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A política externa brasileira em debate: Ricupero, FHC e Araujo

Paulo Roberto de Almeida


(www.pralmeida.org; http://diplomatizzando.blogspot.com; pralmeida@me.com)
[Objetivo: textos para debate; finalidade: discutir as orientações da diplomacia]

Sumário
1) Introdução: Paulo Roberto de Almeida, 4 de março de 2019 1
2) Rubens Ricupero, 25 de fevereiro de 2019 2
3) Fernando Henrique Cardoso, 3 de março de 2019 13
4) Ernesto Araujo, 3 de março de 2019 15

1) Introdução: Paulo Roberto de Almeida, 4 de março de 2019


Em toda a minha carreira diplomática, sempre defendi ideias próprias sobre as
orientações de nossa política externa, o que aliás foi objeto de algumas controvérsias e
uma tantas advertências de superiores quanto a certas posturas que mantive e mantenho
em discordância eventual com as orientações oficiais. Nunca me abstive de expressar
minhas opiniões a esse respeito, inclusive por escrito, o que aliás suscitou uma ou outra
“punição” em certas ocasiões, e um longo ostracismo sob o lulopetismo, que sempre
considerei a deformação maior de nossa política, não apenas pela sua extraordinária
inépcia administrativa e formidável corrupção, mas também pelos equívocos de política
econômica, que nos levaram ao que já chamei de “Grande Destruição”, a inédita
recessão que ainda penaliza o povo brasileiro até muitos anos à frente.
Na área da política externa – justamente a que motivou a minha longa travessia
do deserto durante toda a duração do criminoso regime –, minhas discordâncias eram
conceituais, operacionais, metodológicas, substantivas e de estilo, ou seja, em toda a
linha. Em qualquer hipótese, numa me eximi de manifestar essas discordâncias, de
forma mais discreta ao início, de maneira aberta ao final, e atualmente. Mas, já estamos
em outro regime, supostamente oposto em toda a linha ao regime lulopetista anterior.
Isso não me exime, no entanto, de continuar seguindo a política externa do atual
governo, e de formular eventualmente a minha opinião sobre as orientações em curso.
No momento, não disponho de nenhum texto estruturado sobre a atual diplomacia,
inclusive porque não tivemos, até o presente momento, nenhuma exposição abrangente,
sistemática e completa sobre os fundamentos políticos, as orientações conceituais, as
prioridades e as preferências táticas da política externa do governo Bolsonaro, a não ser

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a emissão de alguns grandes slogans, que não constituem um documento de política,
mas apenas conceitos gerais, que revelam intenções, mais do que uma estratégia precisa.
Mas, o debate já está aberto, aliás desde antes das eleições, e desde antes da
posse do novo governo, em função de declarações do chanceler designado, o que
suscitou uma série de reações, favoráveis e contrárias, na comunidade interessada em
política externa. De minha parte não me pronunciei a respeito, mas venho seguindo
atentamente essas manifestações, e postando no meu blog Diplomatizzando os textos
mais relevantes. É o caso agora, com três exposições razoavelmente abrangentes sobre
essas orientações gerais em política externa, e mais especificamente sobre a Venezuela,
possível o caso que servirá de teste para a diplomacia brasileira na presente conjuntura.
Além desse test-case, permanecem questões de fundo que ainda serão mais debatidas.
Transcrevo aqui os três textos mais significativos do debate atual, os dois primeiros
nominalmente mencionados no terceiro, do próprio chanceler, que os acusa, de forma
direta e nominal, de serem parte de uma diplomacia que ele rejeita e abomina.
O debate está aberto, e certamente teremos outros textos e outras polêmicas.
Minha função é esta: abrir meu espaço público a ideias inteligentes para o debate
de pessoas inteligentes.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4 de março de 2019

2) Rubens Ricupero, 25 de fevereiro de 2019


Política externa: desafios e contradições
Rubens Ricupero
CEBRI - Casa das Garças, 25 de fevereiro de 2019.

Encontrei no texto de um jovem historiador, Daniel Afonso da Silva, frase que


define o estado de espírito com que preparei estes comentários. A frase é de Ortega y
Gasset, que dizía: “No sabemos lo que nos pasa y esto es precisamente lo que nos pasa,
no saber lo que nos pasa”.
As palavras de Ortega expressam bem a perplexidade do homem diante de um
mundo em transformação não só vertiginosa, mas sem interrupção. Confrontados por
mudanças bem mais estonteantes que as de então, também nós nos perguntamos: o que
nos passa, o que nos está a suceder no Brasil e no mundo? Tudo, a política externa e a
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rigor qualquer política, tudo parte da resposta que dermos a essa pergunta. Isto é, a
definição da política nasce da maneira certa ou errada com que formos capazes de
apreender e interpretar a realidade interna e externa.
Em 1905, o barão do Rio Branco comentava: “A verdade é que só havia grandes
potências na Europa e hoje elas são as primeiras a reconhecer que há no Novo Mundo
uma grande e poderosa nação com que devem contar...”. Dessa percepção acertada da
emergência de um novo centro de poder mundial próximo a nós, Rio Branco extraiu
uma decisão: estabelecer na capital dos Estados Unidos a primeira missão diplomática
brasileira em nível de embaixada, fato raro na época. Para não deixar dúvida a respeito
de sua intenção, declarou: “Desloquei o eixo das relações diplomáticas do Brasil de
Londres para Washington”.
Eis aí um exemplo bem-sucedido de análise precisa da realidade internacional
seguida da consequência prática que se devia retirar dessa percepção. Trinta e cinco
anos depois, em meio à fulminante ofensiva nazista, ao colapso do exército francês, três
dias antes da ocupação de Paris, o ditador Getúlio Vargas, em discurso no encouraçado
Minas Gerais, acreditava vislumbrar o “limiar de uma nova era” na qual “os povos
vigorosos, aptos à vida, necessitam seguir o rumo de suas aspirações, em vez de se
deterem na contemplação do que se desmorona e tomba em ruina” (11 de junho de
1940).
Por sorte, o ministro das Relações Exteriores se chamava Oswaldo Aranha, uma
das raras vocações autênticas de político de forte convicção democrática e liberal que o
Brasil produziu. Sua força de caráter e perseverança, favorecidas pelo oportunismo
varguista após a entrada na guerra dos Estados Unidos, pouparam ao país o erro
irreparável do qual os argentinos se penitenciam até hoje. Como escreveu seu biógrafo
Stanley Hilton: “a história do Brasil poderia ter sido outra, caso este homem de ação
não estivesse à frente da chancelaria nas horas cruciais de tomada de posição entre as
duas grandes coalizões de forças [...] no final dos anos 1930”.
Esses dois exemplos de passado não muito distante provam o ponto central da
discussão: a fim de acertar em política, é preciso contar com diagnóstico correto dos
problemas e da situação. Para tanto, o processo decisório deve estar em mãos de pessoas
de qualidade moral e intelectual não necessariamente iguais a Rio Branco e Aranha,
mas de experiência e talentos razoáveis. Será que preenchemos essas duas condições
neste momento?

