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Trabalho e práxis
qual lado do conflito de classes preten- de contribuições fundadas em desenvolvimentos teóricos e empíricos que ciam de boa parte dos estudos acadêmicos
dem se alinhar. reforçam a atualidade de categorias fundantes do marxismo e estimulam o produzidos numa universidade premida
desenvolvimento de uma perspectiva crítica e transformadora. Constitui- pelas pressões produtivistas, pela concor-
-se como leitura obrigatória para todos aqueles interessados na compreen- rência e pela lógica individualista do de-
LALO WATANABE MINTO | UNICAMP são das “novas configurações” e comprometidos com a superação dos “ve- sempenho. São estudos que “conversam”
lhos dilemas” que perpetuam a exploração do trabalho na nossa sociedade. entre si, a despeito de suas temáticas se-
rem tão variadas. É uma obra de combate,
PATRÍCIA ROCHA LEMOS | UNICAMP que visa fundamentar a luta em distintas
trincheiras, mas todas elas conectadas pela
perspectiva de que do modo de produ-
ção capitalista nada se deve esperar para
o futuro. Especialmente na configuração
que assume nas últimas décadas, domina-
do pelas formas fictícias de capital e pela
necessidade de ampliar a níveis ainda mais
bárbaros a exploração da força de trabalho.
É leitura fundamental para quem
pretende apreender aquilo que Marx,
no livro 3 d’O Capital, afirmava ser a
LUTAS ANTICAPITAL
Trabalho e Práxis:
novas configurações, velhos dilemas
1ª edição
LUTAS ANTICAPITAL
Marília/SP - 2021
Editora LUTAS ANTICAPITAL
Editor: Julio Hideyshi Okumura
ISBN 978-65-86620-45-0
CDD 331.128
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Ficha elaborada por André Sávio Craveiro Bueno CBR 8/8211
FFC – UNESP – Marília
Apresentação.........................................................................19
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atividade de construção e lapidação do ser humano enquanto
ser social (é o resultado e o meio de formação de sua consciência,
o sedimento basilar pelo qual se erige como demiurgo da
história). Mas, o trabalho também é a mais precoce e talvez uma
das mais viscerais formas de exploração do ser humano pelo
próprio ser humano, pois, sendo o alicerce da produção social
(material e imaterial), quando na condição de uma atividade
sujeita à exploração alheia (como é o caso do trabalho
involucrado na forma mercadoria, no capitalismo), se manifesta
na vida do ser humano como alienação, estranhamento,
agressão, vilipêndio, roubo, sofrimento, tortura.
Daí a necessidade de se lançar luz sobre a “riqueza e a
miséria” inerentes a essa atividade social, parodiando aqui,
nesse didático par dialético, o título de outra coletânea (com
vários volumes) de estudos, organizada por Ricardo Antunes, da
Universidade Estadual de Campinas 2. Isso significa que, na
análise do trabalho como atividade social, embora seja
necessário exporem-se as formas de sua exploração, não se deve
fazê-lo desarticuladamente das potencialidades que esta mesma
atividade contém no processo histórico pelo qual o ser humano
constata – e age no sentido de libertar-se de – toda sorte de jugo.
Se o trabalho é um meio de exploração de um ser humano por
outro, é ao mesmo tempo – e ineludivelmente – a arena da vida
social a ser disputada e vencida pelos/as explorados/as na
longa marcha de libertação de toda a sociedade de qualquer
forma de exploração.
Lutar pelo fim do trabalho tout court ou pela mera
redução do tempo de trabalho heterônomo, como advogam
correntes lafarguianas, constituem movimentos limitados –e até
traiçoeiros, pois podem vir a contribuir para escamotear a
exploração no (e pelo) trabalho. Exploração esta que se
metamorfoseia nos discursos que pintam uma sociedade em
que, supostamente, se labora cada vez menos, quando em
verdade não se permite outra coisa que não seja – e com sorte! –
trabalhar a fim de reproduzir-se a si como força de trabalho.
Exploração que se refaz com o advento de novas mediações
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tecnológicas e reformulações jurídicas que alteram continua-
mente os padrões de venda, compra e usufruto do trabalho como
mercadoria, prometendo subverter a penúria, o claustro e a
servidão em prol da flexibilidade, da criatividade e da autonomia,
embora, na concretude dos fatos, tudo isso não passe de novos
métodos mais eficazes de extração de trabalho não-pago e de
erosão das garantias de reprodução da vida daqueles/as que
dependem de alienar o próprio trabalho (ou seus resultados
imediatos) para simplesmente sobreviver.
O contexto no qual o presente livro se insere é, portanto,
não apenas de profusão de pesquisas sobre a temática do
trabalho, mas também de batalhas entre as classes sociais e de
um brutal ataque às condições de vida da classe trabalhadora.
Um cenário no qual esta classe, seja nos países capitalistas
centrais ou periféricos, encara uma dupla tragédia. De um lado,
o desemprego e a precarização (com fim das já pífias garantias
asseguradas nos contratos formais, ao lado do incremento da
informalidade e de modalidades de emprego travestidas de
prestação dita “autônoma” de serviços). De outro lado, a perda
de direitos mínimos de seguridade social presente e futura. A
conjunção dessas dinâmicas pari passu à difusão de narrativas
ideológicas que colorem o trabalho como uma atividade de livre
escolha e mediada por puro mérito, têm tido como efeito uma
neutralização das reivindicações trabalhistas e uma diluição da
consciência de classe.
O fato é que este livro também vem à lume em um
contexto no qual o modo de produção capitalista tem
desencadeando mais uma de suas crises colossais. Após
seguidos anos de recessão econômica e de dilapidação das
parcas conquistas sociais mais recentes – desordem esta que foi
o fruto de uma crise financeira de âmbito global cuja explosão
ocorreu em um dos países centrais desse sistema, os EUA, em
2007 – o mundo inteiro submergiu numa pandemia viral que
destroçou ainda mais os povos já atingidos pelas tragédias do
sacrossanto “livre” mercado.
É de se esperançar que esse cenário dantesco abra uma
brecha histórica para a classe trabalhadora refletir e
compreender, de forma mais tátil e clarividente, o nível de caos
social a que se pode chegar quando se necessita, de um
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momento para outro – como ilustra o caso da pandemia de
Covid-19 – lançar mão de estruturas públicas, regras de convívio
social e métodos de planejamento que são inerentemente
ausentes do modo de produção capitalista, baseado no
moralismo farsesco, na selvageria concorrencial e na guerra de
todos/as contra todos/as.
A crise global pós-2007 e a pandemia de Covid-19 proveu
o mundo das provas mais cabais do quanto a estupidez, o
despreparo e a brutalidade são o único legado do capitalismo
que, desde 1989 (ao menos simbolicamente a partir daí) tornou-
se um sistema social totalitário, atingiu proporções de fato
globais. As condições de um julgamento sobre a viabilidade do
capitalismo estão postas como cartas abertas e justamente por
isso os grandes oligopólios não tardaram em chutar a própria
mesa, patrocinando golpes de Estado, think tanks conspiratórios
e uma infinidade de movimentos sociais liderados por filósofos
charlatões e religiosos fundamentalistas, que, duzentos anos
atrás (ou mais), seriam recebidos, no mínimo, com deboche na
cena pública – mas, hoje, são ministros.
Assim, a luta pelo entendimento sobre os limites do modo
de produção capitalista é, atualmente, num claro retrocesso da
própria revolução burguesa, uma batalha pela formação (e
informação) de base científica, laica, pública, gratuita e – mais
do que nunca – comprometida com a emancipação humana de
todas as formas de exploração. Daí o frescor, a agudeza e a
urgência das pesquisas que este livro traz.
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Embora exprimam a influência do pensador marxista
húngaro Gyorgy Lukács, as investigações e atividades
extensionistas do Grupo de Pesquisa Trabalho e Práxis
contemplam uma diversidade maior de horizontes teóricos.
Acima de tudo – disse-nos um dos membros, Vinicius Tomaz
Fernandes, que coorganiza esta obra – há “uma preocupação
latente em movimentar a teoria no sentido da transformação
social, confrontando-a com temas do presente, sem esquecer das
continuidades históricas”. E conclui: “a diversidade de caminhos
[do grupo] reside precisamente nesse aspecto”, ou seja, na
transformação social, “o que culmina por nos conectar com o
que há de melhor na tradição marxista”.
A atuação extensionista é, aliás, um dos diferenciais
dessa performance teórico-prática ativa, dessa práxis inerente
ao trabalho do grupo. Desde 2018, eles/as mantêm um projeto
de extensão voltado à formação de professores/as envolvidos na
Educação de Jovens e Adultos (EJA) no município de Vitória. E
parte significativa dos estudos que vêm realizando se dirige à
produção de conteúdo para a disciplina “Fundamentos do
Mundo do Trabalho”, que atualmente compõe parte do processo
de implementação do EJA profissional na capital capixaba. Este
é o tema dos dois últimos capítulos do livro.
Antes e para além dessa temática, o/a leitor/a terá a
oportunidade de atravessar na obra um conjunto de textos que
abrangem, de forma crítica, as mais diferentes facetas do
capitalismo atual. Como, por exemplo, o capítulo de abertura,
que aborda a figura do chamado microempreendedor individual
(MEI), seus aspectos ideológicos, a regulação jurídica e as formas
de ser dessa modalidade de (auto)exploração dos/as que
dependem do próprio trabalho para sobreviver na sociedade
brasileira. É perspicaz a forma como o assunto é tomado, pois
no texto se demonstra como se trata de uma tendência do capital
a mobilizar e consumir a força de trabalho dentro da lógica
toyotista do just in time, mas acrescida do embuste persuasivo
de que os/as trabalhadores/as, sendo portadores/as da
mercadoria força de trabalho (da qual se alienam para
sobreviver), são também possuidores/as de capital, de “capital
humano”.
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Há uma bem-vinda depuração nesse texto das
implicações dessa farsa, trazendo à tona que se trata de uma
racionalidade mercantil que invade e ultrapassa a subjetividade
dos/as trabalhadores/as, chegando à própria atividade estatal,
influenciando as políticas sociais ao modo de levar adiante o
projeto societário que há quase meio século se conhece por
neoliberalismo – e que tem no Estado uma ação fundamental,
diz o autor, na “[...] introdução, na economia e na sociedade, da
lógica de modelo empresa e da concorrência”. A novidade, além
da conhecida precarização das condições de vida da classe
trabalhadora com um todo (informalidade, baixa remuneração,
distribuição desigual de renda), é o advento de um nefasto auto-
sentenciamento de incapacidade por parte daqueles/as que
fracassam em suas investidas, ao lado da pérfida narrativa de
self-made man por parte dos/as supostos/as vencedores/as (em
um universo que, segundo dados de 2019 apontados no texto, a
renda per capita dos MEI no Brasil foi de R$ 1.375 mensais).
Uma interessante e fluente sequência é dada ao assunto
pelo segundo capítulo, que aborda a precarização de uma
categoria de trabalhadores/as que já é bastante atingida pela
informalidade: os/as jornalistas. O objetivo do texto foi focar os
impactos decorrentes da introdução cada vez mais massiva das
Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) nessa
atividade profissional. Novamente, uma abordagem atual e
relevante de uma das facetas do capitalismo, um vez que o
capítulo explora como as mediações sócio-técnicas digitais e a
plataformização do trabalho ocorrem numa atividade cujo
produto é, por assim dizer, de conteúdo predominantemente
imaterial, mas que resulta de um dispêndio brutal de nervos,
músculos e energia vital dos/as trabalhadores/as, consumidos
por maquinaria informacional que é concentrada por oligopólios
capitalistas. O capítulo tem, por isso, um propósito à parte:
averiguar a alienação em curso nesse processo, o que exige do
autor uma digressão acerca não só deste conceito presente no
léxico hegeliano e marxiano, mas da própria ontologia do ser
social no trabalho jornalístico.
A concepção ontológica lukacsiana do trabalho e o
resgate do conceito de alienação ensejam o assunto que é o tema
do terceiro capítulo da obra, que é a (re)produção da força de
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trabalho – ou, de modo mais amplo, o cotidiano dos/as
trabalhadores/as. O autor toma como objeto de crítica a forçosa
separação do cotidiano entre tempo de trabalho, de um lado, e
tempo livre (ou fora do trabalho), de outro. Clivagem esta
imposta pela realidade estranhada do capital, mas que invade a
própria teoria social. Novamente, o processo de alienação é um
dos centros do debate e sua problematização vai então penetrar
os recônditos das atividades de lazer da classe trabalhadora, ou
pelo menos aquelas que se apresentam como supostamente
privadas ou livres do trabalho imposto. Argui-se que também aí
se manifesta a lógica mercantil capitalista, afinal, a atitude
competitiva, o individualismo e outros elementos que compõem
o protótipo do/a trabalhador/a perfeito aos olhos da gerência
capitalista, são aí elaborados, esculpidos, aperfeiçoados, nessas
esferas de sociabilidade que se situam além (mas dependentes)
do trabalho estranhado. E uma das repercussões disso – nos
aponta argutamente o autor – é o crescente adoecimento
psicossocial e psicossomático, manifesto no auto-isolamento,
nas doenças como as lesões por esforços repetitivos, entre outros
agravos.
A (re)produção da força de trabalho e da própria classe
trabalhadora não poderia ser discutida, por sua vez, sem a
questão do trabalho das mulheres. Eis o tema do quarto e do
quinto capítulo da obra. No primeiro, faz-se um debate acerca
das concepções e das intersecções entre capitalismo e
patriarcado, problematizando-se a apropriação das teses
marxistas por certas correntes do pensamento feminista. Para
tal, lança-se luz sobre textos específicos de Heidi Hartmann, Iris
Young e Cinzia Arruzza, bem como se revisita a obra do próprio
Marx, advogando-se, ao final, pela importância de se pensar o
capitalismo e o patriarcado como processualidades históricas
integradas (e não apartadas). Segundo a autora, em que pese ser
preciso admitir que o patriarcado precede historicamente o
modo de produção capitalista, este eleva aquele “[...] a um novo
patamar, cujas particularidades e singularidades podem ser
expressas em pesquisas empíricas”.
O quinto capítulo traz uma reflexão igualmente
formidável sobre o tema, focando-se sobre as particularidades
da exploração da força de trabalho das mulheres no modo de
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produção capitalista. Além da riquíssima revisão bibliográfica,
traz apontamentos que constituem uma base teórica e um
roteiro para pesquisas em diversas direções sobre a temática.
Para a autora cubana, o capitalismo assimila e instrumentaliza
dentro de seu expansionismo a divisão sexual do trabalho,
combinando-a com outros fatores (como a origem nacional e/ou
étnico-racial dos/as trabalhadores/as) na configuração sempre
dinâmica das formas de exploração do trabalho. O labor da
reprodução recebe, ademais, também uma atenção especial
nesse texto, sendo tomado de modo ampliado em suas
dimensões e implicações, num diálogo crítico contra acepções
reducionistas, que, presas à ortodoxia da economia política (e
mesmo à crítica marxiana desta), não reconhecem tal atividade
como imprescindível à reprodução do capital (ainda que não se
trate, em todas as situações, de um trabalho que produza mais-
valia – e nem mesmo, em certos casos, de um trabalho que está
convertido na forma mercadoria).
Se a interseccionalidade entre gênero e exploração do
trabalho foi objeto do quarto e quinto capítulos, o
entrelaçamento com a questão racial é o tema do sexto capítulo,
que aborda – retomando assunto já encetado no texto de
abertura da obra – a ideologia do empreendedorismo, mas agora
dentro de uma abordagem em que se expõem os diferentes
aspectos dos chamados “empreendedorismo por necessidade” e
“empreendedorismo por oportunidade” entre a população negra
no Brasil. Segundo dados recentes expostos no texto, do total de
“empreendedores/as” brasileiros/as, 51% se autodeclaram
negros/as, tendo 34% sido levados/as a inaugurar uma
atividade econômica própria por pura necessidade, isto é, como
enfrentamento da falta de alternativas de renda (portanto, a
minoria “empreendeu” por oportunidade, ou seja, decidiu
inaugurar uma atividade ao constatar um potencial inovador
dela no mercado). Não por acaso, a maioria desses/as
empreendedores/as foi para os ramos da alimentação e
vestuário, que, via de regra, exigem menor capacitação técnica e
investimentos iniciais. Além de mostrar esses aspectos, o sexto
capítulo também aponta como o trabalho desses/as
empreendedores/as afrodescendentes, para além da reprodução
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de sua existência nos limites do capitalismo, tem contribuído
para os movimentos sociais em prol da luta antirracista.
Desse arrazoado geral sobre a obra, cabe tratar de mais
quatro capítulos. Um deles, o sétimo na ordem de apresentação,
também é parte dos esforços do Grupo de Pesquisa Trabalho e
Práxis em retratar a condição laboral das mulheres brasileiras;
mas, neste caso, em uma situação atípica: o trabalho
remunerado no cárcere. Com base em uma pesquisa de campo
realizada no Centro Prisional Feminino de Cariacica, a autora
traz uma série de informações sobre o modo como essa atividade
vem sendo levada a cabo no Estado do Espírito Santo, que
ostenta uma recente construção de fábricas em presídios via
parcerias entre entidades públicas e agentes privados,
permitindo a exploração comercial da força de trabalho dos/as
presos/as.
O caso analisado no texto é o da produção de sapatos
infantis, que se desdobra integralmente – desde a montagem até
a embalagem final – em um anexo produtivo construído ao lado
do referido presídio. Trata-se de um capítulo muito rico, pois na
série de excertos de entrevistas concedidas pelas trabalhadoras
encarceradas, é dado perceber a dialética – a riqueza e a miséria
– do trabalho. De um lado, está a exploração comercial do labor
das prisioneiras em condições lamentáveis, que vão desde a
baixa remuneração (até ¾ do salário mínimo vigente) e os
contratos precários (sem 13º. salário nem recolhimento de
impostos), à imposição de posturas forçadas (em pé) nas
jornadas, ao contato com produtos químicos nocivos, aos
acidentes com perfuração nas mãos em máquinas, tudo em meio
a péssimas instalações e igual higienização dos locais. Ou seja,
um prato cheio para o capital. De outro lado, a chance dada a
essas mulheres de ficarem horas para fora das insalubres celas
(uma das entrevistadas afirma que “é melhor ser escravizada
trabalhando do que ficar na cela”), a possibilidade de redução da
pena e ainda de enviar dinheiro à própria família (a maioria
proveio de situações de vulnerabilidade social), e – o que talvez
fosse inimaginável, mas é revelador da inextinguível ontologia
social de todo ato de trabalho humano – o dinamismo social e
subjetivo engendrado nessas mulheres (até mesmo em tais
situações) e que transparece em determinadas falas.
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O oitavo capítulo propõe-se justamente a sondar as
possibilidades de realização do trabalho, tendo por base uma
proposta que, ainda que vigente sob o capitalismo, oferece-se
como alternativa – a economia solidária. No caso, a análise recai
sobre uma rede de coletivos denominada Fora do Eixo (FdE),
que, estruturada por meio de associações que atuam na
promoção de eventos culturais (nas áreas de música, teatro,
dança etc.), propôs novas metodologias de trabalho (tendo,
inclusive, como parte de sua proposta, a ideia de um aporte de
meios de produção por parte dos/as próprios/as integrantes). O
capítulo, ao analisar as relações de trabalho aí presentes,
questiona a atuação dessa rede de coletivos, buscando
demonstrar como ela compete agressivamente (principalmente
por recursos públicos) mediante a oferta de serviços a preços
muito baixos, obtidos pela atuação dos/as seus/suas
integrantes, que sustentam a rede (auto)explorando o próprio
trabalho.
Sucede este texto o nono capítulo do livro, que retrata as
políticas públicas voltadas aos trabalhadores/as desempre-
gados/as na Argentina. Por meio de minuciosa pesquisa sobre a
miríade de programas que surgiram para enfrentar o
desemprego no país vizinho durante o difícil período de 2002 a
2011 (em que a Argentina enfrentou uma grave crise social e
econômica), o estudo conclui que tal esforço do Estado não
logrou mais do que sustentar as necessidades de acumulação de
capital, pois foram mantidas (e aprofundadas) as condições de
flexibilidade – para o capital – na contratação de trabalha-
dores/as, no uso de jornadas fragmentárias, na baixa e variável
remuneração ofertada, entre outros pontos (como direitos de
férias, de aposentadoria etc.) que já vinham sendo alvo de ataque
desde os anos 1990, quando o país mergulhou (ou naufragou)
no neoliberalismo. De modo que a retomada da economia da
Argentina nos anos mais recentes já vem marcada por uma
clivagem ainda mais funda na composição de sua classe
trabalhadora, que se apresenta cada vez mais dividida entre
os/as poucos/as que detém modalidades de trabalho ainda
formais e uma massa crescente de pessoas que atua na
informalidade, dependentes de atividades intermitentes e
intercaladas por momentos de desemprego ou desalento. Um
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cenário que aclara como o neoliberalismo fez da pujante nação
argentina um campo de força de trabalho de excelente
qualificação e baixo custo ao capital – que, por meio de seus
setores financeiros, prossegue sorvendo a vitalidade do país
também pelas veias da dívida pública.
Por fim, cabe mencionar o capítulo décimo dessa obra,
que, justamente tendo por foco uma crítica à penetração do
neoliberalismo em todas as esferas da sociabilidade, traz uma
interessante abordagem – mais do que isso: uma proposta – de
uso do espaço urbano das cidades enquanto uma ferramenta de
educação não formal. O texto aponta que o conhecimento do
espaço urbano, mediado pela história, constitui uma excelente
forma de apropriação deste recurso pelas pessoas que vivem na
cidade. Um processo que permite aos/às moradores/as
desenvolver uma visão complexa e crítica sobre os
desdobramentos da elaboração dos equipamentos públicos e das
escolhas presentes em cada realização, demonstrando como a
configuração do espaço urbano resulta de embates sociais, da
luta entre as classes que o habitam. Uma proposta de prática
formativa esta que, nas palavras da autora, não só une a
educação escolar e os espaços não formais, como estimula “[...]
a consciência histórica dos sujeitos, desmistificando a ideia de
aparente liberdade e ocupação igualitária da cidade”.
***
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trabalho morto, o qual consome trabalho vivo repetida e
interminavelmente com o mesmo fito), é fonte de expurgo de toda
atividade criativa, de toda autonomia e liberdade – e como tal é
a causa maior da miséria humana, seja pelo desemprego, ou pelo
adoecimento e morte no trabalho exaustivo, seja enquanto fonte
de cegueira e intransigência política e cultural.
