Você está na página 1de 81

Caderno de Formação nº 56

“ Subsídios para estudo da


conjuntura 2022”

1
Expediente

O Caderno de Formação nº 56 - “ Subsídios para estudo da


conjuntura 2022, é uma publicação do Setor de Formação do MST.

Diagramação: Secretaria Nacional

Secretaria Nacional / Setor de Formação


(11) 2131-0850
Alameda Barão de Limeira 1232 - Campos Elísios
01202-002 - São Paulo - SP
secgeral1@mst.org.br

São Paulo — Janeiro 2022

2
Sumário

1. Tópicos da conjuntura internacional


— Vijay Prashad...........................................................................................05

2. Elementos para una Análisis de Coyuntura politica


de las Americas - Alba Movimientos ...................................................11

3. Colapso socioambiental ou mudança de civilização.


O decênio decisivo
— Luiz Marques ...........................................................................................21

4. Ecossocialismo
— Michael Löwy ............................................................................................41

5. Medidas para defender a vida no planeta terra e


melhorar as condições de vida do povo ............................................53

6. Notas de conjuntura econômica


— Guido Mantega ......................................................................................57

7. Análise da conjuntura política


— Miguel Enrique Stedile ........................................................................61

8. Agronegócio: o modelo do capital para controlar


os bens da natureza e a agriculltura brasileira
— João Pedro Stedile ..............................................................................67

9. Anexo: concentração dos 10 maiores grupos empresariais


brasileiros - 2020. Revista Valor Econômico ..................................79

3
4
Tópicos da conjuntura
internacional*
1.
— Vijay Prashad —

* Instituto Tricontinental de Pesquisa Social / 30 de dezembro de 2021

5
I- Agridoce é a passagem deste ano
Houve algumas vitórias imensas e algumas derrotas ca-
tastróficas, a mais terrível sendo o fracasso dos países do Norte
Global em adotar uma atitude democrática para enfrentar a pan-
demia de Covid-19 e criar acesso equitativo a recursos essenciais,
de equipamentos médicos salvadores a vacinas. Tragicamente,
ao final desta pandemia, teremos aprendido o alfabeto grego das
variantes nomeadas após suas letras (delta, omicron), que conti-
nuam a surgir.
Cuba lidera a lista das maiores taxas de vacinação do
mundo, usando seus imunizantes nacionais para proteger sua
população e também a de outros países – da Venezuela ao Viet-
nã -, dando continuidade a uma longa história de solidariedade
na área da saúde. Os países com as menores taxas de vacinação
– atualmente liderados por Burundi, República Democrática do
Congo, Haiti, Sudão do Sul, Chade e Iêmen – estão entre os mais
pobres do mundo, dependem de ajuda externa, pois seus recur-
sos são essencialmente roubados, ao serem adquiridos a preços
absurdamente baixos por empresas multinacionais. Com apenas
0,04% dos 12 milhões de habitantes do Burundi vacinados até 15
de dezembro de 2021, se seguir com essa taxa atual de vacinação,
o país alcançaria apenas 70% de cobertura em janeiro de 2111.
Em maio de 2021, Tedros Adhanom Ghebreyesus, chefe
da Organização Mundial da Saúde, disse que “o mundo está em
um apartheid vacinal”. Poucas coisas mudaram desde então. No
final de novembro, a co-diretora de entrega de vacinas da União
Africana, Ayoade Alakija, disse sobre o surgimento da ômicron na
África Austral: “o que está acontecendo agora é inevitável. É o
resultado do fracasso mundial em vacinar de maneira equitativa,
urgente e rápida. É o resultado da acumulação [de vacinas] por
países de alta renda em todo o mundo e, francamente, é inacei-
tável”. Em meados de dezembro, Ghebreyesus nomeou Alakija
como Enviada Especial da OMS para o Acelerador de Acesso a
Ferramentas para a Covid-19. Sua tarefa não é fácil, e seu objetivo
só será alcançado se, como ela disse, “uma vida em Mumbai im-
portar tanto quanto em Bruxelas, se uma vida em São Paulo for

6
tão importante quanto uma vida em Genebra, e se uma vida em
Harare for tão importante quanto em Washington DC”.
O apartheid vacinal é parte de um problema mais amplo,
o apartheid sanitário, um dos quatro apartheids de nosso tem-
po, os outros sendo o alimentar, o financeiro e o educacional.
Um novo relatório da Organização das Nações Unidas para Ali-
mentação e Agricultura (FAO) afirma que a população de pesso-
as subnutridas na África aumentou em 89,1 milhões desde 2014,
chegando a 281,6 milhões em 2020. Vale a pena considerar a per-
gunta de Alakija sobre a humanidade, sobre o valor atribuído a
diferentes seres humanos: pode uma vida em Harare ser tão va-
lorizada quanto uma vida em Washington? Podemos nós, como
povos, superar esses apartheids e resolver os problemas elemen-
tares enfrentados pelas pessoas de nosso planeta e acabar com
as formas bárbaras com que o atual sistema econômico e político
tortura a humanidade e a natureza?
Uma pergunta como essa soa ingênua para aqueles que
se esqueceram do que significa acreditar em algo – se não na
própria ideia de humanidade, pelo menos na Carta das Nações
Unidas (1945) e na Declaração dos Direitos Humanos das Nações
Unidas (1948). A Declaração nos exorta, como povo, a nos com-
prometermos em defender a “dignidade inerente” uns dos ou-
tros, um padrão que entrou em colapso desde que os chefes de
governo assinaram o texto final.
Apesar desses apartheids, vale a pena destacar alguns
avanços da humanidade:
1. O povo chinês erradicou a pobreza extrema, com quase 100
milhões de pessoas saindo da miséria absoluta nos últimos oito
anos. Nosso primeiro estudo da série “Estudos sobre o socialis-
mo em contrução”, intitulada Servir ao povo: a erradicação da
pobreza extrema na China, detalha como esse feito notável foi
alcançado.
2. Os agricultores indianos lutaram bravamente pela revogação
de três leis que ameaçavam uberizar suas condições de traba-
lho e – após um ano de luta – eles venceram. Essa é a vitória
trabalhista mais significativa em muitos anos. Nosso dossiê de
junho, A revolta dos agricultores na Índia, catalogou a luta pela
terra na Índia e a militância dos agricultores na última década.

7
3. Governos de esquerda chegaram ao poder na Bolívia, Chile e
Honduras, derrubando uma história de golpes e mudanças de
regime nesses países que vão de 1973 (Chile) a 2009 (Hondu-
ras) a 2019 (Bolívia). Um ano atrás, nosso dossiê de janeiro,
Crepúsculo, abordou a erosão do controle dos Estados Unidos
sobre os assuntos globais e o surgimento de um mundo multi-
polar. O fracasso dos Estados Unidos em atingir seus objetivos
nesses países e em derrubar a Revolução Cubana e o proces-
so revolucionário venezuelano por meio de guerras híbridas é
um sinal de grande possibilidade para os povos do hemisfério
americano. As tendências mostram que em 2022 Lula deverá
derrotar quem for o candidato da direita no Brasil, encerrando
a atrocidade do governo de Jair Bolsonaro. Nosso dossiê de
maio, Os desafios da esquerda no Brasil, é um bom lugar para ler
sobre os dilemas políticos no maior país da América Latina.
4. Uma crescente onda de insatisfação no continente africano
contra a crescente presença militar dos Estados Unidos e da
França encontrou expressão na cidade de Kaya, oeste de Burki-
na Faso. Quando um comboio militar francês passou perto da
cidade em novembro, uma multidão de manifestantes o dete-
ve. Os franceses lançaram um drone de vigilância para monito-
rar a multidão. Aliou Sawadogo (13 anos) abateu o drone com
seu estilingue, “um Burkinabé David contra o Golias francês”,
escreveu Jeune Afrique. Nosso dossiê de julho, Defendendo
nossa soberania: bases militares dos EUA na África e o futuro da
unidade africana, foi co-publicado com o Movimento Socialista
do Grupo de Pesquisa de Gana e acompanha o crescimento da
presença militar ocidental no continente.
5. Vimos greves de trabalhadoras de cuidados de todos os tipos
em todo o mundo, desde profissionais de saúde a trabalhado-
ras domésticas. Essas trabalhadoras foram duramente atingi-
das pela crueldade do neoliberalismo e pelo que chamamos
de CoronaChoque. Mas essas trabalhadoras se recusaram a se
acovardar, recusaram-se a perder sua dignidade. Nosso dossiê
de março, Desatando a crise: o trabalho de cuidado em tempos
de coronavírus, fornece um mapa das pressões que pesam so-
bre esses trabalhadores e abre uma janela para suas lutas.
Claro, esta não é uma lista exaustiva. São apenas algumas
das referências do progresso. Nem todo avanço é bem definido.
8
Depois de vinte anos, os Estados Unidos foram forçados a final-
mente se retirar do Afeganistão, pois perderam a guerra para o
Taleban. Nenhum dos objetivos dos Estados Unidos para a guerra
parece ter sido alcançado e, no entanto, continua a ameaçar de
fome este país de quase 39 milhões de habitantes. Os Estados
Unidos impediram o Afeganistão de acessar seus 9,5 bilhões em
reservas externas que estão em bancos estadunidenses e impe-
diram o governo afegão de assumir seu lugar no sistema da ONU.
Como consequência do colapso da ajuda externa, que represen-
tou 43% do PIB do Afeganistão no ano passado, o Programa de De-
senvolvimento da ONU calcula que o PIB do país cairá 20% neste
ano e 30% nos anos seguintes. Enquanto isso, o relatório da ONU
estima que até 2022, a renda per capita do país pode cair para
quase metade dos níveis de 2012. Estima-se que 97% da população
ficará abaixo da linha da pobreza, sendo a fome em massa uma
possibilidade real neste inverno. Uma vida no Corredor Wakhan
não é tão valorizada quanto uma vida em Londres. A “dignidade
inerente” do ser humano – como afirma a Declaração das Nações
Unidas – não é mantida.
Esse não é apenas um assunto do Afeganistão. O recém-
-lançado World Inequality Report 2022 mostra que a metade mais
pobre da população mundial possuía apenas 2% da propriedade
privada total (negócios e ativos financeiros, depósitos, imóveis),
enquanto os 10% mais ricos possuíam 76% do total da propriedade
privada. A desigualdade de gênero molda esses números, uma
vez que as mulheres recebiam apenas 35% da renda do trabalho
em comparação com os homens que recebiam 65% (uma ligeira
melhora em relação aos números de 1990, quando a participação
das mulheres era de 31%). Essa desigualdade é outra forma de me-
dir a dignidade diferencial conferida às pessoas de acordo com a
classe social e com as hierarquias de gênero e nacionalidade.

Para terminar...
Em 1959, o poeta comunista iraniano Siavash Kasra’i escre-
veu uma de suas elegias, Arash-e Kamangir (Arash, o Arqueiro).
Usando a mitologia popular da antiga batalha travada pelo herói-
co arqueiro Arash para libertar seu país, Kasra’i retrata as lutas
anti-imperialistas de seu tempo. Mas o poema não é apenas sobre
lutas, pois também nos faz pensar sobre as possibilidades:

9
Eu te disse que a vida é linda.
Dito e não dito, há muito aqui.
O céu claro;
O sol dourado;
Os jardins de flores;
As planícies sem limites;
As flores despontando na neve;
O suave balanço dos peixes dançando no cristal de água;
O cheiro de poeira varrida pela chuva na encosta da montanha;
O sono dos campos de trigo na primavera ao luar;
Para vir, para ir, para correr;
Para Amar;
Para lamentar pela humanidade;
E para se deleitar de braços dados com as alegrias da multidão.

10
Elementos para una análisis de
conyuntura política de las
2.
Américas*
— Alba MOVIMIENTOS —

* Construcción colectiva de los dirigentes de Alba Movimientos,


4-5 deciembre 2021
11
I-¿Cuáles son factores comunes que expresan las
estrategias de dominación y procesos de lucha en la
región?

1. Estamos en momento de crisis múltiple e interrelacionada del


capitalismo con expresiones financieras, ambientales. Expresa
una crisis civilizatoria en un contexto de transición geopolítica
donde aparecen nuevos polos internacionales. La pandemia es
una expresión más de la crisis y al mismo tiempo, causa de ace-
leración de algunas tendencias.
2. La disputa no se da ya en el plano bélico tradicional. Hay una
generalización de guerra hibrida, con la utilización de los me-
dios y redes sociales, bloqueos y guerras económicas, estrate-
gias diplomáticas, manejo de la virtualidad, uso de las indus-
trias culturales, procesos de judicialización y criminalización a
líderes políticos y sociales.
3. Se impone un nuevo paradigma tecnológico, que implica el co-
mercio electrónico, el teletrabajo que avanza sobre los dere-
chos de la clase trabajadora, la tecnología mediando todas las
relaciones.
4. La crisis ecológica se ha acrecentado ante gestiones de gobier-
nos que no buscan alternativas en nuevas formas de produc-
ción, reproducción y consumo el sostenimiento de la quema y
la destrucción de bosques y el desenfreno en la búsqueda de
recursos en los países periféricos.
5. De acuerdo a CEPAL doscientos millones de personas viven en
la pobreza. Las condiciones de crisis recaen mucho más sobre
mujeres y jóvenes sometidos a mayor explotación.
6. Fragmentación de la hegemonía norteamericana. Ante esto,
EEUU se propone recrudecer su dominación sobre América
Latina y el Caribe. Sus instituciones no generaron vacunas ni
pudieron responder a los problemas intensificados a partir de
la pandemia. Trata de monopolizar mercados tratando de que
China no le dispute el control, y de controlar los países a partir
de dos vías: una vía dinámica liderada por sectores neofascis-
tas articulados en la región a partir de la figura de Trump y una
vía de concertación, al estilo de la cooptación cultural y diplo-

12
mática. La intención es aislar procesos revolucionarios, sobre
todo con discursos sobre derechos humanos y democracia.
7. El imperialismo se propone especialmente el aislamiento de
Cuba, Venezuela y Nicaragua a través de discursos anclados en
derechos humanos, democracia. En esta guerra básicamente
se intenta bloquear los procesos alternativos en un momento
en que Cuba responde con solidaridad y capacidad para enfren-
tar a la pandemia. El sistema no tiene una alternativa creíble,
sus modelos están en crisis. Hay una crisis de legitimidad de la
OEA .
8. En este momento de crisis, también hay un aumento de la con-
flictividad social y la confrontación. Protestas, movilizaciones
en todo el mundo en la medida en que se concentra la riqueza
excluyendo del esquema de dominación a gran parte de sec-
tores de clases trabajadoras. Aumenta la polarización porque
sectores de grupos dominantes aprovechan el descontento
para ubicar discursos de odio, xenófobos, racistas.
9. Se sostienen movilizaciones populares en Colombia, Perú. Hay
procesos de lucha en Haití a pesar de todos los intentos de con-
trolar la lucha popular en ese país y otros procesos caribeños
que vienen en fuertes resistencias aun la complejidad de tener
al imperio tan cerca. Hay procesos de resistencia y movilizacio-
nes en Bolivia para defender el proceso asediado.
10. Los procesos electorales pueden abrir posibilidades de inte-
gración y enfrentamiento al imperialismo norteamericano, nos
abren posibilidades de reconfiguración en el campo de fuerzas
regional. En este sentido son importantes la victoria sandinista
en Nicaragua, los procesos constituyentes en Chile aun espe-
rando definición en elecciones. Ha sido importante la victoria
de Pedro Castillo en Perú aun con el asedio al gobierno, la vic-
toria en Venezuela del chavismo en las elecciones regionales, la
victoria de Xiomara Castro en Honduras como una victoria del
pueblo y en Argentina el freno al avance de la derecha, porque
se gana tiempo para disputar con un gobierno de coalición. Vie-
nen elecciones en Costa Rica, en Brasil.

