parte do público que tem acesso à pre-
vidência, recebe benefícios com valores em torno de um salário mí-
nimo9, o qual se volta para o atendimento às necessidades básicas,
ficando em segundo plano, consumos como Internet e TIC. A Pes-
quisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-Con-
tínua), sobre 2019, mostra que o rendimento real médio per capita
nos domicílios particulares permanentes em que havia utilização da
Internet no Brasil:

[...] era de R$ 1.527,00. Contudo, na análise por equipamento uti-


lizado para acessar a Internet no domicílio houve grande diferen-
ça entre os rendimentos. Enquanto nos domicílios que utilizaram
tabletes para acessar a Internet, o rendimento real médio per ca-
pita era de R$ 3.223,00 nos domicílios que utilizaram televisão e
microcomputador os rendimentos médios eram um pouco menores
(R$ 2.399,00 e R$ 2.339,00, respectivamente), reduzindo-se para R$
1.526,00 naqueles que utilizaram o telefone móvel celular para aces-
sar a Internet. (IBGE, 2021, p. 06-07).

Considerando esses dados, é possível dizer que uma grande


parte dos beneficiários do INSS pode dispor de Internet, mas os
equipamentos para usá-la são, sobretudo, celulares, o que limita suas
ações. Entre os benefícios em que predomina o valor de um salário
mínimo, incluem-se cerca de 6 milhões de benefícios rurais, mais de
4 milhões e meio de BPC, a maioria das pensões por morte, entre
outros (BRASIL, 2021b). A renda destes benefícios não permite a
aquisição de internet e uso de TIC. Em 2019, entre os motivos do
não uso de internet por parte da população em domicílios estavam a
falta de interesse (32,9%), serviço de acesso caro (26,2%) e nenhum
morador sabia usá-la (25,7%) (IBGE, 2021, p. 06). Neste lugar está
parte dos que têm benefícios geridos pelo INSS.
Destaca-se que a maioria dos usuários do INSS é idosa, par-
cela em que se concentram os maiores índices de analfabetismo no
Brasil: “quanto mais velho o grupo populacional, maior a propor-
ção de analfabetos. Em 2019, eram quase 6 milhões de analfabetos
com 60 anos ou mais, o que equivale a uma taxa de analfabetismo de
18,0% para esse grupo etário”10.
9 Em 2021 o valor do salário mínimo é R$1.100,00.
10 Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101736_infor-

- 167 -
Portanto, este é o perfil da maior parte da população que ne-
cessita dos serviços do INSS: pessoas idosas, que recebem benefícios
inferiores a um salário mínimo e meio, grande parte analfabeta, com
limites de acesso à internet e, em geral, não sabem utilizá-la. O que
significa para esta população ter que usar apenas os e-serviços ofer-
tados pelo INSS, sem atendimentos presenciais? É disso que tratam
as próximas seções.

2.2. O projeto INSS digital: implantação e relação com o te-


letrabalho

Por atender pessoas de todas as regiões do país, com caracte-


rísticas diversas, o INSS deveria considerar as demandas e o perfil
populacional antes de mudar suas formas de atender. Mas, isso não
ocorre. Não há escuta nem o perfil da população é considerado. O
volume de atendimentos que realiza ao ano mostra o quanto seria
valiosa esta escuta. Em 2016, o INSS “proveu 44.072.792 atendimen-
tos aos cidadãos” (BRASIL, 2017b, p. 17), isso representa mais de
3,6 milhões ao mês. Em 2016, para efetuá-los contou com 35.113
servidores (BRASIL, 2017b, p. 16) e a seguinte rede de atendimento:

1.539 agências de atendimento ao público ativas, 86 agências [...


para] demandas judiciais, 7 agências [...para] acordos internacio-
nais, [...] 104 Gerências-Executivas (que administram e provêm
suporte às agências de atendimento de sua região) e 5 Superinten-
dências Regionais (que concentram o suporte e a gestão em nível
regional no país [...]). (BRASIL, 2017b, p. 16).

Desde 2014, o INSS prepara-se para os atendimentos eletrô-


nicos, promovendo mudanças no atendimento e na rede física. Uma
das iniciativas para estas mudanças foi a criação do Requerimento
Eletrônico (eReq) testado na cidade do Rio de Janeiro, a partir da
publicação da Portaria n.º 1.184/PRES/INSS, de 30 de setembro de
2014. Segundo o governo, “ainda em 2014, entidades parceiras do
INSS [Rede Globo, Globosat e Fundação Telos] no Rio de Janeiro
começariam a utilizar o eReq para protocolo de requerimentos de
seus empregados” (BRASIL, 2017b, p. 21). Na sequência, em 2016,
foi desenvolvida a plataforma colaborativa chamada Gerenciador
de Tarefas (GET) que possibilitaria convênios com organizações
mativo.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2021.

- 168 -
sociais para recepcionarem requerimentos de benefícios e enviá-los
eletronicamente ao INSS. Essa arrancada foi crucial para digitalizar
os serviços e transferir responsabilidade do órgão para outras orga-
nizações, com o suporte das “plataformas colaborativas”. Mas isso se
agilizou a partir de 2017.
Com o uso da ferramenta de autenticação remota das pessoas,
KBA/OOW desenvolvida em anos anteriores pelo INSS e a DATA-
PREV, foi criado o e-serviço (serviço eletrônico) denominado “Meu
INSS”, que começou a funcionar em janeiro de 2017 para dar início
aos chamados serviços eletrônicos de mão dupla, que, por meio da
internet, possibilitam a interação com os usuários mediante a troca
de informações.
Assim, em 2017, concomitante à contrarreforma trabalhista
concretizada em julho, o INSS acelerou a digitalização dos serviços,
com “o projeto INSS DIGITAL: uma nova forma de atender” (BRA-
SIL, 2017b), que já previa o teletrabalho.
A proposta “foi implementada, inicialmente na forma de pro-
va de conceito, em ambiente controlado na região de Mossoró/RN,
com a parceria de municípios e entidades sindicais” (BRASIL, 2017b,
p. 11) e, após, em forma de pilotos, em outras regiões, até a digitali-
zação total em 2019, ano em que também foi iniciado o teletrabalho.
A prova de conceito em Mossoró foi acompanhada por uma
comissão de servidores constituída pela FENASPS, que apresentou
um relatório com críticas ao modelo. Entre estas, a recepção de do-
cumentos por estagiários que não conhecem a estrutura dos pro-
cessos e não o montam corretamente, gerando futuras exigências e
retrabalho; a sobrecarga de trabalho e cansaço visual dos servidores;
a recepção de requerimentos superior à capacidade do quadro de
servidores; o aumento do tempo de espera na APS devido à forma
usada para autenticar documentos; falhas da plataforma GET para
organizar arquivos e processos; identificação de cópias simples e au-
tenticadas; “aumento no tempo de análise, motivado pelo congestio-
namento de programas no mesmo monitor” (FENASPS, 2017, p. 1).
Com isso, a entidade concluiu que o sistema não cessa o problema
de “falta de servidores, [...] apenas aumenta o represamento de pro-
cessos, transformando a fila de agendamentos em “estoque virtual”
(FENASPS, 2017, p. 2).

- 169 -
A avaliação da entidade foi certeira. O sistema foi implantado
sob alegações e promessas fantasiosas que não foram cumpridas. Al-
gumas de suas justificativas:

[...] a ampliação de direitos e da cobertura do seguro social acarre-


taram aumento [...] da demanda por serviços prestados pelo INSS,
ao tempo em que a força de trabalho reduziu-se [...]. [...] iniciativas
visando [...] melhorias [...] do atendimento foram empreendidas
[...], permitindo a sobrevida do atual modelo de prestação de servi-
ços. Porém, sem qualquer perspectiva de expansão da rede física de
atendimento e de reposição da força de trabalho, sua falência seria
inevitável. Tendo adiante tal cenário, a Diretoria de Atendimento do
INSS [...] desenvolveu [...] modelo de prestação de serviços [...], a
iniciativa segue a trilha das [...] tendências de prestação de serviços
por meio eletrônico, os [...] e-serviços [...]. (BRASIL 2017b, p. 11).

Tais argumentos são falaciosos. Nos últimos anos, os direitos


previdenciários foram reduzidos e não ampliados (SILVA, 2021), em
contexto de ajuste fiscal permanente (BEHRING, 2021). Também
não houve ampliação da cobertura. Os dados mostram que em 2016 o
número de segurados do RGPS era de 52,4 milhões (BRASIL, 2018a,
p. 4), em 2017 este número caiu para 51,1 milhões (BRASIL, 2018b,
p. 4). O quadro de servidores reduziu, mas isso ocorreu de forma
previsível e programada pelo governo, com as políticas ultraneolibe-
rais adotadas. Portanto, não poderia ser usado como argumento para
implementar tal projeto. A tendência de serviços eletrônicos no setor
público é mundial, mas não significa que seja adequada ao proces-
samento de direitos para uma população, fundamentalmente idosa,
pobre, analfabeta, que não tem acesso e nem sabe usar a TIC.
Outros argumentos falaciosos foram usados, associados à
promessa de que o modelo agilizaria os atendimentos, o número de
benefícios concedidos com mais de 45 dias seria reduzido e, com
isso, haveria grande economia aos cofres públicos:
Assim tem sido pensado este projeto, cujas ações [...] agregarão [...]
melhoria à qualidade dos serviços prestados e [...] elevação do grau
de satisfação da sociedade. [...] proporcionará significativa econo-
mia aos cofres públicos, como já se tem vislumbrado junto aos re-
sultados preliminares da Prova de Conceito [...]. Nesta foi constata-
da a redução de, aproximadamente, 3% no pagamento de correção
monetária, nos casos em que o prazo para o cumprimento de exi-
gências por parte do segurado ultrapassa [...] 45 dias. [...]. Entretan-
to, o propósito é reduzir ainda mais esse tipo de gasto, chegando a,
pelo menos, 5% de redução. (BRASIL, 2017b, p. 33-34).

- 170 -
A demagogia derreteu-se diante dos dados após a implemen-
tação do projeto. Em dezembro de 2016 havia 725.937 benefícios em
análise, destes, 351.326 estavam esperando conclusão há mais de 45
dias (BRASIL, 2016, p. 47). Em maio de 2021, o número de benefí-
cios em análise aumentou cerca de 62% em relação a 2016, alcançan-
do 1.902.757 benefícios. Destes, 1.216.421 esperavam conclusão há
mais de 45 dias (BRASIL, 2021a, p. 50). Isso representa 71,2% a mais
do que no ano de 2016. Onde ficou a agilidade do atendimento? E as
economias que seriam feitas? Em 2016, foram concedidos 5.132.451
benefícios e indeferidos 4.164,435, em 2020 o total de benefícios
concedidos caiu para 4.868.146 enquanto o de indeferidos aumentou
para 4.463.911 (BRASIL, 2021a, p.49). Sobre a rede física de atendi-
mento, em 2021, comparativamente ao ano de 2016, houve aumento
das unidades para o atendimento de demandas judiciais, de 86 APS
para 90 (88 APS e 2 equipes). Um aumento consoante à explosão da
judicialização do direito aos benefícios. Foram criadas 4 unidades
para recepcionar documentos por meios eletrônicos e 57 unidades
de convênios com as prefeituras. Essa reconfiguração aponta para o
total esvaziamento das unidades físicas de atendimento. Estes dados
nefastos, certamente, não são motivos para a satisfação da popula-
ção.
O aplicativo “Meu INSS” já realiza a dupla comunicação em
quase 100% dos serviços que o INSS oferece para o processamento
de benefícios. Por seis meses, no curso da pandemia, os atendimen-
tos foram totalmente remotos. Mas no período a demora no pro-
cessamento dos benefícios ampliou-se exponencialmente (BRASIL,
2021a).
O quadro de servidores caiu vertiginosamente durante estes
anos. O projeto INSS Digital, justificado também pelo número redu-
zido de servidores, apontou o teletrabalho e a elevação de produtivi-
dade como alternativas:

O [...] cenário atual comprova a necessidade de desburocratizar


processos e aplicar rotinas de trabalho [...] ágeis e resolutivas – e
céleres. A partir da digitalização dos processos, o cidadão passa a
protocolar requerimentos e acompanhar a tramitação pela internet.
Para o servidor abre-se também a possibilidade da experiência do
Teletrabalho. Em contrapartida o que se espera é o aumento da pro-
dutividade, a redução de custos, decréscimos de processos e distri-
buição de tarefas. (BRASIL, 2017b, p. 79).

- 171 -
Todavia, a denúncia dos servidores é de um extenuante des-
gaste físico e mental devido às jornadas de trabalho prolongadas,
além do acúmulo de serviço sem que haja força de trabalho suficien-
te para solucioná-lo, fato que impõe a urgente necessidade de reali-
zação de concurso público para novas contratações como denuncia
a FENASPS:

Muitas vezes, os servidores estão executando jornadas diárias de 12


a 15 horas para conseguirem bater as metas impostas pelo Instituto.
Essas condições de trabalho acarretam um elevado grau de adoeci-
mento da categoria. [...], porém, mesmo com todas essas pressões, o
aumento do número dos processos analisados não é suficiente para
reverter o caos no INSS. Os problemas do Instituto [...] serão resol-
vidos apenas com a realização de concurso público11.

Estes servidores que trabalham por metas, cujos cumprimen-


tos incidem em seus salários, têm sua produção controlada de for-
ma on-line pelos gestores. Ocorre no INSS o mesmo que se dá nas
empresas que adotam as formas de organização do trabalho asso-
ciadas ao uso de novas TICs, cuja novidade é a capacidade de uso
de ferramentas sofisticadas “de controle da força de trabalho, de que
são exemplo o registro em tempo real da realização de cada tarefa
e da velocidade, local e movimentos realizados, além da mensura-
ção das avaliações, tudo sob o aparente comando dos algoritmos”
(ANTUNES e FILGUEIRAS, 2021, p. 66). São as regras de mercado
ajustadas aos serviços públicos.
Assim, ainda que as TICs contribuam para agilizar o acesso
às informações e aos serviços para uma parte da população, elas
não estão disponíveis para todos, de forma igualitária. São prejudi-
cados os que possuem perfil como a maior parte dos que precisam
dos serviços do INSS: pessoas idosas, com rendimentos inferiores
a um salário mínimo e meio, analfabetas ou com baixo nível de es-
colaridade, com limites de acesso e capacidade de uso da internet.
Ademais, tais tecnologias têm funcionado como forma de elevação
da exploração dos trabalhadores submetidos aos trabalhos mediados
por elas, como é o caso do teletrabalho no INSS. Este é um proces-
so combinado, em que tanto a parcela da classe trabalhadora que é
11 Disponível em: <http://fenasps.org.br/antigo/noticias-sp-9550/2041-entidades-rea-
lizam-audiencia-com-direcao-do-inss-e-representantes-do-ministerio-da-economia-e-
-reafirmam-posicao-por-concurso-publico-e-contra-a-militarizacao-do-inss>. Acesso
em: 10 ago. 2021.

- 172 -
responsável pelo processamento dos direitos previdenciários, como
aqueles que pretendem usufrui-los estão sendo prejudicados. Para
onde vai o direito?

2.3. Outros sinais de prejuízos à população

A partir de 2019 a quase totalidade dos serviços do INSS já


eram realizados eletronicamente, tendo o “Meu INSS” como central
nesse processo e os convênios com organizações gerais da sociedade,
especialmente prefeituras e sindicatos. No contexto, para além do
que já dito, existem outros sinais de prejuízos à população.
Os dados da pesquisa realizada pela Fundação Instituto de
Pesquisas Econômicas (FIPE), divulgados em janeiro de 2021, apon-
tam a expansão crescente da concessão de benefícios por decisão ju-
dicial de 2003 a 2020. A pesquisa considerou diferentes espécies de
benefícios, a área de localização de seus beneficiários, além da faixa
etária. Assim:

Do ponto de vista absoluto, houve o registro de cerca de 85 mil con-


cessões judiciais, em 2004, que se elevaram para cerca de 552 mil no
ano de 2019. De junho de 2003 a outubro de 2020 foram concedidos
cerca de 6,5 milhões de benefícios por decisões judiciais no INSS,
que representou cerca de 8% do total [...]. Em termos absolutos, o
patamar de benefícios decorrentes de judicialização saltou de um
nível inferior abaixo de 100 mil por ano para um patamar superior a
500 mil por ano. O incremento, na comparação do ano de 2019 com
2004, é de 550,4% ou uma alta média anual de 13,3% a.a. Na mesma
comparação, a concessão total de benefícios cresceu 29,2%, ou seja,
um incremento médio anual de 1,7% a.a. A participação das conces-
sões judiciais sobre o total de benefícios concedidos do INSS cres-
ceu de 1,9%, no período de junho a dezembro de 2003, para cerca
de 13% nos meses de janeiro a outubro de 2020. (FIPE, 2021, p. 20).

Um dado que merece atenção se refere à espécie de benefício


mais judicializada:

O maior volume absoluto de concessões judiciais no período de ju-


nho de 2003 a outubro de 2020 foi a aposentadoria por idade, que
totalizou 1,6 milhões, ou seja, quase ¼ do total (24,1%). O índice de
concessão judicial foi de 15,5%, quase o dobro da média do INSS
como um todo”. (FIPE, 2021, p. 22).

- 173 -
Quanto a esta espécie de benefício, “do total de 1,6 milhão
de concessões judiciais, cerca de 177 mil eram urbanas e 1,4 milhão
eram rurais (89% do total)” (FIPE, 2021, p.22). Isso pode advir das
exigências para comprovar a atividade rural e da oferta dos serviços
apenas por meio eletrônico, incompatível com o perfil da população
rural.
Aliás, quanto à área de localização dos segurados, a pesquisa
revela que o maior percentual de judicialização é da área rural. Isso
fortalece a tese de que o antagonismo entre a oferta de serviços uni-
camente digitais e o perfil dessa população impõe prejuízos.

No período de junho de 2003 a outubro de 2020, do total de quase


82 milhões de benefícios concedidos, cerca de 65 milhões (79,5%
do total) foram para a clientela urbana e 16,8 milhões para a ru-
ral (20,5% do total). Entretanto, do volume de 6,5 milhões de con-
cessões judiciais, 4,2 milhões (64,1% do total) foram urbanas e 2,3
milhões rurais (35,9%). Portanto, nas concessões totais, 8 em cada
10 benefícios eram urbanos (ou 2 em cada 10 rurais), mas nas con-
cessões judiciais, cerca de 2 em cada 3 benefícios eram urbanos (ou
1 em cada 3 rurais), o que denota maior participação do rural nas
concessões judiciais do que no total (35,9% contra 20,5%). Essa rea-
lidade denota que a judicialização é maior na área rural do que na
urbana (13,9% na primeira contra 6,4% na segunda). (FIPE, 2021,
p. 24).

No período de janeiro a outubro de 2020, a maior parte das


pessoas que obtiveram benefício por decisão judicial tinha idade
mais elevada do que as que o conseguiram administrativamente. A
variação foi maior em algumas espécies de benefícios.

[...] o beneficiário da concessão judicial é mais velho do que o da


administrativa. [...] também foi feita a análise da idade média por
espécie de benefício. O resultado variou de acordo com o benefício
[...] auxílio-doença previdenciário (47,99 anos no judicial contra
43,18 no normal/ administrativo), quanto ao auxílio-doença por
acidente de trabalho e BPC, a idade do judicial foi mais elevada.
(FIPE, 2021, p. 25).

Desse modo, no quesito judicialização do direito aos benefí-


cios, a população mais atingida é mais pobre, mais idosa, com defi-
ciência, que reside na área rural e possui benefício de valor médio
inferior a um salário mínimo e meio.

- 174 -
Pesquisa do Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER) sugere
que a judicialização pode estar relacionada com o número reduzido
de servidores:

Ao longo dos últimos dez anos, enquanto a demanda pelos servi-


ços do INSS cresceu [...], seu quadro de funcionários [...] se reduziu
[...]. Esse fato é uma possível causa do aumento do tempo médio de
análise de benefícios e do aumento da judicialização por conta da
demora da autarquia em responder às solicitações dos segurados.
Um exame do conteúdo das decisões judiciais revela que as ações
motivadas pela demora do INSS têm maior probabilidade de suces-
so. (INSPER, 2020, p. 150 e 151).

Ademais, segundo o INSPER, a judicialização também pode


ter crescido devido à ação dos intermediários advogados que têm
atendimento preferencial no INSS.

Também contribui para a judicialização o acesso preferencial a ad-


vogados no atendimento administrativo do INSS. A prática torna
mais atraente a representação do cidadão na autarquia por meio de
advogados. Diante da negativa administrativa — por exemplo, so-
bre o valor de um benefício pretendido —, já está aberto o caminho
da judicialização. Nota-se que o crescimento da judicialização de
benefícios previdenciários e assistenciais foi acelerado após a intro-
dução dessa prática. (INSPER, 2020, p. 151).

Dessa forma, o INSS ao optar digitalizar todos os serviços e


atender somente por canais remotos criou uma bola de neve a partir
da incompatibilidade destes serviços e formas de atendimentos com
o perfil da população, o que favorece a ação dos intermediários, entre
esses, os advogados e, com isso, estimula a comercialização do direi-
to e a sua judicialização, prejudicando os que precisam dos serviços
do órgão e estão sendo expulsos de seu circuito físico presencial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O INSS é uma autarquia pública federal, responsável pelo


processamento de benefícios previdenciários, assistenciais e de le-
gislação especial. Atende, principalmente, uma parcela da população
de renda média em torno de um salário mínimo e meio, idosa, que
possui baixa escolaridade, tem pouco acesso às TICs ou não sabe
manuseá-las e boa parte reside na área rural. A completa digitali-

- 175 -
zação de seus serviços articulados ao regime de teletrabalho mos-
tra-se conflitante com o perfil de seus usuários, prejudicando-os. A
ampliação do tempo médio de concessão de benefícios, a redução
do número de concessões, o aumento dos indeferimentos, o cresci-
mento quantitativo de benefícios em análise há mais de 45 dias e das
concessões de benefícios por decisão judicial, associados à explosão
da ação dos intermediários, são alguns dos sinais destes prejuízos. A
expulsão destes usuários das unidades físicas de atendimento é uma
forma de silenciar seus gritos e escamotear esta realidade. Em outra
perspectiva, o número reduzido de servidores força a estratégia de
implantação do teletrabalho, impondo aos servidores sob este regi-
me jornadas de trabalho extenuantes para cumprir as metas ditadas
pela autarquia, o que tem provocado o adoecimento da categoria.
Neste contexto, os direitos dos usuários do INSS seguem a rota da
negação e da comercialização, enquanto os direitos dos servidores
do órgão são extirpados, todos sob a égide ultraneoliberal imposta
pela extrema direita que dirige o país. Reverter este curso é uma luta
necessária e urgente.

Referências

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- 178 -
CRISE ECOLÓGICA: EXPRESSÃO
CONTEMPORÂNEA
DA CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL
Mariele Schmidt Canabarro Quinteiro
Perci Coelho de Souza

INTRODUÇÃO

A origem e o desenvolvimento do capitalismo apresentam


uma história capaz de explicar o cenário atual da crise estrutural
do capital e de suas expressões contemporâneas. Importante com-
preender que o capitalismo surgiu como alternativa para substituir
a característica de autossuficiência das propriedades feudais, o que
aconteceu com o arrendamento e com a mão de obra que recebia pa-
gamento. Desta forma, a burguesia aparece com a novidade da nova
configuração da economia em busca de lucros e com a possibilidade
da circulação dos bens em variadas regiões do mundo.
Acontecimentos que ainda ecoam consequências foram a co-
lonização das Américas e da África e a expansão do comércio marí-
timo, o que dá à Europa a possibilidade de experimentar um cresci-
mento nunca visto. Assim, o capitalismo toma forma de capitalismo
burguês, garantindo sua dominação como sistema social global.
Neste momento, garante sua dominação como um sistema orgânico
global. E a forma mais eficaz de garantir a expansão deste sistema foi
com a extração de sobretrabalho como mais-valia.
A partir de então, o sistema capitalista apresenta contradições,
as quais vão eclodir em crises que possuem inúmeras manifestações.
A crise contemporânea apresenta como expressão inédita a crise
ecológica ou o esgotamento da natureza frente à violenta exploração
realizada pelo capitalismo.
Vários aspectos podem ser analisados perante esta crise eco-
lógica como expressão contemporânea da crise estrutural do capi-
tal, quais sejam, o significado de crise estrutural e crise orgânica e
implicações para os direitos e as políticas sociais na particularidade
do capitalismo dependente brasileiro, natureza dos direitos no capi-

- 179 -
talismo e distinção entre cidadania, emancipação política e humana,
bem como as implicações do neoliberalismo e neodesenvolvimentis-
mo para as políticas sociais.

ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DO CAPITALISMO

A origem e o desenvolvimento do capitalismo remontam uma


longa história com importantes experiências políticas, sociais e eco-
nômicas que podem explicar o cenário contemporâneo do sistema
capitalista.
A deflagração do capitalismo ocorreu ainda na Baixa Idade
Média1, quando a característica de autossuficiente das propriedades
feudais passou a ser questionada com o arrendamento e com o paga-
mento da mão de obra. Foi quando surgiu a burguesia, que implan-
tou uma nova configuração à economia europeia com a busca pelo
lucro e a circulação de bens em diferentes regiões.
Morin (2003) conta que, no final do século XV, a China dos
Ming e a Índia Mongol eram as mais importantes nações da Terra e
o Islã era a mais ampla religião. O Império Otomano era a maior po-
tência da Europa e o Império Inca e o Império Asteca reinavam nas
Américas. São estas as nações que começaram a se lançar à conquista
do Globo a partir de 1492: em 1498, Américo Vespúcio, seguido de
Cristóvão Colombo, reconhece a América e Vasco da Gama desco-
bre o caminho oriental das Índias. Em 1521, Magalhães deu a volta
ao Mundo. Em 1521 e 1531, Cortês e Pizzaro descobrem e destroem
o império asteca e inca. Nessa época, Copérnico concebe o sistema
que faz girar os planetas em volta deles mesmos e do Sol.
Morin (2003) destaca que o Ocidente Europeu descobre gran-
des civilizações, a China deixa de ser uma exceção, a Europa reco-
nhece a pluralidade dos mundos: “assim como a Terra não é o centro
do Universo, a Europa não é o centro do mundo”.
Com as interações entre o Velho e o Novo Mundo, apare-
ce, no século XVII, a expansão do comércio marítimo, quando se
constituem as grandes companhias marítimas inglesas, francesas e
holandesas para as Índias. E a Europa conhece um crescimento ace-
lerado. As cidades, o capitalismo, o Estado-Nação, com a indústria e
a técnica, ganham um impulso que nenhuma civilização conhecera
1 Baixa Idade Média é o período da história medieval que vai do século XIII ao XV.

- 180 -
(MORIN, 2003, p. 59). Fato que comprova a afirmação de Mészáros
(2009) de que o sistema do capital se moveu em direção à globaliza-
ção desde seu início, eis que, devido à irrefreabilidade de suas partes
constitutivas, ele não pode considerar-se completamente realizado
senão como um sistema global completamente abrangente.
A imigração de europeus nas Américas e na Austrália e a im-
plantação da civilização europeia é o processo de ocidentalização do
mundo. E isso só foi possível com a violência, a destruição, a escravi-
dão e a exploração feroz das Américas e da África.
Nos anos 1738 e 1790, entra em cena a Revolução Industrial
com a descoberta e o desenvolvimento da máquina a vapor, de fiar e
de tear e as empresas se expandiram e o trabalho, que antes era ma-
nual, passou a ser mais rápido, eficiente e produtivo. O trabalho do
homem foi substituído pelo das mulheres e das crianças. Nesta épo-
ca, prevalecia a lei do mercado, onde o empregador ditava as regras
sem a intervenção do Estado. (CASSAR, 2011, p. 15).
O Século XIX é marcado pelo desenvolvimento do imperia-
lismo europeu e através do colonialismo e da emancipação das co-
lônias acontece a ocidentalização do mundo. E, nas últimas décadas
do século, França, Alemanha, Inglaterra e Rússia, numa corrida ar-
mamentista desenfreada, se lançam pelo mundo. Importante lem-
brar das aberturas dos canais de Suez e Panamá, que interligam o
Mediterrâneo e os mares da Ásia, Atlântico e Pacífico. As linhas de
ferrovia Expresso-Oriente, Transamérica e Transiberiana ligam os
continentes. Dessa forma, a economia tornou-se mundial.
Neste contexto, verifica-se que os elementos constitutivos do
capital, quais sejam, capital monetário e mercantil e a produção de
mercadoria, remontam centenas de anos na história, onde foram
parte subordinada de sistemas específicos de controle do metabolis-
mo social, que prevaleceram em seu tempo. Mas nos últimos séculos,
quando o capital tomou forma de capitalismo burguês, conseguiu
garantir sua dominação como um sistema social global. Desvinculou
seus antigos componentes orgânicos dos elos dos sistemas orgânicos
precedentes e demoliu as barreiras que impediam o desenvolvimen-
to de novos componentes vitais. Percebe-se que o capital garante sua
dominação como um sistema orgânico global, como produção gene-
ralizada de mercadoria. (MÉSZÁROS, 2009, p. 09).
Morin (2003) destaca que a Europa havia espalhado a fé no
progresso pelo planeta inteiro. O progresso era identificado como

- 181 -
a própria marcha da história humana. Esta fé era o fundamento da
ideologia democrático-capitalista ocidental, na qual o progresso
prometia bens e bem-estar. Mészáros (2009) destaca que, desta for-
ma, o capital emergiu e triunfou sobre seus antecedentes históricos,
abandonando todas as considerações sobre as necessidades huma-
nas, desenhando-se a forma historicamente específica do sistema
capitalista: a versão capitalista burguesa.
Esta versão adotou o irresistível modo econômico de extração
de sobretrabalho como mais-valia estritamente quantificável. “Este
foi o modo mais dinâmico de realizar a expansão do sistema vitorio-
so.” (MÉSZÁROS, 2009, p. 03).
Entre 1863 e 1873, o comércio multinacional, cuja capital é
Londres, torna-se um sistema unificado. Esta mundialidade do mer-
cado é a expansão mundial do capitalismo, que toma forma de siste-
ma de controle do metabolismo social.
Este processo torna-se cada vez mais conflituoso a ponto de
eclodir a Guerra de 1914 a 1918, desencadeada por interações entre
grandes imperialismos e pequenos nacionalismos. Dessa forma, a
queda da Europa dá início a uma nova fase, na qual o progresso pre-
gado eclode em duas grandes guerras mundiais que fizeram regredir
as nações mais avançadas.
Nesse contexto, a economia mundial busca se redescobrir até
que a crise de 1929 revele o desastre da solidariedade econômica.
Nesse momento, um quarto da mão de obra dos países industrializa-
dos está desempregada. (MORIN, 2003, p. 42).
Boschetti (2016) conta que, na virada do século XIX para XX
predominavam o liberalismo e a crença no livre mercado, mas após a
crise de 1929 foram minimizados com a expansão do padrão fordis-
ta-keynesiano, da corrida armamentista e com a expansão do Estado
Social.
Na década de 1930, novos conflitos se instauram, o que eclode
na Segunda Guerra Mundial e, em 1945, o exército japonês invade
a China.
“Dos 100 milhões de homens e mulheres envolvidos no conflito
mundial, 15 milhões de homens armados foram mortos e houve 35
milhões de vítimas entre os civis; somente as duas bombas atômicas
lançadas em Hiroshima e Nagasaki causaram 72 mil mortos e 80 mil
feridos, encerrando com um trágico e prolongado massacre mun-
dial”. (MORIN, 2003, p. 40).

- 182 -
Com o final da Segunda Guerra, o planeta se polariza em dois
grandes blocos que iniciam uma Guerra ideológica sem remissão.
Em 1947, começa a Guerra Fria. O Globo muda de rosto com des-
membramentos e a liquidação dos impérios coloniais. O Terceiro
Mundo surge sob a forma de novas nações e o capitalismo se restau-
ra, após a década de 1970, sob a hegemonia neoliberal, pretenden-
do que o Estado não tenha nenhuma intervenção no mercado e na
economia.
No final do século XX, as manifestações das contradições ca-
pitalistas se estabelecem, desenhando, no cenário mundial, o que se
chamará de crise estrutural do capital.
Nesse contexto, destacam-se as implicações da crise estrutural
e da crise orgânica do capital para os direitos e as políticas sociais
na particularidade do capitalismo dependente brasileiro, que iniciou
seu desenvolvimento quando a economia mundial já estava consti-
tuída sob a hegemonia de forças imperialistas.
Diante disso, Beck (2010) pergunta: “Não deveríamos estar
discutindo o fato de que, desde o começo da industrialização, as
ameaças – fome, epidemias e catástrofes naturais - reduziram con-
tinuamente?
Mészáros (2009) explica que o sistema capitalista, em todas
as suas formas, tem sua expansão orientada e dirigida pela acumu-
lação, por isso, o que está em questão não é um processo delineado
pela satisfação das necessidades humanas. A questão é a expansão
do capital como um fim em si, servindo à preservação de um sistema
que não poderia sobreviver sem constantemente afirmar seu poder
como um modo de reprodução ampliado. Este sistema possui uma
estrutura hierárquica de subordinação do trabalho ao capital e este
antagonismo estrutural é irreformável e incontrolável.

CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL E CRISE ECOLÓGICA

Mészáros (2009) afirma que o mundo conhece uma crise his-


tórica sem precedentes, uma crise estrutural, profunda do próprio
sistema do capital que afeta o conjunto da humanidade.
Boschetti (2016) conta que, desde o seu início, o capitalismo
passou por crises gerais, as quais, na perspectiva marxiana, consti-
tuem uma manifestação das contradições capitalistas em sua inces-

- 183 -
sante busca de superlucros e superacumulação. A diferença entre
uma crise e outra é o grau de desenvolvimento do capitalismo, da
forma de organização das classes sociais e da hegemonia política no
âmbito do Estado.
A particularidade importante apresentada pela crise contem-
porânea, que teve início em 2008, é que o sistema capitalista se depa-
rou com uma manifestação da crise jamais experimentada: o encon-
tro com seus próprios limites intrínsecos.
A consequência disso foi que a economia, a demografia, o de-
senvolvimento, a ecologia se tornaram problemas de todo o mundo.
O capital, da forma como se impôs, determinou degradações múl-
tiplas e hoje a morte paira na atmosfera prometida ao aquecimento
devido ao efeito estufa (BECK, 2010, p. 230).
Duas escolas pretendem explicar a crise atual: a que explica
as crises pelo subconsumo das massas, ou seja, a superprodução de
bens de consumo, e a que explica pela superacumulação, que é a in-
suficiência de lucros para expandir os bens de capital (BOSCHET-
TI, 2016, p. 109). Mas Mandel (1990) explica que as duas escolas
cometem o erro de separar os dois elementos intimamente ligados
no modo de produção capitalista. Para o autor, as crises de supera-
cumulação e superprodução são complementares e indissociáveis às
relações de produção capitalista (BOSCHETTI, p. 109-110).
No mesmo sentido, Marx identifica que, no decorrer das cri-
ses do capitalismo, manifestam-se as suas contradições. É o momen-
to em que aparecem os antagonismos estruturais provocados pela
busca implacável de superlucros. E isto acontece por que “a essência
da produção capitalista será sempre de buscar o crescimento da pro-
dução, sem se preocupar com os limites do mercado, as possibilida-
des de consumo e as necessidades dos trabalhadores” (BOSCHETTI,
2016, p. 110).
Mas não se pode esquecer de identificar o que o fenômeno de
aparecimento da crise, seus detonadores, sua causa mais profunda e
sua função lógica imanente do modo de produção capitalista como
Mandel (1990) chamou à atenção:

• Fenômeno de aparecimento da crise:


Manifestação da queda da taxa de lucros. Se expressa na su-
perprodução, que se expressa na separação produção de mercado-

- 184 -
ria e existência de poder de compra dessas mercadorias. Então, essa
venda insuficiente gera a redução do emprego, das rendas, dos inves-
timentos etc.

• Elemento detonador da crise:


É o que desencadeia o movimento cumulativo de escândalos
financeiros, falências de empresas etc.

• Causas da Crise:
Com o crescimento, o aumento da composição orgânica do
capital é a causa da crise. A composição orgânica do capital é a corre-
lação entre a composição valor e a composição matéria ou técnica do
capital. Aquela composição corresponde à proporção entre capital
constante e capital variável. Esta composição trata-se da proporção
entre a massa dos meios de produção utilizados e o montante do
trabalho exigido para seu emprego.

O aumento da composição orgânica do capital é inevitável


porque com o crescimento há o progresso técnico, o que substitui a
mão de obra com a utilização das máquinas e acontece, também, a
ampliação dos investimentos em conjunturas favoráveis. Mészáros
(2009) explica que nenhum dos elementos constitutivos do sistema
orgânico do capital necessitou ou foi capaz de confinar a si mesmo as
restrições de autossuficiência.
Boschetti (2016) afirma que as causas da crise se fundamen-
tam na contradição essencial da produção capitalista. E neste senti-
do, explica Mandel (1990): “pode-se dizer, assim, esquematicamente,
que o superinvestimento provou uma superacumulação, que gerou
por sua vez um subinvestimento e uma desvalorização massiva de
capitais”.
Mandel (1982) afirma que mais importante do que compreen-
der a essência das crises do capital é observar os elementos particu-
lares de suas expressões históricas, que são as contradições especí-
ficas da economia capitalista e da luta de classes. E, com esta visão
de Mandel (1982), é que se deve analisar a crise contemporânea do
capitalismo, chamada por Mészáros (2009) de crise estrutural do ca-
pital: “não se trata de mais uma crise, e sim de uma crise histórica,
econômica, social e ecológica” (Bensaïd, 2009).

- 185 -
Boschetti (2016) conta que as consequências da crise que teve
início em 2007/2008 já são conhecidas e impactam dolorosamente a
vida de milhões de trabalhadores em todo o mundo. E chama a aten-
ção para a afirmação de Chesnais (2008) de que a crise atual marca o
esgotamento de um modelo de crescimento.
Este esgotamento também acontece com o meio ambiente,
que se encontra desequilibrado e em completa extinção devido à
busca pela superprodução e superlucros do sistema capitalista.
Nesta perspectiva, identifica-se a crise ecológica como mani-
festação da crise estrutural do capital. E o esgotamento da natureza
é um aspecto inédito, ainda não enfrentado pelo sistema capitalista
nas crises anteriores.
Morin (2003) conta que o aspecto meta-nacional e planetário
do perigo ecológico surgiu com o anúncio da morte do oceano por
Ehrlich em 1969 e o Relatório Meadows, encomendado pelo Clu-
be de Roma em 1972. Após essas profecias apocalípticas mundiais,
houve um período de multiplicação das degradações ecológicas. Nos
anos 80, surgiram grandes catástrofes locais com amplas consequên-
cias, contaminação das águas, envenenamento dos solos, chuvas
ácidas, entre outras ameaças reais à saúde e à vida na Terra. Surgi-
ram também problemas globais relativos ao planeta como um todo:
como emissão de CO2 que intensifica o efeito estufa, envenenamento
dos micro-organismos que efetuam o serviço de limpeza alterando
importantes ciclos vitais, decomposição gradual da camada de ozô-
nio da estratosfera e o buraco de ozônio da Antártida.
A partir de então, a consciência ecológica tornou-se tomada
de consciência do problema global e do perigo global que ameaçam
o planeta. As reações a esses perigos foram, inicialmente locais e
técnicas. Em seguida, Associações e Partidos Ecológicos se multi-
plicaram e Ministérios de Meio Ambiente foram criados em muitos
países (Morin, 2003).
Beck (2010) relaciona questão social e questão ecológica, afir-
mando que da mesma forma como no século XIX a questão social
foi colocada, hoje a questão ecológica deve ser apresentada: no plano
teórico e político a possibilidades de ação institucionais e de socieda-
de que correspondem ao contexto de seu surgimento:

“A questão da responsabilidade não era clara nos acidentes de traba-


lho no século XIX. Era o trabalhador quem causava o acidente por

- 186 -
que tinha mal introduzido seu braço, agora seccionado, na máqui-
na? Era responsabilidade do engenheiro que tinha concebido o par-
que das máquinas? Do empresário que tinha aumentado a cadência
delas? (Beck, 2010, p. 09).

Para o autor, o problema da responsabilidade da questão eco-


lógica deveria ser regulado como na questão social: com acordos
adquiridos por lutas e por contratos sociais, normas jurídicas. Es-
tas experiências históricas também devem ser aplicadas à ecologia.
Isto por que, partindo de um ponto de vista político e sociológico, a
questão ecológica é uma violação aos direitos fundamentais condi-
cionados e legitimados pelos sistemas. E isso acontece pelo desenvol-
vimento da indústria sob os holofotes da mídia e sob o olhar lúcido
de iniciativas cidadãs democráticas. “Poderíamos dizer, sem muito
exagero, que, diante da autodestruição programada pela indústria,
as formas e instâncias tradicionais de proteção aos direitos humanos
não têm muito peso” (BECK, 2010, p. 239).
A crise ecológica é a crise dos direitos fundamentais, uma
crise reprimida e atenuada pela prosperidade, cujos efeitos em lon-
go prazo que fragilizam a sociedade não podem ser subestimados
(BECK, 2010, p. 239).
Foster (2011) conta que Marx já entendia que a reestruturação
radical do modo predominante de intercâmbio e controle humano
seria o pré-requisito necessário para um controle efetivo das forças
da natureza, que são postas em movimento de forma cega e fatal-
mente autodestrutiva.

CIDADANIA, EMANCIPAÇÃO HUMANA E CRISE ECO-


LÓGICA

Bredariol (2006) lembra que, no decorrer da história da hu-


manidade, vários foram os entendimentos a respeito do conceito de
cidadania, o qual se originou na República Antiga. Cita a cidadania
em Roma que possuía um estatuto unitário pelo qual todos os cida-
dãos são iguais em direitos, direitos de estado civil, de residência, de
sufrágio, de casar, de herança, de acesso à justiça e todos os direitos
individuais que permitem acesso ao direito civil. Para o autor, naque-
la época, ser cidadão era ser membro de pleno direito da cidade, seus
direitos civis são plenamente direitos individuais.

- 187 -
Devido ao aperfeiçoamento do Estado, do Governo e do Ho-
mem o conceito de cidadania foi redefinido. Rousseau propôs o des-
locamento da soberania, que estava depositada nas mãos do monar-
ca, para o direito do povo mudando o conceito de vontade singular
do príncipe para vontade geral do povo. A soberania é a vontade
geral (BREDARIOL, p. 17).
Atualmente, a cidadania surge com a ideia de direitos, o cida-
dão tem o direito de ter direitos. Aparecem novas configurações so-
bre a natureza dos direitos como a autonomia sobre o próprio corpo,
a moradia e a proteção ambiental, surgindo a necessidade de desvin-
culação deste novo conceito de cidadania das estratégias dominantes
do Estado. “A nova cidadania não deseja apenas ser uma forma de
integração social indispensável para a manutenção do capitalismo,
ela deseja a constituição de sujeitos sociais ativos que definam quais
são seus direitos” (BREDARIOL, 2006, p. 45).
Boschetti (2016) conta que Marshall (1976) conjuga três ele-
mentos designados de direitos civis, políticos e sociais como base
estruturante da cidadania e demonstra que a relação entre ampliação
de ações sociais pelo Estado e a garantia de direitos sociais na socie-
dade capitalista possui um caráter reformista no sentido de reformar
o Estado na direção de manter sua natureza capitalista, mas ampliar
suas funções sociais.
E, quando se fala de crise ecológica como expressão contem-
porânea da crise estrutural do capital, verifica-se que a crescente ex-
tinção do meio ambiente saudável é uma limitação ao sistema capita-
lista. E a função do Estado Social, neste cenário, é a sua intervenção
na violência do capitalismo para com a destruição da natureza com o
objetivo principal de garantir a continuidade do sistema.
A primeira ação do Estado com relação ao meio ambiente
ocorreu em 1.972, na Conferência de Estocolmo2, convocada pela
ONU – Organização das Nações Unidas com a temática “Preserva-
ção do Meio Ambiente em nível Internacional”, buscando a desace-
leração do desenvolvimento industrial mundial, o que não foi muito
bem recebido e aceito pelos países desenvolvidos nem pelos países
em desenvolvimento (CANABARRO; QUINTEIRO, 2015, p. 21).
Diante da ideia mal sucedida de preservação e consequente
desaceleração do desenvolvimento, a ONU - Organização das Na-
2 Foi na Conferência de Estocolmo, em 1972, que, pela primeira vez, o Meio Ambiente
foi discutido como um Direito Humano.

- 188 -
ções Unidas convocou uma Conferência na cidade do Rio de Janeiro,
RJ denominada Conferência de Cúpula da Terra - ECO-92, com a
finalidade de compatibilizar a atividade humana com um equilíbrio
dos fatores componentes do meio ambiente, dentre os quais se inclui
o homem, com a sua natural necessidade de transformar o mun-
do exterior3 (MAZZUOLI; IRIGARAY, 2009, p. 50). O conceito de
Desenvolvimento Sustentável foi, então, introduzido como forma de
justificar a continuidade da produção.
Restou claro que, ao mesmo tempo em que se discutiam for-
mas e mecanismos por meio dos quais se pudesse preservar o meio
ambiente e promover o desenvolvimento sustentável, buscava-se
também, com grande intensidade, a dinamização do comércio in-
ternacional com a abertura de mercados e o livre comércio, no con-
texto de vários foros negociadores internacionais, como a Rodada
Uruguai da Organização Mundial do Comércio (OMC); o Tratado
Norte-Americano de Livre Comércio (North American Free Trade
Agreementn – NAFTA); o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL)
e a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) (DRUMMOND,
2012).
Verifica-se que o Estado amplia sua função social de responsá-
vel pelo meio ambiente e, ao mesmo tempo, garante condições para
o desenvolvimento do capitalismo. Isto é realizado por meio da im-
plementação de ações capazes de:
• Oferecer à sociedade segurança com relação à crise ecoló-
gica, no sentido de que as ameaças e os riscos ambientais estão sob
seu controle;
• Apresentar alternativas capazes de demonstrar que produ-
ção capitalista pode continuar sem prejuízos ainda maiores ao meio
ambiente.

Estas ações têm sido realizadas por meio da imposição da


ideia de que o desenvolvimento sustentável é a solução para permi-
tir a continuação da exploração do meio ambiente, como forma de
ampliar a produção introduzindo a ideia de que, mesmo assim, a so-
ciedade contemporânea deixará um meio ambiente equilibrado para
3 Mais tarde, outras Conferências foram convocadas pela ONU para o aperfeiçoamento
do conceito de desenvolvimento sustentável: Conferência de Cúpula Mundial do Desen-
volvimento Sustentável – Rio+10 e Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvi-
mento Sustentável – Rio+20.

- 189 -
as futuras gerações4.
Desta forma, o Estado amplia suas ações sociais mantendo sua
natureza capitalista. Nestas ações, pode-se identificar o que Mandel
(1982) previu, quando conceituou o Estado Social como “o conjunto
destinado a providenciar as condições gerais de produção”.
Esta realidade de garantias, direitos e ações apresentada pelo
Estado frente à crise ecológica e à crise estrutural do capital demons-
tra claramente que a cidadania e a emancipação humana não se con-
fundem. Como bem assevera Boschetti (2016), a conquista de direi-
tos não é necessariamente o caminho para a emancipação humana:

O reconhecimento formal de direitos, se, por um lado, possibilitou a


melhoria de condições de vida, por outro, também revelou o quan-
to é incompatível à igualdade substantiva e à emancipação huma-
na com a cidadania burguesa, contrariando suposições, como a de
Marshall (dentre outras), para quem a cidadania é capaz de supe-
rar a desigualdade. Não são poucas as análises que, ao incorporar a
perspectiva marshalliana de cidadania, veem a conquista de direitos
como o caminho para a emancipação humana, confundindo cida-
dania com emancipação humana. (BOSCHETTI, 2016, p. 49-50).

