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UM GOLE DO UNIVERSO

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UM GOLE DO
UNIVERSO
em crônicas
Em 2016 coloquei como uma das metas do ano "Aprender a fazer um bom nhoque", mas

foi só no final de 2018 que finalmente fiz um nhoque com cara e sabor de nhoque. Um

prato que eu pensei "Eu pagaria por isso em um restaurante. Não pagaria muito caro, mas

pagaria". E considerando meus talentos gastronômicos, pra mim isso foi uma baita

conquista, que só foi possível porque eu me empenhei muito mais do que nos anos

anteriores. Em um mês eu fiz mais nhoques (e tentativas de nhoques) do que a soma de

todas as tentativas dos dois anos anteriores. Eu aprendi empiricamente que a repetição

constante é um importante hábito para aprendermos a fazer algo que exige técnica, tal

como escrever... Que é uma das minhas metas de 2019 :)


 Todos os posts
 1 Crônica por dia
 Textos bem aleatórios
 Diálogos
 Mais
Login/Registre-se
Karen Harumi
 24 de mai. de 2021

 4 min

Fósforo usado
Na faculdade, na aula de História da Arte, o professor tornou obrigatória a
leitura de Maus de Art Spiegelman. Eu não li durante o curso,...
63 visualizações0 comentário
13 curtidas. Post não marcado como curtido13
Karen Harumi
 22 de fev. de 2021

 3 min

Bardaria
18h30. Deu o horário para encontrar as Bias. Saí correndo e fui a primeira
chegar, o que particularmente eu gosto. Sentei na calçada, a...
26 visualizações0 comentário
10 curtidas. Post não marcado como curtido10
Karen Harumi
 12 de fev. de 2021

 3 min

Prisão Insana
Para alguns ainda poderia parecer uma menina, mas ali, sentada na areia com
os pés sendo molhados de tempos em tempos pelo finalzinho de...
28 visualizações0 comentário
12 curtidas. Post não marcado como curtido12
Karen Harumi
 20 de ago. de 2020

 6 min

Karen Kakumi
Já era quase Dezembro do ano passado, 2019, quando à convite da minha
amiga Jaque eu fui num evento social de divulgação da Astrolink, um...
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Em ©2021 eu ainda estava morta.


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Em 2016 coloquei como uma das metas do ano "Aprender a fazer um bom nhoque", mas

foi só no final de 2018 que finalmente fiz um nhoque com cara e sabor de nhoque. Um

prato que eu pensei "Eu pagaria por isso em um restaurante. Não pagaria muito caro, mas

pagaria". E considerando meus talentos gastronômicos, pra mim isso foi uma baita

conquista, que só foi possível porque eu me empenhei muito mais do que nos anos

anteriores. Em um mês eu fiz mais nhoques (e tentativas de nhoques) do que a soma de

todas as tentativas dos dois anos anteriores. Eu aprendi empiricamente que a repetição
constante é um importante hábito para aprendermos a fazer algo que exige técnica, tal

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conquista, que só foi possível porque eu me empenhei muito mais do que nos anos

anteriores. Em um mês eu fiz mais nhoques (e tentativas de nhoques) do que a soma de

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Medo monstruoso e fascínio irresistível


às vezes andam juntos
Publicado em 1 de agosto de 2022 conceicaoSem categoria
Foto: Cláudio
Bento

Quando escurecia e todos dormiam, nas barracas do


imenso areal do Rio Araguaia – de um lado o Pará, do
outro, o Tocantins –, eu colocava a cabeça do lado de fora
e não sem muito medo ficava sozinha diante do céu
monstruoso. Tudo o que o olho humano pode ver do
universo estava ali na abóbada negra. Uma nuvem
comprida e leitosa demarcava o terreno cósmico onde
existimos, a Via Láctea. De vez em quando, uma estrela
cadente ou uma fileira de luzes que podia ser um disco
voador mas era um satélite.

Dentro da barraca, eu pressentia o céu massacrante que


me esperava. Tudo era solidão, o rio, a mata sombria nas
duas margens, as barracas adormecidas e a entidade
onipresente testemunhando tudo, um manto preto
pontilhado de estrelas. Quanto mais estrelado o céu, maior
a percepção do quanto ele é absoluto.  Anoitecia, o medo
fascinante se aproximava e eu esperava por ele como
quem espera pelo destino inevitável.

O céu inteiramente nu, descomunal, sem um pingo de


nuvem, me deixava numa solidão desesperada, pois o que
sou diante de dimensões inalcançáveis na escala humana e
mesmo nas escalas astrofísicas?

Há umas 15 barracas ao meu redor. São amigos e colegas


de acampamento, de 35 a 77 anos, solteiros, casados,
sozinhos, acompanhados, brancos, pretos, pardos (como
queiram), mais gordos, mais magros, mais ricos, mais
pobres, héteros ou LGBTQIA+, todos dormindo sobre a
mesma areia, tão estranhamente diferentes uns dos
outros, todos compartilhando da mesma solidão do existir,
solidão insulada no meio do rio.