Não por acaso, as atividades de pesquisa, ensino e
extensão de professores/as e de estudantes de grupos como
este, atuantes na área de Humanidades, têm sido alvo de um
sistemático desmanche por parte de governos, como se pode ver
pelos cortes de bolsas, pelo sucateamento e enxugamento das
universidades públicas no Brasil nos anos recentes. Afinal, tais
governos dependem tanto da abundância da acumulação de
capital (o que não se deve traduzir exatamente por crescimento)
para ascender ao posto de controle da res publica, quanto
também – para aí manterem-se acastelados como paladinos da
natipútrida democracia burguesa – da formação de uma cultura
política servil e messiânica no povo. E para isso lançam mão
(indo além da violência policial e do controle dos tribunais) da
propagação de desinformação em larga escala e de tecnologias
de vigilância digital.
Mas, nada é tão simples e nem tudo é para já. O
capitalismo, no seu moto-contínuo, tem de lidar com a natureza
dialética da história. Em poucas palavras: o trabalho e a classe
trabalhadora são o seu substrato inexpugnável. São o seu
manancial e também o seu maior “pesadelo”, cuja descrição
épica está memoravelmente registrada na canção homônima de
Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, de 1974: “Você corta
um verso, eu escrevo outro; você me prende vivo, eu escapo
morto; de repente... olha eu de novo, perturbando a paz, exigindo
o troco”.
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Apresentação
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mensionalidade e riqueza nos olhares, debates, pesquisas e
projetos desenvolvidos pelo grupo.
O desejo permanente de analisar criticamente nossa
sociedade e de contribuir desde a teoria e prática acadêmica,
científica e militante com sua transformação, tem unificado a
atuação do nosso grupo. Assim, com seis meses de
funcionamento do grupo, em 17 de outubro de 2017, decidimos
oficializá-lo sob o nome “Trabalho e Práxis”, expressando sua
vocação na atuação para além dos muros da universidade.
No mês de novembro daquele mesmo ano, João Alves,
servidor da Secretaria municipal de Educação do município,
entrou em contato com o intuito de realizar uma parceria para
atuação na implementação da Educação de Jovens e Adultos
(EJA) Profissional em Vitória. A ideia era conceber uma EJA
Profissional não tecnocrática, mas com uma concepção ampla e
crítica do mundo do trabalho. Os/as membros do GPTP
aceitaram o desafio com muita alegria.
Em 2018, o Professor Rafael Bellan, recém-concursado
na UFES, foi convidado a co-coordenar o Grupo de Pesquisa,
passando a compor e atuar fortemente na formação dos
estudantes. Com dois docentes, foi possível organizar melhor a
sistematização das atividades do grupo.
Com temáticas semestrais de estudos, com acento nas
bases teóricas de Marx, o GPTP tem desenvolvido debates tais
como: método do materialismo histórico dialético, teoria do
valor-trabalho, trabalho material/imaterial, trabalho produtivo/
improdutivo, superpopulação relativa, trabalho plataformizado,
dentre outros. Integrando uma perspectiva teórico-política
classista, antirracista, anti-patriarcal, anti-lgbtfóbica e
latinoamericanista. Desenvolvendo, enfim, um olhar crítico e
plural.
Uma série de eventos com docentes/pesquisadores/as
convidados/as foram promovidos e abertos a toda a
comunidade. Foram realizados dois lançamentos de livros, tendo
sido o primeiro com o professor e pesquisador Geraldo Augusto
Pinto (UFTPR) que lançou o livro em co-autoria com o professor
Ricardo Antunes (Unicamp), chamado “A fábrica da educação”,
pela editora Cortez; e o segundo, em co-realização com o Grupo
de Estudos Financeirização e Dinheiro Mundial, coordenado
20
pelo professor Paulo Nakatani, que lançou, dentre outros livros,
o “Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil IV”, organizado pelo
Professor Ricardo Antunes (Unicamp), pela Editora Boitempo,
com capítulos de Lívia Moraes e Fagner Santos, do GPTP.
O “1º Ciclo de Debates do Grupo de Pesquisa Trabalho e
Práxis”, aconteceu em dezembro de 2018. Contamos com a
contribuição dos professores doutores Victor Neves (UFES) e
Marcelo Húngaro (UNB), que abordaram a temática de
decadência ideológica; e Lalo Watanabe Minto (Unicamp), que
fez uma explanação com o tema ""Heteronomia e produtivismo:
ainda há espaço para o trabalho intelectual na universidade
pública?"
Algumas palestras também foram organizadas, para
apresentar resultados de pesquisas em torno do mundo do
trabalho, tais como “Enigma do precariado: debates a partir da
sociologia do trabalho”, com Vinicius Tomaz Fernandes
(Ufes/Unicamp) e “Custo baixo todo dia: regime de trabalho no
Walmart Brasil”, com Patrícia Rocha Lemos (Unicamp)
Ainda, com relação à atuação junto à comunidade
externa da universidade, em 2020, foi ampliada a atuação de
extensão, agora junto à EJA Profissional da Secretaria Estadual
de Educação do Espírito Santo, sob coordenação de Mariane
Berg. Docentes, pós-doutorandos e estudantes realizam
quinzenalmente formação de mais de uma centena de
professores da educação básica, somando-se EJA municipal e
estadual.
Em contexto de covid-19, o Grupo de Pesquisa Trabalho
e Práxis não deixou de atuar e criou uma nova atividade de
extensão para divulgação científica com temáticas que tratassem
dos impactos da pandemia sobre a classe trabalhadora e o
mundo do trabalho. Com a série de lives “Vida acima do lucro”,
desenvolveu, de abril a outubro de 2020, semanalmente,
debates qualificados sobre temas variados, tais como:
precarização e intensificação do trabalho; os dilemas da
reprodução social; saúde/adoecimento na pandemia, sexismo,
racismo e capacitismo sob incidência da covid-19; impactos
conjunturais em diversos países da América Latina, dentre
outros. Aos/às pesquisadores/as que aceitaram aos nossos
21
convites, somos gratos/as pela participação nesse espaço de
troca e aprendizagem.
A esta altura, o Grupo de Pesquisa Trabalho e Práxis é
composto por estudantes de graduação em Serviço Social,
Ciências Sociais, Design, Jornalismo, Letras, Direito e Geografia,
além da pós-graduação em Política Social e Educação.
Estudantes de outras universidades também participam do
grupo, tais como IFES, UVV e Fucape. Nacionalidades de vários
países também compuseram/compõem o grupo: Cuba,
Argentina, Uruguai, França e, claro, Brasil. O livro “Trabalho e
Práxis: novas configurações, velhos dilemas” é síntese desta
nossa pequena, mas profícua, história. Os artigos que
conformam o livro expressam os resultados das pesquisas de
seus membros, em seus diversos níveis acadêmicos e áreas de
formação. Por esse motivo, a grande a diversidade de temáticas
no sumário.
Estamos felizes em concretizar mais uma forma de
contribuir, mesmo que minimamente, a partir das nossas
pesquisas, com interpretação crítica da nossa realidade.
Desejamos a todos/as uma boa leitura. Com o convite, é claro,
para nos encontrarem nos espaços de atuação do GPTP, para
juntos/as continuarmos pensando, debatendo, transformando e
sonhando com a utopia revolucionária de uma sociedade por
oposição, ruptura e superação com a lógica do capital.
22
Individualização das relações de trabalho:
uma abordagem a partir do
Microempreendedor Individual (MEI)
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Introdução
23
reprodução do capital em sua fase contemporânea. Nesse
momento, os dois conceitos desenvolvidos são a individualização
das relações de trabalho e a força de trabalho just-in-time. A
segunda parte do artigo expõe as determinações de médio e curto
alcance da análise sociológica, evidenciando o caráter ambiva-
lente do MEI no mercado de trabalho brasileiro. É nesse ínterim
que tocamos nos temas do trabalho autônomo, formalização,
viração e pejotização das relações de trabalho.
Não se trata, por um lado, de compreender o MEI por ele
mesmo, tal como um ente isolado. Por outro, também nos
afastamos da perspectiva que o trataria apenas como decalque
da lógica do capitalismo em escala global. Faz-se necessário
compreender suas determinações em suas múltiplas dimensões,
bem como observar o caráter contraditório que cerca o
fenômeno.
24
certo bem e iniciado o processo produtivo, haja verdadeiramente
necessidade de seu trabalho.
Combinado a esse fenômeno, desenvolvem-se modali-
dades de trabalho cada vez mais individualizadas, nas quais o
trabalhador constitui uma mistura de “burguês-de-si-próprio” e
“proletário-de-si-mesmo” (ANTUNES, 2018). Isto é, ele não
atuaria mais apenas como trabalhador, vendedor da força de
trabalho, mas entendido como sujeito portador de “capital
humano”, devendo atuar como uma empresa individual que se
relaciona com outros agentes econômicos no mercado. Tais
movimentos se expressam, de forma complexa e desigual, em
nível nacional e internacional: se na realidade brasileira é
possível exemplificar a partir do MEI, poderíamos mencionar,
noutros países, os contratos de zero hora na Inglaterra, o
trabalho a voucher na Itália e os recibos verdes de Portugal.
São novas modalidades de trabalho que articulam o
léxico neoliberal, ensejando as perspectivas de “empreende-
dorismo”, “empregabilidade”, “flexibilidade”, “empoderamento”,
entre outros, que atuam ideologicamente com o intuito de
legitimação e autoculpabilização sobre os trabalhadores. Trata-
se, na ótica de Dardot e Laval (2016), de uma nova razão do
mundo – a razão neoliberal – que impõe aos sujeitos uma forma
de agir empresarial, tornam-se “empreendedores de si mesmos”.
Além de corresponder a uma doutrina econômica, o
neoliberalismo também produz relações sociais determinadas,
isto é, influi nas formas de comportamento dos indivíduos em
sociedade e deles – os indivíduos – sobre si mesmos. Produz-se
uma nova subjetividade. Nesse sentido, além de uma corrente
de pensamento e um conjunto de políticas econômicas e sociais,
o neoliberalismo se constitui como uma nova racionalidade – dos
governantes e dos governados – baseada no modelo empresa.
Nessa interpretação, o governo não é entendido apenas
como uma instituição, mas, sobretudo, como uma atividade: as
técnicas e procedimentos que visam dar direção à conduta dos
indivíduos. Por conseguinte, as formas dessa atividade, em que
os homens exercem um governo e conduzem a conduta de
outros, é definida como governamentalidade. O neoliberalismo
não consistiria tão somente como uma resposta à crise de
acumulação, mas a uma crise da governamentalidade e, para
25
tanto, fazendo-se necessário reinventá-la, isto é, introduzir uma
nova forma de orientar as condutas e práticas dos indivíduos, a
partir da forma-empresa e de uma subjetividade contábil
(DARDOT, LAVAL, 2016).
A racionalidade de mercado, portanto, exerce
dominância na atividade de governo e na construção da
subjetividade. Por um lado, ela mercantiliza radicalmente as
diversas dimensões da vida social e estabelece uma sistemática
concorrência entre os indivíduos. Por outro, na subjetivação
contábil-financeira, ela refaz a relação do indivíduo consigo
mesmo, que deve ser análoga à relação que se conserva entre
indivíduo e capital: em suma, o indivíduo enxerga a si próprio
como capital [humano], um valor que deve se valorizar na esfera
onde goza de maior liberdade, o mercado. É essa a libertação da
servidão moderna, a utopia hayekiana.
A ideia de Dardot e Laval (2016) acerca da governamen-
talidade neoliberal, com a generalização do modelo empresa e a
subjetivação contábil-financeira, conecta-se em grande medida
com a noção de trabalhador just-in-time enunciada por Francisco
de Oliveira (2000) 2. No momento de sua menção, o autor utiliza
o trabalhador just-in-time como sinônimo de trabalhador online,
isto é, aquele que deveria estar disponível para ser, via celular
ou pager, convocado ao trabalho. Remodelamos tal definição,
introduzindo o que concebemos como força de trabalho just-in-
time e demonstrando como ela se conecta com o mundo do
trabalho toyotizado e com indivíduo-empresa propagado pela
sociedade neoliberal.
A produção em série de mercadorias, homogeneizada e
massificada, dá lugar a uma organização da produção
responsiva às demandas do mercado, possibilitando que se
atendam as exigências de forma cada vez mais individualizada,
26
personalizada – trata-se de uma produção amplamente
conhecida como just-in-time. Ela não produz o máximo de
mercadorias que sua capacidade produtiva permite, já que o
risco é de que, não encontrando consumo correspondente, se
deteriorem. Nesse sentido – e apenas nele 3 – há uma determi-
nação da produção a partir da demanda.
Outra característica que nos cabe retomar é no manejo
do estoque. Se, para a produção em massa, exigia-se um grande
nível de estoques de matérias-primas, a produção just-in-time
reconfigura essa condição. Trata-se de operar com estoque
mínimo, realizando a reposição por meio do sistema kanban. O
estoque deve, portanto, responder à produção que, conforme
explicado, tem um grau de flexibilidade conforme se comporta a
demanda. Há, ainda pelo kanban¸ a vantagem de mobilizar
menos capital que permanecerá cristalizado em forma de
matéria-prima, permitindo maior mobilidade do capital parti-
cular.
Observemos que a produção flexível submete parte
significativa do capital constante – no caso, as matérias-primas,
já que não é possível fazer o mesmo com o maquinário – à
demanda do mercado. Por que o mesmo não poderia ocorrer com
o capital variável, a força de trabalho? Tendo a produção, sob o
signo da lean production, a capacidade de encolhimento e
expansão, a mesma lógica invade o padrão de compra e consumo
da força de trabalho, deslocando o antigo modelo de massifi-
cação do contrato indeterminado para contratos comumente
denominados como atípicos. É nesse sentido que se encontram
as pressões pela desregulamentação das legislações traba-
lhistas, que respondiam a um tipo de trabalho próprio do padrão
de organização do trabalho vigente anteriormente, em prol de
legislações que assegurem o máximo de liberdade para o capital
absorver e repelir força de trabalho encontrando o mínimo de
barreiras legais que limitem esses movimentos. Dessa forma, as
terceirizações e a descentralização produtiva se constituíram
como mecanismos do capital que possibilitam o movimento
anteriormente descrito de expansão e encolhimento de consumo
27
da força de trabalho, mas podendo não corresponder à forma
mais plena dessa mobilidade.
O ponto máximo do horizonte neoliberal, portanto, é da
oferta de força de trabalho just-in-time, não necessariamente
mediado por empresas, mas pelo indivíduo-empresa, dotado de
sua subjetividade contábil-financeira, ávido por valorizar a si
mesmo enquanto capital humano 4. Trata-se de assegurar a livre
mobilidade da força de trabalho, sem a regulação do Estado,
naquilo que é concebido como o único capaz de assegurar a
primazia do indivíduo: o mercado. Não se trataria da simples
retirada do Estado da economia, como comumente o neolibe-
ralismo é tratado na literatura sobre o tema. A oposição entre
mercado e Estado atrapalha na exata compreensão do
neoliberalismo enquanto tal, já que foi o próprio Estado um dos
grandes responsáveis pela introdução, na economia e na
sociedade, da lógica de modelo empresa e da concorrência.
Em suma, busca-se sintetizar com a força de trabalho
just-in-time é a necessidade, cada vez mais imperiosa, por parte
da reprodução do sistema capitalista de estabelecer relações de
trabalho gradativamente mais atomizadas, inclusive difundindo
o trabalho autônomo, “independente”, incentivando políticas de
pejotização e de empreendedorismo. Desta forma, aquilo que é
comumente tratado pela literatura como trabalho atípico
(VASAPOLLO, 2005), isto é, aquela modalidade de trabalho que
se afastaria do normal, configurando-se como anômalo e raro,
torna-se, ao contrário, cada vez mais difundido e habitual. Em
suma, tal como assinalou Castel (2010), aquilo que era
compreendido como atípico até o último quarto do século
passado se torna, imperiosamente, cada vez mais típico.
28
Se o período fordista correspondeu a um padrão de
contratação e gestão de força de trabalho coletivizado,
acompanhado por relativa homogeneização dos trabalhadores
(onde se destacaria o operariado fabril), o capitalismo flexível,
por sua vez, cofere ênfase a um padrão individualizado/
descoletivizado.
29
trabalhadores, reafirma o autor “Em outras palavras e
repetindo-o: para aqueles que não dispõem de outros ‘capitais’ –
não somente econômicos, mas também culturais e sociais – as
proteções são coletivas ou não existem” (CASTEL, 2005, p. 48).
Evidenciamos, portanto, que não há uma abolição da
coerção no mercado de trabalho, mas uma mudança qualitativa
do tipo de coerção e de seus mecanismos de funcionamento. A
sociedade disciplinar, cuja característica é a negatividade do
dever, cede espaço à positividade do poder, própria do sociedade
de desempenho. De acordo com Han (2015) essa alteração
corresponde a um ganho de eficiência, tendo em vista que o
sujeito de desempenho maximiza sua produtividade para além
do que realizava sob a força do dever e da obediência.
Liberdade e coerção se cosubstanciam. O imperativo que
cabe ao sujeito é de, no gozo de sua liberdade, maximizar seu
desempenho. Livremente coagido a se aplicar em uma
autoexploração. Tão acentuada quanto a avidez de sucesso e
realização, é a produção de fracasso e frustração. São diretas as
consequências pessoais deste modelo de individualização das
relações de trabalho. Aos adaptados, trata-se de desenvolvi-
mento de suas características empreende-doras. À massa de
não-adaptados, a preponderância é de angústia, medo, ressenti-
mento, raiva, ansiedade e depressão 5.
30
claro, nacional. No Brasil, são diversas as formas jurídicas, mais
antigas ou mais recentes, pelas quais se expressam esse
fenômeno. Desde a terceirização, em franca expansão desde a
década de 1990 (DIEESE, 2012; 2017), passando pelo MEI em
2009, até novas formas concebidas pela recente Reforma
Trabalhista, como o trabalho intermitente e o autônomo
exclusivo (CESIT, 2017).
Os exemplos supracitados vêm sendo, paulatinamente,
introduzidos na legislação brasileira e se expandindo no
mercado de trabalho, alcançando patamares quantitativos que
tornam essas formas condição sine qua non para compreender
as relações de trabalho no país. Importa considerarmos,
também, as características estruturais do mercado de trabalho
brasileiro, estabelecendo uma mediação em nível nacional das
tendências supracitadas.
Em que pese a aceleração da economia brasileira entre
as décadas de 1930 e 1980 e, a existência de uma legislação de
regulação do trabalho (materializada na CLT), o mercado de
trabalho brasileiro é marcado pela assimetria na relação entre
capital e trabalho, constituindo-se historicamente com um
caráter flexível e precário. Ao longo do tempo, determinadas
características estruturais se mantêm presentes, tais como: o
excedente estrutural de força de trabalho, a informalidade, a alta
taxa de rotatividade, alta informalidade, baixos salários e a
distribuição desigual de renda (KREIN, 2013).
Em síntese, ao lado de empresas e segmentos
estruturados, desenvolve-se um vasto leque de trabalho
informal, pequenas empresas e trabalho por conta própria que
passam ao largo das legislações e de qualquer proteção das
instituições públicas ou do sindicalismo. Não se tratam de
novidades recém introduzidas, mas, pelo contrário, formas
pretéritas que perduram, se metamorfoseiam e se atualizam.
Nos anos 2000, mesmo com avanços dos indicadores do
mercado de trabalho, como, por exemplo, na crescente
formalização, a tendência da flexibilização se expressou em
situações de heterogeneidade do mercado de trabalho e na
persistente precariedade das condições de trabalho. Apesar de
31
serem porta para o acesso a direitos sociais, as relações formais
de emprego não se constituíram como sinônimo de qualidade.
Concebido no âmbito do Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social (CDES) 7 e efetivado a partir do ano de 2009 8,
o Microempreendedor Individual (MEI) se expandiu e se
consolidou enquanto forma jurídica no mercado de trabalho
brasileiro. Seu objetivo inicial consistia na formalização de
trabalhadores autônomos de baixa renda (COSTANZI,
ANSILIERO, 2017), com a finalidade de garantir o acesso
previdenciário e a possibilitar a emissão de notas fiscais por
serviços prestados. Desde então, o MEI encontrou ampla adesão,
crescendo paulatinamente ano após ano e, então, atingindo o
quantitativo de 9,1 milhões de trabalhadores em 2019, conforme
o gráfico a seguir 9:
32
Em paralelo ao referido processo de formalização dos
pequenos negócios e do trabalho por conta própria, o MEI se
associou, ao mesmo tempo, a pejotização das relações de
trabalho. Isto é, trata-se da transformação do empregado ou
“pessoa física” em pessoa jurídica prestadora de serviços,
dissimulando as relações de emprego. Concomitantemente à
eliminação do vínculo empregatício, o trabalhador se encontrará
desprovido de uma série de direitos trabalhistas e proteções
condicionadas por essa relação.
Tal movimento também adquire expressão quando
comparado com o de “Pessoa Jurídica sem empregados”
(denominada, a seguir como “PJ zero 10”), isto é, empresas de
uma só pessoa, que em 2009, período de efetivação do MEI,
somava um quantitativo de quase 4 milhões e 300 mil (KREIN et
al., 2018). Ainda que a “PJ zero” seja uma forma jurídica mais
antiga no mercado de trabalho no Brasil, a figura do MEI a
ultrapassa quantitativamente já no ano de 2014 e, desde então,
ano após ano, vem mantendo sua tendência de acelerado
crescimento 11. Paralelamente, a RAIS negativa interrompe a sua
trajetória de crescimento que vinha desde os anos 1990.
Na ocasião de sua criação, o faturamento máximo do MEI
fora fixado em 36 mil reais anuais, com contribuição
previdenciária de 11% do salário mínimo vigente (o que
correspondia a R$ 46,65). Além disso, o MEI já estaria isento de
uma série de impostos, como o Imposto de Renda (IR), Programa
de Inclusão Social (PIS), Contribuição para o Financiamento da
Previdência (COFINS), Contribuição Social sobre o Lucro Líquido
(CSLL), e pagando valores reduzidos de Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) - R$ 1,00 - e
Imposto sobre Serviços (ISS) - R$ 5,00. Alterações substantivas
ocorreram nos anos seguintes, especificamente em 2011 e 2016,
ampliando o escopo de faturamento e minimizando a contri-
buição previdenciária. Em 2011, a contribuição previdenciária –
que, como dissemos, até então era de 11% do salário mínimo –
10RAIS negativa.