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Antes de responder, temos de indagar se é possível, a esta altura, cumprir a
promessa de dizer algo de significativo acerca da política externa de Bolsonaro. Na data
de hoje, o governo completa 56 dias de vida. Em parcela não desprezível do período,
esteve quase acéfalo devido à hospitalização do presidente. Em menos de um mês, o
vice-presidente respondeu duas vezes pelo governo, gerando ciúmes e desconfianças.
Nesse quadro, de que elementos dispomos para indicar como o Chefe de Estado
e seus principais colaboradores encaram o mundo atual e seus desafios? Normalmente,
deveríamos partir de documentos e discursos programáticos. Nesse capítulo, a colheita é
pobre, por não ter havido tempo talvez ou capacidade intelectual de produzir textos
panorâmicos. Quando a oportunidade se apresentou, como no encontro de Davos,
preferiu-se optar por discurso minimalista, sem maiores generalizações.
Somos assim forçados a extrair aqui e ali, de entrevistas, mensagens, discursos,
os fragmentos de uma narrativa que permitam reconstruir o que seria a visão que o
governo tem do mundo e do Brasil. Uma primeira pista, na Apresentação da mensagem
ao Congresso, espanta pela evidente desconexão que revela com a realidade: “O Brasil
resistiu a décadas de uma operação cultural e política destinada a destruir a essência
mais singela e solidária de nosso povo, representada nos valores da civilização
judaico-cristã”.
Pondo de lado o reducionismo simplista dessa distorção da história brasileira
recente, a afirmação aplica a nosso país a fórmula com que setores de extrema direita
pretendem explicar a crise do mundo atual. Segundo essa visão, vive-se no momento
uma ofensiva mortal contra a chamada civilização judaico-cristã conduzida por forças
obscuras como o “marxismo cultural”, o “alarmismo ambiental”, o “globalismo”. Este
último é conceito confuso e difuso, uma espécie de conspiração da ONU, das
organizações internacionais, do multilateralismo, para impor aos países
comportamentos contrários à tradição e à própria natureza, como a ideologia de gênero,
a aceitação da diversidade sexual etc. Em termos concretos, a ameaça viria da China e
do seu capitalismo anacronicamente chamado de “maoísta”.
O discurso de posse do ministro das Relações Exteriores constitui do começo ao
fim uma diatribe contra a ordem global, da qual promete: “libertar a política externa,
[...] libertar o Itamaraty”, pois, “a política externa brasileira estava presa fora do
Brasil”. Peremptoriamente adverte: “Não estamos aqui para trabalhar pela ordem
global. Aqui é o Brasil”. O problema do mundo seria o ódio ao lar, ao próprio povo, o