Uma tribo momentânea e voluntariamente isolada – todos


precisando uns dos outros pra cozinhar, limpar, lavar louça
e banheiro de madeirite, arear panela e lavar roupa na
beira do rio, uma renúncia aos confortos da civilização, um
modo de lavar a alma, de recuperar o sentido de
coletividade, e de ver com vagar uns aos outros, com tudo
o que somos e o que não somos, o que temos e o que não
temos.
Tudo diante de um rio cada vez mais triste, como
constatam os ribeirinhos – o rio vem assoreando
tragicamente nos últimos anos, na mesma proporção com
o que o agronegócio avança nos arredores. Há estudos
que preveem a morte do Araguaia para daqui a 40 anos.
No período de seca, de julho a setembro, o leito do rio
está cada vez mais raso, prenunciando um trágico deserto
de 2 mil quilômetros de extensão.

Aqui na Terra os homens poderosos engolem os rios,


alguns outros tentam descansar da desumanidade da vida
urbana, e o céu, todas as noites, me chamava para o medo
irresistível. Era a mínima parte do universo que nos cabe
ver, mas era um Buraco Negro me chamando – os
astrofísicos já descobriram que a força gravitacional dessas
regiões de espaço-tempo engole tudo quanto está nas
suas bordas, engole até a luz. E ainda não se sabe o que
existe e o que acontece dentro dessa massa
assombrosamente voraz.

O que diferenciava os Buracos Negros do universo e o da


minha fantasia cósmica era o fino e esgarçado tecido
sintético (azul!) da barraca de dois lugares. Se aqui na
Terra, tudo está se degringolando, no infinito espaço-
tempo que nos contém há algo de que tenho muito medo.
Algo de que não deveria fugir e ainda não sei o que é.

 
Pesquisar por:
QUEM FAZ O BLOG

    
Conceição Freitas

Sou filha de quatro cidades: Manaus, Belém, Goiânia e Brasília. Repórter,


cronista e dona de uma banquinha de afetos brasilienses. Guardo em mim
amores eternos e 11 prêmios de jornalismo – o mais importante deles,
Esso Nacional – por uma série de histórias de amor entre excluídos,
portadores de necessidades especiais e errantes de todo tipo. Fui repórter
de polícia, cidades, cultura, Brasil. Neta de negro e de índio, sou brasileira
até o último fio de cabelo cacheado. Adoro descobrir o sentido que cada
pessoa dá à vida. É do sentido delas que construo o meu.
PUBLICIDADE

POSTS RECENTES

 Nem-nem (ou o não-lugar de quem não se sente parte de Brasília)


 Éramos quatro
 O dia em que Clint Eastwood largou o chapéu, o revólver e se
deitou no divã
 Um velho livro de Estilística estremeceu meu coração
 Crônica para não morrer com a morte

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Arquivo – Blog da Conceição                           


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MATÉRIA ANTERIORA negra Iaiá e a boneca de pano

PRÓXIMA MATÉRIAAgosto não é um mês, é o sertão no asfalto. Agosto não


tem dó nem piedade
© Copyright 2001-2020 S/A - Correio Braziliense. Todos os direitos reservados.
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Dentro da barraca, eu pressentia o céu massacrante que


me esperava. Tudo era solidão, o rio, a mata sombria nas
duas margens, as barracas adormecidas e a entidade
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pontilhado de estrelas. Quanto mais estrelado o céu, maior
a percepção do quanto ele é absoluto.  Anoitecia, o medo
fascinante se aproximava e eu esperava por ele como
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O céu inteiramente nu, descomunal, sem um pingo de


nuvem, me deixava numa solidão desesperada, pois o que
sou diante de dimensões inalcançáveis na escala humana e
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Há umas 15 barracas ao meu redor. São amigos e colegas


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sozinhos, acompanhados, brancos, pretos, pardos (como
queiram), mais gordos, mais magros, mais ricos, mais
pobres, héteros ou LGBTQIA+, todos dormindo sobre a
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outros, todos compartilhando da mesma solidão do existir,
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e banheiro de madeirite, arear panela e lavar roupa na
beira do rio, uma renúncia aos confortos da civilização, um
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coletividade, e de ver com vagar uns aos outros, com tudo
o que somos e o que não somos, o que temos e o que não
temos.

Tudo diante de um rio cada vez mais triste, como


constatam os ribeirinhos – o rio vem assoreando
tragicamente nos últimos anos, na mesma proporção com
o que o agronegócio avança nos arredores. Há estudos
que preveem a morte do Araguaia para daqui a 40 anos.
No período de seca, de julho a setembro, o leito do rio
está cada vez mais raso, prenunciando um trágico deserto
de 2 mil quilômetros de extensão.

Aqui na Terra os homens poderosos engolem os rios,


alguns outros tentam descansar da desumanidade da vida
urbana, e o céu, todas as noites, me chamava para o medo
irresistível. Era a mínima parte do universo que nos cabe
ver, mas era um Buraco Negro me chamando – os
astrofísicos já descobriram que a força gravitacional dessas
regiões de espaço-tempo engole tudo quanto está nas
suas bordas, engole até a luz. E ainda não se sabe o que
existe e o que acontece dentro dessa massa
assombrosamente voraz.

O que diferenciava os Buracos Negros do universo e o da


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duas margens, as barracas adormecidas e a entidade
onipresente testemunhando tudo, um manto preto
pontilhado de estrelas. Quanto mais estrelado o céu, maior
a percepção do quanto ele é absoluto.  Anoitecia, o medo
fascinante se aproximava e eu esperava por ele como
quem espera pelo destino inevitável.

