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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS


PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Reitor: Dirceu de Mello

Editora da PUC-SP
Direção: Miguel Wady Chaia

Conselho Editorial
Ana Maria Rapassi
Cibele Isaac Saad Rodrigues
Dino Preti
Dirceu de Mello (Presidente)
Marcelo da Rocha
Marcelo Figueiredo
Maria do Carmo Guedes
Maria Eliza Mazzilli Pereira
Maura Pardini Bicudo Véras
Onésimo de Oliveira Cardoso
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL
E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

Julio Manuel Pires


Iraci del Nero da Costa
organizadores

São Paulo
2010
Copyright © 2010, Julio Manuel Pires e Iraci del Nero da Costa. Foi feito o depósito legal.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri/PUC-SP

O capital escravista-mercantil e a escravidão nas Américas / orgs. Julio Manuel Pires, Iraci
del Nero da Costa. - São Paulo : EDUC : FAPESP, 2010.
226 p. ; 23 cm.
Contém dados biográficos
ISBN 978-85-283-0417-6

1. América – Colonização. 2. Capital (Economia). 3. Escravidão – Aspectos econômi-


cos – América. 4. Produção (Teoria econômica). 1. Pires, Julio Manuel. II. Costa, Iraci del
Nero da.
CDD 970
326.097
332
338.5

Direção
Miguel Wady Chaia
Produção Editorial
Sonia Montone
Preparação e Revisão
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Editoração Eletrônica
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Site: www.pucsp.br/educ
SUMáRIO

1. Introdução nn 7
Julio Manuel Pires
Iraci del Nero da Costa

2. O capital escravista-mercantil nn 13
Julio Manuel Pires
Iraci del Nero da Costa

3. Causas imediatas da superação do capital escravista-mercantil nn 35


Julio Manuel Pires
Iraci del Nero da Costa

4. Sobre a não existência de modos de produção coloniais nn 57


Iraci del Nero da Costa

5. A formação das economias periféricas sob a ótica da história


econômica geral nn 61
Iraci del Nero da Costa

6. Algumas opiniões sobre a categoria “modo de produção” nn 67


Iraci del Nero da Costa

7. Repensando o modelo interpretativo de Caio Prado Júnior nn 77


Iraci del Nero da Costa

8. Entre o sentido da colonização e o arcaísmo como projeto:


a superação de um dilema através do conceito de capital
escravista-mercantil nn 115
João Paulo A. de Souza

9. Capital e colonização: a constituição da periferia do sistema


capitalista mundial nn 155
Rodrigo Alves Teixeira

10. Sobre os autores nn 225


1. INTRODUÇÃO
Julio Manuel Pires
Iraci del Nero da Costa

Em termos genéricos, pode-se admitir que os estudos históricos se


desenvolvem em três planos ou patamares distintos. Um primeiro plano
intimamente vinculado ao factual, muito próximo do empírico. Aqui se
enquadram, por exemplo, os estudos até hoje desenvolvidos no âmbito
da demografia histórica. Partindo de um conjunto de fontes documentais,
tenta-se extrair delas o máximo de informações ou define-se o escopo dos
trabalhos com base em alguns problemas específicos (família, agregados,
posse de escravos, formas de acumulação, etc.). Um patamar superior a
esse primeiro é aquele no qual o objetivo perseguido é a busca de padrões,
de regularidades ou a procura de causas comuns a eventuais “excepciona-
lidades”; são exemplos desse nível os estudos concernentes à estrutura de
posse de escravos segundo os ramos de atividades dos seus proprietários,
à American Civil War e ao Quilombo de Palmares. Por fim, uma terceira
categoria englobaria os trabalhos votados ao estabelecimento de uma visão
teórica de conjunto de uma dada sociedade e referente à formação de uma
determinada população. Nosso empenho situa-se neste último plano, pois
buscamos, sobretudo, formular uma solução teórica capaz de dar conta da
constituição da economia colonial que se estabeleceu nas áreas escravistas
das Américas.
Com base na proposição do conceito de capital escravista-mercantil,
propomo-nos a apresentar uma contribuição teórica original para o enten-
dimento do processo de constituição e consolidação da periferia do sistema
capitalista que se desenvolvia na Europa ocidental. A articulação produ-
tiva entre o mundo colonial e a economia central europeia, bem como a
acumulação de capital proporcionada pelo capital escravista-mercantil

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

mostraram-se altamente relevantes no processo de acumulação primi-


tiva do capital, ao mesmo tempo em que suas condições de existência
estavam intimamente relacionadas ao desenvolvimento do capitalismo em
nível mundial. Tal contribuição, embora se fixe no âmbito do pensamento
marxista e se ocupe centralmente da escravidão brasileira, pode ser esten-
dida para as três Américas.
Com respeito à formação do capitalismo na América, existem várias
correntes divergentes no campo marxista. No caso do Brasil, a principal
visão é devida a Caio Prado Júnior, retomada de forma distinta por Jacob
Gorender; as virtudes e as limitações das abordagens teóricas desses dois
autores serão analisadas no segundo capítulo deste volume. Ainda no
campo marxista, Fragoso (1992) e Fragoso e Florentino (2001) também
procuraram formular uma perspectiva alternativa para analisar essa
questão; no entanto, sua solução, baseada no conceito de “formação social” –
a qual não é devidamente explicitada em seu trabalho –, esquiva-se à
discussão a respeito do uso da categoria modo de produção, a qual seria
fundamental, uma vez que não se pode falar em formação social sem
considerar explicitamente a categoria modo de produção. Igualmente insa-
tisfatória revelou-se a perspectiva sugerida por Ciro Flamarion Cardoso
(1975) sobre a existência de um modo de produção dependente, pois um
modo de produção só se define como tal se for independente.
Por conseguinte, infelizmente, nenhuma das aludidas proposições
foi capaz de enquadrar-se plenamente, em termos teórico-metodológicos,
no âmbito do pensamento marxista. Nesta coletânea, apresentamos nossa
proposta de solução para tal questão, qual seja: elaborar um quadro teórico
explicativo do escravismo moderno como se desenvolveu nas Américas
que esteja em absoluta consonância com as categorias embasadoras do
pensamento de Karl Marx. Para tanto, servimo-nos não só das evidências
empíricas e da obra de Marx, mas, também, da maneira de pensar que
pode ser atribuída a G. F. Hegel.
Destarte, votamos o segundo capítulo à apresentação do assim
chamado “capital escravista-mercantil”, uma específica forma de existência

8
INTRODUÇÃO

do capital ainda não contemplada pela literatura especializada. Explicitam-


se, ademais, suas limitações lógicas e históricas, seus pressupostos e os
resultados de sua ação propondo-se, ademais, a fórmula do capital escra-
vista-mercantil e explicitando-se seu funcionamento.
Já no tópico seguinte, depois de identificarmos, no plano hipotético,
as condições necessárias à superação da forma capital escravista-mercantil,
apontamos as causas históricas imediatas das quais resultou, para distintas
áreas das Américas, a aludida superação.
Nos capítulos quatro e cinco vão anotados os argumentos embasa-
dores da opinião do autor contrários às formulações teóricas que visam a
estabelecer pretensos “modos de produção coloniais”. Além disso, são rela-
cionados argumentos e opiniões segundo os quais os modos de produção
se distinguem por sua gênese, estrutura e funcionamento, não sendo,
ademais, homólogos nem isonômicos. O autor postula, ainda, a não exis-
tência de modos de produção coloniais, ser impossível a formulação de
uma teoria geral das revoluções e que a “consciência” joga papéis distintos
na gênese dos modos de produção escravista, feudal e capitalista vis-à-vis
o papel por ela desempenhado na gênese do modo de produção socialista.
No item destinado a repensar algumas das postulações centrais
de Caio Prado Júnior, o autor apresenta análises e propostas alternativas
ou complementares ao pensamento pradiano. Num primeiro momento,
depois de apresentados os argumentos básicos do autor em questão, são
apreciados alguns elementos de caráter empírico que parecem bastantes
para justificar uma qualificação de tais argumentos. A seguir são contem-
plados, basicamente, três aspectos de nosso evolver histórico, quais sejam:
o desenvolvimento de uma parcela populacional desvinculada das ativi-
dades imediatamente voltadas à economia de exportação, a expressiva
presença quantitativa, em nossa sociedade, dos não proprietários de
escravos e, por fim, a estrutura de posse de cativos que vigorou no correr
do tempo, estrutura essa marcada pela existência de um grande número
de pequenos escravistas. Com base em tais evidências reunidas, postula-
se a necessidade de se efetuar a superação do modelo de Caio Prado, vale

9
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

dizer, é preciso ir além dele, sem deixar de lado suas imensas contribui-
ções ao entendimento de nossa história socioeconômica; e isso terá de ser
realizado em três níveis: no metodológico, no teórico e no plano da reali-
dade concreta. É justamente à análise de proposições concernentes aos
três níveis acima referidos que vai dedicada a última parte do capítulo, em
que é trazida à discussão uma nova forma de capital, o capital escravista-
mercantil, à qual se deverá a base estrutural mestra da economia brasileira;
esboça-se, ademais, uma categorização alternativa à de Caio Prado quanto
a nossas atividades produtivas mais relevantes.
No capítulo subsequente, João Paulo A. de Souza propõe que a acei-
tação da existência do capital escravista-mercantil permite a superação
da dicotomia entre o modelo interpretativo do sentido da colonização,
proposto originalmente por Caio Prado Júnior, e o modelo do arcaísmo
como projeto, proposto por Fragoso e Florentino (2001). O primeiro, por
retratar a sociedade colonial como uma projeção imediata da expansão
comercial europeia, tem enfrentado dificuldades em acomodar as recentes
evidências empíricas de que a economia colonial podia apresentar uma
relativa autonomia, realizando acumulação endógena. O segundo, ao
tentar explicitamente acomodar essas evidências, acaba recusando a exis-
tência de um sentido da colonização tal como originalmente formulado.
Para explicitar a forma como o modelo do capital escravista-mercantil
supera esse dilema, é apresentada uma analogia entre o capital escravista-
mercantil e o desenvolvimento da teoria do valor de Marx em O Capital.
Apresenta-se, por fim, o estudo desenvolvido por Rodrigo Alves
Teixeira, no qual são perseguidos dois objetivos. Em primeiro lugar, discutir
as linhas principais da historiografia sobre o período colonial brasileiro da
perspectiva dos seus fundamentos metodológicos. Essa análise crítica da
historiografia parte de uma leitura de Marx que resgata a herança da dialé-
tica hegeliana na compreensão da concepção marxiana da História. Em
segundo lugar, a partir da defesa de um dos modelos propostos no debate
concernente à formação do mundo colonial, qual seja, o baseado na cate-
goria capital escravista-mercantil como uma particular forma do capital

10
INTRODUÇÃO

que existiu no período colonial, o autor busca avançar na compreensão


desse período argumentando que ele faz parte de um processo histórico de
consolidação do capitalismo enquanto um sistema mundial, processo esse
que tem o capital como um sujeito automático. Defende, portanto, a tese
segundo a qual a universalização da forma capital prescinde da generali-
zação das relações burguesas “típicas” para todo o globo, e que o sistema
colonial não deve ser interpretado como um outro modo de produção,
nem como sendo apenas uma peça da engrenagem da acumulação primi-
tiva do capital. O “sentido da colonização” representa, portanto, a consti-
tuição da periferia do sistema capitalista mundial.

Referências bibliográficas

CARDOSO, Ciro Flamarion S. (1975). “Severo Martínez Peláez y el carácter del


régimen colonial”. In: ASSADOURIAN, Carlos Sempat et alii. Modos de
producción en América Latina. 3 ed. Córdoba, Cuadernos de Pasado y
Presente e Buenos Aires, Siglo XXI.
FRAGOSO, João Luís Ribeiro (1992). Homens de grossa aventura: acumulação e
hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro,
Arquivo Nacional.
FRAGOSO, João  e FLORENTINO, Manolo (2001). O Arcaísmo como Projeto:
mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia
colonial tardia. Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1840. 4 ed. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira.

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2. O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL
Julio Manuel Pires
Iraci del Nero da Costa

1. Uma forma específica de capital

Como sabido, Marx considerou, explícita e largamente, três formas


de existência do capital:

T
D – M – D’; D – D’ e D – M < ... P ... M’ – D’.
Mp

A primeira corresponde ao capital comercial e assim foi caracteri-


zada: “el comércio e incluso el capital comercial son anteriores al régimen
de producción capitalista y constituyen en realidad la modalidad livre del
capital más antigua de que nos habla la história” (Marx, 1965, v. III, p. 314).
A segunda diz respeito ao capital usurário (ou de empréstimo) e também
foi vista como forma autônoma e independente:

El capital a interés o capital usurário, para emplear el término arcaico, figura


con su hermano gemelo, el capital comercial, entre las formas antediluvianas
del capital que preceden desde muy lejos al régimen de producción capitalista
y con las que nos encontramos en las más diversas formaciones económicas
de la sociedad. (Ibid., v. III, p. 555)
La usura, como el comercio, explota un régimen de producción dado, no lo
crea, se comporta exteriormente ante el. (Ibid., v. III, p. 569)

A última concerne ao capital industrial e é própria do modo de


produção capitalista:

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

Si el dinero puede invertirse en esta forma es, sencillamente, porque la fuerza


de trabajo se halla separada de sus medios de producción (incluyendo los
medios de vida, como medios de producción de la propia fuerza de trabajo) y
porque este divorcio solo puede remediarse de um modo: vendiendo la fuerza
de trabajo al poseedor de los medios de producción. (1964, v. II, p. 33)

A nosso ver, além das três acima arroladas, Marx sugeriu uma quarta
forma de existência do capital. Assim, ao tratar dos efeitos decorrentes do
desenvolvimento do comércio e do capital comercial, afirmou:

En el mundo antiguo, los efectos del comercio y el desarrollo del capital


comercial se traducen siempre en la economia esclavista; y según el punto de
partida, conducen simplesmente a la transformación de un sistema esclavista
patriarcal, encaminado a la producción de medios directos de subsistencia, en
un sistema orientado hacia la producción de plusvalía. (Ibid., v. III, p. 321)

Estaríamos, pois, em face da exploração de mais-valia nos quadros


do escravismo antigo. Tal produção de mais-valia far-se-ia presente, igual-
mente, em áreas do Novo Mundo quando ainda imersas no escravismo:

Por eso en los Estados norteamericanos del Sur el trabajo de los negros
conservó cierto suave carácter patriarcal mientras la producción se
circunscribía sustancialmente a las propias necesidades. Pero, tan pronto
como la exportación de algodón pasó a ser un resorte vital para aquellos
Estados, la explotación intensiva del negro se convirtió en factor de un
sistema calculado y calculador, llegando a darse casos de agotarse en siete
anos de trabajo la vida del trabajador. Ahora, ya no se trataba de arrancarle
una cierta cantidad de productos útiles. Ahora, todo giraba en torno a la
producción de plusvalia por la plusvalia misma. (1964, v. I, pp. 181-182)

Trata-se, pois, da mesma forma de existência do capital, agora a


viger no âmbito do escravismo moderno, também identificado como
escravismo colonial.1 Enfim, mais-valia, valor que se valoriza, portanto

1 Sobre o termo escravismo colonial, veja-se Gorender (1992, p. 157 ss). Diga-se, ademais,
que, embora não tomemos o escravismo colonial como um modo de produção, como o
fez Gorender, concordamos em larga medida com suas percucientes análises.

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

capital; porém, uma forma específica de existência do capital, pois calcada


na produção de mercadorias com base no escravismo.2 Neste trabalho,
como avançado, consideramos essa particular forma de capital, a qual
denominamos escravista-mercantil, visando a estabelecer algumas de suas
principais características.

2. Limitações lógicas e históricas

Ao capital escravista-mercantil impõem-se limitações de caráter


lógico e histórico, as quais devem ser tomadas como facetas de um todo
único e solidário, vale dizer, devem ser entendidas, a depender das condi-
ções concretas, como lógico-históricas ou histórico-lógicas.

2 Acreditamos que Barros de Castro tenha chegado muito próximo do estabelecimento


da categoria capital escravista-mercantil. Sem comprometê-lo com nossa formulação,
permitimo-nos entrevê-la na citação que segue: “O processo de trabalho num engenho
escravista do século XVI é similar ao de uma grande lavoura (plantation) capitalista
contemporânea. Além disto, mais se assemelha ao processo de trabalho numa grande
fábrica inglesa do início do século XIX, que ao (processo de trabalho) característico
dos séculos XVI e XVII na Europa. Consequentemente, é lícito afirmar que, inserido
no processo de produção material, o escravo constitui uma antecipação do moderno
proletário. Por outro lado, o senhor do engenho encontra-se absorvido numa engre-
nagem que determina o seu comportamento, em função de ‘necessidades’ que nada têm
a ver com as suas próprias vontades e necessidades pessoais. (...) Estas características
indicam, em suma, que o moderno escravismo tem importantes traços em comum com
o capitalismo e, mais, que estas características pertencem à sua conformação interior.
Não é, pois, necessário recorrer às conexões ‘externas’ – e muito menos a um simples
‘critério de mercado’ – para deixar assinaladas as fortes similitudes existentes entre
o moderno escravismo e o capitalismo – proximidade esta que pode ainda ser real-
çada, ao lembrarmos que a organização produtiva aqui focalizada surge associada aos
primórdios do capitalismo, cresce e se multiplica acoplada a ele” (grifos de Castro, 1980,
pp. 92-93). Gorender, por seu turno, embora tenha observado a presença do capital no
âmbito do escravismo colonial, não chegou às mesmas conclusões a que fomos levados;
isto se deveu, a nosso ver, ao fato de esse autor haver privilegiado a categoria modo de
produção escravista colonial: “Dado seu caráter mercantil, o escravismo colonial encerra
categorias como as de mercadoria, dinheiro e capital – categorias adaptadas, todavia,
a uma estrutura essencialmente distinta daquela inerente ao modo de produção capi-
talista. O escravismo colonial possui leis específicas, cuja atuação não teria qualquer
razão de ser sob a vigência do capitalismo” (1983, p. 13).

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

No passado mais longínquo, tal forma apresentou-se como exceção


no âmbito do escravismo patriarcal inclusivo. Segundo Marx:

Sin embargo, es evidente que en aquellas sociedades económicas en que


no predomina el valor de cambio, sino el valor de uso del producto, el
trabajo excedente se halla circunscrito a un sector más o menos amplio de
necesidades, sin que del carácter mismo de la producción brote un hambre
insaciable de trabajo excedente. Por eso donde en la Antiguedad se revela el
más espantoso trabajo sobrante es allí donde se trata de producir el valor de
cambio en su forma específica de dinero, es decir, en la producción de oro y
plata. En estas ramas, la forma oficial del trabajo excedente son los trabajos
forzados llevados hasta la muerte. [...] Sin embargo, en el mundo antiguo esto
no pasa de ser excepcional. (Grifos de Marx, 1964, v. I, p. 181)

A nosso ver, tal restrição de caráter lógico-histórico foi perfeita-


mente elucidada por Gorender:

O impasse da escravidão romana decorreu da impossibilidade de um modo


de produção escravista patriarcal se converter em modo de produção
escravista mercantil, nas condições do mundo antigo. [...] Roma não podia
implantar uma economia exportadora em seu próprio território, nem nos
territórios das províncias conquistadas. A única exceção, frisada por Marx,
foi a Sicília, onde latifúndios escravistas cultivavam trigo para suprimento da
Metrópole. [...] A fim de que se convertesse em escravismo mercantil domi-
nante, seria preciso que a produção escravista se acoplasse a um mercado
externo dotado de proporções que as cidades antigas ficaram longíssimo de
proporcionar. [...] Roma estava impedida de fazer-se colônia econômica de
si mesma e engendrar o escravismo colonial. Daí o impasse histórico inso-
lúvel, traduzido na estagnação tecnológica e no encarecimento crescente da
produção por meio de escravos, cada vez menos capaz de constituir a base do
Estado imperial. (Grifos de Gorender, 1992, pp. 160-161)

Conquanto pudéssemos admitir, hipoteticamente, a existência de


polos escravistas autônomos a produzir mercadorias e a comerciar entre
si – e essa seria a única maneira de se superar a limitação de ordem lógica
aqui exposta –, devemos renunciar a tal conjectura, pois, como sabido, o
escravismo antigo é que se viu superado sem conhecer o arranjo hipotético

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

aqui aventado. No que tange às áreas do mundo moderno nas quais se deu
a revivescência do escravismo, impõe-se restrição de ordem histórico-
lógica, pois agora a existência do capital escravista-mercantil viu-se condi-
cionada pela ampliação dos mercados mundiais ocorrida na fase final de
transição do feudalismo ao capitalismo. A emergência e o amadurecimento
desse modo de produção definem-se, pois, como o pano de fundo no qual
se deu o alargamento e a consolidação do capital escravista-mercantil
nos séculos XVI e seguintes. Por seu turno, o estabelecimento do capita-
lismo como modo de produção dominante na Europa ocidental acarretou
a subordinação daquela forma de existência do capital ao capitalismo. O
evolver deste último, vale dizer o processo de desenvolvimento do capital
industrial (que deitava raízes, como é próprio de sua natureza, em todo o
planeta) e da sociedade burguesa impõe, ademais, um limite absoluto ao
capital escravista-mercantil, o qual conheceu sua superação nos marcos e
como decorrência daquele desenvolvimento. Assim, para Marx, à medida
que o capital industrial

[...] se va apoderando de la producción social, revoluciona la técnica y


la organización social del proceso de trabajo, y con ellas el tipo histórico-
económico de sociedad. Las otras modalidades de capital que aparecieron
antes de ésta en el seno de estados sociales de producción pretéritos o
condenados a morir, no sólo se subordinan a él y se modifican con arreglo a
él en el mecanismo de sus funciones, sino que ya sólo se mueven sobre la base
de aquél, y por tanto viven y mueren, se mantienen y desaparecen con este
sistema que les sirve de base. (1964, v. II, p. 51)

Embora o autor estivesse aqui a se referir, provavelmente, ao capital


comercial e ao capital usurário, entendemos que tais considerações se
mostram plenamente aplicáveis ao caso do capital escravista-mercantil.
Ademais, parece-nos que as mesmas lançam luz sobre referências explícitas
efetuadas por Marx com respeito ao escravismo moderno. Vejamo-las:

La esclavitud de los negros – una esclavitud puramente industrial –


que desaparece sin más y es incompatible con el desarrolo de la sociedad
burguesa, presupone la existencia de tal sociedad: si junto a esa esclavitud

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

no existieran otros estados libres con trabajo asalariado, todas las condiciones
sociales en los estados esclavistas asumirían formas precivilizadas. (Grifos de
Marx, 1980, p. 159)

Na mesma obra, o autor retoma o tema:

Esto no excluye que dentro del sistema burgués de producción sea posible la
esclavitud en tal o cual punto. Pero la misma sólo es posible porque no existe
en otros puntos, y se presenta como una anomalía frente al sistema burgués
mismo. (Ibid, p. 425)

O mesmo tom é empregado quando trata dos proprietários


escravistas:

El que los dueños de plantaciones en América no sólo los llamemos ahora


capitalistas, sino que lo sean, se basa en el hecho que ellos existen como una
anomalía dentro de un mercado mundial basado en el trabajo libre. (Grifo
de Marx, 1980, p. 476)

Assim, no mundo moderno, a produção de mercadorias alicerçada


na mão de obra escrava só se tornou possível por se tratar de produção
votada, essencialmente, para a exportação, a qual, por seu turno, destinava-
se, sobretudo, aos mercados da Europa, onde chegava ao seu termo a tran-
sição do feudalismo ao capitalismo, que passava a se afirmar como modo
de produção dominante. Três outros pontos devem, ainda, ser fixados:
a) a escravidão localizada não é incompatível com o modo de produção
capitalista, mas sim com o desenvolvimento do capitalismo e, portanto,
irremediavelmente fadada ao desaparecimento; b) estamos em face de um
escravismo produtor de mercadorias (escravidão puramente industrial) e
dependente dos mercados mundiais aos quais deve sua existência;3 c) os
escravistas são capitalistas, vale dizer, acrescentamos nós, personificam o
capital escravista-mercantil.

3 Com respeito a esse ponto também podemos contar com a esclarecedora interpre-
tação de Gorender: “O escravismo colonial só possibilita um mercado interno estreito,
pouco elástico, inadequado aos fins da produção mercantil, que tende à especialização.

18
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

Das considerações expendidas na abertura deste tópico, e das


conclusões acima arroladas, inferimos, imediatamente, que a forma capital
escravista-mercantil não pode existir autônoma e independentemente,
pois sua existência subordina-se, na Antiguidade, ao modo de produção
escravista e, em passado mais recente, ao modo de produção capitalista.
Ademais, sua subsistência também se revela condicionada e subordinada
a tais modos de produção. Como no caso do capital comercial e do capital
usurário, estamos em face de uma forma de capital que não traz em si as
condições de sua existência e de sua subsistência. Aquelas duas primeiras,
justamente por se mostrarem livres, autônomas e independentes com
respeito a um específico modo de produção, definem-se como dependentes
de modos de produção que para as mesmas se revelam como dados e, nesta
medida, cada uma de tais formas é incapaz de criar as condições necessá-
rias à sua existência e subsistência, operando, pois, de modo parasitário
com respeito aos aludidos modos de produção; repisemos aqui a afirmação
de Marx: “La usura, como el comercio, explota un régimen de producción
dado, no lo crea, se comporta exteriormente ante él” (1965, v. III, p. 569).
Como evidenciado, o capital escravista-mercantil, por não trazer implícita
a plasticidade do comercial e usurário, é imediatamente dependente de
uma específica relação de produção (a escravista) e igualmente dependente

Mas esse problema estava de antemão resolvido, pois sua solução constituía uma das
premissas da criação da plantagem colonial. A produção desta última se escoaria no
mercado externo já existente e em ampliação, com uma demanda crescente de gêneros
tropicais – o mercado da Europa (grifo de Gorender, 1992, p. 163). Mais adiante, acres-
centa o autor: “Estavam criadas as condições objetivas para que o escravismo mercantil
assumisse a única forma em que pode se desenvolver com amplitude: a forma de escra-
vismo colonial, isto é, de um modo de produção dependente do mercado metropoli-
tano. [...] O escravismo colonial não comportava a mercantilização total, pois subsiste
nele um setor de economia natural, porém o comércio intensificado não exerce efeito
desagregador na sua estrutura. O escravismo colonial nasce e se desenvolve com o
mercado como sua atmosfera vital. A explicação já se contém no exposto acima: um
modo de produção baseado na escravidão é compatível com a finalidade mercantil se
estiver conjugado a um mercado externo apropriado. A existência prévia do mercado
externo constitui, portanto, premissa incondicional” (grifos de Gorender, 1992,
pp. 163-164).

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

de específicos modos de produção (o escravista e o capitalista). Assim,


embora não se defina como parasitária, porque produtora de mercadorias,
tal forma não traz em si seus pressupostos, não sendo capaz, portanto, de,
per se, pô-los ou repô-los; vale dizer, as condições objetivas de sua exis-
tência e subsistência lhe são externas e dadas pelos modos de produção
acima assinalados. Logo, a forma capital escravista-mercantil é incapaz
de dar embasamento a um modo de produção que lhe seja próprio e que
dela decorra. Como sabido, o mesmo não ocorre com o capital industrial
quanto à referida capacidade, à qual Marx emprestou tratamento explícito
e minudente.
Eis, pois, delineadas, algumas das principais características da forma
de capital em epígrafe, outras mais seguem abaixo.

3. Um ponto a discutir

A nosso juízo, existem razões suficientes e plenamente aceitáveis


a explicar o fato de Marx não se haver detido mais demoradamente no
estudo do escravismo antigo e, em particular, do moderno.
Interessado, essencialmente, em analisar a lógica do capital indus-
trial e em estabelecer os caminhos teóricos e práticos aptos a concretizar
a superação do modo de produção capitalista, o autor desenvolveu um
método em face do qual se tornou dispensável o estudo do escravismo
antigo:

[...] nuestro método pone de manifiesto los puntos en los que tiene que
introducirse el análisis histórico, o en los cuales la economía burguesa como
mera forma histórica del proceso de producción apunta más allá de sí misma
a los precedentes modos de producción históricos. Para analizar las leyes de
la economía burguesa no es necesario, pues, escribir la historia real de las
relaciones de producción. Pero la correcta concepción y deducción de las
mismas, en cuanto relaciones originadas históricamente, conduce siempre
a primeras ecuaciones – como los números empíricos por ejemplo en las
ciencias naturales – que apuntan a un pasado que yace por detrás de este

20
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

sistema. Tales indícios, conjuntamente con la concepción certera del presente,


brindan también la clave para la comprensión del pasado; un trabajo aparte,
que confiamos en poder abordar alguna vez. (Grifo de Marx, 1980, p. 422)

Infelizmente, como sabemos, o autor não pôde efetuar o trabalho


prometido. Já a consideração pormenorizada do escravismo moderno
seria ociosa na medida em que se trata, tão somente, de “una anomalía
dentro de un mercado mundial basado en el trabajo libre”, anomalia esta
“que desaparece sin más y es incompatible con el desarrollo de la sociedad
burguesa” (cf. citações acima).
Tais argumentos poderiam ser avocados para explicar o fato de o
autor não haver contemplado, explicitamente, a forma capital escravista-
mercantil; ademais, também justificariam a assertiva: “El capital industrial
es la única forma de existencia del capital en que es función de éste no sólo
la apropiación de la plusvalía o del producto excedente, sino también su
creación” (Marx, 1964, v. II, p. 51). A nosso ver, o capital industrial não é a
única forma de capital a cumprir tal papel, pois entendemos que tal função
também é desempenhada pelo capital escravista-mercantil, o qual, não
obstante, não deixa, por isto, de ser dependente e subordinado ao modo de
produção capitalista inclusivo.
Assim, no caso da colônia lusa em terras americanas, a criação da
mais-valia decorria da ação do capital escravista-mercantil, vale dizer,
embora isolado dos mercados externos e, portanto, da órbita da circulação –
e isso discutiremos no próximo tópico –, a esfera da produção interna
colocava-se inteiramente em sua órbita e era dominada pelo capital escra-
vista-mercantil. Tal dominância, que não deve ser entendida em termos
absolutos, estendia-se à produção de mercadorias (exportáveis ou não), de
valores de uso e de serviços, abarcando também a alocação de fatores e
recursos e espraiando-se pela circulação interna. Afetava, ainda, a geração e
a distribuição da renda, a escala da produção, o tamanho das plantas insta-
ladas, as técnicas utilizadas e os elementos afetos à qualificação da mão
de obra. Enfim, sua presença condicionava toda a economia colonial, bem
como as relações estabelecidas no processo de produção, projetando-se,

21
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

ademais, na vida social e política da colônia. Disso deve-se inferir que os


segmentos sociais e econômicos não vinculados imediatamente ao escra-
vismo também se viam influenciados e, em larga medida, determinados,
sobretudo no que tange à definição dos limites do espaço econômico em
que lhes era dado atuar, pelo capital escravista-mercantil.
Parece-nos ocioso lembrar que é justamente em tamanha domi-
nância que se assenta o engano daqueles que pensam encontrar aqui o
assim chamado “escravismo capitalista” ou propugnam pela existência de
um pretenso modo de produção colonial.

4. A presença do capital comercial

Tanto no passado mais distante como no mais recente, o capital


comercial desempenhou papel crucial na gênese das condições objetivas
que tornaram possível a constituição e a subsistência do capital escravista-
mercantil. Quanto ao período mais próximo, e com respeito ao Brasil,
cumpre-nos tecer algumas observações adicionais.
Como sabemos, seria difícil superestimar o papel do capital comer-
cial (aliado, no caso, ao capital de empréstimo) quanto ao processo
de ocupação, povoamento e valorização das terras que couberam aos
portugueses no Novo Mundo; assim, a colônia pode ser vista como uma
criação do consórcio estabelecido entre o poder régio e o capital comer-
cial. Ao primeiro, além da estruturação e do aparelhamento das instâncias
burocráticas e administrativas, coube garantir o acesso à terra – meio de
produção básico – aos que demonstrassem deter os cabedais necessários
para explorá-la em benefício dos interesses metropolitanos. A geração
das demais condições materiais que embasaram o aludido processo ficou,
sabemo-lo à farta, a cargo do capital comercial. Destarte, este último encar-
regou-se do financiamento do empreendimento agrícola no Brasil, do
fornecimento de mão de obra africana e bens de consumo e de produção
oriundos da Europa, bem como monopolizou a colocação da produção
colonial nos mercados mundiais. É nessa medida que a colônia pode ser

22
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

vista como um mero apêndice da economia europeia a funcionar como


um enclave em permanente expansão e que flutua sobre o nada, pois o é
de si e em si mesmo. É esse, pois, o locus no qual se desenvolve o capital
escravista-mercantil, o qual só podia se comunicar com o mundo que lhe
era externo mediante a intermediação do capital comercial. Questão essa
fixada com inteira propriedade por Gorender:

O capital mercantil em expansão se incumbiria da função de intermediário


entre os extremos, autonomizando a esfera da circulação diante das fontes
da produção, sem determinar o caráter dado das relações de produção
vigentes em cada um dos extremos. (1992, p. 163)

O arranjo assim constituído, no qual o capital comercial funcionava


como interface entre a colônia e os mercados externos, acarretou pelo
menos quatro consequências que marcaram indelevelmente nossa história
e nossa historiografia. Em primeiro, dele derivou o “sentido da coloni-
zação” como caracterizado por Caio Prado Júnior:

No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a coloni-


zação dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais
completa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que
ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem
em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colo-
nização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os
elementos fundamentais tanto no econômico como no social, da formação
e evolução histórica dos trópicos americanos. [...] Se vamos à essência da
nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer
açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois,
algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que
isto. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem
atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio,
que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá
naquele sentido: a estrutura, bem como as atividades do país. Virá o branco
europeu para especular, realizar um negócio; inverterá seus cabedais
e recrutará a mão de obra que precisa: indígenas ou negros importados.
Com tais elementos, articulados numa organização puramente produtora,

23
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

industrial, se constituirá a colônia brasileira. Este início, cujo caráter se


manterá dominante através dos três séculos que vão até o momento em que
ora abordamos a história brasileira, se gravará profunda e totalmente nas
feições e na vida do país. (Grifo de Prado Júnior, 1987, pp. 31-32)4

Em segundo, a preeminência do capital comercial no que tange à


articulação entre os distintos mercados permitiu a emergência e a subsis-
tência de um complexo econômico que tinha suas bases produtivas na
colônia, sua fonte básica de mão de obra na África e que contava com os
mercados europeus para a realização da produção exportável. Em terceiro,
o isolamento propiciado pelo capital comercial e pelas práticas mercanti-
listas possibilitou à economia europeia beneficiar-se dos efeitos dinâmicos
oriundos do Novo Mundo e garantiu a solidez e a robustez que informaram
o escravismo moderno, elementos esses da mais alta relevância para o pleno
funcionamento e permanência no tempo da exploração desenvolvida pelo
capital escravista-mercantil. Por fim, dado o referido isolamento, o capital
escravista-mercantil não só comportou, no âmbito de sua dominância,
a existência de articulações que iam muito além dos estreitos limites do
capital comercial, como também propiciou o surgimento de muitas de tais
articulações, as quais operavam de sorte a garantir a persistência do capital
escravista-mercantil e enriqueciam e diversificavam o quadro econômico e
social no qual se movimentavam as populações do Brasil escravista.

5. Capital escravista-mercantil:
pressupostos e resultados de sua ação

Conscientes de que nossas postulações poderão ser tomadas como


um dispensável exercício votado a “prever o passado”, aventuramo-nos

4 Deve-se notar que Caio Prado Júnior prendeu-se, sobretudo, à forma como a valori-
zação das novas terras aparece ao observador que a toma da perspectiva do comércio
externo, não levando em linha de conta a existência do capital escravista-mercantil, ao
qual, com base na exploração do trabalho escravo, cumpria, além da apropriação de
parcela substantiva da mesma, a própria criação da mais-valia.

24
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

a estabelecer os pressupostos necessários à existência e subsistência do


capital escravista-mercantil; abalançamo-nos, ademais, a identificar os
resultados imediatos de sua ação.
Destarte, a aludida forma de capital só pôde emergir porque,
concomitantemente, fizeram-se presentes as seguintes condições: a) exis-
tência prévia do escravismo e de fontes supridoras de cativos; tais fontes
apresentam-se segundo uma dupla natureza: as institucionais – poder do
Estado –, que fundamentam política e juridicamente a redução e a sujeição
de pessoas à condição de cativos, e as físicas ou biológicas, que garantem
a constituição, reposição e o eventual aumento dos plantéis; b) ausência
de alternativas, válidas do ponto de vista econômico, à utilização da mão
de obra escrava; c) existência de mercados capazes de absorverem as
mercadorias produzidas com base na exploração da mão de obra escrava;
d) indivíduos que se habilitavam, e que contaram com os recursos necessá-
rios para tanto, a fornecer mão de obra cativa mediante a captura e venda
e/ou a mera intermediação (compra e revenda); e) indivíduos que visavam
a valorizar valor com base na exploração da mão de obra escrava e aos
quais se apresentaram disponíveis os recursos necessários à mobilização de
meios de produção e de mão de obra cativa.
A conjugação de tais pressupostos, como avançado, deu ensejo ao
surgimento do capital escravista-mercantil. De sua ação decorre, imediata-
mente, a reposição de alguns daqueles supostos, agora derivados da própria
existência do capital escravista-mercantil: a) os escravistas apoderam-se de
parte substantiva da mais-valia gerada no processo de produção, vendo,
pois, realizado seu desiderato de valorizar valor; b) o escravo, trabalhador
direto, emerge na mesma condição de sujeição em que entrara no processo
produtivo. Também imediatamente, e derivando de a e b, dá-se a emer-
gência e a cristalização, no polo escravista produtor de mercadorias, de
interesses econômicos vinculados ao escravismo, fato esse que empresta
rigidez a tal sistema de exploração e atua no sentido de sua manutenção
e ampliação. Lembre-se a esta altura que não se verificaram, nos tempos
modernos, casos em que o simples crescimento vegetativo da população

25
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

cativa pertencente aos que personificavam o capital escravista-mercantil


fosse suficiente para atender suas necessidades de mão de obra escrava.5
De outra parte, o capital escravista-mercantil só podia atuar media-
tamente sobre seus outros pressupostos, não lhe sendo dado, portanto,
repô-los, pois tais pressupostos lhe eram externos e para ele definiam-
se como dados. Especificamente, referimo-nos às fontes supridoras de
escravos e aos mercados mundiais. Desses elementos dependia, como
anotado, a permanência no tempo do capital escravista-mercantil. Com
respeito ao segundo, vergamo-nos ao argumento definitivo de Gorender,
pois, assim como “Roma estava impedida de fazer-se colônia econômica de
si mesma e engendrar o escravismo colonial” (cf. citação acima), o mundo
colonial moderno não poderia fazer-se metrópole de si mesmo. Já no que
tange às aludidas fontes supridoras de mão de obra cativa, lembramos –
para evidenciar que não se está a tratar da existência de recursos materiais
necessários à compra de escravos – as palavras de Marx:

La compra y venta de esclavos es también, en quanto a su forma, compra y venta


de mercancías. Pero el dinero no podría ejercer esta función si no existiese la
esclavitud. Hay que partir de la existencia de la esclavitud, para que el dinero
pueda invertirse en comprar esclavos. En cambio, para hacer posible la esclavitud
no basta con que el comprador disponga de dinero. (1964, v. II, p. 33)

Evidencia-se palmarmente, pois, que o capital escravista-mercantil,


enquanto tal, mostra-se incapaz de prover todos os elementos necessários à
sua reprodução, não podendo, portanto, dar suporte a um específico modo
de produção. Esse mesmo argumento pode ser avocado para desquali-
ficar a opinião segundo a qual, a contar de determinado ponto de nossa

5 “Hasta en los Estados Unidos, después de que la zona intermedia entre los estados del
Norte, en que regía el sistema de trabajo asalariado, y los estados esclavistas del Sur,
se transformó en una zona de abastecimiento de esclavos, en que, por tanto, el esclavo
lanzado al mercado esclavista se convertía a su vez en elemento de la reproducción anual,
llegó un momento en que esto no bastaba y fue necesario recurrir por el mayor tiempo
posible a la trata de esclavos africanos para tener el mercado abastecido” (Marx, 1964,
v. II, p. 426).

26
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

história, cumpria à economia escravista brasileira reproduzir-se autono-


mamente. Essa tese mostra-se ainda mais equivocada se lembrarmos que
o processo de acumulação próprio do capital escravista-mercantil não o
liberava dos pressupostos que lhe eram externos, ao contrário, tornava-o
ainda mais dependente deles, pois, à medida que se dava a ampliação da
produção escravista-mercantil, maiores eram suas exigências em termos
de suprimento de cativos e de escoamento da produção efetuada. Pode-se
concluir, pois, que a constituição, no Brasil, de uma economia reflexa e
dependente não decorreu, meramente, da exploração metropolitana ou
do fato de a colônia ter sido votada ao fornecimento de produtos para o
comércio europeu, mas derivou, essencialmente, das próprias entranhas da
forma de capital cujo predomínio marcou nossa história até 1888.
De outra parte, como avançado, cremos que o surgimento e o desen-
volvimento de uma vida econômica relativamente autônoma, “voltada
para dentro”, não só se mostrava compatível com a forma capital escravista-
mercantil, mas, em larga medida, dela decorreu. Como sabemos, vários
autores já se pronunciaram sobre a questão ora aventada, não obstante, em
face das conclusões reportadas neste artigo, faz-se necessário voltarmos às
seguintes afirmações de Gorender:

A desobstrução metodológica impõe a inversão radical do enfoque: as rela-


ções de produção da economia colonial precisam ser estudadas de dentro
para fora, ao contrário do que tem sido feito, isto é, de fora para dentro
(tanto a partir da família patriarcal ou do regime jurídico da terra, quanto
a partir do mercado ou do sistema colonial). A inversão do enfoque é que
permitirá correlacionar as relações de produção às forças produtivas em
presença e elaborar a categoria de modo de produção escravista colonial na
sua determinação específica. (1992, p. 7)

Como bem diz o autor, impõe-se um novo enfoque, mas tal


mudança não deve nos levar diretamente à formulação do pretendido
modo de produção escravista colonial, pois ela passa, necessariamente, a
nosso ver, pela discussão da categoria capital escravista-mercantil e pelo
estabelecimento das consequências decorrentes de sua existência.

27
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

6. A fórmula do capital escravista-mercantil

Embora não nos escapem, os elementos de economia natural


próprios do escravismo não serão considerados aqui, isso porque nos
centraremos na fórmula do capital escravista-mercantil em seus termos
estritamente lógicos. Daí decorre, também, que não contemplaremos os
assalariados, igualmente presentes nos quadros do escravismo moderno,
bem como as pessoas livres que, por via de regra na condição de agre-
gados, mediata ou imediatamente, vinculavam-se às atividades econô-
micas desenvolvidas pelos escravistas. Assim operando, esperamos poder
estabelecer, em termos abstratos evidentemente, a fórmula própria do
capital escravista-mercantil.
Contemplada em termos os mais simples e abstratos possíveis, vale
dizer, caso consideremos tão somente os desembolsos pecuniários efetiva-
mente incorridos pelo escravista na compra, à vista, de cativos e de merca-
dorias – compreendidos aqui meios de produção e bens para consumo
destinados à manutenção da escravaria – a serem utilizados, excludente-
mente, na produção de bens destinados à comercialização, a representação
do capital escravista-mercantil deve obedecer às seguintes condições:

D2
D < Me
D1 — M < ... P ... M’ — D’
Mp

Em que:
D = capital-dinheiro.
D1 = gastos na compra de mercadorias.
D2 = gastos de aquisição do plantel.6
M = capital-mercadorias.

6 “Embora ‘empatada’ como capital-dinheiro, a inversão inicial de compra do escravo


não se encarna em nenhum elemento concreto do fundo produtivo do escravista. Dito
em outras palavras, a inversão inicial de compra do escravo não funciona como capital.
No processo real da produção escravista, esta inversão se converte em não capital. Seria
incorreto afirmar que ela é imobilizada, pois assim a incluiríamos no capital fixo.

28
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

Me = mercadorias destinadas ao sustento da escravaria.7


Mp = meios de produção.
P = capital produtivo.
M’ = capital-mercadorias, em termos concretos: mercadorias resultantes do processo
produtivo.
D’ = capital-dinheiro valorizado, ou seja: resultado da realização do preço de M’.

Sendo:
M = Me + Mp
D = D1 + D2
D’ = D1 + d
d = D2 + L sendo: d = mais-valia.
L = lucro do escravista, líquido do gasto de aquisição do plantel.8

Donde:
D’ = D1 + D2 + L

O correto é concluir que o capital-dinheiro aplicado na compra do escravo se trans-


forma em capital-esterilizado, em capital que não concorre para a produção e deixa de
ser capital” (grifos de Gorender, 1992, pp. 182-183).
7 “O escravo recebe em espécie os meios de subsistência necessários para a sua manu-
tenção e essa forma natural dos mesmos encontra-se fixada, tanto pela sua qualidade
como pelo seu volume, em valores de uso. O trabalhador livre recebe-os sob a forma
do dinheiro, do valor de troca; da forma social abstrata da riqueza. Embora o salário
não seja, de fato, mais do que a forma áurea, ou “argentada” ou cúprica ou de papel
adotado pelos meios de subsistência, em que tem incessantemente que resolver-se – e
o dinheiro opera aqui unicamente como forma evanescente do valor de troca, como
simples meio de circulação –, na imaginação (do operário) o objetivo e o resultado do
seu trabalho continuam a ser, contudo a riqueza abstrata, o valor de troca, não um valor
de uso determinado, tradicional e localmente limitado” (grifos de Marx, 1975, p. 87).
“[...] a fim de ser produtiva, a força de trabalho do escravo terá de ser usada. O trabalho
constitui o processo vivo de uso da força de trabalho. A compra do escravo simples-
mente o colocou à disposição do dono sem ainda dar a este o uso produtivo da força de
trabalho. A fim de usá-la, o plantador não poderá limitar-se ao dispêndio feito no ato
da compra, mas terá de levar a efeito um novo dispêndio: o do sustento do escravo. Este
precisará receber, dia a dia, alimentos, vestuário, abrigo, tempo de repouso, remédios
nas eventualidades de doenças, etc.” (grifos de Gorender, 1992, p. 167). “O gasto com o
sustento diário do escravo – distinto do seu preço de compra – é que poderia ser iden-
tificado com o capital variável... se permanecermos obstinados na tese de que o escra-
vismo colonial constitui uma espécie de capitalismo” (ibid., p. 182). Como já fizemos
notar, não consideramos o escravismo colonial uma “espécie de capitalismo”, mas, sim,
entendemos que no quadro do escravismo colonial dava-se a existência de uma forma
de capital: o capital escravista-mercantil.
8 “Por conseguinte, cabe-nos concluir também que a inversão inicial de compra do
escravo somente pode ser recuperada pelo escravista à custa do sobretrabalho do

29
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

Visto em termos de seus estágios, o processo cíclico do capital


escravista-mercantil não difere do apresentado por Marx (1964, v. II,
cap. I) para o capital industrial. Também em nosso caso podemos veri-
ficar a existência de três estágios bem definidos pelos quais passa o capital
escravista-mercantil.
No primeiro estágio,

D2
D < Me
D1 — M <
Mp

o escravista surge como comprador de mercadorias destinadas ao processo


produtivo. Nesse momento definem-se marcantes dissimilitudes relativa-
mente ao capital industrial, as quais decorrem da especificidade do escra-
vismo no que tange ao aliciamento da mão de obra.
O escravista, para dar início à produção e reproduzi-la nos períodos
subsequentes, obriga-se a destinar parcela do capital inicial (D) para
a aquisição do plantel. Essa fração, representada por D2, indica o custo
incorrido pelo escravista para ter à sua disposição a mão de obra de que
carece. Para tanto, ele terá de servir-se do mercado de escravos. Os negros
apresados no continente africano e trazidos para a América ou os escravos
já residentes na colônia e postos à venda por seus proprietários consti-
tuirão o lado da oferta. O assentamento da relação de escravidão tem como
pressuposto básico a constituição de tal mercado, pois a simples necessi-
dade desse tipo de trabalhador, ainda que conjugada com a disponibilidade
de recursos, mostrar-se-ia insuficiente para consubstanciar tal relação de
sujeição em bases estáveis e na amplitude necessária. Uma vez comprado,

escravo, do seu produto excedente. Ela constitui um desconto inevitável da renda ou do


que se chamaria de lucro escravista. Do ponto de vista contábil, não faz diferença que
seja considerada parcela do custo de produção ou dedução obrigatória do lucro, à seme-
lhança de um imposto. Do ponto de vista da teoria econômica, a única solução correta
consiste em incluí-la no produto excedente e considerar a renda efetiva do escravista
reduzida na proporção da amortização do investimento feito na aquisição do plantel de
escravos” (grifos de Gorender, 1992, p. 183).

30
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

o escravo pode passar a constituir “parte integrante do capital produtivo


de seu comprador” da mesma forma que a força de trabalho vendida ao
capitalista pelo assalariado.
A parte restante do capital (D1) destinar-se-á à compra e/ou manu-
tenção dos equipamentos e instalações imprescindíveis à produção (Mp)
e aos dispêndios com habitação, vestuário e alimentação necessários
para manter vivos e produtivos os escravos (Me). Aqui, ao invés de um
pagamento monetário, como ocorre no caso do assalariado, o escravista
encarrega-se, ele mesmo, de prover as mercadorias destinadas ao sustento
do trabalhador. A origem desses bens pode ser a oferta externa, europeia
sobretudo, ou mesmo a produção realizada no âmbito da colônia ou da
própria unidade produtiva local.
No segundo estágio, o proprietário de escravos combina os
elementos adquiridos no primeiro; mediante o consumo produtivo de
tais elementos, gera-se um quantum de produto com valor superior ao do
início do processo. Nesse estágio produtivo – no qual aqueles elementos
se encontram “no estado ou na forma de capital produtivo” – cria-se valor
suficiente para a reposição dos gastos com a depreciação dos meios de
produção e com o sustento dos escravos e, ademais, gera-se a mais-valia.
A mais-valia gerada no processo produtivo do capital escravista-
mercantil (d) deve ser capaz, portanto, de proporcionar, não só o lucro
líquido do escravista, mas, também, o montante de capital necessário
para aquisição/reposição dos escravos (D2). Vale dizer, como Gorender,
tratamos o dispêndio com a aquisição do plantel como uma dedução da
mais-valia total.
Todavia, sem a realização das mercadorias, isto é, sem o terceiro
estágio (M’ — D’), não se poderia dar o prosseguimento do processo produ-
tivo. Faz-se mister, portanto, que o capital-mercadoria assuma a forma de
capital-dinheiro ao final do processo para poder ingressar novamente no
ciclo de valorização. Apenas como capital-monetário o capital assume a
forma de “meio geral de compra e meio geral de pagamento”, tornando-se
capaz de agenciar elementos para o ciclo produtivo subsequente.

31
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

7. Considerações finais

Cremos que, além de havermos evidenciado a pertinência e a rele-


vância do conceito, explicitamos algumas das principais propriedades do
capital escravista-mercantil, bem como algumas das implicações decor-
rentes da existência dessa forma específica de valorização do valor.
Acreditamos, igualmente, havermos mostrado que muito do que
se afirma sobre o modo de produção escravista refere-se, de fato, à forma
de capital aqui postulada. Assim, tanto a economia escravista moderna,
em geral, como a sociedade brasileira, em particular, devem sua exis-
tência e conformação estrutural básica ao capital escravista-mercantil,
não podendo ser vistas, portanto, nem como uma mera projeção do
capital comercial no plano da produção, nem como um simples apêndice
da economia europeia, destinado, exclusivamente, a complementá-la e
a servir, tão somente, a interesses forâneos. Não é ocioso repisar que a
falta da consideração do capital escravista-mercantil leva ao falseamento
da natureza e do caráter essencial da economia e da sociedade estabele-
cidas nas Américas. Explorar estas últimas assertivas, aprofundar nosso
conhecimento sobre suas implicações quanto à nossa formação socio-
econômica e promover amplo debate sobre o tema – o que procuramos
provocar com este escrito – não só é fundamental para o dilucidamento
definitivo dos problemas centrais aqui abordados como, certamente,
lançará novas luzes sobre antigas divergências teóricas concernentes
àquela formação.
Em face das conclusões acima postas, entendemos que se impõem
alguns desdobramentos a enfrentar.
Assim, caso venha a ser aceita a categoria aventada, faz-se neces-
sário, desde logo, aprimorá-la e escoimá-la de eventuais incorreções. Esta
é, com certeza, a tarefa mais expressiva e desafiadora que nos espera no
futuro imediato.