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ódio a Deus, que perfaz a agenda global, com o intuito de acabar com as nações, afastar
o homem de Deus e destruir a humanidade, nada menos que isso.
Obviamente não se pode tomar a sério formulações como essas, vazias de
conteúdo, disparates pronunciados com pompa e falta de senso do ridículo. Se duvidam
do que digo, vejam esta pérola de profundidade filosófica: “O mito é o mito”. O texto é
todo assim, comprometido pelo exibicionismo pedante de descabidas digressões
filológicas, recheadas de citações em grego. Não falta nem um trecho em tupi-guarani
que reconfortaria o coração do major Policarpo Quaresma, incompreendido na proposta
de adoção da língua brasílica como idioma nacional “por estar adaptada perfeitamente
aos órgãos vocais e cerebrais dos brasileiros”.
Para quem admirava na tradição do Itamaraty o senso de medida e proporção, o
equilíbrio, o realismo, a moderação construtiva, é penoso constatar que o discurso do
sucessor de Rio Branco e Aranha, de Afonso Arinos e San Tiago Dantas, desperta hoje
chacotas, zombarias, hilaridade. Voltando à pergunta inicial sobre se dispomos de
presidente ou ministro capaz de diagnosticar corretamente a realidade, a resposta que se
impõe é não. Manifestamente, nem o presidente, nem seu ministro, sabem o que nos
passa, são incapazes de compreender a complexidade da sociedade global e de traçar
nela a linha a ser seguida pelo país.
Num governo heterogêneo no qual o espectro de racionalidade varia bastante de
uma ponta à outra, as relações internacionais se situam infelizmente no extremo
periférico que os americanos chamam de “lunatic fringe”, a franja lunática das
opiniões.
Vejamos agora o que produziu em termos de ações e iniciativas concretas a
combinação de inépcia diplomática com excentricidade ideológica. Cabem aqui não
apenas as decisões executadas. Também as adiadas ou frustradas após o anúncio devido
a reações desfavoráveis geram efeitos negativos que devem ser debitados aos
responsáveis. Desse ponto de vista, o processo decisório do governo tem sido tão rico
em confusões que um jornalista chegou a comentar que Bolsonaro acertava quando
recuava e errava quando avançava.
O que mais assombra é que decisões de implicações gravíssimas para a
segurança ou os interesses nacionais são anunciadas e suspensas com leviandade
reveladora da irresponsabilidade de seus autores. É o caso de três desses anúncios: a da
oferta de uma base militar aos Estados Unidos após a visita do Assessor John Bolton, o
da mudança da embaixada brasileira de Tel Aviv a Jerusalém e o da retirada do Brasil
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do Acordo de Paris sobre Mudança Climática. Em nenhum desses exemplos se
apresentou qualquer justificativa racional e válida para fundamentar a decisão.
Uma base militar constitui, no interior da soberania nacional, um enclave de
jurisdição de potência estrangeira, similar a Guantánamo em Cuba. Em perto de 200
anos de vida independente, somente uma vez o Brasil concedeu bases a outro país, e
isso apenas em situação de guerra, durante a Segunda Guerra Mundial. Que ameaças
sofremos agora para cogitar repetir ação que só se contempla como preliminar de guerra
ou de grave perigo? Que consequências traria para a segurança de nossa população o
eventual uso de uma base para atacar outra nação? Quais as implicações do ponto de
vista da Constituição? é possível tomar decisão de tamanha gravidade sem aprovação do
Congresso?
A ideia parece haver sido abandonada devido à reação adversa dos militares. No
entanto, o simples fato de ter sido discutida com alta autoridade americana deixa-nos
alarmados e inseguros. Não se esclareceram as circunstâncias desse episódio obscuro,
aspecto essencial para medir-lhe o alcance. De quem partiu a iniciativa? De Bolton, do
presidente Bolsonaro, de Eduardo Bolsonaro, na visita semiclandestina que efetuou a
Washington? Fica-se com a impressão de que na relação com os EUA, o céu é o limite,
como disse o ministro Ernesto Araújo, ou mais apropriadamente, que não existe nessa
relação nenhum limite, nem o da decência, nem o da soberania ou do patriotismo.
A motivação da transferência da embaixada em Israel nada tem a ver com
interesses do Estado ou do povo brasileiro. Por considerações eleitorais, destina-se a
atender ao setor mais obscurantista e retrógrado de seitas evangélicas que impõem ao
governo suas bizarras crenças escatológicas. A proposta fere de frente a Constituição da
República, leiga e independente de qualquer fé religiosa. O Brasil sempre defendeu que
a fixação definitiva da capital deveria se subordinar a acordo resultante de negociações
entre Israel e os palestinos, inspiradas na teoria da coexistência dos dois Estados.
Na ausência de solução negociada, a transferência da embaixada significaria
tomar partido em favor de medida imposta por conquista militar, abandonando a
equidistância entre as partes. Passaríamos a ser vistos como aliados do lado israelense,
inimigos dos palestinos e de uma saída negociada e pacífica para o conflito no Oriente
Médio aos olhos dos árabes e das centenas de milhões de muçulmanos do mundo
inteiro.
O governo não foi capaz de apontar um só interesse objetivo do Brasil, de ordem
política, comercial, de imagem e de soft power, que seria servido por tal decisão. Ao
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contrário, os riscos de prejuízos são consideráveis e evidentes. Basta lembrar que nada
menos que quarenta e nove por cento do total das vendas brasileiras de proteína animal
se destina a mercados árabes e do Irã. A mobilização dos setores exportadores
ameaçados deteve até o momento a marcha da insensatez.
Ainda que a medida não se concretize, o simples anúncio seguido de incontáveis
idas e vindas cria a sensação de governo errático e não confiável. Muito mais que as
perdas comerciais, já perceptíveis na mudança de atitude da Arábia Saudita, do Egito e
outros árabes, talvez seja irreparável o dano político causado à reputação no Oriente
Médio de uma diplomacia outrora respeitada pelo equilíbrio e estabilidade.
Bem mais avariada sai a reputação da diplomacia brasileira do quiproquó
relativo ao Acordo de Paris sobre Clima. O presidente Bolsonaro anunciara a princípio
que seu governo se retiraria do Acordo invocando razões inteiramente falsas, dignas das
fake news de seu modelo inspirador Donald Trump. Alegou que o tratado violava a
soberania do país, impondo-lhe metas inatingíveis.
Na verdade, uma das características do instrumento e sua principal fraqueza é
que as metas são voluntárias e definidas pelos países, por isso mesmo denominadas
NDCs (Nationally Determined Contributions) ou Contribuições Determinadas
Nacionalmente. Ora, pouco antes da afirmação de Bolsonaro, o então ministro do Meio
Ambiente do governo Temer, Edson Duarte, havia anunciado (13/12/2018) que o Brasil
se antecipara em dois anos ao cumprimento da meta de redução de emissões, que
deveria ser atingido apenas em 2020.
A segunda razão invocada pelo desinformado presidente é que o Acordo forçaria
goela abaixo do Brasil algo misterioso intitulado Corredor Tríplice A ou Caminho da
Anaconda. Trata-se de proposta de Martin von Hildebrand, americano naturalizado
colombiano, para preservar uma faixa de floresta de 200 milhões de hectares dos Andes
até o Atlântico pela Amazônia, seguindo o curso do Solimões, através de terras de oito
países amazônicos, onde vivem 385 comunidades indígenas e 30 milhões de pessoas. A
mera enunciação dos números evidencia o caráter de ficção da ideia, do mesmo gênero
que o famoso projeto dos Lagos, do Hudson Institute, nos anos 1970. A elucubração
jamais saiu do papel e nunca chegou sequer às discussões oficiais conducentes ao
Acordo de Paris, que, como recordamos acima, se baseia em contribuições voluntárias
dos governos.
O que salvou o Acordo foi a intervenção de um dos principais apoios do
presidente, o agronegócio. Inúmeros componentes do agro, do setor de produtos
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florestais ao do cacau e café, alertaram que dependiam do Acordo para acessar centenas
de milhões de dólares disponíveis para projetos de desenvolvimento agropecuário
sustentáveis. Visivelmente a contragosto, o governo teve de admitir que “por ora” não
deixaria o tratado.
De qualquer forma, a sobrevida precária que assim se conferiu à presença
brasileira no Acordo apenas atenua um pouco, sem mudar em substância, o abalo
dramático e perdurável ocasionado ao respeito de que desfrutou nossa diplomacia
ambiental. Fomos um dos principais artífices do tratado, confirmando que no domínio
do meio ambiente nenhuma solução pode ser alcançada sem a participação ativa do
nosso país, potência ambiental graças à maior floresta equatorial do mundo, à maior
reserva de água doce, ao imenso patrimônio de biodiversidade, à riqueza de alternativas
de energia limpa e sustentável. Como classificar uma diplomacia que joga fora esse
ativo na questão que constitui a mãe de todas as ameaças, o risco mais grave à
sobrevivência da civilização humana no planeta?
O que existe de comum entre os três anúncios – o da base militar, da
transferência da embaixada e da retirada do Acordo de Paris – é que em todos, o
governo Bolsonaro adere à agenda de Donald Trump de maneira mecânica e caudatária.
Uma das semelhanças entre os dois governos é que tanto Trump como seu discípulo
brasileiro insistem em romper com tudo o que se fazia nos governos anteriores.
Em menos de dois meses, o governo Bolsonaro pode jactar-se de haver
efetivamente promovido a demolição radical da política externa que, em linhas gerais,
vinha sendo seguida desde o governo Geisel. Essa orientação mereceu em 1984 de
Tancredo Neves, líder da oposição, o seguinte juízo: “Se há um ponto na política
brasileira que encontrou consenso em todas as correntes de pensamento, esse ponto é a
política externa levada a efeito pelo Itamaraty.”
Depois da redemocratização, não houve solução de continuidade na política
externa. Sua essência consistia na recusa da lógica da Guerra Fria e do alinhamento
automático à visão e à agenda dos EUA e das grandes potências. Gelson Fonseca
resumiu a diplomacia do governo FHC numa fórmula que se aplicaria a rigor a muitos
governos desde 1985, mesmo aos do PT: a busca da autonomia pela participação. Ao
fazer do alinhamento com os Estados Unidos a marca definidora de sua política externa,
o governo Bolsonaro causa uma ruptura na linha diplomática brasileira dos últimos 44
anos.

