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violência capitalista e seu deslocamento Organizada por um grupo de

Fernandes, Esquenazi, Moraes (orgs.)



para todos os espaços da vida social, na
mesma medida em que estes são controla-
dos pela lógica do capital. Os artigos que compõem o livro “Trabalho e Práxis” refletem de forma
Trabalho e Práxis jovens pesquisadoras e pesquisadores,
Trabalho e práxis: novas configurações,
velhos dilemas reúne estudos de temas va-
Cotidiano e espaço urbano, mí- exemplar a diversidade, profundidade e a imbricação entre teoria e prá-
tica que fundamenta o grupo de pesquisa no qual essa publicação tem
novas configurações, velhos dilemas riados e incomodamente atuais. Em um
dia e comunicação, educação, família, país capitalista, ex-colonial e periférico
relações de gênero, racismo, sistema origem. Contribuem para o entendimento das transformações profundas como o Brasil, caracterizado por ostentar
prisional e também nas falsas alterna- pelas quais o modo de produção capitalista, e o trabalho em particular, Vinicius T. Fernandes | Arelys Esquenazi | Lívia de Cássia G. Moraes desigualdades estruturais ainda mais dra-
tivas sempre reinventadas e bem assi- vem passando a partir de diferentes temáticas. Estudos sobre o sentido e (organizadores) máticas que as nações capitalistas centrais,
miladas ao sistema do capital, não há as características do empreendedorismo, a alienação no chamado capita- justificar a relevância de temas como pre-
lugar e espaço em que isso não ocor- lismo de plataforma, a teoria crítica do cotidiano e as potencialidades de cariedade do trabalho, alienação e explo-
ra. Essa fundamentação torna-os mais uma articulação entre feminismo e marxismo, bem como uma perspec- ração da força de trabalho, patriarcado,
reais¸ desvelando seus lugares e formas tiva que considere as determinações da força de trabalho das mulheres, entre outros, soaria até redundante. Mas
de acomodação no modo de produção expressam em sua totalidade os desafios, sobretudo teóricos, que a rea- os estudos aqui reunidos vão além de uma
capitalista. Nesse sentido, eleva es- lidade tem imposto aos pesquisadores. Oferecem, ainda, subsídio à prá- mera reiteração do que já foi feito, ao con-
sas formas de expressão à condição de xis as importantes pesquisas em torno das condições e relações de traba- trário, propõem algo que, de forma muito
concreto pensado, para usar novamen- lho nas prisões e na economia solidária, bem como sobre um conjunto feliz, está registrado na escolha do subtí-
te uma referência a Marx. de políticas sociais em que emprego, trabalho e educação se articulam. tulo que acompanha a obra: velhos pro-
Não há dúvida, portanto, que Ao refletir sobre os desafios e novos elementos que precisam ser levados blemas precisam estar, sistematicamente,
estamos diante de uma contribuição em conta no entendimento da realidade atual, os autores sugerem cami- sendo analisados em suas novas configu-
coletiva essencial para as lutas sociais; nhos para um aperfeiçoamento das análises marxistas articulado com con- rações, pois nunca são estáticos, mero pro-
que se faz, aliás, parte indissociável de- tribuições diversas, sem perder de vista a profundidade da análise e o rigor duto de uma história iniciada lá atrás.
las, pois demonstram sem rodeios de teórico e do método. Encontram-se aqui um conjunto coerente e plural Nesse sentido, também se diferen-

Trabalho e práxis
qual lado do conflito de classes preten- de contribuições fundadas em desenvolvimentos teóricos e empíricos que ciam de boa parte dos estudos acadêmicos
dem se alinhar. reforçam a atualidade de categorias fundantes do marxismo e estimulam o produzidos numa universidade premida
desenvolvimento de uma perspectiva crítica e transformadora. Constitui- pelas pressões produtivistas, pela concor-
-se como leitura obrigatória para todos aqueles interessados na compreen- rência e pela lógica individualista do de-
LALO WATANABE MINTO | UNICAMP são das “novas configurações” e comprometidos com a superação dos “ve- sempenho. São estudos que “conversam”
lhos dilemas” que perpetuam a exploração do trabalho na nossa sociedade. entre si, a despeito de suas temáticas se-
rem tão variadas. É uma obra de combate,
PATRÍCIA ROCHA LEMOS | UNICAMP que visa fundamentar a luta em distintas
trincheiras, mas todas elas conectadas pela
perspectiva de que do modo de produ-
ção capitalista nada se deve esperar para
o futuro. Especialmente na configuração
que assume nas últimas décadas, domina-
do pelas formas fictícias de capital e pela
necessidade de ampliar a níveis ainda mais
bárbaros a exploração da força de trabalho.
É leitura fundamental para quem
pretende apreender aquilo que Marx,
no livro 3 d’O Capital, afirmava ser a
LUTAS ANTICAPITAL
Trabalho e Práxis:
novas configurações, velhos dilemas

Vinicius Tomaz Fernandes


Arelys Esquenazi
Lívia de Cássia Godoi Moraes
(organizadores)
Trabalho e Práxis:
novas configurações, velhos dilemas

Amanda Teixeira Silveira


Arelys Esquenazi
Calos Fabian Carvalho
Caroline Calvi
Eliane Quintiliano Nascimento
Everaldo Francisco Costa
Everaldo Francisco da Costa
Fagner Firmo de Souza Santos
Florência Inês Pretto
João Batista Pereira Alves
Lívia de Cássia Godoi Moraes
Mariana Chrystello Martins
Mariane Luzia Berger
Rafael Bellan Rodrigues de Souza
Vinicius Tomaz Fernandes

1ª edição
LUTAS ANTICAPITAL
Marília/SP - 2021
Editora LUTAS ANTICAPITAL
Editor: Julio Hideyshi Okumura

Conselho Editorial: Andrés Ruggeri (Universidad de Buenos Aires - Argentina),


Bruna Vasconcellos (UFABC), Candido Giraldez Vieitez (UNESP), Claudia Sabia
(UNESP), Dario Azzellini (Cornell University – Estados Unidos), Édi Benini (UFT),
Fabiana de Cássia Rodrigues (UNICAMP), Henrique Tahan Novaes (UNESP),
Julio Cesar Torres (UNESP), Lais Fraga (UNICAMP), Mariana da Rocha Corrêa
Silva, Maurício Sardá de Faria (UFRPE), Neusa Maria Dal Ri (UNESP), Paulo
Alves de Lima Filho (FATEC), Renato Dagnino (UNICAMP), Rogério Fernandes
Macedo (UFVJM), Tania Brabo (UNESP).

Projeto Gráfico e Diagramação: Mariana da Rocha Corrêa Silva e Renata Tahan


Novaes
Capa: Lara Aiolfi
Impressão: Renovagraf
___________________________________________________________________________

T758 Trabalho e práxis: novas configurações, velhos dilemas /


Vinícius Tomaz Fernandes, Arelys Esquenazi, Lívia de Cássia Godoi
Moraes (Org.). – Marília : Lutas Anticapital, 2021.
294 p. – Inclui bibliografia

ISBN 978-65-86620-45-0

1. Trabalho – Aspectos sociais. 2. Precarização do trabalho. 3.


Trabalho informal. 4. Empreendedorismo. 5. Desemprego. I.
Fernandes, Vinícius Tomaz. II. Esquenazi Borrego, Arelys. III. Moraes,
Lívia de Cássia Godoi. IV. Título.

CDD 331.128
___________________________________________________________________________
Ficha elaborada por André Sávio Craveiro Bueno CBR 8/8211
FFC – UNESP – Marília

1ª edição: fevereiro 2021


Editora Lutas Anticapital
Marília –SP
editora@lutasanticapital.com.br
www.lutasanticapital.com.br
Facebook: @edlutasanticapital
Instagram: @editora_lutas_anticapital
Sumário

Prefácio | Geraldo Augusto Pinto..............................................7

Apresentação.........................................................................19

Individualização das relações de trabalho: uma abordagem a


partir do Microempreendedor Individual (MEI).......................23
Vinicius Tomaz Fernandes

Trabalho jornalístico, capitalismo de plataforma e reificação: a


alienação como processo.......................................................43
Rafael Bellan Rodrigues de Souza

Breves notas sobre a contemporaneidade da teoria crítica do


cotidiano...............................................................................63
Fagner Firmo de Souza Santos

Capitalismo e patriarcado em pauta: aproximações e


distanciamentos entre feminismo e marxismo........................87
Lívia de Cássia Godoi Moraes

Determinaciones de la fuerza de trabajo de las mujeres en el


Capitalismo: una aproximación teórica.................................109
Arelys Esquenazi Borrego

As características do “empreendedorismo por necessidade” e


“empreendedorismo por oportunidade” no Afroempreende-
dorismo brasileiro ...............................................................135
Eliane Quintiliano Nascimento

Trabalho no cárcere: uma análise sobre a precarização do


trabalho prisional no interior do Centro Prisional Feminino de
Cariacica/ES.......................................................................155
Mariana Chrystello Martins
Economia solidária e as relações de trabalho da rede de coletivos
fora do eixo..........................................................................183
Amanda Teixeira Silveira

El estado nación y la contradicción capital-trabajo en Argentina:


sobre las funciones de legitimación y acumulación de los
programas sociales de empleo argentinos (2002-2011)..........209
Florência Inês Pretto

O espaço não formal como ponto de encontro entre o


conhecimento popular e erudito: o direito à cidade e a formação
omnilateral..........................................................................241
Caroline Calvi

A educação profissional como extensão da política de Educação


de Jovens e Adultos: a experiência do município de Vitória....263
Everaldo Francisco Costa
João Batista Pereira Alves
Mariane Luzia Berger

A categoria trabalho no currículo da EJA do município Vitória


como dispositivo de memórias..............................................279
Calos Fabian Carvalho
Everaldo Francisco da Costa
João Batista Pereira Alves
Prefácio
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

O trabalho é um tema de indiscutível relevância e as


pesquisas que perquirem as múltiplas implicações desta
atividade social fundante (do próprio fundamento da vida social,
que é o trabalho) ocupam desde sempre posição de destaque.
O cenário no Brasil segue essa tendência, especialmente
por se tratar de um país capitalista dependente, ex-colônia de
exploração comercial e, além disso, lócus histórico de uma das
mais extensas e profundas experiências de escravidão, o que
deixou chagas indeléveis no tecido social desta nação.
O repertório de estudos sobre o trabalho – em suas mais
diversas fases e aspectos – no Brasil é abundante. Em livro
recém lançado, no formato de coletânea de capítulos, cujo
objetivo é expor o estado da arte dos temas mais proeminentes
nas Ciências Sociais no Brasil e em Portugal, foram necessários
dois capítulos inteiros dedicados somente aos estudos do
trabalho, o que dá provas da quantidade de material publicado
e da diversidade de enfoques e metodologias aplicadas 1.
O que se deve constatar, entretanto, para além da
quantidade e variedade de olhares das pesquisas, é o esforço de
muitos/as autores/as em captar os traços dialéticos da
realidade, buscando expor o trabalho humano por meio das
contradições de que é constituído na trama da vida social
cotidiana. Isso é muito importante, afinal o trabalho é uma

1 Vejam-se os capítulos “Sociologia do Trabalho I – Trabalho, classe e


cultura no Brasil: uma revisão temática” (de Jacob Carlos Lima e Márcia de
Paula Leite) e “Sociologia do Trabalho II – Sociologia do Trabalho no Brasil:
um panorama das pesquisas sobre reestruturação produtiva, sindicalismo
e classe trabalhadora” (de Geraldo Augusto Pinto, Maria Aparecida Bridi e
Sávio Machado Cavalcante), no livro “Campos das Ciências Sociais: figuras
do mosaico das pesquisas no Brasil e em Portugal”, organizado por Rita de
Cássia Fazzi e Jair Araújo de Lima, e publicado pela Editora Vozes, em
2020.

7
atividade de construção e lapidação do ser humano enquanto
ser social (é o resultado e o meio de formação de sua consciência,
o sedimento basilar pelo qual se erige como demiurgo da
história). Mas, o trabalho também é a mais precoce e talvez uma
das mais viscerais formas de exploração do ser humano pelo
próprio ser humano, pois, sendo o alicerce da produção social
(material e imaterial), quando na condição de uma atividade
sujeita à exploração alheia (como é o caso do trabalho
involucrado na forma mercadoria, no capitalismo), se manifesta
na vida do ser humano como alienação, estranhamento,
agressão, vilipêndio, roubo, sofrimento, tortura.
Daí a necessidade de se lançar luz sobre a “riqueza e a
miséria” inerentes a essa atividade social, parodiando aqui,
nesse didático par dialético, o título de outra coletânea (com
vários volumes) de estudos, organizada por Ricardo Antunes, da
Universidade Estadual de Campinas 2. Isso significa que, na
análise do trabalho como atividade social, embora seja
necessário exporem-se as formas de sua exploração, não se deve
fazê-lo desarticuladamente das potencialidades que esta mesma
atividade contém no processo histórico pelo qual o ser humano
constata – e age no sentido de libertar-se de – toda sorte de jugo.
Se o trabalho é um meio de exploração de um ser humano por
outro, é ao mesmo tempo – e ineludivelmente – a arena da vida
social a ser disputada e vencida pelos/as explorados/as na
longa marcha de libertação de toda a sociedade de qualquer
forma de exploração.
Lutar pelo fim do trabalho tout court ou pela mera
redução do tempo de trabalho heterônomo, como advogam
correntes lafarguianas, constituem movimentos limitados –e até
traiçoeiros, pois podem vir a contribuir para escamotear a
exploração no (e pelo) trabalho. Exploração esta que se
metamorfoseia nos discursos que pintam uma sociedade em
que, supostamente, se labora cada vez menos, quando em
verdade não se permite outra coisa que não seja – e com sorte! –
trabalhar a fim de reproduzir-se a si como força de trabalho.
Exploração que se refaz com o advento de novas mediações

2 Os diversos volumes dessa coletânea trazem como título “Riqueza e miséria

do trabalho no Brasil” e vêm sendo publicados pela Boitempo Editorial


desde 2006.

8
tecnológicas e reformulações jurídicas que alteram continua-
mente os padrões de venda, compra e usufruto do trabalho como
mercadoria, prometendo subverter a penúria, o claustro e a
servidão em prol da flexibilidade, da criatividade e da autonomia,
embora, na concretude dos fatos, tudo isso não passe de novos
métodos mais eficazes de extração de trabalho não-pago e de
erosão das garantias de reprodução da vida daqueles/as que
dependem de alienar o próprio trabalho (ou seus resultados
imediatos) para simplesmente sobreviver.
O contexto no qual o presente livro se insere é, portanto,
não apenas de profusão de pesquisas sobre a temática do
trabalho, mas também de batalhas entre as classes sociais e de
um brutal ataque às condições de vida da classe trabalhadora.
Um cenário no qual esta classe, seja nos países capitalistas
centrais ou periféricos, encara uma dupla tragédia. De um lado,
o desemprego e a precarização (com fim das já pífias garantias
asseguradas nos contratos formais, ao lado do incremento da
informalidade e de modalidades de emprego travestidas de
prestação dita “autônoma” de serviços). De outro lado, a perda
de direitos mínimos de seguridade social presente e futura. A
conjunção dessas dinâmicas pari passu à difusão de narrativas
ideológicas que colorem o trabalho como uma atividade de livre
escolha e mediada por puro mérito, têm tido como efeito uma
neutralização das reivindicações trabalhistas e uma diluição da
consciência de classe.
O fato é que este livro também vem à lume em um
contexto no qual o modo de produção capitalista tem
desencadeando mais uma de suas crises colossais. Após
seguidos anos de recessão econômica e de dilapidação das
parcas conquistas sociais mais recentes – desordem esta que foi
o fruto de uma crise financeira de âmbito global cuja explosão
ocorreu em um dos países centrais desse sistema, os EUA, em
2007 – o mundo inteiro submergiu numa pandemia viral que
destroçou ainda mais os povos já atingidos pelas tragédias do
sacrossanto “livre” mercado.
É de se esperançar que esse cenário dantesco abra uma
brecha histórica para a classe trabalhadora refletir e
compreender, de forma mais tátil e clarividente, o nível de caos
social a que se pode chegar quando se necessita, de um

9
momento para outro – como ilustra o caso da pandemia de
Covid-19 – lançar mão de estruturas públicas, regras de convívio
social e métodos de planejamento que são inerentemente
ausentes do modo de produção capitalista, baseado no
moralismo farsesco, na selvageria concorrencial e na guerra de
todos/as contra todos/as.
A crise global pós-2007 e a pandemia de Covid-19 proveu
o mundo das provas mais cabais do quanto a estupidez, o
despreparo e a brutalidade são o único legado do capitalismo
que, desde 1989 (ao menos simbolicamente a partir daí) tornou-
se um sistema social totalitário, atingiu proporções de fato
globais. As condições de um julgamento sobre a viabilidade do
capitalismo estão postas como cartas abertas e justamente por
isso os grandes oligopólios não tardaram em chutar a própria
mesa, patrocinando golpes de Estado, think tanks conspiratórios
e uma infinidade de movimentos sociais liderados por filósofos
charlatões e religiosos fundamentalistas, que, duzentos anos
atrás (ou mais), seriam recebidos, no mínimo, com deboche na
cena pública – mas, hoje, são ministros.
Assim, a luta pelo entendimento sobre os limites do modo
de produção capitalista é, atualmente, num claro retrocesso da
própria revolução burguesa, uma batalha pela formação (e
informação) de base científica, laica, pública, gratuita e – mais
do que nunca – comprometida com a emancipação humana de
todas as formas de exploração. Daí o frescor, a agudeza e a
urgência das pesquisas que este livro traz.

***

Este livro é o produto de várias frentes de estudo levadas


a cabo pelos membros do Grupo de Pesquisa Trabalho e Práxis,
liderado por Lívia de Cássia Godoi Moraes e Rafael Bellan
Rodrigues de Souza, e sediado no Centro de Ciências Jurídicas
e Econômicas da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Após completar três anos de atividades, o grupo expõe, nas
páginas a seguir, resultados de pesquisas e reflexões de seus
membros, muitos dos quais vinculam-se ao Programa de Pós-
Graduação em Política Social da UFES.

10
Embora exprimam a influência do pensador marxista
húngaro Gyorgy Lukács, as investigações e atividades
extensionistas do Grupo de Pesquisa Trabalho e Práxis
contemplam uma diversidade maior de horizontes teóricos.
Acima de tudo – disse-nos um dos membros, Vinicius Tomaz
Fernandes, que coorganiza esta obra – há “uma preocupação
latente em movimentar a teoria no sentido da transformação
social, confrontando-a com temas do presente, sem esquecer das
continuidades históricas”. E conclui: “a diversidade de caminhos
[do grupo] reside precisamente nesse aspecto”, ou seja, na
transformação social, “o que culmina por nos conectar com o
que há de melhor na tradição marxista”.
A atuação extensionista é, aliás, um dos diferenciais
dessa performance teórico-prática ativa, dessa práxis inerente
ao trabalho do grupo. Desde 2018, eles/as mantêm um projeto
de extensão voltado à formação de professores/as envolvidos na
Educação de Jovens e Adultos (EJA) no município de Vitória. E
parte significativa dos estudos que vêm realizando se dirige à
produção de conteúdo para a disciplina “Fundamentos do
Mundo do Trabalho”, que atualmente compõe parte do processo
de implementação do EJA profissional na capital capixaba. Este
é o tema dos dois últimos capítulos do livro.
Antes e para além dessa temática, o/a leitor/a terá a
oportunidade de atravessar na obra um conjunto de textos que
abrangem, de forma crítica, as mais diferentes facetas do
capitalismo atual. Como, por exemplo, o capítulo de abertura,
que aborda a figura do chamado microempreendedor individual
(MEI), seus aspectos ideológicos, a regulação jurídica e as formas
de ser dessa modalidade de (auto)exploração dos/as que
dependem do próprio trabalho para sobreviver na sociedade
brasileira. É perspicaz a forma como o assunto é tomado, pois
no texto se demonstra como se trata de uma tendência do capital
a mobilizar e consumir a força de trabalho dentro da lógica
toyotista do just in time, mas acrescida do embuste persuasivo
de que os/as trabalhadores/as, sendo portadores/as da
mercadoria força de trabalho (da qual se alienam para
sobreviver), são também possuidores/as de capital, de “capital
humano”.

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Há uma bem-vinda depuração nesse texto das
implicações dessa farsa, trazendo à tona que se trata de uma
racionalidade mercantil que invade e ultrapassa a subjetividade
dos/as trabalhadores/as, chegando à própria atividade estatal,
influenciando as políticas sociais ao modo de levar adiante o
projeto societário que há quase meio século se conhece por
neoliberalismo – e que tem no Estado uma ação fundamental,
diz o autor, na “[...] introdução, na economia e na sociedade, da
lógica de modelo empresa e da concorrência”. A novidade, além
da conhecida precarização das condições de vida da classe
trabalhadora com um todo (informalidade, baixa remuneração,
distribuição desigual de renda), é o advento de um nefasto auto-
sentenciamento de incapacidade por parte daqueles/as que
fracassam em suas investidas, ao lado da pérfida narrativa de
self-made man por parte dos/as supostos/as vencedores/as (em
um universo que, segundo dados de 2019 apontados no texto, a
renda per capita dos MEI no Brasil foi de R$ 1.375 mensais).
Uma interessante e fluente sequência é dada ao assunto
pelo segundo capítulo, que aborda a precarização de uma
categoria de trabalhadores/as que já é bastante atingida pela
informalidade: os/as jornalistas. O objetivo do texto foi focar os
impactos decorrentes da introdução cada vez mais massiva das
Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) nessa
atividade profissional. Novamente, uma abordagem atual e
relevante de uma das facetas do capitalismo, um vez que o
capítulo explora como as mediações sócio-técnicas digitais e a
plataformização do trabalho ocorrem numa atividade cujo
produto é, por assim dizer, de conteúdo predominantemente
imaterial, mas que resulta de um dispêndio brutal de nervos,
músculos e energia vital dos/as trabalhadores/as, consumidos
por maquinaria informacional que é concentrada por oligopólios
capitalistas. O capítulo tem, por isso, um propósito à parte:
averiguar a alienação em curso nesse processo, o que exige do
autor uma digressão acerca não só deste conceito presente no
léxico hegeliano e marxiano, mas da própria ontologia do ser
social no trabalho jornalístico.
A concepção ontológica lukacsiana do trabalho e o
resgate do conceito de alienação ensejam o assunto que é o tema
do terceiro capítulo da obra, que é a (re)produção da força de

12
trabalho – ou, de modo mais amplo, o cotidiano dos/as
trabalhadores/as. O autor toma como objeto de crítica a forçosa
separação do cotidiano entre tempo de trabalho, de um lado, e
tempo livre (ou fora do trabalho), de outro. Clivagem esta
imposta pela realidade estranhada do capital, mas que invade a
própria teoria social. Novamente, o processo de alienação é um
dos centros do debate e sua problematização vai então penetrar
os recônditos das atividades de lazer da classe trabalhadora, ou
pelo menos aquelas que se apresentam como supostamente
privadas ou livres do trabalho imposto. Argui-se que também aí
se manifesta a lógica mercantil capitalista, afinal, a atitude
competitiva, o individualismo e outros elementos que compõem
o protótipo do/a trabalhador/a perfeito aos olhos da gerência
capitalista, são aí elaborados, esculpidos, aperfeiçoados, nessas
esferas de sociabilidade que se situam além (mas dependentes)
do trabalho estranhado. E uma das repercussões disso – nos
aponta argutamente o autor – é o crescente adoecimento
psicossocial e psicossomático, manifesto no auto-isolamento,
nas doenças como as lesões por esforços repetitivos, entre outros
agravos.
A (re)produção da força de trabalho e da própria classe
trabalhadora não poderia ser discutida, por sua vez, sem a
questão do trabalho das mulheres. Eis o tema do quarto e do
quinto capítulo da obra. No primeiro, faz-se um debate acerca
das concepções e das intersecções entre capitalismo e
patriarcado, problematizando-se a apropriação das teses
marxistas por certas correntes do pensamento feminista. Para
tal, lança-se luz sobre textos específicos de Heidi Hartmann, Iris
Young e Cinzia Arruzza, bem como se revisita a obra do próprio
Marx, advogando-se, ao final, pela importância de se pensar o
capitalismo e o patriarcado como processualidades históricas
integradas (e não apartadas). Segundo a autora, em que pese ser
preciso admitir que o patriarcado precede historicamente o
modo de produção capitalista, este eleva aquele “[...] a um novo
patamar, cujas particularidades e singularidades podem ser
expressas em pesquisas empíricas”.
O quinto capítulo traz uma reflexão igualmente
formidável sobre o tema, focando-se sobre as particularidades
da exploração da força de trabalho das mulheres no modo de

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produção capitalista. Além da riquíssima revisão bibliográfica,
traz apontamentos que constituem uma base teórica e um
roteiro para pesquisas em diversas direções sobre a temática.
Para a autora cubana, o capitalismo assimila e instrumentaliza
dentro de seu expansionismo a divisão sexual do trabalho,
combinando-a com outros fatores (como a origem nacional e/ou
étnico-racial dos/as trabalhadores/as) na configuração sempre
dinâmica das formas de exploração do trabalho. O labor da
reprodução recebe, ademais, também uma atenção especial
nesse texto, sendo tomado de modo ampliado em suas
dimensões e implicações, num diálogo crítico contra acepções
reducionistas, que, presas à ortodoxia da economia política (e
mesmo à crítica marxiana desta), não reconhecem tal atividade
como imprescindível à reprodução do capital (ainda que não se
trate, em todas as situações, de um trabalho que produza mais-
valia – e nem mesmo, em certos casos, de um trabalho que está
convertido na forma mercadoria).
Se a interseccionalidade entre gênero e exploração do
trabalho foi objeto do quarto e quinto capítulos, o
entrelaçamento com a questão racial é o tema do sexto capítulo,
que aborda – retomando assunto já encetado no texto de
abertura da obra – a ideologia do empreendedorismo, mas agora
dentro de uma abordagem em que se expõem os diferentes
aspectos dos chamados “empreendedorismo por necessidade” e
“empreendedorismo por oportunidade” entre a população negra
no Brasil. Segundo dados recentes expostos no texto, do total de
“empreendedores/as” brasileiros/as, 51% se autodeclaram
negros/as, tendo 34% sido levados/as a inaugurar uma
atividade econômica própria por pura necessidade, isto é, como
enfrentamento da falta de alternativas de renda (portanto, a
minoria “empreendeu” por oportunidade, ou seja, decidiu
inaugurar uma atividade ao constatar um potencial inovador
dela no mercado). Não por acaso, a maioria desses/as
empreendedores/as foi para os ramos da alimentação e
vestuário, que, via de regra, exigem menor capacitação técnica e
investimentos iniciais. Além de mostrar esses aspectos, o sexto
capítulo também aponta como o trabalho desses/as
empreendedores/as afrodescendentes, para além da reprodução

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de sua existência nos limites do capitalismo, tem contribuído
para os movimentos sociais em prol da luta antirracista.
Desse arrazoado geral sobre a obra, cabe tratar de mais
quatro capítulos. Um deles, o sétimo na ordem de apresentação,
também é parte dos esforços do Grupo de Pesquisa Trabalho e
Práxis em retratar a condição laboral das mulheres brasileiras;
mas, neste caso, em uma situação atípica: o trabalho
remunerado no cárcere. Com base em uma pesquisa de campo
realizada no Centro Prisional Feminino de Cariacica, a autora
traz uma série de informações sobre o modo como essa atividade
vem sendo levada a cabo no Estado do Espírito Santo, que
ostenta uma recente construção de fábricas em presídios via
parcerias entre entidades públicas e agentes privados,
permitindo a exploração comercial da força de trabalho dos/as
presos/as.
O caso analisado no texto é o da produção de sapatos
infantis, que se desdobra integralmente – desde a montagem até
a embalagem final – em um anexo produtivo construído ao lado
do referido presídio. Trata-se de um capítulo muito rico, pois na
série de excertos de entrevistas concedidas pelas trabalhadoras
encarceradas, é dado perceber a dialética – a riqueza e a miséria
– do trabalho. De um lado, está a exploração comercial do labor
das prisioneiras em condições lamentáveis, que vão desde a
baixa remuneração (até ¾ do salário mínimo vigente) e os
contratos precários (sem 13º. salário nem recolhimento de
impostos), à imposição de posturas forçadas (em pé) nas
jornadas, ao contato com produtos químicos nocivos, aos
acidentes com perfuração nas mãos em máquinas, tudo em meio
a péssimas instalações e igual higienização dos locais. Ou seja,
um prato cheio para o capital. De outro lado, a chance dada a
essas mulheres de ficarem horas para fora das insalubres celas
(uma das entrevistadas afirma que “é melhor ser escravizada
trabalhando do que ficar na cela”), a possibilidade de redução da
pena e ainda de enviar dinheiro à própria família (a maioria
proveio de situações de vulnerabilidade social), e – o que talvez
fosse inimaginável, mas é revelador da inextinguível ontologia
social de todo ato de trabalho humano – o dinamismo social e
subjetivo engendrado nessas mulheres (até mesmo em tais
situações) e que transparece em determinadas falas.

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O oitavo capítulo propõe-se justamente a sondar as
possibilidades de realização do trabalho, tendo por base uma
proposta que, ainda que vigente sob o capitalismo, oferece-se
como alternativa – a economia solidária. No caso, a análise recai
sobre uma rede de coletivos denominada Fora do Eixo (FdE),
que, estruturada por meio de associações que atuam na
promoção de eventos culturais (nas áreas de música, teatro,
dança etc.), propôs novas metodologias de trabalho (tendo,
inclusive, como parte de sua proposta, a ideia de um aporte de
meios de produção por parte dos/as próprios/as integrantes). O
capítulo, ao analisar as relações de trabalho aí presentes,
questiona a atuação dessa rede de coletivos, buscando
demonstrar como ela compete agressivamente (principalmente
por recursos públicos) mediante a oferta de serviços a preços
muito baixos, obtidos pela atuação dos/as seus/suas
integrantes, que sustentam a rede (auto)explorando o próprio
trabalho.
Sucede este texto o nono capítulo do livro, que retrata as
políticas públicas voltadas aos trabalhadores/as desempre-
gados/as na Argentina. Por meio de minuciosa pesquisa sobre a
miríade de programas que surgiram para enfrentar o
desemprego no país vizinho durante o difícil período de 2002 a
2011 (em que a Argentina enfrentou uma grave crise social e
econômica), o estudo conclui que tal esforço do Estado não
logrou mais do que sustentar as necessidades de acumulação de
capital, pois foram mantidas (e aprofundadas) as condições de
flexibilidade – para o capital – na contratação de trabalha-
dores/as, no uso de jornadas fragmentárias, na baixa e variável
remuneração ofertada, entre outros pontos (como direitos de
férias, de aposentadoria etc.) que já vinham sendo alvo de ataque
desde os anos 1990, quando o país mergulhou (ou naufragou)
no neoliberalismo. De modo que a retomada da economia da
Argentina nos anos mais recentes já vem marcada por uma
clivagem ainda mais funda na composição de sua classe
trabalhadora, que se apresenta cada vez mais dividida entre
os/as poucos/as que detém modalidades de trabalho ainda
formais e uma massa crescente de pessoas que atua na
informalidade, dependentes de atividades intermitentes e
intercaladas por momentos de desemprego ou desalento. Um

16
cenário que aclara como o neoliberalismo fez da pujante nação
argentina um campo de força de trabalho de excelente
qualificação e baixo custo ao capital – que, por meio de seus
setores financeiros, prossegue sorvendo a vitalidade do país
também pelas veias da dívida pública.
Por fim, cabe mencionar o capítulo décimo dessa obra,
que, justamente tendo por foco uma crítica à penetração do
neoliberalismo em todas as esferas da sociabilidade, traz uma
interessante abordagem – mais do que isso: uma proposta – de
uso do espaço urbano das cidades enquanto uma ferramenta de
educação não formal. O texto aponta que o conhecimento do
espaço urbano, mediado pela história, constitui uma excelente
forma de apropriação deste recurso pelas pessoas que vivem na
cidade. Um processo que permite aos/às moradores/as
desenvolver uma visão complexa e crítica sobre os
desdobramentos da elaboração dos equipamentos públicos e das
escolhas presentes em cada realização, demonstrando como a
configuração do espaço urbano resulta de embates sociais, da
luta entre as classes que o habitam. Uma proposta de prática
formativa esta que, nas palavras da autora, não só une a
educação escolar e os espaços não formais, como estimula “[...]
a consciência histórica dos sujeitos, desmistificando a ideia de
aparente liberdade e ocupação igualitária da cidade”.

***

Este livro, portanto, como é possível notar por esta breve


síntese, é um convite à reflexão sobre o mundo em que vivemos
hoje.
Ele aborda o trabalho humano sem escusar-se da
situação histórica complexa que essa atividade social ocupa e
que, igualmente, requer em sua análise a fim de que seja
devidamente compreendida. O trabalho é um meio de realização
e de emancipação, é o caminho incontornável de formação do ser
humano como um ser social e que, enquanto tal, deve saber e
efetivamente poder projetar, conscientemente, o seu devir. O
trabalho, contudo, convertido em propriedade privada alienada
de seu/sua detentor/a, restrito a mero quantum de valor
(ativado apenas para fornecer valor que se acumula como

17
trabalho morto, o qual consome trabalho vivo repetida e
interminavelmente com o mesmo fito), é fonte de expurgo de toda
atividade criativa, de toda autonomia e liberdade – e como tal é
a causa maior da miséria humana, seja pelo desemprego, ou pelo
adoecimento e morte no trabalho exaustivo, seja enquanto fonte
de cegueira e intransigência política e cultural.
Não por acaso, as atividades de pesquisa, ensino e
extensão de professores/as e de estudantes de grupos como
este, atuantes na área de Humanidades, têm sido alvo de um
sistemático desmanche por parte de governos, como se pode ver
pelos cortes de bolsas, pelo sucateamento e enxugamento das
universidades públicas no Brasil nos anos recentes. Afinal, tais
governos dependem tanto da abundância da acumulação de
capital (o que não se deve traduzir exatamente por crescimento)
para ascender ao posto de controle da res publica, quanto
também – para aí manterem-se acastelados como paladinos da
natipútrida democracia burguesa – da formação de uma cultura
política servil e messiânica no povo. E para isso lançam mão
(indo além da violência policial e do controle dos tribunais) da
propagação de desinformação em larga escala e de tecnologias
de vigilância digital.
Mas, nada é tão simples e nem tudo é para já. O
capitalismo, no seu moto-contínuo, tem de lidar com a natureza
dialética da história. Em poucas palavras: o trabalho e a classe
trabalhadora são o seu substrato inexpugnável. São o seu
manancial e também o seu maior “pesadelo”, cuja descrição
épica está memoravelmente registrada na canção homônima de
Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, de 1974: “Você corta
um verso, eu escrevo outro; você me prende vivo, eu escapo
morto; de repente... olha eu de novo, perturbando a paz, exigindo
o troco”.

Geraldo Augusto Pinto


Novembro (do ano pandêmico) de 2020

18
Apresentação
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

O livro “Trabalho e Práxis: novas configurações, velhos


dilemas” teve sua produção finalizada exatamente quando
comemoramos três anos da oficialização do Grupo de Pesquisa
Trabalho e Práxis (GPTP) na Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES) e no diretório de grupos de pesquisas do CNPq.
Este livro reúne pesquisas desenvolvidas por membros do grupo,
estudantes de pós-graduação e docentes, da UFES e de outras
universidades do estado, bem como de servidores públicos
municipais e estaduais da área de educação, que são nossos
parceiros em projetos de extensão.
O GPTP, assim como este livro, é resultado de um grande
trabalho coletivo. A gênese do grupo se vincula ao encontro de
Lívia Moraes, recém-chegada à UFES como pós-doutoranda no
Programa de Pós-Graduação em Política Social (PPGPS), e
Vinicius Fernandes, então graduando em Ciências Sociais.
Formava-se, em 2014, o “Grupo de Estudos de Ontologia do Ser
Social”, que tão logo reuniu estudantes de diversos cursos em
torno da leitura do filósofo húngaro Gyorgy Lukács, ao longo de
dois anos.
Nos anos que se seguiram, tendo Lívia Moraes como
docente no Departamento de Ciências Sociais, em 2016, e como
professora permanente do PPGPS, em 2017, foi possível dar
passos adiante. A proposta se ampliava para uma temática mais
ampla, abrangendo os estudos sobre o “mundo do trabalho”.
Em torno de abril de 2017, o grupo foi criado
informalmente e, de início, reuniu estudantes de graduação em
Ciências Sociais e Serviço Social, bem como da Pós-Graduação
em Política Social. A diversidade quanto às áreas de formação,
nível acadêmico, raça/etnia, gênero/sexo, nacionalidades, etc.
de seus integrantes são uma das marcas distintivas deste
coletivo desde sua fundação. Isso tem contribuído na multidi-

19
mensionalidade e riqueza nos olhares, debates, pesquisas e
projetos desenvolvidos pelo grupo.
O desejo permanente de analisar criticamente nossa
sociedade e de contribuir desde a teoria e prática acadêmica,
científica e militante com sua transformação, tem unificado a
atuação do nosso grupo. Assim, com seis meses de
funcionamento do grupo, em 17 de outubro de 2017, decidimos
oficializá-lo sob o nome “Trabalho e Práxis”, expressando sua
vocação na atuação para além dos muros da universidade.
No mês de novembro daquele mesmo ano, João Alves,
servidor da Secretaria municipal de Educação do município,
entrou em contato com o intuito de realizar uma parceria para
atuação na implementação da Educação de Jovens e Adultos
(EJA) Profissional em Vitória. A ideia era conceber uma EJA
Profissional não tecnocrática, mas com uma concepção ampla e
crítica do mundo do trabalho. Os/as membros do GPTP
aceitaram o desafio com muita alegria.
Em 2018, o Professor Rafael Bellan, recém-concursado
na UFES, foi convidado a co-coordenar o Grupo de Pesquisa,
passando a compor e atuar fortemente na formação dos
estudantes. Com dois docentes, foi possível organizar melhor a
sistematização das atividades do grupo.
Com temáticas semestrais de estudos, com acento nas
bases teóricas de Marx, o GPTP tem desenvolvido debates tais
como: método do materialismo histórico dialético, teoria do
valor-trabalho, trabalho material/imaterial, trabalho produtivo/
improdutivo, superpopulação relativa, trabalho plataformizado,
dentre outros. Integrando uma perspectiva teórico-política
classista, antirracista, anti-patriarcal, anti-lgbtfóbica e
latinoamericanista. Desenvolvendo, enfim, um olhar crítico e
plural.
Uma série de eventos com docentes/pesquisadores/as
convidados/as foram promovidos e abertos a toda a
comunidade. Foram realizados dois lançamentos de livros, tendo
sido o primeiro com o professor e pesquisador Geraldo Augusto
Pinto (UFTPR) que lançou o livro em co-autoria com o professor
Ricardo Antunes (Unicamp), chamado “A fábrica da educação”,
pela editora Cortez; e o segundo, em co-realização com o Grupo
de Estudos Financeirização e Dinheiro Mundial, coordenado

20
pelo professor Paulo Nakatani, que lançou, dentre outros livros,
o “Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil IV”, organizado pelo
Professor Ricardo Antunes (Unicamp), pela Editora Boitempo,
com capítulos de Lívia Moraes e Fagner Santos, do GPTP.
O “1º Ciclo de Debates do Grupo de Pesquisa Trabalho e
Práxis”, aconteceu em dezembro de 2018. Contamos com a
contribuição dos professores doutores Victor Neves (UFES) e
Marcelo Húngaro (UNB), que abordaram a temática de
decadência ideológica; e Lalo Watanabe Minto (Unicamp), que
fez uma explanação com o tema ""Heteronomia e produtivismo:
ainda há espaço para o trabalho intelectual na universidade
pública?"
Algumas palestras também foram organizadas, para
apresentar resultados de pesquisas em torno do mundo do
trabalho, tais como “Enigma do precariado: debates a partir da
sociologia do trabalho”, com Vinicius Tomaz Fernandes
(Ufes/Unicamp) e “Custo baixo todo dia: regime de trabalho no
Walmart Brasil”, com Patrícia Rocha Lemos (Unicamp)
Ainda, com relação à atuação junto à comunidade
externa da universidade, em 2020, foi ampliada a atuação de
extensão, agora junto à EJA Profissional da Secretaria Estadual
de Educação do Espírito Santo, sob coordenação de Mariane
Berg. Docentes, pós-doutorandos e estudantes realizam
quinzenalmente formação de mais de uma centena de
professores da educação básica, somando-se EJA municipal e
estadual.
Em contexto de covid-19, o Grupo de Pesquisa Trabalho
e Práxis não deixou de atuar e criou uma nova atividade de
extensão para divulgação científica com temáticas que tratassem
dos impactos da pandemia sobre a classe trabalhadora e o
mundo do trabalho. Com a série de lives “Vida acima do lucro”,
desenvolveu, de abril a outubro de 2020, semanalmente,
debates qualificados sobre temas variados, tais como:
precarização e intensificação do trabalho; os dilemas da
reprodução social; saúde/adoecimento na pandemia, sexismo,
racismo e capacitismo sob incidência da covid-19; impactos
conjunturais em diversos países da América Latina, dentre
outros. Aos/às pesquisadores/as que aceitaram aos nossos

21
convites, somos gratos/as pela participação nesse espaço de
troca e aprendizagem.
A esta altura, o Grupo de Pesquisa Trabalho e Práxis é
composto por estudantes de graduação em Serviço Social,
Ciências Sociais, Design, Jornalismo, Letras, Direito e Geografia,
além da pós-graduação em Política Social e Educação.
Estudantes de outras universidades também participam do
grupo, tais como IFES, UVV e Fucape. Nacionalidades de vários
países também compuseram/compõem o grupo: Cuba,
Argentina, Uruguai, França e, claro, Brasil. O livro “Trabalho e
Práxis: novas configurações, velhos dilemas” é síntese desta
nossa pequena, mas profícua, história. Os artigos que
conformam o livro expressam os resultados das pesquisas de
seus membros, em seus diversos níveis acadêmicos e áreas de
formação. Por esse motivo, a grande a diversidade de temáticas
no sumário.
Estamos felizes em concretizar mais uma forma de
contribuir, mesmo que minimamente, a partir das nossas
pesquisas, com interpretação crítica da nossa realidade.
Desejamos a todos/as uma boa leitura. Com o convite, é claro,
para nos encontrarem nos espaços de atuação do GPTP, para
juntos/as continuarmos pensando, debatendo, transformando e
sonhando com a utopia revolucionária de uma sociedade por
oposição, ruptura e superação com a lógica do capital.

22
Individualização das relações de trabalho:
uma abordagem a partir do
Microempreendedor Individual (MEI)
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Vinicius Tomaz Fernandes 1

Introdução

A adoção do Microempreendedor Individual (doravante


denominado como MEI), a partir de 2009, impactou significa-
tivamente o mercado de trabalho brasileiro e repercutiu na
agenda de investigação científica do mundo do trabalho. Desde
então, o tema vem sendo abordado por distintas áreas do saber
acadêmico, em especial, sob ângulo do direito do trabalho,
encontrando análises consolidadas sobre sua forma
jurídica/legal. Já sob a perspectiva das relações de trabalho, o
cenário é distinto. Por seu caráter incipiente como política
pública de trabalho e renda – com um decênio recém-completo
– e, também, pelas diversas alterações em sua trajetória, apenas
recentemente foi possível para o campo da sociologia do trabalho
se debruçar de maneira mais detida sobre a repercussão do MEI
em nível das relações de trabalho, do mercado de trabalho e nas
trajetórias individuais dos trabalhadores.
O presente artigo consiste na sistematização do aporte
conceitual mobilizado para análise do fenômeno, bem como
destaca os desafios inconclusos da agenda investigativa da
sociologia do trabalho sobre o MEI. Para tanto, o texto foi
dividido em duas seções. Na primeira, discorremos sobre
categorias em elevado nível de abstração, buscando decompor
suas determinações mais gerais, derivadas da lógica de

1 Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas


(Unicamp). Mestre em Política Social pela Universidade Federal do Espírito Santo
(Ufes). Membro do Grupo de Pesquisa Trabalho e Práxis. Contato:
viniciustomazfernandes@gmail.com

23
reprodução do capital em sua fase contemporânea. Nesse
momento, os dois conceitos desenvolvidos são a individualização
das relações de trabalho e a força de trabalho just-in-time. A
segunda parte do artigo expõe as determinações de médio e curto
alcance da análise sociológica, evidenciando o caráter ambiva-
lente do MEI no mercado de trabalho brasileiro. É nesse ínterim
que tocamos nos temas do trabalho autônomo, formalização,
viração e pejotização das relações de trabalho.
Não se trata, por um lado, de compreender o MEI por ele
mesmo, tal como um ente isolado. Por outro, também nos
afastamos da perspectiva que o trataria apenas como decalque
da lógica do capitalismo em escala global. Faz-se necessário
compreender suas determinações em suas múltiplas dimensões,
bem como observar o caráter contraditório que cerca o
fenômeno.

Tendências do trabalho no capitalismo contemporâneo

O capitalismo contemporâneo estabeleceu novas


tendências ao trabalho, que remontam a alterações no padrão
de acumulação do capital observadas desde a década de 1970.
Tais metamorfoses podem ser sintetizadas no tripé neolibe-
ralismo, reestruturação produtiva e financeirização, impactando
nas possibilidades de desenvolvimento econômico, especial-
mente nos países periféricos, na organização do trabalho, na
estruturação do mercado de trabalho e em sua regulação. No
âmbito da organização do trabalho, a transformação do modelo
de acumulação rígido para a acumulação flexível (HARVEY,
2008), combinada ao padrão financeirizado de acumulação de
capital (CHESNAIS, 1996), é um processo cuja análise é
fundamental para a compreensão das transformações ocorridas
a partir desse momento histórico.
Das características estruturantes da acumulação
flexível, interessa destacar a alteração no padrão de consumo da
força de trabalho, cada vez mais subordinada à lógica just-in-
time. De acordo com Gallino (2007) é possível sintetizar esse
movimento como a aposta de que o trabalhador exerça sua
atividade apenas no momento em que, registrada a demanda de

24
certo bem e iniciado o processo produtivo, haja verdadeiramente
necessidade de seu trabalho.
Combinado a esse fenômeno, desenvolvem-se modali-
dades de trabalho cada vez mais individualizadas, nas quais o
trabalhador constitui uma mistura de “burguês-de-si-próprio” e
“proletário-de-si-mesmo” (ANTUNES, 2018). Isto é, ele não
atuaria mais apenas como trabalhador, vendedor da força de
trabalho, mas entendido como sujeito portador de “capital
humano”, devendo atuar como uma empresa individual que se
relaciona com outros agentes econômicos no mercado. Tais
movimentos se expressam, de forma complexa e desigual, em
nível nacional e internacional: se na realidade brasileira é
possível exemplificar a partir do MEI, poderíamos mencionar,
noutros países, os contratos de zero hora na Inglaterra, o
trabalho a voucher na Itália e os recibos verdes de Portugal.
São novas modalidades de trabalho que articulam o
léxico neoliberal, ensejando as perspectivas de “empreende-
dorismo”, “empregabilidade”, “flexibilidade”, “empoderamento”,
entre outros, que atuam ideologicamente com o intuito de
legitimação e autoculpabilização sobre os trabalhadores. Trata-
se, na ótica de Dardot e Laval (2016), de uma nova razão do
mundo – a razão neoliberal – que impõe aos sujeitos uma forma
de agir empresarial, tornam-se “empreendedores de si mesmos”.
Além de corresponder a uma doutrina econômica, o
neoliberalismo também produz relações sociais determinadas,
isto é, influi nas formas de comportamento dos indivíduos em
sociedade e deles – os indivíduos – sobre si mesmos. Produz-se
uma nova subjetividade. Nesse sentido, além de uma corrente
de pensamento e um conjunto de políticas econômicas e sociais,
o neoliberalismo se constitui como uma nova racionalidade – dos
governantes e dos governados – baseada no modelo empresa.
Nessa interpretação, o governo não é entendido apenas
como uma instituição, mas, sobretudo, como uma atividade: as
técnicas e procedimentos que visam dar direção à conduta dos
indivíduos. Por conseguinte, as formas dessa atividade, em que
os homens exercem um governo e conduzem a conduta de
outros, é definida como governamentalidade. O neoliberalismo
não consistiria tão somente como uma resposta à crise de
acumulação, mas a uma crise da governamentalidade e, para

25
tanto, fazendo-se necessário reinventá-la, isto é, introduzir uma
nova forma de orientar as condutas e práticas dos indivíduos, a
partir da forma-empresa e de uma subjetividade contábil
(DARDOT, LAVAL, 2016).
A racionalidade de mercado, portanto, exerce
dominância na atividade de governo e na construção da
subjetividade. Por um lado, ela mercantiliza radicalmente as
diversas dimensões da vida social e estabelece uma sistemática
concorrência entre os indivíduos. Por outro, na subjetivação
contábil-financeira, ela refaz a relação do indivíduo consigo
mesmo, que deve ser análoga à relação que se conserva entre
indivíduo e capital: em suma, o indivíduo enxerga a si próprio
como capital [humano], um valor que deve se valorizar na esfera
onde goza de maior liberdade, o mercado. É essa a libertação da
servidão moderna, a utopia hayekiana.
A ideia de Dardot e Laval (2016) acerca da governamen-
talidade neoliberal, com a generalização do modelo empresa e a
subjetivação contábil-financeira, conecta-se em grande medida
com a noção de trabalhador just-in-time enunciada por Francisco
de Oliveira (2000) 2. No momento de sua menção, o autor utiliza
o trabalhador just-in-time como sinônimo de trabalhador online,
isto é, aquele que deveria estar disponível para ser, via celular
ou pager, convocado ao trabalho. Remodelamos tal definição,
introduzindo o que concebemos como força de trabalho just-in-
time e demonstrando como ela se conecta com o mundo do
trabalho toyotizado e com indivíduo-empresa propagado pela
sociedade neoliberal.
A produção em série de mercadorias, homogeneizada e
massificada, dá lugar a uma organização da produção
responsiva às demandas do mercado, possibilitando que se
atendam as exigências de forma cada vez mais individualizada,

2 O conceito de trabalhador just-in-time terá maior desenvolvimento a partir de

Abilio (2019), correlacionando-o com o processo de uberização do trabalho e


assim sendo definindo: “Ser just-int-time significa que são transferidos ao
trabalhador custos e riscos da atividade; que este está desprovido de direitos
associados ao trabalho, enfrentando também a total ausência de garantias sobre
sua carga de trabalho e sua remuneração. Nada está garantido. Ou seja, o
trabalhador encontra-se à disposição da empresa, sem ter qualquer clareza ou
controle sobre a forma como seu trabalho é disponibilizado e remunerado”
(ABILIO, 2019, p. 3).

26
personalizada – trata-se de uma produção amplamente
conhecida como just-in-time. Ela não produz o máximo de
mercadorias que sua capacidade produtiva permite, já que o
risco é de que, não encontrando consumo correspondente, se
deteriorem. Nesse sentido – e apenas nele 3 – há uma determi-
nação da produção a partir da demanda.
Outra característica que nos cabe retomar é no manejo
do estoque. Se, para a produção em massa, exigia-se um grande
nível de estoques de matérias-primas, a produção just-in-time
reconfigura essa condição. Trata-se de operar com estoque
mínimo, realizando a reposição por meio do sistema kanban. O
estoque deve, portanto, responder à produção que, conforme
explicado, tem um grau de flexibilidade conforme se comporta a
demanda. Há, ainda pelo kanban¸ a vantagem de mobilizar
menos capital que permanecerá cristalizado em forma de
matéria-prima, permitindo maior mobilidade do capital parti-
cular.
Observemos que a produção flexível submete parte
significativa do capital constante – no caso, as matérias-primas,
já que não é possível fazer o mesmo com o maquinário – à
demanda do mercado. Por que o mesmo não poderia ocorrer com
o capital variável, a força de trabalho? Tendo a produção, sob o
signo da lean production, a capacidade de encolhimento e
expansão, a mesma lógica invade o padrão de compra e consumo
da força de trabalho, deslocando o antigo modelo de massifi-
cação do contrato indeterminado para contratos comumente
denominados como atípicos. É nesse sentido que se encontram
as pressões pela desregulamentação das legislações traba-
lhistas, que respondiam a um tipo de trabalho próprio do padrão
de organização do trabalho vigente anteriormente, em prol de
legislações que assegurem o máximo de liberdade para o capital
absorver e repelir força de trabalho encontrando o mínimo de
barreiras legais que limitem esses movimentos. Dessa forma, as
terceirizações e a descentralização produtiva se constituíram
como mecanismos do capital que possibilitam o movimento
anteriormente descrito de expansão e encolhimento de consumo

3Do ponto de vista da totalidade, há uma sobredeterminação da produção sobre


a demanda (MARX, 2011).

27
da força de trabalho, mas podendo não corresponder à forma
mais plena dessa mobilidade.
O ponto máximo do horizonte neoliberal, portanto, é da
oferta de força de trabalho just-in-time, não necessariamente
mediado por empresas, mas pelo indivíduo-empresa, dotado de
sua subjetividade contábil-financeira, ávido por valorizar a si
mesmo enquanto capital humano 4. Trata-se de assegurar a livre
mobilidade da força de trabalho, sem a regulação do Estado,
naquilo que é concebido como o único capaz de assegurar a
primazia do indivíduo: o mercado. Não se trataria da simples
retirada do Estado da economia, como comumente o neolibe-
ralismo é tratado na literatura sobre o tema. A oposição entre
mercado e Estado atrapalha na exata compreensão do
neoliberalismo enquanto tal, já que foi o próprio Estado um dos
grandes responsáveis pela introdução, na economia e na
sociedade, da lógica de modelo empresa e da concorrência.
Em suma, busca-se sintetizar com a força de trabalho
just-in-time é a necessidade, cada vez mais imperiosa, por parte
da reprodução do sistema capitalista de estabelecer relações de
trabalho gradativamente mais atomizadas, inclusive difundindo
o trabalho autônomo, “independente”, incentivando políticas de
pejotização e de empreendedorismo. Desta forma, aquilo que é
comumente tratado pela literatura como trabalho atípico
(VASAPOLLO, 2005), isto é, aquela modalidade de trabalho que
se afastaria do normal, configurando-se como anômalo e raro,
torna-se, ao contrário, cada vez mais difundido e habitual. Em
suma, tal como assinalou Castel (2010), aquilo que era
compreendido como atípico até o último quarto do século
passado se torna, imperiosamente, cada vez mais típico.

4 Ainda que, sob essa perspectiva, a individualização das relações de trabalho


seja elevada ao seu grau extremo, é importante considerar que existem limites a
esse movimento, como aponta Gallino: “[...] estamos diante da força de trabalho
que é definida pela literatura sobre os negócios modernos como o núcleo central
dos recursos humanos, formado em média de menos de um terço da força de
trabalho ocupada em uma empresa. É uma minoria sobre a qual as empresas
investem, porque constitui sua própria memória técnica e organizativa, a
capacidade de inovação, a lealdade aos valores e aos códigos de cultura
corporativos. É importante que essas pessoas sejam fiéis à empresa, um
propósito que pode ser traduzido do managementspeak com a expressão
fidelização dos colaboradores” (GALLINO, 2007, p. 109).

28
Se o período fordista correspondeu a um padrão de
contratação e gestão de força de trabalho coletivizado,
acompanhado por relativa homogeneização dos trabalhadores
(onde se destacaria o operariado fabril), o capitalismo flexível,
por sua vez, cofere ênfase a um padrão individualizado/
descoletivizado.

É inegável que com esta individualização das tarefas e das


trajetórias profissionais também se assiste a uma
responsabilização dos agentes. Cabe a cada um enfrentar
situações, assumir a mudança, e encarregar-se de si
mesmo. De uma certa maneira “o operador” é liberado de
constrangimentos coletivos que podiam ser opressivos,
como no quadro da organização tayloriana do trabalho.
Mas ele é de alguma forma obrigado a ser livre, intimado a
ser bem-sucedido, sendo ao mesmo tempo totalmente
entregue a si mesmo. Porque é claro que os constrangi-
mentos não desapareceram, e têm justamente mais
tendência de denunciar-se num contexto de concorrência
exacerbada e sob ameaça permanente do desemprego
(CASTEL, 2005, p. 47).

Em contraste com a estabilidade de vínculo, garantida


por legislações trabalhistas e organizações sindicais consoli-
dadas, o que se vê é a propagação de vínculos instáveis,
ausentes de proteções coletivas. É o indivíduo o responsável pela
gestão de sua inserção ocupacional. As trajetórias profissionais
se darão cada vez menos por carreiras previsíveis e ascendentes
no interior de uma mesma organização. O efeito desse
movimento é, por conseguinte, contraditório.
Ele representa, por um lado, uma libertação dos
trabalhadores de organizações rígidas do trabalho, cujo efeito
era de constranger seu desenvolvimento pessoal e profissional.
Este indivíduo, adaptado ao recente cenário, observará as novas
condições como oportunidades de maximização de chances,
potencializando suas capacidades. Por outro lado, há a formação
de uma massa de trabalhadores que se encontram incapazes de
responder à essa nova conjuntura, são aqueles que não se
adaptam e se vêem, ora com trajetórias irregulares e precárias
(sempre sob a sombra do desemprego), ora definitivamente
expurgados do mercado de trabalho. Acerca desses

29
trabalhadores, reafirma o autor “Em outras palavras e
repetindo-o: para aqueles que não dispõem de outros ‘capitais’ –
não somente econômicos, mas também culturais e sociais – as
proteções são coletivas ou não existem” (CASTEL, 2005, p. 48).
Evidenciamos, portanto, que não há uma abolição da
coerção no mercado de trabalho, mas uma mudança qualitativa
do tipo de coerção e de seus mecanismos de funcionamento. A
sociedade disciplinar, cuja característica é a negatividade do
dever, cede espaço à positividade do poder, própria do sociedade
de desempenho. De acordo com Han (2015) essa alteração
corresponde a um ganho de eficiência, tendo em vista que o
sujeito de desempenho maximiza sua produtividade para além
do que realizava sob a força do dever e da obediência.
Liberdade e coerção se cosubstanciam. O imperativo que
cabe ao sujeito é de, no gozo de sua liberdade, maximizar seu
desempenho. Livremente coagido a se aplicar em uma
autoexploração. Tão acentuada quanto a avidez de sucesso e
realização, é a produção de fracasso e frustração. São diretas as
consequências pessoais deste modelo de individualização das
relações de trabalho. Aos adaptados, trata-se de desenvolvi-
mento de suas características empreende-doras. À massa de
não-adaptados, a preponderância é de angústia, medo, ressenti-
mento, raiva, ansiedade e depressão 5.

O caráter ambivalente do MEI nas


relações de trabalho no Brasil

Tais considerações tomam relevância na medida em que


conferem uma interpretação unificada acerca do advento – e
ampla difusão – de novas formas de trabalho e de contratos, não
os considerando como fortuitos, em escala internacional 6 e, é

5 As consequências pessoais e psicológicas que destacamos são largamente


debatidas pela literatura especializada, como em Sennett (2008), Gallino (2007),
Boltanski e Chiapello (2009), Han (2015), Standing (2015).
6 Na França, em 2009, foi criada uma nova modalidade de trabalhador

autônomo, o chamado “auto- empreendedor” (self-entrepeneur). Na Espanha,


além dos trabajadores por cuenta propia, foi introduzido o conceito de
parasubordinados e no Reino Unido, em 1996, foi criada figura jurídica similar,

30
claro, nacional. No Brasil, são diversas as formas jurídicas, mais
antigas ou mais recentes, pelas quais se expressam esse
fenômeno. Desde a terceirização, em franca expansão desde a
década de 1990 (DIEESE, 2012; 2017), passando pelo MEI em
2009, até novas formas concebidas pela recente Reforma
Trabalhista, como o trabalho intermitente e o autônomo
exclusivo (CESIT, 2017).
Os exemplos supracitados vêm sendo, paulatinamente,
introduzidos na legislação brasileira e se expandindo no
mercado de trabalho, alcançando patamares quantitativos que
tornam essas formas condição sine qua non para compreender
as relações de trabalho no país. Importa considerarmos,
também, as características estruturais do mercado de trabalho
brasileiro, estabelecendo uma mediação em nível nacional das
tendências supracitadas.
Em que pese a aceleração da economia brasileira entre
as décadas de 1930 e 1980 e, a existência de uma legislação de
regulação do trabalho (materializada na CLT), o mercado de
trabalho brasileiro é marcado pela assimetria na relação entre
capital e trabalho, constituindo-se historicamente com um
caráter flexível e precário. Ao longo do tempo, determinadas
características estruturais se mantêm presentes, tais como: o
excedente estrutural de força de trabalho, a informalidade, a alta
taxa de rotatividade, alta informalidade, baixos salários e a
distribuição desigual de renda (KREIN, 2013).
Em síntese, ao lado de empresas e segmentos
estruturados, desenvolve-se um vasto leque de trabalho
informal, pequenas empresas e trabalho por conta própria que
passam ao largo das legislações e de qualquer proteção das
instituições públicas ou do sindicalismo. Não se tratam de
novidades recém introduzidas, mas, pelo contrário, formas
pretéritas que perduram, se metamorfoseiam e se atualizam.
Nos anos 2000, mesmo com avanços dos indicadores do
mercado de trabalho, como, por exemplo, na crescente
formalização, a tendência da flexibilização se expressou em
situações de heterogeneidade do mercado de trabalho e na
persistente precariedade das condições de trabalho. Apesar de

conhecida como worker (FILGUEIRAS, LIMA, SOUZA, 2019).

31
serem porta para o acesso a direitos sociais, as relações formais
de emprego não se constituíram como sinônimo de qualidade.
Concebido no âmbito do Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social (CDES) 7 e efetivado a partir do ano de 2009 8,
o Microempreendedor Individual (MEI) se expandiu e se
consolidou enquanto forma jurídica no mercado de trabalho
brasileiro. Seu objetivo inicial consistia na formalização de
trabalhadores autônomos de baixa renda (COSTANZI,
ANSILIERO, 2017), com a finalidade de garantir o acesso
previdenciário e a possibilitar a emissão de notas fiscais por
serviços prestados. Desde então, o MEI encontrou ampla adesão,
crescendo paulatinamente ano após ano e, então, atingindo o
quantitativo de 9,1 milhões de trabalhadores em 2019, conforme
o gráfico a seguir 9:

Gráfico 1. Registros Anuais do MEI (2009-2019)

Fonte: Portal do Empreendedor. Elaboração própria.

7 Mais especificamente, no Grupo de Trabalho em Micro e Pequenas Empresas,


Autogestão e Informalidade do CDES.
8 O Microempreendedor Individual foi instruído por meio da Lei Complementar

nº 128 de 19 de dezembro de 2008, tendo se iniciado efetivamente no ano


seguinte.
9 O movimento atípico do MEI em 2018 ocorreu devido ao cancelamento, por

parte do Governo Federal, de mais de 1,3 milhão de CNPJ’s que se encontravam


inativos.

32
Em paralelo ao referido processo de formalização dos
pequenos negócios e do trabalho por conta própria, o MEI se
associou, ao mesmo tempo, a pejotização das relações de
trabalho. Isto é, trata-se da transformação do empregado ou
“pessoa física” em pessoa jurídica prestadora de serviços,
dissimulando as relações de emprego. Concomitantemente à
eliminação do vínculo empregatício, o trabalhador se encontrará
desprovido de uma série de direitos trabalhistas e proteções
condicionadas por essa relação.
Tal movimento também adquire expressão quando
comparado com o de “Pessoa Jurídica sem empregados”
(denominada, a seguir como “PJ zero 10”), isto é, empresas de
uma só pessoa, que em 2009, período de efetivação do MEI,
somava um quantitativo de quase 4 milhões e 300 mil (KREIN et
al., 2018). Ainda que a “PJ zero” seja uma forma jurídica mais
antiga no mercado de trabalho no Brasil, a figura do MEI a
ultrapassa quantitativamente já no ano de 2014 e, desde então,
ano após ano, vem mantendo sua tendência de acelerado
crescimento 11. Paralelamente, a RAIS negativa interrompe a sua
trajetória de crescimento que vinha desde os anos 1990.
Na ocasião de sua criação, o faturamento máximo do MEI
fora fixado em 36 mil reais anuais, com contribuição
previdenciária de 11% do salário mínimo vigente (o que
correspondia a R$ 46,65). Além disso, o MEI já estaria isento de
uma série de impostos, como o Imposto de Renda (IR), Programa
de Inclusão Social (PIS), Contribuição para o Financiamento da
Previdência (COFINS), Contribuição Social sobre o Lucro Líquido
(CSLL), e pagando valores reduzidos de Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) - R$ 1,00 - e
Imposto sobre Serviços (ISS) - R$ 5,00. Alterações substantivas
ocorreram nos anos seguintes, especificamente em 2011 e 2016,
ampliando o escopo de faturamento e minimizando a contri-
buição previdenciária. Em 2011, a contribuição previdenciária –
que, como dissemos, até então era de 11% do salário mínimo –

10RAIS negativa.
11 “Em 2002, mais de 58% das empresas eram ‘PJ zero’; em uma curva
descendente, verifica-se que em 2016 eram em torno de 52%, deixando de
crescer em razão da implementação e difusão do MEI” (KREIN et al., 2018, p.
105).