13
II-Situaciones específicas de algunos países relatadas
por los dirigentes de ALBA

1. EEUU
EEUU intensificará la ofensiva contra proyectos popula-
res que van ganando espacios. Sin embargo, existen condiciones
dentro del país que favorecen un proceso de luchas colectivas
con debates de un polo antimperialista y sensibilidad socialista
en algunos sectores. La población comprende y toma conciencia
de la crisis como resultado del capitalismo y de la reversión de
derechos ganados en luchas históricas tras constantes ataques
a la clase trabajadora. La administración de Biden no ha podido
resolver los problemas de la población en EEUU. Ni siquiera la po-
lítica de acaparamiento de vacunas ha impedido que la COVID sea
la tercera causa de muerte en el país.
Hay sectores específicos que van a incrementar las luchas
en los próximos meses en el país. Millones de personas informan
que no han tenido para comer ni para realizar los pagos. Crecen
luchas por el derecho a la alimentación y las luchas por el derecho
al aborto y los derechos a las mujeres.
Es importante que haya un espacio para poder fortalecer
y ampliar el polo antiimperialista dentro de los EEUU, fortalecer
el trabajo con los jóvenes y las luchas internacionalistas, seguir
dando la batalla en el terreno ideológico, fortalecer los procesos
de formación política dentro del territorio y contribuir con los
procesos en el continente y la Asamblea Internacional de los Pue-
blos para seguir avanzando y conectando la clase trabajadora de
los EEUU con el resto del mundo.

2. BRASIL
El gobierno de Bolsonaro ha agravado la crisis económica
en el país, dejando sin trabajo a más de 15 millones de trabaja-
dores y trabajadoras. La nefasta política neoliberal adoptada por
Bolsonaro garantiza ganancias a la burguesía brasileña al tiem-
po que agrava la crisis económica y humanitaria que enfrenta la
mayoría de los trabajadores. El gobierno de Bolsonaro boicoteó
las políticas de control de la pandemia, distribuyó medicamentos
ineficaces y retrasó la adquisición de vacunas, en una clara políti-
ca de exterminio. Más de 614.000 brasileños perdieron la vida.
14
El gobierno de Bolsonaro y sus aliados aprovecharon para
perseguir una agenda para asegurar el avance del capital con
el avance de contrarreformas, privatizaciones, condonación de
deudas para grandes empresas y millonarios. incentivos para
los bancos privados. Hay una política contra los derechos y las
posibilidades de vida digna de los trabajadores. La gestión de la
pandemia fue una clara política de exterminio para el pueblo bra-
sileño. Ejemplos son los Incentivos para el banco privado y los
empresarios, la concentración de tierras, el aumento de precios
de los servicios públicos y los alimentos, la electricidad, el gas, la
gasolina.
La destrucción de las políticas para combatir la pobreza
profundizó el panorama del hambre en las familias, especialmen-
te en los hogares encabezados por mujeres negras. Las mujeres
son las más afectadas por el desempleo, agobiadas por el cuida-
do de los niños, los ancianos y los enfermos. La suspensión de
programas dirigidos a pueblos rurales, forestales y acuáticos es
una muestra más de su alianza con la agroindustria, que agrava
aún más el escenario de inseguridad alimentaria, destrucción de
la naturaleza y entrega de nuestra soberanía.
Los movimientos sociales en Brasil están reaccionando. El
año pasado hubo movilizaciones en las calles de las principales
ciudades del país. El capítulo Brasil está presente. Sigue la lucha
que exige Fuera Bolsonaro, ya que el juicio político es una necesi-
dad urgente. Vamos caminos a elecciones de 2022.

3.PERÚ
Los movimientos populares dieron su respaldo a la pre-
sidencia de Pedro Castillo respaldaron que no logra un ejercicio
contundente. Se analiza la falta de formación del liderazgo de
Castillo y la contundencia de la derecha que arremete en un difícil
momento donde hay una solicitud de vacancia.
Se reconoce que es una oportunidad que haya un gobier-
no de izquierda, pero al mismo tiempo la fragilidad de Pedro Cas-
tillo es visible, y siendo un rondero, no tiene las bases ideológicas
de las organizaciones populares dada su raíz y pertenencia do-
cente. No es un cuadro de las organizaciones populares. El movi-
miento popular está en el centro de un debate sobre si sostiene o
no el respaldo a Pedro Castillo dado el hecho de que hay sectores

15
de la izquierda que no se sienten representados por el presidente
y creen que no cumple con las expectativas del momento.
Las rondas campesinas, la mayor organización del país, lle-
gó a su sexto congreso, con cambio de la máxima autoridad de
las rondas, en 21 de 24 regiones. De cara a la coyuntura, las ron-
das enfrentan un peligroso paralelismo a partir de la victoria de
Castillo por la aparición de sujetos diversos con supuesta identi-
dad rondera, que nacen de un movimiento que avanza en sentido
contrario. Se trata de neutralizar la historia de resistencia de las
Rondas campesinas que se define como un movimiento social sin
cooptación política.
La derecha peruana es muy fuerte y expresa su racismo.
Es complicado porque por un lado da muestras de consideración
a los movimientos que lo eligieron, pero también da concesiones
a una derecha que no lo quiere ver en el poder.

4. VENEZUELA
La crisis del capitalismo tiene sus particularidades en Ve-
nezuela debido al bloqueo económico, la pandemia y las contra-
dicciones internas del propio proceso. Estas tres variables se ten-
sionan en medio de la situación del país.
El proceso electoral para la revolución bolivariana repre-
senta uno de los escenarios en los que la revolución disputa po-
der. Hay que ver esos resultados desde una visión objetiva, sin
triunfalismos. Si bien es cierto que hoy en día, la revolución tiene
una mayoría electoral, se han ganado 20 gobernaciones, hay que
dar una lectura de esa situación con una visión sobre una derecha
más moderada que apuesta por mecanismos para disputarle el
poder al proceso revolucionario y analizar cuantas personas sa-
lieron a votar por el chavismo, una derecha moderada que recon-
figura rostros, y gana terreno a la derecha más rancia.
Hay que seguir trabajando en la superación de las propias
contradicciones internas y profundizar la Revolución bolivariana.
Los sectores de izquierda deben actualizarse y profundizar en las
cuestiones que impactan en la economía de la clase trabajadora y
superar la lógica del capital. Es una tarea urgente realizar una re-
volución económica y la construcción del consenso de las mayorí-
as para una nueva hegemonía.

16
5. CARIBE / HAITÍ
El Caribe, dada su matriz económica, juega un papel im-
portante en la acumulación global y la disputa hegemónica. Se
asiste a la ferocidad del imperialismo norteamericano que quiere
controlar la región, por eso es todo el esfuerzo de destruir la re-
volución cubana y venezolana.
El covid fue una coyuntura devastadora para la clase tra-
bajadora, aumento de hambre, desempleo, desplome de algunos
sectores como el turismo. Los sectores dominantes se aprovecha-
ron de la crisis para empujar ofensivas contra los trabajadores esti-
mulando la privatización. Muchos países estamos en recesión eco-
nómica y aumento de la deuda con los organismos multilaterales.
En Haití hay una crisis política muy grave que deja ver las
conexiones que existen en un plan de desestabilización, desde la
privatización de las fuerzas de seguridad al servicio de trasnacio-
nales y los planes de los servicios secretos de EEUU Se duplicó la
cantidad de gente con hambre, el problema del desempleo se pro-
fundizó en una situación de dependencia creciente desde EEUU y
República Dominicana. La crisis migratoria también evidenció la
naturaleza de la dependencia e intervención imperialista.
EEUU intenta sostener un supuesto proyecto de continui-
dad después del asesinato de Jovenel Moise.
Frente a eso, los sectores progresistas están en un largo
proceso de cuatro años de movilización con la intención de der-
rocar el gobierno. Hay un importante proceso de concertación
política muy amplio, el Acuerdo de Montana que tiene el apoyo de
más de 700 entidades políticas y sociales con fuerte respaldo de
organizaciones de izquierda. Se lucha contra la continuidad del
proyecto de la oligarquía haitiana y responder en lo inmediato
a consecuencias del terremoto de agosto y la crisis migratoria.
ALBA movimientos en Haití juega un papel de coordinación im-
portante en este proceso. Se proyecta la Asamblea para el 14 de
enero. Las fuerzas democráticas en Haití están en procesos de
lucha cotidiana frente a una crisis devastadora.
También es importante señalar las rebeldías significativas
en países como Guadalupe, Martinica, y Guyana. Las rebeldías de
Guadalupe y Martinica cuestionan la matriz colonial. Por prime-
ra vez Francia tuvo que reconocer que el estatus colonial sobre
Martinica no puede sostenerse. El movimiento en Puerto Rico

17
también se fortalece, se han retomado agendas como el clima, la
deuda, y luchas todos los días contra la dominación colonial.
La fuerza de la movilización popular exige cambios políti-
cos, cambios concretos en las correlaciones de fuerzas. El capí-
tulo de ALBA ha podido realizar cinco reuniones y avanza en un
proceso de discusión de la propuesta política de ALBA y propone
tres aportes para fortalecer los movimientos en este escenario:
Luchar contra la dispersión de los movimientos sociales; repo-
litizar las luchas del campo popular; e introducir en la agenda
de todas las organizaciones la solidaridad internacionalista su-
brayando la solidaridad con Cuba y Venezuela. Se reconoce es-
pecialmente el papel de los médicos cubanos en la solidaridad
internacionalista.
Lo que ocurre muestra la lucha entre los intentos de do-
minación total y las rebeldías múltiples. En ese escenario es im-
portante mayor intercambio entre las luchas del continente y las
luchas del Caribe.

III-Desafíos y rutas para responder en este


tiempo. Reacciones desde las regiones.
1.Las agendas y luchas urgentes de carácter nacional que incluyen
importantes procesos de cambio en algunos países resultan en
distintos niveles de movilización y en la dificultad de colocar la
visión del proceso de ALBA en las organizaciones. Es urgente
fortalecer el proceso de ALBA en las organizaciones de base,
asumir la lucha internacionalista desde abajo
2.Se reconoce la importancia de trabajar la experiencia común de
los procesos constituyentes y los debates sobre democracia y
poder popular, en la región de Andes, que pudiera ser un eje
concreto para intencionar la articulación.
3.Dar la disputa digital y nuevas tecnologías. Sabemos cómo dar
la batalla en la calle, podemos disputar los Estados, tenemos
experiencia en defendernos del enemigo en términos de de-
rechos humanos, pero necesitamos mayor comprensión de
lo que implica la batalla digital para más eficiencia frente a la
criminalización. Necesitamos tener más formación en Nuevas

18
tecnologías y disputa digital comunicacional y contrarrestar el
accionar del enemigo
4.El avance de las tendencias neofascistas que aparecen con Bol-
sonaro, Kats, el fujimorismo debe ser mejor comprendido y
desde el sur puede hacerse ese aporte, incluyendo el análisis
de las deudas externas, y la precarización del trabajo como ele-
mentos propios de la ofensiva del capital.
5.Desde el Caribe se puede profundizar en diversas formas de
ocupación, que van más allá del bloqueo sobre el que hay que
investigar más.
6.Impulsar una lucha contra la fragmentación de los movimien-
tos, viendo agendas comunes de lucha, contra las trasnaciona-
les, la deuda, la crisis ambiental, la militarización y por la solida-
ridad entre los pueblos.
7.Continuar sumando más países caribeños en ALBA. Para esto
hay que asumir más responsabilidad de las colonias en el Ca-
ribe, dar seguimiento a la reflexión sobre el carácter de la Re-
publica en Barbados, al tema de la dependencia y a las luchas
anticolonialistas en la región.
7.Construir la Patria Grande desde todos nuestros territorios. Lo-
grar una articulación política más efectiva con Mesoamerica
(Centroamerica)
8.Continuar la Formación de acuerdo a las perspectivas y nece-
sidades de cada región. Impulsar Seminarios caribeños de for-
mación política.
9.Es prioridad una agenda común de lucha antimperialista y anti-
colonial en el Caribe
10.Desde Norteamérica es necesario lograr una forma de articu-
lación política con Centroamérica y las luchas del Caribe. Falta
una agenda política común. La cuestión migrante pone escena-
rios muy complicados.
11.Un desafío general es el fortalecimiento y ampliación de los ca-
pítulos nacionales y seguir creciendo como movimientos.

19
20
Colapso socioambiental ou mudança
de civilização. O decênio decisivo* 3.
— Luiz Marques —

* Este texto resume algumas considerações e propostas do livro a ser publicado em


2022, intitulado O decênio decisivo. As escolhas pela sobrevivência. São Paulo, Edi-
tora Elefante.

21
Desde os anos 1950, entramos numa nova época geológi-
ca, o Antropoceno, caracterizada pelo fato de que os impactos
ambientais causados pela economia globalizada – sobretudo a
queima de combustíveis fósseis, a mineração, a poluição indus-
trial, a agroquímica e o agronegócio – moldam o sistema Terra de
modo mais decisivo do que os fatores naturais.
Mortes e sofrimento humano e de outras espécies de-
correntes dos impactos dessa fase mais deletéria do capitalismo
globalizado são crescentes e já catastróficos. Os cientistas cate-
gorizam agora a Terra como um planeta tóxico1. De fato, como
faz notar Julian Cribb, “a Terra, e toda a vida nela, estão sendo sa-
turadas com produtos químicos feitos pelo homem em um even-
to diferente de tudo que ocorreu em todos os quatro bilhões de
anos da história do nosso planeta2”. O lixo e seus agentes into-
xicantes tornaram-se onipresentes nos organismos, na superfície
do planeta, no ar, nos rios e lagos, nos aquíferos e nos oceanos.
Nos últimos 70 anos, a produção de polímeros aumentou quase
200 vezes, passando de 2 milhões de toneladas (Mt) em 1950 para
368 Mt em 20193. Segundo Roland Geyer, Jenna Jambeck e Kara
Lavender Law4, até 2015 haviam sido produzidas 8,3 bilhões de
toneladas (Gt) de plásticos “virgens”, o que gerou 6,3 Gt de lixo
plástico, dos quais apenas 9% haviam sido reciclados, 12% haviam
sido incinerados e 79% dispersos nos mais diversos ambientes.
Plásticos permanecem na natureza por séculos, fragmentando-
-se muitas vezes em microplásticos, que conservam todas as suas
propriedades tóxicas. Um dos sintomas da ubiquidade do plásti-
co no planeta é o fato de que, em 2018, mais de 50% da população

1
. Cf. “Scientists categorize Earth as a toxic planet”. Phys.org, 7/II/2017. Veja-se também André
Cicolella, Toxique planète. Le scandale invisible des maladies chroniques, Paris: Seuil, 2013.
2.
Cf. Julian Cribb, Surviving the 21st Century, Springer 2017.
3
. Cf. Chunyan Wang et al., “Critical review of global plastics stock and flow data”. Journal of
Industry ecology, 25, 5, 9/IV/2021, pp. 1300 - 1317.
4.
Cf. Roland Geyer, Jenna R. Jambeck e de Kara Lavender Law, “Production, use, and fate of all
plastics ever made”. Science Advances, 3, 7, 19/VII/2017. Veja-se também PNUMA, Single-
-use plastic. A road for sustainability, 2018.

22
mundial já podia ter 11 tipos de microplástico em suas fezes5.
O plástico é apenas um exemplo entre milhares de outras
fontes de poluição químico-industrial. Em 2015, a Agência Euro-
peia de Substâncias Químicas (ECHA) elencava a existência de
144 mil diferentes substâncias químicas industriais registradas ou
em fase de registro para uso no mercado. O número dessas subs-
tâncias continua crescendo e poluindo as águas, os solos, o ar e
os organismos. Apenas para dar um exemplo, a OMS reporta a
contaminação do leite materno por 22 pesticidas e substâncias
químicas em mais de 70 países, incluindo os EUA, 15 países euro-
peus, Brasil, China, Rússia, Índia, Austrália e numerosos outros
países asiáticos e africanos6. A atmosfera tornou-se hoje uma
arma apontada contra a saúde das sociedades. Em Setembro
de 2021, uma declaração de Tedros Ghebreyesus, diretor-geral
da OMS, ilustra o que está em jogo: “Por causa da poluição at-
mosférica, o simples ato de respirar contribui para 7 milhões de
mortes por ano7”. Hoje, 9 entre 10 pessoas no planeta respiram
um ar poluído, milhões de humanos e de outros animais morrem
prematuramente por causa da queima de biomassa e de combus-
tíveis fósseis, da proliferação de pesticidas e demais substâncias
tóxicas oriundas da indústria química.