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Retrocede ao momento imediatamente posterior ao golpe militar no governo
Castelo Branco e ao chamado alinhamento automático dos tempos áureos da Guerra
Fria, no governo Dutra da segunda metade dos anos 1940. Com um agravante: naquela
época, os dirigentes brasileiros encaravam a luta contra a União Soviética liderada pelos
americanos como equivalente ao combate interno contra o Partido Comunista e a
subversão. Em outras palavras, havia coincidência entre a agenda interna do Brasil e a
agenda internacional dos EUA.
Essa coincidência desapareceu com o fim da Guerra Fria, do comunismo e da
União Soviética. Desde então, a agenda internacional americana se concentra em temas
como a contenção da ascensão da China; o antagonismo com a Rússia; os problemas
derivados das invasões do Afeganistão, do Iraque, da queda de Gaddafi na Líbia, as
ameaças do terrorismo fundamentalista islâmico; o programa nuclear e de mísseis da
Coreia do Norte; a hostilidade ao Irã e sua influência na Síria; a contenção da
imigração. Nenhum desses assuntos tem algo a ver com interesses brasileiros e em
certos aspectos até os contrariam.
Os entusiastas do alinhamento não vão demorar a descobrir que os americanos
são amos insaciáveis e intratáveis, que exigem adesão total e sem reservas. Não se
contentam com relações platônicas. Por haver intuído isso, o finado chanceler argentino
Guido Di Tella havia proclamado em tom de deboche: “No queremos tener relaciones
platónicas: queremos tener relaciones carnales y abyectas”.
A sujeição à agenda de Trump começou cedo. Em meados de fevereiro, o
ministro do Exterior compareceu, sem qualquer justificativa de interesse brasileiro, à
reunião de Varsóvia convocada pelos EUA para apertar o cerco contra o Irã. A reunião
foi um fracasso, pois se abstiveram de participar os ministros de relações exteriores da
França, da Alemanha e da União Europeia, justamente os que os americanos desejavam
pressionar a abandonar o acordo nuclear com os iranianos. Entretanto, a presença do
Brasil como coadjuvante do coro pró-americano chama a atenção para fato alarmante.
Por motivação puramente ideológica e a fim de agradar os americanos, a
diplomacia atual está disposta a sacrificar interesses brasileiros concretos. O Irã
representa 7% do total das exportações brasileiras de carne, tanto quanto a União
Europeia. No ano passado, vendemos aos iranianos um bilhão de dólares de milho, mais
de quinhentos milhões de soja, 328 milhões de carnes. O intercâmbio com Teerã rendeu
ao Brasil seu quinto maior superávit comercial. Os exportadores brasileiros estão sendo
obrigados a despachar seus produtos através do território da Turquia. Que interesse teria
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o país em prestigiar as sanções americanas, unilaterais, ilegais e prejudiciais ao
comércio brasileiro?
Mas o verdadeiro preço que o governo Trump cobrará de Bolsonaro não é o Irã,
nem a embaixada em Jerusalém, ou a saída do acordo de Paris. O objetivo primordial da
estratégia norte-americana reside na contenção da China, na luta para impedir que os
chineses alcancem a superioridade em tecnologias de ponta que lhes assegure a posição
de primeira superpotência mundial. É isso que está em jogo no conflito comercial entre
os dois gigantes. O Brasil, assim como a América Latina, a África e outras regiões
passam a ser cenários da disputa estratégica.
Em recente entrevista a O Estado de São Paulo, ao ser indagado sobre o que
Trump espera do governo Bolsonaro, Steve Bannon respondeu: “Claramente, há uma
preocupação com a China [...] O Brasil será um dos campos de batalha, pois a China
não vê o Brasil pelo seu capital humano [...] O que eles veem é uma ampla
oportunidade de recursos naturais e de agricultura. O tipo de capitalismo que fazem no
Brasil e na África subsaariana [...]é o capitalismo predatório dos chineses que tem de
ser contido. Um dos locais-chave para contê-lo é o Brasil.”
Essa opinião não mereceria maior atenção se fosse restrita a Bannon ou mesmo
aos governantes de Washington. O problema é que ela se parece estranhamente à visão
do próprio Bolsonaro, segundo o qual a China quer comprar o Brasil, não comprar do
Brasil. Após essa declaração, puseram-se panos quentes, o presidente-eleito recebeu o
embaixador chinês, o mesmo fez o vice, general Mourão. É inegável, porém, que a
relação Brasil-China se rachou, acendeu-se uma luz amarela e as coisas não serão mais
o que eram antes.
Bolsonaro já atribuiu a motivos ideológicos a expansão do comércio brasileiro
com a China e prometeu fazer com que o intercâmbio do Brasil com os EUA volte a ser
dominante em nossas trocas externas. Para uma plateia qualificada como esta, não
preciso demonstrar com números e porcentagens porque o mercado chinês desempenha
papel insubstituível no saldo comercial e nas relações econômicas externas do país.
Tampouco necessito mencionar que o progressivo declínio das exportações
brasileiras ao mercado americano se deve a fatores dificilmente reversíveis: a
concentração de nossas vantagens comparativas em produtos primários nos quais os
EUA são nossos concorrentes (soja, milho, carne bovina, de frango, suco de laranja,
algodão), o colapso da competitividade exportadora da indústria, a diversificação de

