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política externa brasileira

ASPIRAÇÃO
INTERNACIONAL
E POLÍTICA EXTERNA
Maria Regina Soares de Lima

Identidade nacional e Projeção internacional


“É possível que, O caso brasileiro pode ser visto ícone fundador, o Barão do
renunciando à igualdade de como peculiar no contexto da Rio Branco. A delimitação
tratamento (...), alguns se formação dos Estados sul- praticamente definitiva das
resignem a assinar americanos, no século XIX, no fronteiras geográficas coincidiu,
convenções em que sejam sentido de que a configuração assim, com o início da
declarados e se confessem do espaço nacional e sua diplomacia moderna e são as
nações de terceira, quarta, demarcação territorial foram questões afetas à configuração
ou quinta ordem. O Brasil
processos que se realizaram do espaço nacional que vão
não pode ser desse número”
antes por via de negociação e constituir a agenda principal
(Barão do Rio Branco)1
arbitragem internacionais do da política externa no início do
que pelo recurso à guerra. Ao século passado. Esta condição
contrário da maioria de seus legitimou o modelo do Estado
vizinhos hispânicos, o sucesso autônomo no discurso
diplomático desta empreitada fez diplomático, que considera a
“Nenhum país escapa a seu com que, no início do século XX, política externa como uma
destino e feliz ou o Brasil já se visse como um questão de Estado, desvinculada
infelizmente o Brasil está país geopoliticamente satisfeito, e acima da política doméstica,
condenado à grandeza” destacando-se o papel da lugar dos conflitos e das
(Araújo Castro) 2 diplomacia, em especial de seu facções.

Maria Regina Soares de Lima é do IUPERJ e IRI/PUC-Rio - mrslima@iuperj.br


Trabalho elaborado originalmente para o projeto comparativo Brasil-México, coordenado
por Antonio Ortiz Mena do CIDE, México e Octavio Amorim Neto da FGV-Rio.
1
Apud. Rubens Ricupero, Rio Branco: o Brasil no mundo, Rio de Janeiro, Contraponto, 2000, p. 27.
2
Araújo Castro, Organização e notas de Rodrigo Amado, Brasília, Editora Universidade de Brasília,
1982, p. 212.

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Este mito fundador dos serviços ruptura têm sido identificados:
O componente
exteriores, operando na defesa o pós-64 e a instalação do
institucional da política
da integridade territorial e política governo militar; o “pragmatismo
externa não apenas
da nação e insulado da política responsável” do governo Geisel
partidária é responsável por uma
garantiu poder de
(1974-78); e o governo Collor
percepção, até recentemente, (1990-1992), com a implantação agenda ao Ministério
corrente entre as elites de medidas liberalizantes na das Relações Exteriores,
brasileiras. Esta tem a ver com economia e a abertura comercial. como reforçou o mito
o lugar peculiar da agência Duas têm sido as razões da estabilidade da
diplomática na estrutura do alegadas pelos especialistas política externa como
aparelho de Estado e de sua para a estabilidade da política uma política de Estado
legitimidade na condução da externa desde a formação do e não de governo
política externa do país, Brasil industrial. Por um lado,
reconhecimento atestado pela sua natureza estrutural, a saber,
estabilidade do princípio o papel que a política externa
constitucional da competência tem desempenhado como um
do Executivo na condução da instrumento importante do projeto
política externa. de desenvolvimento do país.
A legitimação pelas elites Por outro, o forte componente
brasileiras do modelo de Estado institucional na formação da
autônomo pelo desempenho de política externa, que se apresenta
tarefas relacionadas à defesa no papel preponderante do
da integridade física e soberania Ministério das Relações
territorial do país tem sido Exteriores na formulação e
associada à estabilidade da implementação daquela política.
política externa ao longo do Este componente institucional
tempo. Uma razão adicional para não apenas garantiu poder de
a alegada estabilidade da política agenda àquele ministério, como
externa pode estar, por exemplo, reforçou o mito da estabilidade da
na capacidade da corporação política externa como uma política
em apresentar o novo como de Estado e não de governo, o
continuidade de uma que lhe asseguraria significativa
determinada tradição continuidade ao longo do tempo.
diplomática, reinventada a cada A importância de qualquer crença
um dos momentos de crise ou idéia, enquanto fenômeno
e mudança. A narrativa da social, não é tanto que seja
estabilidade seria, portanto, falsa ou verdadeira, mas que O reconhecimento
uma construção conceitual da seja compartilhada por um internacional se
diplomacia, repetida e legitimada contingente relevante de uma transforma na própria
pela comunidade de estudiosos comunidade e, porque se razão da existência da
da política externa. acredita nela, ela se torne política externa, na medida
A representação dominante no verdadeira. Não tem sido
em que essa pode se
discurso diplomático e acadêmico diferente no caso da política
legitimar internamente
é de uma continuidade básica nas externa brasileira. O
como um dos principais
ações e orientações dos diversos enraizamento da crença da
instrumentos de um
governos, com poucas mudanças estabilidade está associado a
uma aspiração compartilhada
projeto de desenvolvimento
abruptas de rumo. Nos últimos 40
anos, apenas três momentos de pelas elites brasileiras desde o nacional

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início da formação nacional do colaborar conosco no
Como o reconhecimento
país, a saber, a crença de que o equacionamento e solução
das potências é buscado
país está destinado a ter um dos problemas mundiais. Esse
pela via multilateral e não
papel significativo na cena nacionalismo é uma posição de
pela demonstração de
nacional e o reconhecimento afirmação e de maturidade do
força militar, a única desta condição pelas principais Brasil dentro da comunidade
garantia do país está no potências mundiais, em função das nações. 3
papel de mediador entre de suas dimensões continentais,
os fortes e os fracos Ao contrário das potências cujos
de suas riquezas naturais e da
recursos de poder econômico
“liderança natural” entre os
e militar são uma garantia de
vizinhos.
influência internacional, um país
No discurso diplomático, esta como o Brasil tem de construir
aspiração se transforma na este poder, e “o caminho mais
própria razão da existência da rápido, mais direto para o
política externa, na medida em fortalecimento de seu poder
que essa pode se legitimar Nacional é o próprio caminho de
internamente por ser um dos seu desenvolvimento econômico
principais instrumentos de um e expansão industrial.”4 O
projeto de desenvolvimento discurso diplomático constrói
nacional. Nas palavras do tanto o objetivo a que deve
embaixador Araújo Castro, servir a política externa, o
último chanceler do regime desenvolvimento econômico,
democrático que se findou como sua natureza de uma
com o golpe de 1964, mas política de Estado que deve ter
cuja influência na formulação continuidade, independente da
da política externa brasileira se filiação partidária dos governos.
manteve mesmo durante o
A aspiração pelo reconhecimento
regime militar que se seguiu:
internacional foi perseguida por
A Política Internacional do Brasil via de uma política deliberada de
tem como objetivo primordial a presença nos fóruns multilaterais.
neutralização de todos os fatores Ainda na segunda metade do
externos que possam contribuir século XIX, quando teve início a
para limitar o seu Poder Nacional. série de conferências, tratados e
Essa política não poderia ser seminários científicos e técnicos,
mais autêntica nem mais origem do que, posteriormente,
brasileira. O nacionalismo constituiu-se o regime econômico
não é, para nós, uma atitude de multilateral, o Brasil esteve
isolamento, de prevenção ou de presente na criação de vários
hostilidade. É, ao contrário, uma destes esforços de coordenação
grande vontade de participação multilateral. Ainda que as
internacional. É um esforço para principais instâncias de cooperação
colocar o Brasil no mundo, internacional, inauguradas com
mediante a utilização de todos o Congresso de Viena (1815),
os meios e com o concurso de fossem reservadas às potências
todos os países que queiram da época e às questões da “alta