33
é reduzida para 5% 12 e o teto de faturamento anual passa de 36
mil para 60 mil reais 13. O teto de faturamento seria novamente
alterado nos anos seguintes, passando para os 81 mil reais 14
(MARTINS, 2017).
Tais mudanças sugerem a possibilidade de que, desde
sua criação, as alterações das normativas sobre o MEI vêm
ocorrendo na direção de sua ampliação. Se, a princípio, o
objetivo era de formalização e inclusão previdenciária de
trabalhadores informais e autônomos pauperizados, paulatina-
mente suas mudanças possibilitam a adesão de um perfil
socioeconômico mais elevado. Como fator de atração desse
público pode-se elencar, em um primeiro momento, as
vantagens em relação à contribuição previdenciária, que
correspondia a 20% do salário mínimo para os autônomos e,
como MEI, ela é reduzida para 5%.
Ainda, como indicado por Oliveira (2013), ao menos um
quarto dos trabalhadores foram demitidos e, imediatamente,
migraram para o MEI, indicando que pode ser relevante a massa
de MEI’s criados para a substituição de empregos, em contratos
como prestadores de serviços. Outro fator a considerar é a
eliminação de burocracias: com a não obrigatoriedade de
contratação de um contador e a faciliadade para emissão de
documentos fiscais. É importante salientar, ainda, que o
processo de abertura do MEI é facilitado, gratuito e totalmente
realizado via Portal do Empreendedor, que possibilita o acesso
ao CNPJ e início de operação de imediato.
Conforme Constanzi e Ansiliero (2017), o perfil identifi-
cado pelos cadastrados no MEI é o seguinte: 59% deles são
homens, 57% são brancos, 60% tem ao menos o ensino médio
completo 15. Além disso, a maioria dos MEIs tem idade entre os

12 Lei n º 12.470 de 31 de agosto de 2011.


13 Lei Complementar nº 139 de 10 de novembro de 2011.
14 Lei Complementar nº 155 de 27 de outubro de 2016, que estabelece que o

valor do teto de faturamento em 81 mil reais ao ano entraria em vigor a partir


de 2018.
15 Os dados sobre escolaridade entre os MEI’s contrastam com o fato de que, no

universo dos ocupados, essa porcentagem não ultrapassa os 50% e, entre os


trabalhadores por conta própria, apenas 34% tem o ensino médio completo
(COSTANZI, ANSILIERO, 2017).

34
30 e 49 anos e seus rendimentos são superiores aos da
população ocupada e dos autônomos (39% dos MEI’s recebem
ao menos três salários mínimos mensais, enquanto essa
porcentagem é de 17% no total da população ocupada e de 15%
entre trabalhadores por conta própria).
Sobre os trabalhos desenvolvidos pelos MEI’s, segundo
dados do Portal do Empreendedor (2019), é possível encontrar
568 atividades da Classificação Nacional de Atividades
Econômicas (CNAE), reforçando seu caráter polimorfo e
multifacetado. Isto é, sob a mesma forma jurídica, encontram-
se uma miríade de trabalhadores que atuam em distintas
atividades econômicas: comerciantes, manicures, cabeleireiros,
motoristas, professores, contadores, chaveiros, promotores de
vendas, pedreiros, entre outros. Vale salientar que o comércio,
em seu conjunto de atividades, é responsável por parte
significativa das inscrições no MEI, alcançando um quantitativo
de mais de 2,5 milhões, o que representa quase um terço do total
de inscritos em 2018. Também reforça a hipótese de mudança
na focalização – que partiu dos autônomos de baixa renda e se
ampliou nas camadas de maior remuneração – evidenciando a
heterogeneidade de perfil que compõe o MEI.
Tratando-se do atual mundo do trabalho brasileiro,
também é possível estabelecer um paralelo entre a adoção do
MEI e a Reforma Trabalhista. As mudanças na legislação traba-
lhista, realizada especialmente em 2017, reforçam as tendências
de pejotização e de mascaramento dos vínculos empregatícios,
especialmente a partir da adoção da figura do “autônomo
exclusivo”, isto é, uma nova modalidade em que um trabalhador
poderá prestar serviços, como autônomo, a uma única empresa
sem que isso se configure como relação de emprego.
Os processos acima descritos, fortalecidos e expandidos
através da consolidação e reformulação do MEI, associam-se a
outros determinantes de maior generalidade, como a flexibi-
lização e precarização das relações de trabalho, ajustadas às
características do capitalismo contemporâneo, globalizado, sob
o domínio das finanças e sob hegemonia do neoliberalismo.
Destacamos, portanto, que o MEI se constitui sob o signo de
uma ambivalência latente, que se dá entre os polos da proteção
social e da flexibilização. Isto é, o MEI, apesar de ser uma

35
importante iniciativa de inclusão social – na medida em que
possibilitou a formalização e o acesso previdenciário a camadas
sociais historicamente alijadas dos direitos sociais vinculados ao
trabalho – está coadunado com o processo de estímulo ao empre-
endedorismo, à individualização das relações de trabalho e à
fragilização do sistema de direitos trabalhistas.
Em menor nível de abstração – atingindo o plano indivi-
dual – há distinções nas formas de adesão ao MEI por parte dos
trabalhadores, que vão desde as mais ideológicas àquelas de
caráter mais pragmático. Há, por um lado, adesão ao MEI sob o
impulso ideológico de se tornar empreendedor, valorando-o posi-
tivamente como relação de trabalho imbuída de autonomia,
autodeterminação, meritocracia e esforço individual, isto é,
encaremprnando a figura do self-made man. Por outro lado, é
possível identificar outro tipo de adesão ao MEI, este de
característica mais compulsória frente a um cenário de
desemprego e subuti-lização no mercado de trabalho, em que se
esgotam as alternativas. O MEI se tornaria, assim, via única de
saída para esses trabalhadores, associando-se à lógica da
viração (TELLES, 2001).
Dessa forma, nos afastamos de abordagens que
compreendem o autoemprego 16 como um resíduo remanescente
de épocas anteriores ao capitalismo (PRANDI, 1978; PAMPLONA,
2001). Segundo tal interpretação, essa forma de trabalho estaria
fadada ao desaparecimento ou, no mínimo, a sua paulatina
diminuição até compreender uma parcela irrisória do conjunto
dos trabalhadores. A contradição capital trabalho se localizaria,
por fim, no âmago das relações de trabalho propriamente
assalariadas.
De fato, como assinalou Prandi (1978), o autoemprego
não pode desprender-se por completo de sua condição histórica,
no entanto, observamos que o capitalismo não só se apropria
desse tipo de trabalho, como lhe confere novo sentido. O
autoemprego é potencializado pelas relações de trabalho
individualizadas e pelo padrão de compra e consumo just-in-time
da força de trabalho, tornando-se uma importante engrenagem
na acumulação capitalista contemporânea.

16 Compreende-se o trabalho por conta própria e autônomo.

36
Diferentemente do período analisado pelos autores,
atualmente o autoemprego ainda encontra reforço ideológico,
sendo legimimado e positivado pelo ideário do empreende-
dorismo. Em nosso objeto específico de análise, o MEI cumpre o
papel primordial de se constituir como forma jurídica na qual se
acopla o autoemprego, possibilitando que se efetivem relações
de trabalho acentuadamente individualizadas, mas não só. O
MEI também culmina por associar o autoemprego ao empre-
endedorismo e a cadeia de virtudes que cerca essa imagem: perfil
de lideraça, sujeito inovador, atuação dinâmica, transformador
de condições econômicas adversas; aquele que conta apenas
com o próprio esforço, à revelia do Estado e das políticas
públicas, para alcançar o sucesso.
Tal como assinou Colbari (2015), a reificação do
empreendedorismo por parte das sociedades ocidentais não
encontra lastro de otimismo quando as taxas de empreende-
dorismo são confrontadas com indicadores de prosperidade e
bem-estar. Países pobres, com altos índices de desigualdade
social e relações de trabalho significativamente desestruturadas
gozam de elavadas taxas de empreendedorismo, segundo
relatórios da Global Entrepreneurship Monitor (GEM). Não seria
possível, portanto, correlacionar empreendedorismo e
desenvolvimento sócio-econômico como variáveis diretamente
proporcionais.
Mesmo circunscrevendo o mercado de trabalho
brasileiro, a figura do MEI contrasta de maneira substantiva
com o ideário do empreendedor. Pesquisa realizada em 2019
pelo Sebrae 17 nos confere importantes elementos de análise: i) a
renda per capita do MEI é de R$ 1.375 mensais, valor quase
idêntico ao rendimento domiciliar per capita do Brasil em 2018,
segundo IBGE, de R$ 1.373 mensais; ii) 76% têm o MEI como
única fonte de renda; iii) 28% têm o MEI como única fonte de
renda da família.
Ainda segundo a mesma pesquisa, quando perguntados
sobre a motivação para aderir ao MEI, a resposta mais
recorrente foi “precisava de uma fonte de renda” com 33%,

17Pesquisa de Perfil do Microempreendedor Individual (Sebrae, 2019). Foram


aplicados 10.339 questionários, por telefone, com Microempreendedores
Individuais de todo o território nacional.

37
seguida por “queria ser independente”, com 32%, reforçando a
dualidade na adesão entre aqueles que optam por necessidade e
aqueles cuja opção se dá por oportunidade. Esse mesmo dado
toma contornos ainda mais instigantes quando estratificados
por faixa etária: dentre os entrevistados com 50 anos ou mais,
42% declararam aderir ao MEI por precisarem de uma fonte de
renda; já tomando entrevistados entre 18 e 29 anos, 41%
apotam a adesão pelo desejo de serem independentes. É factível,
portanto, a hipótese de que o tipo de relação com o MEI (mais
pragmática ou mais ideológica) seja diretamente influenciada
pela idade e pelo percurso já realizado no mercado de trabalho.
Por fim, destacamos que a própria pesquisa aponta uma
conclusão aparentemente contraintuitiva: o percentual de MEIs
ativos aumenta quanto menor for o IDH do município e quanto
menor for sua população. Reforça-se assim o argumento de que
o empreendedorismo, em geral, e o MEI, em particular, não são
indicadores de desenvolvimento sócio-econômico e bem-estar,
respondendo, pelo contrário, mais diretamente à necessidade de
viração dos trabalhadores em mercados de trabalho de baixa
estruturação.

Considerações finais

Ao longo do artigo, discorremos sobre o aporte conceitual


para uma análise sociológica do MEI que o compreenda no
âmbito do movimento do capital, das metamorfoses do mundo
do trabalho e, também, que capte seus processos internos de
conformação nas relações de trabalho. Acentuamos que há
elementos de novidade e há elementos pretéritos (ainda que
renovados). Sob essa perspectiva, o dado é que o MEI pode ser
observado de forma frutífera no bojo das interpretações que
mobilizam conceitos em voga na teoria sociológica: empreende-
dorismo, flexibilização, capital humano, subjetividade contábil-
financeira, empresa de si mesmo. Por outro lado, o fenômeno do
MEI se associa a elementos anteriores estruturantes das
relações de trabalho no Brasil, sendo sua compreensão
impossível sem considerarmos o trabalho autônomo, a informa-

38
lidade, a viração e a histórica assimetria da relação entre capital
e trabalho no país.
Persistem desafios e lacunas de uma agenda investiga-
tiva sobre o MEI, abrangendo tanto as questões que tocamos no
texto, quanto questões a serem desenvolvidas. Em primeiro
lugar, compreender o MEI para além da chave analítica da
precarização, considerando o seu efeito ambivalente nas
relações de trabalho e nas trajetórias individuais dos trabalha-
dores. Outro relevante fator a ser explorado é a maneira pela
qual esses trabalhadores aderem ao MEI, oscilando entre formas
mais ideológicas (aderindo ao ideário de empreendedorismo) e
formas mais pragmáticas (associando-se de maneira mais direta
à viração).
Se é verdade que a teoria sociológica tem identificado
uma heterogeneização da classe trabalhadora, deixando para
trás a hegemonia da figura do operário padrão fordista, ascende
um novo perfil de uma classe trabalhadora localizada majoritari-
amente do setor de serviços. Multifacetada, em gênero, cor, faixa
etária e atividade, não pode ser resumida em uma só imagem.
Sem a percepção dos trabalhadores por conta-própria e dos
MEIs, no entanto, restará incompleta.

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42
Trabalho jornalístico, capitalismo
de plataforma e reificação: a alienação
como processo
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Rafael Bellan Rodrigues de Souza 1

Introdução

As mudanças estruturais do sistema midiático


contemporâneo acompanham, com certa dose de autonomia, a
acumulação financeira no bojo do desenvolvimento do capital no
século XXI. A propalada crise do jornalismo, como já demons-
tramos em outro estudo (SOUZA, 2017), surge como um
epifenômeno de uma crise profunda que afeta a contradição
entre capital e trabalho. O jornalista torna-se a cada dia mais
um trabalhador da informação (NEVEAU, 2010) flexível e passa
a ser constantemente interpelado por formas intensas de
precarização e exploração (FÍGARO, 2013). O sistema sociometa-
bólico do capital (MÉSZÁROS, 2002) ganha novos contornos com
o advento do capitalismo de plataforma (SRNICEK, 2018) –
identificado também na literatura crítica como capitalismo big
data (FUCHS, 2019) e capitalismo comunicacional (DEAN,
2005), ou criticado em seus processos de datificação e controle
por Zuboff (2018), na expressão capitalismo de vigilância.
Porém, independente da caracterização contingencial, o capital
ainda deve ser entendido como um “motor econômico e suas
racionalidades econômicas irracionais associadas” (HARVEY,
2016, p. 246). Assim, perpassa sua dominação social os intensos
mecanismos de alienação e reificação (coisificação das relações
sociais).
Essa articulação do modelo de produção e reprodução
social com a tecnologia informacional torna-se o território em

1 Rafael Bellan Rodrigues de Souza. Professor do Programa de Pós-Graduação

em Comunicação e Territorialidades da Universidade Federal do Espírito Santo


(Ufes). Doutor em Ciências Sociais pela Unesp com pós-doutorado em
Comunicação pela USP, Brasil, rafaelbellan@yahoo.com.br

43
que a produção jornalística se expressa, sendo que os produtos
circulam na esfera midiática da internet e são conduzidos pelos
fluxos dessas redes sociais privadas. Além disso, a elaboração
das rotinas produtivas também é delimitada pela mediação
desses aparatos e dispositivos, o que altera os mecanismos
tradicionais de elaboração das notícias. A práxis noticiosa no
século XXI, não obstante, enreda-se na subsunção ao capital,
potencializando a alienação e o estranhamento. “A violência da
tecnologia está na maneira como ela corta o elo entre a pessoa e
a interação sensorial com o mundo” (HARVEY, 2016, p.246).
Desta feita, o objetivo deste trabalho é demonstrar como
opera a amarração do trabalho jornalístico com as tecnologias
do capitalismo comunicacional, elucidando como ele poten-
cializa formas arrojadas de alienação/estranhamento na
subjetividade dos jornalistas, aparecendo como fator limitante
do potencial do trabalho em sentido humanizador. Como aponta
Lukács (2013), o estranhamento sempre possui um caráter
histórico-social e é desencadeado de maneira nova pelas forças
concretas atuantes em cada formação dada em um período
temporal.
De natureza teórico conceitual, o estudo faz parte de uma
busca pelos fundamentos ontológicos do jornalismo no século
XXI e ambiciona seguir a trilha do materialismo histórico
(NETTO, 2011) como método de abordagem da problemática do
binômio comunicação e trabalho.

Alienação/Estranhamento

Ao tratar de alienação, segue-se neste artigo a linhagem


marxista defendida por Mészáros (2006), que resgata os quatro
sentidos principais da categoria, ou seja, os dispositivos de
estranhamento em relação à natureza, ao homem em si mesmo
por meio da alienação de sua atividade produtiva, ao homem
com seu ser genérico e do homem com seus próximos. Em linhas
gerais a alienação seria a perda de controle da humanidade
sobre sua produção, transferida para uma “força externa que
confronta os sujeitos como um poder hostil e potencialmente
destrutivo” (p.14). Ao pensarmos esse contexto no interior da

44
nova configuração da ascensão tecnológica das redes informaci-
onais, percebemos a ampliação de processos de reificação 2 das
práticas sociais, em especial as comunicativas.
Isso afeta o trabalho jornalístico na maior parte de suas
expressões, das redações enxugadas pelos passaralhos
constantes, mas também pelas iniciativas alternativas que
operam na órbita do modelo produtivo hegemônico, e, assim,
dependem dos algoritmos das redes para alcançar visibilidade.
Ou seja, há um controle externo, privado, capitaneado pelas
classes dominantes, que delimita o pôr teleológico (LUKÁCS,
2013) do repórter. O capitalismo financeirizado da era
informacional explora o mais-valor do trabalho “não importando
se suas atividades são mais intelectualizadas ou mais manuais”
(ANTUNES, 2019, p.31).
As plataformas digitais e as Tecnologias de Informação e
Comunicação (TICs) são um elemento de destaque entre os
novos mecanismos utilizados pelo capital em contexto de crise
(o que lhe coloca na busca de constantes reestruturações
voltadas à maximização dos lucros perdidos nas últimas
décadas). Os dispositivos de alienação crescem com a nova
lógica produtiva, que apaga as diferenças entre o tempo de vida
dentro e fora das atividades laborais. A combinação entre a
plataformização, a informalidade e flexibilidade, somada ao
ideário neoliberal, afetam a já corroída profissão de jornalista.

É como se todos os espaços existentes de trabalho fossem


potencialmente convertidos em geradores de mais-valor,
desde aqueles que ainda mantêm laços de formalidade e
contratualidade até os que se pautam pela aberta
informalidade, na franja integrada ao sistema, não

2 “É no modo de produção que universaliza a lógica mercantil – isto é, no modo

de produção capitalista – que o fetichismo alcança a sua máxima gradação: nas


sociedades em que esse modo de produção impera, as relações sociais tomam a
aparência de relações entre coisas. Por isso mesmo, o fenômeno da reificação (em
latim, res = coisa; reificação, pois, é sinônimo de coisificação) é peculiar às
sociedades capitalistas; é mesmo possível afirmar que a reificação é a forma
típica da alienação (mas não a única) engendrada no modo de produção
capitalista. O fetichismo daquela mercadoria especial que é o dinheiro, nessas
sociedades, é talvez a expressão mais flagrante de como as relações sociais são
deslocadas pelo seu poder ilimitado” (NETTO e BRAZ, 2006, p. 93).

45
importando se as atividades realizadas são predominan-
temente manuais ou mais “intelectualizadas”, “dotadas de
conhecimento” (ANTUNES, 2018, p. 67).

No intuito de compreender os aspectos essenciais que


envolvem a problemática da emancipação humana, na linha de
Marx e Lukács, Mészáros (2006) está convencido de que o
fundamento da sociedade em que vivemos é o trabalho. Em seu
importante estudo sobre a alienação, o marxista húngaro realiza
uma leitura aprofundada desse tema nos Manuscritos
econômico-filosóficos de Marx (2001), demonstrando como esta é
uma noção chave para a compreensão da lógica desumanizadora
da sociedade capitalista. Contra os que esquartejam o pensa-
mento do filósofo da práxis em fases autônomas (jovem, maduro,
economista, político, socialista, sociólogo, etc), Mészáros
demonstra que o conceito de alienação permaneceu uma
importante peça do edifício teórico de Marx durante toda sua
vasta obra.
A formação de sujeitos históricos enfrenta um complexo
de alienações, cujo fundamento é o estranhamento das próprias
potencialidades do ser humano que não se reconhece na
atividade que produz. O estranhamento que acontece no
universo ideológico leva à aceitação do cotidiano da vida como
algo irrevogável, em que não há a menor possibilidade de uma
alternativa societária.
A alienação é um sintoma histórico-social em que a
humanidade cria obstáculos reais ao seu desenvolvimento
impedindo, pelas suas próprias forças, a plenitude das relações
sociais. Toda forma de alienação é um auto-alienação: os
homens criam historicamente formas desumanas de convívio
social. O capital surge como uma relação social criada pelos
homens para dominar toda a sociedade e que subjuga a própria
humanidade aos seus imperativos incontroláveis. Categoria
fundante do ser social, o trabalho passa a ser subsumido ao
capital e é esse sistema que impõe a alienação dos homens, sua
perda de controle a um poder que lhe é externo.

46
O conceito de alienação 3, nesse sentido, compreende
tanto o estranhamento do homem em relação à natureza e a si
mesmo, quanto à expressão processual da relação homem-
humanidade e homem e homem.

Em primeiro lugar, o trabalho é exterior ao trabalhador, ou


seja, não pertence à sua característica; portanto, ele não
se afirma no trabalho, mas nega-se a si mesmo, não se
sente bem, mas, infeliz, não desenvolve livremente as
energias físicas e mentais, mas esgota-se fisicamente e
arruína o espírito. Por conseguinte, o trabalhador só se
sente em si fora do trabalho, enquanto no trabalho se
sente fora de si (MARX, 2001, p. 114).

O trabalhador lida com sua atividade como algo fora de


si próprio, sua relação com o produto do seu trabalho torna-se
um contato com um objeto estranho, que o domina. Assim, a
relação do trabalhador com o mundo externo sensível, criado
pelos homens, é uma relação com um universo irreconhecível e
hostil. O homem, como criatura genérica, ou seja, parte de uma
mesma espécie em constante mudança social, fragmenta-se,
pois o trabalho alienado quebra o vínculo, por meio da atividade
produtiva, entre o indivíduo singular e as pretensões universais
do homem como espécie.

Assim como para o homem como para o animal, a vida


genérica possui a sua base física no fato de que o homem
(como animal) vive da natureza inorgânica, e uma vez que
o homem é mais universal do que animal, também mais
universal é a esfera da natureza inorgânica de que ele vive.
Como as plantas, os animais, os minerais, o ar, a luz, etc.,
constituem, do ponto de vista da teoria, uma parte da
consciência humana, na condição de objetos da ciência
natural e da arte – são a natureza inorgânica espiritual do
homem, os seus meios de vida intelectuais, que ele deve
primeiro preocupar-se para a posse e efemeridade -, da
mesma forma, do ponto de vista prático, forma uma parte
da vida e das atividades humanas (MARX, 2001, 116).

3 Achamos importante a distinção dada por Ranieri (2001) para as noções

de alienação e estranhamento, contudo, preferimos acompanhar Mészáros


(2006) que mantém a categoria de alienação como entroncamento central.

47
O salto ontológico promovido pelo homem surge da
possibilidade que ele detém de modificar a natureza para suprir
suas necessidades. Ao transformar a natureza, o homem cria o
mundo dos homens a partir do qual se desenvolve superando as
barreiras naturais e as necessidades que lhe são impostas. O
homem e a natureza, por meio do trabalho, desenvolvem uma
relação metabólica, algo que é apartado pela tirânica força da
propriedade privada. Não há na sociedade do capital
possibilidade de uma relação humanizada do sujeito com o
trabalho e com seu produto, “(...) quanto mais o trabalhador
produz, menos tem de consumir; quanto mais valores cria, mais
sem valor e mais desprezível se torna; quanto mais refinado o
seu produto, mais desfigurado o trabalhador (...)” (MARX, 2001,
p. 113). No capitalismo, a relação ontológica entre indivíduo
singular e gênero humano se quebra, destruindo a ponte que
conecta, pela produção da vida, a universalidade do homem.
A categoria trabalho é considerada o elemento fundante
do ser social porque é a partir do intercâmbio orgânico com a
natureza que o homem se realiza e, diferentemente dos outros
animais, cria novas necessidades e possibilidades, proporci-
onando um sistema reprodutivo que requer novos complexos
sociais para atender às demandas recém-surgidas. Esses
complexos, erguidos por uma nova situação criada pelo trabalho
(em que o homem se distancia das barreiras naturais, conforme
dizia Marx), todavia, também geram novas demandas e
potencialidades, e exigem novos complexos, desenvolvendo a
totalidade social. As formas históricas de trabalho são criadoras,
fundantes, das suas formações sociais específicas. Mesmo
assim, vale destacar que a totalidade social não se restringe ao
trabalho, mas possui com ele uma relação entre o polo fundante
e o fundado.
No sistema sociometabólico do capital (MÉSZÁROS,
2002) a oposição existente entre capital e trabalho, sendo o
primeiro o gerador da alienação da humanidade, concretamente
proporciona a cisão entre esta e a atividade laborativa, cuja
potencialidade onto-criadora se esvai com a perda do sentido do
trabalho. A alienação jamais pode ser reduzida ao mundo
econômico, já que a subjetividade do ser social defronta-se com
um mundo em que a aparência se desvincula da essência. A

48
complexidade da alienação na produção da vida econômica
possui reflexos nas diversas formas de pensamento. A auto-
alienação do homem congrega manifestações
institucionalizadas, como o trabalho assalariado, a propriedade
privada, o dinheiro, a renda, o lucro..., bem como se apresenta
também por intermédio da religião, da filosofia, da arte, da
ciência... “Fica claro a partir da abordagem marxiana que as
várias esferas teóricas refletem – de uma forma necessariamente
alienada, correspondente a uma série de necessidades alienadas
– a alienação e reificação efetivas das relações sociais de
produção” (MÉSZÁROS, 2006, p. 106).
As mediações de segunda ordem do capital 4 são os meios
alienados de produção e suas personificações, a saber, o
dinheiro, a produção para a troca, as variedades da formação do
Estado pelo capital, o mercado, mecanismos que se sobrepõem
à atividade produtiva essencial dos indivíduos sociais. São essas
mediações que impedem a plena emancipação humana, no
sentido de resgatar e efetivar o vínculo essencial e ontológico
entre homem e natureza expressa pela mediação de primeira
ordem.
Na crise estrutural do capital anunciada por Mészáros
(2002), cuja conjuntura aponta para uma multiplicação dos
valores conservadores, que retiram o sentido colaborativo da
sociabilidade, fetichizando a vida social, eternizando o valor-de-
troca como definidor da ordem metabólica, percebemos uma
total incompatibilidade entre a necessária superação da
alienação e os sujeitos da emancipação humana.
Não se pode minimizar o fato de que os homens
permanecem enraizados no metabolismo do capital e são alvos
de inúmeras formas de estranhamentos disponíveis no atual
contexto de capitalismo financeiro apoiado em tecnologias
informacionais. Um dos principais mecanismos é a
interiorização dada pelo toyotismo dos valores reificados das
empresas, obrigando o trabalhador a “vestir a camisa” da firma,

4 Para Mészáros (2002) as mediações de primeira ordem atendem a manutenção


da vida humana fundada no intercâmbio social com a natureza, enquanto nas
mediações de segunda ordem a existência social passa a ser governada por um
ente que lhe é estranho, o capital, cujas engrenagens garantem sua eternização
e naturalização como sistema sociometabólico.

49
abraçando o projeto, as ideias, a visão de mundo, dos burgueses.
A empresa flexível expropria o intelecto do trabalhador, no
sentido de fazer com que ele sublime os interesses ontologica-
camente antagônicos aos seus. Esse modelo penetra a totalidade
dos complexos sociais, tornando o fetichismo e a reificação o
modelo da subjetividade alienada e ampliando o engajamento
estranhado do exército de reserva trabalhista sob as demandas
do capital em tempos de plataformização.

A atividade é atividade alienada quando assume a forma


de uma separação ou oposição entre “meios” e “fim”, entre
“vida pública” e “vida privada”, entre “ser” e “ter”, e entre
“fazer” e pensar”. Nessa oposição alienada, “vida pública”,
“ser” e “fazer” se tornam subordinados como simples meios
para o fim alienado da “vida privada” (“gozo privado”), do
“ter”, e do “pensar”. A autoconsciência humana, em lugar
de atingir o nível de verdadeira “consciência genérica”,
nessa relação – em que a vida pública (a atividade do
homem como ser genérico) é subordinada, como um meio
para um fim, à mera existência privada – torna-se uma
consciência atomística, a consciência alienada-abstrata do
simples “ter”, identificado com o gozo privado.
(MÉSZÁROS, 2006, p. 167-168)

As tendências fornecidas pela ordem do mercado, são os


marcos referenciais dos trabalhadores, o que causa uma
barreira objetiva e subjetiva às iniciativas mais ofensivas da luta
antissistêmica. Mas em períodos de crise, mesmo que limitada
pelo horizonte alienador descrito, torna-se perceptível à
consciência da classe a força abusiva e violenta de uma
(in)civilização que massacra o gênero. A força do capital não
consegue dar conta de realizar o desenvolvimento genérico do
homem, algo de certa forma acenado pela constante vitória sobre
a escassez proporcionada pelo crescimento das forças
produtivas.

50
Jornalista como trabalhador da informação

Um exame do mundo do trabalho em tempos de


plataformas digitais aponta para a intensificação da alienação
do jornalista como trabalhador da informação. Isso se dá
principalmente com o reconhecimento, na esteira de Morozov
(2018), de que a regulação algorítmica, independente de seus
possíveis benefícios, caminha para a criação de um domínio
privado direcionado pelas empresas de tecnologias, o que as
coloca como arquitetas do neoliberalismo e sua governamenta-
lidade (DARDOT e LAVAL, 2016). As aceleradas mudanças
tecnológicas são consolidadas pela exploração de dados que
transforma os detalhes da vida de um indivíduo em funções
mecânicas a serem ajustadas pela corporação privada (ZUBOFF,
2018). A tecnologia informacional surge como “uma arma
apontada aos fracos e pobres” (MOROZOV, 2018, p.173),
ampliando as formas de reificação do capitalismo tardio.
Os modelos de gestão flexível e algorítmica, a intensa
individualização dos trabalhadores, visto como “empresas de si
mesmos”, a multifuncionalidade e disponibilidade total para as
atividades, são algumas características da expropriação do
intelecto do trabalhador pelo capital. O momento contempo-
râneo do sistema de metabolismo do capital tem se atrelado
enquanto produto e produtor de avatares tecnológicos
emergentes como “(...) plataformas, big data, fabricação aditiva,
robótica avançada, aprendizagem automática e internet das
coisas” (SRNICEK, 2018, p.9). O foco nas ditas plataformas
coloca-se em tela por conta de um novo modelo de negócios,
monopolizados por grandes gigantes high tech, que consiste em
extrair e controlar uma quantidade gigantesca de dados. Nesse
ínterim, as plataformas são mecanismos do capitalismo
financeirizado gerar rentabilidade e produzir negócios com os
recursos adquiridos por meio da circulação de informação. Com
a crise manifestada em 2008, os investimentos em tecnologia
passam a conduzir a necessidade do capital em recuperar a taxa
de lucros perdidas nas últimas décadas, algo atestado por
Mészáros (2002) como parte dos terremotos que afetam a
estrutura do sistema.

51
No mundo do trabalho, a informalidade, as subcon-
taaratações e a deterioração de direitos historicamente
constituídos, já estavam em andamento, mas é inegável o quanto
a nova economia de compartilhamento impulsiona esses
mecanismos, principalmente com uma massa depauperada
desempregada em busca de alternativas de renda (SHOLZ,
2016).
Entendendo as plataformas como “infraestruturas
digitais que permitem que dois ou mais grupos interajam”
(SRNICEK, p. 45), percebe-se que a intermediação comunicativa
de usuários, assinantes, clientes, anunciantes, provedores de
serviços, mercadores, distribuidores, etc, produz uma esfera em
que transações econômicas são promovidas. Quem controla as
plataformas, portanto, gere os formatos e as regras do jogo,
potencializando a circulação e também a produção de merca-
dorias e serviços. Essas esferas digitais tornam-se, assim,
infraestruturas básicas para a realização dos negócios capita-
listas.
Antunes (2018) aponta que os trabalhadores vinculados
às tecnologias de informação e comunicação (TICs) experienciam
formas de reificação específicas desses setores do ramo
“intelectualizado”, visto que as plataformas traçam novas formas
de envolvimento da subjetividade na interação existente entre o
trabalho vivo e a maquinaria informacional. “Como a máquina
não pode suprimir o trabalho humano, é necessária uma maior
interação entre a subjetividade que trabalha e a nova “máquina
inteligente”. Nesse processo, o envolvimento interativo maquí-
nico pode intensificar ainda mais o estranhamento do trabalho
(...)” (p. 107). Esse desenvolvimento cria rachaduras na vida
cotidiana, distanciando o homem de uma vida autêntica e
autodeterminada.
O trabalho jornalístico tem sido capturado em suas
mediações produtivas e na circulação de seu produto (que caça
audiências para as redes) pela estrutura informacional da TICs.
A particularidade de sua atividade situa-se cada dia mais na
valorização do valor, mas claramente resultante de um trabalho
social, coletivo, complexo e combinado (ANTUNES, 2018, p.51).

52
O trabalhador da informação, o jornalista, portanto,
compõe a classe trabalhadora ampliada que se expande
globalmente, sendo alvo da alienação universal que acomete o
modo de produção capitalista em tempo de cooperação complexa
mediada por máquinas informacionais. Além disso, o trabalho
vivo do jornalista torna-se o capital variável frente a
automatização do setor da produção material (BOLAÑO, 2018).
Acreditamos que o jornalista enfrenta as consequências de uma
extrema ampliação, na gestão de seu trabalho e da circulação do
produto noticioso, de mecanismos dados por um novo estágio da
exploração do trabalho, via TICs e plataformas digitais.

O termo “novo” diz respeito a existência de um


aprofundamento e radicalização da subsunção real do
trabalhador ao capital a partir da utilização das
plataformas digitais, sendo que tal radicalização decorre
da capacidade existente nas plataformas de gerenciar em
tempo real todas as atividades desempenhadas pelo
trabalhador coletivo à ela subordinado, aumentando
assim o controle do capital sobre o processo de trabalho e,
consequentemente, atualizando como os processos de
produção tipicamente capitalistas se expressam na
contemporaneidade (AMORIM e MODA, 2020, p. 62).

A total subsunção real dos jornalistas ainda aparece


como uma tendência, dada pela ampliação da plataformização
de suas frentes de ação. Figueiredo (2016, p. 70), por exemplo,
aponta que há uma impossibilidade da subsunção real do
capital sobre o trabalho jornalístico. Para ele, a relação com as
fontes, desenvolvidas de forma muito própria por cada
profissional; a estética textual, também específica e dependente
de certo talento desenvolvido; e a necessária apuração e
interpretação do material coletado, são características
insubstituíveis pela maquinaria do capital. Todavia, percebemos
que o grau de estranhamento envolvidos na mecânica do
trabalho jornalístico é capaz de (como item do pacote das
mediações de segunda ordem) distanciar os repórteres de uma
possibilidade crítica e de potencial superação da reificação
turbinada pelas TICs.
Os modelos de atuação do jornalista em ambientes
digitais, nas chamadas redações virtuais e também a sempre

53
cobrada interação destes nas redes sociais demonstram o
quanto as rotinas produtivas dos trabalhadores da informação
são atravessadas pelas plataformas. A gestão do trabalho utiliza
de mecanismos que, longe de dominar o complexo como a Uber,
modificam a relação entre o tempo de trabalho e da vida, e
intensifica o domínio sobre o trabalho, hegemonicamente
direcionado pela lucratividade dos conglomerados de
comunicação digital que dominam, via seus algoritmos, a
mediação jornalística com a sociedade. Há nesse contexto a
disseminação do neossujeito (DARDOT e LAVAL, 2016) que
encarna a pele da figura do “empreendedor”.

A transformação do trabalho em serviço e a fusão dos


trabalhadores em empreendedores andam de mãos dadas.
O neologismo empreendedor precário (entreprécariat), que
se afirma hoje na Europa, resume esses dois aspectos da
dinâmica histórica em que se situa a ideologia do trabalho
dos gigantes da economia de plataformas. (CASILLI, 2020,
p. 18)

A ascensão do perfil do empreendendor de si mesmo,


trabalhador informal sem direitos trabalhistas que, no Brasil, é
a regra, coloca em cena uma contradição entre o futuro do
trabalho, a mudança tecnológica e o papel da mão de obra para
o capital. A ideologia difundida aponta que as inovações
tecnológicas são decisivas para a lucratividade frente aos
concorrentes, mas a imensa exclusão dada pelo desemprego
estrutural traz “um gigantesco excedente de populações
redundantes potencialmente rebeldes” (HARVEY, 2016, p. 107).
Não obstante, a alienação universal empreendida pelo
sistema sociometabólico do capital tiraniza a subjetividade,
expandindo uma personalidade típica adequada a forma
hegemônica de produção mediada pelas TICs. Há nesse
desenvolvimento uma hiperinflação da individualidade, colo-
cando os trabalhadores no papel de empresas, contaminados
pela lógica contábil de perdas e ganhos, flexíveis em todos os
complexos de sua sociabilidade e com seus pôres teleológicos
(LUKÁCS, 2013) aviltados pela expansão irrefreável do capital
que se multiplica nas redes aliado à corrosão e expropriação de
trabalho vivo.

54
Contaminados pelo espírito comercial, escravizados pela
universalização da forma mercadoria, os trabalhadores do
século XXI são desumanizados e tornam-se ferramentas da
reificação das relações sociais. “A realização egoísta é a camisa-
de-força imposta ao homem pela evolução capitalista, e os
valores da ‘autonomia individual’ representam a sua glorificação
ética” (MÉSZÁROS, 2006, p. 237). O individualismo burguês,
agora reprojetado no epíteto de “perfil” na seara das big techs,
apenas amplia o abismo entre o homem e o seu gênero.
De forma particular, os jornalistas são profissionais que
tem passado por uma gradual aceleração desses estranha-
mentos e com a transformação da infraestrutura de seu trabalho
- da mídia de massas para a massa de mídias como diz Ramonet
(2012) - são interpelados pelas plataformas digitais nas
gramáticas operacionais de seu trabalho (rotinas produtivas),
mas também na difusão do conteúdo produzido no campo das
mediações algorítmicas das plataformas de publicidade
(SRNICEK, 2018). O jornalismo hegemonizado pela mediação
digital e as mutações advindas da ascensão dos smartphones e
consequente aumento do alcance das redes sociotécnicas
produziram novos modelos de atuação para o profissional da
comunicação.

O trabalhador da informação é um homem ou uma mulher


limitado/a por muitos constrangimentos. Definem-se o
tamanho e formato dos seus trabalhos por um programa
de computador; trabalhando num espaço aberto, ele/ela
não tem nem um espaço de escritório particular; na maior
parte do tempo, ela/ele permanece na sala de redação,
onde o telefone e a tela substituem o velho trabalho de
campo (NEVEAU, 2010, p.43).

A tão criticada figura do jornalismo sentado, que significa


a apuração feita de forma aligeirada, à distância dos
acontecimentos, corre, assim, o risco de virar regra. A possível
práxis noticiosa que poderia contribuir em processos de
conhecimento do singular, cristalizado pelo jornalismo (GENRO
FILHO, 2012), é fagocitada pelas regras e limites da maquinaria
informacional dos grandes conglomerados da internet. Esse
movimento cimenta dois eixos contraditoriamente próximos, a

55
saber, a) o estranhamento da subjetividade do repórter,
interpelado em sua atividade pelas plataformas de comunicação
(que amplia o controle dos contratantes) e b) na difusão alienada
de seu produto nas malhas das redes sociais, constrangido pelos
ditames da arquitetura dessas redes em favor da economia da
atenção. Nesses fluxos de quantificação de interações e
exploração de dados, a veracidade dos conteúdos não é o mais
importante, sendo que a amplitude do irracionalismo circula
com rapidez no ecossistema tecnológico do capitalismo tardio. O
exemplo das propaladas fake news é uma expressão fenomênica
da comunicação nas redes informacionais. Os agentes que
comandam a plataformização no setor jornalístico irrompem de
forma negativa a positividade social dessa prática, como dito,
centrada na disseminação de conhecimentos capazes de oferecer
uma cartografia dos fatos sociais.
A intensificação dos processos de alienação dados pelo
capitalismo em momento de plataformização do trabalho
acomete os jornalistas não só do ponto de vista do
enfraquecimento de sua subjetiva e corrosão de seu papel
enquanto sujeito histórico. Há um conjunto de epifenômenos
que se manifestam na condição precária da profissão. Do
desemprego estrutural, multifuncionalidade, disponibilidade
total e remunerações e contratos flexíveis, há também altos
riscos para a saúde dos repórteres.

Outra questão relevante a ser destacada é que a “bomba-


relógio” das jornadas excessivas começa a produzir seus
efeitos sobre a saúde dos trabalhadores e trabalhadoras
do jornalismo, em uma categoria em que 45% trabalham
além de 8h diárias. Contudo, avaliamos que seus sintomas
estão apenas começando a aparecer, considerando a crise
do modelo (empresa) de jornalismo tradicional – que tem
gerado redução de postos de trabalho, aumento de jornada
e precarização do exercício profissional. (PONTES e LIMA,
2010, p. 15).

A hegemonia de processos tecnológicos que cruzam a


profissão tanto na atividade laboral quanto na disseminação do
produto jornalístico adiciona novas e graves esferas de alienação
humana no capitalismo manipulatório que se desenha desde a

56
segunda metade do século passado. Ainda que não constitua a
totalidade das formas de expressão jornalística, predominan-
temente desenha-se para o jornalista um futuro enquanto
trabalhador informal precário, flexível, desregulamentado,
gerido por ambientes tecnológicos informaci-onais e cada vez
mais alheio a autonomia de seu trabalho e controle sobre os
processos de circulação de seu produto, a notícia.
As transformações que afetam a classe trabalhadora na
contemporaneidade relacionam-se com o contexto profissional
jornalístico, consequência da sua raiz orgânica com o sistema de
metabolismo social imperante. Portanto, torna-se muito difícil
desvencilhar-se dessas amarras sem questionar as bases
econômicas e materiais da alienação. “As possibilidades de
realizações limitadas, isto é, de escapar de possibilidades de
estranhamento que se limitam ao plano individual é, em
princípio, bem mais restrita no capitalismo” (LUKÁCS, 2013,
p.754). Os jornalistas cada dia mais absorvem os estranha-
mentos decorrentes do alto grau de proletarização que, via
plataformas informacionais e corrosão de direitos conquistados,
adentra suas esferas de atuação, limitando-os em seu papel
socialmente constituído - bem como as posibilidades de
alternativas a esses ataques.

Considerações Finais

Nos últimos anos o jornalismo enquanto prática e como


indústria de produção de notícias ficou nas mãos das gigantes
de tecnologias. Elas tornaram-se a esfera de circulação de
informações privilegiadas, e o comportamento do público passou
a ser direcionado pela sua intermediação. A distribuição de
notícias ficou a cargo dessas plataformas, que obscurecem os
mecanismos algorítmicos de busca pela economia da atenção.
Assumindo o transporte dos pacotes noticiosos, a ascensão
desses conglomerados do Vale do Silício produziu uma perda do
valor de mercado do jornalismo. Com a mudança no paradigma
da imprensa, os jornalistas se tornaram o alvo fácil de um
conjunto de reestruturações, demissões, rearranjos, o que

57
fragilizou essa categoria de profissionais, agora próximos de um
trabalhador de informação flexível.
Mas com a possibilidade de ampliar os produtores,
aspecto contraditório do monopólio das redes sociotécnicas,
muitos jornalistas passaram a buscar alternativas fora do
espectro da imprensa convencional, no sentido de uma produção
mais autônoma, autoral e comprometida politicamente com
pautas progressistas. O que poderia ser um passo importante
no avanço contra os estranhamentos incrustados no sistema
sociometabólico de reprodução do capital, todavia, passa a ser
capturado pelas regras desconhecidas do complexo das
plataformas e suas estratégias de valorização na mineração de
dados.
Por um lado as empresas de comunicação reorganizam o
seu “chão de fábrica” por meio das redações integradas e pela
via da gestão do trabalho por ferramentas tecnológicas próprias
ou hegemônicas (whatssapp, google meet, etc), proletarizando
cada dia mais os profissionais, precarizando o trabalho vivo e
consolidando a reificação. Em outra ponta temos as iniciativas
de produção jornalística independente, alternativa, com outras
perspectivas, que por dificuldades financeiras e de outros
recursos, também não oferece espaço de construção capaz de
mudar o quadro de dependência com as TICs, mas se esforçando
em expandir seus conteúdos nas franjas do sistema. A alienação
dos jornalistas, como fenômeno genérico, faz-se regra também
onde a exceção poderia apresentar saltos na reorganização de
saídas anticapitalistas. O estranhamento com a atividade
produtiva permanece uma constante.
O mundo do trabalho ganha novos contornos, que
refazem os desafios da luta de classes. A particularidade do
jornalismo, conforme tentamos explicitar neste texto, participa
das tendências gerais do movimento de imbricação tecnológica
na produção e reprodução da vida. O trabalhador jornalista
ilustra bem o processo de alienação, enquanto conflito entre o
desenvolvimento das capacidades humanas pelas forças
produtivas e a conservação (ou o esfacelamento) da persona-
lidade humana (LUKÁCS, 2013). O fato de ser produtor de
conhecimento relevante para a vida social, paradoxalmente
coloca esse profissional em uma posição extremamente

58
relevante para os desafios políticos das classes subalternas.
Nesse sentido, processos de fortalecimento da consciência
necessária de que mudanças estruturais são urgentes pode
tornar-se pauta para um jornalismo crítico-emancipatório.
A aufhebung (suprassunção) da auto-alienação do
trabalho pressupõe um conjunto de operações que colocam a
instituição de um novo motor de produção social, emancipatória
e igualitária, na ordem do dia. O debate sobre a construção de
um novo modelo tecnológico informacional capaz de
potencializar os indivíduos também merece destaque, bem como
o controle social dos mecanismos produtivos pelos trabalha-
dores livremente associados. O jornalismo pode contribuir com
esse desafio em dois movimentos distintos, mas
interconectados, sua emancipação enquanto sujeito histórico
(parte da luta conjunta com outros trabalhadores) e como
produtor de conteúdos capazes de alimentar a compreensão da
realidade, algo fundamental para a superação da barbárie social
materializada pelo capital.

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61
Breves notas sobre a contemporaneidade
da teoria crítica do cotidiano
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Fagner Firmo de Souza Santos 1

Introdução

Para melhor compreendermos o que tentaremos discutir


aqui, trazemos, de início, dois depoimentos de trabalhador(as)
metalúrgico(as) que, após descreverem com detalhes suas
atividades nas empresas onde trabalhavam, revelam como é, no
geral, a sociabilidade que estabelecem fora dela, vejamos:

[...] Eu chego do trabalho a primeira coisa que eu faço é


descansar um pouco, pelo menos meia hora, uma hora eu
tenho que deitar e descansar, para me renovar, porque se
não eu não consigo. Mas assim, eu gosto, por exemplo, de
assistir um filme, eu gosto de mexer muito com planta, às
vezes eu entro na internet, mas não sou muito fã, não
gosto muito de internet. Mas eu gosto de assistir filme. Eu
gosto muito de coisas assim sem barulho, sabe? Ficar bem
só eu no meu mundo ali. Mas eu costumo fazer isso. Como
eu moro aqui (uma casa em um condomínio próximo ao
centro de uma cidade no interior do Estado de São Paulo),
não tem muito o que fazer. Também tem pouco tempo. Mas
às vezes eu vou para o centro, direto do trabalho, vou para
o centro resolver algumas coisas, dou umas voltas lá e
depois espero quase ficar a noite para voltar para casa. Eu
costumo fazer isso. Dia de semana, como eu acordo muito
cedo eu procuro dormir cedo, então eu não faço muita coisa.
Ou eu assisto um filme e costumo muito mexer com as
planta. Adoro mexer com planta (Depoimento de Isabela,
trabalhadora da Mabe. Arquivo Pessoal).

1Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista; Mestre em


Sociologia pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade
Estadual Paulista, Campus Araraquara e Doutor em Sociologia pela
Universidade Estadual de Campinas. Pós doutorando em Política Social pela
Universidade Federal do Espírito Santo.

63
Então, depois que eu chego eu fico sentado um tempo
aqui, descansando [em um sofá, na sala, em frente à
televisão] até dar a hora de ir à academia. Eu chego em
casa quase às três da tarde. Aí eu tomo meu café, dou uma
descansadinha de uma hora mais ou menos, tomo um
banho e já vou para a academia. Eu saio daqui mais ou
menos umas cinco. Às vezes nos dias de semana, até pelo
preço, eu costumo ir ao cinema, por ser mais viável. No fim
de semana geralmente eu vou, como eu estou com meu
filho em casa, eu vou no [parque] Taquaral, levo ele em
parquinho, mas até por lazer dele mesmo. Para mim, às
vezes eu faço mais um churrasco em casa, reúno a família.
Mas chega no sábado, no sábado não dá vontade nem de
sair de casa. Minha mulher chega e fala: “Vamos sair –
daqui a pouco eu vou pegar meu filho – vamos sair com
ele, ir a um shopping, cinema, vamos levar para comer
alguma coisa”. E nossa, não dá disposição. Não dá mesmo.
(Depoimento de Milton, trabalhador de uma autopeças,
colhido em 02/2014. Arquivo pessoal) 2.

Destacamos em suas falas trechos que deixam claro uma


tendência ao isolamento, resultado do cansaço físico e mental
provocado pela intensidade do dispêndio de energia nas fábricas.
Oito horas diárias em pé (!), pressão por produção, que é
controlada por sistemas remotos que geram índices de
produtividade diários. Involuntariamente esses(as) trabalha-
dores(as) tem se isolado, passivamente tem assistido suas
relações sociais mais imediatas serem comprometidas,
deixando-os(as) vulneráveis a uma série de problemas de
natureza psíquica que isso potencialmente pode provocar,
somando-se às exigências por produção, qualidade etc. que as
empresas exigem e mais o desgaste físico.Trata-se de uma
reação, como dissemos, passiva, involuntária do corpo e mente
desse(a) trabalhador(a) e que o acompanha no seu dia a dia.

2Ambos os depoimentos compuseram um conjunto de outros colhidos para a


nossa tese de doutorado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da Unicamp. Lá eles se encontram mais completos e, juntamente com
os outros, buscamos demonstrar os aspectos de isolamento social provocados
pelo modelo flexível de produção na Região de Campinas, interior do Estado de
São Paulo. Ver Santos (2015).

64
Portanto, por entendermos que o atual modelo de
produção impacta de forma decisiva também os espaços de
reprodução dos(as) trabalhadores(as) é que recorremos à crítica
da vida cotidiana. Porém, ao falarmos em teoria crítica do
cotidiano, incorremos intencionalmente numa imprecisão, afinal
não necessariamente existe tal teoria, como sugerimos no título,
ou seja, não existe um grande campo analítico com esse recorte 3.
Usamos esse termo primeiro para delimitar o nosso objeto e a
forma da sua abordagem e, segundo, para nos diferenciarmos de
outras abordagens analítico-metodológicas do cotidiano que não
se propõem a fazer a sua crítica. Estas abordagens são
importantes, de qualquer forma, e se não se propõem a fazer a
crítica, isso não empobrece seus resultados 4. É bom que se
registre isso. Todavia, o resgate das análises críticas sobre o
cotidiano, entendemos, é fundamental para entendermos os
impactos que o atual modelo de produção (que engloba não só
as transformações técnicas e tecnológicas, mas também todas
as mudanças de ordem política, ideológica, jurídica) trouxe para
os(as) trabalhadores(as) na sua totalidade (dentro e fora do
espaço da produção, bem como as de ordem material e subjetiva,
ou seja, na sua concretude). Mas ora, se a rigor não há uma
teoria crítica do cotidiano a que exatamente recorremos?
Reunimos aqui as análises críticas, desmistificadoras, do
cotidiano diluídas em textos e obras de vários(as) autores(as), de
modo que todos(as) eles(as) bebem da fonte da teoria da
alienação de Karl Marx. Embora a crítica da vida cotidiana não
se restrinja ao uso do ferramental teórico e metodológico

3 Segundo Gardiner (2000) a crítica da vida cotidiana carece de um campo

analítico próprio, portanto, de uma teoria. Isso, por suposto, não reduz seu rigor
metodológico e analítico. Ao contrário, abre um horizonte ainda maior de
contribuições de diversas áreas (nas artes, por exemplo, com os movimentos
Dada e Surrealista; mas também na Filosofia, Sociologia, Arquitetura e
Urbanismo etc) e com diversas abordagens. Portanto, para o autor a crítica da
vida cotidiana é uma contra-tradição, que foi amplamente ignorada ou
marginalizada pela literatura das ciência sociais, ao menos no interior do mundo
acadêmico Anglo-Saxão. Dessa forma, marginalizada, mas integrada em uma
contra-tradição, a crítica da vida cotidiana tem uma dupla função: descrevê-la e
elevá-la ao patamar de crítica.
4 Referimo-nos, sobretudo, ao “Interacionismo Simbólico” que, com uma

abordagem etnometodológica, busca, através da descrição dos comportamentos


aparentemente triviais do dia a dia teorizar o cotidiano. Ver Gardiner (2000).

65
marxiano, buscamos demonstrar aqui que essa contribuição é
fundamental para sua construção.
Mészáros (2006) apontou as dificuldades que se encontra
ao abordar a teoria da alienação de Marx. Isso porque nos
Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, obra na qual o
pensador alemão sintetiza elementos de ruptura com a tradição
da filosofia alemã ao mesmo tempo em que lança as bases da
sua crítica da economia política, o principal conceito, o de
alienação, “compreende as manifestações do ‘estranhamento do
homem em relação à natureza e a si mesmo’, de um lado, e as
expressões desse processo na relação entre homem-humanidade
e homem e homem, de outro” (p. 21).
Do mesmo modo, ainda nos Manuscritos Marx formula
duas séries de questões complementares das quais na primeira
ele

investiga por que há uma contradição antagônica (ou


oposição hostil...): entre diferentes tendências filosóficas
(da mesma época, bem como de épocas diferentes); entre
“filosofia e ‘ciência”; entre “filosofia” (ética) e “economia
política”; entre a esfera teórica e a prática (isto é, entre a
teoria e a prática). [E na] segunda série ocupa-se da
questão da “transcendência” (Aufhebung), perguntando
como é possível substituir o atual estado de coisas, o
sistema predominante de alienações, do estranhamento
evidente na vida cotidiana até as concepções alienadas da
filosofia. Ou, expresso em forma positiva: como é possível
conseguir a unidade dos opostos, em lugar das oposições
antagônicas que caracterizam a alienação (Mészáros,
2006, p. 22 – grifos do autor).

É justamente sobre esse “sistema predominante de


alienações, do estranhamento evidente na vida cotidiana” que a
teoria crítica do cotidiano se debruça.
Nossa proposta aqui, portanto, é retomar algumas
análises que abordaram o cotidiano tendo em vista a desmisti-
ficação do dia a dia e, nos apoiando nessa abordagem, como tais
análises podem hoje contribuir para compreendermos melhor os
impactos que o modelo flexível tem causado nos(as) trabalha-
dores(as). Dadas as limitações deste trabalho, levantaremos
sumariamente o entendimento de alguns(as) desses(as)

66
autores(as) sobre o cotidiano, sobretudo a relação cotidiano e
modernidade (sociedade do capital). Traremos na sequência uma
breve discussão sobre como tais autores(as) enxergaram o
método de abordagem do cotidiano. Por fim, buscaremos
confrontar tais abordagens com o dia a dia dos(as)
trabalhadores(as) sob o modelo de produção flexível.

A abordagem crítica do cotidiano e a modernidade


(sociedade do capital)

O cotidiano é o locus que abriga a complexa rede de


interações sociais dos(as) trabalhadores(as) realizadas tanto no
seu tempo de trabalho, como fora dele, no seu tempo de lazer.
Tal divisão entre as duas esferas, tempo de trabalho e de lazer,
foi resultado da consolidação do modo de produção capitalista.
Ao longo do processo do seu advento quando, como diz Marx
(1983, p.141), esse modo de produção “encerra uma história
mundial”, os donos dos meios de produção e de subsistência
encontraram condições históricas favoráveis das quais a mais
decisiva foi encontrar o “trabalhador livre como vendedor de sua
força de trabalho no mercado”. Foi, portanto, ainda segundo este
autor, subsumir a mercadoria mais peculiar ao julgo dos donos
dos meios de produção. A peculiaridade da mercadoria força de
trabalho está na sua capacidade de, ao ser consumida no
processo de produção, produzir valor. Sem a pretensão de
esgotar essa análise, podemos apenas apontar aqui que, ainda
segundo Marx (1983), ao longo de uma jornada de trabalho o(a)
trabalhador(a) produz o necessário para a sua subsistência, o
que é convertido em salário, bem como uma quantidade de valor
excedente, convertido em mais-valia, que é apropriada pelos
donos dos meios de produção. Portanto, ao longo de uma
jornada, o(a) trabalhador(a) produz aquilo que lhe é necessário
à sua reprodução enquanto trabalhador(a) e mais um excedente,
apropriado pelo capitalista.
O capitalista, buscando ampliar sua margem de extração
de trabalho excedente, vai sempre lançar mão seja da extensão
da jornada, seja da intensificação das atividades dos(as)
trabalhadores(as) no processo produtivo, quando não

67
combinando as duas. Adotando uma ou outra forma de extração
de mais-valia, absoluta ou relativa respectivamente falando, é
necessário que haja um limite para a jornada de trabalho, o
suficiente para a sua reprodução, ou auto-sustentação. Porém,
no modo de produção capitalista, como coloca Marx:

o trabalho necessário pode constituir apenas parte da sua


jornada de trabalho, isto é, a jornada de trabalho não pode
jamais reduzir-se a esse mínimo. Em contraposição, a
jornada de trabalho possui um limite máximo. Ela não é,
a partir de certo limite, mais prolongável. Esse limite
máximo é duplamente determinado. Uma vez pela
limitação física da força de trabalho. Uma pessoa pode,
durante o dia natural de 24 horas, despender apenas
determinado quantum de força vital (...) Durante parte do
dia, a força precisa repousar, dormir, durante outra parte
a pessoa tem outras necessidades físicas a satisfazer,
alimentar-se, limpar-se, vestir-se etc. Além desse limite
puramente físico, o prolongamento da jornada de trabalho
esbarra em limites morais. O trabalhador precisa de tempo
para satisfazer a necessidades espirituais e sociais, cuja
extensão e número são determinados pelo nível geral de
cultura. A variação da jornada de trabalho se move,
portanto, dentro de barreiras físicas e sociais (1983, p.
188).

Se levarmos em consideração que, ainda segundo Marx


(1983), agora ao analisar a mais-valia relativa, a produção
capitalista não objetiva a redução de jornada de trabalho, senão
apenas a redução do “tempo de trabalho necessário para a
produção de determinado quantum de mercadorias” (essencial-
mente aquelas indispensáveis à reprodução da força de trabalho)
em nada muda o fato de ele ter apontado esse tempo vital para
a recomposição das necessidades físicas e sociais, do tempo fora
da jornada de trabalho, quando analisa em sua obra a extração
da mais-valia pela extensão da jornada. Ou seja, essa
necessidade vital de recomposição independe da forma que
assume a extração de trabalho excedente. Somado a isso, diante
das lutas por redução da jornada de trabalho, quando os(as)
trabalhadores(as) tentam restituir o tempo que lhe é retirado,
os capitalistas se apressam para condensar o trabalho em um

68
tempo de jornada mais curto, através de reorganização das
funções exercidas na cooperação, introdução de máquinas
ferramentas e, pari passu, a incorporação de tecnologias de toda
ordem que buscam substituir a força de trabalho através da
assimilação de algumas das atividades exercidas. Como
apêndice de toda engenharia, reengenharia, técnicas e
tecnologias da indústria, a força de trabalho se submete então
ao ritmo da maquinaria que, consequentemente, passa a agredir
o sistema nervoso ao máximo, reprimindo o jogo polivalente dos
músculos e confiscando a livre atividade corpórea e espiritual,
de modo que, da mesma forma que na absoluta, o tempo de
repouso que satisfaça necessidades físicas e espirituais seja
igualmente importante (Marx, 1984, p. 43).
O sistema do capital, portanto, grosso modo falando,
operou uma divisão no seio do cotidiano dos(as) trabalha-
dores(as) entre dois momentos que se opõem: descanso
(recomposição física e moral, espiritual) e trabalho. Se esse é o
desenho mais geral do cotidiano na modernidade, ao analisar o
dia a dia é preciso que se analise, indistintamente, tais esferas,
de modo a apreender como a alienação se manifesta nelas, ou
seja, como o “estranhamento evidente na vida cotidiana”, bem
como os conflitos oriundos dele, se manifestam diariamente. Há
uma concretude do homem nas suas relações de produção que
deve ser compreendida como totalidade. Desse modo, de
nenhuma forma a cotidianidade pode ser entendida como mero
espaço das banalidades. Pelo contrário.
Lukács (1966) diz que, embora a objetividade cotidiana
seja uma força conservadora e inibidora, o homem, mesmo na
imediatez da cotidianidade, na interação com os seus
instrumentos, bem como nas relações cotidianas, podem e
colocam mais do que imaginam, ou do que essa objetividade
exige. O homem do cotidiano somente na sua aparência é um
homem fragmentado.
No mesmo sentido, Lefebvre (1991, p.86) coloca que:

[...] à primeira vista o homem imerso na vida cotidiana é o


homem que não expressa suas habilidades, as mais
genuínas habilidades. O ali no seu cotidiano expressa
somente a matéria prima humana, o resíduo do que pode
ser o homem. Tais resíduos, no entanto, escondem sua

69
riqueza. As habilidades mais nobres derivam daí (desse
homem inserido no cotidiano), elas são a crítica direta e
indireta e a vida alienada – embora seja uma alienação
incorporada mais ou menos consciente e uma tentativa
bem sucedida de alcançar a desalienação.

Heller (2016) também enxerga na estrutura da vida


cotidiana as possibilidades de desenvolvimento do homem total
ou, com as palavras dela, do homem genérico. Segundo a autora
a estrutura da vida cotidiana é composta por “formas
necessárias” sem as quais é impossível qualquer dinâmica do
“Eu”, do “indivíduo”. Esse indivíduo contém tanto a particulari-
dade quanto o humano-genérico que funciona, cotidianamente,
consciente e inconscientemente no homem. Sem condições de,
aqui, explorar toda a riqueza de sua análise, podemos apenas
apontar que na vida cotidiana são dadas alternativas ao homem
que, segundo suas motivações, pode tanto tomar decisões
elevadas, acima do cotidiano, ou decisões pela moral, que o
aproximam do humano-genérico; como fazer escolhas indife-
rentes do ponto de vista moral (que são ações triviais do
cotidiano, como por exemplo, ela cita, tomar um ônibus cheio ou
esperar o próximo). Ora, se por um lado a elevação ao humano
genérico encerra a “muda coexistência entre particularidade e
genericidade”, por outro a “elevação ao humano genérico não
significa jamais uma abolição da particularidade”, pois as
“paixões e sentimentos orientados para o “Eu” (para o Eu
particular) não desaparecem, mas ‘apenas’ se dirigem para o
exterior, convertem-se para a realização do humano-genérico”
(Heller, 2016, pp. 44-45).
Cotidianamente, aproximando-se ou não, através de
suas escolhas, da genericidade, o homem se depara com formas
necessárias, sem as quais a vida cotidiana se torna impossível.
São elas, segundo Heller (2106, p. 62): “espontaneidade,
pragmatismo, economicismo, andologia, precedentes, juízo
provisório, ultrageneralização, mimese e entonação”.
Aproximando-se de Lefebvre, que por sua vez retoma a
teoria da alienação de Marx, a autora também vai reconhecer o
cotidiano como o terreno propício à alienação. Para ela, na
medida em que essas “formas necessárias” se cristalizam em
absolutos, impossibilitando margem de movimento do “Eu”,

70
“encontramo-nos diante da alienação da vida cotidiana”. Desse
modo, a alienação, que é sempre alienação “em face de alguma
coisa”, será sempre um obstáculo “em face das possibilidades
concretas de desenvolvimento genérico da humanidade”. E,
embora o cotidiano não seja de modo algum necessariamente
alienado, a autora aponta que “quanto maior for a alienação
produzida pela estrutura econômica de uma dada sociedade,
tanto mais a vida cotidiana irradiará a sua própria alienação
para as demais esferas” (Heller, 2016, p. 64).
Mészáros (2007), embora não se debruce especificamente
sobre o cotidiano, ao analisar a categoria do tempo de trabalho,
trazendo elemento da crítica da economia política e da teoria da
alienação de Marx, no entanto, corrobora as conclusões dos
demais. Para ele, o homem, desde o advento da moderna
sociedade industrial, foi reduzido à mera mercadoria, reduzido à
força de trabalho que é apropriada pelo capital e se encontra,
fora do espaço fabril, realizado em meio a um leque de
artificialidades que exploram seu tempo ocioso, de descanso, de
convívio social. Assim, o capital subverte e degrada o “lazer”
ocioso “com o objetivo de submetê-lo, exploradamente, ao
imperativo global da acumulação do capital” e, desse modo,
veste uma “camisa de força” em uma das mais importantes
conquistas da humanidade, o tempo livre potencialmente
emancipatório, que é incorporado no trabalho excedente e
manipulado pela contabilidade do tempo do capital.
Desse modo, o autor afirma que no sistema
socioeconômico existente onde cada homem é igualado ao seu
trabalho, que por sua vez é igualado ao trabalho de outro homem
e traduzido a um denominador comum como máquinas e
substituíveis por elas, os seres humanos são reduzidos à
condição reificada e à posição “ignominiosa de ‘carcaça do
tempo’”. E, em virtude disso, é bloqueada ao indivíduo a
possibilidade de ele manifestar o valor inerente à especificidade
humana, pois na medida em que o homem é medido pela hora
despendida da sua força de trabalho e igualado a outro homem

[...] o valor como tal torna-se um conceito extremamente


problemático. Pois, no interesse da lucratividade
capitalista, não apenas não há espaço para a efetivação do
valor específico dos indivíduos, mas o que é ainda pior, o

71
contravalor deve prevalecer sem cerimônias sobre o valor e
asseverar sua absoluta dominação como a única relação
de valor prática admissível (Mészáros, 2007, p. 43).