Significa dizer que a promoção da proteção ao meio ambiente


como um Direito Humano e as inúmeras políticas públicas que le-
vam ao desenvolvimento sustentável não modificarão a expansão do
capital em busca da acumulação. Como bem já explanado alhures
por Mészáros (2009), o processo de expansão do capitalismo não é
delineado pela satisfação das necessidades humanas.
Neste contexto, pode-se identificar que cidadania (fundada
no Estado Social capitalista como direitos civis, políticos e sociais)
é um pressuposto da sociabilidade capitalista, é determinante na sua
reprodução e não implica em conflito ou redução de desigualdades
de classe.
Boschetti (2016) assevera que a conquista legal-institucional
da emancipação política ou da cidadania burguesa, no contexto pós-
-crise de 1929 e depois da Segunda Guerra Mundial revelou a essên-
cia contraditória do Estado Social Capitalista.
Da forma como os Estados (por meio da ONU - Organização
das Nações Unidas) tratam a questão ambiental, não reconhecem os
direitos de cidadania (principalmente o direito a uma vida digna e de
4 O documento final elaborado na Rio+20 foi intitulado de “O Futuro que Queremos”.

- 190 -
desfrutar de um meio ambiente equilibrado). Para que estes direitos
possam ser efetivamente reconhecidos é necessário que apareça uma
nova sociedade, onde se tenha uma maior igualdade nas relações
sociais e, consequentemente, um novo sentido de responsabilidade
pública. É necessário que os cidadãos sejam reconhecidos como su-
jeitos de direitos de interesses válidos, de aspirações pertinentes e de
direitos legítimos.
A forma como vem sendo conduzida a questão da crise ecoló-
gica, os cidadãos não assumem seu papel de cidadão e o Estado não
reconhece as reais ameaças que estão por vir sobre a terra com a con-
tinuidade da destruição ambiental. Com esta análise, percebe-se o
significado do Estado Social no capitalismo e sua impossibilidade de
superar as desigualdades por meio dos direitos sociais (BOSCHET-
TI, 2016, p. 45).

GLOBALIZAÇÃO, NEOLIBERALISMO E NEODESEN-


VOLVIMENTISMO

O neoliberalismo trata-se de uma doutrina socioeconômica


que retoma os antigos ideais do liberalismo clássico. Pretende a mí-
nima intervenção do Estado na economia, com a sua total retirada
do mercado, que deve se autorregular e regular a ordem econômica.
Para o neoliberalismo, o Estado forte é oneroso e a sua presença na
sociedade prejudica e limita o comércio e impede a expansão da li-
berdade econômica. O neoliberalismo pretende que o Estado seja
tão somente um garantidor da infraestrutura necessária para o per-
feito desenvolvimento do comércio.

“É uma doutrina que entende que o bem-estar pode ser alcançado a


partir da libertação das competências individuais em um contexto
de proteção aos direitos de propriedade privada e livre comércio e
mercado”. (PESSOA MULATINHO, 2016, p. 202).

O efetivo desenvolvimento do neoliberalismo ocorreu na dé-


cada de 1970 e início de 1980 com a liberalização da economia chi-
nesa e a tomada do poder de Margaret Thatcher na Grã-Bretanha
e Ronald Reagan nos EUA, quando as transformações requeridas
pelo neoliberalismo foram colocadas em prática por todo o mundo
(HARVEY, 2008, p. 34).

- 191 -
A busca do sistema capitalista pelo objetivo de ser um siste-
ma global totalmente abrangente é finalidade perseguida desde o seu
início procurando “demolir todos os obstáculos que permaneciam
no caminho de sua plena expansão” (MÉSZÁROS, 2009).
Mészáros (2009) explica que a característica perseguida pelo
capitalismo, qual seja sua expansão global, faz parte da sua configu-
ração vital e é completamente desprovida de sua formação estatal. E
aponta que esta é uma grande contradição, claramente visível, por
que o sistema inexoravelmente global e desenfreado é uma determi-
nação intrínseca do próprio sistema. Portanto, o capitalismo, neces-
sitando de ações do Estado para justificar e garantir a exploração do
meio ambiente, demonstra sua incapacidade para atingir a lógica ob-
jetiva da irrefreabilidade do sistema em suas últimas consequências.
E quando o capitalismo dá as mãos ao Estado, necessitando
que este realize a sua função social de garantir a proteção ao meio
ambiente como forma de justificar a produção e a exploração, o sis-
tema capitalista encontra os seus próprios limites intrínsecos.
Mészáros (2009), ao analisar o capital do século XX, conta que
foi forçado a aceitar a hibridização – presença do Estado no processo
socioeconômico de produção – como forma de superar suas crises.
Com relação à crise ecológica, o capital busca no Estado a ga-
rantia de sua expansão e isso acontece sempre em doses maiores,
e a tendência é aumentar esta dependência devido ao fato de que
a natureza está no limite do esgotamento e a qualquer momento a
sociedade pode sentir-se ameaçada, a tal ponto que as políticas do
desenvolvimento sustentável atuais não servirão mais para justificar
a violenta exploração do meio ambiente pelo capital.
Neste contexto, o avanço da cidadania social representa mais
do que um conjunto de direitos sociais, a cidadania deve possibilitar
aos cidadãos a influência efetiva nos rumos do Estado. Mas esta pos-
sibilidade vem sendo extinta pelas práticas neoliberais e pela globali-
zação. Desta forma, o problema da possibilidade de influência efetiva
dos cidadãos nos rumos do Estado a capacidade transformadora da
cidadania aliada à democracia será aniquilada (BALIBAR, 2013, p.
14).
É necessário que o Estado apresente uma postura coerente e
verdadeira com relação à crise ecológica. Isto aconteceu com a Con-
ferência de Estocolmo, de 1972, já citada, quando a realidade do

- 192 -
meio ambiente foi apresentada e a solução foi a redução da produção
com a preservação do meio ambiente. Desta forma, garante-se o di-
reito a uma vida digna e um ambiente ecologicamente equilibrado.
Agindo em favor do capital, sendo utilizado pelo sistema para
garantir a continuidade da exploração ambiental, o Estado passa a
ser instrumento para disfarçar as manifestações da crise com políti-
cas que levam todo o povo a erro com relação à crise ecológica que se
instaurou. Passa a ser, também, instrumento para o neoliberalismo
que ressacha a intromissão no mercado e na economia, mas o busca
para superar a crise.
Diante das contradições do sistema, agora em evidência por
causa da crise estrutural que se instaurou, aparece o neodesenvolvi-
mentismo que pretende combinar desenvolvimento econômico com
redistribuição de renda, conciliando o desenvolvimento social. Bres-
ser-Pereira (2010) explica que o neodesenvolvimentismo não nega
a intervenção estatal, mas restringe a coordenação da esfera econô-
mica.
Globalização, neoliberalismo e neodesenvolvimentismo são
faces do sistema capitalista que pretendem garantir o desenvolvi-
mento do capital buscando tão somente a máxima lucratividade. O
meio ambiente, mesmo sendo findo e apresentando sintomas de es-
gotamento e ameaças reais e graves que podem eliminar a vida sobre
a Terra, não é o suficiente para frear as violentas investidas do capi-
talismo para alcançar a acumulação lucrativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mandel (1982) afirmou que mais importante do que com-


preender a essência das crises do capital é observar as particulari-
dades das suas expressões históricas, que são as contradições espe-
cificas de cada momento. E a crise ecológica experimentada pela
humanidade é uma expressão contemporânea da crise estrutural do
capital, que iniciou em 2008. É uma expressão das diversas contradi-
ções do sistema capitalista que, com seu crescimento, desregula seus
próprios elementos.
Com o avanço da tecnologia e da indústria, a natureza foi ex-
plorada como um bem pertencente ao capital, que deveria servi-lo
para possibilitar ainda mais a acumulação e a superexploração, até

- 193 -
chegar o momento da sua estagnação e possibilidade de extinção da
vida humana na Terra.
Conforme alerta Mészáros (2009), o fato de o capitalismo li-
dar desta forma com a ecologia não provoca a mínima estranheza,
mas o fato de pretender a todo o tempo demonstrar os benefícios de
um Estado-moderno-industrial não pode ser o motivo pelo qual a
sociedade vai ignorar a crise ecológica que o capitalismo gerou.
Neste contexto, a cidadania deve ser exercida de forma a bus-
car a efetiva garantia dos direitos fundamentais a uma vida digna e
a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Mas a crise eco-
lógica da forma como é apresentada pelo capitalismo faz com que o
Estado se posicione para a garantia da produção. E o pior é que ga-
rante a produção sob a nomenclatura de ações sociais para proteção
do meio ambiente.
Isto deixa clara a distinção prática de cidadania e de eman-
cipação humana, eis que o Estado age e reconhece os direitos dos
cidadãos, mas isso não garante a emancipação da exploração huma-
na. Ainda mais quando se trata da realidade do Brasil, um país que
vive o capitalismo dependente e que ainda não se desvencilhou das
características de uma colônia de exploração.
Mas todas as necessidades humanas, neste trabalho apresen-
tada em forma de crise ecológica, não importa ao capitalismo que
tem como única finalidade o lucro e a acumulação. A natureza e seu
esgotamento servirão ao capitalismo até seu último suspiro e a pos-
sibilidade de vida na Terra será também manipulada pelo capital.
Isto já é sentido com a globalização e com o desenvolvimento
de doutrinas chamadas de neoliberalismo e neodesenvolvimentis-
mo, que pretendem utilizar o Estado a favor do desenvolvimento do
capitalismo.

REFERÊNCIAS

BECK, Ulrich. A política na sociedade de risco. Revista Ideias. v. 1,


n. 2., p. 230-252. Campinas, 2010.
BALIBAR, Étienne. Ciudadanía. Buenos Aires: Adriana Hidalgo
Editora, 2013.
VIEIRA Liszt; BREDARIOL, Celso. Cidadania e Política Ambien-

- 194 -
tal. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.
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mentismo na América Latina. Texto para Discussão. n. 275. São
Paulo, nov. 2010.
CANABARRO-QUINTEIRO, Mariele Schmidt. A Sustentabilidade
do Agronegócio: contradições do Município de Lucas do Rio Ver-
de-MT. Cuiabá, 2015.
CASSAR, Vólia Bomfim.  Direito do trabalho. Niterói: Impetus,
2011.
DANTAS, Rodrigo. A grande crise do capital. Cadernos de Ética e
Filosofia Política. 14 p. 47-72, 2009.
DRUMOND, Valéria Abritta Teixeira. Ciências Sociais Aplicadas.
2012.
DUARTE, Pedro Henrique Evangelista; GRACIOLLI, Edílson José.
A teoria da dependência: interpretações sobre o (sub) desenvolvi-
mento na América Latina. V Colóquio Internacional Marx e Engels,
Campinas: UNICAMP, 2007.
FOSTER, John Bellamy. A ecologia de Marx: materialismo e nature-
za. Tradução de Maria Teresa Machado. 3 ed. Rio de Janeiro: Civili-
zação Brasileira, 2011.
GROS, Denise Barbosa. Institutos liberais e neoliberalismo no
Brasil da Nova República. 2002.
HARVEY, David. O Neoliberalismo: história e implicações. São
Paulo: Edições Loyola, 2008.
MANDEL, Ernest. O Capitalismo Tardio. São Paulo: Nova Cultu-
ral, 1982.
MAZZUOLI, Valério de Oliveira; IRIGARAY, Carlos Teodoro Hu-
gueney. Novas Perspectivas do Direito Ambiental Brasileiro: vi-
sões interdisciplinares. p. 66-50. Cuiabá: Cathedral, 2009.
MÉSZÁROS, István. A Crise Estrutural do Capital. 2009.
MORIN, Edgar e KERN, Anne Brigitte. Terra Pátria. Traduzido
do francês por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre: Sulina,
2003.

- 195 -
PESSOA MULATINHO, Juliana. Neoliberalismo e neodesenvolvi-
mentismo: Construção e desconstrução da cidadania no Brasil. Re-
vista Direito e Práxis. v. 7, n. 14., 2016.
TONET, Ivo. Expressões socioculturais da crise capitalista na
atualidade. In: Serviço Social: direitos sociais e competências pro-
fissionais. Brasília: ABEPSS/CFESS, 2009.

- 196 -
A NOVA POLÍTICA ENTRA EM CENA: TRAJE-
TÓRIA E ATUALIDADE DA NOVA DIREITA NA
AMÉRICA LATINA NO SÉCULO XXI1
Ruteléia C. de Souza Silva2

1. QUE TEMPOS SÃO ESSES?


Não é novidade que no século XXI o mundo tem experimen-
tado novos tempos de extremismos políticos, que chamam a aten-
ção por sua semelhança aos projetos presentes desde as décadas de
1970 e 1980 e que expressaram a guinada mais à direita de governos
de diversas nações. Como um projeto intelectual, relatam Drolet e
Wiliams (2018), esses projetos contaram com movimentos e atores
geograficamente localizados na Europa e frequentemente vincula-
dos à Nouvelle Droite (Nova Direita3) francesa, fundada em 1968 por
Alan de Benoits, Dominique Venner e outros militantes da direita,
intelectuais associados ao Goupement de recherche et d’etudes pour la
civilisation européene (GREECE)4, cuja agenda refletia os múltiplos
realinhamentos ideológicos gerados pelas revoluções culturais e cri-
ses econômicas que sacudiam muitas sociedades ocidentais à época.
A influência deste grupo alcançou também aliados e inter-
locutores intelectuais na Itália, com a Nuova Destra; na Alemanha,
com o Neue Rechte; e em outros países da Europa central e ocidental,
bem como na Rússia contemporânea e em outras partes da antiga
União Soviética. Já nos Estados Unidos (EUA), a nova direita foi in-
1 Os dados e análises contidas neste capítulo fazem parte dos estudos realizados no âm-
bito da pesquisa Trabalho, pobreza e desigualdade social na atual geopolítica latino-a-
mericana.
2 Assistente Social. Mestre e Doutora em Política Social pela Universidade Federal do
Espírito Santo. Docente do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Gra-
duação em Política Social da Universidade Federal de Mato Grosso (PPGPS/UFMT).
Coordenadora do PPGPS/UFMT. Membro do grupo de pesquisa Trabalho e Sociabilida-
de. E-mail: rute.as@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4393932625470768. Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-1833-9040.
3 O termo nova direita, esclarece Pereira (2020, p. 7), “[...] designa um conjunto de prin-
cípios, ideias e práticas morais, resultante da fusão do neoliberalismo econômico com o
neoconservadorismo político, social e cultural, o qual configura um feroz ataque capita-
lista ao Estado Social e à democracia [...]”.
4 Grupo de Pesquisa e Estudo para a Civilização Europeia (Tradução nossa).

- 197 -
timamente influenciada pelo movimento paleo conservador, liderado
por intelectuais como Paul Gottfried, Sam Francis e Mel Bradford.
Gottfried cunhou esse termo durante os primeiros anos da década
de 1980, em um esforço para revitalizar a velha direita e combater
a crescente influência neoconservadora e neoliberal considerada,
muitas vezes, como nova direita nos EUA e Reino Unido (DROLET;
WILIAMS, 2018).
No entanto, ainda que a nova direita no cenário político global
tenha sido um dos movimentos políticos mais marcantes dos últi-
mos anos, sua legitimidade se concretiza por meio da manipulação
da linguagem e da interpretação superficial da realidade, que repro-
duzem consciências falsas/ilusórias das estruturas da sociedade do
capital.
A nova direita tem, portanto, sua ascendência e legitimidade,
neste novo século, relacionadas ao desenvolvimento de poderosos
quadros que atuam como aliados de oportunidades políticas e que
se manifestam pelo uso contínuo da manipulação, como pode ser
observado no movimento atual que conta com grupos políticos e
partidários em alguns países do globo, como Estados Unidos, Reino
Unido, França e em países da América Latina.
Desde os primeiros anos deste novo século, a nova direita tem
movimentado campanhas de forma a difundir suas ideias, de modo
a apresentar uma nova proposição que solucionaria seus desconten-
tamentos e desalentos, e angariaria eleitores para seus projetos polí-
ticos. Dentre estes, estão institutos, centros de estudo, revistas, think
tanks, que se articulam em ações pelo mundo afora, pois o capital
não admite fronteiras.
Sob a face da democracia liberal, constrói-se uma blindagem
que passa a dominar as decisões tomadas em órgãos estratégicos es-
tatais que passam a regular os núcleos políticos de decisão, como o
parlamento, os bancos centrais, os meios de comunicação, os par-
tidos, o poder judiciário, as organizações não governamentais, as
thinktanks5. No campo destas últimas, dentre as mais conhecidas
no cenário atual, está a norte-americana Atlas Economic Research
Foundation, organização sem fins lucrativos conhecida como Atlas
Network (Rede Atlas), cuja atuação ganha notoriedade em diversos
5 A utilização desse termo se tornou recorrente a partir dos anos 70, com a difusão de
instituições da sociedade civil, supostamente autônomas e de interesse social, voltadas
para a elaboração de consensos nas esferas política, econômica e científica.

- 198 -
países da América Latina, por meio do apoio e patrocínio a outras
instituições
Assumindo o discurso em torno da necessidade de reforçar os
movimentos de oposição libertária, essas instituições, de fato, procu-
ram reinventar a política. Mas ao invés de algo novo, esses movimen-
tos procuram dar maior robustez aos interesses do capital e conso-
lidar, de uma vez por todas, a guinada do pensamento conservador
liberal e a hegemonia norte-americana no cenário mundial. Por meio
dessas instituições, a nova direita começa a patrocinar e a promover
a formação de atores que se organizam para ocupar espaços públicos
e defender as suas posições sobre temas morais, identitários, de re-
gulação da atividade econômica, do papel do Estado e a hegemonia
branca, masculina e cristã. E nesse percurso, a nova direita também
vai se apropriar das estratégias de manipulação das redes sociais, que
se transformam em meios de comunicação em massa.
Da Europa às Américas, lideranças políticas da nova direita,
contando com a contribuição de manipuladores políticos6 e peritos
em mídia social espalhados mundo a fora, passam a aperfeiçoar e
a moldar a mensagem a ser disseminada, radicalizando a sua opo-
sição à democracia e ao socialismo. E não apenas: radicalizam os
discursos de ódio, as polarizações e as posturas negacionistas, como
também negam direitos humanos, manipulam e institucionalizam a
mentira, como práticas necessárias à normalidade política. Em nome
dessa normalidade, passam a perseguir: “[...] todas as formas e ex-
pressões do pensamento crítico e inventam a divisão da sociedade
entre o bom povo, que os apoia, e os diabólicos, que os contestam
[...]” (CHAUI, 2019, s.p.), além de defender a limpeza ideológica, so-
cial e política da sociedade.
Com esse discurso, lideranças políticas da nova direita alcan-
çam vitórias políticas nos pleitos eleitorais em diversos países: Donald
Trump, nos Estados Unidos; Jair Bolsonaro, no Brasil; Vladimir Putin,
na Rússia; Narendra Damodardas Modi, primeiro-ministro da Índia;
Shinzō Abe, ex-primeiro-ministro do Japão; e Viktor Mihály Orbán,
primeiro-ministro da Hungria; governos que contaram e ainda con-
tam com o apoio de neonazistas no parlamento alemão, de neofascis-
tas no italiano e de regimes autoritários que estão “[...] tomando forma
na Turquia e no Leste Europeu [...]” (BROWN, 2019, p. 9).
6 Como o estrategista americano, Steve Bannon; o guru bolsonarista, Olavo de Carvalho,
e Alexandr Dugin, conselheiro do líder russo, Vladimir Putin.

- 199 -
Nesse momento, é possível questionar: qual conexão existente
entre as ponderações até aqui apresentadas e o movimento de ascen-
são da nova direita na América Latina?

2. A ESPETACULOSA GUINADA DA NOVA DIREITA NA


AMÉRICA LATINA

Desde o final dos anos 70, a América Latina tem experimenta-


do cenários distintos entre seus países, em grande parte resultante da
heterogeneidade político-partidária predominante nesta região, in-
cluindo sistemas partidários, historicamente, frágeis, como é o caso
de El Salvador, Peru, Venezuela e Guatemala. Em uma roupagem
abertamente autoritária e, em alguns casos, tensionada pelo terroris-
mo de Estado, a guinada mais à direita à época, demarca o desprezo
pela democracia liberal, ao mesmo tempo em que escancara a voca-
ção autoritária a partir de diversos argumentos nacionalistas.
Ao longo dos anos 80 e 90, o quadro complexo e diverso dos
partidos latino-americanos sofre clivagens importantes que alteram,
significativamente, a configuração do sistema político desses países.
No plano ideológico, desde o início do século XX, a América Latina
se manteve fiel à divisão guiada e impulsionada pelas pautas vigen-
tes na Europa e, sobretudo, pelos Estados Unidos (CUEVA, 1989;
CRUZ, 2015), favoráveis à intervenção das grandes potências inter-
nacionais na economia do continente, bem como à adoção de polí-
ticas neoliberais que se alastraram pela região a partir do final dos
anos 80, alcançando países como Peru, México, Brasil e Argentina
(ANDERSON, 1995).
Na esteira do ideário neoliberal e de contrarreforma do Esta-
do, a América Latina adentra, ainda no final do século XX, em um
período de fortalecimento de partidos e de novos arranjos e acordos
conservadores. Embora estes, no final desse século, se vejam obri-
gados a se escamotear – procurando se desvencilhar da memória
recente dos regimes autoritários – adotando um discurso mais mo-
derado, incluindo até mesmo, em sua agenda, propostas que simu-
lam o apoio a uma pauta mais progressista, ainda estão impregnados
de valores morais, da defesa das liberdades individuais, do mercado,
da meritocracia, do Estado mínimo (para o social), da eficiência da
máquina pública, acrescidos do culto à repressão e à militarização.

- 200 -
O fato é que, com a chegada do novo século (XXI), já em seus
primeiros anos, a nova direita no continente latino-americano
terá um papel de destaque, sobretudo, a partir do momento
que a burguesia se vê obrigada a apresentar um conjunto de
respostas diante da polarização da luta de classes em meio ao
contexto de aprofundamento da crise capitalista sobre a eco-
nomia da região. E ainda que no início deste século, alguns países
dessa região tenham experimentado uma guinada mais à esquerda,
grupos, movimentos e partidos políticos identificáveis com
​​ a nova
direita ganham novo fôlego, embora esta identidade, em um primei-
ro momento, não seja assumida nem por eles próprios.
Esse é um momento histórico de fragilidade dos projetos
nacionais, propício para que as burguesias latino-americanas,
mais uma vez, possam entregar os anéis para preservar os de-
dos, alinhando-se ao hegemonismo e à dominação americana,
cuja essência, além de impor uma posição ainda mais subal-
terna da região na divisão internacional do trabalho, aprofun-
da os antagonismos sociais, as expropriações, o desemprego,
a transferência do fundo público, a precarização das políticas
sociais e a repressão contra as classes subalternas.
Em cada país, a retórica de ataques à democracia repre-
sentativa assume características próprias, segundo as estrutu-
ras internas e as particularidades da luta de classes em cada
sociedade nacional. No entanto, ainda que guardadas suas par-
ticularidades, tem se tornado unanimidade uma guerra aberta
às iniciativas populares, mediante a reiterada criminalização
e intimidação dos movimentos sociais, sempre acompanhada
da militarização da ordem pública, de uma cruzada moralista/
conservadora e da ofensiva ideológica liberal e anticomunista.
Dentre as mudanças que se gestaram na América Latina, em
março de 2010, a eleição do empresário Sebastián Pìñera como Pre-
sidente no Chile, em uma disputa com Michelle Bachelet, o que indi-
ca o revés sofrido pelos governos mais progressistas, que passaram a
ceder espaço para partidos e movimentos mais à direita, que encon-
tram um terreno bastante fértil para a expansão de seus ideais em
diversos níveis de governos e de representação social.
Dois anos mais tarde, em junho de 2012, forças direitistas con-
seguiram aprovar o impeachment do presidente paraguaio Fernando

- 201 -
Lugo. Também no ano de 2012, Nicolas Maduro – vice-presidente
da República Bolivariana da Venezuela –, assume interinamente a
presidência, logo após a vitória eleitoral de Hugo Chávez, afastado
em razão de grave enfermidade. E em 2013, Michelle Bachelet sai vi-
toriosa na disputa com Sebastián Pìñera, reassumindo a presidência
entre os anos de 2014 e 2017.
Já o ano de 2016 é marcado pelo impeachment de Dilma Rou-
sseff no Brasil. Enquanto o ano de 2017 é marcado pela eleição, em
abril, de Lenin Moreno como Presidente do Equador, que rapida-
mente rompe com o antecessor, Rafael Correa, e com sua política
progressista; e, em outubro, do declaradamente conservador Mau-
ricio Macri na Argentina, pondo fim ao ciclo de mandatos do casal
Kirchner.
Ainda no ano de 2017, no Chile, Piñera vence o pleito eleitoral
na disputa com o candidato governista Alejandro Guillier, reassu-
mindo o mando em 2018 até 2021. E no final de 2018, Jair Mes-
sias Bolsonaro é eleito Presidente do Brasil para o período de 2019 a
2022. De um modo geral, o Quadro a seguir (1) apresenta um dese-
nho das mudanças ocorridas nos países da América Latina a partir
dos anos 2000.