3
Ibid., p.212.
4
Ibid., p.9.

6 RBCE - 82
política”, o Brasil buscou Guerra Mundial, na qualidade de internacional e à prática de uma
exercer sua voz nos espaços país beligerante, o Brasil garantiu forma de representação política
de participação abertos pelas sua presença na Conferência de oligárquica. O componente
reuniões de caráter técnico Paz em 1919. Como ocorreria realista, por sua vez, na
que se seguiam às discussões em anos posteriores, a diplomacia constatação de que, em um
entre as grandes potências.5 apresentava-se como mediadora sistema em que o poder é o
Naturalmente que a precocidade, entre as grandes potências e primeiro e último regulador
relativamente aos vizinhos as demais, posicionando-se na internacional, não apenas a
hispânicos, da presença defesa dos direitos das potências desigualdade é inerente ao
brasileira não se traduziu em menores e, simultaneamente, sistema internacional, como o
capacidade de influenciar o rumo aspirando conquistar o status poder é o principal atributo para o
das discussões das grandes equivalente ao das grandes pertencimento à oligarquia. Como
questões internacionais, mas potências.7 o reconhecimento das potências
essa presença foi um aprendizado é buscado pela via multilateral e
A característica pendular da
importante nas artes da não pela demonstração de força
diplomacia multilateral brasileira,
negociação multilateral e uma militar, o único papel que poderia
na mediação entre os fortes e os
oportunidade para participação garantir tal reconhecimento é o
fracos, tem sido apontada pelos
em fóruns mundiais que, de mediador entre os fortes e os
estudiosos em geral. Estes
diferentemente dos de natureza fracos, o que, por conseqüência,
últimos normalmente apontam
regional, estavam reservados cria uma disjuntiva clara entre
para as ambigüidades e
às grandes potências. este autoproclamado papel e a
ambivalências do que
aspiração de participar e influir
A primeira manifestação do país consideram uma combinação
nas grandes decisões
de buscar o reconhecimento heterodoxa entre princípios
internacionais. Na medida em
pelas grandes potências e seu idealistas de defesa de uma
que qualquer movimento em
direito de participação em pé de ordem internacional igualitária
direção à democratização da
igualdade com as mesmas nas e um comportamento realista-
oligarquia decisória será rejeitado
questões afetas aos “países de pragmático de aceitação da
pelas potências como uma
interesses gerais” se deu por desigualdade da representação
desvalorização de seu próprio
ocasião da constituição da Ligas política.8 Uma explicação para
poder, o mediador sofre de uma
das Nações.6 Ainda que ao final esta heterodoxia poderia ser o
dissonância permanente entre
tenha prevalecido o princípio próprio descompasso entre a
seus objetivos particulares, de
oligárquico da exclusividade busca pelo reconhecimento das
cooptação internacional, e os
na representação política potências, pela via da diplomacia
objetivos coletivos dos países
internacional, o Brasil empenhou- multilateral, e os escassos
que supostamente representa,
se em obter um assento recursos de poder dos que
de democratização dos espaços
permanente na organização. assim aspiram. O componente
Como o único país da América principista, idealista aparece decisórios.
do Sul a participar da primeira na crítica ao status quo A configuração da ordem
econômica do pós-Segunda
5
Entre 1864 e 1890, o Brasil aderiu a pelo menos doze acordos, convenções e organizações Guerra também permitirá que
internacionais de natureza técnica. De modo geral, a ratificação brasileira seguiu-se quase
imediatamente à criação dessas entidades. Para uma análise histórica e documental da o Brasil ponha em prática uma
participação brasileira nos esforços de coordenação multilateral, ver Paulo Roberto de
Almeida, Formação da diplomacia econômica no Brasil, São Paulo, Editora SENAC, 2001.
ativa política de participação
6
Para efeitos de participação e representação nas arenas políticas multilaterais, nestes novos espaços
os países eram classificados em duas categorias: os países de “interesses gerais”
e os de “interesses particulares” ou “limitados”. multilaterais, em uma linha de
7
Cf., Eugênio Vargas Garcia, O Brasil e a Liga das Nações (1919-1926), Porto Alegre continuidade com a aspiração
/Brasília, Ed. da Universidade/UFRGS/Fundação Alexandre de Gusmão/FUNAG, 2000.
8
Para a análise desta heterodoxia da diplomacia brasileira, ver ibid., pp. 137-141. Uma
de exercer alguma influência
interpretação distinta, apontando para a fusão destas duas matrizes teóricas no quadro cognitivo na negociação das grandes
da política externa brasileira, é realizada por Letícia Pinheiro, “Traídos pelo desejo: um ensaio
sobre a teoria e a prática da política externa”, Contexto Internacional, vol. 22, no. 2, 2000. questões internacionais. Assim