32
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

Também será preciso estabelecer com precisão, e para cada uma


das áreas do Novo Mundo que conheceram o escravismo, as decor-
rências históricas e socioeconômicas devidas à existência do capital
escravista-mercantil.
Uma discussão paralela, mas não menos importante, certamente
girará em torno da reavaliação da tese segundo a qual, a partir de deter-
minado momento de sua formação histórica, certas economias escravistas
das Américas ganharam autonomia e tenderam a repor-se independente-
mente dos pressupostos que lhe eram externos.
Além disso, também deve ser encetado, à luz de nossas proposições
teóricas, o estudo das condições empíricas envolvidas na superação do
escravismo em cada área e/ou nação das Américas, de sorte a podermos
aquilatar, em termos dos eventos concretos que marcaram tal superação, o
poder explicativo de nossas teses.

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PRADO JÚNIOR, Caio (1987). Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 20 ed.
São Paulo, Brasiliense.

33
3. CAUSAS IMEDIATAS DA SUPERAÇÃO
DO CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL
Julio Manuel Pires
Iraci del Nero da Costa

1. O capital escravista-mercantil e suas limitações

Como tivemos oportunidade de consignar no capítulo anterior, o


capital escravista-mercantil devia sua reprodução a algumas condições
que lhe eram imanentes e a outras que, para ele, definiam-se como dadas,
pois independiam de sua existência e situavam-se no âmbito da economia
mundial: mercados fornecedores de mão de obra cativa e mercados absor-
vedores da produção exportável ofertada pela economia escravista. A estas
últimas, somavam-se, pois, as condições de ordem endógena: institucio-
nalização do escravismo, escravistas desejosos de acumular e a massa de
cativos disponível internamente. Como avançado, as condições exógenas
fugiam à ação imediata do capital escravista-mercantil cuja supressão,
portanto, poderia advir de um ou mais eventos originados na órbita
externa, na interna ou colocados nessas duas esferas, pois a falta de qual-
quer pressuposto, endógeno ou exógeno, seria bastante para provocar sua
ruptura.
A consequência mais significativa das características reportadas
acima está em que, por ser incapaz de reproduzir integralmente suas
próprias condições de existência, o capital escravista-mercantil não podia,
pois, dar suporte a um específico modo de produção. Destarte, o lapso
temporal de sua dominância em dada área ou nação deve ser tomado –
por mais longo que se apresente – como um período de transição. No
caso do escravismo moderno, tratou-se, efetivamente, da incorporação, à
economia mundial já fortemente impregnada pelo capitalismo, de terras

35
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

praticamente virgens ou de áreas mais densamente povoadas cujos autóc-


tones conheceram um total derruimento do destino que lhes era traçado
pelas formas de existência social, econômica e política sob as quais viviam
antes da chegada do colonizador europeu. No que tange ao Novo Mundo,
como sabido, tal transição culminou com a transformação radical das rela-
ções de produção – de escravistas para capitalistas – e a correlata meta-
morfose do capital escravista-mercantil em capital “industrial”, vale dizer:
em acumulação calcada na exploração da mão de obra assalariada. Além
disto, na medida em que, no âmbito das sociedades escravistas modernas,
foram, a pouco e pouco, consubstanciando-se as condições para o esta-
belecimento generalizado do trabalho assalariado, a transição para essas
relações de produção – inclusive com a presença de formas de exploração
do trabalho livre como os contratos de parceria, de locação de serviços
e o sistema do colonato adotados no Brasil – não assumiu, do ponto de
vista estritamente econômico, caráter traumático, dando-se o mesmo
com respeito à transformação do capital escravista-mercantil em capital
industrial. Destarte, as mudanças havidas não decorreram de uma “revo-
lução burguesa” no sentido clássico da expressão, mas devem ser definidas
como duas facetas de um processo único: o da superação do escravismo.
Processo esse no bojo do qual atuaram de maneira solidária e integrada –
com pesos relativos distintos, é verdade – fatores de caráter político, social
e econômico.
Note-se, ainda, que a solidez ou robustez do escravismo, bem como
a coesão interna de dada sociedade escravista, não bastavam, per se, para
garantir a subsistência do capital escravista-mercantil, pois, como afir-
mado acima, a presença de tais atributos só era relevante para a manu-
tenção dos determinantes de ordem endógena dessa específica forma de
existência do capital.
Do acima posto, conclui-se que o estudo da supressão do capital
escravista-mercantil confunde-se com o da abolição do escravismo. Assim –
e aqui falamos em termos hipotéticos e não exaustivos –, o golpe mortal
contra o capital escravista-mercantil (ou contra o escravismo), nesta ou

36
CAUSAS IMEDIATAS DA SUPERAÇÃO DO CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

naquela área e/ou nação, poderia decorrer de uma ou da combinação de


duas ou mais das seguintes causas imediatas: 1) imposição da metrópole
com respeito a suas dependências coloniais; 2) imposição de nação estran-
geira em decorrência de atritos econômicos e/ou armados; 3) decisão
política adotada de maneira unânime pelas próprias elites escravistas
dominantes ou decorrente de uma cisão no corpo das mesmas de sorte a
levar a um confronto entre as facções discordantes do qual, no caso, sairia
vencedora a ala favorável à abolição; 4) sublevação dos cativos; 5) uma forte
expansão da demanda internacional por tal ou qual bem produzido por
dada economia escravista poderia levá-la a encontrar tamanhas restrições
quanto ao aliciamento de mão de obra cativa que a busca de uma alterna-
tiva não-escravista se impusesse; 6) correlatamente, a retração violenta dos
mercados mundiais para os bens oferecidos por dada economia escravista
poderia levá-la, no médio prazo, ao colapso, pois lhe faltariam os recursos
para sustentar-se enquanto tal; 7) a supressão do tráfico também condu-
ziria, na falta de uma oferta interna renovável de cativos,1 inexoravel-
mente, ao desaparecimento, em prazo mais ou menos dilatado, do capital
escravista-mercantil.
Examinemos mais de perto algumas situações concretas nas quais,
cremos, podem ser identificadas algumas das causas acima aventadas.
No que concerne a alguns países da América do Sul, houve, segundo
Donghi, uma influência decisiva das guerras de independência na confor-
mação e no ritmo do processo de abolição da escravatura. Com efeito,
a partir dos conflitos armados a caracterizar a luta pela independência
comandada por Bolívar e San Martín,

1 “Hasta en los Estados Unidos, después de que la zona intermedia entre los estados del
Norte, en que regía el sistema de trabajo asalariado, y los estados esclavistas del Sur,
se transformó en una zona de abastecimiento de esclavos, en que, por tanto, el esclavo
lanzado al mercado esclavista se convertía a su vez en elemento de la reproducción anual,
llegó un momento en que esto no bastaba y fue necesario recurrir por el mayor tiempo
posible a la trata de esclavos africanos para tener el mercado abastecido”. Marx (1964,
p. 426).

37
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

[...] o significado da escravidão se modificou: embora os novos Estados não


se demonstrem dispostos a aboli-la (escolhem, ao contrário, situações de
compromisso, como a proibição do comércio e a liberdade para os filhos
dos escravos, inovações de alcance mais limitado do que poderia parecer),
a guerra os induz a emancipações cada vez mais amplas; e as guerras civis
serão ocasião de novos passos nessa direção (...) A emancipação tem a fina-
lidade de recrutar soldados; e, além desse objetivo imediato, em alguns
casos se busca explicitamente conservar o equilíbrio racial, garantindo
que também os negros forneçam a sua cota de mortos em combate. É esse
o argumento de Bolívar em apoio às providências que tomou, e que não
eram aceitas pelos proprietários de escravos. A escravidão doméstica perde
importância, enquanto a agrícola resiste melhor nas zonas das plantações,
que não poderiam sobreviver sem ela. Ainda em 1827, sua importância na
Venezuela é tão grande que justifica uma tenaz defesa por parte dos lati-
fundiários. Onde a escravidão se conserva, a disciplina da mão de obra
escrava perde boa parte da sua eficiência. A produtividade cai na Vene-
zuela e na costa do Peru (e aqui de modo catastrófico), o mesmo ocorrendo
nas zonas mineradoras de Nova Granada, nas quais se empregava mão de
obra africana. (Donghi, 1975, p. 83)

Ademais, o fim do tráfico de escravos e o impacto dessa medida


sobre o mercado de escravos implicou a inviabilização econômica cada vez
maior das atividades assentadas na mão de obra cativa.

A implantação e substituição da mão de obra coloca problemas; a longo


prazo, a escravidão não consegue sobreviver na América espanhola sem
o tráfico; e, com as crescentes dificuldades do mercado, o preço dos escra-
vos – onde eles são empregados em atividades produtivas – cresce rapida-
mente; ao longo da costa peruana, durante a década posterior à revolução,
o seu preço triplica. O instituto da escravidão, antes de ser abolido (quase
por toda parte na metade do século), perde importância. Os negros eman-
cipados não serão reconhecidos como iguais à população branca e nem
mesmo à mestiça; mas a posição deles será profundamente diferente numa
sociedade que, se não é igualitária, organiza porém as desigualdades de um
modo diverso da velha sociedade colonial. (Ibid., pp. 83-84)

38
CAUSAS IMEDIATAS DA SUPERAÇÃO DO CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

Detenhamo-nos agora em alguns processos de emancipação veri-


ficados em outros países e regiões da América, para os quais a impor-
tância da escravidão e a literatura disponível mostraram-se bem mais
significativas.

2. O Haiti e a rebelião negra

Segundo país do continente a tornar-se independente, após os


Estados Unidos, a parte ocidental da Ilha de Hispaniola, no Caribe,
contava, às vésperas da Revolução, com cerca de 550.000 habitantes, 80%
dos quais escravos (cf. Cardoso e Brignoli, 1983, p. 147). A vida econômica
e política do Haiti era monopolizada por uma elite reduzida de brancos e
mulatos, impedindo-se de forma definitiva a ocupação de cargos públicos
e profissões liberais por parte de negros, mesmo se libertos. Como sabido,
a base econômica principal do Haiti era a produção de açúcar, seguida do
café, anil e algodão.
As revoltas – iniciadas em 1758 sob a liderança de Makandal e sufo-
cadas em sua maior parte – retornaram, no outono de 1791, com ampli-
tude revolucionária, envolvendo praticamente todo o território haitiano.
Os escravos rebelados incendiaram os canaviais e expulsaram os exércitos
franceses. Com a vitória sobre as forças francesas, François Toussaint,
também conhecido como Toussaint Louverture, proclamou a indepen-
dência e a libertação dos escravos, mantendo-se, todavia, dentro da fede-
ração francesa.
Ainda durante o processo de consolidação do novo poder político,
a crise e o bloqueio econômico imposto pela França que se seguiram à
guerra de independência condicionaram fortemente a política de Toussaint
relativamente à mão de obra. Foi instituído “um rígido sistema de trabalho
forçado, anulando vendas de terras anteriores para trabalhadores rurais e
sujeitando os trabalhadores das fazendas a uma disciplina militar” (Foner,
1988, p. 29). Tais imposições decorriam de uma tentativa de não isolar

39
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

política e economicamente o Haiti do restante do mundo,2 bem como de


estabelecer uma política conciliatória com os fazendeiros brancos, uma vez
que a grande propriedade rural voltada à exportação era encarada como a
chave da prosperidade para o país.
Apesar de demonstrar esse tipo de preocupação, Toussaint é derro-
tado por Charles Leclerc, cunhado de Napoleão, em 1803, e enviado para a
França, onde é executado.
Jean-Jacques Dessalines assume então a liderança na luta dos
haitianos e consegue expulsar novamente os franceses, criando a segunda
república do Hemisfério Ocidental em 1806. Com a ascensão ao poder
de Dessalines, a política conciliatória de Toussaint em relação aos fazen-
deiros foi drasticamente abandonada – tendo sido massacrados os brancos
remanescentes e incorporando-se as fazendas ao patrimônio do Estado.
Entretanto, a crença de Dessalines de que apenas a agricultura de expor-
tação seria capaz de garantir a manutenção de um exército forte e, dessa
forma, consolidar a independência da nação, levou-o a preservar a política
de trabalho forçado, a qual não diferia muito da escravidão, inclusive por
empregar o açoite como medida disciplinadora (ibid., p. 29).
Essa legislação punitiva e rigorosa quanto à obrigação de traba-
lhar manteve-se, com pequenas alterações, nos governos imediatamente
seguintes, tendo sido suplantada, ao longo do século XIX, pela emergência
do campesinato haitiano, mediante a ampliação do acesso à propriedade
da terra.3

2 Tal tentativa viu-se frustrada pela reação desfavorável das potências europeias e dos
Estados Unidos à nova nação. Segundo Craton, “esse novo e orgulhoso país e sua
economia foram imediatamente marginalizados, tanto pelo espírito independente dos
próprios haitianos quanto pela calculada indiferença ou o antagonismo ativo, baseado
na paranoia racista das principais potências, inclusive os Estados Unidos” (1995, p. 32).
3 “Ao longo do século XIX, o Haiti teve a mais baixa porcentagem de trabalhadores sem
terra entre todas as ilhas das Antilhas”. Foner (1988, p. 30).

40
CAUSAS IMEDIATAS DA SUPERAÇÃO DO CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

3. As Antilhas e a presença metropolitana

O fim da escravidão nas Antilhas e Guianas decorreu, imediata-


mente, de decisões tomadas no âmbito das metrópoles às quais se encon-
travam subordinadas essas áreas. No caso das colônias administradas
diretamente pela Coroa inglesa, a legislação referente à emancipação por
estágios foi imposta diretamente, tendo sido negociada quando a colônia
tinha legislação própria (cf. Craton, 1995, p. 46).
O processo que levou à emancipação dos negros nas colônias
inglesas na América4 – iniciado a partir da proibição do tráfico britânico
de escravos da África em 1808 – foi radicalmente distinto ao observado no
Haiti, como teremos oportunidade de ratificar mais adiante. “Se no Haiti
a abolição se realizou através da revolução, no Caribe inglês o processo
refletiu tudo o que é quintessencialmente inglês: respeito pela ordem,
processos legais e direitos de propriedade”5 (Foner, 1988, p. 33).
A manumissão nas possessões britânicas caracterizou-se, sobretudo,
pela intenção de gerar o menor atrito possível com a classe de proprietá-
rios de escravos; buscou-se preservar em suas mãos tanto a propriedade
da terra como o poder político. Ademais, o governo inglês indenizou os
antigos donos de escravos com 20 milhões de libras (ibid., p. 33). Inicial-
mente, as autoridades britânicas buscaram – mediante a instituição do
aprendizado – uma solução conciliatória entre, de um lado, a opinião
pública antiescravocrata e seu próprio compromisso público com a ideia
do trabalho livre e, de outro, os interesses da classe de proprietários
de escravos. Também pesou, na decisão de estabelecer o aprendizado, a

4 Nas colônias britânicas espalhadas por todo o mundo, algo em torno de 700.000
pessoas foram libertadas, 311.000 só na Jamaica e 83.000 em Barbados.
5 No mesmo sentido, Craton afirma “resultasse ou não da frequentemente alegada
tendência nacional britânica no sentido da mudança evolutiva, em vez da revolucio-
nária, e de uma concomitante facilidade de adaptação pragmática, o processo nas
Índias Ocidentais Britânicas demonstrou aspectos de um ‘continuum’, com antecipa-
ções e sobrevivências de cada lado da emancipação formal dos escravos, em lugar de
fases profundamente marcadas e mudanças abruptas” (1995, p. 33).

41
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

desconfiança relativamente ao comportamento do manumitido. Segundo


a lei de 1833, “todos os escravos na lavoura serviriam por seis anos como
aprendizes, período durante o qual seriam pagos por seus trabalhos,
permanecendo, porém, sujeitos a regulamentações severas determinadas
pelas legislaturas coloniais” (ibid., p. 36). Pretendia-se, dessa maneira,
assegurar um processo de transição o menos traumático possível entre a
escravatura e o trabalho livre.
O resultado dessa tentativa foi um fracasso evidente. Um dos prin-
cipais problemas de que se revestiu o aprendizado foi o fato de o governo
inglês deixar as regulamentações pertinentes a cargo das assembleias locais,
dominadas pelos grandes proprietários. As penas extremamente severas
impostas pelos legisladores caribenhos aos menores deslizes e resistência
ao trabalho por parte dos ex-escravos, as quais “‘cheiravam’ em excesso a
um retorno da escravidão” (ibid., p. 38), fizeram com que as autoridades
britânicas – pressionadas por uma opinião pública desfavorável ao apren-
dizado – impusessem o fim desse experimento, decretando a liberdade
incondicional dos aprendizes em 1838 (ibid., pp. 38-39).
Nas demais colônias europeias do Caribe, também o processo foi
definido a partir de decisões tomadas nos respectivos centros metropoli-
tanos. “Depois de medidas parciais, os franceses aboliram a escravidão em
1848, tendo a revolução daquele ano agido como catalisador. A Holanda,
também depois de medidas parciais, protelou até 1863 a abolição final”
(Cardoso e Brignoli, 1983, p. 150). É importante notar que também nesses
casos a decisão dos países europeus foi acompanhada de uma compen-
sação monetária aos proprietários dos escravos manumitidos, tendo
sido facilitada, ademais, pelo fato de tais proprietários constituírem uma
parcela restrita das burguesias metropolitanas. Assinale-se, também, que
as feições genéricas, acima apontadas, assumidas pelo processo de abolição
do trabalho escravo nas referidas dependências coloniais não comporta
qualquer dúvida; a polêmica existente – e ela foge ao escopo deste artigo –

42
CAUSAS IMEDIATAS DA SUPERAÇÃO DO CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

diz respeito às razões associadas ao interesse pelo fim do tráfico e da escra-


vidão por parte das potências europeias, notadamente no que se refere à
Inglaterra.6
Outros fatores, e não apenas relacionados aos interesses e disputas
internas às Metrópoles, devem, no entanto, ser agregados. Entre estes
destaca-se o “exemplo” haitiano e a eclosão frequente de revoltas de
escravos em toda região, as quais amedrontavam tanto as autoridades
metropolitanas como os proprietários locais, impelindo-os a vislumbrarem
na manumissão geral uma alternativa menos ruim. No caso das possessões
britânicas na América, cabe citar as rebeliões de escravos ocorridas em
Barbados (1816), Guiana Inglesa (1823) e Jamaica (1831-32) (cf. Craton,
1995, pp. 32-33).

4. Nos Estados Unidos, a dissensão das elites

Em contraste com o processo lento, gradual e contemporizador a


caracterizar a extinção do escravismo em Cuba e no Brasil, nos Estados
Unidos, tal evento ocorreu de forma abrupta, como resultado de um
violento conflito armado. A emancipação nos Estados Unidos – a qual
englobou número muito superior de pessoas do que o observado em qual-
quer outro país ou colônia, cerca de 4 milhões – resultou, à semelhança
do ocorrido no Haiti, de uma guerra sangrenta, na qual os negros tiveram
participação expressiva (cf. Foner, 1988, p. 73).

6 A controvérsia fundamental opõe Williams e Drescher. O primeiro atribui ao inte-


resse inglês razões de ordem fundamentalmente econômica, relacionadas ao declínio
da importância dos fluxos de produção e comércio de mercadorias e escravos entre
Inglaterra e Antilhas e a incompatibilidade entre as exigências do desenvolvimento do
capital industrial inglês e o escravismo. Seymour, baseado em amplo conjunto de dados,
procura mostrar que aos anos imediatamente anteriores ao fim do tráfico de escravos
corresponderam volumes ascendentes de exportações de algodão e açúcar das Antilhas
para a Inglaterra, ocorrendo o mesmo com o tráfico de escravos. As razões básicas rela-
cionadas ao fim do tráfico e posterior abolição, segundo esse autor, devem ser buscadas,
sobretudo, no movimento abolicionista. Para maiores detalhes, ver Williams (1975) e
Drescher (1977).

43
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

Os principais fatos históricos que antecederam imediatamente o


término do regime escravista são conhecidos: eleição de Abraham Lincoln,
em 1860, pelo Partido Republicano; decretação da emancipação; oposição
dos estados sulistas, a tentativa de Secessão e o início da Guerra Civil; a
vitória da União ratificada em 1865 e a consagração do abolicionismo.
Para os efeitos deste artigo, os pontos importantes a serem realçados
dizem respeito aos motivos da guerra e aos interesses divergentes do Norte
e do Sul quanto à escravidão.7
Em primeiro lugar, cabe destacar a reduzida relevância das análises
que se concentram de forma exclusiva nos fatores de ordem econômica,
como, por exemplo, na questão das tarifas de importação ou na suposta
incompatibilidade econômica entre a mão de obra escrava e o crescente
capitalismo industrial.
Na verdade, como demonstra Moore Jr., no período 1815-1860, a
economia algodoeira do Sul exerceu influência decisiva no crescimento
da economia americana e, até 1830, constituiu o fator mais importante
do desenvolvimento industrial nortista. Ademais, devido ao expressivo
volume de exportações para a Grã-Bretanha, responsabilizava-se pela
parcela principal da oferta de divisas. Portanto, longe de se caracterizar
como excrescência, a economia escravista revelou-se parte integrante da
formação do capitalismo industrial do século XIX.
Do mesmo modo, cabe rejeitar as teses que atribuem ao sistema
escravista um tal nível de ineficiência vis-à-vis o trabalho assalariado que o
condenaria a desaparecer. Os estudos mais recentes mostram que a escra-
vatura não estava prestes a se extinguir por razões internas, pois, do ponto
de vista econômico, ainda evidenciava boas condições de competitividade
e lucratividade. Nesse sentido, a força das armas mostrou-se fundamental
para pôr fim à escravidão nos Estados Unidos.
Conquanto os fatores estritamente econômicos tenham certo poder
explicativo, parecem-nos secundários em face das divergências políticas,

7 O eixo fundamental da análise seguinte baseia-se em Moore Jr. (1975, pp. 141-189).

44
CAUSAS IMEDIATAS DA SUPERAÇÃO DO CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

sociais e ideológicas existentes entre o Norte e o Sul. Ou, colocando de


forma mais precisa, embora a origem essencial da diferenciação entre
as duas sociedades situe-se no campo econômico – dada pela relação de
produção hegemônica diversa a caracterizar cada uma das duas regiões –,
a Guerra de Secessão encontra-se, na realidade, relacionada às dificuldades
de convivência, sob um mesmo governo nacional, de duas sociedades com
características tão distintas, conquanto capitalistas: uma, aristocrática,
defensora do privilégio hereditário e a outra, burguesa, valorizadora do
esforço e talento individual e contrária à desigualdade jurídica e de opor-
tunidades.8 “Com o Oeste, o Norte criou uma sociedade e uma cultura
cujos valores entraram cada vez mais em conflito com os do Sul. O ponto
focal dessas diferenças residia na escravatura” (Moore Jr., 1975, p. 169).
Em face de tal quadro, tornou-se cada vez mais improvável –
para ventura da democracia americana – a solução conciliatória entre a
burguesia industrial e as elites rurais, típica da Alemanha do século XIX.
A busca dessa solução fez-se em vão na primeira metade do século.
Alguns anos após o fim do tráfico de escravos (1808) (cf. Foner, 1988,
p. 130), tentou-se instituir uma fórmula para manter o equilíbrio entre
os estados escravistas e abolicionistas. Por meio do “Compromisso de
Missouri” (1820), ficou estabelecido que os estados ao norte do paralelo
36o30’ seriam emancipacionistas, e escravistas os colocados ao sul de tal
linha. No entanto, em 1850, a Califórnia solicita sua entrada na União
como estado abolicionista, apesar de se situar ao sul daquele paralelo.
Houve protestos dos estados escravistas, sendo, por fim, acordado o deno-
minado “Compromisso de 1850”, assegurando o livre arbítrio dos novos

8 Seria, no entanto, um erro grosseiro atribuir homogeneidades estritas em relação ao


trabalho escravo no interior das sociedades nortista e sulista. Da mesma forma como
existia um grupo significativo de pessoas no Norte, quiçá majoritários, indiferentes à
sorte dos negros e, por certo, indivíduos favoráveis à escravidão, havia vários brancos
sulistas simpáticos à causa abolicionista. Cf. Foner (1988, p. 73).

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

estados quanto à escravidão. Tal solução, entretanto, parece não ter sido
satisfatória, pois o problema da escravatura nos territórios desempenhou
papel crucial para conduzir à guerra.
Tratava-se, dentre outras questões, de definir a que interesses/conve-
niências o Governo Central iria se colocar à disposição.

O aspecto fundamental tornou-se cada vez mais o fato de a maquinaria


do governo federal dever ser usada para apoiar uma sociedade ou a outra.
Era esse o significado por trás de assuntos tão pouco interessantes como a
tarifa alfandegária e que pôs paixão na reclamação sulista, ao afirmar que
estava a pagar tributo ao Norte. A questão do poder central tornou tam-
bém crucial a questão da escravatura nos territórios. Os dirigentes políticos
sabiam que a admissão de um estado de escravos ou de um estado de tra-
balhadores livres desequilibraria a balança para um lado ou para o outro.
O fato de a incerteza constituir parte inerente da situação, devido às terras
não colonizadas, ou parcialmente colonizadas, do Oeste, aumentou muito
as dificuldades para se chegar a um compromisso. Cada vez se tornou mais
necessário que os dirigentes políticos de ambos os lados se mantivessem
em alerta para qualquer movimento que pudesse aumentar as vantagens
do outro. Dentro deste contexto maior, a tese da tentativa de veto do Sul
ao progresso nortista faz sentido, como causa importante para a guerra.
(Moore Jr., 1975, p. 169)

A vitória do Norte, como sabido, permitiu definir tal disputa de


forma favorável aos interesses industriais e consolidar a emancipação dos
escravos. Todavia, a derrota dos republicanos radicais – os quais propu-
nham reformas profundas na estrutura econômica e política do Sul –, ao
longo da década de 1870, obstou a consecução de melhorias significativas
no padrão de vida dos libertos.9

9 Para maiores detalhes a respeito dos republicanos radicais e suas políticas durante o
período da “Reconstrução” e sua derrota para o Partido Democrata com a “Redenção”,
veja-se Foner (1988), especialmente pp. 73-176, e Moore Jr. (1975, pp. 183-189).

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CAUSAS IMEDIATAS DA SUPERAÇÃO DO CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

5. Em Cuba: um caminho longo e complexo

A supressão do escravismo em Cuba lembra, em linhas gerais, a


experiência observada no Brasil. Trata-se de um processo gradual no qual
intervieram vários fatores, tanto de ordem interna como externa.
Cardoso e Brignoli identificam duas grandes fases no processo de
abolição da escravidão em Cuba. A primeira estende-se do início da década
de 1840 até o começo da Guerra dos Dez Anos, em 1868. A segunda fase
compreende o período da guerra de libertação (1868-1878) e se estende
até 1886, com o fim definitivo da escravidão dada a extinção do patronato
(1983, pp. 150-153).
Em 1845, por conta dos movimentos e das conspirações de escravos
havidos entre 1841 e 1843 e da pressão diplomática e naval da Inglaterra,
a Espanha elabora a lei de abolição e repressão do tráfico de escravos,
cujo objetivo fundamental seria propiciar instrumentos mais adequados à
repressão do tráfico, já ilegal havia muitos anos.10 Tal legislação apresentou
alguma efetividade durante a década de 40, quando se reduziu o número
de escravos desembarcados na Ilha, voltando a aumentar, na década
seguinte, o contingente de negros provindos da África, apesar da manu-
tenção das imposições inglesas. O tráfico só cessou, de fato, em meados da
década de 60; é importante notar, no que tange a esse aspecto, a existência
de um grupo de escravistas interessado em, simultaneamente, pôr termo
ao tráfico e manter a escravidão, com o intuito de valorizar o estoque de
escravos em seu poder.
Nos marcos dessa primeira fase, deu-se, ainda, a Guerra de Secessão
nos Estados Unidos e o enfraquecimento da causa escravista em todo o
continente em decorrência da abolição que se seguiu à vitória do Norte
sobre o Sul.

10 “A Espanha havia prometido aos britânicos desde 1817 abolir o tráfico de escravos, e
em 1835 permitiu que seus navios fossem revistados e julgados os traficantes espanhóis
por autoridades britânicas” (Cardoso e Brignoli, 1983, p. 151).

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

O início da Guerra dos Dez Anos, em 1868, marca um momento


de inflexão no processo abolicionista, o qual se acelera a partir de então.
Em 1869, os rebeldes cubanos que lutavam pela independência da Ilha,
tendo em vista a pressão interna de suas próprias fileiras de soldados –
compostas em grande parte por libertos – e a necessidade de apoio inter-
nacional para a causa, abandonam sua posição reticente no que toca ao fim
da escravidão e propõem a emancipação imediata dos escravos. A liber-
tação plena, no entanto, viu-se obstada pelo “Reglamento de Libertos”, o
qual exigia trabalho forçado dos ex-escravos. Apenas com o abandono do
“Reglamento”, no final de 1870, é que os rebeldes assumiram definitiva-
mente a causa dos escravos (Scott, 1987, p. 458). Desse modo, conquanto
de início limitados em seus ímpetos abolicionistas, os revolucionários
cubanos foram compelidos pelas circunstâncias a se comprometerem cada
vez mais com o fim da escravidão:

[...] o impacto da insurreição sobre a escravidão ultrapassou a intenção


inicial de seus líderes. A própria política rebelde foi pressionada a desen-
volver-se em direção a um abolicionismo menos limitado, especialmente
à medida que cresceu a participação de pessoas de cor livres e de libertos
no exército. Ao mesmo tempo, os libertos aprenderam a aproveitar-se até
mesmo de concessões parciais e oportunistas feitas pelos líderes rebeldes.
(Ibid., p. 460)

A resposta do lado espanhol não tardou; em face dos interesses


divergentes de abolicionistas cubanos – aos quais poderiam vir a se aliar
os norte-americanos –, de um lado, e de senhores de engenho, de outro,
as Cortes Espanholas aprovaram a Lei Moret, a qual apontava para uma
“solução conciliatória” mediante a proposta de extinção gradual da escra-
vidão. Os escravos acima de 60 anos e as crianças nascidas a partir de 1868
teriam sua liberdade assegurada, conquanto estas últimas ainda devessem
permanecer sob a “proteção” de seus ex-donos até que se casassem ou
completassem 21 anos de idade. Além disso, tal legislação tornava ilegal
o açoite e libertava o escravo vítima comprovada de “crueldade excessiva”,

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CAUSAS IMEDIATAS DA SUPERAÇÃO DO CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

estabelecendo também as “Juntas Protectoras de Libertos” para vigiar o


cumprimento da lei. Previa, ademais, a emancipação indenizada ao final
da Guerra (ibid., p. 461).
Apesar das fraudes de variados tipos – notadamente no que diz
respeito ao estabelecimento da idade e da data de nascimento dos escravos –
e da obrigação do patronato até a maioridade para os recém-nascidos
tornarem a lei muito menos efetiva do que poderia parecer à primeira
vista, a existência de tal legislação, e a insurreição, constituíram poderoso
estímulo para que os escravos buscassem concessões cada vez maiores.

The environment of the 1870s, with the legal provision for the eventual end
of slavery and the outbreak of rebellion in the east, encouraged some slaves to
press for whatever concessions they could obtain. In doing so they made use of
old techniques as well as new. (Scott, 1985, p. 74)

Essa situação foi deveras reforçada pelos acontecimentos posteriores


ao fim da Guerra dos Dez Anos. O Pacto de Zanjón, de 1878, que pôs
fim ao conflito, garantiu a liberdade a “todos os escravos e asiáticos que
tivessem lutado pela independência ou contra ela” (Cardoso e Brignoli,
1983, p. 152). Tal fato, por certo, contribuiu para o crescimento da
resistência passiva, das ameaças de sublevação e das fugas em massa dos
escravos, como as ocorridas na Província de Santiago de Cuba nos anos
finais da década de 1870, as quais obrigavam os plantadores a fazerem
concessões, sob pena de perderem o controle sobre a mão de obra, mesmo
contando com o apoio militar. É nesse contexto que

[...] em 1879 o governo espanhol preparou uma lei abolicionista final, posta
em vigor no dia 29 de julho de 1880. Ela decidia a abolição total, mas esten-
dia o patronato a todos os novos libertos, em lugar de uma indenização
pecuniária aos proprietários. Tal patronato terminaria em 1888. (Ibid.,
p. 153)

Sob a “retórica da tutelagem e proteção” (Scott, 1987, p. 466), pretendia-


se manter as relações fundamentais da escravidão, alterando-se apenas
aspectos relacionados à sua aparência. Os ex-escravos, agora patrocinados,

49
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

a par de alguns direitos alcançados, viam-se na obrigação de trabalhar por


um salário simbólico, não podendo sair da propriedade de seu dono ou
escolher seu patrão e sendo objeto de compra e venda como anteriormente.
Todavia, os resultados finais dessa nova legislação parecem ter sido
mais significativos do que os inicialmente pretendidos. As iniciativas dos
patrocinados – as quais poderíamos caracterizar como um ponto interme-
diário entre a acomodação e a resistência11 –, se implicavam a aceitação
da ordem legal escravista, exploravam as possibilidades de libertação
colocadas pela nova ordem legal, notadamente no que diz respeito à
autocompra e às denúncias de abusos, violências e ausência de cuidados
legalmente previstos por parte do patrono.12 O patrocinato permitiu aos
escravos influenciar o ritmo em que se alteravam as relações de produção
fundamentais, até mesmo no que diz respeito ao seu conteúdo, chegando-
se à própria manumissão. Assim, tais expedientes permitiram que o
número de escravos existentes em Cuba às vésperas do fim do patronato
(1886) fosse pouco superior a 25.000, número quase oito vezes menor do
que o existente nove anos antes. A verdade é que

[...] em um contexto de hostilidade internacional para com a escravidão,


de contínuos desafios ao domínio espanhol e crescente percepção das víti-
mas do escravismo de que o sistema não sobreviveria por muito tempo, a
legislação não pôde refrear as pressões por mudanças mais rápidas. (Ibid.,
p. 484)

Destarte, com o declínio dos preços do açúcar no mercado inter-


nacional a partir de 1885 e o consequente rebaixamento da lucratividade
da atividade açucareira, diluíram-se as resistências mais importantes ao

11 “They [os casos levados perante as Juntas] show the inadequacy of conceptualizing slave
and patrocinado behavior in terms of ‘accomodation’ or ‘resistance’, and the necessity of
analyzing that behavior in terms that reflect the complexity of patrocinados’ goals and
strategies” (Scott, 1985, p. 141).
12 “O artigo 4 da lei de 1880 enumerava as obrigações do patrono: manter seus patro-
cinados, vesti-los, dar assistência aos doentes, pagar o estipêndio mensal estipulado,
educar os menores, alimentar, vestir e dar assistência quando doentes aos filhos de seus
patrocinados” (Scott, 1987, p. 473).

50
CAUSAS IMEDIATAS DA SUPERAÇÃO DO CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

fim da escravidão. Assim, em julho de 1886, o parlamento espanhol vota


a autorização para a extinção do patronato e, no mês seguinte, a Junta
Provincial de Agricultura, Indústria e Comércio de Havana concorda com
tal resolução (ibid., p. 482). Em 7 de outubro de 1886, dois anos antes do
prazo fixado pela lei de 1880, o patronato é suprimido, encerrando-se a
escravidão na maior ilha das Antilhas.

6. A intervenção estrangeira no Paraguai

No Paraguai, como sabido, o término do escravismo decorreu da


intervenção de potências estrangeiras no âmbito da guerra na qual aquela
nação viu-se derrotada pela Tríplice Aliança formada pelo Brasil, Argen-
tina e Uruguai.
Assim, coube ao Conde D’Eu, comandante das tropas brasileiras,
libertar os últimos escravos existentes na nação perdedora.
Materializou-se nesse caso, independentemente das motivações
últimas das tropas de ocupação e de seus respectivos governos, a possibi-
lidade, acima apontada, de superação da ordem escravista em virtude de
intervenção militar externa.

7. O caso do Brasil: conjugação


de fatores externos e internos

O fim da escravidão no Brasil emergiu como resultado de diversos


condicionantes internos e externos.
Em primeiro lugar, cabe destacar a participação destacada da Ingla-
terra no que tange ao término do comércio de escravos. A desagregação
do sistema escravista brasileiro inicia-se, de fato, com o fim do tráfico, em
1850, por conta, sobretudo, da pressão inglesa.13 As tentativas da Inglaterra

13 As discussões encaminhadas no Parlamento inglês para pôr termo ao tráfico de escravos


iniciam-se em 1783, estabelecendo-se, por fim, a proibição do tráfico para os súditos
britânicos a partir de 1807. Nos anos posteriores, seguiram-se Dinamarca, Portugal,

51
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

em fazer cessar o fluxo de negros da África para a América – cujas motiva-


ções fundamentais parecem ter sido de ordem humanitária e econômica,
não cabendo aqui a discussão a respeito da importância relativa de cada
um desses fatores – foram decisivas para, no mínimo, antecipar tal decisão
por parte do governo brasileiro, o qual resistiu obstinadamente às inves-
tidas inglesas contra o tráfico realizadas desde os Tratados de 1810.
A incapacidade de reprodução vegetativa da população escrava,
a menor taxa de natalidade vis-à-vis a taxa de mortalidade dos escravos
condenava, inexoravelmente, o sistema escravista a seu término.
Somou-se a esse fator o grande desenvolvimento da economia
cafeeira, o que determinou uma significativa escassez relativa de mão de
obra. É justamente na segunda metade do século XIX que a economia
cafeeira apresenta suas mais expressivas taxas de crescimento. As condi-
ções favoráveis de solo e clima, a grande disponibilidade de terras para
serem ocupadas e o expressivo crescimento da demanda mundial – norte-
americana, sobretudo – permitiram consolidar de vez o café como nosso
principal produto de exportação. Restava solucionar o problema da mão
de obra. Vislumbradas as possibilidades restritas do comércio interno
de escravos e da utilização da mão de obra livre nacional para atender à
demanda ascendente de trabalhadores braçais, a opção fez-se em favor da
política imigrantista. Opção essa favorecida pelas condições prevalecentes
na Europa, as quais se responsabilizavam por expulsar enormes contin-
gentes de trabalhadores.
A constituição, por esse meio, do mercado de trabalho livre no
Brasil, somada ao encarecimento do preço do escravo, permitiu tornar cada
vez menos importante a mão de obra escrava, notadamente nas regiões
cafeeiras mais dinâmicas, como o Oeste paulista. No entanto, alguns
grupos de interesses econômicos fortemente fundados na escravidão ainda

Chile, Suécia e Holanda. A extinção do tráfico por parte da Espanha demorou mais a
efetivar-se, em virtude da sensibilidade da corte espanhola aos interesses econômicos
dos proprietários de escravos, sobretudo cubanos e porto-riquenhos. Para maiores
detalhes, vide Saco (1965, pp. 213-229).

52
CAUSAS IMEDIATAS DA SUPERAÇÃO DO CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

resistiam, obstaculizando e tornando muito lento o processo de abolição,


que se arrastou ao longo das décadas de 60 a 80 sob a forma de concessões
tópicas, como a Lei dos Sexagenários e do Ventre Livre, cuja efetividade
mostrou-se muito discutível.
Nesse sentido, houve uma divisão crescente no seio da elite domi-
nante quanto à questão escravista. Segundo Beiguelman, a opção dos
fazendeiros do Oeste paulista pelo abolicionismo faz-se tendo em vista a
oposição dos fazendeiros escravistas, notadamente do Vale do Paraíba, à
política imigrantista (Beiguelman, 1977).14 Isso obriga a tomada de posição
dos primeiros em favor do fim da escravidão como forma de consolidação
da política imigrantista. Além disso, também há de se considerar o dese-
quilíbrio na proporção de escravos entre o Norte/Nordeste e o Sudeste. A
reduzida magnitude do número de escravos contribuiu para que a resis-
tência política ao fim da escravidão naquelas regiões fosse praticamente
nula na década de 80.
Tais fatos, somados à importância cada vez maior do movimento
abolicionista e da resistência dos próprios escravos, mostraram-se funda-
mentais para dar um paradeiro ao escravismo no Brasil.
Nesse sentido, cabe destacar a emergência de algumas pesquisas, nos
últimos anos, que buscam fundamentar uma crítica a certa literatura tradi-
cional, a qual atribui às elites do país papel exclusivo no processo aboli-
cionista. Assim, para Azevedo (1987), é essencial considerar “as pequenas
lutas disseminadas pelo cotidiano, não organizadas num todo coerente
e dotado de ideário próprio, e quase sempre reprimidas e derrotadas”
(p. 179), o “não quero dos escravos” levado adiante por meio da

14 Posição semelhante a essa pode ser encontrada no estudo de Slenes (1986), o qual, no
entanto, discorda da tese que associa a postura antiabolicionista dos produtores do
Vale do Paraíba a uma mentalidade pré-capitalista ou ao domínio do capital comercial
sobre o processo produtivo. Esse autor procura demonstrar que os fazendeiros dessa
região comportavam-se segundo os mesmos padrões de racionalidade de seus colegas
do oeste paulista, apenas “se enganaram na década de 1870 na sua percepção da estabi-
lidade futura da escravidão como instituição” (p. 142), sofrendo as consequências desse
erro nos anos seguintes.

53
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

intensificação dos crimes contra os senhores, fugas e revoltas nas fazendas.


A partir disso, podemos entender melhor a própria radicalização do movi-
mento abolicionista nas cidades e o crescimento da preocupação das elites
em acelerar o fim da escravidão como estratégia para assegurar o controle
social.
Argumentação semelhante vamos encontrar em Castro (1995), para
quem a ação das massas escravizadas “representaram o vetor que produziu
mais fortemente as dimensões de surpresa e imprevisibilidade de todo o
processo [abolicionista]” (p. 238), ensejando sua aceleração e mudança de
rumos relativamente ao que pretendiam as elites do país.

8. Considerações finais

As evidências empíricas aqui relembradas permitem, a nosso juízo,


duas conclusões básicas.
De uma parte, como verificado, as distintas maneiras assumidas
pelo término da escravidão nas Américas cobrem, em larga medida, as
formas hipotéticas aventadas na abertura destas notas.
Por outro lado, tais formas de superação do escravismo moderno
definem-se como elementos que, a par de outros, corroboram nossa tese
respeitante à existência de uma peculiar forma de existência do capital –
categoria essa não explorada por Marx – por nós caracterizada em traba-
lhos precedentes e à qual emprestamos a denominação capital escravista-
mercantil. Cumpre-nos, por fim e mais uma vez, chamar a atenção dos
estudiosos de nossa história para a necessidade de explorarmos critica-
mente essa eventual forma de existência do capital e suas implicações no
que tange à formação econômica e social do Brasil.
Não poderíamos dar fecho a esta nota sem repisar que consideramos
aqui, tão somente, as causas imediatas que levaram à superação do capital
escravista-mercantil no mundo moderno. Permanece, pois, a exigência
de nos empenharmos no estudo das causas de fundo que determinaram,
por um lado, a sua emergência e, de outro, a sua superação. Sem o pleno

54
CAUSAS IMEDIATAS DA SUPERAÇÃO DO CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL

conhecimento de tais fatores, essa categoria permanecerá, apenas, como


mais uma tentativa de explicação lógica para uma larga fase da história do
colonialismo e do escravismo modernos ainda não totalmente dominada
pela historiografia. É este, pois, o repto que lançamos a todos os pesquisa-
dores que, como nós, entendem estarmos em face de uma questão ainda
não resolvida.

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

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56
4. SOBRE A NÃO EXISTÊNCIA
DE MODOS DE PRODUÇÃO COLONIAIS
Iraci del Nero da Costa

A história moderna do Brasil tem início com sua integração ao


mercado mundial sob a égide do capital comercial. O estabelecimento de
uma economia planetária, assim como a existência da história universal,
devem-se ao capital e se definem correlatamente à efetivação do modo
de produção capitalista.1 A tentativa de dissociar aquela história deste
processo redundará em formulações abstratas arbitrárias sem fundamento
lógico ou teórico, as quais, portanto, nada terão de ver com o real, ou seja,
com o objeto estudado.
O escravismo aqui estabelecido não decorreu de um processo social
endógeno,2 representou uma criação do capital escravista-mercantil, com
mediação do capital comercial, visando à produção de mercadorias para
o mercado mundial. Em face da necessidade de força de trabalho para
atender a este objetivo e na ausência de um processo de formação do
mercado de trabalho – como, por exemplo, o que se verificou na Europa
como consequência da dissolução do feudalismo –, o escravismo impôs-se
como a forma menos custosa e aparentemente inelutável de garantir a mão
de obra cuja exploração se mostrava indispensável à utilização rentável das
terras então recém-descobertas. Tal política, como sabido, foi a solução

1 O argumento de que a economia brasileira se estabeleceu em momento no qual o capi-


talismo ainda não havia se efetivado em todas suas dimensões na Europa é imperti-
nente, pois ambos os processos são solidários, correlatos, pertencem à mesma realidade
e suas determinações são comuns.
2 Não houve uma transição entre a nossa história antiga e a moderna; ocorreu uma
ruptura radical, de sorte que não há liame algum entre uma e outra.

57
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

encontrada pela Coroa para integrar interesses e recursos de particulares


à tarefa de ocupar e povoar as áreas do Novo Mundo reclamadas por
Portugal.
Tendo em vista, ademais, o caráter imanentemente expansionista e
subordinador do capitalismo, não nos parece incorreto concluir que nossa
história moderna define-se como um demorado processo de adequação
desta parte do planeta ao capital e ao capitalismo. Nossa sociedade, posta
pelo capital, empreendeu, pois, desde seu nascedouro, um longo percurso
do qual resultou, inexoravelmente, o pleno estabelecimento do modo de
produção capitalista no Brasil.3
Evidentemente, esse processo não se deu de maneira linear; assumiu,
sim, formas contraditórias, por vezes inacabadas e com contornos inde-
finidos – verdadeiras aberrações para quem as analisar com base nos
modelos que se apresentaram em toda sua inteireza apenas em alguns
países da Europa ocidental.
A nosso juízo, só há uma maneira de apreender tal processo: cumpre
assimilá-lo enquanto tal, vale dizer, como processo histórico concreta-
mente dado. Esse o programa que nos cabe desenvolver; embora dos mais
complexos, podemos sumariá-lo com poucas palavras: é preciso descrever
como se deu o processo de “formação / incorporação / adequação” da

3 Interessa, aqui, ressaltar o sentido de alguns dos termos que estamos a utilizar: a) o
capital é o sujeito desse processo; b) como observado acima, esse processo é correlato
ao estabelecimento (efetivação) do modo de produção capitalista na Europa ocidental;
o escravismo moderno resolve-se no capitalismo, ou seja, no estabelecimento das rela-
ções de produção capitalistas; essa resolução, que é a culminância daquele processo,
dá-se segundo processos históricos concretos, vale dizer, embora seja determinada
pelo capital e pelo modo de produção capitalista, seus condicionantes imediatos são de
variada ordem: econômicos, políticos, religiosos, formação de massa crítica de popu-
lação, luta dos próprios escravos, compensações políticas e/ou econômicas entre nações
ou entre nações e suas áreas de influência, disponibilidade para emigração de popu-
lações excedentes, solidariedade com os cativos (baseada no humanitarismo) a qual
também tem dimensões políticas, etc.

58
SOBRE A NÃO EXISTÊNCIA DE MODOS DE PRODUÇÃO COLONIAIS

sociedade brasileira “segundo o/ao” modo de produção capitalista, o


qual se deve tomar, a um tempo, como causativo e resultante do aludido
processo.4
Se nossas ponderações estiverem corretas, evidencia-se a ociosi-
dade implicada em se tentar identificar o(s) modo(s) ou estabelecer um
modo ou modos de produção específicos para o período colonial brasi-
leiro ou para o lapso de tempo que se estende do século XVI à abolição da
escravatura. Tais exercícios, como avançamos na abertura desta nota, são
meras abstrações arbitrárias que não nos aproximam do objeto estudado;
a esse respeito é oportuno lembrar as soluções divergentes propostas pelos
diversos historiadores que se entregaram a tais cometimentos.
Tenha-se presente que não estamos a advogar a impossibilidade de
se apreender nosso passado com base nas categorias expostas por Marx.
Ao contrário, é visando a aplicá-las corretamente que empreendemos a
crítica à utilização, a nosso ver imprópria, do conceito modo de produção.
A impropriedade está, justamente, em conceber abstrata e arbitrariamente
o conjunto de categorias “modos de produção”. Segundo nossa visão, os
distintos modos de produção identificados por Marx devem ser enten-
didos como um continuum histórico-lógico (próprio da Europa ocidental)
do qual o capitalismo é o ponto culminante, e o é porque, a partir de sua
efetivação, a história, além de se fazer universal, conheceu uma mudança
qualitativa, de sorte que se tornou impossível dissociar as distintas socie-
dades ou áreas do planeta – a solidariedade que as une é dada e explicada
pelo capital e pelo capitalismo e só será superada quando o for o próprio
capitalismo.
Disso se infere, em primeiro, a impossibilidade de emparelharmos
os distintos modos de produção – se o fizermos estaremos a operar uma
abstração teoricamente infundada porque sem correspondência com o
movimento do real (do objeto estudado), tratando-se, pois, de um mero

4 Evidentemente, não estamos a negar a vigência de regularidades no correr desse


processo; o que arguimos é a existência de modo(s) de produção colonial(ais).

59
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

raciocínio arbitrário –, em segundo, a impertinência de “procurarmos”


novos modos de produção depois de fundada, pelo capitalismo, a história
universal. Posta esta e, correlatamente, o mercado mundial, persiste apenas
o modo de produção capitalista – que a tudo ilumina, parafraseando a
imagem clássica. Segundo nossa leitura de Marx, a superação “deste” modo
de produção significa a superação da própria categoria, a pré-história
devém história; o homem, até então pressuposto, devém sujeito.