- 202 -
Quadro 1. Desenho político-partidário dos governos latino-americanos,
considerando os últimos anos da década de 1990 aos dias atuais.

Governos Partido
País Filiação Ideo-
Presidente Mandato Legenda
lógica
Centro-
Carlos Menem 1989-1999 Partido da Justiça
Esquerda
Partido União
Fernando de La Rúa 1999-2001 Esquerda
Cívica Radical
Partido União Cívi-
Adolfo Rodriguez Saá 2001 Esquerda
ca Radical
Centro-
Eduardo Duhalde 2002-2003 Partido Justicialista
Argen- Esquerda
tina Centro-
Néstor Kirchner 2003-2007 Partido Justicialista
Esquerda
Centro-
Cristina Kirchner 2007-2015 Partido Justicialista
Esquerda
Proposta Centro-
Mauricio Macri 2015-2019
Republicana Direita
Alberto Angel Fer- Centro-Es-
2019-Atual Partido Justicialista
nández querda
Ação Democrática
Hugo Banzer 1997-2001 Direita
Nacionalista
Ação Democrática
Jorge Queiroga 2001-2002 Direita
Nacionalista
Movimento Nacio-
Gonzalo Sánchez de Centro-Es-
2002-2003 nalista Revolucio-
Lozada querda
nário
Carlos Diego Mesa Frente Esquerdista
2003-2005 Esquerda
Bolívia Gisbert Revolucionária
Presidente da Supre-
Eduardo Rodríguez 2005-2006 -
ma Corte
Movimento para o
Evo Morales 2006-2019 Esquerda
Socialismo
Movimento Demo-
Jeanine Áñez 2019-2020 Direita
crático Social
Luis Alberto Arce Movimento para o
2020-Atual Esquerda
Catacora Socialismo
continua...

- 203 -
Governos Partido
País
Presidente Mandato Legenda Filiação Ideológica
Partido da Social
Fernando Henri-
1995-2003 Democracia Bra- Centro- Direita
que Cardoso
sileira
Luís Inácio Lula da Partido dos Traba-
2003-2011 Esquerda
Silva lhadores
Brasil Dilma Vana Rou- Partido dos Traba-
2011-2016 Esquerda
sseff lhadores
Michel Miguel Movimento Demo-
2016-2019 Centro
Elias Temer crático Brasileiro
Jair Messias Bol-
2019-Atual Sem Partido Direita
sonaro
Eduardo Frei Partido Democrata
1994-2000 Direita
Ruiz-Tagle Cristão
Partido Socialista do
Ricardo Lagos 2000-2006 Esquerda
Chile
Partido Socialista do
Michelle Bachelet 2000-2006 Esquerda
Chile
Partido da Renova-
Sebastián Piñera 2006-2010 Centro- Direita
ção Nacional
Chile Partido Socialista do
Michelle Bachelet 2014-2018 Esquerda
Chile
União Democrática
Independente (UDI)
Partido Regionalista
Sebastián Piñera 2018-Atual Independente Direita (*)
Democrático (PRI)
Partido da Evolução
Política (Evópoli).
Andrés Pastrana Partido Conserva-
1998-2002 Centro- Direita
Arango dor Colombiano
Partido Liberal
Álvaro Uribe Vélez 2002-2010 Centro-Esquerda
Colôm- Colombiano
bia Juan Manoel Partido Social da
2010-2018 Centro- Direita
Santos Unidade Nacional
Iván Duque Már- Partido Centro
2018-Atual Direita
quez Democrático
Miguel Angel Partido Unidade
1998-2000 Centro- Direita
Echeverria Social Cristiana
Abel Pacheco de la Partido Unidade
2000-2006 Centro-Direita
Espriella Social Cristiana
Oscar Rafael San- Partido da Liberta-
2006-2010 Centro-Esquerda
Costa chéz ção Nacional
Rica Laura Chinchilla Partido da Liberta-
2010-2014 Centro-Esquerda
Miranda ção Nacional
Luis Guilhermo Partido Ação Ci-
2014-2018 Centro-Esquerda
Solís dadão
Carlos Alvarada Partido Ação Ci-
2018-2022 Centro-Esquerda
Quesada dadão
continua...

- 204 -
Partido Comunista
Fidel Castro 1998-2008 Esquerda
de Cuba
Partido Comunista
Cuba Raúl Castro 2008-2018 Esquerda
de Cuba
Partido Comunista
Miguel Díaz 2019-Atual Esquerda
de Cuba
Frente Radical
Fabián Alarcón 1997-1998 Centro
Alfarista
Jamil Mahuad 1998-2000 Democracia Popular Centro- Direita
Gustavo Noboa 2000-2003 Democracia Popular Centro- Direita
Lucio Edwin Bor- Partido Sociedade
2003-2005 Direita
Equador búa Patriótica
Alfredo Palacio 2005-2007 Sem partido Sem partido
Rafael Correa 2007-2017 Partido Alianza País Esquerda
Lenín Moreno 2018-2020 Partido Alianza País Esquerda
Movimento Criando
Guillermo Lasso 2021-Atual Direita
Oportunidades
Armando Cal-
1994-1999 ARENA Direita
derón Sol
Francisco Flores
1999-2004 ARENA Direita
Pérez
Elías Antonio
2004-2009 ARENA Direita
El González
Salva- Frente Farabundo
dor Carlos Mauricio
2009-2014 Martí de Liberta- Esquerda
Cartagena
ção Nacional
Frente Farabundo
Salvador Sánchez 2014-2019 Martí de Liberta- Esquerda
ção Nacional
Nayib Bukele 2019-Atual Grande Aliança Direita
(*) Coligação

Continua...

- 205 -

Governos Partido
País
Filiação Ideo-
Presidente Mandato Legenda
lógica
Álvaro Enrique Arzú Partido Nacional do
1996-2020 Direita
Irigoyen Avanço
Alfonso Portillo Ca- Frente Republicana
2000-2004 Direita
brera da Guatemala
Partido Nacional de
Óscar Berger 2004-2008 Direita
Solidariedade
Unidade Nacional da Centro-Es-
Álvaro Colom 2008-2012
Guatemala Esperança querda
Otto Pérez Molina 2012-2015 Partido Patriota Direita
Alejandro Maldonado 2015-2016 Sem partido Sem partido
Frente de Convergên-
Jimmy Morales 2016-2019 Direita
cia Nacional
Alejandro Eduardo
2020-Atual Partido Vamos Centro-Direita
Giammattei Falla
Partido FamiliaLa- Centro- Es-
René Préval 1996-2001
valla querda
Partido FamiliaLa- Centro- Es-
Jean Bertrand Aristide 2001-2004
valla querda
Boniface Alexandre 2004-2006 Presidente da Corte Sem partido
Haiti
René Préval 2006-2011 Lespwa Esquerda
Michel Martelly 2011-2017 ReponsPeyizan Centro- Direita
PartiHaïtienTèt Kale
Jovenel Moïse 2017-2021 Centro- Direita
Centro
Partido Liberal de
Carlos Roberto Flores 1998-2002 Centro- Direita
Honduras
Partido Nacional de
Ricardo Maduro 2002-2006 Direita
Honduras
Partido Liberal de
Manuel Zelaya 2006-2009 Centro- Direita
Honduras
Honduras
Partido Liberal de
Roberto Micheletti 2009-2010 Centro- Direita
Honduras
Partido Nacional de
Porfirio Lobo Sosa 2010-2014 Direita
Honduras
Juan Orlando Her- Partido Nacional de
2014-atual Direita
nández Honduras
Partido de Ação
Vicente Fox 2000-2006 Direita
Nacional
Partido de Ação
Felipe Calderón 2006-2012 Direita
Nacional
México
Partido Revolucioná-
Enrique Peña Nieto 2012-2018 Centro
rio Institucional
Movimento Regene-
Andrés López Obrador 2018-Atual Esquerda
ração Nacional
continua...

- 206 -
Partido Liberal Cons-
Arnoldo Alemán 1997-2002 Direita
titucionalista
Aliança pela Repú-
Enrique Bolaños Geyer 2002-2007 Direita
blica
Nicarágua
Frente Sandinista de
Daniel Ortega Saavedra 2007-Atual Esquerda
Libertação Nacional
Ernesto Pérez Balla- Partido Revolucioná- Centro- Es-
1994-1999
dares rio Democrático querda
Mireya Moscoso 1999-2004 Partido Arnulfista Direita
Partido Revolucioná- Centro- Es-
Martín Torrijos Espino 2004-2009
rio Democrático querda
Mudança Demo-
Panamá Ricardo Martinelli 2009-2014 Centro- Direita
crática
Juan Carlos Varela 2014-2019 Partido Panameñista Direita
Partido Revolucioná-
Laurentino Cortizo 2019-Atual Esquerda
rio Democrático
Raúl Cubas Grau 1998-1999 Partido Colorado Direita
Luis Ángel González
1999-2003 Partido Colorado Direita
Macchi
Nicanor Duarte Frutos 2003-2008 Partido Colorado Direita
Paraguai Centro- Es-
Fernando Lugo 2008-2012 Aliança Patriótica
querda
Federico Franco 2012-2013 Partido Liberal Centro
Horacio Cartes 2013-2018 Partido Colorado Direita
Mario Abdo Benítez 2018-Atual Partido Colorado Direita
continua...

- 207 -
Governos Partido
País
Filiação
Presidente Mandato Legenda
Ideológica
Alberto Fujimori 1990-2000 Cambio 90 Direita
Centro- Es-
Valentín Paniagua 2000-2001 Ação Popular
querda
Alejandro Toledo 2001-2006 Peru Possível Centro
Aliança Popular
Centro- Es-
Alan García Pérez 2006-2011 Revolucionária Ame-
querda
ricana
Peru Partido Nacionalista Centro- Es-
Ollanta Humala 2011-2016
Peruano querda
Pedro Pablo Kuc- Peruanos para Mu- Centro-
2016-2018
zynski dança Direita
Peruanos para Mu- Centro-
Martín Vizcarra 2018-2021
dança Direita
José Pedro Castillo-
2021-Atual Peru Livre Esquerda
Terrones
Partido da Libertação Centro- Es-
Leonel Fernández 1996-2000
Dominicana querda
Partido Revolucioná- Centro- Es-
Hipólito Mejía 2000-2004
rio Dominicano querda
República Do- Partido da Libertação Centro- Es-
Leonel Fernández 2004-2012
minicana Dominicana querda
Partido da Libertação Centro- Es-
Danilo Medina 2012-2020
Dominicana querda
Luis Rodolfo Abi- Partido Revolucioná- Centro- Es-
2020-Atual
nader rio Moderno querda
Julio María Sangui- Centro-Di-
1995-2000 Partido Colorado
netti reita
Centro-Di-
Jorge Batlle 2000-2005 Partido Colorado
reita
Partido Frente Am- Centro- Es-
Uruguai José Mujica 2010-2015
plio querda
Partido Frente Am- Centro- Es-
Tabaré Vázquez 2015-2020
plio querda
Luis Alberto Aparicio
Centro-Di-
Alejandro Lacalle 2020-Atual Partido Nacional
reita
Pou

continua...

- 208 -
Partido Socialista
Hugo Chávez 1999-2000 Esquerda
Unido da Venezuela
Partido Socialista
Hugo Chávez 2000-2002 Esquerda
Unido da Venezuela
Pedro Francisco 12 a Golpe de
Carmona Estanga 13/04/2002 Estado
Venezuela
Diosdado Cabello 13 a Golpe de
Rondon 14/04/2002 Estado
Partido Socialista
Hugo Chávez 2002-2013 Esquerda
Unido da Venezuela
Partido Socialista
Nicolás Maduro 2013-Atual Esquerda
Unido da Venezuela

Fonte: Elaboração própria (2021).

Os dados consolidados no Quadro 1 apontam que entre os


vinte países da América Latina listados, na maioria há a promoção
de eleições periódicas e alternância partidária e, consequentemente,
alternância ideológica no poder. Nesses vinte países, dos Presidentes
com mandato atual, em dez países (Brasil, Chile, Colômbia, El Sal-
vador, Equador, Guatemala, Haiti, Honduras, Paraguai e Uruguai)
os governantes possuem fortes nuances de direita e, outros dez, se
aproximam da esquerda (Argentina, Bolívia, Costa Rica, Cuba, Mé-
xico, Nicarágua, Panamá, Peru, República Dominicana e Venezuela).
O fato é que desde os anos 2000, o eleitorado dos países lati-
no-americanos buscou candidatos à Presidência que, pelo menos no
plano do discurso, se colocavam como alternativa aos partidos de
inspiração neoliberal, como aconteceu, por exemplo, na Venezuela
em 1998, com a eleição do militar Hugo Chávez; no Brasil, em 2002,
com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva; na Argentina, em 2003,
com a eleição de Néstor Kirchner.
Foi, portanto, na virada do século, que diversos países latino-
-americanos conseguiram certa estabilidade na configuração de seus
sistemas partidários, com registro de diversos países com governos
de programática mais progressista, com destaque para os sul-ame-
ricanos, como Bolívia, Equador, Paraguai, Uruguai, fenômeno co-
nhecido na literatura como pinkwave (onda cor-de-rosa) (DOMIN-
GUEZ; LIEVESLEY; LUDLAM, 2011; FISCHER; PLEHWE, 2013)
ou como leftturn (virada à esquerda) (LEVITSKY; ROBERTS, 2011).
Esse fenômeno foi apresentado como o movimento político
sul-americano de ascensão de lideranças políticas progressistas e/ou

- 209 -
de esquerda, em contraposição às lideranças políticas da década de
1990, responsáveis por promover e consolidar o ideário neoliberal na
região. No entanto, essa onda cor-de-rosa ou essa virada à esquerda
sofre uma reversão já na segunda década do novo século e uma nova
guinada à direita se faz presente, com lideranças políticas progressis-
tas e/ou de esquerda substituídas por governos de direita.
Conforme declaram Verónica Giordano (2014) e o cientista
político chileno Cristóbal Rovira Kaltwasser (2014), em resposta à
virada à esquerda, a nova direita passa a adotar estratégias políticas
diferentes às adotadas entre os anos 80 e 90, e novos atores entram
em cena. Alguns desses atores estavam vinculados às thinktanks cria-
das ainda nos anos 1980 e que, nos anos 2000, renovaram seus qua-
dros, ganhando maior visibilidade, como o registrado com o Cedice
Libertad da Venezuela, que é considerado um dos mais importantes
thinktanks da América do Sul; e o LyD, que desde 2007 é conside-
rado o mais influente do Chile. Sem deixar de mencionar o papel
exercido pela Fundación Pensar, de Buenos Aires, incorporada pelo
PRO, partido do ex-presidente argentino Mauricio Macri; o Eléutera
Foundation, em Honduras; e, no Brasil, o Movimento Brasil Livre
(MBL), o Instituto Liberal e o Instituto Millenium.
Essas thinktanks, além de contribuirem para a criação de re-
des articuladoras latino americanas, como a Red Liberal de America
Latina (Relial), criada em 2004, e a Fundación Internacional para La
Libertad (FIL), fundada em 2002 e presidida por Mario Vargas Llosa,
intelectual e candidato à presidência do Peru em 1990, contribuírem
para a articulação dessas com organizações de direita na Europa,
como a alemã Friedrich Naumann Stiftung e a espanhola Fundación
para el Análisis y los Estudios Sociales (FAES), vinculada ao Partido
Popular da Espanha.
Mas as thinktanks não se apresentam de forma homogênea,
existem as que, ao invés da articulação, atuam de forma individual,
distante da política concreta, produzindo e popularizando a doutri-
na pura. Algumas destas se dedicam à guerra de ideias no campo
de orientações distintas, como o embate entre a Escola Austríaca
de Ludwig von Mises e o monetarismo da Escola de Chicago, sob
a influência de Friedrich Hayek. No entanto, ambas se convergem
em um objetivo comum: assegurar a ampliação das taxas de lucro e
da acumulação de capitais. Nesse sentido, convergem quando atri-

- 210 -
buem aos gastos infindáveis com aqueles considerados pelo marxis-
mo cultural como necessitados, perseguidos ou oprimidos, sendo estes
responsáveis por todos os males – colapsos econômicos, endivida-
mento público e fragilidades financeiras – de um Estado inchado e
regulador.
Outras, por sua vez, se dedicam à consultoria no campo das
políticas públicas e, ainda, existem aquelas que vão além das ativi-
dades intelectuais, como as que têm mobilizado segmentos em prol
da luta pela liberdade no Brasil, os mesmos que deflagraram a guerra
cultural contra os intelectuais de esquerda, como os Grupos afiliados
ao Atlas: Venha para a Rua (Vem Pra Rua / VPR); Estudantes pela Li-
berdade (EPL); e o Movimento Brasil Livre (MBL), todos participan-
tes da mobilização que levou milhões de pessoas às ruas em 2013.
Além dessas mobilizações no Brasil, ocorreram também: Oc-
cupy Wall Street, nos Estados Unidos, as realizadas pelos Indignados,
na Espanha, assim como outras realizadas mundo a fora. Elas trans-
formaram:

da praça Tahrir, no Egito, à praça do Sol, em Madri, da praça


Syntagma, na Grécia, ao parque Zuccotti, nos Estados Uni-
dos, passando pela praça Taksim, na Turquia, em palcos de
protestos majoritariamente compostos por jovens, convoca-
dos por meio de redes sociais, sem a presença de partidos,
sindicatos e organizações de massa tradicionais. [...] [Até] a
eclosão das manifestações na praça Taksim (e das revoltas de
junho no Brasil) o discurso hegemônico dos representantes
do fundamentalismo de mercado enquadrava esses movi-
mentos basicamente como protestos pela falta de emprego,
renda e democracia representativa, ou de uma combinação
desses elementos, ignorando os inúmeros conteúdos e agen-
das trazidos para as ruas, sobretudo o questionamento do
‘sistema’, essa velha palavra que sintetiza o modo de produção
econômico-político da sociedade. (ROLNIK, 2013, p. 23-24,
negritos nosso/grifos da autora).

O fato é que a convocação para essas mobilizações, tanto na


África, na Europa, na América Latina ou em qualquer outro lugar do
planeta, tem se deflagrado, em sua maioria, via redes sociais, colo-
cando essas redes sociais na rua, por meio de slogans e cartazes re-
produzidos, por exemplo, a partir de comentários de youtubers ou de
mensagens publicadas via Facebook, Twitter, Instagram e WhatsApp.

- 211 -
Nesse sentido, as novas tecnologias de informação e comuni-
cação, como é o caso das redes sociais, tem se constituído em impor-
tantes dispositivos para articulação de diversos atores políticos em
tornos de suas manifestações e reivindicações. E como expresso por
Sakamoto (2013, p. 234), as

[...] tecnologias de informação e comunicação, sobretudo as redes


sociais da Internet, não são apenas ferramentas de descrição, mas
sim de construção e reconstrução da realidade. Quando alguém
atua por meio de uma dessas redes, não está simplesmente repor-
tando, mas também inventando, articulando, mudando. Isto, aos
poucos, altera também a maneira de se fazer política e as formas de
participação social.

Em nome de uma nova política, através das redes sociais, pas-


sam a aglutinar e manipular uma multidão, seja na América Latina,
Ásia, Estados Unidos ou Europa, bombardeando a sociedade com
mensagens e filosofias que dão sustentação às suas ideias e garan-
tem sua ascensão e manutenção no campo do poder geopolítico. Ao
mesmo tempo em que disseminam mensagens individualistas, sen-
sacionalistas, que demonizam a intervenção do Estado, as políticas
sociais, o espaço público, os partidos e a política. Além de conclamar
medidas em defesa do mercado, do empreendedorismo e de figuras
que personificam a moral, os valores tradicionais e conservadores da
família.
Nos últimos trinta anos a América Latina, por exemplo, re-
gistrou um salto expressivo na população evangélica pentecostal que
se insere na agenda política e no debate público das normas sociais
por meio da criação de partidos evangélicos e/ou associações que, ao
assumir a bandeira pró-vida e pró-família, se aliam a grupos conser-
vadores católicos na luta contra a escola sem partido, a agenda gay e
a ideologia de gênero.
Enquanto a mídia tradicional e as novas tecnologias de infor-
mação e comunicação – principalmente, Facebook, Twitter, Blogs,
Youtube, Instagram e WhatsApp e páginas pessoais – se transformam
em estratégias de disseminação massiva de mensagens e filosofias
alinhadas ao seu campo ideológico e contrárias aos opositores co-
munistas/socialistas de esquerda – sob o discurso de uma crítica ao
globalismo e ao marxismo cultural – e discriminatórias de jovens, po-
bres, negros, mulheres e homossexuais.

- 212 -
E os impactos desse movimento, pouco a pouco, passam a
fazer parte da sociedade, alcançando desde as instituições, univer-
sidades e a grande mídia, até a militância política, além de se fazer
presente no discurso dos mais variados sujeitos. Tal propagação, no
entanto, ganha força por meio da utilização de bots, que são robôs
carregados por um tipo específico de programa computacional, que
realizam tarefas de forma autônoma a partir de algoritmos. Progra-
mados para executar uma série de funções, os bots nas redes sociais
são utilizados nos chats e para automatizar contas e perfis.
No cenário político – como registrado nas eleições presiden-
ciais dos EUA em 2016 – as contas controladas por robôs têm sido
usadas para promover engajamento político de usuários, fornecer
informações – muitas delas falsas – sobre temas de interesse público,
mas a partir de uma leitura particularista de quem as divulga. Nes-
se caso, os bots são usados para automatizar contas e perfis falsos,
como se fossem usuários comuns das redes sociais. Com tais carac-
terísticas essas contas e perfis são usados para alavancar conteúdos
e indivíduos de forma artificial e coordenada, estando programados
para seguir pessoas e até mesmo interagir em debates ou publicar e
curtir conteúdos.
Para além de perfis e contas automatizados, os bots são empre-
gados como instrumento de manipulação de movimentos políticos e
de radicalização de debates, produzindo entendimentos superficiais
sobre disputas e consensos para serem replicados em série. Assim,
conseguem criar a falsa impressão de que há uma enorme adesão a
determinado tema/posicionamento de interesse público. Com o uso
desses mecanismos para alavancar artificialmente a audiência, estes
têm sido utilizados massivamente em contextos eleitorais, principal-
mente, para disseminar processos de desinformação e manipulação
de opiniões, como tem ocorrido durante os pleitos eleitorais em di-
ferentes países.
De uma hora para outra, “[...] as redes sociais e inúmeros co-
municadores, guiados por teóricos da conspiração, [...]” se tornam
peças-chave na construção de “[...] uma narrativa capaz de fazer
ferver e depois direcionar [...] [um] caldeirão de emoções contra as
minorias, os políticos e as instituições democráticas. [...] marcas de
tempos loucos, violentos e doentios” (MANSO, 2020, p. 200).
Pautando a vida social a partir de seus interesses de classes,
reaquecem as ações bélicas e policialescas, investindo na despolitiza-

- 213 -
ção da vida pública, na intolerância, no extermínio, nos fundamen-
talismos e em paradigmas imperialistas garantidores da reprodução
ampliada do capital. Mobilizam partidos, movimentos e políticos
profissionais para disseminar seus ideais nas redes sociais, mediante
a propagação intencional e reiterada da mentira, e a naturalização
e banalização do ódio e da violência, com o uso abundante e recor-
rente de fakenews e de comunicações criminosas em massa, além do
aparelhamento dos órgãos de Estado.