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nossos mercados, as cadeias integradas de valor com o contíguo México que os
americanos consolidaram ao longo de 25 anos do NAFTA etc.
Há uma contradição insanável entre o populismo antiglobalista, alma do
governo, e o liberalismo de Guedes, avesso a subsídios, empenhado na abertura da
economia, na redução das barreiras e na inserção do país na economia global. Na
primeira escaramuça acerca da importação de leite em pó, o setor ruralista impôs uma
derrota à equipe econômica. Haverá outras, pois as contradições estão por todo o lado,
como entre evangélicos e o agronegócio na questão da mudança da embaixada.
A insensibilidade para interesses concretos deriva da incapacidade de perceber a
realidade, a brasileira e a internacional. Significativa do descolamento da realidade é a
lista tanto dos países nominalmente privilegiados no discurso de posse do chanceler
quanto as omissões, talvez mais eloquentes ainda. Nomeados individualmente foram
apenas os EUA de Trump, o Israel de Netanyahu, a “nova” Itália de Salvini, a Hungria
de Viktor Orban e a Polônia. A mistura é digna de uma salada russa. O tempero que lhe
dá unidade é o caráter iliberal ou antiliberal dos regimes, a hostilidade a imigrantes e
refugiados, o nacionalismo, a negação dos direitos humanos, dos problemas ambientais,
da promoção da igualdade entre mulheres e homens.
Pertencer a esse grupo é condenar-se ao isolamento e à reprovação da opinião
pública mundial. Para o Brasil, é retroceder aos tempos do regime militar. Nessa época,
o país cultivava o mau hábito de sair esmagado nas votações da ONU, na companhia
solitária do Portugal salazarista, da África do Sul do apartheid, de Israel e dos EUA.
Sofríamos, segundo o embaixador Araújo Castro, do complexo de Greta Garbo (I want
to be alone), eu quero ficar sozinha. É o que nos espera novamente.
Em outras palavras, vamos perder, se é que já não perdemos, a única coisa que
nos restou depois que o colapso político-econômico dos últimos anos liquidou, dentro e
fora do Brasil, a imagem de um país que tinha dado certo. O que sobrara, não obstante o
fracasso, era um patrimônio não desprezível de poder brando ou suave, de soft power,
de respeito por uma diplomacia profissional competente, comedida, força construtiva de
moderação e equilíbrio. Agora, restará apenas o fracasso.
Dentre as omissões do discurso oficial, destacam-se a Argentina, o Mercosul, o
México, a Aliança do Pacífico, a União Europeia, a China, a Ásia, a Índia, o grupo dos
BRICS, o Oriente Médio, em resumo, as áreas de concentração das oportunidades de
exportação, a começar pelo agro. Outro exemplo da incapacidade de reconhecer o
interesse nacional é o da migração. Em contraste com os EUA de Trump, o Brasil é hoje
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país de emigração, muito mais que de imigração. Que sentido tem então retirar a
assinatura do Pacto Global para Migração, de cuja proteção poderiam beneficiar-se três
milhões de brasileiros emigrantes?
Nas últimas semanas, a crise venezuelana ofereceu ao Brasil a oportunidade de
aglutinar os latino-americanos em torno de uma solução para restabelecer a democracia
sem interferência de potências de fora. Poderíamos ter proposto um programa mínimo
com base na realização de eleições sob administração de transição e fiscalização
internacional. Preferimos passivamente deixar a iniciativa e a liderança ao governo
Trump, aceitando figurar como atores coadjuvantes de uma empresa sobre a qual não
exercemos nenhum controle. Colaboramos para fazer a América do Sul retroceder a
cenário de rivalidade de EUA e Rússia.
Não admira que os diplomatas estrangeiros tenham começado a gravitar em
torno do vice, general Mourão, que desponta surpreendentemente, em meio ao desvario
ideológico, como fonte de sensatez e realismo. Simplesmente por ter os pés no chão,
começa a acumular poder.
Sobre os menos de dois meses da política externa, não resta muito a dizer.
Deixei de fora os aspectos mais extravagantes e os mais inquietantes, entre eles o
patrulhamento ideológico no Instituto Rio Branco, no Instituto de Pesquisas em
Relações Internacionais, a reforma administrativa açodada feita por estranhos ao
Itamaraty, imposta de cima para baixo, com violação da hierarquia funcional, subversão
de práticas e procedimentos testados na experiência.
A partir de agora, as viagens presidenciais aos EUA e Israel previstas para
março devem começar a produzir, se não resultados concretos de monta, ao menos
exposições mais sistemáticas do que pretende o governo com a diplomacia. Pela
amostragem que vimos, é difícil esperar grande coisa.
Afinal, o próprio vice-presidente, general Mourão, em entrevista à Época, e cito
aqui a matéria “ironizou o destaque aos EUA e a Israel dado pelo chanceler nas
relações diplomáticas. -Vai todo mundo virar israelense desde criancinha? Vai todo
mundo virar fã dos americanos de qualquer jeito? Indagou em tom de troça. – A
diplomacia são métodos e objetivos, não um fim. É preciso inserir conceitos claros, não
interferir em assuntos de outros países”.