O céu inteiramente nu, descomunal, sem um pingo de


nuvem, me deixava numa solidão desesperada, pois o que
sou diante de dimensões inalcançáveis na escala humana e
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Há umas 15 barracas ao meu redor. São amigos e colegas


de acampamento, de 35 a 77 anos, solteiros, casados,
sozinhos, acompanhados, brancos, pretos, pardos (como
queiram), mais gordos, mais magros, mais ricos, mais
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outros, todos compartilhando da mesma solidão do existir,
solidão insulada no meio do rio.

Uma tribo momentânea e voluntariamente isolada – todos


precisando uns dos outros pra cozinhar, limpar, lavar louça
e banheiro de madeirite, arear panela e lavar roupa na
beira do rio, uma renúncia aos confortos da civilização, um
modo de lavar a alma, de recuperar o sentido de
coletividade, e de ver com vagar uns aos outros, com tudo
o que somos e o que não somos, o que temos e o que não
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Tudo diante de um rio cada vez mais triste, como
constatam os ribeirinhos – o rio vem assoreando
tragicamente nos últimos anos, na mesma proporção com
o que o agronegócio avança nos arredores. Há estudos
que preveem a morte do Araguaia para daqui a 40 anos.
No período de seca, de julho a setembro, o leito do rio
está cada vez mais raso, prenunciando um trágico deserto
de 2 mil quilômetros de extensão.

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urbana, e o céu, todas as noites, me chamava para o medo
irresistível. Era a mínima parte do universo que nos cabe
ver, mas era um Buraco Negro me chamando – os
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regiões de espaço-tempo engole tudo quanto está nas
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O que diferenciava os Buracos Negros do universo e o da


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o que somos e o que não somos, o que temos e o que não
temos.

Tudo diante de um rio cada vez mais triste, como


constatam os ribeirinhos – o rio vem assoreando
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No período de seca, de julho a setembro, o leito do rio
está cada vez mais raso, prenunciando um trágico deserto
de 2 mil quilômetros de extensão.

Aqui na Terra os homens poderosos engolem os rios,


alguns outros tentam descansar da desumanidade da vida
urbana, e o céu, todas as noites, me chamava para o medo
irresistível. Era a mínima parte do universo que nos cabe
ver, mas era um Buraco Negro me chamando – os
astrofísicos já descobriram que a força gravitacional dessas
regiões de espaço-tempo engole tudo quanto está nas
suas bordas, engole até a luz. E ainda não se sabe o que
existe e o que acontece dentro dessa massa
assombrosamente voraz.

O que diferenciava os Buracos Negros do universo e o da


minha fantasia cósmica era o fino e esgarçado tecido
sintético (azul!) da barraca de dois lugares. Se aqui na
Terra, tudo está se degringolando, no infinito espaço-
tempo que nos contém há algo de que tenho muito medo.
Algo de que não deveria fugir e ainda não sei o que é.

 
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Conceição Freitas

Sou filha de quatro cidades: Manaus, Belém, Goiânia e Brasília. Repórter,


cronista e dona de uma banquinha de afetos brasilienses. Guardo em mim
amores eternos e 11 prêmios de jornalismo – o mais importante deles,
Esso Nacional – por uma série de histórias de amor entre excluídos,
portadores de necessidades especiais e errantes de todo tipo. Fui repórter
de polícia, cidades, cultura, Brasil. Neta de negro e de índio, sou brasileira
até o último fio de cabelo cacheado. Adoro descobrir o sentido que cada
pessoa dá à vida. É do sentido delas que construo o meu.
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 Nem-nem (ou o não-lugar de quem não se sente parte de Brasília)


 Éramos quatro
 O dia em que Clint Eastwood largou o chapéu, o revólver e se
deitou no divã
 Um velho livro de Estilística estremeceu meu coração
 Crônica para não morrer com a morte

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tem dó nem piedade
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Medo monstruoso e fascínio irresistível


às vezes andam juntos
Publicado em 1 de agosto de 2022 conceicaoSem categoria

Foto: Cláudio
Bento

Quando escurecia e todos dormiam, nas barracas do


imenso areal do Rio Araguaia – de um lado o Pará, do
outro, o Tocantins –, eu colocava a cabeça do lado de fora
e não sem muito medo ficava sozinha diante do céu
monstruoso. Tudo o que o olho humano pode ver do
universo estava ali na abóbada negra. Uma nuvem
comprida e leitosa demarcava o terreno cósmico onde
existimos, a Via Láctea. De vez em quando, uma estrela
cadente ou uma fileira de luzes que podia ser um disco
voador mas era um satélite.

Dentro da barraca, eu pressentia o céu massacrante que


me esperava. Tudo era solidão, o rio, a mata sombria nas
duas margens, as barracas adormecidas e a entidade
onipresente testemunhando tudo, um manto preto
pontilhado de estrelas. Quanto mais estrelado o céu, maior
a percepção do quanto ele é absoluto.  Anoitecia, o medo
fascinante se aproximava e eu esperava por ele como
quem espera pelo destino inevitável.

O céu inteiramente nu, descomunal, sem um pingo de


nuvem, me deixava numa solidão desesperada, pois o que
sou diante de dimensões inalcançáveis na escala humana e
mesmo nas escalas astrofísicas?

Há umas 15 barracas ao meu redor. São amigos e colegas


de acampamento, de 35 a 77 anos, solteiros, casados,
sozinhos, acompanhados, brancos, pretos, pardos (como
queiram), mais gordos, mais magros, mais ricos, mais
pobres, héteros ou LGBTQIA+, todos dormindo sobre a
mesma areia, tão estranhamente diferentes uns dos
outros, todos compartilhando da mesma solidão do existir,
solidão insulada no meio do rio.