Com isso, ainda segundo o autor, tudo aquilo que não


possa ser acomodado lucrativamente no interior desse sistema
socioeconômico “deve ser decretado como irrelevante ou inexis-
tente, ou realmente destruído, se parecer apresentar resistência
ativa ao desígnio restritivo mutilador do capital” (Mészáros,
2007, p. 43). Considerações sobre o tempo, portanto, são
inadmissíveis para o capital, mesmo hoje, quando o tempo de
trabalho se tornou um anacronismo histórico, em virtude do
desenvolvimento do potencial da ciência e da tecnologia.
À luz da discussão travada por esses autores, portanto,
pudemos notar que a pertinência da crítica do cotidiano está
justamente em desmistificar tanto as relações de trabalho
(alienado) quanto as estabelecidas nos espaços do não-trabalho,
ressaltando a capacidade que o modo de produção capitalista
tem de irradiar para todas as esferas da vida a alienação
daquelas relações, isso desde a histórica subunção real do
trabalho ao capital e até os dias atuais, sob o modelo flexível de
produção. Com isso, entendemos que é de suma importância
resgatar a crítica do cotidiano, para também entendermos a crise
que se abate sobre a sociabilidade dos(as) trabalhadores(as)
hoje, sobretudo tentando entender qual o papel que as doenças/
acidentes provocados por esse modelo tem sobre a esfera do não-
trabalho.

O cotidiano e as formas dos conflitos na sociedade


do capital

Ora, se o que chamamos aqui de teoria crítica do


cotidiano é uma derivação da teoria da alienação de Marx a qual,
como já apontamos, pressupõe a apreensão das contradições
manifestas no dia a dia, consequentemente ela também
pressupõe a teoria da práxis, afinal, como afirma Bernardo
(1991, p. 60) “A teoria da práxis é uma teoria da contraditori-
edade do inter-relacionamento social”. Essa contraditoriedade

72
pressupõe que a sociedade se sustenta em um dos seus
elementos constitutivos e, sendo assim, a teoria crítica do
cotidiano é também uma opção prática, cujo ponto de partida é
a estrutura sobre a qual se sustenta a extração da mais-valia.
Pressuposto isso, é importante que apreendamos as ações que a
determinam e são determinadas por ela.
Sob nenhuma hipótese, portanto, a teoria crítica do
cotidiano pressupõe um(a) trabalhador(a), imerso na
objetividade do dia a dia, resignado(a) em virtude do estranha-
mento. Reforçamos que, sendo esse um movimento dialético, o(a)
trabalhador(a) rechaça sua condição e age, cotidianamente no
sentido de restituir sua condição humana, sua totalidade.
Porém, suas reações são diversas, ora fragmentadas (com
potencial convergente ou não), ora coletivas, sendo que muitas
delas podem ser assimiladas e, assim, reforçar sua condição.
Bernardo (1991) classifica quatro formas de reações
dos(as) trabalhadores(as) frente às suas condições. Vejamos
sucintamente quais são:

1- Formas de organização individuais e passivas: não


pressupõe o conflito aberto. De modo geral pode ser
caracterizada como uma forma de reação isolada e
velada, sem que o patronato e seus interesses sejam
importunados, ao menos imediata e diretamente, por ela.
São exemplos: preguiça, absenteísmo, alcoolismo, uso de
estupefacientes. Trata-se da forma que apresenta maior
dificuldade de convergência das lutas.
2- Formas individuais e ativas: trata-se do conflito aberto,
protagonizado de forma isolada pelo(a) trabalhador(a),
embora muitas vezes dissimulado. São exemplos: roubo
de meios de produção ou matérias-primas, sabotagens
às engrenagens do processo produtivo, agressões a
figuras que se encontram na escala superior da
hierarquia produtiva. Embora não haja complementa-
ridade tática, são ações com potencial de convergência.
3- Formas coletivas e passivas: trata-se da interposição de
alguém, ou como se manifesta geralmente, de uma
burocracia entre a luta dos(as) trabalhadores(as) e o
patronato. O melhor exemplo é a burocracia sindical ou

73
política. Em linhas gerais, trata-se da assimilação das
lutas dos trabalhadores por um grupo de pessoas que as
canalizam de modo institucional, impedindo a gestão
autônoma das suas lutas.
4- Formas coletivas e ativas: trata-se da ruptura de todas as
normas estabelecidas na produção pelas chefias e
patronato. Nelas os(as) trabalhadores(as) gerem suas
próprias lutas, de modo autônomo, sem qualquer
interferência de burocracias alheias à elas. As ocupações
de fábricas, como nos exemplos históricos das décadas
de 1910 (Revolução Russa e Alemã), 1920 (as ocupações
de fábrica em Turim e Milão, na Itália) e 1960/70 (Em
especial França e EUA), são alguns exemplos.

À crítica do cotidiano, portanto, cabe também entender a


manifestação diária desses conflitos, sobretudo as formas
individuais que se manifestam de modo corriqueiro, uma vez que
a classe trabalhadora se encontra fragmentada. Assim, enten-
demos que a crítica da vida cotidiana deve apreender esses
conflitos nas suas variadas formas, afinal é a classe trabalha-
dora que está à frente da engrenagem do modo de produção
capitalista, manuseando-a na sua totalidade e, com isso, em
contato incessante com a natureza, através do trabalho e
reagindo à estranheza da objetividade cotidiana, da apropriação
do seu mais-trabalho.

Uma breve nota sobre o método de abordagem


da vida cotidiana

Dissemos que a teoria crítica do cotidiano é uma


derivação da teoria da alienação ou teoria da práxis, oriunda de
Marx e Engels. Lefebvre (1991, p. 145) chega a afirmar que o
marxismo de um modo geral é um método crítico da vida
cotidiana, isso porque, para ele “o método de Marx e Engels
consiste precisamente na busca pelo elo existente entre o que os
homens pensam, desejam, dizem e acreditam por si mesmos e o
que eles são, o que eles fazem”.

74
Por entender que o uso do “método dialético” 5 voltado
para a análise do cotidiano é desconhecido, ou não familiar,
Lefebvre (1991, pp. 145-175) levanta pontos essenciais no
conjunto da obra de Marx e Engels que são decisivos para uma
abordagem crítica do cotidiano, são eles: a) crítica da
individualidade (cujo tema central é a “consciência privada”); b)
crítica das mistificações (tema central: consciência mistificada);
c) crítica do dinheiro (tema central: fetichismo e alienação
econômica); d) crítica das necessidades (tema central: alienação
moral e psicológica); e) crítica do trabalho (tema central: a
alienação do trabalho e do homem); crítica da liberdade (tema
central: o poder do homem sobre a natureza e sobre si mesmo).
Diante disso, para Lefebvre (2002), cabe ao(à)
investigador(a) reunir um conjunto de ferramentas metodoló-
gicas que o(a) capacite a encontrar a linguagem comum entre ele
e o entrevistado. Isso, segundo este autor, torna-se importante,
pois permite que ele(a) se sobreponha aos possíveis desentendi-
mentos e pré-julgamentos e enxergue o entrevistado como um
“ser” e não como um objeto reduzido a atitudes evasivas e triviais
da e na vida cotidiana.
Afinal, para o autor, esse tem que ser um processo
dinâmico, incessante de compreensão da realidade, cuja análise
dos fatos tem que ser contínua. Assim, tal método permitirá que
monitoremos e analisemos as angústias e lutas diárias da classe
trabalhadora 6.

5 Lefebvre não distingue o que ele denomina de método marxista, marxismo e


método dialético, de modo que faz coincidir esses termos, todos para se referir
ao conjunto da obra de Marx e Engels e sua contribuição para a compreensão
crítica da vida cotidiana.
6 Aqui não é possível avançar na questão que perpassa a discussão que estamos

levantando que é a da consciência de classe. De qualquer forma, vale mencionar


que Lefebvre (1991, p. 56), referenciando Lênin, diz que a consciência
revolucionária surge no momento de crises, porém, fato é que ela se junta a um
conjunto de práticas do cotidiano, anteriores a esses momentos.

75
Cotidiano e formas de luta frente ao modelo flexível

Uma característica comum a todas as revoluções


técnicas e tecnológicas desde o advento do sistema do capital é
a capacidade de condensar trabalho, ou seja, reduzir o tempo
necessário à reprodução da força de trabalho e aumentar a
extração de mais-valor. Como vimos, Marx já no século XIX
apreendeu essa característica peculiar das transformações
técnicas e tecnológicas, bem como os impactos que são capazes
de trazer à classe trabalhadora que, em linhas gerais, disse ele:
agride o sistema nervoso ao máximo, reprime o jogo polivalente
dos músculos e confisca a livre atividade corpórea e espiritual.
Tais transformações não se restringiram aos campos da
engenharia, logística, contabilidade, administração. Elas sempre
vieram acompanhadas de profundas mudanças de ordem social,
política, cultural, econômica e ideológica. Gramsci (2015), em
Americanismo e fordismo, por exemplo, faz uma síntese do que
foram essas transformações protagonizadas pelo modelo
taylorista-fordista na primeira metade do século XX. Com o
modelo flexível não foi e não é diferente.
O modelo flexível é o resultado da superação, no sentido
hegeliano de superar conservando características, do fordismo-
taylorismo. O conjunto de particularidades desse modelo é
oriundo principalmente da assimilação de várias práticas de
resistência empregadas pelos(as) trabalhadores(as) ao longo de
mais de duas décadas. Uma das principais razões do
esgotamento do fordismo-taylorismo foi o profundo desconten-
tamento ou desengajamento da classe trabalhadora com as
normas estabelecidas por ele, tanto no que tange aos aspectos
técnicos, como também aos culturais, ideológicos, estéticos
etc. 7. As diversas práticas de confronto dos(as) trabalha-
dores(as) frente àquele modelo societal provocou reação dos
capitalistas e gestores do capital que ora as reprimiam ora as
assimilavam. São exemplos de repressão não somente o uso da
força policial, mas também as várias investidas contra os órgãos

7 Apropriamo-nos aqui principalmente das análises sobre esse processo

feitas por Bihr (1997), Harvey (1994), Antunes (1999) e Bernardo (2004).

76
de luta da classe trabalhadora. Voltaremos a isso adiante.
Busquemos entender, por ora, do que se trata o processo de
assimilação.
Bernardo (1991), quando descreve as formas de luta da
classe trabalhadora, diz que quando as lutas não criam de forma
decisiva novas relações de trabalho que concorram com as
relações vigentes, elas tendem a ser recuperadas, assimiladas,
pelo capital. Ou seja, o capital incorpora as reivindicações, bem
como monitora e também incorpora o saber-fazer contido nas
lutas empreendidas pelos(as) trabalhadores(as). Essa
assimilação não consiste somente da condescendência do
capital face às exigências do trabalho, pois se por um lado cede,
por outro, ao ceder, reforça o controle sobre o trabalho, bem
como o conjunto de técnicas e tecnologias que aumentam a
extração de mais-valia.
As revoltas contra o modelo taylorista-fordista no final da
década de 1960 e ao longo da década de 1970 tiveram como
característica principal o questionamento profundo da rígida
hierarquia gerencial e técnica apresentada pelo modelo, que
submetia a esmagadora maioria da classe trabalhadora aos
movimentos monótonos, repetitivos que se prolongavam ao
longo de horas durante o dia. Questionavam a falta de
protagonismo que tinham, frente aos projetos de produção e
protocolos de execução pré-concebidos. Nesse processo de
rechaço que se estendeu ao longo do período de vigência do
fordismo-taylorismo, que ora foi velado, ora aberto, quando a
classe trabalhadora demonstrou, por si mesma, ser capaz de
fazer mais e com maior qualidade, isso quando executava as
tarefas segundo sua convicção, bem como quando tomou as
fábricas, o capital enxergou a saída para sua crise.
O pilar sobre o qual se estrutura o modelo flexível é a sua
capacidade de se apropriar totalmente e de maneira sistemática
do saber-fazer do(as) trabalhadores(as). Vale dizer aqui que as
primeiras iniciativas que começaram a romper com a rigidez
hierárquica do modelo anterior foi justamente a criação dos
círculos de controle de qualidade, espaço dissimuladamente
democrático que forçou postura propositiva dos(as) trabalha-
dores(as). Ou seja, trata-se de uma instituição criada para se
apropriar daquele saber-fazer, que no contexto do modelo

77
anterior era usado para quebrar a hierarquia e restituir o tempo
de trabalho. Igualmente importante foi a reconfiguração do
layout das plantas: antes piramidal, passa a ser horizontalizada,
sendo acompanhado pelos terminais de computadores
(Bernardo, 2004). Deriva-se desse pilar todas as outras
instituições criadas pelo atual modelo, cujas principais são o
justi-in-time, kanban, a celularização da produção etc.
Do ponto de vista jurídico, da regulamentação das
relações trabalhistas, esse modelo se contrapôs ao anterior. A
desregulamentação das leis trabalhistas, que é um processo
ainda inacabado de um conjunto de exigências do novo modelo,
retirou e vem retirando, onde o complexo de reestruturação
produtiva se instala, a proteção social do trabalho. Cada vez
mais o(a) trabalhador(a) se vê mais exposto à péssimas
condições de trabalho sem que tenha respaldo jurídico que o
proteja e freie as condições impostas, bem como não conta mais
com contrapartidas econômicas previamente estabelecidas.
Simultaneamente, se deu um processo (ainda vigente) de
enfraquecimento dos sindicatos e demais órgãos de lutas da
classe trabalhadora que, no modelo anterior, serviram para
respaldar acordos, sobretudo econômicos, que lhe davam
garantias jurídicas e econômicas. Diante da crise do modelo
fordista, sinônimo de crise capitalista no contexto das décadas
de 1960 e 1970, o consequente aumento do desemprego leva os
sindicatos a perderem seus espaços de atuação: num primeiro
momento, diante das principais reivindicações da classe
trabalhadora, agem, muitas vezes de forma hostil, contra
aqueles movimentos operários autônomos que questionaram o
modelo. Posteriormente, passam a concorrer com as chefias das
fábricas no intuito de garantir sua legitimidade. Para tanto, se
colocam como intermediários que negociam garantias traba-
lhistas e tempo de trabalho. Muitas das burocracias sindicais
que resistiram tornaram-se gestoras 8 do tempo de trabalho e,
por conseguinte, se apropriam de parte da mais-valia (Bernardo,
2004; Bernardo, 2008) 9.

8 Sobre o conceito de gestores ver Bernardo (1987) e Bernardo (2008).


9 Ver também Bihr (1997).

78
Tratou-se de um processo profundo de fragmentação da
classe trabalhadora onde, por um lado, se viu órfã dos seus
órgãos tradicionais de luta, que se incorporaram às instituições
do novo modelo ou se enfraqueceram, além de sofrerem com a
escalada repressão aos movimentos autônomos; por outro,
diante das instituições criadas, permeadas pela ideologia do
colaboracionismo e com uma carga de individualização das
ações ainda maior, encontra maiores dificuldades para desafiar
os ritmos e condições impostos. A supervisão, antes exercida por
um conjunto de pessoas, acima na hierarquia fabril, toma
formas diversas, mas principalmente e de modo decisivo, passa
a ser exercida pelos(as) próprios(as) trabalhadores(as). Seu
desafio não é mais restituir o tempo que lhe é extraído, ainda
que em ações individuais, nem mesmo adequar seus ritmos aos
seus limites físicos e mentais, mas sim, a partir de então, bater
metas de produção o que, para tanto, precisa do empenho de
seus pares (Antunes, 1999; Augusto Pinto, 2011; Dal Rosso,
2008).
Todas essas transformações levantadas aqui de modo
sumário convergiram para que o trabalho fosse condensado à
revelia da alteração do tempo das jornadas de trabalho. Como
sugerimos, e um conjunto vasto da bibliografia sobre o tema
também aponta, eliminou-se o tempo poroso então existente
nessa jornada. O desaparecimento desse tempo poroso se deu
de duas formas: pela intensificação do esforço físico e, quando o
ritmo da produção (imposto pela demanda oscilante 10) não exige
tanto dos músculos e nervos, continua exigindo da capacidade
intelectual, exigência esta que não cessa mesmo nos espaços de
reprodução. Política, econômica e juridicamente o(a) traba-
lhador(a) sob o modelo flexível se encontra inseguro(a) e,
momentaneamente, incapaz de reagir, sobretudo coletiva e
ativamente. Tal insegurança o leva a aceitar condições exaus-
tivas de trabalho, físicas e mentalmente exaustivas, para não
serem desligados(as) e jogados(as) em condições ainda mais
incertas do mercado de trabalho, senão descartados(as) de modo

10 Um dos méritos da obra de Coriat (1994) foi examinar a interface entre a


logística do toyotismo e a demanda. Porém, fazemos a ressalva de que sua
importante descrição não deve ser tomada como um “tipo-ideal” do modelo.

79
permanente do mercado de força de trabalho. Os impactos sobre
a classe trabalhadora foram e estão sendo devastadores. Eles
são de ordem socioeconômica, política, estética, moral, ética,
ideológica e tudo isso pode ser sentido no cotidiano. Os acidentes
e doenças de trabalho, antes visíveis e tangentes, hoje deram
lugar aos acidentes/doenças invisíveis, intangíveis. O que
dificulta muitas vezes a relação com o trabalho (Santos, 2015).
As Doenças Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho (DORT)
e as doenças de natureza psíquica são a expressão desse
momento. E, com atenção especial a estas, as “doenças da
alma”, sendo a depressão a mais emblemática, podemos afirmar
que elas não se encerram no corpo e mente do indivíduo que
sofre, ou seja, não se trata de uma manifestação tão somente
psíquica. Há uma economia política por trás delas, presente
cotidianamente e que tem que ser explorada.
Já na década de 1940, ao problematizar os impactos que
a modernidade (sociedade do capital) causava ao cérebro
humano, Lefebvre (1991, p. 120) disse:

[...] As funções psicológicas dos sistemas nervoso e


cerebral do homem parecem ter caído vítimas de um
regime de demanda excessiva, desenvolvendo um tipo de
hipertensão e exaustão. Ele ainda não se adaptou às
condições da sua vida, à velocidade das sequências e
ritmos, à (momentânea) abstração excessiva dos errôneos
conceitos que ele recentemente adquiriu. Seus nervos e
sentidos ainda não foram adequadamente treinados para
lidar com a vida técnica e urbana. Os modernos conceitos
são como uma descarga elétrica no seu cérebro (uma
consequência natural da extrema complexidade desses
conceitos e das situações contra as quais tem que lutar) e,
prosseguindo a metáfora, seus nervos e sentidos entram
frequentemente em curto-circuito.

Hoje, após inumeráveis avanços técnicos e tecnológicos,


que condensaram o trabalho e aceleraram o ritmo da sociedade,
os “curtos-circuitos” que sofre o cérebro humano parecem
incessantes, se dão dentro e fora dos espaços da produção. O
quadro se agrava quando vemos que as possibilidades de
convergência das formas individuais de luta são menores, senão
inexistentes ainda. Somado a isso, a fadiga causada pelos novos

80
ritmos tem levado os(as) trabalhadores(as) ao isolamento,
contribuindo sobremaneira para o agravamento dos quadros de
depressão.
Lefebvre (1991) faz ainda apontamentos importantes
acerca da solidão. Ressalta que a solidão é uma necessidade e
uma aspiração do ser humano. Porém, mesmo nos espaços em
que se encontra na solidão, esse homem sofre com a alienação
da vida privada. Ali, em contato com seu “eu”, esse homem
pensa estar isolado da vida social, como se fosse possível a ele
separar a sua de todas as mediações humanas que o cerca. Ou
seja, o autor já apontava um potencial problema na necessidade
da solidão: se por um lado é uma necessidade do ser, por outro
ela sofre com as relações estranhadas da sociedade do capital 11.
Se contrapormos tais análises dos teóricos críticos do
cotidiano ao que vem sendo dito sobre as depressões, veremos
que é possível falar em uma relação direta entre essa forma de
adoecimento e o modelo de produção. Solomon (2001) diz que
ansiedade e depressão são gêmeas bivitelinas sendo aquela
precursora desta. O autor diz ainda que a depressão é frequente-
mente ocasionada pelo isolamento. Característica do modelo
vigente, o chamado management by stress se caracteriza
justamente pela imposição de fortes ritmos na produção, com
potencial enorme para gerar ansiedade. Isso sem falar em toda
a cadeia de pressão existente por conta do desemprego, o que
atinge também quem não consegue se inserir no mercado.
Já Kehl (2009) vai dizer, em outras palavras, que a
depressão é um alerta do corpo que pede para desacelerar o
ritmo imposto não somente ao físico, mas ao psicológico.
O cansaço, a ansiedade, tem provocado o isolamento, ou
seja, tem corroído até mesmo as relações sociais mais triviais e
imediatas do cotidiano. Tal condição tem alimentado uma série
de problemas, em especial a depressão. Os espaços de

11Ao longo de todo o Volume 1 da sua obra “Crítica da Vida Cotidiana” o autor
chama a atenção para o contraste imposto pela modernidade entre a vida social
e a vida privada. Sobre essa invasão da alienação na necessidade da solidão na
vida cotidiana moderna um exercício interessante de se fazer é contrapor o que
o autor diz sobre “solidão” na página 198 e sobre privação (ou carência) na
página 238.

81
reprodução do trabalhador foram invadidos pela lógica do
modelo flexível, a insegurança, acompanhada do desgaste.
Sendo as DORT e a depressão as mais emblemáticas
doenças que correspondem ao modelo flexível de produção,
podemos dizer que elas expressam a forma alienada,
estranhada, de reação do(a) trabalhador(a) à sua condição atual
de exploração. A rigor, podemos enxergar aí elementos de
resistência, uma forma de luta que é empreendida de forma
velada pelo corpo dos(as) trabalhadores(as), que surge de forma
involuntária, mas que é resultado do esgotamento físico e mental
dos homens e mulheres que trabalham. Identificamos aqui uma
forma de luta individual passiva, conforme descrita acima, que
é de difícil convergência. Esse esgotamento, não se encerra na
atividade produtiva, ele invade os espaços de reprodução,
solapando-os e aprofundando o isolamento do indivíduo, que se
defronta com um “eu” não só estranhado, mas igualmente
angustiado. Um indivíduo que anseia pelo isolamento e que
dispõe sua sociabilidade como uma obrigação social e não mais
como algo natural, conforme sugerem os dois depoimentos que
colocamos acima.
De qualquer forma, aqui podemos ver que tais
manifestações clínicas ultrapassam as análises puramente
clínicas. Há por trás das DORT e das “doenças da alma” uma
economia política, que abrange também questões sociais,
ideológicas, políticas, organizacionais, técnicas e tecnológicas,
bem como as de sociabilidade. Daí a necessidade de retomar os
elementos da crítica do cotidiano, justamente pela necessidade
de se lançar o olhar para as manifestações mais sutis de
estranhamento no dia a dia, bem como as manifestações de
negação.
Trata-se de uma tarefa urgente, para buscarmos
respostas, ou ao menos compreensão à luz da economia política,
para uma questão que cada vez mais vem se mostrando política
e ideológica.

82
Considerações finais

A teoria crítica do cotidiano é uma derivação da teoria da


práxis. Entendemos com isso que, ao mobilizarmos o
ferramental metodológico marxista, é possível identificar
manifestações de alienação presentes nas ações mais triviais do
dia a dia, ao mesmo tempo em que podemos enxergar
potencialidades de um homem que se estranha, mas que tenta
restituir sua totalidade. Não há técnicas específicas voltadas
para essa finalidade. Podemos mobilizar um conjunto amplo de
ferramentas metodológicas, desde que tenhamos claro que o
homem do cotidiano é cindido pelas relações de produção
capitalistas. Atentar-se para suas ações triviais se torna tão
importante quanto para as ações extracotidianas (a produção de
uma obra de arte ou uma descoberta científica, por exemplo).
Hoje, entendemos que ela se torna indispensável. Dado o
grau de invasão que o modelo flexível empreendeu sobre as
várias esferas da vida cotidiana da classe trabalhadora, com
destaque ao povoamento da sua psique, que tem se tornado uma
das poucas trincheiras de resistência. Dada a profunda
fragmentação das lutas da classe trabalhadora e as ofensivas
contra seus órgãos de luta forjados sob o modelo fordista-
taylorista ao longo de décadas, impera hoje formas de
resistências individuais e passivas, de difícil convergência. Tais
formas de resistência são variadas e torna-se um desafio
entendê-las. Apontamos aqui o que entendemos ser expressões
dessas formas de resistência que se traduzem no adoecimento,
fruto do esgotamento. Para nós, as características das
enfermidades que imperam hoje demonstra que o atual modelo
de produção tem levado os(as) trabalhadores(as) aos limites
físicos e morais. Ou seja, um olhar crítico sobre a sociabilidade
desse(a) trabalhador(a) no seu dia-a-dia tem revelado que ele tem
resistido à invasão do modelo flexível sobre a totalidade do seu
ser. Trata-se de um(a) trabalhador(a) que resiste, portanto, mas
que resiste adoecendo.

83
Referências

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1999.

Augusto Pinto, G. A máquina automotiva em suas partes: um


estudo das estratégias do capital na indústria de autopeças.
São Paulo: Boitempo, 2011.

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soberana. São Paulo: Cortez, 2004.

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1991.

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europeu em crise. São Paulo: Boitempo, 1998.

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New York, 2000.

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Kehl, M. R. O tempo e o cão. São Paulo: Boitempo, 2015.

84
Lefebvre, H. The critique of everyday life. Vol. 1. London; New
York: Verso, 1991.

___________. The critique of everyday life. Vol 2. London; New


York: Verso, 2002.

Lukacs, G. Estética. Tomo I. Barcelo, México DF: Edições


Grijalbo, 1966.

Marx, K. O capital: crítica da economia política. Vols. I-II Tomo


I. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Mészáros, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo:


Boitempo, 2006.

___________. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo:


Boitempo, 2007.

Santos, F.F.S. (Des)sociabilidade & fragmentação: um estudo


sobre o refluxo das lutas operárias na região de Campinas nas
décadas de 1990-2000. Tese de doutorado não publicada,
Universidade Estadual de Campinas/Unicamp. Campinas,
2015.

Solomon, A. O demônio do meio-dia. São Paulo: Companhia das


Letras, 2014.

85
Capitalismo e patriarcado em pauta:
aproximações e distanciamentos entre
feminismo e marxismo 1
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Lívia de Cássia Godoi Moraes 2

Desde a década de 1970, há um debate pungente a


respeito dos “casamentos e divórcios” entre marxismo e femi-
nismo (ou feminismo e marxismo). O sentido dessas aproxi-
mações e distanciamentos tem implicações tanto no campo
teórico quanto na práxis política. Aqui, neste capítulo, não
faremos uma historiografia do movimento feminista 3, demons-
trando em que momentos o marxismo apareceu como mediação
para lutas das mulheres, ainda que empreendamos um esforço
no sentido de apontar as implicações políticas da relação em
análise.
No que diz respeito ao debate teórico, do nosso ponto de
vista, três autoras são fundamentais para este desenvolvimento:
Heidi Hartmann, com o artigo “El infeliz matrimonio entre
marxismo y feminismo: hacia uma unión más progressista”
(1975-1977 4), Iris Young, com o artigo “Marxismo y feminismo,
más allas del ‘matrimonio infeliz’ (una crítica al sistema dual)”
(1981) e, por fim, Cinzia Arruzza, com o capítulo de livro 5 “Uma
união queer entre marxismo e feminismo?” (2010).

1 Uma primeira versão deste capítulo foi publicada nos anais do Colóquio
Internacional Marx e o Marxismo 2019, com o tema “Marxismo sem tabus –
Enfrentando opressões”, ocorrido em agosto de 2019, na Universidade Federal
Fluminense, em Niterói, Rio de Janeiro.
2Docente do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação

em Política Social da Universidade Federal do Espírito Santo. Coordenadora do


Grupo de Pesquisa Trabalho e Práxis.
3 Para análise neste sentido, ver Arruzza (2019)

4 Os primeiros esboços do referido texto circularam entre 1975 e 1977 e tinham

a coautoria de Amy S. Bridges, que, posteriormente, abandonou o projeto.


5 O livro em questão foi traduzido e publicado no Brasil no ano de 2019, pela

editora Usina, com o título “Ligações perigosas: casamentos e divórcios entre


marxismo e feminismo”.

87
É preciso destacar que, apesar dessa temática ter sido
efervescente nas décadas de 1970 e 1980, ela arrefeceu nos anos
1990, especialmente porque, com o fim do chamado socialismo
real, e com a simbólica derrubada do Muro de Berlim, era
comum ouvir que “Marx morreu”, que o capitalismo era o “fim
da história”, que não haveria espaço para qualquer revolução
que não fosse a revolução interior. Tal perspectiva individualista
veio a corroborar com a hegemonia do feminismo liberal.
Entretanto, especialmente depois da crise capitalista na
sua expressão mais financeirizada, iniciada entre 2007 e 2008,
Karl Marx ressurgiu como um relevante teórico para pensar o
tempo presente. A sua importância se expressa, inclusive, pela
forte campanha da extrema direita mundial em negar o
marxismo, com repercussões no Brasil 6.
As feministas marxistas, contudo, não abandonaram o
marxismo e continuaram produzindo ao longo das décadas em
que as críticas ao capitalismo haviam recuado. O fato de que o
texto de Arruzza sobre o tema das controvérsias entre feminismo
e marxismo ter sido publicado em 2010 demonstra que o debate
não foi encerrado, e as aproximações e distanciamentos entre
marxismo e feminismo continuaram a ocorrer. Já é 2020, e
continuamos a analisar a temática, fenômeno reforçado pela
conjuntura econômica e política mundial, de incessante ataque
à classe trabalhadora.
Em resposta à austeridade, surgem expressivos
movimentos de resistência feministas em âmbito internacional.
Podemos destacar: a marcha de mulheres contra Trump
(especialmente as racializadas e imigrantes) nos Estados Unidos,
bem como o movimento viral da internet #MeToo, que denunciou
casos de assédio e abusos sexuais envolvendo poderosos da
indústria estadunidense do cinema, em especial de Holywood; o
#niunaamenos (2015-2016) e a luta pela legalização do aborto
(2018-9), na Argentina; o movimento de mulheres chilenas,
iniciado pelo coletivo “Las Tesis”, de Valparaíso, com a frase que

6No Brasil, representantes do governo do presidente Jair Bolsonaro (2019 –


atual) expressaram claramente em seus discursos o repúdio ao que chamam,
sob influência de Olavo de Carvalho, de “marxismo cultural”. São exemplos, o
Ministro da Educação, Abraham Weintraub (ESTADÃO, 2019) e o Ministro das
Relações Exteriores, Ernesto Araújo (ESTADÃO, 2018).

88
repercutiu em outros países “O violador é você”, com referência
ao Estado liberal que produziu desigualdade social crescente
acompanhada de forte repressão policial; a luta das mulheres
contra Bolsonaro #elenão, no Brasil, em 2018; e outros protestos
de mulheres que também ocorreram no Equador, na Bolívia e na
Colômbia, em torno de demandas sociais, da questão indígena e
em defesa da democracia (PROTESTOS, 2020); por fim, o 8M, o
dia da greve internacional de mulheres, em marcha desde 2017,
e que abarca cada vez mais países, cujo manifesto (ARRUZZA;
BHATTACHARYA; FRAZER, 2019) deixa claro: trata-se de um
feminismo radicalmente anticapitalista.
Mediante esse contexto, nosso objetivo é apresentar as
principais teses, avanços e limites das três mencionadas
publicações, na tentativa de dialogar com as autoras,dado que é
bastante importante que uma base teórica feminista marxista
seja uma arma revolucionária para enfrentar o avanço da
barbárie capitalista do tempo presente.
Em conexão direta com o debate entre feminismo e
marxismo está a relação entre capitalismo e patriarcado, que nos
parece ser o ponto fulcral dos três artigos, especialmente a
polêmica, por um lado, se são sistemas separados que
convergem neste tempo histórico ou se, por outro lado, só faz
sentido pensar uma teoria unitária que reúna capitalismo e
patriarcado como partes do mesmo sistema.
Nessa seara, outro elemento surge como fundamental
para pesquisas que desejam investigar trabalho e gênero, para
além das interfaces entre marxismo e feminismo e capitalismo e
patriarcado: a relação entre produção e reprodução, a qual
também será abordada no presente capítulo, primordial para a
perspectiva a que temos nos dedicado com mais afinco, a da
Teoria da Reprodução Social 7.

7A Teoria da Reprodução Social é de base marxista, mas pretende avançar na


análise das questões de gênero. Tal teoria parte do princípio de que a produção
de bens e serviços e a produção da vida são parte de um mesmo processo, um
processo integrado (BHATTACHARYA, 2019). As pessoas que produzem coisas,
também são produzidas. No modo de produção capitalista, há particularidades
que exigem uma análise que conecte as relações de classe e gênero, com um
projeto maior de pensar como ontologia integrativa entre classe, gênero, raça e
sexualidade. Por isso, a necessidade de uma “teoria unitária”, conforme ficará
explicitado no capítulo.Destacam-se como importantes pesquisadoras/es nesse

89
Para os objetivos mencionados, organizamos o capítulo
da seguinte forma: a primeira seção trata do sistema dual
materialista proposto por Hartmann (1983 [1977]), em
contraposição ao sistema dual das feministas radicais; a
segunda seção apresenta a proposta de uma teoria unitária
(capitalismo e patriarcado) por Young (1992 [1981]); a terceira
seção apresenta a concepção de união queer entre marxismo e
feminismo, por Arruzza (2019 [2010]), que dialoga com a teoria
unitária de Young, entretanto, tentando pensar os desafios
postos pelo tempo presente, de uma economia global, entrela-
çando classe e gênero; por fim, a última seção conta com
apontamentos da autora do capítulo sobre limites e alcances do
debates mencionados, com sugestões por onde marxismo e
feminismo devem caminhar, a partir das contribuições anterior-
mente apresentadas.

Hartmann e o matrimônio infeliz entre marxismo e


feminismo.

Hartmann (1983 [1975-77]) inicia sua argumentação no


artigo “El infeliz matrimonio entre marxismo y feminismo: hacia
una unión más progressista” dizendo que o casamento entre
marxismo e feminismo se assemelha ao casamento entre esposo
e esposa: marxismo e feminismo são unitários, e essa unidade é
o marxismo, assim como no casamento convencional, a unidade
está no marido. Ela diz que, até então, as tentativas de integrar
marxismo e feminismo foram insatisfatórias para as feministas,
porque subordinaram a luta feminista à luta mais ampla, contra
o capital. Na percepção da estudiosa, ou se constitui um
casamento saudável entre marxismo e feminismo ou seria
melhor o divórcio total entre eles.
O argumento de Hartmann (1983) é o de que, apesar da
análise marxista prover conhecimentos primordiais sobre as leis
do desenvolvimento histórico e do modo de produção capitalista
em particular, as categorias marxistas estão “cegas com relação

campo: Lise Vogel, Martha Gimenez, Johanna Brenner, Susan Ferguson, David
Mc Nally, Cinzia Arruzza e Tithi Bhattacharya,

90
ao sexo”. Para essa pesquisadora, contudo, também a análise
feminista estava sendo cega à história, bem como insuficiente-
mente materialista. Sem negar a importância do marxismo,
Hartmann sugere uma nova direção para a análise do feminismo
marxista.
Ao propor um novo direcionamento, Hartmann (1983) se
centrou, especificamente, na relação entre capitalismo e
patriarcado. Para melhor compreensão desse direcionamento,
faz-se necessário diferenciar a noção de patriarcado para
Hartmann e para as feministas radicais, com quem ela dialoga
no artigo.
As feministas radicais surgiram nos Estados Unidos, no
contexto de intensa agitação política dos anos 1960. O american
dream abalado pelo assassinato de Kennedy e a recusa à Guerra
do Vietnã, em uma realidade racista, de exploração da classe
trabalhadora e imperialista, fizeram surgir, nos Estados Unidos,
movimentos sociais radicais. Não somente se constituía uma
Nova Esquerda, como as mulheres, no interior do próprio
movimento, estavam insatisfeitas sobre como eram tratadas,
bem como sobre a forma como a questão da mulher era
abordada em seus escritos e agitações.
Esses movimentos radicais não estavam interessados em
reformas políticas, estavam interessados em criar novas formas
de vida, novas formas de viver. Foi assim que, entre 1967 e 1975,
se desenvolveu o feminismo radical (PEDREIRA, 2008).

Em contraste com a abordagem pragmática tomada pelo


feminismo liberal, o feminismo radical visa remodelar a
sociedade e reestruturar as instituições que enxergam
como eminentemente patriarcais [...] Elas lutaram para
substituir as relações hierárquicas e tradicionais de poder,
que consideravam refletir o viés masculino da sociedade,
com abordagens não-hierárquicas e anti-autoritárias de
política e organização (GHANDI, 2016, p. 32).

É importante ressaltar que as análises são muito


circunscritas ao capitalismo dos países centrais, em especial,
dos Estados Unidos. No feminismo radical, destacaram-se duas
autoras: Juliet Mitchell e Shulamith Firestone, as quais não
negaram completamente o marxismo, mas quiseram colocar seu

91
método à serviço das questões feministas. Inclusive o “radical” é
inspirado nas noções marxistas de tomar as questões pela raiz.
Elas tinham por objetivo encontrar a raiz das opressões.
Firstone (1970) colocou a reprodução, ao invés da
produção, como a força motora da história, com ênfase muito
forte nas motivações biológicas e psicológicas para a condição
da mulher. Já Mitchell, segundo Hartmann (1983), foi incapaz
de analisar a participação dos aspectos materiais no processo de
formação da personalidade e na criação do gênero, ou como o
sexo (biológico) se converte em gênero (social).
No sentido já apontado, de acento nas questões
psicológicas, o principal slogan do movimento feminista radical
era “o pessoal é político”.

‘Lo personal es político’ significa, para las feministas


radicales, que la división de classe original y básica es
entre los sexos, y que la fuerza que motiva esto en la
historia es el esfuerzo de los hombres para dominar y
mantener su poder sobre las mujeresen la dialéctica del
sexo (HARTMANN, 1983, s.p.).

A relação entre homens e mulheres é pensada a partir de


uma relação de poder, de dominação, centrada no ego. “Lo
masculino busca poder y dominación: él es egocêntrico e
individualista; competitivo y pragmático; el ‘modo tecnológico’
según Firestone, es masculino. Lo feminino es artístico,
filosófico, el cuidado y crianza de los niños; el ‘modo estético’ es
feminino” (HARTMANN, 1983, s.p.).
Tal relação de poder colocada pela dialética dos sexos das
feministas radicais, com raízes biológicas, psicológicas e
culturais, definem uma noção de patriarcado que, para
Hartmann (1983), é bastante complicada, para não dizer pouco
rigorosa. O patriarcado referir-se-ia ao sistema social
caracterizado pela dominação masculina sobre as mulheres.
Ocorre, assim, uma universalização histórica do
patriarcado que perde de vista as particularidades. A universa-
lização histórica do patriarcado, ou seja, o fato de que a
dominação dos homens sobre as mulheres existe na maior parte
das sociedades, torna o patriarcado a-histórico.

92
Esta definición de patriarcado del feminismo radical se
aplica a la mayoría de las sociedades que conocemos y no
se puede distinguir entre ellas. El uso de la historia por las
feministas radicales está tipicamente limitado a sumi-
nistrar ejemplos de la existência del patriarcado em todos
los tempos y lugares (HARTMANN, 1983, s.p.).

Atenta à base histórica das análises marxistas, Hatmann


(1983) buscou recuperar a história do patriarcado. Segundo a
pesquisadora, a concepção de patriarcado hegemônica antes
desse desenvolvimento teórico das feministas radicais, seja para
os marxistas, seja para as demais principais correntes científico-
sociais do ocidente era:

[...] el patriarcado se referia a um sistema de relaciones


entre hombres que formaban los lineamientos económicos
y políticos de sociedades feudales y de algunas prefeu-
dales, em las cuales la jerarquia seguia ciertas
características adscritas. Las sociedades capitalistas son
entendidas por los científicos sociales burgueses, como
meritocráticas, burocráticas e impersonales. Los
marxistas vem las sociedades capitalistas como sistemas
de dominación de classe (HARTMANN, 1983, s.p.).

O feminismo radical traz uma proposta de definição de


patriarcado nova: sistemas de relações que permitem/
possibilitam a que homens dominem as mulheres. Carece,
entretanto, às feministas radicais, uma explicação das bases
materiais do patriarcado, por exemplo, a divisão sexual do
trabalho e controle que os homens exercem sobre a força de
trabalho das mulheres. Isso tem impacto, inclusive no controle
do corpo e da sexualidade das mulheres.
Ao se centrar na reprodução no lugar da produção social,
as feministas radicais perderam de vista a relação intrínseca
entre produção e reprodução social na sociedade capitalista. Ao
proporem uma espécie de “patriarcado puro”, sem história, sem
materialidade, acabaram por apagar as particularidades do
patriarcado e, em especial, de desvendar quais os determinantes
históricos do patriarcado no modo de produção capitalista.
Esse olhar sobre a particularidade é muito importante,
porque também quebra com leituras teleológicas da história

93
dentro do próprio marxismo, na medida em que possibilita
afirmar que, mesmo no socialismo, uma sociedade pode
permanecer sendo patriarcal. Ou seja, que a revolução em si não
produziria, automaticamente, a superação de outras opressões,
como a de gênero.
Hartmann (1983) concorda com o fato de que o
patriarcado esteve presente na maioria das sociedades que
conhecemos, porém afirma que se modifica em forma e em
intensidade. Bem como “las mujeres de diferente classe, raza,
nacionalidade, estado marital, grupo de orientação sexual, están
sujetas a diferentes grados de poder patriarcal” (HARTMANN,
1983, s.p.).
A centralidade na questão da relação de poder entre
homens e mulheres é tão grande para as análises das feministas
radicais, que essas passaram a rechaçar a luta conjunta entre
homens e mulheres.

Estudantes negros do Studaent Non-violent Coordination


Council (SNCC) (que haviam feito campanha para os
direitos civis para os negros) expulsaram os estudantes
homens e mulheres brancas na Convenção de Chicago,
com a justificativa de que apenas os negros deviam lutar
pela liberação dos negros. Da mesma forma, a ideia de que
a libertação das mulheres é a luta exclusiva das mulheres
ganhou terreno. Neste contexto, as mulheres membros do
Students for a Democratic Society (SDS) exigiram que a
libertação das mulheres seria uma parte de seu conselho
nacional em sua convenção em junho de 1968. Mas foram
vaiadas e votaram contra. Muitas destas mulheres saíram
e formaram a Women’s Radical Action Project (WRAP) em
Chicago. Mulheres de dentro da New University
Conference (NUC) – um corpo a nível nacional de
estudantes universitários, funcionários e professores que
queriam um EUA socialista – formaram um caucus de
mulheres. Marlene Dixon e Naomi Wisstein de Chicago
lideraram este processo. Shulamith Firestone e Pamela
Allen começaram atividades semelhantes em Nova York e
formaram o New York Radical Women (NYRW). Todas elas
rejeitaram a visão liberal que mudanças nas leis e uma
emenda de direitos iguais resolveriam os problemas da
opressão da mulher e acreditavam que toda a estrutura da
sociedade deveria ser transformada. Daí, chamavam a si

94
mesmas de radicais. Sustentaram a opinião que grupos e
partidos mistos (homens e mulheres) como o Partido
Socialista, SDS, New Left não seriam capazes de levar
adiante a luta pela emancipação da mulher e um
movimento de mulheres, autônomo dos partidos, seria
necessário (GANDHI, 2016, p. 26).

Hartmann (1983) não nega a classe social nem a luta


conjunta de mulheres e homens da classe trabalhadora, o que,
para ela, teria repercussões graves à luta anticapitalista. Ao
contrário, sua intenção, com o artigo em análise, diz respeito ao
desafio de aproximar o marxismo e o feminismo. Para tanto,
propõe uma nova concepção de patriarcado:

[...] el patriarcado como um conjunto de relaciones sociales


que tiene uma base material y em la cual hay relaciones
jerárquicas entre los hombres y solidariedade entre ellos,
lo que les permite dominar a las mujeres. La base material
del patriarcado es el control de los hombres sobre la fuerza
de trabajo de las mujeres. Dicho control se mantiene
negando acceso a las mujeres a los recursos productivos
economicamente necessários y restringiendo su
sexualidade (HARTMANN, 1983, s.p.).

Com essa nova proposta de definição de patriarcado,


Hartmann (1983) buscou tornar mais próxima a relação entre
capitalismo e patriarcado, ao apontar para a base material do
deste último, relacionando a hierarquia entre homens e
mulheres com a divisão do trabalho.
Ao produzir sua crítica, Hartmann (1983) também
assinalou para o interesse, no interior do proletariado, de se
manter uma relação de controle dos homens sobre as mulheres,
principalmente quando esses argumentavam que a entrada das
mulheres no mercado de trabalho reduziria os próprios salários,
de modo que seria melhor que elas continuassem cumprindo
suas tarefas no lar.
Também criticou uma leitura mecanicista marxista que
afirmava que o patriarcado desapareceria frente à necessidade
do capitalismo de proletarizar a todos e todas. Segundo a
estudiosa, os que faziam esse tipo de afirmação subestimaram a
força e a flexibilidade tanto do patriarcado quanto do capital.

95
Hartmann (1983) propôs, conclusivamente, a partir de
toda essa análise, uma união mais progressista entre marxismo
e feminismo para, dessa forma, organizar uma prática que se
dirigisse tanto contra o patriarcado como contra o capitalismo.
“[...] mientras que los hombres han luchado por más tiempo
contra el capital, las mujeres sabemos por qué luchar” (s.p.).
Arruzza (2015 [2014]), em análise mais recente, propõe
reabrir o debate entre capitalismo e patriarcado. Em sua
pesquisa, formulou três teses: a “teoria dos sistemas duplos ou
triplos”; a do “capitalismo indiferente” e a “teoria unitária”.
A teoria dos sistemas duplos seria aquele que analisa
capitalismo e patriarcado como dois sistemas diversos, com
estrutura própria.O sistema triplo seria aquele que incluiria,
além de capitalismo e patriarcado, um terceiro sistema, para
tratar a questão racial, de forma autônoma, ainda que
interseccionando-se com os dois primeiros.
Na tese do “capitalismo indiferente”, a opressão de
gênero, expressa no patriarcado, é vista como reminiscente de
formas sociais anteriores ao capitalismo.Este teria uma relação
oportunista com a desigualdade de gênero e poderia superá-la
sem maiores dificuldades. Uma importante teórica do campo
marxista aparece como representante dessa tese: Ellen Wood.
Já a teoria unitária busca dar “uma explicação teórica
única e integrada tanto da opressão às mulheres quanto do
modo de produção capitalista” (FERGUSON; MCNALLY, 2017, p.
33).
Apesar das cobranças que Hartmann faz quanto as
aproximações entre marxismo e feminismo, Arruzza (2015)
adverte que Hartmann (1983) recai na teoria dos sistemas
duplos, porque não colocam capitalismo e patriarcado como
parte de uma mesma unidade. Tal conclusão está em
consonância com a leitura de Young, que analisaremos a seguir.

Young: para além de uma aliança progressista

Se Hartmann (1983) fez grandes avanços no que diz


respeito à relação entre marxismo e feminismo, Young (1992
[1981]) quer ir além. Para a mencionada pesquisadora, apesar

96
de Hartmann ter dado bases materiais ao patriarcado, ainda
tratou capitalismo e patriarcado como um sistema dual. Young
(1992) propõe uma teoria unitária. Diz a autora:

Yo plantearé, sin embargo, que la teoria del sistema dual


no puede reparar el infeliz matrimonio del marxismo y el
feminismo. Hay buenas razones para crer que la situación
de la mujer no está condicionada por dos sistemas
distintos de relaciones sociales que tienen estructuras,
dinâmicas e historias distintas. Es más, el marxismo
feminista no puede contentarse com um mero
“matrimonio” de dos teorias – marxismo y feminismo – que
reflejan dos sistemas: el capitalismo y el patriarcado. Por
el contrarío, el proyecto del feminismo socialista debe ser
el desarrollar uma teoria única, aprovechando lo mejor del
marxismo e del feminismo radical, para compreender el
patriarcado capitalista como um sistema em el cual la
opresión de la mujer es um atributo central (YOUNG,
1992, s.p.).

Young (1992) concorda com as críticas que Hartmann


(1983) faz às feministas radicais, principalmente no que diz
respeito ao acento exagerado nos cuidados dos filhos e no fato
de considerarem o patriarcado um fenômeno psicológico ou
cultural, apartado da materialidade real concreta, portanto,
estático e a-histórico.
Apesar de estar de acordo com Hartmann nos aspectos
mencionados, Young (1992) observa que, mesmo que tendo
proposto bases materiais para o patriarcado, ela ainda posiciona
o capital e o patriarcado como formas distintas de relações
sociais, com conjuntos distintos de interesses. Coexistem,
porém, não necessariamente se relacionam. Para Hartmann,
segundo a leitura de Young (1992), há leis de transformação
específicas do patriarcado, que se diferem das leis gerais do
capitalismo.
Se Hartmann (1983) afirma que as relações sociais
patriarcais dentro do capitalismo contemporâneo não se
restringem ao âmbito da família, mas alcançam o espaço do
trabalho assalariado, bem como outras instituições fora do lar,
torna difícil olhar para o patriarcado e o capitalismo como
sistemas distintos, ou seja,de forma dual. “Parece razonable, sin

97
embargo, admitir que, si el patriarcado y el capitalismo se
manifiestan em estructuras económicas sociales idênticas,
entonces pertenecem a um sistema, y no a dos” (YOUNG, 1992,
s.p.). Corre-se o risco, em se mantendo uma análise dual, de se
propor que o patriarcado seja um modo de produção em si
mesmo, alertou Young (1992).
Sob influência das feministas radicais, também as
feministas materialistas 8 enveredaram para o debate de classe
de sexo, tendo sido um artigo fundante neste sentido o intitulado
“O inimigo principal: a economia política do patriarcado”, de
Christine Delphy, de 1970, no qual ela indica que há um modo
de produção patriarcal em paralelo ao modo de produção
capitalista, e que as mulheres devem se atentar para a
exploração que ocorre dentro dos lares, estabelecida pelo
antagonismo de classe de sexo.

Na verdade, ao pretender que as mulheres pertencem à


classe do marido, mascara-se exatamente que elas
pertencem por definição a uma classe diferente da do
marido. Ao pretender que o casamento pode substituir as
relações de produção no sistema capitalista como critério
de pertencimento de classe nesse sistema, mascara-se
tanto a existência de outro sistema de produção quanto o
fato de que as relações de produção nesse sistema colocam
precisamente maridos e mulheres em classes antagônicas
(em que uns tiram um proveito material da exploração das
outras). Por fim, a “reintegração” das mulheres nas classes
por sua definição como propriedade do marido objetiva
precisamente velar o fato de que elas são uma propriedade
do marido (DELPHY, 2015, p. 114-115, grifos nossos).

A separação do que ocorre no centro da família (trabalho


não pago) do que se passa no âmbito do trabalho pago faz com
que faltem ferramentas de análise para entender a opressão
sexista a essas análises, podendo, no limite, servirem aos
interesses do próprio capitalismo.

8O grupo das feministas materialistas francesas se formou com várias mulheres


reunidas em torno da revista “Questions Féministes”, tais como Christine
Delphy, Colette Guillaumin, Nicole-Claude Mathieu, Monique Wittig e outras, as
quais se debruçaram no debate da desnaturalização do sexo.

98
Young (1992) sugere às feministas, destarte, que não se
“casem” com o marxismo, mas que se apropriem das análises
das relações de produção e das relações sociais do marxismo
para propor uma teoria que tome o trabalho das mulheres como
central, portanto, “[...] um sistema único en el cual la
diferenciación de género es un atributo central” (YOUNG, 1992,
s.p.).
Assim como o sistema de classes é categoria central de
análise para o marxismo tradicional, Young (1992) propõe que a
“divisão do trabalho por gênero” seja categoria central dessa
teoria unitária a ser proposta pelas feministas. Em concordância
com Hartmann (1983), para Young (1992), o conceito de classe
é sem dúvida “cego ao gênero” no marxismo. Segundo a
pesquisadora, a categoria “divisão do trabalho” permaneceu sem
desenvolvimento após importante explanação de Marx e Engels
em “A ideologia Alemã”.
Young (1992) procurou avançar com relação à Hartmann
(1983) ao dizer que as tarefas tradicionais da mulher no lar
também cabem dentro da categoria trabalho, aproximando
produção e reprodução como parte das relações sociais.
As relações de gênero e a posição da mulher devem estar
no centro da análise materialista histórica, de modo a relacionar
a emergência da sociedade de classes à divisão do trabalho por
gênero sem, com isso, repetir o equívoco das feministas radicais
de afirmar que a sociedade de classes deriva da opressão sexual.
Outro elemento que já aparece em Hartmann (1983) e
que é reforçado por Young (1992) é a importância da relação
entre universal e particular, para quem a divisão do trabalho por
gênero evita generalizações de que as mulheres em diferentes
espaços geográficos e tempos históricos sofrem da mesma forma
a opressão sexual. Há variações de graus de subordinação das
mulheres aos homens, inclusive com relação à raça, origem
étnica etc.
Feito esse desenvolvimento teórico, Young (1992)
apresenta sua tese central: “[...] la marginalización de la mujer
y, por conseguiente, nuestro funcionamento como uma fuerza
laboral secundária, es uma característica fundamental e
essencial del capitalismo” (YOUNG, 1992, s.p.).

99
Sem usar o conceito de Marx (2013), Young (1992) diz
que a mulher compõe a superpopulação relativa, que responde
às flutuações em torno da massa empregada. Citando Saffioti,
ela coloca os homens no núcleo central ou como trabalhadores
primários, e as mulheres como trabalhadoras secundárias ou
marginais.
O capital precisa de critérios para absorver ou não uma
determinada quantidade de trabalhadores no mercado de
trabalho, respondendo às suas necessidades. O capitalismo se
utiliza de critérios técnicos e raciais, mas o mais óbvio e
permanente, segundo Young (1992), tem sido a divisão por sexo.
A depender da conjuntura, os trabalhadores homens bem pagos
são trocados por mulheres mal remuneradas.
Ainda assim, mesmo que tidas como secundárias, os
capitalistas continuam a promover a ideologia da “feminilidade
doméstica” para justificar baixos salários, sua indispensa-
bilidade no lar e para impedir que se organizem (YOUNG, 1992,
s.p.).
Para Lerner (2019), estudiosa da história da opressão das
mulheres, esse caráter ideológico é reforçado materialmente:

O sistema do patriarcado só pode funcionar com a


cooperação das mulheres. Assegura-se essa cooperação
por diversos meios: doutrinação de gênero, carência
educacional, negação às mulheres do conhecimento da
própria história, divisão de mulheres pela definição de
“respeitabilidade” e “desvio” de acordo com suas atividades
sexuais; por restrições e coerção total; por meio de
discriminação no acesso a recursos econômicos e poder
político e pela concessão de privilégios de classe a
mulheres que obedecem (LERNER, 2019, p. 267).

Também atenta às bases materiais, e para defender a


teoria unitária em contraposição à teoria dual, Young (1992)
desenvolve sobre as implicações práticas da teoria. Segundo ela,
seria muito difícil fazer uma luta contra o patriarcado (na
definição materialista posta por Hartmann) em separado da luta
contra o capitalismo. No máximo, ela consegue citar a luta por
direitos reprodutivos.

100
Mas, se recorrermos a publicações contemporâneas
àquelas, como a de Guillaumin (2014 [1978]) 9, para quem a
mulher é uma fábrica de fazer filhos, portanto, de produzir força
de trabalho, cuja vida é, não somente explorada e oprimida, mas
também seu corpo apropriado privada e coletivamente, veremos
que nem os direitos reprodutivos seriam exceção.
Assim, para Young (1992), a luta é uma só e urgente:
contra o capital e contra o patriarcado, que compõem um único
sistema.

Arruzza: a união queer entre marxismo e feminismo.

Diante da pergunta inicial de Hartmann sobre o


casamento saudável entre marxismo e feminismo ou o divórcio
total, Arruzza (2019 [2010]), face ao enorme processo de
feminização do trabalho diante da mundialização do capital,
descarta, sem reticências, a possibilidade do divórcio.
No século XXI, nada obstante, Arruzza (2019) continua
constatando a dificuldade da teoria marxista integrar os debates
de divisão sexual do trabalho, do papel da reprodução capitalista
e de como a ideologia patriarcal se relaciona com a dinâmica da
acumulação. A pesquisadora observa que movimentos sociais e
as teóricas do feminismo têm feito a retirada da categoria classe
social de suas análises, em nome de uma sororidade universal
das mulheres.
Em Arruzza (2019), a relação entre capitalismo e
patriarcado também aparece como relevante, em conexão com a
teoria unitária. Contudo, nos parece que outra relação,
conectada à anterior, é primordial no referido capítulo: a relação
entre classe e gênero. “O que interessa não é se a classe vem
antes do gênero ou o gênero antes da classe, mas como o gênero
e a classe se entrelaçam nas relações de produção capitalista
[...]” (ARRUZZA, 2019, p. 140).

Desenvolver uma visão que possa dar sentido às ligações


e decifrar a complexa relação entre os vestígios patriarcais

9 Ainda que se trate de uma feministas materialista, acreditamos que a

contemporaneidade do debate se faz relevante.

101
que se movem como fantasmas em um mundo capitalista
globalizado e estruturas patriarcais que, ao contrário,
foram integradas, usadas e transformadas pelo capita-
lismo, exige uma renovação do marxismo. Esta renovação
é necessária para ir além da contraposição entre as
categorias cultura e economia, material e ideológico. Um
projeto político que busque construir um novo movimento
de trabalhadores requer uma séria reflexão sobre como
gênero e raça influenciam tanto a composição da força de
trabalho quanto o processo de subjetivação. Além disso,
significa o fim da disputa sobre a “opressão original”
(ARRUZZA, 2019, p. 140).

Segundo explicação de Nancy Fraser (apud Arruzza,


2019, p. 129), a teoria queer 10 não tem por objetivo a
reivindicação de uma identidade homossexual, transexual ou
intersexual, mas desconstruir a dicotomia homossexual/
heterossexual. Portanto, assim como a teoria revolucionária
marxista quer o fim das classes sociais, a teoria queer quer o fim
do gênero.
Quando Arruzza (2019) fala de união queer, ela está se
referindo às tentativas equivocadas de fazer do gênero uma
classe ou da classe um gênero, pulverizando relações pessoais e
as reduzindo a opressões singulares, a esperar um espaço na fila
pela inclusão no projeto de emancipação.
A defesa de uma teoria unitária, por Arruzza (2015;
2019), passa pela necessidade de se olhar o capitalismo como
uma totalidade articulada e contraditória, cuja reprodução é tão
primordial para a sua sustentação quanto a produção, as quais
se movimentam dialeticamente enquanto uma unidade.
Conforme defendido do Huws (2014), vida, trabalho e
valor sustentam esse modo de produção.

10A teoria queer foi desenvolvida na década de 1990 e tem como principal teórica
a filósofa Judith Butler. Em crítica a leituras deterministas, essencialistas e
biologicistas, a estudiosa ressalta o caráter performativo do gênero, na tentativa
de quebrar com a lógica normativa preponderante. Arruzza (2019) ressalta
importância da análise de Butler por ter conectado elementos da cultura com a
base material. Contudo, enxerga como limite um distanciamento da base
econômica que estrutura as relações de poder.

102
O termo reprodução social, na tradição marxista,
normalmente indica o processo de reprodução de uma
sociedade em sua totalidade [...]. Na tradição marxista
feminista, entretanto, reprodução social significa algo
mais preciso: a manutenção e reprodução da vida, em nível
diário e geracional. Neste contexto, reprodução social
designa a forma na qual trabalho físico, emocional e
mental necessário para a produção da população é
socialmente organizado (ARRUZZA, 2015, p. 55).

É preciso ter claro que, na teoria unitária, o espaço da


reprodução não se restringe ao lar, mas avança para os campos
da educação, saúde, política social em geral, porque valor de
troca está em unidade contraditória com o valor de uso e, apesar
do capital produzir morte 11, ele não existe sem a reprodução da
vida. O desafio, portanto, das feministas marxistas é trabalhar
nessa contradição para formação de uma nova subjetividade e
novas práticas revolucionárias.

Marxismo feminista e feminismo marxista

Essa recuperação do debate demonstra a relevância


política dessa aproximação entre marxismo e feminismo, ao
mesmo tempo em que aponta para algo primordial ao marxismo:
a autocrítica. Karl Marx, até o final da vida, repensou a teoria
que produziu. Musto (2018), em biografia dos dois últimos anos
de vida de Marx, apresentou um pesquisador que ainda fazia
profundas descoberta no campo da antropologia e da propri-
edade comum nas sociedades pré-capitalistas, por exemplo,
para aprimorar a sua crítica da economia política. Devemos
seguir o exemplo de Marx, que não tinha receio em repensar a
sua teoria e renovar o marxismo, sem desviar de seus
fundamentos, em especial de seu método.
Da década de 1970 aos dias atuais, foram traduzidas e
publicadas muitas obras inéditas de Marx, bem como o próprio
marxismo se desenvolveu, especialmente no que diz respeito à

11Desde o trabalho morto no processo de reprodução capitalista até a repressão


de cariz genocida, que elimina força de trabalho excedente.

103
crítica dialética a um materialismo histórico economicista 12. Tal
crítica torna muito equivocado tratar a reprodução em separado
da produção social, quanto mais afirmar que o patriarcado é
parte da superestrutura ou apenas uma expressão ideológica da
produção econômica.
Também consideramos que essa (re)visitação à obra de
Marx pode invalidar a afirmação de que o autor e marxismo são
cegos em relação ao sexo/gênero 13. Ao falar de classe e divisão
do trabalho, Marx não ignorou a questão da mulher. Podemos
dizer que são apontamentos não aprofundados, mas
consideramos um tanto quanto exagerado afirmar que era cego
no que diz respeito às mulheres na composição social das
classes. Outros marxistas, como István Meszáros (2002),
dedicaram espaço em suas obras para discutir especificamente
a libertação da mulher 14.
Além de um exercício na utilização do método
materialista histórico dialético, se faz necessária uma análise
ontológica do ser social mulher na sociedade capitalista para
entender o patriarcado em sua intrínseca relação com o modo
de produção capitalista, observando diferentes níveis de
abstração na análise, que deem conta da relação universal,
particular e singular.
As autoras chamam atenção, e estamos de acordo com
elas, para a necessidade de pesquisas empíricas, que nos
permitam melhor nos apropriarmos da materialidade concreta
da sua posição de mulher (em toda a sua heterogeneidade de
classe, raça e orientação sexual), sob opressão patriarcal, na
sociedade capitalista.
Em conclusão ao debate, fazemos a defesa de uma teoria
unitária, que pense capitalismo e patriarcado como uma
totalidade integrada e não como dois sistemas em separado.
Cientes de que o patriarcado existe na história há muito mais
tempo que o modo de produção capitalista, analisamos que o
capitalismo eleva o patriarcado a um novo patamar, cujas

12 Para este debate, ver Moraes (2017).


13 O debate em torno do uso dos conceitos sexo e gênero podem ser encontrado
em Cisne (2014) e Scott (1986).
14 Para este debate, ver Mészáros (2002) e Moraes (2018).

104
particularidades e singularidades podem ser expressas em
pesquisas empíricas.
É preciso destacar e fazer a autocrítica para o fato de que
as feministas marxistas têm se centrado nos âmbitos de gênero
e classe, e que a questão racial tem sido marginalizada em boa
parte da produção teórica desse campo. Por mais que se
reivindique que não é possível pensar ontologicamente a mulher
a não ser em sua diversidade concreta –isso significa pensar
tanto raça, quanto classe, quanto sexualidade como fundantes
do que seja o ser social mulher na sociedade capitalista –, ainda
há que se avançar nesse sentido.
O rigor teórico, a observância do método, a análise da
materialidade concreta e proposição política de um feminismo
anticapitalista podem ser fortes instrumentos na luta contra a
barbárie capitalista que se aprofunda velozmente com a
mundialização financeira do capital. Tal arcabouço pode revelar
que uma revolução social só se concretiza se o marxismo for
feminista e se o feminismo for marxista.