11 “Em 2002, mais de 58% das empresas eram ‘PJ zero’; em uma curva
descendente, verifica-se que em 2016 eram em torno de 52%, deixando de
crescer em razão da implementação e difusão do MEI” (KREIN et al., 2018, p.
105).
33
é reduzida para 5% 12 e o teto de faturamento anual passa de 36
mil para 60 mil reais 13. O teto de faturamento seria novamente
alterado nos anos seguintes, passando para os 81 mil reais 14
(MARTINS, 2017).
Tais mudanças sugerem a possibilidade de que, desde
sua criação, as alterações das normativas sobre o MEI vêm
ocorrendo na direção de sua ampliação. Se, a princípio, o
objetivo era de formalização e inclusão previdenciária de
trabalhadores informais e autônomos pauperizados, paulatina-
mente suas mudanças possibilitam a adesão de um perfil
socioeconômico mais elevado. Como fator de atração desse
público pode-se elencar, em um primeiro momento, as
vantagens em relação à contribuição previdenciária, que
correspondia a 20% do salário mínimo para os autônomos e,
como MEI, ela é reduzida para 5%.
Ainda, como indicado por Oliveira (2013), ao menos um
quarto dos trabalhadores foram demitidos e, imediatamente,
migraram para o MEI, indicando que pode ser relevante a massa
de MEI’s criados para a substituição de empregos, em contratos
como prestadores de serviços. Outro fator a considerar é a
eliminação de burocracias: com a não obrigatoriedade de
contratação de um contador e a faciliadade para emissão de
documentos fiscais. É importante salientar, ainda, que o
processo de abertura do MEI é facilitado, gratuito e totalmente
realizado via Portal do Empreendedor, que possibilita o acesso
ao CNPJ e início de operação de imediato.
Conforme Constanzi e Ansiliero (2017), o perfil identifi-
cado pelos cadastrados no MEI é o seguinte: 59% deles são
homens, 57% são brancos, 60% tem ao menos o ensino médio
completo 15. Além disso, a maioria dos MEIs tem idade entre os
34
30 e 49 anos e seus rendimentos são superiores aos da
população ocupada e dos autônomos (39% dos MEI’s recebem
ao menos três salários mínimos mensais, enquanto essa
porcentagem é de 17% no total da população ocupada e de 15%
entre trabalhadores por conta própria).
Sobre os trabalhos desenvolvidos pelos MEI’s, segundo
dados do Portal do Empreendedor (2019), é possível encontrar
568 atividades da Classificação Nacional de Atividades
Econômicas (CNAE), reforçando seu caráter polimorfo e
multifacetado. Isto é, sob a mesma forma jurídica, encontram-
se uma miríade de trabalhadores que atuam em distintas
atividades econômicas: comerciantes, manicures, cabeleireiros,
motoristas, professores, contadores, chaveiros, promotores de
vendas, pedreiros, entre outros. Vale salientar que o comércio,
em seu conjunto de atividades, é responsável por parte
significativa das inscrições no MEI, alcançando um quantitativo
de mais de 2,5 milhões, o que representa quase um terço do total
de inscritos em 2018. Também reforça a hipótese de mudança
na focalização – que partiu dos autônomos de baixa renda e se
ampliou nas camadas de maior remuneração – evidenciando a
heterogeneidade de perfil que compõe o MEI.
Tratando-se do atual mundo do trabalho brasileiro,
também é possível estabelecer um paralelo entre a adoção do
MEI e a Reforma Trabalhista. As mudanças na legislação traba-
lhista, realizada especialmente em 2017, reforçam as tendências
de pejotização e de mascaramento dos vínculos empregatícios,
especialmente a partir da adoção da figura do “autônomo
exclusivo”, isto é, uma nova modalidade em que um trabalhador
poderá prestar serviços, como autônomo, a uma única empresa
sem que isso se configure como relação de emprego.
Os processos acima descritos, fortalecidos e expandidos
através da consolidação e reformulação do MEI, associam-se a
outros determinantes de maior generalidade, como a flexibi-
lização e precarização das relações de trabalho, ajustadas às
características do capitalismo contemporâneo, globalizado, sob
o domínio das finanças e sob hegemonia do neoliberalismo.
Destacamos, portanto, que o MEI se constitui sob o signo de
uma ambivalência latente, que se dá entre os polos da proteção
social e da flexibilização. Isto é, o MEI, apesar de ser uma
35
importante iniciativa de inclusão social – na medida em que
possibilitou a formalização e o acesso previdenciário a camadas
sociais historicamente alijadas dos direitos sociais vinculados ao
trabalho – está coadunado com o processo de estímulo ao empre-
endedorismo, à individualização das relações de trabalho e à
fragilização do sistema de direitos trabalhistas.
Em menor nível de abstração – atingindo o plano indivi-
dual – há distinções nas formas de adesão ao MEI por parte dos
trabalhadores, que vão desde as mais ideológicas àquelas de
caráter mais pragmático. Há, por um lado, adesão ao MEI sob o
impulso ideológico de se tornar empreendedor, valorando-o posi-
tivamente como relação de trabalho imbuída de autonomia,
autodeterminação, meritocracia e esforço individual, isto é,
encaremprnando a figura do self-made man. Por outro lado, é
possível identificar outro tipo de adesão ao MEI, este de
característica mais compulsória frente a um cenário de
desemprego e subuti-lização no mercado de trabalho, em que se
esgotam as alternativas. O MEI se tornaria, assim, via única de
saída para esses trabalhadores, associando-se à lógica da
viração (TELLES, 2001).
Dessa forma, nos afastamos de abordagens que
compreendem o autoemprego 16 como um resíduo remanescente
de épocas anteriores ao capitalismo (PRANDI, 1978; PAMPLONA,
2001). Segundo tal interpretação, essa forma de trabalho estaria
fadada ao desaparecimento ou, no mínimo, a sua paulatina
diminuição até compreender uma parcela irrisória do conjunto
dos trabalhadores. A contradição capital trabalho se localizaria,
por fim, no âmago das relações de trabalho propriamente
assalariadas.
De fato, como assinalou Prandi (1978), o autoemprego
não pode desprender-se por completo de sua condição histórica,
no entanto, observamos que o capitalismo não só se apropria
desse tipo de trabalho, como lhe confere novo sentido. O
autoemprego é potencializado pelas relações de trabalho
individualizadas e pelo padrão de compra e consumo just-in-time
da força de trabalho, tornando-se uma importante engrenagem
na acumulação capitalista contemporânea.
36
Diferentemente do período analisado pelos autores,
atualmente o autoemprego ainda encontra reforço ideológico,
sendo legimimado e positivado pelo ideário do empreende-
dorismo. Em nosso objeto específico de análise, o MEI cumpre o
papel primordial de se constituir como forma jurídica na qual se
acopla o autoemprego, possibilitando que se efetivem relações
de trabalho acentuadamente individualizadas, mas não só. O
MEI também culmina por associar o autoemprego ao empre-
endedorismo e a cadeia de virtudes que cerca essa imagem: perfil
de lideraça, sujeito inovador, atuação dinâmica, transformador
de condições econômicas adversas; aquele que conta apenas
com o próprio esforço, à revelia do Estado e das políticas
públicas, para alcançar o sucesso.
Tal como assinou Colbari (2015), a reificação do
empreendedorismo por parte das sociedades ocidentais não
encontra lastro de otimismo quando as taxas de empreende-
dorismo são confrontadas com indicadores de prosperidade e
bem-estar. Países pobres, com altos índices de desigualdade
social e relações de trabalho significativamente desestruturadas
gozam de elavadas taxas de empreendedorismo, segundo
relatórios da Global Entrepreneurship Monitor (GEM). Não seria
possível, portanto, correlacionar empreendedorismo e
desenvolvimento sócio-econômico como variáveis diretamente
proporcionais.
Mesmo circunscrevendo o mercado de trabalho
brasileiro, a figura do MEI contrasta de maneira substantiva
com o ideário do empreendedor. Pesquisa realizada em 2019
pelo Sebrae 17 nos confere importantes elementos de análise: i) a
renda per capita do MEI é de R$ 1.375 mensais, valor quase
idêntico ao rendimento domiciliar per capita do Brasil em 2018,
segundo IBGE, de R$ 1.373 mensais; ii) 76% têm o MEI como
única fonte de renda; iii) 28% têm o MEI como única fonte de
renda da família.
Ainda segundo a mesma pesquisa, quando perguntados
sobre a motivação para aderir ao MEI, a resposta mais
recorrente foi “precisava de uma fonte de renda” com 33%,
37
seguida por “queria ser independente”, com 32%, reforçando a
dualidade na adesão entre aqueles que optam por necessidade e
aqueles cuja opção se dá por oportunidade. Esse mesmo dado
toma contornos ainda mais instigantes quando estratificados
por faixa etária: dentre os entrevistados com 50 anos ou mais,
42% declararam aderir ao MEI por precisarem de uma fonte de
renda; já tomando entrevistados entre 18 e 29 anos, 41%
apotam a adesão pelo desejo de serem independentes. É factível,
portanto, a hipótese de que o tipo de relação com o MEI (mais
pragmática ou mais ideológica) seja diretamente influenciada
pela idade e pelo percurso já realizado no mercado de trabalho.
Por fim, destacamos que a própria pesquisa aponta uma
conclusão aparentemente contraintuitiva: o percentual de MEIs
ativos aumenta quanto menor for o IDH do município e quanto
menor for sua população. Reforça-se assim o argumento de que
o empreendedorismo, em geral, e o MEI, em particular, não são
indicadores de desenvolvimento sócio-econômico e bem-estar,
respondendo, pelo contrário, mais diretamente à necessidade de
viração dos trabalhadores em mercados de trabalho de baixa
estruturação.
Considerações finais
38
lidade, a viração e a histórica assimetria da relação entre capital
e trabalho no país.
Persistem desafios e lacunas de uma agenda investiga-
tiva sobre o MEI, abrangendo tanto as questões que tocamos no
texto, quanto questões a serem desenvolvidas. Em primeiro
lugar, compreender o MEI para além da chave analítica da
precarização, considerando o seu efeito ambivalente nas
relações de trabalho e nas trajetórias individuais dos trabalha-
dores. Outro relevante fator a ser explorado é a maneira pela
qual esses trabalhadores aderem ao MEI, oscilando entre formas
mais ideológicas (aderindo ao ideário de empreendedorismo) e
formas mais pragmáticas (associando-se de maneira mais direta
à viração).
Se é verdade que a teoria sociológica tem identificado
uma heterogeneização da classe trabalhadora, deixando para
trás a hegemonia da figura do operário padrão fordista, ascende
um novo perfil de uma classe trabalhadora localizada majoritari-
amente do setor de serviços. Multifacetada, em gênero, cor, faixa
etária e atividade, não pode ser resumida em uma só imagem.
Sem a percepção dos trabalhadores por conta-própria e dos
MEIs, no entanto, restará incompleta.
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content/uploads/2019/08/013_0319_APRE_MEI_v15_principa
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SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências
pessoais do trabalho no novo capitalismo. 13ª ed. Rio de
Janeiro: Record, 2008.
41
STANDING, Guy. O precariado: a nova classe perigosa. Belo
Horizonte: Autêntica editora, 2015.
TELLES, Vera. Pobreza e cidadania. São Paulo: Editora 34,
2001.
VASAPOLLO, Luciano. O trabalho atípico e a precariedade. São
Paulo: Expressão Popular, 2005.
42
Trabalho jornalístico, capitalismo
de plataforma e reificação: a alienação
como processo
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Introdução
43
que a produção jornalística se expressa, sendo que os produtos
circulam na esfera midiática da internet e são conduzidos pelos
fluxos dessas redes sociais privadas. Além disso, a elaboração
das rotinas produtivas também é delimitada pela mediação
desses aparatos e dispositivos, o que altera os mecanismos
tradicionais de elaboração das notícias. A práxis noticiosa no
século XXI, não obstante, enreda-se na subsunção ao capital,
potencializando a alienação e o estranhamento. “A violência da
tecnologia está na maneira como ela corta o elo entre a pessoa e
a interação sensorial com o mundo” (HARVEY, 2016, p.246).
Desta feita, o objetivo deste trabalho é demonstrar como
opera a amarração do trabalho jornalístico com as tecnologias
do capitalismo comunicacional, elucidando como ele poten-
cializa formas arrojadas de alienação/estranhamento na
subjetividade dos jornalistas, aparecendo como fator limitante
do potencial do trabalho em sentido humanizador. Como aponta
Lukács (2013), o estranhamento sempre possui um caráter
histórico-social e é desencadeado de maneira nova pelas forças
concretas atuantes em cada formação dada em um período
temporal.
De natureza teórico conceitual, o estudo faz parte de uma
busca pelos fundamentos ontológicos do jornalismo no século
XXI e ambiciona seguir a trilha do materialismo histórico
(NETTO, 2011) como método de abordagem da problemática do
binômio comunicação e trabalho.
Alienação/Estranhamento
44
nova configuração da ascensão tecnológica das redes informaci-
onais, percebemos a ampliação de processos de reificação 2 das
práticas sociais, em especial as comunicativas.
Isso afeta o trabalho jornalístico na maior parte de suas
expressões, das redações enxugadas pelos passaralhos
constantes, mas também pelas iniciativas alternativas que
operam na órbita do modelo produtivo hegemônico, e, assim,
dependem dos algoritmos das redes para alcançar visibilidade.
Ou seja, há um controle externo, privado, capitaneado pelas
classes dominantes, que delimita o pôr teleológico (LUKÁCS,
2013) do repórter. O capitalismo financeirizado da era
informacional explora o mais-valor do trabalho “não importando
se suas atividades são mais intelectualizadas ou mais manuais”
(ANTUNES, 2019, p.31).
As plataformas digitais e as Tecnologias de Informação e
Comunicação (TICs) são um elemento de destaque entre os
novos mecanismos utilizados pelo capital em contexto de crise
(o que lhe coloca na busca de constantes reestruturações
voltadas à maximização dos lucros perdidos nas últimas
décadas). Os dispositivos de alienação crescem com a nova
lógica produtiva, que apaga as diferenças entre o tempo de vida
dentro e fora das atividades laborais. A combinação entre a
plataformização, a informalidade e flexibilidade, somada ao
ideário neoliberal, afetam a já corroída profissão de jornalista.
45
importando se as atividades realizadas são predominan-
temente manuais ou mais “intelectualizadas”, “dotadas de
conhecimento” (ANTUNES, 2018, p. 67).
46
O conceito de alienação 3, nesse sentido, compreende
tanto o estranhamento do homem em relação à natureza e a si
mesmo, quanto à expressão processual da relação homem-
humanidade e homem e homem.
47
O salto ontológico promovido pelo homem surge da
possibilidade que ele detém de modificar a natureza para suprir
suas necessidades. Ao transformar a natureza, o homem cria o
mundo dos homens a partir do qual se desenvolve superando as
barreiras naturais e as necessidades que lhe são impostas. O
homem e a natureza, por meio do trabalho, desenvolvem uma
relação metabólica, algo que é apartado pela tirânica força da
propriedade privada. Não há na sociedade do capital
possibilidade de uma relação humanizada do sujeito com o
trabalho e com seu produto, “(...) quanto mais o trabalhador
produz, menos tem de consumir; quanto mais valores cria, mais
sem valor e mais desprezível se torna; quanto mais refinado o
seu produto, mais desfigurado o trabalhador (...)” (MARX, 2001,
p. 113). No capitalismo, a relação ontológica entre indivíduo
singular e gênero humano se quebra, destruindo a ponte que
conecta, pela produção da vida, a universalidade do homem.
A categoria trabalho é considerada o elemento fundante
do ser social porque é a partir do intercâmbio orgânico com a
natureza que o homem se realiza e, diferentemente dos outros
animais, cria novas necessidades e possibilidades, proporci-
onando um sistema reprodutivo que requer novos complexos
sociais para atender às demandas recém-surgidas. Esses
complexos, erguidos por uma nova situação criada pelo trabalho
(em que o homem se distancia das barreiras naturais, conforme
dizia Marx), todavia, também geram novas demandas e
potencialidades, e exigem novos complexos, desenvolvendo a
totalidade social. As formas históricas de trabalho são criadoras,
fundantes, das suas formações sociais específicas. Mesmo
assim, vale destacar que a totalidade social não se restringe ao
trabalho, mas possui com ele uma relação entre o polo fundante
e o fundado.
No sistema sociometabólico do capital (MÉSZÁROS,
2002) a oposição existente entre capital e trabalho, sendo o
primeiro o gerador da alienação da humanidade, concretamente
proporciona a cisão entre esta e a atividade laborativa, cuja
potencialidade onto-criadora se esvai com a perda do sentido do
trabalho. A alienação jamais pode ser reduzida ao mundo
econômico, já que a subjetividade do ser social defronta-se com
um mundo em que a aparência se desvincula da essência. A
48
complexidade da alienação na produção da vida econômica
possui reflexos nas diversas formas de pensamento. A auto-
alienação do homem congrega manifestações
institucionalizadas, como o trabalho assalariado, a propriedade
privada, o dinheiro, a renda, o lucro..., bem como se apresenta
também por intermédio da religião, da filosofia, da arte, da
ciência... “Fica claro a partir da abordagem marxiana que as
várias esferas teóricas refletem – de uma forma necessariamente
alienada, correspondente a uma série de necessidades alienadas
– a alienação e reificação efetivas das relações sociais de
produção” (MÉSZÁROS, 2006, p. 106).
As mediações de segunda ordem do capital 4 são os meios
alienados de produção e suas personificações, a saber, o
dinheiro, a produção para a troca, as variedades da formação do
Estado pelo capital, o mercado, mecanismos que se sobrepõem
à atividade produtiva essencial dos indivíduos sociais. São essas
mediações que impedem a plena emancipação humana, no
sentido de resgatar e efetivar o vínculo essencial e ontológico
entre homem e natureza expressa pela mediação de primeira
ordem.
Na crise estrutural do capital anunciada por Mészáros
(2002), cuja conjuntura aponta para uma multiplicação dos
valores conservadores, que retiram o sentido colaborativo da
sociabilidade, fetichizando a vida social, eternizando o valor-de-
troca como definidor da ordem metabólica, percebemos uma
total incompatibilidade entre a necessária superação da
alienação e os sujeitos da emancipação humana.
Não se pode minimizar o fato de que os homens
permanecem enraizados no metabolismo do capital e são alvos
de inúmeras formas de estranhamentos disponíveis no atual
contexto de capitalismo financeiro apoiado em tecnologias
informacionais. Um dos principais mecanismos é a
interiorização dada pelo toyotismo dos valores reificados das
empresas, obrigando o trabalhador a “vestir a camisa” da firma,
49
abraçando o projeto, as ideias, a visão de mundo, dos burgueses.
A empresa flexível expropria o intelecto do trabalhador, no
sentido de fazer com que ele sublime os interesses ontologica-
camente antagônicos aos seus. Esse modelo penetra a totalidade
dos complexos sociais, tornando o fetichismo e a reificação o
modelo da subjetividade alienada e ampliando o engajamento
estranhado do exército de reserva trabalhista sob as demandas
do capital em tempos de plataformização.
50
Jornalista como trabalhador da informação
51
No mundo do trabalho, a informalidade, as subcon-
taaratações e a deterioração de direitos historicamente
constituídos, já estavam em andamento, mas é inegável o quanto
a nova economia de compartilhamento impulsiona esses
mecanismos, principalmente com uma massa depauperada
desempregada em busca de alternativas de renda (SHOLZ,
2016).
Entendendo as plataformas como “infraestruturas
digitais que permitem que dois ou mais grupos interajam”
(SRNICEK, p. 45), percebe-se que a intermediação comunicativa
de usuários, assinantes, clientes, anunciantes, provedores de
serviços, mercadores, distribuidores, etc, produz uma esfera em
que transações econômicas são promovidas. Quem controla as
plataformas, portanto, gere os formatos e as regras do jogo,
potencializando a circulação e também a produção de merca-
dorias e serviços. Essas esferas digitais tornam-se, assim,
infraestruturas básicas para a realização dos negócios capita-
listas.
Antunes (2018) aponta que os trabalhadores vinculados
às tecnologias de informação e comunicação (TICs) experienciam
formas de reificação específicas desses setores do ramo
“intelectualizado”, visto que as plataformas traçam novas formas
de envolvimento da subjetividade na interação existente entre o
trabalho vivo e a maquinaria informacional. “Como a máquina
não pode suprimir o trabalho humano, é necessária uma maior
interação entre a subjetividade que trabalha e a nova “máquina
inteligente”. Nesse processo, o envolvimento interativo maquí-
nico pode intensificar ainda mais o estranhamento do trabalho
(...)” (p. 107). Esse desenvolvimento cria rachaduras na vida
cotidiana, distanciando o homem de uma vida autêntica e
autodeterminada.
O trabalho jornalístico tem sido capturado em suas
mediações produtivas e na circulação de seu produto (que caça
audiências para as redes) pela estrutura informacional da TICs.
A particularidade de sua atividade situa-se cada dia mais na
valorização do valor, mas claramente resultante de um trabalho
social, coletivo, complexo e combinado (ANTUNES, 2018, p.51).
52
O trabalhador da informação, o jornalista, portanto,
compõe a classe trabalhadora ampliada que se expande
globalmente, sendo alvo da alienação universal que acomete o
modo de produção capitalista em tempo de cooperação complexa
mediada por máquinas informacionais. Além disso, o trabalho
vivo do jornalista torna-se o capital variável frente a
automatização do setor da produção material (BOLAÑO, 2018).
Acreditamos que o jornalista enfrenta as consequências de uma
extrema ampliação, na gestão de seu trabalho e da circulação do
produto noticioso, de mecanismos dados por um novo estágio da
exploração do trabalho, via TICs e plataformas digitais.
53
cobrada interação destes nas redes sociais demonstram o
quanto as rotinas produtivas dos trabalhadores da informação
são atravessadas pelas plataformas. A gestão do trabalho utiliza
de mecanismos que, longe de dominar o complexo como a Uber,
modificam a relação entre o tempo de trabalho e da vida, e
intensifica o domínio sobre o trabalho, hegemonicamente
direcionado pela lucratividade dos conglomerados de
comunicação digital que dominam, via seus algoritmos, a
mediação jornalística com a sociedade. Há nesse contexto a
disseminação do neossujeito (DARDOT e LAVAL, 2016) que
encarna a pele da figura do “empreendedor”.
