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Artigo

Sul Global. 1 (1): 192- 211 [2020]

Considerações sobre a política externa brasileira no governo


Bolsonaro e as relações Brasil-EUA
Williams Gonçalves(1) e Tatiana Teixeira (2)
1- Pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU) e professor de
Relações Internacionais da UERJ e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (PPGEM-
EGN).
2- Editora do Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU), pesquisadora do INCT-INEU e do Núcleo de Estudos e Análises
Internacionais (NEAI-Ippri/Unesp).

O governo brasileiro de Jair resultados obtidos até o momento pela


Bolsonaro (2019-) inaugurou inédita política externa da gestão Bolsonaro
direção de política externa, nunca (ex-PSL, atual Aliança pelo Brasil) no
antes vista em qualquer parte do que se refere a Washington, usando-as
mundo: uma política externa movida como base de sustentação dos
exclusivamente por motivações argumentos expostos acima. A escolha
ideológicas, sem compromisso com das relações bilaterais Brasil-EUA não
qualquer concepção de interesses se dá ao acaso.
nacionais. A ausência deste norte Ao longo de toda campanha
fundamental, que traz, entre outras eleitoral, foi este o país apontado pelo
consequências, uma adesão excessiva, então candidato como eixo de suas
quase totalmente automática e acrítica políticas externa e comercial, assim
às decisões e políticas dos Estados como inspiração para futuras decisões
Unidos de Donald Trump, coloca o em outras áreas, entre elas migração,
Brasil em posição de grande meio ambiente, Oriente Médio
desvantagem e insegurança em (sobretudo em relação ao conflito
diferentes âmbitos do plano entre palestinos e israelenses),
internacional. Expõe, ainda, a interação regional, ou multilateralismo
incapacidade da atual política externa (com a rejeição às Nações Unidas e às
de lidar com desafios e obstáculos de demais agências do sistema ONU, por
um sistema internacional que caminha exemplo), como apontam Castro
a passos largos para uma (2019) e Lima e Albuquerque (2019),
transformação estrutural profunda em análises sobre a política externa do
neste século XXI. governo atual em seu início.
Nesse sentido, este artigo se Do mesmo modo, para além
propõe a inventariar o escasso de tendências políticas e ideológicas,
conjunto de ações adotadas e Bolsonaro manifestou e continua a

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manifestar sua admiração particular e multilaterais) com os demais atores


pela trajetória e pela personalidade do internacionais oferecem para satisfazer
presidente Trump e seu desejo de ser os diferentes interesses existentes no
reconhecido como um aliado próximo e seio da sociedade que concorrem para a
preferencial do empresário nova- consecução desse desenvolvimento,
iorquino. Como gestos emblemáticos de concluímos que o que o Itamaraty tem
sua adesão, impensáveis para o feito nos enche de dúvidas a respeito do
presidente de uma nação soberana, que vem sendo praticado em nome
Menezes (2019) nos lembra do desse conceito.
momento em que Bolsonaro bateu A formulação da política externa
continência para a bandeira dos EUA em de um Estado representa a síntese dos
um evento na Flórida e, mais adiante, diferentes interesses – heterogêneos e
repetiu a saudação, ao receber o então até mesmo contraditórios – que
conselheiro de Segurança Nacional de compõem o tecido social. A síntese
Trump, John Bolton, em sua casa, no Rio coerente, possível e viável de demandas
de Janeiro. Seria, nas palavras de tão diversas elaborada por aqueles que
Menezes (2019), uma “nova versão das ocupam a direção das instituições do
chamadas ‘relações carnais’, que se Estado com objetivos de longo prazo a
associam aos governos do ex-presidente cumprir se converte nos interesses
argentino Carlos Menem (1989-1999)”, nacionais (Frankel, 1970). Tais
no contexto do realismo periférico. interesses expressam o nível de
desenvolvimento econômico, social e
Sobre política externa cultural alcançado pelo conjunto do
corpo social.
A inexistência de precedentes No período de 1912 a 1960, por
de uma política externa norteada por exemplo, a política externa brasileira
concepção ideológica e indiferente aos sintetizava dois interesses permanentes:
interesses de setores economicamente evitar o protagonismo da Argentina na
influentes causa tamanha perplexidade, América do Sul, para isso empenhando-
que nos conduz mesmo a questionar se se em equilibrar a balança de poder no
é adequado considerar política externa Rio da Prata; e manter boa relação com
o que o chanceler brasileiro tem posto os Estados Unidos, principal mercado
em prática à frente do Ministério das para as exportações brasileiras e fonte
Relações Exteriores. Se concebermos de investimentos no país. Esses eram
política externa como uma política interesses de alcance limitado,
pública, cujo fim último consiste em compatíveis com a estrutura econômica
promover o desenvolvimento primário-exportadora, em que avultava
econômico, social e cultural e o bem- o papel do café como fonte de divisas,
estar da nação, explorando as não obstante o esforço industrializante
possibilidades que as relações (bilaterais iniciado nos anos 1930 e incrementado

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na segunda metade dos anos 1950