Uma tribo momentânea e voluntariamente isolada – todos


precisando uns dos outros pra cozinhar, limpar, lavar louça
e banheiro de madeirite, arear panela e lavar roupa na
beira do rio, uma renúncia aos confortos da civilização, um
modo de lavar a alma, de recuperar o sentido de
coletividade, e de ver com vagar uns aos outros, com tudo
o que somos e o que não somos, o que temos e o que não
temos.

Tudo diante de um rio cada vez mais triste, como


constatam os ribeirinhos – o rio vem assoreando
tragicamente nos últimos anos, na mesma proporção com
o que o agronegócio avança nos arredores. Há estudos
que preveem a morte do Araguaia para daqui a 40 anos.
No período de seca, de julho a setembro, o leito do rio
está cada vez mais raso, prenunciando um trágico deserto
de 2 mil quilômetros de extensão.

Aqui na Terra os homens poderosos engolem os rios,


alguns outros tentam descansar da desumanidade da vida
urbana, e o céu, todas as noites, me chamava para o medo
irresistível. Era a mínima parte do universo que nos cabe
ver, mas era um Buraco Negro me chamando – os
astrofísicos já descobriram que a força gravitacional dessas
regiões de espaço-tempo engole tudo quanto está nas
suas bordas, engole até a luz. E ainda não se sabe o que
existe e o que acontece dentro dessa massa
assombrosamente voraz.

O que diferenciava os Buracos Negros do universo e o da


minha fantasia cósmica era o fino e esgarçado tecido
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e não sem muito medo ficava sozinha diante do céu
monstruoso. Tudo o que o olho humano pode ver do
universo estava ali na abóbada negra. Uma nuvem
comprida e leitosa demarcava o terreno cósmico onde
existimos, a Via Láctea. De vez em quando, uma estrela
cadente ou uma fileira de luzes que podia ser um disco
voador mas era um satélite.

Dentro da barraca, eu pressentia o céu massacrante que


me esperava. Tudo era solidão, o rio, a mata sombria nas
duas margens, as barracas adormecidas e a entidade
onipresente testemunhando tudo, um manto preto
pontilhado de estrelas. Quanto mais estrelado o céu, maior
a percepção do quanto ele é absoluto.  Anoitecia, o medo
fascinante se aproximava e eu esperava por ele como
quem espera pelo destino inevitável.

O céu inteiramente nu, descomunal, sem um pingo de


nuvem, me deixava numa solidão desesperada, pois o que
sou diante de dimensões inalcançáveis na escala humana e
mesmo nas escalas astrofísicas?

Há umas 15 barracas ao meu redor. São amigos e colegas


de acampamento, de 35 a 77 anos, solteiros, casados,
sozinhos, acompanhados, brancos, pretos, pardos (como
queiram), mais gordos, mais magros, mais ricos, mais
pobres, héteros ou LGBTQIA+, todos dormindo sobre a
mesma areia, tão estranhamente diferentes uns dos
outros, todos compartilhando da mesma solidão do existir,
solidão insulada no meio do rio.

Uma tribo momentânea e voluntariamente isolada – todos


precisando uns dos outros pra cozinhar, limpar, lavar louça
e banheiro de madeirite, arear panela e lavar roupa na
beira do rio, uma renúncia aos confortos da civilização, um
modo de lavar a alma, de recuperar o sentido de
coletividade, e de ver com vagar uns aos outros, com tudo
o que somos e o que não somos, o que temos e o que não
temos.
Tudo diante de um rio cada vez mais triste, como
constatam os ribeirinhos – o rio vem assoreando
tragicamente nos últimos anos, na mesma proporção com
o que o agronegócio avança nos arredores. Há estudos
que preveem a morte do Araguaia para daqui a 40 anos.
No período de seca, de julho a setembro, o leito do rio
está cada vez mais raso, prenunciando um trágico deserto
de 2 mil quilômetros de extensão.

Aqui na Terra os homens poderosos engolem os rios,


alguns outros tentam descansar da desumanidade da vida
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universo estava ali na abóbada negra. Uma nuvem
comprida e leitosa demarcava o terreno cósmico onde
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cadente ou uma fileira de luzes que podia ser um disco
voador mas era um satélite.

Dentro da barraca, eu pressentia o céu massacrante que


me esperava. Tudo era solidão, o rio, a mata sombria nas
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O céu inteiramente nu, descomunal, sem um pingo de


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sou diante de dimensões inalcançáveis na escala humana e
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Há umas 15 barracas ao meu redor. São amigos e colegas


de acampamento, de 35 a 77 anos, solteiros, casados,
sozinhos, acompanhados, brancos, pretos, pardos (como
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Tudo diante de um rio cada vez mais triste, como


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tragicamente nos últimos anos, na mesma proporção com
o que o agronegócio avança nos arredores. Há estudos
que preveem a morte do Araguaia para daqui a 40 anos.
No período de seca, de julho a setembro, o leito do rio
está cada vez mais raso, prenunciando um trágico deserto
de 2 mil quilômetros de extensão.

