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Caderno de Formação nº 44

Textos sobre a
conjuntura internacional
e a política do governo
brasileiro golpista

Maio de 2017
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Expediente

O Caderno de Formação nº 44 “ Textos sobre a conjuntura


internacional e a política do governo brasileiro golpista” é uma
publicação do Coletivo de Relações Internacionais do MST e
Coletivo de Formação da ENFF.

Diagramação: Secretaria Nacional MST

Secretaria nacional:
Alameda Barão de Limeira. 1232 - 01202-002 São Paulo/SP
(11) 2131-0850

Maio de 2017

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Sumário

Apresentação ..............................................................................5

I - A política externa do governo


golpista e a necessidade de um novo projeto
para o Brasil .........................................................................7

II. Trump e a América Latina......................................................21

III. Modelos civilizacionais e os desafios para a sua


superação*” ..........................................................................33

IV . Síria: fissão tóxica ...............................................................59

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4
Apresentação
Estimados companheiros/as militantes do MST

É com muita alegria que o Coletivo de Relações Inter-


nacionais de nosso Movimento apresenta para cada um de
vocês, esse Caderno de Formação que traz diversos tex-
tos muito importantes para estudarmos e compreendermos a
conjuntura internacional, a posição dos governos imperiais,
a correlação de forças internacionais e a nova política do
governo golpista brasileiro frente a tudo isso.
Temos no primeiro texto uma longa entrevista com o
Embaixador Samuel Pinheiro Guimaraes, que atuou a vida
toda no Itamaraty, foi vice-ministro no governo Lula e tal-
vez seja o intelectual brasileiro mais bem preparado sobre os
temas das relações exteriores e a politica externa brasileira.
Samuel, além de embaixador, intelectual e pensador, é um
militante ativo das causas populares e nacionalistas. E em sua
entrevista para a revista CARTA CAPITAL nos explica de for-
ma didatica, o que está acontecendo.
O segundo texto é de um economista latinoamerica-
nista, estadunidense de cidadania, que mora em Wasghinton,
mas é um firme defensor das causas latinoamericanas e dos
povos em geral. Ele nos explica o que vai mudar para Améri-
ca Latina agora na era Trump, que esperamos que seja a mais
curta possivel.
O terceiro texto é de um renomado professor da Fran-
ça, conhecedor da geopolítica mundial, que analisa os dile-
mas da geopolítica atual, a partir dos principais conflitos que
estamos vivendo.
E finalmente o quarto texto é do jornalista brasileiro

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Pepe Escobar, que vive há muitos anos no Oriente Médio,
talvez seja o brasileiro que mais entende e que domina mais
informações da correlação forças, e da geopolítica e interes-
ses em jogo naquela regiao do mundo. Ele nos explicar o que
esta por tras da guerra da Siria, os recentes ataques do gover-
no dos Estados Unidos.
Como veem é uma excelente coletânea de textos, que
todos os militantes do MST devemos estudar, debater em nos-
sos espaços, instancias e cursos.
E, também recomendamos que compartilhem com ou-
tros militantes de outros movimentos populares brasileiros.
Sabemos que o mundo está dominado pelo capitalis-
mo, porém esse capitalismo está vivendo uma grave crise
econômica, política, ambiental e de valores. Sabemos que
os principais dilemas de nossa sociedade não se resolverão
apenas na correlação de forças dentro do Brasil, dai a impor-
tância e a necessidade cada vez maior, de que na formação
política, nos aprofundemos no conhecimento e domínio do
que está acontecendo na luta de classes a nivel internacional.

Um bom estudo para todos e todas


Coletivo de Relações Internacionais do MST,
Coletivo de Formação da ENFF

São Paulo, maio de 2017

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I-
A política externa do
governo golpista e a
necessidade de um novo
projeto para o Brasil*

CartaCapital, 27 de março 2017. Entrevista com Samuel Pinheiro


*

Guimarães. Embaixador, Secretário-Geral do Itamaraty, 2003-


2009, Ministro para Assuntos Estratégicos, 2009-2010.

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1. Como o Senhor definiria a passagem de José Serra
pelo Itamaraty e avaliaria seu pedido de demissão?
SPG: A passagem de José Serra poderia ser definida como
desastrosa.
Revelou um notável despreparo para o exercício da missão
de Chanceler. Seus pronunciamentos, seu desconhecimen-
to de temas triviais, suas tentativas de rever princípios da
política externa, tais como a não intervenção nos assuntos
internos de outros Estados, em especial na América do Sul;
a prioridade da política brasileira para América do Sul e a
necessidade de diversificar as relações do Brasil com todos
os Estados; a necessidade de articular a ação brasileira com
a de países de circunstâncias semelhantes, demonstraram
seu despreparo.
Finalmente, a tentativa de alinhar o Brasil com a política
externa americana em todos os temas, sem colocar acima
de tudo os interesses brasileiros, aliás de acordo com a po-
lítica geral praticada pelo Governo Temer, revelou seu des-
compasso com o Brasil.
Pelo seu comportamento, revelou desprezo pelos quadros
do Itamaraty e pela sua experiência, isolando-se, quando
em Brasília, em seu Gabinete, dedicando especial atenção
às questões de imprensa, e passando grande parte de seu
tempo em São Paulo.
Seu pedido de demissão pode estar ligado a quatro fatores:
a decepção com sua pequena influência no Governo, em
especial nas questões econômicas; sua relativa incompati-
bilização com os Estados Unidos, apesar de suas posições
tradicionais de grande proximidade com esse país, devido
a sua inoportuna e depreciativa declaração sobre Donald
Trump durante a campanha eleitoral americana; a necessi-
dade de organizar sua candidatura a presidente ou mesmo
a Governador nas eleições de 2018; a precariedade de sua

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saúde, inclusive física.
2. De que forma o Brasil conseguirá recuperar o prota-
gonismo internacional perdido recentemente?
SPG: Em primeiro lugar, pela execução de uma política ex-
terna que se fundamente no respeito aos princípios que
garantem a ordem internacional, que protegem os Estados
mais fracos e que estão consagrados na Constituição Fede-
ral e na Carta das Nações Unidas, quais sejam os princípios
da não intervenção; da autodeterminação; da igualdade
soberana e da reciprocidade.
Em segundo lugar, por uma política externa que priorize o
desenvolvimento do Brasil, em todas as suas dimensões, e
a ampliação da participação do Brasil nos organismos in-
ternacionais, inclusive no Conselho de Segurança das Na-
ções Unidas.
Em terceiro lugar, pela denúncia firme e serena de toda e
qualquer ação arbitrária e violenta, em especial de Gran-
des Potências, contra os Estados periféricos e frágeis.
Em quarto lugar, pelo reconhecimento de que a realidade
da localização geográfica do Brasil, suas fronteiras e nú-
mero de vizinhos, a dimensão do território e de sua popu-
lação, a riqueza de recursos naturais, o elevado grau de
urbanização e de industrialização impõem uma estratégia
de política externa de afirmação nacional.
A ação serena e prudente dos executores da política exter-
na, seu conhecimento dos temas e sua determinação na
defesa dos interesses do Brasil diante de qualquer Estado
são fatores indispensáveis para recuperar o respeito e o
protagonismo internacional.
Só é respeitado quem se respeita e quem defende seus inte-
resses.

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3. O Senhor acredita que os EUA, na presidência de
Donald Trump, irá formalmente apoiar a ideia de um
Estado único Israel-Palestina como querem os isra-
elenses?
SPG: Acredito que muitas das manifestações iniciais sobre
política externa emitidas pelo Presidente Trump, tais como
as que se referiam à OTAN, ao México, à Austrália, à Eu-
ropa, à China, à Rússia e, inclusive, a Israel, virão a ser
modificadas.
A questão de Israel é vital para os povos árabes e muçulma-
nos e os interesses americanos nestes países, em especial
devido ao petróleo, são tão grandes e estratégicos que as
pressões internas nos EUA serão muito intensas para que o
Governo Trump volte à sua posição tradicional:
• financiar Israel em montante superior a 3 bilhões de dóla-
res por ano, o que sustenta a economia e o poder militar
israelense;
• apoiar militarmente e em atividades de inteligência o Go-
verno de Israel;
• aceitar a expansão, desde que discreta, de assentamentos
israelenses na Cisjordânia e condená-los retoricamente;
• apoiar a solução de dois Estados;
• apoiar a resolução do Conselho de Segurança da ONU so-
bre a retirada israelense dos territórios ocupados em 1968
mas nada fazer, na prática, para implementá-la.
4. Como explicar essa onda reacionária no planeta?
SPG: A onda reacionária começa em 1979 com a ascensão
de Ronald Reagan, Margaret Thatcher e Helmut Kohl que
promoveram, de um lado, o combate às políticas e aos pro-
gramas keynesianos e a desregulamentação do setor finan-
ceiro e das megaempresas (fim das leis anti-trust) e adota-

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ram políticas neoliberais e que, de outro lado, enfrentaram
agressivamente o que Reagan chamou de Império do Mal e
todos os regimes de economia mista e de políticas externas
menos submissas.
A desintegração da União Soviética em 1991, a gradual
adesão, a partir de 1979, da China ao capitalismo e a esma-
gadora vitória americana na Guerra do Golfo permitiram
ao primeiro Bush proclamar uma Nova Ordem Mundial,
com a hegemonia americana, a única Grande Potência
mundial, em um mundo unipolar.
A partir desta vitória do capitalismo neoliberal sobre o socia-
lismo estatal, os governos da periferia e do centro aderiram
ao capitalismo selvagem e às políticas neoliberais, sintetiza-
das no Consenso de Washington, com a redução dos direi-
tos dos trabalhadores e dos direitos civis, estes em especial
a partir de 2001 com a legislação americana e internacional
de combate ao terrorismo, o novo inimigo, o aumento dos
gastos militares e de restrição aos direitos civis.
A recessão, que se inicia em 2007, que se prolongou e se
transformou em estagnação, trouxe um novo elemento e
impulso à onda reacionária, qual seja o colapso da econo-
mia globalizada, devido à falência do sistema financeiro, a
necessidade de sua recuperação com enormes recursos do
Estado, e a culpa jogada nos gastos sociais e, portanto, nos
trabalhadores.
As políticas recessivas, implementadas para recuperar a
“confiança” dos investidores (isto é, do capital), que leva-
ram ao desemprego e às reduções de salários, de direitos
trabalhistas e previdenciários, estimularam a xenofobia e
os movimentos de direita, enquanto as agressões militares
a países como a Líbia e a Síria, onde já morreram mais de
400 mil pessoas, geraram as ondas de refugiados, desloca-
dos e imigrantes, e as políticas anti-imigrantes nos países

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centrais.
5. Por que tem sido tão fácil derrubar as políticas pro-
gressistas na América do Sul, principalmente na Ar-
gentina e no Brasil?
SPG: Há quatro fatores principais que levaram à possibilida-
de de derrubar as políticas progressistas a partir da derruba-
da dos Governos que as promoveram:
• As operações de regime change, isto é, de golpe de Es-
tado “suaves” desencadeadas pelos Estados Unidos após
as vitórias democráticas de Chávez; Lula; Kirchner; Tabaré,
Evo, Lugo e Correa, devido aos programas progressistas e
de afirmação nacional que passaram a executar e que afe-
tariam, em maior ou menor medida, os interesses políticos
e econômicos americanos;
• Em segundo lugar, a forte e articulada reação das classes
hegemônicas, beneficiárias de séculos de mecanismos de
concentração de riqueza, renda e poder, contra os progra-
mas progressistas, a favor dos trabalhadores e dos miserá-
veis, implementados por esses Governos, inclusive através
da articulação sistemática e permanente da mídia e dos po-
deres Legislativo e Judiciário contra esses Governos;
• Em terceiro lugar, a não mobilização, em maior ou menor
escala, das massas beneficiárias daqueles programas pelos
Governos progressistas em defesa de seus programas e de
esclarecimento sobre os mecanismos de dominação das
classes hegemônicas;
• Em quarto lugar, no caso de alguns países, a incapacidade
política e de visão estratégica dos Governantes.
6. O senhor acredita que o processo de globalização
está sob risco, por conta da ascensão do populismo de
direita?