60
5. A FORMAÇÃO DAS ECONOMIAS PERIFÉRICAS
SOB A ÓTICA DA HISTÓRIA ECONÔMICA GERAL
Iraci del Nero da Costa

Como sabido, o desenvolvimento do capitalismo na Europa


Ocidental acarretou o estabelecimento de um sistema socioeconômico
planetário composto por subsistemas cujas características ficam real-
çadas quando atentamos, concomitantemente, para o processo de genera-
lização da produção de mercadorias e para as formas mediante as quais tal
produção se processava. Assim, o que dá unidade ao período pós-feudal –
dos séculos XIII, XIV em diante, digamos – é o processo de universalização
da criação/produção de mercadorias. Num primeiro instante, deu-se, sob a
égide do capital comercial e do capital usurário, a generalização da criação
de mercadorias no processo de circulação; num segundo momento, ocorreu,
já com base na transformação da própria força de trabalho em merca-
doria, a generalização da produção de mercadorias dirigida aos mercados
internos e/ou ao mercado mundial. Ademais, além da forma de produção
típica do capital industrial, várias outras – sob o influxo do próprio capi-
talismo nascente que posteriormente as subsumiria – definiram-se em
distintas partes do globo.
A produção colonial calcada no capital escravista-mercantil repre-
sentou uma das formas de se produzir mercadorias em larga escala para
os mercados mundiais; outra forma, baseada no trabalho servil e/ou na
exploração dos servos mediante a imposição de tributos de variado tipo,
ter-se-ia observado no Leste europeu; no Oriente, pode ter ocorrido uma
transformação acelerada de estoques, de há muito acumulados como
valores de uso, e de excedentes provenientes do artesanato e da agricultura
em mercadorias destinadas, sobretudo, às trocas com a Europa Ocidental
cuja expansão ganhou rapidez e dimensão maior a partir de meados do

61
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

século XIV; na África, a par de outros bens de exportação, “produzia-se”


a mercadoria mão de obra escrava. Enfim, as disponibilidades locais de
recursos e fatores, aliadas às condições econômicas, demográficas, polí-
ticas, institucionais e ideológicas, propiciaram a emergência de distintas
formas de produção em larga escala de mercadorias para os mercados
internos e/ou externos.
Se as proposições acima colocadas estiverem corretas, tem-se de
reconhecer, na consideração da gênese e desenvolvimento do mundo
moderno, o papel preeminente desempenhado pelo alargamento do
comércio, o qual, no caso da Europa Ocidental, enraíza-se na sociedade
feudal e contribuiu decisivamente para a superação do feudalismo e para
a emergência do capitalismo, o qual, por seu turno, desde seu nascedouro,
atuou como poderoso impulsor do comércio, vindo mesmo, rapidamente,
a subsumir tanto o capital comercial como o usurário. Posto, pois, o capi-
talismo, passa ele a subordinar, condicionar e determinar tudo o mais;
como afirmei em outro texto, a partir de então persiste apenas o modo de
produção capitalista.
Em suma, observou-se, em escala planetária, um processo gené-
rico – produção de mercadorias para os mercados internos e externos – que,
embora tenha vindo a se subordinar ao capital industrial, conheceu, basi-
camente em decorrência de circunstâncias tópicas concretas, distintas
formas mediante as quais, paralelamente à que se distingue como própria
do capitalismo, se efetuava a aludida produção.
Essas formas paralelas não decorreram da lógica de funcionamento
do capital industrial, não dimanaram de sua essência e não se impu-
seram, portanto, como necessárias, mas apresentaram-se, tão somente,
como soluções datadas, concretamente dadas, por meio das quais se deu
a incorporação/subordinação, aos interesses do capitalismo que se insta-
lava na Europa Ocidental, dos espaços econômicos e geográficos passíveis
de ocupação. No correr do tempo, viram-se elas, pois, descartadas, pois

62
A FORMAÇÃO DAS ECONOMIAS PERIFÉRICAS SOB A ÓTICA DA HISTÓRIA ECONÔMICA GERAL

mostraram-se, desde sempre – como anotado por Marx –, incompatíveis


com o desenvolvimento do capitalismo e, por consequência, com a relação
de assalariamento que lhe é peculiar.
Como se observa, não estamos em face da proliferação de novos
modos de produção, mas sim diante de um processo de enquadramento
de todo o planeta pelo capital industrial e pelo capitalismo que, definitiva-
mente, haviam-se assenhoreado da Europa Ocidental, processo esse que,
eventualmente – como no caso do Brasil –, estendeu-se por vários séculos.
As novas áreas escravistas – como as do Novo Mundo, por exemplo –
dependiam, para sua reprodução, como anotado por Marx, das economias
centrais; além disso, caso tais vínculos não existissem, essas sociedades
situadas na periferia do sistema assumiriam uma feição muito distinta da
que apresentavam:

La esclavitud de los negros – una esclavitud puramente industrial –, que


desaparece sin más y es incompatible con el desarrolo de la sociedad bur-
guesa, presupone la existencia de tal sociedad: si junto a esa esclavitud no
existieran otros estados libres con trabajo asalariado, todas las condiciones
sociales en los estados esclavistas asumirían formas precivilizadas. (Grifos de
Marx, 1980, v. 1, p. 159)

Ademais, se as economias estabelecidas perifericamente não


gozavam de autonomia plena, é forçoso reconhecer, de outra parte, que
não se definiam como simples apêndices ou projeções das economias e
sociedades centrais. Nesse sentido, gozavam de autonomia relativa. Assim,
à medida que nelas se desenvolveram empreendimentos visando a suprir,
ainda que parcialmente, o mercado interno, ocorreu a diversificação dos
processos de acumulação cuja dinâmica já não aparecia como mero reflexo
imediato das condições imperantes externamente, mas atendia, crescente-
mente, aos movimentos gerados internamente.
Nesse quadro de dependência e autonomia relativos diversifica-se
a produção e desenvolvem-se as populações dessas áreas, incluídos aí os
expressivos contingentes de livres despossuídos. Nesse pano de fundo,
além disso, estruturam-se os mercados regionais e dá-se a emergência de

63
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

interesses políticos e econômicos específicos. No correr do tempo, ganham


vida, pois, os elementos constitutivos das nações que devem sua origem
ao rompimento do antigo sistema colonial. Nações estas nas quais, sem a
necessidade da ocorrência de processos similares às revoluções burguesas
clássicas (como a Inglesa e a Francesa) e de maneira variada, dar-se-ão,
ainda no século XIX, duas mudanças correlatas: a transição do trabalho
escravo para o assalariado e a transformação do capital escravista-
mercantil em industrial.
Aliás, em todos os quadrantes essa segunda metade do século XIX
marca-se por profundas mudanças promovidas pelos interesses do capital:
a África é fatiada e uma nova era colonial tem início, a Índia passa ao
controle direto da Coroa, a China vê-se obrigada a crescentes concessões
aos britânicos que são secundados pela Alemanha, França, EUA, Rússia
e Japão; este último é obrigado a abrir-se ao comércio com o Ocidente e
procura modernizar-se. A América Latina, de resto, também vê-se presa
do imperialismo e do capital financeiro. Ao abrir-se o século XX, incon-
teste, o capitalismo domina sobranceiro, sendo verrumado, tão somente,
por suas próprias contradições.
Aí ficam, pois, esboçados em termos taquigráficos alguns processos
históricos dos quais se ocupam, entre outras, as disciplinas acadêmicas
dedicadas à história econômica geral e as votadas à formação econômica e
social do Brasil. Ao elaborarmos tal súmula procuramos colocar segundo
encadeamento cronológico e lógico algumas teses e ideias controversas,
para elas e para a necessidade de discuti-las com vagar chamamos, pois, a
atenção do leitor. Vejamo-las enumeradas.
A contar dos séculos XIII, XIV, a história econômica da humani-
dade viu-se norteada pelo (1) desenvolvimento do comércio e das formas
mercadoria, dinheiro e capital. Em decorrência do alargamento comercial
(2) definiram-se várias formas de se produzir para os mercados locais e
externos, incluindo-se aí o escravismo “industrial”, ou seja, produtor de
mais-valia, o qual, (3) sob a égide do capital escravista-mercantil possi-
bilitou a integração do Novo Mundo à economia europeia e mundial.

64
A FORMAÇÃO DAS ECONOMIAS PERIFÉRICAS SOB A ÓTICA DA HISTÓRIA ECONÔMICA GERAL

(4) Nessas áreas não se definiram novos modos de produção, pois elas
conheceram um longo período de transição que culminou – (5) dado o
próprio amadurecimento da sociedade burguesa em escala local e mundial –
com a superação, (6) sem a necessidade de “revoluções burguesas”, do
escravismo. Tais áreas periféricas mostraram-se (7) estritamente depen-
dentes das economias centrais, sem a existência das quais não poderiam
se reproduzir; não obstante, (8) elas conheceram uma autonomia relativa
na medida em que nelas se desenvolveram atividades econômicas voltadas
para seus mercados internos; (9) assim, nem eram totalmente autônomas,
nem se comportaram como meros apêndices das economias e sociedades
centrais. Impõem-se, assim, duas conclusões maiores: (10) a história
econômica deve considerar o estudo da gênese e amadurecimento do capi-
talismo como um todo orgânico do qual faz parte a emergência de áreas
periféricas como as situadas no Novo Mundo, incluindo-se aí, obviamente,
o estudo da formação econômica e social do Brasil; ademais, na medida
em que na periferia não se estabeleceram novos modos de produção,
(11) seu estudo tem de se pautar pela compreensão dos processos histó-
ricos concretos mediante os quais tais áreas foram incorporadas à
economia mundial.

Referência bibliográfica

MARX, Karl (1980). Grundrisse. México, D.F., Siglo Veintiuno.

65
6. ALGUMAS OPINIÕES SOBRE A CATEGORIA
“MODO DE PRODUÇÃO”
Iraci del Nero da Costa

Neste último quartel de século, deixei registradas, de maneira taqui-


gráfica e nem sempre clara e completa, duas formulações sobre os modos
de produção identificados por Marx.1 A primeira diz que tais categorias
devem ser vistas como integrantes de um continuum histórico-lógico
próprio da Europa ocidental; a segunda, conclusiva, reza: daí se infere a
impossibilidade de emparelharmos os distintos modos de produção.
Ao retomar essas formulações tento, tão somente, torná-las plena-
mente inteligíveis; para tanto, explicito abaixo algumas opiniões, ou meras
intuições, que me levaram a enunciá-las.
Segundo penso, dizer que os modos de produção integram um
continuum significa afirmar que um decorreu do outro, que se acham
entranhados, imbricados; tudo se passa como se considerássemos a mesma
pessoa em momentos distintos de sua vida, de tal sorte que, embora sendo
a mesma pessoa, ela se apresentasse em cada um daqueles momentos como
um todo uno e único, substantivamente distinto do que foi e do que será,
mas, ao mesmo tempo, definindo-se como “resultante” (ou fruto) do que
foi e “fundador” (ou embrião) do que será.
Os modos de produção apresentar-se-iam, pois, como integrantes
de um todo que vai além de cada um deles tomado isoladamente, que vai
além de uma mera justaposição, donde ser impossível destacá-los desse

1 Temos caracterizados, para a Europa ocidental, os seguintes modos de produção: comu-


nidade primitiva, escravista, feudal e capitalista. Acrescentando o modo de produção
socialista, teremos o rol completo dos modos de produção aos quais me refiro nestas
notas. Permito-me, ainda, empregar os termos escravismo, feudalismo e capitalismo
como sinônimos dos modos de produção correlatos.

67
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

todo e colocá-los “um ao lado do outro” a fim de confrontá-los, vale dizer,


estabelecer comparações entre coisas que seriam constituídas de substân-
cias idênticas ou equivalentes e que, em última instância e excluído o plano
formal, apresentariam estruturas similares. Não, tal operação é-nos defesa,
pois aceitar o pretendido continuum implica, logicamente, aceitar que os
modos de produção não podem ser emparelhados, não se ombreiam, não
apresentam o mesmo status, não são equivalentes, significa acatar, como
fato, não estarmos em face de uma categoria, fundamento ou conteúdo
denominado modo de produção que, no plano empírico, apresentar-se-ia
sob várias formas (escravista, feudal, etc.). Enfim, significa abonar a ideia
de que cada modo de produção representa, do ponto de vista teórico, um
corte lógico num processo histórico concreto, contínuo e solidário. Já do
ponto de vista empírico, acrescento eu, cada modo de produção favo-
rece em maior ou menor grau o processo de desenvolvimento das formas
mercadoria, dinheiro e capital.2 Deixemos esta última ideia para mais
adiante e centremo-nos em outras implicações que decorreriam do fato de
tomarmos como verossímil o aludido continuum.
Assim, aceito tal continuum, a gênese de cada modo de produção
pode ser única, específica, sendo impossível, portanto, confundir os cons-
tituintes genéticos – elementos constitutivos bem como as inter-relações
que os vinculam – de um modo de produção com os de outro. Ademais,

2 Como anotado por Marx, o impacto do alargamento da mercantilização levava, no


escravismo, a uma pressão maior sobre o escravo: “En el mundo antiguo, los efectos del
comercio y el desarrollo del capital comercial se traducen siempre en la economía esclavista;
y según el punto de partida, conducen simplemente a la transformación de un sistema
esclavista patriarcal, encaminado a la producción de medios directos de subsistencia,
en un sistema orientado hacia la producción de plusvalía. En el mundo moderno, por
el contrario, desembocan en el régimen capitalista de producción. De donde se sigue que
estos resultados se hallaban condicionados, además, por factores muy distintos, ajenos
al desarrollo del mismo capital comercial” (1965, p. 321). Já no âmbito do feudalismo,
o aludido alargamento podia resultar tanto no aumento como no afrouxamento das
pressões imediatamente exercidas sobre os servos. Como se vê – ainda que apenas
potencialmente –, em termos de mudança, em termos de avanço do processo de
universalização da mercantilização, o feudalismo coloca-se em plano “superior” ao do
escravismo, mostrando-se, pois, menos resistente ao aludido alargamento.

68
ALGUMAS OPINIÕES SOBRE A CATEGORIA “MODO DE PRODUÇÃO”

na medida em que não tem de haver, necessariamente, apenas um padrão


genético, torna-se impossível o estabelecimento de uma lei, ou conjunto de
regularidades, que explique, de maneira abrangente e genérica, a passagem
de um para outro modo de produção, ou seja, é impossível formular uma
teoria geral das revoluções. Além disso, o próprio funcionamento interno,
bem como a eventual “dinâmica” ou “rigidez” de cada modo de produção,
não são passíveis de equacionamento único, pois poderão ser peculiares
a cada um deles. Logo, tanto pela sua gênese como pelo seu “funciona-
mento”, os modos de produção podem diferir entre si.3 Disso se conclui
que eles não são isonômicos, vale dizer, não existe um conjunto único de
leis ou regularidades que os reja.
Mas não lhes falta só a isonomia, pois, entre os modos de produção,
também não existe homologia. Ao dizê-los não homólogos estamos a
afirmar que não tem de haver, necessariamente, correspondência entre
todos e cada um dos elementos constitutivos dos diversos modos de
produção. Além disso, muitos de tais elementos não se repetem em
modos de produção diferentes: uns por serem específicos de dado modo
de produção, outros porque, embora aparentemente iguais, desempe-
nham funções e/ou papéis únicos em cada um dos diferentes modos de
produção. Assim, como sabido, não existe no escravismo ou no feuda-
lismo um sucedâneo da “lei do valor”4 vigente no capitalismo. Da mesma
sorte, enquanto no capitalismo a concorrência econômica leva ao revolu-
cionamento das técnicas e se define como um elemento endógeno desse
modo de produção, no feudalismo, no que diz respeito ao relacionamento
entre senhores, ela não se fazia presente e o “desenvolvimento das forças
produtivas” dava-se independentemente do funcionamento do modo
de produção, definindo-se, segundo alguns, como elemento exógeno,
estranho ao feudalismo. Como exemplo de elemento presente em todos os

3 Justamente essas duas questões colocaram-se no centro da polêmica desenvolvida em


torno das teses de M. Dobb e P. M. Sweezy.
4 Ou seja, a determinação da magnitude do valor pelo tempo de trabalho socialmente
necessário.

69
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

modos de produção, mas a desempenhar papéis absolutamente distintos,


podemos tomar os bens pertencentes ao trabalhador direto: o escravo – ele
próprio uma propriedade de terceiros – detinha uns poucos bens pessoais
e, eventualmente, um pecúlio, muitas vezes não reconhecido legalmente;
já o servo, além do conjunto de bens pessoais, era proprietário, excluída
a terra, dos meios de produção básicos necessários à sua manutenção e
à reprodução de suas condições de trabalho, estando-lhe aberta, ainda, a
possibilidade de acumular;5 o proletário moderno, por seu turno, além de
possuir bens pessoais, detém a propriedade plena de sua força de trabalho.
A simples listagem aqui efetuada basta para evidenciar quão distintas são
as funções desempenhadas pelos bens possuídos pelo trabalhador direto
em distintos modos de produção, patenteando-se, pois, palmarmente, a
pretendida ausência de homologia.
A esta altura parece-me oportuna a retomada de duas ideias que
nos propiciarão explicitar, em sequência, algumas características funda-
mentais do modo de produção capitalista. A primeira acha-se logo acima:
“do ponto de vista empírico, cada modo de produção favorece em maior
ou menor grau o processo de desenvolvimento das formas mercadoria,
dinheiro e capital”. Já a segunda, colho num escrito por mim redigido há
vários lustros:

[...] os distintos modos de produção identificados por Marx devem ser


entendidos como um continuum... do qual o capitalismo é o ponto culmi-
nante, e o é porque, a partir de sua efetivação, a história, além de se fazer
universal, conheceu uma mudança qualitativa, de sorte que se tornou
impossível dissociar as distintas sociedades ou áreas do planeta – a soli-
dariedade que as une é dada e explicada pelo capital e pelo capitalismo.
(Costa, 1985, p. 3)

e só será superada quando o for o próprio capitalismo. Vejamos, pois,


como se relacionam essas duas proposições.

5 Veja-se, a respeito dessa possibilidade, os capítulos de O Capital dedicados à discussão


da renda da terra.

70
ALGUMAS OPINIÕES SOBRE A CATEGORIA “MODO DE PRODUÇÃO”

Consideremos, inicialmente, a afirmação “o capitalismo é o ponto


culminante...”: dela podemos derivar duas vertentes. A primeira aponta,
sobretudo, para o “passado” – o que teria levado o capitalismo a aparecer
como ponto culminante? A segunda dirige-se ao “futuro”: é possível
“observar” esse ponto culminante com base no que dele decorreu? Para
responder a essas questões servir-me-ei de recortes que efetuo em artigos
já publicados.
Quanto ao “passado” temos:

O capitalismo é a forma superior e derradeira da existência natural da


sociabilidade humana. Superior porque nele as formas mercadoria,
dinheiro e capital chegam ao seu pleno desenvolvimento; os homens defi-
nem-se como simples portadores de relações: o capitalista personifica o
capital, o trabalhador a força de trabalho reduzida à condição de mercado-
ria. O capital, por seu turno, traz implícitos os pressupostos de sua repro-
dução e acumulação: assim, enquanto os homens se sujeitarem à condição
de portadores de relações, o modo de produção capitalista recolocar-se-á
automática e autonomamente. Natural porque até então os homens res-
tringiram-se, tão somente, a acomodar-se e amoldar-se às circunstâncias
dadas. Nesse sentido, pode-se dizer que a história fez-se por e mediante
eles, mas não foi posta pelos homens, não podendo, pois, ser considerada
como criação efetivamente humana, vale dizer, como produto resultante
da ação consciente do homem. Segundo a perspectiva marxista, tal forma
de existência só será superada pela ação do espírito, da consciência, votada
à negação da propriedade privada sobre os meios de produção, base obje-
tiva sobre a qual se assenta aquela forma de sociabilidade. (Motta e Costa,
1995, p. 20)

E mais:

Longo período da vida econômica da humanidade pode ser entendido,


também, como a história do desenvolvimento das formas mercadoria,
dinheiro e capital. Esse desenvolvimento nada mais é que o processo do
qual resulta a universalização das ditas formas. Mercadoria, dinheiro e
capital, relações sociais que são, chegam à sua culminância, vale dizer, uni-
versalizam-se, objetiva e absolutamente, com a emergência da mercadoria

71
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

força de trabalho enquanto propriedade absoluta do trabalhador direto (...)


Em suma, a emergência da mercadoria força de trabalho funda o modo
de produção capitalista, possibilitando a transformação do trabalhador
livre em assalariado, do dinheiro em capital industrial e do detentor dos
meios de produção – e/ou da capacidade de mobilizá-los, mediante a pro-
priedade de dinheiro ou outros haveres – em capitalista. (Motta e Costa,
1997, pp. 21-22)

Com respeito ao “futuro”, é preciso considerar que, depois de esta-


belecido em um espaço geográfico considerável, o modo de produção
capitalista – diferentemente do que se dá no âmbito do escravismo e do
feudalismo – passa a expandir-se, “exportando-se” a si mesmo (assim
como “exporta” as distintas formas de capital), moldando, destarte,
segundo sua natureza interna, o “mundo” (e aqui falamos efetivamente de
todo o planeta) com o qual se defronta; na verdade, ele repõe, recria, as
várias economias, sociedades, comunidades e áreas com as quais se depara,
as quais, embora não assumam, imediatamente, feição estritamente capi-
talista, ver-se-ão, em escala crescente, condicionadas e determinadas pelo
capital e pelo capitalismo. Daí haver eu afirmado, no trecho reproduzido
acima:

[...] o capitalismo é o ponto culminante, e o é porque, a partir de sua efeti-


vação, a história, além de se fazer universal, conheceu uma mudança qua-
litativa, de sorte que se tornou impossível dissociar as distintas sociedades
ou áreas do planeta – a solidariedade que as une é dada e explicada pelo
capital e pelo capitalismo. (Costa, 1985, p. 3)

Cumpre notar, por fim, que, a meu juízo, “tal solidariedade só será
superada quando o for o próprio capitalismo” porque

[...] enquanto os homens se sujeitarem à condição de portadores de rela-


ções, o modo de produção capitalista recolocar-se-á automática e autono-
mamente. (...) tal forma de existência [o capitalismo] só será superada pela
ação do espírito, da consciência, votada à negação da propriedade privada
sobre os meios de produção, base objetiva sobre a qual se assenta aquela
forma de sociabilidade [o capitalismo]. (Ibid.)

72
ALGUMAS OPINIÕES SOBRE A CATEGORIA “MODO DE PRODUÇÃO”

Como se observa, ser-me-ia impossível admitir a existência de


modos de produção coloniais. Justificam-se, assim, estas palavras:

Tendo em vista... o caráter imanentemente expansionista e subordina-


dor do capitalismo, não nos parece incorreto concluir que nossa histó-
ria moderna [a história do Brasil a contar de 1500] define-se como um
demorado processo de adequação desta parte do planeta ao capital e ao
capitalismo. Nossa sociedade, posta pelo capital, empreendeu, pois, desde
seu nascedouro, um longo percurso do qual resultou, inexoravelmente, o
pleno estabelecimento do modo de produção capitalista no Brasil. Eviden-
temente, esse processo não se deu de maneira linear, assumiu, sim, formas
contraditórias, por vezes inacabadas e com contornos indefinidos – verda-
deiros aleijões para quem as analisar a partir dos modelos que se apresen-
taram em toda sua inteireza apenas em alguns países da Europa ocidental.
A nosso juízo, só há uma maneira de apreender tal processo: cumpre assi-
milá-lo enquanto tal, vale dizer, como processo histórico concretamente
dado... é preciso descrever como se deu o processo de ‘formação/incorpo-
ração/adequação’ da sociedade brasileira ‘segundo o/ao’ modo de produção
capitalista, o qual se deve tomar, a um tempo, como causativo e resultante
do aludido processo. (Ibid., p. 2)

Restam explicadas também, creio, as conclusões:

Disto se infere... a impertinência de “procurarmos” novos modos de pro-


dução depois de fundada, pelo capitalismo, a história universal. Posta esta
e, correlatamente, o mercado mundial, persiste, apenas, o modo de pro-
dução capitalista – que a tudo ilumina, parafraseando a imagem clássica.
Segundo nossa leitura de Marx, a superação “deste” modo de produção
significa a superação da própria categoria, a pré-história devém história; o
homem, até então pressuposto, devém sujeito. (Ibid., p. 3)

Ao dizer que restará superada a “própria categoria” e ao propor que


o homem “devém sujeito” estou a apontar uma outra distinção entre os
modos de produção, qual seja, a do papel da “consciência” na gênese de
cada um deles. Essa distinção foi avançada em citação colocada acima,
retornemos a ela:

73
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

O capitalismo é a forma superior e derradeira da existência natural da


sociabilidade humana. (...) Natural porque até então os homens restringi-
ram-se, tão somente, a acomodar-se e amoldar-se às circunstâncias dadas.
Neste sentido pode-se dizer que a história fez-se por e mediante eles, mas
não foi posta pelos homens, não podendo, pois, ser considerada como
criação efetivamente humana, vale dizer, como produto resultante da ação
consciente do homem. Segundo a perspectiva marxista, tal forma de exis-
tência só será superada pela ação do espírito, da consciência... (Motta e
Costa, 1995, p. 20)

Além de remeter o leitor para o artigo ora citado, transcrevo abaixo


um longo trecho colhido em G. Lukács no qual o autor – a meu ver em
termos definitivos – trata da questão aqui aventada:

Pues las clases que en anteriores sociedades se vieron llamadas al dominio


y, por lo tanto, fueron capaces de realizar revoluciones victoriosas, se
encontraron subjetivamente ante una tarea mucho más fácil, a causa
precisamente de la inadecuación de su consciencia de clase respecto de la
estructura económica objetiva, o sea, a causa de su inconsciencia respecto de
su propia función en el proceso del desarrollo social. Les bastó con imponer sus
intereses inmediatos mediante la fuerza de que disponían, y el sentido social
de sus acciones les quedó siempre oculto, entregado a la ‘astucia de la razón’
en el proceso social determinado. Pero como el proletariado se encuentra en
la historia con la tarea de una transformación consciente de la sociedad,
tiene que producirse en su consciencia de clase la contradicción dialéctica
entre el insterés inmediato y la meta última, entre el momento singular y
el todo. Pues el momento singular del proceso, la situación concreta con sus
concretas exigencias, es por su naturaleza inmanente a la actual sociedad, a
la sociedade capitalista, se encuentra sometida a sus leyes y a su estructura
económica. Y no se hace revolucionaria más que si se inserta en la concepción
total del proceso, cuando se introduce con referencia al objetivo último,
remitiendo concreta y conscientemente más allá de la sociedad capitalista.
Pero eso significa, subjetivamente considerado, para la consciencia de clase
del proletariado, que la relación dialética entre el interés inmediato y la acción
objetiva orientada al todo de la sociedad queda situada en la consciencia del
proletariado mismo, en vez de desarrollarse, como ocurrió con todas las clases
anteriores, más allá de la consciencia (atribuible), como proceso puramente

74
ALGUMAS OPINIÕES SOBRE A CATEGORIA “MODO DE PRODUÇÃO”

objetivo. La victoria revolucionaria del proletariado no es pues, como para


las demás clases anteriores, la realización inmediata del ser socialmente dado
de la clase, sino – como ya lo vio y formuló agudamente el joven Marx – la
autosuperación de la clase. El Manifiesto Comunista formula esa diferencia
del siguiente modo: ‘Todas las clases anteriores que conquistaron para sí el
dominio intentaron asegurar la posición que ja havian logrado en la vida
sometiendo la sociedad entera a las condiciones de su logro. Los proletarios
no pueden conquistar para sí las fuerzas sociales de producción más que
suprimiendo su propio anterior modo de apropiación y, con ello, todo modo
de apropiación existido hasta ahora. Esta dialéctica interna de la situación de
clase dificulta, por un lado, el desarrollo de la consciencia de clase proletaria
a diferencia del caso de la burguesía, que en el despliegue de su consciencia de
clase pudo quedarse en la superficie de los fenómenos, detenida en la empiria
más abstracta y grosera, mientras que para el proletariao, y ya en estadios
muy primitivos de su desarrollo, el rebasiamiento de lo inmediatamente dado
fue una imposición básica de su lucha de clases. (1975, pp. 77-78)

Aí ficam, pois, algumas opiniões, muitas delas meramente impressio-


nistas e intuitivas, sobre a categoria em tela. Não tenho dúvidas, em breve
o conjunto da obra de Hegel e Marx voltará a ser objeto de intenso debate.
Devemos estar preparados para ele, tentando armar-nos, também, com
nossa imaginação e espírito inventivo, pois, se muito resta por aprender com
esses mestres, muito ainda terá de ser feito no plano da criação teórica.

Referências bibliográficas

COSTA, Iraci del Nero da (1985). Nota sobre a não existência de modos de produção
coloniais. São Paulo, IPE-FEA/USP (mimeo).
LUKÁCS, Georg (1975). Historia y consciencia de clase. Barcelona, Grijalbo (Ins-
trumentos, 1).
MARX, Carlos (1965). El capital: crítica de la economía política. México, D.F., Fon-
do de Cultura Económica, vol. III.
MOTTA, José Flávio e COSTA, Iraci del Nero da (1995). O fim da história, o início
da história. Informações FIPE. São Paulo, n. 172, pp. 20-23.
(1997). A emergência da mercadoria força de trabalho: algumas impli-
cações. Informações FIPE. São Paulo, n. 198, pp. 21-23.

75
7. REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO
DE CAIO PRADO JÚNIOR
Iraci del Nero da Costa1

1. Introdução

Com a formulação do conceito sentido da colonização, Caio Prado


Júnior procurou evidenciar o escopo maior do colonizador (seus obje-
tivos últimos) e identificar o consequente caráter dependente e reflexo da
economia brasileira com respeito aos mercados e interesses externos:

[...] explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do


comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de
que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamen-
tais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução históricas
dos trópicos americanos. [...] Se vamos à essência da nossa formação, vere-
mos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco... (...)
e em seguida café, para o comércio europeu. É com tal objetivo, objetivo
exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não
fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a
economia brasileiras. [...] O “sentido” da evolução brasileira que é o que
estamos aqui indagando, ainda se afirma por aquele caráter inicial da colo-
nização. (Prado Júnior, 1987, pp. 31-32);

mais adiante, acrescenta:

Da economia brasileira, em suma, e é o que devemos levar daqui, o que


se destaca e lhe serve de característica fundamental é: de um lado, na sua
estrutura, um organismo meramente produtor, e constituído só para isto:
um pequeno número de empresários e dirigentes que senhoreiam tudo, e

1 O autor agradece as valiosas sugestões e críticas do professor José Flávio Motta.

77
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

a grande massa da população que lhe serve de mão de obra. Doutro lado,
no funcionamento, um fornecedor do comércio internacional dos gêneros
que este reclama e de que ela dispõe. Finalmente, na sua evolução, e como
consequência daquelas feições, a exploração extensiva e simplesmente
especuladora, instável no tempo e no espaço, dos recursos naturais do país.
(Ibid., p. 129)

Buscou, ademais, estabelecer os elementos estruturais básicos


sobre os quais ocorreram a ocupação e a valorização do território colo-
nial, obedecido aquele sentido; encontrou-os na grande propriedade, na
monocultura e na exploração do trabalho escravo. Delineou-nos, pois, um
quadro no qual, colocado em face de abundantes terras virgens (caráter
extensivo e predatório das atividades), o colonizador ávido de lucros orga-
nizou a produção em larga escala (grande propriedade) de bens tropicais
que garantissem rentabilidade máxima (monocultura), dada a inexistência
de uma sociedade pretérita que pudesse fornecer mão de obra juridica-
mente livre e despossuída de meios de produção (escravismo). Por fim,

Na agricultura colonial brasileira é preciso distinguir dois setores cujo


caráter é inteiramente diverso. (...) De um lado, a grande lavoura, seja ela
do açúcar, do algodão ou de alguns outros gêneros de menos importância,
que se destinam todos ao comércio exterior. Doutro, a agricultura de “sub-
sistência”, isto é, produtora de gêneros destinados à manutenção da popula-
ção do país, ao consumo interno. (...) A grande lavoura representa o nervo
da agricultura colonial; a produção dos gêneros de consumo interno – a
mandioca, o milho, o feijão, que são os principais – foi um apêndice dela,
de expressão puramente subsidiária. (Ibid., pp. 142-143)

A nosso ver, é esta, em suma, a essência do modelo interpretativo


proposto por Caio Prado Júnior; a esse indiscutível contributo à compre-
ensão de nossa formação histórica devemos, como sabido, um grande
número de estudos nele inspirados e dos quais resultou, em grande parte,
o avanço observado nas últimas décadas com respeito ao conhecimento de
nosso passado econômico, político e social.

78
REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO DE CAIO PRADO JÚNIOR

É, pois, a partir do reconhecimento da importância do modelo de


Caio Prado Júnior que nos abalançamos a questioná-lo e a propor algumas
soluções com as quais visamos a repensá-lo de sorte a contribuirmos para
o estabelecimento de uma visão apta a integrar, criticamente, os novos
raciocínios e os achados mais recentes decorrentes do referido avanço de
nossos conhecimentos históricos.
Evidentemente, não nos escapa estarmos em face de um modelo
explicativo, interpretativo – e não meramente descritivo – de nossa história.
Assim, em face de eventuais reparos, poder-se-á, sempre, alegar que tal
modelo explica, em última instância, nossa formação. De nossa parte,
retorquiremos que tal alegação encobre uma grave limitação presente no
núcleo mesmo do aludido modelo, qual seja: a de pensar a constituição da
economia brasileira como uma mera projeção imediata do capital comer-
cial no plano da produção. Interessa-nos, pois, basicamente, o estabele-
cimento de categorias e mediações que, por não terem sido consideradas
pelo autor, parecem-nos necessárias para a superação de seu modelo e o
entendimento mais completo de nossa evolução histórica, particularmente
no que tange à nossa constituição demoeconômica.

2. Espírito de acumulação, autoconsumo e marginalidade

Um corolário imediato do “sentido da colonização” está no fato de


que tanto colonizadores como seus descendentes deveriam estar empol-
gados pela ideia da acumulação. Ora, no correr do tempo, evidenciou-se
que tal pressuposto não se cumpriu inteiramente. Uma parcela expres-
siva da população parece ter ficado infensa à perspectiva da acumulação;2

2 Como sabido, muitos autores coevos legaram-nos depoimentos sobre essas questões;
escusamo-nos, portanto, de reproduzi-los aqui. Assim, recordando que suas opiniões
marcaram-se, quase sempre, pelo eurocentrismo e por claras perspectivas ideológicas,
cingimo-nos, tão somente, à transcrição de uma ilustrativa passagem das impressões
deixadas pelo português Augusto Emílio Zaluar, que percorreu o território paulista
em 1861, e na qual, certamente industriado por um morador local, contrapôs as
mentalidades ora referidas: “À exceção das pessoas mais ilustradas, dos fazendeiros e

79
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

de outra parte, associados aos que não desejavam participar do aludido


processo de “enriquecimento”, encontraremos os que, embora pudessem
estar desejosos de alcançar tal participação, não conseguiram efetivar
tal anelo, pois, como fartamente sabido, os processos de acumulação no
Brasil marcaram-se pela alta concentração da riqueza e pela consequente
excludência de largos efetivos populacionais. Vemo-nos, portanto, em
face de crescentes segmentos populacionais que se viram, por vontade
própria ou em decorrência do próprio funcionamento da economia, cada
vez mais apartados do referido processo de acumulação. Ora, tais pessoas
encontram espaço muito restrito nos esquemas propostos por Caio Prado
Júnior e, por via de regra, são relegados pelo autor a uma condição de
marginalidade absoluta.3 Destarte, é deixada de lado uma parcela muito

comerciantes, o resto da população é naturalmente indolente, preguiçosa e alheia a todos


os regalos da civilização, contentando-se apenas com qualquer meio de subsistência,
sem se importar qual será a sua sorte no dia seguinte nem donde lhe virão recursos.
(...) Como a terra é aqui abundante e toca a todos, esses homens, a quem se chama
no lugar caipiras, cultivam a ferro e fogo o torrão que possuem, e plantam-lhe milho,
feijão e arroz. Colhido o seu produto, que sem muito trabalho podem haver, levam-no
ao mercado, onde o vendem para comprar a roupa que lhes é necessária durante o ano,
e regressam à casa, entregando-se outra vez aos seus hábitos de ociosidade, confiados
na fertilidade do solo, que lhes fornece abóboras, aipim, batatas e outros gêneros, bem
como das matas, que lhes oferecem palmitos, aves e outras muitas qualidades de caça,
assim como nos rios, que os alimentam com muitos, variados e gostosos peixes. (...)
Nesta vida, quase completamente improdutiva, vão passando os anos e o tempo sem
que se tire partido das grandes vantagens que promete o município, nem se desenvolva
nenhum dos elementos de progresso que a natureza tão generosamente lhes confiou,
‘estando condenados, como observa um morador da vila que nos forneceu estas notas,
a ver esvaecerem-se as nossas mais fundadas esperanças, deixando estéril o nosso solo
tão fértil, e sem útil aproveitamento os nossos campos tão amenos, os nossos climas tão
saudáveis, os nossos rios tão serenos, os nossos sertões tão opulentos e majestosos, tudo
por falta de ação, de trabalho e de energia!’” (Zaluar, 1975, pp. 108-109).
3 “Entre essas duas categorias [senhores e escravos] nitidamente definidas e entrosadas
na obra da colonização, comprime-se o número, que vai avultando com o tempo, dos
desclassificados, dos inúteis e inadaptados; indivíduos de ocupações mais ou menos
incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma. Aquele contingente vultoso em que
Couty mais tarde viria o “povo brasileiro”, e que pela sua inutilidade daria como inexis-
tente, resumindo a situação social do país com aquela sentença que ficaria famosa: ‘Le
Brésil n’a pas de peuple’.

80
REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO DE CAIO PRADO JÚNIOR

numerosa de nossa população e, com ela, seu contributo para a formação


demográfica do Brasil, sua vida econômica e a parte do produto global a ela
devida, sobretudo a produção de gêneros básicos votados ao autoconsumo.
Perde-se de vista, assim, o que hodiernamente chamaríamos “Brasil real”
e se privilegia desmesuradamente o “Brasil exportacionista”, vale dizer, o
segmento econômico voltado para os mercados mundiais. Repisemos aqui
as próprias palavras de Caio Prado Júnior:

“O número deste elemento indefinido socialmente, é avantajado, e cresce contínua


e ininterruptamente porque suas causas são permanentes. No tempo de Couty, ele o
calcula, numa população total de 12 milhões, em nada menos que a metade, 6 milhões.
Seria menor talvez a proporção nos três milhões, de princípios do século; mas ainda
assim, compreenderia com certeza a grande, a imensa maioria da população livre
da colônia. Compõe-se, sobretudo, de pretos e mulatos forros ou fugidos da escra-
vidão; índios (...); mestiços de todos os matizes e categorias, que não sendo escravos
e não podendo ser senhores, se vêm repelidos de qualquer situação estável, ou pelo
preconceito ou pela falta de posições disponíveis; até brancos, brancos puros, e entre
eles, como já referi, anteriormente, até rebentos de troncos portugueses ilustres (...);
os nossos poor white, detrito humano segregado pela colonização escravocrata e rígida
que os vitimou. (...) Uma parte dessa subcategoria colonial é composta daqueles que
vegetam miseravelmente nalgum canto mais ou menos remoto e apartado da civili-
zação, mantendo-se ao Deus dará, embrutecidos e moralmente degradados (...). Uma
segunda parte da população vegetativa da colônia é a daqueles que, nas cidades, mas
sobretudo no campo, se encostam a algum senhor poderoso (...) São então os chamados
agregados, os moradores dos engenhos (...). Finalmente, a última parte, a mais degra-
dada, incômoda e nociva é a dos desocupados permanentes, vagando de léu em léu à
cata do que se manter, e que, apresentando-se a ocasião, enveredam francamente pelo
crime” (Prado Júnior, 1987, pp. 281-283). São do mesmo autor as afirmações: “Quem
não fosse escravo e não pudesse ser senhor, era um elemento desajustado que não se
podia entrosar normalmente ao organismo econômico e social do País. Isto que já
vinha dos tempos remotos da colônia, resultava em contingentes relativamente grandes
de indivíduos mais ou menos desocupados, de vida incerta e aleatória e que davam,
nos casos extremos, nestes estados patológicos da vida social, a vadiagem criminosa e
a prostituição” (Prado Júnior, 1956, p. 203). Ao diagnosticar as causas dessa situação,
diz: “Vimos as condições gerais em que se constitui aquela massa popular – a expressão
não é exagerada – que vive mais ou menos à margem da ordem social: a carência de
ocupações normais e estáveis capazes de absorver, fixar e dar uma base segura de vida
à grande maioria da população livre da colônia. Esta situação tem causas profundas,
de que vimos a principal, mais saliente e imediata: a escravidão, que desloca os indi-
víduos livres da maior parte das atividades e os força para situações em que a ociosi-
dade e o crime se tornam imposições fatais. Mas alia-se, para o mesmo efeito, outro
fator que se associa aliás intimamente a ela: o sistema econômico da produção colonial.

81
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

Entre essas duas categorias [senhores e escravos] nitidamente definidas e


entrosadas na obra da colonização, comprime-se o número, que vai avul-
tando com o tempo, dos desclassificados, dos inúteis e inadaptados; indi-
víduos de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação
alguma. Aquele contingente vultoso em que Couty mais tarde viria o “povo
brasileiro”, e que pela sua inutilidade daria como inexistente, resumindo a
situação social do país com aquela sentença que ficaria famosa: “Le Brésil
n’a pas de peuple”. (Ibid., p. 281)

Parece-nos desnecessário lembrar que tratar tal povo como inexis-


tente ou categorizá-lo, sem mais, como composto de marginais sociais
significa reproduzir as ideologias próprias das velhas elites dominantes e
abrir as portas para teses simplistas como a que reduziu a questão social a
uma questão de polícia.

3. Grande lavoura e agricultura de subsistência:


por uma categorização alternativa

A referência ao autoconsumo leva-nos a outro ponto que merece


atenção especial. Pensamos no tratamento emprestado à agricultura de

No ambiente asfixiante da grande lavoura, vimo-lo noutro capítulo, não sobra lugar
para outras atividades de vulto. O que não é produção em larga escala de alguns
gêneros de grande expressão comercial e destinados à exportação, é fatalmente rele-
gado a um segundo plano mesquinho e miserável. Não oferece, e não pode oferecer
campo para atividades remuneradoras e de nível elevado. E assim, todo aquele que
se conserva fora daquele estreito círculo traçado pela grande lavoura, e são quase
todos além do senhor e seu escravo, não encontra pela frente perspectiva alguma.
(...) Um último fator, finalmente, traz a sua contribuição, e contribuição apreciável
de resíduos sociais e inaproveitáveis. É a instabilidade que caracteriza a economia e
a produção brasileiras e não lhes permite nunca assentarem-se sólida e permanente-
mente em bases seguras. Em capítulo anterior já assinalei esta evolução por arrancos,
por ciclos em que se alternam, no tempo e no espaço, prosperidade e ruína, e que
resume a história econômica do Brasil Colônia. As repercussões sociais de uma tal
história foram nefastas: em cada fase descendente, desfaz-se um pedaço da estrutura
colonial, desagrega-se a parte da sociedade atingida pela crise. Um número mais ou
menos avultado de indivíduos inutiliza-se, perde suas raízes e base vital de subsistência.
Passará então a vegetar à margem da ordem social” (Prado Júnior, 1987, pp. 285-286).

82
REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO DE CAIO PRADO JÚNIOR

subsistência. Sob esse conceito o autor emparelhou realidades econômicas


muito distintas, o que acarreta, a nosso juízo, incontornáveis dificuldades
analíticas. Assim, a par da produção em larga escala de gêneros alimen-
tícios efetuada por escravistas de porte e vendidos no mercado interno,
enquadra-se na agricultura de subsistência a acanhada produção executada
por não proprietários e destinada ao seu próprio passadio. Sob essa cate-
goria colocam-se, ainda, a produção realizada e consumida por cativos
nas grandes propriedades escravistas votadas ao plantio ou preparo de
bens de exportação e a venda ocasional de excedentes agrícolas por parte
de pequenos produtores isolados e sem escravo algum. Enfim, muitos
aspectos da vida econômica de então restam enuviados por se verem colo-
cados indistintamente sob um mesmo rótulo; perde-se, pois, a especifici-
dade de cada um sem alcançar-se uma síntese esclarecedora. A nosso ver,
sem se perder de vista o objetivo maior de Caio Prado Júnior – mostrar
o papel subsidiário da produção de gêneros para consumo interno –, é
possível reformularmos a categorização inicialmente proposta pelo autor
sem incorrermos nos aludidos prejuízos analíticos.
Ainda com respeito à grande lavoura e à agricultura de subsistência,
é preciso observar que os processos efetivos mediante os quais se dava a
acumulação, sobretudo aquele vinculado à produção em mais larga escala
para o mercado interno, também ficam parcialmente obscurecidos por
terem sido colocados no âmbito dos dois setores (grande lavoura/subsis-
tência) aos quais, obviamente, o autor emprestou naturezas distintas.
O risco maior envolvido em tal bipartição está, cremos, de um lado,
em extremar-se o isolamento do processo de acumulação vinculado ao
mercado interno e, por outro, em emprestar-se um peso mais do que o
devido ao processo de acumulação concernente à produção dirigida
ao mercado internacional. Assim, o processo vinculado ao mercado
externo, mais dinâmico e determinante, passaria a ocupar quase todo o
espaço reservado à acumulação, enquanto a produção para o mercado
interno, além de subsidiária e dependente, viria a confundir-se com a

83
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

mera economia de autoconsumo. Este é, a nosso juízo, outro argumento


favorável à reconsideração da categorização esposada por Caio Prado
Júnior. A esta questão voltaremos a seguir.

4. Terra: propriedade plena e usufruto

Como se depreende dos próprios escritos de Caio Prado Júnior,


estabeleceu-se, no Brasil, um largo distanciamento entre a propriedade da
terra (altamente seletiva, elitista e restritiva) e as várias formas assumidas
pelo seu usufruto (cessão graciosa, aluguel, aforamento, posse, existência
de moradores, agregados, rendeiros, de lavradores mais modestos – os
brigados –, da meia, da terça, etc.), o qual, diga-se, não se marcou pela
excludência, mas, antes, por certa “permissividade”, da qual resultou um
amplo leque de maneiras mediante as quais se tornou possível, aos menos
privilegiados, o acesso à terra.4 Tal distanciamento entre propriedade e

4 Como avançado, na própria obra de Caio Prado Júnior encontramos muitas referências
a tal possibilidade, a qual também se viu fartamente documentada por autores coevos.
Apenas a título ilustrativo reproduzimos, pois, dois destes relatos: “Ninguém aqui,
disse-me o comandante, quer ganhar dinheiro para trabalhar, por pouco que seja, de
um modo constante. Os fazendeiros, que possuem todos grandes extensões de terra,
deixam os pobres cultivá-las na quantidade que quiserem; com muito pouco trabalho
estes últimos estão certos de ganhar o bastante para viver durante um ano, e preferem
repousar a gozar de bem-estar devido a alguns suores” (Saint-Hilaire, 1937, p. 163).
“O único recurso que ao pobre cabe é pedir, ao que possui léguas de terra, a permissão
de arrotear um pedaço de chão. Raramente lhe é recusada tal licença, mas como pode
ser cassada de um momento para outro, por capricho ou interesse, os que cultivam
terreno alheio e chamam-se agregados, só plantam grãos cuja colheita pode ser feita
em poucos meses, tais como o milho e o feijão. Não fazem plantações que só deem ao
cabo de longo tempo como o café” (Saint-Hilaire, 1974, p. 24). “Conseguem-se terras
tanto por doação como por compra e, como as distribuem baseados só no mapa, sem
qualquer medição no terreno, não admira que surjam contestações e confusões com
respeito às divisas. A fim de esclarecer e confirmar suas pretensões, há muitos proprie-
tários que instalam ao redor de suas fronteiras certo número de pequenos sitiantes a
que chamam de “moradores”; estes pagam um pequeno foro, buscam seu sustento prin-
cipalmente pelo cultivo de verduras e preenchem as importantes funções de vigias,
impedindo invasão por parte dos proprietários e furtos de madeira. São geralmente
gente bronca, que tem família, por vezes um ou dois escravos, e muito acrescem à
população local; amam contudo a independência e raramente permanecem depois que

84
REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO DE CAIO PRADO JÚNIOR

usufruto parece-nos crucial para o entendimento da formação das popu-


lações brasileiras, sobretudo dos segmentos populacionais não imedia-
tamente vinculados à manutenção e reprodução do sistema econômico
dominante, vale dizer, não imediatamente necessários à grande lavoura.
Assim, se nos centrarmos na consideração desta última, defrontar-nos-
emos, sempre, com o latifúndio excludente; de outra parte, se dermos
atenção ao usufruto da terra e ao autoconsumo, veremos abrir-se o terreno
no qual se desenvolveu parcela substantiva da população brasileira, nesta
mesma órbita, como veremos adiante, encontraremos, ademais, as raízes
de muitos dos problemas sociais, demográficos e econômicos que nos
afligem atualmente.
Fixemos, pois, uma outra qualificação ao modelo em tela: ao atribuir,
no respeitante à nossa formação econômica e social, papel determinante
à grande lavoura, o autor teve de prender-se às questões afetas à proprie-
dade da terra vendo-se remetido, imediatamente, à produção em larga
escala efetuada no latifúndio escravista e monocultor. Caso emprestemos,
quanto àquela formação, papel de relevância – ou papel codeterminante,
como diríamos – à assim chamada agricultura de subsistência, seremos
levados à consideração de uma dimensão complementar à privilegiada por
Caio Prado Júnior: o usufruto da terra e a consequente posse precária de
pequenas áreas nas quais, sobretudo com base na mão de obra familiar,
praticava-se a policultura voltada, essencialmente, para o autoconsumo.

as divisas já estão devidamente discriminadas e em cultivo suas partes mais remotas.


[...] Sucede-lhe, frequentemente, uma classe mais valiosa de foreiros que possui já um
capital pequeno, que empregam na compra de escravos, cultivando porções maiores
de terra e pagando seus foros seja em moeda seja em trabalho e, ainda, o que é mais
comum, em gêneros. Se o artigo produzido é a cana, a mais lucrativa das culturas do
Brasil, metade da produção toca ao dono das terras, pela qual não só fornece ele o solo,
como mói a quota do meeiro... (...) Ao mesmo tempo há muitos foreiros que melhoram
de situação, fazem-se adiantados entre os lavradores e acabam por se tornarem também
proprietários” (Luccock, 1951, p. 194). O Prof. José Flávio Motta, que leu os originais
destas notas, considera tal “permissividade” quanto ao usufruto da terra como “permis-
sividade excludente”, pois a toma, e nisso concordamos plenamente, como crucial no
que diz respeito à reprodução da excludência quanto à propriedade plena.

85
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

A nosso ver, estamos em face de um caso flagrante em que um


elemento de mediação – representado pelo usufruto da terra – desem-
penha papel codeterminante quanto à ocupação de um fator produtivo
crucial, cabendo à propriedade plena da terra o papel de determinante em
última instância quanto à alocação do fator.
A perspectiva metodológica ora explicitada tem ensejado a identifi-
cação de muitas vertentes temáticas dela decorrentes, várias das quais, aliás,
viram-se exploradas em estudos recentes. Em face da peculiaridade e rele-
vância das questões envolvidas e visando a evidenciar as potencialidades
que se abrem ao admitirmos a existência de um conjunto de fatores code-
terminantes – uns de caráter exógeno, outros de corte endógeno e conju-
gados aos primeiros –, dedicamos os quatro próximos tópicos à discussão
de algumas daquelas vertentes temáticas, quais sejam: emergência da
população dita “redundante”, características demográficas e econômicas
dos não proprietários de escravos, estrutura de posse de cativos e, por fim,
policultura de gêneros básicos. Vejamo-las, pois.

5. Gênese e crescimento da população redundante

O comportamento cíclico da economia de exportação – ou seja,


a recorrência de períodos de crise econômica –, aliado às formas de uso
da terra e às parcas necessidades materiais e espirituais do segmento
populacional economicamente marginalizado com respeito ao mercado
externo, propiciou a emergência de “excedentes” populacionais que não
só tenderam a crescer com o passar do tempo, mas vieram a compor um
elemento qualitativo fundamental de nossa formação econômica e social.
Ocupemo-nos, pois, desse processo.
Entendemos como “população redundante” aqueles efetivos não
necessários à reprodução das condições econômicas dominantes. Tal
“excesso” populacional, embora não se confunda com o exército indus-
trial de reserva, deve, como este, ser entendido como relativo, pois sempre
se refere às características das “economias” dominantes em cada área e

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REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO DE CAIO PRADO JÚNIOR

momento do tempo. A concorrência do açúcar produzido nas Antilhas –


na qual se assenta, desde o segundo meado do século XVII, a secular
depressão econômica do Nordeste brasileiro – ensejou, como evidenciado
por Celso Furtado,5 a constituição de nossos primeiros contingentes popu-
lacionais redundantes. O paulatino adensamento demográfico naquela
região foi propiciado, sobretudo, pela atividade criatória desenvolvida na
área interiorana que funcionou como “válvula de escape” para as popula-
ções deslocadas da região açucareira pela depressão econômica observada
a partir do marco cronológico acima indicado.
Um segundo momento crucial do fenômeno em foco decorreu
da exaustão do ouro aluvionário das Minas Gerais. Como anotado pelos
coevos, no século XVIII o Brasil conheceu grande afluxo de reinóis e de
africanos reduzidos à escravidão. Nas Gerais, em função do interesse e da
aplicação no processo produtivo que se tinha de despertar nos escravos
ocupados nas lavras, as alforrias ocorreram com maior frequência vis-à-
vis as áreas votadas à agricultura. Assim, mesmo no período de ascensão
econômica, faziam-se presentes pressões no sentido da geração de
eventuais contingentes redundantes,6 os quais viram-se enormemente

5 A menção a Celso Furtado deve-se ao seu inestimável contributo para a determinação


dos elementos econômicos constitutivos das condições que ensejaram o surgimento e
desenvolvimento das populações redundantes no Brasil. Em Formação econômica do
Brasil, Celso Furtado pautou-se por eixo distinto do que estamos a explorar aqui. Em
face de seu escopo maior – estabelecer as condições que se colocavam como neces-
sárias e suficientes para chegar-se, no Brasil, ao desenvolvimento econômico calcado
na industrialização –, o autor viu-se compelido a centrar sua análise nos elementos da
economia brasileira orientados pela busca da acumulação de capital. Não podia, pois,
considerar mais ampla e detidamente a parcela redundante de nossa população, a qual,
diga-se, representa uma de suas principais preocupações. Na obra em tela, seu engano,
a nosso juízo, repousou na ilusão, posteriormente descartada pelo próprio autor, de
que a industrialização garantiria, per se e automaticamente, a integração plena dos
segmentos populacionais desprivilegiados à vida econômica, política e social da nação.
6 É da mais alta relevância lembrar que a concessão de alforrias também operou, parti-
cularmente nos períodos de ascensão e apogeu da atividade exploratória, no sentido
de propiciar aos ex-escravos o acesso à condição de proprietários de cativos. Assim,
por exemplo, na Comarca do Serro do Frio, em 1738 – momento em que ali só se
extraía o ouro, pois a atividade diamantífera estava proibida –, 22,2% dos proprietários

87
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

acrescidos quando se esgotou o ouro, pois, como mostrado por Caio


Prado Júnior, o subsequente florescimento da agricultura e a incorporação
de novas áreas ao ecúmeno deram-se numa quadra na qual ocorreu a
ampliação do autoconsumo.
Tal quadro ver-se-á agravado pela retrógrada Lei de Terras de 1850,
condicionada pela falência do sistema escravista e comprometida com a
solução propugnada pelos imigrantistas. Uma eventual valorização da mão
de obra livre autóctone foi descartada e partiu-se em busca do trabalhador
estrangeiro, já impregnado, diga-se de passagem, pelo espírito de acumu-
lação capitalista e, portanto, partícipe ativo dos processos econômicos que
giravam em torno da expansão cafeeira. Essa solução para o problema da
mão de obra condenou ao descaso o trabalhador livre nacional e criou as
bases para se dar destino idêntico aos ex-escravos quando de sua manu-
missão definitiva em 1888. A eles sobravam, tão somente, as fímbrias da
vida econômica e social, vale dizer, a agricultura de autoconsumo efetuada,
em larga escala, em terras de terceiros.
No plano das mentalidades, o processo acima descrito é igualmente
perverso, na medida em que impede a assimilação, por parte de grandes
massas populacionais, dos valores próprios do capitalismo moderno.
Veem-se elas, assim, relegadas a uma vivência material e espiritual degra-
dada, o que as impossibilita de tomar consciência plena de seus direitos e
de atuar politicamente de modo consentâneo a seus interesses.
A compor o grupo de não proprietários de escravos, além desse
segmento redundante e mais desprivilegiado, encontravam-se numerosos
efetivos populacionais que, conjuntamente, compunham a parcela majori-
tária dos habitantes do Brasil ao tempo da colônia e do império. Conside-
remo-la, pois, mais detidamente.

de escravos eram forros e detinham 9,9% do número total de escravos; em Congonhas


do Sabará, no ano de 1771, os forros perfaziam 21,7% dos proprietários e possuíam
10,2% dos cativos (cf. Luna e Costa, 1980, pp. 839-840; Luna, 1982, p. 43).