(Rodrigues, 1966). político; Parágrafo único: A República
Para que os objetivos da política Federativa do Brasil buscará a
externa possam ser atingidos, faz-se integração econômica, social e cultural
necessário que as ações a serem dos povos da América latina, visando à
desencadeadas pelos agentes formação de uma comunidade latino-
credenciados pelo Estado a estabelecer americana de nações”.
relações com os demais atores estejam Toda política externa é produto
em sintonia com a realidade da inter-relação dos interesses internos,
internacional. É necessário, portanto, considerados prioritários, com as
que os encarregados de elaborar a possibilidades externas, percebidas por
política externa empreendam acurada meio da avaliação do quadro
avaliação dos interesses que movem os internacional. Nesse processo, não há
demais atores, bem como das normas lugar para certezas. Não há nada que
que regem o funcionamento das seja natural. Tudo depende de
organizações, com as quais o Estado se interpretações e de escolhas. Tudo
encontra comprometido. O êxito da depende dos pressupostos e dos
política externa depende tanto da clara instrumentos usados por quem analisa o
definição de quais são os interesses quadro interno e o quadro externo e,
nacionais quanto da capacidade de por esse meio, chega à conclusão a
previsão de sua repercussão junto aos respeito de quais devem ser as
atores internacionais, com os quais o prioridades internas a serem atendidas
Estado se relaciona. e as possibilidades externas a serem
A ideia, muitas vezes difundida, exploradas. As interpretações e escolhas
de que existe uma política externa são feitas por aqueles eleitos para
natural não faz, portanto, nenhum governar o país, em conformidade com
sentido. Política externa natural não o programa de governo elaborado pelo
existe. O que existe de perene são os partido, ou pela coligação de partidos
princípios que devem reger toda e políticos, ao qual o governante e seus
qualquer política externa, tais como auxiliares pertencem. É do processo
aqueles especificados no Artigo 4º da político que se decanta os interesses
Constituição Federal, promulgada em nacionais.
1988: “I - independência nacional; II - O fato de a elaboração de
prevalência dos direitos humanos; III - política externa depender de
autodeterminação dos povos; IV - não interpretações e de escolhas não
intervenção; V - igualdade entre os significa, no entanto, que ela possa ser
Estados; VI - defesa da paz; VII - solução aleatória. Significa que há muito espaço
pacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao para variações, mas que também há
terrorismo e ao racismo; IX - cooperação limites a serem respeitados. A vontade
entre os povos para o progresso da de tudo fazer para promover os
humanidade; X - concessão de asilo interesses nacionais deve respeitar,
entre outros, os limites
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da soberania, da geografia, da
capacidade militar e dos compromissos oportunidades externas, objetivando
firmados com as instituições promover o desenvolvimento – ou o
internacionais e com os demais países. que entendia por desenvolvimento. As
Desde o início da década de 1960, a mais destacadas características dessas
inserção internacional do Brasil sofreu visões são as seguintes (Gonçalves,
importante mudança. Desse período em 2011):
diante, o Brasil passou a figurar no
sistema internacional como um país a) Liberal: Entende que as relações
orientado no sentido de promover mais internacionais se reduzem à economia;
intensamente seu processo de comércio, investimentos e empréstimos
industrialização. Não que a agricultura são os fatores responsáveis pelo
deixasse de ter importância. comportamento dos atores; é o
Absolutamente. A agricultura e a funcionamento do mercado que
pecuária continuam como importantes determina o lugar de cada Estado no
atividades produtivas geradoras de sistema internacional e que determina,
divisas para a economia do país. Afinal, consequentemente, as mudanças; deve-
o país possui capacidade e se conceder absoluta prioridade às
potencialidades agropecuárias que não relações com os países industriais
podem, de modo algum, serem avançados, por serem eles detentores
negligenciadas. O desenvolvimento de maiores mercados consumidores,
industrial passou a receber prioridade, detentores de capitais excedentários
contudo, a partir dos anos 1960, em disponíveis para investimento e
virtude de sua superior capacidade de controladores das instituições
gerar empregos e de estimular o econômico-financeiras internacionais, às
desenvolvimento da ciência e da quais o país não está livre de recorrer
tecnologia. em virtude de eventuais dificuldades;
A busca da mais adequada considera que a participação em blocos
política externa para essa condição do econômicos pode ser interessante,
Brasil de país em desenvolvimento desde que estejam eles limitados ao
originou duas visões distintas a respeito objetivo de promover o livre-comércio;
de como deve se dar o desenvolvimento por fim, considera ser contraproducente
e de como o país deve se relacionar com envolvimento com iniciativas políticas,
o restante do mundo. Essas duas visões objetivando contestações à ordem
vinham-se alternando nos sucessivos internacional, seja no campo dos
governos. Foram elas a liberal e a direitos humanos, do meio ambiente, do
nacionalista. Cada governo que armamento, da questão nuclear, ou de
representava uma dessas duas visões qualquer outro tema, ou área;
julgava que estava fazendo o melhor
que podia para compatibilizar interesses b) Nacionalista: Entende que as relações
internos e

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internacionais não são compostas não apresentam qualquer consistência