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SPG: O processo de globalização, isto é, de criação de uma
economia global, foi impulsionado pelas megaempresas
multinacionais (e por seus Governos de origem) com o ob-
jetivo de eliminar os obstáculos à sua ação em todos os
mercados em busca de maiores lucros, sob a orientação e
a propaganda ideológica do neoliberalismo.
A globalização levou a uma maior concentração de rique-
za e renda dentro dos países, desenvolvidos e subdesenvol-
vidos, e entre os países.
O processo de globalização levou à crise financeira, eco-
nômica e social de 2007 e à consagração, ideológica in-
clusive, sob “o novo conceito” de cadeias globais de valor,
da divisão internacional do trabalho entre, de um lado, as
economias altamente desenvolvidas e tecnológicas e, de
outro lado, as economias periféricas, produtoras e exporta-
doras de matérias primas e de manufaturados simples.
Este processo de globalização certamente não beneficiou o
Brasil pois acentuou sua característica de economia primá-
ria-exportadora e concentrou a renda no campo e no setor
financeiro.
O populismo de direita é uma consequência do proces-
so de globalização inclusive na medida em que muitos
partidos e Governos de esquerda aderiram às visões e às
políticas neoliberais e permitiram que, em nome de uma
pseudo-utopia capitalista globalizante, os trabalhadores de
seus países ficassem desempregados e fossem vítimas de
políticas sociais anti-trabalho.
7. De qualquer forma, os grandes tratados internacionais
devem passar por uma fase de congelamento, não?
SPG: Acredito que sim. O Relatório anual sobre política co-
mercial enviado pelo Presidente Donald Trump ao Con-
gresso americano indica esta orientação de política co-

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mercial de dar preferência a acordos bilaterais para reduzir
seus déficits, ao unilateralismo, à ressurreição das práticas
de retaliação previstas pela Seção 301 da Lei de Comércio
americana contra politicas julgadas “injustas” e de despre-
zo pela Organização Mundial do Comércio-OMC e seu sis-
tema de solução de controvérsias.
Diz o Relatório (e, portanto, o Presidente Trump):
“Desde que os Estados Unidos ganharam sua independên-
cia, tem sido um claro princípio de nosso país que os cida-
dãos americanos estão sujeitos apenas às leis e aos regula-
mentos feitos pelo Governo dos Estados Unidos --- não a
decisões adotadas por Governos estrangeiros ou organiza-
ções internacionais”.
Para o Brasil, é sempre preferível o sistema multilateral de
negociação e de solução de controvérsias da OMC, onde
temos maior capacidade de articular, com outros países, a
defesa de nossos interesses econômicos
Por outro lado, aqueles grandes acordos internacionais,
que vinham sendo tão louvados pela imprensa e pela aca-
demia, de um lado não atenderiam aos nossos interesses
e, de outro, nem deles poderíamos participar por não ser-
mos, no caso do TransPacific Partnership-TPP, um país do
Pacífico, e no caso do TransAtlantic Trade and Investment
Partnership-TTIP, por não sermos um país europeu.
8. O Senhor enxerga interesses geopolíticos por trás da
Operação Lava Jato?
SPG: O fato de haver interesses geopolíticos atrás da Opera-
ção Lava-Jato é importante, porém mais relevante é procu-
rar identificar as consequências geopolíticas para o Brasil e
para seu projeto nacional.
O projeto nacional brasileiro tem as seguintes característi-
cas:

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• Construir uma economia moderna industrial capitalista;
• Construir um sistema de defesa, de natureza dissuasória,
através do programa do submarino nuclear e da expansão
da indústria aeronáutica e espacial;
• Construir gradualmente, através da ação do Estado, um sis-
tema econômico e social menos desigual em termos regio-
nais, de renda, de etnia, de gênero etc.;
• Desenvolver uma política externa soberana com os seguin-
tes instrumentos e objetivos:
• articular um bloco político sul americano, a UNASUL;
• articular um bloco latino-americano, a CELAC;
• fortalecer um bloco regional na América meridional, o
Mercosul;
• desenvolver relações políticas e econômicas com todos os
países, sem prejulgar seus regimes políticos, econômicos e
sociais;
• reformar os organismos internacionais, em especial o Con-
selho de Segurança da ONU e os organismos financeiros
como o FMI, para conquistar para o Brasil a possibilidade
de maior participação e defesa de seus interesses;
• articular alianças com os grandes Estados da periferia,
como o IBAS (Índia, Brasil e África do Sul) e o BRICS (Bra-
sil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
Estes objetivos confrontam profundamente os interesses
dos Estados Unidos e das potências a eles aliadas, ou mes-
mo não aliadas como é o caso da China e da Rússia.
A nenhuma Grande Potência, isto é aos membros perma-
nentes do CSNU, às potências nucleares e missilísticas e às
grandes potências econômicas como o Japão e a Alema-
nha, interessa o surgimento de uma nova potência, isto é

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de um Estado de fato autônomo e soberano pois isto pre-
judica seus interesses de obter acesso a todos os mercados
produtivos e financeiros e às vias de acesso a mercados na
disputa permanente por uma parcela maior da riqueza e do
poder político e militar mundial.
A ação geopolítica externa se desenvolveu da seguinte for-
ma:
• como se tornou público e reconhecido pelo Governo ame-
ricano, a NSA (National Security Agency) há décadas mo-
nitora e grava todas as comunicações eletrônicas entre to-
das as pessoas no mundo, em especial as lideranças, como
foram monitorados e gravados os aparelhos celulares de
Angela Merkel e Dilma Rousseff, e as principais autori-
dades de todos os Governos e tais informações podem ser
repassadas a suas megaempresas e servem para sua política
externa;
• o Juiz Sergio Moro, como muitos dos procuradores da Ope-
ração Lava Jato, foi treinado em programas especiais, pa-
trocinados pelo Governo americano, e mantem permanen-
te contato com as autoridades americanas;
• o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) é um poderoso ins-
trumento contra as empresas estrangeiras que competem
com as megaempresas americanas no mercado mundial,
isto é no mercado de cada país;
• o Governo americano, através do Departamento de Justiça
e do FBI, através de acordos, fornece informações à Polí-
cia Federal e aos Procuradores do Ministério Público para
auxiliar suas investigações.
Neste contexto, a Operação Lava Jato tem importantes
consequências geopolíticas, e colabora para os objetivos
das Grandes Potências, em especial dos Estados Unidos,
pelas seguintes razões:

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• abala a autoestima da sociedade brasileira, convencida
pela mídia de sua corrupção intrínseca e excepcional;
• contribui para afetar o prestígio político dos partidos de es-
querda e progressistas em geral;
• afeta o prestígio e a capacidade de articulação do Brasil na
América Latina e, em especial, na América do Sul;
• contribui para desarticular a aliança política entre os Es-
tados da América do Sul (UNASUL) e da América Latina
(CELAC);
• corrói o prestigio político e econômico brasileiro na África
ocidental;
• corroi a posição do Brasil nos BRICS e nas Nações Unidas
• desarticula e destroça as grandes empresas brasileiras do
setor de construção e de engenharia pesada que eram alta-
mente competitivas;
• abre o mercado brasileiro, onde deixa de haver concor-
rência de empresas locais, para as megaempresas interna-
cionais de construção de grandes obras de infraestrutura,
mercado que é estimado em mais de um trilhão de reais.
• contribui para desacreditar o BNDES como agência de fi-
nanciamento da política comercial brasileira;
• ao desmoralizar o Estado, contribui para o projeto de redu-
ção ao mínimo do Estado brasileiro, principal instrumento
capaz de vencer os desafios do desenvolvimento, da sobe-
rania e das desigualdades.
9. Há alguma semelhança entre este momento histórico
e os anos 30 do século passado?
SPG: A partir da Revolução de 30, se inicia no Brasil o pro-
jeto de construção de uma economia moderna capitalista
industrial, de organização de seu mercado de trabalho, de

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consolidação da unidade nacional, de construção de um
Estado capaz de enfrentar os desafios de construção da in-
fraestrutura de energia e transportes e de financiamento de
seu setor privado.
A tentativa de construção de uma economia moderna in-
dustrial e capitalista no Brasil enfrentou forte oposição das
classes hegemônicas tradicionais situadas no setor agro-
pecuário, defensoras do neoliberalismo e da tradicional
divisão internacional do trabalho que reserva ao Brasil o
papel de produtor e exportador de produtos primários, e
mais recentemente de território para a exploração das me-
gaempresas multinacionais, sem capacidade de desenvol-
vimento tecnológico, importador de produtos industriais
sofisticados e de capitais predadores e especulativos.
O contraste entre os anos 30 e o período que se inicia com
Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso é que neste
último as classes hegemônicas brasileiras, em aliança com
as classes hegemônicas do Império norte-americano, reto-
maram seu projeto permanente de congelar o Brasil como
produtor primário, sem indústria de capital nacional, com
a redução do Estado ao mínimo, sem capacidade de regu-
lamentar e empreender, com a redução dos direitos dos
trabalhadores e do custo do trabalho.
Vivemos, no momento atual, a desconstrução do projeto
que se inicia em 1930 de construção de uma economia
moderna capitalista industrial, soberana, e menos desigual.
Procuram as classes hegemônicas tradicionais finalizar a
tarefa que iniciaram em 1990, e que se interrompeu em
2003, com a vitória do Presidente Lula nas eleições.
Como declarou o principal ideólogo e líder das classes he-
gemônicas, Fernando Henrique Cardoso, em um momento
revelador de rara sinceridade:

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“Nosso objetivo é acabar com a Era Vargas!”
e agora procuram consagrar na Constituição, através de
uma maioria corrupta no Congresso, e de uma circuns-
tância fortuita, seus desígnios antinacionais, antissociais,
anti-trabalhador, anti-povo e sua política de subserviência
diante do mega-capital internacional das grandes corpora-
ções produtivas e, em especial, financeiras.
O povo brasileiro não permitirá que os objetivos das classes
hegemônicas e de seus representantes políticos, cuja natu-
reza e instrumentos são antidemocráticos, concentradores
de renda e de riqueza, contrários ao capital e ao trabalho
nacionais, se consolide.
O povo vencerá as eleições presidenciais de 2018 e o pro-
cesso de construção de uma sociedade desenvolvida, dinâ-
mica, democrática, mais igual, mais justa e soberana, que
se iniciou em 1930, será retomado.