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REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO DE CAIO PRADO JÚNIOR

6. Presença dos não proprietários de escravos

Como avançado, a população redundante corresponde a uma parte


do conjunto dos não proprietários de cativos, os quais, em sua imensa
maioria, dependiam, tão só, da mão de obra familiar e vinculavam-se a
atividades econômicas não relacionadas imediatamente com a produção
de bens de exportação. Vejamos, em termos genéricos, como se apresen-
tavam algumas das características demoeconômicas desse importante
segmento populacional – tomado agora em seu todo7 – em fins do século
XVIII e inícios do XIX e para núcleos localizados nas áreas de São Paulo,
Paraná, Santa Catarina, Minas Gerais, Bahia e Piauí (este último represen-
tado para os anos de 1697 e 1762).
O primeiro ponto a fixar diz respeito ao fato de que os não proprie-
tários de escravos e seus respectivos dependentes – sempre observadas as
fortes limitações espaciais e temporais apontadas acima – compunham
parcela majoritária da população livre; ademais, eles não perderam tal
posto em face de expressivas mudanças econômicas e demográficas obser-
vadas no passar do tempo. Correlatamente, ao que parece, o crescimento
econômico, mesmo quando orientado pela expansão do comércio exterior,
vinha acompanhado de oportunidades das quais também usufruíam os
não proprietários, de sorte que eles não eram excluídos das áreas econo-
micamente mais dinâmicas, nem perdiam sua posição numericamente
dominante.
Uma segunda conclusão indica que, tanto da ótica estritamente
demográfica (sexo, idade e estado conjugal) como daquela mais clara-
mente marcada por elementos de caráter econômico (condição de legi-
timidade das crianças, pobreza e moradia), não havia hiato absoluto a
distinguir proprietários e não proprietários de cativos. Destarte, sob vários
aspectos, a impressão deixada pela análise é a de que estamos a tratar com

7 Para uma análise pormenorizada deste segmento socioeconômico, veja-se Costa


(1992).

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

duas amostras de uma mesma população. Sem negar, pois, as expressivas


dessemelhanças observadas entre os dois grupos, cumpre anotar também
os largos pontos de contato existentes entre eles.
Por fim, no que tange às atividades econômicas e produtivas
propriamente ditas, havia grande predomínio dos proprietários de cativos
nos setores Igreja e rentistas; ademais, observava-se a dominância deles na
magistratura e nos empregos civis, no corpo militar e nas profissões libe-
rais. Nos setores comércio, transportes e agricultura e manufatura rural
revelava-se distribuição mais equilibrada, enquanto era forte o predomínio
numérico dos não proprietários nos serviços em geral e entre os jorna-
leiros e artesãos. Como esperado, as ocupações mais exigentes em termos
de preparo educacional ou que implicavam a posse de recursos materiais
mais avultados eram empolgadas, majoritariamente, pelos proprietários
de escravos, cabendo aos não proprietários o domínio de atividades mais
humildes. Não obstante, deve-se frisar que não imperava uma especiali-
zação absoluta; além disso, mesmo as mudanças econômicas acarretadas
por novas alternativas ensejadas no correr do tempo não foram bastantes
para excluir os não proprietários da ampla gama de setores econômicos
então vigentes. Havia, é verdade, marcante divergência entre as participa-
ções dos segmentos socioeconômicos em tela quanto ao produto gerado
e à parcela comercializada de tal produção. Os proprietários de escravos
distinguiam-se por dominarem a produção de bens exportáveis e dos
que eram objeto de ampla comercialização no mercado interno; mesmo
assim, deve-se notar a não exclusão dos não proprietários no tocante à
produção de tais mercadorias. Por outro lado, havia razoável elenco de
bens com respeito aos quais ocorria dominância de não proprietários ou
cujo preparo era partilhado equilibradamente por ambos os segmentos.
Ademais, relativamente a alguns gêneros alimentares básicos, a partici-
pação de não proprietários aproximava-se do respectivo peso relativo na
população total.
Do acima exposto, deve-se guardar que há fortes indícios a apontar
que a economia escravista brasileira comportava, mesmo nos momentos

90
REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO DE CAIO PRADO JÚNIOR

de expansão da agricultura de exportação, um largo espaço para o desen-


volvimento de atividades econômicas não vinculadas, imediatamente,
à grande lavoura e desenvolvidas por não proprietários de escravos, os
quais não podem ser tomados, em bloco, como um grupo de inúteis
ou um segmento absolutamente marginalizado em termos sociais e
econômicos.
Ao que nos parece, a carência dos meios de transporte, a
própria política mercantilista implementada pela Coroa visando a
impedir a emergência de manufaturas, a consequente inexistência
de um amplo mercado interno integrado e a decorrente falta de espe-
cialização regional – ressalvados aqui casos como o da produção de
charque no Rio Grande do Sul, do sal em áreas fluminenses, etc. –
ensejaram o desenvolvimento, no âmbito local, de atividades artesa-
nais ou vinculadas ao setor “serviços” que tenderam a ganhar espaço
cada vez maior com o correr do tempo. Paralelamente – em decor-
rência dos óbices acima apontados, da relativa facilidade de acesso ao
usufruto da terra e de traços culturais que afastaram significativas
parcelas populacionais da perspectiva de acumular, aos quais se somam,
evidentemente, os obstáculos de ordem objetiva impostos pela domi-
nância econômica da grande propriedade escravista e monocultora –,
estabeleceu-se e cresceu de modo continuado, em todo o território brasi-
leiro, a policultura de gêneros básicos de alimentação – feijão, milho,
mandioca, arroz, etc. – que irá compor, ao lado da produção mono-
cultora, o quadro efetivo no qual se movimentavam nossas populações
pretéritas. Trata-se, é óbvio, daquele Brasil medíocre e “menor” do ponto
de vista econômico, mas que não pode ser descartado se estivermos inte-
ressados em apreender, efetivamente, a formação de nossa economia,
da qual, obviamente, faziam parte as assim chamadas camadas médias
e baixas de nossa população. É, pois, à consideração de algumas das
formas assumidas pelo cultivo de gêneros de subsistência que nos
vemos remetidos.

91
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

7. Monocultura e policultura de subsistência

Como já anotaram outros autores:

Estudar essa economia de subsistência, através de sua evolução no tempo e


no espaço – expansão e retração de áreas e cultivos, a sua demografia, a orga-
nização do trabalho, o regime de posse e uso da terra e as técnicas –, ia reve-
lar a face oculta do Brasil, sempre escondida por detrás da casa grande (por
vezes da senzala), do ouro das Gerais, do café ou outro produto-rei, dos coro-
néis do sertão, que é revelado, quando o é, para ressaltar a minoria do que é
dominante, com enfoque sobre o seu atraso. (Linhares e Silva, 1981, p. 119)

Além de estudá-la, é preciso dar-lhe espaço nos esquemas inter-


pretativos dos quais partimos, reconhecendo sua relevância econômica
e demográfica e suas múltiplas facetas. Neste tópico, procuraremos, tão
somente, indicar algumas das formas assumidas por essa policultura de
subsistência que se desenvolveu paralelamente à produção em larga escala
de gêneros de exportação e, por via de regra, definiu-se como retaguarda
imediata desta última, mas que, em alguns casos ao menos, apareceu como
elemento relativamente autônomo, já que confinado aos limites traçados
pelas atividades de exportação, econômica e politicamente dominantes.
Como sabido, a produção de gêneros básicos destinados ao consumo
interno dava-se, também, em propriedades – em alguns casos em regiões –
que se especializaram no seu preparo. Podemos pensar, aqui, na exis-
tência de propriedades relativamente grandes a utilizar sistematicamente
o trabalho escravo e cujos proprietários certamente se pautavam pela
perspectiva da acumulação de capital. Procuravam, pois, da mesma sorte
que os cultivadores de cana obrigada e a partido, adequar-se às condições
que propiciavam mercados mais rentáveis, derivassem eles imediatamente
das necessidades dos grandes proprietários monocultores ou dos núcleos
urbanos que pontilhavam o Brasil.
Ademais, a produzir sistematicamente para os mercados locais
também estavam pequenos e médios proprietários, muitos dos quais
contavam com o concurso de uns poucos escravos, enquanto outros

92
REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO DE CAIO PRADO JÚNIOR

utilizavam apenas a mão de obra familiar. O expressivo, nestes dois


últimos casos, não decorre da magnitude produzida, mas sim do fato de
haver um vínculo continuado com a economia de mercado e com even-
tuais e estreitas, convenhamos, oportunidades de enriquecimento e
“ascensão” social; esse vínculo com o mercado permitiu, inclusive, que
pequenos produtores se dedicassem à elaboração de bens de exportação;
lembrem-se, a esse respeito, as observações de Maria Luíza Marcílio e os
nossos cômputos sobre a participação na exportação de café de unidades
familiares sem escravo algum (cf. Marcílio, 1974, pp. 186-187; Costa, 1992,
pp. 96-109), o trabalho de José Flávio Motta (1991) no qual o autor indica
que a própria introdução do plantio da rubiácea em território paulista foi
efetuada por agricultores modestos, entre os quais compareciam alguns
que, além de não possuírem cativos, nem sequer dispunham de terras
próprias, pois ocupavam, por favor, terras alheias; tenham-se presentes,
ainda, os estudos de Renato Leite Marcondes (1993) e de José Flávio Motta
e Nelson Nozoe (1994, pp. 265-271) nos quais se acompanha a produção
cafeeira em localidades paulistas e se patenteiam as oportunidades de
acumulação que se abriam a proprietários de pequeno porte.
A par dessa produção mais caracteristicamente comercial encontra-
remos os proprietários de menor porte, que vendiam seus eventuais exce-
dentes. Em algumas áreas, grosso modo, cerca de 30 a 40% da produção
total de gêneros alimentícios via-se dirigida aos mercados locais. O que
nos parece relevante nesse caso não é a “mediocridade” dos ofertantes –
que se vinculam excepcional e precariamente ao mercado –, mas sim o fato
de termos, sistematicamente, uma “fatia” expressiva do consumo global
atendida pela comercialização daqueles bens básicos.
Igualmente relevante parece ser a produção efetuada nas próprias
terras das grandes propriedades voltadas, precipuamente, às atividades
de exportação. Arrola-se aqui não só a produção imediatamente gerida
pelos proprietários, mas também a parcela devida à iniciativa dos cativos,
quando podiam dispor de pequenos lotes que lhes eram atribuídos.
O produto dessa atividade, além de compor uma parte do trabalho

93
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

necessário – e nesta medida é que a podemos ver como uma mera


dimensão da economia escravista –, propiciava também e em escala que
jamais chegou a se altear, de sorte a descaracterizar as bases escravistas de
nossa economia, a integração dos escravos aos circuitos comerciais.8
Cumpre lembrar, por fim, o grande número de pessoas e/ou de
comunidades inteiras que se dedicavam, quase exclusivamente, aos cultivos
dirigidos ao consumo imediato. Arrolam-se entre elas, inclusive, as que,
sem propriedade alguma, ocupavam áreas de terceiros ou terras colocadas
nas fímbrias do ecúmeno. Condições econômicas e culturais, tamanha-
mente deploradas pelos viajantes estrangeiros do século passado, esta-
riam na raiz dessa abulia quase generalizada que empolgava largas faixas
da camada mais desprivilegiada de nossa população. De toda sorte, de
moto próprio ou como consequência das vicissitudes da vida, um grande
número de pessoas conseguia, assim, “sobreviver” e, embora palidamente,
integrar, na condição de população redundante, a vida social e econômica
do Brasil de então.

8. Sobre a estrutura de posse dos cativos

Como vimos, tanto a propriedade e o usufruto da terra como a


economia de subsistência marcavam-se, no passado escravista brasileiro,

8 Anote-se, a este respeito, a afirmação: “Por ‘brecha’ não entendemos, de forma alguma,
um elemento que pusesse em perigo, mudasse drasticamente ou diminuísse o sistema
escravista. A analogia com uma brecha na muralha de uma fortaleza assediada seria
algo totalmente equivocado. O que queremos significar – e cremos que também
Lepkowski, ao criar a expressão – é uma brecha para o escravo, como se diria hoje ‘um
espaço’, situado sem dúvida dentro do sistema, mas abrindo possibilidades inéditas para
atividades autônomas dos cativos” (Cardoso, 1987, pp. 121-122). Autonomia essa com
a qual concordamos desde que vista em termos relativos e como parte integrante do
sistema escravista (ou do chamado “sistema do Brasil”), ao qual, ademais, também não
era estranha, como sabiamente postulado por Aristóteles para o escravismo antigo, a
própria possibilidade da alforria: “Todo esclavo debe tener ante los ojos una meta definida
o un término exacto de su trabajo. Colocar ante él el premio de la libertad es algo justo
y conducente, porque teniendo por delante el premio asignado a su trabajo y conociendo
el tiempo necesario para su consecución, el esclavo se entregará de todo corazón a su
trabajo” (Aristóteles, 1964, p. 1.382)

94
REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO DE CAIO PRADO JÚNIOR

por gradações que preenchiam um rico e nuançado espectro. O mesmo


podemos afirmar no concernente à estrutura da posse de escravos, a qual
percorria também um continuum no qual se viam representados todos os
tamanhos de plantel, bem como as distintas atividades econômicas aqui
praticadas e que tenderam a se diversificar cada vez mais com a passagem
do tempo. Assim, afora casos tópicos em que predominavam maciçamente
os grandes escravistas, tomada em seu conjunto, a economia brasileira,
grosso modo, conheceu, nos mais variados setores e quadrantes, situações
em que coexistiam pequenos, médios e grandes proprietários.
Destarte, em muitas áreas e “economias” do território brasileiro, por
via de regra não dominadas pela especialização que distinguiu a grande
produção açucareira ou a cafeicultura depois de definitivamente assen-
tada no Sudeste, encontraremos como norma a predominância quantita-
tiva dos proprietários com reduzido número de cativos, cerca de quatro ou
cinco digamos, os quais detinham parcela substantiva do efetivo total da
escravaria, vale dizer, por volta de 30 a 40% dos cativos. Tal quadro, como
demonstrado por Francisco Vidal Luna, registrou-se em Minas Gerais,
tanto no período de afirmação da atividade aurífera como nos momentos
de apogeu e decadência da economia da mineração (Luna, 1981; 1982,
pp. 31-55 e Luna e Costa, 1982, pp. 57-77); repetiu-se tal condição em
São Paulo e no Paraná (Luna e Costa, 1983; Gutiérrez, 1987; Motta, 1990,
pp. 190-200, 1991b). A mesma estrutura também se mostrou presente
na região da pecuária e de lavouras de Goiás (Funes, 1980, pp. 123-127),
nas zonas criatórias do Nordeste (Mott, 1978) e do Sul (Cardoso, 1977,
pp. 54-82), não sendo estranha ainda na própria área produtora de tabaco e
açúcar do Recôncavo baiano, como revelado por Stuart B. Schwartz (1983,
1988, pp. 356-376), assim como, em termos genéricos, nos centros urbanos
do período escravista.
Vê-se, pois, que havia uma verdadeira difusão do escravismo no
seio da sociedade brasileira, fato esse do qual, certamente, derivaram
significativas consequências econômicas, políticas e culturais às quais
retornaremos adiante.

95
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

9. Pela superação do modelo de Caio Prado Júnior

Façamos, antes do mais, um balanço crítico do conjunto de evidên-


cias, observações e raciocínios acima expendidos. De tal conjunto ressalta,
de pronto, que as articulações presentes na sociedade brasileira sobrepu-
javam largamente um mero empreendimento dirigido pelo capital comer-
cial e imediatamente voltado para o mercado mundial e dele totalmente
dependente. Nesse sentido, tratava-se de uma economia com expressivos
traços de integração endógena e que comportava uma gama diversificada
de atividades produtivas votadas ao atendimento de suas próprias neces-
sidades, dando-se, também, processos internos de acumulação. Disso
decorria a geração, na órbita doméstica, de condições que permitiam um
espaço econômico relativamente autônomo vis-à-vis a economia inter-
nacional e o capital comercial, espaço econômico esse ao qual, ademais,
deve-se atribuir expressivo contributo no que tange à formação da renda
e do produto. Essa visão aparta-nos, pois, da que admitimos ter sido
proposta por Caio Prado Júnior, a qual se marcaria por iniludível “reducio-
nismo”. Não obstante, igualmente iniludível é o fato de que todas aquelas
evidências e argumentos não conduzem à negação da sociedade escravista,
ao contrário, não só a afirmavam como teriam contribuído ativamente
para sua expansão e permanência entre nós. Se não, vejamos.
Iniciemos considerando as possibilidades abertas aos despossuídos
que ocupavam, de maneira precária e sem qualquer título efetivo de
propriedade, nesgas de terra sob as mais variadas formas (ocupantes auto-
rizados, agregados, posseiros, etc.) e que não estavam interessados em
participar dos processos de acumulação ou deles viam-se excluídos por
falta de recursos, de oportunidades ou em decorrência das vicissitudes
da vida (doenças, empobrecimento, desamparo em função da idade, etc.).
Tais pessoas, como sabido, encontraram nas lides agrícolas consagradas
ao autoconsumo uma forma, embora medíocre, de sobreviverem. Ora,
como demonstrado por Celso Furtado (1970), para o caso das crises que
se abateram sobre a economia açucareira e da mineração, tal arranjo –

96
REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO DE CAIO PRADO JÚNIOR

acesso ao usufruto da terra – atuava como verdadeira válvula de escape,


atenuando ou evitando inteiramente o desenvolvimento de pressões no
sentido de que se promovessem alterações estruturais na economia escra-
vista dominante. Ademais, como visto na nota número três deste trabalho,
os grandes proprietários serviam-se de parte desses despossuídos para
garantirem suas propriedades contra roubos ou invasão de elementos
indesejáveis.
De maneira similar, operavam, por seu turno, as estreitas oportu-
nidades colocadas aos que secundária e eventualmente participavam dos
mercados vendendo seus parcos excedentes agrícolas ou neles encon-
trando escoamento para sua modesta produção de gêneros exportáveis.
Parece-nos ocioso acrescentar, além disso, que tais oportunidades também
trabalhavam, com respeito a esse segmento populacional, de sorte a legi-
timar as estruturas econômicas dadas.
Esses dois estratos sociais mereceram a atenção de muitos autores,
dos quais lembramos, a título ilustrativo, tão somente dois. Assim, lemos
em obra de Jacob Gorender:

A tendência evolutiva de São Paulo foi idêntica à de todo o país na era


escravista: concentração extrema da propriedade de escravos e de terras e
crescimento constante da população livre despossuída. Esta, formada de
agregados e posseiros, constituía junto com os elementos minifundiários,
a classe camponesa da época, a classe camponesa possível numa formação
social escravista. (1978, p. 300)

Esse mesmo autor, depois de consignar que os “caipiras são os agre-


gados e posseiros a que venho me referindo”, remete-nos a Maria Sylvia
de Carvalho Franco, para quem as comunidades caipiras “podem ser
pensadas como uma realidade autônoma”:

Entretanto, se realmente é possível distinguir um estilo de vida específico,


uma integridade de cultura e de organização social nas comunidades caipi-
ras, não é menos verdade que essas comunidades estiveram concretamente
inseridas em um sistema social mais amplo. Na área aqui estudada, ao lado
desses pequenos núcleos houve, pelo menos desde o século XVIII, setores

97
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

da sociedade que se organizaram para a produção mercantil. Sendo estes


que realmente fundaram o sentido dominante das atividades de produção
e da vida social, os grupos caipiras ficaram relegados a uma intransponível
marginalidade. (1969, pp. 31-32)

Tal “sistema social mais amplo”, obviamente, tratava-se da sociedade


escravista inclusiva.
Igualmente inseridos nesse “sistema social mais amplo” estavam
os que – com o apoio de um número maior ou menor de cativos ou só a
contar com a mão de obra individual ou familiar – participavam sistema-
ticamente dos mercados de gêneros básicos de alimentação, do setor de
serviços ou se ocupavam em atividades artesanais. Com respeito a esses
agentes, evidentemente, nada há a acrescentar, pois, efetivamente, mesmo
se não tivessem escravo algum, integravam a sociedade escravista e se
comportavam de molde a afirmá-la, mesmo quando se tratava de alfor-
riados, alguns dos quais, como anotado, tornaram-se proprietários de
escravos.
Quanto aos cativos aos quais eram atribuídas pequenas glebas
de terra das quais derivavam sua alimentação e eventuais ganhos com
os quais compunham seus pecúlios, e quanto aos que “trabalhavam por
conta própria” efetuando pagamentos a seus senhores, há algo a dizer. Em
primeiro, é necessário repisar o caráter complementar com respeito ao
trabalho necessário representado por tais formas de exploração da força de
trabalho escrava; tenhamos presente, pois, a arguta e definitiva observação
de Antonil:

Costumam alguns senhores dar aos escravos um dia em cada semana,


para plantarem para si, mandando algumas vezes com eles o feitor, para
que se não descuidem; e isto serve para que não padeçam fome nem
cerquem cada dia a casa de seu senhor, pedindo-lhe a ração de farinha.
(1974, p. 162)

Em segundo lugar, não se deve esquecer que a existência de um


espaço relativamente autônomo para a vivência do cativo não representava

98
REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO DE CAIO PRADO JÚNIOR

uma restrição ao escravismo e muito menos ensejava, per se, qualquer


ruptura ou enfraquecimento da escravidão. Ao contrário, como ocorria
com a perspectiva da alforria, legitimava-o aos olhos dos próprios cativos,
tornando-os presas mais “conformadas” do sistema e menos dadas a rebel-
dias. A plena consciência desse efeito, como sabido, foi alcançada pelos
próprios donos de escravos; vejamos um testemunho elucidativo, o do
Barão de Pati do Alferes, igualmente lembrado por Jacob Gorender:

Estas suas roças, e o produto que delas tiram, fazem-lhes adquirir certo
amor ao país, distrair um pouco da escravidão, e entreter-se com esse seu
pequeno direito de propriedade. Sem dúvida, o fazendeiro enche-se de
certa satisfação quando vê chegar o seu escravo da sua roça trazendo o
seu cacho de bananas, o cará, a cana, etc. (Werneck, Francisco Peixoto de
Lacerda [Barão de Pati do Alferes] apud Gorender, 1978, p. 263)

Atenhamo-nos, por fim, ao fato de prevalecerem, em largas faixas


do território brasileiro e distribuídos pelas várias “economias” que aqui se
desenvolveram, plantéis com reduzido número de cativos e uma grande
proporção de pequenos e médios escravistas. Poderia tal estrutura de posse
descaracterizar ou alterar a natureza do escravismo? Apontaria na direção
da predominância dos mercados internos sobre os externos? Colocaria
como possível a reprodução autônoma e independente da economia escra-
vista como se definiu no Brasil? A resposta a tais questões é, sem dúvida,
negativa. Deixando uma qualificação mais pormenorizada para o item no
qual trataremos do capital escravista-mercantil, queremos deixar fixada
aqui a opinião de que, contrariamente ao sugerido pelas perguntas acima
enunciadas, a difusão de um grande número de pequenos escravistas
contribuía positivamente para a legitimação e permanência da instituição
entre nós, pois, comprometia com a mesma largos contingentes da popu-
lação livre, os quais viam seus interesses econômicos atrelados à manu-
tenção do escravismo. Destarte, tanto da perspectiva econômica como da
política e da história das mentalidades, não nos parece absurdo afirmar
que a existência de tal perfil da estrutura de posse de cativos pode ser enca-

99
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

rada, por um lado, como uma das causas explicativas do vigor e resistência
do escravismo entre nós, e, por outro, do tardio advento da abolição defi-
nitiva da escravidão no Brasil.
A conclusão maior que se impõe das considerações acima postas é
imediata: todas as condições aqui reportadas, em maior ou menor escala,
operaram, sempre, no sentido de afirmar e dar maior solidez ao escravismo
e podem ser colocadas entre os fatores explicativos da grande resistência
demonstrada por essa instituição e de sua prolongada persistência entre
nós. Nada mais errôneo, pois, do que tomá-las como capazes de descarac-
terizar ou “arranhar” as relações escravistas então vigentes. Elas não podem
ser arroladas, portanto, entre as causas da superação do trabalho escravo
no Brasil, fato esse que, não obstante, não as impediu de sobreviverem ao
sistema escravista e de contribuírem, dada a supressão do escravismo, para
o estabelecimento e afirmação das relações de produção emergentes.
Ora, a sociedade escravista moderna (intrinsecamente dependente
dos mercados mundiais, como evidenciaremos adiante em tópico dedicado
ao capital escravista-mercantil) é a própria encarnação da dependência
com respeito ao mundo exterior, seja quanto à colocação de parcela subs-
tantiva do produto gerado, seja no respeitante à sua própria manutenção
no tempo, pois necessitava, crucialmente, do fornecimento externo de mão
de obra cativa. Assim, aceita a ideia de que os elementos avocados para
desqualificar o modelo de Caio Prado Júnior atuaram, sempre, de sorte a
reafirmar o escravismo, vemo-nos em face de uma aparente contradição:
se, num primeiro lapso, nossos argumentos contradizem o modelo em tela,
num segundo passo trabalham a favor da tese central do mesmo modelo. É
forçoso, portanto, enfrentarmos essa contradição aparente; ademais, de seu
esclarecimento emergirá não só a solução para o impasse no qual estamos
enleados, mas, também, para as demais questões que ensejaram a redação
destas notas. Partamos, pois, do modelo em foco.
Qual seria a grave limitação do modelo interpretativo de Caio Prado
Júnior? Onde estaria seu “erro”, como perguntariam alguns? A nosso juízo, tal
limitação deveu-se ao fato de ele haver transposto para o plano fenomênico,

100
REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO DE CAIO PRADO JÚNIOR

sem as necessárias e devidas mediações, elementos próprios do que consi-


derou a essência de nossa formação e da sociedade aqui constituída.9
Reduzido, assim, o plano do concreto, ao que se poderia entender ser seu
determinante em última instância, a elementos de sua pretensa “essência” –
que não se exaure em tais elementos, diga-se com ênfase –, resta-nos
uma caricatura de vida econômica e social, desfigurada, rígida, descar-
nada, apartada da experiência do dia-a-dia, perdem-se a especificidade
e as peculiaridades do escravismo moderno – regido que esteve, como
veremos adiante, pelo capital escravista-mercantil – e se fica às voltas com
um “sentido” abstrato, imaterial, que faz com que nos sintamos tão inco-
modados, tão “desconfortáveis” quando confrontamos nossa visão daquela
sociedade com a que derivamos da leitura dos escritos de Caio Prado
Júnior. Mas ele não foi a única vítima desse “ardil” do capital escravista-
mercantil, há os que, cometendo engano homólogo, tornaram-se presas de
limitações igualmente reducionistas; pensamos, agora, nos pesquisadores

9 Retomemos as palavras de Caio Prado Júnior: “É este o verdadeiro sentido da coloni-


zação tropical [...] É certo que a colonização da maior parte, pelo menos destes territó-
rios tropicais, inclusive o Brasil, lançada e prosseguida em tal base, acabou realizando
alguma coisa mais que um simples ‘contato fortuito’ dos europeus com o meio, na feliz
expressão de Gilberto Freyre, a que a destinava o objetivo inicial dela; e que em outros
lugares semelhantes a colonização europeia não conseguiu ultrapassar [...] Entre nós
foi-se além no sentido de constituir nos trópicos uma ‘sociedade com características
nacionais e qualidades de permanência’ [Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala], e não
se ficou apenas nesta simples empresa de colonos brancos distantes e sobranceiros. Mas
um tal caráter mais estável, permanente e definido, só se revelará aos poucos, dominado
e abafado que é pelo que o precede, e que continuará mantendo a primazia e ditando
os traços essenciais da nossa evolução colonial. Se vamos à essência da nossa formação,
veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco (...) café, para
o comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado
para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele
comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá
naquele sentido: a estrutura bem como as atividades do país. (...) Haverá resultantes
secundárias que tendem para algo de mais elevado; mas elas ainda mal se fazem notar.
O ‘sentido’ da evolução brasileira que é o que estamos aqui indagando, ainda se afirma
por aquele caráter inicial da colonização. Tê-lo em vista é compreender o essencial
deste quadro que se apresenta em princípios do século passado” (Prado Júnior, 1987,
pp. 31-32).

101
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

que, prendendo-se à aparência – à forma como a sociedade escravista


brasileira se nos apresenta imediatamente –, pretendem transportar tal
mundo fenomênico, sem as imprescindíveis mediações, para o âmago
último de nossa formação, tomam, pois, a aparência como se fosse a
essência. O resultado desse movimento já é conhecido: a essência do escra-
vismo moderno se esvai no ar, dilui-se ante nossas vistas, escapa de nossas
mãos, restando-nos uma sociedade que, autônoma e independentemente,
parece reproduzir-se a si mesma a partir de si mesma.10 É crucial, portanto,
a consideração e caracterização das mencionadas categorias e mediações.
Sem elas, entendemos, ser-nos-á impossível apreender nossa sociedade
pretérita como uma totalidade na qual os elementos que a compunham
atuavam solidariamente, codeterminando-se mutuamente.
Do acima exposto, pode-se inferir, esperamos que de modo claro,
nossa postura com respeito ao modelo explicativo de Caio Prado Júnior.
Não pretendemos negá-lo, mas, qualificando-o, evidenciar a possibili-
dade de superá-lo de sorte a chegarmos a uma nova síntese, adequada às
realidades com quais nos deparamos quando observada a evolução da
sociedade e da economia brasileiras à luz de estudos recentes. Para tanto,
cremos ser necessário o desenvolvimento das três vertentes teóricas expli-
citadas abaixo.
No campo metodológico, é preciso operar de forma a explicitar as
mediações entre os chamados determinantes em última instância realçados

10 A estes pesquisadores, ao que parece, dirigiu Ciro F. S. Cardoso a advertência: “Tendo


combatido por muitos anos as posturas que enfatizam unilateralmente as relações
metrópole-colônia ou centro-periferia, a extração de excedentes, o capital mercantil
(hipostasiado em ‘capitalismo comercial’) e mais em geral a circulação de mercadorias
como locus explicativo privilegiado, só posso me regozijar com esses novos e sólidos
argumentos. Desde que, também neste caso, não se ceda à tentação de mais uma ênfase
unilateral. Mesmo se as análises cujos resultados foram aqui resumidos são, às vezes,
delimitadas e tratam de elementos e variáveis parciais, não estarão esquecendo exage-
radamente, empurrando um tanto para fora do horizonte, a dependência colonial e
neocolonial – e as determinações e condicionamentos que ela sem qualquer dúvida
implicava (ainda que tais análises tenham demonstrado que algumas das determina-
ções imputadas a fatores externos eram falsas)? Fique como questão a ser pensada esta
minha dúvida” (Cardoso, 1988, p. 58).

102
REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO DE CAIO PRADO JÚNIOR

por Caio Prado Júnior e o desenvolvimento concreto de nossa estrutura


socioeconômica, o que, ao menos indicativamente, tentamos fazer até esta
altura destas observações críticas, sobretudo na abertura deste tópico.
No plano abstrato, deve haver empenho no sentido de alcançarmos
uma compreensão nova do papel do capital e da acumulação no âmbito
da economia escravista colonial; impõe-se, pois, o estabelecimento de
uma formulação teórica que torne possível distinguir a ação do capital
comercial daquela exercida pelo capital escravista-mercantil, definindo-se,
este último, como a principal mediação entre o capital comercial (que o
vinculava ao mercado externo) e as condições internas segundo as quais
se dava, concretamente e como uma decorrência da existência do capital
escravista-mercantil, a acumulação no Brasil de então. A esse problema
dedicamos o próximo tópico destas notas.
Por fim, na esfera do concreto, entendemos ser indispensável a
reformulação dos grandes “setores” econômicos pensados por Caio Prado
Júnior, pois, como procuramos mostrar, a bipartição por ele proposta é
insuficiente para dar conta de toda a gama de articulações econômicas
encontráveis no correr da história do Brasil, desde seu descobrimento até
o encerramento da época monárquica. No tocante a esta última questão,
esboçaremos, mais adiante, uma categorização alternativa à de Caio Prado
Júnior. Consideremos, pois, o capital escravista-mercantil.

10. Nota sobre o capital escravista-mercantil11

A nosso ver, além das três formas clássicas de existência do


capital (comercial, usurário e industrial), Marx sugeriu uma quarta
forma: o capital escravista-mercantil, gerador de mais-valia e calcado
na produção de mercadorias com base no trabalho escravo. Essa forma

11 Neste tópico apresentamos uma versão sumária de alguns pontos centrais de trabalhos
nos quais a categoria capital escravista-mercantil viu-se tratada de maneira mais larga
e pormenorizada, a eles remetemos o leitor interessado nessa análise: Pires e Costa
(1994); Costa e Pires (1994, 1995, 2000).

103
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

de capital dependeu, para sua constituição e permanência no tempo, de


alguns elementos básicos que, para o caso do Brasil, foram os seguintes:
poder régio, capital comercial, indivíduos dispostos a dirigir na colônia a
produção de bens exportáveis com base na exploração do trabalho escravo,
fontes supridoras de mão de obra escrava e, por fim, mercados mundiais
capazes de absorver parcela substantiva dos bens aqui produzidos.
Assim, no caso da economia escravista brasileira, a criação da mais-
valia decorria da ação do capital escravista-mercantil, vale dizer, embora
isolada dos mercados externos e, portanto, da órbita da circulação – e a
esta questão voltaremos logo adiante –, a esfera da produção interna
colocava-se inteiramente em sua órbita e era dominada pelo capital escra-
vista-mercantil. Tal dominância, que não deve ser entendida em termos
absolutos, estendia-se à produção de mercadorias (exportáveis ou não), de
valores de uso e de serviços, abarcando também a alocação de fatores e
recursos e espraiando-se pela circulação interna. Afetava ainda a geração e
distribuição da renda, a escala da produção, o tamanho das plantas insta-
ladas, as técnicas utilizadas e os elementos afetos à qualificação da mão de
obra. Enfim, sua presença condicionava toda a economia, bem como as
relações estabelecidas no processo da produção, projetando-se, ademais,
na vida social e política do Brasil. Disso deve-se inferir que os segmentos
sociais e econômicos não vinculados imediatamente ao escravismo
também se viam influenciados e, em larga medida, determinados, sobre-
tudo no que tange à definição dos limites do espaço econômico em que
lhes era dado atuar, pelo capital escravista-mercantil. É justamente sobre
tamanha dominância que se assenta o engano dos que imaginam encon-
trar aqui o assim chamado “escravismo capitalista” ou propugnam pela
existência de um pretenso modo de produção colonial.
Como sabemos, seria difícil superestimar o papel do capital comer-
cial (aliado, no caso, ao capital de empréstimo) quanto ao processo de
ocupação, povoamento e valorização das terras lusas no Novo Mundo;
assim, a colônia pode ser vista como uma criação do consórcio estabe-
lecido entre o poder régio e o capital comercial. Ao primeiro, além da

104
REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO DE CAIO PRADO JÚNIOR

estruturação e aparelhamento das instâncias burocráticas e administra-


tivas, coube garantir o acesso à terra – meio de produção básico – aos que
demonstrassem deter os cabedais necessários para explorá-la. A geração
das demais condições materiais que embasaram o aludido processo ficou,
sabemo-lo à farta, a cargo do capital comercial. Destarte, este último encar-
regou-se do financiamento do empreendimento agrícola no Brasil, do
fornecimento de mão de obra africana e bens de consumo e de produção
oriundos da Europa, bem como monopolizou a colocação da produção
brasileira nos mercados mundiais. É nessa medida que a colônia pôde ser
vista como um mero apêndice da economia europeia a funcionar como um
enclave em permanente expansão e que flutua sobre o nada. É este, pois, o
locus no qual se desenvolveu o capital escravista-mercantil, o qual só podia
se comunicar com o mundo que lhe era externo mediante a intermediação
do capital comercial, mas que não se identificava com o capital comercial,
nem representava “uma parte” do capital comercial a projetar-se sobre o
mundo da produção. Estamos em face, pois, de duas categorias (formas
de existência do capital) distintas e que apresentam dinâmicas, dimensões
sociopolíticas e articulações econômicas que lhes são peculiares.
O arranjo assim constituído, no qual o capital comercial funcio-
nava como interface entre a colônia e os mercados externos, acarretou
pelo menos quatro consequências que marcaram nossa história e nossa
historiografia. Em primeiro, dele derivou o “sentido da colonização” como
pensado por Caio Prado Júnior; tal visão, repisemo-lo, prende-se, sobre-
tudo, à forma como a valorização das novas terras aparece ao observador
que a toma da perspectiva do comércio externo, não levando em conta,
portanto, a existência do capital escravista-mercantil, ao qual, com base na
exploração do trabalho escravo, cumpria, além da apropriação de parcela
substantiva da mesma, a própria criação da mais-valia. Em segundo, a pree-
minência do capital comercial no que tange à articulação entre os distintos
mercados permitiu a emergência e subsistência de um complexo econô-
mico que tinha suas bases produtivas no Brasil, sua fonte básica de mão de
obra na África e que contava com os mercados europeus para a colocação

105
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

da produção exportável. Em terceiro, o isolamento propiciado pelo capital


comercial e pelas práticas mercantilistas possibilitou à economia europeia
beneficiar-se dos efeitos dinâmicos oriundos do Novo Mundo e garantiu
a solidez e a robustez que informaram o escravismo moderno, elementos
esses da mais alta relevância para o pleno funcionamento e permanência
no tempo da exploração desenvolvida pelo capital escravista-mercantil.
Por fim, dado o referido isolamento, o capital escravista-mercantil não
só comportou, no âmbito de sua dominância, a existência de dimensões
e articulações que iam muito além dos estreitos limites do capital comer-
cial como também propiciou o surgimento de muitas de tais articulações,
as quais operavam de sorte a garantir a persistência do capital escravista-
mercantil e enriqueciam e diversificavam o quadro econômico e social no
qual se movimentavam as populações do Brasil escravista.
Da ação do capital escravista-mercantil decorria, ademais, a repo-
sição de alguns de seus pressupostos, agora derivados de sua própria
existência. Assim, os escravistas apoderavam-se de parte substantiva da
mais-valia gerada no processo de produção e o escravo dela emergia na
mesma condição de sujeição inicial. Por outro lado, o capital escravista-
mercantil só podia atuar mediatamente sobre seus outros pressupostos
(fontes supridoras de escravos e mercados mundiais de colocação dos bens
exportáveis), não lhe sendo possível, portanto, repô-los, pois tais pressu-
postos lhe eram externos e para ele definiam-se como dados. Evidencia-
se palmarmente, pois, que o capital escravista-mercantil, enquanto
tal, mostra-se incapaz de prover todos os elementos necessários à sua
reprodução, não podendo, portanto, dar suporte a um específico modo
de produção. Esse mesmo argumento pode ser avocado para desquali-
ficar a opinião segundo a qual, a contar de determinado ponto de nossa
história, cumpria à economia escravista brasileira reproduzir-se autono-
mamente. Essa tese mostra-se ainda mais equivocada se lembrarmos que
o processo de acumulação próprio do capital escravista-mercantil não o
liberava dos pressupostos que lhe eram externos, ao contrário, tornava-o
ainda mais dependente deles, pois, à medida que se dava a ampliação da

106
REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO DE CAIO PRADO JÚNIOR

produção escravista-mercantil, maiores eram suas exigências em termos


de suprimento de cativos e de escoamento da produção efetuada.12 Pode-se
concluir, pois, que a constituição, no Brasil, de uma economia reflexa e
dependente não decorreu meramente da exploração metropolitana ou
do fato de a colônia ter sido votada ao fornecimento de produtos para o
comércio europeu, mas derivou, essencialmente, das próprias entranhas da
forma de capital cujo predomínio marcou nossa história até 1888. De outra
parte, como avançado, cremos que o surgimento e o desenvolvimento de

12 É interessante notar que, embora, para sua reprodução, o capital escravista-mercantil


exija a presença de elementos de ordem interna e externa, o mesmo não ocorre com
respeito a sua negação, pois a falta de qualquer pressuposto, endógeno ou exógeno,
é bastante para provocar sua ruptura. Assim, e aqui falamos em termos hipotéticos
e não exaustivos, o golpe mortal poderia advir de um único fator ou de uma combi-
nação deles, fossem internos ou não; consideremos algumas possibilidades: 1) tal golpe
poderia decorrer de uma decisão política das próprias elites dominantes ou de uma
cisão no âmbito das mesmas de sorte a fazer com que houvesse um confronto entre
as facções discordantes, parece ter acontecido justamente isto nos EUA; 2) a suble-
vação dos cativos é outra causa a levar em conta, talvez tenha sido essa a experiência
vivida no Haiti; 3) uma forte expansão da demanda internacional por tal ou qual bem
produzido por dada economia escravista poderia levá-la a encontrar tamanhas restri-
ções quanto ao aliciamento de mão de obra cativa que a busca de uma alternativa não
escravista se impusesse; 4) pode-se pensar, correlatamente, que a retração violenta dos
mercados mundiais para os bens oferecidos por dada economia escravista poderia
levá-la, no médio prazo, ao colapso, pois lhe faltariam os recursos para sustentar-se
enquanto tal; 5) obedecidas as condições por nós admitidas como válidas, a supressão
do tráfico também conduziria, inexoravelmente, o capital escravista-mercantil ao desa-
parecimento. No Brasil, o golpe fatal decorreu justamente desta última medida, a ela
somaram-se a expansão da demanda mundial por café – o que levou à busca da solução
imigrantista –, o movimento abolicionista que empolgou parte das elites e largas faixas
das camadas médias urbanas e a insubordinação dos cativos, sempre presente e sempre
frustrada, mas naquela altura potencializada pelo abolicionismo (coloque-se aqui,
entre parênteses, que não estamos advogando uma articulação mecânica entre esses
fatores; para uma crítica da visão estreita sobre tal articulação veja-se Cardoso, 1977,
pp. 188-269). Ademais, na medida em que, no âmbito das sociedades escravistas
modernas, vão, a pouco e pouco, consubstanciando-se as condições para o estabe-
lecimento generalizado do trabalho assalariado, a transição para estas relações de
produção – inclusive com a presença de formas de exploração do trabalho livre como
os contratos de parceria, de locação de serviços e o sistema do colonato – não assumiu
caráter traumático, dando-se o mesmo com respeito à transformação do capital escra-
vista-mercantil em capital industrial, mas estas já são questões que, por extrapolarem o
escopo destas notas, deixamos para um trabalho futuro.

107
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

uma vida econômica relativamente autônoma, “voltada para dentro”, não


só se mostrava compatível com a forma capital escravista-mercantil, mas,
em larga medida, dela decorreu.13
Assim, tanto a economia escravista moderna, em geral, como a
sociedade brasileira, em particular, devem sua existência e conformação
estrutural básica ao capital escravista-mercantil, não podendo ser vistas,
portanto, nem como uma mera projeção do capital comercial no plano
da produção, nem como um simples apêndice da economia europeia,
destinado, exclusivamente, a complementá-la e a servir, tão somente, a
interesses forâneos. Não é ocioso repisar que a falta da consideração do
capital escravista-mercantil leva ao falseamento da natureza e do caráter
essencial da economia e da sociedade aqui estabelecidas. Fica evidenciado,
também, que o argumento lembrado no início destas notas e referente ao
assim chamado “determinante em última instância” não é pertinente para
justificar as limitações do modelo explicativo de Caio Prado Júnior, pois
tais determinantes em última instância dizem respeito ao fato de se haver
constituído, no Brasil, uma sociedade embasada no capital escravista-
mercantil – que só podia se reproduzir a partir de pressupostos de ordem
interna e externa –, não implicando, portanto, elemento que possa vir em
abono do modelo reducionista de Caio Prado Júnior, este sim, calcado
na projeção imediata do capital comercial na esfera da produção, o que
tornaria a sociedade e a economia brasileiras meros apêndices, unívoca e
integralmente, determinados pelos mercados mundiais e pelos interesses
econômicos metropolitanos.

13 Tomemos, apenas para exemplificar, o caso da possibilidade de acesso à terra sob a


forma de usufruto. Como visto, as pessoas livres despossuídas podiam, sob a rigorosa
“vigilância” dos potentados envolvidos, ocupar e permanecer mais ou menos precaria-
mente em áreas cedidas; nessa circunstância patenteia-se a situação segundo a qual o
capital escravista-mercantil comportava uma forma paralela e relativamente autônoma
de vivência social e econômica. Paralelamente, o próprio capital escravista-mercantil
“secretava” alforriados que, eventualmente, passavam a “gozar” da mesma “benesse”
representada pela ocupação de lotes cedidos, situação essa que decorria da aludida
forma de capital.

108
REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO DE CAIO PRADO JÚNIOR

Explorar as ponderações aqui expendidas, aprofundar o conhe-


cimento sobre suas implicações quanto à nossa formação socioeconô-
mica e promover um amplo debate sobre o tema – o que procuramos
provocar com este escrito – não só é fundamental para o dilucidamento
definitivo dos problemas centrais aqui abordados como, certamente,
lançará novas luzes sobre antigas divergências teóricas concernentes
àquela formação.

11. Esboço de uma categorização alternativa

Como indicado recorrentemente no correr destas notas, o enqua-


dramento das principais atividades produtivas desenvolvidas no período
escravista brasileiro em apenas duas categorias – grande lavoura e agricul-
tura de subsistência – parece-nos muito restritivo. A limitação maior, como
anotado, prende-se à produção destinada ao mercado interno, o qual,
embora reconhecidamente secundário vis-à-vis a produção votada aos
mercados internacionais, mostrava, a nosso juízo, dimensões, articulações
e complexidade devidas ao capital escravista-mercantil do qual também
decorriam.
Assim, tanto para caracterizações de corte genérico como para
orientar levantamentos de ordem empírica, parece-nos recomendável,
quanto à categorização dos bens então produzidos, a adoção de três
grandes grupos: mercado externo, mercado interno e autoconsumo.
A produção destinada ao mercado externo deve abranger não só
os gêneros agrícolas em geral (algodão, café, couros, etc.), mas também
os bens provenientes da manufatura rural (açúcar, aguardente e fumo),
do extrativismo (vegetal e animal) e da mineração. Os produtores, por
seu turno, devem ser considerados segundo a escala que assumiam suas
atividades, vale dizer, além dos grandes proprietários escravistas, é neces-
sário tomar em conta os pequenos e médios (lavradores de cana cativa ou
a partido, por exemplo), os que não podiam contar com a mão de obra

109
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

cativa, assim como os escravos que, em reduzido número e pequeníssima


proporção, também participavam, mediante os cultivos realizados em
pequenos lotes, daquele mercado.
Já quanto à produção colocada no mercado interno, além de se
levar em conta os proprietários de grande porte, é preciso dar lugar para
os pequenos e médios escravistas, bem como para os que, só dispondo
da mão de obra familiar, participavam dos mercados locais, sistemática
ou esporadicamente; mesmo os escravos, como sabido, viam-se, sempre
muito modestamente, representados nessa esfera da produção.
O autoconsumo, por seu turno, tinha ao menos duas dimensões
às quais se deve emprestar especial atenção: a produção para o consumo
imediato desenvolvida pelos próprios cativos em terras de seus proprie-
tários e aquela efetuada por homens livres sem posses ou detentores de
pequenas glebas e, eventualmente, de uns poucos cativos. Enquanto estes
últimos estavam apartados dos processos de acumulação, a atividade dos
cativos enquadrava-se, como parte do trabalho necessário, por via de regra,
na esfera da produção comercial.
Cumpre notar, por fim, que essa caracterização de ordem genérica
tem de ser acompanhada, sobretudo no caso de pesquisas que envolvam
levantamentos de dados em fontes primárias, da complementação propi-
ciada por uma pertinente classificação das ocupações e atividades econô-
micas segundo ramos e setores, na qual, evidentemente, haverá lugar para
os transportes, comércio, artesanato, serviços, etc.14

12. Considerações finais

Seria ocioso sumariar as linhas de raciocínio e os argumentos


desenvolvidos nestas notas. Faz-se necessário, não obstante, fixar alguns

14 Para uma categorização consistente e pormenorizada das atividades e/ou ocupações


econômicas desenvolvidas no Brasil até o advento da República veja-se Costa e Nozoe
(1987, pp. 69-87).

110
REPENSANDO O MODELO INTERPRETATIVO DE CAIO PRADO JÚNIOR

pontos que nos parecem mais relevantes e poderão informar futuros


debates e encaminhar novos questionamentos.
Parece-nos oportuno, antes do mais, repisar a necessidade e a facti-
bilidade de se efetuarem críticas de fundo quanto aos modelos interpreta-
tivos concernentes à nossa formação socioeconômica. Não seria descabido
afirmar que, com respeito ao tema, muitas questões restam em aberto e há
um largo campo para o estabelecimento de um amplo leque de enriquece-
dores esclarecimentos.
Neste escrito, centrando-nos na visão proposta por Caio Prado
Júnior e visando a apresentar argumentos aptos a superá-la, vimo-nos
compelidos a considerar vários daqueles modelos. Nossa esperança é que
também tenhamos conseguido contribuir para a superação de alguns deles;
não obstante, estamos certos de que os problemas afetos à nossa propo-
sição sobre uma quarta forma específica de existência do capital, o capital
escravista-mercantil, sobre a qual repousaria a formação econômica da
sociedade brasileira, estão a merecer a observação crítica e as indispensá-
veis qualificações por parte de outros autores, aos quais, também cumprirá,
caso aceitem o repto, ajudar-nos a precisar tal categoria, de sorte a possibi-
litar a identificação dos eventuais desdobramentos que a mesma possa vir
a oferecer. No aguardo do julgamento de nossos colegas e de suas neces-
sárias retificações damos, pois, a lume, ainda que imperfeitas, estas notas.

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114
8. ENTRE O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO E
O ARCAÍSMO COMO PROJETO: A SUPERAÇÃO
DE UM DILEMA ATRAVÉS DO CONCEITO
DE CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL
João Paulo A. de Souza1

1. Introdução

Neste artigo, apresenta-se a proposta de Pires e Costa (1995, 2000),


segundo a qual a economia brasileira no período escravista teria estado
sujeita a uma forma específica do capital, o capital escravista-mercantil.
Essa proposta permite, a nosso ver, a superação de uma dicotomia a que
teria sido levada a historiografia brasileira nos últimos anos.
De um lado dessa dicotomia estaria o modelo do Sentido da Colo-
nização, proposto originalmente por Caio Prado Júnior e desenvolvido
por diversos autores que adotam esse paradigma. Ao retratar a sociedade
colonial como uma projeção imediata da expansão comercial europeia,
resultando no trinômio escravismo/grande propriedade/monocultura,
essa abordagem tem enfrentado dificuldades em acomodar as recentes
evidências empíricas de que a economia colonial era, na verdade, mais
complexa do que esse retrato sugere, podendo inclusive apresentar-se
como uma economia relativamente autônoma, realizadora de acumulações
endógenas.

1 O autor agradece, com as isenções de praxe, os comentários de Nelson Nozoe, Iraci


Costa e Eleutério Prado.

115
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

No extremo oposto, situar-se-ia o modelo do Arcaísmo como


Projeto, proposto por Fragoso e Florentino (2001), o qual, ao tentar
acomodar essas evidências empíricas, acaba recusando a existência de um
sentido da colonização tal como originalmente formulado.
Em que pese a imensa contribuição desses modelos para o enten-
dimento da economia colonial brasileira, acreditamos que a dicotomia
acima tem um caráter vicioso. A primeira resposta, a nosso ver, poderia
ser caracterizada como a que preserva a essência que nos permite compre-
ender a formação de nossa sociedade, ou seja, o Sentido da Colonização
em suas diversas formulações. Entretanto, isso é feito ao custo de, muitas
vezes, sofrer a contradição dos fenômenos empíricos, que não se encaixam
bem em um modelo marcado pela derivação imediata dessa essência. A
segunda resposta, por sua vez, pode ser caracterizada como a que preserva
a aparência de nossa sociedade colonial, ou seja, os fenômenos empíricos,
mas ao preço de perder a essência, através da recusa das formulações origi-
nais do Sentido.
A proposta do capital escravista-mercantil, pelo contrário, a nosso
ver, é a que permite conservar tanto a essência como os fenômenos, admi-
tindo explicitamente a relação contraditória entre essas duas esferas.
O artigo está organizado da seguinte forma. Na seção 2, abaixo,
apresentamos brevemente o paradigma pradiano, incluindo as principais
formulações do sentido, bem como suas derivações imediatas. Em seguida,
na seção 3, descrevemos alguns dos principais resultados da literatura
empírica desenvolvida nas últimas décadas, como forma de mostrar sua
relativa inadequação ao modelo pradiano. A seção 4 dedica-se a analisar
como a historiografia recente se comportou em face desse problema. Nela
apresentamos o modelo do Arcaísmo como Projeto. A seguir, na seção 5,
argumentamos em favor de uma resposta alternativa, que assuma expli-
citamente a relação contraditória entre o Sentido da Colonização e as
evidências empíricas, levando à sua superação. Essa tarefa será feita com o
auxílio de uma analogia com a forma como Marx apresenta o desenvolvi-
mento da lei do valor em O Capital, que consideramos um caso exemplar

116
ENTRE O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO E O ARCAÍSMO COMO PROJETO

de superação de uma contradição entre a essência e a aparência do sistema


econômico. Por fim, a seção 6 apresenta o modelo do capital escravista-
mercantil, bem como seu sentido lógico na superação dessa contradição.
A seção 7 conclui o artigo.

