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Williams Gonçalves e Tatiana Teixeira
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Considerações sobre a política externa brasileira no governo Bolsonaro e as relações Brasil-EUA
da soberania, da geografia, da
capacidade militar e dos compromissos oportunidades externas, objetivando
firmados com as instituições promover o desenvolvimento – ou o
internacionais e com os demais países. que entendia por desenvolvimento. As
Desde o início da década de 1960, a mais destacadas características dessas
inserção internacional do Brasil sofreu visões são as seguintes (Gonçalves,
importante mudança. Desse período em 2011):
diante, o Brasil passou a figurar no
sistema internacional como um país a) Liberal: Entende que as relações
orientado no sentido de promover mais internacionais se reduzem à economia;
intensamente seu processo de comércio, investimentos e empréstimos
industrialização. Não que a agricultura são os fatores responsáveis pelo
deixasse de ter importância. comportamento dos atores; é o
Absolutamente. A agricultura e a funcionamento do mercado que
pecuária continuam como importantes determina o lugar de cada Estado no
atividades produtivas geradoras de sistema internacional e que determina,
divisas para a economia do país. Afinal, consequentemente, as mudanças; deve-
o país possui capacidade e se conceder absoluta prioridade às
potencialidades agropecuárias que não relações com os países industriais
podem, de modo algum, serem avançados, por serem eles detentores
negligenciadas. O desenvolvimento de maiores mercados consumidores,
industrial passou a receber prioridade, detentores de capitais excedentários
contudo, a partir dos anos 1960, em disponíveis para investimento e
virtude de sua superior capacidade de controladores das instituições
gerar empregos e de estimular o econômico-financeiras internacionais, às
desenvolvimento da ciência e da quais o país não está livre de recorrer
tecnologia. em virtude de eventuais dificuldades;
A busca da mais adequada considera que a participação em blocos
política externa para essa condição do econômicos pode ser interessante,
Brasil de país em desenvolvimento desde que estejam eles limitados ao
originou duas visões distintas a respeito objetivo de promover o livre-comércio;
de como deve se dar o desenvolvimento por fim, considera ser contraproducente
e de como o país deve se relacionar com envolvimento com iniciativas políticas,
o restante do mundo. Essas duas visões objetivando contestações à ordem
vinham-se alternando nos sucessivos internacional, seja no campo dos
governos. Foram elas a liberal e a direitos humanos, do meio ambiente, do
nacionalista. Cada governo que armamento, da questão nuclear, ou de
representava uma dessas duas visões qualquer outro tema, ou área;
julgava que estava fazendo o melhor
que podia para compatibilizar interesses b) Nacionalista: Entende que as relações
internos e
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anúncio (já retirado) da transferência da país tem com palestinos e com árabes,
Embaixada do Brasil de Tel Aviv, Israel, em geral. Caso essa medida tivesse sido
para Jerusalém, e quando das ameaças levada realmente a efeito, teria
dirigidas aos argentinos de excluir o país colocado o Brasil em um incômodo
do Mercosul em caso de vitória eleitoral isolamento internacional, acompanhado
dos candidatos peronistas Alberto apenas de Estados Unidos e Guatemala,
Fernández e Cristina Kirchner, entre uma vez que ela vai de encontro à
outros episódios alinhados com Resolução 478 (1980) do Conselho de
preferências e políticas do atual governo Segurança da ONU, que não reconhece
americano. a decisão do Estado de Israel de declarar
A primeira manifestação Jerusalém capital do país.
exemplar desta nova modalidade de A justificativa apresentada pelo
política externa aconteceu com as presidente para transferir a Embaixada
seguidas viagens do chanceler Araújo brasileira de uma cidade para outra
aos Estados Unidos para se encontrar teria sido a promessa feita aos líderes
com o secretário de Estado americano, religiosos evangélicos na campanha
Mike Pompeo, e com John Bolton. Em eleitoral. Esses líderes religiosos
virtude da clara posição favorável a uma convenceram o presidente,
intervenção militar na Venezuela para argumentando que a decisão da
derrubar o governo de Nicolás Maduro mudança colocaria o Brasil em
desses dois auxiliares de Trump, consonância com os preceitos bíblicos. A
começou a circular a ideia de que o decisão foi sustada, porém, tanto em
chanceler estaria comprometendo o virtude da apreensão dos árabes, que
Brasil com algum plano de invasão do imediatamente emitiram sinais de
país vizinho. Esse projeto acabou sendo descontentamento com a medida
abortado, todavia, em razão das anunciada pelo Governo, quanto do
manifestações em sentido contrário de setor exportador brasileiro, que se veria
militares brasileiros, em especial do privado de um mercado importante
vice-presidente Hamilton Mourão, por para seus produtos. Números da
considerá-lo política e militarmente Câmara de Comércio Árabe-Brasileira
temerário e inconveniente. (Anba, 2020, s/p) apontam que, em seu
A segunda manifestação conjunto, estes países reunidos na Liga
alarmou os exportadores brasileiros de Árabe se tornaram o terceiro maior
carne bovina e de frango, preocupados destino das exportações brasileiras em
com a previsível reação negativa dos 2019, com US$ 12,1 bilhões, tendo
importadores árabes dos produtos frango, açúcar, minério de ferro, carne
brasileiros, já que estes obviamente bovina e grãos como os principais itens
interpretariam essa decisão como uma da pauta de importação. Assim, além de
tomada de posição brasileira em favor mudar a histórica posição diplomática
de Israel na conflituosa relação que este brasileira de manter boas relações
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Considerações sobre a política externa brasileira no governo Bolsonaro e as relações Brasil-EUA
explica Pinheiro (2004, p. 64), no ainda está relacionada ao papel dos EUA
americanismo, os Estados Unidos no plano internacional (Teixeira, 2015).