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II-
Trump e a
América Latina

Alexander Main é um analista político internacional do Centro para a Pesquisa Econômica Política
*

em Washington, Estados Unidos

21
Os resultados eleitorais das eleições estadunidenses de
2016 deixaram horrorizada muita gente em muitos lugares do
mundo, mas provavelmente em nenhuma outra parte mais do
que na América Latina. Ao longo de toda sua campanha, o
vencedor das eleições vilipendiou os imigrantes latino- ame-
ricanos e prometeu construir um mura na fronteira sul dos
Estados Unidos (supostamente a ser pago pelo México) para
manter de fora os “violadores e traficantes de drogas”. Du-
rante sua campanha na Flórida fez referência a lutar contra a
“opressão” na Venezuela e a reverter as tentativas de abertura
diplomática com Cuba, uma medida do presidente Obama
aplaudida unanimemente pelos governos latino-americanos.
Ainda sim, não todos na América Latina se mostram tão pes-
simistas com a vitória de Donald Trump. Quando pergunta-
do qual o candidato a presidência dos Estados Unidos seria
melhor para a região, o presidente do Equador Rafael Correa
respondeu sem vacilar:
“Trump… porque é tão primário que vai a gerar uma re-
ação na América Latina que vai gerar mais apoio para os
governos progressistas. Temos um governo dos Estados
Unidos que praticamente faz o mesmo, que quase não
mudou nada, mas com um presidente simpático, Obama”.
Pese os esforços recentes de normalização das rela-
ções entre Estados Unidos e Cuba (limitados, dado o embar-
go econômico que persiste contra a ilha), há escassos indícios
de que a agenda do governo estadunidense na América Lati-
na tenha avançado muito desde a era de George W. Bush. A
pergunta é se o presidente estadunidense que entra, errático
e imprevisível, efetivamente exercerá uma política continuis-
ta frente a América Latina, e o que significará sua presidência
para uma região atualmente sacudida por transtornos econô-
micos e políticos, onde alguns observadores falam do fim de
um “ciclo progressista” de governos de esquerda.
O manual de táticas políticas para a América Latina

22
que Trump herdará de Obama se baseia em um conjunto de
amplos objetivos estratégicos para a região, que o Departa-
mento de Estado frequentemente denomina “prosperidade”,
“segurança” e “democracia e governança”.
A agenda de “prosperidade” dos Estados Unidos impli-
ca, em primeiro lugar, na promoção dos chamados Tratados
de Livre Comércio (TLC) entre os Estados Unidos e seus sócios
regionais. Obama retomou o trabalho começado por George
W. Bush, pressionando com êxito a aprovação no Congresso
dos TLCs com Panamá e Colômbia negociados por seu pre-
decessor, apesar dos contínuos assassinatos de sindicalistas
na Colômbia e a forte oposição da maioria dos democratas.
Um segundo objetivo chave da “prosperidade” é a
promoção das reformas neoliberais – medidas de austerida-
de, desregulamentação, redução de tarifas, liberalização do
mercado, etc. Nos últimos 15 anos, essa meta se viu impe-
dida pelo fato de que muitos países haviam se libertado do
Fundo Monetário Internacional e das políticas do Fundo im-
pulsionadas por Washington (que contribuíram para as “dé-
cadas perdidas” de 1980 e 1990 e reduziram ou detiveram o
progresso dos indicadores sociais). Ainda sim, o governo de
Obama potencializou com êxito a ajuda para que os países
mais pobres pressionem a favor de reformas de mercado que
beneficiam os investidores transnacionais e geram instabili-
dade econômica para as pessoas comuns. Ao final de 2014,
o Departamento de Estado apoiou a criação do Plano Aliança
para a Prosperidade para os países pobres do Triangulo Norte
da América Central: um programa de desenvolvimento que
favorece as empresas transacionais e que se baseia no Plano
Puebla Pnamá da era Bush.
A estratégia de “segurança” de Washington para a re-
gião se apoia em grande medida nos programas militarizados
contra o narcotráfico e de contrainsurgência desenvolvidos
nos governos anteriores. No marco dos governos de Clinton

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e Bushm se destinaram bilhões de dólares em assistência mi-
litar para o Plano Colômbia, em apoio as amplas ofensivas
militares que tiveram como resultado a morte de milhares
de civis e a expulsão de milhões de pessoas, sem nenhum
impacto significativo na produção de cocaína. O Plano Co-
lômbia continuou durante o governo programas similares no
México (Iniciativa Mérida) e América Central (a Iniciativa Re-
gional de Segurança da América Central).
No marco desses programas, se mobilizaram em es-
cala massiva unidades policiais militarizadas e do exército
do México e da América Central, para acabar com o tráfi-
co de drogas e o crime organizado, apesar de que muitas
dessas unidades são suspeitas de participarem em atividades
criminais. A isso seguiu uma onda sem precedentes de vio-
lência letal, que acabou não apenas com a vida de supostos
criminosos e incontáveis inocentes, mas também com uma
quantidade enorme de ativistas sociais locais, especialmen-
te em Honduras, um dos principais receptores da assistência
em segurança dos Estados Unidos. A jornalista e investigado-
ra Dawn Paley indicou como a violência e o deslocamento
de comunidades, produtos da “guerra contra o narcotráfico”
apoiada pelos Estados Unidos, ajudaram a abrir territórios ri-
cos de recursos, previamente inacessíveis, para as empresas
transnacionais.
A agenda de “democracia e governança” que Obama
transferirá a Trump pode parecer inicialmente apolítica e en-
focada no “desenvolvimento institucional” e o fortalecimento
do Estado de Direito, entre outras iniciativas aparentemente
benéficas. As ligações do Departamento de Estado vazadas
pelo WikiLeaks em 2010 e 2011 oferecem uma perspectiva
contrária no que diz respeito a essa agenda. Entre outras co-
sias, as ligações mostram que os diplomatas estadunidenses
implementaram métodos consolidados de intervenção inter-
na “suave”, como por exemplo a potencialização dos progra-

24
mas de ajuda dos Estados Unidos, os empréstimos multilate-
rais e as ajudas para a “promoção da democracia”, com o fim
de destruir, cooptar ou eliminar os movimentos políticos de
esquerda, particularmente aqueles que se presumiam próxi-
mos ao presidente venezuelano Hugo Chavez.
Também houve outros esforços por parte dos Estados
Unidos para fazer retroceder a esquerda latino-americana.
Em 28 de junho de 2009, o presidente hondurenho
de esquerda Manuel Zelaya, que havia irritado a elite de seu
país e o governo estadunidense ao aprofundar relações com
a Venezuela e impulsionar uma assembleia constituinte, foi
sequestrado pelo exército e levado até a Costa Rica.
A então secretaria de Estado Hillary Clinton se negou a
reconhecer formalmente que se havia produzido um golpe de
estado militar, o que poderia ter suspendido grande parte da as-
sistência estadunidense. Também fez todo o possível para evi-
tar que Zelaya regressasse a Honduras. Logo, o governo estadu-
nidense anunciou que reconheceria os resultados das eleições
hondurenhas de 29 de novembro sem a restauração prévia de
Zelaya, como exigiam os governos latino-americanos.
Essa medida unilateral e antidemocrática descarada
gerou a indignação de toda a região. Mas os Estados Unidos
dobraram sua aposta e apoiou com todo seu peso os governos
hondurenhos de direita e repressores. Tanto o Departamento
de Estado como o Departamento de Defesa multiplicaram
sua assistência de segurança a Honduras e foram omissos
com a corrupção generalizada do governos e as dezenas de
assassinatos de líderes sociais, como a renomada ativista in-
dígena Berta Cáceres.
Com a ajuda do nefasto momento econômico na Amé-
rica Latina, a agenda de Bush-Obama avançou notavelmente
nos últimos anos. O arqui-inimigo de Estados Unidos, a Ve-
nezuela, está submetido a uma crise econômica e política
prolongada e deixou de ocupar um papel importante a nível
regional. Logo depois da morte de Chávez, em 2013, os Esta-

25
dos Unidos apoiaram, por uma parte, o diálogo e, por outra,
as táticas de desestabilização dos setores radicais da oposição
de forma intermitente. Enquanto o governo perseguia a aber-
tura com Cuba, endurecia sua política a respeito da Venezue-
la, com um novo regime de sanções no final de 2014.
Além disso, os antigos pilares da integração sul-ame-
ricana, Argentina e Brasil, estão agora nas mãos de governos
de direita, depois de 12 anos de governos de esquerda. O
governo de Obama fez sua parte para poiar essas transições,
impondo uma moratória danosa sobre os empréstimos mul-
tilaterais ao governo de Cristina Kirchner (essa moratória foi
suspensa rapidamente logo depois da derrota do partido de
Kirchner nas eleições de 2015), e oferecendo apoio diplo-
mático ao governo provisório enquanto no Brasil se levava a
cabo o polêmico juízo político (ou golpe de estado “suave”)
contra a presidenta Dilma Rousseff.
O panorama político de hoje é enormemente diferente
ao que encontrou Obama faz oito anos, quando a esquerda
controlava toda a região e reivindicava audazmente sua in-
dependência. Ao deixar o governo, Obama poderia marcar
isso como uma vitória da política exterior para contrapor sua
medíocre história no Oriente Médio e na Europa Oriental.
Honduras, Paraguai, Argentina, Brasil… um a um, os gover-
nos de esquerda caíram e os Estados Unidos recuperou uma
porção importante da influência que exercia no passado na
região. A morte de Fidel Castro, apenas duas semanas e meia
depois da vitória de Trump, parecia presagiar um ressurgi-
mento da hegemonia e o começo de uma época escura e
incerta para a esquerda latino-americana.
“No dia de hoje, o mundo comemora a morte de um
brutal ditador que oprimiu a seu próprio povo durante qua-
se seis décadas”. A declaração de Trump sobre a morte do
líder cubano contrastou profundamente com o tom neutro
e de certo modo respeitoso de Obama, que afirmou que “a

26
história fará registro e julgará o enorme impacto desta figura
singular”, ofereceu suas condolências a família de Castro. As
palavras combativas de Trump sugerem que poderia cumprir
com as promessas realizadas durante sua campanha na Fló-
rida e adotar uma política mais agressiva a respeito de Cuba,
Venezuela e outros governos de esquerda.
Prever o que Trump fará no futuro tem se mostrado
uma tarefa praticamente impossível. Ele se mostrou um de-
magogo volátil e caprichoso com uma grande capacidade de
explorar as frustrações e ansiedades de setores mais que tudo
de brancos da classe média e baixa: “os esquecidos”. Parece
não ter uma visão ou princípio claro exceto uma autopromo-
ção obsessiva, e nem parece estar particularmente interessa-
do nos detalhes das políticas públicas.
Ainda sim, os candidatos de Trump aos postos de go-
verno oferecem algumas pistas sobre as possíveis orientações
de sua política exterior. Até o momento, se destacam duas
tendências: um fortalecimento da tendência de uma maior
militarização da política externa dos Estados Unidos e uma
obsessão com a ameaça sentida do Irã e do chamado “isla-
mismo radical”. Ambas tendências poderiam ter um impacto
radical sobre a política estadunidense sobre a América Latina.
Ainda que tenha adotado posições contrárias ao inter-
vencionismo durante a campanha e de condenar os “gene-
rais” por “não fazer seu trabalho”, Trump selecionou mais
homens do exército para os principais cargos de segurança
nacional que qualquer outro governo desde a Segunda Guer-
ra Mundial. Se especula que tanto o general aposentado Ja-
mes “Cachorro Louco” Mattis, o candidato de Trump para
ocupar o cargo de Secretário de Defesa, e o general aposen-
tado Michael Flynn, sua escolha como conselheiro de segu-
rança nacional, foram despedidos do governo Obama por
suas posições agressivas e extremas sobre o Irã e o chamado
“islamismo radical”. Ao serem questionados sobre quais são
as piores ameaças que enfrentam os Estados Unidos, Mattis