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sendo, o país participou da regras especiais para fazer face
Conferência de Bretton Woods, ao próprio desequilíbrio entre
de 1944, que criou o Fundo parceiros econômicos desiguais.
Monetário Internacional e o A principal bandeira dos países
Banco Mundial, e da Conferência do Terceiro Mundo, a partir da
de Comércio e Emprego das segunda metade do século XX,
Nações Unidas de 1947, foi apontar para a injustiça que
que instituiu a Organização derivava da implementação no
Internacional de Comércio e campo econômico de princípios
cuja não ratificação daria origem liberais de tratar desiguais
ao Acordo Geral sobre Tarifas como iguais. Dessa forma,
Aduaneiras e Comércio (Gatt). da perspectiva dos países em
Também precocemente, desenvolvimento, a agenda de
relativamente aos países reforma dos regimes comerciais
latino-americanos, a adesão concentrava-se na atenuação
brasileira ao Gatt ocorreria ou eliminação das normas de
em julho de 1948. reciprocidade e implantação de
regras especiais que levassem
Ao contrário das instâncias em conta as desvantagens
políticas, nas de natureza dos primeiros na cooperação
econômica haverá espaço e econômica internacional.
legitimidade para o exercício do
papel de mediador, uma vez que, O Brasil teve uma participação
nestas últimas, não se observará ativa nestes foros, seja no
a contradição entre os objetivos âmbito da Unctad, seja no do
particulares do mediador e os Gatt, tendo exercido, nos anos
objetivos comuns do conjunto sessenta, a liderança do Grupo
dos países sem poder. A dos 77, que congregava os
característica principal do regime países em desenvolvimento.
de regulação econômica Uma das principais bandeiras
multilateral que emerge depois da coalizão do Sul era a defesa
da Segunda Guerra é introduzir de um tratamento especial e
uma nova disciplina nas relações diferenciado para os países em
econômicas, em especial, desenvolvimento, bem como a
na comercial a partir da instituição de mecanismos de
institucionalização dos princípios favorecimento específico aos
liberais de não descriminação e interesses dos países do Terceiro
As incertezas geradas igualdade de tratamento entre Mundo, como a criação de
pelo fim da Guerra Fria parceiros comerciais. O Gatt, um Sistema de Preferências
e as discussões que por exemplo, está assentado no Generalizado. Na agenda do
se seguiram sobre a princípio da nação mais desenvolvimento, como ficou
construção de uma nova favorecida que tem, no tratamento conhecido o esforço dos países
ordem internacional recíproco e não discriminatório, do Terceiro Mundo para atenuar a
reacenderam nas elites um dos pilares de seu arcabouço disciplina liberal que se buscava
normativo. Nestes foros que normatizar no plano das relações
brasileiras a aspiração
congregavam países desenvolvidos econômicas internacionais, havia
de um papel influente
e em desenvolvimento, uma das espaço para o exercício de um
do país na configuração
principais demandas destes papel mediador por parte de
da nova ordem últimos era a introdução de algumas potências médias.

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Entre elas, o Brasil pode regimes de direitos humanos e
Estudos sobre a opinião
exercer um papel de liderança controle de tecnologia sensível
das elites revelam que
no sentido de coordenar a ação dos quais o Brasil estivera
a aspiração de tornar o
coletiva dos demais países ausente durante a vigência do
periféricos, conciliando os regime militar (1964-1985). Assim Brasil um ator relevante
interesses gerais do conjunto é que, nos anos 90, o tema da na política internacional
com seus interesses específicos. reforma das Nações Unidas e a é constitutiva da própria
ampliação do número de membros identidade nacional
Em anos mais recentes,
permanentes do Conselho de
este papel de mediador entre
Segurança foi reintroduzido na
os desenvolvidos e os em
agenda diplomática brasileira.
desenvolvimento foi se
Apesar de agendas externas
desgastando em função de
não necessariamente idênticas,
transformações profundas na
nos governos de Itamar Franco,
economia e política internacionais,
Fernando Henrique Cardoso e
em particular as mudanças
Luiz Inácio Lula da Silva a questão
estruturais na economia mundial,
figurou com maior ou menor
o fim da Guerra Fria, que eliminou
grau de intensidade, dadas as
um contrapeso significativo à
distintas condições internas e
hegemonia liberal, a crise do
externas enfrentadas por estes
Estado de Bem Estar e a
governos. Curiosamente, os
desintegração do bloco do
argumentos para sustentar
Terceiro Mundo, para citar as
esta pretensão no pós-1990 são
mais relevantes. Contudo, as
semelhantes àqueles arrolados
incertezas geradas pelo fim da
na década de 20, a saber: “a
Guerra Fria e as discussões que
condição de membro permanente
se seguiram sobre a construção
do nosso País daria uma maior e
de uma nova ordem internacional
mais apropriada representatividade
reacenderam nas elites brasileiras
geográfica, econômica, política e
a aspiração de um papel influente
moral ao Conselho de Segurança”.9
do país na configuração da nova
ordem, no bojo de um movimento A aspiração de transformar o
de reforma das instituições da Brasil em um ator global é
velha ordem, que se acreditava, absolutamente consensual na
no início dos 90, seria inevitável. “comunidade brasileira de política
Do ponto de vista doméstico, o externa”, de acordo com dados
país se considerava, naquele de um survey de elites realizado
momento, apto a tal distinção, entre março e agosto de 2001.
tendo deixado para trás os anos Nesse estudo, 99% dos
de chumbo do governo militar e entrevistados concordaram que
restaurado o regime democrático “o país deve envolver-se mais e
com a promulgação da participar ativamente de questões
Constituição de 1988. No plano internacionais, exercendo uma
internacional, a redemocratização liderança compatível com seu
foi acompanhada pela adesão imenso território e alicerçada
quase imediata aos principais sobre sua sofisticada tradição

9
Celso Lafer, prefácio ao livro de Eugênio Vargas Garcia, op. cit., p. 15. Celso Lafer foi
Ministro das Relações Exteriores nas gestões de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique
Cardoso.

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diplomática”.10 Também entrevistados foram “combater o
acompanhando a percepção tráfico internacional de drogas”
diplomática, a comunidade de (61% das respostas) e “promover
política externa confere prioridade o comércio exterior e reduzir o
central à abordagem multilateral e déficit comercial do país” (73%),
às ações coletivas por meio de objetivos mais nacionais do que
instituições coletivas como a multilaterais.11
ONU. Dessa forma, envio de
tropas para operações de paz é O que estes estudos sobre a
apoiado por 88% dos entrevistados, opinião das elites revelam de
e 76% destes concordam com significativo é que a aspiração de
a reivindicação de um assento tornar o Brasil um ator relevante
permanente para o Brasil no na política internacional é
Conselho de Segurança das constitutiva da própria identidade
Nações Unidas. Cabe observar nacional, tal como construída
que, no que diz respeito a ações pelas elites brasileiras, na medida
que impliquem maior envolvimento em que os elementos que
multilateral, as prioridades das compõem o sentimento nacional
elites, em geral, não são dizem respeito à “idéia de um
totalmente coincidentes com as país de dimensões continentais,
da comunidade de política externa, empenhado em promover seu
na medida em que as primeiras desenvolvimento econômico e
parecem mais sensíveis aos em consolidar uma posição de
custos envolvidos em atividades liderança e de cooperação regional
de coordenação multilateral. Assim, na América do Sul”.12 Como aponta
em outra pesquisa, feita com 500 o documento, a percepção que as
membros da elite brasileira, em elites têm da identidade do país
geral, realizada entre agosto e como nação constitui o substrato
outubro de 2002, também se conceitual de sua projeção
observou um consenso com externa, “pautada principalmente
respeito à participação ativa no desejo de exercer um papel
do país nas grandes questões protagônico. Um território de
internacionais (86% dos proporções continentais, com
entrevistados). Contudo, apenas dez vizinhos contíguos, grande
25% destes consideram a população, uma economia
reivindicação de um assento diversificada e notável uniformidade
permanente no Conselho de cultural e lingüística são os
Segurança como um objetivo diferencias que conformam este
“extremamente importante”. Os sentimento de identidade, bem
dois objetivos mais importantes como essa expectativa de
para mais da metade dos liderança”.13