Referências

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105
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108
Determinaciones de la fuerza de trabajo
de las mujeres en el Capitalismo: una
aproximación teórica
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Arelys Esquenazi Borrego 1

Introducción

A primera vista pareciera que la lógica del capital es


indiferente acerca de qué tipo de trabajadores asalariados
explota. Aparentemente el único criterio relevante es la
disponibilidad de fuerza de trabajo en cantidades suficientes a
los requerimientos que impone la continua, aunque no siempre
ascendente, acumulación capitalista. Pareciera que dentro de la
lógica del capital no existe ninguna otra distinción relevante,
pero realmente al capitalista sí se le importa acerca cómo obtiene
la fuerza de trabajo y cuáles son las características de la mano
de obra que él integra, como capital variable, al proceso de
producción.
Es por ello que, a partir de tales o cuales características,
que varían siempre histórica y socialmente, la lógica del capital
integra o excluye (parcialmente) a sujetos dentro del proceso de
valorización. En este sentido, Ferguson (2017) destaca que el
trabajo es siempre una experiencia concreta, corporificada. Lo
cierto es que, características como: edad, raza/etnia, sexo,
orientación sexual, etc., siempre han tenido una connotación
diferenciadora para los sujetos sociales dentro del proceso de
producción capitalista.
Específicamente, el presente artículo se enfoca en
analizar la articulación entre relaciones patriarcales de género y
relaciones sociales de producción; así como, en las
determinaciones que de dicha articulación se derivan para la

1 Doctoranda del Programa de Postgraduación en Política Social de la


Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Máster en Economía por la
Universidad de La Habana. Bolsista CAPES.

109
fuerza de trabajo de las mujeres en los marcos de la lógica del
capital. La finalidad de este análisis es argumentar, primero, el
proceso de subordinación estructural al que se encuentra
sometida la fuerza de trabajo de las mujeres en el Capitalismo y,
segundo, que el trabajo desempeñado por las mujeres en este
sistema está no solamente determinado por la explotación; sino
también determinado por relaciones opresión de género,
coherentes y favorables a la lógica de la acumulación.
El artículo se ha estructurado en tres ítems: el primero,
examina la relevancia de la división sexual del trabajo dentro de
este análisis; posteriormente, se abordan las articulaciones
entre producción del capital y reproducción de la fuerza de
trabajo, y sus implicaciones para las mujeres; y por último, se
analizan las características y contradicciones del trabajo
remunerado de las mujeres en el Capitalismo. De forma general,
se examinan aspectos polémicos tanto dentro del marxismo, del
feminismo, como en las diferentes intersecciones entre estas dos
perspectivas teóricas y prácticas. La metodología utilizada es el
análisis bibliográfico.

La división sexual del trabajo como síntesis entre


relaciones sociales de producción y relaciones patriarcales
de género

El presupuesto de partida para el presente análisis, es el


de asumir las relaciones patriarcales de género capitalistas como
expresión de relaciones sociales de producción capitalistas, y
viceversa. Lo cual implica invalidar el fetiche de que las
relaciones patriarcales de género se resumen, solamente, a
relaciones entre hombres y mujeres, o al interior de cada uno de
estos grupos. Es necesario entenderlas más allá de relaciones
personales, individuales y cotidianas (ámbito micro), para
comenzar a pensarlas como relaciones estructurales más
amplias (ámbito macro); es decir, como expresión del
metabolismo social del capital (HAUG, 2006), (ESQUENAZI
BORREGO, 2018).
Por su parte, Ferguson (2017) también destaca cómo la
lógica de la acumulación y la expropiación en el Capitalismo

110
demandan la existencia de relaciones patriarcales de género
específicas. Es decir, el modo de producción capitalista adapta,
excluye y crea relaciones patriarcales de género que sean
coherentes y favorables a la lógica de la valorización del capital.
Adicionalmente, resalta esta autora que “dichas relaciones de
género – recíprocamente determinantes de, y determinadas por,
relaciones raciales y otras más – constituyen al Capitalismo.
Ellas se encuentran entre las fuerzas sociales reales, a través de
la cual la lógica de la acumulación y la expropiación opera”
(FERGUSON, 2017, p. 26, traducción propia).
Adicionalmente, este enfoque también busca destacar
cómo determinadas relaciones de género tributan a impulsar,
directa o indirectamente, el proceso de valorización. De esta
forma, la utilización de relaciones patriarcales de género puede
también convertirse en una posible palanca para el desarrollo de
la acumulación capitalista; e inclusive, en una válvula de escape
en momentos de crisis. En otras palabras, la forma específica en
que se concretan las relaciones patriarcales de género se
convierte en uno de los factores que ayuda a reproducir el
conjunto de las relaciones sociales capitalistas.
Un aspecto central dentro del análisis de las conexiones
que se establecen entre relaciones patriarcales de género y
relaciones sociales de producción, lo constituye la división
sexual del trabajo. Al respecto, se defiende la postura de que la
división sexual del trabajo es uno de los principales fenómenos
que explica la subordinación estructural del trabajo realizado
por las mujeres dentro de la sociedad capitalista.
Se suscribe la idea de que el Capitalismo se ha edificado
sobre una específica división sexual del trabajo. Con ello no se
pretende trasmitir la idea de que la división sexual del trabajo
sea un fenómeno privativo del modo de producción capitalista;
por el contrario, constituye un proceso que tiene su génesis en
los preludios de la humanidad. En este sentido, la división
sexual del trabajo debe ser considerada un fenómeno modulado
histórica y socialmente, y por tanto en constante transfor-
mación. No obstante, se enfatiza en que el modo de producción
capitalista ha utilizado de forma funcional dicha división sexual
del trabajo para dar respuesta a variadas exigencias del proceso
de valorización del capital en diferentes momentos históricos y

111
contextos sociales; por lo cual este fenómeno ha asumido, bajo
el Capitalismo, determinaciones históricas y sociales
particulares.
Otra acotación relevante es que la división sexual del
trabajo, además de ser un proceso socio-históricamente
determinado, también se encuentra influenciado por otras
condicionantes en función de la clase social, raza/etnia,
nacionalidad, entre otros aspectos. Esta puntualización es
relevante porque – aunque se esté haciendo un análisis general
relacionado al trabajo de las mujeres en la sociedad capitalista
– esto no puede llevar a una lectura simplificadora de la realidad,
que asuma que todas las mujeres tienen una situación común y
unificada, y por lo tanto que las implicaciones de la división
sexual del trabajo son iguales para todas las féminas. Por lo
cual, no sólo las opresiones que estas sufren serán
diferenciadas; sino que, adicionalmente, el propósito y alcance
de sus luchas también lo será.
La lógica del capital, como totalidad compleja y
contradictoria, articula constantemente procesos como la
división del trabajo social, la división internacional del trabajo,
y también la división sexual del trabajo. Esta última, al igual que
las anteriores, implica una especialización a lo interno de los
procesos de trabajo; es decir, implica “[...] una división o forma
de organización social de la distribución del trabajo entre los dos
grupos de sexo [...]” (DEVREUX, 2005, p. 568, traducción
propia).
Sin embargo, lo específico a este fenómeno es que, al
mismo tiempo en que produce una distribución diferenciada del
trabajo social entre hombre y mujeres, también genera una
ponderación desigual de dichos trabajos según niveles de
importancia y reconocimiento social. De esta forma, la división
sexual del trabajo se configura a través de dos principios
organizadores o invariantes: “el principio de separación (existen
trabajos de hombres y trabajos de mujeres) y el principio
jerárquico (el trabajo del hombre “vale más” que el trabajo de la
mujer). Estos principios [...] rebajan el género al sexo biológico,
y reducen las prácticas sociales a “roles sociales” sexuados que
remeten al destino natural de la especie (HIRATA; KERGOAT,
2007, p. 599, traducción propia).

112
En síntesis, la división sexual del trabajo no es un
fenómeno natural ni neutral; ni tampoco surge como resultado
de la necesaria complementariedad y reciprocidad entre
hombres y mujeres en el mundo del trabajo. Al contrario, es un
proceso esencialmente asimétrico. En este sentido, como
destacan Cisne y Dos Santos (2018), no se trata apenas de
trabajos diferentes en función del género, sino que implica,
esencialmente, la realización de trabajos jerarquicamente
distintos, que se desdoblan y se expresan en diversas desigual-
dades.
Por otra parte, Tabet (1979) otorga un especial destaque
al desigual acceso de las mujeres a los instrumentos de trabajo,
tanto en su elaboración como utilización; siendo este
subequipamiento material por parte de las mujeres uno de los
aspectos a través de cual se expresa y, al mismo tiempo, se
configura la división sexual del trabajo. Efectivamente, “[...] en
la gran mayoría de las sociedades conocidas, la desigual división
del trabajo entre los sexos se apoya en un acceso diferenciado a
las herramientas, a las armas y al conocimiento” (CURIEL;
FALQUET, 2005, p. 17); características que no han tenido una
mudanza significativa con el desarrollo del modo de producción
capitalista. En resumen, estos análisis también remeten a una
cuestión central que es la desigual configuración, en términos
de género, de la propiedad y uso sobre los medios de producción
en la sociedad. De lo cual deriva, entre sus posibles
implicaciones, la generación de una productividad del trabajo
más constante y elevada para los hombres; así como, un mayor
control del proceso de producción y una dispar apropiación de
los resultados obtenidos en el proceso de producción capitalista
entre hombres y mujeres.
Por su parte, la división sexual del trabajo; así como, los
principios organizadores a través de los cuales esta se estructura
tienen diversas formas de expresión concreta. Como vía para
ilustrar la vinculación existente entre relaciones patriarcales de
género capitalistas y relaciones sociales de producción
capitalistas, se aborda a continuación cómo la división sexual
del trabajo conduce a una específica articulación entre los
procesos de producción del capital y de reproducción de la fuerza
de trabajo.

113
Articulaciones entre producción y reproducción en el
sistema capitalista

El proceso de producción del capital y la reproducción de


la fuerza de trabajo constituyen dos fenómenos que son parte de
la totalidad compleja que implica la reproducción social. En
otras palabras, “[...] si bien son distintas y tienen características
específicas, la producción y la reproducción son necesariamente
combinaciones de momentos concretos de una totalidad
articulada” (ARRUZZA, 2014, p. 13). Al igual que la lógica del
capital implica la fusión entre relaciones capitalistas de
producción y relaciones patriarcales de género en un sistema
integrado (ARRUZZA, 2010, 2014, 2017); dicha lógica, al mismo
tiempo, también conduce a una estrecha articulación de la
esfera de la producción y de la reproducción, a través de la
acción de la división sexual del trabajo.
De esta forma, los cambios en una de estas esferas
repercuten en la otra, y conducen necesariamente a ajustes en
los dos sentidos. No obstante, destacar que dicha articulación
puede tener descompases; generándose tensiones coyunturales
entre ambos espacios, y posibles crisis para el sistema
capitalista como un todo. De igual forma resaltar que, aunque a
lógica del capital integra ambas esferas lo hace siempre de
manera desigual o asimétrica; subordinando las necesidades de
la reproducción de la fuerza de trabajo a las del proceso de
valorización del capital.
A su vez, el enfoque que se suscribe entiende la
reproducción de la fuerza de trabajo más allá de los limitados
marcos de lo puramente biológico. Esta es entendida como un
amplio y complejo conjunto de actividades y relaciones a través
de las cuales, no sólo la vida humana; sino también la propia
capacidad de trabajo del sujeto y la vida familiar se reproducen
diaria y generacionalmente. Englobando aspectos físicos,
emocionales y sexuales, asociados al amplio espectro de
actividades domésticas y de cuidados. Por lo que, al igual que en
el ámbito de la producción capitalista, la reproducción de la
fuerza de trabajo implica la realización de trabajo; sólo que, a
diferencia del anterior, no será un trabajo socialmente reco-
nocido.

114
La anterior no es una connotación menor, porque dicho
no va a alcanzar el mismo nivel de prestigio social que el trabajo
desempeñado como parte del proceso de producción de capital.
De forma que, no será un trabajo reconocido socialmente a
través del mercado y, por ende, generalmente dicho trabajo no
será remunerado. Incluso, en la mayoría de los casos, debido a
la propia mistificación e inversión que genera la sociabilidad
capitalista, las actividades y relaciones realizadas como parte del
proceso de reproducción de la fuerza de trabajo, no se les va a
otorgar el estatus de trabajo.
Por otra parte, precisar que el trabajo asociado a la
reproducción de la fuerza de trabajo realizado tiene un carácter
improductivo. En este sentido, desde la perspectiva marxista,
sólo es productivo en el Capitalismo el trabajo que contribuye
directamente a la producción de plusvalía; es decir, a la
valorización del capital. 2 En contrapartida, no es productivo
aquel trabajo que solamente produce valores de uso o el que
facilita el paso de unas formas de valor a otras, pero sin
contribuir a su valorización. De esta forma, el carácter
productivo o no de un trabajo concreto no se encuentra
relacionado con el hecho de que su naturaleza sea manual o
intelectual, ni con la condición material o inmaterial de su
producto, ni tampoco con su necesidad o prioridad social. Por lo
que la denominación de trabajo productivo o improductivo no
tiene, dentro de la perspectiva marxista, un trasfondo moral o
una connotación peyorativa; sino que se establece en función del
papel que dicho trabajo tiene en la producción de plusvalía
(ARRIZABALO, 2016).
El análisis anterior es relevante para la discusión que se
viene desarrollando porque, aunque se ha defendido la estrecha
articulación entre esfera de la producción y la esfera de la
reproducción, es importante destacar que entre ambas no existe
una identidad; por lo cual es posible diferenciarlas según sus
características y, sobre todo, por sus respectivos roles dentro del

2 No obstante, cabe resaltar que la categoría “trabajo productivo” es un aspecto


igualmente polémico dentro de la tradición marxiana, siendo abordada por los
marxistas más contemporáneos con algunas diferencias entre ellos. Al respecto,
consultar las siguientes obras: Prieb y Carcanholo (2011); Lessa (2012); Netto y
Braz (2017), entre otros autores.

115
proceso de valorización (ARRUZZA, 2017). La postura que se
suscribe, defiende la idea de que el trabajo reproductivo produce
valores de uso y no mercancías. Adicionalmente, en esta esfera
independientemente de que dicho trabajo sea remunerado o no,
no se generan las condiciones socio-económicas que conlleva la
producción de plusvalía. En este sentido se suscribe que el
trabajo asociado a la reproducción de la fuerza de trabajo tiene
un carácter improductivo.
Al mismo tiempo es importante insistir nuevamente en la
idea de que aunque el trabajo reproductivo se realice sin
reconocimiento social y no tenga un carácter productivo, ello no
quiere decir que no sea un trabajo fundamental para el
desarrollo de la sociedad. De hecho, se trata de todo lo contrario,
de entender la relevancia que asume el trabajo reproductivo
dentro de la lógica del capital (MARX, 1973[1867]). En otras
palabras, sin trabajo reproductivo no es posible la constante
renovación de la mercancía especial que sustenta todo el proceso
de acumulación (FEDERICI, 2013).
De esta forma, para que se garantice la valorización del
capital, tienen que reproducirse constantemente las condiciones
de partida que permiten la explotación de la fuerza de trabajo
asalariada; lo cual implica necesariamente que la capacidad de
trabajo (presente y futura) tiene que ser constantemente
renovada para que el capital pueda consumirla productiva-
mente. En síntesis, el trabajo reproductivo contribuye
indirectamente al proceso de valorización del capital. “De allí que
el trabajo reproductivo sea indispensable, aunque no genere
valor ni, por tanto, plusvalor; es decir, aunque desde el punto de
vista estricto de la lógica del capital, sea un trabajo no
productivo (D´ATRI; MURILLO, 2018, p. 9)
Por otra parte, como puntualiza Araújo (2000), no se
puede perder de vista que los procesos de producción y
reproducción siempre se realizan vía sujetos sexuados/
generificados. En este sentido, es necesario comprender cómo a
lo interno de la esfera de la reproducción, y especialmente en la
familia se concreta todo el conjunto de actividades y relaciones
que garantizan la reproducción de la fuerza de trabajo.
Hirata y Kergoat (2007), Federici (2013), Arruzza (2014),
entre otras feministas, al realizar una crítica sobre la

116
invisibilización, devaluación y feminización a que son objeto
estas actividades, llaman la atención acerca de cómo la
gratuidad del trabajo reproductivo contribuye a ocultar su
verdadera naturaleza; es decir, cómo este trabajo es constante-
mente mistificado y transfigurado por las relaciones sociales
capitalistas. En otras palabras, la especificidad de trabajo
reproductivo no sólo se reduce al hecho de que este sea realizado
sistemáticamente de forma gratuita y por mujeres; sino que
también este trabajo ha sido intencionalmente transformado en
un atributo natural de la psique y la personalidad femenina, en
una especie de necesidad interna o una aspiración inherente a
la “condición de mujer”. En este sentido, la siguiente crítica de
Federici (2017):

Todo este trabajo se torna invisible por que se denomina


amor. [...]El capitalismo también se apropió y manipuló la
busca del amor, de la afectividad y de la solidaridad entre
todos los seres humanos; deformándolo, usándolo como
una forma sutil para extraer trabajo gratuito. Por eso, se
defiende que aquello que denominan como amor, en
realidad es trabajo no remunerado (FEDERICI, 2017, p. 4,
traducción propia).

Al respecto, la propia Federici (2010) reflexiona acerca de


algunas especificidades del sistema capitalista, y cómo este
constituye un sistema social de producción que no reconoce el
trabajo reproductivo como una actividad socioeconómica y como
una fuente de acumulación del capital y, en cambio, la mistifica
como un recurso natural o un servicio personal; al tiempo que
paralelamente saca provecho de la condición no-asalariada del
trabajo involucrado. En este sentido, se defiende la idea de que,
la forma en que se concreta la reproducción de la fuerza de
trabajo influye indirectamente en las condiciones de valorización
del capital. De esta forma, en la medida en que el trabajo
reproductivo se realiza de forma gratuita casi exclusivamente
por mujeres, se garantizan condiciones mínimas de renovación
de la fuerza de trabajo que necesariamente no tienen que
reflejarse/incorporarse en el salario (directo o indirecto) del
trabajador. Lo cual supone un posible ahorro potencial en los
costos de manutención de la mano de obra.

117
Como destaca Federici, la devaluación y feminización del
trabajo reproductivo constituye uno de los pilares de la
acumulación capitalista; ya que “[...] el Capitalismo depende del
trabajo reproductivo no asalariado para contener el coste de la
mano de obra” (FEDERICI, 2013, p. 26). Lo anterior no es sólo
una práctica de la clase capitalista, sino también para del Estado
capitalista, en la medida en que lo exime, parcial o totalmente,
de realizar una intervención pública, a través de políticas
sociales y/o económicas, que garanticen dichas condiciones de
reproducción. El resultado de todo este proceso es que
constantemente la lógica del capital relega y/o sobrecarga
fundamentalmente a las mujeres a través del trabajo repro-
ductivo no remunerado. Práctica que no sólo es funcional, sino
que es necesaria para el modo de producción capitalista, sobre
todo en tiempos de crisis.
Es por ello, que la lógica del capital constantemente
reproduce relaciones sociales que aparentemente desvinculan
ambas esferas; responsabilizando individualmente a la familia,
y fundamentalmente a la mujer, por la realización de este trabajo
y negándole reconocimiento social; de forma que se perpetúe en
su condición de trabajo no remunerado y feminizado. En este
sentido, es muy poco probable que el metabolismo social del
capital espontáneamente reformule una práctica sistemática,
“conveniente” y tan enraizada en términos económicos, sociales,
culturales, ideológicos, religiosos etc.
De ahí se explica que, cada cierto tiempo, la lógica del
capital potencie la vuelta al hogar, incluso a tiempo completo, de
las mujeres; ocultando el móvil de dichas intenciones a través
del velo conservador de las costumbres tradicionales y de la
exaltación de un determinado tipo de familia como pilar de la
sociedad. De esta forma, “glorificar la familia como ‘ámbito
privado’ está en la esencia de la ideología capitalista, [...] y no es
sorprendente que en estos tiempos de crisis, austeridad y
privaciones esta ideología disfrute de una popularidad renovada
en la agenda capitalista” (FEDERICI, 2013, p. 62).

118
El trabajo remunerado de las mujeres en el Capitalismo:
características y contradicciones

Es relevante analizar no sólo las implicaciones de la


división sexual del trabajo en relación al trabajo reproductivo;
sino también en relación al impacto de este fenómeno en la
configuración de un determinado perfil para el trabajo
remunerado desempeñado por las mujeres en el Capitalismo. En
este sentido, una cuestión central es analizar tanto el grado
como la cualidad de la participación de la fuerza de trabajo
femenina en el trabajo asalariado.
Al respecto, es preciso comenzar por destacar que la
inserción de las mujeres a través del trabajo asalariado dentro
del proceso de producción constituye una especificidad del
Capitalismo. A diferencia de otros modos de producción
anteriores, el sistema capitalista genera la posibilidad (o más
bien la obligación) de participación directa y formal de las
mujeres (e inclusive niños y niñas) en el proceso de valorización.
En este sentido, se puede afirmar que la participación directa de
la mujer en la esfera del trabajo asalariado constituyó un “paso
de avance”, en relación a modos de producción anteriores, en
términos de reconocimiento de derechos a las mujeres (derecho
al ejercicio del trabajo remunerado). De ahí que, la creciente
incorporación al trabajo asalariado ha consolidado la apariencia
de mayor libertad y autonomía de las mujeres en dicho sistema.
Sin embargo, cabe cuestionar si es este proceso
constituye, esencialmente, una conquista de las mujeres, o si
constituye también una conquista para la lógica del capital.
Cabe también reflexionar si dicho proceso de incorporación
directa al proceso de producción capitalista implicó una
mudanza sustancial en términos de igualdad sustantiva y de
emancipación para las mujeres dentro de la sociedad capitalista.
Un primer aspecto a destacar retoma la articulación que
se establece entre los procesos de producción y de reproducción
en términos de movilidad de la fuerza de trabajo femenina. En
otras palabras, la creciente participación de las mujeres en el
trabajo asalariado es un proceso tendencial que no puede ser
analizado de forma lineal; sino que se encuentra caracterizado
por continuos avances y retrocesos, generalmente coincidentes

119
con los ciclos de la acumulación capitalista. De esta forma,
aunque el sistema capitalista ha tendido a incorporar
crecientemente la fuerza de trabajo femenina en el ámbito de la
producción; ello no entra en contradicción en que por momentos
dispense parcialmente, en mayor o menor cuantía, el trabajo
asalariado de las mujeres.
En este sentido, aunque la presencia de las mujeres en
el trabajo remunerado se ha ampliado relativamente sobre todo
en las últimas décadas – al punto de que a veces se plantea la
consolidación de una tendencia hacia la “feminización del
trabajo” remunerado – también es visible que otros patrones
permanecen inalterables. Lo anterior se concreta en que las
mujeres continúan siendo mayoritarias, por ejemplo, dentro del
contingente de desempleados y de la población económicamente
no activa a nivel mundial. Históricamente dentro de la
superpoblación relativa, las mujeres han constituido por un
grupo representativo. Sobre esta cuestión Young (1980)
argumenta que:

A través de la historia del capitalismo las mujeres han


ejercido las funciones clásicas que Marx describió para el
ejército industrial de reserva. Han servido como bolsa de
trabajo que puede ser incorporada a nuevas áreas de la
producción sin desplazar a quienes están empleados;
también pueden ser utilizadas para mantener bajos los
salarios y controlar la militancia de todos los trabajadores
(YOUNG, 1992 [1980], p. 13).

Por su parte, Saffioti (1967) muestra cómo el carácter


subsidiario del trabajo de las mujeres es relevante para la
acumulación capitalista; y, al mismo tiempo, cómo este
constituye un factor clave para comprender a situación de las
mujeres en dicho sistema. De ahí que la autora defienda la idea
de que en el caso de las mujeres generalmente se produce una
integración periférica al proceso productivo capitalista.
Al respecto argumenta que la forma en que se concreta
la valorización del capital conlleva a que no toda la población
económicamente activa esté empleada; es decir, el sistema
requiere de una constante fluctuación en el nivel de absorción
de la fuerza de trabajo. Una parte de estos continuos reajuste se

120
realiza precisamente a través de las mujeres – y de otros grupos
sociales cuyo trabajo es también desvalorizado pero requerido,
ejemplo de ello son los inmigrantes, los presos, las llamadas
“minorías” étnicas/raciales, los estudiantes, etc. – las cuales
constituyen un contingente de mano de obra mucho más
maleable (SAFFIOTI, 1976, p. 18).
Por otra parte, puntualizar que la tendencia creciente de
la incorporación de la mujer al trabajo remunerado no ha
implicado una modificación o reducción de la feminización del
trabajo reproductivo a lo interno de la familia, ni de su
desvalorización social o de su gratuidad, en la mayoría de los
casos. Por el contrario, en la práctica se ha producido una
agregación – en términos de tiempo, responsabilidades, exigen-
cias, etc. – entre trabajo remunerado y no remunerado, con
impactos extremadamente negativos para las mujeres.
Por ello, en muchas ocasiones, para describir esta
práctica habitual de la sociabilidad capitalista, se hace
referencia a las varias jornadas (duplas, triplas, etc.) de trabajo
a que continúa socialmente sometida la mujer. No obstante,
como destacan Dantas y Cisne (2017), la noción de jornada
dupla de trabajo puede llevar a la interpretación de que se trata
de jornadas que son aisladas e independientes; por ello se
prefiere utilizar el enfoque de que la jornada de trabajo de las
mujeres es intensiva, extensiva e intermitente.
Adicionalmente, se defiende la idea de que el perfil que
describe el trabajo remunerado desempeñado por las mujeres en
el Capitalismo ha variado bastante poco en los últimos siglos
(sobre todo en términos de cualidad). De forma que,
históricamente se configura, a nivel de toda la sociedad, una
especie de perfil de trabajo secundario o subalterno asociado a
las actividades remuneradas desempeñadas por las mujeres en
el ámbito de la producción capitalista. En este sentido, las
mujeres efectúan mayoritariamente “trabajo de mujeres” en
condiciones de “trabajo de mujeres”: informalidad, precari-
zación, abuso de todos tipos (CISNE, 2014).
De forma que, paralelamente a la tendencia creciente de
la incorporación de las mujeres al trabajo remunerado (no
obstante en niveles menores que los hombres), también se
profundiza constantemente un perfil de trabajo secundario o

121
subalterno asociado a las actividades remuneradas que
desempeñan las mujeres. Esta incorporación, salvo raras
excepciones, reproduce a partir de una división sexual del
trabajo donde a las mujeres les son reservadas: áreas de trabajo
intensivo, con jornadas laborales más prolongadas, con
predominancia de ocupaciones subordinadas que exigen baja
cualificación, tipos de trabajo más precarizado, en régimen a
tiempo parcial o por tiempo definido, marcados por una
informalidad mucho más fuerte y con desniveles salariales más
acentuados en relación a los hombres (ANTUNES, 2009 [1999]).
Debido a todas estas características del trabajo
remunerado desempeñado por las mujeres; así como, por su
articulación con el trabajo no remunerado en los marcos del
Capitalismo, se defiende la idea de que “se trata de una
explotación intensiva y extensiva de la fuerza de trabajo
femenina, que ocupa todos los poros del tiempo de la vida social
en favor de la valorización del capital” (DANTAS; CISNE, 2017,
p. 85). De ahí que, la situación vivenciada por las mujeres dentro
de sistema capitalista sea especialmente aguda; pudiendo estar
sujeta tanto a relaciones de opresión como de explotación. En
ambos casos no se trata de fenómenos cuantitativos,
mensurables y agregables; sino que “[...] se trata de
determinaciones, de cualidades que tornan la situación de las
mujeres más compleja” (SAFFIOTI, 2005, p. 49, traducción
propia).
Es por ello que se concuerda con Segnini (1994); así
como, con Dantas y Cisne (2017) cuando afirman que el espacio
ocupado por la mujer dentro del trabajo remunerado no es sólo
resultado de conquistas decurrentes de las intensas luchas
feministas (por derechos políticos, civiles y sociales); sino que, al
mismo tiempo, la incorporación de las mujeres al espacio
“público” del trabajo asalariado es una conquista del capital (o
al menos una “concesión” extremadamente lucrativa) en vistas
del proceso de valorización.
Todos estos aspectos revelan el rol que juegan las
relaciones patriarcales de género para el proceso de
acumulación capitalista. En este sentido, “[...] el entrelazamiento
de la explotación capitalista y una específica división del trabajo
en función de relaciones de género históricas muestra que, entre

122
otros tipos de opresión, la producción capitalista se basa en la
opresión de la mujer” (HAUG, 2006, p. 331). En otras palabras,
se produce una específica articulación entre relaciones
patriarcales de género y relaciones sociales de producción en el
Capitalismo que tiene como sustentación formas de dominación,
opresión y explotación de las mujeres.

Reflexiones finales

El metabolismo social del capital constantemente


adapta, excluye y crea relaciones patriarcales de género que
sean coherentes y favorables al proceso de valorización. De esta
forma, se produce una particular articulación entre relaciones
patriarcales de género y relaciones sociales de producción que
conlleva a la subordinación estructural del trabajo realizado por
las mujeres dentro del sistema capitalista.
A partir del accionar de la división social y sexual del
trabajo en el Capitalismo, el trabajo realizado por las mujeres se
concreta, salvo algunas excepciones, a través de dos alternativas
fundamentales: i) la marginalización parcial de las mujeres del
proceso del producción capitalista, en función de la segregación
a que son objeto en el trabajo reproductivo realizado
gratuitamente en el ámbito “privado” del hogar (pero que tributa
indirectamente a la valorización del capital); ii) la integración
directa en el proceso de valorización del capital; pero
generalmente a través de una inserción periférica en el espacio
“público” a partir de un perfil de trabajo secundario o
subalterno.
De esta forma, independientemente de que dicho trabajo
(el de las mujeres) se realice de forma remunerada o no
remunerada, sea improductivo o no, ya sea que se concrete en
el ámbito de la producción o el de la reproducción, o a través
combinaciones entre estas posibilidades; se produce en
condiciones de una desvalorización y subordinación estructural.
En síntesis, se reproduce una desigualdad sistemática en
términos de género en el mundo del trabajo, como resultado del
proceso de constante de diferenciación, jerarquización y
subordinación de la fuerza de trabajo de las mujeres en el

123
sistema capitalista. Dicho proceso tiene diversas formas de
expresión concreta.
Ejemplo de lo anterior son: i) segregación horizontal:
existencia de barreras sociales a la entrada de las mujeres en
determinadas actividades económicas u ocupaciones
“masculinizadas”, y su concentración en otras actividades
estereotipadas como “femeninas” con menor reconocimiento
socio-profesional y que generalmente replican las funciones del
trabajo reproductivo (educación, sanidad, enfermería, etc. ); ii)
segregación vertical: menores posibilidades y rapidez para
ascender dentro de la jerarquía laboral, lo cual se refleja en el
menor y difícil acceso de las mujeres a puestos de trabajo con
elevado poder decisorio y remuneración; iii) la cantidad de
tiempo que, como promedio, mujeres y hombres consiguen
dedicar a sus profesionales, siendo menor para la mujeres
debido a la carga de horas que dedican al trabajo reproductivo
no remunerado; iv) menor acceso de las mujeres a cursos de
entrenamiento y capacitación; v) diferenciales en los niveles de
productividad y contenido tecnológico de las actividades
desempeñadas; vi) discriminación salarial por razón de sexo:
menores retribuciones salariales recibidas por las mujeres,
inclusive con igual grado de escolaridad y desempeñando la
misma ocupación y funciones que hombres en la misma
actividad; vii) acceso restricto a créditos por parte de las mujeres
y baja movilidad ocupacional; entre otros aspectos.
En este sentido, se destacan a continuación algunos
datos ofrecidos por instituciones internacionales que ilustran
diversas formas de manifestación concreta de algunos de los
fenómenos que se han analizado a lo largo de este artículo. Esta
“evidencia empírica” de alguna forma describe el complejo
escenario que enfrentan actualmente las mujeres en el mundo
del trabajo. 3

3 Para cada uno de los aspectos abordados se podrían (deberían) hacer


distinciones según: región, territorio, clase social, raza/etnia, orientación sexual,
edad, nivel educativo, etc. Aspectos todos que complejizan aún más el panorama
descrito y evidencian la gran heterogeneidad al interior del grupo “mujeres” como
resultado de la intersección de dichas variables. Pese a la ausencia de estos
entrecruzamientos en el presente artículo, queda resaltada la necesidad de su
análisis y la intención de incorporar en futuros estudios.

124
Tabla 1. Cifras a nivel mundial que ilustran la realidad actual de las
mujeres en el mundo del trabajo.
En promedio y a escala mundial, las mujeres
tienen menos probabilidades de participar en el
trabajo remunerado formal (OIT, 2018a). Como
Empleo
promedio a nivel mundial “en 2019, la tasa de
Formal
participación de la mujer en la fuerza de trabajo
era solo del 47 por ciento, 27 puntos porcentuales
por debajo de la tasa del hombre (74 por ciento)”
(OIT, 2020, p. 5).
Las mujeres siguen estando sobrerrepresentadas
en el empleo informal en los llamados “países en
desarrollo”, representando alrededor de una
Partici
tercera parte del empleo informal total en estos
pación
Empleo países (OIT, 2018a). Según la OIT, en el año más
en el
Informal reciente sobre el que se dispone de datos, “el
trabajo
porcentaje de mujeres en el empleo informal de los
remun
países en desarrollo superaba en 4,6 puntos
erado
porcentuales al de los hombres al incluir a las
trabajadoras agrícolas, y en 7,8 puntos
porcentuales al excluirlas” (OIT, 2018b, p. 11).
Las tasas de desempleo de las mujeres son
sistemáticamente mayores que las de los hombres.
“En 2018, la tasa mundial de desocupación
femenina, del 6 por ciento, supera a la masculina
Desempleo
en alrededor de 0,8 puntos porcentuales. La
consiguiente relación entre las tasas de
desocupación hombre-mujer es de 1,2 en 2018”
(OIT, 2018b, p. 8).
- Las que están ocupadas se desempeñan
fundamentalmente en sectores definidos como de
baja productividad y menor contacto con las
tecnologías y la innovación (CEPAL, 2016)
- Las mujeres presentan mayores probabilidades
Estructura de acceder a empleos vulnerables o precarios, “son
del empleo 12 puntos porcentuales superiores (el 40 por
ciento) a las de los hombres (el 24,5 por ciento)”
Calidad
(OIT, 2018a, p. 15). Por ejemplo, en relación a los
del
hombres, las mujeres siguen teniendo el doble de
trabajo
probabilidades de ser trabajadoras familiares no
remun
remuneradas (OIT, 2018b).
erado
Las mujeres ganan, en promedio, el 20 por ciento
menos que los hombres, a pesar de que las
mujeres han alcanzado un mayor nivel de
Desigualda educación que sus pares masculinos (Naciones
d salarial Unidas, 2019). Por ejemplo, “En América Latina y
el Caribe, el nivel medio de estudios de las mujeres
supera actualmente al de los hombres, pero las
mujeres de la subregión siguen ganando un 17 por

125
ciento menos por hora trabajada que los hombres”
(OIT, 2020, p. 5). Un porcentaje significativo de
esta brecha obedece a la presencia excesiva de
mujeres en sectores y ocupaciones con mayor
incidencia de salarios bajos (OIT, 2018b, p. 12).
“Según las estimaciones más recientes, las mujeres
representan menos de una tercera parte de los
Menor
cargos de dirección intermedia y superior en la
acceso a
mayoría de los países desarrollados, y menos del 5
cargos
por ciento de los cargos de dirección general de las
directivos
empresas que cotizan en bolsa” (OIT, 2018b, p.
10).
Las mujeres suelen tener menos posibilidades de
gozar de cobertura de protección social en
particular de los seguros de desempleo (OIT,
2018a, p. 11). A su vez, otro conjunto de factores –
entre los que destaca: el menor nivel de
participación femenina en la fuerza de trabajo con
respecto a la masculina, las considerables
Derechos
diferencias de remuneración entre los géneros, la
y
mayor probabilidad de una carrera más breve o
garantías
con interrupciones, y la elevada presencia de
laborales
mujeres en el trabajo informal – inciden
negativamente en su capacidad de consolidar
derechos jubilatorios en el régimen contributivo de
pensiones; así como, a reducir las tasas de
cobertura previsional de las mujeres y el nivel de
su pensión y en última instancia aumentan más el
nivel de pobreza de las mujeres en la vejez con
respecto a los hombres (OIT, 2018b, p. 12).
- “Las mujeres realizan más de tres cuartas partes
del trabajo de cuidados no remunerado, y
constituyen dos terceras partes de la mano de obra
que se ocupa del trabajo de cuidados remunerado”
(OXFAM, 2020, p. 14). Esta sobre carga de trabajo
no sólo tiene impactos en la participación en el
trabajo remunerado, sino también incidencia en la
Trabajo
Trabajo calidad de dicha inserción (OIT, 2019)
doméstico
no - “Mujeres del mundo entero trabajan durante 12
y de
remun 500 millones de horas diarias sin recibir
cuidados
erado remuneración o reconocimiento alguno” (OXFAM,
2020, p. 22). La enorme y desigual responsabilidad
del trabajo doméstico y de cuidados que recae
sobre las mujeres (y niñas) perpetúa las
desigualdades económicas, mina su salud y
bienestar, y limita su capacidad para satisfacer
sus necesidades básicas o participar en actividades
políticas y sociales (pobreza de tiempo)

126
- “El valor económico del trabajo de cuidados no
remunerado que llevan a cabo en todo el mundo
las mujeres de 15 o más años asciende al menos a
10,8 billones de dólares anuales, una cifra que
triplica el tamaño de la industria mundial de la
tecnología” (OXFAM, 2020, p. 10).
Fuente: Elaboración propia a partir de datos de OIT (2018a, 2018b, 2019,
2020) y OXFAM (2020).

Finalmente, apuntar que las determinaciones


particulares que asume la fuerza de trabajo y el trabajo realizado
por las mujeres en el Capitalismo, son esencialmente
incompatibles con las aspiraciones de equidad/igualdad de
género, tan de moda en el discurso institucional y la agenda
mundial de los últimos años. En este sentido, se destaca la
necesidad de analizar todo este conjunto de determinaciones
que distinguen a la fuerza de trabajo de las mujeres como
procesos estructurantes de la lógica del capital; lo cual es
imprescindible para no perder una perspectiva de totalidad,
tanto en la comprensión de dichos fenómenos, como para pensar
sus posibles vías de superación.
No hay como humanizar o reformar el metabolismo social
del capital; dado el carácter estructural de sus procesos de
explotación, dominación, subordinación, opresión, etc. Es por
ello que, “el trabajo de las mujeres en esta orden, como máximo,
posibilita una relativa autonomía, pero, no el alcance de libertad
e igualdad sustantivas” (DANTAS e CISNE, 2017, p 86,
traducción propia). Impulsar una verdadera transformación de
las determinaciones que genera en el sistema capitalista la
articulación entre relaciones sociales de producción y relaciones
patriarcales de género, implica apostar por la construcción
consciente y colectiva de una sociedad por ruptura, oposición y
superación de la propia lógica del capital.

Porque mientras la extracción del plustrabajo asegurada y


salvaguardada políticamente continúe siendo el principio
orientador vital del metabolismo social, con su estructura
de mando necesariamente jerárquica, la idea de la
emancipación de la mujer, con su demanda de igualdad
sustantiva no puede ser acariciada ni por un momento.
[…] En términos de tales criterios las mujeres pueden
convertirse en miembros plenamente iguales de la fuerza

127
laboral ampliada a conciencia, y penetrar así en territorios
anteriormente prohibidos. Pero bajo ninguna circuns-
tancia puede permitírseles cuestionar la división del
trabajo establecida y su propio papel en la estructura
familiar heredada. […] no es posible hacer avanzar la
causa histórica de la emancipación de la mujer sin retar el
dominio del capital en todas sus formas (MÉSZÁROS,
2010 [2002], p. 312).

De esta forma, pensar la transformación radical de la


lógica del capital implica, a su vez, reflexionar sobre la necesidad
y posibilidad de construcción de una sociedad que coloque como
centro la emancipación del ser social. En este sentido, el
imaginario socialista y su proyecto histórico monumental no
pueden dejar de asumir, explicita e integralmente, la utopía
revolucionaria que supone establecer un orden alternativo de
producción y reproducción del metabolismo social basado en la
igualdad sustantiva (pensada también en términos de género); y
por tanto, que potencie la emancipación de la mujer como parte
desarrollo integral del ser humano. Se trata en definitiva, como
esbozara Rosa Luxemburgo, de construir una sociedad
alternativa donde las personas sean socialmente iguales,
humanamente diferentes y totalmente libres.

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133
As características do “empreendedorismo
por necessidade” e “empreendedorismo
por oportunidade” no
Afroempreendedorismo brasileiro 1
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Eliane Quintiliano Nascimento 2

Introdução

O empreendedorismo protagonizado por pessoas negras 3


no Brasil tem sido identificado com diferentes nomen-claturas,
como: empreendedorismo negro, empreendedorismo preto,
empreendedorismo afro-brasileiro ou afroempreen-dedorismo.
Assim, todas elas podem ser compreendidas como uma atividade
econômica realizada por empreendedoras e empreendedores
autodeclarados negros em áreas diversifi-cadas 4.
No entanto, segundo Nascimento (2020) o conceito de
“Afroempreendedorismo” deve ser utilizado, exclusivamente,
para identificar o movimento de empreendedores autodeclarados
negros que têm como norteador de seus negócios o ativismo
social contra os efeitos do racismo. Esses afroempreendedores

1 Este artigo foi resultado da monografia apresentada ao curso de Ciências


Sociais na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), sob orientação da
prof.ª dra. Lívia Morais, no ano de 2017. Durante o período da pesquisa, a autora
participou das reuniões de pesquisa e das atividades de extensão do Grupo de
Pesquisa Trabalho e Práxis. A pesquisa foi atualizada neste capítulo para a
edição deste livro no ano de 2020.
2 Mestra em Ciências Sociais (UFES, 2020). Especialista em Políticas de

Promoção da Igualdade Racial (UFES, 2016). Bacharela em Ciências Sociais.


(UFES, 2017). Licenciada em Ciências Sociais. (UFES, 2014).
3 De acordo com o IBGE, a população “negra” corresponde à soma das pessoas

que se autodeclaram “preto” ou “pardo”, de acordo com o questionário. Fonte:


“Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil” IBGE, 2019.
4 Atualmente, mais de 500 profissões estão cadastradas no Microempreendedor

Individual (MEI), categoria que completa uma década em 2019. O


microempreendedor pode registrar até 15 ocupações tidas como secundárias.
Fonte: Resolução CGSN n° 140 de 2018. Acesso em 16/02/2020.

135
fomentam a organização do desenvolvimento econômico para a
população negra, manifestam o compromisso com o ativismo
contra o racismo, reinventam narrativas e criam novas estéticas
relacionadas à identidade negra em suas práticas comerciais
(NASCIMENTO, 2020). Para muitos empreendedores e
consumidores negros, esse tipo de negócio representa muito
mais do que uma atividade laboral: é visto como ferramenta
política estratégica para a luta contra o racismo e (re)construção
positiva da identidade negra. Para Santos (2019), o conceito de
afroempreendedorismo pode ser divido entre lato sensu e stricto
senso, nesse sentido, o primeiro identifica a atividade
empreendedora protagonizada por negros e negras sem qualquer
compromisso étnico-racial. A segunda, identifica empreende-
doras e empreendedores negros que organizam os seus negócios
baseados em algum tipo de compromisso étnico-racial da cadeia
de produção à destinação final do produto ou prestação de
serviço. Os conceitos apresentados pelas duas autoras acima
ressaltam a heterogeneidade das atividades e dos objetivos entre
os empreendedores autodeclarados negros, os quais podem ter
seu negócio ou vínculos empresariais vinculados ao ativismo
social contra os efeitos do racismo ou não.
As diferentes formas de participação da população negra
na atividade empreendedora vêm ganhando destaque de forma
inédita no Brasil e, certamente, despertam questões para
analisar a subjetividade no mundo do trabalho e as suas
transformações. A pesquisa mais recente da Global
Entrepreneurship Monitor (GEM) em parceria com o Serviço
Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) 5
publicada em 2017, constatou que os empreendedores negros
são maioria no Brasil: do total de empreendedores brasileiros,
51% deles se autodeclararam negros. Nesse contingente de 51%,
fazem parte tanto os empreendedores negros envolvidos em
estratégias de ativismo contra os efeitos do racismo quanto

5O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas é uma entidade


privada brasileira de serviço social, sem fins lucrativos, criada em 1972, que
objetiva a capacitação e a promoção do desenvolvimento econômico e
competitividade de micro e pequenas empresas, estimulando o
empreendedorismo no país. FONTE: https://www.sebrae.com.br/sites/
PortalSebrae. Acesso em 16/02/2020.

136
aqueles que não vinculam seus negócios a qualquer tipo de
pertencimento étnico-racial ou ações antirracistas.
Apesar do número supostamente positivo, a população
negra lidera os índices de desemprego e ocupações informais,
além de não ser reconhecida enquanto grupo étnico com
habilidades e capacidades empreendedoras específicas devido as
consequências do racismo (MONTEIRO, 2005). Portanto,
percebe-se a necessidade de analisar o fenômeno do empreende-
dorismo no Brasil com uma perspectiva voltada para os que
compõem 56,2% da população brasileira: os autodeclarados
pretos e pardos segundo o IBGE 6.
O contexto econômico e a qualificação profissional
influenciam a inserção da população no mercado de trabalho,
além disso, fatores como preconceito de gênero e o racismo
dificultam, ainda mais, a inserção de determinados grupos
sociais no mercado de trabalho formal 7 (DAVIS, 2016). A
exclusão social limita as oportunidades de acesso à qualificação
educacional e, ainda, pode impor barreiras na hora da seleção.
Devido ao passado escravocrata brasileiro, o racismo estrutural
impacta negativamente a população negra, e algumas das
consequências estão na disparidade dos índices de qualidade de
vida e inserção no mercado de trabalho formal entre negros e
brancos no Brasil (FERNANDES, 1978). Os dados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua)
divulgados no final de 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) com o título “Desigualdades sociais por cor
ou raça no Brasil” 8 expõe a recorrente desigualdade no Brasil: a

6 De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios


(PNAD) 2019, 42,7% dos brasileiros se declararam como brancos, 46,8%
como pardos, 9,4% como pretos e 1,1% como amarelos ou indígenas.
7 O trabalho formal refere-se ao trabalho que é exercido com carteira assinada,
de acordo com a legislação trabalhista vigente e, portanto, assegura os direitos
do trabalhador.
8 Esses dados são do estudo “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”,

que faz uma análise das desigualdades entre brancos e pretos ou pardos ligados
ao trabalho, à distribuição de renda, à moradia, à educação, à violência e à
representação política. As análises desse estudo estão concentradas somente
nas desigualdades entre brancos e pretos ou pardos, devido às restrições
estatísticas impostas pela baixa representação dos indígenas e amarelos no total
da população brasileira quando se utilizam dados amostrais. Em 2018, 43,1%
da população brasileira era branca; 9,3%, preta; e 46,5%, parda. Esses três

137
taxa de desemprego entre os brasileiros que se autodeclaram
brancos era de 9,5% e permaneceu significativamente abaixo da
taxa de desocupação dos autodeclarados pretos (14,5%) e
pardos (14,0%). Os negros representavam 64,2% da população
desocupada 9 e 66,1% da população subutilizada 10. Enquanto
34,6% dos trabalhadores brancos estavam em ocupações
informais 11, entre os negros esse percentual era de 47,3%. Em
2018, entre os 10% da população com os maiores rendimentos,
apenas 27,7% eram negros. Por outro lado, os pretos ou pardos
representavam 75,2% do grupo formado pelos 10% da população
com os menores rendimentos. O rendimento médio domiciliar
per capita da população branca (R$1.846) era quase duas vezes
maior do que o da população negra (R$934). O rendimento médio
mensal das pessoas brancas ocupadas (R$2.796) foi 73,9%
superior ao da população negra (R$1.608). Os ocupados pretos
ou pardos receberam rendimentos por hora trabalhada
inferiores aos dos brancos, independentemente do nível de
instrução: enquanto o rendimento médio dos ocupados brancos
atingiu R$17,00 por hora, o dos pretos ou pardos foi de R$10,10
por hora. Os brancos com nível superior completo ganhavam por
hora 45% a mais do que os pretos ou pardos com o mesmo nível
de instrução. Pelo recorte de gênero e raça, as mulheres negras
recebem proporcionalmente 44,4% da renda de homens
brancos.

grupos juntos representavam 99% do total de moradores do país. Fonte: site


IBGE. Acesso 16/02/2020.
9 São classificadas como desocupadas na semana de referência, as pessoas não

ocupadas nesse período (desempregadas), que tomaram alguma providência


efetiva para conseguir um trabalho no período de referência de 30 dias e que
estavam disponíveis para iniciar um trabalho na semana de referência. Fonte:
site IBGE. ftp.ibge.gov.br › Mensal › glossario_pnadc_mensal. Acesso em
10/05/2020.
10 Subutilizado é um conceito que abrange a população desempregada,

subocupadas por insuficiência de horas (estão empregadas, mas gostariam e


poderiam trabalhar mais) e a força de trabalho potencial (pessoas que não
buscam emprego, mas estão disponíveis para trabalhar). Fonte: site IBGE.
ftp.ibge.gov.br › Mensal › glossario_pnadc_mensal. Acesso em 10/05/2020.
11 Taxa de informalidade: Soma dos trabalhadores sem carteira, dos
trabalhadores domésticos sem carteira, do empregador e do autônomo sem CNPJ
e do trabalhador familiar auxiliar. Fonte: site IBGE. ftp.ibge.gov.br › Mensal ›
glossario_pnadc_mensal. Acesso em 10/05/2020.

138
Ainda, na pesquisa 12 realizada pelo Global
Entrepreneurship Monitor (GEM) em parceria com o Sebrae,
negros correspondem a 51% dos empreendedores do país, porém
totalizam 60% dos empreendedores que não lucram nada. Entre
os empreendedores iniciais negros, 54,2% têm renda familiar até
dois salários mínimos. Ainda considerando os empreendedores
iniciais, a pesquisa mostra que entre os negros, aqueles com
renda familiar acima de três salários mínimos representam
22,9% e entre os brancos são 42,4%. A maioria dos
empreendedores negros são “por conta própria” e apenas 29%
empregam ao menos uma pessoa.
O autoemprego tem sido uma alternativa encontrada por
profissionais desempregados – em grande parte encarada como
uma atividade temporária, até a reinserção no mercado de
trabalho formal como empregado -, também, uma busca por
autonomia para exercer a profissão; possibilidade de uma renda
extra para aqueles que têm algum emprego fixo (formal ou
informal) ou a única saída para obter renda (COLBARI, 2015).
Mas se os dados do desemprego não forem analisados com
cuidado, o problema do desemprego aparentemente pode
parecer que está sendo solucionado 13. Afinal, os dados
referentes à desocupação diminuem à medida que o trabalhador
desempregado, enquadrado nas taxas de desocupação, encontra
formas alternativas de obter algum tipo de rendimento por meio
de alguma ocupação informal fora da sua área, autoemprego
informal ou exercendo o autoemprego formalizado como
Microempreendedor individual (MEI).
A criação do Microempreendedor Individual no ano de
2008, no Brasil, impulsionou a busca de pessoas que desejam
ser donas do próprio negócio e, principalmente, auxiliou os
trabalhadores por conta própria 14 a saírem da informalidade.

12 Os dados são resultado de um panorama traçado pela Pesquisa Global


Entrepreneurship Monitor (GEM) em parceria com o Sebrae. As informações
correspondem ao ano de 2017.
13 Mesmo com a queda no desemprego, em vários estados a taxa de informalidade

é superior ao crescimento da população ocupada. No Brasil, do acréscimo de


1,819 milhão de pessoas ocupadas, um milhão é de pessoas na condição de
trabalhador informal. Em praticamente todo o país, quem tem sustentado o
crescimento da ocupação é a informalidade.
14 Classifica-se como “conta própria” a pessoa que trabalha explorando o seu

139
Com o auxílio do Sebrae, este programa facilita a formalização,
cria o CNPJ para microempreendimentos, oferece consultoria,
facilita o acesso a crédito, cursos de formação e qualificação
gratuitos. A atenção voltada para as micro e pequenas empresas
foi motivada pelos dados que comprovaram que elas são as
principais responsáveis pela geração de empregos formais e
informais no Brasil (COLBARI, 2015).
As mudanças nas últimas décadas culminaram num
contexto em que o forte apelo ao empreendedorismo atinge o
senso comum como a solução dos problemas causados pelo
desemprego estrutural (LEITE, 2008). A ideologia do empreende-
dorismo convence cada vez mais pessoas a assumirem
comportamento e mentalidade “empreendedoras” e abrirem o
próprio negócio. Na última década o número de trabalhadores
por conta própria e empreendedores cresceu consideravelmente
no Brasil 15. Segundo o GEM, a taxa total de empreende-
dorismo 16, que reúne novos empreendedores e donos de
negócios já estabelecidos, chegou a 38%. Segundo esse
indicador, aproximadamente 52 milhões de brasileiros em idade
produtiva estavam envolvidos com alguma atividade empreen-
dedora no ano de 2019. No entanto, muitos fatores como a baixa
qualificação, não conhecimento do campo dos negócios e
inexperiência atrapalham os profissionais a obterem êxito.
Segundo o Sebrae 17, de cada quatro empresas abertas no Brasil,
uma fecha antes de completar dois anos de existência no
mercado. Apesar desse contexto, o número de pessoas
envolvidas em promessas de melhores rendimentos, horário
flexível e o status de “ser patrão de si mesmo” que desejam

próprio empreendimento, sozinha ou com sócio, sem ter empregado e contando,


ou não, com ajuda de trabalhador não remunerado de membro da unidade
domiciliar em que reside. Fonte: site IBGE. ftp.ibge.gov.br ›
Trabalhadores_por_Conta_Propria_parte1. Acesso: 17/05/2020.
15 Segundo em 2019, o número de trabalhadores por conta própria em aumentou

4,1% em relação a 2018. São 24,2 milhões de pessoas nessa situação, o maior
nível já registrado pelo índice, apurado desde 2012. Fonte: IBGE/PNAD, 2020.
Acesso em 15/07/2020.
16 Os dados são resultado de um panorama traçado pelo Global Entrepreneurship

Monitor (GEM) e as informações correspondem ao ano de 2019.


17 Fonte:

https://www.sebrae.com.br/Sebrae/Portal%20Sebrae/Anexos/sobrevivencia-
das-empresas-no-brasil-relatorio-2016.pdf. Acesso em 17/02/2020.

140
empreender não pára de crescer. Mesmo em condições que
indicam que esse desejo seja motivado muito mais pela
necessidade do que pela oportunidade, milhares de indivíduos
se aventuram em condições adversas e garantem que iniciam o
novo negócio devido a uma perspectiva de oportunidade 18.

As classificações de “empreendedorismo por necessidade”


e “empreendedorismo por oportunidade”

O Global Entrepreneurship Monitor (GEM) tem sido muito


importante para analisar o empreendedorismo nos países
participantes por meio de indicadores sociais e estatísticas para
descobrir em que circunstâncias a atividade empreendedora
está sendo desenvolvida. O GEM foi criado em 1999 e,
atualmente, é o maior estudo contínuo sobre a dinâmica
empreendedora no mundo com mais de 80 países participantes.
O programa da pesquisa avalia o nível de atividade
empreendedora nacional para todos os países participantes,
envolve a exploração do papel do empreendedorismo no
crescimento econômico nacional e revela as características
associadas à atividade empreendedora. A pesquisa estuda, em
nível detalhado, o comportamento dos indivíduos com respeito à
criação e gerenciamento de novos negócios. Assim, os resultados
incluem comparações globais, relatórios nacionais e tópicos
especiais baseados no ciclo de coleta de dados anual.
O GEM tradicionalmente elabora o agrupamento das
taxas gerais que diz respeito a motivação do empreendedor, ou
seja, que fatores o levaram a se envolver com atividades
empreendedoras. Neste caso, as taxas se dividem em
empreendedorismo por oportunidade e por necessidade:

São considerados empreendedores por oportunidade


aqueles que, quando indagados na entrevista, afirmam ter
iniciado o negócio principalmente pelo fato de terem
percebido uma oportunidade no ambiente. Ao contrário, o
empreendedor por necessidade é aquele que afirma ter

18 Segundo o GEM (2017), o empreendedorismo por oportunidade no Brasil


registrou o melhor resultado dos últimos quatro anos (61,8%).

141
iniciado o negócio pela ausência de alternativas para a
geração de ocupação e renda (GEM, Relatório Executivo
Brasil, 2017, p. 9).

A “oportunidade” e a “necessidade” são estabelecidas


pelo contexto social e as condições de oportunidade que o
empreendedor se encontrava quando decidiu empreender. A
despeito do conceito clássico, o que corresponde a “ser”
empreendedor, antes de tudo são os aspectos psicológicos e
comportamentais do indivíduo que traz inovação para o mercado
(SCHUMPETER, 1983). No entanto, o título de “empreendedor”
tem sido utilizado de forma generalizada pelas agências de
pesquisa para definir os empreendedores em seu fundamento
propriamente dito e, também, os empresários, aqueles que
abrem o próprio negócio a fim de obter renda e gerir o próprio
negócio de forma tradicional (LEITE, 2008). Dessa forma, entre
os considerados “empreendedores por oportunidade” no GEM,
estão tanto os empresários iniciais ou pequeno porte quanto os
empreendedores que tem as qualidades psicossociais de
visualizar as oportunidades, condição de investir nelas e
assumir os riscos por vontade própria ou mesmo por “vocação”.
Esses sujeitos que encontram uma boa “oportunidade” de gerar
renda ou aumenta-la gerindo o próprio negócio (formalizado ou
não), decidem investir na própria ideia a longo prazo e
transformam o mercado com inovação.
Em contrapartida, os “empreendedores por necessidade”
são os sujeitos que devido as limitações do mercado de trabalho
formal (exclusão, baixa escolaridade, desemprego, baixos
salários, precarização no ambiente de trabalho entre outros) são
obrigados a encontrar algum meio de gerar renda. Muitos deles
decidem abrir o próprio negócio oferecendo produtos ou
prestação de serviços relacionados a antiga profissão ou
habilidades adquiridas fora do âmbito profissional (cozinha,
artesanato, limpeza, entre outros). Em muitos casos, ter o
próprio negócio não é a prioridade desse empreendedor, que
pode encerrar a atividade assim que consegue recolocação no
mercado de trabalho formal. Por isso, não há muito interesse em
obter qualificação profissional, de gestão ou formalizar o
pequeno negócio. A situação de necessidade caracteriza as
condições sociais e econômicas que este novo empreendedor se

142
encontra ao decidir gerar renda por meio do autoemprego ou
trabalho por conta própria: a urgência de arrecadar dinheiro
para a própria subsistência ou, na grande maioria dos casos, a
subsistência da família.
Apesar das classificações “empreendedorismo de
necessidade” e “empreendedorismo de oportunidade” estarem
representando situações paralelas, a realidade se mostra muito
mais complexa. Embora o retrato social apresentado anterior-
mente permita inferir que a maioria dos empreendedores
brasileiros tenham optado pelo empreendedorismo devido a
necessidade, prevalece um percentual relativamente alto dos
respondentes que afirmam terem iniciado o próprio negócio
devido a oportunidade. A pesquisa do Sebrae em parceria com o
GEM em 2017, apontou que 55,56% dos empresários negros
afirmaram que abriram um negócio por oportunidade, enquanto
o percentual de brancos nesse mesmo contexto é de 71,5%.
Principalmente, a informação de que mais de 50% dos
empreendedores brasileiros são negros deve ser interpretada
com cuidado: afinal, quais foram as suas motivações? Em quais
condições eles iniciaram e desenvolvem seus negócios?

Afroempreendedorismo “por necessidade”

O racismo é um elemento que fundamenta e estrutura a


sociedade brasileira, pois existe uma associação entre raça, cor
e classe que demarcam as relações sociais (MOURA, 2019). Por
isso, a maior parte da população negra historicamente ocupa
posições de destaque nos índices de desemprego no Brasil, em
grande parte trabalha na informalidade e enfrenta dificuldades
de inserção no mercado de trabalho formal (GONZALEZ, 1982).
O racismo, a vulnerabilidade econômica, a baixa escolaridade, a
entrada precoce no mercado de trabalho, a carência de
qualificação profissional, a ausência de políticas públicas
eficazes para a redução das desigualdades sociais faz com que a
população negra esteja mais sujeita a subempregos, vagas
temporárias, informalidade, autoemprego e ao empreende-
dorismo por “necessidade” (ALMEIDA, 2019).

143
Os dados apresentados no início deste capítulo
demonstram o desnivelamento social entre brancos e negros no
Brasil, neste sentido, compreende-se que, na maioria das vezes,
a decisão por “empreender” entre a população negra se torna
uma saída alternativa ao desemprego ou uma possibilidade de
aumentar a renda, combinando mais de uma atividade laboral
para driblar a baixa remuneração. Afinal, o “empreendedorismo”
sido uma saída dentro da sociedade capitalista, na medida em
que se vive, muitas vezes, em condições de subsistência. O fato
desse grupo social ter maior vulnerabilidade e dificuldade de
empregabilidade, fomenta a busca de formas alternativas de
inclusão socioeconômica (ALMEIDA, 2019). Nos dados levan-
tados no “Estudo do Empreendedorismo Negro no Brasil” 19, a
amostragem identificou que 34% dos empreendedores negros
empreendem por necessidade. Os que empreendem “por
necessidade” se direcionam para os setores de comércio e
serviços, principalmente de alimentação e vestuário, assim,
exigem pouca elaboração técnica e baixo investimento inicial. O
empreendedor negro, muitas vezes, conta com familiares e
amigos, não se formaliza, nem busca investir em negócios
cruciais para a demanda do mercado porque busca empreender
com aquilo que sabe fazer, sem muito planejamento.
Geralmente, comercializa de forma simples: venda de porta em
porta, camelô, prestação de serviços na própria casa ou na casa
do cliente e entregas próximas a residência. Como nem sempre
o objetivo é levar o negócio adiante, a busca por um emprego
formal com carteira assinada é mantida. A maioria dos
empreendedores por necessidade não têm formação em gestão,
possuem pouca noção da sua estrutura de custos, não criam um
plano de negócios devido a inexperiência e preocupação imediata
de levantar alguma renda para sobreviver. Nas condições acima
e sem ferramentas para organizar o próprio microempreen-
dimento, elaborar um diferencial em alguma prestação de
serviço ou criar uma estratégia inovadora, muitas vezes o
negócio sofre fechamento prematuro (NOGUEIRA, 2013).

19Esta é a segunda edição da pesquisa encomendado pela aceleradora PretaHub,


em parceria com a Plano CDE e a JP Morgan, realizado entre julho e setembro
de 2019. Para o estudo, foram ouvidos 918 empreendedores negros e 302
brancos, de todas as classes sociais, entre 18 e 70 anos.

144
Mesmo aqueles que decidem comercializar produtos e
prestação de serviços personalizados com alguma referência
étnica também enfrentam as mesmas dificuldades. A precari-
edade das condições de quem empreende por necessidade limita
as possibilidades de crescimento do negócio, do bom
faturamento e de geração de empregos (NOGUEIRA, 2013). Por
esses motivos, a opção pelo empreendedorismo tanto formal
(MEI) ou informal entre a população negra, em grande parte, é
um efeito de refúgio das adversidades causadas pela exclusão
social, configurando o empreendedorismo por necessidade.
Obviamente que as dificuldades iniciais para empreender afetam
empreendedores brancos e negros, no entanto, para um
empreendedor negro ser bem-sucedido a frente do próprio
negócio, ele enfrenta mais dificuldades devido ao racismo
(MONTEIRO, 2005). O racismo institucional e estrutural sobre o
segmento da população negra que deseja empreender é
perceptível nos indicadores sociais, nas dificuldades de obter
credito bancário; na falta de representatividade e no racismo
sofrido por fornecedores e consumidores cotidianamente
(MARTINS, 2005).
Essa realidade tem sido frequentemente denunciada por
afroempreendedores que sofrem essa desigualdade social
refletida, também, no mundo dos negócios. Além de denunciar,
os empreendedores negros em todo o Brasil e no mundo
descobriram, neste contexto de exclusão, oportunidades de
negócio explorando justamente o que os afasta das melhores
colocações: o pertencimento étnico racial. Essa característica
será apresentada no tópico a seguir como um dos elementos que
podem justificar a percepção do “efeito oportunidade” no
afroempreendedorismo.

Afroempreendedorismo por oportunidade

No Brasil, as políticas públicas favoráveis 20 às


consideradas minorias sociais no início dos anos 2000,

20Políticas de redistribuição de renda; programas sociais; cotas sociais; cotas


raciais; PROUNI, FIES, MEI entre outros.