5.
Cf. Philipp Schwabl et al., “Assessment of microplastic concentrations in human stool”. Uni-
ted European Gastroenterology (UEG), 23/X/2018.
6.
Cf. Cribb, cit. (2017).
Cf. “New Study Shows Air Pollution Worse Than Scientists Thought”. BBC, 23/IX/2021.
7.

23
1. Aumento da desigualdade global

Quem tenta ir além desses números catastróficos, quem


tenta encontrar o fundo do problema, não tem dificuldade em
encontrar a máquina moedora de florestas e propulsora do co-
lapso socioambiental em curso. Trata-se da economia globaliza-
da, estruturalmente voltada para atender à demanda dos 10%
mais ricos da humanidade e cuja razão de ser é dada pelo binômio
crescimento constante e acumulação de capital. O que o capita-
lismo globalizado tem a oferecer hoje ao planeta é uma máquina
exterminadora de natureza e de produção de desigualdade. A de-
sigualdade é não apenas o motor fundamental do agravamento das
crises socioambientais acima evocadas, mas é também o principal
obstáculo para atacar de modo consequente essas crises.
“Redução das desigualdades” é, como se sabe, o 10º dos
17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Desde os anos
1980 estamos caminhando em sentido diametralmente oposto a
este objetivo, sobretudo no que se refere à desigualdade socioe-
conômica. Os ricos são os grandes responsáveis pela emergência
climática e demais crises ambientais. Os 10% mais ricos da huma-
nidade (771 milhões de indivíduos) foram responsáveis por 48%
dos gases de efeito estufa emitidos em 20198. Do outro lado da
balança, os 50% mais pobres da humanidade (3,8 bilhões de indi-
víduos) respondem apenas por 12% dessas emissões, ou quatro
vezes menos que a média global. Entre 1990 e 2020, as emissões
de gases de efeito estufa (GEE) do 1% mais rico aumentaram mais
rapidamente do que em qualquer outro grupo, ao passo que as
emissões de GEE dos 50% mais pobres aumentaram apenas de 1,2
a 1,6 tonelada de per capita no período.

8.
Cf. Lucas Chancel, Climate Change and the Global Inequality of Carbon Emissions, 1990 -
2020. World Inequality Lab, X/2021.

24
2. Aumento da insegurança alimentar e da fome

Um dos efeitos mais dramáticos do aumento da desigual-


dade é o aumento da insegurança alimentar. Desde o segundo
pós-guerra, os movimentos sindicais e, em geral, a sociedade ci-
vil organizada foram capazes de conquistas sociais importantes,
entre as quais a diminuição global da insegurança alimentar. Mas
desde 2015, a fome e a insegurança alimentar voltaram a crescer,
inclusive, mais uma vez, nos países ricos. Segundo estimativas da
FAO de 2021, a insegurança alimentar global atinge hoje números
espantosos9:
“A insegurança alimentar moderada ou grave (...) em nível glo-
bal tem aumentado lentamente, de 22,6% em 2014 para 26,6%
em 2019. Então, em 2020 (...) ela aumentou quase tanto quan-
to nos cinco anos anteriores combinados, para 30,4%. Assim,
quase uma em cada três pessoas no mundo não tinha acesso à
alimentação adequada em 2020 – um aumento de 320 milhões
de pessoas em apenas um ano, de 2,05 para 2,37 bilhões. Quase
40% dessas pessoas – 11,9% da população global, ou quase 928
milhões – enfrentaram insegurança alimentar em níveis graves,
com quase 148 milhões de pessoas a mais com insegurança ali-
mentar grave em 2020 do que em 2019”.
O aumento recente da fome no Brasil e a responsabilida-
de do agronegócio
No Brasil, como se sabe, a desigualdade havia diminuído
um pouco até 2014, graças a políticas inclusivas como o Progra-
ma Bolsa Família, o crescimento real de 71,5% do salário mínimo
e a merenda escolar a 43 milhões de estudantes. Com tais políti-
cas, a redução da pobreza extrema chegou a cair 75% entre 2001
e 2014 e o país foi retirado pela FAO do Mapa Mundial da Fome
em 2014. Desde 2015, entretanto, essa tendência se inverteu e o
Brasil apresenta desde o governo de Michel Temer e, sobretudo,
com o governo Bolsonaro, uma das faces mais grotescas desse

9.
Cf. FAO, The state of food security and nutrition in the world 2021. Executive Summary.

25
avanço recente da desigualdade. Segundo a Oxfam10:
“o patrimônio somado dos bilionários brasileiros chegou a R$
549 bilhões em 2017, num crescimento de 13% em relação ao
ano anterior. Ao mesmo tempo, os 50% mais pobres do país vi-
ram sua fatia da riqueza nacional ser reduzida ainda mais, de
2,7% a 2%. (...) O Brasil tem hoje 5 bilionários com patrimônio
equivalente ao da metade mais pobre da população”.
O agronegócio brasileiro é uma causa direta do aumen-
to da fome no país. Ele não produz alimentos, mas commodities,
sobretudo para exportação, a preços fixados em dólar e muito
influenciados pela especulação financeira. Segundo Paulo Peter-
sen, da Articulação Nacional da Agroecologia, “89% de todos os
grãos produzidos no país no ano passado [2020] foram de milho
e soja”, produtos basicamente destinados à exportação e à ração
animal11. Assim, em dezembro de 2020, segundo pesquisa coor-
denada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Seguran-
ça Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN)12:
“Do total de 211,7 milhões de pessoas, 116,8 milhões [55,2%]
conviviam com algum grau de insegurança alimentar (leve,
moderada ou grave). Destes, 43,4 milhões não contavam com
alimentos em quantidade suficiente para atender suas neces-
sidades (insegurança alimentar moderada ou grave). Tiveram
que conviver e enfrentar a fome, 19 milhões de brasileiros(as)”.
A diminuição da fome até 2014, foi, como dito acima, uma
conquista dos movimentos sociais e das políticas públicas no Bra-
sil e no mundo. É ainda possível retomar essa linha de progresso?
Sim, é claro que sim, mas isso só será possível se o agronegócio
for substituído pela agricultura genuína, e isso tanto mais porque
o aumento impressionante da produção agrícola global nos últi-
mos 50 anos está chegando ao seu limite. Ele foi feito a um cus-
to social e ecológico altíssimo, com avanço da área agropecuária
sobre as florestas e sobre os modos de vida das populações ori-
ginárias, uso maciço de agrotóxicos, de fertilizantes industriais e

10.
Cf. Oxfam, “Recompensem o trabalho, não a riqueza”, 2018.
11.
Cf. Vivian Souza, “Recordes no agronegócio e aumento da fome no Brasil.” G1, 11/VIII/2021.
12.
Cf. Rede PENSSAN, “Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil” 2021, p. 35.

26
de novas tecnologias de irrigação e cultivo ecologicamente insus-
tentáveis. Os danos causados à biosfera e o aquecimento global,
alterando os padrões meteorológicos, cobram agora seu preço.
Eles já diminuem a produtividade agrícola per capita e podem di-
minuí-la em termos absolutos nos próximos anos. Uma pesquisa
conduzida pela NASA sugere que a produção de milho e de trigo
pode ser afetada negativamente pela emergência climática já em
203013. Trata-se de um resultado consistente com uma pesquisa
de 2017, segundo a qual a emergência climática impactará tam-
bém a produção de arroz e soja. Juntos, esses quatro cultivos for-
necem dois terços das calorias na alimentação humana global14.

3. Emergência climática e aniquilação da


biodiversidade

Até agora, falamos de impactos diretos – poluição, pobre-


za e insegurança alimentar –, sentidos no dia a dia dos setores
mais vulneráveis da sociedade. Mas é preciso falar também das
ameaças sistêmicas. Se a poluição adoece e mata, se a desigual-
dade desumaniza e atinge as pessoas em sua dignidade e em seus
direitos mais elementares, a emergência climática e a aniquilação
da biodiversidade representam a mais letal ameaça à habitabili-
dade do planeta. O clima planetário está se desestabilizando e a
teia da vida, da qual dependemos existencialmente, está sendo
rapidamente esgarçada pela economia globalizada.
A queima de combustíveis fósseis e o gigantesco rebanho
global de ruminantes destinado à alimentação humana vêm lan-
çando anualmente na atmosfera, em conjunto, mais de 57 bilhões
de toneladas de gases de efeito estufa (sobretudo dióxido de
carbono, metano e óxido nitroso, ou CO2, CH4 e N2O). Por cau-
sa dessas emissões, aumentam sempre mais as concentrações
atmosféricas desses gases, que absorvem e aprisionam energia

13.
Cf. “Falling for corn”. Earth observatory. Nasa, 18/X/2021. Veja-se também o artigo de Jonas
Jägermeyr et al., “Climate impacts on global agriculture emerge earlier in new generation
of climate and crop models”. Nature Food, 2, 1/XI/2021.
14.
Cf. Chuang Zhao et al., “Temperature increase reduces global yields of major crops in four
independent estimates”. PNAS, 15/VIII/2017, pp. 9326-9331.

27
calorífica no sistema Terra, causando um crescente desequilíbrio
energético no planeta. Esse desequilíbrio é a diferença entre o
montante relativamente constante de energia solar incidente em
nosso planeta e a dissipação cada vez menor dessa energia para
fora do sistema Terra, na forma de ondas longas (radiação infra-
vermelha) por causa justamente do crescente excesso desses ga-
ses de efeito estufa na atmosfera. O desequilíbrio energético da
Terra é, hoje, da ordem de cerca de 1 Watt por metro quadrado
(W/m2). Para entender o que esse ganho de energia suplemen-
tar significa ele é o equivalente a explodir 4 bombas atômicas da
potência da bomba de Hiroshima por segundo desde 1998. Isso
é o que o planeta Terra está ganhando em termos de energia tér-
mica suplementar a cada segundo. Esse desequilíbrio energético
já acumulado está se agravando dia a dia à medida que mais e
mais gases de efeito estufa são emitidos pela crescente queima
de combustíveis fósseis e pela destruição das florestas.
Os impactos da emergência climática são também cada
vez mais evidentes, como bem alerta um relatório da Estratégia
Internacional das Nações , Unidas para a Redução de Desastres
(UNISDR)15:
“Entre 1998 e 2017, desastres geofísicos relacionados ao clima
mataram 1,3 milhão de pessoas e deixaram 4,4 bilhões de pes-
soas feridas, sem casa, deslocadas ou necessitadas de assis-
tência de emergência. (...) 91% de todos esses desastres foram
causados por inundações, tempestades, secas, ondas de calor
e outros eventos meteorológicos extremos”.
A expansão térmica das águas e o degelo terrestre está
elevando o nível dos oceanos a uma taxa média de 5 mm por ano.
Em 2030, essa elevação deve atingir provavelmente entre 13 cm
e 21 cm acima do nível de 2000, o que ameaçará a infraestrutura
urbana, além de destruir mangues e salinizar deltas e aquíferos.
A crescente escassez hídrica resultante desse aquecimento e do
uso insustentável da água pela mineração e pelo agronegócio
globalizado deve afetar gravemente um terço da humanidade ao
longo do próximo decênio, criando até 2030 um déficit de 40%

15
. Cf. UNISDR, Economic Losses, Poverty & Disasters, 1998-2017, realizado em conjunto e a
partir do banco de dados do Centre for Research on the Epidemiology of Disasters (CRED)
da Université Catholique de Louvain, creditado pela OMS.

28
entre oferta e demanda de água16. Dados colhidos desde 2003
pelo satélite GRACE (Gravity Recovery and Climate Experiment)
mostram que um terço dos 37 maiores aquíferos do mundo já
estão em fase avançada de esgotamento, posto não serem re-
gularmente realimentados pela chuva, e 21 deles estão em declí-
nio, sobretudo na Índia, China, EUA, vários países da África e da
Europa e o aquífero Guarani, no Brasil. Hoje, “quase 5 bilhões de
pessoas vivem em áreas onde ameaças à segurança hídrica são
prováveis17”.
No que se refere à biodiversidade, os serviços prestados
pelos ecossistemas estão cada vez mais ameaçados. Uma revisão
publicada na revista Science em 2016 mostra que 82% de 94 pro-
cessos ecológicos que suportam a vida no planeta (32 em ecos-
sistemas terrestres, 31 em ecossistemas marinhos e outros 31 em
ecossistemas de água doce), analisados na literatura científica,
estão sofrendo impactos das mudanças climáticas18. Isso é, sa-
bidamente, apenas o começo. A contração da biomassa viva do
planeta e da biodiversidade19 foi avaliada pelo mais abrangen-
te relatório sobre o estado atual da biodiversidade, lançado em
2019 pelo IPBES20. Eis uma de suas conclusões centrais21:

16
. Cf. Y. Siddiqi, “Empty reservoirs, dry rivers, thirsty cities – and our water reserves are running
out”. The Guardian, 27/III/2017.
17
. Cf. M. Rodell et al., “Emerging trends in global freshwater availability”. Nature, 557,
31/V/2018.
18
. Cf. Brett R. Scheffers et al., “The broad footprint of climate change from genes to biomes to
people”. Science, 354, 6313, 11/XI/2016.
19
. “Diversidade biológica significa a variabilidade dos organismos vivos de qualquer origem,
compreendendo, entre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossiste-
mas aquáticos e os complexos ecológicos dos quais eles fazem parte. Isso compreende
a diversidade no seio das espécies e entre as espécies, bem como a dos ecossistemas”
(Convenção da Diversidade Biológica, 2000, p. 9).
20
. IPBES é a Plataforma Intergovernamental de Política Científica sobre a Biodiversidade e
os Serviços Ecossistêmicos (IPBES), estabelecida em 2012 na Cidade do Panamá por 94
governos. Contemplando quatro regiões do mundo, o relatório foi construído ao longo
de três anos com contribuições de mais de 550 especialistas de mais de cem países, que
analisaram mais de 15 mil estudos e relatórios governamentais. Foi aprovado pelos gover-
nos de 132 países. Cf. Jeff Tollefson, “Humans are driving one million species to extinction”.
Nature, 6/V/2019.
21
. Cf. IPBES, “Report of the Plenary of the Intergovernmental Science-Policy Platform on
Biodiversity and Ecosystem Services on the work of its seventh session”. Paris, 4 de maio
de 2019, p. XVI.
<https://ipbes.net/sites/default/files/ipbes_7_10_add.1_en_1.pdf>.