2. O paradigma pradiano

2.1 As principais acepções do sentido da colonização

Publicada pela primeira vez em 1942, Formação do Brasil Contem-


porâneo, de Caio Prado Jr., rompeu com a ideia até então presente de que
a evolução da economia colonial brasileira seria uma mera sucessão de
ciclos, em que uma atividade dinâmica atingiria a posição hegemônica
para, após sua decadência, ser substituída por outra atividade em ascensão.
Segundo o autor, sempre haveria uma “linha-mestra” na evolução dos
povos, e caberia ao estudioso utilizá-la como chave explicativa para a
compreensão dessa evolução, do contrário ininteligível. No caso parti-
cular da sociedade brasileira, nascia a ideia do Sentido da Colonização,
princípio que explicaria a essência de nossa evolução no período colonial,
iluminando, ademais, muitos dos problemas com que se confronta o Brasil
contemporâneo.
A primeira formulação da linha-mestra de nossa história foi feita
pelo próprio autor. Segundo ele, o sentido de nossa colonização é indisso-
ciável da expansão comercial e marítima da Europa nos séculos XIV e XV:

Em suma e no essencial, todos os grandes acontecimentos desta era que se


convencionou chamar com razão de “descobrimentos” articulam-se num
conjunto que não é senão um capítulo da história do comércio europeu.
(Prado Jr., 1957, p. 16)

O povoamento do Brasil e a estrutura econômico-social aqui desen-


volvida decorreram dessa expansão do capital comercial. A empresa que
aqui se instalou, portanto, teria sido desenhada para lograr um fim defi-

117
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

nido: a contínua transferência de excedente econômico para o capital


mercantil metropolitano através da produção e exportação de produtos
tropicais.

No seu conjunto e vista no plano mundial e internacional, a colonização


dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais com-
plexa do que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela,
destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em pro-
veito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tro-
pical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos
fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolu-
ção históricas dos trópicos americanos. (Ibid.)

O então inovador conceito de Sentido da Colonização logo se


tornaria o principal elemento a motivar a pesquisa historiográfica sobre a
formação da economia brasileira, rendendo ao programa de pesquisa em
torno dele estruturado a alcunha de Paradigma Pradiano.
Ao longo dos anos, alguns autores que, em boa medida, compar-
tilham o enfoque de Caio Prado, propuseram novas formulações para o
Sentido. Entre elas destaca-se a de Fernando Novais, elaborada na década
de 70. Esse autor, através de sua análise do antigo sistema colonial, expande
o significado do Sentido da Colonização inserindo-o no quadro mais
amplo da transição do feudalismo para o capitalismo industrial na Europa.
A propósito da formulação original de Caio Prado, afirma Novais:

Se combinarmos, agora, esta formulação – o caráter comercial dos empre-


endimentos coloniais da época moderna – com as considerações ante-
riormente feitas sobre o Antigo Regime – etapa intermediária entre a
desintegração do feudalismo e a constituição do capitalismo industrial – a
ideia de um “sentido” da colonização atingirá seu pleno desenvolvimento.
(1977, p. 30)

De acordo com Novais, essa transição seria realizada por intermédio


da expansão do capital comercial na era moderna. Assim, se a essa moda-
lidade do capital cumpria instaurar o capitalismo industrial na Europa, a
instalação, também levada a cabo por ela, das empresas coloniais no Novo

118
ENTRE O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO E O ARCAÍSMO COMO PROJETO

Mundo teria um papel nesse processo. Com efeito, a extração de trabalho


excedente nas colônias teria como função última contribuir para a
chamada acumulação primitiva, um pré-requisito para a aludida transição
rumo ao capitalismo industrial.

Examinada, pois, nesse contexto, a colonização do Novo Mundo, na


época moderna, apresenta-se como peça de um sistema, instrumento da
acumulação primitiva, da época do capitalismo mercantil. (...) Completa-se,
entrementes, a conotação do sentido profundo da colonização: comercial
e capitalista, isto é, elemento constitutivo no processo de formação do
capitalismo moderno. (Ibid., p. 33)

Embora procedendo de maneira distinta da de Caio Prado e Novais


na derivação das implicações do Sentido para a estrutura e a evolução
histórica da sociedade colonial brasileira, Costa (1999) formula o que se
pode considerar uma outra versão da direção essencial dessa evolução.
Segundo o autor, ao desenvolvimento do capitalismo na Europa Ocidental
correspondeu o estabelecimento de um sistema socioeconômico plane-
tário marcado pela generalização da produção de mercadorias. A expansão
colonial, por sua vez, seria parte desse processo.
A generalização da produção mercantil deu-se, no início, sob a
égide dos capitais comercial e usurário. Em seguida, com a transformação
da própria força de trabalho em mercadoria, passou a ser comandada pelo
capital industrial. A integração das novas regiões ao capitalismo deu-se
sob variadas formas, dependendo das condições geográficas, econômicas e
demográficas de cada região no momento de seu contato com a expansão
europeia.
No Leste europeu, passou-se à produção de mercadorias com base
no trabalho servil ou na imposição de tributos aos servos; no Oriente,
por sua vez, mediante a comercialização de excedentes da produção arte-
sanal e agrícola, através das feitorias; na África, por meio da exportação de
bens e da produção de mão de obra escrava; por fim, na América tropical,
através da produção de mercadorias com participação fundamental do
trabalho cativo.

119
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

O Sentido, desse modo, ganha uma formulação complementar à


de Novais. Além de auxiliar o desenvolvimento do capitalismo na Europa
Ocidental, cada uma das formas de exploração descritas acima teria como
resultado a incorporação e subordinação, ao modo de produção capita-
lista, dos demais espaços econômicos e geográficos passíveis de ocupa-
ção.2 Com o desenvolvimento do capitalismo, tais formas, especialmente
aquelas baseadas em trabalho não assalariado, tenderam a modificar-se,
adquirindo um caráter tipicamente “capitalista”.

2.2 As heurísticas do sentido da colonização

Segundo Lakatos (1979), cada programa de pesquisa científico


evolui guiado por regras metodológicas que informam a pesquisa futura
que nele deve ser realizada, chamadas “heurísticas”. Essas regras seriam
divididas em dois tipos: em termos gerais, a heurística positiva de um
programa nos diz quais caminhos devem ser trilhados, ao passo que a
heurística negativa nos diz quais caminhos devem ser evitados.
A heurística positiva é composta por sugestões a respeito de como
desenvolver e, por vezes, modificar aquele conjunto de proposições e
hipóteses auxiliares que compõem o conjunto de “variantes refutáveis” do
programa de pesquisa, chamado por Lakatos de “cinto de proteção”. Através
da heurística positiva, buscam-se ora fatos já esperados que possam ajudar
a desenvolver o conjunto de proposições do programa de pesquisa, ora
fatos novos que, no entanto, nele possam ser acomodados.
A heurística negativa, por sua vez, tem como referência o “núcleo”
do programa de pesquisa, aquele conjunto de hipóteses e proposições
cruciais cuja refutação enfraquece sobremaneira o programa de pesquisa,

2 “Essas formas paralelas não decorreram da lógica de funcionamento do capital indus-


trial, não dimanaram de sua essência e não se impuseram, portanto, como necessárias,
mas apresentaram-se, tão somente, como soluções datadas, concretamente dadas, por
meio das quais se deu a incorporação/subordinação, aos interesses do capitalismo que
se instalava na Europa Ocidental, dos espaços econômicos e geográficos passíveis de
ocupação” (Costa, 1999, p. 2).

120
ENTRE O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO E O ARCAÍSMO COMO PROJETO

podendo inclusive levar ao seu abandono. Assim, a heurística negativa


nos diz não somente os caminhos que não encontram lugar adequado
no programa de pesquisa, mas também o potencial destrutivo de alguns
desses caminhos.
Após enunciar acima as principais versões do Sentido da Colo-
nização, é natural perguntar-se quais seriam as heurísticas derivadas do
programa de pesquisa por ele informado. Para encontrá-las, é neces-
sário primeiro conhecer seu conjunto de proposições fundamentais, seu
“núcleo”. Ora, ele é fornecido prontamente pela própria obra de Caio
Prado: segundo o autor, a sociedade brasileira, organizada para fornecer
gêneros tropicais ao comércio europeu, apresentaria uma estrutura econô-
mica de viés exportacionista, com dinâmica reflexa, e baseada no trinômio
grande propriedade, monocultura e mão de obra cativa.
A heurística positiva deveria, portanto, buscar detalhar as impli-
cações desse núcleo, além de gerar hipóteses testáveis tendo ele como
referência. Dentro do programa de pesquisa pradiano, há dois exemplos
bastante conhecidos da operação dessa heurística.
O primeiro deles diz respeito aos motivos que levaram à adoção de
mão de obra cativa vinda da África, em oposição à mão de obra livre ou ao
elemento nativo. Para Caio Prado, essa fato deveu-se, sobretudo, à ausência
de excedentes populacionais na metrópole, combinada com a ausência de
uma oferta adequada de mão de obra indígena na colônia. Novais (1977),
por sua vez, modifica essa hipótese auxiliar, dizendo que a principal causa
da importação de trabalhadores africanos é o próprio tráfico negreiro e
os excedentes comerciais por ele gerados; estes últimos, apropriados pelo
capital mercantil metropolitano, serviriam ao propósito último da acumu-
lação primitiva.
O segundo exemplo, por sua vez, relaciona-se às atividades econô-
micas não diretamente ligadas à lavoura exportadora. Caio Prado reserva
pouca função a tais atividades, dizendo que elas tinham um caráter subsi-
diário e que se resumiam basicamente ao comércio de mercadorias impor-
tadas para o abastecimento de núcleos urbanos. As fazendas exportadoras,

121
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

por sua vez, eram por ele consideradas unidades autárquicas, em grande
medida autossuficientes. No clássico Formação Econômica do Brasil,
Furtado (1961), que partilhava do paradigma pradiano, atribui um
caráter funcional mais importante ao setor não exportador. Segundo o
autor, em momentos de conjuntura econômica externa favorável, haveria
expansão do setor exportador e concentração de seus recursos produtivos
na produção dos bens exportáveis. Esse movimento seria acompanhado
do aumento do mercado interno voltado ao fornecimento de gêneros de
consumo a esse setor exportador, havendo, inclusive, aumento do grau
de monetização das trocas. Por outro lado, em momentos de crise, as
unidades exportadoras voltariam a empregar seus fatores, agora ociosos,
na produção autárquica de bens de consumo e, por conseguinte, haveria
regressão do mercado interno para atividades de subsistência de baixa
monetização. Esse movimento pendular emprestava resiliência ao sistema
em épocas de crise, impedindo que estas ensejassem mudanças estruturais
mais amplas.
Os dois casos acima exemplificam a operação da heurística posi-
tiva. Neles, Novais e Furtado propuseram hipóteses ora para desenvolver
proposições que não haviam sido objeto de um detalhamento na obra de
Caio Prado – por exemplo, Furtado dá um caráter funcional ao setor não
exportador antes apenas vislumbrado –, ora para propor uma explicação
alternativa para uma de suas proposições nucleares – como foi o caso de
Novais. Em ambos os casos, pode-se dizer que o objeto das proposições
foi o cinto protetor do programa. Similarmente, em nenhum deles foi dito
algo que pudesse comprometer seriamente o núcleo – vale dizer que, para
Furtado, o desenvolvimento do setor interno acompanharia as flutuações
do setor exportador, não se conferindo um grau de autonomia significativo
àquele.
Quais seriam, por fim, as heurísticas negativas ligadas ao Sentido da
Colonização? Em termos gerais, pode-se dizer que os caminhos que nele
não se acomodam e que, em última instância, poderiam ser-lhe nocivos,
são, por exemplo, pesquisas que demonstrem a existência de um mercado

122
ENTRE O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO E O ARCAÍSMO COMO PROJETO

interno significativo, baseado ou não no uso da mão de obra escrava; a


existência de acumulação endogenamente gerada; a importância demo-
gráfica e econômica do contingente de homens livres não proprietários;
a constituição de uma elite colonial lastreada em um “capital residente” e
dona de interesses divergentes daqueles de sua contrapartida metropoli-
tana, entre outros temas secundários.

3. Evidências empíricas

Após o desenvolvimento das pesquisas baseadas no paradigma


pradiano, bem como as críticas de caráter eminentemente teórico que
lhe foram dirigidas no final dos anos 60 e início dos anos 70,3 ganharam
força, sobretudo nos anos 80 e 90, pesquisas empíricas de caráter marca-
damente monográfico, que colocavam ênfase no uso de fontes primárias.
Obviamente, não pretendemos aqui esgotar a vasta literatura produzida
por essas pesquisas, mas apresentar alguns de seus principais resultados,
os quais, em conjunto, nos fornecem um retrato diversificado da sociedade
colonial brasileira que, no mínimo, não se acomoda confortavelmente no
modelo de Caio Prado Jr., ameaçando em alguns casos suas proposições
fundamentais.

3.1 Os setores não exportadores

Como vimos, a adoção, como núcleo propositivo, do trinômio


escravismo, latifúndio e monocultura por Caio Prado Jr. resultou na divisão
da economia colonial em dois setores: um exportador, lócus privilegiado
da acumulação e responsável por ditar a dinâmica cíclica dessa economia,
e um de produção voltada ao abastecimento interno, isolado das opor-
tunidades de acumulação e frequentemente associado à produção de
subsistência.

3 Trataremos brevemente dessas críticas em nota no final do artigo.

123
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

Entretanto, um dos principais resultados da recente literatura empí-


rica foi demonstrar a existência de um mosaico de modalidades produ-
tivas não diretamente exportadoras, havendo desde unidades devotadas
à produção de subsistência até aquelas de caráter comercial voltadas à
produção de gêneros para o mercado interno mediante uso de mão de
obra cativa.
Em primeiro lugar, parte da literatura empírica afirma que as
unidades exportadoras eram menos autárquicas do que se esperava.
Fragoso (1988), por exemplo, mostra que no médio vale do Paraíba, na
primeira metade do século XIX, um quarto das despesas das fazendas
exportadoras era destinado à compra de alimentos, proporção que só
aumentaria se fossem contabilizados outros gêneros de abastecimento,
tais como ferramentas e animais de tiro. No Recôncavo Baiano, por sua
vez, havia um significativo mercado de gêneros de consumo trazidos de
Sergipe já nos séculos XVII e XVIII.
Com relação à produção comercial destinada ao mercado interno,
destaca-se o estudo de Castro (1987), que tem como objeto a localidade
de Capivary, na baixada fluminense. Os gêneros produzidos na região,
café capitânia e farinha de mandioca, não faziam parte do rol de produtos
coloniais exportados, sendo, portanto, destinados ao mercado interno.
Apesar disso, a autora constatou que a região era importadora de escravos
na primeira metade do século XIX e que seus maiores produtores conti-
nuaram a comprar escravos mesmo durante a crise do comércio negreiro,
após 1850. As unidades pesquisadas figuravam em um almanaque que
arrolava empreendimentos de caráter marcadamente comercial, e sua
organização destacava-se pela semelhança, embora em escala reduzida,
com aquela das plantations exportadoras.
Além das empresas que, como as estudadas por Hebe Castro, tinham
fins assumidamente comerciais e utilizavam mão de obra cativa, destacam-
se aquelas geridas por homens livres e não proprietários, mas que desti-
navam parte de sua produção ao mercado interno, tais como as estudadas
por Costa (1992). Segundo esse autor, embora a posse fundiária no Brasil

124
ENTRE O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO E O ARCAÍSMO COMO PROJETO

colonial fosse excludente, o usufruto da terra era mais “permissivo”,


comportando diversas modalidades associativas, tais como a parceria,
a obrigação, o arrendamento e a agregação. Como resultado, os homens
livres e pobres não eram excluídos do acesso à terra, podendo constituir
comunidades voltadas ao plantio, tanto para a subsistência como para a
comercialização de eventuais excedentes.
Em seu estudo, o autor analisou, para fins do século XVIII e inícios do
século XIX, núcleos localizados em São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Minas
Gerais e Bahia, bem como localidades no Piauí para os anos 1697 e 1762.
Entre suas principais conclusões, destaca-se o fato de que os não proprie-
tários não eram excluídos das áreas economicamente mais dinâmicas, em
particular daquelas ligadas à exportação, aproveitando as oportunidades
por elas apresentadas. Além disso, em setores de significativo peso econô-
mico, como a agricultura e a manufatura rural, bem como o comércio e os
transportes, a distribuição entre proprietários e não proprietários era rela-
tivamente equilibrada, ainda que os primeiros concentrassem as atividades
que exigiam mais preparo educacional ou investimento inicial. Em nenhum
ramo, porém, a prevalência de um grupo implicava a exclusão do outro.
Quanto à participação de cada grupo no produto gerado, os não proprietá-
rios, embora participassem com relativa modéstia no setor de bens expor-
táveis, dominavam um conjunto significativo de bens e serviços voltados ao
abastecimento interno. Embora muitos dos não proprietários destinassem
ao mercado apenas excedentes ocasionais, eles conjuntamente ocupavam, de
forma consistente, uma importante fatia do mesmo.
Não é necessário insistir que o fato de a economia escravista da
época permitir, mesmo nas regiões mais dinâmicas, o desenvolvimento de
atividades de peso econômico não vinculadas imediatamente seja à grande
lavoura, seja à mão de obra cativa, não se encaixa confortavelmente nas
derivações imediatas do Sentido da Colonização. Para tanto, basta relem-
brar um famoso trecho do Formação do Brasil Contemporâneo em que
Caio Prado nega qualquer caráter funcional à massa de homens livres e
não proprietários:

125
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

Abre-se assim um vácuo imenso entre os extremos da escala social: os


senhores e os escravos (...). [Esses] dois grupos são os dos bem classifica-
dos na hierarquia e na estrutura social da colônia: os primeiros serão dos
dirigentes da colonização nos seus vários setores; os outros, a massa tra-
balhadora. Entre essas duas categorias nitidamente definidas e entrosadas
na obra da colonização comprime-se o número, que vai avultando com
o tempo, dos desclassificados, dos inúteis e inadaptados; indivíduos de
ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma.
Aquele contingente vultoso em que Couty, mais tarde, veria o “povo brasi-
leiro”, e que pela sua inutilidade, daria como inexistente, resumindo a situa-
ção social do país com aquela sentença que ficaria famosa: “le Brésil n’a pas
de peuple”. (1957, pp. 279-280)

Muitas atividades não exportadoras, como se vê, eram realizadas


por unidades em que se empregava tanto a mão de obra cativa como a mão
de obra livre. Um exemplo particularmente interessante de tal atividade
é a manufatura têxtil doméstica, em que se ocupavam tanto livres como
escravos, geralmente do sexo feminino. Libby (1997) estudou um inven-
tário de teares elaborado em Minas Gerais no final do século XVIII, com
o objetivo original de subsidiar a execução do famigerado Alvará de 1885,
que determinou a supressão de parte da indústria têxtil no Brasil. O autor
demonstra que, pela quantidade e características dos equipamentos arro-
lados, a atividade era amplamente disseminada nos domicílios da capitania
– com indicações de que algo similar ocorria em outras regiões da colônia
–, apresentando algumas semelhanças com a protoindustrialização têxtil
europeia de antes da revolução industrial. A indústria doméstica têxtil em
Minas servia tanto para o autoconsumo familiar como para a eventual
comercialização do produto, criando demanda, ademais, para a produção
de algodão. Os fluxos no mercado interno a ela ligados são também
mencionados por relatos de viajantes da época, que dão conta de uma rede
de comércio de tecidos entre capitanias.
Por fim, além das atividades realizadas por unidades comerciais e
escravistas, e daquelas levadas a cabo por não proprietários, havia entre
as atividades não exportadoras aquelas realizadas por escravos no âmbito

126
ENTRE O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO E O ARCAÍSMO COMO PROJETO

daquilo que Cardoso (1987) chamou de brecha camponesa. Com efeito,


ao contrário da visão propugnada por alguns autores que compartilham
o enfoque pradiano, segundo a qual o escravo é um ser coisificado, compa-
rado por vezes a uma unidade de capital fixo de que o senhor dispõe da
maneira como quiser, as evidências demonstram que a negociação com os
escravos era feita constantemente.
Sem pôr em risco o escravismo como sistema, mas, ao contrário,
visando ao aumento da produtividade do trabalho, bem como à dimi-
nuição de seu custo de reprodução e da resistência dos trabalhadores,
os administradores das unidades produtivas lançavam mão de diversos
recursos motivacionais, tais como a concessão de alforrias e de pequenos
lotes para livre cultivo dos escravos. Diz-se desta última modalidade que
abria uma “brecha” camponesa no sistema.
A brecha camponesa é descrita por muitas fontes, desde viajantes
da época até documentos como o testemunho do Barão de Pati do Alferes,
analisado entre outros por Costa (1995), e a proposta de paz dos escravos
revoltosos do Engenho de Santana de Ilhéus, analisado entre outros por
Schwartz (1983).4 Esses documentos atestam que os cativos muitas vezes
produziam gêneros destinados ao comércio em suas roças, contribuindo
para a oferta no mercado interno.

4 Em Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de


Janeiro, publicada em 1878, o Barão de Pati do Alferes escreve um “manual” de admi-
nistração de fazendas para seu filho, destacando a maneira correta de negociar com
os escravos; há referências explícitas à necessidade de conceder lotes de terra para
os escravos produzirem tanto gêneros de subsistência como aqueles dedicados ao
comércio. Já o documento analisado por Schwartz é uma lista de exigências entregue
por escravos revoltosos aos proprietários do Engenho de Santana de Ilhéus. Nela,
demandam-se espaços nos navios que transportam os produtos do engenho para trans-
portar a produção das roças dos escravos até as praças comerciais, denotando que a
brecha camponesa tinha por vezes um caráter mercantil.

127
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

3.2 Grau de autonomia

Como vimos, os setores não diretamente ligados às atividades


exportadoras apresentavam grande diversidade, sendo impossível colocá-
los sob a camisa de força derivada do Sentido da Colonização. Ao partici-
parem tanto da constituição como do suprimento de um mercado interno
colonial, podiam, nas suas vertentes de caráter mais marcadamente comer-
cial, proporcionar acumulações endógenas à colônia, atribuindo-lhe rela-
tiva autonomia ante as flutuações do mercado internacional.
Entre os estudos que buscam demonstrar tal autonomia, destacam-
se aqueles examinados em O Arcaísmo como Projeto, de Fragoso e Floren-
tino (2001). Na porção dessa obra dedicada ao tema, os autores analisam a
economia fluminense no período compreendido aproximadamente entre
1790 e 1840. Segundo os autores, a esse lapso corresponderia um ciclo de
Kondratieff, cuja fase contracionista – dita fase B – abrangeria o período de
1816 a 1850. Seu argumento principal é o de que, nele, setores importantes
da economia fluminense experimentaram uma expansão, ao contrário do
que se esperaria de uma economia de caráter meramente reflexo.
Por exemplo, mostram os autores que, entre 1799 e 1811, as receitas
com a exportação de açúcar no porto do Rio de Janeiro caíram quase 20%
ao ano, ao passo que, entre 1821 e 1831, foi a vez dos preços do café caírem
cerca de 7% ao ano.
Ao presumível colapso econômico a que tais cifras deveriam levar a
região, os autores contrapõem dados que mostram uma evolução contrária.
Em primeiro lugar, a lavoura canavieira no norte fluminense, constituída
de 324 engenhos em 1800, já apresentava cerca de 700 em 1828. No médio
vale do Paraíba, por sua vez, ocorreu na época a implantação da lavoura
cafeeira. O comércio e a produção de gêneros de abastecimento voltados ao
mercado interno também registrou comportamento semelhante. Segundo
Fragoso (1988), as saídas de reses, toucinho e carne salgada de Minas
Gerais aumentaram 170% entre 1818 e 1828. Já a exportação de charque
do Rio Grande do Sul para o porto carioca, segundo Fragoso e Florentino

128
ENTRE O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO E O ARCAÍSMO COMO PROJETO

(2001), aumentou 249% entre 1799 e 1822, ao passo que as importações


cariocas de farinha de mandioca, produzida em diversas regiões, aumentou
307%. Como outra consequência da expansão da demanda agregada no
período, os autores mostram que os preços dos alimentos ligados à dieta
das classes populares e dos escravos elevam-se significativamente a partir
do final do século XVIII até 1825.
Ainda que se deva matizá-las,5 as evidências apresentadas por
Fragoso e Florentino, em conjunto com as observações quanto ao mercado
interno que vimos de apresentar, indicam a existência de uma relativa
autonomia da economia colonial, ao menos em seu período tardio,6 ante
as flutuações externas.
Como corolário dessa relativa autonomia, os autores analisam o
comportamento das transações comerciais externas do Brasil. Segundo a
interpretação de Novais (1977), o caráter mercantilista do antigo sistema
colonial impunha que a colônia fosse superavitária em seu comércio

5 Mariutti et alii (2001) apresentam algumas críticas relevantes à forma como Fragoso
e Florentino interpretam os dados apresentados como evidência da autonomia da
economia colonial ante as flutuações externas. A propósito dos dados relativos aos
preços dos bens exportados, critica-se o fato de os autores do Arcaísmo haverem usado
médias anuais para representar um período de elevada variância na série de preços. Essa
variância, mostram eles, provocou períodos de significativa recuperação nos preços
no interior da série analisada, o que poderia ter induzido os fazendeiros a investirem.
Além disso, os autores destacam a vinda da corte portuguesa para o Rio em 1808 como
um poderoso fator exógeno de dinamização da economia da região. Embora concor-
demos com essa última observação, que nos obriga a matizar o entusiasmo de Fragoso
e Florentino, a suposição de que os fazendeiros não tenham podido dar-se conta da
tendência de queda nos preços em um período de mais de dez anos, sendo confundidos
por sua variância, parece restringir demasiadamente a racionalidade daqueles enquanto
investidores.
6 Na primeira versão do Arcaísmo, datada de 1993, Fragoso e Florentino estendem o
poder explicativo de suas pesquisas, que tratam do final do século XVIII e da primeira
metade do século XIX, para todo o período colonial. Esse procedimento recebeu
críticas de diversos autores, entre eles Mariutti et alii (2001). Como resultado, na
segunda edição do Arcaísmo, lançada em 2001, Fragoso e Florentino restringem sua
análise ao período coberto por suas pesquisas, que chamam de economia colonial
tardia, correspondente ao período de consolidação das formas mercantis de acumu-
lação e de hegemonia do capital mercantil residente.

129
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

exterior com a metrópole para que esta, então, pudesse ser superavi-
tária com o resto do mundo, através da revenda dos produtos coloniais.
Entretanto, na passagem do século XVIII para o XIX, o Brasil registrou
um déficit comercial bilateral com Portugal. De acordo com Fragoso e
Florentino, tal situação foi sustentável durante o período porque havia
um mercado interno de reexportação de bens a partir do porto do Rio de
Janeiro para outras capitanias e mesmo para outras localidades do império
ultramarino português. Esse mercado, dizem os autores, era relativamente
infenso às conjunturas internacionais e, ademais, realizava boa parte de
suas transações em moeda metálica, permitindo a cobertura do déficit sem
restringir o crescimento da demanda agregada interna.
Por fim, outro corolário da relativa autonomia da economia colonial
é o chamado “paradoxo de Minas”: o fato de que Minas Gerais possuía
o maior contingente de escravos do Brasil à época da abolição, mesmo
depois da decadência da mineração. Como se sabe, a elevada razão de
masculinidade de alguns dos plantéis da região desautoriza uma interpre-
tação baseada apenas no crescimento vegetativo da população escrava –
a qual, aliás, em si, não é suficiente para explicar sua manutenção em
uma região já menos integrada ao fluxo exportador. Fragoso e Florentino,
então, atribuem tal fato à rentabilidade das empresas da região, voltadas,
em grande parte, ao abastecimento do mercado interno.7

3.3 Constituição de uma elite colonial

Os autores de Arcaísmo como Projeto buscam mostrar que, na


virada do século XVIII para o XIX, ao fortalecimento do mercado interno

7 Novamente, Maritutti et alii (2001) temperam o entusiasmo de Fragoso e Floren-


tino, mencionando a interpretação de Robert Slenes, segundo a qual a mineração de
diamantes para exportação tinha na época um peso considerável entre as atividades de
Minas Gerais.

130
ENTRE O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO E O ARCAÍSMO COMO PROJETO

colonial e de seu grau de autonomia em face da economia internacional,


correspondeu a consolidação de uma elite colonial cuja hegemonia repou-
sava sobretudo na acumulação mercantil e usurária.
Inventários post-mortem e registros de transações registrados no Rio
de Janeiro e coletados pelos autores indicam que a riqueza da parcela mais
rica da população concentrava-se em investimentos mercantis e usurários.
Fragoso (1988) mostra que 14% dos inventariados na praça carioca deti-
nham, em termos de valor, 45% dos edifícios urbanos, 95% das dívidas
ativas e 47% das empresas agrícolas. Já a parcela mais modesta entre os
inventariados – ou seja, os mais “pobres” entre os ricos – viam suas opções
se restringirem ao setor rural.
Aqueles “negociantes de grosso trato” dominavam a concessão de
liquidez e crédito, bem como o ramo de seguros. Eles também concen-
travam boa parcela dos negócios de comércio exterior, especialmente
o tráfico negreiro. Neste, em particular, o capital residente tinha papel
fundamental, tanto no financiamento como na organização de expedições.
Note-se que esse comércio era primordial para a reprodução da economia
escravista.
Quanto à atividade creditícia dessa elite, Fragoso e Florentino
destacam o fato de que um quarto da riqueza inventariada entre 1797 e
1840 estava anotada sob a forma de estoque de dívida. Conforme mostram
os autores através da análise de processos de execução de dívidas, havia
uma profusa rede de débitos e créditos no âmbito da elite colonial e entre
esta e negociantes do Rio da Prata e do restante do império ultramarino
português. Como exemplo, destaca-se a rede de financiamento que ligava
os traficantes cariocas de escravos aos seus fornecedores residentes nas
cidades portuárias da costa africana e, por fim, estes aos pombeiros, respon-
sáveis pelo apresamento dos negros no interior. O exame dos processos de
litígio denota com clareza a posição hegemônica dos negociantes cariocas
nessa rede.
A constituição, dentro da colônia, de uma elite apoiada em ativi-
dades de elevado poder de acumulação de capital e portadora de um

131
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

considerável grau de autonomia ante o capital comercial metropolitano,


certamente é um resultado que não se segue diretamente do modelo expli-
cativo do Sentido da Colonização.

4. Um dilema na historiografia?

Como vimos no início deste artigo, nos anos 40, a ideia de que a
colonização da América tropical, e do Brasil em particular, foi realizada
segundo móveis alheios ao desenvolvimento das sociedades que original-
mente habitavam esses territórios, surgiu como chave explicativa destinada
a dar conta dos determinantes essenciais da evolução dessas sociedades. Os
autores que, com maior ou menor entusiasmo, a adotam, seja identificando
o sentido dessa evolução na expansão do capital mercantil europeu, como
faz Caio Prado, seja no processo de acumulação primitiva que resultaria no
capitalismo industrial nas economias centrais, como faz Fernando Novais,
ou seja ainda na instauração do modo de produção capitalista nas áreas
ainda não sujeitas a ele, como faz Iraci Costa, o fazem por uma importante
razão. Eles creem que, sem o entendimento dessa determinação essencial,
a análise da evolução dessas sociedades tende necessariamente a ficar presa
à superfície dos fenômenos, tal como a descrição da sucessão de ciclos por
Simonsen, contra a qual se voltou a crítica de Caio Prado.
De forma propositalmente simplificada, podemos expressar o
projeto desses autores como uma opção pela essência, sem a qual a
compreensão da aparência fenomenal de nossa sociedade ficaria seria-
mente comprometida.
Por outro lado, vimos que esses fenômenos, expressos na literatura
empírica aqui apenas breve e incompletamente exposta, muitas vezes não
se acomodam bem nas proposições e heurísticas derivadas do Sentido da
Colonização. Em alguns casos, as evidências mostradas, especialmente
aquelas que atestam um grau não desprezível de autonomia das flutuações
coloniais, parecem pertencer à heurística negativa do paradigma pradiano,
contradizendo algumas de suas proposições fundamentais.

132
ENTRE O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO E O ARCAÍSMO COMO PROJETO

Em face dessas evidências, enfim, o projeto fundamental dos


autores desse paradigma fica comprometido: deseja-se preservar a essência
(Sentido) porque se acredita que somente ela nos permite compreender
os fenômenos; porém, os fenômenos parecem contradizer a essência.
Assim, a historiografia fica diante de um aparente dilema: ou se preserva
a aparência, ao custo de sacrificar a essência e, com ela, a chave para a
compreensão da própria aparência; ou se preserva a essência ao preço de
sofrer a contradição da aparência.
Num certo sentido, podemos dizer que esse dilema foi enfrentado
pela historiografia e que os modelos interpretativos propostos posicio-
naram-se ante essas duas alternativas. Os modelos que mais radicalizaram
sua opção seguiram o caminho de preservar a essência em seu discurso ou
aquele de preservar a aparência.
O caminho da essência foi seguido pelos próprios autores que
adotam o enfoque pradiano.8 Em seu discurso, insiste-se na derivação
das proposições que se seguem diretamente do Sentido da Colonização,
trazendo, basicamente, duas consequências já sugeridas na seção anterior.
Em primeiro lugar, deixam-se de conhecer características importantes
da economia colonial porque seu estudo não é sugerido pela heurís-
tica positiva do programa. Em segundo lugar, sofre-se, em determinados
momentos, a contradição dos fatos, às vezes grave.
O caminho que, por sua vez, recusa a essência – ou seja, o Sentido
em sua acepção ampla de determinação externa, tal como o compreen-
demos aqui – para guardar os fenômenos foi seguido pelo modelo inter-
pretativo proposto por Fragoso e Florentino (2001), o qual exporemos
brevemente a seguir.

5. O Arcaísmo como Projeto


Com efeito, para dar conta das principais evidências empíricas
descritas acima, Fragoso e Florentino desenvolveram um novo modelo
explicativo da evolução da sociedade colonial brasileira.

8 Iraci Costa, como veremos, posiciona-se de maneira diferente em face desse dilema.

133
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

Segundo eles, a colonização do Brasil não foi o resultado da expansão


de uma nascente burguesia comercial metropolitana. Ao contrário da
colonização inglesa, por exemplo, que foi o resultado da associação da
nascente burguesia com o Estado, a colonização portuguesa foi uma obra
da nobreza do antigo regime. Isso se explicaria pelas características da
península Ibérica, onde a nobreza não estava ligada apenas ao meio rural,
mas, também e principalmente, às atividades urbanas e comerciais, fato
expresso na famosa figura do “mercador fidalgo”.
Assim, o objetivo da colonização ibérica não era o fortalecimento
da burguesia metropolitana, mas a própria supressão dessa classe, visando,
portanto, à manutenção da hegemonia da nobreza. Para os autores, isso
explicaria por que, no império ultramarino português, nunca houve uma
hegemonia absoluta do capital mercantil metropolitano, sujeito progressi-
vamente à concorrência intraimperial. Como resultado, na fase tardia da
colonização, puderam-se gestar poderosas comunidades mercantis nos
trópicos, em particular na praça do Rio de Janeiro.
Com isso, atendiam-se a dois objetivos. Em primeiro lugar, a
acumulação interna à colônia não impedia a transferência do resultado
final do funcionamento de sua economia à “elite arcaica” metropolitana.
Em segundo lugar, dificultava-se o fortalecimento da classe burguesa na
metrópole, impedindo-a de ameaçar a ordem do antigo regime.
Fragoso e Florentino, portanto, mostram por que a metrópole não se
opôs firmemente ao surgimento do capital residente no Brasil. Entretanto,
falta explicar quais as condições que, na colônia, o permitiram. Nesse
ponto, entram os fatores explicativos relacionados às evidências empíricas
que discutimos acima.
Segundo os autores, a reprodução da economia colonial repousava
sobre o tripé da oferta elástica de mão de obra, alimentos e terras. Com
relação ao primeiro elemento, a estrutura de posse de cativos revelada
pelos estudos empíricos mostra que a escravidão era amplamente disse-
minada na sociedade, havendo, em diversas localidades importantes, um
número grande de proprietários de pequenos plantéis, bem como uma

134
ENTRE O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO E O ARCAÍSMO COMO PROJETO

quantidade considerável de forros proprietários de escravos.9 Esse fato,


dizem eles, atesta um elevado grau de elasticidade da oferta de cativos,
permitindo-se acomodar a demanda interna a preços “relativamente” aces-
síveis. Para explicar os determinantes dessa elasticidade, Fragoso e Floren-
tino utilizam um interessante estudo das sociedades da costa ocidental
africana, mostrando que o tráfico não era somente uma empresa do capital
comercial, mas uma complexa articulação deste com a estrutura e a estrati-
ficação social dos reinos africanos fornecedores de mão de obra e, progres-
sivamente, com os negociantes de grossa ventura do Brasil.
No que tange ao segundo elemento do tripé, a oferta elástica de
alimentos, os autores a explicam utilizando as evidências quanto ao
mosaico de produções internas, que, como vimos, inclui desde empresas
comerciais até unidades voltadas ao autoconsumo. No Arcaísmo, então,
afirma-se que esses dados nos permitem refutar a tese da autarquia das
fazendas exportadoras e, ao mesmo tempo, postular um elevado grau de
elasticidade da oferta de alimentos, respondendo com prontidão a varia-
ções na demanda.
Por fim, o terceiro elemento do tripé, a oferta elástica de terras, tem
como razão principal, além da própria extensão territorial da colônia, o
fato de o usufruto da terra ser mais permissivo que a posse, conforme a
análise de Costa (1992) mencionada acima.
Em suma, a existência desse tripé dava um caráter peculiar à
economia brasileira na época escravista, que pode ser resumido em três
características principais. Em primeiro lugar, era possível transferir uma
parcela importante do excedente econômico das atividades produtivas
rurais para a esfera financeiro-rentista, sem pôr em risco a viabilidade
daquelas atividades nem gerar tensões sociais insuportáveis. Em segundo

9 A título de exemplo, tomemos Luna (1981), que estuda localidades de Minas Gerais
em diversas épocas do século XVIII. A atividade mineira, caracterizada por um grau
elevado de mobilidade social ante outras atividades econômicas da época, podia gerar
situações como a da Comarca do Serro do Frio, que em 1738 registrava os ex-cativos
como perfazendo 22,2% dos proprietários de escravos.

135
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

lugar, devido ao caráter marcadamente não assalariado das atividades


produtivas, quer devido ao escravismo, quer devido aos diversos arranjos
de usufruto da terra, havia escassa monetização da economia. Como resul-
tado, aqueles que concentravam a maior parte do excedente econômico
podiam controlar a liquidez do sistema, permitindo ganhos extraordiná-
rios através da renda das atividades creditícias. Por fim, dentro de determi-
nados limites, a oferta elástica de fatores de produção permitia à economia
colonial gozar de uma relativa autonomia ante a conjuntura internacional.
O modelo do Arcaísmo, como se vê, não apenas acomoda bem as
evidências empíricas que apresentamos acima, mas também as utiliza
organicamente como seus fatores explicativos. Assim, do cruzamento do
projeto arcaico da colonização portuguesa com o tripé acima descrito pode
progressivamente surgir uma economia relativamente autônoma, culmi-
nando, já no período tardio, com a consolidação de uma elite mercantil
residente.
Cumpre perguntar, por fim, qual a lógica de reprodução dessa estru-
tura econômico-social, o que, de certa forma, equivale a perguntar qual
seria o seu “sentido”. Ora, os autores afirmam que tal reprodução ocorria
por meio da constante reiteração da diferenciação excludente, ou seja, da
hierarquia composta por agentes ligados à terra, na base, e agentes ligados
às atividades comerciais e financeiras, no topo.10
Uma vez instalada a sociedade colonial no Brasil, esta passaria,
progressivamente, a autodeterminar sua reprodução, que adquiria o
caráter de um fim em si mesmo. Como se vê, opera-se aí o que poderíamos
chamar de uma inversão do Sentido da Colonização original. Essa inversão

10 À contínua reprodução dessa estrutura, os autores acrescentam um outro movimento:


a migração dos capitais oriundos das atividades comerciais e financeiras para ativi-
dades rurais ou “rentistas urbanas”, após algumas décadas de atividades nas primeiras.
Contrariando os incentivos econômicos, visto que eram estas as mais lucrativas, tal
movimento é explicado por Fragoso e Florentino com base na reprodução dos valores
culturais arcaicos da elite colonial brasileira, que refletiam, por sua vez, os valores do
escravismo e do antigo regime Ibérico: um forte ideal aristocrático, baseado no controle
sobre terras e homens e no afastamento do mundo do trabalho.

136
ENTRE O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO E O ARCAÍSMO COMO PROJETO

tem, com efeito, um local privilegiado no modelo de Fragoso e Florentino.


Ao tratar do controle que o capital residente tinha sobre o tráfico negreiro,
uma atividade indispensável para a reprodução da economia colonial
e, na interpretação tradicional, uma das razões de sua dependência ante
os mercados externos, os autores dizem: “a dependência passava a rede-
finir-se enquanto espaço de acumulação interna” (Fragoso e Florentino,
2001, p. 199).

6. A necessidade de uma resposta contraditória

Como se vê, as duas respostas que analisamos brevemente neste


artigo caracterizam-se ora por escapar da contradição dos fatos, inver-
tendo o Sentido da Colonização e, portanto, perdendo sua formulação
original, ora por preservar esse Sentido, sofrendo, sem assumi-la, a contra-
dição dos fatos.
Há um caminho, contudo, para superar essa aparente dicotomia.
Baseados na ideia de que as analogias por vezes iluminam as opções de
que dispomos, acreditamos que a apresentação do desenvolvimento da Lei
do Valor por Marx, em O Capital, pode servir de modelo de uma resposta
que, enfrentando um problema similar, assumiu-se explicitamente contra-
ditória, logrando conservar tanto a essência como o fenômeno.
Nesta seção, discutimos o sentido lógico dessa apresentação.

6.1 Digressão: a apresentação da lei do valor por Marx

Na seção do primeiro capítulo de O Capital dedicada à discussão do


conceito fetichismo da mercadoria, Marx afirma que uma das principais
características da sociabilidade capitalista é o fato de ela repousar no isola-
mento mútuo de seus agentes. Assim, em vez de regulada previamente pela
sociedade, a atividade produtiva desses agentes é definida através de deci-
sões tomadas de forma descentralizada e mais ou menos independente. Ao
mesmo tempo, porém, a sociedade assim constituída também apresenta

137
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

divisão do trabalho, fazendo com que o resultado de tal produção, as


mercadorias, não se destinem ao autoconsumo das unidades produtivas,
senão à própria sociedade. Assim, isolados a priori, os agentes produ-
tivos socializam-se a posteriori através do mercado, vinculando-se uns aos
outros através da divisão social do trabalho e das trocas mercantis.
Ora, em tal sociedade, em que o caráter privado da produção
impede que se defina ex ante quanto do trabalho social será gasto em cada
atividade, deve-se engendrar uma norma específica de regulação social
que realize essa definição. Do contrário, a reprodução dessa sociedade no
tempo fica comprometida.
Nesse fato Rubin (1980) baseia sua clássica interpretação da teoria
do valor-trabalho de Marx. Segundo ele, o mérito dessa teoria não é o de
haver descoberto que por trás do valor das mercadorias está o trabalho
humano, senão o de haver mostrado por que motivo o trabalho humano
assume a forma de valor no capitalismo. A resposta é clara: a operação da
Lei do Valor é a única forma de garantir a regulação da distribuição social
do trabalho numa sociedade em que os produtores não articulam previa-
mente as suas atividades. O enunciado plenamente desenvolvido dessa Lei,
portanto, seria o de lei da regulação do sistema econômico capitalista.
Pois bem, a forma como Marx apresenta o desenvolvimento dessa
Lei em O Capital é um exemplo bem acabado de uma apresentação dialé-
tica que visa conservar tanto a essência como a aparência fenomenal do
sistema capitalista.
Como se sabe, a primeira seção da obra, que corresponde aos seus
três primeiros capítulos, tem como objeto a chamada circulação simples
de mercadorias. Nela são discutidas genericamente as características
da economia mercantil enquanto forma de manifestação do modo de
produção capitalista. Marx ainda não trata explicitamente desse modo,
pois nessa etapa da apresentação ainda não introduziu o conceito de
capital, mas o capitalismo está presente enquanto pressuposição, fazendo
parte do discurso implícito.

138
ENTRE O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO E O ARCAÍSMO COMO PROJETO

No elevado nível de abstração em que se situa a análise da primeira


seção, a lei do valor é apresentada como a lei da determinação do valor
pelo tempo de trabalho, num processo que é também o de redução real
deste a tempo de trabalho abstrato e socialmente necessário. Nesse plano
da análise, portanto, o valor funciona como regra de troca entre as merca-
dorias, não apenas permitindo a sua comensurabilidade, mas também
definindo a proporção em que elas são trocadas umas pelas outras.
No capítulo IV, que abre a segunda seção da obra, Marx introduz o
conceito de capital. Até o capítulo IX do volume III, no entanto, este será
tratado como capital em geral, abstraindo-se a existência de múltiplos capi-
tais que competem entre si. Assim, também nessa substancial porção da
obra o valor continua funcionando como a dita regra de troca.
Quando, porém, Marx passa a admitir a concorrência intercapita-
lista, no capítulo IX do terceiro volume, chega-se a um problema: se as
mercadorias continuarem a ser trocadas em proporção aos seus valores,
capitais de mesma magnitude, mas de diferentes composições orgânicas,
produzirão taxas de lucro distintas. Esse fato, além de não tolerado pela
concorrência capitalista, que exige uma dada taxa de retorno sobre o capital
total adiantado e não apenas sobre o capital variável, está em contradição
com os dados empíricos, os quais apontam para um permanente movi-
mento tendencial rumo à equalização das taxas de lucro, como se a taxa
média fosse um centro gravitacional do sistema. O problema a que Marx
conduz sua apresentação é expresso da seguinte forma por Ruy Fausto:

[...] como conciliar esse dado [a convergência da taxa de lucro para a taxa
média], que é ao mesmo tempo uma espécie de exigência da racionalidade
do sistema, com a lei do valor, a qual estabelece a necessidade de equivalên-
cia dos tempos de trabalho no intercâmbio das mercadorias? (1983, p. 116)

A conhecida resposta de Marx é a introdução do conceito de preço


de produção, o qual permite a igualação das taxas de lucro de capitais de
mesma magnitude. Porém, isso é feito a um preço: as mercadorias deixam
de ser vendidas em proporção a seus valores. Somos conduzidos, portanto,

139
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

a acreditar que há uma contradição entre a lei do valor, tal como exposta
por Marx até a dita seção do volume III, e resposta dada pelo autor para
garantir a aderência de sua teoria à realidade fenomenal do capitalismo.
Com efeito, além de deixar de ser a regra de troca entre distintas mercado-
rias, a lei do valor, que determinava ser o trabalho a única fonte do valor e
da mais-valia, parece enfrentar problemas no momento em que se permite
que uma unidade produtiva que mobilize mais capital variável obtenha o
mesmo lucro que outra unidade cujo capital total tenha a mesma magni-
tude, mas que utilize proporcionalmente menos capital variável. Marx
expressa essa mesma perplexidade:

Se um capital formado pela proporção 90c + 10v produzisse, como mesmo


grau de exploração do trabalho, a mesma quantidade de mais-valia ou de
lucro que outro capital formado por 10c + 90v, seria claro como a luz do
sol que a mais-valia e, portanto, o valor, teriam necessariamente uma fonte
completamente distinta do trabalho, privando a economia política de toda
base racional. (1975, p. 157)

Conforme mostra Fausto (1983), Marx conduz sua apresentação a


um dilema: ou se abandona a teoria do valor, o que equivale ao abandono
da essência que deveria permitir a compreensão dos fenômenos, para não
estar em flagrante contradição com eles; ou se recusam os fenômenos, para
preservar aquela que se acredita ser a sua essência.
Talvez antecipando algumas escolhas da historiografia brasileira, a
história do pensamento econômico mostra que, grosso modo, esse dilema
foi enfrentado pela Economia Política do século XIX. Diante dele, autores
como Adam Smith e David Ricardo optaram por manter a essência – ou
seja, suas respectivas versões da teoria do valor-trabalho –, ao passo que
a vertente que, nesse ponto, é crítica dos clássicos, e que parte da revo-
lução marginalista e desemboca na moderna teoria neoclássica, optou por
renunciar à teoria do valor-trabalho.
Aqueles que optaram por preservar a essência, Smith e Ricardo,
acabaram sofrendo passivamente a contradição dos fatos, produzindo,
como se sabe, teorias do valor inconsistentes. Aqueles que, por sua vez,

140
ENTRE O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO E O ARCAÍSMO COMO PROJETO

recusaram o valor-trabalho para estar de acordo com os fenômenos


acabaram, enfim, produzindo explicações de caráter tautológico, em que,
substantivamente, os preços são explicados a partir de preços. Ou, em
termos de um juízo lógico, se para eles preço não é valor, por outro lado
preço (não) é (nada mais que) preço.11
Mas em que sentido, afinal, pode-se dizer que a resposta de Marx
é superior a essas duas? Como primeira aproximação, pode-se dizer
que Marx “conserva tanto a essência como o fenômeno” (Fausto, 1983,
p. 119). A opção de seu método é assumir explicitamente a contradição
entre essas duas esferas. Assim, a lei do valor, em vez de ser congelada
em seu enunciado original, como na primeira resposta, ou simplesmente
recusada, como na segunda, sofre uma aufhebung, uma negação dialética,
que permite a superação desse dilema.
Ao modificar a regra de troca original através do conceito de preço
de produção, Marx está exprimindo a negação da lei do valor enquanto
regra de troca entre mercadorias. Essa negação, porém, não se confunde
com uma negação “pura simples”, tal como postulada pela lógica formal.
Ao contrário do que ocorreria se esse fosse o caso, a lei do valor não é
expulsa do discurso, mas justamente conservada ao preço de sua negação.
Afinal, é somente com a introdução do conceito de preço de produção
que uma norma regulatória eficiente pode se impor no sistema. Com
efeito, a partir da flutuação dos preços de mercado em torno dos preços
de produção, estabelecem-se as divergências entre as taxas de lucro das
diversas unidades produtivas, havendo, em decorrência disso, transferên-
cias de capital de um setor ao outro, em busca de lucros mais elevados.
Indiretamente, essas transferências regularão a distribuição do trabalho

11 Cumpre lembrar que o projeto inicial dos marginalistas, de derivar os preços a partir
das preferências dos agentes, esbarra em alguns problemas. Em particular, ele não
resolve o problema da circularidade da determinação de preços a partir de preços, visto
que, nas taxas marginais de substituição dos agentes, indicadoras de suas preferências,
já estão embutidos os preços relativos dos bens. A esse respeito, e com relação às dife-
renças entre a abordagem clássico-marxiana e a neoclássica no que diz respeito à deter-
minação dos preços de mercado, veja-se Prado (2005, 2006).

141
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

na economia, justamente a função que, na ausência de coordenação prévia


entre os agentes, é o principal papel da lei do valor. Ressalte-se aqui, a
propósito, que esse mecanismo é impossível de ser imaginado se as trocas
realizam-se em proporção direta aos valores das mercadorias.
Como afirma Fausto (1983), o conceito de preço de produção “‘abre’
o caminho que vai da essência ao fenômeno”, permitindo que a lei do valor,
uma determinação essencial, opere sua função de norma regulatória da
dinâmica, de outra forma caótica, da esfera dos fenômenos. Porém, esse
caminho, que necessita da supressão da lei do valor como regra de troca,
“se abre fechando-se”, ou seja, “a lei do valor só é conservada a partir da sua
negação”. Em termos de um juízo lógico, “o valor só é quando ele não é”.12
Ao contrário do que se poderia pensar, porém, o primeiro enun-
ciado da lei do valor, que afirma ser o trabalho a única fonte deste último,
é preservado no seu novo enunciado, o de norma regulatória do sistema
econômico. Caso isso não se verificasse, aliás, já não teríamos apenas uma
aufhebung, senão uma negação “pura e simples”: o valor teria outra fonte
que não o trabalho e, conforme se depreende da citação de Marx acima, a
economia política perderia sua “base racional”.
Para que não restem dúvidas quanto a isso, o primeiro enunciado,
negado no plano das trocas entre mercadorias individuais, é mantido no
plano agregado da economia, através das chamadas duas igualdades de
Marx. No procedimento que o autor apresenta para ilustrar a “transfor-
mação de valores em preços de produção”, a soma dos preços de produção
é igual à soma dos preços diretos (proporcionais aos valores), ao passo que
a soma dos lucros é igual à soma da mais-valia produzida.13
Com isso, a teoria do valor de Marx preserva tanto a aparência do
sistema, ou seja, preços diferentes dos valores e taxas de lucro tendencial-
mente iguais, como sua essência, o trabalho como única fonte do valor.