145
proporcionaram um relativo aumento do poder aquisitivo dos
afro-brasileiros, o que teve como um de seus desdobramentos o
aumento da classe média negra (FIGUEIREDO, 2012). Ao longo
das últimas duas décadas, a conquista de ações afirmativas
protagonizadas pela atuação dos movimentos sociais negros
contribuíram para provocar mudanças sociais responsáveis pela
visibilidade positiva da negritude, para o aumento considerável
da geração de profissionais negros com ensino superior, para o
aumento de consumidores negros com relativo poder de
consumo, bem como, para a nova realidade de empreendedores
negros qualificados que têm transformado a realidade do
mercado no país em termos de comportamento, consumo e
inovação (GOMES, 2017). No entanto, é importante ressaltar que
esse otimismo proporcionado pelas ações afirmativas e políticas
públicas de redistribuição de renda não resultaram mudanças
estruturais: o racismo permanece afetando negativamente a
população negra, a qual protagoniza os piores índices de
qualidade de vida, altos índices de violência, exclusão política e
socioeconômica (PAIXÃO, 2013).
O clamor pela diversidade no mercado tem movimentado
um novo comportamento dos consumidores negros que buscam
produtos e prestação de serviços que evidenciem o pertenci-
mento étnico e atendam às suas demandas de representa-
tividade desassociada de estereótipos racistas (GOMES, 2008).
As transformações sociais ocorridas a partir dos anos 1960,
colocaram em evidência as lutas pelas políticas de identidade
protagonizada pelos chamados “novos movimentos sociais”, os
quais trouxeram a identidade para o centro das mobilizações
coletivas (WOODWARD, 2014). Esses novos movimentos sociais
denunciam as relações de poder envolvidas na construção das
identidades, os símbolos criados para inferiorizar minorias
sociais, o processo de exclusão de determinadas identidades em
detrimento de outras e as representações homogêneas de grupos
dominantes na sociedade ocidental (CASTELLS, 2018). Para
além da denúncia, esses novos movimentos sociais reivindicam
a autodefinição de suas próprias identidades e para isso, criam
suas próprias narrativas e representações (KILOMBA, 2019). No
Brasil, os movimentos sociais negros apontam a necessidade de
políticas públicas que garantam a equidade racial no mercado

146
de trabalho formal, inclusão e representatividade de mulheres e
homens negros nos espaços institucionais, campanhas de
marketing e telenovelas que apontem para a transformação do
imaginário social sobre o que é “ser negro”, a fim de aumentar a
autoestima das pessoas negras e descontruir ideia de negritude
forjada em estereótipos racistas (MUNANGA, 2019).
Também existem outras estratégias dos movimentos
sociais negros para superar a exclusão social e a pobreza entre
a população negra, como a criação de uma economia própria
baseada na solidariedade étnica entre os próprios negros
(NASCIMENTO, 2019). Uma das estratégias mais conhecidas de
circulação de dinheiro entre a comunidade negra foi o “black
money”, criado nos Estados Unidos da América (EUA), pelos
negros norte-americanos, no contexto da segregação racial. O
“black money” é o conceito de uma economia baseada na
solidariedade étnica entre os afro-americanos, onde as
transações monetárias (compra e venda) acontecem somente ou
preferencialmente entre os empreendedores e consumidores
afro-americanos (SANTOS, 2019). Dessa forma, a prática do
blackmoney tornou possível a existência de bancos,
universidade e importantes instituições negras. A experiência do
black money nos EUA tornou a pratica conhecida e ela tem sido
reinventada em outros países da diáspora africana, de acordo
com o cada contexto cultural, social, político e econômico.
No Brasil, há registros de associações de empresários e
empreendedores negros com objetivo desenvolver o fortale-
cimento dos empreendimentos negros desde os anos 1980
(MONTEIRO, 2013). Esses empreendedores negros começaram
a se unir com o objetivo de superar desafios comuns, em
especial, o da discriminação racial no campo empresarial e
experiências parecidas podem ser encontradas entre os
afroempreendedores 21 na atualidade. Alguns movimentos
sociais negros argumentam que a criação de uma economia
baseada na solidariedade étnica possibilitaria a geração de
emprego, autonomia e fim da dependência de políticas sociais do
Estado (NASCIMENTO, 2019). Importante ressaltar a
heterogeneidade da população negra e suas diferentes frentes de

21 NASCIMENTO, 2020.

147
organização política, portanto, não há consenso sobre as
estratégias relacionadas ao combate ao racismo, por isso, não
há unanimidade de que a aposta na atividade empreendedora
seja um caminho eficaz.
Apesar dessas disparidades, a consciência de
movimentar um mercado protagonizado por pessoas negras e a
busca pelo consumo de produtos e serviços oferecidos e
prestados por empreendedores negros aumentaram (GOMES,
2017). Assim, aproveitando as condições de oportunidade,
empreendedores negros qualificados conseguem protagonizar o
cenário de inovação à frente do próprio negócio criado para
consumidores negros. Os afroempreendedores ofertam produtos
e serviços que ressaltam a representatividade negra em setores
variados como moda, culinária, artesanato, produção cultural,
tecnologia, turismo, educação dentre outros. Há também os
empreendedores negros que movimentam negócios desvin-
culados de aspectos identitários, mas participam de alguma rede
de afroempreendedores que visam a prática do black money, ou
seja, estão vinculados a uma lógica coletiva de solidariedade
étnica, compromissados com a luta contra o racismo e
fortalecimento socioeconômico da comunidade negra
(NASCIMENTO, 2020).
A formação de redes entre empreendedores negros na
arena do mercado tem se fortalecido e contribuído para o
enfrentamento do racismo, valorização da cultura afro-brasileira
e africana, fortalecimento da identidade política e busca de
soluções referentes ao desenvolvimento do próprio negócio
específicos para empreendedores negros (NOGUEIRA, 2013).
Nos coletivos, institutos, hubs de inovação e associações, os
afroempreendedores engajados apostam na inovação para
produzir ou prestar serviços que permeiam não apenas o
consumo pelo consumo, mas, sobretudo, o caráter político e
simbólico de suas práticas laborais (ALMEIDA, 2013). Os
afroempreendedores protagonizam em suas ações práticas um
processo de mercantilização que serve à causa antirracista, seja
no incentivo a ascensão social de outros empresários negros ou
na produção simbólica da população negra no imaginário social
fora dos estereótipos pejorativos (HOOKS, 2019). Uma prática
que, em meio ao contexto de uma sociedade estruturalmente

148
racista, cumpre o seu papel cotidiano de transformar o universo
simbólico de imagens associadas ao fenótipo negro, fazendo
valer o poder de auto definição de um grupo historicamente
racializado (SANTOS, 2019).
Em todo o Brasil, os movimentos negros se engajam na
luta contra o racismo e promovem a visibilidade positiva da
identidade negra, realizando atividades voltadas para o
empoderamento estético e identitário, além da reinvindicação de
direitos sociais, políticos e econômicos (GOMES, 2017). Os
afroempreendedores engajados fazem parte desse movimento,
porque fomentam o afroempreendedorismo e o afroconsumo
como estratégia de enfrentamento à vulnerabilidade econômica
e social da população negra (re)cria vínculos identitários
(NASCIMENTO, 2020). Mais do que isso, os afroempreendedores
atuam de maneira reflexiva sobre o seu papel na sociedade ao
ocuparem áreas consideradas incomuns para a população
negra: áreas de tecnologia, inovação e empreendedorismo por
oportunidade. Afinal, o racismo estrutural naturaliza o papel
social de subserviência e prestação de serviços ao “lugar de
negro”, descaracterizando-o da noção de sujeito enquanto
agente de transformação (GONZALEZ, 1982; MONTEIRO, 2005).
O papel reflexivo está em se perceber enquanto parte de uma
minoria social, numa sociedade estruturalmente racista e
recusar o discurso individualista pautados na meritocracia
comumente associado ao empreendedorismo. Os afroempre-
endedores engajados denunciam o racismo estrutural, cobram
equidade no mercado de trabalho e, ao mesmo tempo, a partir
das dificuldades impostas encontram a oportunidade para
empreender, criam meios de superar barreiras coletivamente
enquanto agentes de inovação, não como sujeitos passivos
devido às circunstâncias de exclusão.

Conclusão

O neoliberalismo avança no estrangulamento da classe


trabalhadora, que nas últimas décadas perdeu direitos e força
de mobilização, e essa realidade é muito mais cruel para a
população negra, devido ao racismo estrutural. Não se pode

149
negar, muito menos deixar de denunciar, a fragilidade que os
trabalhadores por conta própria se encontram neste contexto de
retirada de direitos e reforço da ideologia do empreendedorismo.
As possibilidades de compreender o fenômeno do
empreendedorismo entre as minorias sociais são inúmeras,
principalmente com olhar mais apurado sobre o modo como os
empreendimentos tem sido desenvolvidos. Não deixa de ser
importante, no entanto, a analise de conjuntura que leva
determinados grupos sociais, a despertar interesse por
segmentos do mundo do trabalho que envolvem subjetividade
ligada a identidades. Portanto, uma análise interseccional sobre
raça, gênero e classe são necessários, principalmente, para
evidenciar as especificidades das desigualdades e visibilizar o
protagonismo desses sujeitos como agentes de mudança social
com foco no combate às opressões cotidianas.
Os “novos movimentos sociais” contam com ativistas,
militantes, pesquisadores e empreendedores negros contra a
dominação esmagadora das representações sociais da classe
dominante na mídia, a onipotência das multinacionais, a
exclusão política e socioeconômica de minorias sociais, a
desigualdade salarial estabelecida por critérios de gênero e raça,
os discursos universalizantes, o individualismo, a destruição do
meio ambiente, a destituição dos direitos do trabalho e a lógica
do consumo desenfreado. Os afroempreendedores engajados que
fazem parte deste movimento, não estão isentos das condições
sociais em que se encontram, pois a maior parte dos
empreendedores negros são empreendedores por necessidade.
Ao tempo que sofrem as limitações de acesso a oportunidades e
denunciam as desigualdades no mercado, os afroempreende-
dores também criam novos produtos, inovam nas prestações de
serviço e contribuem para a luta antirracista.

Referências

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Carneiro; Pólen, 2019.
ALMEIDA, Alex Sandro Macedo. Consumo e identidade: a
produção para o consumo a partir dos insights dos

150
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afro-brasileiro. Org. João Carlos Nogueira. - Florianópolis:
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153
Trabalho no cárcere:
uma análise sobre a precarização do
trabalho prisional no interior do Centro
Prisional Feminino de Cariacica/ES
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Mariana Chrystello Martins Minchio 1

Introdução

O objetivo principal da presente análise é promover um


debate sobre os moldes do trabalho carcerário desenvolvido por
uma empresa parceira do Governo do Estado do Espírito Santo
com linha de produção de sapatos infantis instalada no interior
do Centro Prisional Feminino de Cariacica/ES, descrevendo
alguns dos reais impactos que a rotina laboral da fábrica
imprime na vida dessas mulheres encarceradas e trabalhadoras.
Relevante destacar inicialmente que o nascimento das
prisões está diretamente relacionado à gênese do trabalho
prisional, uma vez que as casas de correção manufatureiras
foram identificadas como as primeiras formas de cárcere
conhecidas hodiernamente, tendo como objetivo principal, não a
recuperação, mas a exploração da mão de obra dos internos,
transformando a força de trabalho dos indesejáveis em utilidade
social, conforme descrito por RUSCHE e KIRCHHEIMER (2004).
De todas as motivações da ênfase no encarceramento
como método de punição, a mais importante era a obtenção do
lucro, seja no âmbito da produtividade da própria instituição,
quanto no sentido amplo em tornar o sistema penal uma parte
do sistema mercantil (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004). Todavia,
o negócio inicialmente instituído pelas casas de correção abriu
o caminho para a introdução do encarceramento como forma
regular de punição (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004), sendo um

1 Doutoranda em Política Social pela Universidade Federal do Espírito Santo -

UFES; Mestra em Sociologia Política pela Universidade Vila Velha - UVV.


Advogada.

155
fator importante no crescimento da produção capitalista. Desta
forma, é evidenciada a conexão da prisão com o modo de
operação capitalista, atrelada à força de trabalho, e essa
percepção foi registrada por ROSA et al. (2017):

A pena privativa de liberdade sempre esteve, desde o seu


nascimento, atrelada às demandas impostas pelo sistema
capitalista em suas constantes transformações. Serviu
como forma de impor a disciplina do trabalho assalariado
em camponeses, como controle do exército de reserva de
trabalhadores e da precificação da mão de obra, como
dispositivo de adestramento da força de trabalho, enfim
esteve continuamente apta a manter o controle da classe
proletária da maneira necessária para atender aos
interesses do sistema produtivo. A prisão figura, assim,
como instituição auxiliar da fábrica (ROSA et al., 2017,
p.207).

O modelo econômico em vigência que orienta o sistema


penal no Brasil é o neoliberalismo (FLAUZINA 2017). Assim,
como resultou de desdobramentos dos liberalismos político e
econômico inaugurados por pensadores como John Locke e
Adam Smith, respectivamente, esse atual formato tributário do
livre mercado em vigência no ocidente esteve intrinsecamente
marcado pelo racismo que, no caso brasileiro, encontra-se em
operação desde a época do Brasil colônia, conforme descreve
FLAUZINA (2017). A pobreza gerada pelo empreendimento
neoliberal é o alvo da vez e, sob a premissa da “ordem pública”,
as agências policiais assumem a posição de protetores dos
interesses hegemônicos e agem contra os “grupos histori-
camente marginalizados” (FLAUZINA, 2017, p. 100).
O sistema penal tornou-se um território sagrado dessa
nova ordem socioeconômica, promovendo-se uma atualização
que, na reflexão trazida genuinamente por RUSCHE e
KIRCHHEIMER (2004), fez com que sobrem braços e corpos no
mercado de trabalho, na medida em que aumentam os controles
violentos sobre as vidas e os corpos daquela parcela da
população mais pauperizada (BATISTA, 2012). Lida-se assim
com o paradoxo da penalidade neoliberal, que de acordo com
WACQUANT (2011, p.09) pretende remediar com um “mais
Estado” policial e penitenciário o “menos Estado econômico e

156
social” que é a própria causa da escalada generalizada da
insegurança objetiva e subjetiva em todos os países ocidentais.
E assim, o perecimento do Estado social relacionado ao
engrandecimento desenfreado do Estado penal, promove a
expansão do sistema carcerário e do setor penitenciário no seio
das administrações públicas, fortalecendo a indústria privada
carcerária.
No caso do Brasil, que em número absoluto de presos,
ocupa a 3ª posição no ranking do aprisionamento, atrás apenas
de China e Estados Unidos (G1, MONITOR DA VIOLÊNCIA,
2020), ainda temos o reflexo das políticas neoliberais dos EUA
em suas celas superlotadas, com o fortalecimento desse Estado
policial, olvidando-se na garantia de direitos humanos e
seguindo leis penais de emergência, a exemplo da Lei
Antidrogas 2, e das constantes alterações na parte especial de um
Código Penal, ideologicamente comprometido com o capital3
(VALOIS, 2019), e assim, “o meio prisional acaba sendo visto
como local de vácuo de direitos, onde o Estado de Direito é
abandonado, sendo essa uma das características da prisão como
instrumento punitivo” (VALOIS, 2019, p.16).
Em relação ao Estado do Espírito Santo, é notório o
empenho na busca por mais empresários dispostos a instalar
suas fábricas nos presídios estaduais 4, em um contexto de

2 “No que tange à política de drogas, o STF omite-se em delimitar de forma clara

os critérios de diferenciação entre consumo e tráfico previstos na Lei n.


11.343/06. Essa zona cinzenta na aplicabilidade da lei, diretamente sustentada
pela falta de diretrizes do tribunal, tem sido instrumentalizada para a
reprodução da seletividade e as alarmantes taxas de encarceramento que, no
Brasil, têm as mulheres negras como alvo principal na última década”
(ALEXANDER, 2017, p.14)
3 As prisões brasileiras apresentam a quarta maior população carcerária

feminina do mundo, com cerca de 42 mil mulheres presas. Assim como o tráfico
de drogas é a principal causa para o encarceramento no Brasil, trata-se do
principal tipo de infração cometido por mulheres. De acordo com o INFOPEN
(2018), “crimes relacionados ao tráfico de drogas correspondem a 62% das
incidências penais pelas quais as mulheres privadas de liberdade foram
condenadas ou aguardam julgamento em 2016, o que significa dizer que 3 em
cada 5 mulheres que se encontram no sistema prisional respondem por crimes
ligados ao tráfico”. (INFOPEN, 2018)
4 A Secretaria de Estado da Justiça - SEJUS, mantém em sua página

institucional (https://sejus.es.gov.br/abra-as-portas-da-sua-empresa-para-o-
trabalho-de-um-detento-2) um convite ao empresariado para que firmem

157
instrumentalização da atividade laboral enquanto estratégia de
“ressocialização” 5. Mas como é possível promover a suposta
“ressocialização” 6, enquanto na prática as condições precárias
proporcionadas pelo cárcere brasileiro são de superlotação,
rebeliões e chacinas encabeçadas por facções criminosas
(BRASIL, 2017)?
Isso se deve a estrutura física carcerária do Estado do
Espírito Santo, que inclui espaços para oficinas e galpões de
fábricas, e essa convergência de fatores faz com que o Governo
do Estado busque firmar parcerias público-privadas, incenti-
vando o interesse empresarial para contratação da mão-de-obra
carcerária, com anúncios amparados nas diversas vantagens,
dentre elas a redução de custos e o ganho de imagem através da
responsabilidade social. Em contrapartida, as empresas
contribuem com o processo de cumprimento da pena e
“ressocialização” dos trabalhadores contratados.
Não se pode olvidar que os sérios problemas
penitenciários enfrentados pelo Estado do Espírito Santo em
meados de 2006 se deu pela tendência do aprisionamento em
massa de negros e pobres, promovido pelo governo Paulo
Hartung e sua gestão neoliberal (RIBEIRO JUNIOR, 2012).

convênios com o setor público e absorvam a mão de obra carcerária através da


chamada “Abra as portas da sua empresa para o trabalho de um detento”.
5 Os termos “ressocialização” e suas derivações, como “reeducação” e

“reeducandas”, se encontrarão localizados entre aspas (“ ”), já que vinculam-se


a “heranças anacrônicas de uma velha criminologia positivista que tinha o
condenado como um indivíduo anormal e inferior que precisava ser (re)adaptado
à sociedade” (BARATTA, 1990, p.03), perspectiva esta que não possui nenhum
tipo de aderência ao referencial teórico da pesquisa, mas que continua em pleno
uso.
6 Frisa-se que o ideal de prevenção especial pelo processo de “ressocialização”

surge no Brasil com a ascensão da criminologia positivista e a intenção de


tratamento ou profilaxia ao criminoso, com a investigação de indivíduos
recolhidos em prisões, manicômios judiciais e delegacias de polícia e descrição
de suas características bioantropológicas a serem consideradas determinantes
de um perfil criminoso, sendo de Cesare Lombroso a conclusão de que as causas
da criminalidade estariam na natureza biológica do próprio ser humano (ROSA
et al., 2017). Ocorre que, ainda hoje, a representação da pena como meio de
“regeneração” e “ressocialização” é mantida e difundida pela sociedade
contemporânea, constantes nas decisões judiciais condenatórias e na própria
LEP que prevê, em seu artigo primeiro, o intuito de proporcionar condições para
a “harmônica integração social do condenado e do internado”.

158
Diante do escândalo carcerário, notou-se uma oportunidade de
lucro em razão das construções das novas unidades carcerárias
sem licitação, conforme pontuado por RIBEIRO JUNIOR (2012).
Destaca-se ainda o fato de que o Espírito Santo foi o Estado que
mais investiu recursos próprios de seu tesouro no sistema
penitenciário, visando sua modernização na medida em que
aplicou quase meio bilhão de reais na construção de novas
unidades prisionais em quase uma década (SEJUS/ES, 2015).
Davis e Dent (2003, p.528) utilizam a expressão
“Complexo Industrial Carcerário” para tratar da expansão dos
novos modelos de aprisionamento desenvolvidos nos Estados
Unidos, como a supermax, e a sua estreita ligação com a
produção de lucros, apropriando-se do termo “indústria da
prisão” ao se referir à produção de prisioneiros para garantia de
geração de lucros a um número crescente de corporações e em
contrapartida se produz as condições de pobreza, com a
drenagem dos bens sociais de instituições como escolas,
hospitais e moradia, criando assim uma percepção acerca da
necessidade de um maior número de prisões.
Fazendo um paralelo entre a expansão do sistema
prisional estadunidense e a realidade prisional vivenciada no
Estado do Espírito Santo, será que poderíamos afirmar que
estamos diante do aperfeiçoamento de um “Complexo Industrial
Carcerário” no Estado 7, com a “indústria da prisão” produzindo
em larga escala o aprisionamento de negros e pobres para a
produção de lucros às corporações, em um momento em que a
tendência das privatizações é real e os passos do Governo do
Estado apontam para uma ampla formalização de parcerias
público-privadas, seja para o fornecimento de serviços ao
complexo, seja para produção de mão de obra prisional?

7 Nos últimos 10 anos a população carcerária do Espírito Santo cresceu 179%,


ascendendo de 8.509 (oito mil quinhentos e nove) para 23.767 (vinte e três mil
setecentos e sessenta e sete) presos, entre os anos de 2009 e 2019. Em
contrapartida, o número de vagas não acompanhou tal crescimento e teve o
aumento de 136%, passando de 5.846 (cinco mil oitocentas e quarenta e seis)
para 13.827 (treze mil, oitocentas e vinte e sete) vagas. Em razão dessa
desproporção, o Estado do Espírito Santo enfrenta atualmente a maior
superlotação nas unidades prisionais da última década, com 9.940 (nove mil
novecentos e quarenta) presos a mais que a capacidade, conforme dados obtidos
via Lei de Acesso à Informação (LAI) (AGAZETA, 2019).

159
É sobre esse pano de fundo que a pesquisa empírica se
conduz, evidenciando os atuais contornos do trabalho carcerário
que vem sendo desenvolvido por uma empresa parceira com a
chancela do Governo do Estado do Espírito Santo, que movida
pelas políticas neoliberais, imprime condições degradantes de
trabalho, em uma lógica de maximização do lucro, fazendo
transbordar a violação de direitos humanos no interior da
carceragem, em razão da condição da mulher presa e a ainda
trabalhadora.

A fábrica e a sua produção de lucro e sofrimento

Segundo Antunes (2001, p.15), mutações no interior do


mundo do trabalho vem ocorrendo, diante da crise experi-
mentada pelo capital, destacando o surgimento de um
desemprego estrutural, além de “um crescente contingente de
trabalhadores em condições precarizadas”, que se apresenta
como uma das expressões do neoliberalismo e da reestruturação
produtiva 8 em uma era de acumulação flexível, sendo tudo
voltado “prioritariamente para a produção de mercadorias e para
a valorização do capital”.
Wacquant (2003, p.147) aponta que o grande patronato
e as “frações modernizadoras da burguesia e da nobreza do
Estado” iniciaram uma grande sabotagem da potência pública
sob a bandeira do neoliberalismo, com a ascensão da
desregulação social, salariado precário e retomada do poder
punitivo. A lógica utilizada é a de que a “mão invisível do
mercado”, diante do trabalho precarizado, encontra seu
complemento institucional no “punho de ferro” do Estado que se
reorganiza de maneira a estrangular as desordens geradas pela
difusão da insegurança social.

8 Em linhas gerais, a reestruturação produtiva modifica a organização do


trabalho e traz significativas alterações em suas relações, através da
precarização, pautada principalmente na desregulamentação; na flexibilização
do trabalho e do trabalhador; na terceirização; na feminização; no trabalho em
tempo parcial; informal; temporário, conformando o que Mészáros (2011)
compreende como formas de desemprego estrutural (MASSARO, 2018).

160
A reafirmação obsessiva do “direito à segurança”,
correlativa do abandono do “direito de trabalho” sob sua
antiga forma (isto é, em tempo integral, com plenos
direitos, duração indeterminada e salário viável), além do
interesse e dos meios crescentes dedicados às funções de
manutenção da ordem, acontecem também no momento
certo para preencher o déficit de legitimidade de que
padecem os responsáveis políticos justamente porque
renegaram as missões do Estado em matéria econômica e
social (WACQUANT, 2003, p.148).

Com a ascensão do Estado penal e, consequentemente,


aumento da população prisional, no caso do Estado do Espírito
Santo, é possível verificar uma classe trabalhadora composta
por pessoas encarceradas. A “parceria público-privada” e sua
incidência no “trabalho prisional” faz surgir, como faceta do
neoliberalismo, o paraíso da precarização do trabalho, traduzido
pelo trabalho prisional que ocorre no interior da carceragem.

Ante a necessidade do aumento da taxa de exploração


pelas empresas capitalistas, as unidades prisionais
também parecem se configurar como locus de
concorrência, uma vez que a própria legislação garante a
precariedade dos contratos de trabalho (MASSARO, 2018,
p.151)

Se por um lado “verificou-se uma desproletarização do


trabalho industrial, fabril, manual, especialmente (mas não só)
nos países de capitalismo avançado”, de outro ocorreu “um
processo intensificado de subproletarização, presente na
expansão do trabalho parcial, precário, temporário, que marca a
sociedade dual do capitalismo avançado” (ANTUNES, 2001,
p.211).
Retomando a assertiva de Rosa et al. (2017, p.207), “a
prisão não e uma instituição estanque” e diante das evidencias
empíricas da pesquisa, mais uma vez foi capaz de se adequar as
práticas e necessidades desse sistema capitalista neoliberal
vigente, com o imperativo do lucro como fim único e máximo do
trabalho desenvolvido.
É essa classe, oriunda da pobreza e composta em sua
maioria por trabalhadoras informais de renda reduzida que

161
passaram pelas malhas criminalizantes do sistema de justiça
criminal, que hoje são as “funcionárias” da fábrica no interior da
carceragem, sendo esse sistema fabril carcerário constante-
mente retroalimentado. Se antes a interlocutora mantinha um
“carrinho de água de coco” e trabalhava de “sol a sol”, hoje ela
está trabalhando no interior da fábrica instalada no presídio,
que igualmente lhe exige esforço físico, mas ela já era
acostumada à rotina pesada do trabalho autônomo e informal.
Dentro dos muros do Centro Prisional Feminino de
Cariacica 9 é possível detectar a criação – por parte do Governo
do Estado e de sua empresa parceira – de uma classe
trabalhadora advinda de um segmento social não apenas
precarizado, mas, sobretudo, marginalizado. Nos moldes da
parceria público-privada a mão-de-obra carcerária é absorvida
pela fábrica em sua linha de produção, em todos os processos
de montagem e fabricação do produto, até a sua finalização, com
a etiquetagem e a embalagem de sapatos infantis. Assim, o
produto final sai dali diretamente para distribuição nas lojas.
Sobre as interlocutoras entrevistadas 10, a maior parte é
oriunda da pobreza, o que pode ser refletido pela baixa

9 No início do mês de outubro de 2017, as internas que se encontravam


aguardando julgamento no Centro de Detenção Provisória Feminina de Viana -
CDPFV, local destinado a custódia de presas provisórias (mulheres que
encontram-se custodiadas em razão de mandados de prisão preventiva,
aguardando julgamento, sem sentença condenatória), foram transferidas em
definitivo para o Centro Prisional Feminino de Cariacica/ES (CPFC), que mudou
de nome. Antes era Penitenciária Feminina de Cariacica/ES, atualmente é
Centro Prisional, o que não impede que na prática seja chamado apenas de
“Bubu”, abrigando tanto mulheres condenadas, cumprindo pena no regime
fechado e semiaberto, como aquelas que aguardam o seu julgamento. As
instalações de “Bubu” foram inauguradas em agosto de 2010, construídas em
meio a um contexto conturbado decorrente da pressão internacional por
melhores condições prisionais no Estado (ARAÚJO, 2012).
10 O trabalho de campo foi realizado por meio de entrevistas com quinze

interlocutoras trabalhadoras da fábrica. Foi desenvolvido um questionário


semiestruturado para realização das entrevistas. Antes de começar cada
entrevista, que aconteciam de forma individualizada, com duração média de uma
hora, me apresentava, explicava detalhadamente os objetivos daquele contato e
das perguntas que eu iria fazer, assegurando o anonimato das participantes,
pedindo-lhes sinceridade e espontaneidade nas respostas às perguntas que
seriam feitas e que acima de tudo aquele ato fosse voluntário. Apesar das
entrevistas terem sido realizadas no interior da unidade prisional, tudo foi
conduzido com tranquilidade. Era uma prática usual das internas

162
escolaridade e pelo exercício de trabalho informal, com poucas
exceções. No total de 15 (quinze) entrevistadas, 07 (sete)
concluíram o ensino médio na cadeia e 03 (três) ainda
encontravam-se cursando o ensino médio, ou seja, 10 (dez) das
15 (quinze) interlocutoras não possuíam o ensino médio antes
de serem presas. As 03 (três) entrevistadas que ainda
frequentavam a escola no ambiente prisional, trabalhavam meio
período justamente por este motivo.
Das 05 (cinco) entrevistadas restantes, 01 (uma) possuía
apenas o ensino médio antes de ser presa, outras 02 (duas)
possuíam nível técnico em enfermagem, sendo que uma delas
tinha nível superior incompleto em serviço social, outra possuía
nível superior incompleto em pedagogia e ainda foi entrevistada
uma interna com nível superior completo em administração.
Quanto às ocupações desempenhadas antes de serem
presas, temos as que se declararam autônomas, manicures e
cabelereiras, a que trabalhava com carrinho de água de coco e a
que além de ter um “churrasquinho” também trabalhava com
eventos e era profissional do sexo, o que podemos classificar
como ocupações informais. Ainda tinha uma dançarina, uma
vendedora de loja, uma assistente administrativa da loja, aquela
que era cozinheira e fotógrafa, e uma técnica em enfermagem,
que apesar de serem atividades laborais formalizadas,
apresentam baixa remuneração. Nesse universo, temos ainda
uma entrevistada que trabalhava como professora e a que era
funcionária pública.
A rotina diária laboral das mulheres trabalhadoras da
fábrica localizada no presídio feminino não tem desvio. Não há
espaço para qualquer tipo de atraso ou falta. O dia das internas
começa às 05h da manhã, quando são acordadas e direcionadas
ao momento do banho e depois ao momento do café. Às
07h20min as internas trabalhadoras se organizam em filas,
dispostas em ordem alfabética, momento em que são
direcionadas ao trabalho da fábrica. O expediente de trabalho

permanecerem naquela sala onde as entrevistas se conduziam. Visualizei


algumas comendo e até mesmo sentadas conversando. Quando eu aparecia
acompanhada da agente penitenciária, elas organizavam o ambiente, recolhiam
suas canecas e maçãs, acertavam o lençol que cobria a poltrona e as entrevistas
continuavam.

163
tem início às 07h30min e término às 17h30min, de segunda a
quinta, com saída às 16h30min na sexta-feira, e por essa razão
não participam do banho de sol e de nenhuma rotina no interior
da prisão.
Quando perguntamos para cada uma das interlocutoras
o que elas consideravam da jornada de trabalho da fábrica
(normal/cansativa/justa/injusta), obtivemos alguns padrões de
respostas. Existem as trabalhadoras que afirmam que a rotina
de trabalho é justa e normal porque “na rua” já exerciam funções
pesadas.

Entrevistada 01: Na rua eu trabalhava até mais! Mas eu


acho normal, cansativo é...mas todo trabalho é cansativo!
Entrevistada 02: É justo, é normal...porque na rua é
assim!
Entrevistada 03: É normal. Eu trabalhava na rua com
coisas mais pesadas!
Entrevistada 11: Não é cansativa para mim que sempre
trabalhei. O que é ruim é que fica em pé, mas eu já tenho
esse costume.
Entrevistada 12: Eu já era acostumada a trabalhar sem ter
hora de parar! Pra mim é normal, não tenho nada a
reclamar não.

No entanto, ainda existem as trabalhadoras que


defendem a rotina de trabalho da forma como ela é:

Entrevistada 05: É tranquila e justíssima! Além de ser


remunerada, tem a remissão. É uma forma de se sentir
mais livre. Eu sinto falta quando não tem trabalho.
Entrevistada 06: Justa! Cumprem os horários, se não se
adapta em uma função, te colocam em outra.
Entrevistada 15: É ótima! Eu amo trabalhar! Se soubesse
que era tão bom trabalhar, não tinha feito nada de errado!
É bom pra saúde, pra mente! Não tem que “bater chapão”,
querer se matar.

Contudo, mesmo diante da defesa das condições de


trabalho a que estavam situadas, a maioria delas admite que é
uma rotina cansativa, mas justificam o motivo para lhe
cumprirem.

164
Entrevistada 04: Às vezes normal, as vezes cansativa, pois
desempenhamos mais de uma função, mas eu gosto,
porque é um aprendizado.
Entrevistada 08: Sei que trabalho mais, são nove horas,
mas me sinto muito satisfeita, por causa da remissão. O
meu advogado fez um pedido e eu ganhei um dia a mais
em cada mês.
Entrevistada 09: Justa pelo fato de saber que é a jornada
correta pela CLT. É pesada, mas necessária e ocupa a
mente. Prefiro estar lá do que estar dentro da cela.
Entrevistada 10: Excessiva! No normal tinha que trabalhar
08h, mas aqui é 9h. Mesmo sendo excessiva é uma forma
de remir a pena e é uma forma de buscar com o juiz essa
hora extra.
Entrevistada 13: Cansativa. Mas é uma forma de ajudar a
minha família e querendo ou não pode remir a pena. Então
eu já vou pensando mais no futuro.
Entrevistada 14: É normal, porque é correto. Eu gosto. Eu
prefiro esse horário de trabalho do que estar na cela. Pro
preso tudo é melhor do que estar na cela. Preso não tem
direito a nada, então é justo! Não que sejamos
escravizadas, mas é melhor ser escravizada trabalhando
do que ficar na cela.

E nesse universo de respostas, existe aquela que


considera a rotina de trabalho injusta:

Entrevistada 07: Acho que estamos trabalhando horas a


mais! É Injusto, porque são horas extras que não
recebemos nem como remissão. Já que não pagam hora
extra, poderíamos trabalhar em um horário normal.

Em relação à remuneração auferida, as funcionárias da


fábrica recebem mensalmente um salário mínimo vigente. Das
entrevistadas, apenas três recebiam meio salário, pelo fato de
trabalharem meio expediente em decorrência dos estudos que
realizavam também no espaço prisional. No entanto, é
importante mencionar que esse salário não contempla nenhuma
garantia estabelecida a quaisquer trabalhadores brasileiros pela
CLT, já que a relação de trabalho será regulada pela LEP – Lei
de Execução Penal, que permite a menor remuneração ao preso,
equivalente a até ¾ (três quartos) do salário mínimo vigente,

165
dispensando-se o recolhimento de impostos, 13° salário, férias e
FGTS 11.
Desse salário mínimo recebido destaca-se que os
familiares da trabalhadora poderão ter acesso a até dois terços
do valor recebido por aquele mês de trabalho, sendo uma parte
destinada para uma conta em nome da trabalhadora, a outra
parte para uma conta em nome de um de seus familiares e a
última parte destina-se a uma poupança que a detenta terá
acesso somente após o cumprimento de sua pena. Ainda, avulta-
se o fato de que o período de “experiência” no trabalho da fábrica,
de 01 (um) mês de serviço, não é remunerado. Ou seja, para
conquistar o trabalho na fábrica será necessário trabalhar sem
remuneração durante esse período.
Foi perguntado para as entrevistadas se elas
consideravam o valor recebido pelo seu trabalho justo ou
injusto, sendo obtido dois padrões de resposta. Existem as
trabalhadoras que acham o valor recebido justo e as que acham
que não é justo. O mais interessante a ser destacado foram as
justificativas apresentadas para cada constatação, a saber.
Existem as trabalhadoras que acreditam que o valor é
justo pela condição que elas ostentam de presidiárias,
demonstrando um sentimento de débito com a sociedade e que,
em verdade, o trabalho é assumido como uma extensão de suas
penas.

P. Considera o valor recebido pelo seu trabalho justo ou


injusto? Por qual motivo? Entrevistada 01: Presa eu acho
justo sim! A realidade da interna é que o trabalho é
benefício. Estou presa, então é justo! Se não estivesse
trabalhando não teria nada! Na última vez que eu olhei o
pecúlio, estava com dez mil e poucos reais, então é justo!
Entrevistada 02: Justo, porque um trabalhador recebe
isso. Eu sei que na rua na mesma função de costureira na

11 Uma vez que a contratação de mão de obra de detentos é realizada fora

do regime da CLT e regulamentada pela LEP, conforme disposto em seu


artigo 28, §2º, as empresas que firmam convênio com a SEJUS contam com
benefícios, como isenção de pagamento de férias, 13º salário, FGTS, multa
rescisória, entre outros tributos; facilidade de reposição ou substituição de
mão de obra; e isenção de despesas com locação de imóvel, água e luz, no
caso de oficinas de trabalho dentro da unidade prisional.

166
fábrica eu receberia mais, mas pelo fato de estar presa é
justo! É a visão deles, da sociedade em geral, que já está
presa, errada, e ainda vai receber pra trabalhar?
Entrevistada 04: Acho justo! Eu acho que fizemos algo
errado lá fora e ainda estamos aqui dentro trabalhando e
ganhando por isso! Querendo ou não, estamos tirando a
vaga de uma pessoa lá fora! Está tudo tá difícil lá fora, sem
emprego, e aqui a gente tem a oportunidade de estar
trabalhando e ganhando! Eu não acho que deveríamos
receber igual uma funcionária que trabalha na fábrica de
Vila Velha. Acho que lá fora ela está ganhando
honestamente o salário e eu errei e estou pagando por um
erro então não tenho que ganhar igual a ela. Entrevistada
05: Justo, porque é tão difícil trabalho lá fora e ai você tem
oportunidade aqui dentro. Eu não tenho nem palavras! É
ótimo! Não acho que deveríamos ganhar como as
funcionárias de Vila Velha, pois minhas despesas são
custeadas pelo Governo.

Existem as entrevistadas que afirmam que poderia


receber mais.

Entrevistada 03: Tá bom porque eu trabalho meio período,


mas eu acho que tinha que ser igual das que trabalham
na fábrica de fora, porque somos iguais, só estamos
pagando por um erro, mas temos que nos valorizar.
Entrevistada 06: Acho que deveríamos receber um
pouquinho a mais pois fazemos várias funções. Acho que
deveríamos receber como as funcionárias de Vila Velha,
pois cumprimos nosso horário, nos empenhamos
bastante, buscando aprender. Acho que tem que ter
igualdade, porque não...?

Existem as entrevistadas que foram mais críticas em


suas respostas. Uma disse que a sua opinião de pouco ou nada
vale pela sua condição de presa, e que caso reivindicasse algo
poderia ser demitida ou transferida.

Entrevistada 07: Como eles falam que preso não pode


ganhar mais que um salário mínimo, eu tenho que ficar
quieta, pois tenho que trabalhar, tenho que calar minha
boca, sendo que eles não pagam nada de luz, nem imposto,
nem água. Até pra ir no banheiro tem demanda, tem que

167
botar o nome na lista pra sair da esteira. Eu sei que como
costureira o salário seria bem mais, mas como estou presa,
posso falar o que senhora? Posso perder o serviço e posso
até ser transferida daqui. Eu acho que nós todas, presas,
merecíamos ganhar igual as trabalhadoras da fábrica de
Vila Velha, pois estamos aptas para fazer o mesmo serviço
que elas fazem, a única diferença é que somos presas, mas
somos caprichosas e dedicadas.

Outra disse que é excluída de seus direitos como cidadã:

Entrevistada 08: Sei que lá fora o salário da costureira é


mais. Aqui não se trabalha com carteira assinada. Aqui
excluem nossos direitos de cidadania, então não posso
falar se é justo ou injusto, porque não sei se podem assinar
as nossas carteiras. Eu acho que deveriam ter mais
empresas aqui dentro, para quebrar esse monopólio. A
empresa paga certinho, pelo menos pode contar.

Essa mesma entrevistada (n.°8) informou que muitos


trabalhadores foram demitidos da fábrica externa, para o serviço
deles ser terceirizado no interior do presídio. Essa informação
converge com o que foi dito pelo membro da equipe
multidisciplinar, de que estavam iniciando as seleções para
contratação de mais 70 (setenta) internas trabalhadoras,
saltando de 75 (setenta e cinco) para 145 (cento e quarenta e
cinco) o número de internas contratadas pela empresa.
O horário de almoço da fábrica ocorre de 12h às 13h. Por
vezes o descanso do almoço é desrespeitado, pois o horário da
“cadeia” não bate com o horário da fábrica.

Entrevistada 02: “não são respeitados, porque às vezes


atrasa para chegar o almoço, ai o horário vai sendo
perdido. Já chegamos a ter 15min para almoçar e retornar
pra fábrica.”
Entrevistada 04: “o horário da empresa não bate com o
horário do presídio. Nós temos que cumprir o horário da
empresa, mas tem que esperar a comida chegar. Quando
ela chega, já está quase na hora de voltar a trabalhar, ai
tem que comer rápido e voltar.”

168
Entrevistada 08: “sexta não, porque a comida não chega.
Chega faltando 15min pra terminar o horário. Eu me sinto
mal de ter que engolir a comida.”
Entrevistada 09: “costuma ser respeitado, mas em
fechamento de lote, caso necessário, estendemos o horário
para depois fazermos o horário de almoço. A comida corre
risco de estragar.”
Entrevistada 10: “o almoço não é respeitado não pela
empresa. Não vai almoço no horário certo, principalmente
sexta, que temos 15min ou 30min de almoço.”
Entrevistada 11: “sim, só tem a complicação na sexta,
porque sempre atrasa, ai chega 12:15h, ai temos que
almoçar correndo, em 15min, pra voltar a trabalhar.”

Não existe refeitório ou mesmo mesas improvisadas para


almoçarem. Assim que se apossam de suas marmitas, estendem
papelões no chão e almoçam por ali, em meio à sujeira da
fábrica. O local não mantém higiene, sendo habitado por ratos e
insetos, e as costureiras são as únicas que tem a oportunidade
de comerem sentadas, já que trabalham em mesas de costura.

Entrevistada 09: “almoçamos no chão, em cima do


papelão. Não tem refeitório, inclusive isso é uma coisa que
a fábrica deveria melhorar.”
Entrevistada 07: “no calor é muito quente, o banheiro é
limpo, já até me acostumei com o cheiro. O ruído é bem
grande das injetoras. Tem rato.”
Entrevistada 10: “Higiene não tem. Refeitório não tem. Eu
almoço na mesa de costura da colega. O cheiro da fábrica
é forte, pois mexe com produto químico. Fico com um
pigarro insuportável quando chego perto da injetora. O
barulho é muito alto por causa das injetoras. Mesmo com
protetor auditivo, atrapalha. Mesmo colocando veneno,
tem ratos e o perigo é a questão da alimentação porque
várias pessoas almoçam no chão e tem acumulo de insetos
e ratos. É muito anti-higiênico”.
Entrevistada 11: “Na hora do almoço, colocamos os
papelões e jogamos no chão e almoçamos lá no meio das
maquinas. Tem dias que o banheiro fica nojento. O
banheiro fica trancado e temos certa dificuldade pra ir ao
banheiro. O cheiro dos produtos químicos tem, mas não é
forte. Fica mais o cheiro dos sapatinhos que é até gostoso”.

169
Todas as interlocutoras relataram o contato diário com
produtos químicos. Foi perguntado a elas se utilizavam
Equipamentos de Proteção Individual - EPI’s e a maioria disse
usar quando estão nas suas funções originais, mas sempre são
deslocadas, existindo o momento em que ficam expostas aos
agentes químicos. A entrevistada 09 disse ainda que elas usam
chinelos e não sapatos, sendo “perigoso, pois pode cair uma
tesoura no meu pé e cortar porque não estou calçada”. Não
existe pagamento de adicional de insalubridade, nem controle
do tempo de exposição a produtos químicos.
Além da jornada de trabalho ser muito cansativa, as
trabalhadoras não possuem o direito de sentar.

Entrevistada 02: “como costureira trabalho sentada. Na


etiqueta fico em pé, não pode sentar senão ‘roda’ (...)a
costureira é mal vista porque fica sentada costurando”
Entrevistada 04: “trabalho sentada na costura, nas outras
funções fico em pé. Não pode sentar enquanto a esteira
estiver ligada”.
Entrevistada 06: “trabalho em pé. Todo mundo, menos as
costureiras. Não pode sentar. Se tiver passando mal, o
encarregado dá o atendimento. É tudo muito corrido, não
dá tempo.”
Entrevistada 12: “trabalha em pé, não para, não tem
tempo pra parar, só se acabar a energia ou na hora do
café.”
Entrevistada 13: “trabalho em pé. Fico cansada. Não pode
sentar, só no horário do almoço. Eu só peço pra sentar
quando estou passando mal, ai a Sra. (nome da
encarregada) deixa eu trabalhar sentada.

Tanto a entrevistada 06, quanto a entrevistada 13


relataram “passar mal” durante o cumprimento da jornada de
trabalho. E, de acordo com as suas respostas, quando estão se
sentindo mal, podem receber uma espécie de “bônus”,
possibilitando que trabalhem sentadas, embora não sejam
dispensadas do serviço naquele dia.
O relato geral das interlocutoras é de dificuldade extrema
de sair da fábrica para serem atendidas pelo setor de saúde do
presídio. Existem, contudo, as que atribuem essa dificuldade ao
próprio funcionamento prisional, explicando que a fábrica libera

170
sem problemas. Mas, tem as que afirmam que até para irem ao
banheiro é preciso pedir autorização, colocando o nome em um
quadro e esperando a ordem do superior. Isso tudo, porque o
trabalho da esteira não pode parar, tendo em vista que
comprometeria as metas estabelecidas pela fábrica, já que o foco
é a produção e não a saúde daquelas trabalhadoras presas.

Entrevistada 01: “é difícil, atendimento na saúde é


complicado de forma geral. Eu já vi várias trabalhando e
precisando de atendimento. Eu não sei onde está o
problema no atendimento da saúde, não sei se é na fábrica
ou na própria saúde. Eu acho que é na saúde, porque
quando eles chamam pra atendimento na fábrica, eles
liberam a presa, tanto que eu estou aqui.”
Entrevistada 07: “até pra ir no banheiro tem demanda, tem
que botar o nome na lista pra poder sair da esteira.”

A entrevistada 09, em um contexto de total violação de


seus direitos humanos, relatou que por vezes trabalhou
sangrando, pois tem problema de hemorragia, mas mesmo
solicitando atendimento médico não foi conduzida.

Entrevistada 09: “é uma coisa muito complicada o


atendimento da saúde, inclusive eu já tô pedindo
atendimento há 30 dias. Eu tenho problema uterino. Estou
sangrando há 30 dias sem atendimento. Os atendimentos
em geral da fábrica são bem restritos. Somos privadas dos
eventos da unidade e de atendimentos com psicóloga,
porque não podemos sair. Se saio, bato o ponto e o tempo
que estou fora é abonado, não computado.”

A rotina dessas trabalhadoras presas é ditada pelo ritmo


da esteira e as suas metas diárias de produção. Necessário
agilidade, atenção e, acima de tudo, concentração no que se está
fazendo. Apesar disso, ouviram-se relatos de que existe uma
disputa interna realizada pelas trabalhadoras de cada esteira,
acerca de quem vai bater a meta alcançando o primeiro lugar na
produtividade da fábrica. Ouviram-se, inclusive, o relato de que
muitas dispensam o horário de almoço para continuarem
trabalhando, estimuladas pela competição. A maior parte delas,
apesar da exigência do cumprimento das metas, não “tem

171
tempo” de pensar no lucro que a força de trabalho de cada uma
delas é capaz de gerar para a empresa.

Entrevistada 03: “a minha esteira tem meta de 500 pares


por dia e sempre bate! Há cada 1h são 66 pares. Eu fico
preocupada em cumprir a meta, nós ficamos disputando
entre as equipes. A gente sabe que a empresa lucra muito,
mas a gente não pode fazer nada, nem temos tempo de
pensar nisso. Uma vez eu pensei e falei na cela: ‘já pensou
o que a empresa tá lucrando com o nosso serviço? E nós?
O que vem de benefício pra nós? No meu modo de pensar
deveria ter estabelecido um atendimento de emergência, a
(funcionária X) já cortou até metade do dedo! Mas apesar
do lucro, não me sinto usada, pois é uma coisa que eu
gosto de fazer!”
Entrevistada 04: “temos a meta do dia e sempre
conseguimos até passar! Eu fico feliz por ter cumprido a
meta. Agora a meta é 1.900 pares por dia, se não me
engano. Nunca parei pra pensar no que a empresa tá
ganhando”.
Entrevistada 05: “eu não tenho metas, eu ajudo a cumprir
as metas da empresa. Temos uma cota de meta por
máquina de 500 pares. São 2.500 pares por dia na
injetora. Vai aumentar a quantidade de maquinas e
funcionários na semana que vem. Vai vir muita
exportação, muita coisa diferente (...) o sapato é fabricado
em dois segundos. Um sapato custa 14 reais pra empresa
e é revendido por 22 para o lojista, e esse lojista vende por
45 reais, como por exemplo a C&A. Eu não acho injusto
essa questão do lucro. No início eu até pensava, mas
considerando que somos reeducandas e um funcionário de
fora recebe 65 reais a mais e uma cesta básica. A energia
que a fábrica gasta por dia tem capacidade pra abastecer
5 mil casas!”

De todo o contexto violador de direitos, os relatos de


recorrentes acidentes de trabalho impressionam, sendo alguns
de natureza grave, a demonstrar uma maximização da
precarização do trabalho.

Entrevistada 01: “já furei o dedo duas vezes com a agulha.


Na primeira vez eu fui na saúde e voltei. Na segunda vez
eu só passei um álcool mesmo, mas foi tranquilo, foi mais

172
um susto, foi distração minha nas duas vezes. Dizem que
é normal entre as costureiras (...) Já vi acidentes na
máquina de fivela. Fez um furo no dedo de (funcionárias
A, B, C, D, E, F) 12. Agora colocaram dispositivo de
segurança. Dizem que é por falta de atenção o acidente.
Todas ficaram de atestado e depois voltaram e não foram
desligadas. Tem que está lá em outra função até hoje”.
Entrevistada 02: “foi falta de atenção, me acidentei
aprendendo a costurar, ai eu costurei o dedo. Fui na
saúde, retiraram a agulha que atravessou meu dedo e
colocaram um esparadrapo, e ai eu voltei a trabalhar na
hora (...) já vi acidente no velcro, a moça deu um ataque
de epilepsia e estava com uma tesoura na mão, ai ela ficou
se machucando, enfiando a tesoura no rosto, quase
perfurou o olho. Levaram ela pra saúde, ela ficou alguns
dias de observação e depois voltou a trabalhar”.
Entrevistada 03: “já me acidentei, caiu uma matriz, uma
forma de sapato, no meu dedo. Não precisei ficar afastada,
retornei no mesmo dia (...) já vi furarem o dedo, cair matriz,
ai vai pro atendimento, quando sangra vai pra enfermaria.
Não volta no mesmo dia, mas depois volta (...) se você se
machucou, você vai ter que faltar, não vai receber porque
não está trabalhando em razão do acidente que aconteceu
dentro da empresa”.
Entrevistada 04: “sim, me acidentei na máquina de fivela
e machuquei meu dedo. Fiquei de atestado por quinze
dias, fui atendida pela saúde. Eu recebi porque peguei
atestado, só perdi minha remissão.”
Entrevistada 12: “já vi acidente na máquina de fivela.
Perdeu metade do dedo e a unha e deu ponto. Eu vi duas
assim. Depois de 5 dias voltaram pra trabalhar, mas não
voltaram pra mesma função. Não receberam nada, só
levaram pra rua pra dar ponto, mas a empresa não arca
com nada.

É possível detectar na fala das interlocutoras a


internalização e reprodução do discurso da empresa sobre a
rotina de acidentes de trabalho vivenciada por todas as
trabalhadoras. Elas assumem a total culpa por terem causado o

12 A interlocutora revelou o nome de seis funcionárias que ela presenciou se


acidentando na fábrica, o que a pesquisa cuida de omitir, em razão da não
divulgação de dados pessoais.

173
acidente, explicando que se acidentaram em razão da sua
própria displicência e/ou falta de atenção. A maior parte das
interlocutoras relatou que após sofrerem o acidente, que
envolvem a mutilação de parte dos dedos; queda de matrizes
(formas de sapatos de aproximadamente 30 kg) nos dedos das
trabalhadoras; “costurar” o dedo ocasionando um furo e a
quebra da agulha que se aloja no dedo; retornam ao trabalho na
mesma hora, caso não sejam encaminhadas ao atendimento
externo, quando sangram e existe a necessidade de levá-las para
receberem ponto cirúrgico na área lesionada.
Conforme explicado por uma das interlocutoras, se a
trabalhadora se acidenta, deverá voltar para a cela, sem receber
por aqueles dias em que ficou “parada”. A maioria desses
acidentes, no entanto, deve ser atribuído a rotina corrida da
fábrica, com exigência do cumprimento de metas e mais metas
de produção. Se a meta ainda não foi cumprida, aumenta-se o
ritmo de rotação das esteiras e as trabalhadoras devem realizar
o serviço de forma cada vez mais ágil, caso contrário a esteira
roda 13, e é aí que elas acabam se mutilando e se lesionando.

Entrevistada 08: “a máquina de sapatinhos é um perigo. O


problema da empresa é a pressa no final do mês. O antigo
encarregado era imaturo, agora tá mais tranquilo. Por
causa da velocidade das esteiras já costurei o dedo duas
vezes. Ai eu fui pra enfermagem, retirei o resto da agulha
que ficou na unha e voltei pra trabalhar. São 4 pares com
40 segundos e estava com 30 segundos (...) já vi vários
acidentes. Caiu uma matriz na mão da funcionária X. Na
máquina de arrebite, na fivela, já vi várias perdendo a
tampa do dedo. Fica de atestado e depois volta pra
trabalhar.”

As interlocutoras que respondiam que já tinham sofrido


algum acidente de trabalho acabavam demonstrando desapego
ao seu aspecto físico, sob a lógica de que “se machucou, depois
melhora, pois temos que trabalhar”. Desse modo, cada resposta
realizada pelas interlocutoras passava por um gatilho de

13“Rodar a esteira” é uma expressão comumente usada pelas interlocutoras para


designar a situação delas trabalhando e não conseguirem executar o trabalho
que está passando naquele momento pela esteira.

174
tolhimento de direitos, de uma consciência de que não possuem
voz, que são incapazes de promoverem reivindicações sobre
algum tipo de direito, adotando uma passividade diante de
muitas situações violadoras. Talvez pelo medo de perderem o
posto de trabalho e consequentemente perderem a remissão, o
salário, a fuga do enclausuramento, etc., elas submetem seus
corpos a essa exposição de riscos à sua saúde física.
Diante do conteúdo empírico da pesquisa, resumido por
todos os relatos das interlocutoras entrevistadas, foi possível
constatar que o trabalho prisional desenvolvido na fábrica de
calçados infantis instalada no Centro Prisional Feminino de
Cariacica é desempenhado em um contexto: (i) exaustivo, onde
não se pode sentar, ir ao banheiro e ter atendimento médico,
sempre que solicitado; (ii) que não dispõe de um ambiente limpo,
condicionando as trabalhadoras a se alimentarem insalubre-
mente em meio a sujeira da empresa, sentadas em papelões no
chão; (iii) que expõe diariamente as trabalhadoras ao contato e
inalação de produtos químicos, sem que recebam nenhum
adicional de insalubridade e sem verificar minimamente os
impactos destes produtos na saúde das trabalhadoras presas;
(iv) em que as trabalhadoras são expostas a constantes
acidentes de trabalho, sem receberem o devido tratamento
médico.
Contudo, quando indagadas sobre o suposto efeito
“ressocializador” do trabalho no espaço prisional, várias foram
enfáticas ao afirmar que a atividade laboral exercida por elas
ajuda no processo de “ressocialização”.

Entrevistada 03: “sim, porque te incentiva a trabalhar e


procurar o melhor”.
Entrevistada 04: “ajuda bastante, eu não sei explicar
muito, mas trabalhar aqui me incentivou a querer ganhar
o meu sustento honestamente. Quando eu sair não vou
mais fazer coisa errada.”
Entrevistada 07: “contribui com certeza. Me arrependo
amargamente do que fiz, um homicídio eu devo. Com essa
cadeia eu aprendi muito. O trabalho ajuda, porque a
mente desocupada é oficina do inimigo.”
Entrevistada 09: “sim, a gente muda completamente.
Sempre trabalhei. Ai você vê o que é receber um salário

175
mínimo e saber que 2/3 dele é muito necessário pra
minhas filhas lá fora.”
Entrevistada 11: “ajuda algumas pessoas, no meu caso, tô
usando o trabalho para juntar o dinheiro e poder estudar.
No final isso te ajuda a ressocializar”.

Também existiram aquelas interlocutoras que


reconheceram que o trabalho prisional por elas desenvolvido não
colabora para tal finalidade “ressocializadora”.

Entrevistada 01: “a ressocialização vem do preso e não do


trabalho. O objetivo é seu e não da empresa. O objetivo da
ressocialização é pessoal. É medir o que você fez. Muitas
tem a oportunidade e não querem nada com nada. Não é
o local, é você!”
Entrevistada 08: “a conscientização vem de cada um, não
é a fábrica que me prepara, porque eu já tenho o costume
de trabalhar (...) por muito tempo eu não tive motivação,
eu ia trabalhar porque precisava, agora tá melhorando (...)
o trabalho ajuda mas não é o suficiente. Tem o
arrependimento, a perseverança. A vida se torna uma
rotina, como se fosse um mecanismo. Eu prefiro viver
pensando no futuro lá fora e não na realidade daqui de
dentro.”
Entrevistada 14: “não, não tem trabalho de ressocialização
ali dentro. Dentro do presídio em geral não tem. Acho que
o acompanhamento psicológico é lindo (demonstrou
afeição a psicóloga), mas a diretora que me perdoe, não
tem ressocialização aqui dentro.

Vale destaque a resposta da entrevistada 10, que afirmou


que o trabalho por ela desenvolvido contribui para a sua
“ressocialização”, pois ela nunca se viu naquela situação,
carregando caixas, costurando, resposta que demonstra
arrependimento pelo que fez até chegar àquela situação de
encarceramento, revelando de alguma forma que o trabalho em
verdade era uma extensão de sua punição.

Entrevistada 10: “contribui pra ressocialização porque


nunca me vi nessa situação, nesse tipo de trabalho, então
penso no que fiz antes. Podia ser diferente...não precisaria
estar presa trabalhando nessa função, carregando caixa,

176
costurando...meus estudos foram todos jogado fora. Olha
o que to fazendo agora...”

Diante das condições de trabalho acima narradas,


verifica-se que a dinâmica de produção gerada pela fábrica tem
como alvo primordial e exclusivo o lucro, mesmo que para isso
seja movimentado por uma mecânica de dor, sofrimento,
vigilância e desrespeito a todo e qualquer tipo de direito humano
da pessoa encarcerada.
Nessa dinâmica de maximização na geração dos lucros,
ignoram-se as demandas sensíveis das trabalhadoras, fazendo
com que elas cumpram às ordens hierárquicas, trabalhando
muitas vezes com dores ou sangramentos, acidentando-se
recorrentes vezes, mutilando seus dedos, mas mesmo assim
retornando ao trabalho, onde cada uma das interlocutoras
revelou-se como singular fonte de lucro para a empresa, e nada
mais.
Além do desrespeito e mutilação aos corpos das
trabalhadoras, existe a produção de memória dos filhos,
ocasionada pela confecção de um produto destinado ao público
infantil. Foi unanimidade entre as entrevistadas mães, o relato
precedido de um sorriso tímido a surgir na face de cada uma, de
que sempre ficam com o pensamento nos filhos naquele
momento em que estão trabalhando.
Isso demonstrou ser um processo cruel de sofrimento
causado pelo ambiente de trabalho, uma vez que elas se
lembram de quando deixaram os filhos, sobrinhos, netos, etc. e
ai vem a consciência de que estão aprisionadas, o que lhes causa
muita dor, frustração, saudade e sofrimento exagerado que
chega ao choro entre as máquinas, no meio de todo aquele
processo de produção.
A lembrança dos filhos ainda crianças, o desejo de ter um
sapatinho para calçar no filho, tudo isso foi confidenciado pelas
trabalhadoras mães. Assim, não dá para quantificar a carga
emocional trazida pela linha de produção da fábrica.

Entrevistada 03: “Lembro a todo momento dele, não só do


meu filho, mas dos meus sobrinhos também. Fico feliz por
estar fazendo o trabalho, mas triste por não estar com ele
e não poder dar a ele o sapato.”

177
Entrevistada 04: “Lembro todos os dias. Eu me sinto triste.
Fico pegando o sapato e lembrando quando eles eram
pequenininhos. Bate uma tristeza...e muita saudade. Ai eu
fico fazendo planos de quando eu sair, tudo vai ser
diferente”.
Entrevistada 07: “Lembro muito...lembro quando deixei o
meu filho com 11 anos”.
Entrevistada 14: “Sempre lembro, dos meus filhos, da
minha família...‘íxi’..., já chorei muito naquela fábrica. Eu
sei que meus filhos não tem mais idade pra usar esse
número, mas lembro muito deles”.

Apropriando-se desse sentimento maternal, as


interlocutoras relataram o afinco e a doação na construção do
produto final perfeito, submetendo-se a um rígido horário em
escala de trabalho maximizada, com redução de direitos
trabalhistas e anulação de direitos e garantias individuais.
Portanto, trabalhar é sinônimo de “fazer uma coisa certa na
vida”, diante de tantos erros passados que lhes conduziram ao
momento do aprisionamento. A entrevistada 01 disse que sua
mãe “tem um orgulho imenso” por ela estar trabalhando.
Na linha de produção daquele produto, algumas se
envaidecem do fruto de seus esforços quando o produto é
finalizado, inclusive operando em suas baixas autoestimas,
como no caso da entrevistada 09, que explicou que a prisão “não
é um local que te ajuda a colocar pra cima, mas o nome da
empresa, o fato do material ser exportado, é um estimulo para
você ter uma melhor autoestima, pois sempre é baixa
autoestima”. E assim, são várias as justificativas para continuar
trabalhando e defendendo a prática do trabalho desenvolvido no
interior da carceragem.

Considerações Finais

O Estado do Espírito Santo e seus últimos governos


orientados pelo modelo neoliberal possibilitou que empresariado
ampliasse o seu leque de oportunidades de ganhos, disponibili-
zando-se a instalar suas fábricas nos presídios estaduais,

178
formalizando parcerias público-privadas, na medida em que
propagandeia benefícios para todas as partes envolvidas,
inclusive aos trabalhadores presos. O interior do cárcere,
cercado de grandes muros e grades, passou a ser o sinônimo de
um silenciamento intencional dos sujeitos ali abrigados, mas a
transcrição dos dados da pesquisa foi capaz de dar voz a
algumas personagens que, em singeleza de respostas,
materializaram a difícil realidade por elas vivenciada, que
ultrapassa as barreiras de uma ótica laboral.
Nesse contexto de privação da liberdade, a encarcerada
naturaliza uma realidade cruel e violadora de direitos, que
perpassa distintos abusos como não trabalhar sentada, não ir
ao banheiro ou receber atendimento médico de forma adequada,
alimentar-se em condições insalubres, sentadas em papelões em
meio à sujeira da fábrica, que inclusive habita ratos, ficarem
expostas diariamente a produtos químicos fortes, cumprirem
uma rotina de trabalho intensa com a imposição de metas nas
esteiras, sofrerem constantes acidentes de trabalhos, com a
recorrente mutilação de partes dos dedos, dentre outras
violações apresentadas na pesquisa. Em um emaranhado de
complexidades vivencias por essas mulheres encarceradas e
trabalhadoras, ainda é necessário lidar com as lembranças da
maternidade interrompida, pois o produto fabricado é destinado
ao público infantil, o que pode ser revelado como outro processo
cruel de sofrimento causado pela linha de produção da fábrica.
É necessário realizar uma ponderação sobre essa
suposta “boa fama” do sistema prisional capixaba e do trabalho
carcerário que vem sendo desenvolvido em estilo fabril por
detrás de sua fachada bem construída, pois a constatação
empírica é a de que a empresa parceira busca exclusivamente o
lucro e não a “ressocialização” da interna trabalhadora, já que
quando sai do presídio ela também sai da fábrica, não sendo
incorporada pela empresa.
Apesar de todo quadro violador de direitos, não existe
nenhum tipo de reivindicação por parte das interlocutoras, pois
elas trabalham na condição de “reeducandas”, na medida e que
são levadas a crer que erraram e estão naquele local para “pagar”
pelos crimes que cometeram, conforme verbalizado por muitas
delas.

179
Em verdade, se instalar empresas privadas no interior de
presídios estaduais possui algum propósito “ressocializador”,
esse transfigurou-se em exploração da mão-de-obra carcerária
em prol do capital privado no Centro Prisional Feminino de
Cariacica, nos moldes da gestão penal neoliberal promovida pelo
Estado do Espírito Santo, institucionalizando-se uma
precarização do trabalho desenvolvido.
A pesquisa desenvolvida penetrou pelos muros da fábrica
e da prisão e através da voz dessas mulheres trabalhadoras teve
contato com um contexto violador de direitos, que deve ser
denunciado e transformado com urgência, revelando-se
necessária uma fiscalização efetiva e isenta a ser realizada no
interior dos galpões que abrigam linhas de produções de
empresas parceiras do Estado.
Em meio a esse cenário de negligência e invisibilidade, o
silêncio do aprisionamento e da realidade laboral experimentada
por essas mulheres foi interrompido e as suas vozes devem ser
ouvidas a cada leitura dos resultados relatados.