54
Contaminados pelo espírito comercial, escravizados pela
universalização da forma mercadoria, os trabalhadores do
século XXI são desumanizados e tornam-se ferramentas da
reificação das relações sociais. “A realização egoísta é a camisa-
de-força imposta ao homem pela evolução capitalista, e os
valores da ‘autonomia individual’ representam a sua glorificação
ética” (MÉSZÁROS, 2006, p. 237). O individualismo burguês,
agora reprojetado no epíteto de “perfil” na seara das big techs,
apenas amplia o abismo entre o homem e o seu gênero.
De forma particular, os jornalistas são profissionais que
tem passado por uma gradual aceleração desses estranha-
mentos e com a transformação da infraestrutura de seu trabalho
- da mídia de massas para a massa de mídias como diz Ramonet
(2012) - são interpelados pelas plataformas digitais nas
gramáticas operacionais de seu trabalho (rotinas produtivas),
mas também na difusão do conteúdo produzido no campo das
mediações algorítmicas das plataformas de publicidade
(SRNICEK, 2018). O jornalismo hegemonizado pela mediação
digital e as mutações advindas da ascensão dos smartphones e
consequente aumento do alcance das redes sociotécnicas
produziram novos modelos de atuação para o profissional da
comunicação.
55
saber, a) o estranhamento da subjetividade do repórter,
interpelado em sua atividade pelas plataformas de comunicação
(que amplia o controle dos contratantes) e b) na difusão alienada
de seu produto nas malhas das redes sociais, constrangido pelos
ditames da arquitetura dessas redes em favor da economia da
atenção. Nesses fluxos de quantificação de interações e
exploração de dados, a veracidade dos conteúdos não é o mais
importante, sendo que a amplitude do irracionalismo circula
com rapidez no ecossistema tecnológico do capitalismo tardio. O
exemplo das propaladas fake news é uma expressão fenomênica
da comunicação nas redes informacionais. Os agentes que
comandam a plataformização no setor jornalístico irrompem de
forma negativa a positividade social dessa prática, como dito,
centrada na disseminação de conhecimentos capazes de oferecer
uma cartografia dos fatos sociais.
A intensificação dos processos de alienação dados pelo
capitalismo em momento de plataformização do trabalho
acomete os jornalistas não só do ponto de vista do
enfraquecimento de sua subjetiva e corrosão de seu papel
enquanto sujeito histórico. Há um conjunto de epifenômenos
que se manifestam na condição precária da profissão. Do
desemprego estrutural, multifuncionalidade, disponibilidade
total e remunerações e contratos flexíveis, há também altos
riscos para a saúde dos repórteres.
56
segunda metade do século passado. Ainda que não constitua a
totalidade das formas de expressão jornalística, predominan-
temente desenha-se para o jornalista um futuro enquanto
trabalhador informal precário, flexível, desregulamentado,
gerido por ambientes tecnológicos informaci-onais e cada vez
mais alheio a autonomia de seu trabalho e controle sobre os
processos de circulação de seu produto, a notícia.
As transformações que afetam a classe trabalhadora na
contemporaneidade relacionam-se com o contexto profissional
jornalístico, consequência da sua raiz orgânica com o sistema de
metabolismo social imperante. Portanto, torna-se muito difícil
desvencilhar-se dessas amarras sem questionar as bases
econômicas e materiais da alienação. “As possibilidades de
realizações limitadas, isto é, de escapar de possibilidades de
estranhamento que se limitam ao plano individual é, em
princípio, bem mais restrita no capitalismo” (LUKÁCS, 2013,
p.754). Os jornalistas cada dia mais absorvem os estranha-
mentos decorrentes do alto grau de proletarização que, via
plataformas informacionais e corrosão de direitos conquistados,
adentra suas esferas de atuação, limitando-os em seu papel
socialmente constituído - bem como as posibilidades de
alternativas a esses ataques.
Considerações Finais
57
fragilizou essa categoria de profissionais, agora próximos de um
trabalhador de informação flexível.
Mas com a possibilidade de ampliar os produtores,
aspecto contraditório do monopólio das redes sociotécnicas,
muitos jornalistas passaram a buscar alternativas fora do
espectro da imprensa convencional, no sentido de uma produção
mais autônoma, autoral e comprometida politicamente com
pautas progressistas. O que poderia ser um passo importante
no avanço contra os estranhamentos incrustados no sistema
sociometabólico de reprodução do capital, todavia, passa a ser
capturado pelas regras desconhecidas do complexo das
plataformas e suas estratégias de valorização na mineração de
dados.
Por um lado as empresas de comunicação reorganizam o
seu “chão de fábrica” por meio das redações integradas e pela
via da gestão do trabalho por ferramentas tecnológicas próprias
ou hegemônicas (whatssapp, google meet, etc), proletarizando
cada dia mais os profissionais, precarizando o trabalho vivo e
consolidando a reificação. Em outra ponta temos as iniciativas
de produção jornalística independente, alternativa, com outras
perspectivas, que por dificuldades financeiras e de outros
recursos, também não oferece espaço de construção capaz de
mudar o quadro de dependência com as TICs, mas se esforçando
em expandir seus conteúdos nas franjas do sistema. A alienação
dos jornalistas, como fenômeno genérico, faz-se regra também
onde a exceção poderia apresentar saltos na reorganização de
saídas anticapitalistas. O estranhamento com a atividade
produtiva permanece uma constante.
O mundo do trabalho ganha novos contornos, que
refazem os desafios da luta de classes. A particularidade do
jornalismo, conforme tentamos explicitar neste texto, participa
das tendências gerais do movimento de imbricação tecnológica
na produção e reprodução da vida. O trabalhador jornalista
ilustra bem o processo de alienação, enquanto conflito entre o
desenvolvimento das capacidades humanas pelas forças
produtivas e a conservação (ou o esfacelamento) da persona-
lidade humana (LUKÁCS, 2013). O fato de ser produtor de
conhecimento relevante para a vida social, paradoxalmente
coloca esse profissional em uma posição extremamente
58
relevante para os desafios políticos das classes subalternas.
Nesse sentido, processos de fortalecimento da consciência
necessária de que mudanças estruturais são urgentes pode
tornar-se pauta para um jornalismo crítico-emancipatório.
A aufhebung (suprassunção) da auto-alienação do
trabalho pressupõe um conjunto de operações que colocam a
instituição de um novo motor de produção social, emancipatória
e igualitária, na ordem do dia. O debate sobre a construção de
um novo modelo tecnológico informacional capaz de
potencializar os indivíduos também merece destaque, bem como
o controle social dos mecanismos produtivos pelos trabalha-
dores livremente associados. O jornalismo pode contribuir com
esse desafio em dois movimentos distintos, mas
interconectados, sua emancipação enquanto sujeito histórico
(parte da luta conjunta com outros trabalhadores) e como
produtor de conteúdos capazes de alimentar a compreensão da
realidade, algo fundamental para a superação da barbárie social
materializada pelo capital.
Referências
59
DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian. A nova razão do mundo:
ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, Editora
Boitempo, 2016.
60
NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx.
São Paulo: Expressão Popular, 2011.
61
Breves notas sobre a contemporaneidade
da teoria crítica do cotidiano
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Introdução
63
Então, depois que eu chego eu fico sentado um tempo
aqui, descansando [em um sofá, na sala, em frente à
televisão] até dar a hora de ir à academia. Eu chego em
casa quase às três da tarde. Aí eu tomo meu café, dou uma
descansadinha de uma hora mais ou menos, tomo um
banho e já vou para a academia. Eu saio daqui mais ou
menos umas cinco. Às vezes nos dias de semana, até pelo
preço, eu costumo ir ao cinema, por ser mais viável. No fim
de semana geralmente eu vou, como eu estou com meu
filho em casa, eu vou no [parque] Taquaral, levo ele em
parquinho, mas até por lazer dele mesmo. Para mim, às
vezes eu faço mais um churrasco em casa, reúno a família.
Mas chega no sábado, no sábado não dá vontade nem de
sair de casa. Minha mulher chega e fala: “Vamos sair –
daqui a pouco eu vou pegar meu filho – vamos sair com
ele, ir a um shopping, cinema, vamos levar para comer
alguma coisa”. E nossa, não dá disposição. Não dá mesmo.
(Depoimento de Milton, trabalhador de uma autopeças,
colhido em 02/2014. Arquivo pessoal) 2.
64
Portanto, por entendermos que o atual modelo de
produção impacta de forma decisiva também os espaços de
reprodução dos(as) trabalhadores(as) é que recorremos à crítica
da vida cotidiana. Porém, ao falarmos em teoria crítica do
cotidiano, incorremos intencionalmente numa imprecisão, afinal
não necessariamente existe tal teoria, como sugerimos no título,
ou seja, não existe um grande campo analítico com esse recorte 3.
Usamos esse termo primeiro para delimitar o nosso objeto e a
forma da sua abordagem e, segundo, para nos diferenciarmos de
outras abordagens analítico-metodológicas do cotidiano que não
se propõem a fazer a sua crítica. Estas abordagens são
importantes, de qualquer forma, e se não se propõem a fazer a
crítica, isso não empobrece seus resultados 4. É bom que se
registre isso. Todavia, o resgate das análises críticas sobre o
cotidiano, entendemos, é fundamental para entendermos os
impactos que o atual modelo de produção (que engloba não só
as transformações técnicas e tecnológicas, mas também todas
as mudanças de ordem política, ideológica, jurídica) trouxe para
os(as) trabalhadores(as) na sua totalidade (dentro e fora do
espaço da produção, bem como as de ordem material e subjetiva,
ou seja, na sua concretude). Mas ora, se a rigor não há uma
teoria crítica do cotidiano a que exatamente recorremos?
Reunimos aqui as análises críticas, desmistificadoras, do
cotidiano diluídas em textos e obras de vários(as) autores(as), de
modo que todos(as) eles(as) bebem da fonte da teoria da
alienação de Karl Marx. Embora a crítica da vida cotidiana não
se restrinja ao uso do ferramental teórico e metodológico
analítico próprio, portanto, de uma teoria. Isso, por suposto, não reduz seu rigor
metodológico e analítico. Ao contrário, abre um horizonte ainda maior de
contribuições de diversas áreas (nas artes, por exemplo, com os movimentos
Dada e Surrealista; mas também na Filosofia, Sociologia, Arquitetura e
Urbanismo etc) e com diversas abordagens. Portanto, para o autor a crítica da
vida cotidiana é uma contra-tradição, que foi amplamente ignorada ou
marginalizada pela literatura das ciência sociais, ao menos no interior do mundo
acadêmico Anglo-Saxão. Dessa forma, marginalizada, mas integrada em uma
contra-tradição, a crítica da vida cotidiana tem uma dupla função: descrevê-la e
elevá-la ao patamar de crítica.
4 Referimo-nos, sobretudo, ao “Interacionismo Simbólico” que, com uma
65
marxiano, buscamos demonstrar aqui que essa contribuição é
fundamental para sua construção.
Mészáros (2006) apontou as dificuldades que se encontra
ao abordar a teoria da alienação de Marx. Isso porque nos
Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, obra na qual o
pensador alemão sintetiza elementos de ruptura com a tradição
da filosofia alemã ao mesmo tempo em que lança as bases da
sua crítica da economia política, o principal conceito, o de
alienação, “compreende as manifestações do ‘estranhamento do
homem em relação à natureza e a si mesmo’, de um lado, e as
expressões desse processo na relação entre homem-humanidade
e homem e homem, de outro” (p. 21).
Do mesmo modo, ainda nos Manuscritos Marx formula
duas séries de questões complementares das quais na primeira
ele
66
autores(as) sobre o cotidiano, sobretudo a relação cotidiano e
modernidade (sociedade do capital). Traremos na sequência uma
breve discussão sobre como tais autores(as) enxergaram o
método de abordagem do cotidiano. Por fim, buscaremos
confrontar tais abordagens com o dia a dia dos(as)
trabalhadores(as) sob o modelo de produção flexível.
67
combinando as duas. Adotando uma ou outra forma de extração
de mais-valia, absoluta ou relativa respectivamente falando, é
necessário que haja um limite para a jornada de trabalho, o
suficiente para a sua reprodução, ou auto-sustentação. Porém,
no modo de produção capitalista, como coloca Marx:
68
tempo de jornada mais curto, através de reorganização das
funções exercidas na cooperação, introdução de máquinas
ferramentas e, pari passu, a incorporação de tecnologias de toda
ordem que buscam substituir a força de trabalho através da
assimilação de algumas das atividades exercidas. Como
apêndice de toda engenharia, reengenharia, técnicas e
tecnologias da indústria, a força de trabalho se submete então
ao ritmo da maquinaria que, consequentemente, passa a agredir
o sistema nervoso ao máximo, reprimindo o jogo polivalente dos
músculos e confiscando a livre atividade corpórea e espiritual,
de modo que, da mesma forma que na absoluta, o tempo de
repouso que satisfaça necessidades físicas e espirituais seja
igualmente importante (Marx, 1984, p. 43).
O sistema do capital, portanto, grosso modo falando,
operou uma divisão no seio do cotidiano dos(as) trabalha-
dores(as) entre dois momentos que se opõem: descanso
(recomposição física e moral, espiritual) e trabalho. Se esse é o
desenho mais geral do cotidiano na modernidade, ao analisar o
dia a dia é preciso que se analise, indistintamente, tais esferas,
de modo a apreender como a alienação se manifesta nelas, ou
seja, como o “estranhamento evidente na vida cotidiana”, bem
como os conflitos oriundos dele, se manifestam diariamente. Há
uma concretude do homem nas suas relações de produção que
deve ser compreendida como totalidade. Desse modo, de
nenhuma forma a cotidianidade pode ser entendida como mero
espaço das banalidades. Pelo contrário.
Lukács (1966) diz que, embora a objetividade cotidiana
seja uma força conservadora e inibidora, o homem, mesmo na
imediatez da cotidianidade, na interação com os seus
instrumentos, bem como nas relações cotidianas, podem e
colocam mais do que imaginam, ou do que essa objetividade
exige. O homem do cotidiano somente na sua aparência é um
homem fragmentado.
No mesmo sentido, Lefebvre (1991, p.86) coloca que:
69
riqueza. As habilidades mais nobres derivam daí (desse
homem inserido no cotidiano), elas são a crítica direta e
indireta e a vida alienada – embora seja uma alienação
incorporada mais ou menos consciente e uma tentativa
bem sucedida de alcançar a desalienação.
70
“encontramo-nos diante da alienação da vida cotidiana”. Desse
modo, a alienação, que é sempre alienação “em face de alguma
coisa”, será sempre um obstáculo “em face das possibilidades
concretas de desenvolvimento genérico da humanidade”. E,
embora o cotidiano não seja de modo algum necessariamente
alienado, a autora aponta que “quanto maior for a alienação
produzida pela estrutura econômica de uma dada sociedade,
tanto mais a vida cotidiana irradiará a sua própria alienação
para as demais esferas” (Heller, 2016, p. 64).
Mészáros (2007), embora não se debruce especificamente
sobre o cotidiano, ao analisar a categoria do tempo de trabalho,
trazendo elemento da crítica da economia política e da teoria da
alienação de Marx, no entanto, corrobora as conclusões dos
demais. Para ele, o homem, desde o advento da moderna
sociedade industrial, foi reduzido à mera mercadoria, reduzido à
força de trabalho que é apropriada pelo capital e se encontra,
fora do espaço fabril, realizado em meio a um leque de
artificialidades que exploram seu tempo ocioso, de descanso, de
convívio social. Assim, o capital subverte e degrada o “lazer”
ocioso “com o objetivo de submetê-lo, exploradamente, ao
imperativo global da acumulação do capital” e, desse modo,
veste uma “camisa de força” em uma das mais importantes
conquistas da humanidade, o tempo livre potencialmente
emancipatório, que é incorporado no trabalho excedente e
manipulado pela contabilidade do tempo do capital.
Desse modo, o autor afirma que no sistema
socioeconômico existente onde cada homem é igualado ao seu
trabalho, que por sua vez é igualado ao trabalho de outro homem
e traduzido a um denominador comum como máquinas e
substituíveis por elas, os seres humanos são reduzidos à
condição reificada e à posição “ignominiosa de ‘carcaça do
tempo’”. E, em virtude disso, é bloqueada ao indivíduo a
possibilidade de ele manifestar o valor inerente à especificidade
humana, pois na medida em que o homem é medido pela hora
despendida da sua força de trabalho e igualado a outro homem
71
contravalor deve prevalecer sem cerimônias sobre o valor e
asseverar sua absoluta dominação como a única relação
de valor prática admissível (Mészáros, 2007, p. 43).
72
pressupõe que a sociedade se sustenta em um dos seus
elementos constitutivos e, sendo assim, a teoria crítica do
cotidiano é também uma opção prática, cujo ponto de partida é
a estrutura sobre a qual se sustenta a extração da mais-valia.
Pressuposto isso, é importante que apreendamos as ações que a
determinam e são determinadas por ela.
Sob nenhuma hipótese, portanto, a teoria crítica do
cotidiano pressupõe um(a) trabalhador(a), imerso na
objetividade do dia a dia, resignado(a) em virtude do estranha-
mento. Reforçamos que, sendo esse um movimento dialético, o(a)
trabalhador(a) rechaça sua condição e age, cotidianamente no
sentido de restituir sua condição humana, sua totalidade.
Porém, suas reações são diversas, ora fragmentadas (com
potencial convergente ou não), ora coletivas, sendo que muitas
delas podem ser assimiladas e, assim, reforçar sua condição.
Bernardo (1991) classifica quatro formas de reações
dos(as) trabalhadores(as) frente às suas condições. Vejamos
sucintamente quais são:
73
política. Em linhas gerais, trata-se da assimilação das
lutas dos trabalhadores por um grupo de pessoas que as
canalizam de modo institucional, impedindo a gestão
autônoma das suas lutas.
4- Formas coletivas e ativas: trata-se da ruptura de todas as
normas estabelecidas na produção pelas chefias e
patronato. Nelas os(as) trabalhadores(as) gerem suas
próprias lutas, de modo autônomo, sem qualquer
interferência de burocracias alheias à elas. As ocupações
de fábricas, como nos exemplos históricos das décadas
de 1910 (Revolução Russa e Alemã), 1920 (as ocupações
de fábrica em Turim e Milão, na Itália) e 1960/70 (Em
especial França e EUA), são alguns exemplos.
74
Por entender que o uso do “método dialético” 5 voltado
para a análise do cotidiano é desconhecido, ou não familiar,
Lefebvre (1991, pp. 145-175) levanta pontos essenciais no
conjunto da obra de Marx e Engels que são decisivos para uma
abordagem crítica do cotidiano, são eles: a) crítica da
individualidade (cujo tema central é a “consciência privada”); b)
crítica das mistificações (tema central: consciência mistificada);
c) crítica do dinheiro (tema central: fetichismo e alienação
econômica); d) crítica das necessidades (tema central: alienação
moral e psicológica); e) crítica do trabalho (tema central: a
alienação do trabalho e do homem); crítica da liberdade (tema
central: o poder do homem sobre a natureza e sobre si mesmo).
Diante disso, para Lefebvre (2002), cabe ao(à)
investigador(a) reunir um conjunto de ferramentas metodoló-
gicas que o(a) capacite a encontrar a linguagem comum entre ele
e o entrevistado. Isso, segundo este autor, torna-se importante,
pois permite que ele(a) se sobreponha aos possíveis desentendi-
mentos e pré-julgamentos e enxergue o entrevistado como um
“ser” e não como um objeto reduzido a atitudes evasivas e triviais
da e na vida cotidiana.
Afinal, para o autor, esse tem que ser um processo
dinâmico, incessante de compreensão da realidade, cuja análise
dos fatos tem que ser contínua. Assim, tal método permitirá que
monitoremos e analisemos as angústias e lutas diárias da classe
trabalhadora 6.
75
Cotidiano e formas de luta frente ao modelo flexível
feitas por Bihr (1997), Harvey (1994), Antunes (1999) e Bernardo (2004).
76
de luta da classe trabalhadora. Voltaremos a isso adiante.
Busquemos entender, por ora, do que se trata o processo de
assimilação.
Bernardo (1991), quando descreve as formas de luta da
classe trabalhadora, diz que quando as lutas não criam de forma
decisiva novas relações de trabalho que concorram com as
relações vigentes, elas tendem a ser recuperadas, assimiladas,
pelo capital. Ou seja, o capital incorpora as reivindicações, bem
como monitora e também incorpora o saber-fazer contido nas
lutas empreendidas pelos(as) trabalhadores(as). Essa
assimilação não consiste somente da condescendência do
capital face às exigências do trabalho, pois se por um lado cede,
por outro, ao ceder, reforça o controle sobre o trabalho, bem
como o conjunto de técnicas e tecnologias que aumentam a
extração de mais-valia.
As revoltas contra o modelo taylorista-fordista no final da
década de 1960 e ao longo da década de 1970 tiveram como
característica principal o questionamento profundo da rígida
hierarquia gerencial e técnica apresentada pelo modelo, que
submetia a esmagadora maioria da classe trabalhadora aos
movimentos monótonos, repetitivos que se prolongavam ao
longo de horas durante o dia. Questionavam a falta de
protagonismo que tinham, frente aos projetos de produção e
protocolos de execução pré-concebidos. Nesse processo de
rechaço que se estendeu ao longo do período de vigência do
fordismo-taylorismo, que ora foi velado, ora aberto, quando a
classe trabalhadora demonstrou, por si mesma, ser capaz de
fazer mais e com maior qualidade, isso quando executava as
tarefas segundo sua convicção, bem como quando tomou as
fábricas, o capital enxergou a saída para sua crise.
O pilar sobre o qual se estrutura o modelo flexível é a sua
capacidade de se apropriar totalmente e de maneira sistemática
do saber-fazer do(as) trabalhadores(as). Vale dizer aqui que as
primeiras iniciativas que começaram a romper com a rigidez
hierárquica do modelo anterior foi justamente a criação dos
círculos de controle de qualidade, espaço dissimuladamente
democrático que forçou postura propositiva dos(as) trabalha-
dores(as). Ou seja, trata-se de uma instituição criada para se
apropriar daquele saber-fazer, que no contexto do modelo
77
anterior era usado para quebrar a hierarquia e restituir o tempo
de trabalho. Igualmente importante foi a reconfiguração do
layout das plantas: antes piramidal, passa a ser horizontalizada,
sendo acompanhado pelos terminais de computadores
(Bernardo, 2004). Deriva-se desse pilar todas as outras
instituições criadas pelo atual modelo, cujas principais são o
justi-in-time, kanban, a celularização da produção etc.