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E, sugeriu como título da reportagem: “Terá Ernesto condições para tocar e
dizer o que é a política externa do Brasil?” Termino com os comentários e a pergunta
do general, pois não saberia encontrar melhor fecho1.

3) Fernando Henrique Cardoso, 3 de março de 2019


A vez da Venezuela
Insistirá o governo do Brasil no descaminho de subordinar a política externa a uma
ideologia?
*Fernando Henrique Cardoso
O Estado de S. Paulo, 03 de março de 2019

O Brasil está sendo confrontado com sua História. Quem leu o texto recente de
Rubens Ricupero sobre a política externa do governo Bolsonaro perceberá os
descaminhos pelos quais poderemos enveredar. Diante dos ensaios de ruptura com as
tradições de nossa política externa, empalidecem as diferenças de matiz político-
ideológico observadas desde José Sarney até Michel Temer. Basta ler o livro Um
Diplomata a Serviço do Estado, do embaixador Rubens Barbosa, para ver que se
manteve certo consenso básico sobre o interesse nacional e sobre o modo de adequá-lo a
mudanças nos ventos do mundo.
Historicamente a condução da nossa política externa obedeceu a linhas de
continuidade, com raras exceções em períodos não democráticos. É ao barão do Rio
Branco que se atribui a noção de que deveríamos manter boas relações com os Estados
Unidos para fazer o que nos convém na área que nos toca mais de perto, a América do
Sul. Na guerra contra o nazismo até bases estrangeiras foram autorizadas a se instalar no
Brasil. Mas foi um momento histórico excepcional a requerer que agíssemos assim. Em
regra, nunca houve adesões incondicionais: primaram nossos interesses soberanos.
Mesmo na guerra fria, quando o bloco capitalista se opunha ao bloco comunista,
buscamos manter certa autonomia.
Com a globalização muita coisa mudou no ambiente político e, sobretudo, na
interconexão econômica dos países. A diplomacia brasileira, porém, não deixou de se
orientar pelo interesse nacional. Em artigo recente publicado neste espaço disse que o