3. MUITO MAIS DO QUE BRAVATAS


A segunda década deste novo século tem sido marcada pelo
avanço da nova direita enquanto alternativa à velha política. E se nos
primeiros anos do século XXI se operou um giro à esquerda, rapida-
mente a sociedade se deparou com uma nova guinada à direita. Em
meio a um clima progressista, a fórmula encontrada para se estru-
turar, foi se camuflar sob um discurso moderado. Dessa forma, as
direitas se reinventam.
Embora sua constituição seja um fenômeno de um momento
histórico recente, tendo sido exitosa ao reunir seguidores em torno
de seus postulados ideológicos, a nova direita, graças à manipulação
pública em massa e à penetração em diversas instituições mercantis
e espaços públicos, consegue avançar em seu projeto de dominação
e em sua legitimação popular.
Fazendo uso da desinformação transmitida através das redes
sociais – que se transformam em meios de comunicação e manipula-
ção em massa –, a nova direita procura forjar rapidamente sua posi-
ção sobre temas morais, identitários, econômicos, políticos, sociais,
culturais e ideológicos, além de propagar de forma intencional e rei-
terada a mentira, o ódio às diferenças; a naturalização e banalização
da violência. Nesse sentido, a novidade não é apenas a disseminação
de mensagens falsas como estratégia de sustentação de suas ideias e
de garantia de seu poder no campo do poder geopolítico, mas tam-
bém abarca posturas anti-imigração, xenófobas, sexistas, racistas,
islamofóbicas, violadoras de direitos humanos, moralistas, autoritá-
rias, nacionalistas, todas disseminadoras do ódio, do militarismo, do
preconceito, do moralismo e do conservadorismo cristão.
Certamente, ao invés da ruptura com a velha política, a nova
direita reforça o desprezo pelos direitos humanos e sociais e procura

- 214 -
dar maior robustez aos interesses do capital, de modo a consolidar,
de uma vez por todas, a guinada do pensamento conservador liberal
e a hegemonia norte-americana no cenário mundial. O fato é que
estamos diante de um cenário espetaculoso: se por um lado, a nova
direita procura se descolar dos contextos de ditaduras, por outro, por
meio de ameaças de ruptura, diretas e veladas, procura impor seu
modo de governo.
Para se opor, o caminho é não deixar de lado a luta de classes
e a organização política de atores comprometidos com a defesa do
acesso e alargamento dos direitos, na direção da emancipação hu-
mana, em contraposição à dominação ideológica e à exploração e
expropriação capitalista. O que requer uma forte confrontação social
e política, capaz de aglutinar forças populares ancoradas nas lutas e
resistências da classe trabalhadora, incorporando o conjunto dos mo-
vimentos sociais, dentre estes do movimento negro antirracista; das
comunidades indígenas e tradicionais; do movimento ambientalista
anticapitalista; e dos movimentos feministas e LGBTs; na luta con-
tra as múltiplas e reiteradas formas de exploração/opressão e domi-
nação. Sem, é claro, cair em ilusão de recuo das forças burguesas,
cujas concessões apenas são conferidas para aprofundar ainda mais
a nossa subalternidade. Logo, sem uma ruptura radical não há como
evitar o aprofundamento da barbárie.

REFERÊNCIAS

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su lucha contra laadversidad. In: Nueva Sociedad, n. 254, p. 34-45.
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que-hay-de-nuevo-en-las-nuevas-derechas>. Acesso em: 23 ago.
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in America’s “Left Turn”: A Framework for Analysis. LEVITSKY,
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MANSO, Bruno Paes. A república das milícias. Dos esquadrões
da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020.
PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Apresentação. PEREI-
RA, Potyara Amazoneida Pereira (Org.). In: Ascensão da nova
direita e colapso da soberania política: transfiguraçõesda po-
lítica social [versão online]. p. 07-09. São Paulo: Cortez, 2020.
ROLNIK, Raquel. MARICATO, Ermínia et al. Cidades rebeldes:
Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. [ver-
são digital]. p. 11-27. São Paulo: Boitempo/Carta Maior, 2013.
SAKAMOTO, Leonardo. Em São Paulo, o Twitter e o Facebook fo-
ram às ruas. MARICATO, Ermínia et al. In: Cidades rebeldes: Passe
Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. [versão digi-
tal]. p. 233-247. São Paulo: Boitempo/Carta Maior, 2013.

- 217 -
- 218 -
A APROPRIAÇÃO DO FUNDO PÚBLICO
PELO CAPITAL POR DENTRO DO SUS:
PARTICULARIDADES DE SUA EXPRESSÃO NO
ESTADO DE MATO GROSSO
Maria Salete Ribeiro1
Sandra Oliveira Teixeira2

INTRODUÇÃO

A construção do Sistema Único de Saúde (SUS) se move nas


contradições de um solo histórico marcado pela crise do sistema ca-
pitalista e suas particularidades na forma do Estado, na dinâmica
da luta de classes e na luta por direitos no capitalismo dependente.
Expressão desta particularidade é a inscrição da saúde na Constitui-
ção Federal de 1988, acompanhada pelo reconhecimento da “saúde
complementar”, um eufemismo para oferta de serviços de saúde por
meio de empresas privadas. Fruto de inúmeras disputas, forjada no
processo de “transição lenta, gradual e segura para o grande capital,
para os interesses conservadores, para a intransigente defesa da or-
dem estabelecida” (FERNANDES, 1994, p. 127), essa Constituição
abriu a possibilidade do fundo público, que financiava quase que ex-
clusivamente o capital (OLIVEIRA, 1990), passar a financiar a repro-
dução da força de trabalho, por meio de políticas sociais.
Um conjunto de estudos (GRANEMANN, 2011; OCKÉ-REIS,
2006) aponta várias formas de privatização da política de saúde: pla-
nos e seguros, gasto direto no pagamento de procedimentos, tercei-
rização, criação de organizações sociais e fundações privadas para
gerir os serviços. Essas privatizações são relevantes nichos lucrati-
vos e nos chama a atenção aquelas por dentro do SUS, onde parte
1 Assistente Social, Mestre em Política Social pela PUC/RS, Doutoranda no Programa
de Pós-Graduação em Política Social da UnB e Professora no Departamento de Serviço
Social da UFMT. E-mail: mariasalette02.msr@gmail.com.
2 Assistente Social. Mestre em Política Social pela UnB e Doutora em Serviço Social
(UERJ) e Ciência Política (Paris 8). Professora no Programa de Pós-Graduação em Po-
lítica Social e no Departamento de Serviço Social da UnB. E-mail: sandrateixeira@unb.
br.

- 219 -
do fundo público para reprodução da força de trabalho é repassa-
da às instituições privadas. Uma delas pode ser ilustrada pelo SUS
matogrossense, gerido por meio das Organizações Sociais da Saúde
(OSS), objeto da pesquisa da tese denominada “Estado, Fundo Pú-
blico e Privatização da Política de Saúde em Mato Grosso”, em fase
de elaboração.
Apresentamos neste artigo alguns resultados de primeira
aproximação referente ao financiamento desse sistema, que na tra-
jetória de mais de 30 anos tem sido sucateado e constrangido pelo
subfinanciamento, enquanto se amplia a saúde como mercado ren-
tável ao capital.
A análise tem por base a crítica da economia política, fundo
público e política estadual de saúde, nesse estado, caracterizado por
grandes latifúndios agroexportadores, “o maior produtor de soja do
Brasil” (EMBRAPA, 2021), estruturado sob múltiplas formas de vio-
lência e expropriação (FARIA, et al. 2015). Isso posto, para cumprir
a determinação da inserção do país na divisão internacional do tra-
balho que mantém e amplia sua condição de dependência (LOPES,
2020).
Em tempos de fortalecimento das forças do capital, sob a or-
dem neoliberal, de extrema regressividade à classe trabalhadora, de
intensificação da exploração de classe, mais severa na periferia do
capital, onde se mantém e se intensifica a condição de dependência,
mas que atinge também os países centrais (FONTES, 2010), o debate
sobre o tema ganha relevância e, com esta expectativa, organizamos
este texto em duas seções. Na primeira parte, discute-se o “Estado,
fundo público e a política de saúde no contexto da hegemonia do
capital fictício”. Em seguida, abordam-se algumas formas de privati-
zação da política de saúde, ilustradas com dados da pesquisa e, final-
mente, as conclusões.

ESTADO, FUNDO PÚBLICO E SUBFINANCIAMENTO


DO SUS NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

Apreender o Estado e o lugar do fundo público nas demandas
do trabalho e do capital na política de saúde, em um país periférico e
de inserção dependente na ordem capitalista neoliberal onde se situa
o Brasil, é desafiador. Em especial, identificar sua permeabilidade,

- 220 -
combinação de consenso e coerção, às demandas do trabalho, con-
forme Gramsci (1999; 2001), visto que se mantém como estrutura a
serviço do capital.

[...] o capitalismo monopolista, pelas suas dinâmicas e contradições,


cria condições tais que o Estado por ele capturado, ao buscar le-
gitimação política através do jogo democrático, é permeável a de-
mandas das classes subalternas, que podem fazer incidir nele seus
interesses e suas reivindicações imediatas [..]. (NETTO, 2009, p. 29).

Em determinada conjuntura de correlação de forças, favorável


ao trabalho, o Estado pode atender demandas da classe trabalhadora,
mas para salvaguardar o sistema, pois essa é sua função nessa ordem
societária. Como observa Osório (2017, p. 29), “se algo caracteriza o
Estado capitalista é a fetichização das relações de poder e domínio, o
que impede que essas relações apareçam tal como são”.

[...] O Estado é muito mais do que uma dominação de classes. Mas


é essencialmente dominação de classes. [...] é muito mais do que a
condensação de relações de poder, mas é fundamentalmente a prin-
cipal condensação das relações de poder. [...] é muito mais do que
as relações que conformam uma comunidade, mas é essencialmente
uma comunidade, porém ilusória. [...] é muito mais do que coerção.
Mas é principalmente violência concentrada (OSÓRIO, 2014, p.17).

A permeabilidade do Estado para absorver demandas do


trabalho, na ordem capitalista, efetivamente é uma realidade dos
países centrais em distintas experiências históricas, o Estado Social,
reconhecido pela característica que assume no processo de regulação
econômica e social no capitalismo monopolista ou tardio3, manten-
do sua natureza capitalista (MANDEL, 1982; BOSCHETTI, 2016),
pois nos países da periferia, ressalvadas as suas particularidades, pela
“camisa de força” do imperialismo4 e por seu desenvolvimento desi-
3 Capitalismo Tardio, nos termos de Mandel (1982), é um capitalismo maduro, em um
curso do desenvolvimento pleno das possibilidades do capital, considerado esgotado o
seu papel civilizatório (BEHRING, 2016).
4 O imperialismo é uma fase superior do capitalismo caracterizada pela: concentração
da produção e do capital levada a um grau tão elevado de desenvolvimento que criou
os monopólios, os quais desempenham um papel decisivo na vida econômica; fusão do
capital bancário com o capital industrial e a criação, baseada nesse “capital financeiro”
da oligarquia financeira; a exportação de capitais, diferentemente da exportação de mer-
cadorias [...]; formação de associações internacionais monopolistas de capitalistas, que
partilham o mundo entre si; partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas
(LENIN, 2011, p. 218).

- 221 -
gual e combinado5, o Estado é a estrutura que assegura a manuten-
ção da dependência e subordinação aos países capitalistas centrais6.
Em razão disso, são adotados mecanismos de transferência do valor
produzido nos países dependentes aos centrais, desde seu passado
colonial, para o processo de acumulação de países imperialistas. Para
compensar tais transferências da parcela de mais valor, nestes países
recorre-se à superexploração da força de trabalho (MARINI, 1973;
AMARAL; CARCANHOLO, 2012), o que inclui particularidades
desta superexploração para mulheres e mulheres negras (MARINI,
1978; GONZALEZ, 1982). Além destas determinações estruturais,
há também, como alerta Carcanholo (2018), determinantes histó-
rico-conjunturais que trazem possibilidades e limites às economias
dependentes, como as disputas de classe em torno do fundo público
e de políticas sociais.
O Estado que na ordem capitalista liberal se reconfigurou para
salvar o sistema em colapso, na crise de 19297; agravada pelas duas
guerras mundiais, mas principalmente, porque o sistema estava sob
ameaça. Como afirma Iasi (2017, p. 76-77), “a chave explicativa foi
a Revolução Soviética de 1917”, quando o sistema se viu ameaçado
“com o levante dos de baixo”. Para impedir os avanços, sob a orien-
tação do Keynesianismo8 aliado ao modelo de produção fordista9,
5 O desenvolvimento desigual e combinado, no curso do capitalismo, teoria de Trotsky,
de acordo com Löwy (1995, p. 77), considera que o capitalismo, à medida que se torna
um sistema mundial, torna-se uma totalidade concreta, contraditória e exclui “a possi-
bilidade de uma repetição das formas de desenvolvimento de diversas nações”. [...] A
desigualdade do ritmo, que é a lei mais geral do processo histórico, manifesta-se com
o máximo de vigor e de complexidade nos destinos dos países atrasados. [...] Desta lei
universal da desigualdade dos ritmos decorre outra que Trotsky denominou de lei do
desenvolvimento combinado (MANDEL 1982; CARCANHOLO, 2013).
6 Kalmring e Nowak (2018) trazem alguns elementos acerca do impulso ilimitado de
acumulação do capital e suas implicações para a periferia: subordinação de colônias a
uma divisão do trabalho internacional desvantajosa, desigual em termos de comércio e
transferência de riqueza do feudalismo a expansão espacial do capital.
7 A Crise de 1929, numa leitura crítica marxista, deve ser entendida como produção
do próprio sistema. “[...] derivada das leis de movimento do capital (baseadas na lei
do valor), originadas no aumento da composição orgânica do capital nas condições de
reprodução ampliada, de onde surge a lei da queda tendencial da taxa de lucro (COG-
GIOLA, 2009, p.176).
8 Doutrina de J. Keynes, “revisão da teoria liberal com a intervenção do Estado na eco-
nomia sempre que necessário, a fim de evitar a retração econômica e garantir o pleno
emprego. [...] constatação da necessidade de regulação do processo de valorização do
capital – como condição para a redução da instabilidade e a atenuação dos ciclos e das
crises” (FILGUEIRAS e DRUCK, 2010, p. 2).
9 O Fordismo encerra um debate extenso, quando não polêmico, conforme Ferreira
(1991, p. 4-5), [...] para alguns, ele é aproximadamente sinônimo de taylorismo, produ-

- 222 -
emerge o Estado sob diferentes formas, a depender do contexto e da
correlação de forças entre as classes. Do New Deal estadunidense, as
ditaduras militares e civil-militares na América Latina, África e Ásia
(IASI, 2017, p. 77).
Foi no contexto após a Crise de 1929, que o fundo público,
como argumenta Oliveira (1998, p. 19-20), “passou a ser pressuposto
do financiamento da acumulação de capital de um lado, e, de outro,
do financiamento da reprodução do trabalho, atingindo globalmente
toda a população, por meio dos gastos sociais” e tornou-se elemento
estrutural na acumulação do capital. Não como antivalor, mas como
condição fundamental no processo de valorização (BEHRING,
2017), envolvendo toda a sua capacidade de mobilização de recur-
sos para intervir na economia, seja por meio das empresas públicas,
pelo uso das suas políticas monetária e fiscal, como pelo orçamento
público (SALVADOR, 2012, p. 7), este, compósito do mais valor (tra-
balho excedente) e, sobretudo, de trabalho necessário, consideran-
do a regressividade da carga tributária brasileira (BEHRING, 2017;
SALVADOR, 2010). Com isso,

[...] não necessariamente a existência de salários indiretos na forma


das políticas sociais, com seus benefícios e serviços tem impactos
redistributivos, pois há que considerar que o trabalho paga a conta
efetivamente: produzindo mais-valia e sofrendo a “exploração tri-
butária”. (BEHRING, 2017, p. 11-12).

E atua na reprodução do capital como fonte no investimento


capitalista (subsídios e desonerações tributárias), na reprodução da
força de trabalho e nos meios de transportes, infraestrutura e pesqui-
sa, bem como na transferência de recursos para frações burguesas
mediante pagamento de juros e amortização da dívida pública (SAL-
VADOR, 2010).
O capitalismo contemporâneo marcado pela crise; neolibera-
lismo; mudanças na reestruturação produtiva; aumento da transfe-
rência de valor produzido pelo capitalismo periférico para apropria-
ção nos países centrais; o lugar do capital fictício10 na acumulação
ção em massa e linha de montagem. Para outros, se refere a um modo de vida global [...].
10 O que constitui o capital é a apropriação da mais-valia que é produzida pela força
de trabalho no processo produtivo, mas o primeiro adquire (no mercado) o direito de
se apropriar do resultado dessa produção. O capital portador de juros é uma primeira
etapa na autonomização da apropriação do valor frente à sua produção. É a inversão da
lógica produção apropriação de valor. Mais rigorosamente, é a autonomização da lógica

- 223 -
capitalista; as decisões político-econômicas de distintos governos
neoliberais e o avanço do conservadorismo aprofundaram a condi-
ção de dependência do Brasil (CARCANHOLO, 2018; BARROCO,
2010). E uma das particularidades dessa crise reside no aprofunda-
mento da lógica de valorização do capital fictício (CARCANHOLO,
2010).
Neste contexto, apresentado de modo breve, diversas frações
da classe trabalhadora na luta por direitos sociais e, com isso, no
acesso à parcela do fundo público, lidam com sucessivas derrotas.
Em síntese, observa-se monetarização/financeirização de políticas
sociais; vilanização e mercantilização/privatização da seguridade
social; focalização de políticas sociais; contrarreformas nos direitos
sociais (GRANEMANN; 2007; SALVADOR, 2010; BEHRING, 2008;
VIANNA, 2010; BOSCHETTI, 2016).
Mendes e Marques (2009), em acordo com as produções que
vimos dialogando, observam que a financeirização do capital e de
expansão da sua forma fictícia, conjuntamente com a reconfiguração
do Estado que se amplia para manter a ordem capitalista, são deter-
minantes no subfinanciamento crônico do SUS desde sua criação.
Alguns elementos histórico-conjunturais têm contribuído neste sub-
financiamento: morosidade e descaracterização do regulamento de
vinculação orçamentária para política de saúde (PIOLA et al., 2013);
não instituição do orçamento de Seguridade Social (GUARDIA,
1997; SALVADOR, 2010); apropriação do fundo público pelo capital
portador de juros e pelo capital fictício como elemento de desmonte
do financiamento da seguridade social e de valorização do capital
(SALVADOR, 2010; 2018; MENDES, 2015); renúncias tributárias
sobre contribuições sociais (SALVADOR, 2014; MENDES, 2015); in-
centivos públicos ao mercado de plano de saúde (OCKÉ-REIS et al.
2006); financiamento para fortalecer o complexo industrial da saúde
por intermédio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social (BNDES) (SANTOS, et al., 2013); o padrão de ajuste fiscal
permanente (BEHRING, 2019), com o uso de mecanismos (desvin-
culação de receitas, superávit primário, responsabilidade fiscal) de
da apropriação sobre a da produção de valor: “toda a conexão com o processo real de
valorização do capital se perde assim até o último vestígio, e a concepção do capital como
autômato que se valoriza por si mesmo se consolida” (Marx, 1988, v. 5). Essa autonomi-
zação da lógica da apropriação é, no entanto, meramente relativa. A cobrança da impos-
sibilidade de autonomização absoluta é feita, justamente, pelas crises (CARCANHOLO,
2010, p. 5-6; CARCANHOLO, 2009).

- 224 -
subtração de recursos da seguridade social (SALVADOR, 2010) e
constrangimentos de contas públicas nos estados e municípios; a au-
torização de exploração do capital estrangeiro nos serviços de saúde.
Acrescenta-se, ainda, medidas de ajuste fiscal: a ampliação do
tempo de vigência e do percentual da Desvinculação de Receitas da
União e sua extensão para estados e municípios e a instituição do
chamado “Novo Regime Fiscal”, que instituiu limite para as despesas
primárias por um período de 20 anos, mas não restringiu gastos com
juros e outras despesas financeiras. Com as mudanças na base de
cálculo do financiamento federal da saúde (IPEA, 2021; FIOCRUZ,
2019; MENDES; CARNUT; GUERRA, 2018), o SUS passado “sub-
financiamento crônico” (MARQUES, 2017; MARQUES e MENDES
2005) para o desfinanciamento (MENEZES, et al. 2019). A redução
de seus recursos, entre 2018 e 2019, foi na ordem de R$ 17,6 bilhões
(SANTOS e FUNCIA, 2020).
Por fim, esse cenário acompanha e reforça a saúde como mer-
cadoria, mediante incentivos diretos e indiretos do fundo público,
como destacado anteriormente, mas quem vem da década de 1960,
com a formação do complexo médico-empresarial, fase de expansão
do capital no país (CORDEIRO, 1980). Também se vê a descaracte-
rização da atenção primária, que passa a cumprir as recomendações
dos organismos internacionais para países periféricos como o Brasil,
transformando-se em “cesta básica para os pobres”. Na continuidade,
apontamos algumas expressões da privatização por dentro do SUS
em Mato Grosso (MT).

PARTICULARIDADES DO FUNDO PÚBLICO E PRIVA-


TIZAÇÃO NA POLÍTICA DE SAÚDE NO ESTADO DE
MATO GROSSO

As reflexões sobre o fundo público e o SUS em Mato Gros-


so, um Estado periférico, pela inserção tardia no projeto nacional
de “desenvolvimento”. Sob direção da ditadura empresarial militar,
a política de colonização foi nefasta às populações tradicionais (ne-
gros, índios, ribeirinhos etc.), expulsas de suas terras para dar lugar
aos colonizadores, em sua grande maioria, brancos, provenientes das
regiões sul do país, tem como seu resultado, a estrutura fundiária
concentrada, forte presença de grandes propriedades, altamente tec-

- 225 -
nificadas, fazendo parte de cadeias produtivas competitivas no mer-
cado de commodities mundiais (CARVALHO, 2013). Essa inserção
violenta e desigual, no curso da modernização, reflete as desigualda-
des estruturais, onde 44% da população vivem hoje em situação de
miséria (CIRCUITO MATO GROSSO, 2016). Contraditoriamente,
o celeiro do agronegócio torna o Estado o maior produtor nacional
de grãos, com uma participação de 26,9% no PIB nacional e como
maior consumidor nacional de agrotóxico (19% do usado no Bra-
sil). Esse modelo de agricultura ignora os desgastes dos recursos
naturais, tornando as práticas agrícolas poluidoras e degradadoras,
porém, mais lucrativas em curto prazo (PIGNATI, et al. 2007) e da-
nosas à saúde humana e ao meio ambiente.
O SUS em Mato Grosso está organizado em 16 regionais de
saúde, onde coexistem enormes desigualdades na capacidade ins-
talada e nos investimentos públicos e privados, entre as regiões do
agronegócio e as de baixo dinamismo econômico. A cobertura de
atenção básica à saúde está em torno de 75%, excetuando-se duas
regiões com cobertura de 50%. A atenção de alta complexidade é
concentrada na capital Cuiabá. A Rede de Urgência e Emergência
do SUS no Estado é formada por 101 unidades hospitalares, sendo
57 (cinquenta e sete) municipais, 8 (oito) estaduais, 1 (um) federal
e 35 (trinta e cinco) unidades privadas/conveniadas (CNES-DATA-
SUS, 2018). O modelo assistencial é o biomédico centrado na clínica
médica, na assistência à saúde atrelada aos níveis de especialidades,
apoio diagnóstico e terapêutico, gerando estrangulamento dos servi-
ços de saúde, retratada pela longa fila de espera (PEEPS-MT, 2019).
A análise do orçamento da Secretaria de Estado de Saúde de
MT, por subfunção, apenas ações finalísticas, conforme expresso no
Gráfico 1, mostra a redução ou estagnação dos recursos em todas
as subfunções, com exceção da subfunção “assistência hospitalar e
ambulatorial”, que aumentou em 42,42%, entre 2008 e 2018, passan-
do de R$ 605,8 milhões para R$ 862,8 milhões, tendo alcançado R$
1,186 bilhão em 2015.
Na modalidade fundo a fundo, os repasses do Estado aos mu-
nicípios para o cofinanciamento da Atenção Primária à Saúde (APS),
teve redução de 1,27% no período. Entre 2013 e 2017 teve oscilação
drástica nos valores liquidados, com destaque para 2014 e 2015, com
valores menores que R$ 50 milhões. Importante destacar que em 28

- 226 -
de dezembro de 2012, através da Lei n.º 9.870, o governador Silval
Barbosa reduziu em 50% os recursos do cofinanciamento da APS, e
só retornaram no governo Pedro Taques, regulamentado pela Porta-
ria n.º 107/2016/GBSES, de 23 de maio de 2016.
A análise no conjunto das subfunções finalísticas evidencia
que não houve ampliação significativa dos recursos para a saúde, e
sim uma priorização na atenção de média e alta complexidade, mer-
cado mais rentável ao capital.