10
Amaury de Souza, A agenda internacional do Brasil: um estudo sobre a comunidade brasileira
de política externa (mimeo), CEBRI, Rio de Janeiro, 2002, p. 3. Neste trabalho, a “comunidade
de política externa” é definida como incluindo autoridades governamentais, congressistas,
empresários, representantes de grupos de interesse, líderes de organizações não governamentais,
acadêmicos e jornalistas escolhidos pela reputação de influência que desfrutam.
11
Amaury de Souza e Bolívar Lamounier, As elites brasileiras e o desenvolvimento nacional:
fatores de consenso e dissenso (mimeo), Relatório de Pesquisa, São Paulo, 18 de outubro
de 2002, pp. 26-27.
12
Amaury de Souza, A agenda internacional do Brasil, p.19.
13
Ibid., p.19.

10 RBCE - 82
Os modelos de especial” com os Estados com os vizinhos no âmbito
política externa Unidos; o modelo francês ou da regional e uma auto-avaliação
“autonomia” e o modelo alemão como diferente e distante dos
O que talvez seja mais relevante do “aprofundamento da inserção mesmos.
é a persistência e a solidez regional”.15
desta aspiração ao longo da Naturalmente que a política
história brasileira. Sem grandes Com algumas modificações, externa brasileira não satisfaz
modificações, esta percepção pode-se afirmar que o Brasil as duas primeiras características
está presente tanto no início do experimentou pelo menos dois deste modelo, uma vez que tanto
século XX como no do XXI. A destes modelos de política no campo militar como no
identidade internacional do país externa, considerando-se suas econômico caberia falar antes de
nada mais é que a projeção de relações com os Estados Unidos uma interdependência assimétrica,
sua identidade nacional, daí sua e com o espaço regional sul- no sentido de que os Estados
continuidade ao longo do tempo.14 americano, em particular com a Unidos contam muito mais para
Argentina, sua segunda relação o Brasil do que o contrário. Mas
O consenso intra-elites e a bilateral mais importante. Cada a baixa identidade regional, traço
estabilidade desta expectativa de um deste dois modelos guarda estrutural da política externa
participação e liderança não analogia com os dois brasileira até pelo menos os
impediram que o país seguisse comportamentos típicos de anos 80, certamente constitui
modelos diferenciados de política potências médias com relação uma característica que aproxima
externa que, nesse contexto, à potência dominante. Assim, o este modelo do caso brasileiro.
podem ser vistos como meios modelo da “relação especial” Ao contrário da Argentina
distintos para se obter o mesmo exemplifica o que a abordagem que, até o governo Menem,
fim. Como veremos mais à frente, realista denomina “bandwagoning”, tradicionalmente sempre repudiou
também no imaginário das elites em que o alinhamento à potência a idéia de uma aliança especial
o consenso com relação à compensa a fragilidade no plano com os Estados Unidos, no caso
projeção internacional não se regional. O modelo da “autonomia” brasileiro esta aspiração marcou
verifica quando se consideram vários momentos da história do
ilustra o comportamento oposto
estratégias concretas de país e, mais, sempre foi
de “balancing”, em que alianças
inserção externa. As experiências unilateral, professada apenas
regionais e extra-regionais são
internacionais no período da pelo lado brasileiro. Na verdade,
concebidas como mecanismos
Guerra Fria sugerem pelo menos a gestão do Barão do Rio Branco
equilibradores de poder.16
três arquétipos de política (1902–1912) não apenas criou a
externa para países médios que Calcadas na relação histórica da moderna diplomacia brasileira,
aspiram algum papel protagônico Inglaterra com os Estados Unidos, como imaginou a relação com
na política mundial, cuja distinção as três principais características os Estados Unidos como um
reside no lugar reservado ao do modelo de “relação especial” contraponto político importante
relacionamento com a potência são o alto nível de interdependência nas relações com os vizinhos
global dominante, bem como aos econômica com os Estados hispânicos. Esta configuração,
respectivos espaços regionais: Unidos; a aliança militar com idealizada por Rio Branco, levou
o modelo inglês ou da “relação aquele país e a baixa identidade
a que os analistas apontassem
para a existência de uma relação
14
Para uma análise da identidade internacional do Brasil e a persistência desta memória coletiva triangular entre o Brasil e os
ao longo do desenvolvimento do país, ver, Celso Lafer, A identidade internacional do Brasil e a
política externa, São Paulo, Editora Perspectiva, 2001. Estados Unidos e a América
15
Uma aplicação desses três modelos ao caso japonês foi realizada por Takashi Inoguchi,
“An ordinary power, Japanese-style”, Open Democracy, 26 February 2004. Disponível em Latina, respectivamente, em que
http://www.openDemocracy.net. os momentos de aproximação
16
Para esta discussão, ver Kenneth N. Waltz, Theory of international politics, Reading,
Addison-Wesley Publishing Company, 1983, pp. 102-128. com cada um dos pólos se
17
Rubens Ricupero, “O Brasil, a América Latina e os EUA desde 1930: 60 anos de uma relação davam à custa do afastamento
triangular,” in J. A. G. Albuquerque (ed.), Sessenta anos de política externa brasileira (1930-1990),
São Paulo, Cultura Editores Associados, 1996, pp. 37-60. do outro.17