Do ponto de vista jurídico, da regulamentação das
relações trabalhistas, esse modelo se contrapôs ao anterior. A
desregulamentação das leis trabalhistas, que é um processo
ainda inacabado de um conjunto de exigências do novo modelo,
retirou e vem retirando, onde o complexo de reestruturação
produtiva se instala, a proteção social do trabalho. Cada vez
mais o(a) trabalhador(a) se vê mais exposto à péssimas
condições de trabalho sem que tenha respaldo jurídico que o
proteja e freie as condições impostas, bem como não conta mais
com contrapartidas econômicas previamente estabelecidas.
Simultaneamente, se deu um processo (ainda vigente) de
enfraquecimento dos sindicatos e demais órgãos de lutas da
classe trabalhadora que, no modelo anterior, serviram para
respaldar acordos, sobretudo econômicos, que lhe davam
garantias jurídicas e econômicas. Diante da crise do modelo
fordista, sinônimo de crise capitalista no contexto das décadas
de 1960 e 1970, o consequente aumento do desemprego leva os
sindicatos a perderem seus espaços de atuação: num primeiro
momento, diante das principais reivindicações da classe
trabalhadora, agem, muitas vezes de forma hostil, contra
aqueles movimentos operários autônomos que questionaram o
modelo. Posteriormente, passam a concorrer com as chefias das
fábricas no intuito de garantir sua legitimidade. Para tanto, se
colocam como intermediários que negociam garantias traba-
lhistas e tempo de trabalho. Muitas das burocracias sindicais
que resistiram tornaram-se gestoras 8 do tempo de trabalho e,
por conseguinte, se apropriam de parte da mais-valia (Bernardo,
2004; Bernardo, 2008) 9.
78
Tratou-se de um processo profundo de fragmentação da
classe trabalhadora onde, por um lado, se viu órfã dos seus
órgãos tradicionais de luta, que se incorporaram às instituições
do novo modelo ou se enfraqueceram, além de sofrerem com a
escalada repressão aos movimentos autônomos; por outro,
diante das instituições criadas, permeadas pela ideologia do
colaboracionismo e com uma carga de individualização das
ações ainda maior, encontra maiores dificuldades para desafiar
os ritmos e condições impostos. A supervisão, antes exercida por
um conjunto de pessoas, acima na hierarquia fabril, toma
formas diversas, mas principalmente e de modo decisivo, passa
a ser exercida pelos(as) próprios(as) trabalhadores(as). Seu
desafio não é mais restituir o tempo que lhe é extraído, ainda
que em ações individuais, nem mesmo adequar seus ritmos aos
seus limites físicos e mentais, mas sim, a partir de então, bater
metas de produção o que, para tanto, precisa do empenho de
seus pares (Antunes, 1999; Augusto Pinto, 2011; Dal Rosso,
2008).
Todas essas transformações levantadas aqui de modo
sumário convergiram para que o trabalho fosse condensado à
revelia da alteração do tempo das jornadas de trabalho. Como
sugerimos, e um conjunto vasto da bibliografia sobre o tema
também aponta, eliminou-se o tempo poroso então existente
nessa jornada. O desaparecimento desse tempo poroso se deu
de duas formas: pela intensificação do esforço físico e, quando o
ritmo da produção (imposto pela demanda oscilante 10) não exige
tanto dos músculos e nervos, continua exigindo da capacidade
intelectual, exigência esta que não cessa mesmo nos espaços de
reprodução. Política, econômica e juridicamente o(a) traba-
lhador(a) sob o modelo flexível se encontra inseguro(a) e,
momentaneamente, incapaz de reagir, sobretudo coletiva e
ativamente. Tal insegurança o leva a aceitar condições exaus-
tivas de trabalho, físicas e mentalmente exaustivas, para não
serem desligados(as) e jogados(as) em condições ainda mais
incertas do mercado de trabalho, senão descartados(as) de modo
79
permanente do mercado de força de trabalho. Os impactos sobre
a classe trabalhadora foram e estão sendo devastadores. Eles
são de ordem socioeconômica, política, estética, moral, ética,
ideológica e tudo isso pode ser sentido no cotidiano. Os acidentes
e doenças de trabalho, antes visíveis e tangentes, hoje deram
lugar aos acidentes/doenças invisíveis, intangíveis. O que
dificulta muitas vezes a relação com o trabalho (Santos, 2015).
As Doenças Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho (DORT)
e as doenças de natureza psíquica são a expressão desse
momento. E, com atenção especial a estas, as “doenças da
alma”, sendo a depressão a mais emblemática, podemos afirmar
que elas não se encerram no corpo e mente do indivíduo que
sofre, ou seja, não se trata de uma manifestação tão somente
psíquica. Há uma economia política por trás delas, presente
cotidianamente e que tem que ser explorada.
Já na década de 1940, ao problematizar os impactos que
a modernidade (sociedade do capital) causava ao cérebro
humano, Lefebvre (1991, p. 120) disse:
80
ritmos tem levado os(as) trabalhadores(as) ao isolamento,
contribuindo sobremaneira para o agravamento dos quadros de
depressão.
Lefebvre (1991) faz ainda apontamentos importantes
acerca da solidão. Ressalta que a solidão é uma necessidade e
uma aspiração do ser humano. Porém, mesmo nos espaços em
que se encontra na solidão, esse homem sofre com a alienação
da vida privada. Ali, em contato com seu “eu”, esse homem
pensa estar isolado da vida social, como se fosse possível a ele
separar a sua de todas as mediações humanas que o cerca. Ou
seja, o autor já apontava um potencial problema na necessidade
da solidão: se por um lado é uma necessidade do ser, por outro
ela sofre com as relações estranhadas da sociedade do capital 11.
Se contrapormos tais análises dos teóricos críticos do
cotidiano ao que vem sendo dito sobre as depressões, veremos
que é possível falar em uma relação direta entre essa forma de
adoecimento e o modelo de produção. Solomon (2001) diz que
ansiedade e depressão são gêmeas bivitelinas sendo aquela
precursora desta. O autor diz ainda que a depressão é frequente-
mente ocasionada pelo isolamento. Característica do modelo
vigente, o chamado management by stress se caracteriza
justamente pela imposição de fortes ritmos na produção, com
potencial enorme para gerar ansiedade. Isso sem falar em toda
a cadeia de pressão existente por conta do desemprego, o que
atinge também quem não consegue se inserir no mercado.
Já Kehl (2009) vai dizer, em outras palavras, que a
depressão é um alerta do corpo que pede para desacelerar o
ritmo imposto não somente ao físico, mas ao psicológico.
O cansaço, a ansiedade, tem provocado o isolamento, ou
seja, tem corroído até mesmo as relações sociais mais triviais e
imediatas do cotidiano. Tal condição tem alimentado uma série
de problemas, em especial a depressão. Os espaços de
11Ao longo de todo o Volume 1 da sua obra “Crítica da Vida Cotidiana” o autor
chama a atenção para o contraste imposto pela modernidade entre a vida social
e a vida privada. Sobre essa invasão da alienação na necessidade da solidão na
vida cotidiana moderna um exercício interessante de se fazer é contrapor o que
o autor diz sobre “solidão” na página 198 e sobre privação (ou carência) na
página 238.
81
reprodução do trabalhador foram invadidos pela lógica do
modelo flexível, a insegurança, acompanhada do desgaste.
Sendo as DORT e a depressão as mais emblemáticas
doenças que correspondem ao modelo flexível de produção,
podemos dizer que elas expressam a forma alienada,
estranhada, de reação do(a) trabalhador(a) à sua condição atual
de exploração. A rigor, podemos enxergar aí elementos de
resistência, uma forma de luta que é empreendida de forma
velada pelo corpo dos(as) trabalhadores(as), que surge de forma
involuntária, mas que é resultado do esgotamento físico e mental
dos homens e mulheres que trabalham. Identificamos aqui uma
forma de luta individual passiva, conforme descrita acima, que
é de difícil convergência. Esse esgotamento, não se encerra na
atividade produtiva, ele invade os espaços de reprodução,
solapando-os e aprofundando o isolamento do indivíduo, que se
defronta com um “eu” não só estranhado, mas igualmente
angustiado. Um indivíduo que anseia pelo isolamento e que
dispõe sua sociabilidade como uma obrigação social e não mais
como algo natural, conforme sugerem os dois depoimentos que
colocamos acima.
De qualquer forma, aqui podemos ver que tais
manifestações clínicas ultrapassam as análises puramente
clínicas. Há por trás das DORT e das “doenças da alma” uma
economia política, que abrange também questões sociais,
ideológicas, políticas, organizacionais, técnicas e tecnológicas,
bem como as de sociabilidade. Daí a necessidade de retomar os
elementos da crítica do cotidiano, justamente pela necessidade
de se lançar o olhar para as manifestações mais sutis de
estranhamento no dia a dia, bem como as manifestações de
negação.
Trata-se de uma tarefa urgente, para buscarmos
respostas, ou ao menos compreensão à luz da economia política,
para uma questão que cada vez mais vem se mostrando política
e ideológica.
82
Considerações finais
83
Referências
84
Lefebvre, H. The critique of everyday life. Vol. 1. London; New
York: Verso, 1991.
85
Capitalismo e patriarcado em pauta:
aproximações e distanciamentos entre
feminismo e marxismo 1
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
1 Uma primeira versão deste capítulo foi publicada nos anais do Colóquio
Internacional Marx e o Marxismo 2019, com o tema “Marxismo sem tabus –
Enfrentando opressões”, ocorrido em agosto de 2019, na Universidade Federal
Fluminense, em Niterói, Rio de Janeiro.
2Docente do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação
87
É preciso destacar que, apesar dessa temática ter sido
efervescente nas décadas de 1970 e 1980, ela arrefeceu nos anos
1990, especialmente porque, com o fim do chamado socialismo
real, e com a simbólica derrubada do Muro de Berlim, era
comum ouvir que “Marx morreu”, que o capitalismo era o “fim
da história”, que não haveria espaço para qualquer revolução
que não fosse a revolução interior. Tal perspectiva individualista
veio a corroborar com a hegemonia do feminismo liberal.
Entretanto, especialmente depois da crise capitalista na
sua expressão mais financeirizada, iniciada entre 2007 e 2008,
Karl Marx ressurgiu como um relevante teórico para pensar o
tempo presente. A sua importância se expressa, inclusive, pela
forte campanha da extrema direita mundial em negar o
marxismo, com repercussões no Brasil 6.
As feministas marxistas, contudo, não abandonaram o
marxismo e continuaram produzindo ao longo das décadas em
que as críticas ao capitalismo haviam recuado. O fato de que o
texto de Arruzza sobre o tema das controvérsias entre feminismo
e marxismo ter sido publicado em 2010 demonstra que o debate
não foi encerrado, e as aproximações e distanciamentos entre
marxismo e feminismo continuaram a ocorrer. Já é 2020, e
continuamos a analisar a temática, fenômeno reforçado pela
conjuntura econômica e política mundial, de incessante ataque
à classe trabalhadora.
Em resposta à austeridade, surgem expressivos
movimentos de resistência feministas em âmbito internacional.
Podemos destacar: a marcha de mulheres contra Trump
(especialmente as racializadas e imigrantes) nos Estados Unidos,
bem como o movimento viral da internet #MeToo, que denunciou
casos de assédio e abusos sexuais envolvendo poderosos da
indústria estadunidense do cinema, em especial de Holywood; o
#niunaamenos (2015-2016) e a luta pela legalização do aborto
(2018-9), na Argentina; o movimento de mulheres chilenas,
iniciado pelo coletivo “Las Tesis”, de Valparaíso, com a frase que
88
repercutiu em outros países “O violador é você”, com referência
ao Estado liberal que produziu desigualdade social crescente
acompanhada de forte repressão policial; a luta das mulheres
contra Bolsonaro #elenão, no Brasil, em 2018; e outros protestos
de mulheres que também ocorreram no Equador, na Bolívia e na
Colômbia, em torno de demandas sociais, da questão indígena e
em defesa da democracia (PROTESTOS, 2020); por fim, o 8M, o
dia da greve internacional de mulheres, em marcha desde 2017,
e que abarca cada vez mais países, cujo manifesto (ARRUZZA;
BHATTACHARYA; FRAZER, 2019) deixa claro: trata-se de um
feminismo radicalmente anticapitalista.
Mediante esse contexto, nosso objetivo é apresentar as
principais teses, avanços e limites das três mencionadas
publicações, na tentativa de dialogar com as autoras,dado que é
bastante importante que uma base teórica feminista marxista
seja uma arma revolucionária para enfrentar o avanço da
barbárie capitalista do tempo presente.
Em conexão direta com o debate entre feminismo e
marxismo está a relação entre capitalismo e patriarcado, que nos
parece ser o ponto fulcral dos três artigos, especialmente a
polêmica, por um lado, se são sistemas separados que
convergem neste tempo histórico ou se, por outro lado, só faz
sentido pensar uma teoria unitária que reúna capitalismo e
patriarcado como partes do mesmo sistema.
Nessa seara, outro elemento surge como fundamental
para pesquisas que desejam investigar trabalho e gênero, para
além das interfaces entre marxismo e feminismo e capitalismo e
patriarcado: a relação entre produção e reprodução, a qual
também será abordada no presente capítulo, primordial para a
perspectiva a que temos nos dedicado com mais afinco, a da
Teoria da Reprodução Social 7.
89
Para os objetivos mencionados, organizamos o capítulo
da seguinte forma: a primeira seção trata do sistema dual
materialista proposto por Hartmann (1983 [1977]), em
contraposição ao sistema dual das feministas radicais; a
segunda seção apresenta a proposta de uma teoria unitária
(capitalismo e patriarcado) por Young (1992 [1981]); a terceira
seção apresenta a concepção de união queer entre marxismo e
feminismo, por Arruzza (2019 [2010]), que dialoga com a teoria
unitária de Young, entretanto, tentando pensar os desafios
postos pelo tempo presente, de uma economia global, entrela-
çando classe e gênero; por fim, a última seção conta com
apontamentos da autora do capítulo sobre limites e alcances do
debates mencionados, com sugestões por onde marxismo e
feminismo devem caminhar, a partir das contribuições anterior-
mente apresentadas.
campo: Lise Vogel, Martha Gimenez, Johanna Brenner, Susan Ferguson, David
Mc Nally, Cinzia Arruzza e Tithi Bhattacharya,
90
ao sexo”. Para essa pesquisadora, contudo, também a análise
feminista estava sendo cega à história, bem como insuficiente-
mente materialista. Sem negar a importância do marxismo,
Hartmann sugere uma nova direção para a análise do feminismo
marxista.
Ao propor um novo direcionamento, Hartmann (1983) se
centrou, especificamente, na relação entre capitalismo e
patriarcado. Para melhor compreensão desse direcionamento,
faz-se necessário diferenciar a noção de patriarcado para
Hartmann e para as feministas radicais, com quem ela dialoga
no artigo.
As feministas radicais surgiram nos Estados Unidos, no
contexto de intensa agitação política dos anos 1960. O american
dream abalado pelo assassinato de Kennedy e a recusa à Guerra
do Vietnã, em uma realidade racista, de exploração da classe
trabalhadora e imperialista, fizeram surgir, nos Estados Unidos,
movimentos sociais radicais. Não somente se constituía uma
Nova Esquerda, como as mulheres, no interior do próprio
movimento, estavam insatisfeitas sobre como eram tratadas,
bem como sobre a forma como a questão da mulher era
abordada em seus escritos e agitações.
Esses movimentos radicais não estavam interessados em
reformas políticas, estavam interessados em criar novas formas
de vida, novas formas de viver. Foi assim que, entre 1967 e 1975,
se desenvolveu o feminismo radical (PEDREIRA, 2008).
91
método à serviço das questões feministas. Inclusive o “radical” é
inspirado nas noções marxistas de tomar as questões pela raiz.
Elas tinham por objetivo encontrar a raiz das opressões.
Firstone (1970) colocou a reprodução, ao invés da
produção, como a força motora da história, com ênfase muito
forte nas motivações biológicas e psicológicas para a condição
da mulher. Já Mitchell, segundo Hartmann (1983), foi incapaz
de analisar a participação dos aspectos materiais no processo de
formação da personalidade e na criação do gênero, ou como o
sexo (biológico) se converte em gênero (social).
No sentido já apontado, de acento nas questões
psicológicas, o principal slogan do movimento feminista radical
era “o pessoal é político”.
92
Esta definición de patriarcado del feminismo radical se
aplica a la mayoría de las sociedades que conocemos y no
se puede distinguir entre ellas. El uso de la historia por las
feministas radicales está tipicamente limitado a sumi-
nistrar ejemplos de la existência del patriarcado em todos
los tempos y lugares (HARTMANN, 1983, s.p.).
93
dentro do próprio marxismo, na medida em que possibilita
afirmar que, mesmo no socialismo, uma sociedade pode
permanecer sendo patriarcal. Ou seja, que a revolução em si não
produziria, automaticamente, a superação de outras opressões,
como a de gênero.
Hartmann (1983) concorda com o fato de que o
patriarcado esteve presente na maioria das sociedades que
conhecemos, porém afirma que se modifica em forma e em
intensidade. Bem como “las mujeres de diferente classe, raza,
nacionalidade, estado marital, grupo de orientação sexual, están
sujetas a diferentes grados de poder patriarcal” (HARTMANN,
1983, s.p.).
A centralidade na questão da relação de poder entre
homens e mulheres é tão grande para as análises das feministas
radicais, que essas passaram a rechaçar a luta conjunta entre
homens e mulheres.
94
mesmas de radicais. Sustentaram a opinião que grupos e
partidos mistos (homens e mulheres) como o Partido
Socialista, SDS, New Left não seriam capazes de levar
adiante a luta pela emancipação da mulher e um
movimento de mulheres, autônomo dos partidos, seria
necessário (GANDHI, 2016, p. 26).
95
Hartmann (1983) propôs, conclusivamente, a partir de
toda essa análise, uma união mais progressista entre marxismo
e feminismo para, dessa forma, organizar uma prática que se
dirigisse tanto contra o patriarcado como contra o capitalismo.
“[...] mientras que los hombres han luchado por más tiempo
contra el capital, las mujeres sabemos por qué luchar” (s.p.).
Arruzza (2015 [2014]), em análise mais recente, propõe
reabrir o debate entre capitalismo e patriarcado. Em sua
pesquisa, formulou três teses: a “teoria dos sistemas duplos ou
triplos”; a do “capitalismo indiferente” e a “teoria unitária”.
A teoria dos sistemas duplos seria aquele que analisa
capitalismo e patriarcado como dois sistemas diversos, com
estrutura própria.O sistema triplo seria aquele que incluiria,
além de capitalismo e patriarcado, um terceiro sistema, para
tratar a questão racial, de forma autônoma, ainda que
interseccionando-se com os dois primeiros.
Na tese do “capitalismo indiferente”, a opressão de
gênero, expressa no patriarcado, é vista como reminiscente de
formas sociais anteriores ao capitalismo.Este teria uma relação
oportunista com a desigualdade de gênero e poderia superá-la
sem maiores dificuldades. Uma importante teórica do campo
marxista aparece como representante dessa tese: Ellen Wood.
Já a teoria unitária busca dar “uma explicação teórica
única e integrada tanto da opressão às mulheres quanto do
modo de produção capitalista” (FERGUSON; MCNALLY, 2017, p.
33).
Apesar das cobranças que Hartmann faz quanto as
aproximações entre marxismo e feminismo, Arruzza (2015)
adverte que Hartmann (1983) recai na teoria dos sistemas
duplos, porque não colocam capitalismo e patriarcado como
parte de uma mesma unidade. Tal conclusão está em
consonância com a leitura de Young, que analisaremos a seguir.
96
de Hartmann ter dado bases materiais ao patriarcado, ainda
tratou capitalismo e patriarcado como um sistema dual. Young
(1992) propõe uma teoria unitária. Diz a autora:
97
embargo, admitir que, si el patriarcado y el capitalismo se
manifiestan em estructuras económicas sociales idênticas,
entonces pertenecem a um sistema, y no a dos” (YOUNG, 1992,
s.p.). Corre-se o risco, em se mantendo uma análise dual, de se
propor que o patriarcado seja um modo de produção em si
mesmo, alertou Young (1992).
Sob influência das feministas radicais, também as
feministas materialistas 8 enveredaram para o debate de classe
de sexo, tendo sido um artigo fundante neste sentido o intitulado
“O inimigo principal: a economia política do patriarcado”, de
Christine Delphy, de 1970, no qual ela indica que há um modo
de produção patriarcal em paralelo ao modo de produção
capitalista, e que as mulheres devem se atentar para a
exploração que ocorre dentro dos lares, estabelecida pelo
antagonismo de classe de sexo.
98
Young (1992) sugere às feministas, destarte, que não se
“casem” com o marxismo, mas que se apropriem das análises
das relações de produção e das relações sociais do marxismo
para propor uma teoria que tome o trabalho das mulheres como
central, portanto, “[...] um sistema único en el cual la
diferenciación de género es un atributo central” (YOUNG, 1992,
s.p.).
Assim como o sistema de classes é categoria central de
análise para o marxismo tradicional, Young (1992) propõe que a
“divisão do trabalho por gênero” seja categoria central dessa
teoria unitária a ser proposta pelas feministas. Em concordância
com Hartmann (1983), para Young (1992), o conceito de classe
é sem dúvida “cego ao gênero” no marxismo. Segundo a
pesquisadora, a categoria “divisão do trabalho” permaneceu sem
desenvolvimento após importante explanação de Marx e Engels
em “A ideologia Alemã”.
Young (1992) procurou avançar com relação à Hartmann
(1983) ao dizer que as tarefas tradicionais da mulher no lar
também cabem dentro da categoria trabalho, aproximando
produção e reprodução como parte das relações sociais.
As relações de gênero e a posição da mulher devem estar
no centro da análise materialista histórica, de modo a relacionar
a emergência da sociedade de classes à divisão do trabalho por
gênero sem, com isso, repetir o equívoco das feministas radicais
de afirmar que a sociedade de classes deriva da opressão sexual.
Outro elemento que já aparece em Hartmann (1983) e
que é reforçado por Young (1992) é a importância da relação
entre universal e particular, para quem a divisão do trabalho por
gênero evita generalizações de que as mulheres em diferentes
espaços geográficos e tempos históricos sofrem da mesma forma
a opressão sexual. Há variações de graus de subordinação das
mulheres aos homens, inclusive com relação à raça, origem
étnica etc.