27
disse “Irã, Irã, Irã” e inclusive insinuou que o Irã está por trás
do Estado Islâmico, apesar da extrema oposição do grupo a
República Islâmica dos xiitas.
O general Flynn, que será o conselheiro principal de
Trump em matéria de assuntos exteriores, vinculou as “ame-
aças” terroristas iranianas e islâmicas com os governos de
esquerda na América Latina. Em um artigo de julho de 2016,
escreveu: “Estamos em uma guerra mundial e enfrentamos a
uma aliança inimiga que vai desde Pyongyang, na Coreia do
Norte, até Havana, Cuba e Caracas, Venezuela”.
O general aposentado John Kelly, candidato de Trump
como chefe do Departamento de Segurança Nacional e ex-
-diretor do teatro de operações militares do hemisfério oci-
dental advertiu aos membros do Congresso sobre o Irã e os
grupos islâmicos radicais que promovem células terroristas e
sobre “a superposição operativa e financeira entre as redes
terroristas da região”. Essa visão é compartilhada por outros
dos candidatos a ocupar cargos importantes da política exte-
rior. Yleen Poblete, a ex-assessora da congressista cubano-es-
tadunidense Lleana Ros-Lethinen e promotora da lei de 2012
para contrapor ao Irã no hemisfério ocidental.
Ainda que essas ideias obtiveram pouco apoio en-
quanto Obama estava no poder, poderiam ser parte impor-
tante da política sobre a América Latina em um governo de
Trump, que substituiria o Bolivarianismo venezuelano como
principal pesadelo da região. Os esforços para atacar e eli-
minar os governos de esquerda poderiam se justificar adicio-
nando seus vínculos com o Irã. Os programas de segurança
poderiam receber um apoio adicional para lutar contra uma
suposta infiltração terrorista de redes de crime organizado.
Ainda que essas supostas ameaças não se convertam
em uma prioridade estratégica do próximo governo a respei-
to da América Latina, as tendências políticas de “segurança”
e “democracia” de Bush e Obama provavelmente se in-
tensifiquem. A expansão do modelo do Plano Colômbia

28
provavelmente continue e possivelmente incorpore novas re-
giões, tal como a zona da Tríplice Fronteira da América do
Sul., descrita faz tempo pelas agências de inteligência dos Es-
tados Unidos como um terreno maduro para o terrorismo. Se
o candidato a Secretário de Estado, Rex Tillerson, se oponha
a essa militarização desenfreada da política de segurança re-
gional, se encontrará com a rigorosa resistência de suas fon-
tes: a burocracia do Departamento de Estado, que em si mes-
ma se tornou mais militarizada (particularmente sua Agência
de Assuntos Internacionais sobre Narcóticos e Aplicação da
Lei, que conta com grandes recursos) e o Complexo Militar
Industrial, que estará representado nos mais altos níveis do
próximo governo.
Além disso, pode-se esperar que o governo Trump
construa sobre a base da “vitória” de Obama na América La-
tina e também persiga de forma agressiva a hegemonia po-
lítica dos Estados Unidos na região. Apoiar os esforços para
desestabilizar e isolar ainda mais a Venezuela provavelmente
esteja em primeiro lugar na lista de prioridades, assim como
também debilitar outros governos de esquerda a traves de
métodos clandestinos, dos quais o general Flynn, como vasta
experiência no mundo das operações secretas, é um expert.
Não fica claro ainda se Trump reverterá as tentativas de aber-
tura de Obama com Cuba (que teria rechaço de setores da
comunidade empresarial dos Estados Unidos, que sem dúvi-
da são escutados por Trump), mas provavelmente destinará
mais recursos da caixa de ferramentas de “promoção da de-
mocracia” com o fim de debilitar o governo de Cuba.
Entretanto, existem grandes obstáculos que poderiam
dificultar essa agenda. Sem dúvida, como apontou Correa, o
estilo “primário” e ofensivo do futuro presidente e sua equipe
gerariam uma nova aversão ao governo dos Estados Unidos
e possibilitaria à população latino-americana uma motivação
renovada para seguir um caminho independente.

29
Outros fatores poderiam desempenhar um papel in-
clusive maior no distanciamento dos Estados Unidos da re-
gião. Se Trump cumpre com sua promessa de renegociar os
acordos comerciais e impor taxações sobre vários produtos
que competem com a indústria nacional, fará mais do que os
presidentes Chavez, Lula e Kirchner conseguiram fazer para
contrastar a agenda comercial promovida por Bush e Obama
na América Latina. É claro que se Trump vai seguir esse plano
é uma pergunta incerta (como tantas outras de suas promes-
sas eleitorais). Se bem que seu candidato a Secretario de Co-
mércio, Wilbur Ross, tenha defendido algumas posições pro-
tecionistas, Trump enfrentará a oposição acirrada da maior
parte da elite empresarial estadunidense, como por exemplo
vários integrantes de seu próprio gabinete e outros republi-
canos poderosos no Congresso, diante de maiores restrições
ao comércio (exceto aquelas que fortaleçam as patentes e
direitos e autor).
Possivelmente, o maior fator que frustrará os esforços
dos Estados Unidos para reafirmar sua hegemonia regional
é a China. O aumento extraordinário dos investimentos, co-
mércio e empréstimos chineses na região já contribuiu em
grande medida em limitar a potencialidade econômica e fi-
nanceira dos Estados Unidos em muito países latino-america-
nos. O comércio entre China e América Latina cresceu de 13
bilhões de dólares no ano 2000 para 262 bilhões em 2013,
convertendo a China no segundo maior mercado exportador
da região. Os investimentos chineses, nem sempre positivos
desde um ponto de vista ambiental ou social, vem em grande
medida sem condições políticas nacionais, ao contrário de
muitos dos empréstimos e projetos de investimento apoiados
pelos Estados Unidos. Em suma, a expansão econômica
da China na região tem significado um impulso para os
governos de esquerda na América Latina, lhes proporcionan-
do um espaço para aprovar políticas audazes e progressistas

30
que tem ajudado a tirar dezenas de milhões de pessoas da
pobreza. De 2002 a 2014, a pobreza na América Latina caiu
de 44 para 28 por cento, depois de ter aumentado sem parar
por um período de 22 anos.
Com a recente retração econômica da China, a de-
manda chinesa por mercadorias latino-americanas tem se
reduzido, o que teve um impacto negativo em várias econo-
mias latino-americanas. Mas a China parece estar estendendo
sua influência econômica e política de forma mais assertiva
na região. O colapso do Acordo de Associação Transoceâ-
nico de Obama, que incluía várias grandes economias la-
tino-americanas, criou um novo espaço para o comércio e
os investimentos chineses na região, como deixou claro o
presidente chinês Xi Jinping durante uma viagem realizada
no final de novembro ao Chile, Equador e Peru.
Além disso, a China sabe que logo terá que lidar com
um governo estadunidense imprevisível e possivelmente mais
hostil, que já sinalizou sua intenção de contestar a influência
chinesa na Ásia oriental. Como mostra o recente chamando
de Xi a favor de uma “nova era das relações com a América
Latina”, o governo chinês parece reconhecer que tem um in-
teresse geoestratégico em expandir as relações comerciais e
diplomáticas com o “quintal” dos Estados Unidos.
Portanto, se bem o governo Trump poderia tentar re-
forçar o controle dos Estados Unidos na região, a população
latino-americana deveria de todas as maneiras ser capaz de
contestar a hegemonia estadunidense e conseguir sua própria
versão local de uma agenda prosperidade, democracia e se-
gurança.

31
32
III-
Modelos civilizacionais
e os desafios para a sua
superação*

Entrevista especial com Yann Moulier Boutang, professor


*

de Ciências Econômicas na Université de Technologie de


Compiègne - Sorbonne Universités, na França.

33
O noticiário internacional não tem rendido manchetes
positivas, segundo o professor de Ciências Econômicas na
Université de Technologie de Compiègne - Sorbonne Uni-
versités, na França, Yann Moulier Boutang. Na entrevista a
seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Boutang tece
uma série de análises sobre fatos geopolíticos que marcaram
o ano que passou. Para ele, 2016 será lembrado pelo “Brexit,
a eleição de Donald Trump, a situação na Turquia, a interven-
ção russa na Síria com a tomada de Aleppo e a questão dos
refugiados, a generalização do confronto Irã/ Arábia Saudita
ao resto do mundo árabe e o desafio do terrorismo na Europa,
a crise brasileira, a tensão no Mar da China e a situação chi-
nesa interna”. Por outro lado, chama a atenção para o fato de
que “o apaziguamento das relações entre os Estados Unidos
e Cuba e o fim da guerra civil na Colômbia representam boas
notícias”.
Boutang também aborda as principais tensões inter-
nacionais, assuntos que estão na pauta e que precisam ser
enfrentados por países de Norte a Sul, de oriente a ocidente.
O primeiro deles diz respeito ao futuro do planeta. “A ques-
tão da transição ecológica, na qual um dos pontos – mas
não o único – é a transição energética para lutar contra o
aquecimento climático”, aponta. O segundo diz respeito à
“poluição dos solos, dos rios, a escassez da água, a poluição
do ar nas grandes metrópoles, onde se concentrarão 85% da
população mundial até 2050”. E, por fim, a emergência de se
repensar as consequências da financeirização da vida, que se
mostrou incapaz de enfrentar nossos grandes desafios: pre-
servar o planeta e resolver o problema da pobreza em uma
sociedade cada vez mais desigual.
Contudo, para o professor, não será possível conce-
ber um quadro melhor para 2017. “É nesse terreno fértil em
contradição que fecundam fenômenos como os confrontos
inter-religiosos (xiitas/ sunitas, islã, budismo), os conflitos en-

34
tre maioria e minorias e o recente crescimento de populis-
mos essencialmente de direita (Estados Unidos, Reino Unido,
Alemanha, França, Hungria, Holanda, Itália), mas também
de esquerda (Espanha, França)”, adverte. Para ele, esses fenô-
menos, que não são novos, nada têm a ver com autonomia.
“Travestem-se em ‘guerra das civilizações’ encenadas pelo
terrorismo fundamentalista e por um populismo reacionário,
mas tratá-los separadamente das contradições profundas que
os alimentam leva somente a um teatro de sombras sem fim”.
Yann Moulier Boutang é professor de Ciências Econô-
micas na Université de Technologie de Compiègne - Sorbon-
ne Universités, na França, membro do laboratório Connais-
sance, Organisation, Systèmes Techniques - COSTECH EA 22
23, Trivium CNRS. Leciona também na China, na Universida-
de de Shanghai - UTSEUS, na Ecole Nationale Supérieure de
Création Industrielle - ENSCI, Paris, no curso Master Innova-
tion by Design. É um dos fundadores e coordenadores da re-
vista Multitudes. Trabalha com o tema das migrações interna-
cionais, a escravidão, as transformações contemporâneas do
capitalismo, a economia digital, os direitos de propriedade
intelectual, a inovação. Entre suas obras mais recentes, estão
Cognitive capitalism (2012, Polity Press, Cambridge, UK) e
L’abeille et l’économiste (Paris 2010).