exclusivamente por fatores econômicos com os interesses concretos dos
(comércio, investimentos e diversos setores que se acham
empréstimos), mas também por fatores comprometidos com o processo de
políticos (segurança e defesa) e por desenvolvimento econômico e social do
fatores culturais, dentro de uma lógica Brasil. Como afirmam Lima e
político-estratégica; considera que as Albuquerque (2019), a política externa
relações com os países em passou a adotar uma “estratégia do
desenvolvimento são importantes, caos”, tornando-se um “espaço de
porque com eles se torna possível políticas declaratórias” repleto de
formar frentes nos diferentes fóruns “cacofonias”. O resultado tem sido o
multilaterais, fortalecer a busca da desgaste da imagem do país na cena
autonomia decisória e, assim, extrair mundial e uma “crescente dilapidação
vantagens não obteníveis junto aos mais das relações exteriores do Brasil com os
fortes nas relações bilaterais; entende demais atores internacionais” (Castro,
que os blocos econômicos são 2019, p. 9).
importantes não apenas para promover A política externa atual parece
o comércio, mas também para praticada para satisfação exclusiva de
aumentar a densidade de poder e, setores que idealizam o país e idealizam
assim, aumentar correspondentemente as relações com outros países, mas que
a capacidade de barganha de cada não apresentam vínculos com o
componente (por isso, o livre-comércio processo produtivo. A política externa
é insuficiente); por fim, considera que, passou a ser mero campo para exercício
pelo fato de a ordem internacional ter ideológico. E, na medida em que esse
sido erguida pelos mais desenvolvidos exercício ideológico vai sendo realizado,
para privilegiá-los, é necessário lutar por rompendo inclusive com os mais
mudanças na ordem internacional como elementares protocolos diplomáticos, o
forma de lutar pelo desenvolvimento. país tem-se isolado no sistema
internacional e se transformado em
Sem apresentar uma teorização uma base, a partir da qual os setores
que explique as razões mediante as mais agressivos do aparelho de Estado
quais tem conduzido as relações do dos Estados Unidos têm agido no
Brasil com os demais atores sentido de fazer valer seus propósitos
internacionais, particularmente com os na América do Sul. Para Cruz (2019,
Estados Unidos, o atual governo s/p):
brasileiro virou as costas para essas
duas conhecidas concepções de política Ruptura, sim, mas o corte realizado é
externa. Pela primeira vez, os muito mais longo e profundo: ele não
responsáveis pelo Estado têm-se nos separa apenas da política externa
orientado tão-somente por ideias que do período pós-democratização, mas da

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tradição histórica da diplomacia tinha sido deixado vazio da sociedade


brasileira em seu conjunto [...] O liberal”, um vazio que seria
mistério da condução aparentemente representado pela ausência de Deus, da
alucinada se desfaz quando fé cristã e de seus valores. Díficil
reconhecemos que a política externa nas enxergar nestas palavras a sombra, que
mãos de Bolsonaro não é uma seja, de uma futura política externa
ferramenta para a promoção do madura, autônoma e à altura de um país
interesse público, mas um instrumento, com os recursos e as demandas do
de uso privado, para a afirmação e tamanho do Brasil.
fortalecimento de seu grupo político. Para deixar registrado como o
Em seu discurso de posse, em 2 mundo tomou conhecimento dessa
de janeiro de 2019, o ministro das nova abordagem governamental da
Relações Exteriores, Ernesto Araújo, política externa brasileira, o ministro
prometeu nova abordagem para a Araújo evocou a participação do
política externa brasileira. Segundo ele, presidente Bolsonaro no Fórum
uma nova etapa estava se iniciando, Econômico Mundial de Davos. Convém
cuja base seria o combate ao reproduzir mais uma vez suas palavras
globalismo. Nas palavras do chanceler (Araújo, 2019b, s/p):
Araújo (2019a, s/p), “o presidente Eu acho que um momento simbólico
Bolsonaro está libertando o Brasil por desse movimento – movimento no qual
meio da verdade. Nós vamos também o Brasil tem um papel fundamental –,
libertar a política externa brasileira, um momento simbólico, é no último
vamos libertar o Itamaraty [...] Não Fórum Mundial de Davos, onde, no
estamos aqui para trabalhar pela ordem discurso de abertura, o presidente
global. Aqui é o Brasil”. Bolsonaro, no final, falou de Deus. Falou
Meses depois, em 10 de junho de Deus. Eu não sei, não fui pesquisar,
do mesmo ano, por ocasião do mas eu acho que provavelmente foi a
seminário sobre “Globalismo”, realizado primeira vez em que um chefe de Estado
no Palácio Itamaraty, o ministro de fala, usa a palavra Deus, acreditando
Estado procurou definir com mais nele, sobretudo no Fórum de Davos! Eu
clareza o que seria o globalismo, esse imagino as pessoas ali tendo que olhar
alvo que o novo governo elegeu para a no dicionário – assim, “o que significa
política externa brasileira, ressoando o esse nome?”– em um momento,
“discurso populista jacksoniano, realmente, de certo desconcerto.
nacionalista e individualista” de Trump A nova política externa
(Gonçalves e Teixeira, 2019, p. 201). De anunciada por Araújo passou do plano
acordo com Araújo (2019b, s/p), o filosófico para o plano substantivo
globalismo é “o momento em que o quando da ameaça de invasão militar à
comunismo, o fisiologismo, o Venezuela, quando do
gramscismo, [...], ocupa o coração que
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anúncio (já retirado) da transferência da país tem com palestinos e com árabes,
Embaixada do Brasil de Tel Aviv, Israel, em geral. Caso essa medida tivesse sido
para Jerusalém, e quando das ameaças levada realmente a efeito, teria
dirigidas aos argentinos de excluir o país colocado o Brasil em um incômodo
do Mercosul em caso de vitória eleitoral isolamento internacional, acompanhado
dos candidatos peronistas Alberto apenas de Estados Unidos e Guatemala,
Fernández e Cristina Kirchner, entre uma vez que ela vai de encontro à
outros episódios alinhados com Resolução 478 (1980) do Conselho de
preferências e políticas do atual governo Segurança da ONU, que não reconhece
americano. a decisão do Estado de Israel de declarar
A primeira manifestação Jerusalém capital do país.
exemplar desta nova modalidade de A justificativa apresentada pelo
política externa aconteceu com as presidente para transferir a Embaixada
seguidas viagens do chanceler Araújo brasileira de uma cidade para outra
aos Estados Unidos para se encontrar teria sido a promessa feita aos líderes
com o secretário de Estado americano, religiosos evangélicos na campanha
Mike Pompeo, e com John Bolton. Em eleitoral. Esses líderes religiosos
virtude da clara posição favorável a uma convenceram o presidente,
intervenção militar na Venezuela para argumentando que a decisão da
derrubar o governo de Nicolás Maduro mudança colocaria o Brasil em
desses dois auxiliares de Trump, consonância com os preceitos bíblicos. A
começou a circular a ideia de que o decisão foi sustada, porém, tanto em
chanceler estaria comprometendo o virtude da apreensão dos árabes, que
Brasil com algum plano de invasão do imediatamente emitiram sinais de
país vizinho. Esse projeto acabou sendo descontentamento com a medida
abortado, todavia, em razão das anunciada pelo Governo, quanto do
manifestações em sentido contrário de setor exportador brasileiro, que se veria
militares brasileiros, em especial do privado de um mercado importante
vice-presidente Hamilton Mourão, por para seus produtos. Números da
considerá-lo política e militarmente Câmara de Comércio Árabe-Brasileira
temerário e inconveniente. (Anba, 2020, s/p) apontam que, em seu
A segunda manifestação conjunto, estes países reunidos na Liga
alarmou os exportadores brasileiros de Árabe se tornaram o terceiro maior
carne bovina e de frango, preocupados destino das exportações brasileiras em
com a previsível reação negativa dos 2019, com US$ 12,1 bilhões, tendo
importadores árabes dos produtos frango, açúcar, minério de ferro, carne
brasileiros, já que estes obviamente bovina e grãos como os principais itens
interpretariam essa decisão como uma da pauta de importação. Assim, além de
tomada de posição brasileira em favor mudar a histórica posição diplomática
de Israel na conflituosa relação que este brasileira de manter boas relações