Aqui na Terra os homens poderosos engolem os rios,


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O que diferenciava os Buracos Negros do universo e o da


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e não sem muito medo ficava sozinha diante do céu
monstruoso. Tudo o que o olho humano pode ver do
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sou diante de dimensões inalcançáveis na escala humana e
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de acampamento, de 35 a 77 anos, solteiros, casados,
sozinhos, acompanhados, brancos, pretos, pardos (como
queiram), mais gordos, mais magros, mais ricos, mais
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coletividade, e de ver com vagar uns aos outros, com tudo
o que somos e o que não somos, o que temos e o que não
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Tudo diante de um rio cada vez mais triste, como
constatam os ribeirinhos – o rio vem assoreando
tragicamente nos últimos anos, na mesma proporção com
o que o agronegócio avança nos arredores. Há estudos
que preveem a morte do Araguaia para daqui a 40 anos.
No período de seca, de julho a setembro, o leito do rio
está cada vez mais raso, prenunciando um trágico deserto
de 2 mil quilômetros de extensão.

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urbana, e o céu, todas as noites, me chamava para o medo
irresistível. Era a mínima parte do universo que nos cabe
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O que diferenciava os Buracos Negros do universo e o da


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Tudo diante de um rio cada vez mais triste, como


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tragicamente nos últimos anos, na mesma proporção com
o que o agronegócio avança nos arredores. Há estudos
que preveem a morte do Araguaia para daqui a 40 anos.
No período de seca, de julho a setembro, o leito do rio
está cada vez mais raso, prenunciando um trágico deserto
de 2 mil quilômetros de extensão.

Aqui na Terra os homens poderosos engolem os rios,


alguns outros tentam descansar da desumanidade da vida
urbana, e o céu, todas as noites, me chamava para o medo
irresistível. Era a mínima parte do universo que nos cabe
ver, mas era um Buraco Negro me chamando – os
astrofísicos já descobriram que a força gravitacional dessas
regiões de espaço-tempo engole tudo quanto está nas
suas bordas, engole até a luz. E ainda não se sabe o que
existe e o que acontece dentro dessa massa
assombrosamente voraz.

O que diferenciava os Buracos Negros do universo e o da


minha fantasia cósmica era o fino e esgarçado tecido
sintético (azul!) da barraca de dois lugares. Se aqui na
Terra, tudo está se degringolando, no infinito espaço-
tempo que nos contém há algo de que tenho muito medo.
Algo de que não deveria fugir e ainda não sei o que é.

 
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Conceição Freitas

Sou filha de quatro cidades: Manaus, Belém, Goiânia e Brasília. Repórter,


cronista e dona de uma banquinha de afetos brasilienses. Guardo em mim
amores eternos e 11 prêmios de jornalismo – o mais importante deles,
Esso Nacional – por uma série de histórias de amor entre excluídos,
portadores de necessidades especiais e errantes de todo tipo. Fui repórter
de polícia, cidades, cultura, Brasil. Neta de negro e de índio, sou brasileira
até o último fio de cabelo cacheado. Adoro descobrir o sentido que cada
pessoa dá à vida. É do sentido delas que construo o meu.
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 Nem-nem (ou o não-lugar de quem não se sente parte de Brasília)


 Éramos quatro
 O dia em que Clint Eastwood largou o chapéu, o revólver e se
deitou no divã
 Um velho livro de Estilística estremeceu meu coração
 Crônica para não morrer com a morte

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às vezes andam juntos
Publicado em 1 de agosto de 2022 conceicaoSem categoria

Foto: Cláudio
Bento

Quando escurecia e todos dormiam, nas barracas do


imenso areal do Rio Araguaia – de um lado o Pará, do
outro, o Tocantins –, eu colocava a cabeça do lado de fora
e não sem muito medo ficava sozinha diante do céu
monstruoso. Tudo o que o olho humano pode ver do
universo estava ali na abóbada negra. Uma nuvem
comprida e leitosa demarcava o terreno cósmico onde
existimos, a Via Láctea. De vez em quando, uma estrela
cadente ou uma fileira de luzes que podia ser um disco
voador mas era um satélite.

Dentro da barraca, eu pressentia o céu massacrante que


me esperava. Tudo era solidão, o rio, a mata sombria nas
duas margens, as barracas adormecidas e a entidade
onipresente testemunhando tudo, um manto preto
pontilhado de estrelas. Quanto mais estrelado o céu, maior
a percepção do quanto ele é absoluto.  Anoitecia, o medo
fascinante se aproximava e eu esperava por ele como
quem espera pelo destino inevitável.

O céu inteiramente nu, descomunal, sem um pingo de


nuvem, me deixava numa solidão desesperada, pois o que
sou diante de dimensões inalcançáveis na escala humana e
mesmo nas escalas astrofísicas?

Há umas 15 barracas ao meu redor. São amigos e colegas


de acampamento, de 35 a 77 anos, solteiros, casados,
sozinhos, acompanhados, brancos, pretos, pardos (como
queiram), mais gordos, mais magros, mais ricos, mais
pobres, héteros ou LGBTQIA+, todos dormindo sobre a
mesma areia, tão estranhamente diferentes uns dos
outros, todos compartilhando da mesma solidão do existir,
solidão insulada no meio do rio.

Uma tribo momentânea e voluntariamente isolada – todos


precisando uns dos outros pra cozinhar, limpar, lavar louça
e banheiro de madeirite, arear panela e lavar roupa na
beira do rio, uma renúncia aos confortos da civilização, um
modo de lavar a alma, de recuperar o sentido de
coletividade, e de ver com vagar uns aos outros, com tudo
o que somos e o que não somos, o que temos e o que não
temos.