1 Em entrevista mais recente à BBC (22/2/2019), indagado sobre as declarações à Época, Mourão

respondeu: “Eu mudei meu pensamento em relação ao nosso chanceler. Ele está organizando o
Itamaraty de acordo com as ideias que ele tem e está colocando foco nas diretrizes do presidente”. Não
preciso acrescentar que essas palavras, longe de alterar nossas preocupações, apenas as agravam.
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atual governo abusa da inconsistência em certas áreas. Para onde nos pode levar esse
“abuso da inconsistência” na política externa?
Entende-se que haja incertezas na atualidade, advindas da nova página que se
está abrindo nas relações entre os Estados Unidos e a China. A aceitação recíproca,
obtida graças às reformas de Deng Xiaoping, às teorias sobre o “socialismo
harmonioso” e à ascensão pacífica da China, começa a mudar. Os chineses queriam
evitar a “armadilha de Tucídides”: a emergência de nova potência levaria a guerras com
o antigo hegemon. Assim, o país abriu a sua economia para capitais internacionais o
usarem como plataforma de exportação e se tornou o principal financiador do déficit
comercial dos Estados Unidos, comprando títulos do Tesouro americano. Essa
estratégia assegurou tempo e gerou os recursos necessários para que a China ampliasse
o mercado interno e investisse na formação de empresas globais capazes de disputar a
liderança tecnológica com suas rivais americanas.
Estamos chegando a uma profunda revisão dessas políticas, adotadas quando a
coincidência de interesses prevaleceu sobre a rivalidade, em ambas as partes. A luta
tecnológica pelo predomínio no mundo globalizado pode produzir surpresas
desagradáveis. Por trás da retórica arrogante e aparentemente desconexa de Trump
existe uma luta real pelo predomínio global. A chamada “guerra comercial” é um
sintoma dessa disputa nas tecnologias determinantes do poder futuro, na economia e no
campo da segurança. As tensões no Pacífico, do sul da costa chinesa ao litoral do
Vietnã, são a face mais visível da dimensão militar do conflito entre as duas potências.
O antagonismo ainda é mais agudo no ciberespaço, onde batalhas são travadas
diariamente.
Nesse quadro, que interesse poderia ter o Brasil em assumir a priori um dos
lados da disputa? Os que sustentam que devemos alinhar-nos em tudo à Casa Branca
desconhecem que a sociedade americana é democrática e seu atual ocupante não
expressa necessariamente um consenso duradouro. Vamos transferir a embaixada em
Israel de Tel-Aviv, contrariando nossa histórica pregação em favor de dois Estados
naquela região do Oriente Médio?
E que sentido faz criticar a própria ONU como suspeita de “globalismo”, do
qual ela seria o instrumento? A única consequência prática é macular a imagem do
Brasil em áreas tão sensíveis e importantes quanto o são os direitos humanos, o meio
ambiente e a imigração. O dano à imagem do País, uma vez cristalizado, terá

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consequências contra os nossos interesses, como já se deram conta os setores mais
lúcidos do empresariado brasileiro.
Insistirá o governo no descaminho de subordinar a política externa a uma
ideologia, e não às realidades? Em nenhum outro lugar as consequências dessa
reviravolta seriam mais nocivas que na nossa vizinhança. A crise da Venezuela se
aprofunda. O caso remete à “política do barão”, pois mexe com nossos interesses mais
imediatos, na América do Sul. É de louvar a prudência dos militares, mas é de temer a
vocalização de alguns líderes políticos sobre nossa ação nesse drama. Sejamos claros: o
governo Maduro é antidemocrático e insustentável. Não é de hoje que tenho me
manifestado publicamente dessa maneira, em reuniões internacionais, acadêmicas e
políticas. Contudo falar em permitir bases estrangeiras em território nacional ou em
abrir caminho para aventuras guerreiras nas nossas vizinhanças não tem nada que ver
com os interesses brasileiros de longo prazo. E em política externa é disso que se trata.
Apoiar a oposição venezuelana é uma coisa. Imaginar que se deva fazer o que
foi feito na Líbia, pensando que forças externas podem reconstruir a democracia no
país, é ignorar os fatos. Os desatinos verbais têm sido de tal ordem que resta o consolo
de ver os militares recordarem que temos uma tradição de altanaria e soberania a
respeitar, soberania nossa e dos demais países.
Bom mesmo seria ver o Itamaraty voltar a ser coerente com sua tradição:
ressaltar e criticar o autoritarismo predominante na Venezuela, apoiar a oposição, dar
acolhida às vítimas do arbítrio do atual governo e manter acesa a chama democrática.
Abrir espaço para que terceiros países, mormente distantes da América do Sul, queiram
resolver o drama político pela força não nos convém e fere nossas melhores tradições de
atuação internacional.

*SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA

4) Ernesto Araujo, 3 de março de 2019


Contra o consenso da inação
Ernesto Araújo
Metapolítica 17, 3/03/2019
https://www.metapoliticabrasil.com/blog/contra-o-consenso-da-
ina%C3%A7%C3%A3o

A política externa brasileira foi uma política de “consenso” nos últimos 25


anos porque refletiu um consenso mais amplo, o consenso na base do sistema político
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que ameaçou sufocar a nação brasileira com a corrupção e a estagnação econômica, a
crise moral e o enfraquecimento militar, o apequenamento internacional, o descaso
pelos sentimentos do povo brasileiro.
Os brasileiros rejeitaram esse consenso nas urnas, em outubro de 2018, ao
escolher o único candidato que se ergueu contra o sistema. Insistir agora em que esse
consenso continue a prevalecer na esfera da política externa, por temor e preguiça, sob o
pretexto de “manter as tradições”, seria trair o povo brasileiro.
O “consenso” na política externa, com sua “maturidade” e “equilíbrio”,
permitiu ao longo desse período a subida de Chávez na Venezuela, o predomínio
crescente do bolivarianismo na América do Sul concebida como um bloco socialista, a
consolidação de Chavez e Maduro no poder, a corrosão progressiva de todos os
elementos do Estado Democrático de Direito naquele país, sua entrada no Mercosul a
ponto de quase destruir o bloco, a deliberada política do regime de Caracas de criar
miséria para reforçar o controle sobre a sociedade – tudo isso sob as barbas do nosso
“consenso”. Alguns apoiaram abertamente o chavismo. Outros fingiram que foram
contra mas não fizeram nada de concreto. Aquilo que parecia haver de defesa da
democracia na política brasileira para a Venezuela no último governo extinguiu-se
completamente, entre sorrisos, em setembro de 2018, na reunião de Aloysio Nunes com
o chanceler de Maduro em Nova York, onde o lado brasileiro aceitou na prática a
normalização das relações com a Venezuela sob o pretexto de que “é um país com o
qual fazemos fronteira”. Se permanecesse aquele maravilhoso consenso, não haveria
hoje um pingo de esperança para a Venezuela, e Maduro estaria firme, sem qualquer
receio de perder o poder, sorrindo ao ver as crianças venezuelanas comerem lixo.
Eu vi com meus próprios olhos essas crianças e seus pais, nas fronteiras da
Colômbia e do Brasil com a Venezuela. Eu ouvi os venezuelanos em Cúcuta gritando
“obrigado Brasil” e apertei suas mãos, eu escutei suas vozes rasgadas de esperança,
gritando “Venezuela libre!” e gritei junto com elas. Eu senti o seu enorme anseio de que
agora, finalmente, graças em grande parte ao novo Brasil, os venezuelanos possam
recuperar sua pátria e sua dignidade humana, com o fim iminente da ditadura. Eu
abracei Juan Guaidó, esse líder destemido que, sob risco de vida, corporifica o sonho de
uma nova Venezuela, vi os índios pemones que viajaram até Brasília, grande parte do
trajeto a pé, e saudaram Guaidó em frente ao Itamaraty, e entoaram um cântico por seus
parentes massacrados por Maduro – tudo isso enquanto Rubens Ricúpero e Fernando