RBCE - 82 11
Outras motivações também Brasil com os Estados Unidos e
Enquanto os países
contaram para que em outros a busca pelo Brasil de “relações
hispânicos construíam
momentos as elites almejassem maduras” com aquele país.
o ideal bolivariano, o
uma relação especial com os
Brasil desenhava com O segundo legado tem a ver com
Estados Unidos. No governo
os Estados Unidos sua as relações com a Argentina e a
Vargas a aliança com aquele
aliança particular, política sul-americana do Brasil.
país foi um instrumento dos
pensada como um Foi no século XIX que se definiu o
projetos de desenvolvimento
instrumento pragmático padrão de convivência do país
do Brasil, em particular para
para fazer face às com seus vizinhos hispânicos,
a implantação da indústria
rivalidades com os a partir do enquadramento que a
siderúrgica brasileira e o
diplomacia imperial fez das suas
vizinhos reequipamento militar (1939-
relações com os Estados Unidos,
1942). Durante a Guerra Fria,
por um lado, e com os países
os Estados Unidos se tornaram
hispânicos, por outro. Em vista
um poderoso aliado dos projetos
do estranhamento que um Império
de poder das elites
escravocrata de dimensões
conservadoras e esta aliança
territoriais provocava nas jovens
foi a fiadora do projeto militar
repúblicas vizinhas e da
de poder interno e legitimação
desconfiança recíproca que essa
internacional do golpe militar
assintonia suscitava, enquanto
de 1964. Mais recentemente,
os países hispânicos construíam
na fase de reestruturação do
o ideal bolivariano, o Brasil
modelo econômico, o
desenhava sua aliança particular
alinhamento funcionou como
com os Estados Unidos. Como
avalista das mudanças
observado acima, esta aliança foi
econômicas internas, iniciadas
pensada como um instrumento
no governo Collor de Mello com
pragmático para fazer face às
a abertura econômica no início
rivalidades com os vizinhos. A
dos anos 90.
partir daí, cristalizaram-se dois
Ainda que o caso brasileiro não modelos opostos de política
se encaixe perfeitamente no externa sul-americana: a ênfase
modelo da aliança especial, por na cooperação horizontal com os
ter sido, inclusive, uma aspiração semelhantes, na esteira do ideal
unilateral do Brasil, os momentos de Bolívar, e a aliança especial
em que este arquétipo guiou os com os Estados Unidos. Durante
passos da diplomacia nacional o século XX e, particularmente, no
deixaram dois legados período da Guerra Fria, o Brasil
importantes. Por um lado, o foi sempre visto por seus vizinhos
sentido pragmático das relações hispânicos com relativa
com os Estados Unidos em que desconfiança como mais próximo
a aliança foi concebida como das posições norte-americanas
um meio de concretização de na região e distante dos vizinhos.
projetos domésticos das elites Este legado só foi rompido no
políticas, econômicas e militares período pós-Guerra Fria, que
brasileiras. Este legado, no coincidiu com a democratização
período pós-Guerra Fria, se política do país e o afastamento
traduziu em uma postura de dos militares da direção do
condicionalidade das relações do Estado.

12 RBCE - 82
O modelo francês ou da expressão global trader para
autonomia também se ajusta ao caracterizar o padrão do comércio
caso do Brasil. São duas as suas exterior do país. Ainda que o
principais características: a Brasil tenha uma participação
busca da diversificação de diminuta no comércio mundial,
parceiros diplomáticos, para por volta de 1% a 2 %, em
além de suas respectivas áreas termos de distribuição os valores
de influência regional, e o forte são equivalentes entre os três
interesse em relações regionais principais parceiros comerciais:
prósperas e pacíficas, como um EUA, Europa e América Latina.
meio de equilibrar o poder da
Em dois momentos da história
potência dominante global.
recente, o modelo da autonomia
Novamente, a adequação não é
guiou os passos da política
perfeita em função de que, no
externa, na “política externa
caso brasileiro, o equilíbrio foi
independente” (1961-1964) e
buscado na diversificação de
no “pragmatismo responsável”
parceiros fora da região.
(1970-1975). Ainda que o primeiro
Assim sendo, a “diversificação experimento tenha se dado durante
da dependência”, conceito de a vigência do regime constitucional
uso corrente na bibliografia de 1945 e o segundo no ciclo
especializada, marcou muito da autoritário que se iniciou em 1964,
política externa brasileira no ambos foram marcados pelo
período da Guerra Fria. Posta questionamento da orientação
em prática pela primeira vez nos tradicional de alinhamento estreito
anos 30, a “política de barganhas” com os Estados Unidos e pela
do governo Vargas (1935-1937) tentativa de globalizar as relações
expressou esta idéia de buscar internacionais do Brasil. Uma
na Europa, na Alemanha, no das vertentes fortes do padrão
caso, uma parceria para os projetos autonomista foi o exercício da
econômicos do governo.18 Algumas liderança brasileira nas questões
décadas depois, a “opção européia” Norte-Sul, tais como debatidas
foi posta em prática pelo governo em arenas comerciais, como o
militar de Ernesto Geisel na busca Gatt e a Unctad, na defesa de
de parceiros na área econômica e mudanças do regime comercial
tecnológica, quando se estabeleceu liberal então vigente. Nos anos
a parceria com a Alemanha Federal 60, o Brasil era considerado um
para a aquisição do ciclo completo dos “influentes” no grupo dos
do combustível nuclear, em um dos países do Sul, em função de
episódios mais conflituosos com atributos estruturais, como
os EUA no período da Guerra Fria. tamanho e força econômica,
bem como daqueles relacionados
A idéia da diversificação
A idéia da diversificação é forte ao desempenho de seus
é forte no imaginário das
no imaginário das elites representantes nos foros
diplomáticas que cunharam a
elites diplomáticas que
mundiais.19 Em 1967, o
cunharam a expressão
18
O trabalho clássico sobre a política de barganhas do governo Vargas é de Gerson Moura, global trader para
Autonomia na dependência: a política externa brasileira de 1935 a 1942, Rio de Janeiro,
Editora Nova Fronteira, 1980. caracterizar o padrão do
19
Branislav Gosovic, UNCTAD: conflict and compromise, Leiden: A.W. Sijthoff International comércio exterior do país
Publishing Company, 1972, pp. 276-79.

RBCE - 82 13
representante brasileiro, No padrão autonomista
No Brasil, o viés
embaixador Azeredo da Silveira, perseguido pela política externa,
soberanista está
que viria a ser o chanceler do o movimento de equilíbrio foi
presente nas elites e
general Geisel, foi eleito buscado sempre em novas
mesmo nos setores à presidente do Grupo dos 77 parcerias entre os desenvolvidos
esquerda do espectro para a Segunda Conferência da e o Terceiro Mundo. O contrapeso
político ideológico. Nos Unctad em 1968 em Nova Delhi. regional deste movimento esteve
anos 50 e 60, quando o Naquele mesmo período, o ausente durante todo o período
regionalismo era pensado desempenho brasileiro obteve da Guerra Fria. Parte da
como alternativa política o terceiro lugar em influência explicação deste resultado
e econômica para países positiva, abaixo da Índia e do tem a ver com a tradicional
não hegemônicos, Chile, no âmbito da Unctad.20 desconfiança dos vizinhos
poucos defendiam uma hispânicos com relação ao
A vertente de capacitação militar
cooperação regional Brasil, que foi potencializada
e em tecnologias sensíveis do
no período do milagre brasileiro
mais estreita projeto autonomista esteve
(1968-1973), quando o país
presente apenas nos governos
experimentou taxas de
militares. A posição brasileira nos
crescimento da ordem de 11%
regimes de controle de tecnologia
anuais. Uma outra parte tem a
sensíveis sempre foi de não
ver com a rivalidade histórica
colaboração, culminando com
com a Argentina, que também
a recusa em assinar o Tratado
explodiu nos governos militares
de Não-Proliferação de Armas
em função do conflito relativo à
Nucleares em 1968, juntamente
construção da usina de Itaipu.
com a Índia os dois mais vocais
opositores nas discussões prévias Na verdade, várias são as razões
no Comitê de Desarmamento da que podem ser arroladas para
ONU, bem como a Argentina explicar a baixa identificação
e o Paquistão. Certamente, regional do Brasil e, portanto,
a iniciativa mais audaciosa do a não aplicabilidade do modelo
modelo autonomista do regime alemão de “aprofundamento
militar foi a assinatura do Acordo da inserção regional”. As
Nuclear com a Alemanha em 1975, características do último são a
que marcou de forma profunda as alta identificação e participação
relações daquele regime com os em instituições regionais, bem
Estados Unidos. Na continuação como os fortes laços
das tentativas norte-americanas econômicos com parceiros
de persuadir o Brasil a voltar atrás regionais. A participação em
na sua política de capacitação organizações internacionais
nuclear, a administração Carter está associada a um esforço
acusou o Brasil de desrespeito de reintegração na sociedade
aos direitos humanos, seguindo- internacional da parte de Estados
se a denúncia pelo Brasil do anteriormente revisionistas, como
Acordo Militar de 1952.21 foi o caso da Alemanha hitlerista.