Tudo diante de um rio cada vez mais triste, como


constatam os ribeirinhos – o rio vem assoreando
tragicamente nos últimos anos, na mesma proporção com
o que o agronegócio avança nos arredores. Há estudos
que preveem a morte do Araguaia para daqui a 40 anos.
No período de seca, de julho a setembro, o leito do rio
está cada vez mais raso, prenunciando um trágico deserto
de 2 mil quilômetros de extensão.

Aqui na Terra os homens poderosos engolem os rios,


alguns outros tentam descansar da desumanidade da vida
urbana, e o céu, todas as noites, me chamava para o medo
irresistível. Era a mínima parte do universo que nos cabe
ver, mas era um Buraco Negro me chamando – os
astrofísicos já descobriram que a força gravitacional dessas
regiões de espaço-tempo engole tudo quanto está nas
suas bordas, engole até a luz. E ainda não se sabe o que
existe e o que acontece dentro dessa massa
assombrosamente voraz.

O que diferenciava os Buracos Negros do universo e o da


minha fantasia cósmica era o fino e esgarçado tecido
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e não sem muito medo ficava sozinha diante do céu
monstruoso. Tudo o que o olho humano pode ver do
universo estava ali na abóbada negra. Uma nuvem
comprida e leitosa demarcava o terreno cósmico onde
existimos, a Via Láctea. De vez em quando, uma estrela
cadente ou uma fileira de luzes que podia ser um disco
voador mas era um satélite.

Dentro da barraca, eu pressentia o céu massacrante que


me esperava. Tudo era solidão, o rio, a mata sombria nas
duas margens, as barracas adormecidas e a entidade
onipresente testemunhando tudo, um manto preto
pontilhado de estrelas. Quanto mais estrelado o céu, maior
a percepção do quanto ele é absoluto.  Anoitecia, o medo
fascinante se aproximava e eu esperava por ele como
quem espera pelo destino inevitável.

O céu inteiramente nu, descomunal, sem um pingo de


nuvem, me deixava numa solidão desesperada, pois o que
sou diante de dimensões inalcançáveis na escala humana e
mesmo nas escalas astrofísicas?

Há umas 15 barracas ao meu redor. São amigos e colegas


de acampamento, de 35 a 77 anos, solteiros, casados,
sozinhos, acompanhados, brancos, pretos, pardos (como
queiram), mais gordos, mais magros, mais ricos, mais
pobres, héteros ou LGBTQIA+, todos dormindo sobre a
mesma areia, tão estranhamente diferentes uns dos
outros, todos compartilhando da mesma solidão do existir,
solidão insulada no meio do rio.

Uma tribo momentânea e voluntariamente isolada – todos


precisando uns dos outros pra cozinhar, limpar, lavar louça
e banheiro de madeirite, arear panela e lavar roupa na
beira do rio, uma renúncia aos confortos da civilização, um
modo de lavar a alma, de recuperar o sentido de
coletividade, e de ver com vagar uns aos outros, com tudo
o que somos e o que não somos, o que temos e o que não
temos.
Tudo diante de um rio cada vez mais triste, como
constatam os ribeirinhos – o rio vem assoreando
tragicamente nos últimos anos, na mesma proporção com
o que o agronegócio avança nos arredores. Há estudos
que preveem a morte do Araguaia para daqui a 40 anos.
No período de seca, de julho a setembro, o leito do rio
está cada vez mais raso, prenunciando um trágico deserto
de 2 mil quilômetros de extensão.

Aqui na Terra os homens poderosos engolem os rios,


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e não sem muito medo ficava sozinha diante do céu
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universo estava ali na abóbada negra. Uma nuvem
comprida e leitosa demarcava o terreno cósmico onde
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voador mas era um satélite.

Dentro da barraca, eu pressentia o céu massacrante que


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fascinante se aproximava e eu esperava por ele como
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O céu inteiramente nu, descomunal, sem um pingo de


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sou diante de dimensões inalcançáveis na escala humana e
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de acampamento, de 35 a 77 anos, solteiros, casados,
sozinhos, acompanhados, brancos, pretos, pardos (como
queiram), mais gordos, mais magros, mais ricos, mais
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outros, todos compartilhando da mesma solidão do existir,
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Tudo diante de um rio cada vez mais triste, como


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tragicamente nos últimos anos, na mesma proporção com
o que o agronegócio avança nos arredores. Há estudos
que preveem a morte do Araguaia para daqui a 40 anos.
No período de seca, de julho a setembro, o leito do rio
está cada vez mais raso, prenunciando um trágico deserto
de 2 mil quilômetros de extensão.

Aqui na Terra os homens poderosos engolem os rios,


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irresistível. Era a mínima parte do universo que nos cabe
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O que diferenciava os Buracos Negros do universo e o da


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e não sem muito medo ficava sozinha diante do céu
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sou diante de dimensões inalcançáveis na escala humana e
mesmo nas escalas astrofísicas?

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de acampamento, de 35 a 77 anos, solteiros, casados,
sozinhos, acompanhados, brancos, pretos, pardos (como
queiram), mais gordos, mais magros, mais ricos, mais
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Tudo diante de um rio cada vez mais triste, como
constatam os ribeirinhos – o rio vem assoreando
tragicamente nos últimos anos, na mesma proporção com
o que o agronegócio avança nos arredores. Há estudos
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No período de seca, de julho a setembro, o leito do rio
está cada vez mais raso, prenunciando um trágico deserto
de 2 mil quilômetros de extensão.