Gráfico 1. Evolução do Orçamento da Secretaria de Estado de Saúde de


Mato Grosso por Subfunções* por fase de despesa. Todas as fontes (2008 -
2018).

Fonte: Elaborado a partir do SIG-MT e acessado em 24/12/20.


*Somente as subfunções finalísticas. Valores atualizados até julho de 2021 pelo IGP-DI/FGV.

No cenário matogrossense, o SUS tem sido uma estratégia


significativa para assegurar os cuidados com a saúde ou amenizar
a doença da força de trabalho à disposição do capital. A questão é
que um conjunto de setores “privados” tem sido o grande executor
e gestor dos serviços de assistências “ditos” públicos. O processo de
privatização ao longo das últimas duas décadas, no Estado, evidencia
que praticamente toda a área rentável da saúde, ou seja, a atenção à
saúde de alta complexidade é mercado da área empresarial da saúde
(COSEMS, 2010).
A totalidade dos recursos do Estado apresentada neste texto
não é executada diretamente pelas unidades estatais de saúde. Têm
sido adotados mecanismos de privatização por dentro do SUS, de-
nominados por “privatizações não clássicas”: “não se realizam pelo

- 227 -
mecanismo da venda típica, mas envolvem também no plano dos
argumentos uma afirmação de que tais mecanismos operarão como
mais e não menos Estado” (GRANEMANN, 2011, p. 54).
Tratam-se dos “novos modelos de gestão” do SUS, efetuados
através dos contratos de gestão e parcerias, mediante transferências
de recursos públicos para: Organizações da Sociedade Civil de Inte-
resse Público (OSCIP); Fundações Estatais de Direito Privado; Em-
presa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH e Organizações
Sociais da Saúde (OSS). As unidades federativas passaram a trans-
ferir serviços de saúde a entidades terceirizadas, tais como coope-
rativas, associações, entidades filantrópicas sem fins lucrativos (ou
com fins lucrativos) etc., qualificadas como OSS. A legislação que
cria e regulamenta as OSS permite que estas contratem funcionários
sem concurso público; que adquiram bens e serviços sem processo
licitatório e, ainda, sem a necessidade de prestar contas a órgãos de
controle internos e externos da administração pública, pois estas são
consideradas “atribuições privativas do Conselho de Administração
da OSS” (REZENDE, 2008). Como veremos a seguir, sob os auspí-
cios do gerencialismo, tais mecanismos possibilitam a transferência
de recursos da política de saúde diretamente para entidades priva-
das, cujas margens de lucro aumentam ainda mais mediante práticas
de corrupção e clientelismo.
Ao analisar o orçamento da Secretaria de Estado de Saúde,
no período delimitado à pesquisa 2008-2018, constatou-se o aumen-
to expressivo das despesas executadas na modalidade de aplicação
50 – Transferência a instituições privadas sem fins lucrativos, onde
também se inclui as OSSs e redução dos repasses fundo a fundo às
municipais. Essa redução ocorreu a partir de 2011 até 2016 (ATAS de
reuniões da CIB 2011-2012). A transferência para instituições priva-
das sem fins lucrativos, que foi de R$ 103,2 milhões em 2008, alcan-
çou R$ 587,0 milhões no ano de 2015. Com a ruptura dos contratos
com as OSSs a partir de 2018, se eleva os repasses fundo a fundo,
sendo importante ressaltar que nenhum dos hospitais do Estado dei-
xou de funcionar. Ao contrário, em 2019 foi estadualizado mais um,
o Hospital Santa Casa, sediado em Cuiabá.

- 228 -
Gráfico 2. Execução orçamentária da Secretaria de Estado de Saúde, por
Modalidade de Aplicação das despesas referentes à Sub-Função 302 - Am-
bulatorial e Hospitalar, período de 2008 a 2018, valor liquidado, todas as
fontes. Valores atualizados até julho de 2021 pelo IGP-DI/FGV.

Fonte: Elaborado a partir do SIG-MT e acessado em 24/12/20.


Observação: Transferência aos municípios - fonte 40 - fundo a fundo, alterada para fonte 41
em 201311.

No Estado de Mato Grosso, com a ausência de concurso pú-


blico desde 2002, a grande maioria da força de trabalho foi contrata-
da por empresas, terceirizadas. Conforme a fala do Secretário de Es-
tado de Saúde, em 2010 os hospitais regionais “eram uma miscelânea
de prestadores públicos e não públicos” e destacou que os serviços,
de limpeza; lavanderia; manutenção de equipamentos; veículos loca-
dos; segurança patrimonial; nutrição enteral e parenteral; manuten-
ção predial, tudo era terceirizado. Os “profissionais... tinha de tudo:
concursados, contratos temporários, parcerias com OSCIPs, cargos
comissionados, contratados via consórcios intermunicipais de saú-
de” (RELATÓRIO DA CPI DA SAÚDE, 2016, p. 92).
Com a contratação das OSSs em 2011, essa realidade não se
alterou, pois as múltiplas empresas continuaram a executar os servi-
ços, o Relatório da CPI das OSSs (2016, p. 308-310), dá uma dimen-
são dessa realidade, ao identificar 40 empresas prestadoras de ser-
11 Até o exercício de 2012, as transferências aos municípios eram classificadas na mo-
dalidade 40 – Transferência a municípios, conforme orientação no Manual Técnico de
Elaboração do Plano de Trabalho Anual e Orçamento – 2012. A partir de 2013, o Manual
Técnico de Orçamento pela Secretaria de Orçamento Federal incluiu a modalidade 41
- Transferências a Municípios - Fundo a Fundo, destinado às despesas orçamentárias
realizadas mediante transferência de recursos financeiros da União, dos Estados ou do
Distrito Federal aos Municípios por intermédio da modalidade fundo a fundo, distin-
guindo-se, assim, da modalidade 40.

- 229 -
viços, a trabalhar diuturnamente dentro de um hospital habilitado
em média complexidade com 52 leitos. Esta realidade se estende aos
demais hospitais geridos pelas OSSs, agravada pela falta de controle,

“Chamamos a atenção pela quantidade de Contratos firmados com


Pessoas Jurídicas (empresas de médicos que prestam serviços nos
hospitais) (anexo LIII), nos quais os valores não estão em confor-
midade com a produtividade, pois todo o processo de verificação e
produtividade não passou por fiscalização”. (RELATÓRIO DA CPI
DAS OSSs, 2016, p. 298).

Com o encerramento dos contratos das OSSs, em decorrência


das inúmeras ilegalidades e apontamentos dos órgãos de controle, o
último deles em janeiro de 2019, o Estado não realizou concurso pú-
blico e segue a executar as ações por meio de empresas terceirizadas.
Além das facilidades, pela ausência de fiscalização, para os lucros
espúrios, a lógica de mercado invade o SUS e o gerencialismo12 passa
a ser a palavra de ordem no SUS em MT, observada em documentos
oficiais como, por exemplo, os planos de saúde. O Plano Plurianual
(2012-2015) informa que “[...] a SES aderiu ao Programa Nacional de
Gestão Pública e Desburocratização do Ministério do Planejamento”
e a “saúde” passa a ser “o negócio” da organização e seus valores fo-
cados na “eficiência e eficácia e efetividade na aplicação dos recursos
públicos e resolutividade dos serviços” (SES-MT, 2013, p. 21).
As contrarreformas do Estado envolvem um conjunto de me-
canismos que dão organicidade à lógica e à expansão do capital e
se irradia para as demais dimensões da vida social a transformar
tudo em negócio. Essa indiferenciação ideológica entre o público e
o privado “[...] ao enfatizar a gestão e hipertrofiar o lugar da técnica
sobre a política, faz a política do capital. O gerencialismo reivindica-
do amputa e despolitiza as relações de classe presentes nas políticas
sociais” (GRANEMANN, 2011, p. 51) e visa o aumento da produ-
tividade com o objetivo de reduzir gastos do fundo público com os
trabalhadores e, com isso, se amplia o fundo público para o capital
(CISLAGHI, 2015).
Outros elementos presentes na privatização da política de saú-
de em MT referem-se ao clientelismo e à corrupção, sintonizados
12 O gerencialismo redefine a gestão administrativa na esfera pública, implicando a
incorporação de métodos, técnicas e instrumentos desenvolvidos na administração de
empresas, absorvendo princípios, noções e procedimentos voltados à busca de eficiência,
eficácia e resultados (PINTO, 2009).

- 230 -
com o sistema do capital. Como afirma Mészáros (2011, p. 25-26),
[...] não importa quão corruptas possam ser tais práticas, elas estão
plenamente em sintonia com os contra-valores institucionalizados
da ordem estabelecida [...]. Considerando o período da pesquisa, po-
dem-se ilustrar tais práticas nos governos Blairo Maggi (2003-2010)
e Silval Barbosa (2010-2015). Maggi inaugurou a onda de expansão
das privatizações, que na área da saúde ficaram em “stand by” no
governo anterior, Dante de Oliveira (1995-2002), que desencadeou
as contrarreformas do Estado em Mato Grosso, alinhado com o Go-
verno de Fernando Henrique Cardoso (FHC).
Dentre os subsídios estatais ao capital, vimos a ampliação
das renúncias fiscais, como ocorreu no regime militar, em 2003, no
governo Blairo Maggi, considerado o maior plantador de soja do
mundo, quando foi aprovado o Plano de Desenvolvimento de Mato
Grosso, Lei n.º 7.958, constando concessão de incentivos fiscais e ele-
vando o patamar de projeção de renúncia fiscal em 2003, conforme
Leis de Diretrizes Orçamentárias – LDOs, de aproximadamente R$
42 milhões para a projeção em 2019 de R$ 3,8 bilhões, concedidos
a diversos segmentos econômicos, inclusive às empresas do Grupo
Maggi. Investigações posteriores e depoimentos de governadores
apontaram o uso desta legislação para atos de corrupção (SILVA,
2020, p.158-159).
No governo Maggi, foram compradas três unidades hospi-
talares sucatas e nenhuma delas foi colocada em funcionamento
(RIBEIRO, 2011, p. 4). Também nessa gestão se regulamentaram as
OSSs, Lei Complementar n.º 150, de 08 de janeiro de 2004, e fo-
ram inauguradas as operações com as OSSs, com a transferência de
toda a assistência farmacêutica do Estado. Contrato esse denuncia-
do pelo Ministério Público por ausência de licitação e superfatura-
mento (OLHAR JURÍDICO, 2021). As OSSs só passaram a gerir os
hospitais de execução direta no nível estadual durante governo
Silval Barbosa, com adoção de forte discurso anti-SUS, como
pode ser constatado a seguir:

1) Dificuldades na Gestão dos Hospitais, sucateamento físico,


escassez de recursos, morosidade em processos licitatórios, inter-
mináveis; 2) Equipamentos Obsoletos, escassez de recursos, pro-
cessos aquisitivos morosos; 3) Fornecimento irregular de insumos,
centralização das compras (logística difícil); 4) Atraso na absorção

- 231 -
de tecnologias, descompasso na evolução tecnológica em relação ao
setor privado, perca da competitividade; 4) Irregularidades sanitá-
rias graves, incapacidade de faturamento, falta de protocolos e pro-
cessos padrão [...]. (Conselho Estadual de Saúde, Ata de reunião, 16
mar. 2011, p. 03-04).

Nessa visão, o Secretário de Estado de Saúde, então depu-


tado federal, Pedro Henry13, apresentou como alternativa a parceria
com as OSSs para a gestão dos serviços na rede estadual, ao afirmar
que a OSS: “[...] não aufere lucros e possibilita sair da burocracia que
o serviço público está imerso, e o que é mais interessante nesse pro-
cesso são a agilidade que se passará a ter e a redução de gastos que
vai gerar um saldo para repactuação” (Ata da reunião ordinária (CI-
B-MT, 10 fev. 2011, p. 4-5). Deflagrou o processo de qualificação das
OSSs sem nenhuma discussão com a sociedade, nem mesmo passou
pelo Conselho Estadual de Saúde14. Ao todo, as OSSs assumiram a
gestão dos sete hospitais de execução direta do Estado (RIBEIRO,
2011).
A CPI, concluída em agosto de 2016, identificou 55 irregulari-
dades na gestão das OSSs em Mato Grosso. Dentre elas, destacam-se
o direcionamento das licitações e a contratação de Organizações de
Saúde com precária análise técnica da gestão do SUS. A SES-MT não
se estruturou para fiscalização dos serviços e contratos milionários
se efetuaram sem nenhuma garantia de cumprimento, tendo cau-
sado um prejuízo de aproximadamente R$ 200 milhões aos cofres
públicos (RELATÓRIO CPI DAS OSSs, 2016). Pode-se concluir que
as OSSs geriram os hospitais de 2011 a 2019 sem a fiscalização do
Estado, pois este não estruturou um sistema de controle e monito-
ramento.
Flashes da condução da entrada das OSSs no Estado de Mato
Grosso e alguns de seus resultados constam do Relatório Final da
CPI das OSSs (2016),

13 Condenado no processo do mensalão e investigado na operação sanguessuga, da má-


fia das ambulâncias. O Governo Silval Barbosa, (governador preso durante a Operação
Sodoma I, em setembro de 2015, por fraude na concessão de benefícios fiscais, pagamen-
to de propina e lavagem do dinheiro arrecadado ilegalmente), atualmente, ainda cumpre
penaem regime domiciliar.
14 Ver matéria “A Assembleia legislativa aprova Terceirização da Saúde ‘em Regime de
Urgência’ numa jogada estratégica dos deputados da base aliada do governo” (OLHAR
DIRETO, 02 mar. 2011).

- 232 -
[...] a desorganização da SES-MT era tanta, que há relatos de diversos
pagamentos de fornecedores em duplicidades; valores retidos/
congelados (fixo) para desconto em folha de pagamento (referentes
ao quadro de pessoal, cedidos pela SES-MT); valores repassados na
íntegra, quando deveriam ser descontados os valores referentes ao
quadro de pessoal, cedidos pela SES-MT; lançamentos no FIPLAN
com históricos de fornecedores inexistentes [...]. A SES-MT não
fiscaliza, [...] não analisa a veracidade dos serviços cobrados, se fo-
ram realizados, se houve os procedimentos médicos, se não houve
maquiagem nos números, se as metas pactuadas foram cumpridas,
simplesmente pagam ou dão o famoso calote [...].

O comando da política de saúde no Estado de Mato Grosso


permanece sintonizado com a corrupção em 2019, quando mais
uma operação contra o crime organizado levou à prisão o ex-secretá-
rio de Saúde de Cuiabá, Huark Correia, que já foi secretário adjunto
na Secretaria de Saúde do Estado, e mais dois médicos e empresários.
A Ação Penal diz respeito à investigação das ações da Organização
Criminosa à frente das empresas Proclin e Qualycare por ativida-
des criminosas e tráfico de influência política e econômica (OLHAR
JURIDICO, 2021). Estas empresas constam como prestadoras de
serviços às OSSs e com inúmeras irregularidades constatadas pelos
órgãos de controle (RELATÓRIO DA CPI DAS OSSs, 2016).
Observadas as privatizações clássicas e não clássicas, pode-se
afirmar que o SUS em Mato Grosso, e por ele mesmo, é um nicho de
mercado e considerando que apenas 25% da população têm plano
de saúde (ANS, 2019), essa realidade, aliada ao processo voraz de
destruição dos poucos serviços existentes pela intensificação da cor-
rupção, dão uma dimensão do que tem passado aproximadamente
80% da população que depende do SUS (SES-MT 2018).

CONCLUSÃO

As reflexões aqui tecidas trazem indicativos de que o uso do


fundo público para financiar a reprodução da força de trabalho por
meio da política de saúde, não apenas reduz custos de empregadores
na compra desta força de trabalho, como contribui para o consumo
e atende algumas demandas de frações da classe trabalhadora, mas,
principalmente, é fonte de lucratividade às frações do capital.
Porque defender o SUS? Primeiro, porque 80% de distintas
frações da classe trabalhadora em Mato Grosso só têm acesso à saú-

- 233 -
de pelo SUS, num Estado de profundas desigualdades que incidem
diretamente na condição de (não) saúde da população.
A defesa do SUS como política pública de Estado, gestor di-
reto do SUS e demais políticas sociais universais, se faz sem a ilusão
de que possam causar rachaduras nessa ordem societária que tem no
Estado a sua construção mais universal, contraditoriamente, é arena
das lutas de classe e é possível e necessário resistir ao capital para
vislumbrar uma sociedade emancipada (CISLAGHI, 2015). [...] A
humanidade e a existência estão ameaçadas pela continuidade in-
definida da ordem do capital [...] o que falta é a entrada em cena de
uma classe social que se encontra calada e sequestrada por um pro-
jeto que não é seu (IASI, 2017, p. 83) e que não entrará sem saúde e
não terá saúde na sua forma mercantilizada.

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- 240 -
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE GÊNERO
NA SOCIABILIDADE DO CAPITAL1
Qelli Viviane Dias Rocha2
Sandra Oliveira Teixeira3

TEMPO DE SILÊNCIO
“O silêncio dos pobres não vem apenas da clausura cultural em que
vivem. Vem também da usurpação da palavra, do querer e do es-
perar por parte daqueles que, ao pretenderem generosamente ser
solidários, acabam impondo-lhes um novo e mais grave silêncio, o
da fala postiça e inautêntica, anônima.” (MARTINS, 2000, p. 69).

A SOCIABILIDADE DO CAPITAL E A CONSTRUÇÃO


DA IDENTIDADE DE GÊNERO

Compreender o trabalho enquanto categoria fundante das


relações de produção e reprodução nas relações sociais de homens
e mulheres é entender como, no processo histórico do desenvolvi-
mento da sociedade, as diferenças biológicas foram transformadas
em desigualdades sociais. Considera-se, portanto, que desigualdades
de gênero tem dimensão material e são perpetuadas cotidianamente
por práticas e instituições sociais.

1 O presente trabalho compõe parte de reflexões, apropriações e produção acadêmico


cientifica da Dissertação de mestrado, defendida em 2012, na Universidade Estadual “Ju-
lio de Mesquita Filho” (Unesp-Franca/SP), sob o titilo: “Levantadas do Chão: A Cons-
trução da Identidade de Gênero na Implementação de Políticas Públicas Agrarias para as
Mulheres”. Reflete, portanto, o acúmulo teórico de quase 10 anos de estudos e pesquisa
sobre o tema, que corrobora de forma consistente para a produção da Tese à ser defen-
dida no Programa de Pós-Graduação em Politica Publica da UnB, sob o título: A luta
por dentro da luta: táticas e estratégias do partido comunista brasileiro no combate as
opressões de gênero e raça”
2 Assistente Social. Mestre em Serviço Social pela (Unesp- Franca/SP), doutoranda do
programa de pós-graduação em Política Pública (UnB). Professora do Departamento de
Serviço Social da UFMT. E-mail: qellirocha@ufmt.br
3 Assistente Social. Mestre em Política Social pela UnB e doutora em Serviço Social (UERJ)
e Ciência Política (Paris 8). Professora no Departamento de Serviço Social da UnB e no
Programa de Pós-Graduação em Política Social e. E-mail: sandrateixeira@unb.br

- 241 -
Para expor em termos ontológicos, as categorias específicas do Ser
Social, o seu desenvolvimento a partir das formas de ser precedentes,
sua articulação com estas, sua fundamentação nelas, sua distinção em
relação a elas, é preciso começar pela análise do trabalho. É claro que
não se deve esquecer que, qualquer grau do ser, no seu conjunto e
nos seus detalhes, tem um caráter de complexo, isto é, que as suas
categorias, até mesmo as mais centrais e determinantes, só podem ser
compreendidas adequadamente no interior e a partir da constituição
complexa do nível de ser de que se trata. E é suficiente um olhar muito
superficial ao ser social para perceber a inextricável imbricação em
que se encontram suas categorias decisivas como o trabalho, a lingua-
gem, a cooperação e a divisão do trabalho e para perceber que aí sur-
gem novas relações da consciência com a realidade e, em decorrência,
consigo mesma, etc. (LUKÁCS, 2010a, online).

Embora o debate acerca do trabalho na atualidade tenha ga-


nhado contornos complexos e diferenciados, este ainda permane-
ce como processo fundamental na manutenção da sociedade capi-
talista, a despeito de alguns teóricos de países capitalistas centrais
terem decretado sua morte (IAMAMOTO, 2008). Não houve, nem
tampouco há, perda da centralidade do trabalho e do “proletariado”
na contemporaneidade, o que significaria demolição do próprio sis-
tema capitalista que tem na força de trabalho a produção de riqueza.
De acordo com Antunes e Alves (2004, p. 335, grifo nosso), as trans-
formações no modo de produção refletiram em transformações na
classe trabalhadora, “[...] esta já não é idêntica àquela existente em
meados do século passado, ela também não está em vias de desapari-
ção, nem ontologicamente perdeu seu sentido estruturante.”
Afirma-se, assim como Marx (1996), que (o agir teleológico)
pelo trabalho funda o ser social, dota-o de racionalidade, de liber-
dade, consciência, funda a sua sociabilidade e a sua historicidade.
Esta relação dialética de transformação do meio condiciona sua au-
totransformação, possibilita a este, por meio da aquisição de novos
conhecimentos, desenvolver novas habilidades, tendo como conse-
quência uma tendência à universalização da sua ação transformado-
ra, ou seja, da objetivação do seu trabalho.
A confusão no entendimento do que seja o trabalho se dê
devido ao chamado desemprego estrutural e à complexidade e à di-
versidade em que a classe (trabalhadora) se encontra, isto é, pelo fato
desta ser perpassada ou circunscrita por diversos segmentos sociais,
tais como gênero, etnia, imigrantes, etc.

- 242 -
De acordo com os autores, com a reestruturação reprodutiva
(formas mais desregulamentadas de trabalho), reduziu-se o conjun-
to de trabalhadores estáveis e os empregos formais, decorrendo disto
uma redução do trabalhador tradicional (fabril, manual). No mesmo
bojo, mais em contratendência, há aumento do novo proletariado
que se caracteriza pelos empregados temporários, terceirizados e
subcontratados, o que se torna ainda mais aviltante no Brasil, país
com histórica inserção subordinada na divisão internacional do tra-
balho e suas particularidades na exploração generificada e racializa-
da da força de trabalho.
As recentes e recorrentes contrarreformas nos direitos traba-
lhistas e previdenciários, aprofundamento do ajuste fiscal e o avanço
do conservadorismo tem deteriorado às condições de vida dos tra-
balhadores e, de forma mais dura, das trabalhadoras.
De acordo com o DIEESE sobre a PEC 287/2020;

Se comparadas com as regras atuais, as medidas propostas pelo go-


verno exigirão mais sacrifício das mulheres do que dos homens. No
caso da aposentadoria no RGPS , por exemplo, mesmo que ambos
os sexos percam o direito à aposentadoria por tempo de contribui-
ção e passem a ter a exigência de idade mínima, as mulheres terão
que trabalhar dois anos a mais (dos 60 aos 62 anos), se forem do
setor urbano, e cinco anos a mais (dos 55 aos 60 anos), se forem do
setor rural. Os homens, ao contrário, permanecerão com as mesmas
referências etárias da atual modalidade de aposentadoria por idade
(65 anos, no setor urbano, e 60, no rural).[...] As professoras (e os
professores) do ensino básico poderão se aposentar mais cedo, aos
60 anos, desde que comprovem 30 de contribuição exclusiva no ma-
gistério. (nota técnica 202/2019, do DIEESE)

A nota ainda adverte que somos as mais afetadas pelo projeto


de reforma, tanto pela elevação da idade mínima, quanto pelo au-
mento do tempo mínimo de contribuição e, mais ainda, pela combi-
nação desses requisitos. Para piorar o cenário, a reforma ainda nos
penaliza, sem distinção, com perdas significativas nos valores dos
benefícios, em função de alterações nas regras de cálculo.
Esse é um sistema que ameaça nossa vida e luta por equida-
de, pois amplia as diferenças existentes entre os sexos na condição
de acesso ao direito a previdência, recebemos 1/3 do salário dos ho-
mens no exercício do mesmo cargo e função, ocupamos os postos
de trabalho mais precarizados e informais, dedicamos 73% a mais

- 243 -
do nosso tempo aos cuidados e afazeres domésticos. Mesmo entre
nós mulheres, há grandes desigualdades em torno dos rendimentos
recebidos em razão da dupla discriminação no mercado de trabalho
sofrida pelas mulheres negras. O rendimento médio das mulheres
brancas é 70,5% maior do que o das mulheres negras, e 67,3% maior
do que o recebido pelas mulheres pardas.