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182
Economia solidária e as relações de
trabalho da rede de coletivos fora do eixo 1
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Amanda Teixeira Silveira 2

Introdução

Após o desmonte da indústria fonográfica, observamos o


crescimento de iniciativas independentes que traçaram um
caminho alternativo para a produção de cultura no Brasil. Este
é o caso da rede de coletivos Fora do Eixo (FdE), que surgiu em
2005 com a proposta de conectar cenas culturais das cidades do
país, com intuito de ultrapassar as cidades do Rio de Janeiro e
São Paulo, tendo em vista que apresentavam um maior índice de
arrecadação de incentivos financeiros. A produção cultural
dessa rede baseia-se na economia solidária e na produção
imaterial, tendo em vista um modelo de produção alternativo.
Portanto, buscamos nesse artigo analisar as relações de
trabalho do Fora do Eixo, que se configuram com as
modificações do mundo do trabalho. A organização dessa rede
se apresenta como internacional e nacional e visa produção de
eventos culturais. Com isto, cabe a esta pesquisa identificar em
quais pontos estão ligadas às relações de trabalho e por quais
caminhos elas confirmam se a prática da economia solidária é
efetiva na essência ou se permanece no campo de reprodução
dos discursos.
O primeiro ponto que abordaremos nesse artigo é uma
breve contextualização da rede de coletivos Fora do Eixo. No
segundo ponto abordaremos o debate da centralidade do
trabalho e o trabalho imaterial, a fim de ratificar que a produção

1 Esse texto sintetiza a pesquisa realizada no Mestrado em Política Social na


UFES (2019).
2 Jornalista pela Universidade Vila Velha (UVV) e Mestre em Política Social pela

Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Membro do Grupo de Pesquisa


Trabalho e Práxis (UFES).

183
cultural esta situada dentro da lógica da produção capitalista.
Na seção a seguir, trataremos a relação da rede de coletivos Fora
do Eixo com base na crítica ao modelo de Economia Solidária.
Por fim, avançamos no debate sobre as relações de trabalho do
Fora do Eixo e os impactos desta relação para os trabalhadores.

A Rede de Coletivos Fora do Eixo

A Rede de Coletivos Fora do Eixo surgiu no período em


que várias mudanças tecnológicas estavam em desenvolvimento
e que refletiram no formato de distribuição e compartilhamento
das músicas produzidas por artistas independentes no Brasil.
Os anos 2000 foram marcados pelas crises da indústria
fonográfica que, por um lado, proporcionou o surgimento da
queda do velho formato de compartilhamento de músicas, mas,
por outro, trouxe o início de uma democratização pela internet.
No Brasil, as gravadoras tiveram de se adequar a falta de
previsibilidade da economia, em que foi expressiva a
aproximação da mídia livre diante de um cenário múltiplo de
acessos e de resistência contra a hegemonia das grandes
gravadoras brasileiras. Desta forma, passou-se do formato de
CD’s para o formato de compartilhamento via mainstrean
(MARCHI, 2006).
A rede de Coletivos Fora do Eixo, que tem como sua
produção principal a promoção de eventos culturais, apresentou
um crescimento significante entre os anos de 2008 e 2013,
principalmente durante a vigência do governo do ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT).
A rede de coletivos é estruturada em associações e
possuía as frentes temáticas que se constituíam pelas
linguagens artísticas como teatro, dança, software livre,
sustentabilidade, poesias, clube de cinema, música e comuni-
cação (SAVAZONI, 2014).
Também se organiza por simulacros e as divisões
peculiares de tarefas dentro da rede de coletivos. Os simulacros
são formados por quatro representações: (a) Universidade; (b)
Banco; (c) Partido e (d) Mídia. No ano de 2012, de acordo com as
informações disponibilizadas pelo FdE, a rede articulava 122

184
coletivos, 5 casas e 400 coletivos parceiros (PORTAL
TRANSPARÊNCIA FORA DO EIXO, 2015). Em 2013, eram 18
casas coletivas, 91 coletivos e cerca de 650 coletivos parceiros.
Nesse período, havia 600 pessoas ligadas diretamente ao FdE
que influenciavam cerca de dois mil agentes. “Em sua maioria,
os coletivos-membros são associados sem fins lucrativos”
(SAVAZONI, 2014, p. 27).
Os integrantes do FdE moram nas casas e atuam como
produtores culturais da rede. Eles compartilham todos os bens
nos espaços e os custos são repassados por “uma caixa coletivo” 3
(SAVAZONI, 2014). O “caixa coletivo” está integrado ao “clube de
troca” 4 e a sistematização é feita pelo simulacro do Banco, que
se encarrega de articular tanto formas de captação de recursos
em moeda corrente, assim quantifica e geri as “reservas
solidárias”.
Os recursos em moeda corrente para o caixa são
arrecadados dos projetos empreendidos, seja por meio de editais
de incentivo à cultura ou por outros formatos privados de
captação financeira. São esses recursos que garantiam a
subsistência dos trabalhadores, além dos custos essenciais das
casas.
O FdE mantem uma estrutura definida como uma rede
colaborativa e descentralizada de trabalho onde todos são atores
do processo de forma autônoma, sendo coordenadores e articu-
ladores de maneira democrática (PORTAL TRANSPA-RÊNCIA

3 A utilização do “caixa coletivo” serve para cobrir as necessidades de cada


morador das casas e neste espaço todos os membros disponibilizam os seus
pertences assim que se integram a rede (SAVAZONI, 2014).
4 “O clube de troca resolve o impasse pela criação de uma moeda própria, que

recebe um nome que, em geral, exprime a ideologia do clube: green dollar, real
solidário, hora de trabalho, etc. O clube escolhe democraticamente – um voto
por cabeça –, determina a taxa de câmbio de sua moeda com a do país, o valor
total da emissão de sua moeda e sua repartição por igual entre todos os
membros. Com esta moeda local os membros do clube começam a comprar bens
e serviços uns dos outros. Para facilitar o intercâmbio, os clubes promovem
reuniões e feiras de troca periodicamente, em que cada membro se apresenta
aos demais, descreve o que tem para vender e o que precisa comprar. Ao fim das
apresentações, os membros se encontram e efetuam as trocas, usando a moeda
do clube como meio de pagamento. Também se recorre a jornais impressos e
eletrônicos para divulgar as ofertas e as demandas entre os membros” (SINGER,
2002, pg. 106).

185
FORA DO EIXO, 2015). Tendo em vista que o padrão de
convivência dos integrantes que, além de trabalharem, também
moram nas casas (SAVAZONI, 2014).
No ano de 2013, a rede de coletivos Fora do Eixo recebeu
uma série de denúncias realizadas no programa Roda Viva 5
sobre as relações de trabalho e o sistema financeiro “Cubo Card”,
no que diz respeito a não remuneração dos participantes da rede,
sobre o acesso a propriedade intelectual e a hierarquização do
trabalho na rede. Também nesse período, alguns dos ex-
integrantes divulgaram, via Facebook, entrevistas concedidas a
jornais online.
Além dessas denúncias, também foi divulgado um
manifesto das mulheres intitulado de “Manifesto: Fora do Eixo e
uma reflexão das mulheres contra o patriarcalismo”, que
participaram da rede de coletivos 6. O documento expõe que nas
casas Fora do Eixo a relação patriarcal estava presente e a
divisão de trabalho era realizada por gênero, em que as mulheres
eram encaminhadas para a sistematização dentro das casas, e
os homens ficavam com as tarefas externas de articulação
política.
Feita esta breve apresentação do histórico e das críticas
destinadas a rede, discorreremos nesse artigo alguns pontos que
estreitam a sua relação com a economia solidária e a sua
cooptação de força de trabalho. Portanto, há que se destacar a
necessidade de abranger o debate acerca da centralidade do
trabalho e o trabalho imaterial, a fim de apontar que a produção
cultural, ainda que imaterial, contribui para a reprodução do
capital.

O Trabalho e o Imaterial

Com a diminuição dos empregos e, ao mesmo tempo, o


crescimento das atividades que visavam à intelectualidade,
discussões sobre o trabalho imaterial começaram a aparecer
com a ampliação dos “setores de serviços”, devido o advento da

5 BOCCHINI; LOCATELLI, 2015.


6 FEMINISTAS PELA CULTURA, 2013.

186
reestruturação produtiva, na década 1970, em que apontou para
o debate sobre o “fim da centralidade do trabalho” no mundo
capitalista contemporâneo (ANTUNES, 2000).
Gorz (2005) discorre junto à linha de pensamento de
Lazzarato e Negri (2001), a respeito das potencialidades do
trabalho no campo da autonomia em que destaca o saber do
indivíduo mais valioso que o tempo da máquina. Com esse
pensamento, o homem também carrega consigo o capital e o
capital da própria empresa. O que fica em evidência é “a
inteligência, a imaginação e o saber que juntos constituem o
capital humano” (GORZ, 2005, p. 16). Para Gorz (2005), o
trabalho material não aparece nesse processo como no processo
de produção taylorizado e do pós-fordismo, ele o coloca como um
momento subalterno, e define o trabalho imaterial como central
para a criação do valor.
Desta forma, Gorz (2005) aponta a subjetividade como o
cerne deste processo inovador do trabalho que se configura de
maneira oposta ao processo de produção anterior a este. Assim,
o trabalho compreendido como imaterial diz respeito a uma nova
configuração da produção, o indivíduo se encarrega de novas
obrigações e tende a apresentar uma postura diferenciada no
processo de produção (LAZZARATO; NEGRI, 2001). Estas
dimensões estão distantes do pensamento marxista acerca do
modo de produção capitalista, pois têm como característica o
produto imaterial, fruto da “indústria humana”.
Para Úrsula Huws (2014), ainda que seja um desafio
trazer o debate de Karl Marx para a contemporaneidade, é
possível analisar as transformações do mundo do trabalho sob
a luz da teoria 7 marxista, ainda que os conceitos desenvolvidos
por Marx tenham sido escritos em meados do século XIX.
Huws (2014) explica que “a teoria do valor trabalho é o
nó que está no centro da conceitualização de Marx sobre o
capitalismo como uma relação social” (HUWS, 2014, p. 14). Com

7 “[...] é possível utilizar a teoria de Marx nas condições atuais para definir o que
é, ou não é, uma mercadoria, para identificar o local de produção de tais
mercadorias, sejam materiais ou imateriais, e para definir a classe trabalhadora
global em relação a esses processos de produção. Para proceder de tal maneira,
entretanto, é necessário reexaminar a teoria do valor trabalho em todas as suas
dimensões” (HUWS, 2014, p. 14).

187
isto, expõe três situações: a necessidade de subsistência dos
trabalhadores; seu trabalho; e a mais-valia expropriada dos
resultados desse trabalho, sem que o capital não possa ser
acumulado ou o capitalismo se perpetuar (HUWS, 2014).
No capítulo VI Inédito, Marx (1978) apresenta a
subsunção formal e real do trabalho ao capital. Com base na
subsunção real do trabalho ao capital nasce um modo de
produção dito como “tecnologicamente específico”, que se
desenvolve a partir das diversas formas que produzem a mais-
valia relativa. No entanto, a produção capitalista configura-se
como um padrão de continuidade, este ocorre pela subsunção
formal à subsunção real ao capital (MARX, 1978, p. 66). O
processo ocorre a partir de uma revolução total, que tende a
continuidade com a “produtividade do trabalho e na relação
entre o capitalista e operário” (MARX, 1978, p. 66).
Assim, há o aumento da força de trabalho e isto se dá ao
passo da utilização de suportes. “Desenvolvem-se as forças
produtivas sociais do trabalho, e, por força de trabalho em
grande escala, chega-se à aplicação da ciência e da maquinaria
à produção imediata” (MARX, 1978, p. 66). Ocorre, então, a
superexploração 8 da força de trabalho para ampliar a mais-valia
sem a preocupação com a consequente barbarização da vida
social (BEHRING, 2008). Destaca-se que o capitalista se
apropria do valor criado pelo trabalhador ao não pagar o
equivalente ao trabalho (MARX, 1996).
Para Marx (1978), há a ideia do que, de fato, pode ser
considerado como mercadoria, principalmente no que tange a
acumulação do capital por meio da extração da mais-valia, com
redução de custos e também com a redução do tempo necessário
para a realização do trabalho. Desta forma, a respeito da teoria
do valor-trabalho, o processo de trabalho é um meio de
valorização do capital. Esse formato é produtivo devido ao
trabalho se apresentar como mercadoria, porém há o trabalho
que pode ser considerado mercadoria individual, que representa
uma parte alíquota e se traduz em trabalho não pago que, por
sua vez, gera um produto que não representa gastos para o
capitalista (MARX, 1978). “É produtivo o trabalhador que

8A categoria “superexploração da força de trabalho” utilizada nesta pesquisa não


se trata da análise realizada por Ruy Mauro Marini.

188
executa trabalho produtivo, e é produtivo o trabalho que gera
diretamente mais-valia, isto é, que valoriza o capital” (MARX,
1978, p. 71).
No que tange ao trabalho produtivo, Marx (1978) define
que o trabalhador vende a sua força de trabalho, e o sujeito
possuidor da força de trabalho vende o trabalho vivo e não
apenas uma mercadoria, portanto, consiste em um trabalhador
assalariado. Com isto, Marx (1978) chega à conclusão de que
nem “todo trabalhador produtivo é assalariado, mas nem todo
assalariado é trabalhador produtivo” (MARX, 1978, p. 72). O
consumo privado para Marx (1978) não é considerado produtivo,
nem mesmo os seus executores são considerados produtivos,
estes não se transformam em fatores do capital.
Marx (1978), explica melhor com um exemplo 9 sobre o
trabalhador produtivo e improdutivo quando ressalta as
profissões que não produzem algo concreto e mensurável.
Para tanto, os pontos que diferem o trabalho produtivo
do improdutivo estão entre a relação de troca do dinheiro pelo
dinheiro ou por dinheiro como capital. Desta forma, para a
realização do trabalho produtivo também tem que haver a
pressão do capitalista, que dirige a exploração deste trabalho
para garanti-lo. Sendo assim, “[...] a classe capitalista é a classe
produtiva por excelência (por excellence)” (MARX, 1978, p. 80).
Santos (2013), em uma recente análise sobre O Capital,
de Marx, leva em conta as categorias marxianas como expostas
a um percurso progressivo que passa do simples para o
complexo, num processo que busca compreender as múltiplas
determinações que constituem o concreto. Santos (2013),
também considera que o trabalho produtivo segue o seu próprio
movimento conceitual. Com isto, sob a luz da obra de Marx, o
Capítulo IV Inédito, identificou três níveis do trabalho produtivo
como fundamentais para a compreensão do trabalho imaterial.

9 “Uma cantora que entoa como um pássaro é um trabalhador improdutivo. Na


medida em que vende seu canto, é assalariada ou comerciante. Mas, a mesma
cantora, contratada por um empresário (entrepreneur), que a faz cantar para
ganhar dinheiro, é um trabalhador produtivo, já que produz diretamente capital.
Um mestre-escola que é contratado com outros para valorizar, mediante seu
trabalho, o dinheiro do empresário (entrepreneur) da instituição que trafica com
o conhecimento (knowledge mongering institution), é trabalhador produtivo”
(MARX, 1978, p. 76).

189
O primeiro nível trata-se do processo de trabalho sob a forma
simples produção de valor de uso que tem a ver com o
suprimento das necessidades humanas que ultrapassam o
modo de produção; o segundo nível é sobre o processo de
trabalho na ordem do capital, e se caracteriza no processo que
aparece quando ocorre a generalização intensiva e extensiva na
forma de mercadoria, com a separação dos seus meios de
produção; e o terceiro nível diz respeito à exploração da
capacidade de trabalho socialmente combinada, cuja análise
esta sustentada na concepção de subsunção real do trabalho ao
capital com a junção das tecnologias aos processos de produção,
e que passa do conceito de trabalhador individual para
trabalhador coletivo (SANTOS, 2013).
Para Huws (2014), a relação de trabalho pode ser
entendida como uma forma agressiva aos trabalhadores e que
cada nó feito pelo sistema capitalista tem sua função.

A expropriação de trabalho é o ato de violência no centro


dessa relação, e é o tempo de trabalho dos trabalhadores
que constitui o âmago da luta dessa mesma relação, de
maneira que um entendimento sobre como e sob que
circunstâncias essa expropriação se realiza é crucial para
a compreensão tanto do capitalismo como um sistema
quanto para o entendimento sobre que trabalhadores
podem ser considerados como pertencentes à classe
trabalhadora. O nó não pode ser desfeito: cada laço é
essencial para manter o sistema unido (HUWS, 2014, p.
14-15).

Nesse sentido, Huws (2014) apresenta o debate sobre o


trabalho digital na contemporaneidade como ponto inicial para
compreender os fatores que devem ser levados em consideração
para a construção de qualquer conteúdo que se baseie na teoria
de Marx. Assim, destaca três fios que tenta desembaraçar: 1) a
vida; 2) o trabalho; e 3) e valor (HUWS, 2014). O primeiro tem a
ver com a subsistência do trabalhador, que implica uma série de
questões que vão influenciar diretamente, como, por exemplo, o
trabalho assalariado, sistema de crédito, o Estado com a
seguridade social, saúde, educação etc. Huws (2014) desenvolve,
ainda, sobre o trabalho remunerado e não remunerado, tendo

190
como ponto de partida para a sua análise as relações de gênero.
Discorre ainda que, embora dependente de outras formas de
trabalho para sua reprodução, a forma por excelência de
trabalho que caracteriza o capitalismo é trabalho que produz
valor para o capital e produz a renda que é necessária para a
sobrevivência do trabalhador.
Huws (2014) apresenta um panorama que explica a
relação entre trabalho remunerado e não remunerado. Explica
que o trabalho assalariado, segundo Marx (1978), se compre-
ende como produtivo ou improdutivo. A autora investiu na
distinção entre os trabalhadores remunerados reprodutivos para
a sociedade capitalista em geral, como administração pública,
incluindo ONGs e serviços privados oferecidos individualmente;
os trabalhos não remunerados reprodutivos que são os
trabalhos domésticos, como cuidar de crianças, manutenção
doméstica, atividades culturais não mercantis, etc.; os trabalhos
remunerados diretamente produtivos para empresas
capitalistas individualistas, com a produção de mercadorias; e o
trabalho não remunerado diretamente produtivo, como o
trabalho de consumo (HUWS, 2014).
Essa análise, segundo Huws (2014), excluiria os
trabalhos realizados informalmente, como o freelancer, o
trabalho por peça, entre outros, que apesar de não estarem na
dinâmica do capital, contribuem para a sua acumulação e, de
certa forma, para a subsistência dos trabalhadores. Huws (2014)
defende que definir o trabalho como produtivo no sentido de
Marx, ignora a realidade de que existe uma quantidade
considerável de trabalho não remunerado que produz valor
diretamente ao capital, sem contribuir para a subsistência do
trabalhador. Para esclarecer, Huws (2014) destaca que “[...] o
trabalho ‘dentro do nó’ constitui um subconjunto de todo o
trabalho e está se expandindo rapidamente rumo a se tornar a
esmagadora maioria do trabalho remunerado” (HUWS, 2014, p.
17).
Huws (2014) desenvolve sua proposta de desmistificar a
relação entre trabalho digital e outras formas de trabalho.
Desmistifica a ideia de que o trabalho digital, bem como o
trabalho imaterial ou aquele baseado no imaterial, seja um novo
campo de atividade econômica. Então reforça que, na verdade:

191
É simplesmente uma expressão do crescimento da
complexidade da divisão do trabalho, com a fragmentação
de atividades em tarefas separadas, tanto mentais quanto
manuais, crescentemente passíveis de serem dispersas
geográfica e contratualmente para diferentes trabalha-
dores, que podem mal saber da existência um do outro
(HUWS, 2014, p. 17).

Santos (2013) também apresenta elementos que se


assemelham com a concepção de Huws (2014). Ao analisar o
Capítulo IV Inédito, de Marx, destaca que o trabalho imaterial
tem compatibilidade entre as tendências do capital, além de
contribuir para a sua reprodução. Santos (2013) destaca que
Karl Marx não deixou explícito uma teoria sobre o trabalho não-
material em sua obra, porém vários elementos dos autos
contribuem para o diagnóstico do trabalho imaterial. Desta
forma, os teóricos do trabalho imaterial não validam a categorial
capital variável nesta nova configuração do mundo do trabalho,
além de defenderem a ausência da exploração nas relações de
trabalho imaterial.
Com essa exposição, queremos ratificar que o Fora do
Eixo ao fomentar a cultura e essa ser compreendida no campo
do trabalho imaterial, não deixa de contribuir para a reprodução
do capital, ainda que esteja apoiado no discurso da economia
solidária. Com isso, passamos para o debate sobre os teóricos
da economia solidária e os seus rebatimentos.

Relação entre o Fora do Eixo e a Economia Solidária

Tendo como ponto de partida a proposição de Dardengo


(2013), de que existem dois debates teóricos a respeito da
economia solidária, podemos apontar que há muitas
discordâncias acerca deste modo dito como “alternativo” ao
capitalismo. Por um lado, trata-se de que é possível uma
transição ao socialismo por meio da economia solidária e,
portanto, ser um projeto “anti-capitalista”; e, por outro, há um
debate que refuta esta hipótese, pois avalia que os empreen-
dimentos econômicos solidários estão arraigados ao modo de

192
produção capitalista, sendo assim, não poderiam ser
considerados como “anti-capitalistas”, mas sim funcionais ao
capital.
Nessa disputa, percebemos que o Fora do Eixo apresenta
a proposta de atuação "alternativa" ao capitalismo cunhado
nesse discurso quando se propõe utilizar dos princípios da
economia solidária. Portanto, analisaremos a essência da
economia solidária a fim de compreender onde se instaura o
motor que impulsiona o movimento crescente do Fora do Eixo.
O Fora do Eixo apresenta um perfil autogestionário,
sendo interessante ressaltar que a economia solidária se instala
com a visão de empreendedorismo e, portanto, há uma
tendência a condução da responsabilização do indivíduo pelo
desemprego. A concepção dessa conduta com a característica
individualista é apontada por Dardot e Laval (2016), como
neoliberal quando se trata da nova subjetividade.

[...] a construção de uma nova subjetividade, o que


chamamos de “subjetivação contábil e financeira”, que
nada mais é do que a forma mais bem-acabada da
subjetivação capitalista. Trata-se, na verdade, de produzir
uma relação do sujeito individual com ele mesmo que seja
homóloga à relação do capital com ele mesmo ou, mais
precisamente, uma relação do sujeito com ele mesmo como
um “capital humano” que deve crescer indefinidamente,
isto é, um valor que deve valorizar-se cada vez mais
(DARDOT; LAVAL, 2016, p. 31).

Singer (2000) defende que a economia solidária possui


um sistema híbrido entre o capitalismo e se configura como um
modo de produção diferenciado, cuja base superaria o sistema
capitalista. Com o mesmo discurso o Fora do Eixo também se
apropria da proposta de um modelo híbrido para a gestão das
casas da rede com a possibilidade de utilizar o padrão vertical e
horizontal ao mesmo tempo.

Em outras palavras, se aquelas relações igualitárias ainda


ocorrem no âmbito interno da maioria dos coletivos, a
estrutura da rede e a relação entre os coletivos periféricos
e as casas de maior destaque têm consolidado relações

193
horizontais e verticais que constituem tramas mais
intrincadas (FONSECA apud SAVAZONI, 2014, p. 35).

Então, com essa noção, o Fora do Eixo poderia superar o


modo de produção capitalista? Em contraponto a esse
entendimento, Dardengo (2013) destaca que os “empreendi-
mentos econômicos solidários” estão sob a lógica de mercado e,
tampouco, pode escapar das determinações da teoria valor, cuja
principal imposição é a transferência de valor, dos pequenos
para os grandes empresários (DARDENGO, 2013).
Para Singer (2000), há a compreensão de que se pode
eliminar a exploração do trabalho com a simples mudança do
regime de propriedade e gestão. No entanto, a exploração e a
produção de mais-valia não somem apenas com a alteração do
modelo de produção mais democrático, pois ainda assim não se
trata de uma mudança estrutural no sistema capitalista. Isto
porque os Empreendimentos Econômicos Solidários (EESs) ou
projetos como o Fora do Eixo possuem baixa composição
orgânica do capital, são intensos em capital variável (trabalho
vivo) e pouco intensos em capital constante (trabalho morto)
(DARDENGO, 2013).

Ao comercializarem seus produtos, os EESs vendem-nos


por preços inferiores aos valores, e essa diferença constitui
uma transferência a qual corresponde uma apropriação
pelas empresas monopolistas capitalistas (com elevada
composição orgânica do capital). Mesmo que, na
aparência, a mais-valia tenha desaparecido, uma vez que
a figura do patrão desapareceu, na essência continua a
ocorrer a exploração e apropriação de trabalho não pago
(DARDENGO, 2013, p. 113).

O discurso utilizado pelos teóricos da economia solidária


apresenta-se de maneira mística, tendo em vista que se funda a
partir da negação do capital enquanto uma força social que
articula as relações sociais dentro da ordem capitalista
(WELLEN, 2012). Portanto, entende-se que essa mistificação
está ligada à maneira que se vê as relações mercantis atuais
como algo que é anterior ao capitalismo contemporâneo e
desenvolvido. Ou seja, que está alicerçada pela circulação

194
simples de mercadorias. Com isto, Wellen (2012), destaca que
mesmo que a economia solidária não proporcionasse uma
transformação social, ela proporciona um retorno “fictício” à
circulação M-D-M.

Com esse artifício, se inverte de maneira fantasiosa a


relação D-M-D para M-D-M, uma vez que a produção teria
o homem como epicentro. Promove-se, pois, o efeito
ilustrativo de subsunção do valor de troca pelo valor de
uso. Tal análise teórica expressa, no máximo, uma crítica
romântica ao capitalismo, buscando alertar para a
necessidade de inserir o ser humano como finalidade das
relações econômicas do mercado (WELLEN, 2012, p. 295).

Wellen (2012) explica que o valor de troca sendo um meio


para comprar o valor de uso, faz com que o dinheiro convenha
somente para atender as necessidades sociais e aos interesses
particulares. E enfatiza que esse entendimento é analisado de
várias formas pelos teóricos defensores da economia solidária, o
que determina para a compreensão de como funciona o mercado
capitalista. E é diante dessas “compreensões” que o discurso da
economia solidária está estruturado e que apresenta a proposta
de superação do modo de produção capitalista.
A análise de Wellen (2012) nos aproxima da proposta de
compartilhamento dos integrantes do Fora do Eixo que dividem
todos os bens materiais ao entrarem para a rede. Dessa forma,
a relação mercantil dos processos desaparece sob a luz de uma
proposta solidária e coletiva da produção e reprodução da vida.
Os trabalhadores excedentes constituem um produto
necessário para a acumulação da riqueza no capitalismo, cuja
superpopulação é a alavanca do modo de produção capitalista.
Assim, esse exército industrial de reserva está disponível para
ser explorado a qualquer momento (MARX, 1996).
Portanto, percebe-se até o momento neste artigo que a
rede de coletivos Fora do Eixo se consolidou com base no
discurso dos teóricos do trabalho imaterial e da economia
solidária, em que se apoia na premissa de fornecer uma proposta
“alternativa”. No entanto, com base nos autores críticos
verificamos que há uma discrepância no que concerne ao

195
alcance da transformação social desconsiderando o modo de
produção vigente.

As relações de trabalho da rede de coletivos Fora do Eixo

Até o momento propomos nesse artigo analisar o


momento histórico e as bases teóricas que sustentam a rede de
coletivos Fora do Eixo. Portanto, destacaremos neste item a
relação de trabalho da rede, tendo em vista se o discurso da rede
de coletivos Fora do Eixo se verifica como relações próprias da
economia solidária, e se a rede está submetida ao modo de
produção capitalista.
Aqui trataremos de delinear alguns pontos importantes a
partir do Dossiê 10 que reúne uma série de relatos de produtores
e músicos que passaram pela rede, ou que ao menos
acompanharam a rede circular nas regiões do Brasil. Esses
relatos nos direcionam ao encontro da análise teórica
desenvolvida nesta pesquisa e que nos leva a ratificação da
hipótese apresentada.
O primeiro artigo que analisaremos desse Dossiê é
intitulado da seguinte forma “Como eu vi Surgir e Morrer o Fora
do Eixo”, e foi publicado originalmente pelo Blog Dynamite 11.
Nele contém o relato da idealizadora do BH Indie Music, Malu
Aires 12, que explica como acompanhou o percurso do Fora do

10 DOSSIÊ FDE, 2012.


11 DOSSIÊ FDE, 2012.
12 Malu Aires é intérprete, compositora e agitadora artística, e sua trajetória é

um exemplo de independência e de luta. Paulistana morando em Belo Horizonte,


trabalha para estruturar, organizar e apresentar a música independente do país.
Para isso idealizou e produz, uma vez ao ano, o BH Indie Music, e seu objetivo é
transformar Belo Horizonte na capital da música independente e, por
consequência, promover as bandas mineiras e do resto do país. Seu último
trabalho foi lançado em 2004 com a banda “Junkbox”, o CD “Florais”, totalmente
independente e chamado de art-rock pela própria Malu. Porém, sua trajetória é
bem extensa tendo integrado o grupo de rock progressivo “Sagrado Coração da
Terra”, com o qual gravou o Cd “Sacred Heart of the Earth” pelo selo Sonhos e
Sons (MG), que foi distribuído no Brasil e no Japão. Após isso foi convidada por
Marcus Viana, líder do grupo, compositor e produtor musical de novelas, para a
produção da trilha sonora de “O Clone”. Deste trabalho saíram várias coletâneas.
– destas, três pela Som Livre no Brasil. A distribuição internacional foi liberada
para a Sony Music na América Latina, EUA, Europa, Leste Europeu, Rússia e
Países Árabes (DOSSIÊ FDE, 2012).

196
Eixo, em Belo Horizonte, em 2008, e qual foi o seu contato com
a rede de coletivos. A declaração expõe que a produtora não
trabalhou diretamente com o Fora do Eixo, mas acompanhou o
desenvolvimento da rede, pois como realizadora de um festival
independente, apontou várias situações causadas pela rede que
atingiram diversos festivais.
Ao que indica as declarações dos produtores que
trabalharam direta ou indiretamente com a rede de coletivos, há
o encantamento inicial pela proposta era imediato devido a falta
de inciativas com tal magnitude. Diante da aversão à produção
por meio das leis de incentivo à cultura que destinavam a
centralização de poucas regiões e só atendiam os grandes
festivais de música entre outros projetos maiores. Após a criação
da Associação Brasileira de Festivais Independentes – ABRAFIN,
em 2005, houve uma rotatividade e o fluxo de possibilidades
para que os produtores e músicos independentes concorressem
aos editais para a concretização dos festivais em meio à
competitividade deste ramo, além da criação e distribuição dos
materiais criados pelos artistas. No entanto, a ABRAFIN tomou
outros rumos após seu crescimento no seguimento de produções
culturais independentes (DOSSIÊ FDE, 2012). A mesma prática
do mercado estava posta para os músicos independentes, que
assim que entravam para a ABRAFIN e para o Fora do Eixo
tinham que aderir ao processo e perdiam sua identidade.
Segundo o relato, havia uma guerra de poder diante de
um nicho de mercado criado, à época. No seu relato é destacado
que se tratava de uma disputa dos grandes festivais contra o
Fora do Eixo e, também, uma disputa interna na ABRAFIN por
patrocínios e verbas (DOSSIÊ FDE, 2012).
Porém, não podemos desconsiderar que o cenário em que
o Fora do Eixo chegou a Belo Horizonte era de um campo fértil
para o desenvolvimento da música independente. Muitos
artistas aceitaram entrar para o Fora do Eixo local e, segundo a
produtora do BH Indie Music, com poucos meses de criação, o
coletivo FdE de BH conseguiu ter acesso ao incentivo financeiro
municipal de 200 mil reais. Este valor seria, até então, algo
inesperado tendo em vista que nenhum grupo ou produtor
alternativo de festivais da região tinha conseguido tal incentivo,

197
sendo o máximo arrecadado no valor de 20 mil a 40 mil reais
(DOSSIÊ FDE, 2012).

O incentivo dado ao coletivo FDE local não requeria esforço


da captação. Era incentivo direto da prefeitura. O dinheiro
estava em conta corrente. Por um lado, quem produzia há
mais tempo, sabia que tinha coisa errada ali. As bandas
novas, que não sabiam de nada, acharam que seriam
contratadas e nunca se viu tanta banda roadie, produção
e vendedora na banquinha FDE como naquele ano
(DOSSIÊ FDE, 2012, não paginado).

Devido à sua postura de não entrar para a rede de


coletivos, Malu relata ter sofrido retaliações com o Fora do Eixo,
como, por exemplo, o agendamento dos festivais Fora do Eixo na
mesma data que o BH Indie Music. Ela afirma que o processo
chega a ser ainda mais cruel quando se trata do Fora do Eixo,
pois se tornaram um monopólio, à época, e exerceram no Brasil
várias políticas questionáveis (DOSSIÊ FDE, 2012).
Os depoimentos expostos nos apontam para umas das
premissas do neoliberalismo que é a competição. Segundo
Dardot e Laval (2016), que analisaram o comportamento e
movimentação do capitalismo e suas facetas que implicam o
modo de vida em sociedade, identificamos no relato de Malu, as
características postas pelo neoliberalismo. É possível, então,
perceber essa nova racionalidade, sendo composta de um
comportamento individual que orienta a massa. Esta
racionalidade política e social está ligada à globalização e à
financeirização do capitalismo, composta de quatro pontos que
caracterizam esta fase: o primeiro trata-se da relação de apoio
recíproco por meio das políticas neoliberais e as modificações do
capitalismo que se juntam para subsidiar condições “a grande
virada” 13. Sobre esse item a “grande virada”, os autores apontam
dois temas importantes, como a crise do capitalismo e a luta
ideológica, que são referidas como o segundo ponto estudado,
em que suas manifestações, principalmente sobre a aversão à
lógica do Estado de bem-estar. Não obstante, no terceiro ponto
em que podemos comparar ao relato acima citado com o

13 Ver livro Dardot e Laval (2016).

198
comportamento competitivo imposto sobre os sujeitos, tendo em
vista uma exacerbada valorização do capital. E, por fim, temos a
progressiva ampliação das formas de disciplinar o sujeito, seja
por via institucional codificada ou pelos governos para que se
tenha um só pensamento individual (DARDOT; LAVAL, 2016).
Com a concepção de que a competividade é uma das
características do neoliberalismo, retomamos ao ponto sobre a
desfiliação dos Festivais da ABRAFIN que teve repercussão, pois
enfatizou ainda mais quais foram às intencionalidades do Fora
do Eixo. Pretensões estas que não eram reveladas na aparência,
mas que foram percebidas pelos sujeitos que passaram pelo
circuito Fora do Eixo. Segundo o Blog Rock em Geral 14, treze
festivais 15 decidiram sair da Associação durante o IV Congresso
Fora do Eixo, em 2011. A notícia que o grupo se desfilaria da
ABRAFIN foi anunciada durante o evento por meio de um
documento assinado pelo “Grupo dos 13”.
As declarações foram sobre a falta de independência e
um sentimento de desconfiança com a associação. A polêmica
circulou em torno da ABRAFIN e o Fora do Eixo, pois a alegação
era de que, para os produtores independentes, a associação e a
rede de coletivos havia se tornado uma coisa só (BLOG ROCK
EM GERAL, 2011).
Ao fim do documento é declarada a desfiliação dos 13
festivais. Ainda sobre o Congresso Fora do Eixo, em 2011, outro
momento que teve repercussão foi a declaração de Pablo Capilé
durante uma transmissão do debate pelo PÓS-TV, em que cita
que o Estado de Pernambuco é a “personificação do rancor”, ao
referenciar à saída dos 13 festivais da ABRAFIN (RECIFE ROCK,
2011).

14ROCK EM GERAL, 2011.


15O Rock em Geral obteve com exclusividade e em primeira mão o documento
redigido e assinado pelos representantes dos 13 festivais: Goiânia Noise Festival,
Abril Pro Rock (Recife), Casarão (Porto Velho), Psycho Carnival (Curitiba),
DemoSul (Londrina), 53 HC (Belo Horizonte), PMW (Palmas), RecBeat (Recife),
Mada (Natal), El Mapa de Todos (Brasília), Campeonato Mineiro de Surf (Belo
Horizonte), Gig Rock (Porto Alegre) e Tendencies Rock (Palmas). O Mada já havia
deixado a entidade desde agosto, mas só agora oficializou a saída (ROCK EM
GERAL, 2011).

199
Outro comportamento que apresentou repercussão não
tanto quanto amistosa, foi outra declaração que o Pablo Capilé
fez durante um programa de rádio que, em ocasião, ele cita o
músico Flávio Augusto Câmara, mais conhecido como China.
Em entrevista pela Rádio “Queijo Elétrico”, que foi
compartilhada pelo perfil no youtube “Foraforo Auditoria já”,
Capilé comenta sobre o músico em relação a postura do Estado
de Pernambuco, como já citamos acima (FORAFORO
AUDITORIA JÁ, 2013, não paginado).
O músico China em resposta a esse pronunciamento do
coordenador do Fora do Eixo, aponta elementos que são
contrários à declaração exposta acima e rebate ao deixar claro
que a proposta que o Fora do Eixo apresenta como inovadora, já
é algo que é realizado a mais de vinte anos pelos músicos
independentes de Pernambuco (FORAFORO AUDITORIA JÁ,
2013). Também ressalta sobre a rede desqualificar o trabalho
dos artistas independentes, e ainda comenta um episódio que
ocorreu com ele, em que foi abordado por integrantes da rede
FdE e acusado de ter chamado a rede de corrupta (FORAFORO
AUDITORIA JÁ, 2013). Nesta ocasião ele explicou que não disse
a palavra corrupto. E na sequência dessa experiência vivida pelo
artista pernambucano, ele relata que fez algumas perguntas que
sempre o intrigaram, pois nunca teve respostas (FORAFORO
AUDITORIA JÁ, 2013).

Eu perguntei pros caras: Da onde vem a grana das casas


Fora do Eixo? É seu pai, sua mãe, é o governo, é uma
herança da sua vó, são as bandas, qual é a boa? Os caras
responderam. “Você tem que entender a ideologia”. Porra,
“mermão”, sou músico [...]. Eu vivo disso. Eu tenho dois
filhos pra criar. Eu não posso entrar numa onda de eu vou
tocar de graça por amor a causa. Claro que tem alguma
causa. Eu toco de graça em várias coisas. Pablo está
viajando falando essas coisas de que eu não ponho
cinquenta pessoas. Ontem em Brasília, tinha pelo menos
umas três mil pessoas. Hoje lá no negócio tinha menos
gente, mas foi lindo. Eu prefiro trinta a quarenta pessoas
ligadas no meu som, do que mil pessoas tomando só latão.
Eu faço críticas porque é o seguinte, é dinheiro público,
cara, e eu sou contribuinte, se eu não fosse músico era o
meu dinheiro que estava entrando naquela porra ali de

200
qualquer forma. Então, pra onde vai essa grana? Por que
essa planilha não é aberta? [...] A única pergunta que eu
faço ao senhor Pablo Capilé, caso ele volte aqui: [...] Se o
governo mudar, com fica o Fora do Eixo? E a segunda
pergunta é: Da onde vem o dinheiro da casa Fora do Eixo?
Porque até agora eu não sei (FORAFORO AUDITORIA JÁ,
2013, não paginado, grifos nossos).

Esses questionamentos foram recorrentes sobre a rede


de coletivos Fora do Eixo, pois, por mais que tenham sido
expostas algumas planilhas 16, ou divulgado os relatórios sobre
os editais que o circuito pleiteou, restam ainda muitas dúvidas
por estes documentos serem incompletos, o que dificulta a
compreensão. Porém, com a declaração do músico China, nota-
se a necessidade que um artista possui que é comum a qualquer
ser social: garantir a subsistência e a reprodução da vida por
meio do trabalho. Nesse sentido, percebe-se que não houve a
preocupação da rede de coletivo sobre como o sujeito irá ter uma
estabilidade financeira para sobreviver, e isto se assemelha com
a lógica de precarização do trabalho vigente no sistema
capitalista.
Após a virada dos anos 1990, a ascensão do neolibera-
lismo junto às transformações que ultrapassaram o campo do
trabalho se estrutura com a concepção de que a subjetividade é
o novo centro em questão. O que ratifica o relato acima e que
aqui cabe a avaliação desse sujeito neoliberal que é conduzido a
formação de trabalho composta por um modelo de homem
“hipermoderno, impreciso, flexível, precário, fluido, sem
gravidade” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 321).
Trata-se, então, de uma nova modelagem que considera
que o sujeito deve se adaptar e suportar essas condições que são
impostas, além de ser responsabilizado pelo sucesso ou o
fracasso de sua vida. Esse estímulo se fortalece no discurso que
mira a produção do “sujeito empreendedor” e promove uma
“reação em cadeia” deste novo modo de viver. Sendo que essa
concepção somente contribui para o reforço da competição e da
padronização das condições precárias de trabalho, sendo cada
vez mais duras e punitivas (DARDOT; LAVAL, 2016).

16 As planilhas podem ser encontradas no site do Fora do Eixo.

201
Após entendermos esse processo da saída dos festivais
da ABRAFIN, retomamos a declaração da Malu, que destaca o
diálogo com os trabalhadores do Fora do Eixo, sobre o BH Indie
Music não ter participado do circuito. Ela menciona, portanto,
que os integrantes do Fora do Eixo alegaram da seguinte forma
as retaliações ocorridas: “Obedecemos a uma regra maior das
diretrizes do FdE, não é nada pessoal” (DOSSIÊ FDE, 2012, não
paginado). Portanto, destacamos que o discurso dos integrantes
e participantes diretos do FdE, sobre seguirem as suas
diretrizes, se trata, na verdade, das diretrizes da economia
solidária. Com esse relato, aqui cabe os seguintes
questionamentos: Qual seria esse propósito maior, tendo em
vista que essa abundância que o Fora do Eixo tanto declara não
chega a outros trabalhadores envolvidos?
Sobre a capacitação de patrocínios, Malu também
declara que sem o patrocínio não tem como pagar os cachês.
Mas ao mesmo tempo, quem consegue patrocinadores não paga
as bandas e também não querem bandas independentes sem
público, como é o caso do Fora do Eixo. Mesmo sabendo que o
artista independente sem a possibilidade de realizar shows, não
forma seu público (DOSSIÊ FDE, 2012). É interessante perceber
que os relatos se encaixam com a mesma contextualização,
sendo Malu de Belo Horizonte e China de Olinda em
Pernambuco. E as críticas às Leis de Incentivo à Cultura
permanecem as mesmas sobre a questão da distribuição dos
editais dentre os recursos financeiros concedidos a rede de
coletivos.
A proposta do Fora do Eixo não consegue superar o
capitalismo e ainda contribui para uma transferência de valor
das pequenas empresas para as grandes empresas. O processo
ocorre com a venda de seus produtos com os preços inferiores
ao do mercado. Sendo assim, no caso do Fora do Eixo, o que é
barateado em si é o trabalho de toda a equipe que coloca em
movimento a produção de cultura proposta por eles.
Para a Malu, idealizadora do BH Indie Music, o Fora do
Eixo se configura como nocivo ao novo mercado de música
independente. Segundo ela, após as experiências não tão bem
sucedidas em Belo Horizonte, o Fora do Eixo retoma à capital
São Paulo, e volta ao eixo dentro da lógica do capital. Estabelece-

202
se com o que é mais oportuno para a sua sobrevivência a partir
da ideologia que precariza o trabalho de músicos e outras
profissões como designer, jornalistas, produtores, etc.
Outra questão sobre o oportunismo do Fora do Eixo está
relacionada aos relatos que diz respeito ao circuito se apropriar
de mobilizações organizadas por movimentos sociais que
possuem uma finalidade de luta contra todos os cortes de
direitos sociais. Esse depoimento foi publicado na página do
Blog “Dossiê do Fora do Eixo” que apresenta como ocorreu esse
processo chamado de “sequestro do #12M” 17.
Na ocasião, em 2012, o Fora do Eixo criou um evento com
o nome de “#12Mais” patrocinado pela Petrobrás. A
“mobilização” foi divulgada por um evento criado no Facebook,
não pela rede de coletivos, mas sim, por um perfil pessoal 18 de
um integrante do FdE, nomeado de “#12MaisLapa #12M Rio de
Janeiro”.
Portanto, com essas declarações podemos perceber que
a rede de coletivos Fora do Eixo apresentou uma proposta que
não era tão inovadora, no que diz respeito à produção cultural
artística no país, como os artistas independentes relatam acima.
Além disso, o uso do discurso acompanhado a um modelo
“alternativo” de trabalho, não passa do campo abstrato e a
concretização desse projeto apresenta algumas problemáticas
que impactam a vida dos trabalhadores. No que tange a
produção realizada pelo coletivo, identificamos também um
modelo que está alicerçado ao capitalismo que é o just-in-time.
Com o corte de gastos dentro da lógica deste modelo de
produção, os festivais e todo o material produzido apresenta
uma produção por demanda.

17 “Mais de 40 países farão do dia 12 ao dia 15 de maio um protesto internacional


denominado “Ocupa, Acampa – 12M#15M”. Sintonizados com o espírito de
indignação e transformação social, grupos, redes, movimentos sociais e ativistas
estão organizando através das redes sociais e de assembleias diversas atividades
culturais conectadas com as manifestações internacionais, mas pautadas em
temas nacionais” (NETO, 2012).
18 DEZAN, 2012.

203
Conclusão

A relação de trabalho da rede de coletivos pode ser


verificada dentro da lógica do capital destrutivo e contribui para
a queda de empregos regularizados com a garantia de direitos
trabalhistas. O discurso da rede Fora do Eixo, que está pautado
pelos princípios da economia solidária, se configura muito
propício diante da lógica do capitalismo. Identificamos que essa
dinâmica de produção da rede se alinha com as premissas do
modelo just-in-time, ou seja, produzem de acordo com a
demanda. Também observamos que a manutenção da mão de
obra contribuiu para mascarar a essência do processo de
trabalho, o que implica o rebaixamento das formas de
pagamento pela força de trabalho dos integrantes ou dos artistas
que passavam pelo circuito. A moeda alternativa utilizada não
supre a subsistência, pois não era aceita em todos os
estabelecimentos comerciais havendo um valor incomensurável
das perdas e ganhos.
Com o discurso da economia solidária, a rede de coletivos
motivou a solidariedade, no entanto, findamos com base na
pesquisa teórica e empírica, que este discurso apresenta um
caráter ideológico. Ratificamos que o fetichismo está posto na
relação de trabalho e que é reforçado para os integrantes da rede
de coletivos com o conceito de que eles estavam construindo
para “algo maior para o futuro da cultura no país”.
O neoliberalismo oferece muitas condições para que as
propostas como a economia solidária se instale com sutileza,
com o intuito de promover uma solução concreta para o
desemprego. No entanto, a dificuldade para perceber a essência
de propostas como a da rede de coletivos Fora do Eixo, perpassa
o imaginário de que todos que participam contribuem para a
construção de um futuro melhor para a produção cultural
brasileira. No entanto, não houve uma concretização da
emancipação humana bem como também não podemos verificar
a superação do sistema vigente por meio desse projeto
apresentado como inovador para a produção cultural.
Portanto, com base no levantamento de dados e dos
relatos de experiências dos profissionais ligados à área da
cultura, por meio de sites e redes sociais, identificamos que as

204
declarações sobre a rede são muito parecidas. Notamos ainda
que nas declarações havia um anseio em relatar a essência das
relações de trabalho, pois esses sujeitos se sentiram
prejudicados de alguma forma por esta dinâmica. E isso vai de
encontro ao levantamento que demonstra documentalmente o
que as entrevistas e a análise teórica já apontavam: que a rede
de coletivos Fora do Eixo apresenta apenas no discurso a
utilização da economia solidária e que, na realidade, sua prática
não se confere para além do capitalismo como proposta
alternativa.
Por fim, conferimos que a rede de coletivos Fora do Eixo
está pautada na economia solidária apenas no discurso e não
como relações concretas. E, com base nos dados levantados,
compreendemos que a economia solidária enquanto projeto
social, que teve um crescimento exponencial, na década de
1990, no Brasil, trata-se de um mecanismo de gerenciamento da
população que se encontra enquanto exército industrial de
reserva. Neste sentido, a leitura realizada pelos teóricos
defensores da economia solidária se configura como uma análise
fetichizada ao sistema capitalista. Além disso, rompe com as
possibilidades de unificação da classe trabalhadora, com o perfil
de um sujeito individualizado e, de tal modo, se faz obscurecer
os caminhos para uma possível transformação social.

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208
El estado nación y la contradicción
capital-trabajo en Argentina: sobre las
funciones de legitimación y acumulación
de los programas sociales de empleo
argentinos (2002-2011)
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Florencia Inés Pretto 1

No caben dudas acerca del carácter estructural del


desempleo en el sistema capitalista imperante. El desempleo,
con sus respectivos alcances y características de acuerdo a las
determinaciones generales y concretas de cada Nación,
constituye un fenómeno constante en el proceso de acumulación
del capital; y por lo tanto, una de las principales razones de ser
de los Estados capitalistas 2. Negarlo implicaría ni más ni menos
que soslayar una problemática que ha aquejado históricamente
a la clase trabajadora y que nosotros, como investigadores en
Ciencias Humanas, tenemos el compromiso y desafío de
abordar.
En la actualidad, el desempleo se encuentra en un
proceso de aumento progresivo, y ello tiene que ver con las
respuestas que, desde finales del siglo pasado, el modo de
acumulación capitalista ha dado a su crisis estructural de los
años 60/70 (CARCANHOLO, 2017). En términos generales, tales
respuestas consistieron en procesos de reestructuración
productiva (que implicaron tiempos menores de rotación del
capital), de expansión de los mercados por medio de la apertura
comercial, de reformas en la legislación laboral, entre otras

1 Licenciada en Ciencia Política por la Universidad Nacional del Litoral (UNL-


Argentina), y Magíster en Política Social por la Universidade Federal do Espíritu
Santo (UFES- Brasil).
2 Utilizamos la categoría Estado nacional dado que nos encontramos en un nivel

de análisis abstracto. Por el contrario, al analizar la política argentina-


principalmente sus dimensiones económica y social- haremos uso de la categoría
gobierno.

209
medidas implementadas en lo concreto por los diversos
gobiernos capitalistas y que tuvieron como eje vector la
flexibilización dentro del proceso de acumulación. Además del
aumento del desempleo, otra tendencia en el capitalismo
contemporáneo es la de dar continuidad al histórico proceso de
precarización laboral 3, ahora bajo nuevas determinaciones.
En el caso particular de Argentina, la operacionalización
de aquellos mecanismos de flexibilización por parte del capital
alcanzó su máximo vigor durante los años 90, bajo la hegemonía
de la ideología y programa neoliberal de los gobiernos de turno.
Al igual que en el resto de los países de América Latina, en dicho
período los gobiernos neoliberales argentinos implementaron las
medidas establecidas en el Consenso de Washington (CW)
dirigidas a reducir las funciones económicas del Estado, así
como también su privatización y descentralización. Estas
recetas provenientes del Fondo Monetario Internacional (FMI),
se expresaron en fuertes reformas de carácter monetario,
económico, previsional y laboral; e instauraron, en términos
generales, procesos de apertura económica y revaluación de la
moneda (Plan Convertibilidad) 4, de descentralización de
servicios sociales, de privatización de la administración y
empresas públicas (Reforma del Estado n. 23.696 y de la
Administración Pública), y de flexibilización laboral (Nueva Ley
de Empleo n. 24.013).
Bajo estas nuevas dinámicas del capital, la crisis
alcanzada años posteriores en Argentina (2001- 2002) no tuvo
precedentes. En el año 2002, un 23% de la población se
encontraba desocupada, mientras que la tasa de pobreza

3 En la presente investigación entendemos a la precarización como una condición


innata del trabajo capitalista que ha adquirido diversas expresiones a lo largo de
la historia del proceso de acumulación del capital. En otras palabras, la
precariedad es histórica, por lo que en el capitalismo contemporáneo nos
encontramos ante una reconfiguración de las diversas dimensiones que la
componen.
4 La apreciación cambiaria constituyó un elemento clave de la política económica

argentina de los años 90 y del posterior estallido de la crisis a comienzos de siglo.


La misma fue instituida en el año 1991 por medio de la Ley de Convertibilidad
del Austral- Nº 23.928-, y permitió al capital reducir el ingreso de los
trabajadores, concebido por el neoliberalismo como costo laboral, sin por ello
afectar el necesario proceso de reproducción de la fuerza de trabajo.

210
alcanzó 49% y la de indigencia un 17, 8% 5. La respuesta
gubernamental inmediata al estallido de la crisis fue la represión
de la protesta social y la posterior declaración de estado de sitio;
seguida por la renuncia del por entonces Presidente de la Nación
y la declaración de Estados nacionales de Emergencia
Ocupacional (Decreto n. 165/02), Alimentaria (Decreto n.
108/02), Pública y de Reforma del Régimen Cambiario (Ley n.
25. 561), entre otros 6.
En materia de empleo, como medida anti cíclica y bajo el
título de disposición transitoria, el Ministerio de Trabajo, Empleo
y Seguridad Social (MTEySS) creó el programa de empleo Jefes
y Jefas de Hogar Desocupados (PJJHD- Decreto n. 565/02),
dirigido a brindar ayuda económica a padres y madres
desempleados/as, y el programa de Recuperación Productiva
(REPRO, Res. n. 481/02), destinado a empresas declaradas en
crisis.
Estas medidas forman parte del conjunto de programas
sociales de empleo que tanto los gobiernos de Argentina como
los del resto de América Latina vienen implementando desde las
últimas décadas del siglo pasado, como estrategias para
remediar y transitar los momentos críticos del capital
(GABRINETTI, 2014). Aunque presentados como transitorios,
tales programas de empleo, con objetivos y alcance similares,
constituyen una constante del accionar de los gobiernos
capitalistas de turno (GABRINETTI, 2014) vigente al día de la
fecha 7.

5 En aquel entonces, Argentina lideraba el índice de Desocupación Abierta en


América Latina y el Caribe, seguida por Colombia con 16,8%, Panamá y Uruguay
con 16,5%, Venezuela con 15,7% y 12% Brasil (OIT, 2003). Asimismo, en el año
2002, un 38% de la población argentina trabajaba de manera informal (OIT,
2003).
6 La crisis argentina de comienzos del siglo XXI se expresó en términos

económicos, políticos y sociales. El desencadenante de las fuertes protestas que


tuvieron lugar en el mes de diciembre del 2001 por parte de la clase trabajadora,
fue la sanción de una disposición gubernamental que restringía a los ciudadanos
la extracción de dinero en efectivo de los bancos. El gobierno respondió a las
protestas con un fuerte operativo de represión, que provocó 39 muertes, entre
ellos menores de edad. Asimismo, en los últimos días del año 2001 y los primeros
de 2002 se sucedieron 5 presidentes, se anunció el cese del pago de la deuda
(default), se devaluó la moneda nacional y abandonó la convertibilidad.
7 Sólo por mencionar algunos ejemplos, en abril del 2016 el ex presidente de

211
Dicha continuidad en el tiempo de programas de empleo
presentados como esporádicos, invita a reflexionar acerca de la
relación histórica en el capitalismo entre sus crisis, desempleo
estructural y el accionar de los gobiernos en sus distintos
niveles. En base a ello, en el presente capítulo se pretende
problematizar, en términos críticos, históricos y concretos,
respecto al papel de los programas de empleo argentinos en el
funcionamiento y perpetuación del sistema capitalista de clases.
Si bien las crisis del capital y el anuncio de tales
programas constituyen una constante en el sistema y gobiernos
capitalistas desde finales del siglo pasado, nuestro análisis se
limita al período concreto de la acumulación del capital en
Argentina correspondiente a los años 2001-2011, dado que en
el mismo tuvo lugar la crisis socioeconómica y política de mayor
alcance del país y su tratamiento por parte de los gobiernos 8.
Dadas tales características, consideramos que el análisis de los
programas allí creados, así como también, de las determina-
ciones generales y específicas de los mismos, podrían constituir
un aporte importante a los estudios críticos del capital,
específicamente, de la política social de los Estados capita-
listas 9.
Los programas analizados en el presente trabajo son los
considerados como emblemáticos del período estudiado, ello en
función de su aparición tanto en los discursos y publicaciones

Argentina, Mauricio Macri, anunció la creación del programa Empleo Joven, así
como también, la actualización de los programas Seguro de Desempleo y REPRO
(TORRES CABREROS, 2016). Por su parte, el actual presidente Alberto
Fernández anunció a principios de su mandato (enero 2020) la creación del
programa Hacer Trabajo, dirigido a "brindar apoyo, orientación y medios para
desarrollar emprendimientos y acompañar a los emprendedores en todo lo que
necesitan para ser sus propios jefes y llevar adelante sus negocios" (s/d, 2020).
En ambos casos, como veremos a lo largo del presente artículo, las prestaciones
y beneficiarios de los programas anunciados coinciden con las de los programas
de empleo preexistentes.
8 Dicho período de análisis también contempla la crisis internacional del año

2007 y su repercusión en el territorio argentino.


9 Se pretende superar los estudios descriptivos de la política social limitados a

reconocer los logros inmediatos de esta última (principalmente en la calidad de


vida del conjunto y/o parte de la clase trabajadora). Entendemos que los
estudios acríticos terminan naturalizando la existencia de estos programas y por
lo tanto, naturalizando también la explotación, desigualdades, opresiones y
demás fenómenos estructurales del capitalismo.

212
oficiales de gobierno, en donde se anuncia su creación y/o rinde
cuentas de la evolución y resultados alcanzados por parte de los
mismos, como en los estudios académicos consultados y que
constituyen los antecedentes de la presente investigación
(PRETTO, 2018). Se utiliza, como herramienta de recolección y
análisis de datos, el método documental basado en el análisis de
normativa – entendida esta última como el conjunto de normas
que regulan una cierta materia o actividad- correspondiente al
período 2002-2011, referida a la creación, reglamentación,
implementación y contextualización de los programas sociales
de empleo. Como técnica de análisis de los datos obtenidos
durante el análisis de los programas, utilizamos la estrategia de
Análisis de Contenido, específicamente, la Técnica de Análisis
del Discurso (BARDIN, 2006).
A continuación, se realiza una breve reflexión, desde un
nivel abstracto de análisis, acerca del papel de los Estados
nacionales en el proceso de acumulación del capital: ¿de qué
manera los mismos participan de las relaciones sociales de
producción? ¿Su accionar se reduce a los momentos de crisis
del capital? Seguidamente, se sintetizan las principales
características de la legislación laboral argentina a partir de los
años 2000, es decir, se identifican las determinaciones
específicas de las decisiones gubernamentales de creación de los
programas de empleo aquí analizados para, finalmente, describir
y problematizar sobre los mismos. Por último, se comparten
algunas reflexiones finales en torno a las funciones de
acumulación y de legitimación de los programas.

La participación de los Estados nacionales en las relaciones


sociales de producción: sobre sus funciones de
acumulación y legitimación

La participación constante de los Estados nacionales en


las relaciones sociales de producción, devela la relación orgánica
existente entre éstos y el capital (MATHIAS; SALAMA, 1983). En
otras palabras, los Estados nacionales son componentes y se

213
deducen del capital 10. Su participación constante en el
desenvolvimiento de las fuerzas productivas se expresa por
medio de sus históricas funciones de acumulación y de
legitimación (MATHIAS; SALAMA, 1983; SALAMA, 1980), las
cuales son redefinidas a lo largo del tiempo por las
determinaciones generales y específicas del proceso histórico de
acumulación en cada territorio 11.
En lo que refiere a la función de acumulación, la misma
se dirige a regenerar el capital y se manifiesta, en términos
generales, en tres acciones estatales (MATHIAS; SALAMA, 1983).
Por un lado, los Estados capitalistas intervienen en los procesos
de acumulación por medio de su actuación en las leyes
capitalistas de tendencia a la nivelación y a la caída de las tasas
de ganancia. En el primer caso, el Estado interviene para
establecer jerarquías entre las tasas niveladas de ganancia, dado
que es justamente la diferencia entre las mismas y la tendencia
del capital a su acumulación, lo que “motoriza” el proceso de
acumulación. En otras palabras, al alterar la nivelación de las
tasas de ganancia, “El Estado favorece la emergencia de mejores
condiciones para la reproducción de ese capital” (MATHIAS;
SALAMA, 1983, p. 50, traducción propia). Esta acción estatal es
constante y realizada de manera “suave”, buscando influenciar
el curso natural de la acumulación.

10 En tal sentido, refutamos los estudios que, de manera explícita o no,


circunscriben la participación estatal a instancias coyunturales de exacerbación
de las contradicciones del capital, expresadas en forma de crisis, y que, por lo
tanto, conciben a los Estados como meros “gendarmes” garantes del desarrollo
de las fuerzas productivas que intervienen en dicho proceso únicamente en casos
excepcionales donde las reglas de intercambio aparentemente igualitarias se
encuentran violentadas. Como bien indican Mathias e Salama (1983), lo que
hacen estos análisis es fetichizar las relaciones sociales de producción.
11 Estas funciones de acumulación y legitimación se encuentran presentes,

aunque en ocasiones con intensidad diversa, en toda política de Estado. En tal


sentido, la dicotomía aquí establecida entre acumulación y legitimación, así
como también, entre política económica y política social, entre abstracto y
concreto, etc., se debe meramente a decisiones metodológicas que pretenden un
análisis más preciso del funcionamiento de los Estados capitalistas. En relación
a esto último, entendemos que el uso de tales pares categoriales contribuye al
entendimiento de los Estados capitalistas como abstracción teórica y como
proceso histórico.

214
En el caso de la intervención del Estado en la ley de
tendencia a la caída de la tasa de ganancia, Mathias e Salama
(1983) sostienen que la misma no es constante sino que tiene
lugar en los momentos de crisis del capital, por lo que requiere
de una participación estatal abrupta y precisa, que permita
modificar las condiciones de explotación de la clase operaria.
Como fue destacado anteriormente, la restauración necesaria de
las condiciones de valorización y dominación, generalmente se
traduce en crecimiento del desempleo, reducción salarial,
imposición de nuevas formas de producción, entre otras
medidas.
En este sentido, las crisis en el capitalismo representan,
en términos generales, el agotamiento de las fuerzas que
contrarían la caída tendencial de la tasa de ganancia (SALAMA,
1980). Este agotamiento tiene que ver en parte con la
incapacidad del capital para aumentar de manera suficiente la
tasa de explotación, es decir, de renovar las técnicas de
producción en base a la dominación de los trabajadores. Es por
tal motivo que las crisis revelan la necesidad de modificar las
condiciones de dominación de la clase operaria.
Sin embargo, el carácter regular y necesario de las crisis
no necesariamente indica que las mismas sean mecánicas y
previsibles. Por el contrario, “su manifestación coyuntural es
determinada por especificidades y particularidades de los
momentos sociales e históricos concretos” (CARCANHOLO,
2017, p. 19), a la vez que las mismas pueden presentarse en
períodos económicos de crecimiento pero con una tasa menor de
la que regía en el período anterior. En contraposición a lo
anteriormente expuesto, la ideología y programa neoliberal,
sostienen que las crisis son producidas por factores externos al
proceso de acumulación (NAKATANI; HERRERA, 2011).
Por su parte, además de regenerar el capital, los Estados
también buscan reproducir la fuerza de trabajo, lo que Mathias
e Salama (1983) denominan “función de legitimación”. En la
actualidad, existen diversas teorías que problematizan sobre la
reproducción de la fuerza de trabajo en el capitalismo. En
términos generales, todas ellas coinciden en dos puntos:
conciben dicha reproducción como un conjunto de procesos
destinados a garantir a las/os trabajadores/as y sus respectivas

215
familias, medios de subsistencia que den continuidad a su
trabajo; y señalan la funcionalidad de la misma al capital. De
esta manera, reproducir la fuerza de trabajo implica mantener
en funcionamiento la fuerza de trabajo empleada y a emplear
por el capital, por medio de la satisfacción de las necesidades
básicas de los trabajadores y sus familias (futuros trabajadores),
como ser, el consumo de alimentos, vestimenta, vivienda y
salud, entre otras (MARX, 2013).
De acuerdo a esto último, el histórico papel del mercado
y las familias en la reproducción de la fuerza de trabajo, se
complementó progresivamente con el de los Estados-Nación. En
la actualidad, la labor de estos últimos consiste, en términos
generales, en gestionar políticas salariales y de contratos
laborales, por un lado, y de políticas de salud, educación,
asistencia, etc., por el otro.

¿Qué característica adquirió politica laboral argentina en


los años 2000? Sobre el marco de actuación de los
programas sociales de empleo en el sglo XXI

En lo que refiere a la política laboral argentina a partir de


los años 2000, la misma no se tradujo en una superación del
padrón de flexibilización laboral implementado, entre otras
medidas, por la Nueva Ley de Empleo (NLE n. 24.013) 12 en los
años 90. En este sentido, más allá de las innumerables
disposiciones gubernamentales que buscaron remediar los dejos
de la crisis del capital y por lo tanto, favorecer a la clase
trabajadora, en el período en cuestión continuaron en vigencia
regulaciones estatales, principalmente referidas a la jornada

12 Una de las principales medidas establecidas por la NLE, fue la implantación


de mecanismos de valorización del capital bajo la forma de contratos flexibles,
como ser, los contratos de tiempo determinado- CTD-, de movilidad de la fuerza
de trabajo entre distintas áreas empresariales, de reducción de las cargas
patronales de hasta un 50%, de “formación” y de “práctica laboral” para jóvenes,
también exentos de cargas patronales, entre otros. Asimismo, la NLE promovió
la descentralización y subcontratación de los convenios colectivos de trabajo, así
como la flexibilización de la distribución del tiempo de trabajo, los períodos de
prueba de empleo de hasta seis meses de duración sin derecho a indemnización,
regímenes de pre- aviso, etc.