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irresistível. Era a mínima parte do universo que nos cabe
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o que somos e o que não somos, o que temos e o que não
temos.
Tudo diante de um rio cada vez mais triste, como
constatam os ribeirinhos – o rio vem assoreando
tragicamente nos últimos anos, na mesma proporção com
o que o agronegócio avança nos arredores. Há estudos
que preveem a morte do Araguaia para daqui a 40 anos.
No período de seca, de julho a setembro, o leito do rio
está cada vez mais raso, prenunciando um trágico deserto
de 2 mil quilômetros de extensão.

Aqui na Terra os homens poderosos engolem os rios,


alguns outros tentam descansar da desumanidade da vida
urbana, e o céu, todas as noites, me chamava para o medo
irresistível. Era a mínima parte do universo que nos cabe
ver, mas era um Buraco Negro me chamando – os
astrofísicos já descobriram que a força gravitacional dessas
regiões de espaço-tempo engole tudo quanto está nas
suas bordas, engole até a luz. E ainda não se sabe o que
existe e o que acontece dentro dessa massa
assombrosamente voraz.

O que diferenciava os Buracos Negros do universo e o da


minha fantasia cósmica era o fino e esgarçado tecido
sintético (azul!) da barraca de dois lugares. Se aqui na
Terra, tudo está se degringolando, no infinito espaço-
tempo que nos contém há algo de que tenho muito medo.
Algo de que não deveria fugir e ainda não sei o que é.

 
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QUEM FAZ O BLOG

    
Conceição Freitas

Sou filha de quatro cidades: Manaus, Belém, Goiânia e Brasília. Repórter,


cronista e dona de uma banquinha de afetos brasilienses. Guardo em mim
amores eternos e 11 prêmios de jornalismo – o mais importante deles,
Esso Nacional – por uma série de histórias de amor entre excluídos,
portadores de necessidades especiais e errantes de todo tipo. Fui repórter
de polícia, cidades, cultura, Brasil. Neta de negro e de índio, sou brasileira
até o último fio de cabelo cacheado. Adoro descobrir o sentido que cada
pessoa dá à vida. É do sentido delas que construo o meu.
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 Nem-nem (ou o não-lugar de quem não se sente parte de Brasília)


 Éramos quatro
 O dia em que Clint Eastwood largou o chapéu, o revólver e se
deitou no divã
 Um velho livro de Estilística estremeceu meu coração
 Crônica para não morrer com a morte

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PRÓXIMA MATÉRIAAgosto não é um mês, é o sertão no asfalto. Agosto não


tem dó nem piedade
© Copyright 2001-2020 S/A - Correio Braziliense. Todos os direitos reservados.
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Medo monstruoso e fascínio irresistível


às vezes andam juntos
Publicado em 1 de agosto de 2022 conceicaoSem categoria

Foto: Cláudio
Bento

Quando escurecia e todos dormiam, nas barracas do


imenso areal do Rio Araguaia – de um lado o Pará, do
outro, o Tocantins –, eu colocava a cabeça do lado de fora
e não sem muito medo ficava sozinha diante do céu
monstruoso. Tudo o que o olho humano pode ver do
universo estava ali na abóbada negra. Uma nuvem
comprida e leitosa demarcava o terreno cósmico onde
existimos, a Via Láctea. De vez em quando, uma estrela
cadente ou uma fileira de luzes que podia ser um disco
voador mas era um satélite.

Dentro da barraca, eu pressentia o céu massacrante que


me esperava. Tudo era solidão, o rio, a mata sombria nas
duas margens, as barracas adormecidas e a entidade
onipresente testemunhando tudo, um manto preto
pontilhado de estrelas. Quanto mais estrelado o céu, maior
a percepção do quanto ele é absoluto.  Anoitecia, o medo
fascinante se aproximava e eu esperava por ele como
quem espera pelo destino inevitável.

O céu inteiramente nu, descomunal, sem um pingo de


nuvem, me deixava numa solidão desesperada, pois o que
sou diante de dimensões inalcançáveis na escala humana e
mesmo nas escalas astrofísicas?

Há umas 15 barracas ao meu redor. São amigos e colegas


de acampamento, de 35 a 77 anos, solteiros, casados,
sozinhos, acompanhados, brancos, pretos, pardos (como
queiram), mais gordos, mais magros, mais ricos, mais
pobres, héteros ou LGBTQIA+, todos dormindo sobre a
mesma areia, tão estranhamente diferentes uns dos
outros, todos compartilhando da mesma solidão do existir,
solidão insulada no meio do rio.

Uma tribo momentânea e voluntariamente isolada – todos


precisando uns dos outros pra cozinhar, limpar, lavar louça
e banheiro de madeirite, arear panela e lavar roupa na
beira do rio, uma renúncia aos confortos da civilização, um
modo de lavar a alma, de recuperar o sentido de
coletividade, e de ver com vagar uns aos outros, com tudo
o que somos e o que não somos, o que temos e o que não
temos.

Tudo diante de um rio cada vez mais triste, como


constatam os ribeirinhos – o rio vem assoreando
tragicamente nos últimos anos, na mesma proporção com
o que o agronegócio avança nos arredores. Há estudos
que preveem a morte do Araguaia para daqui a 40 anos.
No período de seca, de julho a setembro, o leito do rio
está cada vez mais raso, prenunciando um trágico deserto
de 2 mil quilômetros de extensão.