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simultaneamente com árabes e sobretudo, em soja, óleos brutos de


israelenses, a transferência da petróleo, minérios de ferro e
Embaixada prejudicaria concentrados, celulose, carne bovina e
economicamente um setor que aderiu e carne de frango), seguida dos EUA (US$
apoiou, de forma entusiasmada, a 29,5 bilhões), da Holanda (US$ 10,1
candidatura de Jair Bolsonaro à bilhões) e da Argentina (US$ 9,7
Presidência. bilhões).
Ao se intrometer nas questões Uma decisão dessas contrariaria
políticas domésticas do país vizinho, a Constituição Federal e a mais
defendendo a reeleição do presidente elementar racionalidade econômica.
Mauricio Macri e ameaçando os demais Para uma economia deprimida, que
candidatos à Presidência com a exclusão enfrenta enorme dificuldade em
da Argentina do bloco econômico caso retomar o crescimento, a perda do
fossem eleitos, Bolsonaro gerou mais mercado argentino representaria
descontentamento entre argentinos e desastre de grandes proporções.
brasileiros, em uma terceira Ademais, além das questões
manifestação dessa nova política econômicas mais imediatas, todo
externa, alinhada com os Estados trabalho realizado por sucessivos
Unidos e com seus interesses regionais. governos de ambos os países de criar
Se a vontade do presidente for levada a um ambiente de paz e de cooperação
efeito, uma decisão desse tipo afetará seria desperdiçado. Como Alberto
negativamente o conjunto da economia Fernández e Cristina Kirchner foram
brasileira. O governo manteve, no eleitos, porém, é de se esperar que as
entanto, o reconhecimento de relações entre os dois países fiquem um
Jerusalém como capital de Israel. tanto difíceis, por algum tempo.
Brasil e Argentina cultivam uma
sólida relação comercial. Considerando- Relações Brasil-Estados Unidos:
se os países individualmente, a antecedentes
Argentina é hoje a quarta maior
compradora de produtos brasileiros, Ao longo do século XX e até
ficando atrás apenas de China, Estados meados dos anos 1980, a relação com
Unidos e Holanda (ou em quinta os Estados Unidos foi central para a
posição, caso se inclua os países árabes identidade, para a autopercepção do
em terceiro). De acordo com o números Brasil e para a definição do paradigma a
disponíveis no site do Ministério da ser adotado pela política externa
Economia – Indústria, Comércio Exterior brasileira: se “americanista”, se
e Serviços [3], em 2019, de um total de “globalista”, com momentos de um uso
quase US$ 224 bilhões nas exportações mais pragmático e instrumental dessa
brasileiras, a China foi, com folga, nosso relação, e outros, de maior carga
principal importador (US$ 62,8 bilhões, ideológica (Pinheiro, 2004). Como