29
“As ações humanas agora ameaçam de extinção global mais
espécies do que nunca. Em média cerca de 25% das espécies
nos grupos de animais e plantas avaliados estão ameaçadas,
sugerindo que cerca de 1 milhão de espécies já correm risco de
extinção, muitas ocorrendo em décadas, a menos que se to-
mem medidas para reduzir os fatores que impulsionam a perda
de biodiversidade. Sem essa ação, haverá uma nova aceleração
na taxa global de extinção de espécies, que já é pelo menos
dezenas a centenas de vezes maior do que a média nos últimos
10 milhões de anos”.
Essas extinções ou ameaças crescentes de extinção de-
correm primariamente da extrema antropização dos espaços
planetários, várias vezes destacada, e recentemente pelo IPBES:
“75% da superfície da Terra [não coberta de gelo] está significati-
vamente alterada, 66% da área oceânica está sofrendo impactos
crescentes e cumulativos e mais de 85% das áreas úmidas foram
perdidas22”. Sempre segundo o IPBES, mais de 500 mil, ou seja,
cerca de 9% das 5,9 milhões de espécies terrestres, “não têm
mais habitat suficiente para sobrevivência a longo prazo e estão,
portanto, condenadas à extinção, muitas delas no horizonte de
décadas, a menos que seus habitats sejam restaurados23”. A úl-
tima atualização da Lista Vermelha das Espécies Ameaçadas de
Extinção, da União Internacional para a Conservação da Nature-
za (IUCN versão 2021-2022), corrobora essa avaliação, ao mostrar
que 28% das espécies – mais de 38.500 entre as 138.300 avaliadas
– correm risco de extinção.
Ainda no que se refere à biodiversidade, entre 1970 e
2016, as populações dos vertebrados silvestres (não destinados à
alimentação humana) diminuíram em média 68%. Na América La-
tina e no Caribe, a diminuição dessas populações foi de 94% nesse
mesmo período, uma catástrofe sem paralelo na história huma-
na. As sociedades estão vivenciando um evento de aniquilação
da fauna silvestre e de extinção em massa de espécies, vitima-
das, sobretudo, pela poluição e destruição de seus habitats, pelo

22
. Cf. Sandra Díaz, Josef Settele, Eduardo Brondízio (coord.), IPBES, Summary for policymakers
(Advance Unedited Version), 6/V/2019. A mesma avaliação foi externada por Sir Robert
Watson, “Biodiversity on the brink: We know it is crashing”. In Living Planet Report 2020.
Bending the curve of biodiversity loss, p. 12.
23
. Cf. Díaz, Settele, Brondízio, IPBES, Summary for Policymakers, cit., 2019, p. 13.

30
avanço do agronegócio, da mineração e do garimpo sobre as flo-
restas, que desaparecem e se degradam em velocidade crescen-
te sob a ação conjugada do fogo e das motosserras.
Alguns apelidam o Antropoceno de Piroceno (a época do
fogo), dada a crescente destrutividade dos incêndios florestais
em todas as latitudes do planeta. No Brasil, esses incêndios são
causados sobretudo pelo agronegócio. Perdas catastróficas de
biodiversidade estão ocorrendo sob nossos olhos. Em 2014, se-
gundo o IBGE, o país (considerado ainda o mais exuberante de
espécies endêmicas entre os 17 países megadiversos do plane-
ta24) contabilizava 3.299 espécies em risco de extinção, ou 19,8%
do total de 16.645 espécies avaliadas25. Resultados preliminares
mostram que os incêndios de cerca de 40 mil km2, provocados
por fazendeiros, apenas no Pantanal e apenas entre Janeiro e
Novembro de 2020, causaram a morte imediata por calcinação
de 17 milhões de vertebrados26. As mortes sucessivas da fauna
por perda de habitat não foram ainda estimadas, mas não devem
ser menores. E não apenas dos vertebrados. Também os inver-
tebrados e em especial os polinizadores estão sendo atacados,
o que pode ter consequências catastróficas. “Nas comunidades
tropicais, 94% das plantas são polinizadas por animais27” e todos
os vetores de destruição acima mencionados, aos quais se devem
acrescentar a poluição atmosférica e o uso crescente de agrotó-
xicos pelo agronegócio, estão produzindo um dramático declínio
dos polinizadores no Brasil. Agindo sobre esses fatores, as mu-
danças climáticas devem causar, ao longo do século, no Brasil,
“um declínio de polinizadores agrícolas em aproximadamente
90% dos municípios28”.

24
. Cf. Russell A. Mittermeyer, “Primate Diversity and the Tropical Forest Case Studies from
Brazil and Madagascar and the Importance of the Megadiversity Countries”. In, E.O. Wilson
& F.M. Peter, Biodiversity, 1988, cap. 16; Russel A. Mittermeier, Gil Robles, & C.G. Mit-
termeier, Megadiversity: Earth’s Biologically Wealthiest Nations, 1999; “Biodiversity A-Z”.
UNEP/WCMC <https://www.biodiversitya-z.org/content/megadiverse-countries.pdf>.
25
. Cf. Ana C. Campos, “IBGE: Brasil tinha 3.299 espécies em risco de extinção em 2014”. Agên-
cia Brasil, 5/XI/2020.
26
. Cf. Daniel Ito, “Pantanal: Estudo aponta morte de 17 milhões de animais em queimadas”.
Agência Brasil EBC, 16/IX/2021.
27
. Cf. Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) e Rede Brasi-
leira de Interações Planta-Polinizador (REBIPP), Relatório Temático sobre Polinização, Po-
linizadores e Produção de Alimentos no Brasil, 2018.
28
. Vide nota precedente, p. 35.

31
3. A Amazônia está sob ataque e seu destino se
define neste decênio

Desde 1970, a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal torna-


ram-se o alvo da guerra de extermínio das florestas e de seus po-
vos deflagrada pelos ditadores. Ao todo, o Brasil perdeu mais de
2 milhões de km2 de sua cobertura vegetal nativa, algo como um
quarto de todo seu território, e isso apenas nos últimos 50 anos!!
Nenhum país ou território do planeta em nenhum momento da
história humana destruiu de modo tão fulminante os sustentácu-
los da vida em nosso planeta. Em outras palavras, nenhum país
do mundo rivaliza com o Brasil em termos de intensidade (rela-
ção escala/tempo) de desmatamento: 1. mais de 800 mil km2 de
corte raso da floresta amazônica ou 20% de sua área antes cober-
ta por florestas; 2. mais de 1 milhão de km2 de vegetação primária
do Cerrado ou cerca de 50% da área desse bioma biologicamente
riquíssimo; 3. cerca de 150 mil km2 de floresta da Caatinga, entre
1985 e 2020, o que representa uma contração de 26% da área des-
sa floresta em relação a 1985, sacrificada ao avanço do agronegó-
cio. A desertificação está agora avançando sobre esse bioma29.
Enfim, entre 1985 e 2020 foram suprimidos mais 519.363 hectares
(5.193 km2) de vegetação nativa da Mata Atlântica, o que torna
sempre maiores os riscos de colapso dos serviços ecossistêmicos
– entre os quais a disponibilidade hídrica – de que dependem 70%
da população brasileira que vive nesse território30. Um recente
inventário das espécies de aves, por exemplo, realizado à luz
das últimas versões da Lista Vermelha das Espécies Ameaçadas
(IUCN), conclui que na Mata Atlântica31:

29
. Cf. MapBiomas (2021), “Desmatamento, queimadas e retração da superfície da água
aumentam o risco de desertificação da Caatinga.”
<https//mapbiomas.org/desmatamento-queimadas-e-retracao-da-superficie-da-agua-
-aumentam-o-risco-desertificacao-da-caatinga>
30
. Cf. SOS Mata Atlântica, INPE, Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica. Perío-
do 2019-2020. Relatório Técnico. São Paulo, 2021, pp. 8 e 43.
31
. Cf. Pedro F. Develey & Benjamin T. Phalan, “Bird Extinctions in Brazil’s Atlantic Forest and
How They Can Be Prevented”. Frontiers in Ecology and Evolution, 13/V/2021..

32
“entre cinco e sete espécies de pássaros foram provavelmente
levadas à extinção na natureza neste bioma nas últimas déca-
das, além de outras duas espécies que ocorreram em outras
partes do Brasil. Essas extinções foram o resultado da perda
de habitat em combinação com outras ameaças. Outras nove
espécies de aves da Mata Atlântica estão criticamente ameaça-
das, além de seis de outras partes do Brasil”.
Em particular, a Amazônia está sendo destruída, agora,
por ataques conjugados conduzidos pelo governo Bolsonaro e
pela casta de parasitas e negacionistas que o apoia, a começar
pelos militares, que voltaram a assumir protagonismo ideológi-
co na destruição do país. Eis o que mudou essencialmente desde
2019: com os governos civis anteriores, a devastação da flores-
ta era considerada um “efeito colateral” dos programas de go-
verno. Mas a par dessa destruição, criaram-se ao longo dos anos
1990 uma estrutura mínima de governança para coibir a destrui-
ção generalizada, de modo que o ecocídio ocorrido nos anos
1985-2016 decorria basicamente da negligência e da cumplicidade
dos governantes com os devastadores. Com Bolsonaro, o ecocí-
dio retoma a agenda militar da “segurança nacional” dos anos
1970, vale dizer, que a perda de floresta não é mais um “efeito
colateral” a ser minimizado. Ela é agora, novamente, o inimigo a
abater e sua destruição é considerada um fato positivo, uma das
metas centrais da agenda de Bolsonaro. E qualquer resistência a
essa Blitzkrieg por parte das vítimas, que ainda ousam habitar em
íntima e não destrutiva interação com as florestas e demais co-
berturas vegetais nativas no Brasil, encontra o braço armado do
agronegócio, da mineração e do garimpo: seus jagunços e suas
polícias militares. A Figura 1 mostra, claramente, a retomada da
política de extermínio da floresta amazônica desde 2015.

33
Figura 1 – Desmatamento da Amazônia Legal
Brasileira entre 1988 e o período Agosto-Julho de
2021. Fonte: Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (INPE), 2021

https://projetocolabora.com.br/ods13/inpe-desmatamento-na-amazonia-
-cresceu-22-em-um-ano/

Sob os dois governos de Lula e os dois primeiros anos


do mandato de Dilma Rousseff, o desmatamento recua em 2012
(Agosto de 2011 – Julho de 2012) para 4.571 km2. Ainda era, ob-
viamente, um nível inaceitável de destruição florestal, mas era o
mínimo histórico desde 1970. As perspectivas eram boas! A partir
de 2012, contudo, com o novo Código Florestal e com a capitu-
lação de Dilma Rousseff às pressões do agronegócio, sacramen-
tada em sua aliança com Kátia Abreu, o desmatamento volta a
crescer. Entre 2013 e 2016, o desmatamento atinge a média de
6.250 km2 por ano. A partir de 2017, ele decola e com Bolsonaro,
volta a explodir: 10.129, 10.851 e 13.235 km2, somando 34.215 km2
de perda por corte raso da floresta amazônica, apenas nos três
anos de Bolsonaro, uma área maior que a do estado de Alagoas
(27.848 km2).
A defesa da Amazônia é uma trincheira fundamental da
resistência, talvez a mais estrategicamente decisiva de nossos
dias, e não apenas na América do Sul, mas no mundo todo. De
fato, a maior floresta tropical do mundo constitui um elemento
crítico do sistema Terra e suas interações com outros elementos
34
críticos desse sistema são de imensa importância para o equilíbrio
do sistema climático global32. A Amazônia é, por assim dizer, o fiel
da balança do mundo. Para onde ela se inclinar, o mundo se incli-
nará. Em nenhuma outra frente de batalha pela sobrevivência da
biosfera e, portanto, das sociedades humanas é tão verdadeira a
percepção de que estamos vivendo o decênio decisivo quanto no
caso da Amazônia. O desmatamento, os incêndios, a degradação
da floresta e o próprio aquecimento global converteram a parte
leste e sudeste da floresta amazônica de sumidouro em fonte de
emissões de carbono, como recentemente demonstrado por Lu-
ciana Gatti e colegas num trabalho de grande impacto, publicado
em 202133. Isso significa que a mortalidade das árvores já supe-
ra seu crescimento e sua renovação. A floresta está morrendo
nessas áreas. Sua sobrevivência está agora por um fio e, desde
2019, esse fio está sendo roído com redobrada voracidade por
seus maiores predadores: o agronegócio, o garimpo, as madeirei-
ras, as empreiteiras, a mineração, a exploração de gás e petróleo
pela Petrobrás, pela Rosneft e outras corporações de combustí-
veis fósseis, além dos bancos que irrigam as muitas frentes dessa
guerra relâmpago contra a natureza.
Uma palavra sobre os bancos é necessária. O agronegó-
cio arrasa as florestas, mas o nervo dessa guerra contra a natu-
reza é, como em todas as guerras, o setor financeiro. Um relató-
rio publicado pela ONG Forests & Finance em 2020 mostra que
os bancos brasileiros são, numa palavra, os principais credores
do desmatamento. Entre 2013 e Abril de 2020, os bancos finan-
ciaram atividades de alta exposição a riscos de desmatamento
das florestas tropicais no valor de US$ 249 bilhões. Desse total,
o Banco do Brasil financiou US$ 29,9 bilhões, o Bradesco, US$ 7,5
bilhões e o Itaú, US$ 4,4 bilhões. A Figura 2 mostra os 10 bancos e

32
. Cf. Timothy M. Lenton et al. “Tipping elements in the Earth's climate system”. PNAS, 105,
12/II/2008; Will Steffen et al., “Trajectories of the Earth System in the Anthropocene”.
PNAS, 9/VIII/ 2018.
33
. Cf. Luciana V. Gatti et al., “Amazonia as a carbon source linked to deforestation and climate
change”. Nature, 595, 14/VII/2021; Scott Denning, “Southeast Amazonia is no longer a
carbon sink”. Nature, 595, 15/VII/2021.

35
investidores com a maior exposição financeira em empréstimos
e subscrições para empresas do setor de desmatamento no Su-
deste Asiático, África e Brasil, entre 2016 e Abril de 2020. Como se
vê, a pecuária bovina e a soja no Brasil recebem invariavelmente
a parte do leão nesses financiamentos.

Figura 2 - Os 10 bancos e investidores com a maior


exposição financeira em empréstimos e subscrições
para empresas do setor de desmatamento no
Sudeste Asiático, África Central e Ocidental e Brasil,
entre 2016 e Abril de 2020, em bilhões de dólares,
segundo os setores beneficiados: óleo de palma em
marrom, celulose em azul, gado em vermelho, soja
em amarelo, borracha em cinza e verde em
madeira.

Fonte: Sue Branford, Thaís Borges e Diego Rebouças, “Brazilian and internatio-
nal banks financing global deforestation”. Forests & Finance, 5 de novem-
bro de 2020 <https://forestsandfinance.org/>.

36
4. Conclusão

Quanto mais amplos os dados e mais consolidado se tor-
na o consenso científico sobre a aceleração dos desequilíbrios
planetários, mais o capitalismo globalizado se revela uma engre-
nagem exterminadora e uma monstruosidade moral. Seu funcio-
namento “normal” – e perfeitamente consciente de seus danos
– destrói hoje em escala ainda maior que as guerras tecnológicas
do século XX. Se pretendem manter viva a esperança de sobre-
viver, é chegado o momento, para o sistema político e para as
sociedades como um todo, de se guiar pelo exemplo dos jovens,
dos povos originários, dos diversos movimentos sociais e, junto
com eles, empenhar-se na construção de alternativas sistêmicas
ao capitalismo globalizado.
A irresponsabilidade dos governantes e sua subserviência
às elites econômicas é cada vez mais indubitável. Os “mercados”,
as corporações, o setor privado, seus economistas, com sua men-
talidade expansionista e seu blá-blá-blá “sustentável”, não são
parte da solução; são, ao contrário, a essência do problema. Jef-
frey Sachs, um grande economista, é o primeiro a reconhecê-lo34:
“Conheço os principais líderes de Wall Street. Não pensam na
sociedade. Pensam na riqueza deles. Isso não vai mudar em
qualquer momento próximo. (...) A reforma não virá de dentro.
Virá quando as pessoas e a sociedade chegarem à conclusão
que essa não é uma boa maneira de se organizar a sociedade”.
Mudar de civilização é, portanto, preciso. E é preciso,
aqui e agora. Não há mais tempo a perder. Isso implica, para as
sociedades se insurgir contra o sistema econômico globalizado,
representado, sobretudo, e não apenas no Brasil, pela produção
de combustíveis fósseis, pelo agronegócio, pela mineração e
pelo sistema financeiro que controla os investimentos estratégi-
cos dos recursos da sociedade. Contribuir para esta insurgência
é o papel de todos os cidadãos da grande República de Gaia que
precisamos construir democraticamente sobre os escombros

34
. Cf. Entrevista dada a Ricardo Lessa, “Não há futuro com Trump, afirma Jeffrey Sachs”. Valor,
11/IX/2020.