12 As citações são de Fausto (1983, p. 120).


13 A validade das duas igualdades de Marx, bem como de seu procedimento para apre-
sentar a transformação, é ainda objeto de intensa controvérsia. Para uma resenha
crítica, ver Freeman e Cacherdi (1996).

142
ENTRE O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO E O ARCAÍSMO COMO PROJETO

A lei do valor cumpre, desse modo, tanto o objetivo de regular a economia


como o de explicar as proporções médias das trocas, mas só o faz através
de sua forma negada de preço de produção.

6.2 De volta ao assunto

Conforme dissemos no início desta seção, o motivo dessa digressão é


que acreditamos ser possível superar a antinomia entre dois modelos inter-
pretativos da economia colonial brasileira que expusemos aqui. A chave
para tal superação reside na utilização explícita da lógica da contradição.
Felizmente, já existe um modelo explicativo que satisfaz a essa exigência
do objeto em estudo: o do capital escravista-mercantil.
Proposto por Iraci Costa e Julio Manuel Pires14 em diversas ocasiões,
o modelo do capital escravista-mercantil propõe, através da consideração
de uma forma específica de existência do capital nas colônias tropicais,
integrar as evidências empíricas recentemente produzidas sem, no entanto,
perder a essência do Sentido da Colonização.
A necessidade de pensar a relação dessas evidências com o Sentido
da Colonização como uma relação complexa e contraditória, em que, por
um lado, as evidências parecem negar as determinações imediatas do
Sentido, porém, por outro, acabam servindo de mecanismo de sua reali-
zação, é explicitamente advogada pelos autores.
Por exemplo, após apresentar os principais resultados da litera-
tura empírica relativos à estrutura de posse de cativos, Costa (1995),
assim como Fragoso e Florentino, afirma que esta se mostra muito mais
complexa do que a sugerida imediatamente pelo modelo de Caio Prado.
Entretanto, o autor prontamente faz nova referência a esse historiador, afir-
mando que o amplo comprometimento da sociedade com o escravismo
aumentava a dependência da colônia com relação ao mercado externo,

14 Por exemplo, em Pires e Costa (1995, 2000) e Costa (1995).

143
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

devido à necessidade do fornecimento de mão de obra. A sua maneira de


exprimir o problema nos prepara, então, para pensar a questão de forma
contraditória:

Assim, aceita a ideia de que os elementos avocados para desqualificar o


modelo de Caio Prado Júnior atuaram, sempre, de sorte a reafirmar o escra-
vismo, vemo-nos em face de uma aparente contradição: se, num primeiro
lapso, nossos argumentos contradizem o modelo em tela, num segundo
passo trabalham a favor da tese central do mesmo modelo. É forçoso, por-
tanto, enfrentarmos essa contradição aparente. (Costa, 1995, p. 18)

As características das duas respostas para essa contradição, que


analisamos aqui, são também mencionadas por Costa. A solução dos
pradianos para a tal “contradição aparente”, a de conservar a essência, é
descrita na seguinte passagem:

Qual seria a grave limitação do modelo interpretativo de Caio Prado


Júnior? (...) A nosso juízo tal limitação deveu-se ao fato de ele haver trans-
posto para o plano fenomênico, sem as necessárias e devidas mediações,
elementos próprios do que considerou a essência de nossa formação e da
sociedade aqui constituída. Reduzido, assim, o plano do concreto (...) a ele-
mentos de sua pretensa essência (...), resta-nos uma caricatura de vida eco-
nômica e social, desfigurada, rígida, descarnada, apartada da experiência
do dia-a-dia (...) que faz com que nos sintamos tão incomodados, tão ‘des-
confortáveis’ quando confrontamos nossa visão daquela sociedade com a
que derivamos da leitura dos escritos de Caio Prado Júnior. (Ibid., p. 18)

O autor, em seguida, critica a segunda solução, a de sacrificar a


essência em prol dos fenômenos:

[...] há os que, cometendo um erro homólogo, tornaram-se presas de limi-


tações igualmente reducionistas; pensamos, agora, nos pesquisadores que,
prendendo-se à aparência, à forma como a sociedade escravista se nos
apresenta imediatamente, pretendem transportar tal mundo fenomênico,
sem as imprescindíveis mediações, para o âmago último de nossa forma-
ção; tomam, pois, a aparência como se fosse a essência. (Ibid., pp. 18-19).

144
ENTRE O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO E O ARCAÍSMO COMO PROJETO

Se o resultado da primeira resposta é a contradição com os fatos,


como, no nosso exemplo, o caso dos economistas clássicos, o caráter tauto-
lógico da segunda resposta, similar ao da economia neoclássica, é explici-
tamente mostrado pelo autor:

O resultado desse movimento [a segunda resposta] já é conhecido: a essência


do escravismo moderno se esvai no ar, dilui-se ante nossas vistas, escapa das
nossas mãos, restando-nos uma sociedade que, autônoma e independente-
mente, parece reproduzir-se a si mesma a partir de si mesma. (Ibid., p. 19,
grifos nossos)

Sendo o capital escravista-mercantil a resposta contraditória que


supera esse vicioso dilema, voltamo-nos agora a detalhar seu conteúdo
bem como seu sentido lógico.

7. A superação da antinomia: o capital


escravista-mercantil e seu sentido lógico

7.1 Caracterização do capital escravista-mercantil

Pires e Costa (1995) classificam o capital escravista-mercantil como


uma forma adicional de existência do capital, ao lado das três formas clás-
sicas analisadas por Marx: o comercial, o usurário e o industrial. Segundo
os autores, a expansão do capitalismo comercial europeu em direção ao
Novo Mundo, combinada com um conjunto de circunstâncias peculiares,
tais como a disponibilidade de fontes supridoras de mão de obra escrava
no continente africano e a existência de mercados capazes de absorver
os bens aqui produzidos, levou à vigência do capital escravista-mercantil
durante o processo de constituição do modo de produção capitalista em
boa parcela da América tropical.
O capital escravista-mercantil caracteriza-se por ser produtor de
mercadorias e extrator de mais-valia, mas o faz pondo em movimento
mão de obra cativa. A produção de mercadorias – exportáveis ou não –
no Brasil escravista decorreria, portanto, da ação dessa forma do capital,

145
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

a qual dominaria, além esfera produtiva propriamente dita, a circulação


interna. Sob seu comando, portanto, estariam a alocação dos fatores,
a escala dos empreendimentos e as técnicas escolhidas. Em resumo, diz
Costa: “sua presença condicionava toda a economia bem como as relações
estabelecidas no processo de produção, projetando-se, ademais, na vida
social e política do Brasil” (1995, p. 20).
No entanto, o capital escravista-mercantil possuía uma impor-
tante peculiaridade: ele não garantia sua própria reprodução no tempo.
Isso ocorria porque sua área de atuação restringia-se ao plano interno à
colônia, estando isolado do plano externo, do qual necessitava para realizar
a produção exportável e obter mão de obra. Para pôr-se em contato com
a economia internacional, portanto, ele necessitava da mediação do capital
comercial, que atuava como uma interface entre a colônia e os mercados
externos.
O capital comercial, além de desempenhar essa função de interface,
também teria sido o responsável pelo estabelecimento da empresa colo-
nial, através do povoamento e da valorização das terras do Novo Mundo.
Depois de realizada essa tarefa inicial, porém, passou-se progressivamente
a desenvolver o capital escravista-mercantil no plano interno da colônia.
Dependente do capital comercial para sua reprodução, através das
exportações e dos escravos, o capital escravista-mercantil não se confundia
com uma mera projeção dele, comportando “a existência de dimensões e
articulações que iam muito além dos estreitos limites do capital comercial”
(ibid., p. 21). Algumas dessas características, acrescentaríamos, contradi-
ziam aquelas imediatamente deriváveis da operação do capital comercial,
tais como as expressas na heurística positiva do Sentido da Colonização.
Vejamos agora em que sentido mais preciso se pode dizer que o
modelo do capital escravista-mercantil representa a resposta contraditória
ao dilema da historiografia que estamos buscando.

146
ENTRE O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO E O ARCAÍSMO COMO PROJETO

7.2 O sentido lógico do capital escravista-mercantil

O Sentido da Colonização, no discurso daqueles que propõem o


modelo do capital escravista-mercantil, tem um status em certa medida
análogo àquele da teoria do valor no discurso de Marx. Em ambos os
casos, o desenvolvimento do Sentido e o da lei do valor, respectivamente,
são apresentados como processos que ocorrem por meio de negações
sucessivas.
A lei do valor, para atingir um desenvolvimento pleno enquanto
norma regulatória da economia capitalista, deve negar progressivamente
sua relação com seu fundamento substancial, o trabalho. Esse processo tem
como um de seus momentos críticos a chamada transformação de valores
em preços de produção, conforme analisamos acima. Similarmente, para
realizar-se plenamente, seja para apoiar o desenvolvimento capitalista na
Europa, seja para instaurá-lo no Novo Mundo, o Sentido da Colonização
deve negar-se.
Afinal, muitas vezes é através da realização do seu contrário, ou
seja, do desenvolvimento do mercado interno, de uma economia relativa-
mente complexa e em alguma medida autônoma, e de uma elite colonial
assentada no capital residente, que o Sentido se realiza plenamente. Com
efeito, embora a sociedade aqui constituída não caiba confortavelmente
nas derivações imediatas do Sentido, é inegável que a colonização dos
trópicos contribuiu, de fato, para a transição para o capitalismo industrial
na Europa e para a sua instalação na América tropical.
A superioridade das respostas de Pires e Costa em face daquelas do
paradigma pradiano, de um lado, e de Fragoso e Florentino, do outro, é o
fato de que os primeiros autores “põem entre parênteses” o sentido, ou seja,
admitem sua supressão (aufhebung) para, ao dizer o contrário de sua deri-
vação imediata – ou seja, o mercado interno, a relativa autonomia, etc. –
poder ao final dizê-lo enquanto Sentido plenamente realizado.
Uma forma de compreender as diferenças entre os três discursos é,
seguindo o procedimento de Fausto (1983), através da análise dos juízos

147
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

lógicos que eles realizam. O discurso pradiano, ao tentar preservar a todo


custo a essência da evolução da sociedade colonial brasileira, não admite
a negação do Sentido da Colonização. Nos juízos que seus autores fazem,
portanto, o Sentido é um sujeito posto, ou seja, ontologicamente exis-
tente. Suas determinações são expressas através de juízos de inerência, nos
quais os predicados, dotados também de existência real, não contradizem
o sujeito, sendo meras determinações deste. Assim, diríamos: O Sentido
da Colonização (posto) é o Latifúndio Monocultor (posto), a Economia
Reflexa (posto), etc.
O problema desse tipo de discurso é o fato de que ele muitas vezes
sofre a contradição dos fatos, pois, dado que no Brasil Colônia também se
apresentavam o mercado interno e a economia autônoma, também tería-
mos que o sentido da colonização é o mercado interno, a economia autô-
noma, etc., juízos que estão em contradição com os primeiros.
Os autores do Arcaísmo, por sua vez, recusam o Sentido, reduzindo-
o à mera reiteração de seus predicados. O juízo adequado ao seu discurso
é, portanto, o juízo convencionalista, em que o sujeito está ausente, estando
postos apenas seus predicados. Assim teríamos: O Sentido (ausente) é a
Economia Autônoma (posta), a Elite Colonial Residente (posta).
Como se vê, Fragoso e Florentino reduzem a essência à aparência,
através de juízos de caráter tautológico. Para eles, O Sentido (não) é (nada
mais que) a reprodução a Economia Autônoma, da Sociedade Desigual, da
Elite Colonial Residente.
Por fim, o discurso de Pires e Costa “põe o Sentido entre parênteses”;
ele não é posto, porém não é expulso do discurso. Na verdade, é apresen-
tado como um sujeito em processo de desenvolvimento contraditório, que
realiza determinações que são o seu contrário enquanto completa esse
desenvolvimento. O juízo adequado para exprimir esse tipo de objeto é
o juízo de reflexão, no qual o sujeito tem o status de uma pressuposição.
Ao contrário do juízo de inerência, em que os predicados não contradizem
o sujeito posto, o juízo de reflexão é adequado quando as características do

148
ENTRE O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO E O ARCAÍSMO COMO PROJETO

objeto estudado são tais que, para dizê-lo, devemos dizer o seu contrário.
Assim, diríamos: O Sentido (pressuposto) é a Economia Autônoma (posta),
a Elite Colonial Residente (posta).
Com efeito, num juízo de reflexão como esse, em que o sujeito está
pressuposto, o predicado nega o sujeito. Ao dizer o que é o Sentido, somos
obrigados a dizer o seu contrário – a economia autônoma, o mercado
interno, etc. Entretanto, essa negação dialética não o expulsa do discurso,
pois, do contrário, seríamos conduzidos a um juízo convencionalista.
Por um lado, o uso do juízo de reflexão permite-nos guardar os
fenômenos apresentados pelas evidências empíricas, pois eles são necessa-
riamente ditos quando buscamos exprimir o Sentido. Por outro lado, esse
juízo permite-nos guardar a essência de nossa evolução, pois é dizendo o
seu contrário que contamos como o Sentido afinal se realiza. A resposta
dialética, como se vê, supera o dilema da historiografia, preservando tanto
a essência como a aparência, vale dizer, tanto os fatos como a chave para a
sua compreensão.15
No plano histórico mais propriamente dito, foi o capital escravista-
mercantil – uma forma evanescente16 do capital – o elemento que, no
período que vai dos descobrimentos até a abolição, realizou, em porções
da América tropical, a negação concreta do Sentido para enfim realizá-lo.

15 À guisa de provocação, podemos nos perguntar qual a validade das considerações


metodológicas de Lakatos em face de um programa de pesquisa que, num certo sentido,
tem a negação (dialética) de seu núcleo como um heurística positiva.
16 Dizemos “evanescente” porque o capital escravista-mercantil, baseado na mão de obra
escrava, muito embora compatível com o capitalismo em sua fase de instauração no
Novo Mundo, é incompatível com seu desenvolvimento em larga escala. Com efeito,
em todas as localidades onde atuou, o capital escravista-mercantil acabou dando lugar
ao capital industrial, baseado na mão de obra assalariada. Para uma análise histórica de
como essa superação ocorreu, ver Pires e Costa (2000).

149
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

8. Conclusão

Este artigo buscou, através da análise dos modelos interpretativos


que mais radicalizam as derivações de suas hipóteses,17 apresentar o desen-
volvimento da historiografia sobre a economia colonial brasileira como
condutor a uma viciosa dicotomia. De um lado, estariam as contribuições
que compartilham o enfoque do Sentido da Colonização, originalmente
proposto por Caio Prado Júnior, e do outro, as contribuições de João
Fragoso e Manolo Florentino.

17 Neste artigo, não tratamos, propositalmente, das críticas que, no final dos anos 60 e nos
anos 70, foram dirigidas ao modelo de Caio Prado Jr. Propostas especialmente por Ciro
Flamarion Cardoso (1975a, 1975b e 1975c), Jacob Gorender (1992) e Antonio Barros
de Castro (1977, 1980, 1984), essas críticas foram realizadas antes do boom da historio-
grafia monográfica, tendo em comum o fato de serem críticas de caráter mais propria-
mente teórico. Embora uma análise detalhada de suas valiosas contribuições esteja fora
do escopo deste artigo, o que nos impede de fazer-lhes justiça, podemos dizer que o
sentido geral dessas críticas foi de retirar o foco analítico das articulações da economia
colonial com a economia internacional – como teria feito, segundo eles, a abordagem
circulacionista dos autores do paradigma pradiano – para então voltá-lo “para dentro”,
ou seja, para a forma como a produção e o trabalho eram realizados na colônia. À guisa
de balanço final, podemos dizer que essas críticas, embora tenham tido o mérito de
evitar uma radicalização das posições e, portanto, de evitar conduzir o debate a um
vicioso dilema tal como exposto aqui, ficaram no geral aquém de uma lógica da contra-
dição. Por exemplo, Barros de Castro, embora afirme que o “projeto colonial e/ou
mercantilista subsiste”, diz que “o ‘objetivo’ maior dessa realidade – o seu ‘sentido se
se quiser – lhe é agora inerente: atender as suas múltiplas necessidades, garantir sua
reprodução” (Castro, 1980, pp. 88-89). O autor, embora recuse derivar imediatamente
as consequências do “projeto colonial ou mercantilista”, levando em conta a interpo-
sição da estrutura interna no caminho dos interesses externos, não menciona explicita-
mente a lógica que permitiria a estes últimos se realizarem através dessa interposição.
Já Cardoso e Gorender, buscando uma alteração de enfoque similar, propõem que nas
colônias haveria a vigência de modos de produção específicos, diferentes do modo de
produção das economias centrais. Com isso, seria possível estudar as especificidades
internas dessas economias, evitando-se a subordinação de suas relações de produção
à esfera da circulação internacional de mercadorias. Entretanto, o “fato colonial”, nas
palavras de Cardoso (1975b), é preservado, fazendo com que esses modos de produção
tenham um caráter dependente, ou seja, eles não garantem sua reprodução autônoma,
dependendo dos mercados externos. O uso do conceito de modo de produção colonial
pelos autores não conduz, a nosso ver, a uma resposta adequada para a necessidade de
utilizar a lógica da contradição da forma como propomos aqui. Para uma crítica do uso
do conceito de modo de produção colonial, ver Costa (1985).

150
ENTRE O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO E O ARCAÍSMO COMO PROJETO

Reconhece-se, aqui, o imenso mérito dessas contribuições para


a compreensão de nossa formação socioeconômica. Entretanto, propu-
semos que as primeiras, embora revelem numerosas características dessa
formação, acabam nos fornecendo um retrato relativamente estreito da
sociedade colonial, pois o fazem através da derivação imediata das conse-
quências daquela que é a sua essência: o Sentido da Colonização. Como
resultado, esse modelo interpretativo frequentemente se vê em dificul-
dades perante as evidências empíricas. As contribuições do segundo grupo,
por sua vez, ao tentarem acomodar as evidências empíricas, acabaram
perdendo de vista essa determinação essencial.
Propusemos, então, uma alternativa metodológica para superar
esse dilema, possibilitando preservar tanto a complexidade concreta da
economia colonial como a essência abstrata de sua formação. Por fim,
mostramos que há um modelo interpretativo que utiliza explicitamente
essa opção metodológica, o modelo do capital escravista-mercantil, cujo
desenvolvimento no âmbito da pesquisa historiográfica consideramos
extremamente desejável.

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153
9. CAPITAL E COLONIZAÇÃO:
A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA
DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL1
Rodrigo Alves Teixeira

1. Introdução

O modelo interpretativo proposto por Caio Prado Júnior em sua


obra Formação do Brasil Contemporâneo exerce forte influência até hoje
na historiografia sobre o período colonial brasileiro. Sua influência se
exerce tanto sobre aqueles que procuram manter a ideia do “sentido da
colonização”, vendo a colônia como uma sociedade cuja estrutura e
funcionamento foram determinados pelo comércio externo e, portanto,
como um mero empreendimento a serviço do capital comercial europeu,
quanto sobre aqueles que, buscando criticar tal visão e defendendo uma

1 Uma primeira versão deste texto foi apresentada no encontro da ANPEC de 2005,
em Natal-RN. Naquela versão, ativemo-nos às questões metodológicas. Aqui, apro-
fundamos aquelas discussões em alguns pontos, em particular na apresentação da
concepção dialética das significações – para o que nos apoiamos em Fausto (1987
e 1988) e suas implicações para a leitura da concepção marxiana da História. Além
da discussão metodológica, acrescentamos uma discussão sobre o desenvolvimento
do capitalismo enquanto um sistema mundial e sobre o lugar da colonização nesse
processo, para embasar a crítica ao uso das categorias modo de produção e formação
econômico-social na interpretação de nosso período colonial. Este artigo foi desenvol-
vido a partir das discussões suscitadas na disciplina “Formação Econômica e Social do
Brasil: Modelos Interpretativos”, ministrada no Instituto de Pesquisas Econômicas da
USP pelo professor Nelson Nozoe no primeiro semestre de 2003, disciplina essa que foi
concebida no bojo do NEHD (Núcleo de Estudos em História Demográfica da FEA/
USP). Agradeço aos demais colegas do curso pelas excelentes e instigantes discussões e
aos professores Nelson Nozoe, José Flávio Motta e Iraci Costa, com os quais tive a opor-
tunidade de discutir uma versão preliminar deste texto. Os erros e imprecisões que aqui
permanecerem são de minha responsabilidade.

155
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

autonomia da dinâmica interna à colônia, veem-se obrigados a discutir


o modelo pradiano e seus desenvolvimentos posteriores, usando-o como
ponto de partida das suas críticas.
O objetivo do presente trabalho é discutir as linhas principais da
historiografia sobre o período colonial brasileiro que surgiram a partir
do modelo pradiano e, com base na análise dos seus fundamentos meto-
dológicos, fazer uma avaliação do poder explicativo e da adequação dos
modelos propostos.
Nessa historiografia, sabe-se que a maioria dos autores buscou
analisar a realidade colonial brasileira com base nos conceitos desenvol-
vidos por Marx, ou seja, na linha do materialismo histórico, e Caio Prado
Júnior foi pioneiro na aplicação do materialismo histórico à realidade
brasileira. Entretanto, apesar de aparentemente partirem de uma mesma
concepção teórica, tais autores chegam a resultados muito diferentes. Tais
diferenças, como buscaremos defender neste trabalho, decorrem princi-
palmente das diferentes leituras da obra de Marx e são de fundo metodoló-
gico. Dessa forma, torna-se necessário compreender as diferentes leituras
de Marx que foram feitas pelos autores do debate, explicitando os aspectos
metodológicos dessas leituras.
Partindo dos estudos desenvolvidos em outro trabalho (Teixeira,
2003), daremos destaque à tensão existente entre três visões da teoria
2

do conhecimento em ciências sociais: o positivismo (e também o

2 O trabalho citado, que é minha dissertação de mestrado, teve o objetivo de estudar


como as três grandes visões da teoria do conhecimento (o positivismo, o historicismo e
a dialética) influenciaram os debates metodológicos na ciência econômica, centrando a
discussão na forma como cada uma delas vê as relações entre sujeito e objeto, a possibi-
lidade da objetividade do conhecimento científico e a adequação da teoria ao objeto. As
análises que faço aqui sobre essas três visões da teoria do conhecimento estão mais bem
fundamentadas nesse trabalho, para o qual encontrei grande apoio e influência na obra
de Michael Löwy (1996). Entretanto, percorri um caminho um tanto diferente de Löwy,
que destaca a dimensão das relações sujeito-objeto pela via da sociologia do conheci-
mento, enquanto preferi destacar a dimensão da historicidade dos conceitos no plano
da possibilidade objetiva em geral de seu surgimento, e não da possibilidade subjetiva
de surgir a partir de determinada visão de mundo ou da maior ou menor objetividade
que se pode alcançar a partir das diferentes visões de mundo.

156
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

estruturalismo), com a sua busca de relações invariantes, de validade


universal no espaço e no tempo; o historicismo, com a defesa de que cada
arranjo social é uma particularidade histórica e que os conceitos não
podem ser generalizados para o estudo de distintos arranjos sociais, o
que aponta para os limites do conhecimento; e a dialética, que com uma
mudança de registro lógico, ou seja, com o rompimento com os limites da
lógica formal, busca trabalhar a contradição entre a generalidade e a parti-
cularidade dos conceitos.
As discussões nas quais nos centraremos são basicamente as
seguintes, que consideramos ser as mais importantes nas críticas ao
modelo pradiano:
1) a acusação, imputada ao modelo pradiano, de que a ideia de “sentido”
seria teleológica;
2) as críticas segundo as quais o escravismo (e não o capital comercial),
que não é elemento central na obra de Caio Prado (chegando mesmo,
em Fernando Novais, a ser visto como resultado do tráfico, ou seja,
explicado pelo capital comercial), deveria ser a categoria central no
estudo da Colônia, pois seria seu traço definidor e diferenciador;
3) O uso da categoria modo de produção para estudar o Brasil Colônia,
no bojo das críticas de que o modelo pradiano seria circulacionista, ou
seja, centrado na circulação comercial e não nas relações de produção,
e por isso não seria rigoroso na aplicação do materialismo histórico à
realidade brasileira;
4) As críticas à excessiva ênfase dada à dependência e subordinação
da economia e da estrutura da sociedade colonial ao mercado
externo. Embora essa crítica esteja ligada às anteriores, ela se desen-
volveu não apenas no plano teórico, mas principalmente baseada
nos desenvolvimentos da pesquisa empírica a partir da década de 70
(particularmente com a demografia histórica), que apontaram uma
complexidade na economia colonial que não podia ser explicada
apenas pela ideia do “sentido”.

157
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

Este trabalho divide-se em cinco seções, além desta introdução. Na


seção 1, apresentaremos o modelo proposto por Caio Prado Júnior em
sua obra Formação do Brasil Contemporâneo. Na seção 2, apresentamos
os desenvolvimentos teóricos que vão ao encontro desse modelo, como
as obras de Celso Furtado e Fernando Novais. Na seção 3, apresentamos
as discussões teóricas a respeito do modelo pradiano, com as críticas e
os modelos alternativos que surgiram, particularmente as propostas de
Antônio Barros de Castro, Ciro Flamarion Cardoso e Jacob Gorender, entre
os anos 70 e 80. Na quarta seção, apresentaremos dois modelos recentes,
da década de 90, que buscam superar as dificuldades que permaneceram
nos modelos apresentados na seção 3. A primeira é a proposta de João Luís
Fragoso e Manolo Florentino, que se centram no conceito de formação
econômico-social para tentar superar os limites da categoria modo de
produção e destacam de maneira mais radical a autonomia da dinâmica
interna da colônia. A segunda é a proposta de Iraci Costa e Julio Pires, que
busca conciliar a noção de dependência e relativa falta de autonomia da
colônia com as evidências empíricas obtidas da demografia histórica que
mostraram os limites da noção de “sentido” para explicar a complexidade
da sociedade colonial.
Finalmente, na quinta seção, faremos as considerações finais e apre-
sentaremos nossa conclusão.

2. O “sentido da colonização” de Caio Prado Júnior

O objetivo desta seção é apresentar as características principais do


modelo interpretativo de Caio Prado Júnior. Logo no início de sua obra,
ao tratar do Sentido da Colonização, o autor explicita sua posição metodo-
lógica, que se assemelha muito à postura metodológica de Marx. Empare-
lhemos as duas citações para ficar clara a comparação:

Todo povo tem na sua evolução, vista à distância, um certo “sentido”. Este
se percebe não nos pormenores da sua história, mas no conjunto dos
fatos e acontecimentos essenciais que a constituem num longo período de

158
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

tempo. (...) Visto deste ângulo geral e amplo, a evolução de um povo se


torna explicável. Os pormenores e incidentes mais ou menos complexos
que constituem a trama de sua história e que ameaçam por vezes nublar
o que verdadeiramente forma a linha mestra que a define, passam para o
segundo plano, e só então nos é dado alcançar o sentido daquela evolução,
compreendê-la, explicá-la. (...) Não se compreende por isso, se desprezar-
mos inteiramente aquela evolução, o que nela houve de fundamental e per-
manente. Numa palavra, o seu sentido. (Prado Júnior, 1981, pp. 13-14)

A sociedade burguesa é a organização histórica mais desenvolvida, mais


diferenciada, da produção. As categorias que exprimem suas relações, a
compreensão de sua própria articulação, permitem penetrar na articulação
e nas relações de produção de todas as formas de sociedade desapareci-
das, sobre cujas ruínas e elementos se acha edificada, e cujos vestígios, não
ultrapassados ainda, leva de arrastão desenvolvendo tudo que fora antes
apenas indicado que toma assim toda a sua significação, etc. A anatomia
do homem é a chave da anatomia do macaco. O que nas espécies animais
inferiores indica uma forma superior não pode, ao contrário, ser compre-
endido senão quando se conhece a forma superior. (Marx, 1978, p. 120)

Em primeiro lugar, há que se ressaltar que os objetivos de Caio


Prado e Marx são diferentes. Enquanto este último fala da passagem de um
modo de produção a outro, Caio Prado não destaca rupturas desse nível e
nem utiliza em sua obra o conceito de modo de produção, ao menos não
explicitamente. O que há em comum nas duas citações é a relação entre
passado e presente, a ideia de que, ao se conhecer o resultado do desen-
rolar da história, é possível, então, a partir do conhecimento do presente,
olhar para trás para identificar quais as relações mais importantes para
se compreender a dinâmica das sociedades passadas que as distanciaram
do modo como ora se apresentam ou que as desenvolveram na sociedade
presente. É o presente que fornece a chave para o passado, ou seja, é o
conhecimento do presente que permite identificar os elementos essenciais

159
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

para se compreender o passado, separando esses elementos essenciais do


que é secundário ou apenas acessório, ou seja, dos “pormenores de sua
história”.3
Tanto em Marx como em Caio Prado Júnior, nota-se então a ideia
de um “sentido” na história, mas esse sentido não é teleológico, ou seja,
não é um sentido que existe a priori, determinístico, cujo telos é previa-
mente conhecido, mas um sentido que é conhecido, ou melhor dizendo,
um sentido que é reconstruído racionalmente apenas a posteriori, ou seja, a
partir do conhecimento da sociedade que resultou do desenrolar histórico.
Na sua famosa comparação, Marx diz que é a partir da anatomia
do homem que se conhece a anatomia do macaco, ou seja, que é a partir
da forma mais desenvolvida que se podem construir categorias e perceber
determinações que apareciam atrofiadas ou apenas em forma embrionária
na forma menos desenvolvida. Esse olhar da forma menos desenvolvida
é feita com base no conhecimento da forma mais desenvolvida, o que
não implica, entretanto, que do “macaco” – de um antropóide – deveria
emergir o homem como necessidade lógica, e, portanto, nada garante que
o futuro estava inscrito como necessidade lógica no passado, de forma
que a história se processaria como a realização de uma racionalidade

3 Ao falar de pormenores aqui, parece-nos que Caio Prado Júnior esteja falando dos acon-
tecimentos empíricos isolados, ou seja, da história factual. No caso da nossa história
colonial, são, por exemplo, os sucessivos “ciclos” de produtos de exportação, descritos
por Roberto Simonsen, fenômenos isolados aos quais Caio Prado Júnior busca dar uma
significação teórica, ou seja, encontrar a essência que os move. Também podem ser
vistos como pormenores os elementos presentes na sociedade colonial que não estavam
diretamente relacionados ao sentido da colonização, mas eram subsidiários a ele, como
o mercado interno da colônia e seus elementos constituintes. Fazendo parte da “geração
de 30”, ao lado de Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto Freyre (como destaca Antônio
Candido no seu prefácio ao Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda), Caio
Prado participa assim da revolução de nossa historiografia que busca romper com a
história factual para engajar-se na formulação de teorias, ou seja, de modelos interpre-
tativos que buscam explicar os fatos isolados em seu conjunto, identificando a lógica
que os une.

160
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

metafísica.4 O espaço da contingência existe e é claro em Marx, embora


não tenha ficado claro para uma certa vulgarização nas teses do marxismo
ortodoxo. Claro que, no caso da evolução das espécies na biologia, a contin-
gência é algo natural (embora a intervenção humana na natureza tenha
mudado isso profundamente desde que Darwin divulgou suas ideias), ao
passo que, no campo social, a realização de estados possíveis depende dos
conflitos entre classes e grupos sociais, ou seja, se dá no plano da política.
Dessa forma, assim como não é correto tratar a “sucessão dos modos
de produção”, em Marx, como um processo evolutivo histórico-natural,
e, mais ainda, com uma ordem de evolução predefinida, também não é
correta, a nosso ver, a acusação de que a ideia de “sentido da colonização”
proposta por Caio Prado seja teleológica: a lógica do “sentido” não existe
a priori, como necessidade lógica, mas é reconstruída a posteriori pelo
sujeito do conhecimento, como contingência que se realizou efetivamente
e a partir da qual é possível olhar para o passado e perceber lá os elementos
que o desenvolveram na forma presente.
Caio Prado também confere outra significação à palavra “sentido”, o
que já é um salto da metateoria para a teoria: ao ver na colônia um orga-
nismo econômico primordialmente voltado ao fornecimento de produtos

4 Marx alerta para este erro de considerar a história de forma teleológica, como uma
sucessão de etapas predeterminadas, na passagem seguinte: “O chamado desenvolvi-
mento histórico repousa em geral sobre o fato de a última forma considerar as formas
passadas como etapas que levam a seu próprio grau de desenvolvimento, e dado que
ela raramente é capaz de fazer a sua própria crítica, e isso em condições bem determi-
nadas – concebe-as sempre sob um aspecto unilateral” (1978, p. 120). Além do risco de
teleologia, Marx aponta também para outro problema, presente nos economistas polí-
ticos, de partirem dos conceitos da sociedade capitalista e ignorarem as diferenças com
relação às demais sociedades passadas, ou seja, ignorar a história: “Se é certo, portanto,
que as categorias da Economia burguesa possuem [caráter de – RAT] verdade para
todas as demais formas de sociedade, não se deve tomar isto senão cum grano salis [ou
seja, em sentido bem determinado, com cautela - RAT]. Podem ser desenvolvidas, atro-
fiadas, caricaturadas, mas sempre essencialmente distintas” (ibid.). Muitos marxistas,
porém, entre eles o estruturalismo de Althusser e o próprio Jacob Gorender (que
discutiremos adiante), incorreram nesse erro e tomaram as categorias criadas para o
estudo da sociedade capitalista para estudar as sociedades passadas sem muita cautela.

161
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

tropicais e de metais preciosos para o mercado europeu, destaca então


esse “sentido” da produção colonial, ou seja, seu direcionamento para o
mercado externo, que conduzirá toda a obra da colonização e a sociedade
colonial.
Assim, depois de explicitada a postura metodológica, o autor passa
a estudar a vida material da colônia. Identificado esse “sentido”, percebido
exatamente pela sua permanência e pelos seus efeitos sobre o presente
(e esse presente é o de um Brasil já independente politicamente nas
primeiras décadas do século XX, mas que continuava dependente econo-
micamente do mercado europeu), Caio Prado Júnior vai destacar os
elementos essenciais da vida material da colônia, que serão a grande
lavoura, a monocultura e o trabalho escravo, elementos esses que
delinearam os contornos econômicos, sociais e geográficos da socie-
dade colonial que permaneceram até o presente. Após identificar esses
elementos essenciais, ele busca separá-los do que é apenas acessório, dos
elementos e acontecimentos secundários, entre os quais estarão o mercado
interno e a produção voltada para ele, como a pecuária, o setor de serviços
e a produção de gêneros alimentícios e utensílios para consumo interno.
Busca mostrar, então, que os elementos secundários estão total-
mente subordinados aos elementos essenciais: a produção para o mercado
interno surge apenas como atividade subsidiária da grande lavoura escra-
vista exportadora e tem sua dinâmica determinada pela dinâmica do
mercado externo, ou seja, pela dinâmica dos preços internacionais e da
demanda de gêneros agrícolas tropicais pela Europa. O capital comercial é
então elemento central para a compreensão da sociedade colonial e da sua
dinâmica.
Finalmente, a partir do estudo da vida material, dentro da postura
do materialismo histórico, nos capítulos finais da obra o autor passa então
a analisar a vida social da colônia, ou seja, passa a estudar a superestrutura

162
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

que se formou sobre aquela base. Aqui fica clara sua filiação ao materia-
lismo histórico: a vida social é explicada a partir da vida material.5
Assim, no modelo pradiano, a economia e a sociedade coloniais
seriam um mero apêndice de um sistema mais amplo, que tem seu centro
na Europa, e toda sua dinâmica se subordinaria a esse centro. Não havia
aqui espaço para a reprodução de uma sociedade autônoma.
Na próxima seção, trataremos de dois outros autores, que são vistos
pela historiografia crítica como desenvolvimentos do modelo pradiano. O
primeiro é Celso Furtado (1980), que desenvolveu a ideia de subordinação
da colônia ao comércio externo, buscando explicitar os ciclos reflexos da
economia colonial ao mercado europeu. Esse autor, entretanto, desenvolve
suas ideias a partir de uma perspectiva keynesiana, e não marxista, e não
colocou sua obra explicitamente como um aperfeiçoamento do modelo de
Caio Prado Júnior. São dois os motivos para, apesar disso, destacarmos aqui
sua obra: sua importância na historiografia e na interpretação da economia
brasileira e latino-americana e pelo fato de Fragoso e Florentino, em seu

5 Não poderíamos omitir algumas opiniões sobre esse complicado tema. De nossa parte,
não acreditamos haver a separação radical entre base econômica e superestrutura,
que a nosso ver foi utilizada por Marx muito mais para fins didáticos, embora tenha
trazido mais problemas que soluções, o que ele próprio percebeu logo de início, tendo
suprimido da sua obra O Capital o prefácio anterior (de 1857) que havia preparado
(conhecido como o Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política) e no qual
apresentava tais noções. A dificuldade que levou Marx a suprimir tal prefácio é exata-
mente a dificuldade de se apresentar de antemão, antes do desenvolvimento lógico das
categorias, conceitos construídos dialeticamente, que num prefácio aparecem como
se fossem meras definições formais ou categorias abstratas, à maneira das teorias
construídas com a lógica formal. Ou seja, trata-se de um problema em geral de se
fazer prefácios quando se trata de uma obra construída com uma abordagem dialé-
tica, problema que já havia sido destacado por Hegel, no prefácio à sua Fenomenologia
do Espírito. Em Fausto (1988, especialmente cap. 4) encontramos uma exposição de
como não é adequado separar a “base econômica” e a “superestrutura”, pois a relação
entre elas é uma relação dialética de posição e pressuposição. Infelizmente, como se sabe,
as fáceis leituras vulgares de Marx tiveram preponderância sobre a leitura dialética,
apesar das inúmeras advertências do próprio autor. Remetemos o leitor ao texto de Ruy
Fausto, que desenvolve uma compreensão dialética da relação entre a “superestrutura” e
a “base econômica”.

163
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

Arcaísmo como Projeto – obra que discutiremos adiante neste trabalho –,


colocarem Furtado ao lado de Caio Prado Júnior e Fernando Novais como
fazendo parte de um mesmo modelo interpretativo, tendo em comum o
fato de destacarem a ausência de dinâmica própria da economia colonial.
O segundo é o próprio Fernando Novais (1979), de orientação marxista
e buscando desenvolver explicitamente o modelo pradiano por meio da
ideia do “sentido profundo da colonização”, dando particular atenção ao
papel do regime colonial na acumulação primitiva de capital na Europa.
Veremos esses dois autores na próxima seção.

3. O desenvolvimento do modelo pradiano:


Celso Furtado e Fernando Novais

Em sua obra Formação Econômica do Brasil, Celso Furtado, ainda


que partindo de referencial teórico bastante distinto do de Caio Prado
Júnior, chega a uma visão do Brasil colônia e, mais ainda, do Brasil das
primeiras décadas do século XX, bastante parecida com a visão deste autor.
Inspirado pelas ideias keynesianas, particularmente na sua versão
latino-americana desenvolvida no interior da Comissão Econômica para
a América Latina (Cepal), Celso Furtado concentra-se no estudo da
economia agrário-exportadora para mostrar como essa orientação para o
mercado externo baseada no trabalho escravo foi prejudicial e atrasou o
desenvolvimento econômico brasileiro, porque: 1) a produção extensiva de
gêneros agrícolas, possibilitada pela abundância de terras e pelo forneci-
mento de mão de obra escrava, limitou muito o progresso técnico; 2) o
direcionamento para o mercado externo, associado à escassa renda mone-
tária, que só seria ampliada no século XIX com o surgimento do trabalho
assalariado, limitavam o desenvolvimento de um mercado interno que
traria uma dinâmica própria à economia colonial por meio dos meca-
nismos multiplicadores da renda presentes nas economias de mercado.
Além disso, essa estrutura econômica precária e instável no tempo e no
espaço, baseada na monocultura para exportação, na grande propriedade

164
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

rural e no trabalho escravo, promoveu grande concentração da renda entre


as classes sociais e também do ponto de vista regional, ficando a renda
concentrada no litoral e, principalmente, nos estados do Sudeste e Sul, que
se desenvolveram muito à frente dos estados do Norte, Nordeste e Centro-
Oeste, trazendo assim fortes desigualdades sociais e regionais.
Assim como Caio Prado Júnior, Furtado vê a Colônia como um
sistema econômico dependente, sem autonomia:

[...] sendo uma plantação de produtos tropicais, a Colônia estava integrada


nas economias europeias, das quais dependia. Não constituía, portanto,
um sistema autônomo, sendo simples prolongamento de outros maiores.
(Furtado, 1980, p. 95)

Sua principal contribuição para o desenvolvimento da tese da


subordinação da colônia ao mercado externo está no estudo das flutuações
da economia colonial. Como esta não tinha funcionamento autônomo,
seu ritmo seria determinado pelas flutuações do mercado internacional.
Para Furtado, os períodos de alta do preço internacional dos gêneros agrí-
colas de exportação representam períodos de expansão econômica nas
atividades da colônia voltadas ao mercado interno, como a pecuária e a
produção agrícola para consumo interno. Isto porque a grande lavoura
tinha alto coeficiente de exportação, e o seu crescimento implicava o
aumento da demanda por produtos internos para abastecimento. Nos
períodos de baixa do preço internacional, ocorreria o inverso: parte da
mão de obra escrava da grande lavoura seria deslocada para a produção de
subsistência. Dessa forma, a produção interna poderia até aumentar, mas
não o faria de forma mercantilizada: ficaria concentrada na produção de
subsistência. Assim, o aumento da produção interna não era acompanhado
por um crescimento da renda monetária e, portanto, não haveria uma
mudança estrutural na dinâmica econômica da colônia – o que só passaria
a ocorrer, para Furtado, com o surgimento do trabalho assalariado trazido

165
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

pela imigração europeia e se consolidaria na década de 1930, com o centro


dinâmico da economia se deslocando da agricultura para exportação para
a indústria voltada ao mercado interno.
Fernando Novais, com sua obra Portugal e Brasil na Crise do Antigo
Sistema Colonial, busca explicitamente, dentro do quadro teórico do
marxismo, aprofundar a tese do “sentido da colonização” de Caio Prado
Júnior. A partir do conceito de “Antigo Sistema Colonial”, ligado ao Antigo
Regime, que se caracterizava no campo político pelo absolutismo e no
econômico pelas doutrinas mercantilistas, o autor insere o sistema colonial
no quadro maior da acumulação primitiva de capital na Europa, que teve
como um de seus pilares a extração do excedente colonial por meio do
monopólio exercido pela metrópole no comércio com as colônias.

O regime do comércio colonial – isto é, o exclusivo metropolitano no


comércio colonial – constituiu-se ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII,
no mecanismo através do qual se processava a apropriação por parte dos
mercadores das metrópoles, dos lucros excedentes gerados nas economias
coloniais: assim, pois, o sistema colonial em funcionamento, configurava
uma peça da acumulação primitiva de capitais nos quadros do desenvolvi-
mento do capitalismo mercantil europeu. (Novais, 1979, p. 92)

Assim, Novais vai além de Caio Prado Júnior quando chama de


“sentido profundo da colonização” o fato de a transferência do excedente
da colônia para a metrópole por meio do monopólio do comércio de
gêneros tropicais ter servido à acumulação primitiva de capital que impul-
sionaria a Revolução Industrial no século XVIII. Isso ocorreu particular-
mente pela transferência desse excedente que era apropriado por Portugal,
subordinado que era no cenário europeu, para a Inglaterra.
Tudo na colônia seria explicado, então, por esse “sentido profundo”,
sendo, assim como em Caio Prado Júnior, o capital comercial a chave para
a compreensão do sistema colonial: tudo o mais que existe na colônia será
subsidiário e seu mercado interno, segundo Novais, será necessariamente
reduzidíssimo (ibid., p. 109).

166
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

Até mesmo a escravidão terá sua explicação pelo capital comercial e


pela acumulação primitiva: para Novais, não é a instituição escravidão que
explica o surgimento do tráfico negreiro, ao contrário, é o fato de o tráfico
negreiro também contribuir para a acumulação primitiva de capital que
explica o fato de se ter optado pela mão de obra escrava africana.
A respeito dessa tese sobre a escravidão, cabe uma qualificação:
aqui de fato soa teleológica a ideia de que é o tráfico negreiro que explica
a escravidão devido à existência de um “sentido profundo da colonização”,
que seria a acumulação primitiva. Assim, Novais parece ir além de Caio
Prado no uso que dá à palavra “sentido”, de forma que às vezes se tem a
impressão de que a acumulação primitiva de capital constituía um telos
metafísico. Se não for isso, haveria então outra possibilidade: a de que
haveria, senão uma razão histórica metafísica (que está mais para Hegel
que para Marx), um Sujeito, à frente do processo de acumulação primi-
tiva. Consideremos duas possibilidades: esse Sujeito poderia ser o próprio
homem, ou seja, um sujeito dotado de intencionalidade, ou ainda o capital
(ou uma de suas formas), ou seja, um sujeito automático.
No primeiro caso, poder-se-ia considerar que a acumulação primi-
tiva de capital era um objetivo deliberado dos comerciantes ou das elites
europeias, que por isso teriam escolhido o escravo africano como mão de
obra para a lavoura. Entretanto, essa possibilidade soa absurda, afinal, as
elites teriam que conhecer previamente o resultado da história.
Caberia considerar, ainda, a possibilidade, mais plausível, de haver
como sujeito do processo o próprio capital, e então os homens surgiriam
apenas como personificações de categorias econômicas, como suportes
do capital. Entretanto, o capital, dentro do esquema teórico de Marx, só
passa a existir efetivamente quando a sua forma capital industrial, com o
trabalho assalariado, passa a ser dominante, o que só pode ocorrer logi-
camente depois da acumulação primitiva do capital. Dessa forma, uma
vez considerado o capital – enquanto forma apenas (D – M – D’), embora
sem conteúdo, isto é, sem o trabalho assalariado e a grande indústria que
constituem em Marx seu fundamento social – como sujeito já antes do

167
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

advento do capitalismo industrial, o argumento de Novais ganharia mais


força contra as acusações de ser teleológico. Ou seja, parece-nos que falta a
Novais, para fugir das acusações de ser teleológico, apontar qual o sujeito
desse processo que gera a acumulação primitiva de capital.
Entretanto, há que se ressalvar o uso impróprio que Fernando
Novais faz do termo capitalismo quando lhe confere a adjetivação “capita-
lismo comercial”.6 Marx fala, sem dúvida, de “capital comercial” como uma
das formas históricas do capital, assim como o capital usurário e o capital
industrial. Entretanto, ele jamais se referiu a um “capitalismo comercial”.
Ao contrário, Marx ressalta que apenas o capital industrial é uma forma
autônoma, vale dizer, apenas ele pode constituir-se como Sujeito – ou seja,
repor as condições de sua própria reprodução – e assim dar base a um
modo de produção próprio (o capitalismo) – enquanto o capital comer-
cial e o usurário sempre existiram em outras formas de organização social,
exatamente porque não são formas autônomas e, portanto, não podem
constituir um modo de produção específico. Dessa forma, coloca-se a
questão lógico-teórica de se o capital comercial pode ser considerado o
sujeito desse processo de acumulação primitiva de capital, questão que não
é abordada por Novais, que como vimos trabalha com a categoria, a nosso
ver problemática na perspectiva marxista, de capitalismo comercial.7
Poder-se-ia ainda tentar utilizar o mesmo argumento metodoló-
gico do “sentido”, discutido na seção I, para defender Novais. Assim, ele
estaria vendo não um sentido teleológico, mas apenas vendo a posteriori
um sentido que era contingente, mas se realizou efetivamente na história.

6 É importante ressaltar que Caio Prado Júnior foi mais cuidadoso que Fernando Novais,
pois fala em capital comercial, mas não em “capitalismo comercial”, evitando, caute-
losamente, usar a categoria modo de produção ao tratar do período colonial. Para
uma discussão mais detalhada sobre a categoria “capitalismo comercial”, ver o texto de
Horacio Ciafardini (1988).
7 Como veremos na seção 3, um dos modelos interpretativos mais recentes consegue
resolver essa questão com a criação de uma nova forma do capital, o capital
escravista-mercantil.

168
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

Entretanto, aqui se coloca outra questão: em que medida a colonização e


a extração do excedente colonial foram de fato condições necessárias para
a acumulação primitiva de capital? Essa questão também suscitou várias
discussões na historiografia, ao que nos parece inconclusivas.
E ainda que essa relação entre extração do excedente colonial e
acumulação primitiva de capital pudesse ser bem estabelecida, há um outro
problema, de ordem lógica, para usar esse argumento quando se trata de
Fernando Novais. Ele próprio acaba impossibilitando essa interpretação
com a tese sobre a adoção da mão de obra escrava negra, visto que coloca
essa opção como tendo se dado em função da acumulação primitiva, ou
seja, uma escolha feita em função de um resultado histórico, mas antes que
ele fosse conhecido, antes que a contingência se efetivasse historicamente.
Na sua tese sobre os motivos da adoção do escravo negro é onde ele mais
abre flancos para as acusações de teleologia.
Assim, um aspecto interessante do ponto de vista metodológico é
que, ao procurar aprofundar o modelo de Caio Prado Júnior, Novais o faz
ao custo de tornar o modelo mais falseável – para usar a terminologia de
Karl Popper (1972) – e, portanto, mais frágil às críticas. Isso talvez explique
por que muitos críticos do modelo pradiano muitas vezes discutam em
bloco os dois autores e, sem muito cuidado, transpõem críticas a Novais
como se pudessem ser imputadas a Caio Prado Júnior.
Dessa forma, a ideia de “sentido da colonização”, de Caio Prado,
como defendemos anteriormente, não nos parece ser teleológica, embora
as ideias de Novais a partir da noção de “sentido profundo da colonização”
sejam menos facilmente defensáveis sob esse aspecto. De qualquer forma,
a relação entre a colonização e o desenvolvimento do capitalismo, que
entendemos ser o grande avanço de Fernando Novais, deve ser desenvol-
vida. Voltaremos a essa questão adiante.

169
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

4. As críticas ao modelo pradiano

Apesar das diferenças entre os três autores tratados anteriormente,


os críticos como Fragoso e Florentino (2001) os tratam como constituindo
um mesmo modelo interpretativo. Assim, o modelo interpretativo de Caio
Prado Júnior e os desenvolvimentos feitos por Celso Furtado e Fernando
Novais são tratados como o que se pode chamar de desenvolvimentos de
um mesmo paradigma, dentro da chamada ciência normal, de Thomas
Kuhn (1995).
Esse modelo teria então as seguintes características:
1) Há dois tipos de produção: a principal, voltada para a exportação
e realizada em grandes propriedades e com mão de obra escrava; a
subsidiária, voltada para o abastecimento interno e que era feita ou
em propriedades menores com predominância de trabalhadores livres
ou dentro da grande lavoura de exportação, que buscava a autossufi-
ciência, como produção para subsistência;
2) Baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas em virtude do
uso extensivo dos recursos naturais e da mão de obra escrava;
3) Como decorrência dos pontos anteriores, uma grande concentração da
renda monetária na elite agrário-exportadora e um mercado interno
reduzido, cuja dinâmica era dependente da dinâmica do comércio
externo;
4) O capital comercial é a categoria-chave para se compreender a estru-
tura e o funcionamento da sociedade colonial, caracterizada pela
falta de autonomia e pela dependência desta com relação ao mercado
europeu.