Confira a entrevista.
IHU On-Line - Fazendo uma retrospectiva de 2016, para
o senhor, quais foram os fatos políticos internacionais
mais marcantes e significativos em termos internacio-
nais?
Yann Moulier Boutang - Por ordem de importância: o
Brexit, a eleição de Donald Trump, a situação na Turquia,
a intervenção russa na Síria com a tomada de Alepo e a
questão dos refugiados, a generalização do confronto Irã/
Arábia Saudita ao resto do mundo árabe e o desafio do

35
terrorismo na Europa, a crise brasileira, a tensão no Mar da
China e a situação interna da China. E, por fim, a estabiliza-
ção da situação na América Latina com a normalização das
relações entre Cuba e os Estados Unidos, bem como o fim
da guerra civil na Colômbia. Como muitas das perguntas a
seguir dizem respeito ao Brexit, ao futuro da União Euro-
peia e à catástrofe Trump, tratarei aqui das outras questões.
Começo por uma constatação preliminar: as notícias inter-
nacionais têm sido realmente ruins.
Turquia
O confronto violento que opõe atualmente xiitas iranianos
e árabes aos sunitas em sua maioria árabes ou turcomanos
e a ruptura da ordem instaurada pelos europeus por oca-
sião da desintegração do Império Turco no final da Primeira
Guerra Mundial são uma extensão da reconfiguração dos
Balcãs que ocorreu na década de 1990 com a desintegra-
ção da Iugoslávia. A Turquia constitui a zona de fratura po-
lítica, não somente entre a Europa e o mundo árabe, mas
também com o mundo eslavo da Rússia ou de suas antigas
colônias. A questão curda no Iraque e na Síria repercute
fortemente na Turquia – onde 10% da população e 25%
do território são formados por curdos –, que quer evitar a
qualquer custo a formação de uma nação curda a partir de
suas minorias iranianas, iraquianas, sírias e turcas.
Não é à toa que a questão dos refugiados das guerras civis
no Oriente Médio atinge a Europa pela Turquia e que a situ-
ação muito instável da África alcança a Líbia, também ex-
posta a uma guerra civil. Os europeus criticam, com razão,
o “muro ininterrupto” que Trump quer construir entre os
Estados Unidos e o México, mas a União Europeia assinou
com a Turquia – e está prestes a fazer a mesma coisa com
a Líbia – um muro bem mais hipócrita e mais assassino. Ela
vê o cisco no olho do seu aliado, mas não vê a trave no seu

36
próprio olho.
Recuo no crescimento dos países emergentes
A segunda má notícia é o recuo do crescimento dos países
emergentes. A queda brutal das exportações após 2008 foi
combatida com planos robustos de retomada na China, no
Brasil e na Índia. Essa retomada, no entanto, configurou-
-se na construção de um projeto de desenvolvimento do
mercado interno baseado no crédito e na corrupção, com
liberação de crédito aos particulares. Pela incapacidade de
uma verdadeira redução das desigualdades, é muito difícil
que o alcance de um crescimento autocentrado tenha êxito.
A boa notícia dessa má notícia é o fato de que as políticas de
industrialização desenfreada em detrimento do meio am-
biente, com um aumento colossal da poluição nas grandes
cidades e a contaminação dos solos e dos rios, demonstra-
ram seus limites. O imperativo ecológico do bem-viver se
impõe, assim como aquele da luta contra as desigualdades.
São questões críticas tanto nos países emergentes quanto
nos países desenvolvidos. A queda de Dilma Rousseff não
resolveu a situação brasileira. O presidente Michel Temer
parece tão desgastado em um ano quanto sua predecessora
em quatro anos.
A evolução da China foi marcada por um fortalecimento con-
siderável do poder do presidente Xi Jinping
A evolução da China, por sua vez, foi marcada por um
fortalecimento considerável do poder do presidente Xi
Jinping, algo nunca visto desde Mao, como se o regime se
preparasse para sérias dificuldades internas. A luta contra
a corrupção completada pela recente campanha para apu-
rar o envolvimento de diferentes instâncias do partido e de
suas instituições têm levado a um expurgo constante. Se
as relações da China com seus vizinhos, aliados dos Esta-
dos Unidos (Coreia do Sul, Japão, Filipinas), se deterioram,

37
principalmente com a construção de verdadeiras ilhas ar-
tificiais no mar, e se essa evolução parece preocupante, é,
sobretudo, porque isso poderia repercutir nas dificuldades
internas do Império do Meio (tanto em Hong-Kong quanto
em Taiwan).
EUA e Cuba
Em contrapartida com essas más notícias, o apaziguamen-
to das relações entre os Estados Unidos e Cuba e o fim da
guerra civil na Colômbia representam boas notícias. Embo-
ra a eleição de Trump e a consequente deterioração brutal
das relações dos Estados Unidos com o México possam pôr
em xeque essa normalização.
IHU On-Line - Como o senhor tem interpretado o Brexit?
A saída do Reino Unido da União Europeia foi ou não
positiva e quais as consequências que essa medida
tende a gerar nos próximos anos?
Yann Moulier Boutang - Escrevi um artigo (Brexit: une sor-
tie qui vient de loin, Multitudes #64 Fall 2016, pp. 9-22)
acerca do meu pensamento sobre essa guinada. Para resu-
mi-lo (os acontecimentos que sucederam desde então não
modificaram minha opinião): a adesão do Reino Unido ao
projeto de formação dos Estados Unidos da Europa nun-
ca se confirmou. Esse país, que, desde o fim da Segunda
Guerra Mundial, persistiu em sua busca de uma relação
privilegiada com os Estados Unidos da América, tentou ini-
cialmente opor uma associação de livre comércio a todos
os projetos sucessivos, até o Tratado de Roma de 1957.
Quando ficou evidente que não seria possível sabotar a
construção europeia a partir do lado de fora, o Reino Uni-
do solicitou, já em 1964, o ingresso na Comunidade Eco-
nômica Europeia. O que só se concretizou mais tarde, em
1972. A reivindicação de Margaret Thatcher, ao chegar ao
poder, de um status particular para o seu país (I want my

38
money back) foi reveladora. A queda dos países do Leste
Europeu e a ampliação da União ao sul e ao leste levaram
a estratégia britânica a defender uma ampliação, e não um
aprofundamento da Comunidade Econômica, com a espe-
rança de fazê-la evoluir para uma associação de livre co-
mércio.
Todavia, esse projeto fracassou e, apesar da reivindicação
de um status particular (permanecer fora do espaço Schen-
gen, não adotar o euro), os governos britânicos sucessivos
se deram conta de que nada podia interromper a marcha
dos Estados-membros, quer fosse sob a forma de confede-
ralismo (fortalecimento da cooperação entre as Nações)
ou em forma de federalismo progressivo (papel crescente
da Corte de Justiça do Luxemburgo – verdadeira Suprema
Corte –, do Banco Central Europeu, aumento das áreas de
competências exclusivas da União). A rejeição ao Tratado
Constitucional em 2005 fez com que acreditassem que a
marcha rumo a uma integração política cada vez maior se-
ria finalmente barrada. Porém, a crise de 2008 e o agrava-
mento da situação às portas da Europa levaram à retomada
do avanço da unificação. Sem tratado constitucional, sem
bandeira ou hino, a União Europeia aprovou os dispositi-
vos práticos essenciais do Tratado Constitucional em Lis-
boa, em 2011.
O “tudo ou nada” dos britânicos
A constatação pelos governos britânicos sucessivos de que
não conseguiam conduzir a marcha para o federalismo os
levou a um verdadeiro tudo ou nada: usar a arma do refe-
rendo sobre a saída da União Europeia como chantagem.
O plano britânico de David Cameron era ganhar aperta-
do para a permanência na União, conseguindo ao mes-
mo tempo invocar uma grande minoria hostil para obter
concessões, em especial a eliminação, no preâmbulo dos

39
Tratados, da famosa frase: “Os países-membros desejam es-
tabelecer entre si uma união cada vez mais estreita”.
A estratégia de permanecer dentro da União para melhor
impedir que se constituíssem os Estados Unidos da Europa
fracassou
A estratégia de permanecer dentro da União para melhor
impedir que se constituíssem os Estados Unidos da Euro-
pa fracassou quando os eurocéticos ingleses ganharam o
Brexit por uma pequena maioria. O complicado jogo de
Cameron voltou-se contra o seu próprio plano tático. Os
verdadeiros europeus se deram conta de que, com a sa-
ída dos britânicos, seria muito mais fácil fazer avançar a
União. Longe de presenciar o início do fim da União Eu-
ropeia, esse Brexit é uma etapa da batalha federalista que
se travou. Ninguém sabe se o partido federalista ganhará a
curto prazo contra os partidários do status quo ou de um
fortalecimento ilusório da Europa das Nações nessa situa-
ção criada pela saída muito complicada, apesar de inexo-
rável, do Reino Unido, mas todo mundo concorda, deste
lado do Canal da Mancha, que uma Europa federal seria
impossível se o Brexit não tivesse acontecido.
Integração da defesa europeia
As tensões políticas atuais com a Rússia (Crimeia/ Ucrâ-
nia, Países Bálticos, Noruega) e as novas pressões de Trump
acerca do financiamento europeu da Organização do Tra-
tado do Atlântico Norte - OTAN desencadearam um pen-
samento súbito: o de uma integração da defesa europeia. O
fato de a França ser o único país da União Europeia dotado
de arma nuclear e de capacidade de projeção externa faci-
litará muito as coisas. O Reino Unido (que também dispõe
de uma defesa) se opunha a qualquer defesa integrada e
exigia que tudo fosse feito pela OTAN. Em muitas áreas,
a ausência do Reino Unido vai fazer com que avancem

40
soluções de cooperação reforçada ou simplesmente de in-
tegração federal.
Longe de provocar um contágio, a saída britânica mostra
em todos os níveis (econômico, jurídico, etc.) que a inte-
gração da produção e as migrações nos dois sentidos estão
muito avançadas e que a estratégia de Theresa May de co-
lar nos EUA, de resgatar um papel mundial imperial, não
é viável para os outros (isso corresponde também a uma
miragem dos ingleses, que não se consolam em se terem
tornado uma potência média).
A Polônia, assim como a Alemanha, que eram indulgentes
em relação à posição dos britânicos na União, mudaram
muito. Por fim, ao confiarem a Michel Barnier a condução
das negociações de saída, os 27 países-membros não facili-
taram nenhum pouco as coisas, e é mais que duvidoso que
o Reino Unido obtenha o que deseja: o acesso ao mercado,
o passaporte europeu para que as instituições financeiras
da praça de Londres possam operar no continente e, ao
mesmo tempo, o controle exclusivo sobre a entrada de tra-
balhadores da UE.
Poderíamos dizer em tom de boutade: em um contexto em
que a Europa tem de enfrentar múltiplos desafios (desem-
prego, austeridade, política industrial, política fiscal, políti-
ca social, união bancária, luta contra o terrorismo, política
estrangeira), se o Brexit não tivesse existido, seria necessá-
rio inventá-lo!
IHU On-Line - Nos últimos anos, muitos têm discutido
sobre o sentido de manter a União Europeia, dado que
muitos países europeus têm enfrentado crises econô-
micas e financeiras. Na sua avaliação, a União Eu-
ropeia ainda tem sentido? Quais são as razões para
mantê-la ou não?
Yann Moulier Boutang - A construção europeia é um movi-