216
laboral y contratación de la fuerza de trabajo, que viabilizan su
explotación.
Constituyen ejemplo de ello normativas que posibilitan la
implementación del “turno americano” (entre otras modalidades
de flexibilización horaria), la fragmentación de vacaciones y
aguinaldo, los períodos de prueba, de flexibilización de los
salarios y formas contractuales (como ser las pasantías, los
contratos de tiempo determinado, etc.), entre otras
(MARTICORENA, 2015a). Asimismo, y en directa relación con lo
anterior, en dicho período se exacerbó la implementación, tanto
en el ámbito privado como público, de los mecanismos de
tercerización, especialización productiva y cooperativismo
(BASUALDO, 2016).
Respecto a los avances alcanzados por la política
laboral 13, en lo que refiere específicamente a la política salarial,
la misma presentó fuertes mejoras a partir de la regulación del
Salario Mínimo, Vital y Móvil (SMVyM), la incorporación al
salario básico de vales alimentarios (Ley n. 26.341/07) y de
sumas fijas no remunerativas otorgadas previamente bajo forma
de transferencias directas de renta (Decreto n. 392/03), el
aumento mínimo no imponible del impuesto a las ganancias,
aumento de las Asignaciones Familiares, entre otras medidas
(MARTICORENA, 2015a).
Estos “nuevos” salarios, junto a otras medidas como ser
el otorgamiento de créditos a la clase trabajadora empleada y
desempleada (éstos a tasas muy bajas de interés), permitieron
una progresiva valorización del capital, dado que aumentaron el
consumo de la fuerza de trabajo de manera suficiente para
solventar la demanda sobrante y expandir, de esta manera, el
mercado interno argentino (SEIFFER, 2016). Asimismo, dicho
aumento del gasto social tuvo lugar en un período de expansión
económica posibilitada, principalmente, por la elevación del
precio de los commodities, con la soja y cereales como productos
líderes, y de las retenciones a las exportaciones. Estos ingresos
elevados permitieron al gobierno argentino dar cierto oxígeno a
la producción industrial que históricamente se mostró en fuerte
dependencia de las divisas del campo 14, a la vez que actuaron

13 Para mayor información al respecto, consultar PRETTO, 2018.


14 El sector industrial también se vio favorecido por la baja de salarios provocada

217
como garantía para las negociaciones de la deuda externa con el
sistema financiero que tuvieron lugar en el año 2005 (GIGLIANI,
2015).
En relación a los avances presentados por la política de
contratación de la fuerza de trabajo, los mismos se expresaron,
en un primer momento, a través de la Ley de Ordenamiento
Laboral n. 25. 877 sancionada en el año 2004. Entre otras
disposiciones, por medio de dicha Ley, el gobierno restituyó el
principio de ultractividad en la Ley de Contratos Colectivos de
Trabajo (14.250) y la primacía de las negociaciones colectivas de
ámbito mayor, esta última derogada por la Ley de Empleo
Estable n. 25.250. De esta manera, los convenios colectivos de
trabajo volvieron a regir sobre los realizados en instancias
inferiores, como ser, las de carácter empresarial.
Asimismo, por medio de esta Ley el gobierno creó un
Sistema Integral de Inspecciones del Trabajo y de la Seguridad
Social, que buscó “controlar y fiscalizar el cumplimiento de las
normas de trabajo y de la seguridad en todo el territorio nacional
y eliminar el trabajo no registrado” (OIT, 2014, p. 7). Dicho
Sistema fue creado junto a numerosas políticas de fiscalización
laboral, en el marco del Plan Nacional de Registro del Trabajo
(PNRT) sancionado en el año 2003.
En relación a esto último, las numerosas políticas de
fiscalización del trabajo no registrado que tuvieron lugar a lo
largo del siglo XXI, dan cuenta de la incapacidad de la política
micro y macro económica argentina de crear empleos genuinos
en el marco de un ciclo económico nacional e internacional
expansivo, por un lado, y del consecuente carácter paliativo de
la política de empleo nacional, por el otro (GIOSA ZUAZUA,
2006). De acuerdo a la OIT (2014), a finales del 2014 Argentina
presentaba un 6,9% de desempleo (lo que significó una
reducción a menos de la mitad de los valores que se alcanzó en
el 2003: más del 16%), y un 34,3% de empleo no registrado (en
comparación al 49% del año 2003). La relación presentada por
estos porcentajes a lo largo del período aquí problematizado, da
cuenta del carácter primariamente informal de los empleos
generados por entonces en el país.

por el proceso de devaluación del 2002-2003, que le permitió poner en


funcionamiento industrias que estaban quebradas (SEIFFER, 2016).

218
Entre otros avances presentados por la política de
contratación de la fuerza de trabajo, se destacan también: i) la
disminución de seis a tres meses sin posibilidad de prorrogación
(año 2004) para los casos de periodo de prueba, aunque
permitiendo aún que los empleadores extingan la relación
laboral sin causa y sin pago de indemnización; ii) la condición
de irrenunciabilidad a las condiciones pactados en los contratos
individuales de trabajo (Ley 26.574); iii) la incorporación de
regulaciones para el contrato de trabajo a tiempo parcial
(26.474), como ser la imposibilidad de exigir al trabajador la
realización de horas extras; iv) el establecimiento del “Régimen
de ordenamiento de la reparación de los daños derivados de los
accidentes laborales y enfermedades profesionales” (Ley 26.773).
Además, una vez recuperado el crecimiento económico luego de
la crisis del 2009, en el 2010 se sancionaron leyes como:

[…] la disposición sobre la gratuidad de las cuentas sueldo


(Ley 26.590), la compensación de desigualdades en el
marco de la prohibición de la discriminación de trabaja-
dores por motivo de sexo, raza, nacionalidad, religiosos,
políticos, gremiales o de edad (Ley 26.592), y disposiciones
sobre el plazo de pago de remuneraciones e indemnización
en caso de extinción del contrato de trabajo (Ley 26.593)
(MARTICORENA, 2015a, p. 4).

En resumen, se coincide con autores que señalan la


continuidad en el siglo XXI del padrón de flexibilización
instaurado décadas anteriores (MARTICORENA, 2005, 2015a,
2015b; LO VUOLO, 2010; KATZ; 2013; MORRESI, 2015;
VARELA, 2015; SEIFFER, 2016).
Más allá de los importantes e incuestionables avances
aquí colocados en materia de política laboral, el modo de acumu-
lación capitalista argentino continuó utilizando mecanismos de
precarización (tanto formales como informales) en las formas de
compra, venta y uso de la fuerza de trabajo, que históricamente
permitieron su reinvención, e inclusive, autoproclamación.
Conforme ello, la disminución de la tasa de desempleo en
la Argentina post crisis neoliberal, coexistió con un fuerte
proceso de distinción entre trabajadores registrados, destina-

219
tarios de los avances de la legislación laboral, y aquellos no
registrados y receptores de salarios bajos.

¿Qué empleo? ¿Para quiénes? Sobre las crisis del capital y


la creación de Programas sociales de empleo en Argentina.

Los programas sociales de empleo expresan unas de las


tantas formas de participación de los Estados en las relaciones
sociales de producción; específicamente, una de las formas en
que el capital y los Estados conciben y operan sobre la fuerza de
trabajo de la clase trabajadora.
En el territorio latinoamericano, estos programas se
originaron a finales del siglo XX, en el marco de la ejecución, por
parte de los diferentes gobiernos periféricos, del programa
neoliberal anteriormente mencionado, dirigido a contener y
amenizar los efectos de la crisis de la deuda de los años 80 en
América Latina 15, o en otras palabras, a adaptar las economías
periféricas a las nuevas demandas del capital internacional.
En líneas generales, desde sus orígenes a la actualidad,
con estos programas los gobiernos buscan capacitar a la clase
trabajadora desocupada en diversos oficios, mejorar su
escolaridad, promover “prácticas laborales” en el mercado
privado de trabajo, crear puestos de trabajo e impedir despidos
en empresas declaradas en crisis (en su mayoría PyMEs), en
estos dos últimos casos por medio de la creación de cooperativas
y/o del otorgamiento de incentivos fiscales, entre otras

15 La crisis de la deuda tuvo lugar a inicios de los años 80, cuando los países
periféricos de América Latina se mostraron incapaces de hacer frente a los
compromisos adquiridos de pago de los préstamos recibidos años anteriores.
Dicha crisis comenzó específicamente en México, cuando la declaración de
insolvencia por parte de dicho gobierno en 1982, hizo con que los bancos
comerciales revieran el otorgamiento de préstamos financieros a los países
latinoamericanos. Así, este período “se caracteriza por una sistemática escasez
de financiamiento externo para los países de la región" (GIACABONE; SOROKIN,
2005, p. 6). Los montos, en dólares corrientes, de la deuda externa bruta de los
principales países de América Latina (Brasil, México, Argentina, Colombia y
Venezuela), pasaron de “US$ 22,8 bilhões em 1970, para US$ 193,4 bilhões em
1980 e para US$ 338,0 bilhões em 1990 (WORLD BANK, 2017)” (NAKATANI, s/d,
p. 6).

220
iniciativas 16. En sus postulados, muchos de estos programas
colocan la necesidad de “promover los esfuerzos individuales y
colectivos”, el “trabajo decente” (este último directamente
vinculado al Programa de Trabajo Decente de la Organización
Internacional del Trabajo – OIT), “mejorar la empleabilidad de
los individuos”, “generar oportunidades de inclusión social”,
entre otras 17.
Asimismo, más allá de sus respectivas particularidades,
por medio de estos programas los gobiernos periféricos situaron
al trabajo como elemento central de integración y recono-
cimiento social de los individuos, en este caso, pobres y
desempleados que han quedado por fuera de los “efectos del
derrame” defendidos por la política económica neoliberal. En tal
sentido, además de estar desempleado, presentar bajos ingresos
y/o condiciones de vulnerabilidad, otros condicionantes
establecidos por los programas para su ejecución tienen que ver
con el nivel educativo de sus potenciales beneficiarios, la
cantidad de hijos, discapacidad, entre otras características que
terminan por exacerbar su carácter focal y que colocan como
primer resultado la estigmatización de sus beneficiarios: éstos
son los marginalizados del sistema cuyo “mérito” es el de haber
“fracasado” como ciudadanos que estudian y/o trabajan.
En Argentina, constituyen ejemplo de esto último los
requisitos de edad para el caso de los programas de empleo
nacionales Teletrabajo a partir de los 45 años. Un nuevo Desafío
(Res. 1003/09) y Jóvenes con Más y Mejor Trabajo (JMyMT-

16 Como veremos más adelante, estas características se corresponden en mayor


medida a los programas de empleo del siglo XXI, que ampliaron sus prestaciones
respecto a las de los programas vigentes en los años 90.
17 En términos generales, el contenido y forma de los programas sociales de

empleo argentinos son desde sus orígenes similares al resto de los creados en
América Latina, ello debido a que los objetivos, y en ocasiones, financiación y
auditoria de los mismo, son definidos, en términos generales y bajo forma de
recomendación, por organismos internacionales, como ser el FMI, Banco
Mundial (BM), Organización para la Cooperación y el Desarrollo Económicos
(OCDE), Organización Internacional del Trabajo (OIT), entre otros. Por lo tanto,
queda evidencia la contradicción presentada en el accionar de tales organismos:
las mismas entidades internacionales promotoras de programas dirigidos a
combatir el desempleo, son las que históricamente “aconsejan” implementar, a
cambio de ayudas monetarias, medidas de ajustes generadores de desempleo y
pobreza a corto y largo plazo.

221
Resoluciones n. 497/08 y 261/08), este último dirigido a
personas de entre 18 a 24 años, y los de género para el caso del
Plan Familias Incluidas (Decreto 1506/04) 18.
Al igual que los programas de empleo, a finales del siglo
pasado también cobraron relevancia los programas de
transferencia condicionada de ingresos (PTCI), dirigidos a
garantizar cierto mínimo de ingresos en los desocupados benefi-
ciarios a cambio de que estos últimos se ocupen de la salud y
educación de sus hijos 19. Desde los años 2000 y en el marco del
proceso de expansión económica arriba mencionado, tanto los
programas de empleo como los de TCI de América Latina se
propagaron. En el caso argentino en particular, y en lo que
respecta específicamente a los programas sociales de empleo,
además de aumentar en cantidad, estos programas presentaron
nuevas características en sus diseños y acciones propuestas, a
la vez que adquirieron un grado mayor de institucionalización.
En lo que refiere a las contraprestaciones solicitadas, en el
período post crisis 2001 los programas de empleo argentinos:

Establecieron mayores condiciones de contraprestación


por parte de los beneficiarios, ya sea mediante una
práctica laboral en empresas privadas o en organismos
públicos, o la asistencia a establecimientos escolares para
concluir estudios primarios o secundarios, a talleres y
cursos de capacitación (NEFFA, 2012, p. 37).

También a partir del 2000, debido a los avances


presentados en el proceso de descentralización de la política
social 20, en Argentina cobraron mayor protagonismo las

18 Si bien se trata de un programa de TCI y no de empleo, su mención resulta


pertinente dado su alcance territorial y perpetuación en el tiempo. Además, se
trata de un programa que selecciona a sus beneficiarios de acuerdo a un “criterio
de empleabilidad” (HOPP, 2009).
19 A partir de los años 2000 y en el marco de un proceso de “activación” de la

política social en América Latina (HOPP, 2009), algunos de estos programas


comenzaron a incorporar prestaciones referidas a capacitaciones en oficios,
promoción de actividades productivas y/o comunitarias, etc, (GABRINETTI,
2014); adquiriendo de esta manera rasgos similares a los programas sociales de
empleo.
20 Ver PRETTO, Florencia Inés. La descentralización de funciones sociales y la

redefinición de los Estados locales. Acerca de la implementación de políticas


sociales por parte del municipio santafesino. Los casos del programa nacional

222
administraciones nacionales descentralizadas en territorios
locales (MADOERY, 2011). En materia de empleo, se
consolidaron las ya existentes Delegaciones Territoriales
dependientes de la Secretaría de Trabajo (ST), las Gerencias de
Empleo y Capacitación Laboral (GECALes) pertenecientes a la
Secretaría de Empleo (SE), específicamente a la Dirección
Nacional de Servicio Federal de Empleo. Estas instituciones
estaban dirigidas a controlar el trabajo informal y mediar los
conflictos laborales para el caso de las primeras, y a garantizar
la ejecución articulada de políticas, planes y programas de
empleo, brindar capacitaciones y promover la empleabilidad de
los trabajadores en las respectivas jurisdicciones (Resolución n.
100/2012), en el caso de las segundas. Otra importante medida
dirigida a organizar la política de empleo fue la creación en el
2003 del Plan Integral para la Promoción del Empleo (Res. n.
256/03 del MTEySS) 21 cuya principal finalidad es la de nuclear
y coordinar el funcionamiento de las Oficinas de Empleo
Municipales.
Son varios los programas que en el período analizado
adquirieron importante alcance y duración en el tiempo. Entre
ellos, se encuentra el ya mencionado programa JJJHD,
anunciado en el año 2002 en el marco de las medidas anti
cíclicas impulsadas por el gobierno. Como en la mayoría de los
programas aquí estudiados, el límite temporal establecido en las
prestaciones del PJJHD (31 diciembre 2002) fue extendido. Aún
vigente en el año 2005, y en consonancia con el proceso de
“activación” de la política social, el gobierno realizó, bajo un
“criterio de empleabilidad” (HOPP, 2009) el traspaso de sus
beneficiarios a los programas Familias Incluidas del Ministerio
de Desarrollo Social (MDS) y de Seguro de Capacitación y
Empleo, del MTEySS (SCyE, Decreto 1506/02 y Res. 336/06).

Jóvenes con Más y Mejor Trabajo (JMyMT) y del programa local Los Solares (2008-
2013). In: Revista De Prácticas y Discursos, Chaco, v. 4, n. 5, jul/dic, 2015.
21 Los programas analizados se enmarcan en diversos Planes creados por los

Ministerios de DS y de TEySS, los cuales constituyen el armado institucional de la


política social argentina posterior a la crisis del 2001, a la vez que expresan un punto
de inflexión en los modos institucionales de operacionalizar esta última. Además de
dicho Plan de Empleo, los principales Planes creados durante el período estudiado
son el Plan de Desarrollo Local y Economía Social “Manos a la Obra” (Res. MDS
1375/04); Plan Familia para la Inclusión social (Decreto n. 1506/04) y el Plan de
Seguridad Alimentaria (el hambre más urgente) (Res. n. 2040/03), todos del MDS.

223
En el mismo año, el gobierno también creó el programa
REPRO anteriormente citado. Lejos de cumplir el límite de
duración (un año), el REPRO continuó en vigencia y fue
reutilizado (inclusive con mayor alcance e intensidad) en los
años 2008 y 2009, como medida anti cíclica para afrontar, esta
vez, los efectos de la crisis internacional. En tal período de post
crisis internacional, se creó también el Programa Ingreso Social
con Trabajo – Argentina Trabaja (PAT, Res. n. 3182/09 y Decreto
n. 1067/09) del MDS, dirigido a generar puestos “genuinos” de
trabajo por medio de la conformación de cooperativas diseñadas
para trabajar en comunidades necesitadas de obra pública y
servicios básicos.
Otro importante programa creado para paliar los efectos
de la crisis internacional, fue el ya mencionado y aún vigente
JMyMT del MTEySS. El mismo busca generar oportunidades de
trabajo en jóvenes de entre 18 y 24 años desocupados y sin
estudios secundarios completos, por medio de “acciones
integradas que les permitan identificar el perfil profesional en el
cual deseen desempeñarse, finalizar su escolaridad obligatoria,
realizar experiencias de formación y/o prácticas calificantes en
ambientes de trabajo, iniciar una actividad productiva de
manera independiente o insertarse en un empleo” (Res. n.
497/08).
A continuación, presentaremos una tabla con
información sistematizada sobre los objetivos, regulación, año
de creación, destinatarios y duración de los programas aquí
estudiados, seguida de algunos comentarios 22:

22Decidimos hacer a un lado el relevamiento de aquellos programas dirigidos

específicamente al sector agropecuario, y enfocarnos por lo tanto en los


implementados en el sector productivo y de servicios. Por otro lado, advertimos que la
información colocada en la presente tabla fue extraída de los documentos oficiales de
creación y reglamentación de los programas, por lo que la misma puede diferir con lo
sucedido luego en la práctica. Asimismo, las resoluciones que ratifican y/o aprueban
la implementación de tales programas muchas veces fueron sancionados años
después de su creación, demorando así su ejecución. Por último, destacamos que en
sus diseños muchos programas anuncian como beneficiarios a los trabajadores
desocupados, cuando en verdad, como veremos más adelante, se dirigen a subsidiar
salarios de empresas, por lo que son estas últimas las que directamente se benefician.
Los casos de los programas REPRO y algunas de las líneas del PIL son un claro
ejemplo de esto último.

224
225
226
227
228
229
230
En relación a la información presentada, resulta de
interés destacar que muchos de los programas analizados
terminaron por fusionarse entre sí durante su implementación,
y en ocasiones, bajo un nuevo nombre. Inclusive, en la mayoría
de los casos, sus prestaciones, generalmente a cargo de entes
locales, fueron y continúan siendo ejecutadas por las Oficinas
de Empleo Municipales, por lo que el nombre de los programas
deja de tener protagonismo y son los gobiernos locales quienes
se visibilizan como los prestadores de servicios de empleo,
independientemente de cada programa nacional en particular
(PRETTO, 2015).
En relación a esto último, además de su fusión bajo
nuevo título o no, otra modalidad presentada en la gestión de
estos programas refiere a la complementación ejercida entre sus
prestaciones. Por ejemplo, como se puede ver en la tabla, en la
Resolución de creación del PIL, se establece que podrán
participar del programa trabajadoras y trabajadores mayores de
18 años que estén incluidos en el PJMyMT, SCyE, de Trabajo
Autogestionado, entre otros (Resolución 45/06). Otro ejemplo
está dado por la línea de Autoempleo del PIL que coloca entre
sus destinatarios a los beneficiarios del programa de SCyE
(Resolución 45/06); y por el Programa Entrenamiento para el
Trabajo, que se dirige a los beneficiarios del SCyE y de
cualquiera de los programas a la fecha administrados por el
MTEySS.
En resumen, como puede observarse en la tabla, la
mayoría de los programas presentan como potenciales destina-
tarios a beneficiarios de otros programas en ejecución, a la vez
que sus prestaciones y nombres son parecidos entre sí. A su vez,
otra herramienta estatal utilizada para gestionar fuerza de
trabajo vía programas sociales de empleo, consiste en garantizar
la continuidad de la condición de beneficiario de sus
participantes una vez finalizadas las prestaciones del programa
en cuestión, por miedo de su incorporación en otro programa
vigente. Esto último se explica por los cortos períodos de las
prestaciones, que como se puede observar en la tabla, en la
mayoría de los casos no supera los 12 meses 1.

1 Generalmente, aunque no se encuentre especificado en sus respectivas

231
Para finalizar, en la tabla se observa un aumento en la
cantidad de programas durante los años 2006 y 2008-2009. En
relación a lo sucedido en el 2006, dicho aumento podría deberse
al hecho de tratarse de un año pre electoral para cargo
presidencial, y por lo tanto, que los gobiernos busquen a través
de los mismos mayor legitimación política. Por su parte, el
aumento durante el período 2008- 2009 formaría parte del
conjunto de medidas anti cíclicas implementadas por el gobierno
para contrarrestar los efectos de la crisis internacional del 2007
en el mercado de trabajo argentino. No ha sucedido lo mismo en
el periodo post crisis 2001, dado que por entonces cobraron
mayor protagonismo, como medida anti cíclica, los Planes y los
PTCI del MD. Asimismo, otro posible motivo del aumento de los
programas de empleo en el año 2009, tendría que ver con la
derrota electoral legislativa que en dicho período protagonizó el
gobierno oficial.
En su conjunto, las dinámicas aquí presentadas
evidencian cómo los programas de empleo se encuentran en
constante adaptación a las demandas y dinámicas presentadas
por el mercado de trabajo, por lo que constituyen una
importante herramienta de gestión de la fuerza de trabajo en sus
distintas formas y facetas.

Entonces, ¿de qué manera los programas regeneran el


capital y reproducen la fuerza de trabajo en Argentina?
Algunos comentarios sobre sus funciones de acumulación y
legitimación

Desde sus orígenes, los programas sociales de empleo


constituyen una de las tantas estrategias del capital para
valorizarse y transitar sus crisis. Las líneas de acción
promovidas por los programas aquí analizados intervienen, de

reglamentaciones, en la práctica la renovación de los programas es anual,


y se encuentra sujeta tanto al presupuesto gubernamental como a las
voluntades, recursos y características de los actores locales partícipes,
como ser ONGs, empresas, Municipios, etc.

232
manera directa o no, y bajo alcance e intensidad diversa, en las
leyes tendenciales de caída y de nivelación de las tasas de
ganancia, así como también, en las dinámicas de los sectores
productivos, en los procesos de reproducción de la fuerza de
trabajo, etc.
Por un lado, los programas posibilitan disminuir costos
de ciertos sectores de la producción (acumulación). Por ejemplo,
en el caso de los objetivos perseguidos por los programas REPRO
y PAT, tal disminución tiene lugar por medio del subsidio a
salarios, capacitaciones y realización de obra pública que no sólo
es utilizada por la clase trabajadora para su reproducción como
fuerza de trabajo, sino también por los propios capitalistas en
sus procesos de circulación y regeneración del valor, entre otras
estrategias.
Los programas también disminuyen los costos
productivos por medio de la implementación de diversos
mecanismos de flexibilización de los procesos de compra y venta
de la fuerza de trabajo. Constituye un gran ejemplo de esto
último el carácter temporal de los programas (en su mayoría no
superan los 10 meses de ejecución) expresado de diversas
formas: en cooperativas (PAT y programa de Promoción y
Asistencia del Trabajo Autogestionado y la Microempresa, para
el caso de cooperativas generadas por trabajadores de empresas
recientemente quebradas), en emprendimientos individuales y/o
grupales cuya continuidad no se encuentra garantizada por
parte del Estado (programas Promoción del Microcrédito para el
Desarrollo de la Economía Social "Padre Carlos Cajade", De
Herramienta por Trabajo, y De Empleo Independiente y
Entramados Productivos Locales, entre otros), así como
también, en empleos transitorios en el sector público y privado
(PIL en sus diversas líneas de acción, De Entrenamiento para el
Trabajo, SCyE, De Empleo Transitorio en Obra Pública con
Aporte de Materiales: Trabajadores Constructores, De Desarrollo
del Empleo Local, De Empleo Comunitario).
Por otro lado, los programas se dirigen a satisfacer – no
obstante de manera parcial dado el bajo nivel de las
transferencias monetarias – necesidades de la clase trabajadora
consideradas básicas por el capital (legitimación), es decir,
necesarias para su funcionamiento basado en la explotación.

233
Este incremento de la capacidad adquisitiva de los trabajadores
por medio de sus nuevos “salarios”, así como también, de la
capacidad de ganancia de la clase capitalista, se traduce en
reconocimiento por parte de estas últimas hacia la clase
gobernante.
En su conjunto, el diseño de los programas sugiere la
creación de puestos de trabajo precarios tanto en el sector
privado como estatal. Dicha precariedad deviene no sólo del
carácter transitorio de los programas, sino también del monto
escaso de sus remuneraciones (al 2018 constituyen la mitad del
SMVyM), de la falta de aportes y jubilaciones, entre otras tantas
falencias. Asimismo, en el caso puntual de la creación de
puestos de trabajo en el sector público, la mayoría de los
programas colocan a sus transitorios beneficiarios en el deber
de realizar funciones estructurales del Estado en sus diversos
niveles. En tal sentido, a través de los programas los gobiernos
hacen uso de mano de obra barata y temporal para llevar
adelante sus obligaciones. Un claro ejemplo de esto son las
inestables cooperativas del PAT, por medio de las cuales los
beneficiarios del programa deben realizar obras públicas en
barrios carenciados. Por su parte, los programas de Inserción
Laboral en el sector público (PIL), JMyMT, de SCyE y de Empleo
Transitorio en Obra Pública con Aporte de Materiales (Res.
1164/06 y 387/08) sugieren la misma lógica de actuación (ver
en Tabla programas anteriormente presentada).
En resumen, se sostiene que el diseño e implementación
de los programas de empleo aquí analizados, son expresiones en
el siglo XXI del histórico proceso de precarización laboral. Esto
último coloca a la precariedad como un fenómeno también
presente en las esferas formales/registradas del trabajo, es
decir, aquellas reguladas por los Estados nacionales en sus
distintos niveles. En este sentido, entendemos que la actual
regulación precaria de la fuerza de trabajo no constituye una
“vuelta atrás” o “retorno” a las fases iniciales del capital, sino
una pérdida de derechos y concesiones alcanzadas por los
trabajadores a lo largo de la historia de la lucha de clases.
En relación a esto último, resulta de interés señalar cómo
los programas sociales de empleo constituyen una estrategia del
capital factible de coexistir con las diversas transformaciones-

234
muchas de ellas entendidas como “conquistas” de la clase
trabajadora- de la legislación laboral argentina desde finales del
siglo pasado. En relación al período aquí estudiado (2002-2011),
la “convivencia” entre los “avances” de la legislación laboral
argentina del siglo XXI y los programas de empleo, deja en
evidencia la “supervivencia” de la lógica flexibilizadora en los
procesos de regulación de la fuerza de trabajo argentina, a la vez
que profundiza los procesos de heterogeneización y
fragmentación de la clase trabajadora en el país.
Asimismo, el constante diseño y anuncio de programas
de empleo, refleja el reconocimiento por parte de los gobiernos
argentinos del carácter estructural del desempleo en el
capitalismo. Dicho fenómeno se expresa a su vez en el
crecimiento de la actuación del MDS – órgano estatal históri-
camente dirigido a asistir de manera focalizada y sin exigir
contraprestaciones laborales a quienes quedan por fuera del
“efecto derrame” – en los procesos de mejora de la empleabilidad
y de creación de puestos de trabajo (proceso de “activación” de
la política social), inclusive en un período económico de
expansión. Además, este aumento en la participación del MDS
en materia de empleo, expresa la necesidad del capital de crear
empleos transitorios y focalizados “por fuera” y/o de manera
paralela a la política macroeconómica.
Tal fenómeno también queda en evidencia en la
contradictoria relación establecida entre el carácter inestable
(temporal) de los empleos creados por los programas, y la
creciente institucionalización, y por ende, mayor cantidad y
estabilidad, de los organismos estatales responsables de su
ejecución, como es el caso del fortalecimiento del Instituto
Nacional de Asociativismo y Economía Social (INAES, Decreto
420/96), las GECALes y Oficinas de Empleo, la creación de la
Secretaría de Economía Social (Decreto n. 505/10), del Registro
de Efectores de Desarrollo Local y Economía Social (Decreto n.
189/04), etc. En relación a ello, adherimos a Lo Vuolo (2010)
cuando afirma, también refiriéndose a los programas de empleo
argentinos, que

La transformación de la política social en una política


asistencial de empleo es un modo de diluir la propia
naturaleza de los derechos sociales. La relación de empleo

235
es una relación económica basada en derechos de
propiedad, mientras que las políticas sociales establecen
relaciones sociales fundadas en los derechos sociales. La
confusión de estos ámbitos del complejo sistema social se
expresa en la confusión entre el “derecho” a un empleo con
la “obligación” de emplearse para recibir un beneficio de
los programas sociales. A esto se le suma la precariedad,
transitoriedad e insuficiencia del empleo que exigen los
programas sociales como contraprestación. Lejos de
consagrar un derecho social, la contraprestación laboral
de los programas sociales sirve para consolidar y legitimar
las relaciones de dominación/subordinación propias del
mercado laboral. De este modo, la política social no logra
expandir el acceso a los derechos sociales ni tampoco
resolver la cuestión de la precariedad e insuficiencia de
empleo, transformándose en un mecanismo más de
control social a lo que adiciona su potencialidad para
activar mecanismos de clientelismo político (LO VUOLO,
2010, p. 18).

Se concluye el presente artículo señalando la necesidad


de acrecentar los estudios críticos de la lógica de acumulación
del capital. Concretamente, entendemos que el carácter
estructural del desempleo, pobreza y precarización en el
capitalismo, entre otras tantas opresiones, torna necesario el
cuestionamiento de las bases en las que este último se sustenta,
entre ellas, las funciones de acumulación y legitimación de los
Estados nacionales. En este sentido, se suscribe que los
estudios de la política social de los Estados capitalistas deben
cuestionar la lógica hegemónica de creación y apropiación de la
ganancia en el capitalismo, así como también, los diversos
mecanismos utilizados por el capital para su funcionamiento.
Las necesidades de la clase trabajadora deben satisfacerse
rompiendo con la lógica del capital, y no siendo funcionales a
ella, como es el caso de la creación de programas sociales de
empleo.

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encontro entre o conhecimento popular e
erudito: o direito à cidade e a formação
omnilateral1
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Caroline Calvi 2

O que é vida senão atividade.


Marx, 2010, p. 83

Introdução

A cidade reflete a cultura de quem a construiu. Nela


encontramos arte, história, sínteses do trabalho humano e
também as suas contradições. Diante desse direito humano
coletivo, o estudo que precedeu este capítulo buscou desenvolver
algumas reflexões acerca das possibilidades pedagógicas dos
espaços não formais presentes na cidade, como ponto de
encontro entre o conhecimento popular e erudito. Além disso,
buscamos evidenciar a importância desses espaços quando
utilizados em parceria com a educação escolar, como proposta
de uma educação crítica e emancipadora, mediada pelos
homens e mulheres na cidade, em oposição à educação
transformada em mercadoria e formação de mão de obra que
supra apenas as necessidades do mercado.
Pensar a educação como objeto em um recorte macro e
os espaços não formais de educação (e a educação não formal)

1 Este artigo se baseia no recorte teórico da pesquisa feita por mim para a
dissertação de mestrado em Ensino de Humanidades pelo Instituto Federal do
Espírito Santo, “A educação omnilateral na busca do ser mais: contribuições do
Espaço Cultural Palácio Anchieta para a promoção da cidadania”, defendida em
abril de 2019, sob orientação do Prof. Dr. Carlos Roberto Pires Campos.
2 Graduada em História pela Universidade Federal do Espírito Santo e mestra

pelo curso de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades pelo Instituto Federal


do Espírito Santo. Membro do grupo de pesquisa Trabalho e Práxis.

241
em um recorte micro, nos coloca o desafio de ir na raiz da
questão: a relação entre a ontologia do trabalho e a educação em
um horizonte do direito à cidade. Se a cidade foi e continua
sendo construída pelo gênero humano, por meio da ação
criadora e criativa do trabalho, por que, na maioria das vezes,
temos um estranhamento dos sujeitos em relação aos diferentes
espaços da cidade? Apesar de toda tecnologia e ondas
“modernização”, a qualidade de vida nos centros urbanos
tornou-se mercadoria, mostrando a faceta desigual do sistema
capitalista. Além disso, a problemática do direito à cidade nos
leva a denunciar a limitação da cidadania dentro dos moldes do
capitalismo, a qual a emancipação política (cidadã e
democrática) é diferente da emancipação humana, proposta por
este estudo, por meio da educação omnilateral (TONET, 2005).
Nesse sentido, dar enfoque as potencialidades
pedagógicas dos espaços não formais nos diferentes espaços das
cidades possibilitam criar pontos de encontro e de
problematizações em relação as contradições referentes ao
direito à cidade. O processo pedagógico que promova o diálogo
entre a educação formal e não formal, tendo o plano de fundo o
direito à cidade nos dá possibilidades de uma formação pautada
na omnilateralidade.
As temáticas abordadas nesse artigo encontraram no
Materialismo Histórico Dialético e na Psicologia Histórico-
Cultural as suas bases teóricas e metodológicas, principalmente
a partir do conceito de trabalho, ação fundante do ser social.
Assim, este estudo parte da concepção de que os seres humanos
são essencialmente sociais, culturais e históricos, capazes de
interpretar e transformar sua realidade.

Sob essa ótica, os escritos de Lev. S. Vigotski (2004) nos


indicam que o “fazer junto, em colaboração” não diminui a
capacidade criativa dos estudantes, mas medeia a relação
dos educandos com o conhecimento acumulado historica-
mente. A partir dos estudos teóricos e de experimentos
para a compreensão da consciência humana, a psicologia
de Vigotski não desloca a história, a razão e a sensibilidade
do sujeito, mas as compreendem em seu contexto social
(CALVI, 2019, p 34).

242
Iniciaremos o capítulo abordando a importância de uma
educação não formal presente nos espaços urbanos em
profundo diálogo com a educação formal, como possibilidade de
rompimento da lógica neoliberal, a partir de uma educação que
promova o conhecimento pautado na intencionalidade,
criticidade e consciência histórica, a partir da prática social, de
forma que os conceitos espontâneos sejam trabalhados
pedagogicamente para a apropriação dos conceitos científicos
(VIGOTSKI, 2009). A segunda parte do capítulo será a relação
entre o direito à cidade e a formação omnilateral, partindo das
categorias trabalho e educação para a construção de
possibilidades, por meio da consciência histórica, de pensarmos
criticamente as relações sociais a partir de práticas educativas
que estimulem a problematização do direito à cidade, para o
exercício de práticas coletivas, no horizonte da emancipação
humana.

A educação não formal, os espaços não formais


e suas práticas educativas no horizonte
da Psicologia Histórico-Cultural

Estudos e pesquisas acerca da educação não formal


surgem no Brasil a partir da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (1996), a qual permitiu a abertura
institucional para os processos de aprendizagem dentro dos
espaços não formais. O art. 1ª da LDBEN amplia o conceito de
educação quando pauta que

A educação abrange os processos formativos que se


desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no
trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos
movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas
manifestações culturais (BRASIL, 1996, p1).

Entende-se como educação não formal o processo de


aprendizagem fora do ambiente e contexto escolar, com
características distintas da educação formal e informal. Segundo
Maria da Glória Gohn (2010, p. 16), “[...] a educação não formal

243
não é nativa, ela é construída por escolhas ou sob certas
condicionalidades, há intencionalidade no seu desenvolvimento,
o aprendizado não é espontâneo, [...] não é naturalizado”.
A partir desse primeiro conceito sobre a educação não
formal podemos definir que, assim como a educação escolar
possui como objetivo o ensino e a aprendizagem dos conheci-
mentos sistematizados historicamente acumulados, a partir de
uma organização curricular que também contém em seu objetivo
último uma intencionalidade, o diálogo entre a educação formal
e a educação não formal torna-se o fio condutor da construção
da cidadania e da formação orgânica dos sujeitos da
aprendizagem, o princípio para uma educação omnilateral.
Para compreender melhor sobre a educação não formal,
precisamos diferenciá-la também da educação informal. Gohn
(2010) distingue e caracteriza a educação informal como aquela
que “ opera em ambientes espontâneos, onde as relações sociais
se desenvolvem segundo gostos, preferências [...]. Os saberes
adquiridos são absorvidos no processo de vivência e socialização
pelos laços culturais e de origem dos indivíduos” (GOHN, 2010,
p.18). Tal conceito nos remete à educação que é socialmente
herdada, por meio das relações familiares e por pertencimentos
culturais, de acordo com a nacionalidade, idade, etnia, religião
do indivíduo, entre outros aspectos.
Baseado no conceito de educação ampla, este estudo
considera todos os tipos de educação como partes constituintes
da formação humana dos sujeitos que, a partir do
desenvolvimento do gênero humano, diretamente determinado
ao desenvolvimento histórico das sociedades, pressupõe o
trabalho, no sentido de atividade vital dos seres humanos,
também um princípio formativo.

O trabalho é a fonte de toda riqueza, afirmam os


economistas. Assim é, com efeito, ao lado da natureza,
encarregada de fornecer os materiais que ele converte em
riqueza. O trabalho, porém, é muitíssimo mais do que isso.
É a condição básica e fundamental de toda a vida humana.
E em tal grau que, até certo ponto, podemos afirmar que o
trabalho criou o próprio homem (ENGELS, 2018, p.1).

244
A atividade criadora medeia as relações dos seres
humanos com a natureza, sendo esta relação, para Marx (2010),
a centralidade ontológica do ser humano, baseada no trabalho,
na linguagem e na socialidade. A atividade humana possui
finalidade, é teleológica, ou seja, transforma de forma consciente
a natureza e “diferencia os homens das outras espécies de
animais, por meio da criação dos seus meios de sobrevivência
(ferramentas) para o suprimento de suas necessidades [...],
possibilitando a inauguração do mundo cultural e social”
(CALVI, 2019, p. 31). Destarte, “o ser humano não nasce
humano, ele faz-se humano; e o formar-se humano de cada um
nunca esgota as possibilidades do humanizar-se já existentes na
história humana ou passíveis de ainda serem criadas” (DELLA
FONTE, 2018, p.10).

O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da


sua vontade e da sua consciência. Ele tem atividade vital
consciente. Esta não é uma determinante (Bestimmtheit)
com a qual ele coincide imediatamente. A atividade vital
consciente distingue o homem imediatamente da atividade
vital animal. Justamente, [e] só por isso, ele é um ser
genérico. Ou ele somente é um ser consciente, isto é, a sua
própria vida lhe é objeto, precisamente porque é um ser
genérico. Eis por que a sua atividade é livre (MARX, 2010,
p. 84).

Assim como o trabalho é tipicamente uma atividade


humana, a educação “[...] é, ao mesmo tempo, urna exigência de
e para o processo de trabalho, bem como é, ela própria, um
processo de trabalho” (SAVIANI, 2015, p.287), de natureza não-
material, que, a partir da produção de cultura, humaniza os
seres humanos e produz “deliberada e intencionalmente, através
de relações pedagógicas historicamente determinadas”
(SAVIANI, 2015, p.293) os processos educativos os quais
contribuem para as diferentes formas de aprendizagem. Ou seja,
o ato de educar também é uma ação criadora e formadora,
educar é trabalho, em um movimento humanizador de todos os
sujeitos do processo.

245
Compreendemos, portanto, que a educação não ocorre de
forma espontânea, além de defendermos métodos pedagógicos
que permitam aos sujeitos o ato da reflexão, do pensar, sendo
essa a base da ordem científica. Assim como partimos do
conceito de educação em um sentido amplo, também utilizamos
a categoria de trabalho em seu sentido amplo para
compreendermos as questões inerentes à aprendizagem, a partir
das ideias de Lev S. Vigotski (1896-1934) e sua proposta
metodológica para a compreensão da consciência humana e seu
desenvolvimento, formando os pressupostos do que hoje
chamamos de Psicologia Histórico-Cultural 3, bastante difun-
dida no meio educacional nos últimos anos.
Vigotski, conforme Duarte (2004), posicionou politica-
mente seus estudos na construção de um homem novo em uma
nova sociedade 4, e com isso rompe com a Psicologia de sua época
para propor a explicação 5 dos processos psicológicos humanos
como produções histórico-sociais. Nesse sentido, defendendo a
leitura marxista da obra de Vigotski, “convém insistirmos sobre
isso: temos de saber com exatidão qual é a ciência com a qual
queremos romper por completo” (VIGOTSKI, 2004, p. 367), pois,
pensando pedagogicamente, quando adotamos nossos estudos
atrelados à investigação da Psicologia Histórico-Cultural,
sabemos com exatidão qual a prática pedagógica que desejamos
romper na contemporaneidade.
No caso da educação brasileira, denunciamos a urgência
do rompimento com a escola neoliberal e seus dois fenômenos:

3 O surgimento dos estudos de Vigotski é contextualizado a partir de uma crise


da psicologia nas décadas de 1920 e 1930 a qual se estendia em âmbito mundial,
com inúmeras pesquisas na área, mas nenhuma de caráter unificador. Para
Vigotski esta crise existia pela falta de uma psicologia geral, capaz de
compreender – não somente descrever – o desenvolvimento humano de forma
totalizante.
4 O contexto dos estudos de Vigotski surge no meio do viés marxista

predominante da década de 1910 e 1920 na Rússia, período revolucionário,


marcado pela ruptura do antigo regime czarista para a construção de um novo
tipo de sociedade, resultando na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS).
5 O método de Vigostki e seus companheiros Luria e Leontiev era denominado

de método instrumental ou método histórico genético, tendo suas concepções de


homem e sociedade baseadas no Materialismo Histórico Dialético.

246
a mercantilização da educação 6 e a concepção utilitarista do
saber em sua forma liberal na organização escolar (LAVAL,
2019), que precariza principalmente a educação pública. A onda
neoliberal encontrou no Brasil forte aceitação no Construtivismo,
pedagogia do aprender a aprender que, por trás de um discurso
de aparente humanização, produz em sua essência uma
educação pautada em práticas que promovem a individualização
e naturalizam a desigualdade social em defesa da meritocracia.
Newton Duarte, em seu livro Vigotski e o “aprender a
aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da
teoria vigotskiana, publicado em 2004, faz uma defesa da leitura
marxista da obra de Vigotski, partindo da leitura dos clássicos
escritos pelo próprio autor russo. Segundo Duarte, o ecletismo
das interpretações neoliberais das obras de Vigotski, tal como
associar as ideias do russo com as de Piaget, como alguns
autores denominam de “socioconstrutivismo”, por exemplo, se
dá pelo esvaziamento do aporte teórico marxista de Vigotski por
alguns de seus comentadores, com o intuito de prover ações
utilitárias e pragmáticas no contexto escolar brasileiro. Essas
ações contribuem para a perda de um conceito primordial
defendido por Vigotski em toda a sua obra: o conceito da práxis.
Nesse sentido, esvaziar o rigor teórico da obra de vigotskiana
estimula o empobrecimento das práticas educativas e o
esvaziamento de sentido no ato de educar, visando apenas os
resultados, não os processos de aprendizagem.
Em um plano macro, a lógica neoliberal de produção guia
e justifica ideologicamente os moldes da lógica neoliberal de
educação (LAVAL, 2019), que orienta a mecanização educacional
para atender a produção capitalista em suas necessidades –
formação de força de trabalho em massa. Essa orientação
supracitada é naturalizada pela ideia de que a educação pode
ser objeto de escolha no livre mercado, quando, na verdade,

6 Christian Laval defende que o mundo neoliberal gerou uma nova ordem na
educação, de caráter mundial, notada pela dominação do capital dentro das
escolas – privadas e públicas – e das universidades. Este processo resultou na
“mercadorização” do setor público educacional e na concorrência e competição
nas diferentes instituições de ensino. Dessa forma, a função social da escola se
perde quando os educandos e seus familiares são vistos por essa lógica como
mercado consumidor, os quais serão formados para atender as exigências do
mercado de trabalho.

247
estimula que a educação se torne um bem de capitalização do
privado ao diminuir o dever do Estado de fornecer o direito
fundamental para garantir a cidadania efetiva: condições dignas
e de qualidade 7 no ensino para todos.
Sobre a utilização do conhecimento como fator de
valorização do capital, através do aumento da eficiência do
sistema, Laval indica que

Os valores que constituíram o mundo escolar foram


substituídos por novos critérios operacionais: eficiência,
mobilidade, interesse. O sentido da escola muda: ela é não
mais um lugar de assimilação e convívio com grandes
narrativas onde se moldam caracteres para situações
sociais bem definidas, mas um local de formação de
caracteres adaptáveis às variações existenciais e
profissionais em incessante movimento (LAVAL, 2019, p.
48).

Acreditamos na existência de meios de combate a esse


tipo de educação voltada unicamente para a formação de força
de trabalho e defendemos a aliança da educação escolar aos
espaços não formais como possibilidade de denúncia e
questionamento dessa lógica neoliberal. Nesse sentido, devemos
compreender que os sujeitos da aprendizagem carregam consigo
saberes advindos da educação informal – conhecimentos
espontâneos – quando entram no processo da educação escolar.
Estes conhecimentos surgem da experiência particular dos
indivíduos, baseadas em suas práticas sociais, os quais são
relacionados e melhor elaborados na escola, na prática de
ensino, para a transformação e apropriação dos conceitos
científicos, como resultado do momento da aprendizagem.
Vigotski (2004) compreende toda a transformação do conceito
espontâneo para o científico como processo de criação, mediada
pela aprendizagem, através da qual o ser humano deixa o

7 Acerca do que este estudo compreende como educação de qualidade,


concordamos com as ideias de Lígia Márcia Martins quando afirma que “a
verdadeira educação é a transformação histórica do ser em direção a um ideal
humano superior, tendo neste ideal a abolição das condições e instituições que
alienam o trabalho e o trabalhador, para que ele possa objetivar sua atividade
vital de modo consciente, social, universal e livre” (MARTINS, 2012, p.56).

248
pensamento individual para o pensamento generalizante.
Segundo Vigotski (2004), todo conceito é também generalização,
momento de transição aos níveis mais elaborados de abstração.

A formação de conceitos é o resultado de uma atividade


complexa, em que todas as funções intelectuais básicas
tomam parte. No entanto, o processo não pode ser
reduzido à associação, à atenção, à formação de imagens,
à inferência ou às tendências determinantes. Todas são
indispensáveis, porém insuficientes sem o uso do signo,
ou palavra, como meio pelo qual conduzimos as nossas
operações mentais, controlamos o seu curso e as
canalizamos em direção à solução do problema que
enfrentamos (VIGOTSKI, 2008, p. 73).

A partir da teoria marxiana, o trabalho era, para Vigotski,


um processo humanizador do psiquismo, pelo qual “o homem
faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da
sua consciência” (MARX, 2010, p. 84), possibilitando o
autocontrole da conduta dos homens e das mulheres, dirigidos
pela consciência, por meio da criação do mundo simbólico. Para
a transformação da natureza, que dialeticamente transformou o
próprio homem, ferramentas e signos foram criados,
desenvolvendo as funções psíquicas superiores. Para Vigotski a
palavra era o signo por excelência, na medida em que possui, em
seu significado, a união entre linguagem e pensamento.

A linguagem é, antes de tudo, um meio de comunicação


social, de enunciação e compreensão. [...] Sabe-se ainda
que a comunicação não mediatizada pela linguagem ou por
outro sistema de signos ou de meios de comunicação,
como se verifica no reino animal, viabiliza apenas a
comunicação do tipo mais primitivo e nas dimensões mais
limitadas. [...] A comunicação, estabelecida com base em
compreensão racional e na intenção de transmitir ideias e
vivências, exige necessariamente um sistema de meios
cujo protótipo foi, é e continuará sendo a linguagem
humana, que surgiu da necessidade de comunicação no
processo de trabalho (VIGOTSKI, 2004, p. 11).

Em seus estudos sobre a consciência humana, Vigotski


escreveu, em 1929, um manuscrito no qual descreveu suas

249
bases teóricas marxistas em relação as funções psicológicas
superiores – atenção voluntária, memória, abstração – como
produto das relações sociais, sendo a psique humana a síntese
da evolução biológica e da história. A partir dessa análise,
Vigotski elaborou os fundamentos da psicologia histórico-
cultural e rompeu com a Psicologia de sua época para a defesa
de que “todo o cultural é social; [...] todas as funções superiores
constituíram-se na filogênese, não biologicamente, mas
socialmente; [...] sua natureza – são sociais (VIGOTSKI, 2000, p.
26).
As pesquisas vigotskianas contemplaram a escola como
local privilegiado ao processo de aprendizagem, tornando
concreto o ato educar para pensar, diferenciando a compreensão
da memorização – processo mecânico – como produção de
pensamento e criticidade, na apropriação de diferentes signifi-
cados e sentidos. Desse modo, a educação revela-se como “parte
integrante e necessária ao desenvolvimento do indivíduo e de seu
psiquismo, [...] tornando-se um instrumento para a compre-
ensão da realidade, em suas múltiplas determinações”
(MARTINS, 2016, p. 232).
Além de defender a importância da articulação da
educação escolar com os espaços não formais para a
materialização de uma educação política-pedagógica contra-
hegemônica, conforme Saviani (2013) advoga, concebemos
igualmente que a educação “pode ser uma mediação para a
construção de uma sociabilidade plenamente emancipada”
(TONET, 2005, p. 477), em um horizonte de fortalecimento da
escola pública, formadora de sujeitos capazes de interpretar e
transformar – coletivamente – suas realidades sociais por
intermédio da educação formal e não formal, resultantes do
patrimônio cultural 8. Porém, devemos salientar previamente,
que uma sociedade plenamente emancipada não é possível de
ser encontrada nos moldes atuais de sociabilidade a qual
vivemos. Dessa forma, torna-se necessária a compreensão da

8 Entendemos como patrimônio cultural toda a criação material e imaterial


resultante do trabalho humano que anteriormente não existia na natureza:
ferramentas, signos, técnicas, conhecimentos, habilidades, crenças, entre
outros.

250
diferença entre emancipação política e emancipação humana. A
primeira não garante a liberdade, uma vez que os cidadãos
possuem apenas igualdade jurídica, como membros da
sociedade civil, dirigidos pelo Estado. Assim, a “emancipação
política trouxe para a humanidade, em sua essência [...] uma
expressão e uma condição de reprodução da desigualdade
social. Uma forma de liberdade humana essencialmente
limitada” (TONET, 2005, p. 475), em uma perspectiva alienada
da liberdade. A emancipação humana, por sua vez, é limitada
dentro do Estado provido pelo capitalismo, visto que, sob a
perspectiva do capital, a sua reprodução torna-se predominante
em detrimento da realização plena de todos os sujeitos. Nesse
sentido, a cidadania também é limitada, visto que abrange
somente a dimensão política, não social.
Na conformação prática da pesquisa, propusemos uma
educação capaz de recompor o ser humano fragmentado
historicamente pelo desenvolvimento das formas produtivas
construídas pelo capitalismo, na potencialidade de uma
formação omnilateral em confronto às contradições desse
sistema que não apenas produz mercadorias, mas torna o
próprio homem em mercadoria, uma vez que “a produção produz
o homem não somente como uma mercadoria, a mercadoria
humana, [...] ela o produz, nesta determinação respectiva,
precisamente como um ser desumanizado [...]” (MARX, 2010, p.
92-93).

A interatividade que os espaços não formais de educação


trazem complementa a formação do indivíduo [...]. Ou seja,
o que o aluno estuda dentro da escola pode ser sentido,
tocado, observado e problematizado nos espaços
educativos não formais, do outro lado dos muros da
escola, contribuindo para o redescobrimento do poder
criativo do homem e para a sua formação completa, por
meio do acesso à cultura e à arte. A experiência conjunta
dessas duas instituições, formal e não formal, se torna
essencial para a formação orgânica do indivíduo (CALVI,
2019, p.18).

251
A mediação cultural 9, presente nos espaços não formais
de educação – museus; espaços culturais; galerias de arte;
pontos turísticos; etc – como processo pedagógico, possui
intencionalidade, sendo “um processo sóciopolítico, cultural e
pedagógico de formação para a cidadania, entendendo o político
como a formação do indivíduo para interagir com o outro em
sociedade” (GOHN, 2010, p. 33).
Os educandos, de diferentes instituições de ensino,
públicas e privadas, os educadores e qualquer outra pessoa que
tenha interesse em conhecer o espaço não formal, independente
de classe social, leva consigo sua “bagagem” sociocultural, a
qual será abordada dialeticamente em conjunto à temática que
aquele espaço possui – depende da exposição presente dentro do
espaço não formal institucional 10 ou da abordagem educativa de
professores em espaços públicos. Por exemplo: o conteúdo de
uma mediação cultural de uma referida exposição (seja ela de
Arte, ou histórica, ou bibliográfica, entre outras temáticas) é
igual entre os trabalhadores da educação não formal, também
chamados de mediadores culturais, porém, o diálogo (a
mediação cultural) entre o mediador e o público é diferente, pois
cada processo de ensino e aprendizagem dentro dos espaços não
formais depende da relação entre os participantes do processo.
A prática educativa não formal, dentro dos diferentes
espaços não formais, além de possuir intencionalidade, também
possui diferentes interatividades, de acordo com o público, pois
a mediação cultural parte dos conhecimentos informais e

9 O conceito de mediação cultural é utilizado por este estudo seguindo o padrão


da dissertação defendida em 2019, como processo da educação não formal que
ocorre dentro dos espaços não formais na cidade de Vitória, no Espírito Santo.
A dissertação tinha como lócus da pesquisa o Espaço Cultural Palácio Anchieta,
porém, este termo é utilizado também em outros espaços culturais.
10 Segundo Daniela F. C. Jacobucci (2008), os espaços não formais são

caracterizados em duas diferentes categorias: espaços não formais


institucionais, local onde possui um trabalho organizacional, com equipe
responsável pelas atividades e pelo atendimento ao público. Essa primeira
categoria é caracterizada pelos museus, centros culturais, parques ecológicos,
planetários, institutos de pesquisa, entre outros. A segunda categoria é a dos
espaços não formais não institucionais, locais onde podem haver processos
educativos, mas não possuem estrutura institucional. Geralmente compõem
esses espaços os ambientes naturais, como: parques; praças; praias; ruas;
cinemas etc.

252
formais das pessoas presentes para, dialogicamente, criar
pontes de discussão com a temática do espaço não formal.
Portanto, as “metodologias operadas no processo de aprendi-
zagem partem da cultura dos indivíduos e dos grupos. [...]
Penetra-se no campo do simbólico, das [...] representações que
conferem sentido e significado às ações humanas” (GOHN, 2010,
p. 46).

Os processos educativos formais e não formais,


construídos de forma coletiva e dialógica, que têm como
foco o patrimônio cultural socialmente apropriado como
recurso para a compreensão sociohistórica das referências
culturais, a fim de colaborar para seu reconhecimento,
valorização e preservação entre os agentes sociais e pela
participação efetiva das comunidades (IPHAN, 2016, s.p.).

Podemos afirmar, desse modo, que os diferentes espaços


não formais colaboram para a formação omnilateral, por meio
dos patrimônios culturais, de forma a democratizar os
conhecimentos socialmente acumulados em parceria com a
educação escolar, sendo o ponto de encontro entre o conheci-
mento popular e o erudito, de forma criativa e diversificada. O
espaço não formal, se trabalhado pedagogicamente para este
fim, pode ser o local privilegiado da práxis, onde a “a ação [...]
precisa da reflexão, do autoquestionamento, da teoria”
(KONDER, 1992, p. 115), com o objetivo na construção da
omnilateralidade – em todos os níveis sociais e de escolaridade,
além de contribuir para a formação da consciência histórica dos
sujeitos.

O direito à cidade e a formação omnilateral:


trabalho, educação e cidade

Refletir acerca de uma formação omnilateral também nos


remete à defesa de que todo sujeito deve ter acesso ao patrimônio
cultural acumulado historicamente, como forma de humani-
zação dos homens em sociedade (DELLA FONTE, 2018). A boa
notícia é que grande parte desse patrimônio cultural pode ser
encontrado nos espaços não formais e nas mais diversas

253
cidades. Porém, apenas encontrar esses espaços não é o
suficiente, torna-se necessário, para não dizer urgente, a
apropriação desses ambientes por meio de mediações educativas
que demonstrem as contradições existentes dentro desses
espaços e, inevitavelmente, nas cidades. Destarte, devemos
como educadores “pensar em modos sensíveis de possibilitar
que os sujeitos se apropriem da cidade, sem deixar de perceber
que a cidade reflete a organização social capitalista” (CHISTÉ;
SGARBI, 2018, p.102).
Pensar na educação em sentido amplo, resultado do
trabalho criador entre os sujeitos, capaz de formar homens e
mulheres, é refletir também sobre o papel do direito à cidade
como espaço público que educa. Em um cenário de produções
históricas e culturais, a cidade demonstra suas contradições em
relação à cidadania, chegando até na impossibilidade desta
última, quando “a invisibilidade de determinados tipos de
sujeitos no processo de materialização da cidade é que a esvazia
da dimensão pública, dando-lhe uma configuração privada” (DE
ARAUJO, 2011, p. 137). Nesse sentido, poderíamos afirmar que
a luta pela cidadania é a luta do tempo presente. Entretanto, ao
tentarmos dar um passo além, podemos afirmar que a superação
da cidadania para o encontro – por meio da mediação educativa
– da liberdade plena 11 é a luta do tempo presente. Assim, a partir
superação do modo de produção capitalista e da propriedade
privada, também teremos a possibilidade de superar a cidadania
(já pouco abrangente dentro dos limites do capitalismo), como
forma de sustentação do status quo.
O caráter educativo da cidade permite discutir tais
contradições por meio dos espaços não formais, institucionais e
não-institucionais, dando enfoque à crítica ao estranhamento
dos sujeitos em relação à cidade, quando suas construções e
instituições (trabalho objetificado) são personificadas, tornando-
se maiores e hostis aos sujeitos que as criaram. Esse
estranhamento gera a invisibilidade de diversos grupos sociais e

11 Liberdade plena, segundo Tonet (2005), é a autoconstrução humana, que

possui no trabalho associado, seu fundamento. Composta tanto pela ausência


da “sujeição dos homens à natureza, quanto a exploração e a sujeição dos
homens uns aos outros” (TONET, 2005, p. 476).

254
naturaliza interesses particulares como se fossem interesses de
toda a sociedade.
Estimular a ocupação dos diferentes espaços da cidade,
entre eles, os espaços não formais, de forma educativa,
intencional e crítica, incentiva o diálogo entre a pluralidade
social e cultural, no sentido de que a apropriação da cidade seja
um intermédio de múltiplas aprendizagens, de forma a
complementar as aprendizagens ocorridas no ambiente escolar
e estimular ações coletivas. Essa formação, dentro e fora da
escola, capaz de desenvolver o educando de forma ética, estética
e científica, traz como possibilidade a educação como fator que
humaniza e forma o ser humano em todas as suas facetas. No
entanto, esse modelo educativo só será possível, a partir da
superação das contradições referentes ao direito à cidade e à
educação.

Tudo isso nos leva a afirmar que as políticas territoriais


democráticas e participativas só poderão se concretizar se
a cidade, com seus diferentes arranjos espaciais e
temporais, se construir como um espaço permanente de
educação, ou seja, uma cidade que promova uma
dinâmica societária pública tendo em vista a instauração
de critérios público igualitários (DE ARAUJO, 2011, p.
142).

Entender a cidade como síntese do trabalho humano nos


dá a dimensão de que todos os sujeitos deveriam ter igualdade
de acesso e permanência aos diferentes espaços urbanos.
Porém, a relevância dos estudos referentes ao direito à cidade se
dá justamente na luta política pela dignidade humana, para
manter a cidade como espaço de encontro, de forma
democrática, como forma de resistência aos meios de
apropriação dos espaços públicos de forma privada.

O direito à cidade não se restringe a reivindicações


imediatas dos movimentos por direitos ou serviços
urbanos específicos — ele seria o conjunto dessas
demandas, apontaria para outras noções como as de
democracia, cidadania e autonomia, seria elemento
constitutivo da formação de uma consciência ou
experiência compartilhada pelos movimentos sociais. [...]

255
uma tentativa de organizar lutas fragmentadas num
denominador comum [...] (TAVOLARI, 2016, p. 102).

A origem do conceito do direito à cidade nos remete aos


estudos de Henri Lefebvre (2001), o qual defende que a análise
científica da cidade só pode ser feita a partir da práxis na
sociedade urbana. As pesquisas que possuem a cidade como
objeto de estudo, precisam, portanto, apreender este objeto
como espaço do devir, de constante mudança, sendo o passado
e o presente espaços de tempo inseparáveis. Assim, “mais do que
qualquer outro objeto, ele possui um caráter de totalidade
altamente complexo [...] que só se esgotará lentamente e mesmo
nunca, talvez” (LEFEBVRE, 2001, p. 111-112).
Partindo da ideia de que o direito à cidade é uma
discussão altamente relevante pois possui no espaço público o
lócus da luta social na garantia por direitos, Lefebvre (2001)
ressalta o papel da classe operária como suporte social na práxis
revolucionária e força política “capaz de pôr fim a uma
segregação dirigida essencialmente contra ela (LEFEBVRE,
2001, p. 113). Em acordo com as concepções do autor,
entendemos o importante papel dos trabalhadores no processo
de articulação – por meio dos diferentes movimentos sociais – de
luta ao direito à cidade, que em seu interior compõe a luta por
moradia, emprego, transporte etc, questões diretamente ligadas
a dignidade humana. Dessa forma, vista a urgência da
articulação entre o direito à cidade e a educação, os espaços não
formais possibilitam o fortalecimento da consciência histórica,
por meio do acesso ao patrimônio cultural, além de transmitir o
conhecimento elaborado e acumulado socialmente.
No interior das discussões sobre o direito à cidade,
também temos a importante contribuição de David Harvey
(2012) e sua denúncia quanto à aparente liberdade que temos
nos ambientes urbanos, que desde seu surgimento concentra
produto excedente na posse de uma minoria social. Dessa forma,
“urbanização sempre foi um fenômeno de classe, já que o
excedente é extraído de algum lugar e de alguém, enquanto o
controle sobre sua distribuição repousa em umas poucas mãos”
(HARVEY, 2012, p. 74). A denúncia de Harvey nos mostra como
a apropriação desigual da cidade transforma a qualidade de vida

256
dos cidadãos nos centros urbanos em mercadoria, de forma a
prejudicar as ações políticas coletivas.

A questão de que tipo de cidade queremos não pode ser


divorciada do tipo de laços sociais, relação com a natureza,
estilos de vida, tecnologias e valores estéticos desejamos.
O direito à cidade está muito longe da liberdade individual
de acesso a recursos urbanos: é o direito de mudar a nós
mesmos pela mudança da cidade. Além disso, é um direito
comum antes de individual já que esta transformação
depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo
de moldar o processo de urbanização (HARVEY, 2012, p
74).

Nesse sentido, a cidade como lugar de encontro


estimula experiências educativas de forma que os sujeitos
possam (re)aprender a olhar e a viver os diferentes territórios da
cidade por mediações formativas que instigam a curiosidade e
apropriação dos espaços públicos, aliadas a projetos de luta dos
movimentos sociais que há muito tempo se articulam para
defender direitos básicos coletivos.
A união entre educação escolar e os espaços não
formais, situados em diversos pontos da cidade, quando
trabalhado como espaços de aprendizagem, não como local de
espetáculo, estimulam a consciência histórica dos sujeitos,
desmistificando a ideia de aparente liberdade e ocupação
igualitária da cidade. As questões referentes ao direito à cidade
juntamente com a defesa de uma educação crítica e
humanizadora traz como plano de fundo a importância da
superação do trabalho explorado para que homens e mulheres
possam se apropriarem de forma plena à criação do mundo
simbólico e objetivo. Desse modo, cabe a educação o papel de
apreender cientificamente as diversas formas de trabalho
alienado, suas contradições e possibilidades materializados por
ele. Dentre as possibilidades se encontra a superação deste
trabalho, em um horizonte na construção de novas formas
produtivas, as quais permita o homem o seu pleno desenvolvi-
mento.

257
Considerações finais

Partindo do capitalismo como ele é, produto social,


resultado de múltiplas determinações, que age de forma desigual
e alienante e deve ser compreendido por meio de suas
contradições, este estudo tentou traçar a contextualização da
relação entre o ser humano, a sociedade e suas relações
dialéticas para tratar do assunto referente a educação formal e
educação não formal no horizonte do direito à cidade e formação
omnilateral.
Diante todas as contradições supracitadas ao longo do
artigo, defendemos a ideia de que a partir da negatividade se dá
a busca pelas superações e assim a história é construída pela
práxis humana. Nesse sentido, é possível encontrar nos
Manuscritos econômicos-filosóficos de 1844, pela primeira vez, a
centralidade ontológica baseada no trabalho e a análise tecida
por Marx em relação a filosofia hegeliana, a qual expõe críticas
e elogios. Em relação aos elogios, Marx destaca a negatividade
como motor da história da atividade humana, em processo da
passagem do estranhamento para a sua superação (FRAGA,
2014).