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Henrique Cardoso escreviam seus artigos espezinhando aquilo que não conhecem,
defendendo suas tradições inúteis de retórica vazia e desídia cúmplice.
O Presidente Bolsonaro e eu estamos, sim, rompendo esse consenso infame.
Estamos rompendo com a tolerância irresponsável que ajudou a acobertar os crimes do
regime chavista-madurista, e que continuaria acobertando até hoje, se o sistema que
vinha governando o Brasil permancesse no poder.
A esperança de uma nova Venezuela não existiria sem o novo Brasil. A
atuação do Brasil no Grupo de Lima em 4 de janeiro, a organização do encontro das
forças de oposição em Brasília em 17 de janeiro, a denúncia do genocídio silencioso
praticado por Maduro por meio da nota do Itamaraty igualmente de 17 de janeiro, o
respaldo ao Tribunal Supremo de Justiça legítimo da Venezuela que avaliza
constitucionalmente o processo, o reconhecimento de Guaidó como Presidente
Encarregado em 23 de janeiro – todas essas iniciativas da nova política externa
brasileira, que o Presidente Bolsonaro me deu a honra de conduzir, foram decisivas para
acender a esperança que vi brilhar nos olhos das pessoas de carne e osso, e que
contagiou toda a região, que colocou a barbárie do regime madurista sob os olhos de
todo o mundo. Segundo me confidenciou pessoalmente uma grande liderança
democrática venezuelana, foram as iniciativas do Brasil que mudaram o jogo e
mobilizaram os próprios Estados Unidos a romperem a inércia em que se encontravam
até o início de janeiro e a virem colocar seu peso político em favor da transição
democrática. Não foi o Brasil que seguiu os EUA, mas antes o contrário. Quem não
acreditar, pergunte aos venezuelanos que lutam por sua pátria, e que passarão à história
como heróis da liberdade. Perguntem a eles o que acham da política externa de
Bolsonaro. Perguntem aos venezuelanos expulsos de seu país pela fome e pela tristeza e
que agora sentem-se à beira de poder voltar para casa. Perguntem a eles, e não aos
comentaristas de política externa, não aos ex-presidentes e ex-ministros do “grande
consenso” da inação e da mediocridade.
Perguntem a eles se me veem como a caricatura de um guerreiro medieval com
a cruz de Cristo no peito (da qual aliás muito me orgulho) ou simplesmente como um
homem que, com todas as sua limitações, está trabalhando para defender a democracia,
em benefício de toda a região, essa democracia de que os críticos de Bolsonaro tanto
falam mas pela qual nada fazem nunca.
Agora vem FHC, com o mais surrado dos artifícios retóricos: a criação de uma
falsa dicotomia. Segundo ele, as únicas opções são o prosseguimento do “consenso” ou
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a intervenção armada na Venezuela. Não, não são as únicas. Ao contrário de FHC, eu
acredito na diplomacia, porque acredito na força da palavra e do espírito humano para
mudar a realidade, porque não sou cínico nem materialista, porque acredito no povo
brasileiro, esse povo dos “grotões” que FHC abertamente desprezava (assim como
desprezava e despreza os eleitores de direita que o fizeram presidente duas vezes), e
acredito que este povo tem em suas mãos um destino imenso capaz de mudar o mundo,
começando por ajudar na libertação do povo-irmão venezuelano.
Nessa libertação, o sentimento de solidariedade humana para com os
venezuelanos coincide com o interesse nacional brasileiro. Uma Venezuela eternamente
chavista-madurista, vivendo do narcotráfico, albergando terroristas de toda estirpe,
armando milícias criminosas, financiando crime organizado e movimentos pseudo-
sociais em território brasileiro, expulsando seu próprio povo pela fome e pela doença,
essa Venezuela seria uma ameaça permanente e tremenda à segurança do Brasil e dos
brasileiros. Fazer algo efetivo a respeito, contribuir para uma Venezuela democrática, é
algo que a melhor tradição diplomática brasileira exige e impõe. Estamos restaurando a
verdadeira tradição diplomática brasileira, a tradição de um país livre, soberano,
orgulhoso de si mesmo, consciente de sua capacidade e sua responsabilidade de
contribuir para o bem da humanidade.

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Paulo Roberto de Almeida


Brasília, 4 de março de 2019

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