41
mento profundo, complexo. É oriunda de uma experiência
contínua de mais de dois mil anos de história. Uma história
feita de guerras, impérios, estados grandes e pequenos, na-
ções. Somente a China tem uma história tão longa assim. A
Europa é, com o Japão, o único bloco de países que viveu o
colapso decorrente de duas guerras mundiais, a coloniza-
ção, a descolonização. Ela já é pós-nacional. O país-mem-
bro mais poderoso da União, a Alemanha, foi privado dos
atributos clássicos de uma soberania nacional (o direito de
declarar guerra).
Sou cidadão europeu, e a França é apenas uma província da
União. E assim será cada vez mais.
A União Europeia representa uma entidade totalmente nova,
feita de várias tradições jurídicas. Sua construção é compó-
sita, híbrida, e parece mais frágil que a de um Estado-Na-
ção integrado ou de um Império. O Povo Europeu [grifo do
entrevistado] está por vir, é proléptico, diferentemente das
velhas ou mais recentes Nações que o compõem. Certo é
que a Europa não é simplesmente um grande mercado de
livre comércio, como desejavam os britânicos. Ainda não é
uma potência federal, mas tende cada vez mais a avançar
nesse sentido, e o fez em tempo recorde se comparada aos
Estados Unidos.
A Europa absorveu e continua absorvendo Estados-mem-
bros. Tudo o que existe em torno dela, tanto ao sul quanto
a leste só tem um desejo: fazer parte dela (Geórgia, Ucrâ-
nia, Servia, Albânia, Macedônia, Moldávia, Bielo-Rússia,
até mesmo a Turquia ou ainda a Rússia). A questão de uma
fragmentação da Europa é muito retórica entre os europeus
e um wishful thinking entre muitos americanos e russos.
Toda vez que o projeto político de unificação europeia pa-
receu fracassar, ele se reergueu. Muitos economistas ameri-
canos previram o fim do euro (os britânicos também espe-

42
ravam por isso). Nada disso aconteceu, e o Banco Central
Europeu se tornou uma das instâncias federais mais fortes
da União. Sem ele, a crise econômica pela qual passaram
todos os Estados-membros em graus diversos teria sido dez
vezes pior.
Futuro dos Estados-Nações
Mesmo que eu prefira uma União Europeia mais assenta-
da à esquerda, menos neoliberal, menos austera, mesmo
que seja necessário lutar, dentro do Parlamento Europeu,
para alcançar mais democracia diante do Conselho Euro-
peu, excessivamente confederalista (com direito de veto e
a regra ultrapassada da unanimidade para reformar os tra-
tados), mesmo que os partidos políticos ainda tenham que
se reorganizar com uma base europeia e não nacional, a
União Europeia é o único futuro dos minúsculos Estados-
-Nações, a única garantia de evitar a guerra, de defender
os valores da civilização mundial. E não será a ascensão
de Trump, Putin, Xi Jinping e outros que me fará mudar de
opinião.
Para ser franco, acho a sua pergunta tão ofensiva a mim e à
União Europeia quanto perguntar-lhe se você acredita que
a República Federativa do Brasil ainda tem sentido uma
vez que Sergipe e Rio Grande do Sul atravessam dificulda-
des econômicas e têm grandes disparidades de desenvol-
vimento. Sou cidadão europeu, e a França é apenas uma
província da União. E assim será cada vez mais.
Portanto, faz 30 anos que essa questão não se discute mais.
A União Europeia não é uma confederação da qual Esta-
dos-membros soberanos poderiam sair. Até o Tratado de
Lisboa, nunca havia sido previsto o menor dispositivo de
saída de um Estado-membro (a expulsão de um Estado-
-membro, sim).
IHU On-Line - Um dos temas polêmicos deste último

43
ano foi a situação dos imigrantes e refugiados e a re-
sistência de alguns países em recebê-los. Quais são,
na sua avaliação, as questões que devem ser analisa-
dos quando se trata de compreender essa questão?
Yann Moulier Boutang - Precisamos separar três questões
que são diferentes: a questão das migrações de trabalhado-
res internos à União Europeia, aquela das migrações inter-
nacionais (grupos de famílias, migrante econômico) e, por
fim, a da chegada excepcional de refugiados provenien-
tes de zonas em guerra, sobretudo, em guerra civil. Elas
não têm muito a ver uma com a outra, exceto o fato de
que essas populações se acumulam atrás dos arames farpa-
dos que foram colocados nas fronteiras a leste e ao sul da
União Europeia.
Além disso, três outros fatores complicam ainda mais esse
cenário. O ponto de chegada desejado pelas três popula-
ções dessas migrações é geralmente o Reino Unido, por
diferentes razões, entre as quais a já presença nesse país de
cidadãos dos países do Oriente Médio, o dinamismo inglês
em certos setores econômicos (pesca, agricultura, serviços
de comércio no varejo), que atraem também muitos tra-
balhadores da própria União Europeia, poloneses em sua
maioria, mas também muitos jovens franceses, italianos,
espanhóis, gregos. Ora, o Reino Unido, que é membro de
fato da União (sendo obrigado a respeitar a livre circulação
de cidadãos dos outros Estados-membros), não é signatário
do espaço Schengen e manteve suas fronteiras nacionais.
Conforme os acordos de Schengen, há livre circulação
dentro de seu espaço. Em relação aos migrantes internacio-
nais, o controle cabe ao primeiro país de entrada no espa-
ço Schengen. Assim, a Grécia, por exemplo. Porém, como
o Reino Unido não faz parte de Schengen, ele assinou um
acordo vergonhoso com a França do presidente Sarkozy
para que os migrantes que conseguirem ingressar no espa-

44
ço Schengen passem por um controle na França antes de
entrarem em solo britânico.
Foi esse acordo pago generosamente pelo Reino Unido
que criou Calais, durante mais de seis anos. No outro ex-
tremo da Europa, reina a mesma incerteza, pois a Turquia,
plataforma giratória dos fluxos de refugiados da Síria, era
(e continua sendo) candidata a fazer parte da União Euro-
peia. Com o empurrão da Alemanha, não foi construído
um muro à moda Trump, mas, sim, de forma mais eficaz,
foram destinados bilhões a esse país, cujo regime se afunda
num autoritarismo crescente, para reter em seu território os
novos fluxos. Isso acontece desde 2016. O mesmo “muro”
invisível está sendo negociado com a Líbia, mas o que está
atrasando a implementação dessa solução é a instabilidade
política desse país devastado pela guerra civil.
Marcador das dissensões
A questão das migrações passou a ser um marcador das
dissensões dentro da União Europeia
A questão das migrações passou a ser um marcador das
dissensões dentro da União Europeia: Angela Merckel quis
acolher a onda de refugiados e optar por uma distribuição
federalista dos migrantes por meio de cotas destinadas a
cada país em função de seu PIB, do número de imigran-
tes já presentes em seu território. Os outros Estados não a
seguiram. Enquanto a Alemanha aceitava mais de 1 mi-
lhão de migrantes em três anos, a França recebia apenas
160 mil. Quanto aos pequenos Estados da Europa Central,
como a Hungria, a Eslováquia, a República Tcheca, houve
uma verdadeira rebelião. A questão das migrações não é
um problema de invasão: 5 milhões de refugiados por ano
durante três anos (o que absorveria o fluxo de refugiados)
representariam apenas 7% dos 540 milhões de habitantes
de uma União Europeia que está envelhecendo rapida-

45
mente.
Os fluxos econômicos tradicionais a partir dos países em
vias de desenvolvimento, da África essencialmente, deve-
riam ser regulados por políticas de cooperação muito mais
dinâmicas e, sobretudo, por uma federalização real do pro-
blema do controle das fronteiras. A força europeia encar-
regada essencialmente do policiamento marítimo desde o
Estreito de Gibraltar até as ilhas do Mar Egeu, passando
por Lampedusa, entre a Sicília e a Tunísia, ainda é mui-
to fraca, principalmente o controle das fronteiras do leste
da União Europeia delegado aos Estados-membros, que foi
um desastre porque muitos desses países, como a Hungria,
quiseram simplesmente desrespeitar a política comunitária.
Só cederam mediante a ameaça de sofrerem sanções finan-
ceiras.
Migrações internas
No que se refere às migrações internas à União Europeia, o
problema está nas migrações de trabalhadores que afluem
para países não membros do espaço Schengen, mas mem-
bros da União Europeia (caso do Reino Unido), e para pa-
íses europeus não membros da UE, como a Noruega e a
Suíça). Essa é a questão dos profissionais que se deslocam
em missão de trabalho. Se participarem de missões infe-
riores ao período de um ano, geralmente ficam vinculados
ao sistema de proteção de seus países de origem, pois são
empregados por empresas terceirizadas de seus próprios
países, e não do país onde trabalham, com salários e condi-
ções de trabalho e proteção bem inferiores. Na verdade, o
que está em discussão é a homogeneização das condições
sociais. Juntamente com o dumping social que é cada vez
menos aceito pelos sindicatos e pelos trabalhadores.
Por fim, essa questão da livre circulação e de sua estreita
conexão com o Mercado Único está no centro das nego-

46
ciações entre a UE e o Reino Unido, que quer se benefi-
ciar da livre circulação de mercadorias sem ser obrigado a
aceitar migrantes europeus. Podemos, então, dizer que: 1)
trata-se de um grande desafio estratégico e simbólico; 2)
uma resposta deixada aos cuidados de cada um dos Esta-
dos conduziu até agora e conduziria ainda a efeitos muito
negativos para o projeto de união cada vez mais estreita.
IHU On-Line - Outro tema polêmico na Europa tem sido
as ações dos terroristas, especialmente envolvendo o
ISIS. Como o senhor tem avaliado e compreendido os
ataques que aconteceram no último ano em toda a
Europa?
Yann Moulier Boutang - Toda a Europa tem sido afetada
pelo terrorismo desde 1998. O ISIS, último avatar do ter-
rorismo, tem sido particularmente violento, mas desde
Munique (1972), a partir da questão palestina, e depois a
guerra civil na Argélia entre o exército e a Frente Islâmica
da Salvação, até chegar a Al-Qaeda e, por fim ao Daesh,
a Europa em sua periferia sul e médio-oriental nunca es-
teve livre dos sobressaltos políticos. Com o ISIS e a guerra
da Síria (bem maior que as guerras do Afeganistão e do
Iraque), a novidade é o papel desempenhado por jovens
migrantes (em segunda ou mesmo terceira ou quarta ge-
ração) ou então por jovens convertidos a um islã salafista
(portanto, radical) não só nos atos terroristas em território
europeu, mas também na guerra da Síria. Num contexto de
desintegração da Líbia, de manobras no Sahel e de guerra
de influência ferrenha entre os Estados sunitas da Península
Arábica, consideramos extremamente complexa a questão
do terrorismo.
Certos países da Europa têm uma política “africana”, “árabe”
Certos países da Europa, antigas potências coloniais como o
Reino Unido e a França, têm uma política “africana”, “ára-

47
be”. A Alemanha mantém uma política claramente orien-
tada para a Turquia, não só em função de suas tradições
históricas, mas também, e sobretudo, devido à extensão da
comunidade turca presente em seu solo. No nível europeu
e federal, o embrião da política estrangeira e da segurança
tem dificuldade de expressão. Desde o Tratado de Lisboa,
teoricamente, a UE tem uma ministra das relações exterio-
res, mas a senhora Mogherini tem pouquíssima autonomia e
pouquíssimos recursos. Nesse sentido também, a Europa se
vê diante da necessidade de agir em nível federal se quiser
mobilizar os países pequenos, os quais estão acostumados
a dispor do escudo da OTAN, financiada essencialmente
pelos Estados Unidos. No caso do terrorismo, a cooperação
se mantém essencialmente interestatal. É provável que se
desenvolva uma maior integração da defesa e dos serviços
de informação.
IHU On-Line - Como estão as discussões sobre as elei-
ções de 2017 na França? Pode nos falar brevemente
sobre os candidatos e suas agendas? Quem seria o pre-
sidente ideal para a França neste atual momento?
Yann Moulier Boutang - As eleições presidenciais e legis-
lativas francesas serão nesta primavera, e, no outono, na
Alemanha, haverá eleições legislativas, das quais depende-
rá o destino da chanceler Angela Merkel. Esses dois países
pesam juntos 48% do PIB global da União (mesmo com o
Reino Unido, mas, com mais forte razão, quando este se re-
tirar). Não se tem mais certeza de que Angela Merkel vença
o Partido Social Democrata Alemão - SPD, na sigla original
(Sozialdemokratische Partei Deutschlands).
Na França, a incerteza é total. Duas coisas são certas, ape-
sar de não resolverem nenhum problema: 1) Marine Le Pen
e o Front National chegarão em primeiro lugar no primeiro
turno, com cerca de quase um quarto dos eleitores, o que é