20
Joseph S. Nye, “UNCTAD: poor nations’ pressure group”, in The anatomy of influence –
decision making in international organization, eds. Robert Cox e Harold Jacobson, New Haven,
Yale University Press, 1973, pp. 360-363.
21
Para uma análise da política externa do regime militar, ver Paulo Fagundes Vizentini, A política
externa do regime militar brasileiro, Porto Alegre, Editora da Universidade, UFRGS,1998.

14 RBCE - 82
Vários fatores de natureza presença deste viés soberanista. Unidos. No governo Menem,
histórica trabalharam para que o No referido estudo sobre a quando a política assumiu uma
modelo regionalista de política comunidade de política externa, orientação de “aquiescência
externa tivesse pouca relevância aparece uma contradição clara pragmática” com os Estados
prática. Entre eles, destacam-se: entre, por um lado, a defesa Unidos, o vizinho era visto como
o legado colonial, que operou quase unânime do fortalecimento “politicamente incorreto”, como
no sentido da diminuição dos do Mercosul, tanto para a um país revisionista e fonte de
vínculos entre países implementação de políticas “risco e instabilidade” para a
semelhantes de uma mesma ativas de desenvolvimento, Argentina em matéria
região, em favor da vinculação quanto para fortalecer o poder econômica.23
com a metrópole; as diferenças de barganha nas principais
Até que ponto esses legados
culturais e políticas, em especial negociações comerciais em
históricos que informaram as
na constituição dos respectivos curso, Alca e União Européia
instituições e a cultura política
Estados nacionais latino- e, por outro, a relutância em se
diplomática resistiram às
americanos; a importância aceitar arranjos institucionais
mudanças espetaculares na
para o Brasil do relacionamento que impliquem delegação de
política mundial a partir da queda
especial com os Estados autoridade à instâncias
do Muro de Berlim e do fim da
Unidos; o diferencial de tamanho supranacionais.22
Guerra Fria? Em que medida
econômico entre o Brasil e os
Durante o período da Guerra estes modelos pretéritos de
demais, em particular a
Fria, observou-se claramente, política externa têm validade
Argentina, que se acentuou a
nas relações Brasil-Argentina, na atualidade? Permanece a
partir da segunda metade do
uma relação especular entre as antiga aspiração nacional de
século XX e que reacendeu
respectivas visões do outro. Nos protagonismo internacional? São
velhos temores da hegemonia
momentos em que prevaleceu estas questões que informam
brasileira na área; e o forte
uma política externa de corte a análise desta última seção.
componente soberanista da
autonomista em cada um deles,
cultura política brasileira.
predominou a indiferença ou a
No caso brasileiro, este viés rivalidade ativa entre os dois. Nos
soberanista está presente nas momentos de relacionamento
elites em geral e mesmo nos especial com a potência
setores à esquerda do espectro hegemônica, o outro é visto
político ideológico. Mesmo nos com temor e ameaça latente
anos 50 e 60 quando o ao status quo regional. Como
regionalismo era pensado analisa um excelente estudo
como uma alternativa política recente, o paradigma globalista
e econômica para países não de política externa argentina
hegemônicos, eram poucos definiu em uma chave de
os intelectuais, como Hélio rivalidade suas relações com Até que ponto os
Jaguaribe, que defendiam uma o país vizinho, seja na vertente legados históricos
cooperação regional mais geopolítica que acentua o que informaram as
estreita. A alternativa para desequilíbrio entre os dois, instituições e a cultura
equilibrar o poder da potência seja na vertente da teoria da
política diplomática
hegemônica sempre foi buscada dependência, em que o Brasil
resistiram às mudanças
fora da região. Na atualidade, as é visto com um “contramodelo”
espetaculares na política
atitudes das elites sugerem a de subordinação aos Estados
mundial a partir da queda
22
CF. Amaury de Souza, A agenda internacional do Brasil, p. 48-59.
do Muro de Berlim e do
23
Roberto Russell e Juan Gabriel Tokatlian, El lugar de Brasil en la política exterior argentina, fim da Guerra Fria?
Buenos Aires, Fondo de Cultura Econômica, 2003, pp. 30-59.