37
dos Estados nacionais. É preciso abrir-se ao ensinamento de Gre-
ta Thunberg, por exemplo, quando afirmava na COP24, em 2018,
acerca do sistema econômico global: “Se é tão impossível achar
soluções no interior deste sistema, talvez devêssemos mudar o
próprio sistema.” Mudá-lo em que sentido? Penso que toda mu-
dança capaz de assegurar a sobrevivência das sociedades deve se
assentar em seis princípios basilares:
1. redução radical e emergencial das diversas desigualdades en-
tre os membros da espécie humana, de modo a tornar efetivo
o princípio da igualdade de direitos consagrado na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948;
2. afirmação dos direitos da natureza, ou seja, extensão da ideia
de sujeito de direito às demais espécies, à biosfera e às paisa-
gens naturais, o que supõe uma redefinição de caráter filosó-
fico e espiritual da posição de nossa espécie no sistema Terra;
3. a economia permanecerá uma mentira e uma máquina mor-
tífera, se não se conceber como um subsistema da ecologia.
Isso supõe obedecer a cinco preceitos: (a) a máxima sobrieda-
de na produção e consumo de bens e de energia; (b) a dimi-
nuição radical do consumo dos 10% mais ricos da humanidade,
de modo a permitir a satisfação das carências dos 90%; (c) um
sistema energético de baixo carbono; (d) uma economia tão
circular quanto possível, com uma economia minerária minimi-
zada e condicionada à capacidade de reciclagem; (e) um sis-
tema alimentar baseado em nutrientes vegetais, produzidos
por uma agricultura orgânica, local, variada e respeitosa dos
habitats selvagens. Plantar soja no Cerrado e na Amazônia para
alimentar porcos, frangos e peixes a milhares de quilômetros
em outros continentes é o caminho mais curto e seguro para o
colapso socioambiental. Numa palavra: a sobrevivência das so-
ciedades depende de sua capacidade de evoluir mantendo baixas
taxas de consumo de energia e materiais.
4. ampliação das reservas naturais e um esforço concentrado de
restauração dos biomas e da biodiversidade em geral, baseado
no diálogo entre a melhor ciência disponível e o saber acumula-
do das comunidades tradicionais e dos povos originários;
5. desmontagem da globalização econômica, em favor de uma
economia dos territórios, incluída a agricultura urbana.

38
6. superação do axioma retrógrado e militarista de soberania na-
cional absoluta, em favor de uma soberania nacional relativa,
subordinada a uma governança global dotada de poder efeti-
vo, radicalmente democratizada e baseada nos territórios, úni-
ca forma de coordenar o combate às principais emergências
globais: clima, destruição da biodiversidade, poluição, pande-
mias e insalubridade.

Esses seis princípios constituem, a meu ver, a moldura de


um programa de ação política concreta que incumbirá às socie-
dades, coletivamente, formular e desenvolver. Ele não será rea-
lizado, obviamente, neste decênio crucial, mas se até 2030 não
tivermos avançado significativamente em sua direção, não ha-
verá mais tempo e capacidade para evitar o pior, sem excluir a
possibilidade crescente de extinção de nossa espécie, a exemplo
da extinção das centenas de milhares de outras espécies a que o
sistema econômico globalizado está, hoje, condenando.

39
40
Ecossocialismo*
— Michel Löwy35 — 4.

35.
Michael Löwy, brasileiro radicado há anos na França, é diretor de pesquisa em sociologia no
Centre nationale de la recherche scientifique, Paris, autor de muitos livros sobre meio ambien-
te, e em especial um livro sobre o Pensamento e atualidade de Che Guevara.
*
22 Dezembro 2021, publicado no portal A Terra é redonda
Tradução do francês por Fernando Lima das Neves

41
1. Capitalismo e crise ecológica
A civilização capitalista contemporânea está em crise.
A acumulação ilimitada de capital, a mercantilização de tudo, a
exploração implacável do trabalho e da natureza e a catástrofe
ecológica daí resultante comprometem as bases de um futuro
sustentável, pondo em perigo, assim, a própria sobrevivência da
espécie humana.
A acumulação ilimitada de capital, a mercantilização de
tudo, a exploração implacável do trabalho e da natureza e a ca-
tástrofe ecológica daí resultante comprometem as bases de um
futuro sustentável, pondo em perigo, assim, a própria sobrevi-
vência da espécie humana - Michael Löwy
O sistema capitalista, uma máquina de crescimento eco-
nômico movida por combustíveis fósseis desde a Revolução In-
dustrial, é responsável pelas mudanças climáticas e pela mais am-
pla crise ecológica do planeta. Sua lógica irracional de expansão
e acumulação sem fim leva o planeta à beira do abismo.
O “capitalismo verde” – a estratégia de redução do impac-
to ambiental ao mesmo tempo em que mantém as instituições
econômicas dominantes – oferece uma solução? A inverossimi-
lhança de tal cenário de reforma política é ilustrada da maneira
mais espantosa pelo fracasso de um quarto de século de confe-
rências internacionais – as COP – em lidar com as mudanças cli-
máticas. As forças políticas comprometidas com a “economia de
mercado” capitalista que criaram o problema não podem ser a
fonte da solução.
A recente COP 26 (Glasgow, 2021), reunindo governos de
todo o planeta, ilustra perfeitamente a impossibilidade de uma
solução para a crise dentro dos limites do sistema. Em vez de me-
didas concretas nos próximos 5-10 anos – uma condição neces-
sária, segundo os cientistas, para evitar um aquecimento global
superior a 1,5°C –, obtivemos promessas miríficas de “neutralida-
de de carbono” para 2050, ou mesmo (Índia), 2070… No lugar de
compromissos precisos e quantificados de suspensão imediata
da exploração de novas fontes de energia fóssil (carvão, petró-
leo), obtivemos promessas vagas de “redução” de seu consumo.
Definitivamente, o defeito fatal do capitalismo verde resi-
de no conflito entre a microracionalidade do mercado capitalista,

42
com seu cálculo míope de lucros e perdas, e a macroracionalidade
da ação coletiva para o bem comum. A lógica cega do mercado
resiste a uma rápida transformação energética para se afastar da
dependência dos combustíveis fósseis: ela está em contradição
intrínseca com a racionalidade ecológica. Não se trata de acusar
os “maus” capitalistas ecocidas, em oposição aos “bons” capita-
listas verdes; a culpa é de um sistema ancorado numa concorrên-
cia implacável e numa corrida ao lucro no curto prazo que destrói
o equilíbrio da natureza.
Definitivamente, o defeito fatal do capitalismo verde resi-
de no conflito entre a microracionalidade do mercado capitalista,
com seu cálculo míope de lucros e perdas, e a macroracionalida-
de da ação coletiva para o bem comum - Michael Löwy
Uma política ecológica que funcione no quadro das instituições
e regras dominantes da “economia de mercado” não conseguirá
enfrentar os profundos desafios ambientais com os quais somos
confrontados. Os ecologistas que não reconhecem que o “pro-
dutivismo” decorre da lógica do lucro estão condenados ao fra-
casso – ou, pior ainda, a serem absorvidos pelo sistema. Os exem-
plos abundam. A falta de uma posição anticapitalista coerente
levou a maioria dos partidos verdes europeus – especialmente na
França, Alemanha, Itália e Bélgica – a tornarem-se meros parcei-
ros “ecorreformistas” da gestão neoliberal, ou social-liberal, do
capitalismo pelos governos.
Bem mais do que uma reforma ilusória do sistema, é im-
prescindível a emergência de uma civilização social e ecológica
baseada numa nova estrutura energética e num conjunto de
valores e estilos de vida pós-consumistas: o ecossocialismo. A
realização desta visão não será possível sem um planejamento e
controle públicos dos “meios de produção”, ou seja, das instala-
ções, máquinas e infraestruturas.

2. Ecossocialismo e planejamento ecológico


O núcleo do ecossocialismo é o conceito de planejamen-
to ecológico democrático, em que a própria população, e não o
“mercado”, ou os banqueiros e industriais, ou um Politburo bu-
rocrático, que toma as principais decisões em relação à econo-
mia. No início da transição para este novo modo de vida, com seu
43
novo modo de produção e consumo, alguns setores da economia
devem ser suprimidos (por exemplo, a extração de combustíveis
fósseis envolvidos na crise climática) ou reestruturados, enquan-
to novos setores são desenvolvidos.
Em última análise, tal visão é inconciliável com o controle
privado dos meios de produção. Em particular, para que o inves-
timento e a inovação tecnológica sirvam o bem comum, a toma-
da de decisão deve ser retirada dos bancos e empresas capitalis-
tas que dominam atualmente, e colocada em domínio público.
Será então a própria sociedade, e não uma pequena oligarquia
de proprietários ou uma elite de tecnoburocratas, que decidirá
democraticamente que linhas de produção devem ser prioriza-
das, e que recursos devem ser investidos na educação, saúde ou
cultura. As grandes decisões sobre as prioridades de investimen-
to – como o fechamento de todas as centrais elétricas a carvão
ou a orientação dos subsídios agrícolas para a produção biológi-
ca – serão tomadas por votação popular direta. Outras decisões
menos importantes serão tomadas por órgãos eleitos em nível
nacional, regional ou local.
Ao contrário do que alegam os apologistas do capitalis-
mo, o planejamento ecológico democrático proporciona, no fi-
nal das contas, mais liberdade, e não menos, por várias razões.
Em primeiro lugar, oferece uma liberação das “leis econômicas”
reificadas do sistema capitalista que acorrentam os indivíduos ao
que Max Weber chamava de uma “gaiola de ferro”. Em segun-
do, o ecossocialismo sugere um aumento substancial do tempo
livre. O planejamento e a redução do tempo de trabalho são as
duas etapas decisivas para aquilo a que Marx chamava “o reino
da liberdade”. De fato, um aumento significativo do tempo livre é
uma condição para a participação dos trabalhadores na discussão
e gestão democrática da economia e da sociedade. Finalmente, o
planejamento ecológico democrático representa o exercício por
toda uma sociedade de sua liberdade de controlar as decisões
que afetam seu destino. Se o ideal democrático não confere po-
der de decisão política a uma pequena elite, por que o mesmo
princípio não se aplicaria às decisões econômicas?
Sob o capitalismo, o valor de uso – o valor de um produto
ou serviço para o bem-estar – existe apenas a serviço do valor
de troca, ou valor de mercado. Assim, na sociedade capitalista,

44
muitos produtos são socialmente inúteis ou concebidos para se
tornarem rapidamente inutilizáveis (“obsolescência programa-
da”): o único critério é a maximização do lucro. Em contrapartida,
numa economia ecossocialista planejada, o valor de uso seria o
único critério de produção de bens e serviços, com consideráveis
consequências econômicas, sociais e ecológicas36.
O planejamento se concentraria nas grandes decisões eco-
nômicas, e não em decisões de pequena escala que pudessem afe-
tar restaurantes locais, mercearias, pequenas lojas ou empresas
artesanais. É importante notar que tal planejamento é compatível
com a autogestão dos trabalhadores de suas unidades de produ-
ção. A decisão, por exemplo, de transformar uma fábrica de pro-
dução de automóveis numa fábrica de produção de ônibus e de
bondes modernos seria tomada pela sociedade em seu conjunto,
mas a organização interna e o funcionamento da empresa seriam
geridos democraticamente por seus trabalhadores. Muito já se dis-
cutiu sobre o caráter “centralizado” ou “descentralizado” do pla-
nejamento, mas o mais importante é o controle democrático em
todos os níveis – local, regional, nacional, continental ou interna-
cional. Por exemplo, os problemas ecológicos planetários, como o
aquecimento global, devem ser tratados em escala mundial e, por
conseguinte, exigem alguma forma de planejamento democrático
mundial. Esta tomada de decisão democrática integral é o oposto
do que é geralmente descrito, muitas vezes de forma desdenhosa,
como um “planejamento central”, pois as decisões não são toma-
das por um “centro” qualquer, mas decididas democraticamente
pela população envolvida, na escala apropriada.
Um debate democrático e pluralista teria lugar em todos
os níveis. Através de partidos, plataformas ou outros movimen-
tos políticos, propostas variadas seriam submetidas ao povo, e os
delegados seriam eleitos em conformidade. Contudo, a democra-
cia representativa deve ser complementada – e corrigida – pela
democracia direta, em que as pessoas escolhem – em nível local,
nacional e, mais tarde, mundial – entre as grandes opções so-
ciais e ecológicas. Os transportes públicos devem ser gratuitos?
Os proprietários de automóveis privados devem pagar impostos

36
. Joel Kovel, Ennemi de la nature: La fin du capitalisme ou la fin du monde? (New York,
Zed Books, 2002), 215.

45
especiais para subsidiar os transportes públicos? A energia solar
deve ser subsidiada para competir com a energia fóssil? A semana
de trabalho deve ser reduzida para 30 horas, 25 horas ou menos,
com a consequente redução da produção?
Que garantia existe de que as pessoas tomarão decisões
ecologicamente corretas? Nenhuma. O ecossocialismo aposta
que as decisões democráticas se tornarão cada vez mais ponde-
radas e esclarecidas à medida que a cultura muda e a influência
do fetichismo da mercadoria é quebrado. Uma sociedade tão
nova não pode ser imaginada sem que a população atinja, pela
luta, a autoeducação e a experiência social, um elevado nível de
consciência socialista e ecológica. Em todo caso, as alternativas à
democracia – o poder do capital financeiro ou uma ditadura eco-
lógica de “especialistas” – não são muito mais perigosas?
O ecossocialismo aposta que as decisões democráticas se
tornarão cada vez mais ponderadas e esclarecidas à medida que
a cultura muda e a influência do fetichismo da mercadoria é que-
brado - Michael Löwy
A transição do progresso capitalista destrutivo para o
ecossocialismo é um processo histórico, uma transformação re-
volucionária permanente da sociedade, da cultura e das menta-
lidades. A realização desta transição conduz não só a um novo
modo de produção e a uma sociedade igualitária e democrática,
mas também a um modo de vida alternativo, a uma nova civili-
zação ecossocialista, para além do reino do dinheiro, para além
dos hábitos de consumo artificialmente produzidos pela publici-
dade, e para além da produção ilimitada de mercadorias inúteis
e/ou nocivas ao meio ambiente. Tal processo de transformação
depende do apoio ativo da grande maioria da população a um
programa ecossocialista. O fator decisivo no desenvolvimento da
consciência socialista e da consciência ecológica é a experiência
coletiva de luta, de confrontos locais e parciais à mudança radical
da sociedade global como um todo.

3. A falsa questão do decrescimento x


desenvolvimento

A questão do decrescimento econômico tem dividido os
socialistas e os ecologistas. O ecossocialismo, contudo, rejeita o
46
quadro dualista do crescimento contra o decrescimento, do de-
senvolvimento contra o anti-desenvolvimento, porque ambas as
posições partilham uma concepção puramente quantitativa das
forças produtivas. Uma terceira posição soa mais favorável à ta-
refa a cumprir: a transformação qualitativa da economia.
Um novo paradigma de desenvolvimento implica pôr
fim ao flagrante desperdício de recursos sob o capitalismo, ali-
mentado pela produção em grande escala de produtos inúteis e
nocivos. A indústria de armamento é, certamente, um exemplo
dramático disso, porém, de modo mais geral, o principal objetivo
de muitos dos “bens” produzidos – com sua obsolescência pro-
gramada – é gerar lucros para as grandes empresas. O problema
não é o consumo excessivo em abstrato, mas o tipo de consumo
que prevalece, baseado no desperdício massivo e na busca os-
tentatória e compulsiva de novidades promovidas pela “moda”.
Uma nova sociedade orientaria a produção para a satisfação de
necessidades autênticas, incluindo água, alimentação, vestuário,
habitação e serviços básicos tais como saúde, educação, trans-
portes e cultura.
É evidente que os países do Sul, onde estas necessidades
estão longe de ser satisfeitas, devem perseguir um maior “desen-
volvimento” clássico – estradas de ferro, hospitais, sistemas de
esgoto e outras infraestruturas. Contudo, mais do que imitarem
a forma como os países ricos construíram seus sistemas de pro-
dução, estes países podem perseguir o desenvolvimento de uma
forma muito mais respeitosa em relação ao ambiente, especial-
mente pela rápida introdução de energias renováveis. Enquanto
muitos países pobres precisarão aumentar sua produção agrícola
para alimentar populações famintas e em pleno crescimento, a
solução ecossocialista consiste em promover métodos agroeco-
lógicos baseados em unidades familiares, cooperativas ou fazen-
das coletivas em grande escala, e não métodos destrutivos do
agronegócio industrializado envolvendo aplicação intensiva de
pesticidas, produtos químicos e OGMs37 .
Ao mesmo tempo, a transformação ecossocialista poria
fim ao odioso sistema de endividamento que o Sul enfrenta hoje

37.
Via Campesina, uma rede mundial de movimentos camponeses, que há muito tempo
defende este tipo de transformação agrícola. Ver: https://viacampesina.org/en/.