48
preocupante para 2022, considerando o seu programa an-
tieuropeu, 2) Qualquer que seja o grau de decomposição e
fragmentação das outras forças políticas, mesmo as minús-
culas, como o Partido Verde, o centro de François Bayrou,
Marine Le Pen será amplamente vencida em segundo turno
(entre 65 e 75 % dos votos), o que é tranquilizador.
O mérito disso é justamente a consolidação do eleitorado
em outras cinco forças: três da esquerda – Mélenchon, de
extrema esquerda, Hamon, pelo Partido Socialista, que res-
gata sua unidade e seu matiz, e Jadot, candidato do Partido
Verde; dois movimentos entre esquerda, centro e direita li-
beral (Macron e Bayrou); e a direita, com os republicanos,
embora seu candidato esteja atravessando uma tempestade
por fatos que revelaram nepotismo (emprego fictício de sua
esposa e de seus filhos) e que o fizeram passar, em me-
nos de três semanas, da condição de vencedor quase certo
àquela de provável descartado para o segundo turno.
As eleições presidenciais e legislativas francesas serão nes-
ta primavera, e, no outono, na Alemanha, haverá eleições
legislativas
As primárias dos partidos e a eleição propriamente dita
foram mortíferas para os candidatos que participaram de
governos anteriores e do atual governo, de maioria socia-
lista, mas também os de direita: Hollande, Valls, Sarkozy,
Juppé foram eliminados. Todos eles antigos Presidentes da
República ou Primeiros Ministros. Se continuar o escânda-
lo François Fillon, não se sabe se sua pontuação o levará
ao segundo turno. Benoit Hamon e Emmanuel Macron têm
em comum o fato de serem muito mais jovens. O eleitora-
do francês está muito dividido, à imagem da célebre aldeia
gaulesa, mas está voltando a se mobilizar à esquerda e,
sobretudo, é muito definido: os eventuais deslizamentos a
favor de Marine Le Pen são muito pouco significativos para

49
que ela consiga sair de seu confortável, mas insuficiente,
gueto de 25% para alcançar a maioria.
O segundo obstáculo, ainda mais insuperável do que o an-
terior para Marine Le Pen, é a famosa 5ª República, da qual
muitos candidatos da esquerda querem o fim. Desde 1962,
o Presidente da República é eleito diretamente em vez de
sê-lo pelas câmaras, como acontecia na versão da Cons-
tituição de 1958. Ele é dotado de poderes consideráveis,
entre os quais o direito de dissolução, que não pode ser re-
petido durante um ano; pode governar com base no artigo
16 em caso de situação muito grave (neste caso, a Assem-
bleia Nacional se mantém e não pode ser dissolvida). Po-
rém, ele deve governar através do Primeiro Ministro. Todos
os seus decretos devem ser assinados por este. E, embora
o Presidente possa nomear o Primeiro Ministro, este deve
obter obrigatoriamente o voto de confiança da Assembleia
Nacional. Sem maioria parlamentar, o Presidente da Re-
pública precisa coabitar com uma maioria que lhe é hostil
(submeter-se, o que se tornou regra nos governos Chirac e
Mitterrand, ou então se demitir). Pode encontrar-se na po-
sição do presidente Mac Mahon, na 3ª República, que teve
de se demitir em 1877. No entanto, o modo de escrutínio
atual das legislativas é uninominal em dois turnos, sem di-
visão dos mais fortes, ficando para a proporcional corrigir
a eliminação de forças significativas, mas incapazes de se
aliarem com outras no segundo turno.
Esse é justamente o caso do Front National. Essa lei elei-
toral faz com que um partido que reúne de 20 a 25% dos
votos em nível nacional e, às vezes, 45% em nível local
não consiga obter um número suficiente de deputados. En-
quanto a direita e o Front National forem incapazes de se
entender, este continuará tendo apenas um número mar-
ginal de deputados. O que poderia fazer Marine Le Pen,
na hipótese muito improvável de 2017, mas possível em

50
2022, com apenas 35, ou mesmo 10 deputados, na Assem-
bleia Nacional? Rigorosamente, nada além de submeter-se
a uma coabitação ou demitir-se. A direita está presa no seu
próprio terreno desde 1981, exatamente como ficou a es-
querda socialista e radical entre 1947 e 1977 quando o
Partido Comunista, com um quarto do eleitorado, a impe-
dia de formar uma coalizão sustentável.
Macron X Le Pen
É possível, então, que, diante do escândalo Fillon Penelo-
pegate (do nome de sua mulher que foi empregada como
assistente parlamentar e colaboradora-fantasma da Revue
des Deux Mondes mediante salários astronômicos), assista-
mos a um duelo entre Macron e Marine Le Pen.
Renda universal
A segunda lição interessante dessas eleições presidenciais
é o surgimento do tema da renda universal proposta como
medida central pelo candidato surpresa do Partido Socialis-
ta, que eliminou tanto Arnaud Montebourg quanto Manuel
Valls (ambos opostos a essa reivindicação). Pela primeira
vez na França, tanto em toda a esquerda como na direita,
a renda universal foi discutida, embora fosse rejeitada, a
exemplo de Mélenchon e de Macron, enquanto o ex-presi-
dente da companhia de seguros AXA, conselheiro de Fran-
çois Fillon, pronunciou-se a favor, para grande espanto de
seu próprio campo. Essa reivindicação, que parece ainda
vaga por reunir neoliberais, desde M. Friedman e J. Von
Hayek, e vozes opostas (P. Van Parijs, J. M. Ferry), transpôs
com êxito a barreira da invisibilidade.
A pressão por uma renda universal, qualquer que seja sua
forma, passou a ser ouvida. Medida central de Benoit Ha-
mon, candidato à primária do Partido Socialista, ela con-
tribuiu muito para eliminar seus rivais, entre os quais o
ex-primeiro ministro Manuel Valls, para surpresa geral. De-

51
pois de ter se arrastado durante muito tempo na França,
essa questão foi lançada de uma só vez.
Ainda não se sabe qual será o destino dessa palavra de
ordem da renda universal, mas certo é que uma etapa foi
vencida. Principalmente na esquerda, mais nada será como
antes quanto à discussão sobre o crescimento, a persistên-
cia do desemprego, a retomada do consumo, a reforma do
Estado do bem-estar social, o futuro do trabalho, o combate
à pobreza e às desigualdades.
IHU On-Line - Quais são as principais tensões e dispu-
tas geopolíticas presentes no mundo de hoje? Quais os
riscos e possibilidades dessas tensões?
Yann Moulier Boutang - Hoje, as principais tensões geo-
políticas, por ordem de prioridade, são: o futuro do plane-
ta, logo, a questão da transição ecológica, na qual um dos
pontos – mas não o único – é a transição energética para
lutar contra o aquecimento climático; a poluição dos solos,
dos rios, a escassez da água, a poluição do ar nas grandes
metrópoles, onde se concentrarão 85% da população mun-
dial até 2050, tornam-se questões cruciais que não podem
ser escamoteadas. A globalização e a financeirização da
economia ou, de modo generalizado, a financeirização de
tudo, inclusive do meio ambiente, que passou a ser opor-
tunidade de novos lucros, foram incapazes de enfrentar os
dois maiores desafios: a) como preservar um planeta habi-
tável para nossos netos? b) como resolver o problema da
pobreza e de uma sociedade cada vez mais injusta na divi-
são da riqueza, apesar dos progressos inéditos alcançados
pela revolução digital?
Os cenários segundo os quais o grande batalhão dos paí-
ses emergentes, como a China, a Índia, o Brasil, alcançaria
os países desenvolvidos de forma virtuosa, rápida e sem
sobressaltos mostraram que esses países se engolfaram na

52
contradição entre crescimento industrial rápido e destrui-
ção acelerada do meio ambiente e das condições de vida
humana, em uma desigualdade gigantesca que impede
transformar um crescimento dependente das exportações
em um desenvolvimento autoalimentado. A segunda onda
da transformação digital (big data, machine learning, inte-
ligência artificial, robotização) nos coloca numa longa fase
de segunda revolução industrial que provocará desempre-
go em massa tanto nos países do centro quanto nos BRICS.
É nesse terreno fértil em contradição que fecundam fenô-
menos como os confrontos inter-religiosos
É nesse terreno fértil em contradição que fecundam fenô-
menos como os confrontos inter-religiosos (xiitas/ sunitas,
islã, budismo), os conflitos entre maioria e minorias e o re-
cente crescimento de populismos essencialmente de direi-
ta (Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, França, Hun-
gria, Holanda, Itália), mas também de esquerda (Espanha,
França). Tais fenômenos não têm nenhuma autonomia. Tra-
vestem-se em “guerra das civilizações” encenadas pelo ter-
rorismo fundamentalista e por um populismo reacionário,
mas tratá-los separadamente das contradições profundas
que os alimentam leva somente a um teatro de sombras
sem fim.
IHU On-Line - Como o senhor avalia a eleição de Trump
nos EUA? A que fatores atribui a eleição dele
Yann Moulier Boutang - Longe de significar um retorno ao
isolacionismo dos EUA, como no século XIX, a eleição de
Trump manifesta mais uma normalização desse continen-
te alinhada à norma europeia nacional anterior à Segunda
Guerra Mundial. O império americano nunca foi vencido,
a não ser em momentos instantâneos e efêmeros, com Pearl
Harbour e o 11 de setembro. Ele ainda não assimilou a era
pós-nacional que conduziu as pequenas Nações europeias,

53
após seu duplo suicídio de 1914-1918 e 1939-1945, a cria-
rem um processo de unificação como aquele dos Estados
Unidos entre 1776 e 1860. O quiproquó com a Europa,
então, é geral (com o Japão e a Coreia do Sul também). Em
compensação, os Estados Unidos compreendem melhor a
Rússia e a China.
Falei a respeito dos continentes à deriva, da fenda tran-
satlântica crescente. A eleição de Trump apenas confirma
esse afastamento já perceptível nos governos de Bill Clin-
ton e George Bush.
Efeito Trump
Detesto Trump, que apresenta traços do Doutor Fantástico
[Doutor Fantástico é um filme anglo-americano de 1964,
uma comédia de humor negro dirigida por Stanley Kubrick.
Um general completamente insano, Jack Ripper, ameaça,
durante uma reunião entre nações, neutralizar a U.R.S.S.
com bombas nucleares, o que poderia gerar um Holocaus-
to fulminante na Terra. Todos os outros membros fazem de
tudo para evitar], muito perigoso nas circunstâncias atuais,
mas eu diria que ele é uma benção para os partidários da
construção de uma União Europeia sólida, portanto, fede-
ral. Era difícil acusar os Estados Unidos de desejar a morte
do projeto europeu, o fim do euro, a inexistência de in-
dependência tecnológica, societal e cultural frente ao soft
power dos EUA, que não é apenas Hollywood, mas essen-
cialmente os GAFAs [GAFA: sigla adotada pelos franceses
para se referirem aos gigantes tecnológicos americanos:
Google, Apple, Facebook e Amazon] e o novo capitalismo
cognitivo de ponta.
Ele [Trump] é uma benção para os partidários da constru-
ção de uma União Europeia sólida
Agora, as coisas se aclararam. Trump aplaude o Brexit, con-
dena a União Europeia à extinção, quer nomear um embai-