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explica Pinheiro (2004, p. 64), no ainda está relacionada ao papel dos EUA
americanismo, os Estados Unidos no plano internacional (Teixeira, 2015).
funcionam como eixo, diante da Hirst (2004) sugere quatro modelos para
percepção de que uma maior se entender essa relação bilateral
aproximação com o vizinho do Norte assimétrica sob uma perspectiva
aumentaria os recursos de poder do brasileira: 1) aliança não escrita
Brasil. A autora distingue entre: o (unwritten alliance), período que vai do
americano ideológico, que privilegia início do Brasil republicano até os anos
fatores de ordem normativa e uma 1940; 2) alinhamento (de 1942 a 1977);
suposta convergência de valores e 3) autonomia (de 1977 a 1990); e 4)
ideologias entre os dois países (caso do ajuste (dos anos 1990 até o final do
governo Castelo Branco); e o governo Fernando Henrique Cardoso).
americanismo pragmático, de natureza Em cada um desses períodos, a
instrumental e que defende o autopercepção do Brasil, a identificação
aproveitamento das oportunidades ideológica e política das elites brasileiras
possivelmente resultantes da aliança com o American way of life e com os
como os Estados Unidos (no período valores ocidentais, assim como a
Costa e Silva, por exemplo). compreensão das fraquezas e das
No globalismo, que teve na possibilidades do Brasil no sistema
Política Externa Independente sua internacional determinaram o grau de
“primeira manifestação sistemática” aproximação com os EUA (Silva, A.,
(Pinheiro, 2004, p. 36), é a diversificação 1998).
de parcerias nas relações externas que Assim como nos EUA, também
surge como condição para o aumento no Brasil as condições iniciais de
do poder de barganha do Brasil, formação da nação forneceram a base
inclusive com Washington (Pinheiro, do que seriam os valores-núcleo do país
2004, p. 35). e da identidade nacional. Se, para os
Assim, por quase todo o século EUA, o mito fundacional estimulou
XX, com mais ou menos ênfase, o Brasil crenças como o Excepcionalismo
buscou e teve a expectativa de ser americano, a ideia de Experimento
reconhecido como um aliado americano e o Destino Manifesto, no
importante dos Estados Unidos. De fato, Brasil, seu tamanho continental, a
apesar de algumas idas e vindas, os EUA resolução pacífica das questões
têm sido um dos mais importantes fronteiriças e sua condição geográfica
parceiros comerciais e políticos do contribuíram para compor o conjunto
Brasil. Além disso, a relação com os EUA de características permanentes da
veio-se constituindo, indiretamente, política externa brasileira e de aspectos
como elemento essencial na construção de sua autopercepção: grandeza,
da identidade internacional do Brasil, já multilateralismo, um país pacífico com
que a maioria das mudanças sistêmicas um ambiente regional pacífico e um

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Williams Gonçalves e Tatiana Teixeira

importante mediador de conflitos (Lima tecnológica (Gonçalves, 2011, p. 12).


e Hirst, 2006, p. 1). Como metas e prioridades do governo
Hirst e Pinheiro (1995) Collor, Hirst e Pinheiro (1995) citam a
consideram que as mudanças ocorridas atualização da agenda internacional do
nos governos Fernando Collor e Itamar país de acordo com as novas questões e
Franco resultaram de variáveis de com o novo momentum internacional; a
natureza doméstica e internacional, construção de uma “agenda positiva”
fazendo que, a partir de 1993, algumas para os Estados Unidos; e
estratégias de inserção internacional do descaracterizar o perfil terceiro-
país fossem revistas e ajustadas. mundista do Brasil. Isso significaria
Segundo as autoras, foram revisões nos abandonar a postura “defensiva” sobre
meios e nos métodos, com uma o tema ambiental, buscar uma
readequação de estratégias em relação negociação rápida sobre a legislação de
à comunidade internacional, após a propriedade intelectual, sinalizar a
crise de paradigma no fim do governo disposição do governo de alterar a
Collor. postura em relação ao desenvolvimento
De acordo com as autoras (Hirst de tecnologias sensíveis, ser “mais
e Pinheiro, 1995), os anos 1990 flexível” aos regimes de não-
significam, para a política externa proliferação (no plano internacional) e
brasileira, a ruptura de um consenso restringir a participação dos militares na
construído a partir de 1974 com base condução da política nuclear (no plano
em sólida estrutura burocrática e no interno).
apoio das elites políticas e econômicas Mesmo que as medidas
do país. Esse consenso dizia respeito ao econômicas que levaram à estabilização
projeto de inserção autonomista, tenham começado, em parte, no
visando à atuação independente e ativa governo Collor (com a adoção acrítica
no sistema internacional e com um do modelo neoliberal) e na
sentido fortemente instrumental para a administração Itamar (com a
estratégia desenvolvimentista brasileira. implementação do Plano
Transformações externas e internas, Real)/Fernando Henrique Cardoso, no
ocorridas após a segunda metade da governo Lula, o Brasil ganhou amplo
década de 1980, afetaram a base de destaque e avançou em seu status,
sustentação e de legitimação desse papel e espaço de atuação. Essa
projeto, comprometendo sua mudança de percepção resultou da
continuidade. Entre essas consolidação das transformações
transformações, estão o reordenamento domésticas em curso, como
do sistema político internacional no Pós- redemocratização, amadurecimento
Guerra Fria, o aprofundamento do institucional, abertura da economia,
processo de globalização econômica do adesão a regimes internacionais,
sistema mundial e a evolução políticas de inclusão social e também da
percepção da comunidade internacional
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Considerações sobre a política externa brasileira no governo Bolsonaro e as relações Brasil-EUA

a respeito desses dois presidentes. qualificado como do interesse nacional.