47
em dia em razão da exploração de seus recursos pelos países in-
dustriais avançados, bem como por países em rápido desenvolvi-
mento como a China. Em vez disso, podemos vislumbrar um fluxo
importante de assistência técnica e econômica do Norte para o
Sul, baseado num sentido profundo de solidariedade e no reco-
nhecimento de que os problemas planetários exigem soluções
planetárias.
Mas como distinguir as necessidades autênticas das ne-
cessidades artificiais e contraproducentes? Em grande medida,
estas últimas são estimuladas pela manipulação mental da publi-
cidade. Nas sociedades capitalistas contemporâneas, a indústria
publicitária invadiu todas as esferas da vida, moldando tudo, da
comida que comemos e das roupas que vestimos aos esportes,
cultura, religião e política. A publicidade promocional tornou-se
omnipresente, infestando insidiosamente nossas ruas, paisagens
e meios de comunicação tradicionais e digitais, dando forma a
hábitos de consumo ostentatório e compulsivo.
Além disso, a própria indústria publicitária é uma fonte de
considerável desperdício de recursos naturais e de tempo de tra-
balho, paga, afinal de contas, pelo consumidor, para um ramo da
“produção” que está em contradição direta com as necessida-
des socioecológicas reais. Embora indispensável à economia de
mercado capitalista, a indústria publicitária não teria lugar numa
sociedade em transição para o ecossocialismo; seria substituída
por associações de consumidores que supervisionam e divulgam
informações sobre bens e serviços. A modificação de hábitos de
consumo é um desafio educacional permanente que se inscreve
num processo histórico de mudança cultural.
Além disso, a própria indústria publicitária é uma fonte de
considerável desperdício de recursos naturais e de tempo de tra-
balho, paga, afinal de contas, pelo consumidor, para um ramo da
“produção” que está em contradição direta com as necessidades
socioecológicas reais - Michael Löwy
Uma das premissas fundamentais do ecossocialismo é
que, numa sociedade sem o fetiche da mercadoria e sem a aliena-
ção capitalista, o “ser” precede o “ter”. Em vez da procura sem
fim por bens, as pessoas buscarão dispor de mais tempo livre, as-
sim como de realizações pessoais através de atividades culturais,
esportivas, recreativas, científicas, eróticas, artísticas e políticas.

48
Nada indica que a ganância compulsiva decorre de uma “natureza
humana” intrínseca, como sugere a retórica conservadora. Pelo
contrário, é induzida pelo fetichismo da mercadoria inerente ao
sistema capitalista, pela ideologia dominante e pela publicidade.
Ernest Mandel resume bem este ponto crítico: “A acumu-
lação contínua de mais e mais bens […] não é de modo algum
uma característica universal ou mesmo predominante do com-
portamento humano. O desenvolvimento de talentos e inclina-
ções por si mesmos; a proteção da saúde e da vida; o cuidado
das crianças; o desenvolvimento de ricas relações sociais […] tor-
nam-se motivações maiores uma vez satisfeitas as necessidades
materiais básicas38”.
Certamente, mesmo uma sociedade sem classes enfren-
ta conflitos e contradições. A transição para o ecossocialismo
enfrentaria tensões entre as exigências da proteção ambiental
e a satisfação das necessidades sociais; entre os imperativos
ecológicos e o desenvolvimento de infraestruturas de base; en-
tre hábitos de consumo popular e a escassez de recursos; entre
impulsos comunitários e cosmopolitas. As lutas entre aspirações
concorrentes são inevitáveis. Por conseguinte, a avaliação e equi-
líbrio desses interesses deve se tornar a tarefa de um processo
de planejamento democrático, livre dos imperativos do capital
e da busca pelo lucro, a fim de encontrar soluções por meio de
um debate público transparente, plural e aberto. Tal democracia
participativa em todos os níveis não significa que não haverá er-
ros, mas permite aos membros da coletividade social autocorrigir
seus próprios erros.

4. Por que os socialistas devem ser ecologistas


e agroecologicos
A sobrevivência da sociedade civilizada, e talvez de uma
grande parte da vida no planeta, está em jogo. Uma teoria ou um
movimento socialista que não inclui a ecologia como elemento
central de seu programa e estratégia é anacrônica e ineficaz.

38.
Ernest Mandel, Power and Money: A Marxist Theory of Bureaucracy (Londres, Verso,
1992), 206

49
As mudanças climáticas são a expressão mais ameaçado-
ra da crise ecológica planetária, representando um desafio sem
precedente histórico. Se permitirmos que as temperaturas mun-
diais aumentem mais de 1,5°C acima dos níveis pré-industriais,
os cientistas preveem consequências cada vez mais graves, tais
como uma elevação do nível do mar tão importante que poderia
submergir a maioria das cidades marítimas, de Daca no Bangla-
desh a Amsterdã, Veneza ou Nova Iorque. A desertificação em
grande escala, a perturbação do ciclo hidrológico e da produção
agrícola, o aumento da frequência e da intensidade dos fenôme-
nos meteorológicos e a extinção de espécies são algumas das
ameaças. Já estamos em 1,1°C. A partir de qual aumento de tem-
peratura – 4,5°C ou 6°C – chegaremos a um ponto de virada para
além do qual o planeta não poderá suportar a vida civilizada, ou
mesmo de tornar-se inabitável?
É particularmente inquietante constatar que os efeitos
das mudanças climáticas acumulam-se a um ritmo muito mais rá-
pido do que o previsto pelos climatologistas, que, como quase
todos os cientistas, tendem a ser muito prudentes. A tinta de um
relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáti-
cas mal secou quando o aumento do impacto climático o tornou
muito otimista. Enquanto o foco costumava estar no que ocorre-
rá num futuro distante, a atenção está voltada cada vez mais para
o que estamos enfrentando agora e nos anos vindouros.
Alguns socialistas reconhecem a necessidade de integrar
a ecologia, mas se opõem ao termo “ecossocialismo”, argumen-
tando que o socialismo já inclui a ecologia, o feminismo, o antir-
racismo e outras frentes progressistas. Contudo, o termo ecosso-
cialismo, ao sugerir uma mudança decisiva nas ideias socialistas,
é portador de um significado político importante. Primeiramente,
reflete uma nova compreensão do capitalismo como um sistema
baseado não apenas na exploração mas também na destruição –
a destruição massiva das condições de vida no planeta. Em segun-
do lugar, o ecossocialismo alarga o significado da transformação
socialista para além de uma mudança de propriedade, para uma
transformação civilizacional do aparelho produtivo, dos padrões
de consumo e de todo o modo de vida. Em terceiro, o novo ter-
mo enfatiza a visão crítica que tem das experiências do século XX
realizadas em nome do socialismo.

50
O socialismo do século XX, nas suas tendências dominan-
tes (a socialdemocracia e o comunismo de estilo soviético), era,
na melhor das hipóteses, desatento ao impacto humano sobre o
meio ambiente e, na pior, claramente desdenhoso. Os governos
adotaram o aparelho produtivo capitalista ocidental num esforço
frenético de “desenvolvimento”, sem perceber os consideráveis
custos negativos da degradação ambiental.
A União Soviética é um exemplo perfeito disso. Nos pri-
meiros anos após a Revolução de Outubro, viu-se desenvolver
uma corrente ecológica, e certo número de medidas para prote-
ger o meio ambiente foram de fato adotadas. Mas, no final dos
anos 1920, com o processo de burocratização stalinista em cur-
so, um produtivismo ambientalmente insensível foi imposto na
indústria e na agricultura por métodos totalitários, enquanto que
os ecologistas foram marginalizados ou eliminados. O acidente
de Chernobyl em 1986 é um emblema dramático das consequên-
cias desastrosas no longo prazo.
Mudar quem possui a propriedade sem alterar a forma
como essa propriedade é gerida é um beco sem saída. O socia-
lismo deve colocar a gestão democrática e a reorganização do
sistema produtivo no centro da transformação, assim como um
firme compromisso de gestão ecológica.

5. As lutas imediatas e concretas é que podem fazer as


mudanças
A luta por um socialismo verde a longo prazo exige a luta
por medidas concretas e urgentes a curto prazo. Sem ilusões
sobre as perspectivas de um “capitalismo limpo”, o movimento
por uma mudança profunda deve tentar reduzir os riscos para
as pessoas e o planeta, ao mesmo tempo em que ganha tempo
para construir apoio para uma mudança mais fundamental. Em
particular, a batalha para forçar os poderes constituídos a redu-
zir radicalmente as emissões dos gases de efeito estufa continua
sendo uma frente essencial, assim como os esforços locais para
passar aos métodos agroecológicos, energia solar cooperativa e
gestão comunitária de recursos.
Estas lutas concretas e imediatas são importantes em si,
pois as vitórias parciais são essenciais na luta contra a deteriora-
51
ção ambiental e o desespero diante do futuro. No longo prazo,
estas campanhas podem contribuir para aumentar a consciência
ecológica e socialista e promover o ativismo a partir de baixo.
Tanto a conscientização como a auto-organização são condições
prévias e fundamentos decisivos para a transformação radical
do sistema mundial. A ampliação de milhares de esforços locais
e parciais num movimento sistêmico global abre caminho para a
transição para uma nova sociedade e um novo modo de vida.
O ecossocialismo considera-se parte de um movimento
internacional: uma vez que as crises ecológicas, econômicas e
sociais mundiais não conhecem fronteiras, a luta contra as forças
sistêmicas por trás destas crises também deve ser globalizada.
Há muitas intersecções significativas entre o ecossocialismo e ou-
tros movimentos, especialmente os esforços para associar o eco-
feminismo ao ecossocialismo como movimentos convergentes e
complementares . O movimento pela justiça climática reúne o an-
tirracismo e o ecossocialismo na luta contra a destruição das con-
dições de vida das comunidades discriminadas. Nos movimentos
indígenas, alguns líderes são ecossocialistas, enquanto muitos
ecossocialistas consideram, por sua vez, o modo de vida indíge-
na, baseado na solidariedade comunitária e no respeito pela Mãe
Natureza, como uma inspiração para a perspectiva ecossocialis-
ta. Do mesmo modo, o ecossocialismo encontra uma voz nos mo-
vimentos camponeses, sindicais e outros.
O poder das elites dominantes é inegável e as forças da
oposição radical permanecem fracas. Mas elas se desenvolvem e
representam nossa única esperança de parar o curso catastrófico
do “crescimento” capitalista.
Walter Benjamin definiu as revoluções não como a loco-
motiva da história, ao modo de Marx, mas como a tentativa da
humanidade de puxar o freio de emergência antes do comboio
cair no abismo. Nunca antes tivemos tanta necessidade de agar-
rar esta alavanca e estabelecer novos caminhos em direção a um
destino diferente. A ideia e a prática do ecossocialismo podem
ajudar a inspirar este projeto histórico global.

52
Medidas para defender a vida no
planeta terra e melhorar as
5.
condições de vida do povo

53
As medidas elencadas são fruto da reflexão coletiva e das
práticas de décadas dos movimentos populares. Elas somente
serão eficazes se todos nós estabelecermos um laço afetivo, um
compromisso ecológico para com a Terra e a natureza, sentindo-
-nos parte delas e responsáveis por sua continuidade e regenera-
ção.
1. Proibição de desmatamento e queimadas com objetivos mer-
cantis em todas as áreas de florestas e savanas nativas do
mundo;
2. Proibição do uso de agrotóxicos e de sementes transgênicas
na agricultura, e também de antibióticos nas criações animais;
3. Lutar contra o mercado de carbono e as formas similares do
capital especular com a natureza;
4. Suspensão imediata de novos projetos de utilização do carvão
mineral como fonte energia, e apresentação pelos governos de
um plano de transição dessa fonte, em no máximo dez anos;
5. Proibição da mineração em territórios de povos originários, co-
munidades tradicionais, áreas de proteção ambiental e unida-
des de conservação;
6. Regulação de escalas e taxas de extração mineral buscando
atender os interesses estratégicos do país desde que assegura-
da a soberania popular e de forma que não destrua os modos
de vida e os bens comuns nos territórios;
7. Controlar rigorosamente a utilização de plásticos, incluindo
sua proibição na indústria alimentícia e tornando obrigatória
sua reciclagem;
8. Barrar definitivamente a ampliação do Programa Nuclear Brasi-
leiro;
9. Reconhecimento dos bens da natureza (como florestas, água,
biodiversidade) como bens comuns universais a serviço de
todo o povo e imunes de privatização;
10. Recuperação ecológica de todas as áreas próximas a nascen-
tes e beiras de rios, encostas de morros e outras áreas ecologi-
camente sensíveis ou em processo de desertificação;
11. Defesa da Amazônia como grande território ecológico cuidado
pelos povos de nove países, denunciando e combatendo todas

54
as agressões que sofre pelo Capital;
12. Implementar a agroecologia como base sociotécnica da pro-
dução de alimentos saudáveis e acessíveis a todo o povo;
13. Constituir uma política global de cuidado das águas, barrando
a poluição dos oceanos, lagos e rios e eliminando as contami-
nações das fontes de água potável superficiais e do subsolo;
14. Implementação massiva de sistemas de produção de energia
solar, eólica e de biomassas sob gestão coletiva;
15. Implementar um plano global de investimento em transportes
públicos de massa, com energia renovável e que possibilite a
reorganização da vida nas cidades;
16. Os países industrializados do Norte são os responsáveis his-
tóricos pela poluição de todo mundo e continuam a alimentar
modelos de produção e consumo insustentáveis. Eles devem
ser obrigados e garantir os recursos financeiros para a imple-
mentação de todas as ações necessárias para reconstruir de
forma sustentável a relação sociedade-natureza;

ADERE - Associação dos Assalariados Rurais de Minas Gerais


ASA - Articulação das Entidades do Semi-árido do Nordeste
CONAQ - Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas
CONTAG - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CONTRAF - Confederação Nacional dos Trabalhadores em Agricultura
Familiar
CIMI - Conselho Indigenista Missionário
CPT - Comissão Pastoral da Terra
MAB - Movimento dos Atingidos por Barragens
MAM - Movimento pela Soberania Popular na Mineração
MCP - Movimento Camponês Popular
MMC - Movimento das Mulheres Camponesas
MPA - Movimentos dos Pequenos Agricultores
MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
PJR - Pastoral da Juventude Rural

55
56
Notas de conjuntura Econômica
— Guido Mantega* — 6.

* Anotações a partir de palestra de Guido Mantega, dia 13 de dez 21.