54
xador abertamente hostil em Bruxelas. O jogo de Theresa
May, quase ridículo por seu anacronismo, para voltar a ter
o papel de fiel escudeiro dos Estados Unidos evocando seu
papel imperial, longe de despertar a inveja dos países da
União, serve de modelo a rejeitar. Por fim, Trump é um
idiota útil para a retomada de uma defesa europeia, de um
Estado federal europeu integrado.
IHU On-Line - Que mudanças geopolíticas podem-se
esperar a partir do governo Trump? Que tipo de rela-
ções os EUA devem estabelecer com a China, Europa,
Ásia e a Rússia, considerando que o presidente Putin
já sinalizou como positiva a eleição de Trump?
Yann Moulier Boutang - Há as palavras estapafúrdias e
os tweets de Trump. E há também as fortes tendências da
diplomacia americana. Sobre o Irã, a Rússia, a China, a
União Europeia e a OTAN, Trump quer briga, mas desde já
é obrigado a baixar o tom. Acabamos de ver as fortíssimas
dificuldades internas que ele encontrou diante da proibi-
ção radical da entrada de cidadãos de seis países árabes
(inclusive a decisão de um juiz federal que suspendeu a
execução do decreto). A OTAN foi confirmada por seu Mi-
nistro da Defesa. A renúncia ao Tratado Norte-Americano
de Livre Comércio - NAFTA [sigla em inglês] não pode ser
feita com uma canetada.
Quanto às relações com Putin, passada a rápida paquera
que dois populistas podem manter na execração comum
da democracia policiada, os interesses logo prevaleceram.
Putin testará o presidente americano sobre a Ucrânia, com
a retomada dos combates no Donbass, mas Trump não
falou em retirar as sanções contra a Rússia. Como dizia
Shakespeare, “muito ruído para nada”.
O único terreno em que a diplomacia de Trump pode cau-
sar devastações é no Sudeste Asiático. A China atravessa

55
um período difícil no plano interno. Está muito sensível em
virtude do caso do Mar da China e da questão de Taiwan
e Hong Kong. Os métodos toscos de Trump, que nada têm
a ver com os de alguém como Nixon ou Obama, ferem
seriamente a China, que, ao contrário da Rússia, tem um
poder de represália muito forte contra os Estados Unidos
e pode, sobretudo, aproveitar o recuo brutal de Trump do
acordo com os países do Sudeste Asiático para reintegrar
uma coalizão da qual fora afastada.
IHU On-Line - Trump fez um discurso bastante duro em
relação aos imigrantes e, especialmente, ao terroris-
mo. Como essas questões devem aparecer na pauta
norte-americana nos próximos anos?
Yann Moulier Boutang - O México realiza 80% de seu co-
mércio com os Estados Unidos e o Canadá no âmbito do
NAFTA. O “muro” de Trump, com a intenção de humilhar
esse país, acaba de provocar um resultado pelo qual o pre-
sidente dos EUA pagará caro: ele fez ressurgir o nacionalis-
mo latino-americano “antigringos”, enquanto os cinquen-
tas anos de globalização haviam tecido interdependências
dos dois lados do Rio Grande, as quais são irreversíveis sem
que a própria indústria americana pague um preço insano.
Aliás, podemos comparar essa vontade de romper com o
México ao Brexit, pois em ambos os casos Trump e May de-
monstram a mesma ignorância em relação às transforma-
ções profundas da cadeia do valor, da especialização com-
plementar Reino Unido/Europa continental e EUA/ México
e Canadá. O mesmo vale para a complementaridade das
economias dos Estados Unidos e da China.
O “muro” de Trump, com a intenção de humilhar esse país,
acaba de provocar um resultado pelo qual o presidente dos
EUA pagará caro
Quanto à questão do terrorismo e da luta contra ele, Trump

56
se limitou ao problema da segurança, sem perceber que
isso está intimamente ligado às transformações produtivas,
a uma circulação maciça de quadros empresariais, enge-
nheiros, pesquisadores, empresários (inclusive aqueles que
trabalharam em estreita colaboração com os Estados Uni-
dos no Afeganistão e no Iraque).
Assim como a imprensa, os GAFA iniciaram uma campanha
contra o decreto de imigração justificado pelo presidente
como sendo a condição de um combate eficaz ao terro-
rismo. Essas empresas são de fato afetadas em seu funcio-
namento cotidiano. A cidade de San Francisco, em decla-
ração oficial inédita, entrou em dissidência ao proclamar
alto e bom som que não aplicará o decreto presidencial.
Foi da cidade de Seatlle e do Estado de Washington que
um juiz federal – aliás, republicano – suspendeu o decreto
presidencial. Se assim continuar, a luta do presidente, que
ataca especialmente a Califórnia, permissiva e “frouxa” em
suas próprias palavras, poderá encorajar o estado mais rico
e também o mais populoso dos Estados Unidos a entrar em
secessão de fato com o candidato eleito do Middle Ou-
est, da Rust Belt e da Flórida dos rendimentos. Com grande
união nacional, é possível fazer melhor. A exceção políti-
ca dos Estados Unidos está se dissipando. Dois campos se
enfrentam hoje, sem reconciliação. Poderíamos dizer que
estamos na Europa mais vingativa.

57
58
IV -
Síria: fissão tóxica*

Pepe Escobar, é um jornalista investigativo independente brasi-


*

leiro, especialista em análises geopolíticas. No Brasil, trabalhou


para os jornais Folha de S. Paulo, O Estado de São Paulo. Publi-
cado em 07 de abril 2017

59
"Esses atos odiosos do regime Assad não podem ser
tolerados." Assim falou o presidente dos EUA.

Tradução instantânea: Donald Trump – e/ou toda a sopa


de letras das agências de inteligência dos EUA, sem qual-
quer investigação detalhada –, estão convencidos de que
o Ministério de Defesa da Rússia está simplesmente
mentindo.

É acusação gravíssima. O porta-voz do Ministério da


Defesa da Rússia, major-general Igor Konashenkov, reforçan-
do que se tratava de informação "absolutamente objetiva e
verificada", identificou um ataque da Força Aérea Síria lan-
çado contra um depósito "rebelde moderado" a leste da cida-
de de Khan Sheikhoun usado pelos rebeldes para produzir e
estocar ogivas carregadas com gás tóxico.
Konashenkov acrescentou que os mesmos produtos
químicos foram usados pelos "rebeldes" em Aleppo no final
do ano passado, conforme amostras recolhidas por especia-
listas militares russos.
Pois mesmo assim Trump sentiu-se compelido a tele-
grafar a linha que, hoje, virou sua pessoal linha vermelha na
Síria: "Militarmente, não gosto de dizer quando e o que faço.
Não estou dizendo que não farei coisa alguma de um modo
ou de outro, e com certeza não diria a vocês [à mídia]."
Por seu lado no gramado da Casa Branca, o patético
reizinho de Playstation da Jordânia elogiava a "abordagem
realista [de Trump] para os desafios na região." Poderia passar
por sketch de Monty Python. Desgraçadamente é de verdade.

O que está em jogo em Idlib


Histeria à solta – mais uma vez –, a opinião pública
ocidental esquece convenientemente que as armas químicas
que Damasco declaradamente possuía foram destruídas faz

60
tempo, em 2014, a bordo de um navio dos EUA, sob supervi-
são da ONU.
E a opinião pública ocidental convenientemente es-
queceu que antes que Barack Obama transpassasse teorica-
mente a linha vermelha das armas químicas, um relatório
secreto da inteligência dos EUA já deixara bem claro que
Jabhat [Frente] al-Nusra, codinome: al-Qaeda na Síria, já do-
minava todo o ciclo de produção e emprego do gás sarín e
era capaz de produzi-lo em quantidade.
Para nem dizer que o governo Obama e seus aliados
Turquia, Arábia Saudita e Qatar firmaram um pacto secreto
em 2012 para lançar um ataque com gás sarín e culpar Da-
masco, criando o cenário indispensável para um replay da
operação "Choque e Pavor". O dinheiro necessário para o
projeto veio da conexão OTAN-CCG combinada a uma co-
nexão CIA-MI6 também conhecida como linha de rato, para
transferir todos os tipos de armas, da Líbia para jihadistas-sa-
lafistas na Síria.
Assim sendo pois, aquelas armas tóxicas que "desapa-
receram" – em massa – dos arsenais de Gaddafi em 2011
terminaram por ser 'um upgrade' para a al-Qaeda na Síria
(não para o Estado Islâmico/Daech), rebatizado como Jabhat
[Frente] Fatah al-Sham e amplamente descrita em toda a Av.
Beltway do Departamento de Estado dos EUA, como "rebelde
moderada".
Encurralados na província Idlib, esses "rebeldes" são
hoje o principal alvo do Exército Árabe Sírio (EAS) e da Força
Aérea Russa. Damasco e Moscou, diferentes de Washington,
estão empenhadas em esmagar toda a
galáxia jihadi-salafista, não exclusivamente o Daech. Se o
Exército Árabe Sírio continua a avançar, e se esses "rebeldes"
perdem Idlib, é fim de jogo.
Assim sendo, a ofensiva de Damasco tinha de ser im-
pedida, custasse o que custasse, e bem à vista de toda a opi-

61
nião pública global.
Mesmo assim, absolutamente não faz sentido que ape-
nas dois dias antes de nova conferência internacional sobre
a Síria, e imediatamente depois de a Casa Branca ter sido
forçada a admitir que "cabe ao povo sírio escolher o próprio
destino" e que ninguém mais falaria de "Assad tem de sair",
Damasco lançaria um ataque com gás tóxico que absoluta-
mente contraria todos os seus próprios interesses e antagoni-
zaria todo do universo OTAN.
A coisa aí anda – e fala – mais como o velho tsunami
de mentiras que anunciou o início da operação Choque e Pa-
vor em 2003, e com certeza anda e fala como alguma mesma
velha campanha da "al-CIAda" returbinada. A [Frente] Jabhat
al-Nusra nunca deixou de ser a garotinha da CIA, no cenário
preferencial de mudança de regime sírio.

As crianças de vocês não são suficientemente tóxicas


A embaixadora de Trump à ONU, quadro da Heritage
Foundation, Nikki Haley, girou como neomíssil embriagado,
como se poderia prever, monopolizando todo o ciclo ociden-
tal de noticiosos de TV. Apagado, também previsivelmente,
foi o vice-embaixador da Rússia à ONU Vladimir Safronkov,
que reduziu a pó de traque a "obsessão do ocidente com
mudar o regime" na Síria, que é o que sempre emperra esse
Conselho de Segurança".
Safronkov repetiu que o chamado 'ataque químico em
Idlib estava baseado em "relatórios falsificados dos Capace-
tes Brancos" – organização "há muito tempo desacreditada".
Pura verdade. Mas agora os Capacetes Brancos até já ganha-
ram um Óscar , e essa medalha de honra da cultura pop os
torna inacusáveis – para nem dizer que os imuniza contra os
efeitos do gás sarín.
Inventem Trump e o Pentágono o que quiserem, ana-
lista independente da inteligência dos EUA, avesso a pensar

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corporativamente é bem claro: "Ataque aéreo contra a Síria,
só se for coordenado com a Rússia, e a Rússia não permitirá
ataques aéreos contra Assad. A Rússia tem os mísseis de defe-
sa bem ali e pode bloquear o ataque. Terão de negociar. Não
haverá ataque, porque qualquer ataque pode precipitar uma
guerra nuclear."

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