Assim, além das significativas Desde o início do atual governo, o Brasil
mudanças em termos socioeconômicos diminui sua margem de manobra: cede
no país, registra-se o começo de uma aos EUA sem expectativa de
abordagem mais direta e expansiva do reciprocidade e mesmo sem que tenha
Brasil no plano externo, que levaria a havido qualquer tipo de pressão por
uma busca consciente de uma relação parte do vizinho do Norte (Teixeira,
menos assimétrica com os EUA e com as 2019). Cedemos por antecipação e por
demais potências nos fóruns e nas escolha.
organizações internacionais. Ao voltar de sua primeira
Conforme Gonçalves (2011, p. viagem bilateral depois de eleito, a qual
27), no período Lula (2003-2010), “a teve a Casa Branca como destino, em
diplomacia brasileira buscou cultivar março de 2019, Bolsonaro e seu
diálogo fluente” com os Estados Unidos, gabinete trouxeram como ganhos uma
contrariando expectativas internas e série de concessões unilaterais feitas
externas de algum radicalismo por parte pelo Brasil (Menezes, 2019; Teixeira,
do novo governo. Como mostram 2019): a lista incluiu a promessa do fim
diversos discursos do presidente Lula e da exigência de visto para cidadãos
de seu então chanceler, Celso Amorim, americanos; a entrega da Base de
consultados para este artigo (Amorim, Lançamentos Aeroespaciais de
2003; Silva, L. I., 2003), os EUA são Alcântara (MA), por meio da assinatura
vistos, neste período, como “parceiros” do Acordo de Salvaguardas
em uma relação “madura” de agenda e Tecnológicas, já aprovado pelo
interesses “comuns”, com base no Congresso brasileiro (MRE, 2019a); e a
princípio da reciprocidade e sem a perda da condição de país em
histórica necessidade de aprovação de desenvolvimento na Organização
Washington, que marcou governos Mundial do Comércio (OMC). Em troca,
anteriores. o país teria o apoio do governo Trump
para o ingresso na Organização de
Trump e Bolsonaro: ganhos para Cooperação e Desenvolvimento
quem? Econômico (OCDE) e o de se tornar um
“aliado prioritário extra-OTAN” (MRE,
As atuais relações do Brasil com 2019b).
os Estados Unidos não são motivo de Outros anúncios feitos nessa
grande perplexidade pelo simples oportunidade, sem detalhes, incluem
alinhamento, portanto. Em outros uma “Parceria para Prosperidade”, com
momentos da história, o Brasil se o objetivo de se criar empregos e
alinhou. O que causa espanto desta vez, reduzir barreiras ao comércio e aos
no entanto, é que, por mais que se investimentos; o aprofundamento da
procure, nada se encontra que possa ser parceria no combate ao terrorismo, ao

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Williams Gonçalves e Tatiana Teixeira

tráfico de armas e de drogas, aos crimes Bolsonaro fez nova visita aos
cibernéticos e à lavagem de dinheiro, EUA, durante a qual foi assinado, no
por meio do Fórum Permanente de Comando Sul, o “Acordo entre o
Segurança Brasil-EUA; a assinatura de Governo da República Federativa do
dois instrumentos para melhorar a Brasil e o Governo dos Estados Unidos
segurança de fronteira (Teixeira, 2019). da América referente a Projetos de
De acordo com nota divulgada pelo Pesquisa, Desenvolvimento, Teste e
Ministério das Relações Exteriores Avaliação (Acordo RDT&E)”. Segundo o
(MRE, 2019c), Trump e Bolsonaro ministro Ernesto Araújo (2020), trata-se
“assumiram o compromisso de construir de um acordo de pesquisa e
uma nova parceria entre seus dois desenvolvimento para acesso à
países com foco no aumento da tecnologia militar. Recomenda-se, no
prosperidade, na melhoria da entanto, especial atenção às seções
segurança, na promoção da democracia, sobre “invenções de projeto e
da liberdade e da soberania nacional”. patentes”, “visitas às instalações” e
Na prática, porém, o que se viu até “venda e transferência a terceiros”.
agora foi uma assimetria na distribuição Segundo o Boletim Informativo
de benefícios. É o que questiona Cruz Brasil-Estados Unidos de janeiro de
(2019, s/p): 2020 (MRE, 2020), no ano passado, as
exportações do Brasil para os EUA
Política externa? Cabe usar a expressão chegaram a 13,2% do total do
para falar da ação aparentemente exportado pelo país, e as importações
desatinada do governo de turno nesse de bens norte-americanos, a 17% do
âmbito? A noção de política supõe a total importado naquele período, com
definição clara de objetivos e o traçado um fluxo comercial de US$ 59,8 bilhões.
de linhas de conduta -- adequadas aos Na área das relações econômicas,
meios disponíveis e às circunstâncias -- porém, a China é hoje o parceiro mais
para alcançá-los. Como encaixar nessa importante do Brasil. Nos últimos dez
definição um padrão de comportamento anos, os chineses investiram quase US$
caracterizado pelos referidos disparates 60 bilhões no país. Investimentos esses
e por medidas insólitas como as feitos em setores como bancos digitais,
concessões unilaterais anunciadas lojas de alta tecnologia, celulares usados
durante a visita de Bolsonaro a e até mesmo em transporte por
Washington, (abertura do mercado de aplicativo. Segundo dados do Conselho
trigo às exportações americanas; Empresarial Brasil-China [4], a soma das
abandono vantagens da cláusula do importações e exportações entre os dois
tratamento especial e diferenciado na países alcançou a soma recorde de US$
OMC), por exemplo? 98,9 bilhões.
A expressividade desses
Em março de 2020, o presidente números foi, decerto, responsável pela