(sem revisão do autor)

57
Radiografia atual dos principais fatos da economia
brasileira

1. Estamos terminando o ano de forma melancólica. A economia


vem parando desde o segundo trimestre.
2. As taxas de investimento produtivo deste ano são as mais bai-
xas de toda história econômica do país. Isso significa que cer-
tamente a economia não crescerá em 2022, ou no máximo che-
garemos a 0,5% de crescimento, segundo os mais otimistas.
3. O valor do PIB se equipara a 2013. Isso significa que comple-
taremos em final de 2022 uma década perdida, sem nenhum
crescimento. (Mesma situação vivida na década 80).
4. Desde o golpe contra Dilma até hoje, o IBGE constatou o fecha-
mento de 28mil industrias, que colocaram na rua 1,4 milhões de
operários industriais. (Que sabemos é nossa mão-de-obra mais
qualificada!)
5. Temos cenário da conjugação dos vários indicadores econômi-
cos em conjunto, jamais visto: uma taxa de desemprego tão
elevada. Deterioração do poder aquisitivo pela inflação, juros
crescentes, população endividada (mais de 70%).
6. Metade de toda População Econômica Ativa (PEA) está fora do
mercado formal de trabalho, portanto não estão produzindo.
7. O salário médio vem caindo, a massa salarial deve estar em tor-
no de 210 bi. Quando em dezembro de 2020 foi de 250 bilhões.
8. A demanda do mercado interno do consumo das famílias está
completamente congelada.
9. A retração do consumo de alimentos e a volta da fome levou
que o setor da agroindustria, venha caindo mês a mês, chegan-
do a queda de 11% na produção de outubro, e acumulando per-
das de 30% no ano.
10. O cenário de conjugação de inflação alta com juros altos (me-
dida completamente equivocada,) nos equipara a apenas a
situação econômica de poucos países. Somos a pior situação
econômica entre os 40 países mais ricos do mundo.
11. O lucro da Petrobras esse ano será de 121 bilhões, maior do que
o nível alcançado pelos 5 maiores bancos. E pior, será distribu-

58
ído em dividendos aos acionistas, sendo que 52% são privados
e 30% deles moram no exterior. Isso afetara a possibilidade de
investimentos produtivos da empresa, que é a maior empresa
do pais e tem um efeito multiplicador muito grande, quando
investe.
12. O governo coloca a culpa no COVID, mas não é verdadeiro, a
crise é do sistema que se agravou por falta de uma política eco-
nômica do governo, que conseguisse enfrentá-la e superá-la.

Perspectivas para 2022!


13. O emprego não vai crescer e poderá até aumentar o desem-
prego.
14. A taxa de juro Selic deve chegar a 10,25% ao ano, já anunciado
pelo Banco Central, com graves consequências na economia,
pois empurra o capital financeiro para o rentismo.
15. A taxa de juros vai custar 750 bilhões de Reais ao Tesouro no
ano que vem, inviabilizando o equilíbrio fiscal e os investimen-
tos públicos produtivos.
16. O auxilio Brasil e o 13 sálario terão efeitos marginais no con-
sumo das famílias e no mercado interno, pois a maior parte da
classe trabalhadora usara para pagar dívidas acumuladas e os
mais pobres para sair da fome.
17. As perspectivas de desvalorização cambial seguirão, e o dólar
certamente passará de 6 reais.
18. O governo poderia ainda como medidas eleitoreiras, aumen-
tar o auxílio Brasil, aumentar as transferências para as prefei-
turas, aumentar as emendas. Poderia também obrigar a Petro-
bras a baixar preços e não distribuir dividendos. E, teria que
encontrar 200 bi para colocar no mercado de consumo.
19. Mas tudo isso não consegue tirar a economia do estaleiro, e
dificilmente se reverteria em apoio social. Já que a situação é
crítica e as pessoas já identificam no governo a causa dos pro-
blemas sociais e econômicos.
20. Nestas circunstancias dificilmente a reeleição se viabilizaria,
pois, até setores da burguesia se sentem atingidos.

59
60
Análise da conjuntura política
— Miguel Enrique Stedile* — 7.

* Miguel Enrique Stedile, janeiro 2022. Instituto Educacional Josué de Castro-IEJC. Assentamento
do MST / Viamão-RS

61
1. Vivemos em todo o planeta uma profunda crise do Capitalis-
mo. Definimos esta crise como estrutural, porque ela é resulta-
do do modo de organização do sistema e não é possível supe-
rá-la sem enfrentar as bases do próprio capitalismo. Por isso, a
Conferência COP26 para discutir a crise climática foi um fracas-
so, porque os capitalistas não pretendem abrir mãos dos seus
lucros para salvar a natureza. O acesso às vacinas é desigual
no mundo, porque as grandes indústrias farmacêuticas des-
tinam os medicamentos apenas para os países ricos. E assim,
em todas as suas dimensões econômicas, sociais e ambientais.
Portanto, ao invés de enfrentar as verdadeiras causas da cri-
se, o próprio sistema, o que os capitalistas fazem é acelerar a
destruição da natureza para produzir mais mercadorias e trans-
ferir a conta da crise para os trabalhadores e trabalhadoras, re-
tirando direitos, aumentando a exploração e a repressão, acha-
tando salários, etc.
2. É neste contexto de crise ainda que se dá uma disputa geo-
política entre duas potências: os Estados Unidos, zelador do
capitalismo, e a China, que tenta construir alternativas fora do
eixo dos países ricos. Diante da crise do capitalismo e da as-
censão da China, os Estados Unidos também investiram para
recuperar o poder político e ideológico sobre a América Latina,
que haviam perdido nas últimas décadas, promovendo a de-
sestabilização de uma série de países e tentando realinhá-los à
sua política, ao mesmo tempo em que acelerava a extração dos
bens da natureza destes países.
3. Essa disputa se manifestou no Brasil nos últimos oito anos
através de uma crise política. A burguesia brasileira procurou
implementar no país o mesmo projeto do capitalismo interna-
cional para salva a própria pele, ainda que isso custasse levar o
Brasil para uma crise econômica. Este projeto que contou com
a unidade da burguesia se define em realinhamento com os in-
teresses dos Estados Unidos, com a entrega do petróleo e do
Pré-sal e a subordinação das Forças Armadas como polícia lati-
no-americana; avanço do agronegócio e da mineração, atacando
os territórios que estavam com camponeses, indígenas e qui-
lombolas, e destruindo a natureza para exportação de commo-
dities; proteção aos lucros do capital financeiro e especulação;
destruição de políticas sociais e de direitos dos trabalhadores e
62
trabalhadoras, para aumentar o desemprego e diminuir o custo
da mão de obra. Além disso, o Estado e o Judiciário precisavam
ser reorganizado para reprimir mais rápido e mais duro contra
as manifestações sociais, tarefa que coube à Operação Lava
Jato, com seus tentáculos entre juízes, procuradores, na mídia
e nas faculdades de Direito.
4. Podemos perceber como este projeto foi implementado igno-
rando qualquer processo democrático e aplicado rapidamente.
No primeiro ano do governo Temer, foram destruídos os direi-
tos trabalhistas com a Reforma Trabalhista e bloqueado qual-
quer investimento social por vinte anos graças ao Teto de Gas-
tos, que só permite reajuste de despesas para pagamento de
bancos, mas que obriga a educação e a saúde a terem o mesmo
orçamento todos os anos. Na sequência, o projeto passou a ser
dirigido pelo seu setor mais radical e estadunidense: a aliança
entre militares, neopentecostais e a Lava Jato, personificada
em Jair Bolsonaro. Portanto, o neofascismo brasileiro não é
obra apenas de fake news e disparos de mensagens, mas é a
ala mais subordinada aos Estados Unidos do projeto unificado
da Burguesia. Assim, Bolsonaro deu continuidade ao projeto
em curso, resumido pelo seu ex-ministro como “passar a boia-
da”, destruindo toda a legislação ambiental para dar liberdade
de destruição da natureza ao agronegócio e a mineração. Além
da autonomia do Banco Central, entregando a economia aos
bancos. E só não avançou em destruir o restante dos direitos,
porque faltou competência ao governo em negociar privilégios
com o Congresso.
5. Como era esperado, o Projeto da Burguesia acentuou a crise
econômica e social. O país já não crescia, enquanto aumenta-
vam o desemprego e o preço dos alimentos, quando a pan-
demia da Covid-19 agravou e aprofundou a crise. O Brasil não
apenas estava completamente despreparado para enfrentar a
crise do ponto de vista econômico e social, porque os gastos
estavam engessados pelo teto de gastos, como o governo ado-
tou o mesmo discurso eleitoral de Donald Trump de negar a
pandemia para manter sua base branca, de classe média e radi-
calizada mobilizada, resultando na morte de mais meio milhão
de brasileiros e brasileiras. Da mesma forma, diante do preço
dos alimentos internacionais, como o agronegócio não produz
63
comida para o Brasil, os preços dos alimentos dispararam e a
fome voltou. Como a Petrobras está submetida aos interesses
dos Estados Unidos, o preço dos combustíveis só aumenta,
com efeitos em cadeia sobre todas as mercadorias.
6. Neste período, adotamos corretamente a tática da Resistência
Ativa. Compreendemos a derrota para a burguesia a partir de
2016, identificamos os seus agentes e seu programa e não abri-
mos mão de lutar ou de nos organizarmos, mas sem cair em
aventureirismos, mas também sem nos escondermos ou igno-
rarmos os problemas reais. Além disso, tem sido um período de
deficiências organizativas para toda a classe. Neste contexto,
ao mesmo tempo em que a pandemia agravou os problemas
sociais, também alimentou a indignação e o descontentamen-
to com o governo. E o grande fato político do último período
foi a recuperação dos direitos políticos do ex-presidente Lula.
Este episódio recuperou a motivação dos trabalhadores e tra-
balhadoras e colocou a luta eleitoral no centro da luta de clas-
ses com mais força no período.
7. Da parte da burguesia, mesmo com a pandemia e a grave crise,
não há arrependimentos nem discordância com o projeto que
estão levando a cabo. Ao contrário, há um descontentamento
com a lentidão com que Bolsonaro e Paulo Guedes implemen-
tam o programa da Burguesia. Para a burguesia, o seu progra-
ma atualizado se resume em concluir a privatização da Petro-
bras, aumentar a taxa de juros para garantir os lucros com a
especulação, diminuir impostos, acelerar a destruição das leis
ambientais para disponibilizar todas as terras ao agronegócio
e a mineração. Além disso, a burguesia já compreendeu que
Bolsonaro está mais dedicado ao seu projeto pessoal de usar
o Estado para proteger seus crimes e de sua família, do que
implementar o projeto da burguesia. Assim, os capitalistas pre-
feriam ter um candidato próprio, do seu meio e de total con-
fiança. Este é o caso de Sérgio Moro e João Dória. Porém, ne-
nhum dos dois conseguiu atrair intenções de voto para além da
própria burguesia. Há outras candidaturas burguesas – Simone
Tebet, Rodrigo Pacheco, etc – mas são nomes levantados para
compor chapas ou negociarem nos futuros governos do que
realmente para disputar a presidência. Por outro lado, todas as
pesquisas eleitorais tem indicado, neste momento, que a po-
64
pulação mais pobre já decidiu votar em Lula.
8. Nesta conjuntura, a burguesia tem três caminhos. Dois deles
ainda dentro do Neofascismo. O primeiro é insistir em fazer
seu jabuti voar e investir na mídia e com muito dinheiro para
alavancar a candidatura de Sérgio Moro. O segundo é, se não
houver mudanças nas pesquisas, reafirmar a coalizão com os
militares, neopentecostais e agronegócio representado por
Bolsonaro. E o terceiro, se resignar e assumir a Campanha de
Lula, tentando impor seu programa à candidatura. Neste últi-
mo caso, quanto mais tempo investirem nas duas primeiras e
mais tarde chegarem, menos força terão.
9. Ou seja, em qualquer uma das opções da burguesia, as eleições
de 2022 serão uma eleição anti-Lula. Mesmo os que apoiarem
Lula, irão apoiar para que não seja o Lula dos eleitores mais
pobres. Portanto, é ingenuidade e preguiça quem acredita que
as eleições já estão vencidas. A burguesia não derrubou uma
presidente, pisoteou a Constituição, prendeu Lula, para ago-
ra entregar com tranquilidade o governo à oposição. É preci-
so considerar ainda que a crise do capitalismo permanecerá
e como já foi dito acima, não há saída para crise sem cortar
na carne do próprio capitalismo. Fato que a burguesia não ad-
mitirá. A disputa entre China e Estados Unidos continuará e o
país continuará sendo atacado para permanecer como vira-la-
ta de estimação do Norte. Os neofascistas, especialmente os
fundamentalistas neopentecostais e os militares não voltarão
para as sombras de onde estavam. O neofascismo, com ou sem
Bolsonaro, como o Trumpismo nos Estados Unidos, continuará
ativo e sua derrota depende de uma vigorosa batalha ideológi-
ca nos próximos anos. Portanto, as forças populares tem três
desafios no próximo período: eleger Lula, garantir a sua posse
e garantir um programa popular em seu governo.
10. Desta forma, os próximos anos não serão anos de tranquilida-
de. Serão anos em que as organizações populares precisarão
demonstrar força e a força popular se consegue e se expressa
através da organização e das lutas de massas.

65
11. E de forma mais imediata, nossas tarefas serão:
a) Politizar as eleições e fazer uma disputa de Projetos. Deve ser
uma eleição contra a fome, contra a miséria e o desemprego,
que não pode se limitar ao carisma de Lula, mas deve apontar
também os culpados pela crise. Por isso, politizar as eleições,
significa também apresentar um Projeto Popular para o Brasil
e debatê-lo pedagogicamente com as massas populares.
b) Transformar toda a força que acumulamos no período em or-
ganização. Todas as nossas ações internas e externas – solida-
riedade, plantio de árvores, resistência à titulação e aos despe-
jos, etc – devem dar um salto de qualidade e se transformarem
em forças organizadas para a luta política, com planejamento,
militância dedicada, formação e trabalho de base, nas áreas de
reforma agrária e nas cidades.
c) Na luta eleitoral, criar, organizar e fortalecer os Comitês Popu-
lares da Campanha Lula, como instrumento de luta e organiza-
ção para a batalha eleitoral.

66
Agronegócio: o modelo do capital
para controlar os bens da natureza
e a agricultura brasileira
8.
— João Pedro Stedile* —

* João Pedro Stedile, São Paulo, janeiro 2022.

67
I- As prioridades

O capital na sua lógica perversa e permanente se dissemi-


na como a agua e vai se espalhando na superfície e tomando con-
ta de todas as atividades produtivas ou de mercado. Sua lógica é
controlar todo processo produtivo e de comercialização que dê
lucro. Tudo é transformado em mercadoria. E eles só investem
aonde tem lucro.

1.1. O processo de concentração e centralização do capital segue


a cada dia seu movimento permanente.
Assim, hoje temos a seguinte situação no mercado mun-
dial, que se reproduz no Brasil:
• Sementes: 4 empresas controlam 67% da produção mundial;
• Agroquímicos (Syngenta, Bayer, Basf e Dow Chemical): contro-
lam 70%;
• Fertilizantes arquíqimicos: 5 empresas controlam 18% da produ-
ção mundial;
• Máquinas agrícolas: 5 empresas controlam 41% da produção
mundial;
• Commodities de grãos: 5 empresas (Adm, Dreyfuss, Cofco, Car-
gill e Bungue) controalm 90% da produção mundial;
• Processamento de alimentos: 10 empresas, controlam 38% das
agroindústrias em todo mundo;
• Mercado varejista: 10 empresas controlam 99 % do comércio.

1.2. Nos últimos 50 anos (1970-2020) com a “revolução verde” o


capital havia prometido para a humanidade:
a) Ter alimentos baratos para todos;
b) Maior diversidade de alimentos;
c) Melhor nutrição da população, e;
d) Segurança alimentar, ou seja, não haveria mais fome.
Os resultados do processo de concentração e centraliza-
ção do capital a nível mundial, levou a situação completamente
68
distinta:
a) Grande parte da população mundial (ao redor de 40%) está des-
nutrida, e um bilhão passam fome, todos os dias;
b) Perdeu-se em 30% a diversidade dos alimentos ofertados;
c) Perdeu-se 75% da diversidade genética das plantas alimentares;
d) Diminui-se o valor nutritivo dos alimentos variando de 5 a 40%
em cada mercadoria vendida como alimento.
Haviam 7 mil empresas de melhoramento genético e de
pesquisas, agora estão reduzidas a apenas 4.
Havia 65 empresas fabricantes de pesticidas agora são
apenas 5.
Estima-se que os fundos especulativos controlem hoje en-
tre 14 e 50 trilhões de dólares, na forma de capital fictício. Que
se movimentam de forma especulativa sem relação com a pro-
dução real de bens. Destes, estima-se que 10 trilhões estão volta-
dos para a especulação com agricultura. E há 90 trilhões de US$
aplicados em ações de empresas... (O PIB do brasil total é de 2
trilhões de dólares por ano).
Conclusão: menos de 50 empresas (e seus acionistas, ban-
cos e fundos de investimentos controlam toda produção e co-
mercio agrícola mundial.