RBCE - 82 15
Os desafios da política externa na era
Na prática, a gestão
externa do Governo
pós-Guerra fria
Fernando Henrique A queda do muro de Berlim e a mundo socialista, a crise fiscal e
Cardoso estaria mais extinção da União Soviética não da dívida, a erosão dos modelos
próxima da estratégia significaram apenas o fim do de desenvolvimento, o próprio
de “credibilidade” e a principal contendor estratégico conceito de Terceiro Mundo
de Luiz Inácio Lula da militar dos Estados Unidos e a deixou de existir, assim como a
Silva da de “autonomia” clara supremacia desse país capacidade de ação coletiva dos
também nesta dimensão, já que países do Sul. Finalmente, a
a Europa e os países asiáticos revolução da micro-eletrônica,
nunca ultrapassaram os Estados também potencializada nas
Unidos em termos de capacidade duas últimas décadas do século,
econômica agregada e inovação sepultou o modelo fordista de
tecnológica, antes ou depois acumulação e com ele as
da Guerra Fria. O fim do bloco esperanças dos países mais
socialista significou o fim de uma industrializados da periferia
era com sérias conseqüências de atingir o mesmo padrão
para os países do Sul, em tecnológico exibidos pelos
particular, aqueles situados países do Norte.
na área de influência direta
Todas estas mudanças tiveram
da potência global. Os anos 80
impacto na região latino-
e 90 condensam uma série de
americana configurando-se a
mudanças políticas, econômicas
superação do modelo prévio de
e tecnológicas que em sua inter-
substituição de importações e a
relação configuraram um novo
adoção de políticas orientadas
ordenamento mundial. Na
para o mercado. Neste contexto,
economia, a globalização
o novo regionalismo que emerge
produtiva e financeira, processos
que se aprofundam na ordem nos anos 90 é tanto um
unipolar dos 90, enfraqueceram mecanismo para lock in um novo
o compromisso social-democrata sistema de regulação econômica
dos países do Norte e erodiram que vai sendo progressivamente
o modelo de desenvolvimento adotado pelos países da região,
“voltado para dentro” dos países como um mecanismo defensivo
do Sul. No plano político- para fazer face às incertezas
estratégico, configurou-se uma do processo de globalização.
ordem unipolar com o predomínio Ao impacto destes processos
É curioso que, indiscutível dos Estados Unidos no plano da inserção econômica
apesar de todas as em todas as áreas que integram internacional do Brasil no final
mudanças domésticas o conjunto das capacidades do século que se findou, três
e internacionais, tenha de um país. A eliminação do eventos podem ser adicionados
se mantido o consenso contrapoder soviético, cujo com efeitos significativos na
dentro da comunidade desafio ao poder norte-americano política externa brasileira. Sem
no período anterior funcionara pretensão de ordená-los por
de política externa com
como um elemento de barganha relevância intrínseca, são eles:
respeito à valorização
para os países do Sul, esfacelou o processo de redemocratização
de um papel protagônico
a coalizão do Terceiro Mundo. De com a posse de um governo civil
para o país
fato, com o desaparecimento do em 1985 e a promulgação da

16 RBCE - 82
nova constituição em 1988; a Na verdade, o caso brasileiro A globalização é considerada o
criação do Mercosul em 1991; evidencia a disposição das elites principal parâmetro para a ação
e a formação do Nafta em 1994. governamentais em aceitar externa e seus benefícios só
determinados compromissos podem ser alcançados pelas
Da perspectiva da política
internacionais face à incerteza reformas internas que expandam
externa, o Nafta e, em especial,
política futura que caracteriza a economia de mercado e
a participação do México neste
processos de transição de promovam a concorrência
acordo comercial, significou
regimes autoritários. Tanto no internacional. Tal estratégia parte
a “perda” do México para a
caso do Brasil, quanto da da constatação de que o país não
coalizão latino-americana e
Argentina, a adesão ao regime possui “excedentes de poder” e,
do lugar hipotético potencial
de direitos humanos foi quase portanto, só o fortalecimento dos
de aliado especial junto aos
imediata ao fim do governo mecanismos multilaterais pode
Estados Unidos. A formação
militar. Em ambos os casos, a refrear “condutas unilaterais no
do Mercosul teve um duplo
maior tolerância com os custos cenário internacional”.25 Na
significado: para a burocracia
de soberania está associada aos estratégia da credibilidade, a
econômica a expectativa é
efeitos esperados na política autonomia nacional “deriva da
que funcionasse como um
doméstica e também à credibilidade capacidade de cooperar para a
mecanismo para consolidar a
internacional que se buscava criação de normas e instituições”
abertura econômica que então
alcançar, eliminando uma parte internacionais.26 Nesta percepção,
se iniciava; para a diplomática,
do “entulho autoritário” da política o país deve ajustar seus
como mecanismo defensivo e
externa do período militar.24 compromissos internacionais às
adicionador de poder de
suas capacidade reais. A
barganha internacional. Mas o É curioso que, apesar de todas restauração da confiabilidade e
ineditismo, do ângulo da política estas mudanças domésticas e da credibilidade internacionais
externa, está no fato de o internacionais, tenha se mantido está associada à vinculação da
movimento equilibrador estar o consenso dentro da política externa à política
localizado no âmbito regional. comunidade de política externa econômica interna.
A redemocratização, a partir do com respeito à valorização de
final dos 80, contribuiu para a um papel protagônico para o A estratégia oposta pode ser
universalização, de fato, da país, conforme examinamos denominada de autonomista e
política externa, simbolicamente anteriormente. Mas tal como no combina o objetivo de projeção
representada pelo reconhecimento passado, as elites se dividem internacional com a permanência
de Cuba e o aprofundamento das quando se trata de escolher do maior grau de flexibilidade
relações com a Argentina e do e liberdade da política externa.
estratégias concretas de inserção
Mercosul. Estes dois eventos Crítica da avaliação positiva dos
internacional. Neste particular,
revelam de forma cristalina a frutos da liberalização comercial
dois modelos ressaltam nas
eliminação definitiva da injunção e dos resultados benéficos da
preferências das elites na
militar velada no processo adesão aos regimes internacionais,
atualidade, configurando-se duas
decisório da política externa. esta visão preconiza uma
alternativas de política externa. A
primeira delas, segundo o survey, “política ativa de desenvolvimento”
Também conseqüência da
congrega a maioria das opiniões e e a necessidade de se “articular
mudança política foi a adesão do
poderia ser denominada de busca um projeto nacional voltado para
país aos regimes internacionais
da credibilidade, na medida em a superação dos desequilíbrios
de direitos humanos e de
que o foco é de fora para dentro. internos em primeiro lugar”. A
controle de tecnologia sensível.
inserção ativa deve ser buscada
na “composição com países que
24
Em 1995, o país aderiu ao regime de Controle de Tecnologia de Mísseis, em 1996, assinou o
Tratado para a Proibição Completa de Testes Nucleares e em 1998 subscreveu o Tratado de tenham interesses semelhantes
Não-Proliferação de Armas Nucleares.
25
Amaury de Souza, A agenda internacional do Brasil, p. 22.
e se disponham a resistir às
26
Loc. Cit. imposições das potências