Feito esse desenvolvimento teórico, Young (1992)
apresenta sua tese central: “[...] la marginalización de la mujer
y, por conseguiente, nuestro funcionamento como uma fuerza
laboral secundária, es uma característica fundamental e
essencial del capitalismo” (YOUNG, 1992, s.p.).
99
Sem usar o conceito de Marx (2013), Young (1992) diz
que a mulher compõe a superpopulação relativa, que responde
às flutuações em torno da massa empregada. Citando Saffioti,
ela coloca os homens no núcleo central ou como trabalhadores
primários, e as mulheres como trabalhadoras secundárias ou
marginais.
O capital precisa de critérios para absorver ou não uma
determinada quantidade de trabalhadores no mercado de
trabalho, respondendo às suas necessidades. O capitalismo se
utiliza de critérios técnicos e raciais, mas o mais óbvio e
permanente, segundo Young (1992), tem sido a divisão por sexo.
A depender da conjuntura, os trabalhadores homens bem pagos
são trocados por mulheres mal remuneradas.
Ainda assim, mesmo que tidas como secundárias, os
capitalistas continuam a promover a ideologia da “feminilidade
doméstica” para justificar baixos salários, sua indispensa-
bilidade no lar e para impedir que se organizem (YOUNG, 1992,
s.p.).
Para Lerner (2019), estudiosa da história da opressão das
mulheres, esse caráter ideológico é reforçado materialmente:
100
Mas, se recorrermos a publicações contemporâneas
àquelas, como a de Guillaumin (2014 [1978]) 9, para quem a
mulher é uma fábrica de fazer filhos, portanto, de produzir força
de trabalho, cuja vida é, não somente explorada e oprimida, mas
também seu corpo apropriado privada e coletivamente, veremos
que nem os direitos reprodutivos seriam exceção.
Assim, para Young (1992), a luta é uma só e urgente:
contra o capital e contra o patriarcado, que compõem um único
sistema.
101
que se movem como fantasmas em um mundo capitalista
globalizado e estruturas patriarcais que, ao contrário,
foram integradas, usadas e transformadas pelo capita-
lismo, exige uma renovação do marxismo. Esta renovação
é necessária para ir além da contraposição entre as
categorias cultura e economia, material e ideológico. Um
projeto político que busque construir um novo movimento
de trabalhadores requer uma séria reflexão sobre como
gênero e raça influenciam tanto a composição da força de
trabalho quanto o processo de subjetivação. Além disso,
significa o fim da disputa sobre a “opressão original”
(ARRUZZA, 2019, p. 140).
10A teoria queer foi desenvolvida na década de 1990 e tem como principal teórica
a filósofa Judith Butler. Em crítica a leituras deterministas, essencialistas e
biologicistas, a estudiosa ressalta o caráter performativo do gênero, na tentativa
de quebrar com a lógica normativa preponderante. Arruzza (2019) ressalta
importância da análise de Butler por ter conectado elementos da cultura com a
base material. Contudo, enxerga como limite um distanciamento da base
econômica que estrutura as relações de poder.
102
O termo reprodução social, na tradição marxista,
normalmente indica o processo de reprodução de uma
sociedade em sua totalidade [...]. Na tradição marxista
feminista, entretanto, reprodução social significa algo
mais preciso: a manutenção e reprodução da vida, em nível
diário e geracional. Neste contexto, reprodução social
designa a forma na qual trabalho físico, emocional e
mental necessário para a produção da população é
socialmente organizado (ARRUZZA, 2015, p. 55).
103
crítica dialética a um materialismo histórico economicista 12. Tal
crítica torna muito equivocado tratar a reprodução em separado
da produção social, quanto mais afirmar que o patriarcado é
parte da superestrutura ou apenas uma expressão ideológica da
produção econômica.
Também consideramos que essa (re)visitação à obra de
Marx pode invalidar a afirmação de que o autor e marxismo são
cegos em relação ao sexo/gênero 13. Ao falar de classe e divisão
do trabalho, Marx não ignorou a questão da mulher. Podemos
dizer que são apontamentos não aprofundados, mas
consideramos um tanto quanto exagerado afirmar que era cego
no que diz respeito às mulheres na composição social das
classes. Outros marxistas, como István Meszáros (2002),
dedicaram espaço em suas obras para discutir especificamente
a libertação da mulher 14.
Além de um exercício na utilização do método
materialista histórico dialético, se faz necessária uma análise
ontológica do ser social mulher na sociedade capitalista para
entender o patriarcado em sua intrínseca relação com o modo
de produção capitalista, observando diferentes níveis de
abstração na análise, que deem conta da relação universal,
particular e singular.
As autoras chamam atenção, e estamos de acordo com
elas, para a necessidade de pesquisas empíricas, que nos
permitam melhor nos apropriarmos da materialidade concreta
da sua posição de mulher (em toda a sua heterogeneidade de
classe, raça e orientação sexual), sob opressão patriarcal, na
sociedade capitalista.
Em conclusão ao debate, fazemos a defesa de uma teoria
unitária, que pense capitalismo e patriarcado como uma
totalidade integrada e não como dois sistemas em separado.
Cientes de que o patriarcado existe na história há muito mais
tempo que o modo de produção capitalista, analisamos que o
capitalismo eleva o patriarcado a um novo patamar, cujas
104
particularidades e singularidades podem ser expressas em
pesquisas empíricas.
É preciso destacar e fazer a autocrítica para o fato de que
as feministas marxistas têm se centrado nos âmbitos de gênero
e classe, e que a questão racial tem sido marginalizada em boa
parte da produção teórica desse campo. Por mais que se
reivindique que não é possível pensar ontologicamente a mulher
a não ser em sua diversidade concreta –isso significa pensar
tanto raça, quanto classe, quanto sexualidade como fundantes
do que seja o ser social mulher na sociedade capitalista –, ainda
há que se avançar nesse sentido.
O rigor teórico, a observância do método, a análise da
materialidade concreta e proposição política de um feminismo
anticapitalista podem ser fortes instrumentos na luta contra a
barbárie capitalista que se aprofunda velozmente com a
mundialização financeira do capital. Tal arcabouço pode revelar
que uma revolução social só se concretiza se o marxismo for
feminista e se o feminismo for marxista.
Referências
105
CISNE, Mirla. Relações sociais de sexo, “raça”/etnia e classe:
uma análise feminista-materialista. Temporalis, Brasília (DF),
ano 14, n. 28, p. 133-149, jul./dez. 2014.
106
HARTMANN, Heidi. El infeliz matrimonio entre marxismo y
feminismo: hacia uma unión más progressista. Teorya y
practica, 12-13, 1983 [1975-1977], mimeo
107
MUSTO, Marcello. O velho Marx. São Paulo: Boitempo, 2018.
108
Determinaciones de la fuerza de trabajo
de las mujeres en el Capitalismo: una
aproximación teórica
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Introducción
109
fuerza de trabajo de las mujeres en los marcos de la lógica del
capital. La finalidad de este análisis es argumentar, primero, el
proceso de subordinación estructural al que se encuentra
sometida la fuerza de trabajo de las mujeres en el Capitalismo y,
segundo, que el trabajo desempeñado por las mujeres en este
sistema está no solamente determinado por la explotación; sino
también determinado por relaciones opresión de género,
coherentes y favorables a la lógica de la acumulación.
El artículo se ha estructurado en tres ítems: el primero,
examina la relevancia de la división sexual del trabajo dentro de
este análisis; posteriormente, se abordan las articulaciones
entre producción del capital y reproducción de la fuerza de
trabajo, y sus implicaciones para las mujeres; y por último, se
analizan las características y contradicciones del trabajo
remunerado de las mujeres en el Capitalismo. De forma general,
se examinan aspectos polémicos tanto dentro del marxismo, del
feminismo, como en las diferentes intersecciones entre estas dos
perspectivas teóricas y prácticas. La metodología utilizada es el
análisis bibliográfico.
110
demandan la existencia de relaciones patriarcales de género
específicas. Es decir, el modo de producción capitalista adapta,
excluye y crea relaciones patriarcales de género que sean
coherentes y favorables a la lógica de la valorización del capital.
Adicionalmente, resalta esta autora que “dichas relaciones de
género – recíprocamente determinantes de, y determinadas por,
relaciones raciales y otras más – constituyen al Capitalismo.
Ellas se encuentran entre las fuerzas sociales reales, a través de
la cual la lógica de la acumulación y la expropiación opera”
(FERGUSON, 2017, p. 26, traducción propia).
Adicionalmente, este enfoque también busca destacar
cómo determinadas relaciones de género tributan a impulsar,
directa o indirectamente, el proceso de valorización. De esta
forma, la utilización de relaciones patriarcales de género puede
también convertirse en una posible palanca para el desarrollo de
la acumulación capitalista; e inclusive, en una válvula de escape
en momentos de crisis. En otras palabras, la forma específica en
que se concretan las relaciones patriarcales de género se
convierte en uno de los factores que ayuda a reproducir el
conjunto de las relaciones sociales capitalistas.
Un aspecto central dentro del análisis de las conexiones
que se establecen entre relaciones patriarcales de género y
relaciones sociales de producción, lo constituye la división
sexual del trabajo. Al respecto, se defiende la postura de que la
división sexual del trabajo es uno de los principales fenómenos
que explica la subordinación estructural del trabajo realizado
por las mujeres dentro de la sociedad capitalista.
Se suscribe la idea de que el Capitalismo se ha edificado
sobre una específica división sexual del trabajo. Con ello no se
pretende trasmitir la idea de que la división sexual del trabajo
sea un fenómeno privativo del modo de producción capitalista;
por el contrario, constituye un proceso que tiene su génesis en
los preludios de la humanidad. En este sentido, la división
sexual del trabajo debe ser considerada un fenómeno modulado
histórica y socialmente, y por tanto en constante transfor-
mación. No obstante, se enfatiza en que el modo de producción
capitalista ha utilizado de forma funcional dicha división sexual
del trabajo para dar respuesta a variadas exigencias del proceso
de valorización del capital en diferentes momentos históricos y
111
contextos sociales; por lo cual este fenómeno ha asumido, bajo
el Capitalismo, determinaciones históricas y sociales
particulares.
Otra acotación relevante es que la división sexual del
trabajo, además de ser un proceso socio-históricamente
determinado, también se encuentra influenciado por otras
condicionantes en función de la clase social, raza/etnia,
nacionalidad, entre otros aspectos. Esta puntualización es
relevante porque – aunque se esté haciendo un análisis general
relacionado al trabajo de las mujeres en la sociedad capitalista
– esto no puede llevar a una lectura simplificadora de la realidad,
que asuma que todas las mujeres tienen una situación común y
unificada, y por lo tanto que las implicaciones de la división
sexual del trabajo son iguales para todas las féminas. Por lo
cual, no sólo las opresiones que estas sufren serán
diferenciadas; sino que, adicionalmente, el propósito y alcance
de sus luchas también lo será.
La lógica del capital, como totalidad compleja y
contradictoria, articula constantemente procesos como la
división del trabajo social, la división internacional del trabajo,
y también la división sexual del trabajo. Esta última, al igual que
las anteriores, implica una especialización a lo interno de los
procesos de trabajo; es decir, implica “[...] una división o forma
de organización social de la distribución del trabajo entre los dos
grupos de sexo [...]” (DEVREUX, 2005, p. 568, traducción
propia).
Sin embargo, lo específico a este fenómeno es que, al
mismo tiempo en que produce una distribución diferenciada del
trabajo social entre hombre y mujeres, también genera una
ponderación desigual de dichos trabajos según niveles de
importancia y reconocimiento social. De esta forma, la división
sexual del trabajo se configura a través de dos principios
organizadores o invariantes: “el principio de separación (existen
trabajos de hombres y trabajos de mujeres) y el principio
jerárquico (el trabajo del hombre “vale más” que el trabajo de la
mujer). Estos principios [...] rebajan el género al sexo biológico,
y reducen las prácticas sociales a “roles sociales” sexuados que
remeten al destino natural de la especie (HIRATA; KERGOAT,
2007, p. 599, traducción propia).
112
En síntesis, la división sexual del trabajo no es un
fenómeno natural ni neutral; ni tampoco surge como resultado
de la necesaria complementariedad y reciprocidad entre
hombres y mujeres en el mundo del trabajo. Al contrario, es un
proceso esencialmente asimétrico. En este sentido, como
destacan Cisne y Dos Santos (2018), no se trata apenas de
trabajos diferentes en función del género, sino que implica,
esencialmente, la realización de trabajos jerarquicamente
distintos, que se desdoblan y se expresan en diversas desigual-
dades.
Por otra parte, Tabet (1979) otorga un especial destaque
al desigual acceso de las mujeres a los instrumentos de trabajo,
tanto en su elaboración como utilización; siendo este
subequipamiento material por parte de las mujeres uno de los
aspectos a través de cual se expresa y, al mismo tiempo, se
configura la división sexual del trabajo. Efectivamente, “[...] en
la gran mayoría de las sociedades conocidas, la desigual división
del trabajo entre los sexos se apoya en un acceso diferenciado a
las herramientas, a las armas y al conocimiento” (CURIEL;
FALQUET, 2005, p. 17); características que no han tenido una
mudanza significativa con el desarrollo del modo de producción
capitalista. En resumen, estos análisis también remeten a una
cuestión central que es la desigual configuración, en términos
de género, de la propiedad y uso sobre los medios de producción
en la sociedad. De lo cual deriva, entre sus posibles
implicaciones, la generación de una productividad del trabajo
más constante y elevada para los hombres; así como, un mayor
control del proceso de producción y una dispar apropiación de
los resultados obtenidos en el proceso de producción capitalista
entre hombres y mujeres.
Por su parte, la división sexual del trabajo; así como, los
principios organizadores a través de los cuales esta se estructura
tienen diversas formas de expresión concreta. Como vía para
ilustrar la vinculación existente entre relaciones patriarcales de
género capitalistas y relaciones sociales de producción
capitalistas, se aborda a continuación cómo la división sexual
del trabajo conduce a una específica articulación entre los
procesos de producción del capital y de reproducción de la fuerza
de trabajo.
113
Articulaciones entre producción y reproducción en el
sistema capitalista
114
La anterior no es una connotación menor, porque dicho
no va a alcanzar el mismo nivel de prestigio social que el trabajo
desempeñado como parte del proceso de producción de capital.
De forma que, no será un trabajo reconocido socialmente a
través del mercado y, por ende, generalmente dicho trabajo no
será remunerado. Incluso, en la mayoría de los casos, debido a
la propia mistificación e inversión que genera la sociabilidad
capitalista, las actividades y relaciones realizadas como parte del
proceso de reproducción de la fuerza de trabajo, no se les va a
otorgar el estatus de trabajo.
Por otra parte, precisar que el trabajo asociado a la
reproducción de la fuerza de trabajo realizado tiene un carácter
improductivo. En este sentido, desde la perspectiva marxista,
sólo es productivo en el Capitalismo el trabajo que contribuye
directamente a la producción de plusvalía; es decir, a la
valorización del capital. 2 En contrapartida, no es productivo
aquel trabajo que solamente produce valores de uso o el que
facilita el paso de unas formas de valor a otras, pero sin
contribuir a su valorización. De esta forma, el carácter
productivo o no de un trabajo concreto no se encuentra
relacionado con el hecho de que su naturaleza sea manual o
intelectual, ni con la condición material o inmaterial de su
producto, ni tampoco con su necesidad o prioridad social. Por lo
que la denominación de trabajo productivo o improductivo no
tiene, dentro de la perspectiva marxista, un trasfondo moral o
una connotación peyorativa; sino que se establece en función del
papel que dicho trabajo tiene en la producción de plusvalía
(ARRIZABALO, 2016).
El análisis anterior es relevante para la discusión que se
viene desarrollando porque, aunque se ha defendido la estrecha
articulación entre esfera de la producción y la esfera de la
reproducción, es importante destacar que entre ambas no existe
una identidad; por lo cual es posible diferenciarlas según sus
características y, sobre todo, por sus respectivos roles dentro del
115
proceso de valorización (ARRUZZA, 2017). La postura que se
suscribe, defiende la idea de que el trabajo reproductivo produce
valores de uso y no mercancías. Adicionalmente, en esta esfera
independientemente de que dicho trabajo sea remunerado o no,
no se generan las condiciones socio-económicas que conlleva la
producción de plusvalía. En este sentido se suscribe que el
trabajo asociado a la reproducción de la fuerza de trabajo tiene
un carácter improductivo.
Al mismo tiempo es importante insistir nuevamente en la
idea de que aunque el trabajo reproductivo se realice sin
reconocimiento social y no tenga un carácter productivo, ello no
quiere decir que no sea un trabajo fundamental para el
desarrollo de la sociedad. De hecho, se trata de todo lo contrario,
de entender la relevancia que asume el trabajo reproductivo
dentro de la lógica del capital (MARX, 1973[1867]). En otras
palabras, sin trabajo reproductivo no es posible la constante
renovación de la mercancía especial que sustenta todo el proceso
de acumulación (FEDERICI, 2013).
De esta forma, para que se garantice la valorización del
capital, tienen que reproducirse constantemente las condiciones
de partida que permiten la explotación de la fuerza de trabajo
asalariada; lo cual implica necesariamente que la capacidad de
trabajo (presente y futura) tiene que ser constantemente
renovada para que el capital pueda consumirla productiva-
mente. En síntesis, el trabajo reproductivo contribuye
indirectamente al proceso de valorización del capital. “De allí que
el trabajo reproductivo sea indispensable, aunque no genere
valor ni, por tanto, plusvalor; es decir, aunque desde el punto de
vista estricto de la lógica del capital, sea un trabajo no
productivo (D´ATRI; MURILLO, 2018, p. 9)
Por otra parte, como puntualiza Araújo (2000), no se
puede perder de vista que los procesos de producción y
reproducción siempre se realizan vía sujetos sexuados/
generificados. En este sentido, es necesario comprender cómo a
lo interno de la esfera de la reproducción, y especialmente en la
familia se concreta todo el conjunto de actividades y relaciones
que garantizan la reproducción de la fuerza de trabajo.
Hirata y Kergoat (2007), Federici (2013), Arruzza (2014),
entre otras feministas, al realizar una crítica sobre la
116
invisibilización, devaluación y feminización a que son objeto
estas actividades, llaman la atención acerca de cómo la
gratuidad del trabajo reproductivo contribuye a ocultar su
verdadera naturaleza; es decir, cómo este trabajo es constante-
mente mistificado y transfigurado por las relaciones sociales
capitalistas. En otras palabras, la especificidad de trabajo
reproductivo no sólo se reduce al hecho de que este sea realizado
sistemáticamente de forma gratuita y por mujeres; sino que
también este trabajo ha sido intencionalmente transformado en
un atributo natural de la psique y la personalidad femenina, en
una especie de necesidad interna o una aspiración inherente a
la “condición de mujer”. En este sentido, la siguiente crítica de
Federici (2017):
117
Como destaca Federici, la devaluación y feminización del
trabajo reproductivo constituye uno de los pilares de la
acumulación capitalista; ya que “[...] el Capitalismo depende del
trabajo reproductivo no asalariado para contener el coste de la
mano de obra” (FEDERICI, 2013, p. 26). Lo anterior no es sólo
una práctica de la clase capitalista, sino también para del Estado
capitalista, en la medida en que lo exime, parcial o totalmente,
de realizar una intervención pública, a través de políticas
sociales y/o económicas, que garanticen dichas condiciones de
reproducción. El resultado de todo este proceso es que
constantemente la lógica del capital relega y/o sobrecarga
fundamentalmente a las mujeres a través del trabajo repro-
ductivo no remunerado. Práctica que no sólo es funcional, sino
que es necesaria para el modo de producción capitalista, sobre
todo en tiempos de crisis.
Es por ello, que la lógica del capital constantemente
reproduce relaciones sociales que aparentemente desvinculan
ambas esferas; responsabilizando individualmente a la familia,
y fundamentalmente a la mujer, por la realización de este trabajo
y negándole reconocimiento social; de forma que se perpetúe en
su condición de trabajo no remunerado y feminizado. En este
sentido, es muy poco probable que el metabolismo social del
capital espontáneamente reformule una práctica sistemática,
“conveniente” y tan enraizada en términos económicos, sociales,
culturales, ideológicos, religiosos etc.
De ahí se explica que, cada cierto tiempo, la lógica del
capital potencie la vuelta al hogar, incluso a tiempo completo, de
las mujeres; ocultando el móvil de dichas intenciones a través
del velo conservador de las costumbres tradicionales y de la
exaltación de un determinado tipo de familia como pilar de la
sociedad. De esta forma, “glorificar la familia como ‘ámbito
privado’ está en la esencia de la ideología capitalista, [...] y no es
sorprendente que en estos tiempos de crisis, austeridad y
privaciones esta ideología disfrute de una popularidad renovada
en la agenda capitalista” (FEDERICI, 2013, p. 62).
118
El trabajo remunerado de las mujeres en el Capitalismo:
características y contradicciones
119
con los ciclos de la acumulación capitalista. De esta forma,
aunque el sistema capitalista ha tendido a incorporar
crecientemente la fuerza de trabajo femenina en el ámbito de la
producción; ello no entra en contradicción en que por momentos
dispense parcialmente, en mayor o menor cuantía, el trabajo
asalariado de las mujeres.
En este sentido, aunque la presencia de las mujeres en
el trabajo remunerado se ha ampliado relativamente sobre todo
en las últimas décadas – al punto de que a veces se plantea la
consolidación de una tendencia hacia la “feminización del
trabajo” remunerado – también es visible que otros patrones
permanecen inalterables. Lo anterior se concreta en que las
mujeres continúan siendo mayoritarias, por ejemplo, dentro del
contingente de desempleados y de la población económicamente
no activa a nivel mundial. Históricamente dentro de la
superpoblación relativa, las mujeres han constituido por un
grupo representativo. Sobre esta cuestión Young (1980)
argumenta que:
120
realiza precisamente a través de las mujeres – y de otros grupos
sociales cuyo trabajo es también desvalorizado pero requerido,
ejemplo de ello son los inmigrantes, los presos, las llamadas
“minorías” étnicas/raciales, los estudiantes, etc. – las cuales
constituyen un contingente de mano de obra mucho más
maleable (SAFFIOTI, 1976, p. 18).