II- Os movimentos do capital sobre a agricultura e


os bens da natureza

Mais além da lógica de acumulação, concentração e cen-


tralização do capital na agricultura, pode-se identificar algumas
prioridades que o grande capital está se movendo como tendên-
cia no controle da agricultura e dos recursos naturais em geral,
no Brasil e no Mundo.
1. Controle de toda cadeia produtiva das commodities agrícolas,
em especial: soja, milho, trigo, algodão, etanol e carnes bovina,
suína e avícola.
2. Padronização mundial dos alimentos processados tendo como
matéria prima basicamente a soja, milho, trigo/centeio, arroz e

69
cevada.
3. Controle do mercado internacional de cada cadeia produtiva. As
grandes corporações e o capital financeiro que as alimentam,
tem controle absoluto, independente e acima dos governos.
4. Controle da agua potável, transformando esse bem estável e
finito, em uma mercadoria, em toda parte.
5. Investimento na fabricação de maquinas agrícolas cada vez
maiores e inteligentes, que tenham controle remoto. Mas isto
exige escala e terrenos planos. As 5 maiores empresas contro-
lam agora 40% do mercado mundial.
6. Controle do mercado mundial de insumos agroquímicos, como
NPK, ureia, e os agrotóxicos.
7. Investimento em insumos biotecnológicos e pesquisa de no-
vos produtos. Sabem que os agrotóxicos tem vida útil determi-
nada.
8. Ampliação de pesquisas para mais plantas transgênicas, bus-
cando mais detalhes, sobretudo dos grãos e da cana.
9. Controle do clima, utilização de satélites e drones...
10. O Capital financeiro está interessado em aplicações de crédito
carbono, gerando títulos a serem credenciados pelas florestas
(do Sul) e depois revendem às indústrias poluidoras (do Norte).
11. Investimento na padronização de alimentos veganos e vege-
tarianos, para seu controle, como por ex. hamburguês, carne
vegetal, etc.
12. Controle das cadeias de supermercados, com padrões e mé-
todos semelhantes em todo mundo, e cada vez mais informa-
tizados.
13. Investimento na produção pecuária de escala, de confinamen-
to, reduzindo tempo da produção de carne, seja bovina, porci-
na ou de aves.
14. Controle e difusão popular do consumo de café e cacau, em
todo mundo. Até agora destinados apenas para classe média.
15. Investimento em fontes de energia renováveis, como energia

70
hidrelétrica, solar, eólica, baterias elétricas, e aplicação em ca-
minhões e ônibus.
16. Investimentos em medicamentos com base na cannabis.
17. Nas cadeias do leite e da celulose, o mercado mundial já está
estagnado, e o setor está oligopolizado o suficiente, assim não
há possibilidades de novos atores entrarem em cena... E as em-
presas desses setores, estão investindo em outras áreas agrí-
colas ou de recursos naturais.

III- As contradições do modelo do agronegócio



O controle do capital sobre a agricultura, a natureza e os
produtos agrícolas assusta a todos! O capital cria uma hegemonia
de suas ideias sobre a sociedade através dos seus aparatos ideo-
lógicos da imprensa, universidade, redes sociais, meios culturais,
etc como se o seu modelo fosse moderno, necessário e o único
possível.
Isto pode levar a um pessimismo ou conformismo das
forças populares sobre a possibilidade de reverter tal situação,
tamanha a força que o capital internacional e financeiro exerce
sobre todos/as. No entanto, todos esses processos econômicos
e sociais trazem consigo contradições. E são essas contradições
que geram revoltas, indignação, efeitos contrários que irão levar
à sua superação a médio prazo. Destaca-se aqui, algumas dessas
contradições do domínio do capital sobre a agricultura e da natu-
reza, para que se possa entendê-las, e atuar sobre elas para pro-
vocar as mudanças necessárias.
1. O modelo de produção da agricultura industrial é totalmente
dependente de insumos industrializados, padronizados e sob
controle oligopólico, como fertilizantes químicos e derivados
do petróleo, que tem limites físicos naturais, de escassez de
reservas mundiais de petróleo, potássio, calcário e fósforo. Por
tanto, tem sua expansão limitada a médio prazo. E tem seus
custos/preços acima do valor real. Além do que, no caso brasi-
leiro dependem das importações de mais de 35 milhões de to-
neladas/ano, a custos e distancias cada vez maiores. Portanto

71
é um modelo totalmente dependente de insumos importados,
cerca de 85% de todos insumos da agricultura brasileira são im-
portados. Qualquer instabilidade econômica ou política inter-
nacional coloca em risco as safras de grãos.
2. O controle oligopólico por algumas empresas sobre os ali-
mentos tem gerado preços acima do seu valor, e isso provoca-
rá insegurança alimentar, e fome e a médio prazo é uma fonte
de problemas sociais e de revoltas da população impedida do
seu acesso, por falta de renda. Ou seja, condicionar o alimento
simplesmente às taxas de lucro, trará a curto prazo graves pro-
blemas sociais. Já que a população mais pobre e faminta não
terá renda suficiente para transformar-se em consumidores
dos alimentos transformados em meras mercadorias. A FAO
(organismo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação)
revelou que mais de um bilhão de seres humanos passam fome
todos os dias. Pela primeira vez na história da humanidade atin-
gimos tal magnitude de famintos. No entanto a produção de
alimentos cresce sistematicamente.
3. O capital internacional está controlando e privatizando a
propriedade dos recursos naturais, representados pela terra,
água, florestas e biodiversidade. E isso afeta a soberania nacio-
nal do país, e vai provocar a reação de amplos setores sociais
contrários, não apenas dos camponeses.
4. A apropriação privada de bens da natureza, buscando a apro-
priação de uma renda extraordinária, gerada pela transforma-
ção em mercadorias, traz como consequência diversos desiqui-
líbrios na natureza, que se transformam em problemas sociais
e mudanças climáticas.
5. A agricultura industrial se baseia na necessidade de uso cada
vez maior de agrotóxicos, como forma de poupar mão-de-o-
bra e de produzir em monocultivo de larga escala. Isso produz
alimentos cada vez mais contaminados que afetam a saúde da
população. E as populações da cidade, que tem mais acesso a
informação certamente reagirão. (As classes ricas já estão se
protegendo e nas redes de grandes supermercados aumenta
cada vez mais o consumo de produtos alimentícios produzidos
de forma orgânica.) Os agrotóxicos eliminam a biodiversidade,

72
trazendo consequências para o equilíbrio da natureza. Alguns
monocultivos já estão revendo suas práticas... Nos Estados
Unidos 72 mil fazendeiros do tipo farmers ganharam na Justiça
indenização de mais de 10 bilhões de euros, da Bayer/Monsan-
to, por terem adquirido câncer em função do uso de glifosato
em suas lavouras.
6. O modo de produzir em grande escala expulsa a mão-de-obra
do meio rural, e faz com que aumente as populações de perife-
rias das grandes cidades. Essas populações não têm alternativa
de emprego e renda. E isso gera uma contradição com aumen-
to da desigualdade social e do êxodo rural em todos os países
do mundo.
7. As empresas estão ampliando a agricultura baseada nas se-
mentes transgênicas. Mas ao mesmo tempo, aumentam as
denúncias e ficam mais visíveis as consequências das semen-
tes transgênicas sobre a destruição da biodiversidade, sobre o
clima e nos riscos para a saúde humana e dos animais. E estão
aparecendo cada vez mais as reações da natureza a essa ho-
megenização da vida vegetal. Já que as sementes transgênicas
contaminam as demais e não podem conviver com outras es-
pécies semelhantes. Por outro lado, surgem novas enfermida-
des e plantas que resistem aos venenos usados combinados
com as sementes transgênicas.
8. A agricultura industrial, de monocultivo, destrói sistematica-
mente toda biodiversidade. E a destruição da biodiversidade
altera o regime de chuvas, o clima e contribui para o aqueci-
mento global. Essa contradição é insustentável e as popula-
ções da cidade, começarão a dar-se conta e exigir mudanças.
9. A privatização da propriedade das águas seja dos rios e lagos,
ou do lençol freático aumentará o preço e restringirá o consu-
mo para as populações de baixa renda e trará graves consequ-
ências sociais. Em diversos países do continente americano, as
três maiores empresas do setor: Nestlé, Coca-Cola e Pepsi-cola
já detém o controle da maior parte do mercado de água po-
tável vendida em garrafas. Em diversas regiões do planeta já
ocorrem conflitos em torno da agua, como caso da Índia, Mé-
xico, Chile, que não conseguem proteger as aguas necessárias
para a população.
73
10. O aumento da compra de terras pelas empresas estrangeiras
e sua desnacionalização de forma incontrolável traz consequ-
ências para a soberania nacional e política dos países.
11. O aumento da área cultivada pelo agronegócio, em todo
mundo depende da expansão sobre áreas preservadas, terras
públicas, levando a grilagem, violência, desmatamento e quei-
madas que atingem a todos biomas, provocando mudanças
climáticas.
12. As populações que vivem nas fronteiras agrícolas de todo
mundo e aqui no Brasil, como os povos indígenas, nativos, qui-
lombolas e ribeirinhos enfrentam a violência do capital, que se
apropriam de seus territórios e os expulsam utilizando todo
tipo de violências.
13. O mesmo modelo de espoliação da natureza é aplicado na
mineração, que se apropria de territórios agrícolas e de preser-
vação, contaminam a agua, causando todo tipo consequências
sociais e ambientais.
14. A ampliação e uso da agricultura industrial para produção
de agrocombustíveis, amplia ainda mais o monocultivo, o uso
de fertilizantes de origem petroleira e afetam o problema do
aquecimento global e da emissão de gás carbônico. A causa
principal desse problema é o crescimento do uso do transporte
individual nas grandes cidades, estimulado pela ganância das
empresas automobilísticas. Portanto, o fomento da agricultura
de agro-combustíveis não resolverá o problema, apenas agra-
vará, pelos efeitos perversos na destruição da biodiversidade.
15. O processo permanente de re-divisão internacional do traba-
lho e da produção transforma muitos países do hemisfério sul,
em meros exportadores de matérias primas, inviabiliza proje-
tos de desenvolvimento nacional, que possam garantir empre-
go e distribuição de renda para suas populações. Isso vai gerar
concentração de renda, desemprego e migração para os países
do hemisfério norte.
16. O agronegócio não gera emprego, apenas desemprega subs-
tituindo a mão-de-obra por agrotóxicos e maquinas agrícolas.
No Brasil tem uma População Econômica Ativa Agrícola (PEA) de
16 milhões de trabalhadores. O agronegócio emprega apenas
74
4 milhões de trabalhadores (2 milhões de forma permanente e
dois milhões de assalariados temporários) em contraposição a
agricultura familiar dá emprego a mais de 11 milhões de traba-
lhadores. Cerca de 86% de toda mão-de-obra do campo brasi-
leiro está em unidades menores de 200 hectares e as fazendas
do agronegócio com mais de mil hectares emprega apenas 6%
de toda mão-de-obra.
17. As empresas do agro, aliadas com o capital financeiro estão
avançando também para a concentração e centralização nas
redes de distribuição de supermercados, com o oligopólio mun-
dial das redes Wal-Mart, Carrefour, Cassino, etc. Esse processo
vai destruir milhares de pequenos armazéns e comerciantes lo-
cais, gerando consequências sociais incalculáveis.
18. A agricultura industrial precisa utilizar cada vez mais hormô-
nios e antibióticos, da industria farmacêutica para a produção
em massa de animais em menor tempo, como aves, gado e su-
ínos. E isso está trazendo consequências na saúde dos animais
e na população consumidora.
19. Os grandes proprietários de terra não controlam mais o pro-
cesso de produção e as margens de lucro. Eles estão reféns das
empresas que controlam a produção e o comércio. Por isso a
maior parte do lucro fica com as empresas fora da fazenda. No
Brasil estima-se que a renda da terra absoluta é menos de 10%
da produção. Para compensar essa apropriação de sua taxa de
lucro, os capitalistas do agro aumentam a exploração dos tra-
balhadores assalariados, impõem o trabalho sazonal, temporá-
rio, com emprego apenas alguns meses por ano. E em diversos
países tem ressurgido formas de trabalho análogas ao traba-
lho escravo de ou de super-exploração, em que os salários não
são suficientes para sua reprodução humana e ficam sempre
devendo aos “patrões”! Aumentam também a exploração do
trabalho feminino e infantil, sobretudo nos períodos de colhei-
ta de produtos que exigem muita mão-de-obra, estimulando a
migração de trabalhadores temporários, sem lhes garantir ne-
nhum direito social.
20. No modelo de dominação do capital sobre a agricultura não
há alternativas de emprego e renda para a juventude. E isso é

75
uma enorme contradição, pois se um setor produtivo não con-
tar com a juventude, não terá futuro.
21. O modelo do agronegócio é totalmente subsidiado pela so-
ciedade através dos incentivos fiscais, crédito subsidiado e
isenção de impostos para exportação. E mesmo assim os lati-
fundiários sonegam o FUNRURAL para a previdência (a dívida
atual é maior do que 12 bilhões de reais) e deixam de saldar
suas dívidas nos bancos públicos, para forçar renegociações
vergonhosas.
22. Seria possível mobilizar mais de 10 milhões de hectares de
terra para reforma agrária, apenas recolhendo dívidas dos la-
tifundiários aos cofres públicos, que já percorreram todas as
instâncias judiciais.
23. Imensas regiões do interior dos países estão ficando desabi-
tadas, com a prática de uma agricultura sem gente! Como se a
única forma de sobrevivência humana fosse a aglomeração da
população nas grandes cidades, aonde as condições de sobre-
vivência são cada vez piores. O exemplo mais ilustrativo dessa
contradição, é que hoje nos Estados Unidos a população car-
cerária é maior do que a população que vive no meio rural. E
o fato também se reproduz em alguns municípios brasileiros,
como Ribeirão Preto-SP.
24.O modelo de produção do agronegócio concentra a renda em
poucas empresas e proprietários, que não vivem na região das
fazendas, e assim a riqueza produzida não gera investimentos
e desenvolvimento locais e nem garante melhorias nas condi-
ções de vida da população.

IV- Nosso futuro para a agricultura depende de


um programa alternativo e popular baseado,
em síntese:
1. Produzir alimentos saudáveis, sem agrotóxicos.
2. Proteger a água potável como alimento acessível a todo povo.
3. Proteger a natureza, garantindo o reflorestamento com árvo-

76
res nativas e frutíferas. Proteger o meio ambiente em geral.
4. Desenvolver a agroecologia como técnicas de aumento da pro-
dutividade do trabalho e das áreas em equilíbrio com a natureza.
5. Desenvolvimento da cooperação agrícola e da agroindustria
cooperativada.
6. Desenvolvimento dos bio-insumos (defensivos biológicos e
fertilizantes orgânicos)
7. Desenvolvimento de energias renovaveis (solar, eólica e hi-
drelétrica)
8. Atuar nos mercados locais, institucionais e sociais. Buscando a
soberania alimentar de cada região.
9. Organizar a produção agrícola de forma a garantir trabalho e
renda para a população do meio rural, em especial mulheres e
jovens.
10. Universalizar o acesso à educação em todos os níveis e ao co-
nhecimento no meio rural.
11. Desenvolvimento de pesquisas e tecnologias adequadas e ne-
cessárias à produção de alimentos, em escala pela agricultura
familiar.
12. Desenvolvimento de maquinas agricolas adequadas as unida-
des de produçao familiares.

77
78
Anexo: concentração dos 10
maiores grupos empresariais 9.
brasileiros- 2020
— Revista Valor Econômico* —

* Publicado na revista Valor Econômico, dezembro de 2021.

79
80
81

Você também pode gostar