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Considerações sobre a política externa brasileira no governo Bolsonaro e as relações Brasil-EUA

mudança de atitude do presidente da Em vista disso, desde o início do


República em sua recente visita à China, mandato, Trump tem buscado rever
em outubro de 2019. Em sua campanha todos os compromissos assumidos pelos
eleitoral e no início do mandato, o então antecessores, para suprimir tudo aquilo
candidato e depois presidente anunciou, que considera vantagens excessivas
reiteradamente, que seria duro com os obtidas pelos outros Estados. A tônica
chineses e não permitiria que eles da política de Trump tem sido a de nada
“comprassem o Brasil”, o que foi oferecer que não seja o negociado
repetido quase com as mesmas palavras segundo o mais puro realismo, isto é, o
por seu ministro das Relações de nada conceder que não seja em troca
Exteriores. Quando da visita à China, de benefícios reais e palpáveis.
Bolsonaro mudou o discurso, porém,
afirmando que iria propor aos chineses Considerações finais
que aumentassem seus investimentos e
suas compras no Brasil. Enquanto isso, A política externa nacionalista
no mesmo período de dez anos, houve de Trump não comporta preocupação
significativa redução dos negócios entre com tecer alianças. Trump não
Brasil e Estados Unidos. Depois da crise demonstra interesse em se posicionar
de 2008, verificou-se essa redução, como líder de uma potência
passando os Estados Unidos à condição hegemônica. Pelo contrário. Segundo
de terceiro parceiro do Brasil, a seguir à ele, foi justamente o afã em ocupar
União Europeia. posição hegemônica que levou seus
Observar a questão pelo lado antecessores na Casa Branca a
dos Estados Unidos tampouco ajuda a distribuírem concessões. Sua atitude,
entender o atual comportamento portanto, é de cobrar dos aliados
político-diplomático brasileiro. A política recompensa pelos investimentos que os
externa do Governo Trump, que se Estados Unidos fizeram em facilidades
define teoricamente como “realista fiscais e em defesa. No caso da
principista” e que tem por lema Organização do Tratado do Atlântico
“América em Primeiro Lugar”, julga os Norte (OTAN), Trump foi bem incisivo
Estados Unidos como um Estado credor. quanto a isso, argumentando que os
Segundo Trump, os Estados Unidos europeus haviam sido demasiadamente
viram seu poder desgastado por terem beneficiados pelas despesas militares
sido demasiadamente condescendentes. dos Estados Unidos para proteger a
Ao estimularem a globalização e a Europa e que já estava na hora de os
multilateralização das relações europeus pagarem mais pela sua
internacionais, os Estados Unidos teriam própria segurança.
fortalecido os demais Estados às É bem verdade também que,
expensas de seus próprios interesses em virtude da nova configuração
nacionais. multipolar do sistema internacional de

https://revistas.ufrj.br/index.php/sg 204
Williams Gonçalves e Tatiana Teixeira

poder, os Estados Unidos não podem


admitir perder a influência sobre a Presidência, contando com o apoio do
América Latina. O apoio em bloco da Brasil. Vale acrescentar que, quando se
América Latina é uma das condições diz atitude firme, estamos a nos referir à
básicas para a condição de venda de material bélico, instrução
superpotência dos Estados Unidos. Em militar e Inteligência.
uma configuração como essa, os norte- Em vista desse cenário
americanos não podem aceitar a ideia desfavorável a interferências políticas
de a América Latina não atuar abertas, as ações encobertas e a
alinhadamente e, muito menos ainda, dimensão ideológica passaram a ter
admitir o surgimento de um poder uma importância ainda muito maior.
francamente insubmisso. Referindo-nos exclusivamente ao Brasil,
No passado, a esmagadora pode ser definido como escandaloso o
presença econômica dos norte- fato de um autodenominado filósofo
americanos nas economias locais residente nos Estados Unidos orientar
facilitava enormemente as publicamente as ações de governo, a
interferências políticas. A representação ponto mesmo de ter sido responsável
diplomática e a figura do embaixador tanto pela noemação quanto pela
tinham grande importância. Muitas demissão de ministros de Estado e de
pressões e até mesmo golpes de Estado participar de encontros de autoridades
eram urdidos abertamente dentro das brasileiras com autoridades
embaixadas. Ainda que fosse governamentais norte-americanas.
escandaloso, não era considerado Coisa parecida poderia ser dito a
estranho. Era assim mesmo como as respeito das ações de igrejas
coisas se passavam. neopentecostais.
Hoje, porém, a realidade é um A ampla disseminação do uso de
pouco diferente. No quadro atual, os mensagens via aparelhos celulares tem
interesses econômicos chineses têm facilitado significativamente o trabalho
grande peso. Mas não apenas os de interferência. Mediante a difusão
chineses. Os russos também simultânea em grande escala de notícias
demonstram seu interesse. No passado, mentirosas, cujo objetivo é desinformar,
russos e chineses agiam apenas na caluniar e desmoralizar, facilmente se
sombra, e mesmo assim apoiando promove uma ação de caos, a partir da
partidos comunistas e grupos restritos. qual se torna possível mudar o curso dos
Neste século XXI, chineses e russos acontecimentos. Em seu livro intitulado
atuam abertamente para proteger seus Guerras Híbridas – das Revoluções
aliados. Não fora a atitude firme dos Coloridas aos Golpes, Andrew Korybko
dois em declarar sua preocupação com (2018) analisa como os Estados Unidos
a Venezuela, os Estados Unidos têm lançado mão desse expediente para
poderiam ter iniciado uma aventura virar o jogo político a seu favor em
militar para retirar Nicolás Maduro da diferentes partes do mundo.
https://revistas.ufrj.br/index.php/sg 205
Considerações sobre a política externa brasileira no governo Bolsonaro e as relações Brasil-EUA