Por otra parte, puntualizar que la tendencia creciente de
la incorporación de la mujer al trabajo remunerado no ha
implicado una modificación o reducción de la feminización del
trabajo reproductivo a lo interno de la familia, ni de su
desvalorización social o de su gratuidad, en la mayoría de los
casos. Por el contrario, en la práctica se ha producido una
agregación – en términos de tiempo, responsabilidades, exigen-
cias, etc. – entre trabajo remunerado y no remunerado, con
impactos extremadamente negativos para las mujeres.
Por ello, en muchas ocasiones, para describir esta
práctica habitual de la sociabilidad capitalista, se hace
referencia a las varias jornadas (duplas, triplas, etc.) de trabajo
a que continúa socialmente sometida la mujer. No obstante,
como destacan Dantas y Cisne (2017), la noción de jornada
dupla de trabajo puede llevar a la interpretación de que se trata
de jornadas que son aisladas e independientes; por ello se
prefiere utilizar el enfoque de que la jornada de trabajo de las
mujeres es intensiva, extensiva e intermitente.
Adicionalmente, se defiende la idea de que el perfil que
describe el trabajo remunerado desempeñado por las mujeres en
el Capitalismo ha variado bastante poco en los últimos siglos
(sobre todo en términos de cualidad). De forma que,
históricamente se configura, a nivel de toda la sociedad, una
especie de perfil de trabajo secundario o subalterno asociado a
las actividades remuneradas desempeñadas por las mujeres en
el ámbito de la producción capitalista. En este sentido, las
mujeres efectúan mayoritariamente “trabajo de mujeres” en
condiciones de “trabajo de mujeres”: informalidad, precari-
zación, abuso de todos tipos (CISNE, 2014).
De forma que, paralelamente a la tendencia creciente de
la incorporación de las mujeres al trabajo remunerado (no
obstante en niveles menores que los hombres), también se
profundiza constantemente un perfil de trabajo secundario o
121
subalterno asociado a las actividades remuneradas que
desempeñan las mujeres. Esta incorporación, salvo raras
excepciones, reproduce a partir de una división sexual del
trabajo donde a las mujeres les son reservadas: áreas de trabajo
intensivo, con jornadas laborales más prolongadas, con
predominancia de ocupaciones subordinadas que exigen baja
cualificación, tipos de trabajo más precarizado, en régimen a
tiempo parcial o por tiempo definido, marcados por una
informalidad mucho más fuerte y con desniveles salariales más
acentuados en relación a los hombres (ANTUNES, 2009 [1999]).
Debido a todas estas características del trabajo
remunerado desempeñado por las mujeres; así como, por su
articulación con el trabajo no remunerado en los marcos del
Capitalismo, se defiende la idea de que “se trata de una
explotación intensiva y extensiva de la fuerza de trabajo
femenina, que ocupa todos los poros del tiempo de la vida social
en favor de la valorización del capital” (DANTAS; CISNE, 2017,
p. 85). De ahí que, la situación vivenciada por las mujeres dentro
de sistema capitalista sea especialmente aguda; pudiendo estar
sujeta tanto a relaciones de opresión como de explotación. En
ambos casos no se trata de fenómenos cuantitativos,
mensurables y agregables; sino que “[...] se trata de
determinaciones, de cualidades que tornan la situación de las
mujeres más compleja” (SAFFIOTI, 2005, p. 49, traducción
propia).
Es por ello que se concuerda con Segnini (1994); así
como, con Dantas y Cisne (2017) cuando afirman que el espacio
ocupado por la mujer dentro del trabajo remunerado no es sólo
resultado de conquistas decurrentes de las intensas luchas
feministas (por derechos políticos, civiles y sociales); sino que, al
mismo tiempo, la incorporación de las mujeres al espacio
“público” del trabajo asalariado es una conquista del capital (o
al menos una “concesión” extremadamente lucrativa) en vistas
del proceso de valorización.
Todos estos aspectos revelan el rol que juegan las
relaciones patriarcales de género para el proceso de
acumulación capitalista. En este sentido, “[...] el entrelazamiento
de la explotación capitalista y una específica división del trabajo
en función de relaciones de género históricas muestra que, entre
122
otros tipos de opresión, la producción capitalista se basa en la
opresión de la mujer” (HAUG, 2006, p. 331). En otras palabras,
se produce una específica articulación entre relaciones
patriarcales de género y relaciones sociales de producción en el
Capitalismo que tiene como sustentación formas de dominación,
opresión y explotación de las mujeres.
Reflexiones finales
123
sistema capitalista. Dicho proceso tiene diversas formas de
expresión concreta.
Ejemplo de lo anterior son: i) segregación horizontal:
existencia de barreras sociales a la entrada de las mujeres en
determinadas actividades económicas u ocupaciones
“masculinizadas”, y su concentración en otras actividades
estereotipadas como “femeninas” con menor reconocimiento
socio-profesional y que generalmente replican las funciones del
trabajo reproductivo (educación, sanidad, enfermería, etc. ); ii)
segregación vertical: menores posibilidades y rapidez para
ascender dentro de la jerarquía laboral, lo cual se refleja en el
menor y difícil acceso de las mujeres a puestos de trabajo con
elevado poder decisorio y remuneración; iii) la cantidad de
tiempo que, como promedio, mujeres y hombres consiguen
dedicar a sus profesionales, siendo menor para la mujeres
debido a la carga de horas que dedican al trabajo reproductivo
no remunerado; iv) menor acceso de las mujeres a cursos de
entrenamiento y capacitación; v) diferenciales en los niveles de
productividad y contenido tecnológico de las actividades
desempeñadas; vi) discriminación salarial por razón de sexo:
menores retribuciones salariales recibidas por las mujeres,
inclusive con igual grado de escolaridad y desempeñando la
misma ocupación y funciones que hombres en la misma
actividad; vii) acceso restricto a créditos por parte de las mujeres
y baja movilidad ocupacional; entre otros aspectos.
En este sentido, se destacan a continuación algunos
datos ofrecidos por instituciones internacionales que ilustran
diversas formas de manifestación concreta de algunos de los
fenómenos que se han analizado a lo largo de este artículo. Esta
“evidencia empírica” de alguna forma describe el complejo
escenario que enfrentan actualmente las mujeres en el mundo
del trabajo. 3
124
Tabla 1. Cifras a nivel mundial que ilustran la realidad actual de las
mujeres en el mundo del trabajo.
En promedio y a escala mundial, las mujeres
tienen menos probabilidades de participar en el
trabajo remunerado formal (OIT, 2018a). Como
Empleo
promedio a nivel mundial “en 2019, la tasa de
Formal
participación de la mujer en la fuerza de trabajo
era solo del 47 por ciento, 27 puntos porcentuales
por debajo de la tasa del hombre (74 por ciento)”
(OIT, 2020, p. 5).
Las mujeres siguen estando sobrerrepresentadas
en el empleo informal en los llamados “países en
desarrollo”, representando alrededor de una
Partici
tercera parte del empleo informal total en estos
pación
Empleo países (OIT, 2018a). Según la OIT, en el año más
en el
Informal reciente sobre el que se dispone de datos, “el
trabajo
porcentaje de mujeres en el empleo informal de los
remun
países en desarrollo superaba en 4,6 puntos
erado
porcentuales al de los hombres al incluir a las
trabajadoras agrícolas, y en 7,8 puntos
porcentuales al excluirlas” (OIT, 2018b, p. 11).
Las tasas de desempleo de las mujeres son
sistemáticamente mayores que las de los hombres.
“En 2018, la tasa mundial de desocupación
femenina, del 6 por ciento, supera a la masculina
Desempleo
en alrededor de 0,8 puntos porcentuales. La
consiguiente relación entre las tasas de
desocupación hombre-mujer es de 1,2 en 2018”
(OIT, 2018b, p. 8).
- Las que están ocupadas se desempeñan
fundamentalmente en sectores definidos como de
baja productividad y menor contacto con las
tecnologías y la innovación (CEPAL, 2016)
- Las mujeres presentan mayores probabilidades
Estructura de acceder a empleos vulnerables o precarios, “son
del empleo 12 puntos porcentuales superiores (el 40 por
ciento) a las de los hombres (el 24,5 por ciento)”
Calidad
(OIT, 2018a, p. 15). Por ejemplo, en relación a los
del
hombres, las mujeres siguen teniendo el doble de
trabajo
probabilidades de ser trabajadoras familiares no
remun
remuneradas (OIT, 2018b).
erado
Las mujeres ganan, en promedio, el 20 por ciento
menos que los hombres, a pesar de que las
mujeres han alcanzado un mayor nivel de
Desigualda educación que sus pares masculinos (Naciones
d salarial Unidas, 2019). Por ejemplo, “En América Latina y
el Caribe, el nivel medio de estudios de las mujeres
supera actualmente al de los hombres, pero las
mujeres de la subregión siguen ganando un 17 por
125
ciento menos por hora trabajada que los hombres”
(OIT, 2020, p. 5). Un porcentaje significativo de
esta brecha obedece a la presencia excesiva de
mujeres en sectores y ocupaciones con mayor
incidencia de salarios bajos (OIT, 2018b, p. 12).
“Según las estimaciones más recientes, las mujeres
representan menos de una tercera parte de los
Menor
cargos de dirección intermedia y superior en la
acceso a
mayoría de los países desarrollados, y menos del 5
cargos
por ciento de los cargos de dirección general de las
directivos
empresas que cotizan en bolsa” (OIT, 2018b, p.
10).
Las mujeres suelen tener menos posibilidades de
gozar de cobertura de protección social en
particular de los seguros de desempleo (OIT,
2018a, p. 11). A su vez, otro conjunto de factores –
entre los que destaca: el menor nivel de
participación femenina en la fuerza de trabajo con
respecto a la masculina, las considerables
Derechos
diferencias de remuneración entre los géneros, la
y
mayor probabilidad de una carrera más breve o
garantías
con interrupciones, y la elevada presencia de
laborales
mujeres en el trabajo informal – inciden
negativamente en su capacidad de consolidar
derechos jubilatorios en el régimen contributivo de
pensiones; así como, a reducir las tasas de
cobertura previsional de las mujeres y el nivel de
su pensión y en última instancia aumentan más el
nivel de pobreza de las mujeres en la vejez con
respecto a los hombres (OIT, 2018b, p. 12).
- “Las mujeres realizan más de tres cuartas partes
del trabajo de cuidados no remunerado, y
constituyen dos terceras partes de la mano de obra
que se ocupa del trabajo de cuidados remunerado”
(OXFAM, 2020, p. 14). Esta sobre carga de trabajo
no sólo tiene impactos en la participación en el
trabajo remunerado, sino también incidencia en la
Trabajo
Trabajo calidad de dicha inserción (OIT, 2019)
doméstico
no - “Mujeres del mundo entero trabajan durante 12
y de
remun 500 millones de horas diarias sin recibir
cuidados
erado remuneración o reconocimiento alguno” (OXFAM,
2020, p. 22). La enorme y desigual responsabilidad
del trabajo doméstico y de cuidados que recae
sobre las mujeres (y niñas) perpetúa las
desigualdades económicas, mina su salud y
bienestar, y limita su capacidad para satisfacer
sus necesidades básicas o participar en actividades
políticas y sociales (pobreza de tiempo)
126
- “El valor económico del trabajo de cuidados no
remunerado que llevan a cabo en todo el mundo
las mujeres de 15 o más años asciende al menos a
10,8 billones de dólares anuales, una cifra que
triplica el tamaño de la industria mundial de la
tecnología” (OXFAM, 2020, p. 10).
Fuente: Elaboración propia a partir de datos de OIT (2018a, 2018b, 2019,
2020) y OXFAM (2020).
127
laboral ampliada a conciencia, y penetrar así en territorios
anteriormente prohibidos. Pero bajo ninguna circuns-
tancia puede permitírseles cuestionar la división del
trabajo establecida y su propio papel en la estructura
familiar heredada. […] no es posible hacer avanzar la
causa histórica de la emancipación de la mujer sin retar el
dominio del capital en todas sus formas (MÉSZÁROS,
2010 [2002], p. 312).
Referencias
128
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Instituto Marxista de Economía.
129
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130
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trabalho-nao-remunerado
131
public/---dgreports/---dcomm/---
publ/documents/publication/wcms_619603.pdf
132
https://marxismo21.org/heleieth-saffioti-marxismo-
genero-e-feminismo/
133
As características do “empreendedorismo
por necessidade” e “empreendedorismo
por oportunidade” no
Afroempreendedorismo brasileiro 1
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Introdução
135
fomentam a organização do desenvolvimento econômico para a
população negra, manifestam o compromisso com o ativismo
contra o racismo, reinventam narrativas e criam novas estéticas
relacionadas à identidade negra em suas práticas comerciais
(NASCIMENTO, 2020). Para muitos empreendedores e
consumidores negros, esse tipo de negócio representa muito
mais do que uma atividade laboral: é visto como ferramenta
política estratégica para a luta contra o racismo e (re)construção
positiva da identidade negra. Para Santos (2019), o conceito de
afroempreendedorismo pode ser divido entre lato sensu e stricto
senso, nesse sentido, o primeiro identifica a atividade
empreendedora protagonizada por negros e negras sem qualquer
compromisso étnico-racial. A segunda, identifica empreende-
doras e empreendedores negros que organizam os seus negócios
baseados em algum tipo de compromisso étnico-racial da cadeia
de produção à destinação final do produto ou prestação de
serviço. Os conceitos apresentados pelas duas autoras acima
ressaltam a heterogeneidade das atividades e dos objetivos entre
os empreendedores autodeclarados negros, os quais podem ter
seu negócio ou vínculos empresariais vinculados ao ativismo
social contra os efeitos do racismo ou não.
As diferentes formas de participação da população negra
na atividade empreendedora vêm ganhando destaque de forma
inédita no Brasil e, certamente, despertam questões para
analisar a subjetividade no mundo do trabalho e as suas
transformações. A pesquisa mais recente da Global
Entrepreneurship Monitor (GEM) em parceria com o Serviço
Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) 5
publicada em 2017, constatou que os empreendedores negros
são maioria no Brasil: do total de empreendedores brasileiros,
51% deles se autodeclararam negros. Nesse contingente de 51%,
fazem parte tanto os empreendedores negros envolvidos em
estratégias de ativismo contra os efeitos do racismo quanto
136
aqueles que não vinculam seus negócios a qualquer tipo de
pertencimento étnico-racial ou ações antirracistas.
Apesar do número supostamente positivo, a população
negra lidera os índices de desemprego e ocupações informais,
além de não ser reconhecida enquanto grupo étnico com
habilidades e capacidades empreendedoras específicas devido as
consequências do racismo (MONTEIRO, 2005). Portanto,
percebe-se a necessidade de analisar o fenômeno do empreende-
dorismo no Brasil com uma perspectiva voltada para os que
compõem 56,2% da população brasileira: os autodeclarados
pretos e pardos segundo o IBGE 6.
O contexto econômico e a qualificação profissional
influenciam a inserção da população no mercado de trabalho,
além disso, fatores como preconceito de gênero e o racismo
dificultam, ainda mais, a inserção de determinados grupos
sociais no mercado de trabalho formal 7 (DAVIS, 2016). A
exclusão social limita as oportunidades de acesso à qualificação
educacional e, ainda, pode impor barreiras na hora da seleção.
Devido ao passado escravocrata brasileiro, o racismo estrutural
impacta negativamente a população negra, e algumas das
consequências estão na disparidade dos índices de qualidade de
vida e inserção no mercado de trabalho formal entre negros e
brancos no Brasil (FERNANDES, 1978). Os dados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua)
divulgados no final de 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) com o título “Desigualdades sociais por cor
ou raça no Brasil” 8 expõe a recorrente desigualdade no Brasil: a
que faz uma análise das desigualdades entre brancos e pretos ou pardos ligados
ao trabalho, à distribuição de renda, à moradia, à educação, à violência e à
representação política. As análises desse estudo estão concentradas somente
nas desigualdades entre brancos e pretos ou pardos, devido às restrições
estatísticas impostas pela baixa representação dos indígenas e amarelos no total
da população brasileira quando se utilizam dados amostrais. Em 2018, 43,1%
da população brasileira era branca; 9,3%, preta; e 46,5%, parda. Esses três
137
taxa de desemprego entre os brasileiros que se autodeclaram
brancos era de 9,5% e permaneceu significativamente abaixo da
taxa de desocupação dos autodeclarados pretos (14,5%) e
pardos (14,0%). Os negros representavam 64,2% da população
desocupada 9 e 66,1% da população subutilizada 10. Enquanto
34,6% dos trabalhadores brancos estavam em ocupações
informais 11, entre os negros esse percentual era de 47,3%. Em
2018, entre os 10% da população com os maiores rendimentos,
apenas 27,7% eram negros. Por outro lado, os pretos ou pardos
representavam 75,2% do grupo formado pelos 10% da população
com os menores rendimentos. O rendimento médio domiciliar
per capita da população branca (R$1.846) era quase duas vezes
maior do que o da população negra (R$934). O rendimento médio
mensal das pessoas brancas ocupadas (R$2.796) foi 73,9%
superior ao da população negra (R$1.608). Os ocupados pretos
ou pardos receberam rendimentos por hora trabalhada
inferiores aos dos brancos, independentemente do nível de
instrução: enquanto o rendimento médio dos ocupados brancos
atingiu R$17,00 por hora, o dos pretos ou pardos foi de R$10,10
por hora. Os brancos com nível superior completo ganhavam por
hora 45% a mais do que os pretos ou pardos com o mesmo nível
de instrução. Pelo recorte de gênero e raça, as mulheres negras
recebem proporcionalmente 44,4% da renda de homens
brancos.
138
Ainda, na pesquisa 12 realizada pelo Global
Entrepreneurship Monitor (GEM) em parceria com o Sebrae,
negros correspondem a 51% dos empreendedores do país, porém
totalizam 60% dos empreendedores que não lucram nada. Entre
os empreendedores iniciais negros, 54,2% têm renda familiar até
dois salários mínimos. Ainda considerando os empreendedores
iniciais, a pesquisa mostra que entre os negros, aqueles com
renda familiar acima de três salários mínimos representam
22,9% e entre os brancos são 42,4%. A maioria dos
empreendedores negros são “por conta própria” e apenas 29%
empregam ao menos uma pessoa.
O autoemprego tem sido uma alternativa encontrada por
profissionais desempregados – em grande parte encarada como
uma atividade temporária, até a reinserção no mercado de
trabalho formal como empregado -, também, uma busca por
autonomia para exercer a profissão; possibilidade de uma renda
extra para aqueles que têm algum emprego fixo (formal ou
informal) ou a única saída para obter renda (COLBARI, 2015).
Mas se os dados do desemprego não forem analisados com
cuidado, o problema do desemprego aparentemente pode
parecer que está sendo solucionado 13. Afinal, os dados
referentes à desocupação diminuem à medida que o trabalhador
desempregado, enquadrado nas taxas de desocupação, encontra
formas alternativas de obter algum tipo de rendimento por meio
de alguma ocupação informal fora da sua área, autoemprego
informal ou exercendo o autoemprego formalizado como
Microempreendedor individual (MEI).
A criação do Microempreendedor Individual no ano de
2008, no Brasil, impulsionou a busca de pessoas que desejam
ser donas do próprio negócio e, principalmente, auxiliou os
trabalhadores por conta própria 14 a saírem da informalidade.
139
Com o auxílio do Sebrae, este programa facilita a formalização,
cria o CNPJ para microempreendimentos, oferece consultoria,
facilita o acesso a crédito, cursos de formação e qualificação
gratuitos. A atenção voltada para as micro e pequenas empresas
foi motivada pelos dados que comprovaram que elas são as
principais responsáveis pela geração de empregos formais e
informais no Brasil (COLBARI, 2015).
As mudanças nas últimas décadas culminaram num
contexto em que o forte apelo ao empreendedorismo atinge o
senso comum como a solução dos problemas causados pelo
desemprego estrutural (LEITE, 2008). A ideologia do empreende-
dorismo convence cada vez mais pessoas a assumirem
comportamento e mentalidade “empreendedoras” e abrirem o
próprio negócio. Na última década o número de trabalhadores
por conta própria e empreendedores cresceu consideravelmente
no Brasil 15. Segundo o GEM, a taxa total de empreende-
dorismo 16, que reúne novos empreendedores e donos de
negócios já estabelecidos, chegou a 38%. Segundo esse
indicador, aproximadamente 52 milhões de brasileiros em idade
produtiva estavam envolvidos com alguma atividade empreen-
dedora no ano de 2019. No entanto, muitos fatores como a baixa
qualificação, não conhecimento do campo dos negócios e
inexperiência atrapalham os profissionais a obterem êxito.
Segundo o Sebrae 17, de cada quatro empresas abertas no Brasil,
uma fecha antes de completar dois anos de existência no
mercado. Apesar desse contexto, o número de pessoas
envolvidas em promessas de melhores rendimentos, horário
flexível e o status de “ser patrão de si mesmo” que desejam
4,1% em relação a 2018. São 24,2 milhões de pessoas nessa situação, o maior
nível já registrado pelo índice, apurado desde 2012. Fonte: IBGE/PNAD, 2020.
Acesso em 15/07/2020.
16 Os dados são resultado de um panorama traçado pelo Global Entrepreneurship
https://www.sebrae.com.br/Sebrae/Portal%20Sebrae/Anexos/sobrevivencia-
das-empresas-no-brasil-relatorio-2016.pdf. Acesso em 17/02/2020.
140
empreender não pára de crescer. Mesmo em condições que
indicam que esse desejo seja motivado muito mais pela
necessidade do que pela oportunidade, milhares de indivíduos
se aventuram em condições adversas e garantem que iniciam o
novo negócio devido a uma perspectiva de oportunidade 18.
141
iniciado o negócio pela ausência de alternativas para a
geração de ocupação e renda (GEM, Relatório Executivo
Brasil, 2017, p. 9).
142
encontra ao decidir gerar renda por meio do autoemprego ou
trabalho por conta própria: a urgência de arrecadar dinheiro
para a própria subsistência ou, na grande maioria dos casos, a
subsistência da família.
Apesar das classificações “empreendedorismo de
necessidade” e “empreendedorismo de oportunidade” estarem
representando situações paralelas, a realidade se mostra muito
mais complexa. Embora o retrato social apresentado anterior-
mente permita inferir que a maioria dos empreendedores
brasileiros tenham optado pelo empreendedorismo devido a
necessidade, prevalece um percentual relativamente alto dos
respondentes que afirmam terem iniciado o próprio negócio
devido a oportunidade. A pesquisa do Sebrae em parceria com o
GEM em 2017, apontou que 55,56% dos empresários negros
afirmaram que abriram um negócio por oportunidade, enquanto
o percentual de brancos nesse mesmo contexto é de 71,5%.