Do total de mulheres ocupadas, 23,3% trabalhavam sem carteira


de trabalho e 23,9% estavam em atividades por conta própria ou
auxiliares da família, ou seja: quase metade (47%) das mulheres in-
seridas no mercado de trabalho não possuía registro em carteira, o
que dificulta a contribuição previdenciária. (nota técnica 202/2019,
do DIEESE).

Associa-se a estes fatores o desencremento da participação fe-


minina na produção da força de trabalho. Se no início do século XXI
Antunes, afirmava haver um aumentado em torno de 40% da força
de trabalho feminino em todo o mundo que se caracterizava pela
precarização e desregulamentação.
Atualmente considerando apenas o Brasil, verificamos entre
os anos de 2019 e  2020, o registro de uma queda de 10% no nú-
mero de mulheres empregadas. Em termos absolutos, isso significa
uma  queda de  4,2  milhões  de  mulheres ocupadas.  No mesmo pe-
ríodo,  de acordo com a PNAD Contínua, a queda  na quantidade
de  homens ocupados  foi de  7,9%.  Ou seja, embora  o cenário seja
adverso para todos, podemos notar que o impacto foi relativamente
maior entre mulheres. 

Muitos estudos têm apontado que, na nova divisão sexual do traba-


lho, as atividades de concepção ou aquelas de capital intensivo são
realizadas predominantemente pelos homens, ao passo que aquelas
de maior trabalho intensivo, freqüentemente com menores níveis de
qualificação, são preferencialmente destinadas às mulheres traba-
lhadoras (e também a trabalhadores (as) imigrantes, negros (as), in-
dígenas etc.). (Hirata, 2002 apud ANTUNES; ALVES, 2004, p. 338).

Acrescentamos, ainda, a condição estrutural do trabalho não
pago em torno da reprodução da força de trabalho, majoritariamente
desenvolvido por mulheres nos espaços familiares (SOUZA-LOBO,
1981; BHATTACHARYA, 2019), que favorecem a naturalização de
atribuições dos papéis (feminino e masculino), nos colocando a ne-

- 244 -
cessária acuidade da apreensão dos complexos sociais ( família, es-
tado, aparato jurídico, político, sindical, educacional dentre outros),
na desnaturalização do que é Ser Mulher (gênero feminino) do pro-
cesso de reprodução biológica, a qual para além do aspecto natural é
um ato econômico e social.
Lessa ao tomar como referência os Estudos de Engels (1979)
em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, afir-
ma que são as especificidades das características da “sociedade pri-
mitiva” que levam o homem a desenvolver sua sociabilidade, pois
naquela época se não se unissem para “[...] potencializar sua força
individual na concorrência com outros animais, os homens (indiví-
duos “racionais”) seriam predados.”
São as transformações no mundo da produção, quer dizer, na
maneira como se produz o necessário para sobrevivência, que são
criadas, gestadas e transformadas as relações sociais, inclusive as de
gênero. Homens e mulheres nascem com características físicas e bio-
lógicas diferentes, mas são por meio dos processos de socialização
que estas diferenças se tornam desigualdades.
É, portanto, com o processo de complexificação do trabalho,
ou seja, de seu desenvolvimento, que também os processos de
sociabilidade se complexificarão. Em autores como Engels (1979), que
tomaram como ponto de partida Marx, passando pela interpretação
na contemporaneidade de autores que também o tiveram como
referência, como Paulo Netto (2011) verifica-se que, antes mesmo do
processo de trabalho criar excedente, se desenvolveu nas “comunida-
des primitivas” a diferenciação entre atividades de homens e de mu-
lheres (a primeira divisão do trabalho é a divisão sexual). Portanto, é
posterior a essa divisão, a divisão “social” do trabalho entre trabalho
artesanal e as ocupações agrícolas, entre a divisão e dicotomização
da cidade e do campo e “[...] na grande clivagem entre atividade ma-
nual e atividade intelectual” (PAULO NETTO, 2011, p. 57).
Em “A Reprodução: Problemas Gerais da Reprodução”, Lu-
kács chama a atenção para alguns complexos sociais fundamentais
no processo de complexificação do trabalho e da sociedade capita-
lista. Aqui se destaca a comunicação/linguagem. Para o autor, “[...]
à medida que progridem o trabalho, a divisão do trabalho e a coo-
peração, simultaneamente, a fala deve se elevar a níveis superiores.
Deve-se fazer sempre mais rica, flexível, diferenciada, etc., a fim de

- 245 -
que novos objetos e conexões possam se tornar comunicáveis” (LU-
KÁCS, 2010b).
Evidencia-se com isto que a comunicação é uma mediação
requerida pela divisão do trabalho, pois quanto mais crescente o do-
mínio do homem sobre a natureza, mas crescente é sua “vontade/
necessidade” de nomear as pessoas, coisas e relações. De acordo com
Lukács, esta necessidade advém da própria correlação entre os com-
plexos sociais.
Lukács, retomando Engels, destaca que o lugar das mulheres
na vida social depende do fato de que o aumento da riqueza atribua
funções econômicas ao homem, ou seja, com o advento da sociedade
capitalista o patriarcalismo, através do estabelecimento do casamen-
to monogâmico, se fortalece constituindo como norma social. Isto
é verificado, de acordo com Lukács (1979b) com as mais recentes
pesquisas etnográficas: “[...] as formas de relação biológica tão ele-
mentar como a sexual são, em última análise, determinadas pela es-
trutura social que se tem no respectivo estágio da reprodução.”
Para Branca Moreira Alves (1980, p. 38), a opressão da mu-
lher não tem origem na sociedade de classe, mas assume, através das
sucessivas transformações no mundo do trabalho, novas caracterís-
ticas, as quais com o advento da sociedade capitalista se enraízam.
Para a autora, a sociedade capitalista se apropria da função reprodu-
tora (feminina) e manipula as relações de gênero. “A necessidade de
garantir a primazia e segurança da paternidade levou o sexo femini-
no ao julgo secular.”
Neste processo de divisão e diferenciação entre trabalho (di-
visão sexual do trabalho), de modo geral, aos homens se destina o
trabalho externo e fora do lar e, às mulheres, os afazeres domésticos,
atribuindo ao homem, o espaço público (valorizado) e, à mulher, o
espaço privado (desvalorizado e/ou espaço banal, onde se forjam os
processos de naturalização da opressão de um gênero/masculino em
detrimento do outro/feminino). Mas há particularidades, visto que,
por exemplo, as mulheres negras sempre trabalharam fora de casa
(GONZALEZ, 1982; DAVIS, 2016).
Como no processo de desenvolvimento da sociedade capi-
talista os complexos sociais como a fala, educação e leis cumprem
papel fundamental, é a partir da dicotomização da vida que estes
complexos se constituem como bases que forjam e conformam a

- 246 -
afirmação/negação; identidade/ alteridade; naturalização/ banali-
zação; que permeiam a vida, as relações de produção e reprodução
sociais. É por meio destas estruturas firmadas e forjadas pelo capita-
lismo que os valores surgem.
Em relação à análise das relações de gênero, partindo da cons-
tituição e consolidação da sociedade capitalista burguesa é possível
verificar que a institucionalização do casamento monogâmico tratou
de disciplinar a mulher por meio da dicotomização público x priva-
do. Esta dicotomização estabeleceu espaços, papéis, formas de atua-
ção e participação dos gêneros (feminino e masculino).
Com a divisão social do trabalho, esta dicotomização (públi-
co x privado) passou a ser necessária para que os corpos, tanto de
homens quanto de mulheres, fossem modelados para responderem
às necessidades do mercado (modo de produção capitalista), isto é,
“[...] criar relações puramente sociais em que, através da capacidade
teleológica, fosse suscitada nas outras pessoas a vontade de operar
determinadas posições teleológicas” (LUKÁCS, online, grifo nosso).
Assim, os postos de trabalho, cujas atividades de concepção eram
intensas e respondiam imediatamente às demandas do capital, fo-
ram atribuídos predominantemente aos homens e, aqueles de maior
trabalho intensivo, frequentemente com menores níveis de qualifi-
cação, foram preferencialmente destinados às mulheres. Assim, aos
homens foram “oferecidas” as possibilidades de desenvolverem cer-
tas capacidades teleológicas que não foram oferecidas às mulheres.

TEMPOS DE PERGUNTAS

De acordo com Saffioti (1987), a identidade social da mulher,


assim como a do homem, na sociedade capitalista, se constrói atra-
vés da atribuição de distintos papéis que a sociedade espera verem
cumpridos pelas diferentes categorias de sexo. Por isso, quando as
crianças nascem, dentro da perspectiva do capitalismo patriarcalista,
tem seu campo de atuação delimitado.
Neste sentido, é na família que se corrobora que homem e
mulher devam agir conforme as regras impostas pela sociedade. É
nesta instituição que cabe aos pais a responsabilidade de transmitir
delimitações aos filhos, sendo a maior parte desta à mãe, em manter
a ordem do lar e, portanto, educar os filhos para que cumpram tais

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regras, delimitando qual papel cabe ao homem e qual à mulher. De
acordo com Saffioti (1987), “[...] a socialização dos filhos, por exem-
plo, constitui tarefa tradicionalmente atribuída às mulheres.” Esta
tarefa, além de atribuída às mulheres, exige que estas ratifiquem,
mesmo que simbolicamente, a dicotomização dos papéis. Assim,
desde criança são atribuídos símbolos distintos ao homem e a mu-
lher. Exemplo disso é a utilização de uma ideologia que determina
quais as cores são destinadas a cada criança: o azul para o menino e
o rosa para a menina. Meninos devem brincar de bola e carrinho, as
meninas de boneca e casinha, atribuindo, assim, características de
fragilidade e cuidadora às meninas e de força, proteção e responsa-
bilidade aos meninos.
Cabe destacar que estes papéis são transmitidos de geração
em geração de modo velado. Desta forma, a menina que antes cuida-
va apenas das bonecas, tem agora enquanto mulher, a responsabili-
dade do cuidado dos filhos atribuída tradicionalmente como função
sua e, quando há necessidade de delegar esse cuidado a outros para
poder, por exemplo, desempenhar trabalho remunerado fora do lar,
seja para a manutenção da casa e da família ou como complemento
do salário do marido, essa função é atribuída à outra mulher.
De acordo com Saffioti (1987), nas classes dominantes, tam-
bém a mulher não está isenta da educação dos filhos, podendo até
desfrutar da ociosidade do trabalho manual, desde que atribua o cui-
dado dos filhos às suas serviçais, deixando claro que é apenas o cui-
dado, e não a educação dos filhos, que é transferida a outras pessoas.
Portanto, os papéis atribuídos às mulheres não são apenas
diferentes dos atribuídos aos homens, mas também desvalorizados,
sendo as mulheres vistas como inferiores e em condição de subordi-
nação em relação aos homens.
Para Saffioti (1987), a vida da mulher varia segundo a classe
social em que esta se insere, pois cada uma vive a vida cotidiana de
forma diferenciada. Enquanto algumas trabalham oito horas por dia
fora de suas casas e mais quatro em serviços domésticos (dentro de
seus lares), como é o caso das trabalhadoras operárias ou das que
trabalham no campo, outras, as mulheres da classe dominante, têm
a sua disposição, serviçais que fazem todo o trabalho doméstico em
suas residências. Essa, a mulher burguesa, tem como função apenas
a supervisão do trabalho das empregadas contratadas e a educação
dos filhos. Para Saffioti (1987, p. 9):

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[...] a mulher é socialmente responsável pela manutenção da or-
dem na residência e pela criação e educação dos filhos. Assim, por
maiores que sejam as diferenças de renda encontradas no seio do
contingente feminino, permanece esta identidade básica entre todas
as mulheres.

Destarte, verifica-se que a sociedade investe muito na natura-
lização deste processo. Este processo de “domesticação” (naturaliza-
ção e engessamento da ocupação do espaço privado/lar) pela mulher
contribuiu e ainda hoje contribui para que esta não desenvolva ou-
tras potências e capacidades, por exemplo, na ocupação do espaço
político (público).
De acordo com Avelar (2001), as mulheres são um ótimo
exemplo do longo caminho a ser percorrer na luta pela extensão real
dos direitos sociais. Entretanto, a dicotomização entre Estado e a so-
ciedade civil4 é intrínseca à ordem burguesa, que sempre tratou de
criar barreiras à constituição das mulheres enquanto categoria so-
cial. Estas barreiras impulsionaram a dicotomização entre homens
e mulheres e escamoteou a identidade de classe. Desta forma, a luta
pela participação política (feminina) sempre se deu à custa destas
(mulheres) se colocarem publicamente, ainda que sozinhas. Assim,
para que as políticas de “igualação” (AVELAR, 2001) tivessem início
foi preciso que muitas mulheres, grupos, associações e movimentos
sociais das quais elas faziam parte, colocassem em suas agendas as
demandas específicas das mulheres. Exemplo disto foram os movi-
mentos de luta por creches, carestia, a participação das mulheres nos
movimentos de saúde, educação, moradia e direitos humanos. Estes
constituem um marco importante deste processo.
Estes processos tendem a desconstruir a naturalização que en-
gessa e ratifica a subordinação feminina. Para Saffioti (1987, p. 9):
Há sociedades nas quais as mulheres não interrompem suas ativi-
dades extralar, inclusive a função da caça, quando tem um filho. Há
tribos indígenas brasileiras cujas mulheres, em seguida do parto,
banham-se nas águas de um rio e retomam imediatamente sua la-
buta. Nestas tribos, cabe ao pai fazer repouso e observar uma dieta
alimentar especial. Este costume chama-se couvade. Esta prática
revela que o próprio parto, quase sempre entendido apenas enquan-
to função natural, assume feições sociais diferentes no espaço e no
tempo. Ou seja, cada sociedade elabora distintos significados para
os mesmos fenômenos naturais.
4 MARX (1997); GRAMSCI (1991).

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Ao descrever papéis naturalmente femininos e naturalmente
masculinos, a ideologia patriarcal capitalista cumpre umas de suas
mais importantes finalidades: a de mascarar a realidade. “Dada à
desvalorização do espaço doméstico, os poderosos têm interesse em
restaurar a crença de que este papel sempre foi desempenhado por
mulheres.” (SAFFIOTI, 1987, p.11, grifo nosso). Para essa ideologia,
que divide a sociedade entre fortes e fracos, dominantes e domina-
dos, é extremamente necessário legitimar a “superioridade” de pou-
cos e a “inferioridade” de muitos, ressaltando que isto não se passa
apenas com as mulheres, mas com outras categorias sociais discri-
minadas, como os negros, índios, homossexuais, donde decorrem
movimentos sociais, que visam o resgate da memória, destes con-
tingentes humanos que ajudam a fazer história. (SAFFIOTI, 1987).
Saffioti (1987, p. 11, grifo do autor), afirma:

É de extrema importância compreender como a naturalização dos


processos socioculturais de discriminação contra a mulher e outras
categorias sociais constituem o caminho mais curto para legitimar
a “superioridade” dos homens, assim como a dos brancos, a dos he-
terossexuais, a dos ricos.

Nesta perspectiva, uma vez alijada da participação política e


confinada ao espaço doméstico, as mulheres, enquanto categoria so-
cial, também foram alijadas do processo laborativo teleológico, posto
que a complexidade do trabalho ao qual foram dirigidas pouco exi-
gia de suas capacidades psíquicas e motoras, o que fez (e ainda hoje
faz) com que os homens e burgueses se utilizem deste argumento
para legitimarem a “inferioridade” da mulher. No entanto, a ciência
já demonstrou que a inteligência constitui um potencial capaz de se
desenvolver com maior ou menor grau de intensidade, dependendo
do grau de estimulação que se recebe (SAFFIOTI, 1987).

2.1 Identidade Subvertida?


De acordo com Franklin (2000, p. 43, grifo nosso), a exis-
tência do Homem pode ser apreendida como uma contínua
tentativa de se sociabilizar e, esta sociabilização, está intrinse-
camente ligada às constantes transformações pessoais e sociais:
“[...] ele tem de buscar uma significação entre suas experiên-
cias de vida para este processo se dar.”

- 250 -
De acordo com o autor, esta significação se dá por meio da
relação que cada indivíduo desenvolve a partir do concreto que, ini-
cialmente, se lhe apresenta de modo velado – mascarado, pois este é
um mundo simbólico com o qual organiza sua experiência pessoal
passando, por meio desta, a construir articulações e referências do
mundo e de si próprio.
Para Silva (2000), inicialmente parece ser fácil definir identi-
dade, uma vez que se torna o que se é: “sou mulher”, “sou negra”, “sou
lésbica”. Para o autor, a identidade assim concebida se caracteriza por
uma positividade, uma característica independente, um fato autôno-
mo. Seguindo o mesmo raciocínio, aponta Silva (2000), também a
diferença é concebida como entidade independente, passando a ser o
que não sou, ou seja, passa a ser o que o Outro é: “ela é branca”, “ela é
heterossexual”, “ela é mulher”. Assim como na identidade, a diferen-
ça é concebida como algo que remete a si própria. “A diferença, tal
como a identidade, simplesmente existe.”
Destarte, Tomaz Tadeu Silva (2000, grifo nosso) aponta que
identidade e diferença estão em uma relação estreita de dependên-
cia. A forma como expressa-se a identidade tende a esconder esta
relação. Assim, quando se diz “sou mulher”, faz-se referência a uma
identidade que se esgota em si mesma. Entretanto, o autor chama
atenção para o fato de que só é necessária esta afirmação porque
existem outros seres humanos (homens) que não são mulheres: “[...]
em um mundo imaginário totalmente homogêneo, no qual todas as
pessoas partilhassem a mesma identidade, as afirmações de identi-
dade não fariam sentido.”
A diferença de identidade só fora estabelecida porque, ao
invés de se desenvolver no gênero humano sua generalidade, de-
senvolve-se nele a unicidade/individualidade que, para Lessa, só foi
possível por meio do desenvolvimento da sociedade capitalista que
complexificou as relações de produção e reprodução da vida social.
Neste sentido:

A identidade se tornou, por isso, um grande problema. A rigor, um


problema insolúvel nestas circunstâncias. Já que aquilo que somos
enquanto pessoas, nossas necessidades e possibilidades enquanto
seres humanos, não encontram nas relações que mantemos com o
gênero um canal adequado para sua manifestação e desenvolvimen-
to, não podemos senão manter uma relação de alienação e distan-
ciamento para com a vida coletiva, social. E, reflexivamente, como

- 251 -
a vida genérica não pode ser um portador adequado das necessi-
dades e possibilidades dos indivíduos que a compõem, torna-se de
tal modo repulsiva às individualidades que não resta a estas senão
buscar a proteção do isolamento. Todavia, isoladas do gênero, as
individualidades não apenas não podem construir suas identidades
a partir de seu pleno desenvolvimento e das humanamente ricas ob-
jetivações que tal desenvolvimento possibilita – mas, ainda mais mi-
seravelmente, apenas podem se constituir a partir dos gravíssimos
problemas de uma individualidade antinômica ao gênero. Ser hu-
mano, por isso, torna-se cada vez mais difícil. (LESSA, 2004, p. 7-8).

Diante disto, pode-se afirmar que homens e mulheres passa-


ram a não se reconhecerem em sua igualdade, mas a partir de suas
diferenças e, foram estas diferenças, que passaram a constituir as
suas identidades (feminina e masculina).
A afirmação “sou mulher” é, portanto, parte de uma ex-
tensa negação de expressões negativas (positivas) 5de diferen-
ças. Por trás desta afirmação pode ser lido “não sou homem”,
“não sou cidadã” e assim por diante.
De acordo com Tomaz Tadeu Silva (2000), da mesma
forma que as afirmações sobre as diferenças só fazem sentido
se compreendidas em sua relação com as afirmações negativas,
quando dizem: “ela não é mulher”, ”ela não é cidadã”, afirmam-
-se as diferenças mesmo ainda que de forma oculta, pois fica
estabelecida uma relação em que ela não sou eu e, portanto, é o
Outro.
Em geral, consideramos a diferença como um produto derivado da
identidade. Nesta perspectiva, a identidade é a referência, é o ponto
original relativamente ao qual se define a diferença. Isto reflete a
tendência a tomar aquilo que somos como sendo a norma pela qual
descrevemos ou avaliamos aquilo que somos. Por sua vez, na pers-
pectiva que venho tentando desenvolver, identidade e diferença são
vistas mutuamente determinadas. (Silva, T. T., 2000, p. 5).

Neste sentido, compreende-se que o que se tem anali-


sado e discutido sobre a identidade de gênero (feminina) tem
partido daquilo que a diferencia do gênero masculino e até
do próprio gênero feminino. Quando Elizabete Souza-Lobo
5 Ou positivas mesmo quando o sentido é inferiorizar, quer dizer, mesmo quando se
diz que uma mulher é cuidadosa, diz-se que este cuidado é imanente à mulher, adjetivo
que lhe é atribuído como se fosse natural, como se coubesse a todas as mulheres serem
cuidadosas. Ao contrário dos homens.

- 252 -
(1991) aponta que há no movimento feminista um recorte em
relação aos movimentos de mulheres, a autora afirma que o
movimento feminista seria inscrito por mulheres das classes
médias e burguesas e o movimento de mulheres inscrito por
mulheres trabalhadoras, cujas reivindicações eram socioeco-
nômicas e, neste sentido, estas remeteriam à situação estrutu-
ral das mulheres e aquelas (movimento feministas) à situação
conjuntural e/ou superestrutural das mulheres. Assim, o que
se questiona é: qual identidade de gênero da mulher? Ou quais
identidades de gênero das mulheres?
A sociedade tem atribuído historicamente e de modo
determinado o que é ser mulher, assim como o que é ser ho-
mem. Neste sentido, tem delimitado espaços, corpos, formas
de ser, agir, de se comportar e de pensar. Mead (apud Toledo)
diz que os papéis sexuais em diversas culturas não são estabe-
lecidos pela natureza, mas sim pela cultura, costumes, práticas
cotidianas dos povos e, sobretudo, pelas necessidades econô-
micas de sobrevivência.
Identidade e diferença, de acordo com Silva (2000), não são
criaturas do mundo natural ou transcendental, mas do mundo real e
concreto e, neste sentido, fabricadas no contexto de relações econô-
micas e sociais. É esta “fabricação” de identidades não só diferentes,
mas dicotomizadas e bipolares, que estabelece as relações entre ho-
mens e mulheres.
A delimitação de espaços, formas de ser, agir e estar no mun-
do de modo bipolar demonstra que a construção da identidade a
partir da diferença é uma relação social que está sujeita a vetores de
força e de poder. As identidades sociais tanto dos homens, quanto
das mulheres, não são simplesmente definidas, são construídas por
meio de uma imposição hierárquica. Esta imposição não se dá de
modo “harmonioso”, ao contrário, se dá através de disputas confli-
tuosas.
Essa disputa envolve aspectos simbólicos e materiais da so-
ciedade. De acordo com Tomaz Tadeu Silva (2000, grifo nosso), “[...]
a afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o
desejo de diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de
garantir o acesso privilegiado aos bens sociais.”
Esta diferenciação também tem por base demarcações de va-
lores (bom – mal; belo – feio, dentre outros). Como é a ideologia

- 253 -
burguesa quem estabelece esses parâmetros valorativos também por
meio dos aparelhos do Estado, é ela, que no processo de socialização,
faz com que sua cultura seja estabelecida, de modo que o indivíduo
internalize o real conforme este o é revelado ideologicamente. Neste
sentido, como aponta Lessa, esta diferenciação resulta na alienação
proveniente da construção de individualidades isoladas e, este iso-
lamento, faz com que o comportamento humano seja nômade, ca-
racterística da sociedade globalizada que, paradoxalmente na vida
cotidiana, impõe a experiência de existir se não em uma malha de
interações com todos os seres humanos.