RBCE - 82 17
dominantes”.27 A visão membros permanentes no danosa pelos demais membros
autonomista critica a tese da Conselho das Nações Unidas; do sistema internacional,
“insuficiência de poder” defendida participação nos principais baseada na expectativa de que
pela estratégia da credibilidade, exercícios multilaterais em curso o “auto-interesse esclarecido”
e a “postura defensiva” daí – Rodada de Doha da Organização do hegemônico conduziria ao
decorrente. Uma preocupação Mundial do Comércio, investimento na criação e
entre os defensores de uma negociação da Alca e entre consolidação de instituições
estratégia autonomista é que o Mercosul e União Européia –, multilaterais que, em última
Brasil não dispõe de elementos assim como na conformação das análise, seriam funcionais à
de dissuasão militar, nem novas regras que irão reger as gestão internacional e à
poder de veto no Conselho relações econômicas com vistas manutenção da preeminência
de Segurança da ONU que à defesa dos interesses dos dos Estados Unidos. Em última
possam respaldar negociações países em desenvolvimento. análise, a unipolaridade seria
comerciais com parceiros mais Essa relativa estabilidade da legitimada por via da disposição
poderosos. Como a dimensão agenda diplomática reflete tanto e capacidade do hegemônico em
soberanista é marcante nesta o peso da geografia nas relações produzir bens coletivos para
visão, prevalece certa relutância internacionais dos países, quanto os demais países.
em aceitar arranjos multilaterais o efeito inercial da participação
Tal como articulado no modelo da
que impliquem delegação de em longos processos de
credibilidade, a restauração da
autoridade a instâncias negociação econômica
confiabilidade internacional está
supranacionais. multilateral.
associada tanto à adesão aos
Estas duas estratégias de A principal diferença entre os regimes internacionais dos quais
inserção internacional do Brasil, dois governos é de perspectiva, o país esteve afastado durante o
segundo as preferências da da visão da ordem internacional regime militar, quanto à adesão
comunidade de política externa de cada um deles. Ao buscar ao compromisso com a
guardam alguma semelhança consolidar relações com a estabilização macroeconômica e
com as orientações da política corrente principal da economia a manutenção da governabilidade,
externa no período pós-Guerra global – Estados Unidos, Europa de acordo com o léxico das
Fria. Na prática, a gestão e Japão –, repudiando assim as agências financeiras e do
externa do Governo Fernando orientações terceiro-mundistas, mercado internacional. Tanto
Henrique Cardoso estaria mais um dos eixos do modelo assim, que a ortodoxia no
próxima da estratégia de autonomista pretérito, o governo plano macroeconômico foi
“credibilidade” e a de Luiz Inácio Fernando Henrique Cardoso acompanhada de uma política
Lula da Silva da de “autonomia”. enfatizava uma determinada externa cujo principal vetor foi
No plano da diplomacia perspectiva da ordem mundial, a participação ativa nos âmbitos
econômica multilateral, as representação esta próxima ao multilaterais.
orientações destes dois governos que alguns analistas denominam
O entendimento da ordem
não são muito diferentes: a o sistema geoeconômico de
internacional que transparece
revitalização e ampliação do Clinton. Isto é, uma ordem em
nos pronunciamentos e
Mercosul; a intensificação da que a globalização é a tendência
iniciativas do governo Lula é
cooperação com a América do dominante, com o predomínio
distinto. Ainda que reconhecendo
Sul e com os países africanos; indiscutível dos Estados Unidos,
o predomínio militar dos Estados
“relações maduras” com os com base na sua superioridade
Unidos, a avaliação da ordem
Estados Unidos; importância das militar, econômica e tecnológica.
econômica é mais matizada, em
relações bilaterais com potências Nesta visão, a primazia norte- função da criação do euro que
regionais como China, Índia, americana não é percebida como enfraqueceu o poder do dólar e,
Rússia e África do Sul;
ampliação do número de 27
Ibid., pp. 23-25.

18 RBCE - 82
conseqüentemente, fortaleceu característica distintiva com aspiração de um papel
a União Européia. Em um mundo respeito ao anterior é combinar significativo na cena internacional
menos homogêneo e mais uma política macroeconômica permanece atravessando
competitivo, haveria espaço ortodoxa, em tudo semelhante diferentes visões da ordem
para um movimento à de seu antecessor, e uma internacional e preferências
contra-hegemônico cujos eixos política externa heterodoxa ideológicas. Assim como a
estariam na Europa ampliada, muito próxima da estratégia comunidade de política externa se
com a inclusão da Rússia e autonomista articulada pela divide com relação às estratégias,
na Ásia, onde potências como comunidade de política externa, mas é unânime com respeito à
China e Índia podem vir a como vimos acima. Dada as projeção internacional do Brasil,
representar um contraponto injunções internacionais que o os governos têm projetos de
aos Estados Unidos na região. governo Lula experimenta, sua política externa distintos. Em
política externa parece constituir ambos, porém, está presente a
Nessa percepção, a
um dos domínios escolhidos busca pelo reconhecimento das
unipolaridade não consegue
para a reafirmação de seu potências e a concordância com
se legitimar, pois a tentação
compromisso com a mudança relação à necessidade de reforma
imperial é permanente, o que,
e com a agenda social- do Conselho de Segurança, de
simultaneamente, estimula o
democrata. No plano das modo a incluir o Brasil entre seus
investimento das demais
ações diplomáticas, ressalte-se membros permanentes. Talvez a
potências em um esforço
o forte componente de uma típica principal diferença seja que no
contra-hegemônico. Em um
política de equilíbrio em relação governo Fernando Henrique
contexto mundial com vetores
à potência global com base em Cardoso a expectativa desse
multipolares, o exercício
alianças com outras potências reconhecimento vinha da
multilateral, em particular nos
médias, dentro e fora do espaço identificação do país como o
fóruns políticos, torna-se crucial
regional sul-americano. Com “último entre os primeiros”, ao
para atenuar a primazia norte-
respeito à região, os objetivos passo que no governo de Luiz
americana e conter seus
do governo representam uma Inácio Lula da Silva o Brasil seria
impulsos unilaterais, que se
inovação com relação aos o “primeiro entre os últimos”. „
tornariam inevitáveis em uma
modelos passados e uma
ordem internacional sem
aproximação ao modelo de
competidores ou opositores.
“aprofundamento da inserção
Não é o caso de se discutir a regional” na medida em que o
probabilidade deste cenário na Brasil ensaia um exercício de
atualidade. Importa ter presente liderança cooperativa na
que somente uma avaliação da América do Sul.28
Uma preocupação entre
ordem contemporânea com
Mudaram os tempos, mudaram o os defensores de uma
tendências à multipolaridade
sistema internacional e o regime estratégia autonomista
confere sentido a uma estratégia
político brasileiro. A alternância é que o Brasil não
internacional que enfatiza a
de poder criou oportunidades dispõe de elementos
dimensão de protagonismo
para diferentes estratégias de de dissuasão militar,
político e o plano multilateral de
inserção internacional que nem poder de veto no
discussão das questões globais.
refletem compromissos políticos Conselho de Segurança
Ainda que seja cedo para uma e preferências ideológicas
da ONU que possam
avaliação da política externa do distintas dos governos no período
respaldar negociações
governo de Lula, sua pós-Guerra Fria. Mas a antiga
comerciais com
parceiros mais
28
Luis Fernandes, “Autonomia pela liderança”, Bonifácio, no.2, janeiro-fevereiro-março de 2004,
pp. 24-27 e Maria Regina Soares de Lima, “Na trilha de uma política externa afirmativa”, poderosos
Observatório da Cidadania, no. 7, 2003, pp. 94-100.

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