Adiantamos, na introdução a este trabalho, os tipos de críticas


“teóricas”8 a esse modelo. A primeira, que já discutimos nas duas seções

8 Utilizo aqui uma separação, para fins didáticos, entre o que seriam as “críticas teóricas”
e as “críticas empíricas”. Entendo por críticas teóricas aquelas que foram motivadas
por ou partiram de discussões no plano lógico e metodológico, ou seja, de discussões

170
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

anteriores, é a acusação de que a ideia de “sentido da colonização” seria


teleológica. Embora Fernando Novais pareça às vezes incorrer em afirma-
ções que soam teleológicas, não cremos ser justa a extensão de tais críticas
a Caio Prado Júnior.
As duas outras críticas teóricas – a relacionada à defesa da impor-
tância central do escravismo e a referente ao uso da categoria modo de
produção – apontaram para a tentativa de superação do modelo, ou seja,
para a construção de novos modelos interpretativos, e serão o objeto
desta seção.
Já quanto às críticas empíricas, elaboradas a partir de pesquisas
empíricas baseadas em fontes documentais, particularmente com o desen-
volvimento da demografia histórica, que indicaram um mercado interno
amplo e alto grau de complexidade da economia colonial (não prevista
pelo modelo pradiano e seus desenvolvimentos), são mais esparsas e
monográficas.9 Elas funcionaram mais, dentro da perspectiva de Karl

sobre a maneira como os autores incorporaram a leitura de Marx. E, por críticas empí-
ricas, estamos entendendo principalmente os desenvolvimentos da pesquisa com fontes
primárias que evidenciam os limites do modelo pradiano no que diz respeito à apre-
ensão da complexidade da economia colonial e que partem dos estudos das fontes
documentais. Claro que tanto as críticas empíricas não deixam de ser teóricas como
tampouco as críticas teóricas deixaram de se fundamentar em evidências empíricas.
Mas há distinções claras entre os dois tipos de crítica, de forma que achamos justifi-
cável a distinção que, ainda que imperfeita, será útil para nossos propósitos neste artigo.
Agradeço a um parecerista anônimo da revista por ter apontado para a necessidade de
desenvolver melhor essa distinção, que não estava clara no texto original, e assumo a
responsabilidade pela opção de mantê-la no texto.
9 Remetemos aqui à noção abrangente de demografia histórica tal como apresentada por
Motta e Costa (1997). Segundo os autores: “As centenas de trabalhos produzidos na
área tiveram, ademais, regra geral, um caráter nitidamente monográfico. Amiúde deti-
veram sua atenção em uma ou poucas localidades, variando amplamente em termos do
intervalo temporal contemplado. (...) O valor inestimável desses ‘transbordamentos’ de
natureza monográfica está na própria demanda que ora se coloca no sentido da síntese
dos achados neles presentes. De fato, os estudos monográficos apontaram claramente
muitas das insuficiências, quer da aproximação, ainda paradigmática, de Caio Prado
Júnior, quer de autores que o sucederam, perfilhando com maior ou menor intensidade
ou criticando com maior ou menor contundência o modelo pradiano, tais como Celso
Furtado, Fernando Novais, Ciro Flamarion Cardoso e Jacob Gorender, dentre outros”
(p. 156). Assim, há atualmente uma forte concentração dos esforços dos historiadores

171
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

Popper, como testes empíricos para falsear o modelo pradiano, ou então,


na perspectiva de Thomas Kuhn, explicitando anomalias dentro do para-
digma. Não resultaram, assim, em um novo modelo interpretativo (novo
paradigma teórico) – até pelos próprios limites de uma lógica indutiva, o
caráter desses trabalhos não tem poder de ir muito além da dimensão dos
estudos de caso, como de resto ocorreu com a Escola Histórica Alemã de
economia10 –, mas incentivaram a busca de novas teorias e foram incorpo-
radas pelos dois modelos que surgirão na década de 90 buscando superar
os limites do modelo pradiano. Por isso, não dedicaremos a elas um trata-

nos estudos monográficos baseados em fontes documentais, o que tem gerado uma
enorme riqueza nos estudos empíricos a respeito da sociedade colonial, mas, por outro
lado, há uma escassez de trabalhos visando dar interpretações mais gerais, em modelos
interpretativos da nossa história, agora enriquecidos pelas novas descobertas empíricas.
Esse passo é sem dúvida o mais importante, como reconhecem Motta e Costa, os quais
escrevem que se torna necessário agora “preocupar-se com a integração dos resultados
alcançados no decurso dos últimos lustros em modelos mais gerais, interpretativos de
nosso evolver histórico. Aí está, assim entendemos, o mais rico filão que se abre ao
futuro da demografia histórica brasileira” (p. 156).
10 É interessante notar que, entre os historiadores (como entre outros cientistas sociais),
há os dois extremos, aqueles mais voltados à teoria e que constroem estruturas teóricas
que buscam dar conta de largos períodos históricos em interpretações mais gerais no
espaço e no tempo, e aqueles mais voltados à pesquisa empírica, segundo os quais
os dados refutam qualquer teoria que pretenda ter caráter geral. Isso nos parece ser
parte da eterna discussão iniciada entre o positivismo e o historicismo na teoria do
conhecimento: o positivismo (em sua versão do Círculo de Viena) recorrendo à
lógica dedutiva, otimista com relação ao poder de explicação das teorias, na busca de
“leis gerais”, e o historicismo recorrendo ao empírico (e às vezes cedendo à tentação
de uma “lógica” indutiva) e com seu ceticismo quanto às abstrações e generalizações
das teorias, com sua tendência a produzir estudos de casos e trabalhos monográficos
(como ocorreu com a Escola Histórica Alemã de Economia, no século XIX). Nessa
tensão, não podemos nos esquecer que há tentativas de superação, das quais as mais
influentes são as de Max Weber (herdeiro da Escola Histórica Alemã que buscou conci-
liar as duas noções adotando uma postura neokantiana com a noção de tipos ideais) e
a de Karl Marx (com a dialética materialista). Neste trabalho, discutiremos apenas a
linhagem marxista, embora reconhecendo a importância de uma tradição weberiana
de interpretação, inaugurada no estudo da sociedade brasileira com Raízes do Brasil, de
Sérgio Buarque de Hollanda. Como veremos, na historiografia brasileira, essa tensão
também aparece, e as diferenças entre os autores muitas vezes está na solução (ou falta
de solução) metodológica para essa questão, que é central neste trabalho.

172
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

mento sistemático, bastando-nos aqui lembrar suas conclusões e traços


gerais, bem como sua utilização pelos autores dos novos modelos.
Passemos a analisar então as duas principais críticas teóricas que
surgiram entre as décadas de 70 e 80. Gorender (1985), em sua obra O escra-
vismo colonial, propõe, seguindo uma ideia proposta por Ciro Flamarion
Cardoso (1975), aplicar a categoria Modo de Produção para interpretar o
período colonial no Brasil e nas colônias americanas em geral. Com isso,
pretende o autor ser mais rigoroso que Caio Prado Júnior quanto à apli-
cação do materialismo histórico ao estudo do Brasil Colônia, propondo
uma inversão metodológica no enfoque que ele chama de circulacionismo,
ou seja, do centro no capital comercial e no comércio externo, para dar
ênfase às relações de produção que configuram um modo de produção.
Assim, Gorender destacará a dinâmica e a lógica internas à colônia,
sua autonomia como um modo de produção distinto de todos os que já
haviam surgido. A relação de produção nas colônias era o escravismo,
sendo essa categoria, portanto, a chave para o estudo da colônia, e não
mais o capital comercial.
Assim, seus esforços na referida obra se concentram em mostrar que
houve, nas Américas, um novo modo de produção, que ele, assim como
Ciro Cardoso, chama de Modo de Produção Escravista Colonial. Sua argu-
mentação é feita então para, no bojo das categorias da Economia Política,
descobrir as “leis” que regulam esse novo modo de produção. Não entra-
remos nos detalhes de sua extensa obra, apenas nos centraremos em alguns
pontos que julgamos centrais e nas suas proposições metodológicas.
Ainda que existissem de fato certas determinações autônomas na
economia colonial (o que levou alguns autores a questionar a ênfase que
foi dada no modelo pradiano à extração do excedente colonial e à visão
da colônia como mero apêndice de um sistema mais amplo com centro na
Europa), o próprio Ciro Cardoso ressalta que o modo de produção colo-
nial é dependente.

173
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

Os aspectos principais e imediatos dessa dependência são:


1) a reprodução da força de trabalho – a mão de obra escrava africana – se
dava fora do modo de produção e era-lhe, portanto, exterior; e 2) apesar
de a produção da mais-valia se dar na colônia, a realização dessa mais-
valia ou, como chamou Marx, o “salto mortal da mercadoria” (a passagem
M – D’) dava-se no mercado europeu, dependia deste e, portanto, também
era dada fora do modo de produção.
Entretanto, e esta é uma das críticas feitas a Gorender, para Marx,
o conceito de modo de produção implica uma totalidade orgânica, autô-
noma e que se reproduz a si própria. Dessa forma, torna-se frágil a ideia
da existência de um modo de produção “dependente”, como sugere Ciro
Cardoso, visto que o capital comercial parece ter grande influência nesse
modo de produção que não se reproduz sem ele, seja na reprodução da
força de trabalho, seja na realização da mais-valia, etapas fundamentais da
lógica de funcionamento do referido modo de produção.
Gorender tentou, em outro texto, responder a essa objeção
(Gorender, 1980).11 De início, ele reconhece a necessidade do mercado
externo para o Modo de Produção Escravista Colonial, quando escreve,
à página 56, que enquanto para o capitalismo “a teoria marxista da repro-
dução ampliada do capital dispensa a vinculação necessária entre capita-
lismo e modos de produção não capitalistas”, para o modo de produção
colonial, ao contrário, “tanto a reprodução ampliada como a reprodução
simples não dispensam a realização da massa da produção mercantil
no mercado externo, que deve ser um mercado não escravista”. Assim,
continua o autor, se para o capitalismo “o mercado externo não constitui
senão um prolongamento do mercado interno”, e, por isso, “do ponto de

11 Esse texto de Gorender é muito rico, e de grande importância para nossa discussão pelo
seu caráter metodológico, inclusive porque o autor também discute o estruturalismo
de Althusser (identificando sua noção kantiana de criação de conceitos como univer-
sais abstratos) e o historicismo, bem como se defronta com a teoria da dependência de
Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (Cardoso e Faletto, 1975) e com um texto
do filósofo José Arthur Gianotti (1976).

174
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

vista teórico, o mercado externo não precisa ser conceituado”, quanto ao


escravismo colonial, entretanto, “o mercado externo não escravista cons-
titui um pressuposto necessário do processo de produção”.
Apesar desse reconhecimento, Gorender insiste na ideia de que o
modo de produção escravista colonial não deixa de ser uma totalidade
orgânica. Escreve ele:

Enquanto o modo de produção capitalista cria seu próprio tipo de circula-


ção, que o integra internamente, o escravismo colonial se vincula a um tipo
de circulação externa, que ele próprio não cria, mas se limita a adequar
ao seu processo de produção. Com isto, o modo de produção escravista
colonial não deixa de ser uma totalidade orgânica, conceitualmente defi-
nida como tal, sobretudo pela vigência de leis rigorosamente específicas.
(1980, p. 57)

Assim, Gorender continua afirmando, apesar da ressalva, que “o


modo de produção escravista colonial não deixa de ser uma totalidade
orgânica”, mas de forma alguma consegue arrolar argumentos suficientes
para demonstrar essa afirmação ao longo do texto. Ainda que em sua obra
sobre o escravismo colonial ele tenha buscado mostrar essas leis especí-
ficas do modo de produção escravista colonial, não nos parece de forma
alguma suficiente dizer que pela existência de leis específicas ele pode ser
considerado uma totalidade orgânica, ainda mais depois do próprio reco-
nhecimento que o autor fez de que essa “totalidade orgânica” depende do
mercado externo.
Na seção seguinte do referido texto, após expor sua posição sobre
a “totalidade dependente” sem, no entanto, defendê-la satisfatoriamente,
Gorender parte para a crítica às interpretações alternativas, que consti-
tuem aquilo que ele chama de “integracionismo”, presente nas teorias da
dependência e também em um texto de Giannotti (1976). Essa postura que
ele chama de integracionista é a alternativa à ideia de se utilizar a cate-
goria modo de produção para se compreender o período colonial. Uma
das maneiras pela qual se apresenta esse integracionismo é na visão que

175
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

subordina a dinâmica do interno à dinâmica do externo, e Gorender situa


aqui as teorias da dependência, e mesmo na sua vertente mais rigorosa,
que segundo o próprio autor seria a de Cardoso e Faleto (1975).
Outra forma sob a qual aparece esse integracionismo (embora não
incompatível com a primeira, senão mesmo complementar) é a visão
que “acomoda sob a categoria de capitalismo as mais diversas realidades
sócio-históricas” (Gorender, 1980, p. 59), eliminando assim uma diferença
essencial entre capitalismo e não capitalismo, que estaria presente em Rosa
Luxemburgo.12 A respeito desse segundo tipo de integracionismo, repre-
sentado por Giannotti (1976), escreve Gorender:

A explicação tem sido a de que, uma vez integrados no circuito da repro-


dução do capital, os modos de produção pré-capitalistas, que o capitalismo
encontra ou mesmo recria, perdem seu caráter específico e passam a fazer
parte do processo capitalista propriamente dito. (Ibid., p. 59)

Segundo Gorender, com esse procedimento “a realidade sócio-


histórica é violentada e aplainada em benefício de um esquema histórico
de fácil manejo, pois se esquiva de enfrentar as diferenciações e especifici-
dades” (ibid., p. 59).
Não acreditamos que as diferenciações e especificidades, enfim,
que as particularidades, só possam ser enfrentadas com o uso da categoria
modo de produção. Na verdade, seguindo rigorosamente o materialismo
dialético, o rigor do discurso é prejudicado se se utilizam conceitos que
não estão postos efetivamente, quando se utilizam os conceitos como puros
universais abstratos, ainda que aplicados a “especificidades” e “diferen-
ciações”, baseadas no “material empírico”, na “documentação factual”, nas
“fontes documentais”, etc. (ibid., p. 54), pois o “material” do materialismo
dialético não se confunde com o empírico: este é apenas o plano fenomê-
nico, a aparência ou a superfície da realidade objetiva.

12 A versão citada por Gorender é a seguinte: Luxemburgo, R. (1978). La Acumulación del


Capital. Barcelona, Grijalbo.

176
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

Gorender, como muitos outros marxistas, compartilha de uma


leitura não dialética do Prefácio de 1859, que o leva a concebê-lo como se
fosse a apresentação de uma teoria geral da história. Como o próprio Marx
afirmou no referido prefácio à sua obra Para a Crítica da Economia Política
(1979), o uso das categorias criadas pela economia política para o estudo
das sociedades passadas deve ser feito cum grano salis.
Como a questão lógica e metodológica da leitura de Marx é funda-
mental para nossa discussão, convém esclarecer a visão do método e a
leitura de Marx que aqui se abraça, que é o resgate da leitura dialética de
Marx realizada por Ruy Fausto. Em seu texto Para uma crítica da apresen-
tação marxista da História: sobre a sucessão dos modos de produção, Fausto
(1988, cap.1), escreve que as categorias criadas por Marx para o capitalismo
devem ser vistas não como categorias de uma teoria geral da História, pois
seu estatuto teórico nas sociedades passadas é o de conceitos pressupostos,
ou seja, como conceitos cujas determinações estão postas, mas aos quais
falta a determinação posição.
Em outro texto, intitulado Pressuposição e Posição: dialética e signi-
ficações “obscuras”, Fausto (1988, cap. 2) mostra que, tanto na dialética
hegeliana como na marxista, a posição do conceito (ou seja, sua existência
efetiva) é também uma determinação do conceito. Isso não existe para a
concepção kantiana, para a qual a posição é um atributo que só cabe ao
objeto (à coisa-em-si), e a pressuposição é um atributo que só cabe ao
sujeito. Para as dialéticas de Hegel e Marx, entretanto, é possível tanto a
existência de pressuposições objetivas, ou seja, de objetos pressupostos,
quanto da posição pensada, ou seja, que os conceitos não são meras repre-
sentações subjetivas, mas dizem respeito a objetos efetivamente existentes.
Quanto aos objetos pressupostos, escreve Fausto que eles são contra-
ditórios, pois pertencem ao mesmo tempo ao campo do ser e do não ser. A
pressuposição objetiva pode ser pensada na dialética, segundo Fausto, de
duas maneiras:
1) o pressuposto como o possível – objetos plenamente determinados,
mas aos quais falta a determinação posição (que é a posição efetiva

177
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

do conceito). Nesse caso, a contradição vem do fato de que o objeto,


apesar de já ter todas as suas determinações (e, portanto, pertence ao
campo do ser), não tem a determinação posição, sendo portanto mera
possibilidade ou contingência (pertencendo pois ao campo do não ser);
2) o pressuposto como posição negada – objetos cuja própria posição é
uma negação, ou seja, o objeto ao se pôr nega a si mesmo. A contra-
dição aqui vem não de um objeto pressuposto ao qual falta a posição,
mas do fato de que a própria posição do objeto leva à sua negação.

Para o primeiro caso, que é o que está em questão aqui, sem a deter-
minação posição, o conceito permanece como pressuposição, portanto
como conceito negado, generalidade negada, e, por isso mesmo, apenas
um universal abstrato.13 A passagem da pressuposição à posição, que nesse
caso é uma passagem da possibilidade ou contingência à efetividade, exige
a negação do não ser (a negação da negação), ou seja, exige a posição
efetiva da generalidade que permite a confecção do conceito. E quando a
generalidade é posta, ela se nega em particularidade, pois é histórica, ou
seja, é uma abstração real (abstração que se opera no próprio objeto, não
como categoria puramente subjetiva). Sobre a categoria trabalho, para ficar
num exemplo famoso, escreve Marx, no Prefácio:

O trabalho parece ser uma categoria muito simples. E também a represen-


tação do trabalho, neste sentido geral – como trabalho em geral. Entre-
tanto, concebido economicamente nesta simplicidade o “trabalho” é uma
categoria tão moderna como são as relações que engendram esta abstração
(...) esta abstração do trabalho em geral não é apenas o resultado intelec-
tual de uma totalidade concreta de trabalhos. A indiferença em relação ao
trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade na qual os
indivíduos podem passar com facilidade de um trabalho a outro e na qual
o gênero determinado de trabalho é fortuito e, portanto, é-lhes indiferente.

13 Como mostra Fausto, nesse caso do pressuposto como o possível ou o ainda não
posto, a distinção pressuposição/posição é próxima da distinção aristotélica entre
potência e ato.

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CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

Neste caso, o trabalho converteu-se não apenas como categoria, mas na


efetividade, em um meio de produzir riqueza em geral (...) Assim, a abstra-
ção mais simples que a Economia moderna situa em primeiro lugar só apa-
rece no entanto nesta abstração praticamente verdadeira como categoria da
sociedade mais moderna. (1979, pp. 125-126)

Aqui fica claro que, para Marx, a abstração presente na categoria


trabalho, como trabalho em geral, é uma abstração real, operada pela
própria materialidade da vida social na sociedade moderna, e “não apenas
o resultado intelectual de uma totalidade concreta de trabalhos”. É uma
abstração “praticamente verdadeira” (apesar da confusão a que pode levar
a tradução, o “praticamente verdadeira” aqui deve ser lido como “verda-
deira na prática” e não como “quase verdadeira”).
Assim, para a dialética marxiana, que é materialista, o que confere
legitimidade ao conceito, ou seja, o que regula sua adequação ao objeto é o
fato de que o surgimento dele está intimamente ligado à existência efetiva
do objeto. Enquanto para a dialética hegeliana a passagem da posição
pensada à posição objetiva (que é a chamada prova ontológica) é feita
sem rigor, pois pensada como um movimento da própria ideia, em Marx
adquire rigor pois é operada a partir de um argumento ontológico objetivo:
a posição pensada só pode existir num meio social no qual o conceito tem
existência efetiva, ou seja, num meio social no qual antes já se efetuou a
posição objetiva do conceito, a posição efetiva da generalidade, o universal
concreto. Escreve Marx a respeito de Hegel:

Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que


se sintetiza em si, se aprofunda em si e se move por si mesmo; enquanto que
o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a
maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para
reproduzi-lo como concreto pensado. Mas este não é de modo nenhum o
processo da gênese do próprio concreto.

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

E mais a diante:

[a totalidade concreta] não é de modo nenhum o produto do conceito que


pensa separado e acima da intuição e da representação, e que se engendra a
si mesmo, mas da elaboração da intuição e da representação em conceitos.
(1979, p. 117)

Assim, em Marx, para que o sujeito opere a posição pensada é neces-


sário que o próprio objeto tenha efetuado a passagem da pressuposição à
posição, ou seja, é necessária a posição objetiva. Mas, como coloca Fausto,
para Marx, ao contrário de Hegel, a posição objetiva não está contida na
determinação posição, ela continua existindo em sua autonomia, externa
ao sujeito do conhecimento:

O todo, tal como aparece no cérebro, como um todo de pensamentos, é um


produto do cérebro pensante que se apropria do mundo do único modo
que lhe é possível, modo que difere do modo artístico, religioso e prático-
mental de se apropriar dele. O sujeito real permanece subsistindo, agora
como antes, em sua autonomia fora do cérebro, isto é, na medida em que
o cérebro não se comporta senão especulativamente, teoricamente. (Marx,
1979, p. 117)

Uma vez que a própria realidade objetiva possibilitou a confecção


do conceito, não se pode, a partir daí, usar os conceitos como se fossem
categorias que surgiram meramente no pensamento, por um processo de
abstração subjetivo, para estudar um passado no qual esses conceitos não
tinham existência efetiva. Esses são os limites do conhecimento, onde o
marxismo se aproxima do historicismo. Dizer claramente esses conceitos –
isto é, dizer que o conceito pertence ao campo do ser – é uma improprie-
dade, pois, como vimos, antes da posição objetiva ele permanece como
pressuposição, pertencendo ao mesmo tempo ao campo do ser e do não
ser. Dessa forma, a adequação da dialética ao objeto vem exatamente pelo
fato de que, para um objeto contraditório, o discurso para dizê-lo deve ser
também um discurso da contradição, para apropriar-se dialeticamente da
contradição. Caso contrário, ao aplicar-se um discurso “claro”, ou seja, o

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CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

discurso do entendimento, centrado na lógica formal, a um objeto que


é “obscuro”, isto é, contraditório, a contradição passa para o discurso e o
rigor científico se perde.
Essa compreensão da relação entre posição e pressuposição apon-
tada por Fausto já é advertência suficiente para que se tenha cuidado com
o uso das categorias criadas por Marx para o capitalismo para estudar
sociedades passadas (particularmente pela busca de “leis” baseadas em
categorias abstratas), visto que os conceitos da economia política em socie-
dades passadas, por serem pressuposições, são afetados de negação.
O problema mais evidente com a concepção metodológica de
Gorender, a nosso ver, está explícito ainda na primeira seção de seu refe-
rido artigo quando, citando Engels, ele separa o “modo histórico” do
“modo lógico” do método dialético. O primeiro seria o que “se aplica aos
níveis do singular e do particular, mas que não ascende ao nível categorial
sistemático de abordagem da matéria histórica” (1980, p. 44). O segundo
seria o “estudo categorial-sistemático ou, se quiserem, estrutural, no
sentido de que deve atravessar as aparências fenomenais e revelar a estru-
tura essencial” (ibid., pp. 44-45). Gorender diz então que enfatiza o modo
lógico do método dialético, com a ressalva de fazê-lo sem suprimir o histó-
rico. Entretanto, e isso se pressente quando ele usa o termo “estrutural”
(e ressaltaremos aqui suas semelhanças com o estruturalismo), sua conci-
liação entre os dois modos se dá de forma frágil, de maneira não dialética.
Isso ocorre porque ele, à maneira dos discursos do entendimento
(pagando tributo à distinção kantiana entre sujeito e objeto, e isso ainda
que se apresente como antikantiano por diversas vezes), concebe o lógico
como sendo apenas o categorial, e concebe o histórico como sendo apenas
o “particular” ou “acontecimental” (ibid., p. 45), à maneira do historicismo,
e não como ontologia, como um devir ou processo de constituição do ser
(passagem da pressuposição à posição ou da possibilidade à efetividade, ou
ainda do não ser ao ser). Dessa forma, ao invés de se apropriar do processo
histórico real (que é lógico-ontológico), há um esforço para encaixar deter-

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

minações históricas acontecimentais numa estrutura teórica previamente


concebida com categorias que, por não terem a determinação posição, são
assim puros universais abstratos.
Ora, para a dialética, especialmente a marxiana, tanto o “lógico”
(o categorial ou geral) é histórico, visto que a abstração é real e, portanto,
particular, como o “histórico” é lógico e geral, visto que é a generalidade
posta, universal concreto. É dessa maneira contraditória que se deve
compreender a concepção das significações de Marx, ou seja, o discurso
deve aceitar a contradição para apreendê-la, reproduzir a contradição real,
caso contrário a contradição, que é objetiva, passa para o discurso, mas
como contradição vulgar. Como escreve Fausto, sofrer a contradição seria
uma “visada clara do objeto obscuro”,14 quando para o objeto obscuro
deve-se ter também uma visada obscura, ou seja, afetada de negação. Daí
a adequação do discurso dialético, como adequação do objeto obscuro
pensado ao objeto obscuro real.
Falta a Gorender, como parece que também faltou ao próprio Engels
(pelo menos na leitura que dele faz Gorender), a percepção de que não
podem ser tratados em separado os modos lógico e histórico do método
dialético, ainda quando se afirma que se irá “juntá-los” depois, pois isso
só pode levar a um ecletismo que de nada resolve o conflito entre o posi-
tivismo e o historicismo.15 Na verdade, quando se separam os dois (ou
quando se os une de maneira não dialética), é exatamente quando surgem
as imprecisões historicistas ou positivistas/estruturalistas, ou ainda as eclé-
ticas. Isso porque a dialética não é a rigor um “método” no sentido que
se atribui a essa palavra dentro do discurso do entendimento. A dialé-
tica é um discurso que é lógico-ontológico, ou seja, método e objeto se

14 Com a ideia de obscuridade, Fausto (1988, cap. 2) refere-se aos objetos contraditórios,
que rompem com os princípios basilares da lógica formal, como o princípio da não
contradição. Assim, enquanto o discurso formal seria aquele que trata apenas de signi-
ficações “claras”, ou seja, apenas a respeito do que se pode dizer que é ou que não é, a
dialética trata das significações obscuras, às quais cabe tanto o ser como o não ser.
15 A esse respeito, ver Teixeira (2003), especialmente capítulos 2 e 3.

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CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

determinam reciprocamente, tendo a primazia este último, ao menos no


caso da dialética marxiana (não se pode dizer o mesmo, sem ressalvas, a
respeito da dialética hegeliana).16
Quando Gorender privilegia o “modo lógico”, faz precisamente o
mesmo que o estruturalismo: tentar encaixar situações factuais em cate-
gorias preestabelecidas, universais abstratos. O “modo histórico”, redu-
zido ao acontecimental e materializado nas fontes documentais, acaba
tendo caráter secundário e quase que apenas confirmatório e ilustrativo do
esquema teórico.
Há ainda outro argumento contra a ideia da existência de modos
de produção coloniais. O conceito de modo de produção surge a partir
do capitalismo, e é inerente à crítica da economia política de Marx, cujos
conceitos só poderiam ter sido formulados nessa sociedade, a partir das
abstrações concretas efetuadas no e pelo capitalismo. Assim, parece-nos
que a colonização, bem como o apresamento e o tráfico negreiro, devem
ser vistos como um processo histórico efetivo, de constituição do capita-
lismo enquanto modo de produção que une todas as partes do mundo inte-
grando-as numa divisão internacional do trabalho e tendo o capital como
sujeito desse processo, que é um processo de constituição de uma história
genuinamente universal. Voltaremos a esse ponto na próxima seção.
Vamos agora para outro importante autor do debate, que é Antonio
Barros de Castro. No seu texto A Economia Política, o Capitalismo e a
Escravidão (Castro, 1980), assim como Gorender, o autor destaca, contra o
modelo pradiano, a escravidão como categoria central para a compreensão
do sistema colonial. Entretanto, ao contrário de Gorender, que busca apre-
ender a categoria escravidão por meio das categorias da economia política,
com o conceito de modo de produção, Castro tem uma leitura diferente
que remete aos limites da economia política.

16 A exposição rigorosa a respeito da concepção dialética das significações, bem como da


diferença entre as dialéticas de Hegel e Marx, está em Fausto (1988), especialmente o
capítulo 2.

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

Numa interessante argumentação, escreve que o procedimento


desenvolvido por Marx em O Capital, buscando as “leis gerais” que regem
a produção capitalista, não pode ser repetido para outras sociedades. Isso
porque é apenas no capitalismo que se tem de fato a autonomia da esfera
“econômica” da vida social ante as demais esferas, é apenas no capitalismo
que as relações sociais entre os homens aparecem como se fossem naturais
e portanto passíveis de serem estudadas por uma ciência que busca leis
gerais e regularidades, e é apenas nessa sociedade, portanto, que o mate-
rialismo histórico, e, portanto, a economia política, poderiam ser rigorosa-
mente aplicados. Por exemplo, a respeito do feudalismo, diz o autor:

O que se pretende frisar é que o feudalismo tem em sua base uma “substân-
cia” histórica – união química entre o econômico e o político – inexistente
no capitalismo. Num tal contexto, não tem, pois, cabimento discutir o peso
relativo do “econômico”, que simplesmente não existe como tal. Tampouco
tem sentido pretender sequer estabelecer a “lei econômica que preside o
movimento desta sociedade”. Em outras palavras, este regime social e sua
evolução são rigorosamente intratáveis pela economia política, e não se
pode fazer com ela o análogo do que Marx fez para o capitalismo. (Castro,
1980, p. 84)

Partindo dessa concepção, Castro vai analisar as características da


economia colonial para mostrar os limites da economia política na sua
apreensão. Assim, pode-se resumir sua argumentação em três partes:
1) A estrutura da economia colonial foi moldada pela produção de
mercadorias, ou seja, produção de valores de troca, e não apenas de
valores de uso, como no escravismo patriarcal da Antiguidade;
2) Embora essa estrutura tenha sido moldada pela produção de merca-
dorias, ela também foi moldada pela escravidão, elemento estranho ao
capitalismo. Nesse aspecto, é que ele se diferencia do modelo pradiano
e se aproxima de Gorender;
3) A economia colonial tem, portanto, essa dupla determinação
(a produção de mercadorias e a escravidão), e sua apreensão teórica
não pode se ater apenas à produção de mercadorias – o “sentido da

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CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

colonização” –, pois a presença do escravismo torna insuficientes as


teorias da economia política cujas categorias foram elaboradas para
a economia capitalista, de produção de mercadorias. Nesse aspecto
ele vai então num caminho oposto ao de Gorender, que tem como
premissa metodológica a possibilidade de aplicação das categorias da
economia política, que constituiriam uma estrutura teórica de análise,
a todos os modos de produção, apesar de se colocar como crítico do
estruturalismo de Althusser.

Para Castro, a economia colonial teria uma parte previsível, ou


seja, passível de ser estudada pelas leis da economia política (já que é uma
sociedade de produção de mercadorias, com as regularidades trazidas
pelas relações mercantis), e outra parte imprevisível, regida pela luta de
classes (escravos e senhores), cuja motivação é primordialmente política e
não econômica. Apenas no capitalismo, em que a extração do excedente da
força de trabalho se dá de forma puramente econômica, dentro das leis do
mercado (já que juridicamente todos são iguais), é que a luta de classes se
torna de certa forma “previsível” pelas leis da economia política. No escra-
vismo (e de resto nas demais sociedades pré-capitalistas), como a coação
ao trabalho e a extração do excedente são extraeconômicas (baseadas em
relações jurídicas de dominação), essa luta de classes não pode ser estu-
dada pelas leis da economia política.
Assim, Castro destaca os limites do materialismo histórico para
compreender a economia colonial:

Estas são razões fundamentais que impossibilitam estudar o regime social


imperante no nosso passado, através das condições e necessidades da pro-
dução de mercadorias. As determinações que daí provêm existem e têm o
seu espaço. Limitar-se a elas – e/ou ao seu “sentido” – no entanto, é tomar
os escravos como se apenas emprestassem um colorido especial à his-
tória, ou pior, talvez, como se as características por eles introduzidas na
economia e na sociedade fossem apenas outras tantas “irracionalidades”.
(1980, p. 106)

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

Ele permanece próximo de Gorender e Ciro Cardoso, entretanto,


por destacar a reprodução interna à colônia. Assim, para ele, o “sentido”
poderia explicar apenas a implantação do sistema colonial, mas o desen-
volvimento posterior desse sistema traria uma dinâmica interna que a
ideia de “sentido” era insuficiente para explicar, pois a partir de agora a
sociedade colonial deveria reproduzir a si própria:

A produção em massa de mercadorias cria raízes no Novo Mundo, obje-


tivando-se sob a forma de um complexo aparato produtivo. O “objetivo”
maior desta realidade – o seu “sentido” se se quiser – lhe é agora inerente:
atender as suas múltiplas necessidades, garantir a sua reprodução. Em tais
condições o comércio é estruturalmente recolocado e os interesses mercan-
tis – bem como os da Coroa – terão necessariamente que ter em conta as
determinações que se estabelecem no nível da produção. Em outras pala-
vras, a forma pela qual os interesses externos atuam sobre a colônia passa
a depender “primeiramente da sua solidez e da sua estrutura interna”. O
“projeto” colonial e/ou mercantilista subsiste, sem dúvida: o seu raio de
incidência – especialmente em conjunturas adversas – fica no entanto seve-
ramente limitado pelo surgimento na colônia de uma estrutura socioeco-
nômica, com seus elementos de rigidez, suas regularidades, seus interesses
e, por último, mas também importante, pelos conflitos que lhe são pró-
prios. (Ibid., pp. 88-89)

A crítica de Castro ao uso das categorias da economia política para


estudar as sociedades passadas está, a nosso ver, correta. Concordamos
no que diz respeito aos modos de produção não serem homólogos, para
o que Marx alertou que se deveria ter cuidado ao aplicar as categorias da
economia política, construídas a partir da sociedade burguesa (capitalista)
para estudar o passado. Assim, a nosso ver, Marx não tinha como objetivo
construir uma “teoria geral da história”, como parece entender Gorender,
que, neste ponto, apesar das críticas ao estruturalismo, aproxima-se muito
de Althusser. E isso ocorre porque Gorender, como os estruturalistas,

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CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

exagera ao destacar um pretenso caráter cientificista em Marx,17 o que


torna sua leitura da obra marxiana pouco dialética, particularmente no
que diz respeito à relação dialética entre a particularidade e a generalidade
dos conceitos, que é essencial à compreensão da concepção marxiana da
História.
Entretanto, a limitação da economia política apontada por Castro
para estudar o período colonial parece-nos exagerada. Ele aponta para o
caminho oposto ao do estruturalismo e de Gorender, para negar qualquer
caráter de generalidade aos conceitos da economia política, que não pode-
riam ser aplicados a outras sociedades em que a dominação e a extração do
excedente não fosse de caráter puramente econômico, como ocorre com
o trabalho assalariado no capitalismo, e, portanto, não poderiam ser apli-
cados ao escravismo colonial. Essa questão metodológica da generalidade
dos conceitos é central para a discussão e voltaremos a ela adiante, pois
aqui nos deparamos com a questão da legitimidade dos conceitos criados
para se apreender a realidade social, ou seja, com a questão da adequação
do discurso científico ao objeto.
Por ora, cumpre notar que essa posição de Castro obriga a optar por
uma abordagem próxima às vertentes dualistas da historiografia, como as
de Roger Bastide e Jacques Lambert, que viam no Brasil uma sociedade
dual (um setor moderno, capitalista, e outro arcaico, feudal), e que já
tiveram sua crítica a nosso ver mais consistente na obra de Francisco de
Oliveira,18 Crítica à Razão Dualista (2003). No caso de Castro, haveria dois
elementos de natureza distinta convivendo simultaneamente – a produção

17 Entendemos que a crítica de Gorender seja mais quanto à rigidez do esquema de combi-
nações do estruturalismo, nos quais ele não encontraria espaço para um novo modo de
produção escravista colonial, do que ao esquema abstrato propriamente dito. Ele tem
a mesma concepção de generalidade do uso das categorias da economia política para
se estudar outras sociedades, como se constituíssem uma teoria geral da história (ou
estruturas conceituais gerais), o que, no nosso entender, não era o objetivo de Marx, o
que ele próprio explicitou várias vezes.
18 Apesar de Oliveira (2003) ter feito sua crítica ao esquema interpretativo dualista anali-
sando a sociedade brasileira já depois de 1930, acreditamos haver um importante para-

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

de mercadorias, capitalista, e o escravismo, elemento estranho ao capi-


talismo – e da combinação desses elementos é que emerge a sociedade
brasileira:

No regime social que aqui se instala há dois teclados; os teclados são dois,
mas a música é uma só. Há a produção de mercadorias, com a sua par-
titura composta de determinações econômicas. E há a escravidão, um
velho tema, que permite improvisos de muita força. A teoria desta reali-
dade está por ser produzida. Mas não será negando características funda-
mentais do regime social, aqui surgido, que ela poderá vir a ser construída.
Nesta empresa, como se procurou mostrar neste trabalho, há que resistir
a duas tentações: tomar esta realidade como uma história sem determina-
ções próprias, com o que se resvala, inexoravelmente, para a teleologia; ou
concebê-la como um sistema socioeconômico homólogo ao capitalismo
e, como tal, passível de ser apreendido através de uma Economia Política.
(1980, pp. 106-107)

A primeira tentação, como se percebe, é aquela em que incorreu


Fernando Novais, e a segunda, a que incorreram Gorender e Ciro Cardoso.
Não nos parece, todavia, um procedimento metodológico correto partir
de interpretações dualistas, com a pretensão de se apropriar da totalidade
concreta a partir de combinações ou justaposições de elementos estranhos
entre si. O procedimento correto e o grande desafio teórico, a nosso ver,
seria ver o papel do escravismo dentro da produção de mercadorias, como
elemento dela, não como algo exterior e estranho a ela.
Do exposto até aqui identificamos alguns problemas que uma teoria
com a pretensão de fazer uma superação das questões ainda não respon-
didas pela historiografia deveria conseguir resolver:
1) o fato de que o “sentido da colonização”, como foi apontado pelas
críticas teóricas e também pelos estudos empíricos empreen-
didos nas últimas décadas, não consegue explicar toda a riqueza de

lelo entre sua análise e as discussões presentes nesse trabalho, particularmente com
as ideias de Castro como também com as de Fragoso e Florentino. Voltaremos a essa
questão adiante.

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CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

determinações da sociedade e economia coloniais, que se mostraram


muito mais complexas do que o modelo previa, havendo, pois, de fato,
um grau de autonomia ante o capital comercial;
2) que apesar dessa relativa autonomia, há problemas lógicos quando se
tenta aplicar a categoria modo de produção à economia colonial, dado
o caráter dependente da sua reprodução;
3) além do caráter dependente, o uso da categoria modo de produção
também encontra dificuldades de aplicação em virtude de a economia
colonial ter sido caracterizada, ao mesmo tempo, pela produção de
mercadorias e pela escravidão, que em princípio seria incompatível
com o capitalismo. Surge então a necessidade de conciliar, teorica-
mente, a produção de mercadorias com o escravismo, evitando as
fáceis soluções de mera justaposição ou combinação de elementos.

Na próxima seção, veremos como os novos modelos teóricos


propostos na década de 90 buscaram lidar com esses problemas.

5. Os modelos interpretativos da década de 90

Buscando uma nova interpretação que levasse em conta a comple-


xidade das atividades da economia colonial, que não se resumiriam à
plantation agrícola nem se subordinavam completamente a ela, dois
autores da que se convencionou chamar “Escola do Rio” desenvolveram
um modelo alternativo cujo foco principal é a crítica aos dois postulados
que derivam dos modelos explicativos anteriores: 1) a reduzida impor-
tância do mercado interno da colônia e 2) a dependência e subordinação
da colônia com relação à metrópole. Segundo os autores, esses postulados
estão presentes não apenas na versão do “sentido da colonização” (na qual
eles incluem Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Fernando Novais e João
Manuel Cardoso de Mello) como também na versão do Modo de Produção
Escravista Colonial (Ciro Cardoso e Jacob Gorender).

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O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

Para desenvolver essa tese, o trabalho de Fragoso (1998) destacou


o conceito de formação social para tentar superar os problemas trazidos
pelo uso da categoria modo de produção. Na tradição marxista, esta
última categoria é vista como uma espécie de tipo ideal ou puro, enquanto
a formação social seria a forma como se manifesta, fenomenicamente, o
modo de produção. Assim, na realidade fenomênica, uma formação social
pode conter elementos de diferentes modos de produção, entre os quais
um é dominante.
Fragoso destaca que as formas não capitalistas de produção,
ligadas ao mercado interno, que era muito expressivo (como evidenciado
pelas pesquisas empíricas), eram essenciais na acumulação da economia
colonial:

A existência de um mercado doméstico e de segmentos produtivos para


ele voltados introduz um novo elemento na lógica de funcionamento da
formação colonial – referimo-nos à possibilidade de reproduções endó-
genas. (...) o processo de reprodução desses segmentos se dá em meio ao
mercado interno, constituindo-se, assim, em movimentos de acumulação
introversas na economia colonial. Disso infere-se uma maior possibilidade
de retenção do sobretrabalho na própria economia colonial e, portanto, de
autonomia dessa última diante de flutuações externas. (...) Em realidade,
a possibilidade de se apreender os movimentos de acumulação endógena
à economia colonial prende-se à compreensão dessa última enquanto for-
mação econômico-social. Desse modo, aquela acumulação resultaria, a
princípio, da interação mercantil dos processos de reprodução do escra-
vismo colonial com os setores produtivos ligados ao mercado doméstico.
(Fragoso, 1998, pp. 131-132)

Em obra mais recente, João Fragoso, juntamente com Manolo


Florentino, desenvolvem as ideias que enfatizam a dinâmica interna da
colônia, contrapondo-se à ideia do “sentido”. Como essa obra conjunta é a
versão mais acabada dessa nova interpretação, nos centraremos nela.
Os autores destacam, em sua obra O Arcaísmo como Projeto (Fragoso
e Florentino, 2001), a ascensão da classe dos comerciantes de grosso trato
do Rio de Janeiro como nova classe hegemônica – tomando o lugar dos

190
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

senhores de terras, a partir do fim do século XVIII. A existência dos comer-


ciantes como classe hegemônica é apresentada pelos autores com respaldo
em dados empíricos que mostram as grandes fortunas que possuíam e as
vultosas transações econômicas e negócios empreendidos por eles, seja
na compra e venda de imóveis, terras e escravos, seja no financiamento
às atividades produtivas, etc. Assim, haveria um predomínio da forma
mercantil de acumulação, assentada no capital mercantil residente.
Além de apontar a ascensão dessa nova classe hegemônica, os
autores buscaram explicar tal preeminência dos grandes mercadores, o
que os levou a buscar compreender a própria lógica de reiteração temporal
da economia colonial. Em sua argumentação, eles vão defender a impor-
tância de processos endógenos (isto é, à margem do comércio atlântico)
de acumulação, assentados em um “mosaico de relações não capita-
listas” (como a produção “camponesa”, o trabalho livre não assalariado,
a produção escravista de alimentos, a estância gaúcha, entre outros), que
conferiam autonomia à economia colonial em face das flutuações do
comércio internacional.
A acumulação interna, comandada pelo capital mercantil carioca,
é evidenciada pela importância que tinha a praça mercantil do Rio de
Janeiro como reexportadora de produtos e escravos e de compradora de
produtos de outras regiões da colônia, configurando uma complexa rede
de transações triangulares internas à colônia:

Embora transações triangulares deste tipo não estejam contempladas pelas


balanças de comércio, o fato é que eram frequentes e altamente lucrativas
para o capital mercantil carioca, com os ganhos se realizando no mercado
interno brasileiro. (Fragoso e Florentino, 2001, p. 115)

Como raízes estruturais para o predomínio da forma mercantil de


acumulação, os autores apontam dois fatores que tornavam o mercado
extremamente restrito: 1) o regime compulsório da produção, assentado
em uma frágil divisão social do trabalho, o que torna a circulação mone-

191
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

tária débil, com poucas opções de investimento; e 2) a monopolização da


riqueza, de forma que poucos homens tinham recursos para pôr o sistema
econômico em funcionamento.
Daí deriva o poder dos comerciantes, que controlavam a liquidez e
demandavam a venda em bloco de grandes lotes de mercadorias, subme-
tendo pequenos comerciantes e varejistas, pois controlavam o crédito. Esse
poder estendia-se, segundo os autores, inclusive para as transações com os
agentes metropolitanos, colocando dúvidas sobre a subordinação das ativi-
dades domésticas ao capital comercial metropolitano.
Em seus estudos, os autores constatam um paradoxo: por que o
setor agrário, produtivo e que gera riqueza, demandava menos inves-
timentos que o mercantil, que apenas esteriliza a riqueza?19 E como essa
economia sobreviveu e, além disso, cresceu ao longo do tempo, mesmo se
concentrando nas atividades mercantis que não criam valor? A resposta
dos autores está na estrutura da oferta de fatores: terra, mão de obra e
alimentos.
Do lado da oferta de terras, a fronteira agrícola aberta e a abun-
dância de terras possibilitavam sua obtenção a baixos custos. Quanto
a esse aspecto, os autores não diferem da linhagem historiográfica que
combatem, pois todos, e em particular Celso Furtado, destacam a abun-
dância de terras como uma das características fundamentais da economia
colonial, que faz com que a exploração econômica mais racional seja a do
crescimento extensivo, sem progresso técnico.
No que diz respeito à mão de obra, composta por escravos negros, a
produção social desta também garantia preços baixos, segundo os autores,
porque os cativos eram vendidos abaixo do seu valor, ou seja, fora das
leis da equivalência da circulação. Na primeira seção de O Capital, Marx
explicita as leis da circulação simples, dentro da qual as mercadorias são

19 Lembremos que os autores buscam se situar dentro da perspectiva marxista, na qual


o processo de valorização, enquanto processo de criação de valor, se dá na produção
e não no comércio ou na esfera financeira, onde apenas se dá a transferência de valor
gerado na produção.

192
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

trocadas por equivalentes, ou seja, por outras mercadorias de igual valor.


E mercadorias de igual valor são aquelas que têm igualdade dos tempos
de trabalho abstrato necessários à sua produção. No caso do escravo, sua
produção é entendida pelos autores como:

[...] a soma dos gastos, em horas-trabalho, necessários à produção e manu-


tenção do homem desde seu nascimento até o instante em que ele se trans-
formava em prisioneiro de guerra. Era o seu grupo familiar – e, em última
instância, sua comunidade – quem efetivamente o produzia. Antes da
mutação em cativo, o indivíduo era, portanto, uma espécie de repositório
de milhares de horas-trabalho despendidas por toda a comunidade. Ora,
como a violência representava o meio fundamental pela qual o homem era
retirado de sua comunidade e escravizado, o custo social de sua produção
não era de maneira alguma reposto. (Ibid., p. 147)

Assim, a captura possibilitaria a venda do escravo abaixo do custo


social de sua produção, e os autores entendem por isso que essa acumu-
lação não seria, portanto, capitalista, mas pré-capitalista, pois se baseia na
troca de não equivalentes.
Esse argumento, que busca mostrar o caráter não capitalista da
acumulação com o comércio de escravos, não procede, a nosso ver. Em
primeiro lugar, porque o valor para Marx só surge (só tem existência
efetiva) quando os produtos do trabalho já são mercadorias, antes mesmo
de irem ao mercado, ou seja, quando a finalidade da produção é o mercado.
Esse caráter social do valor é claramente apresentado por Marx na seção
sobre o fetichismo da mercadoria. Desta forma, não se pode falar em valor
ou em mensuração do valor a partir do “tempo de trabalho” que a família
ou a comunidade levaram para “produzir” o futuro cativo, visto que essa
“produção” não tinha como objetivo o mercado. Em segundo lugar, se se
quer pensar a produção do escravo para o mercado, o que consideramos ser
o procedimento correto – com o que então faz sentido falar em “valor” –
sua “produção” é a própria captura, e então o valor do escravo deve ser
calculado tendo em vista o dispêndio de horas de trabalho necessário à
sua captura. Lembrando o velho Adam Smith: “Por exemplo, se em uma

193
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

nação de caçadores, abater um castor custa duas vezes mais trabalho do


que abater um cervo, um castor deve ser trocado por – ou então vale – dois
cervos” (1984, p. 77).20
Quanto à estrutura da oferta de alimentos, os autores buscam
acabar com a ideia de autarquia da plantation, mostrando a importância
das produções de gêneros alimentícios de consumo doméstico para a
manutenção da agricultura exportadora. Segundo os autores, havia nos
setores voltados ao consumo interno (pecuária e agricultura) uma ampla
variedade de relações de produção que associavam o trabalho escravo, a
peonagem e formas camponesas que se assemelhavam à servidão. Assim,
concluem:

Podemos agora pensar nesse mosaico de formas de produção como uma


verdadeira formação econômica e social. Seu conteúdo – na verdade, o con-
teúdo do próprio mercado colonial – seria constituído pelos processos de
reprodução de diversas estruturas produtivas, os quais teriam por eixo a
reiteração da agroexportação fundada no trabalho escravo. Tal afirmação
deve ser, entretanto, matizada. O mercado interno formado por diferentes
tipos de produção redefiniria o próprio funcionamento da plantation, pois
a recorrência temporal desta última dependeria de recursos endógenos
(acumulações internas) à formação colonial. Em suma, a reprodução da
plantation dar-se-ia, ao menos parcialmente, à margem do mercado inter-
nacional. Isso lhe permitiria reiterar-se no tempo apoiando-se em formas
coloniais não capitalistas – o que, além de reduzir seus custos operacionais,
lhe daria uma ampla margem de autonomia diante das flutuações dos pre-
ços no mercado externo. (Ibid., p. 158, grifos meus)

Destacamos no trecho acima as duas expressões que julgamos


mais importantes para a discussão. Os autores usam explicitamente a
categoria formação social, embora sem explicitar o que entendem pelo

20 Claro que, se a produção de castores em cativeiro for possível e menos custosa que
sua caça, a primeira será preferida e a nação de caçadores se torna uma nação de cria-
dores de castores. No caso do mercado de escravos no Brasil, ao que tudo indica, era
mais atrativo importar o escravo do que a produção local de “gado humano”, conforme
Castro (1977, p. 206).

194
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

termo. Dentro da tradição marxista, a formação social seria a manifes-


tação concreta de um modo de produção dominante, que nunca existe em
estado puro, mas convive com resquícios de modos de produção passados
e também com elementos da forma futura. Tendo em vista essa noção,
surgem dois problemas no uso da expressão que fazem Fragoso e Floren-
tino. Em primeiro lugar, qual é o modo de produção dominante? Assim,
os autores na verdade apenas se esquivaram da discussão a respeito da
adequação do uso da categoria modo de produção na economia colonial,
sem resolver essa questão. Evitam, assim, o uso explícito do conceito de
modo de produção capitalista ao se referirem ao período colonial, embora
usem o conceito de formação social, que pede o primeiro, e que a rigor não
diz nada sem ele.
Em segundo lugar, se o capitalismo é o modo de produção domi-
nante, o papel dos modos de produção não capitalistas na estrutura apre-
sentada, de maneira alguma, é o de meros resquícios que coexistem com
o modo de produção dominante, pois, segundo os autores, as “formas
coloniais não capitalistas” são essenciais para se compreender a reiteração
temporal de toda a economia colonial, bem como sua autonomia ante as
flutuações externas – o que recoloca e torna mais complexa a procura pelo
modo de produção que seria dominante.
É interessante destacar que o papel que têm tais formas não capi-
talistas para esses autores lembra muito o argumento de Francisco de
Oliveira em sua obra Crítica da Razão Dualista (2003 – a primeira edição é
de 1973). Nessa obra, Oliveira busca combater as interpretações dualistas,
muito difundidas à época (e que aparecem nas obras de Roger Bastide e
Jacques Lambert, no modelo de desenvolvimento econômico de oferta
ilimitada de mão de obra de Lewis, e que também teve influência nos
teóricos da Cepal). Segundo essas interpretações, haveria dois mundos
diferentes no Brasil, um moderno (que seria o setor urbano-industrial) e
outro arcaico (o setor rural-agrícola), e a raiz dos nossos problemas estaria

195
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

no fato de que o setor arcaico21 impede ou entrava o progresso que seria


trazido pelo setor moderno. Oliveira mostra, entretanto, que a existência
do setor dito atrasado é fundamental para a dinâmica do setor moderno,
ou seja, na verdade o moderno se alimenta do atraso. O subdesenvolvi-
mento (caracterizado pela permanência das estruturas arcaicas) não é,
portanto, uma anomalia ou estágio, mas um tipo particular de desen-
volvimento capitalista. Esse tipo de abordagem não é novo, portanto, na
historiografia brasileira, ainda que Oliveira esteja tratando da economia
brasileira entre as décadas de 30 e 70.22 Entretanto, Fragoso e Florentino
não fazem referência a esse texto clássico.
Na verdade, o que Fragoso e Florentino perceberam, a nosso ver, é o
poder da forma capital de subordinar a ela todas as demais relações, o que
não enfraquece, mas reforça a ideia do sentido da colonização, ainda que
numa nova ótica, como buscaremos argumentar adiante.
Outro aspecto importante da obra é o papel atribuído às caracte-
rísticas da sociedade portuguesa (a nossa metrópole) na definição dos
contornos da sociedade colonial, particularmente nas dimensões social e
política. A estrutura social portuguesa é caracterizada como parasitária: há
uma reduzida parcela de produtores diretos (camponeses) e uma ampla
parcela da população (cerca de dois terços) composta pelo clero, fidalgos,
mercadores, pescadores, artífices e ociosos, o que tornava extremamente

21 A idéia de “arcaísmo” aqui, embora distinta quanto ao conteúdo e período histórico da


ideia de arcaísmo que dá título à obra de Fragoso e Florentino, tem relação com aquela,
e buscaremos desenvolver tal relação adiante.
22 No que diz respeito ao uso da categoria modo de produção para estudar a sociedade
brasileira, é importante mencionar ainda a chamada “tese feudal”, defendida por inte-
lectuais do Partido Comunista Brasileiro (PCB) como Alberto Passos Guimarães e
Nelson Werneck Sodré. Esses autores viam na predominância do latifúndio e das rela-
ções de trabalho não assalariadas no campo brasileiro (as relações “arcaicas”) uma razão
para defender que o país ainda não havia chegado ao capitalismo (isso já em meados
do século XX), e que a sociedade brasileira era uma sociedade feudal. Os defensores da
tese feudal, tendo em vista uma noção etapista da sucessão dos modos de produção,
defendiam uma aliança entre o PCB e a burguesia industrial para construir primeiro
o capitalismo nacional e só mais tarde buscar o socialismo, com a ideia de “não pular
etapas”. Como se sabe, Caio Prado Júnior sempre apresentou resistência a essa tese.