4 – LEVANTA-NOS DO CHÃO

Para Lessa (2004, p. 6, grifo nosso), “O que somos, enquanto


pessoas, não tem lugar no gênero humano e, reflexivamente, as pos-
sibilidades e as demandas que a situação histórica mais geral nos im-
põe parece também não corresponder ao que necessitamos e pode-
mos enquanto indivíduos.” Neste sentido, afirma Lessa (2004, p. 6):
[...] o desenvolvimento das forças produtivas não produziu indivi-
dualidades que tipicamente seriam capazes de uma existência ge-
nérica rica e multifacetada, como seria de se esperar, mas indivi-
dualidades que apenas podem se relacionar enquanto mônadas, ou
seja, pessoas que apenas podem se relacionar através da promoção
do isolamento individual do todo do qual faz parte. Em poucas pa-
lavras, vivemos em uma sociedade planetária na qual os indivíduos
não encontram os seus respectivos lugares enquanto autênticas in-
dividualidades humanas.

Assim, a afirmação ou construção da identidade feminina


implica em operações de incluir e de excluir e, para se afirmarem en-
quanto mulheres precisam destacar o que não são. Deste modo, não
sendo homens, as mulheres passam a declarar a que grupo perten-
cem e ao que não pertencem, estipulando, assim, distinções entre o
que fica de fora e o que fica dentro. De acordo com Tomaz Tadeu Sil-
va (2000) a identidade está sempre ligada a uma forte separação en-
tre “nós” e “eles” e, essa demarcação, separação e distinção supõem,
de um lado, afirmação da categoria (gênero feminino) e, por outro,
reafirma as relações de poder. São estas relações baseadas no poder
que, ao invés de promoverem a existência genérica rica, tornam as
relações isoladas e individualistas.

- 254 -
Assim, se as mulheres compõem uma categoria social no
contexto da sociedade capitalista burguesa atual, suas identidades ou
identidades correspondem no momento atual à identidade binária
que as colocam diante das relações com os homens de modo polari-
zado.
A força de trabalho é, segundo Lessa (2004), característica
individual e, ao mesmo tempo, genérica, pois é por meio das ne-
cessidades geradas, síntese das determinações mais pessoais, que a
força de trabalho, não existindo quanto expressão individual, está
imediatamente conectada ao desenvolvimento das ferramentas, for-
mas de energia, capacidade de produção de matérias-primas, etc. A
força de trabalho convertida em mercadoria especial em razão de
sua condição de ser fonte valor para o capitalismo tem transforma-
do a relação típica de cada indivíduo com o gênero em potencial de
exponenciar o lucro.
Paul Valéry (2002), em seu Discurso sobre a Estética, faz uma
análise interessante ao criticar a soberania do “belo ideal”. Neste dis-
curso, aponta para a necessidade de se utilizar uma análise dialética
em relação à arte questionando a existência de um pensamento puro
(grifo nosso) determinado pelos detentores do poder, ou seja, refor-
ça a importância de se considerar a diversidade de belezas dentro de
um contexto real de diversidades econômicas, culturais, de gênero,
de época, de ambiente, idade, enfim, reforça a importância de se per-
ceber que os monopolizadores do pensamento, devem ser analisados
na perspectiva de detentores de uma soberania abusiva e arbitrária.
Essa monopolização do conhecimento só é possível devido
à soberania de um pensamento individualista, ou seja, um pensa-
mento que é reflexo de uma sociedade “despedaçada em indivíduos
autônomos”, caracterizado como “mesquinho” e “fruto de uma vida
material”. Marx (1978) defende a ideia de que o pensamento, ao
contrário do que se percebe na sociedade capitalista, é social (parte
do concreto), posto que ao pensar, o homem reproduz tudo o que
apreendeu socialmente, ou seja, possui uma historicidade e, toda sua
ação e pensamento refletem diretamente na sociedade na qual está
inserido. Suas ideias não “brotam” do vazio. Daí surge na sociedade
capitalista a concepção que dá ao pensamento uma perspectiva alie-
nada que alimenta a idéia6 de que o pensamento seja uma concepção
6 Esta perspectiva parte do método funcionalista que defende que a sociedade é regida
por leis naturais donde suas relações devem ser apreendidas e estudadas de forma neutra
e objetiva. Esta perspectiva, defendida por Durkheim, incorpora a dimensão que nos leva

- 255 -
proprietária e que, para pensar, somente uma pessoa basta, sendo
desta forma, uma criação individualista e não social.
Essa concepção é o que sustenta a classe economicamente do-
minante, pois “toda formação é sempre ditada, sob o capitalismo,
pelas necessidades de produção”. Essa formação (ditada de acordo
com as necessidades de produção) é verificável quando se analisa a
falsa idéia de democracia (VIEIRA, 1992). Falsa democracia porque,
de certa forma, a gratuidade e acessibilidade às escolas, mídias, etc.,
representam a sustentação da ideologia dominante, pois possuem
o “consentimento” de toda a sociedade para, sutilmente, invadirem
suas vidas por intermédio de rádio, televisão, jornal, cinema e livros.
Afinal, como afirmado anteriormente a partir das idéias de Paul Va-
léry (2002), é a classe economicamente favorecida que dita o que
deve ser lido, o que deve ser visto, o que é belo, completando assim,
sua dominação política e econômica.
Embora cada sujeito possa sentir e, portanto, representar uma
carga do processo histórico, sua participação neste processo não é
única e/ou exclusiva, antes o contrário, traz na condição uma reali-
dade que tem abarcado todos os homens e que não é resultado par-
tícula/subjetivo, porque é resultado da forma pela qual se tem cons-
truído “individualidades solitárias e amedrontadas”.
De acordo com Lessa (2004, grifo nosso), “O fundamento
disto, deste paradoxo, está na mercadoria plenamente explicitada:
o fetichismo e a reificação fazem com que as pessoas deixem de en-
contrar nas outras pessoas a substância autenticamente humana de
que carecem. Perdem, então, as suas raízes genéricas.” Para o autor
resta-lhes apenas a construção de identidades a partir de si próprias.
Esta construção tem se dado em contextos históricos determinados.
à conclusões conservadoras que naturalizam as desigualdades sociais. Durkheim (apud
Behring e Boschetti 2009), diz que o fato social possui uma natureza exterior e coletiva,
cuja sede é a sociedade e não o indivíduo, que exerce coerção sobre a consciência indivi-
dual e é regido em relação aos processos de transformação. Quando não se percebe mais
a coerção exercida pelo fato social, este se torna um hábito a fim de desprender o fato so-
cial de toda contaminação. Este deve ser observado em seu estado de pureza. Pressupõe
a teoria Durkheimiana (funcionalista), que os fenômenos sociais existem em si, mesmo
destacados dos indivíduos conscientes que formulam representações à seu respeito. Isto
porque, para que estes fenômenos sejam explicados/analisados, é preciso que sejam com-
preendidos pela razão e não pelo sentimento. Todavia, cabe questionar de qual “razão”
faz menção o autor, até porque o mesmo diz que a assimilação dos fenômenos sociais se
dá por meio da coerção e que, no desenvolver deste, há um processo de enraizamento e
naturalização que faz com que este possa se tornar um hábito. Como exemplo, cita-se a
educação. Como então acreditar nesta neutralidade, se o próprio exemplo tomado pelo
autor (educação) representa, como é sabido, os interesses da classe que detém os meios
de produção/ (burguesia)?

- 256 -
À medida que o desenvolvimento das forças produtivas conseguiu
derrubar barreiras naturais, espaciais e temporais, também conse-
guiu abrir novas e profundas barreiras.
Assim, como a mercadoria tem se tornado obsoleta, no sen-
tido em que tem se tornado cada vez mais descartável, as relações
afetivas também o têm. Para Lessa, embora na vida cotidiana se ve-
rifique a interdependência entre as pessoas que, para viver estão in-
trinsecamente ligados uns aos outros, que a forma de viver, de sentir
e de pensar seria impossível se não se pudesse incessantemente ter
acesso aos produtos das atividades de outros, está também tem, pa-
radoxalmente, erguido barreiras que impõem o estranhamento e a
alienação do homem frente ao seu semelhante. Entretanto, o autor
destaca:

Não há, na história da humanidade, nenhum outro momento his-


tórico em que, de modo tão evidente, tão patente, os indivíduos te-
nham sido tão interdependentes uns dos outros. Nunca, antes, vive-
mos uma situação na qual tantos indícios cotidianos se acumulam
a evidenciar como a vida de cada um é parte do destino de todos e
como, reflexivamente, a vida de todos está presente na vida de cada
um. Como nunca, enfim, os indivíduos viveram vidas tão genéricas,
tão permeadas por possibilidades e necessidades que apenas podem
existir enquanto produções coletivas de toda a humanidade. (LES-
SA, 2004)

No processo de desenvolvimento da individualidade na so-


ciedade capitalista, o que deveria causar nas pessoas uma catarse,
de modo coletivo, é escamoteado em detrimento da interioridade
de cada um. “O isolamento do sofrimento de cada um é condição
necessária para que tal sofrimento seja suportado cotidianamente
como algo inevitável e, neste caso muito diretamente, tal isolamen-
to cumpre uma função na manutenção da reprodução social regida
pelo capital.” (LESSA, 2004).
Ao objetivar romper com as formas de opressão geridas a
partir do modo de produção capitalista, observamos movimentos
sociais, sindicatos classistas e parcos partidos políticos estabelece-
rem, por meio de relações mais solidárias, a ruptura com o noma-
dismo das relações sociais e interpessoais. Por não se configurarem
como um átomo isolado na sociedade, as ações coletivas organiza-
das e dirigidas para a transformação produtiva e reprodutiva visam
o fortalecimento dos sujeitos coletivos para que estes, por meio de

- 257 -
seu reconhecimento enquanto categoria e/ou classe social, possam
ao menos estranhar as formas de relações precedentes ao ingresso
como sujeitos noutras palavras, atuar em movimentos sociais, políti-
cos, político partidário, culturais e sindicais é uma forma de romper
com a fragmentação sob a qual os indivíduos estão se construindo
ou sendo construídos. “[...] nossas vidas são partícipes da história
universal no sentido mais puro do termo.” Invariavelmente, o que in-
dividualmente se produz e se carece têm uma relação imediata com
o que outros produzem ou carecem. Este movimento pode ser com-
preendido como uma aproximação/mediação da construção de uma
nova identidade. Embora ainda não se configure como a identidade
humana genérica, a identidade fora despertada.
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VIEIRA, Evaldo. Democracia e política social. São Paulo: Cortez, 1992.

- 260 -
SOBRE OS AUTORES E AUTORAS DESTA
COLETÂNEA
Betina Ahlert - Assistente Social formada pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), especialista de Saúde Mental Co-
letiva pela Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul (ESP/RS),
possui Mestrado e Doutorado pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Atualmente, trabalha como docen-
te no Departamento de Serviço Social, no Programa de Residência
Multiprofissional em Saúde do Adulto e do Idoso e no Programa de
Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal de Mato
Grosso (UFMT). Integrante do Grupo de Pesquisa Trabalho e Socia-
bilidade (UFMT). E-mail: betina.ahlert@ufmt.br.

Cristiano Guedes - Graduado em Serviço Social (UnB),


Mestrado em Sociologia (UnB) e Doutorado em Ciências da Saúde
(UnB/JHU). Atualmente, é Professor Associado no Departamento
de Serviço Social e no Programa de Pós-Graduação em Política So-
cial do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília.
E-mail: c.bsb.br@gmail.com.

Evilasio da Silva Salvador - Economista formado pela Uni-


versidade Federal de Santa Catarina (1995), Mestre em Política So-
cial pela Universidade de Brasília - UnB (2003), Doutor em Política
Social pela UnB (2008) e Pós-Doutor em Serviço Social pela Univer-
sidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor na Universida-
de de Brasília (UnB) na Graduação em Serviço Social e no Programa
de Pós-Graduação em Política Social (Mestrado/Doutorado). Líder
do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Fundo Público, Orçamento,
Hegemonia e Política Social (FOHPS). E-mail: evilasioss@unb.br.

Irenilda Ângela dos Santos - Graduada em Serviço Social


pela UFMT (1987), Mestrado em Serviço  Social pela PUC Rio
(1992), Especialização em violência doméstica contra crianças e ado-
lescentes pela USP (1997), Doutorado em Desenvolvimento Susten-
tável  pelo CDS UnB (2004). Professora Associada do Departamento

- 261 -
de Serviço Social ICHS/UFMT e do Programa de Pós-Graduação
em Política Social ICHS/UFMT, trabalhando principalmente  com
políticas públicas  ambientais e agrárias; gênero e políticas sociais.
E-mail: irepanta@gmail.com.

Ivanete Boschetti - Assistente Social, Mestre em Política So-


cial/UnB (1993), Doutora (1998) e Pós-Doutora (2012) em Socio-
logia/EHESS/Paris. Docente do Departamento de Serviço Social e
Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Política
Social da UnB entre 1996-2018. Coordenadora do PPGPS/UnB
em 4 gestões. Coordenadora do GESST/PPGPS/UnB (2000-2018).
Coordenadora Nacional do Procad/CAPES/UnB/UERJ/UFRN no
período 2014-2017. Docente Titular da ESS e PPGSS/UFRJ e Coor-
denadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Marxistas em Política
Social (GEMPS/UFRJ) desde junho de 2018. Presidente da ABEPSS
(1998-2000). Vice-Presidente (2005-2008) e Presidente (2008-2011)
do CFESS. E-mail ivaboschetti@gmail.com.   

Jonas Albert Schmidt - Advogado formado pela Universidade


de Cuiabá (2003), Especialista em Direito Administrativo pela Fun-
dação Escola do  Ministério  Público de Mato Grosso (2010),  Mes-
tre em Política Social pela UFMT com mobilidade internacional
na Universidade de Coimbra/Portugal (2013) e Doutor em Política
Social pelo DINTER UnB/UFMT com mobilidade internacional na
Universidade de Coimbra/Portugal (2021). Membro da Comissão de
Direito Previdenciário da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccio-
nal de Mato Grosso, Membro Consultor da Comissão Especial de
Direito Previdenciário do Conselho Federal da Ordem dos Advoga-
dos do Brasil. E-mail: jonasalbert@hotmail.com.

Leila Chaban - Assistente Social graduada em Serviço Social


pela Faculdade Cenecista de Rondonópolis - FACER (2008), Mestra
em Política Social pela Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT
(2012), Doutoranda DINTER em Política Social pela Universidade
de Brasília (UnB) e Universidade Federal de Mato Grosso (2022).
Professora no Centro Universitário de Várzea Grande - UNIVAG na
Graduação em Serviço Social. Membro da Comissão de Formação
Profissional do CRESS-MT 20ª Região (2020-2023). Integrante do

- 262 -
Grupo de Pesquisa sobre Violência, Tráfico e Exploração Sexual de
Crianças, Adolescentes e Mulheres - VIOLES/SER/UnB. E-mail: lei-
la.chaban@univag.edu.br / leilachaban17@hotmail.com.

Lélica Elis Pereira de Lacerda - Graduada em Serviço So-


cial pela Universidade Estadual de Londrina (2005) e dez anos de
exercício profissional enquanto Assistente Social. Fez Mestrado em
Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (2013)
e Doutorado em Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
pela Universidade Federal de Santa Catarina (2017). Atualmente, é
professora efetiva da Universidade Federal de Mato Grosso, no De-
partamento de Serviço Social, atuando principalmente nos seguintes
temas: serviço social, exercício profissional, ontologia do ser social,
trabalho e questão social na América Latina. E-mail: lelicaelis@ya-
hoo.com.br.

Liliane Capilé Charbel Novais - Graduada em Serviço So-


cial na Universidade Federal de Mato Grosso (1986), Mestrado em
Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba (1996), Dou-
torado em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Ja-
neiro (2004) e Pós-Doutorado em História na Universidade Federal
de Mato Grosso. Professora Associada do Departamento de Serviço
Social (ICHS/UFMT), do Programa de Pós-Graduação em Política
Social ICHS-UFMT (Mestrado) e do Programa de Pós-Graduação
em História (Mestrado e Doutorado) IGHD-UFMT. Líder do Grupo
de Pesquisa Política Social, Direitos Sociais e Serviço Social – GESS
(CNPq/UFMT). Coordenadora Local DINTER Política Social UnB/
UFMT (2017-2022). E-mail: lilianeccnovais@gmail.com.

Marcos Henrique Machado - Graduado em Direito pela Fa-


culdade de Direito de Araçatuba-SP, Mestre em Política Social pela
UFMT, Doutorando em Política Social pela UnB/UFMT (DINTER).
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso -
TJMT. Membro da Primeira Câmara Criminal e Órgão Especial do
TJMT. Diretor Geral da Escola Superior da Magistratura do Estado
de Mato Grosso - Esmagis (2021-2022). Coordenador Adjunto da
Comissão Especial sobre Drogas Ilícitas do TJMT (2021-2022). Di-
retor Cultural da Associação Nacional de Desembargadores no Esta-

- 263 -
do de Mato Grosso (2020-2021). Suplente do Presidente do Tribunal
de Justiça no Conselho Estadual de Segurança Pública do Estado de
Mato Grosso - CONESPMT (2020/2021). E-mail: marhen@terra.
com.br.

Maria Lucia Lopes da Silva - Assistente Social, Mestre e Dou-


tora em Política Social. Professora Associada da Universidade de
Brasília (UnB), atuando na Graduação em Serviço Social e no Pro-
grama de Pós-Graduação em Política do Departamento de Serviço
Social (SER). Desenvolve estudos, pesquisas e tem produções acadê-
micas na área de serviço social, políticas sociais, trabalho, população
em situação de rua e teoria social critica. Líder do Grupo de Estu-
dos Marxistas e Pesquisa em Política Social e Trabalho – GEMPP.
E-mail: lucialopes198@gmail.com.

Maria Lucia Pinto Leal -  Graduada em Serviço Social pela


Universidade de Brasília (1983), Mestra em Comunicação pela UnB
(1992), Doutora em Serviço Social pela PUC de São Paulo (2001),
Pós-Doutora pelo Programa Pós-Colonialismos e Cidadania Global
do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Uni-
versidade de Coimbra-PT (2008). Professora Emérita pela UnB, em
2020. Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Violência, Tráfico
e Exploração Sexual de Crianças, Adolescentes e Mulheres - Violes/
SER/UnB. Coordenadora do Núcleo de Estudos da Infância e Juven-
tude (NEIJ) do CEAM/UnB. Compõe a Coordenação Colegiada da
Rede Ibero-Americana (RIMA) de Prevenção e Cidadania de Pes-
soas em Situação de Violação de Direitos, no contexto do Tráfico e
da Exploração Sexual-RIMA, no Centro de Estudos Sociais da Uni-
versidade de Coimbra-Portugal. E-mail: mlucia@unb.br.

Maria Salete Ribeiro - Assistente Social, formada pela Uni-


versidade Federal de Santa Catarina (1986), Mestre em Serviço
Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
- PUCRES (2000). Professora na Universidade Federal de Mato
Grosso, na Graduação em Serviço Social e Doutoranda no Programa
de Pós-Graduação em Política Social - UnB – DINTER. Membro do
Grupo de Pesquisa Política Social, Direitos Sociais e Serviço Social –
GESS (CNPq/UFMT). E-mail: mariasalette02@yahoo.com.br.

- 264 -
Mariele Schmidt Canabarro Quinteiro. Advogada. Douto-
randa em Política Social DINTER UnB/UFMT, Mestre em Direitos
Humanos pela Universidade Federal do Pará – UFPA (2015), Gra-
duação em Direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso
– UNEMAT (2006). Professora Efetiva da Faculdade de Direito da
Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, desde 2006.
Líder do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão denominado “Clí-
nica de Direitos Humanos e Meio Ambiente da UNEMAT”. E-mail:
prof.marielequinteiro@gmail.com.

Murilo Oliveira Souza - Advogado, Mestre em Direito pela


Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Doutorando em Política
Social pela Universidade de Brasília no Programa de Doutoramento
Interinstitucional com a Universidade Federal de Estado do Mato
Grosso. Professor substituto da Universidade do Estado do Mato
Grosso, atuando na Graduação em Direito. Desenvolve estudos e
pesquisas no campo do direito do trabalho. É membro do Grupo de
Estudos Marxistas e Pesquisa em Política Social e Trabalho – GEM-
PP. E-mail: souzamuh@hotmail.com.

Paulo Wescley Maia Pinheiro. Assistente Social (2011) e


Mestre em Serviço Social, Trabalho e Questão Social (2013) pela
Universidade Estadual do Ceará (CE) e Doutorando em Política So-
cial DINTER UnB/UFMT (DF). Foi educador popular, trabalhando
arteducação e educomunicação com adolescentes e jovens em ONGs
das áreas de Educação, Mídia e Diversidade. É docente do Departa-
mento de Serviço Social da Universidade Federal de Mato Grosso
(MT) atuando com temas como trabalho, opressões, conservadoris-
mo e ontologia do ser social. Foi vice-presidente da ABEPSS (2015-
2016). Pai de uma menina de quatro anos. E-mail: paulo.pinheiro@
ufmt.br.

Perci Coelho de Souza - Doutorado em Serviço Social pela


Universidade Federal do Rio de Janeiro (2005) e Mestrado em Po-
lítica Social pela Universidade de Brasília (1993). Professor adjunto
da UnB. Coordenador de extensão do Centro de Estudos Avançados
Multidisciplilnares - CEAM/UnB, Núcleo de Pesquisas para Habita-
ção - NPH. Líder do Grupo de Pesquisa sobre Poder Local, Políticas

- 265 -
Urbanas e Serviço Social - Locuss-UnB. Coordena os projetos de ex-
tensão de ação contínua Quintas Urbanas da UnB: problemas e po-
tencialidades no DF e Entorno” e “O grito social das águas”. Grupo
de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho GEPT do ICS/UnB liderado
pelo Prof. Sadi Dal Rosso. Professor do curso de Serviço Social e
do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UnB. E-mail:
percicoelho@gmail.com.

Qelli Viviane Dias Rocha - Graduação e Mestrado em Serviço


Social pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP/
Franca-SP). Doutoranda em Política Social DINTER UnB/UFMT.
Professora do Departamento de Serviço Social na ICHS/UFMT. Pes-
quisadora do grupo de estudos e pesquisa teoria marxista e política
pública (GEMPP/UnB). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa e Es-
tudos Teoria Social Marxista e Serviço Social (UNESP/Franca-SP).
Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Organização
da Mulher e Relações Sociais de Gênero (NUEPOM). E-mail: qelli-
rocha@gmail.com.

Ruteléia C. de Souza Silva - Assistente Social graduada pela


Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Mestre (2009) e
Doutora (2018) em Política Social pela  UFES.  Professora da Univer-
sidade Federal de Mato Grosso (UFMT) na Graduação em Serviço
Social e no Programa de Pós-Graduação em Política Social (PPGPS/
UFMT). Coordenadora do PPGPS/UFMT (biênio 2021/2023). Mem-
bro do Grupo de Pesquisa Trabalho e Sociabilidade.  E-mail:  rute.
as@gmail.com / ruteleia.silva@ufmt.br.

Sandra Oliveira Teixeira - Assistente Social. Mestre em Polí-


tica Social pela Universidade de Brasília (UnB) e Doutora em regi-
me de co-tutela em Serviço Social (Universidade do Estado do Rio
de Janeiro - UERJ) e Ciência Política (Universidade Paris 8). Pós-
-Doutora em Ciência Política pelo Centro Marc Bloch, Universida-
de Humboldt. Professora no Departamento de Serviço Social de no
Programa de Pós-Graduação em Política Social da UnB.  Pesquisa-
dora no  Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Fundo Público, Or-
çamento, Hegemonia e Política Social (FOHPS) e no Grupo de Es-
tudos Marxistas e Pesquisa em Política Social e Trabalho - GEMPP.
E-mail: sandrateixeira@unb.br.

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Vera Lúcia Honório dos Anjos - Graduada em Serviço So-
cial, com Mestrado em Saúde Coletiva pela UFMT. Profissional téc-
nica da Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso há 20 anos.
Desenvolve atividades profissionais na Escola de Saúde Pública do
Estado de Mato Grosso, relacionadas à educação permanente para
o SUS. Presidente do Conselho Regional de Serviço Social de Mato
Grosso, na Gestão Avançar na Luta no triênio 2014-2017. Atuou de
maio/2017 a janeiro/2018 na Secretaria Municipal de Saúde de Cuia-
bá, para estruturar e implantar o Núcleo de Educação Permanente.
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Política Social -
PPGPS/UnB-UFMT (DINTER), E-mail: veradosanjosmt@hotmail.
com.

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