As relações bilaterais Brasil- que alterou a posição adotada desde


Estados Unidos se inserem, portanto, 1992, quando essa resolução foi votada
dentro desse contexto. Os diplomatas pela primeira vez –, os Estados Unidos
brasileiros, que eram reconhecidos pela frustram todas as expectativas do
excelente formação profissional, pela governo brasileiro.
disciplina e pelo respeito à hierarquia, O anúncio do governo norte-
fatores que garantiam competência e americano de manter, em um primeiro
uniformidade ao serviço diplomático do momento, a decisão tomada há dois
país, foram flagrantemente rebaixados e anos de fechar o mercado do país para a
substituídos nas missões mais carne bovina do Brasil, pelo fato de as
importantes por neófitos, cujo único autoridades sanitárias não estarem
atributo era uma suposta amizade com ainda convencidas de que o produto
autoridades norte-americanas. A está de acordo com as normas
própria embaixada do Brasil em estabelecidas, foi uma das muitas
Washington, antes reservada aos mais frustrações. Afinal, na visita que fez aos
experientes e notáveis diplomatas, Estados Unidos em março de 2019, o
passou longo período dirigida por presidente brasileiro pediu diretamente
interino, enquanto se discutia se ela a Trump uma resposta positiva, uma vez
devia, ou não, ser ocupada por um que o produto tem grande peso na
deputado sem qualquer qualificação, pauta de exportações, e o presidente
nem mesmo a necessária intimidade conta com o apoio político dos
com o idioma local. pecuaristas. A decisão foi revertida em
Esse incomum padrão de fevereiro deste ano, mas se soma a
relacionamento político-diplomático outras idas e vindas nas promessas e
com os Estados Unidos, fundado declarações de Trump ao colega
exclusivamente em fatores ideológicos, Bolsonaro, reforçando a inconsistência e
não apresenta e tampouco poderia fragilidade desse vínculo bilateral.
apresentar qualquer resultado que O mesmo teria sido o caso do
possa ser considerado proveitoso aos veto norte-americano à pretensão
segmentos sociais que mais diretamente alimentada pelo governo de ingressar o
dependem deles. Enquanto o governo Brasil na Organização para a
brasileiro ameaça com decisões Cooperação e Desenvolvimento
descabidas e temerárias – tal como Econômico (OCDE), se não fosse pela
transferir a embaixada brasileira de Tel vitória de Fernández na Argentina.
Aviv para Jerusalém, com a finalidade de
acompanhar a decisão que havia sido
anunciada por Trump; ou quando vota
contra uma resolução da ONU que
condena e pede o fim do embargo que
os Estados Unidos impõem a Cuba, o

https://revistas.ufrj.br/index.php/sg 206
Williams Gonçalves e Tatiana Teixeira

Notas

3) Informações disponíveis em:


<http://www.mdic.gov.br/index.php/co
mercio-exterior/estatisticas-de-
comercio-exterior/balanca-comercial-
brasileira-acumulado-do-ano>. Acesso
em: jan. 2020.

4) Conforme números disponíveis em


<www.cebc.org.br>.

https://revistas.ufrj.br/index.php/sg 207
Considerações sobre a política externa brasileira no governo Bolsonaro e as relações Brasil-EUA

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SILVA, Luiz Inácio Lula da. 2003.


Discurso do Senhor Luiz Inácio Lula da

https://revistas.ufrj.br/index.php/sg 210
Williams Gonçalves e Tatiana Teixeira

Resumo Abstract

No presente artigo, trata-se da In this paper, the foreign policy


política externa do governo de Jair of the government of Jair Bolsonaro
Bolsonaro (2019-), a qual representaria, (2019-) represent a break with the
na visão dos autores, uma ruptura com foundational elements and principles of
os elementos e princípios fundacionais an already consolidated and respected
de uma já consolidada e respeitada Brazilian diplomatic tradition - among
tradição diplomática brasileira – entre them, the defense of multilateralism,
eles, a defesa do multilateralismo, a the search for diversification of
busca de diversificação de parceiros, o partners, pragmatism and autonomy. By
pragmatismo e a autonomia. Ao adotar adopting a policy riddled with
uma política eivada de motivações ideological motivations and by
ideológicas e ao preconizar uma agenda advocating an agenda guided by
guiada por interesses particulares, e não particular, rather than national,
nacionais, argumenta-se que o núcleo interests, it is argued that the nucleus of
da administração atual apequena o país current administration dwarfs the
no plano internacional e abdica, cada country internationally and increasingly
vez mais, de uma margem de manobra forgoes a necessary margin of maneuver
necessária em qualquer negociação, in any negotiation, whether in bilateral
seja nas relações bilaterais, seja nos relations, or in the main multilateral
principais fóruns e agências forums and agencies. To illustrate this
multilaterais. Para ilustrar este argument, the authors discuss the
argumento, os autores discorrem sobre relationship between the current Brazil
as relações entre o Brasil atual e os and the United States of President
Estados Unidos do presidente Donald Donald Trump (2017-), a country with
Trump (2017-), país com o qual which Bolsonaro has established an
Bolsonaro tem estabelecido um automatic, uncritical and ideological
alinhamento automático, acrítico e alignment.
ideológico.
Keywords: Bolsonaro; United States;
Palavras-chave: Bolsonaro; Estados Brazilian foreign policy; Brazil-US
Unidos; Política Externa Brasileira; relations in Trump Administration
Relações Brasil-EUA. Trump.

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