A grandeza da “Fenomenologia” hegeliana e de seu


resultado final – a dialética, a negatividade enquanto
princípio motor e gerador – é que Hegel toma, por um lado,
a autoprodução do homem como um processo, a
objetivação como desobjetivação, como exteriorização e
suprassunção dessa exteriorização; é que compreende a
essência do trabalho e concebe o homem objetivo,
verdadeiro, porque homem efetivo, como resultado de seu
próprio trabalho (MARX, 2010, p.123).

Nesse sentido, a omnilateralidade, citada por Marx nos


Manuscritos, a qual remetemos a relação entre trabalho e
formação humana, permitindo ao sujeito a essência de um
homem completo em todas as suas possibilidades, capaz de “ver,
ouvir, cheirar, degustar, sentir, pensar, intuir, perceber, querer,
ser ativo, amar” (MARX, 2010, p. 108) de forma livre, nos indica
uma projeção de futuro, pois as relações de produção no
capitalismo são capazes de propiciar a esse homem a totalidade

258
do seu trabalho apenas de forma aparente. Torna-se necessário
o (re)encontro à essência, negada pelo trabalho explorado, visto
por nós o trabalho para fins de suprimento das necessidades
humanas.
Passado, presente e futuro, portanto, são espaços de
tempo primordiais para chegarmos à humanização e emanci-
pação permanente, de forma a nos utilizarmos da história e do
patrimônio cultural acumulado a fim de rompermos com o que
nos é imposto e, de forma revolucionária, crer no futuro de um
homem novo, em uma nova sociedade, por intermédio da práxis,
partindo do estranhamento para a revelação da potencialidade
humana. Somente na superação do capitalismo e das relações
unilaterais impostas por esse sistema, as fraturas humanas
poderão ser reconstituídas para a formação omnilateral em
múltiplas aprendizagens, dando possibilidade ao homem, por
meio do trabalho livre, de “apropriar-se disso que ele produziu
(da sua essência materializada nas produções culturais) de
modo pleno, inteiro, omnilateralmente” (DELLA FONTE, 2018,
p.13).
Não podemos deixar de considerar, portanto, a educação
como valiosa ferramenta na formação humana de homens e
mulheres no processo de rompimento da lógica neoliberal, que
dá base e sustentação a governos autoritários e
antidemocráticos, que não só fraturam as capacidades criadoras
dos sujeitos como também os mortificam 12. Reintegramos o
papel revolucionário da esperança e do trabalho como fatores

12 Neste exato momento em que escrevo as palavras finais deste artigo, o Brasil
chega a soma de 16.118 pessoas que perderam suas vidas diante da maior crise
de saúde pública historicamente já enfrentada no país. A pandemia do Covid-
19, que até agora coloca o Brasil em quarto lugar de maior número de casos,
com 241.080 casos confirmados (números que aumentam consideravelmente a
cada dia) escancarou algo já muito denunciado: a total falta de capacidade do
sistema capitalista, baseado no livre mercado, de atender as reais necessidade
dos seres humanos de forma igualitária. Diante do cenário desastroso brasileiro,
administrado por um governo de característica fascista, o qual coloca o lucro
acima da vida, o resultado, que poderia ser totalmente evitado, é o lamento de
milhares de famílias que em seu interior perderam entes queridos. A todos
afetados diretamente e indiretamente pela pandemia, nossa solidariedade e
respeito. Dados retirados do jornal El País Brasil. Fonte:< https://
brasil.elpais.com/brasil/2020-05-18/ao-vivo-ultimas-noticias-sobre-o-corona
virus-no-mundo-e-a-crise-politica-no-brasil.html>. Acesso em: 18 maio 2020.

259
humanizadores que, juntamente com a educação (em sentido
amplo) possuem papéis fundamentais de luta contra o status
quo e na recomposição do ser humano em todas as suas facetas,
pois “entendemos que a emancipação humana deve ser colocada
claramente como fim maior de uma atividade educativa da
perspectiva do trabalho” (TONET, 2005, p.482).

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262
A educação profissional como extensão da
política de Educação de Jovens e Adultos:
a experiência do município de Vitória
_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Everaldo Francisco Costa 1


João Batista Pereira Alves 2
Mariane Luzia Berger 3

Considerações Iniciais

O presente texto fundamenta-se na concepção de que a


Educação de Jovens e Adultos deve articular dialeticamente o
mundo do trabalho aos conhecimentos científicos, de maneira
que as experiências da vida e do trabalho dos/as estudantes
jovens e adultos/as possam também ser incorporadas ao
currículo. As experiências, por sua vez, atuam como ponto de
partida para o ensino e a aprendizagem em um processo de
ação-reflexão-ação, na perspectiva da Educação Popular.
Partimos desse pressuposto para trazer ao diálogo possibili-
dades de uma educação integrada e, por conseguinte, a
materialização na práxis 4 de um currículo de EJA que tenha
como centralidade o mundo do trabalho.

1 Graduado em Ciências Sociais pela UFES e Pós-graduado em Gestão Municipal


de Políticas Públicas, pelas Faculdades Integradas de Vitória em parceria com o
Instituto Saber & Cidadania.
2 Mestre em Educação pela UFF e Doutor em Políticas Públicas e Formação

Humana pela UERJ.


3 Licenciada em Pedagogia pela FAFIC com especialização em Docência do

Ensino Superior pela UFRJ e Mestranda em Políticas e Administração em


Educação pela UNTREF-Buenos Aires.
4 Compartilhamos com o pensamento de Kosik ao afirmar que “A práxis na sua

essência [...] é a revelação do segredo do homem como ser ontocriativo, como ser
que cria a realidade (humano-social) e que, portanto, compreende a realidade
(humana e não-humana, a realidade na sua totalidade). A práxis do homem não
e a atividade prática contraposta à teoria; é determinação da existência humana
como elaboração da realidade” (1986, p. 202).

263
No que tange a experiência da integração da Educação
Profissional à Educação de Jovens e Adultos no município de
Vitória, é importante destacar que ela vem sendo construída
coletivamente desde 2017, em atendimento à Meta 10 do Plano
Municipal de Educação, que estabelece a oferta de 25% das
matrículas da EJA integrada à Educação Profissional. Em nossa
compreensão, uma proposta não pode ser (im)plantada em uma
comunidade de forma impositiva, mas sim, deve ser “plantada”
por meio de um processo de construção coletiva. Nesse sentido,
iniciamos o processo de (im)plantação a partir de diálogos com
três escolas de Ensino Fundamental da Rede Municipal de
Vitória: Francisco Lacerda de Aguiar, Padre Anchieta e Prezideu
Amorim que, a princípio, ressignificaram a Atividade Curricular
Complementar (ACC), que ocorre no horário de 18 às 19h,
introduzindo nesse espaço/tempo a disciplina “Fundamentos do
Mundo do Trabalho 5.
A incorporação da disciplina Fundamentos do Mundo do
Trabalho ao currículo da EJA ancora-se na abordagem do
trabalho humano em suas dimensões ontológica e histórica e
como produtor da sobrevivência e da cultura. Apoia-se na
perspectiva crítica de compreensão do conceito de trabalho e
mundo do trabalho, diferenciando-os dos conceitos de emprego
e mercado de trabalho, com uma intencionalidade de consolidar
uma prática pedagógica fundamentada nas dimensões do
trabalho, ciência e cultura aos/as estudantes jovens, adultos/as
e idosos/as trabalhadores/as. Além disso, os Fundamentos do
Mundo do Trabalho nas ACCs, contribuem também para
proporcionar uma leitura panorâmica e crítica do nosso
desenvolvimento e das transformações do trabalho na atuali-
dade, bem como seus reflexos na exploração do/a trabalhador/a
a partir da precarização, historicamente inseridos na lógica do
capitalismo.
Reconhecendo a premissa que deve mediar o processo de
aprendizagem dos sujeitos da EJA, o diálogo entre o conheci-
mento escolar sistematizado e o conhecimento produzido social-

5 Esta disciplina está fundamentada na compreensão do trabalho humano nas


perspectivas ontológicas e históricas. Está organizada em três eixos: Aspectos
históricos do Mundo do trabalho; Diversidades do Mundo do Trabalho e
Questões atuais do Mundo do Trabalho.

264
mente, ou seja, o entrelaçamento dos conteúdos escolares
acumulados historicamente com as práticas sociais dos/as
estudantes, organizamos este texto com o intuito de socializar a
experiência da EJA Profissional em curso na Rede Municipal de
Educação de Vitória. Evidenciaremos aspectos da fundamen-
tação da proposta, que foi construída com a participação do
Grupo Trabalho e Práxis da UFES 6. Na segunda parte do texto
exploraremos a concepção dos/as estudantes sobre a proposta,
com vistas a uma reflexão acerca da ressignificação do currículo
da EJA por meio da integração entre ciência, cultura e trabalho
e seu impacto na vida dos/as jovens, adultos e idosos/as.

A Educação de Jovens e Adultos no município de Vitória:


processo de (im)plantação da EJA profisisonal

A Secretaria de Educação (SEME) do município de Vitória


nos últimos 15 anos oferta a Modalidade da Educação de Jovens
e Adultos, respeitando a diversificação por reconhecer as
singularidades dos sujeitos atendidos pela EJA. Após a
aprovação do Plano Nacional de Educação e do Plano Municipal
de Educação, outros desafios emergiram como agendas
prioritárias para efetivação de uma política de EJA, dentre elas,
a integração com a Educação Profissional. Neste sentido, este
projeto assume esta importante tarefa, sendo o ano de 2017
marcado pela construção da proposta da EJA Profissional, a
princípio (im)plantada como experiência piloto em três escolas.
Para tanto, houve intenso diálogo com as comunidades
escolares, compreendendo o poder da adesão e mobilização
dos/as envolvidos/as para o êxito da ação.

6 O Grupo Trabalho e Práxis coordenado pela Prof. Drª Lívia Moraes e pelo Prof.
Dr. Rafael Bellan tem atuado em parceria com a SEME desde 2017 no
planejamento do Curso Fundamentos do Mundo do Trabalho. Realiza formações
para os/as profissionais das escolas da EJA Profissional. Esse Grupo está
vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade
Federal do Espírito Santo e tem como membros docentes e discentes da
graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado de diversos cursos, tais como
Ciências Sociais, Jornalismo, Geografia, Design, Política Social, dentre outros.

265
Na perspectiva crítica de compreensão do conceito de
trabalho e mundo do trabalho, diferenciando-os dos conceitos
de emprego e mercado de trabalho, procurou-se o fortalecimento
dos pressupostos filosóficos que compreendem o trabalho em
sua dimensão ontológica e central na formação dos/as jovens,
adultos/as e idosos/as trabalhadores/as.
O contexto econômico, histórico e político brasileiro atual
tem se manifestado altamente desfavorável aos/às trabalha-
dores/as, produzindo altas taxas de desemprego, ampliando o
subemprego, precarizando em larga escala as relações de
trabalho, deixando uma grande massa de trabalhadores/as na
informalidade na tentativa desenfreada de (sobre)viverem. Daí a
necessidade de, além dos conhecimentos da formação geral,
apropriação de conhecimentos relacionados ao Mundo do
Trabalho produzindo reflexões críticas sobre o trabalho em sua
visão ontológica e sobre a necessidade de compreender os
fenômenos da precarização como marca de uma economia
dependente 7.
Cabe ressaltar que a qualificação profissional sempre foi
uma demanda anunciada em diferentes espaços formativos
pelos/as estudantes da EJA do município de Vitória, como um
clamor frente à ausência de oportunidades de trabalho. Esses
argumentavam a necessidade de inserção no mundo do trabalho
e acreditavam que a qualificação os aproximaria desse objetivo.
Os/as estudantes, em sua maioria, estão vinculados ao mundo
do trabalho de alguma forma, quer seja pelo trabalho formal ou
informal; quer seja pelas experiências e necessidades como
sujeitos que integram uma sociedade cada vez mais exigente,
meritocrática e competitiva. Nesse sentido, realizamos parcerias
com instituições que atuam no campo da Educação Profissional
e ofertamos cursos de qualificação profissional às sextas-feiras,
além da disciplina Fundamentos do Mundo do Trabalho nos
horários das Atividades Curriculares Complementares. Há,
portanto, o objetivo de contribuir na qualificação profissional,

7 De acordo com Marini (1972) a América Latina, para contribuir com


acumulação de capital com base na capacidade produtiva do trabalho, teve de
fazê-lo mediante uma acumulação baseada na superexploração do trabalhador.
Nisso se radica a essência da dependência latino-americana.

266
mas rompendo com a visão utilitarista de formação para o
mercado do trabalho.
Outra iniciativa construída neste processo foi a
implantação do PROEJA (Programa Nacional de Integração da
Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade da
Educação de Jovens e Adultos) na forma de cursos FIC
(Formação Inicial e Continuada), inicialmente em uma escola da
rede municipal (Escola Izaura Marques da Silva) localizada em
um território popular de Vitória. Tal proposta assume a
perspectiva do currículo integrado com conhecimentos rele-
vantes permeados pelas relações sociais vinculadas à prática
social e ao mundo do trabalho, constituindo assim, uma
experiência piloto de Educação Profissional integrada à EJA com
o curso de Operador de Computador, de acordo com as diretrizes
do Decreto Federal nº 5.840/2006.
Por meio de um currículo integrado o que se propõe é
romper com a dualidade estrutural que marca a história da
educação no Brasil desde os seus primórdios. O trabalho
assume como referência o sentido educativo a partir da concep-
ção gramsciana de escola unitária, tendo como interlocutores
Frigotto, Ciavatta, Ramos e outros autores do campo do
Trabalho e Educação na perspectiva da formação omnilateral,
como alternativa

[…] para garantir ao adolescente, ao jovem e ao adulto


trabalhador o direito a uma formação completa para a
leitura do mundo e para a atuação como cidadão
pertencente a um país, integrado dignamente à sua
sociedade política. Formação que, neste sentido, supõe a
compreensão das relações sociais subjacentes a todos os
fenômenos (CIAVATTA, 2005, p. 85).

Dialogando com isso, a Educação Profissional integrada


à EJA se configura como uma proposta necessária para a
elevação do nível de escolaridade para todos/as os/as
estudantes que almejam a escola pública, ou seja, um ensino
com base nas ciências da natureza, nas ciências sociais, na
matemática e nas linguagens, sob a perspectiva do trabalho
como princípio educativo, para contribuir na transformação da

267
escola em um ambiente de integração entre a ciência, cultura e
trabalho.
A proposta de Educação Profissional integrada à EJA se
constitui como referência na articulação dos conhecimentos
gerais e específicos. Para além dessa articulação, permite aos/às
estudantes a oportunidade de exercitar o seu espírito criativo em
iniciativas que possibilitem desenvolver seu potencial, tendo
como princípios básicos a autonomia. Assim, é fundamental que
a Educação Profissional e Tecnológica vincule-se a um projeto
de desenvolvimento econômico e social, com vistas a atender a
diversidade de situações da população brasileira em especial das
comunidades mais populares das cidades e do campo,
contribuindo para a redução das desigualdades sociais.
A partir de 2018, a Educação Profissional se consolida no
município de Vitória como política pública nas quatro escolas
citadas tornando-se uma demanda para as demais escolas que
ofertam a EJA. Nesse contexto, ressalta-se que o processo de
consolidação da proposta só foi possível devido à parceria com a
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) por meio do
Grupo de Pesquisa Trabalho e Práxis. O grupo tem sua atuação
desde o planejamento da disciplina “Fundamentos do Mundo do
Trabalho” realizando o processo de formação com os/as
profissionais dessas escolas mensalmente, como um projeto de
extensão em que a Universidade se articula diretamente com a
Educação Básica.
Em 2019 mais duas escolas são incluídas na EJA
Profissional que, gradativamente, se constitui como uma política
pública para a Rede de Vitória. A escola Alvimar Silva passou a
ofertar o curso Fundamentos do Mundo do Trabalho nas ACCs
e a Escola João Bandeira o Proeja FIC em Operador de Compu-
tador, atendendo uma demanda específica da comunidade de
Jaburu. Em atendimento à necessidade de duas comunidades
escolares, em 2020 as escolas Ceciliano Abel de Almeida e
Aldevani S. F. de Azevedo também passaram a ofertar o Proeja
FIC com o curso de Operador de Computador.
Esse intenso movimento formativo culmina, também em
2020, com a inserção da disciplina “Fundamentos do Mundo do
Trabalho” no Currículo das escolas de EJA da rede municipal de
Vitória.

268
Outra inciativa importante para a rede a partir de 2020
foi a implantação do Projeto Integrador de Pesquisa e
Interlocução com a Comunidade - PIPIC nas ACCs de todas as
unidades de Ensino. O PIPIC se configura como estratégia
pedagógica de caráter interdisciplinar com vistas ao exercício do
diálogo entre teoria e prática, da criação, do planejamento, da
investigação científica, da intervenção comunitária, resultando
em um processo de articulação dos saberes com o contexto
histórico, econômico e social, ambiental e cultural. Contribui
também para conceber um novo olhar para o currículo da EJA
no município de Vitória. Assim será possível buscar de fato
novas possibilidades para consolidar uma educação popular,
tendo a pesquisa como princípio pedagógico. De acordo com
Ramos;

Esse princípio está intimamente relacionado ao trabalho


como princípio educativo, ao qual ao ser assumido em uma
educação integrada contribui para a formação de sujeitos
autônomos que possam compreender-se no mundo e,
dessa forma, nele atuar, por meio do trabalho, transfor-
mando a natureza em função das necessidades coletivas
da humanidade e, ao mesmo tempo, cuidar de sua
preservação face às necessidades dos demais seres
humanos e das gerações futuras (RAMOS, 2014, p. 85).

E nesse contexto, a Educação Profissional integrada à


EJA se apresenta como uma ação emancipatória e como
instrumento de democratização do ensino já que a integração da
cultura, ciência e trabalho é uma das premissas para a
efetivação de uma escola democrática, inclusiva, plural e cidadã.

As vozes dos sujeitos da Eja: o que pensam os/as


estudantes sobre os Fundamentos do Mundo do trabalho
em seu currículo escolar?

Após explicitar alguns elementos que marcam a


concretização da proposta de Educação Profissional Integrada à
EJA, compartilharemos relatos de estudantes que materializam
aspectos da avaliação dos primeiros meses de implantação desta

269
política pública. Esses sujeitos trouxeram para a avaliação
percepções importantes, tanto na materialidade da proposta
pedagógica que atualmente está sendo desenvolvida nas escolas,
quanto nos aspectos políticos e ideológicos que historicamente
marcaram a EJA. Concordamos com Fazenda quando nos diz
que:
A história atual de uma determinada prática só pode ser
revelada em sua complexidade quando investigada em
suas origens de tempo e espaço - por isso a importância
fundamental de que o pesquisador da prática investigue a
mesma não só em sua ação imediata, tal como ela
aparentemente se revela, mas permita-se compreender os
condicionantes históricos que a determinam (FAZENDA,
1994, p.75).

Dentre os sujeitos que participaram do processo de


avaliação da política de Educação Profissional Integrada à EJA,
destaca-se a participação dos/as estudantes. São responsáveis
por elementos que nos permitiram "[...] trabalhar a
singularidade empírica, com o local, com o tempo breve dos
acontecimentos, não como objetos individuais, isolados, mas na
sua articulação com o contexto, com a cultura, com o mundo do
qual fazem parte" (CIAVATTA, 2001, p. 153).
Como já afirmamos inicialmente, a referida proposta
encontra-se ainda em fase de (im)plantação, contudo, já se torna
possível identificar alguns de seus efeitos nas falas dos/as
estudantes e professores/as. Desde sua implantação, a
Coordenação da Educação de Jovens e Adultos (CEJA) tem
acompanhado sistematicamente o desenvolvimento do trabalho
por meio das formações com os/as professores/as, rodas de
conversas com os/as estudantes e reuniões de planejamento e
avaliação com as equipes das escolas. O monitoramento aos
cursos ofertados por instituições parceiras também nos oferece
indicativos das possibilidades e desafios.
Mesmo em fase embrionária, a Educação Profissional
Integrada à EJA se apresenta como uma política educacional de
inclusão social contribuindo para o desenvolvimento humano e
ampliando as possibilidades de inserção no mundo do trabalho.
Além disso, os/as estudantes passam a alimentar novos sonhos
e construir novos projetos, articulando os conhecimentos do

270
mundo do trabalho com o pragmatismo da qualificação
profissional.
Relatos de professores/as traduzem que trabalhar com a
Educação de Jovens e Adultos tem se tornado uma tarefa
complexa. Isso porque o currículo praticado está distante do
contexto e das necessidades dos/as jovens e adultos,
produzindo impactos em sua permanência e em seu
desempenho. Além disso, os fatores externos como a violência, a
luta pela sobrevivência, a vulnerabilidade social imprimem uma
perspectiva negativa nos sujeitos, desmotivando-os à busca pela
escolarização. Diante disso, as práticas de currículo integrado
com o eixo mundo do trabalho, além da qualificação profissional,
produzem mais sentido para aquilo que se ensina e aprende.
Efeitos concretos na vida dos/as estudantes que passam a
vislumbrar possibilidades mais reais a exemplo de ascensão nas
carreiras profissionais ou até mesmo o aperfeiçoamento do
trabalho.
É notório como a vinculação com o mundo do trabalho
tem provocado uma nova dinâmica na prática educativa. As
experiências concretas que a disciplina Fundamentos do Mundo
do Trabalho e as oportunidades de qualificação profissional
oferecidas por outras instituições ou integradas ao currículo
impactam positivamente a vida dos estudantes.

Sobre a disciplina Fundamentos do Mundo do Trabalho:


eu aprendi muito nas demonstrações de vídeos. Quando
estudamos sobre o trabalho e a mulher, foi passado aquele
filme "Que Horas ela volta" que me fez relembrar a época
que eu tinha de 15 até os 22 anos. Como ela, eu também
era muito guerreira. Estava lá para agradar os patrões,
estava lá para fazer o que era necessário. Só que quando
ela precisou da ajuda dos patrões, a patroa começou a
tratar mal, eu passei por isso também. Quando eu falei
que ia estudar foi uma guerra. Nem a declaração para ela
assinar para eu mostrar a diretora que estava chegando
mais tarde por causa do trabalho, ela não quis me dar, ela
não queria assinar um documento que comprovava a hora
que eu saía do trabalho. Foi aí que descobri que aquilo que
ela falava que eu era como da família não era verdade
(Estudante 1, 2018).

271
O relato acima nos possibilita refletir sobre descobertas
acerca da condição precarizada das mulheres trabalhadoras.
Nota-se como o direito à educação não é garantido e efetivado
apenas pelo preceito legal, mas sim pela luta dos próprios
sujeitos de direitos. Além disso, a servidão também é
evidenciada na fala da estudante, fato recorrente na vida de
muitas trabalhadoras domésticas onde a

necessidade dos patrões, por um lado, e a dependência


material ou afetiva dos empregados, por outro, contribuem
para a condição servil se instale e seja aceita. Quando essa
condição servil é extrema, explícita e, sobretudo, quando é
acompanhada de tratamento humilhante. [...] A situação
mais difícil parece ser quando a condição servil se associa
ao vínculo afetivo (SORATTO, 2006, p. 249).

A perspectiva de ampliação de possibilidades formativas


nos transporta para além do pragmatismo exigido pelo mercado,
também é percebida entre os/as estudantes, que redimensi-
onam o sentido da formação:

Me interessei pelo curso de eletricista no IFES, porque


percebi que com esse curso eu posso ter uma qualificação
na área, além de poder realizar pequenos serviços como
autônomo. Esse curso está sendo muito importante,
porque as vezes a gente se liga muito no trabalho e as
informações ficam para trás. Então tem muita coisa
acontecendo que a gente não está a par. E aí você vai
pegando as informações, porque a gente as vezes estava
muito desatento, desinformado, aí a gente vai percebendo
nessas informações muitas coisas que se deve fazer ou
não. A gente tem que acompanhar a tecnologia, se não for
se graduando a gente vai ficando para trás. Esse curso de
elétrica que nós estamos fazendo no IFES [Instituto
Federal Tecnológico do Espírito Santo] é bom, mostra
muitas coisas boas, inclusive a questão que o cara do
sindicato falou de segurança – a gente que trabalha na
construção civil brinca com a vida – não usamos os
maquinários certos, por exemplo: vou cortar um piso, o
certo é usar os óculos e aí depois a gente vai vendo e pensa
duas vezes. Aprendi na aula de Segurança no Trabalho
com o professor Fassarela que eu já arrisquei muito a
minha vida (Estudante 2, 2018).

272
O relato acima traz um aspecto muito importante na
relação teoria-prática que os/as estudantes estabelecem. No
caso em questão, trata-se de um estudante adulto que já atua
há muitos anos na construção civil e fez o curso de Auxiliar de
Eletricista, organizado em parceria com o IFES. O seu relato é
revelador quanto à questão da precarização das condições de
trabalho, sobretudo com a falta de Equipamentos de Proteção
Individual (EPI’s). Talvez o conhecimento específico do curso de
eletricista não teve tanta relevância quanto à disciplina de
Segurança no Trabalho, uma vez que adquiriu conhecimento
tácito na atividade de eletricista ao longo de muitos anos de
experiência na construção civil trabalhando com elétrica. Toda
essa experiência não foi suficiente para lhe despertar quanto aos
riscos que se expôs durante sua trajetória profissional, o que nos
revela a importância da formação qualificada no exercício de
uma profissão.
A disciplina Fundamentos do Mundo do Trabalho foi
organizada em três eixos: i) Aspectos históricos do mundo do
trabalho; iii) Diversidades do mundo do trabalho; iii) Questões
atuais do mundo do trabalho. Cada tema foi explorado por meio
de roteiros didáticos que culminavam com uma concretude em
resposta aos aprendizados. Destacam-se para efeito de
ilustração os roteiros 8 que discutiam a Reforma Trabalhista,
cuja culminância foi uma palestra sobre o Sindicalismo no Brasil
com o Presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Construção
Civil (Sintraconst-ES). Ao final do ano, em um momento de
avaliação sobre a disciplina Fundamentos do Mundo do
Trabalho, um estudante destacou:

Foi muito bom para nós nesse ano esses assuntos do


mundo do trabalho. Aprendemos muitas coisas. Naquela
palestra que tivemos com o presidente do sindicato, ele me
alertou. Ali eu vi que e estava sendo ignorante no assunto,
porque o meu patrão falou com a gente que agora não
precisava mais pagar sindicato, que não precisava daquele
desconto, que aquele desconto que a gente fazia para o
sindicato, era só para enriquecer o sindicato. Então eu e

8 Durante esse processo (2017 a 2020) foram elaborados de forma coletiva 120
roteiros didáticos interdisciplinares para subsidiar o trabalho com os
Fundamentos do Mundo do Trabalho.

273
meus colegas de trabalho assinamos um papel para não
descontar mais para o sindicato. E depois daquela palestra
e vi como eu estava sendo ignorante. Entendi que quem
defende o trabalhador é o sindicato. E naquele momento
que eu assinei o papel eu não tinha esse conhecimento.
Eu quero voltar atrás nisso aí (Estudante 3, 2018).

O relato desse estudante que atuava em um


supermercado nos confirma a manipulação da classe trabalha-
dora em relação ao papel de um sindicato. Os patrões, por sua
vez, ao defenderem o enfraquecimento dos sindicatos para
explorar seus funcionários se apoiam na nefasta Reforma
Trabalhista, consolidada após o golpe de 2016, que desmontou
intencionalmente a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e
substituiu o modelo de emprego padrão por formas de trabalho
absolutamente precárias. Entre elas destacamos a terceirização
sem limites, o trabalho por jornada parcial e o trabalho
intermitente. O enfraquecimento dos sindicatos é também
reflexo dessa nociva Reforma Trabalhista.
Esse relato sobre os efeitos imediatos da palestra sobre
sindicalismo possibilitou aos/as estudantes a materialização da
função social da escola numa perspectiva freireana, contribu-
indo para fomentar a capacidade da classe trabalhadora
compreender a sua importância na sociedade. Para tanto, é
necessário articular os pressupostos teóricos com a realidade
dos/as estudantes, constituindo-se em uma ferramenta para
conscientização sobre si e o mundo.
O relato abaixo é revelador quando à função da Educação
Profissional Integrada à EJA. Assim diz o estudante:

Eu tive que parar de estudar muito cedo para ajudar a


minha família. Hoje já tenho as minhas filhas formadas. Ai
resolvi voltar a estudar. E uma das coisas que me animou
foi saber que na Escola Izaura Marques tinha a EJA junto
com o curso de Operador de Computador. Eu sabia muito
pouco de computador. Tenho um pequeno comércio e
quem fazia as planilhas para mim era o contador. Hoje já
sei trabalhar com o Excel e sei como é importante para
essas outras coisas a mais que estou aprendendo nesse
curso. Hoje tudo é na base da informática. Quero terminar

274
o ensino fundamental e também quero continuar os
estudos (Estudante 4, 2018).

O relato do estudante nos revela a importância da


proposta pedagógica do PROEJA no que se refere à articulação
da a Educação Profissional com a Educação Básica. Nessa
exposição, esse estudante destaca que um dos motivos que o
levou a retornar à escola na fase adulta foi a possibilidade de
fazer a EJA e o Curso de Operador de Computador.
Em nossa análise, os/as estudantes alimentam sonhos e
convicções acerca da importância da qualificação profissional
como possibilidade de uma inserção digna no mundo do
trabalho. Do exposto de suas palavras, podemos perceber
posicionamentos com argumentos plausíveis do trabalho digno
como produção da existência humana. Com essas diferentes
manifestações, esses/as estudantes expressam uma visão de
mundo que transpõe as fronteiras escolares, reconhecendo a
importância do processo de qualificação profissional. Suas
diferentes falas, suas diferentes áreas profissionais, muitos/as
deles/as vivendo de forma precária na informalidade, cada
um/uma ao seu modo, expressaram de forma contundente a
importância da integração da Educação Profissional à EJA.
Esses relatos traduzem a configuração de um projeto político
pedagógico que coaduna com os princípios da formação
omnilateral.

Considerações Finais

Ao versar sobre a experiência da Educação Profissional


Integrada à EJA no município de Vitoria, confirma-se que,
mesmo em um curto tempo histórico, a proposta (im)plantada
vem se consolidando como uma política pública educacional na
perspectiva da inclusão social. A partir da elaboração dos
roteiros didáticos desenvolvidos no Curso "Fundamentos do
Mundo do Trabalho" pelos/as professores/as, do processo
formativo intenso coordenado pelo Grupo Trabalho e Práxis, das
assessorias às escolas e dos diálogos com os/as estudantes, é
notório o quanto uma proposta educacional construída

275
cotidianamente com o coletivo de profissionais das escolas,
(im)plantada a partir de uma demanda real da comunidade,
avaliada sistematicamente junto aos sujeitos envolvidos, tem um
enorme potencial para se configurar como política pública.
Mesmo que o contexto do trabalho na atualidade não seja
animador, e que a falta de oportunidades para os/as jovens e
adultos/as seja uma realidade perversa, pode-se afirmar que a
Educação de Jovens e Adultos, independente da oferta de cursos
de qualificação profissional, deve estar atrelada à formação
profissional a partir de um currículo que traduza o trabalho
como princípio educativo. A Educação Profissional Integrada à
EJA é pauta da gestão pública e precisa ser concretizada
progressivamente como afirmação de um projeto educacional
que se inspire na essencialidade do trabalho como formação
humana e se conecte com as necessidades dos/as estudantes.
Nessa direção, para a proposição de uma Educação
Profissional na perspectiva de valorização da Educação de
Jovens e Adultos, rompendo com a dicotomia da cultura geral
com a formação profissional, essas escolas vêm reconstruindo a
sua proposta pedagógica coletivamente com diversos segmentos
sociais que convergem com esses ideais, cumprindo assim a
função primordial de produzir “[...] em cada indivíduo singular,
a humanidade que é produzida coletivamente pelo conjunto dos
homens” (SAVIANI, 1997, p.17).
Reiteramos que a intenção deste texto foi contribuir para
o debate acerca da Educação Profissional Integrada à Educação
de Jovens e Adultos como política pública que se contraponha
às reformas neoliberais e que busque alternativas práticas e
possíveis, pautadas no processo de geração de renda e trabalho,
redução das desigualdades sociais e no desenvolvimento
científico e tecnológico. Dessa forma, concretizaremos um
projeto educacional pautado no que Freire afirmou: “a
necessidade de o educador assumir o compromisso com os
destinos do país. Compromisso com seu povo. Com o homem
concreto. Compromisso com o ser mais deste homem” (2007, p.
25), abrindo caminho para seguirmos firmes na construção de
uma tão sonhada sociedade inclusiva e igualitária.

276
Referências

BRASIL. Decreto nº5.840/2006. /2000. Institui no âmbito


federal o Programa de Integração da educação profissional com
a educação básica na modalidade de educação de jovens e
adultos – PROEJA. Brasília. 2006.
CIAVATTA, Maria. O conhecendo histórico e o problema teórico
das mediações. In: FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria
(Orgs). Teoria e educação no labirinto do capital. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2001
_________. A formação integrada: a escola e o trabalho como
lugar de memória e de identidade. In: FRIGOTTO, Gaudêncio;
MARISE, Ramos; CIAVATTA, Maria (org). Ensino médio
integrado: concepções e contradições. São Paulo: Cortez, 2005.
FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Interdisciplinaridade:
história, teoria e pesquisa. Campinas: Papirus, 1994.
FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. 30ª ed.; Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2007.
KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: paz e terra,
1976.
MARINI, Ruy Mauro. Dialéctica de la dependência. México:
Serie Popular Editora Era. 1972.
RAMOS, Marise Nogueira. História e Política da Educação
Profissional. Coleção Formação Pedagógica. Vol. V. Instituto
Federal do Paraná, 2014.
SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras
aproximações. Campinas: Autores Associados, 1997.
SORATTO, Lucia Helena. Quando o trabalho é na casa do outro:
um estudo sobre empregadas domésticas. 2006. Tese
(Doutorado em Psicologia). Universidade de Brasília. Brasília,
2006.

277
A categoria trabalho no currículo
da EJA do município Vitória como
dispositivo de memórias
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Calos Fabian Carvalho 1


Everaldo Francisco da Costa 2
João Batista Pereira Alves 3

Considerações Iniciais

O presente texto é resultado de pesquisas em andamento


em um projeto desenvolvido na EJA do município de Vitória (ES)
nos anos de 2017 a 2019, no Primeiro Segmento (Equivalente ao
1º ao 5º ano do Ensino Fundamental), intitulado “Noite de
Memórias: vozes da Eja que contam histórias”. Tal projeto teve
como objetivo de promover espaços de socialização de narrativas
de estudantes acerca de suas histórias de vida.
Esse projeto assumiu como premissa uma perspectiva de
currículo da EJA, que não reconhece a prescrição orientada pelo
sistema de ensino como regra central, mas sim a vida cotidiana,
a cultura popular, o mundo do trabalho, a ciência e a cidadania 4.
Ou seja, é a construção de um currículo numa perspectiva
freireana, considerando que a função social da EJA deverá ser a
de fomentar a capacidade da classe trabalhadora em
compreender a sua importância na sociedade, articulando os

1 Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo.


2 Graduado em Ciências Sociais pela UFES, Pós-graduado em Gestão Municipal
de Políticas Públicas pela FDV.
3 Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana pela UERJ.

4 Considerando a polissemia do termo “cidadania”, trataremos aqui não como

um conceito absoluto ou neutro, como o faz o pensamento liberal, mas sim como
um conceito histórico, na perspectiva da formação humana, como fundamento
dos interesses comuns por todos os cidadãos, por meio de garantias legais e
políticas sociais, as quais não são suficientes para a superação das desigual-
dades, mas podem trazer contradições importantes para a luta de classes em
benefício da classe trabalhadora.

279
pressupostos teóricos com a realidade dos estudantes,
constituindo-se em uma ferramenta para conscientização sobre
si e o mundo.
Nas memórias trazidas por esses estudantes da Eja,
identificamos a exploração e precarização do trabalho como um
dos temas mais recorrentes, que emergem na reconstituição
individual de suas histórias de vida, sendo apontados como um
dos motivos que contribuíram para o abandono da escola, mas
também como elementos disparadores de retorno na busca de
melhores condições de trabalho e de vida.

Noite de memórias: as histórias de vida dos estudantes da


EJA ressignificando o currículo

O projeto “Noite de Memórias: vozes da EJA que contam


histórias” foi realizado em todas as escolas que ofertam Eja no
município de Vitória. Esse projeto iniciou com um trabalho de
preparação e diálogos com os estudantes do 1º segmento,
composto na sua maioria por mulheres negras, que em algum
momento de suas vidas foram impedidas de ter acesso ao
processo de escolarização e, hoje, buscam na educação escolar
autonomia, libertação e esperança em uma vida com mais
dignidade.
A primeira fase do projeto constituiu-se em um momento
preparatório com os estudantes com diálogos em pequenos
grupos e escutas de parte das narrativas, somados a ação de
encorajamento e motivação para que eles pudessem contar as
suas histórias no dia determinado para a “Noite de Memórias”.
Além do desafio de contarem as histórias de vida, também foi
proposto aos alunos compor um espaço com alguns objetos que
remetessem a sua infância e um prato típico, trazendo a
memória afetiva de sua alimentação, caracterizando um
envolvimento das escolas na construção de um espaço de
memórias, de histórias e experiências de vida. Para Thompson,
a experiência é gerada na vida material de “[...] pessoas que
experimentam suas situações e relações produtivas determi-
nadas como necessidades e interesses e como antagonismos”
(THOMPSON, 1981, p.182).

280
Neste projeto desenvolvido nas escolas de EJA, por meio
do diálogo entre passado e presente, identificamos um processo
dialógico e na busca de compreender o sentido de uma educação
mais humana e mais libertadora, em um processo empírico e
histórico, reconhecendo que:

Qualquer momento histórico é ao mesmo tempo resultado


de processos anteriores e um índice da direção de seu fluxo
futuro. [...] há um sentido no qual o passado melhora o
presente, pois a ‘história’ continua sendo seu próprio
laboratório de processos e resultados (THOMPSON, 1981,
p.57-58).

Nos relatos dos estudantes, ficou evidenciado que um


dos motivos que contribuíram para que fossem excluídos da
escola foi a questão econômica, em decorrência da necessidade
de auxiliar a família na luta diária pela sobrevivência. Esse
cenário de desigualdades sociais ainda hoje contribui para que
milhares de crianças que ingressam no ensino fundamental não
concluam essa etapa da educação básica.
Ao retornarem para a escola na fase jovem ou adulta, ter
a sua vivência como centralidade do currículo da EJA é
fundamental para que esses estudantes se sintam como sujeitos
do processo educativo, tendo a sua identidade e a sua história
de vida reconhecidas. Esses “jovens e adultos que voltam ao
estudo, sempre carregam expectativas e incertezas à flor da pele”
(ARROYO, 2005, p.42).
São histórias que se entrelaçam com a luta de classes,
com a desigualdade social, a negação de direitos, expropriação
da força de trabalho, êxodo rural, abusos sexual e moral no
trabalho. E, quando esses sujeitos vêem na instituição escolar
uma instância de lutas, um espaço para modificar essa realidade
eles se sentem participantes da história presente com possibili-
dades para reconstruir outra história, que para Freire:

No mundo da história, da cultura, da política, constato não


para me adaptar, mas para mudar. No próprio mundo
físico minha constatação não me leva à impotência. (...)
Constatando, nos tornamos capazes de intervir na
realidade, tarefa incomparavelmente mais complexa e

281
geradora de novos saberes do que simplesmente a de nos
adaptar a ela (FREIRE, 1996, p.86).

A escola de EJA, quando se pauta numa perspectiva de


educação popular, deverá fomentar nos estudantes a capacidade
de compreender a sua importância na sociedade. Para tanto, é
imprescindível construir uma proposta pedagógica crítica,
reflexiva e dialógica, articulando os pressupostos teóricos com a
realidade dos sujeitos que freqüentam a escola.
Nesse sentido, podemos afirmar que o resultado do
projeto “Noite de Memórias: vozes da EJA que contam histórias”,
contribuiu para o desdobramento de outras atividades no
interior da escola, subsidiando a construção de um currículo
de EJA para que os estudantes vejam na instituição escolar um
lugar de esperanças. “Esperança de ‘alcançar um nível melhor
perante a sociedade’; de obter ‘conhecimentos para poder lutar
pelos direitos’; de tornar-se ‘o exemplo da família’; de melhor
compreender a vida. (RUMERT, 2005, p.118).

O trabalho como centralidade nas memórias


dos estudantes da EJA

Após explicitar a intencionalidade do projeto em


contribuir para a visibilidade da luta histórica e resistências dos
sujeitos que freqüentam cotidianamente as escolas de EJA, e
considerando a “escola e o trabalho como lugares de memória e
identidade” (CIAVATTA, 2005, p.10), apresentaremos a seguir
recortes de algumas narrativas desses estudantes.
Assim, trazemos ao diálogo as narrativas dos estudantes
revelando o movimento dialético impulsionando a luta pela
sobrevivência diária em uma sociedade marcada pela desigual-
dade social. Memórias individuais e coletivas se entrelaçam.
Concordamos com Bosi quando afirma que:

Cada memória individual é um ponto de vista sobre a


memória coletiva. Nossos deslocamentos alteram esse
ponto de vista: pertencer a novos grupos nos faz evocar
lembranças significativas para este presente e sob a luz
explicativa que convém à ação atual. O que nos parece

282
unidade é múltiplo. Para localizarmos uma lembrança não
basta um fio de Ariadne; é preciso desenrolar fios de
meadas diversas, pois ela é um ponto de encontro de vários
caminhos, é ponto complexo de convergência dos muitos
planos do nosso passado (BOSI, 1994, p. 413).

São histórias de vida marcadas pela exclusão social a


partir da expulsão da escola na idade considerada própria, pela
exploração no trabalho que permitem compreender alguns
condicionantes históricos e sociais que as determinam. Pois,
trata-se de um processo que está “fortemente enraizado na
cultura do tempo e do lugar onde os sujeitos sociais se inserem
e na história que se produziu a partir da realidade vivenciada,
que constitui ela mesma ‘um lugar de memórias’” (CIAVATTA,
2005, p. 113). São histórias de vida reveladoras de direitos
negados, mas também de sonhos e esperanças.
Quanto aos sujeitos que participaram desse projeto, eles
trouxeram contribuições importantes a partir de suas trajetórias
de vida para enriquecer o debate acerca da ressignificação do
currículo da Educação de Jovens e Adultos, que não se encontra
acabado, mas deve ser cotidianamente reinventado. É nessa
perspectiva que selecionamos alguns recortes de narrativas
focando a “categoria trabalho”, porque compreendemos essa
categoria como central para o currículo de EJA na perspectiva
da formação humana integrando ciência, cultura e trabalho.
Esse é o pano de fundo para justificar essas memórias que serão
apresentadas, sem identificação dos sujeitos 5, como se segue:

Eu vim de Montanha 6 pra cá... Eu tive um acidente na área


da CST, trabalhando com andaimes. Era muito pesado. Eu
sofri acidente na coluna e eles me empurravam pra
trabalhar com o pesado. Eles davam Dorflex pra passar a
dor e mandavam ir trabalhar. Passava a dor e aí a gente
ia... só alegria, só alegria! Mas depois ficava tudo doendo.
“As cadeira”, quase não aguentava. Aí apresen-tava papel
para empresa que eu tinha problema e tinha que passar
pra outro serviço mais leve. Mas não, mandaram embora,

5 Optamos pela não identificação a fim de preservar os sujeitos de qualquer


constrangimento que poderia surgir a partir da exposição de seus relatos.
6 Município do norte do estado do Espírito Santo.

283
como um objeto jogado no lixo. Mas Deus sabe de tudo,
né? A gente que trabalha na área industrial, com perigo,
você mata um amigo sem querer. Hoje eu estou encostado
pelo Seguro Social e falou para eu fazer um curso de
porteiro. Eu já tô com o certificado na mão. A minha
vantagem é que eu sei ler. Mas tá difícil, eu não consigo
emprego. Agora entrando de férias no fim do ano, tenho
que apresentar no INSS pra marcar a perícia. Eles podem
me “tesourar” e aí.... com o curso que eu já fiz, eles vão me
mandar pro mercado, né? Hoje tem uns três meses que eu
voltei a estudar, porque o INSS mandou (Estudante 1,
2019).

Esse estudante faz parte um grupo que hoje é recorrente


na EJA do Ensino Fundamental, que são os trabalhadores
assegurados pelo INSS. Trata-se de profissionais principal-
mente das áreas de infraestrutura, limpeza pública e cons-
trução civil, que adquirem alguma doença em decorrência do
esforço da atividade profissional e, por recomendação médica,
são afastados dos postos de trabalho. Nesta condição de
assegurados, eles são obrigados a freqüentarem a escola. Essa
determinação conforme expressou o estudante acima, tem o
objetivo de ampliar o nível de escolarização tendo em vista uma
suposta “requalificação” para inserção no mercado por meio de
um “trabalho mais leve”. No caso explicitado, foi sugerido um
curso de porteiro. Nesta obrigação de retornarem à escola, o
poder público (representado, nesse caso, pelo INSS) atua de
forma a dificultar o acesso à aposentadoria, por vezes
considerada precoce, mesmo que por motivos de saúde. Outra
questão expressa no relato é, também, um fato recorrente na
vida de muitos estudantes que são assegurados do INSS, o medo
de perder o emprego. Quando ele afirma que ao sair da condição
de assegurado “eles podem me tesourar”, há um efeito perverso
que está posto quando os trabalhadores saem da condição de
assegurados e não conseguem voltar para o seu trabalho de
origem: estarão desempregados.
Na década de 90, no auge da implantação das políticas
neoliberais no Brasil, a ensaísta e romancista Viviane Forrester,
na sua obra “O Horror Econômico” (1997), já denunciava o tão
temido desemprego, que segundo a autora, acarretava exclusão,
culpa, insegurança e sentimento de vergonha. Nessa lógica

284
perversa do neoliberalismo, os desempregados “são levados a se
considerarem indignos da sociedade e, sobretudo, responsáveis
pela sua própria situação, que julgam degradante (já que
degradada) e até censurável. Eles se acusam daquilo que são
vítimas” (FORRESTER, 1997, p. 11). Com a ameaça constante
de demissão, o trabalhador carrega o sentimento de que “para
além da exploração dos homens, há algo ainda pior: a ausência
de qualquer exploração” (FORRESTER, 1997, p. 16).

Sou de Nova Venécia 7, na verdade do interiorzinho do


município, um lugar que hoje, se chama Cristalina... E aí
quando passado um tempo, o seu Arnaldo Bastos chegou,
que era o dono da fazenda e falou assim ‘eu tô precisando
de uma pessoa para trabalhar de babá lá na casa de minha
filha’. Eu fui, não estudei, fui trabalhar lá e a filha dele era
professora... Depois que eu cresci, que eu fiquei com meu
marido, que eu casei, eu fui vender livros, trabalhei mais
de 20 anos com livros. 23 anos, casada, sem saber ler e
sem saber escrever. Mas a matemática, ninguém me
passava pra trás. Eu vendia livros, enciclopédias, Globo,
mapas, Dicionário Aurélio, Michaelis, tudo. Só nunca
vendi a Barsa, porque eu nunca tive a oportunidade de
encontrar o vendedor da Barsa pra eu me encaixar dentro.
Mais eu trabalhei muito, muito, muito, graças ao meu bom
Deus não tive tempo, não tive muito tempo pra estudar...
E hoje meu objetivo é que um dia eu vou vencer, vou
estudar... Não vai demorar muito. Eu vou fazer Pedagogia,
para ensinar a quem vem atrás de mim, que não sabe,
como eu. Chegar ao extremo mesmo, no topo. Saber ler e
escrever, que é muito bom. A maior riqueza que a gente
pode ter é a leitura, o estudo, e a faculdade, porque quem
sabe ler, sabe conversar. É uma riqueza que ninguém te
tira, ninguém, ninguém, toma. (Estudante 2, 2018).

As histórias de vida dos estudantes da EJA são marcadas


por muitas contradições. O relato evidenciado acima é
excepcional, pois se trata da narrativa de uma estudante que
trabalhava como vendedora de livros, sem, no entanto, nunca
ter freqüentado a escola. O seu desempenho nessa atividade
profissional talvez se explique, em função da premissa que

7 Município do Noroeste do Espírito Santo.

285
embora o sujeito não tenha domínio do sistema da escrita
alfabética, ele pode estar inserido em contexto de práticas sociais
de leitura e escrita. Isso significa dizer que adultos analfabetos,
por viverem em um meio em que a leitura e a escrita têm
presença forte, se inserem em suas práticas: recebem cartas e,
com isso, ouvem a leitura desse texto ou ditam uma carta para
se comunicar com alguém distante; escutam a leitura de notícias
de jornais para se manter atualizados; solicitam que as pessoas
leiam as instruções de uma receita para poder fazer um prato
específico; etc.

Eu sou de Niterói e eu sempre trabalhei em casa de família,


sempre fui doméstica... Me aposentei aos 49 anos, porque
tive um câncer no estômago. Fiquei internada um bom
tempo na Santa Casa, e depois que o médico me deu alta,
mas na época de dar alta, ele virou pra mim e falou assim:
‘tá querendo um atestado, assim estendido?’ Eu virei pra
ele e falei assim: ‘Doutor, eu trabalho em casa de família,
mas praticamente eu não recebo, porque eu trabalho e
moro na casa, e eu não recebia um salário inteiro’. Ele
virou pra mim e disse ‘eu vou fazer o seguinte: eu vou te
dar um laudo pra você passar pela perícia, eu vou tentar,
vou ver se eu te aposento’. Mas eu virei pra ele e disse:
‘mas eu não pago o INSS’. ‘Não tem como pagar o INSS
para se aposentar?’. Ele conversou comigo e disse
‘converse com seus patrões para ver se eles pagam pelo
menos 2 anos pra você se aposentar’. Acabou o resguardo
do estômago e eu conversei com a minha ex-patroa. Ela
falou ‘eu tenho que conversar com meu marido, eu não sei
o que...’. Eu fiquei esperando. Pensei assim, que nesse
mato não vai sair coelho, deixa eu me virar do meu jeito.
Mesmo trabalhando, nas horas de folga, catava latinha e
paguei o meu INSS, com latinha, fiquei um ano e meio
encostado na perícia, depois do repouso. Acabou aquele
um ano e meio, eu tive que renovar a perícia, aí eu fui para
renovar, virei pra o rapaz e falei, chegou uma carta pra
mim, minha patroa leu, que eu tenho que renovar a
perícia, aí ele falou assim ‘não’, olhou no computador e
perguntou ‘qual o nome da senhora todo?’ “Fulana de Tal”
aí ele falou ‘a senhora não tem perícia para renovar não’.
Eu falei, ‘o que?’. Ele falou ‘não tem não’. Virou assim o
computador pro meu lado, eu não sei ler. Eu sei muito mal
assinar o meu nome, aí ele falou ‘o médico pediu a

286
aposentadoria da senhora e foi aceita’. Aos 49 anos, eu
falei ‘graças a Deus!’. Com dois anos... Tem 48 anos que
estou na mesma família. Sou babá e trabalho ainda, agora
eu tô com a filha da patroa, criando as netas da patroa.
Tive que me virar na vida, correr atrás de minhas coisas,
mesmo não sabendo ler (Estudante 3, 2018).

Esse relato é atravessado por diversas situações que


demonstram a perversidade da lógica capitalista, no que se
refere à exploração do trabalho doméstico, que no Brasil ficou
indelevelmente marcado como uma condição servil por suas
raízes escravagistas. Esta categoria profissional marginalizada
socialmente é marcada por relações de exploração engendradas
no cotidiano do trabalho doméstico de muitas mulheres. Ainda
hoje se manifesta com baixos salários e a precariedade dos
direitos trabalhistas em uma relação empregador/a/ e
empregado/a permeada por dominação e exploração que,
segundo Soratto:

A condição de dominação-servidão nos serviços domés-


ticos está diretamente ligada à falta de reconheci-mento
como pessoa. O reconhecimento da pessoa é incompatível
com a servidão porque esta envolve o reconhecimento de
apenas um sujeito na relação. Não reconhecer a pessoa
permite que a demanda seja definida somente pela
necessidade de quem é servido, sem considerar os limites
daquele que serve. Dessa maneira, a demanda fica do
tamanho da necessidade e tem caráter imperativo,
ignorando o sofrimento, o esforço e as penas daquele que
está a serviço do outro. Então, ignorar o sofrimento do
outro é condição para várias formas de abuso. Aquele que
serve pode ser requisitado até o seu limite, o que pode
levar à sua exaustão, ao adoecimento ou ao abandono da
situação. O reconhecimento de que se trata de uma pessoa
que tem um corpo que sofre e que pode ir à falência pode
acontecer somente quando o limite físico é atingido e o
adoecimento se concretiza (SORATTO, 2006, p. 249).

Outra questão que é visível no relato acima se refere ao


trabalho escravo contemporâneo, fato recorrente na história de

287
vida de muitas mulheres que são “levadas” para o trabalho
doméstico sem remuneração específica. Essa situação só foi
minimizada recentemente com promulgação da chamada PEC
das Domésticas, em 2012, como resultado de uma história de
lutas dessas trabalhadoras, que viveram séculos de dominação
e exploração. No caso em tela, a estudante relata que, além da
não ter uma remuneração fixa, não tinha o recolhimento da
contribuição previdenciária para fins de aposentadoria junto ao
INSS. Para conseguir a aposentadoria, foi obrigada a recorrer
ao trabalho extra de “catar latinha” para pagar o INSS. Situações
como essa, narrada pela estudante, não são fatos isolados. É
mais uma constatação de direitos negados de relações
trabalhistas que se conjugam com as consequências nefastas da
Reforma Trabalhista, consolidada após o golpe de 2016, que
desmontou intencionalmente a CLT, e substituiu o modelo de
emprego padrão por formas de trabalho absolutamente
precárias. Entre elas estão a terceirização sem limites, o trabalho
por jornada parcial e o trabalho intermitente. Com isso,
assistimos diversas categorias de trabalhadores sofrendo com a
instabilidade nas relações de trabalho. Este processo não é
transitório e ocorre em diversos países, pois, “[...] onde quer que
os imperativos do mercado regulem a economia e governem a
reprodução social, não há como escapar da exploração” (WOOD,
1998, p. 29).

Tenho 34 anos, nasci em 28 de abril de 1985 aqui em


Caratoíra 8. Atualmente eu tô desempregado. Eu traba-
lhava de auxiliar de serviços gerais, numa empresa
terceirizada. Eu comecei em 2003, trabalhava ali no Teatro
Carmélia, nesta terceirizada, pelo Estado. Depois eu saí
dessa empresa. Fiquei lá 3 anos e pouco e depois saí dali
e fui pra outra empresa em 2008, lá em Cariacica, que
prestava serviço pra Arcelor, e lá fiquei 9 anos. Nove anos
trabalhando lá, a firma entrou em falência e dispensou
todo mundo e saí em 2016. Depois disso fiquei desem-
pregado até hoje. Antes de 2003 eu ficava na rua mesmo.
Não fazia nada não, ficava ajudando as pessoas. Não
cheguei trabalhar de carteira assinada antes de 2003 e
nem frequentava escola. Vivia mais na rua mesmo. Eu

8 Bairro do município de Vitória (ES).

288
morei muito tempo. Assim mesmo, eu fui pra rua por
minha conta, no caso... Eu pedia, eu vendia bala, não
cheguei a envolver com drogas. Pior que tinha muito na
rua isso mesmo. Tinha uso de cola. Eu ajudava eles a
saírem dessa vida, eu falava com eles, dava conselhos para
aqueles colegas que queriam seguir comigo. Eu vigiava e
lavava carro. Fazia outras coisas ao invés de ficar usando
algum tipo de droga. Eu cheguei a ficar numa “Casa
Aberta”, eles chamam de casa aberta, às vezes aparecia a
kombizinha e a gente se escondia deles. As vezes a gente
ia à casa aberta só pra comer mesmo. Tinha uma lá em
Goiabeiras... Eles davam conselhos pra gente, vinham com
uns projetos, sopas, essas coisas. Fiquei na rua mais ou
menos uns 3 anos... O morro já era uma prisão pra mim.
Hoje, no morro, conhecendo outras pessoas, a gente vai
crescendo, vai tendo espaço, as pessoas que você vai
conhecendo vão te dando espaço e você vai andando,
crescendo. Quando você vai vendo o morro não está mais
pequeno, quer dizer, já está com mais espaço. Eu hoje sou
da Igreja Batista. A religião sempre teve perto, mas eu não
seguia. A religião me ajuda um pouco. Eu hoje já vejo a
rua com outros olhos. Agora eu vejo como um lugar
perigoso, o que eu não via antes... O trabalho é muito
importante para a transformação da pessoa mesmo.
Transformação de vida e abrir a mente. Sobre a escola,
primeiramente o mais importante é o ensinamento. A
escola tem muita coisa pra ensinar, que eu não vi na
minha infância. Eu achava uma coisa muito chata e
enjoada. Meu pai falava, mas eu não via a importância.
Agora eu vejo como importante, maravilha! Eu, hoje, só
quero estudar e arrumar um serviço (Estudante 4, 2018).

Este jovem é reflexo do fracasso do nosso sistema publico


de ensino. A instituição escolar esteve presente na sua infância,
diferentemente de outros sujeitos da EJA que não tiveram a
oportunidade de ingressar na escola na sua infância, mas tem
em comum a exclusão do processo de escolarização nesta fase
da vida. Neste caso do relato acima, a exclusão foi marcada pelo
abandono da escola sem concluir a primeira etapa do ensino
fundamental, levando a outro processo de exclusão, a do mundo
do trabalho, onde o desemprego é visto como o “flagelo do nosso
tempo” (FORRESTER, 1997), que tem levado muitos trabalha-
dores para a situação de rua. Nesse contexto,

289
A rua parece simbolizar a agonia e a morte social. O uso
da pinga pode ser interpretado como um analgésico que
possibilita aos indivíduos liberarem-se dos códigos –
amarras – aos internalizados e entrar num mundo
imaginário que afaste, pelo menos por curtos espaços de
tempo, as pressões sociais. Ela atua como mediador que
torna possível o desligamento do mundo das obrigações,
dos papéis sociais e o mergulho num outro plano de
realidade, que afasta a percepção do fracasso, faz esquecer
dores e decepções, enfim, torna suportável o cotidiano (
VIEIRA; BEZERRA;ROSA, 1994, p.102).

A população em situação de rua hoje é uma realidade


crescente nas nossas cidades como reflexo da estrutura
capitalista na relação capital/trabalho. As análises dessa
constatação não podem ser feitas desconectadas. Não podemos
naturalizar e nem culpar o sujeito por esse cenário de
desigualdade social que não é acidental, mas provocado por esse
modo de produção centrado no lucro, no acúmulo de capital e
na exploração do trabalho. Mas, torna-se fundamental
reconhecer a existência de um modo próprio de vida na rua, com
suas marcas, culturas e saberes, que precisam ser reconhecidos
pela escola.

Tenho 41 anos, a minha história de vida resume assim: eu


nasci em Muqui 9. Então, vim do interior, praticamente
assim. Eu fui tirada dos meus pais para poder trabalhar.
Essa história de ser tirada de meus pais, é uma proposta
que uma madame que chegou para a minha mãe, essa
pessoa, bem de vida, chegou para a minha mãe e sugeriu
a ela: ‘eu vou levar sua filha, vou colocá-la para estudar,
vou pagar a ela um dinheiro para ela te ajudar todos os
meses, e, de 15 em 15 dias, eu trago ela aqui’. Eu tinha 12
anos de idade. Eu disse para a minha mãe ‘mãe, eu não
quero ir, porque eu não sei, eu não sei fazer nada’. Ela
falava para mim que era só para eu fazer companhia para
a filha dela. Quando eu cheguei, dei de cara com um
recém-nascido de 4 meses, eu não sabia nem como mexer.
E dali eu vim pra Vitória, aqueles prédios imensos, quando

9 Município do sul do Estado do Espírito Santo.

290
eu vi aquilo, aquilo pra mim, nossa! Era um bicho de 7
cabeças. Eu nunca tinha saído do interiorzinho, da roça,
pra uma cidade enorme. De repente, foi um choque pra
mim... Eu vim embora, trabalhei nessa casa, acreditando
que ela ia me dar estudo, me colocar na escola, me pagar
um salário. Isso tudo foi uma ilusão, eu até chupava
chupeta ainda, eu entrava para aquele quartinho de
empregada doméstica pra dormir à noite, alí eu chorava,
ali eu me desabafava, ali eu falava com Deus, quanto
sofrimento! Eu acho, não precisava estar ali, preferia estar
na casa de meus pais, passando fome, comendo arroz
puro, quando tinha, ou quando não tinha, eu comeria a
polenta de banana, banana verde, entendeu? Que é o que
tinha para comer, ou uma sopa de aipim, que era o almoço,
ou que era a janta, ou às vezes, simplesmente uma
canjiquinha, é isso, Mas eu era feliz naquele lugar. Comia
aquilo, mas eu era mais feliz do que aquela proposta que
a madame tinha feito. Dali eu vim, ela não me deu estudo,
não me deu nada. Ela foi falando que eu tinha que lavar,
passar, arrumar, cozinhar, aí eu falava que eu não sabia,
e ela dizia, ninguém nasce sabendo minha filha, aprenda,
que ninguém nasce sabendo, se vire, vamos lá, tem que
aprender. Fui aprendendo, ali eu fui fazendo, entendeu?
Quando eu tive meus 15 poucos anos, ela me mandou
embora. Isso que eu fui embora eu já entendia um pouco,
que eu já tinha uma irmã que trabalhava aqui. Aí eu
comecei a andar com minha a irmã, eu comecei a lidar, a
conhecer mais, a ter mais conhecimento... Minha vida foi
um pouco difícil sim, mas hoje ela se resume em alegria,
porque eu trabalho em uma casa de advogados, que hoje
eu tenho uns cômodos estendidos atrás da casa de minha
irmã, eu não pago aluguel, graças ao que esses patrões
fizeram para mim. Então, quer dizer, eu sai do aluguel, eu
tenho um teto, eu tenho onde morar agora, eu tenho uma
casa, um quarto pros meus filhos, um quarto pra mim,
mas é nosso. O que me trouxe pra escola, é o quê? Eu
quero sim, me expressar melhor, escrevendo melhor,
lendo, e também assim, tentar recuperar o que ficou lá
atrás, que eu acho que nunca é tarde, quando a gente
quer. E hoje eu sou feliz (Estudante 5, 2018).

Esse relato é mais um dos casos da de violação de direitos


humanos uma vez que usurpa das crianças e adolescentes o seu

291
direito à educação, à própria vida, interferindo no desenvolvi-
mento físico, emocional e educacional. Para Costa e Calvão:

Se o trabalho infantil, por um lado, compromete


seriamente o desenvolvimento físico e intelectual da
criança, por outro, impetra a morte da vida infantil, ou
seja, inviabiliza o viver a infância, o que revela uma das
muitas contradições da ordem vigente. (COSTA e CALVÂO,
2005, p. 135)

A cultura da exploração motivada pelo abandono e a


pobreza, são determinantes para a prática do trabalho infantil,
empurrando crianças e adolescentes precocemente para o
trabalho. Há que considerar que muitas políticas de enfrenta-
mento do trabalho infantil foram implementadas no Brasil nos
últimos anos. Entretanto, a partir do golpe de 2016 e de forma
mais acentuada no atual governo, temos assistido um grande
retrocesso no campo das políticas sociais e, conseqüentemente,
já percebemos muitas crianças e adolescentes envolvidas em
trabalho infantil, inviabilizando a efetiva promoção do direito de
brincar, estudar, possuir convivência familiar e social.

Considerações Finais

Este texto teve como ponto de partida a narrativa dos


estudantes do 1º segmento da EJA do município de Vitória, no
que tange a categoria trabalho presente nos seus relatos. Em
suas histórias de vida marcadas pelo processo de exclusão da
escola, a relação com o trabalho é relatado de forma recorrente
a partir da expropriação, precarização, assédio moral e sexual
no trabalho, desrespeito às legislação trabalhistas, etc.,
revelando a face cruel de uma sociedade que ainda trás as
marcas da história de colonização, por meio da invasão dos
portugueses, pela catequização dos povos indígenas, pela
escravidão dos negros, pelo capitalismo dependente, ou seja,
pelas formas diversas que até hoje perduram, subjugando os
trabalhadores como inferiores e como mão-de-obra servil.
Por isso consideramos importante dividir com o leitor
nossas surpresas, inquietações, indignação e, também, os

292
indícios de que, apesar das dificuldades, da opressão, das resis-
tências, há também nessas narrativas um sentimento de
superação e de coragem para lutar por melhores condições de
vida. No tecer dessas histórias de vida contadas pelos
estudantes, há um sentimento que pudemos perceber e
compreender: a crença na instituição escolar. Esse sentimento
alimenta forças e deixa marcas daquilo que os tornam tão
convictos que a escola é um lugar de recomeço, uma instância
de lutas, e, ao mesmo tempo um lugar de sonhos e esperanças.

Referências

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294

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