196
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

frágil o abastecimento pela produção de alimentos. A expansão ultrama-


rina, com a transferência da renda para a metrópole, mostrou-se uma
solução para a perpetuação dessa estrutura parasitária, e não um instru-
mento para o desenvolvimento capitalista, como na versão de Fernando
Novais. A manutenção dessa estrutura arcaica era, na visão dos autores,
um projeto social das elites portuguesas que rumava na contramão do
desenvolvimento do capitalismo.
Essa característica da metrópole tem seus efeitos sobre a colônia,
gerando aqui também um ideal “arcaizante”, que se reflete, por exemplo,
no fato de os grandes mercadores, ao acumularem riquezas, abandonarem
as atividades mercantis para se tornarem rentistas urbanos ou senhores de
terras e homens, ainda que essas atividades apresentassem taxa de lucro
inferior às mercantis. A concentração de poder, advinda da posse de
imóveis, terras e escravos, assume aqui o papel das relações de produção.
Dessa forma, a sociedade colonial não pode ser compreendida sem consi-
derar os aspectos não econômicos, particularmente sem ter em vista esse
“projeto arcaizante” que se baseia na concentração de poder e na reiteração
de uma sociedade arcaica e excludente.
Temos, para concluir, duas críticas mais gerais ao modelo interpre-
tativo de Fragoso e Florentino, as quais levam a um questionamento do
próprio título da obra. Em primeiro lugar, a ideia de “arcaísmo”, presente
no título, precisa ser revista, já que a reprodução dessas relações “arcaicas”
não nos parece representar um atraso, mas sim a própria forma como o
capitalismo nasce e se desenvolve nas colônias, num movimento sistê-
mico que precede as posteriores relações centro-periferia. Essa noção de
um capitalismo que recria e incorpora o atraso em sua lógica aparece não
apenas em Francisco de Oliveira, já mencionado acima, como também
antes, em duas obras importantes. Ela está presente na obra Capitalismo
e Escravidão, na qual Fernando Henrique Cardoso desenvolve as ideias a
respeito de como o capitalismo realizava suas necessidades reproduzindo
a escravidão, uma escravidão que é moderna e ao mesmo tempo incom-
patível com a modernidade. Tal noção aparece também no famoso ensaio

197
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

de Roberto Schwarz, As ideias fora do lugar (1998, p. 16), na qual o autor,


reconhecidamente inspirado no próprio Fernando Henrique, mostra
o mesmo movimento contraditório no plano das ideias, ou seja, mostra
como o atraso das ideias e das instituições tinham uma racionalidade na
forma como o capitalismo se desenvolve em nossa sociedade, contradição
explorada com maestria por Machado de Assis.
Em segundo lugar, e voltando à discussão sobre a teleologia e a
questão do sujeito que iniciamos a partir da interpretação de Fernando
Novais, a ideia de “projeto”, também presente no título, parece referir-se
a um sujeito consciente – no caso, uma classe ou as elites – na reiteração
de tal sociedade “arcaica”. O arcaísmo aparece assim como um projeto
das elites, de uma classe social, com o que os autores enfatizam então a
dimensão política da reprodução e da dominação social, em detrimento da
que seria a reprodução e dominação “econômica”. Esta última é a que Marx
enfatiza quando escreve que o capital é um sujeito automático, um sujeito
não consciente e no qual os aspectos políticos são derivados do fato de os
agentes – as classes – serem meros suportes do capital, apenas personifica-
ções de categorias econômicas.
Os problemas acima derivam de uma visão a nosso ver equivocada,
que os autores compartilham de certa forma com o próprio Gorender,
do que seria um “capitalismo ideal”, quando o mais importante é reco-
nhecer que “nem a escravidão é necessariamente arcaica, nem o capita-
lismo assegura o domínio do trabalho livre”, e também que “o capitalismo
tomado como um movimento global engendra significações contradi-
tórias, mesmo em relação às suas categorias centrais, que não se univer-
salizam” (Schwarz, 1998, pp. 16-17). Assim, não há que se evitar falar de
capitalismo na sociedade colonial, nem há que se referir a “relações não
capitalistas”. As atividades econômicas, independentemente das formas de
organização social (relações de produção) sob as quais se apresentassem,
estavam todas subordinadas à mais importante das formas: a forma capital.
Ou seja, estavam todas integradas ao movimento global do capital. E em
seu movimento, o capital enquanto forma (D – M – D’), na busca cega pela

198
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

valorização infinita, prescinde, se necessário, do seu conteúdo, seja utili-


zando-se de relações de produção não burguesas, como o trabalho escravo,
seja prescindindo da própria produção, como nos períodos em que a esfera
financeira se torna o centro da valorização e o movimento do capital se
abrevia para a forma D – D’, o que Marx, na seção V do livro III de O
Capital, chamou de capital portador de juros. Voltaremos a essas questões
na conclusão.
Vamos apresentar agora o outro modelo interpretativo, proposto
por Iraci Costa e Julio Pires. Mas, antes, para melhor compreender a
posição dos autores, apresentaremos algumas críticas que Costa (sozinho
e em coautoria com outros autores) já vinha desenvolvendo ao modelo de
Fragoso e Florentino e que estão em sintonia com algumas críticas que já
desenvolvemos anteriormente.
Como vimos, a interpretação de João Fragoso e Manolo Florentino
radicaliza a visão, contrária à ideia de “sentido”, de que a economia colonial
tinha uma reprodução autônoma, que o processo de acumulação no inte-
rior da economia colonial era o principal fator para compreender a repro-
dução dessa sociedade. Daí advém uma das críticas de Costa e Motta a esse
modelo, para a qual os autores buscam apoio no próprio Ciro Cardoso,
insuspeito de ser um defensor da ideia de “sentido”:

Tendo combatido por muitos anos as posturas que enfatizam unilateral-


mente as relações metrópole-colônia ou centro-periferia, a extração de
excedentes, o capital mercantil (hipostasiado em “capitalismo comercial”)
e mais em geral a circulação de mercadorias como locus explicativo pri-
vilegiado, só posso me regozijar com esses novos e sólidos argumentos.
Desde que também neste caso não se ceda à tentação de mais uma ênfase
unilateral. (...) não estarão esquecendo exageradamente, empurrando um
tanto para fora do horizonte, a dependência colonial e neocolonial – e as
determinações e condicionamentos que ela sem qualquer dúvida implicava
(ainda que tais análises tenham demonstrado que algumas das determina-
ções imputadas a fatores externos eram falsas)? Fique como questão a ser
pensada esta minha dúvida. (Cardoso, 1988, p. 58)

199
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

Ou seja, a crítica de Ciro Cardoso procura evitar uma posição


extremada à ideia de sentido que implica esquecer que a economia colo-
nial era dependente, embora algumas das suas determinações que foram
imputadas a fatores externos (ao “sentido”) não eram explicadas por eles
(conforme a pesquisa empírica demonstrou fartamente). A questão da
dependência, que remete à questão da totalidade, já discutimos na seção
anterior na crítica aos argumentos de Gorender.
A outra crítica de Costa e Motta a Fragoso é que

[...] o entendimento da economia colonial enquanto formação econômico-


social encobre, mas não resolve, a impropriedade presente na utilização do
conceito de modo de produção (“problema” que Fragoso, aliás, comparti-
lha com Ciro Cardoso e Jacob Gorender). (Motta e Costa, 1995, p. 29)

Assim, os autores resgatam ideias presentes em textos do próprio


Costa (1985a, 1985b, 1995 e 1999), nos quais o autor critica o uso da cate-
goria modo de produção para se estudar o período colonial. Nesses textos,
o autor defende que tal impropriedade está no fato de que Marx concebeu
os modos de produção não como uma teoria geral da história, mas como
um continuum histórico-lógico próprio da Europa Ocidental, continuum
esse do qual o capitalismo é o ponto culminante. E o capitalismo é o ponto
culminante no sentido de que a partir dele a história se fez universal, pois
o capitalismo tende a exportar-se a si próprio, homogeneizando as relações
sociais nas distintas sociedades e áreas do planeta através do desenvolvi-
mento nunca antes visto das formas mercadoria, dinheiro e capital. Todas
as áreas do mundo ficam então unidas pelo capital e pelo capitalismo.
Assim, não faria sentido falar em outros modos de produção depois de
fundada a história universal pelo capitalismo, e o autor insere a sociedade
colonial como uma sociedade que se desenvolve correlatamente ao desen-
volvimento do capitalismo, ou seja, como uma sociedade posta pelo capital
e cujo desenvolvimento resultou no capitalismo.

200
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

Além disso, criticando a ideia de uma teoria geral da história e das


revoluções, ou seja, da passagem de um modo de produção para outro,
escreve Costa:

[...] a gênese de um modo de produção pode ser única, específica, sendo


impossível, portanto, confundir os constituintes genéticos – elementos
constitutivos, bem como as inter-relações que os vinculam – de um modo
de produção com os de outro. Ademais, à medida que não tem de haver,
necessariamente, apenas um padrão genético, torna-se impossível o esta-
belecimento de uma lei, ou conjunto de regularidades, que explique, de
maneira abrangente e genérica, a passagem de um para outro modo de
produção, ou seja, é impossível formular-se uma teoria geral das revolu-
ções. Além disso, o próprio funcionamento interno, bem como a eventual
“dinâmica” ou “rigidez” de cada modo de produção não são passíveis de
equacionamento único, pois poderão ser peculiares a cada um deles. Logo,
tanto pela sua gênese como pelo seu “funcionamento”, os modos de produ-
ção podem diferir entre si. Disto se conclui que eles não são isonômicos,
vale dizer, não existe um conjunto único de leis ou regularidades que os
reja. (Costa, 1999, p. 2)

Ainda segundo Costa, além de não serem isonômicos, os modos


de produção também não são homólogos, ou seja, não há necessariamente
correspondência entre todos e cada um dos elementos constitutivos dos
modos de produção, e esses elementos nem sempre se repetem em modos
de produção diferentes ou aparecem com funções ou papéis totalmente
distintos. Dessa forma, não há como “emparelhar” os modos de produção
para compará-los por meio de um conjunto único e abstrato de conceitos
com pretensão de generalidade, o que foi feito pela vulgarização do
marxismo a partir de Stálin e também tanto pelos estruturalistas quanto
pelo próprio Gorender que os critica.
Assim, a partir de uma leitura de Marx, segundo a qual os modos
de produção representariam não uma teoria geral da história, mas apenas
um continuum histórico-lógico próprio da Europa Ocidental (portanto um
“sentido” reconstruído a posteriori pelo cientista, não um a priori teleo-
lógico e nem a construção de puros universais abstratos), Costa defende

201
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

que os modos de produção não são nem isonômicos nem homólogos,


aproximando-se da crítica de Barros de Castro, pois é uma crítica que
aponta para os limites da utilização dos conceitos da economia política.
Entretanto, como defenderemos adiante, o modelo proposto por Costa
encontra elementos de generalidade no escravismo colonial que permitem,
ao contrário da crítica de Castro, estudá-lo com as categorias da economia
política de Marx. Esses elementos de generalidade, como veremos, são
encontrados a partir de uma retomada da ideia do “sentido”, de Caio
Prado Júnior, e essa retomada assume, entretanto, a forma de uma supe-
ração dialética, ou seja, que supera e ao mesmo tempo conserva a ideia do
“sentido da colonização”.
Passemos agora ao modelo interpretativo proposto por Julio Pires e
Iraci Costa – Costa e Pires (1994) e Pires e Costa (2000) – para ver como
os autores buscam resolver essa tensão entre, de um lado, os limites do uso
dos conceitos da economia política, apontados com certa razão por Castro,
e, de outro, a existência de determinações reais que parecem permitir
(e pedir) o uso das categorias da economia política de Marx no período
colonial.
O modelo teórico desses autores tem como centro a consideração
das formas do capital estudadas por Marx. Essas seriam três: o capital
comercial, o capital usurário e o capital industrial. Como se sabe, as duas
primeiras formas estiveram presentes em quase toda a história, não têm
raízes em nenhum modo de produção e são formas consideradas para-
sitárias, porque não se reproduzem autonomamente. Apenas o capital
industrial tem autonomia, ou seja, apenas essa forma do capital reproduz
a si própria, pois a valorização se dá na esfera da produção, na criação de
valor pelo trabalho. O trabalho socialmente necessário permite a repro-
dução dos trabalhadores e o trabalho excedente gerado é apropriado pelo
capitalista como mais-valia, fonte dos lucros que poderão ser reinvestidos
na produção. Assim, o ciclo do capital industrial repõe as próprias condi-
ções necessárias para se reiniciar o processo, permitindo a reprodução do
capital, que se torna um sujeito automático.

202
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

Pires e Costa defendem que existiu ainda uma outra forma do


capital, que eles chamam de capital escravista-mercantil. Essa forma do
capital, como o capital industrial, é caracterizada pela produção e extração
de excedente, entretanto, com uma peculiaridade: a geração do excedente
se dá com mão de obra escrava e não com trabalho assalariado, como seria
típico do capitalismo.
Assim, apoiando-se em citações de Marx, Pires e Costa chegam a
três conclusões:
1) a escravidão localizada não é incompatível com o modo de produção
capitalista, mas com o desenvolvimento do mesmo e, portanto, irreme-
diavelmente fadada ao desaparecimento;
2) estamos em face de um escravismo produtor de mercadorias (escra-
vidão puramente industrial) e dependente dos mercados mundiais aos
quais deve sua existência;
3) os escravistas são capitalistas, vale dizer, acrescentamos nós, personi-
ficam o capital escravista-mercantil. (2000, p. 90)

O primeiro ponto apresentado defende que o capitalismo, em seu


desenvolvimento, pode eventualmente utilizar-se da escravidão. Foi o
que teria ocorrido nas colônias americanas, que teriam passado por um
lento e contraditório processo de formação/incorporação/adequação ao
capitalismo:

A nosso juízo, só há uma maneira de apreender tal processo [o período


colonial no Brasil - RAT]: cumpre assimilá-lo enquanto tal, vale dizer,
como processo histórico concretamente dado. Este é o programa que nos
cabe desenvolver; embora dos mais complexos, podemos sumariá-lo com
poucas palavras: é preciso descrever como se deu o processo de “formação/
incorporação/adequação” da sociedade brasileira “segundo o/ao” modo de
produção capitalista, o qual se deve tomar, a um tempo, como causativo e
resultante do aludido processo. (Costa, 1985, p.2)

Aqui, Costa defende que não se deve ver o período colonial


buscando lá outro modo de produção. Como já vimos anteriormente, para

203
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

esse autor, uma vez fundada a história universal pelo capitalismo, só faz
sentido falar-se em capitalismo, e o processo de formação da sociedade
brasileira é inseparável do desenvolvimento do capitalismo. Os dois outros
tópicos acima completam o quadro: o escravismo que se produziu aqui
é um escravismo produtor de mercadorias com vistas à valorização do
valor, e, assim, o nosso escravismo pode ser estudado da perspectiva da
economia política, ou seja, com os agentes sendo vistos como personifi-
cações de categorias econômicas (contrariamente às opiniões de Castro).
Isso é possível, acrescentamos nós, pois o capital é o sujeito desse processo,
e os homens são, portanto, apenas suportes dessa categoria econômica.
É exatamente pelo fato de o capital ser o sujeito desse processo, por
ser ele o responsável pela universalidade e pela generalidade, que se torna
legítimo que nosso período colonial seja estudado pelas categorias da
economia política. Assim, Pires e Costa veem a adequação da generalidade
dos conceitos, coerentemente com a postura do materialismo dialético,
na própria realidade concreta, que é a da inserção do período colonial no
processo mais amplo de constituição do capitalismo.
Cabe agora compararmos essa postura com uma questão que colo-
camos à obra de Fernando Novais. Como destacamos anteriormente, há
um problema lógico-teórico se, para defender Novais das acusações de
teleologia, recorrêssemos à consideração do capital comercial como sujeito
do processo que leva à acumulação primitiva de capital. Isto porque, como
se sabe, o capital comercial não é uma forma autônoma, e, portanto, não
pode se constituir como sujeito dando origem a uma totalidade. Novais,
apesar de aparentemente não se dar conta desse problema ou de não
enfrentá-lo, contorna-o, de uma forma que não é rigorosa, com o uso
da categoria capitalismo comercial. Entretanto, essa categoria é impró-
pria dentro da perspectiva marxista, visto que o capital só ganha auto-
nomia quando o conteúdo da relação formal D – M – D’ é a produção e
extração do excedente, a partir do momento em que a força de trabalho
se encontra disponível no mercado como mercadoria a ser utilizada no
processo produtivo.

204
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

Entretanto, Costa e Pires, a nosso ver, conseguiram superar esse


problema por meio de uma categoria, o capital escravista-mercantil, que
antecipa uma característica do capital industrial,23 que é o fato de a valo-
rização se dar com base na criação de excedente por meio da produção
de mercadorias e não apenas no comércio ou na cobrança de juros, que
apenas transferem ou redistribuem o produto.24 Assim, se por um lado a
crítica de Gorender ao circulacionismo leva a uma posição extremada no
sentido de se buscar um novo modo de produção, com o deslocamento da
esfera da circulação para a esfera da produção, a categoria capital escra-
vista-mercantil retoma a esfera da produção, sem precisar, entretanto,
recorrer à categoria modo de produção. Essa característica do capital
escravista-mercantil de ser produtor de mercadorias permite, a nosso ver,
falar no capital como sujeito durante o período colonial, ou seja, com o

23 A nosso ver, o capital escravista-mercantil antecipou outra característica do capital


industrial. Se essa forma do capital não tinha a relação de produção capitalista típica
(o trabalho assalariado) ela desenvolveu bem antes do capital industrial, entretanto, as
forças produtivas capitalistas. Como mostra Castro (1977), os engenhos tinham uma
divisão do trabalho avançada, que antecipou a própria divisão taylorista do trabalho.
Faltava, com relação ao século XX, o componente fordista que sustentou o regime de
acumulação fordista/keynesiano (para usar uma expressão da escola regulacionista),
que era o consumo de massas, visto que os escravos, ao contrário dos trabalhadores da
indústria fordista, não faziam parte do mercado consumidor para os bens que produ-
ziam. Ou seja, dentro da base econômica, no seio da qual há uma forma (relações de
produção) e a matéria (forças produtivas), embora no plano da forma a colônia não
apresentasse as relações tipicamente capitalistas (trabalho assalariado), no plano da
matéria antecipou o próprio desenvolvimento da divisão do trabalho que na Europa
viria apenas com a Revolução Industrial. Essa observação torna ainda mais complexa
a discussão clássica a respeito da adequação do escravismo ao desenvolvimento das
forças produtivas. Não há espaço para essa questão neste trabalho.
24 Uma importante discussão, que não poderemos desenvolver neste trabalho por
motivos de espaço, é a da existência do valor na sociedade colonial, e portanto a da
possibilidade de se chamar de mais-valia o excedente gerado pela produção escravista,
já que Marx usou o termo falando da exploração de trabalho assalariado. Costa e Pires
utilizam a expressão ao dizerem que o escravismo moderno era produtor de mais-valia.
A nosso ver, essa afirmação exige uma análise mais rigorosa do conceito de valor, e
por isso preferimos utilizar, por enquanto, a expressão excedente, mais geral, ainda
que esse excedente se apresente sob a forma monetária. Essa questão deverá ficar para
trabalho posterior.

205
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

capital escravista-mercantil sendo sujeito de um processo que culminará


com o desenvolvimento pleno do capital industrial e posteriormente levará
à própria superação do capital escravista-mercantil.
Cabe lembrar que, para a dialética materialista de Marx, é a gene-
ralidade concreta (generalidade posta) que legitima a generalidade dos
conceitos, que os conceitos são, portanto, universais concretos (e não
apenas universais abstratos, como na concepção de Kant que norteia a
visão convencional de ciência, guiada pela lógica formal). A adequação do
discurso científico ao objeto, para Marx, portanto, se dá pelo fato de na
própria realidade a abstração ter sido efetuada. No presente caso, da socie-
dade colonial, a adequação dos conceitos da economia política se dá exata-
mente pelo fato de as formas mercadoria e capital trazerem a generalidade
posta e conduzirem o “sentido” da dinâmica social.
É esse resgate do “sentido”, do fato de nossa sociedade ter-se consti-
tuído dentro do movimento mais geral de constituição do capitalismo, que
traz a adequação ao uso dos conceitos da economia política para o estudo
de nossa sociedade. Não, naturalmente, de todos os conceitos, como o de
modo de produção, o que seria uma categorização arbitrária e subjetiva,
ou seja, um idealismo que parte de categorias preconcebidas que nada têm
a ver com a realidade concreta do período colonial e nem com o materia-
lismo dialético de Marx. A adequação se dá apenas àqueles conceitos que
têm existência efetiva na realidade colonial, o que no caso é o conceito de
capital, ainda que seja uma forma bastante peculiar do capital, que sequer
havia sido tratada pelo próprio Marx.
O resgate da ideia de “sentido” se evidencia assim nas características
desta nova forma do capital, o capital escravista-mercantil. Entretanto,
uma observação importante deve ser feita. Ainda que, ao contrário das
formas do capital comercial e usurária, essa forma não seja parasitária, pois
ela está assentada, como o capital industrial, na produção de mercadorias
(e não apenas na sua circulação e redistribuição), ela não é autônoma como
o capital industrial, não podendo dar origem a um modo de produção
específico, como defendido por Gorender:

206
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

Como evidenciado, o capital escravista-mercantil, por não trazer implícita


a plasticidade do comercial e usurário, é imediatamente dependente de
uma específica relação de produção (a escravista) e igualmente dependente
de específicos modos de produção (o escravista e o capitalista). Assim (...)
tal forma não traz em si seus pressupostos não sendo capaz, portanto, de
per se, repô-los; vale dizer, as condições objetivas de sua existência e sub-
sistência lhe são externas e dadas pelos modos de produção retro assina-
lados. Logo, a forma capital escravista-mercantil é incapaz de dar suporte
a um modo de produção que lhe seja próprio e que dela decorra. (Pires e
Costa, 2000, p. 91)

Assim, apesar de surgir paralelamente ao desenvolvimento do capi-


talismo, essa forma do capital é incompatível com o desenvolvimento do
mesmo, noção essa que está presente na análise da relação entre capita-
lismo e escravidão presente em Cardoso (2004). Mas é nessa situação
contraditória, negativa, que ela deve ser considerada.
O papel da categoria capital escravista-mercantil na solução dos
problemas teóricos discutidos neste artigo é tratado por Costa em outro
texto: Repensando o Modelo Interpretativo de Caio Prado Júnior (Costa,
1995). Falando da limitação do modelo pradiano, escreve o autor:

[...] as articulações presentes na sociedade brasileira sobrepujavam larga-


mente um mero empreendimento dirigido pelo capital comercial e ime-
diatamente voltado para o mercado mundial e dele totalmente dependente.
Neste sentido tratava-se de uma economia com expressivos traços de
integração endógena e que comportava uma gama diversificada de ativi-
dades produtivas votadas para o atendimento de suas próprias necessida-
des, dando-se, também, processos internos de acumulação. Disto decorria
a geração, na órbita doméstica, de condições que permitiam um espaço
econômico relativamente autônomo vis-à-vis a economia internacional e
o capital comercial, espaço econômico este ao qual, ademais, deve-se atri-
buir expressivo contributo no que tange à formação da renda e do produto.
(Costa, 1995, p.14)

Não obstante, o próprio autor afirma não ser seu objetivo negar (em
sentido vulgar, não dialético) o modelo pradiano:

207
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

Do acima exposto pode-se inferir, esperamos que de modo claro, nossa


postura com respeito ao modelo interpretativo de Caio Prado Júnior. Não
pretendemos negá-lo, mas, qualificando-o, evidenciar a possibilidade de
superá-lo de sorte a chegarmos a uma nova síntese, adequada às realidades
com quais nos deparamos quando observada a evolução da sociedade e da
economia brasileiras à luz de estudos recentes. (Ibid, p.18)

Assim, a melhor maneira de ver seu projeto é a partir da expressão


alemã Aufhebung, que é a que melhor designa a negação dialética, pois
tem ao mesmo tempo o sentido de “negar” mas também de “conservar” e
“superar”. Assim, Costa propõe três frentes teóricas para superar o modelo
pradiano. A primeira é no campo metodológico: explicitar as mediações,
que em Caio Prado não existem, entre a essência da sociedade colonial,
seus determinantes em última instância (o “sentido”), e a sua aparência
(plano fenomênico, ou seja, a complexidade da economia colonial).
A segunda é no campo abstrato, na compreensão da acumulação na
economia colonial e do papel desempenhado nela pelo capital comercial
e pelo capital escravista-mercantil. Este último é visto como o principal
elemento da necessária mediação no campo metodológico, mediação entre
o capital comercial e as condições internas da acumulação. Daqui percebe-
se que a crítica a Caio Prado Júnior é que o seu modelo coloca nossa
economia como uma projeção imediata do capital comercial, quando, na
verdade, ela era mediada pelo capital escravista-mercantil, que lhe conferiu
traços fenomênicos (no plano da aparência) específicos e não explicados
apenas pela essência representada pelo capital comercial.
A terceira é na esfera do concreto, na qual defende o autor uma
reformulação dos setores econômicos pensados por Caio Prado Júnior,
pois a bipartição feita por ele (grande lavoura escravista e agricultura de
subsistência) é insuficiente para apreender toda a gama de articulações
econômicas da colônia.
É interessante notar que Costa trabalha, sendo fiel ao próprio
Marx (e Hegel), com distintos níveis da realidade: o nível da essência e
o da aparência (ou realidade fenomênica). Assim, destaca que a teoria e

208
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

suas categorias de análise devem não apenas explicar aquela essência


(o que fez Caio Prado Júnior), nem tampouco ater-se à aparência (como as
críticas empíricas), mas deve principalmente explicar as mediações entre a
essência e a realidade fenomênica.

6. Conclusões

Buscamos mostrar neste trabalho como distintos olhares metodoló-


gicos da obra marxiana levaram a distintas interpretações do período colo-
nial. No plano metateórico, demos particular atenção à existência de uma
tensão na historiografia que retoma, de certa forma, o debate entre a visão
historicista do conhecimento, segundo a qual os conceitos são históricos,
particulares, e assim os conceitos criados para estudar uma sociedade não
podem ser generalizados para o estudo de outras; e a visão positivista e
também a estruturalista, que buscam os “invariantes universais” ou as leis
gerais que regem as diferentes sociedades. No plano teórico, enfatizamos
as discussões a respeito da utilização dos conceitos da economia polí-
tica marxista (modo de produção, formação social, relações de produção
e capital) e também as discussões a respeito da importância relativa do
mercado interno da colônia, com a correspondente discussão sobre a auto-
nomia da economia colonial em face das flutuações do mercado interna-
cional (e as “críticas empíricas” que vieram questionar a ideia do “sentido”).
Apesar de termos feito aqui as distinções entre os planos metateórico,
teórico e empírico, nunca é demais lembrar que esses planos estão inter-
relacionados, e ao longo do texto buscamos explicitar a dificuldade dessa
separação, particularmente quando se trata de uma abordagem dialética.
Na primeira e segunda seções, fizemos uma exposição sobre o
modelo pradiano e seus desenvolvimentos. O principal foco das críticas
“empíricas” a esse modelo era a falta de autonomia da economia colo-
nial, que decorre de sua lógica, o que mais tarde foi falseado pelas
pesquisas empíricas.

209
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

Quanto às críticas “teóricas”, apresentamos, na terceira seção, as


de Barros de Castro, Ciro Cardoso e a de Jacob Gorender. Este, partindo
das críticas de Ciro Cardoso ao que seria um circulacionismo no modelo
pradiano, ou seja, das críticas à ênfase na circulação e partindo então da
proposição de que o estudo da colônia deveria centrar-se nas relações de
produção, buscou utilizar as categorias de Marx, particularmente as rela-
cionadas ao conceito de modo de produção, para estudar a sociedade
colonial. Defendeu, assim, que esta se constituiu em um novo modo de
produção, o Modo de Produção Escravista Colonial. Barros de Castro
criticou o uso da categoria modo de produção, defendendo que a economia
colonial tinha duas faces: uma capitalista, que poderia ser estudada pelas
leis da economia política, mas outra escravista, cuja dominação era polí-
tica e não econômica, e que esta trazia à economia colonial um caráter
de imprevisibilidade, pois não poderia ser apreendida pelas categorias da
economia política.
Assim, se Gorender e Cardoso têm uma visão metodológica e
uma leitura de Marx que implica conceber generalidade aos conceitos da
economia política marxista (aproximando-se do positivismo e também
do estruturalismo), Castro tem uma compreensão de que esses conceitos
não podem ser utilizados para outras sociedades, pois seriam próprios da
economia capitalista (aproximando-se da concepção historicista do conhe-
cimento). Entretanto, esse autor propõe uma abordagem que nos parece
frágil, pois é dualista, ou seja, propõe a busca de uma explicação para o
período colonial que se baseia numa mera justaposição ou combinação de
elementos de diferentes sociedades.
Se nem todos os conceitos criados para a sociedade capitalista
podem ser estendidos para analisar sociedades passadas, é preciso, entre-
tanto, evitar o erro extremo de se dizer que não se pode usar a economia
política para se estudar o escravismo, pelo menos quanto ao escravismo
moderno. A adequação da abstração científica e, portanto, do caráter da
generalidade do conceito em Marx, como se sabe, está exatamente no
fato de a abstração ser real, processar-se na materialidade da vida social e,

210
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

portanto, ser antes atributo do objeto e não apenas categoria arbitrária do


sujeito (como na tradição de Kant, da qual parte o moderno positivismo).
Assim, é possível estudar o período colonial a partir dos conceitos da
economia política, mas apenas a partir daqueles conceitos que de fato têm
o atributo da generalidade posta, isto é, generalidade efetivamente exis-
tente, e que por isso se nega em particularidade.
Como notou Marx, a sociedade capitalista é uma máquina de
abstrair, ou seja, uma sociedade que produz universais concretos e que
assim se universaliza e tende a homogeneizar as relações sociais no mundo,
exportando sua determinação característica, a forma capital (D – M – D’).
E a forma capital estava presente na sociedade colonial, foi o funda-
mento do escravismo e da constituição dessa sociedade, ao contrário do
escravismo patriarcal da Antiguidade, onde ela só aparecia esporadica-
mente. Assim, a partir da forma capital, particularmente da forma capital
escravista-mercantil, é possível dizer que o capital era o sujeito que movia
a sociedade colonial e que trouxe a generalidade a partir da qual se tornou
legítima e adequada ao objeto a utilização da economia política para tratar
do escravismo colonial (embora não com o uso da categoria modo de
produção, que não faz sentido).
Concordamos, assim, com a posição de Costa, segundo a qual
a sociedade colonial deve ser estudada como sendo um processo de
formação/incorporação/adequação daquela parte do planeta ao capi-
talismo, e que é aí, nesse “sentido” essencial que está a universalidade
concreta que permite o uso da universalidade também dos conceitos da
economia política, particularmente pela presença marcante e determi-
nante da forma capital, que trouxe consigo uma divisão internacional do
trabalho sob a égide da valorização do valor.
Além disso, a categoria capital escravista-mercantil parece-nos
extremamente adequada para explicitar as mediações que não apareceram
no modelo pradiano entre o capital comercial e as formas internas de
acumulação, tão enfatizadas por Fragoso e Florentino, abrindo caminho
para a superação daquele modelo (entretanto, essa tarefa ainda está por ser

211
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

realizada). Tal categorização também evita o erro oposto ao de Caio Prado


Júnior, que destacou a essência em face do plano fenomênico, que é se ater
ao plano fenomênico (a aparente autonomia da economia colonial) e se
esquecer da essência (sua relação de dependência com relação ao desen-
volvimento do capitalismo no plano mundial).
O modelo proposto por Fragoso (1998) e Fragoso e Florentino
(2001) incorre exatamente no outro erro apontado, que é privilegiar o nível
da aparência, dos fenômenos, através do que eles chamam de “mosaico de
formas não capitalistas de produção”, e atribuir à acumulação que se dá
nesses interstícios sociais “não capitalistas” um papel preponderante na
reprodução da sociedade colonial, esquecendo-se do seu caráter depen-
dente, e esquecendo-se de que essas relações “não capitalistas” foram
criadas pelo próprio movimento do capital.
Dessa forma, a partir de um olhar metodológico, a interpretação
trazida por Costa e Pires é a mais coerente com a dialética marxiana, pois
ela supera conservando os momentos do historicismo e do positivismo, de
uma forma dialética e materialista. É dialética, pois percebe a existência
das abstrações reais e, portanto, da contradição, já que quando o universal
se torna concreto ele se nega em particularidade. Assim, o momento do
positivismo está conservado, pois há o momento da abstração (da genera-
lidade). Da mesma forma, o momento do historicismo também é conser-
vado, pois a abstração é real, empreendida pelo próprio objeto, e, assim,
ao mesmo tempo em que é geral, a abstração é também particular, pois é
histórica.
E além de dialética é materialista, pois a posição do conceito é antes
posição efetiva da coisa, ou seja, a abstração surge antes na materialidade
da vida social para depois ser apreendida pelo sujeito do conhecimento.
O conceito não é assim mera subjetividade, não é apenas um universal
abstrato, mas universal concreto, que como tal se nega em particularidade.
A adequação dos conceitos da economia política é garantida então pelo
próprio objeto: pelo fato de o capital ser o sujeito histórico do processo

212
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

e conferir o “sentido” do movimento histórico, o objeto é colocado como


exterior ao sujeito do conhecimento e torna-se passível de ser estudado
como uma coisa, não no sentido positivista, mas como coisa social.
Em suma, é pelo fato de o capital ser o sujeito do processo de cons-
tituição da sociedade brasileira no período colonial – ainda que não como
capital industrial, mas sob a forma do capital escravista-mercantil – e por
ser o capitalismo ao mesmo tempo causativo e resultante desse processo,
exatamente por isso a ideia de “sentido”25 de Caio Prado Júnior não pode
ser descartada: é necessário, como faz Costa, encontrar as mediações entre
o “sentido” no plano abstrato da essência (abstrato não por ser puramente
ideal ou teleológico, mas porque o próprio capital realiza abstrações reais)
e a complexidade da economia colonial no plano concreto-fenomênico. A
categoria capital escravista-mercantil parece-nos ser, assim, um frutífero
caminho para desempenhar essa tarefa.
Além dessa justificativa de caráter mais propriamente lógico-meto-
dológico para a defesa do modelo baseado no capital escravista-mercantil
(sua adequação dialética, que conserva tanto os momentos do positivismo
como do historicismo, superando-os), temos outra, que diz respeito à
própria noção de capitalismo enquanto um sistema histórico e mundial,
o que nos leva a repensar a noção do “sentido da colonização”, tal como
proposta por Caio Prado Júnior, e também a noção do “sentido profundo
da colonização”, de Fernando Novais.
Nossa argumentação aqui desenvolve-se numa visão do capitalismo
que não reduz esse conceito apenas à busca da extração do excedente
baseada no trabalho assalariado. Damos destaque à forma capital e ao
seu poder de prescindir das relações de produção tipicamente burguesas
ou mesmo do conteúdo dessa relação, que é a extração de excedente
no interior da produção.

25 A noção de “sentido” aqui proposta, entretanto, não é exatamente aquela de Caio Prado
Júnior, nem a do “sentido profundo”, de Fernando Novais, como ficará claro adiante.
Entretanto, ela guarda relações com essas duas noções.

213
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

Essa visão, por sua vez, está ligada à consideração do capitalismo


como um modo de produção mundial, que não se restringe a um terri-
tório, como o fazem as interpretações que buscam ver modos de produção
em cada país. O capitalismo deve ser visto como um todo orgânico, cujos
traços apontados por Marx não são necessariamente generalizados a todos
os locais para onde se expande o capitalismo, ao contrário do que Marx
parecia acreditar ao advertir o leitor da atrasada Alemanha, no prefácio à
edição alemã de O Capital, com a expressão “de te fabula narratur”, argu-
mentando que as categorias ali apontadas, ainda que tenham sido desen-
volvidas tomando-se como ponto de partida a Inglaterra, se estenderiam
em breve à Alemanha e outros países.
Essa ideia de progresso que surge com o capitalismo gerou e gera
ainda vários equívocos. Nossa posição aqui pode ser pensada a partir da
oitava tese de Walter Benjamin sobre o conceito de história:

A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” no qual


vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê
conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real
estado de exceção; e graças a isso, nossa posição na luta contra o fascismo
tornar-se-á melhor. A chance deste consiste, não por último, em que seus
adversários o afrontem em nome do progresso como se este fosse uma norma
histórica. O espanto em constatar que os acontecimentos que vivemos
“ainda” sejam possíveis no século XX não é nenhum espanto filosófico. Ele
não está no início de um conhecimento, a menos que seja o de mostrar que
a representação da história donde provém aquele espanto é insustentável.
(Benjamin, 1994, p. 226)

Os equívocos das interpretações que veem um “capitalismo ideal”


ou uma “sociedade burguesa” ideal (com trabalho livre assalariado, demo-
cracia, etc.) extraídos de esquemas pré-concebidos parecem-nos ser perfei-
tamente encaixados nessa crítica de Benjamin às concepções da história

214
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

que veem no progresso uma norma histórica. O “estado de exceção”26


trazido pelo capitalismo continua sendo a regra, particularmente para os
países que nunca saíram da exceção, caso das ex-colônias. Esses países
continuam até hoje esperando as promessas da modernidade, e a expressão
econômica dessa espera foram os modelos de crescimento e desenvolvi-
mento econômico em suas várias versões, que supunham que o subdesen-
volvimento seria superado e todos seriam países ricos e democráticos um
dia. Hoje parece claro, ao menos para as tradições críticas e não dogmá-
ticas de pensamento, que o subdesenvolvimento é um tipo de desenvol-
vimento capitalista, e não uma “etapa”, e que a roda da história pode girar
para trás com relação às conquistas que antes se tinha como certas, desde
que isso seja necessário para a continuidade ou segurança da acumulação
capitalista.27
O curioso é que nos manuais de economia e nas teorias do desen-
volvimento econômico, as condições dos países periféricos, subdesenvol-
vidos ou “em desenvolvimento”, são sempre vistas como exceções. Cabe
aos países descobrirem quais são as características que os “desviam” do
modelo ideal para se colocarem nos trilhos do desenvolvimento (copiando
padrões). E é interessante como, na verdade, o que nos modelos é a

26 O tema da exceção foi resgatado por Francisco de Oliveira em recente debate sobre a
obra de Michael Löwy na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Entendemos que em seu polêmico texto recente, O ornitorrinco, Oliveira mostra com
maestria o monstrengo social que o capitalismo gerou no Brasil de hoje, com sua capa-
cidade de gerar a exceção e colocar lado a lado o moderno e o atraso, que também são
forma de manifestação da imensa desigualdade social neste país.
27 Basta atentar para o retrocesso nos direitos trabalhistas verificado nas três últimas
décadas, mesmo nos países centrais, após o fim da Era de Ouro do capitalismo e do
Welfare State, e para os frequentes retrocessos nos direitos políticos que sofreram
vários países ao longo do século XX (do fascismo, apontado por Benjamin, às dita-
duras militares na América Latina), geralmente tendo a “segurança” como motivo.
Para acontecimentos mais recentes, basta ver os retrocessos atuais, no plano das rela-
ções internacionais e mesmo dos direitos individuais, vindos das nações que seriam as
“guardiãs” da ética e da democracia burguesas, agora tendo como mote o “combate ao
terrorismo”.

215
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

exceção, na realidade é a regra: o que é a “regra”, para tais modelos, aplica-


se a pouco mais que uma dezena de países em todo o mundo. Benjamin
aqui é atualíssimo.
Da mesma forma, e voltando ao nosso tema neste artigo, o escra-
vismo foi um desdobramento do capitalismo, a maneira como a forma
capital surge na periferia do sistema e como ela incorporou as colônias
na divisão internacional do trabalho. Não se trata, pois, a nosso ver, de
“arcaísmo”, como sugerem Fragoso e Florentino, ou de outro modo de
produção, como sugere Gorender, mas simplesmente do estado de exceção
como regra, trazido pelo próprio desenvolvimento contraditório e desigual
do capitalismo.
Essa visão do capitalismo como um sistema mundial, e que se desen-
volve de forma desigual e contraditória, tornando a exceção uma regra,
não é nova, como já apontado. Ela está presente na concepção do papel do
escravismo moderno em Fernando Henrique Cardoso, na noção de “ideias
fora do lugar” de Roberto Schwarz, e também no papel do setor arcaico na
acumulação do setor moderno em Francisco de Oliveira, na sua crítica à
razão dualista. O capitalismo prescinde da superestrutura burguesa28 ou
ao menos não precisa dela em todas as partes do mundo, sendo mesmo
necessária, em alguns momentos, a sua ausência, para acelerar a acumu-
lação. Em nossa visão, a forma capital, na busca da valorização infinita,
é tão forte que, quando pode, prescinde das relações de produção capi-

28 Penso aqui na análise que Fausto (1988, cap. 4) faz sobre o papel do Estado e da posição
do Direito na sociedade capitalista, na visão marxiana. Segundo o autor, a posição do
Estado e do Direito, ou seja, a posição da igualdade e da não contradição de classes no
plano jurídico (com o trabalho livre e sua transformação em uma mercadoria como
outra qualquer), que é a igualdade no plano da aparência do sistema, servem para
esconder a desigualdade no plano da essência. Assim, aponta o autor que a contradição
que Marx apresenta em O Capital, particularmente na passagem da seção I para a seção
II, não é a contradição de classes, mas uma contradição entre a contradição de classes e
a aparente ausência de contradição. O interessante para nossa discussão é que, na peri-
feria do sistema capitalista, essa aparência por diversas vezes foi dispensada, ou seja, a
acumulação capitalista aqui, baseada na exploração de classe, por diversas vezes pres-
cindiu da máscara que precisou usar para prosseguir na Europa, seja utilizando-se do
trabalho escravo, seja nas formas camponesas como a meação, formas nas quais fica
clara a extração do excedente.

216
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

talistas (caso do escravismo moderno e das formas de trabalho livre não


assalariado que existiram e ainda hoje existem no campo brasileiro). Ou
pode prescindir, também, do conteúdo da valorização, que é a extração
da mais-valia na esfera produtiva (caso do imenso circuito de valorização
puramente financeira que reina hoje na economia mundial, cuja forma
é D – D’, ou seja, busca valorizar-se na esfera financeira sem passar pela
produção).
É pelo fato de a forma capital ter tal força que ela pode prescindir
então das características que constituiriam o “capitalismo ideal” – ideal
tanto num sentido normativo como também no sentido de existir, ao
menos em forma pura e generalizável a todo o globo, apenas no plano
das ideias –, reproduzindo constantemente o “estado de exceção” que
assim se interverte em regra. O arcaísmo, nesse sentido, não é pré-capi-
talista, não capitalista ou anticapitalista, mas trazido pelo capitalismo em
seu desenvolvimento contraditório. Como escreveu Marx nos Grundrisse
(1986), a principal característica que distingue o capitalismo dos modos de
produção29 pré-capitalistas é o fato de que nestes a finalidade da produção
é o valor de uso, ao passo que no primeiro a finalidade é a valorização do
valor. As relações de produção são o meio para isso, mas, uma vez que o
movimento da forma ganha dinamismo, a finalidade é o mais importante,
e o capital não faz questão de saber se o que gera o D’ ao final foi trabalho
escravo, assalariado ou outra forma qualquer: o que importa é o resultado.
Para o capital, os fins justificam os meios.
Tal força da forma capital também se desdobra em outra caracterís-
tica: o capital é o sujeito, e, portanto, não há um projeto das elites, seja ele
modernizante ou arcaizante, mas o movimento de um sujeito automático,
do qual os homens são meramente suportes, por meio das relações sociais
29 Na verdade, como destaca Fausto (1988, cap. 1), ao falarmos de sociedades passadas
usando a expressão “modo de produção”, como em “modo de produção feudal”, o adje-
tivo “feudal” nega “modo de produção”, pois só no capitalismo a produção torna-se
a dimensão central das relações sociais, visto que a finalidade do sistema é a valori-
zação do valor, que deve passar pela produção. Assim, o próprio conceito de modo de
produção deve ser interpretado como um conceito afetado de negação ao usá-lo para se
referir a sociedades pré-capitalistas.

217
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

de produção. Ou se pode dizer que desde o início o projeto de nossas elites,


incluindo as mudanças de projeto com a mudança das elites hegemônicas,
foi impulsionado pelo movimento do capital,30 movimento do qual as elites
se alimentam e em função do qual atuam como classe. Se os resultados
que isso trouxe para a periferia do sistema capitalista mundial foram dife-
rentes dos casos “clássicos” de desenvolvimento capitalista, não se deve
atribuir isso a uma anomalia ou dizer que se tratou de um outro modo de
produção, mas compreender tais resultados como fruto do próprio desen-
volvimento contraditório, desigual e excludente do capitalismo.
Uma última observação a ser feita, agora sobre a relação entre as
classes dominantes domésticas (as elites) e sua relação com o movimento
do capital no plano internacional. É curioso notar que as ideias de Fragoso
e Florentino se aproximam das de Gorender nesse aspecto, e ambas as
concepções desembocam numa mesma linha de interpretação: a de que as
mazelas dos países que foram ex-colônias são fruto de decisões equivocadas
tomadas por eles mesmos (ou pelas suas elites, já que as classes populares
nunca tiveram poder de decisão) e não resultado histórico da exploração
ou da extração do excedente colonial, ou ainda do “imperialismo”.
Gorender (1980, p. 65), após criticar a teoria da dependência e
outras linhas interpretativas que enfatizam fatores externos como deter-
minantes dos problemas nacionais, destaca que o foco dinâmico, em certos
momentos cruciais, esteve na economia brasileira, nas atitudes das classes

30 Fragoso e Florentino, para reforçar seu argumento de que as ações das elites mercantis
do Rio de Janeiro eram primordialmente políticas e não econômicas, mostram que a
rentabilidade das atividades rentistas para as quais se voltavam os comerciantes após
enriquecerem (compra de imóveis, terras, escravos, etc.) eram menos lucrativas que as
atividades mercantis. Eles concluem com isso que o que eles buscavam era, portanto,
status, poder, o que estaria de acordo com a ideia de um projeto arcaizante, não capi-
talista. Uma objeção a se fazer é que, ainda que as taxas de rentabilidade nessas ativi-
dades de fato fossem menores, isso não habilita a concluir que eram ações não racionais
ou não motivadas pela lógica da acumulação capitalista. Optar por um investimento
menos rentável pode significar simplesmente aversão a risco. De qualquer forma, o
consumo ostentatório, bem como a acumulação de riquezas pessoais e certos tipos de
bens que trazem status não são de forma alguma estranhos a uma sociedade capitalista,
como já mostrou Thorstein Veblen na sua famosa Teoria da Classe Ociosa.

218
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

dominantes nacionais, e não apenas no “imperialismo” externo. De forma


análoga, Fragoso e Florentino, como vimos, destacam o poder da elite
nacional em face do capital mercantil europeu e o papel protagonista (ou
antagonista) dessas elites na reprodução de nosso “arcaísmo”. Isso é um
desenvolvimento lógico nos dois modelos pelo fato de destacarem a dinâ-
mica interna da colônia, seja como modo de produção escravista colonial,
seja como formação econômico-social. Perde-se com isso, entretanto, a
visão do capitalismo como um sistema mundial. É como se, na ânsia por
combater as teses que enfatizavam a extração do excedente colonial – que
têm seu ápice em Fernando Novais –, os autores joguem fora o bebê com
a água do banho, desprezando a posição da colônia no conjunto de um
sistema mundial em formação.
Não queremos com isso defender interpretações fatalistas que
retiram qualquer papel emancipador que possa surgir internamente ao
país. Apenas acreditamos que foi exagerada a crença de que nossas elites
poderiam ter mudado o rumo da história. E isso não se deu por mera
“incompetência” dessas elites, mas pelas opções tomadas que envolviam as
relações entre as elites internas e as elites do centro ou entre o capitalismo
nacional e o capitalismo mundial.
É por meio dessa relação que Fernando Henrique Cardoso, em sua
versão da teoria da dependência, buscava (contra a esquerda embasada
nas teorias do imperialismo) extrair os benefícios de um desenvolvimento
“dependente e associado”, apoiado politicamente na facção “esclarecida”
da burguesia nacional, aquela mais atenta às oportunidades criadas pela
internacionalização da economia e pela nova divisão internacional do
trabalho que estava surgindo na década de 60 com a expansão das multi-
nacionais. Entretanto, sabemos bem o rumo a que essas ideias levaram
quando ele teve sua oportunidade na presidência da república, já numa
nova configuração do capitalismo mundial, na qual o processo de mundia-
lização financeira se tornou muito mais relevante que a mundialização da
produção e a dependência anteriormente diagnosticada transformou-se

219
O CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL E A ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS

em uma dependência do mercado financeiro internacional que, até bem


recentemente, funcionou como uma bola de ferro para o crescimento
econômico brasileiro.
Acreditamos haver aqui uma lacuna ainda a ser preenchida, que é
a de pensar o papel da periferia no sistema capitalista: que não se cometa
o erro de atribuir todas as nossas mazelas ao “imperialismo” ou a fatores
externos, nem tampouco se cometa o erro oposto, de atribuí-las pura-
mente a “decisões equivocadas” das elites e dos governantes locais ou às
“instituições” domésticas, ou ainda à “corrupção”, como se esta não exis-
tisse nos países centrais e não fizesse parte das regras do jogo capitalista.
É preciso entender a relação entre as elites nacionais e os demais grupos
sociais dentro dos países periféricos, as relações entre essas elites e as elites
do centro, no movimento geral do capital no plano internacional, bem
como a maneira como tais elites defendem seus interesses por meio de
seus respectivos Estados nacionais e organismos internacionais. Essas são,
a nosso ver, as mediações fundamentais que devem ser investigadas para se
compreenderem os diferentes períodos de nossa história.
Tais reflexões deverão, também, conforme defendemos ao longo do
texto, pensar no período colonial e no escravismo moderno não como um
parêntesis, mas como a forma sob a qual o capitalismo se desenvolveu na
periferia do sistema capitalista mundial, a forma como a inseriu na divisão
internacional do trabalho, bem como na divisão internacional do poder. O
“sentido da colonização”, de nossa perspectiva, é este: a criação da periferia
de um sistema capitalista mundial. Não é um sentido teleológico, conforme
já discutimos anteriormente, mas um sentido percebido a posteriori, e que
tem à sua frente um sujeito histórico. Não um sujeito consciente, pois isso
só viria, para Marx, com o fim da história – o socialismo – que, na verdade,
seria o início da história com o homem surgindo como sujeito (ver Motta
e Costa, 1995b). Mas um sujeito automático, que impede que o homem se
torne sujeito: o capital.
Acreditamos que a partir dessa noção do “sentido da colonização” se
poderá chegar a uma síntese não só dos diversos modelos interpretativos

220
CAPITAL E COLONIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA PERIFERIA DO SISTEMA CAPITALISTA MUNDIAL

de nossa formação como também a uma síntese entre nosso passado e o


presente, ou seja, iluminar o passado não apenas por erudição ou curio-
sidade intelectual, mas para que este lance luz sobre os problemas do
presente. Essa, como escreveu Caio Prado Júnior, é a principal tarefa de
quem se debruça sobre nossa História.

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10. SOBRE OS AUTORES

Iraci del Nero da Costa é Mestre, Doutor e Livre-Docente em Economia


pela FEA-USP; aposentou-se como professor associado pela Faculdade de
Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo. 

João Paulo A. de Souza é Mestre em Economia pela Faculdade de


Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo e
doutorando em Economia pela Universidade de Massachusetts-Amherst. 
 
Julio Manuel Pires é Mestre e Doutor em Economia pela FEA-USP e é
atualmente professor da Faculdade de Economia, Administração e Conta-
bilidade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e do Depar-
tamento de Economia e do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Economia Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 

Rodrigo Alves Teixeira é Mestre e Doutor em Economia pela FEA-USP;


atualmente é professor do Departamento de Economia da  Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e servidor público  federal no departa-
mento econômico do Banco Central do Brasil.

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