Aqui na Terra os homens poderosos engolem os rios,


alguns outros tentam descansar da desumanidade da vida
urbana, e o céu, todas as noites, me chamava para o medo
irresistível. Era a mínima parte do universo que nos cabe
ver, mas era um Buraco Negro me chamando – os
astrofísicos já descobriram que a força gravitacional dessas
regiões de espaço-tempo engole tudo quanto está nas
suas bordas, engole até a luz. E ainda não se sabe o que
existe e o que acontece dentro dessa massa
assombrosamente voraz.

O que diferenciava os Buracos Negros do universo e o da


minha fantasia cósmica era o fino e esgarçado tecido
sintético (azul!) da barraca de dois lugares. Se aqui na
Terra, tudo está se degringolando, no infinito espaço-
tempo que nos contém há algo de que tenho muito medo.
Algo de que não deveria fugir e ainda não sei o que é.

 
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Sou filha de quatro cidades: Manaus, Belém, Goiânia e Brasília. Repórter,


cronista e dona de uma banquinha de afetos brasilienses. Guardo em mim
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Esso Nacional – por uma série de histórias de amor entre excluídos,
portadores de necessidades especiais e errantes de todo tipo. Fui repórter
de polícia, cidades, cultura, Brasil. Neta de negro e de índio, sou brasileira
até o último fio de cabelo cacheado. Adoro descobrir o sentido que cada
pessoa dá à vida. É do sentido delas que construo o meu.
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Bento

Quando escurecia e todos dormiam, nas barracas do


imenso areal do Rio Araguaia – de um lado o Pará, do
outro, o Tocantins –, eu colocava a cabeça do lado de fora
e não sem muito medo ficava sozinha diante do céu
monstruoso. Tudo o que o olho humano pode ver do
universo estava ali na abóbada negra. Uma nuvem
comprida e leitosa demarcava o terreno cósmico onde
existimos, a Via Láctea. De vez em quando, uma estrela
cadente ou uma fileira de luzes que podia ser um disco
voador mas era um satélite.

Dentro da barraca, eu pressentia o céu massacrante que


me esperava. Tudo era solidão, o rio, a mata sombria nas
duas margens, as barracas adormecidas e a entidade
onipresente testemunhando tudo, um manto preto
pontilhado de estrelas. Quanto mais estrelado o céu, maior
a percepção do quanto ele é absoluto.  Anoitecia, o medo
fascinante se aproximava e eu esperava por ele como
quem espera pelo destino inevitável.

O céu inteiramente nu, descomunal, sem um pingo de


nuvem, me deixava numa solidão desesperada, pois o que
sou diante de dimensões inalcançáveis na escala humana e
mesmo nas escalas astrofísicas?

Há umas 15 barracas ao meu redor. São amigos e colegas


de acampamento, de 35 a 77 anos, solteiros, casados,
sozinhos, acompanhados, brancos, pretos, pardos (como
queiram), mais gordos, mais magros, mais ricos, mais
pobres, héteros ou LGBTQIA+, todos dormindo sobre a
mesma areia, tão estranhamente diferentes uns dos
outros, todos compartilhando da mesma solidão do existir,
solidão insulada no meio do rio.

Uma tribo momentânea e voluntariamente isolada – todos


precisando uns dos outros pra cozinhar, limpar, lavar louça
e banheiro de madeirite, arear panela e lavar roupa na
beira do rio, uma renúncia aos confortos da civilização, um
modo de lavar a alma, de recuperar o sentido de
coletividade, e de ver com vagar uns aos outros, com tudo
o que somos e o que não somos, o que temos e o que não
temos.
Tudo diante de um rio cada vez mais triste, como
constatam os ribeirinhos – o rio vem assoreando
tragicamente nos últimos anos, na mesma proporção com
o que o agronegócio avança nos arredores. Há estudos
que preveem a morte do Araguaia para daqui a 40 anos.
No período de seca, de julho a setembro, o leito do rio
está cada vez mais raso, prenunciando um trágico deserto
de 2 mil quilômetros de extensão.

Aqui na Terra os homens poderosos engolem os rios,


alguns outros tentam descansar da desumanidade da vida
urbana, e o céu, todas as noites, me chamava para o medo
irresistível. Era a mínima parte do universo que nos cabe
ver, mas era um Buraco Negro me chamando – os
astrofísicos já descobriram que a força gravitacional dessas
regiões de espaço-tempo engole tudo quanto está nas
suas bordas, engole até a luz. E ainda não se sabe o que
existe e o que acontece dentro dessa massa
assombrosamente voraz.

O que diferenciava os Buracos Negros do universo e o da


minha fantasia cósmica era o fino e esgarçado tecido
sintético (azul!) da barraca de dois lugares. Se aqui na
Terra, tudo está se degringolando, no infinito espaço-
tempo que nos contém há algo de que tenho muito medo.
Algo de que não deveria fugir e ainda não sei o que é.

 
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cronista e dona de uma banquinha de afetos brasilienses. Guardo em mim
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Esso Nacional – por uma série de histórias de amor entre excluídos,
portadores de necessidades especiais e errantes de todo tipo. Fui repórter
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 O dia em que Clint Eastwood largou o chapéu, o revólver e se
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Karen Harumi
 20 de ago. de 2020

 6 min
Karen Kakumi
Já era quase Dezembro do ano passado, 2019, quando à convite da minha
amiga Jaque eu fui num evento social de divulgação da Astrolink, um...
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Em ©2021 eu ainda estava morta.

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