funcionam como eixo, diante da Hirst (2004) sugere quatro modelos para
percepção de que uma maior se entender essa relação bilateral
aproximação com o vizinho do Norte assimétrica sob uma perspectiva
aumentaria os recursos de poder do brasileira: 1) aliança não escrita
Brasil. A autora distingue entre: o (unwritten alliance), período que vai do
americano ideológico, que privilegia início do Brasil republicano até os anos
fatores de ordem normativa e uma 1940; 2) alinhamento (de 1942 a 1977);
suposta convergência de valores e 3) autonomia (de 1977 a 1990); e 4)
ideologias entre os dois países (caso do ajuste (dos anos 1990 até o final do
governo Castelo Branco); e o governo Fernando Henrique Cardoso).
americanismo pragmático, de natureza Em cada um desses períodos, a
instrumental e que defende o autopercepção do Brasil, a identificação
aproveitamento das oportunidades ideológica e política das elites brasileiras
possivelmente resultantes da aliança com o American way of life e com os
como os Estados Unidos (no período valores ocidentais, assim como a
Costa e Silva, por exemplo). compreensão das fraquezas e das
No globalismo, que teve na possibilidades do Brasil no sistema
Política Externa Independente sua internacional determinaram o grau de
“primeira manifestação sistemática” aproximação com os EUA (Silva, A.,
(Pinheiro, 2004, p. 36), é a diversificação 1998).
de parcerias nas relações externas que Assim como nos EUA, também
surge como condição para o aumento no Brasil as condições iniciais de
do poder de barganha do Brasil, formação da nação forneceram a base
inclusive com Washington (Pinheiro, do que seriam os valores-núcleo do país
2004, p. 35). e da identidade nacional. Se, para os
Assim, por quase todo o século EUA, o mito fundacional estimulou
XX, com mais ou menos ênfase, o Brasil crenças como o Excepcionalismo
buscou e teve a expectativa de ser americano, a ideia de Experimento
reconhecido como um aliado americano e o Destino Manifesto, no
importante dos Estados Unidos. De fato, Brasil, seu tamanho continental, a
apesar de algumas idas e vindas, os EUA resolução pacífica das questões
têm sido um dos mais importantes fronteiriças e sua condição geográfica
parceiros comerciais e políticos do contribuíram para compor o conjunto
Brasil. Além disso, a relação com os EUA de características permanentes da
veio-se constituindo, indiretamente, política externa brasileira e de aspectos
como elemento essencial na construção de sua autopercepção: grandeza,
da identidade internacional do Brasil, já multilateralismo, um país pacífico com
que a maioria das mudanças sistêmicas um ambiente regional pacífico e um
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tráfico de armas e de drogas, aos crimes Bolsonaro fez nova visita aos
cibernéticos e à lavagem de dinheiro, EUA, durante a qual foi assinado, no
por meio do Fórum Permanente de Comando Sul, o “Acordo entre o
Segurança Brasil-EUA; a assinatura de Governo da República Federativa do
dois instrumentos para melhorar a Brasil e o Governo dos Estados Unidos
segurança de fronteira (Teixeira, 2019). da América referente a Projetos de
De acordo com nota divulgada pelo Pesquisa, Desenvolvimento, Teste e
Ministério das Relações Exteriores Avaliação (Acordo RDT&E)”. Segundo o
(MRE, 2019c), Trump e Bolsonaro ministro Ernesto Araújo (2020), trata-se
“assumiram o compromisso de construir de um acordo de pesquisa e
uma nova parceria entre seus dois desenvolvimento para acesso à
países com foco no aumento da tecnologia militar. Recomenda-se, no
prosperidade, na melhoria da entanto, especial atenção às seções
segurança, na promoção da democracia, sobre “invenções de projeto e
da liberdade e da soberania nacional”. patentes”, “visitas às instalações” e
Na prática, porém, o que se viu até “venda e transferência a terceiros”.
agora foi uma assimetria na distribuição Segundo o Boletim Informativo
de benefícios. É o que questiona Cruz Brasil-Estados Unidos de janeiro de
(2019, s/p): 2020 (MRE, 2020), no ano passado, as
exportações do Brasil para os EUA
Política externa? Cabe usar a expressão chegaram a 13,2% do total do
para falar da ação aparentemente exportado pelo país, e as importações
desatinada do governo de turno nesse de bens norte-americanos, a 17% do
âmbito? A noção de política supõe a total importado naquele período, com
definição clara de objetivos e o traçado um fluxo comercial de US$ 59,8 bilhões.
de linhas de conduta -- adequadas aos Na área das relações econômicas,
meios disponíveis e às circunstâncias -- porém, a China é hoje o parceiro mais
para alcançá-los. Como encaixar nessa importante do Brasil. Nos últimos dez
definição um padrão de comportamento anos, os chineses investiram quase US$
caracterizado pelos referidos disparates 60 bilhões no país. Investimentos esses
e por medidas insólitas como as feitos em setores como bancos digitais,
concessões unilaterais anunciadas lojas de alta tecnologia, celulares usados
durante a visita de Bolsonaro a e até mesmo em transporte por
Washington, (abertura do mercado de aplicativo. Segundo dados do Conselho
trigo às exportações americanas; Empresarial Brasil-China [4], a soma das
abandono vantagens da cláusula do importações e exportações entre os dois
tratamento especial e diferenciado na países alcançou a soma recorde de US$
OMC), por exemplo? 98,9 bilhões.
A expressividade desses
Em março de 2020, o presidente números foi, decerto, responsável pela
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