Principalmente, a informação de que mais de 50% dos
empreendedores brasileiros são negros deve ser interpretada
com cuidado: afinal, quais foram as suas motivações? Em quais
condições eles iniciaram e desenvolvem seus negócios?
143
Os dados apresentados no início deste capítulo
demonstram o desnivelamento social entre brancos e negros no
Brasil, neste sentido, compreende-se que, na maioria das vezes,
a decisão por “empreender” entre a população negra se torna
uma saída alternativa ao desemprego ou uma possibilidade de
aumentar a renda, combinando mais de uma atividade laboral
para driblar a baixa remuneração. Afinal, o “empreendedorismo”
sido uma saída dentro da sociedade capitalista, na medida em
que se vive, muitas vezes, em condições de subsistência. O fato
desse grupo social ter maior vulnerabilidade e dificuldade de
empregabilidade, fomenta a busca de formas alternativas de
inclusão socioeconômica (ALMEIDA, 2019). Nos dados levan-
tados no “Estudo do Empreendedorismo Negro no Brasil” 19, a
amostragem identificou que 34% dos empreendedores negros
empreendem por necessidade. Os que empreendem “por
necessidade” se direcionam para os setores de comércio e
serviços, principalmente de alimentação e vestuário, assim,
exigem pouca elaboração técnica e baixo investimento inicial. O
empreendedor negro, muitas vezes, conta com familiares e
amigos, não se formaliza, nem busca investir em negócios
cruciais para a demanda do mercado porque busca empreender
com aquilo que sabe fazer, sem muito planejamento.
Geralmente, comercializa de forma simples: venda de porta em
porta, camelô, prestação de serviços na própria casa ou na casa
do cliente e entregas próximas a residência. Como nem sempre
o objetivo é levar o negócio adiante, a busca por um emprego
formal com carteira assinada é mantida. A maioria dos
empreendedores por necessidade não têm formação em gestão,
possuem pouca noção da sua estrutura de custos, não criam um
plano de negócios devido a inexperiência e preocupação imediata
de levantar alguma renda para sobreviver. Nas condições acima
e sem ferramentas para organizar o próprio microempreen-
dimento, elaborar um diferencial em alguma prestação de
serviço ou criar uma estratégia inovadora, muitas vezes o
negócio sofre fechamento prematuro (NOGUEIRA, 2013).
144
Mesmo aqueles que decidem comercializar produtos e
prestação de serviços personalizados com alguma referência
étnica também enfrentam as mesmas dificuldades. A precari-
edade das condições de quem empreende por necessidade limita
as possibilidades de crescimento do negócio, do bom
faturamento e de geração de empregos (NOGUEIRA, 2013). Por
esses motivos, a opção pelo empreendedorismo tanto formal
(MEI) ou informal entre a população negra, em grande parte, é
um efeito de refúgio das adversidades causadas pela exclusão
social, configurando o empreendedorismo por necessidade.
Obviamente que as dificuldades iniciais para empreender afetam
empreendedores brancos e negros, no entanto, para um
empreendedor negro ser bem-sucedido a frente do próprio
negócio, ele enfrenta mais dificuldades devido ao racismo
(MONTEIRO, 2005). O racismo institucional e estrutural sobre o
segmento da população negra que deseja empreender é
perceptível nos indicadores sociais, nas dificuldades de obter
credito bancário; na falta de representatividade e no racismo
sofrido por fornecedores e consumidores cotidianamente
(MARTINS, 2005).
Essa realidade tem sido frequentemente denunciada por
afroempreendedores que sofrem essa desigualdade social
refletida, também, no mundo dos negócios. Além de denunciar,
os empreendedores negros em todo o Brasil e no mundo
descobriram, neste contexto de exclusão, oportunidades de
negócio explorando justamente o que os afasta das melhores
colocações: o pertencimento étnico racial. Essa característica
será apresentada no tópico a seguir como um dos elementos que
podem justificar a percepção do “efeito oportunidade” no
afroempreendedorismo.
145
proporcionaram um relativo aumento do poder aquisitivo dos
afro-brasileiros, o que teve como um de seus desdobramentos o
aumento da classe média negra (FIGUEIREDO, 2012). Ao longo
das últimas duas décadas, a conquista de ações afirmativas
protagonizadas pela atuação dos movimentos sociais negros
contribuíram para provocar mudanças sociais responsáveis pela
visibilidade positiva da negritude, para o aumento considerável
da geração de profissionais negros com ensino superior, para o
aumento de consumidores negros com relativo poder de
consumo, bem como, para a nova realidade de empreendedores
negros qualificados que têm transformado a realidade do
mercado no país em termos de comportamento, consumo e
inovação (GOMES, 2017). No entanto, é importante ressaltar que
esse otimismo proporcionado pelas ações afirmativas e políticas
públicas de redistribuição de renda não resultaram mudanças
estruturais: o racismo permanece afetando negativamente a
população negra, a qual protagoniza os piores índices de
qualidade de vida, altos índices de violência, exclusão política e
socioeconômica (PAIXÃO, 2013).
O clamor pela diversidade no mercado tem movimentado
um novo comportamento dos consumidores negros que buscam
produtos e prestação de serviços que evidenciem o pertenci-
mento étnico e atendam às suas demandas de representa-
tividade desassociada de estereótipos racistas (GOMES, 2008).
As transformações sociais ocorridas a partir dos anos 1960,
colocaram em evidência as lutas pelas políticas de identidade
protagonizada pelos chamados “novos movimentos sociais”, os
quais trouxeram a identidade para o centro das mobilizações
coletivas (WOODWARD, 2014). Esses novos movimentos sociais
denunciam as relações de poder envolvidas na construção das
identidades, os símbolos criados para inferiorizar minorias
sociais, o processo de exclusão de determinadas identidades em
detrimento de outras e as representações homogêneas de grupos
dominantes na sociedade ocidental (CASTELLS, 2018). Para
além da denúncia, esses novos movimentos sociais reivindicam
a autodefinição de suas próprias identidades e para isso, criam
suas próprias narrativas e representações (KILOMBA, 2019). No
Brasil, os movimentos sociais negros apontam a necessidade de
políticas públicas que garantam a equidade racial no mercado
146
de trabalho formal, inclusão e representatividade de mulheres e
homens negros nos espaços institucionais, campanhas de
marketing e telenovelas que apontem para a transformação do
imaginário social sobre o que é “ser negro”, a fim de aumentar a
autoestima das pessoas negras e descontruir ideia de negritude
forjada em estereótipos racistas (MUNANGA, 2019).
Também existem outras estratégias dos movimentos
sociais negros para superar a exclusão social e a pobreza entre
a população negra, como a criação de uma economia própria
baseada na solidariedade étnica entre os próprios negros
(NASCIMENTO, 2019). Uma das estratégias mais conhecidas de
circulação de dinheiro entre a comunidade negra foi o “black
money”, criado nos Estados Unidos da América (EUA), pelos
negros norte-americanos, no contexto da segregação racial. O
“black money” é o conceito de uma economia baseada na
solidariedade étnica entre os afro-americanos, onde as
transações monetárias (compra e venda) acontecem somente ou
preferencialmente entre os empreendedores e consumidores
afro-americanos (SANTOS, 2019). Dessa forma, a prática do
blackmoney tornou possível a existência de bancos,
universidade e importantes instituições negras. A experiência do
black money nos EUA tornou a pratica conhecida e ela tem sido
reinventada em outros países da diáspora africana, de acordo
com o cada contexto cultural, social, político e econômico.
No Brasil, há registros de associações de empresários e
empreendedores negros com objetivo desenvolver o fortale-
cimento dos empreendimentos negros desde os anos 1980
(MONTEIRO, 2013). Esses empreendedores negros começaram
a se unir com o objetivo de superar desafios comuns, em
especial, o da discriminação racial no campo empresarial e
experiências parecidas podem ser encontradas entre os
afroempreendedores 21 na atualidade. Alguns movimentos
sociais negros argumentam que a criação de uma economia
baseada na solidariedade étnica possibilitaria a geração de
emprego, autonomia e fim da dependência de políticas sociais do
Estado (NASCIMENTO, 2019). Importante ressaltar a
heterogeneidade da população negra e suas diferentes frentes de
21 NASCIMENTO, 2020.
147
organização política, portanto, não há consenso sobre as
estratégias relacionadas ao combate ao racismo, por isso, não
há unanimidade de que a aposta na atividade empreendedora
seja um caminho eficaz.
Apesar dessas disparidades, a consciência de
movimentar um mercado protagonizado por pessoas negras e a
busca pelo consumo de produtos e serviços oferecidos e
prestados por empreendedores negros aumentaram (GOMES,
2017). Assim, aproveitando as condições de oportunidade,
empreendedores negros qualificados conseguem protagonizar o
cenário de inovação à frente do próprio negócio criado para
consumidores negros. Os afroempreendedores ofertam produtos
e serviços que ressaltam a representatividade negra em setores
variados como moda, culinária, artesanato, produção cultural,
tecnologia, turismo, educação dentre outros. Há também os
empreendedores negros que movimentam negócios desvin-
culados de aspectos identitários, mas participam de alguma rede
de afroempreendedores que visam a prática do black money, ou
seja, estão vinculados a uma lógica coletiva de solidariedade
étnica, compromissados com a luta contra o racismo e
fortalecimento socioeconômico da comunidade negra
(NASCIMENTO, 2020).
A formação de redes entre empreendedores negros na
arena do mercado tem se fortalecido e contribuído para o
enfrentamento do racismo, valorização da cultura afro-brasileira
e africana, fortalecimento da identidade política e busca de
soluções referentes ao desenvolvimento do próprio negócio
específicos para empreendedores negros (NOGUEIRA, 2013).
Nos coletivos, institutos, hubs de inovação e associações, os
afroempreendedores engajados apostam na inovação para
produzir ou prestar serviços que permeiam não apenas o
consumo pelo consumo, mas, sobretudo, o caráter político e
simbólico de suas práticas laborais (ALMEIDA, 2013). Os
afroempreendedores protagonizam em suas ações práticas um
processo de mercantilização que serve à causa antirracista, seja
no incentivo a ascensão social de outros empresários negros ou
na produção simbólica da população negra no imaginário social
fora dos estereótipos pejorativos (HOOKS, 2019). Uma prática
que, em meio ao contexto de uma sociedade estruturalmente
148
racista, cumpre o seu papel cotidiano de transformar o universo
simbólico de imagens associadas ao fenótipo negro, fazendo
valer o poder de auto definição de um grupo historicamente
racializado (SANTOS, 2019).
Em todo o Brasil, os movimentos negros se engajam na
luta contra o racismo e promovem a visibilidade positiva da
identidade negra, realizando atividades voltadas para o
empoderamento estético e identitário, além da reinvindicação de
direitos sociais, políticos e econômicos (GOMES, 2017). Os
afroempreendedores engajados fazem parte desse movimento,
porque fomentam o afroempreendedorismo e o afroconsumo
como estratégia de enfrentamento à vulnerabilidade econômica
e social da população negra (re)cria vínculos identitários
(NASCIMENTO, 2020). Mais do que isso, os afroempreendedores
atuam de maneira reflexiva sobre o seu papel na sociedade ao
ocuparem áreas consideradas incomuns para a população
negra: áreas de tecnologia, inovação e empreendedorismo por
oportunidade. Afinal, o racismo estrutural naturaliza o papel
social de subserviência e prestação de serviços ao “lugar de
negro”, descaracterizando-o da noção de sujeito enquanto
agente de transformação (GONZALEZ, 1982; MONTEIRO, 2005).
O papel reflexivo está em se perceber enquanto parte de uma
minoria social, numa sociedade estruturalmente racista e
recusar o discurso individualista pautados na meritocracia
comumente associado ao empreendedorismo. Os afroempre-
endedores engajados denunciam o racismo estrutural, cobram
equidade no mercado de trabalho e, ao mesmo tempo, a partir
das dificuldades impostas encontram a oportunidade para
empreender, criam meios de superar barreiras coletivamente
enquanto agentes de inovação, não como sujeitos passivos
devido às circunstâncias de exclusão.
Conclusão
149
negar, muito menos deixar de denunciar, a fragilidade que os
trabalhadores por conta própria se encontram neste contexto de
retirada de direitos e reforço da ideologia do empreendedorismo.
As possibilidades de compreender o fenômeno do
empreendedorismo entre as minorias sociais são inúmeras,
principalmente com olhar mais apurado sobre o modo como os
empreendimentos tem sido desenvolvidos. Não deixa de ser
importante, no entanto, a analise de conjuntura que leva
determinados grupos sociais, a despertar interesse por
segmentos do mundo do trabalho que envolvem subjetividade
ligada a identidades. Portanto, uma análise interseccional sobre
raça, gênero e classe são necessários, principalmente, para
evidenciar as especificidades das desigualdades e visibilizar o
protagonismo desses sujeitos como agentes de mudança social
com foco no combate às opressões cotidianas.
Os “novos movimentos sociais” contam com ativistas,
militantes, pesquisadores e empreendedores negros contra a
dominação esmagadora das representações sociais da classe
dominante na mídia, a onipotência das multinacionais, a
exclusão política e socioeconômica de minorias sociais, a
desigualdade salarial estabelecida por critérios de gênero e raça,
os discursos universalizantes, o individualismo, a destruição do
meio ambiente, a destituição dos direitos do trabalho e a lógica
do consumo desenfreado. Os afroempreendedores engajados que
fazem parte deste movimento, não estão isentos das condições
sociais em que se encontram, pois a maior parte dos
empreendedores negros são empreendedores por necessidade.
Ao tempo que sofrem as limitações de acesso a oportunidades e
denunciam as desigualdades no mercado, os afroempreende-
dores também criam novos produtos, inovam nas prestações de
serviço e contribuem para a luta antirracista.
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153
Trabalho no cárcere:
uma análise sobre a precarização do
trabalho prisional no interior do Centro
Prisional Feminino de Cariacica/ES
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Introdução
155
fator importante no crescimento da produção capitalista. Desta
forma, é evidenciada a conexão da prisão com o modo de
operação capitalista, atrelada à força de trabalho, e essa
percepção foi registrada por ROSA et al. (2017):
156
social” que é a própria causa da escalada generalizada da
insegurança objetiva e subjetiva em todos os países ocidentais.
E assim, o perecimento do Estado social relacionado ao
engrandecimento desenfreado do Estado penal, promove a
expansão do sistema carcerário e do setor penitenciário no seio
das administrações públicas, fortalecendo a indústria privada
carcerária.
No caso do Brasil, que em número absoluto de presos,
ocupa a 3ª posição no ranking do aprisionamento, atrás apenas
de China e Estados Unidos (G1, MONITOR DA VIOLÊNCIA,
2020), ainda temos o reflexo das políticas neoliberais dos EUA
em suas celas superlotadas, com o fortalecimento desse Estado
policial, olvidando-se na garantia de direitos humanos e
seguindo leis penais de emergência, a exemplo da Lei
Antidrogas 2, e das constantes alterações na parte especial de um
Código Penal, ideologicamente comprometido com o capital3
(VALOIS, 2019), e assim, “o meio prisional acaba sendo visto
como local de vácuo de direitos, onde o Estado de Direito é
abandonado, sendo essa uma das características da prisão como
instrumento punitivo” (VALOIS, 2019, p.16).
Em relação ao Estado do Espírito Santo, é notório o
empenho na busca por mais empresários dispostos a instalar
suas fábricas nos presídios estaduais 4, em um contexto de
2 “No que tange à política de drogas, o STF omite-se em delimitar de forma clara
feminina do mundo, com cerca de 42 mil mulheres presas. Assim como o tráfico
de drogas é a principal causa para o encarceramento no Brasil, trata-se do
principal tipo de infração cometido por mulheres. De acordo com o INFOPEN
(2018), “crimes relacionados ao tráfico de drogas correspondem a 62% das
incidências penais pelas quais as mulheres privadas de liberdade foram
condenadas ou aguardam julgamento em 2016, o que significa dizer que 3 em
cada 5 mulheres que se encontram no sistema prisional respondem por crimes
ligados ao tráfico”. (INFOPEN, 2018)
4 A Secretaria de Estado da Justiça - SEJUS, mantém em sua página
institucional (https://sejus.es.gov.br/abra-as-portas-da-sua-empresa-para-o-
trabalho-de-um-detento-2) um convite ao empresariado para que firmem
157
instrumentalização da atividade laboral enquanto estratégia de
“ressocialização” 5. Mas como é possível promover a suposta
“ressocialização” 6, enquanto na prática as condições precárias
proporcionadas pelo cárcere brasileiro são de superlotação,
rebeliões e chacinas encabeçadas por facções criminosas
(BRASIL, 2017)?
Isso se deve a estrutura física carcerária do Estado do
Espírito Santo, que inclui espaços para oficinas e galpões de
fábricas, e essa convergência de fatores faz com que o Governo
do Estado busque firmar parcerias público-privadas, incenti-
vando o interesse empresarial para contratação da mão-de-obra
carcerária, com anúncios amparados nas diversas vantagens,
dentre elas a redução de custos e o ganho de imagem através da
responsabilidade social. Em contrapartida, as empresas
contribuem com o processo de cumprimento da pena e
“ressocialização” dos trabalhadores contratados.
Não se pode olvidar que os sérios problemas
penitenciários enfrentados pelo Estado do Espírito Santo em
meados de 2006 se deu pela tendência do aprisionamento em
massa de negros e pobres, promovido pelo governo Paulo
Hartung e sua gestão neoliberal (RIBEIRO JUNIOR, 2012).
158
Diante do escândalo carcerário, notou-se uma oportunidade de
lucro em razão das construções das novas unidades carcerárias
sem licitação, conforme pontuado por RIBEIRO JUNIOR (2012).
Destaca-se ainda o fato de que o Espírito Santo foi o Estado que
mais investiu recursos próprios de seu tesouro no sistema
penitenciário, visando sua modernização na medida em que
aplicou quase meio bilhão de reais na construção de novas
unidades prisionais em quase uma década (SEJUS/ES, 2015).
Davis e Dent (2003, p.528) utilizam a expressão
“Complexo Industrial Carcerário” para tratar da expansão dos
novos modelos de aprisionamento desenvolvidos nos Estados
Unidos, como a supermax, e a sua estreita ligação com a
produção de lucros, apropriando-se do termo “indústria da
prisão” ao se referir à produção de prisioneiros para garantia de
geração de lucros a um número crescente de corporações e em
contrapartida se produz as condições de pobreza, com a
drenagem dos bens sociais de instituições como escolas,
hospitais e moradia, criando assim uma percepção acerca da
necessidade de um maior número de prisões.
Fazendo um paralelo entre a expansão do sistema
prisional estadunidense e a realidade prisional vivenciada no
Estado do Espírito Santo, será que poderíamos afirmar que
estamos diante do aperfeiçoamento de um “Complexo Industrial
Carcerário” no Estado 7, com a “indústria da prisão” produzindo
em larga escala o aprisionamento de negros e pobres para a
produção de lucros às corporações, em um momento em que a
tendência das privatizações é real e os passos do Governo do
Estado apontam para uma ampla formalização de parcerias
público-privadas, seja para o fornecimento de serviços ao
complexo, seja para produção de mão de obra prisional?
159
É sobre esse pano de fundo que a pesquisa empírica se
conduz, evidenciando os atuais contornos do trabalho carcerário
que vem sendo desenvolvido por uma empresa parceira com a
chancela do Governo do Estado do Espírito Santo, que movida
pelas políticas neoliberais, imprime condições degradantes de
trabalho, em uma lógica de maximização do lucro, fazendo
transbordar a violação de direitos humanos no interior da
carceragem, em razão da condição da mulher presa e a ainda
trabalhadora.
160
A reafirmação obsessiva do “direito à segurança”,
correlativa do abandono do “direito de trabalho” sob sua
antiga forma (isto é, em tempo integral, com plenos
direitos, duração indeterminada e salário viável), além do
interesse e dos meios crescentes dedicados às funções de
manutenção da ordem, acontecem também no momento
certo para preencher o déficit de legitimidade de que
padecem os responsáveis políticos justamente porque
renegaram as missões do Estado em matéria econômica e
social (WACQUANT, 2003, p.148).
161
passaram pelas malhas criminalizantes do sistema de justiça
criminal, que hoje são as “funcionárias” da fábrica no interior da
carceragem, sendo esse sistema fabril carcerário constante-
mente retroalimentado. Se antes a interlocutora mantinha um
“carrinho de água de coco” e trabalhava de “sol a sol”, hoje ela
está trabalhando no interior da fábrica instalada no presídio,
que igualmente lhe exige esforço físico, mas ela já era
acostumada à rotina pesada do trabalho autônomo e informal.
Dentro dos muros do Centro Prisional Feminino de
Cariacica 9 é possível detectar a criação – por parte do Governo
do Estado e de sua empresa parceira – de uma classe
trabalhadora advinda de um segmento social não apenas
precarizado, mas, sobretudo, marginalizado. Nos moldes da
parceria público-privada a mão-de-obra carcerária é absorvida
pela fábrica em sua linha de produção, em todos os processos
de montagem e fabricação do produto, até a sua finalização, com
a etiquetagem e a embalagem de sapatos infantis. Assim, o
produto final sai dali diretamente para distribuição nas lojas.
Sobre as interlocutoras entrevistadas 10, a maior parte é
oriunda da pobreza, o que pode ser refletido pela baixa
162
escolaridade e pelo exercício de trabalho informal, com poucas
exceções. No total de 15 (quinze) entrevistadas, 07 (sete)
concluíram o ensino médio na cadeia e 03 (três) ainda
encontravam-se cursando o ensino médio, ou seja, 10 (dez) das
15 (quinze) interlocutoras não possuíam o ensino médio antes
de serem presas. As 03 (três) entrevistadas que ainda
frequentavam a escola no ambiente prisional, trabalhavam meio
período justamente por este motivo.
Das 05 (cinco) entrevistadas restantes, 01 (uma) possuía
apenas o ensino médio antes de ser presa, outras 02 (duas)
possuíam nível técnico em enfermagem, sendo que uma delas
tinha nível superior incompleto em serviço social, outra possuía
nível superior incompleto em pedagogia e ainda foi entrevistada
uma interna com nível superior completo em administração.
Quanto às ocupações desempenhadas antes de serem
presas, temos as que se declararam autônomas, manicures e
cabelereiras, a que trabalhava com carrinho de água de coco e a
que além de ter um “churrasquinho” também trabalhava com
eventos e era profissional do sexo, o que podemos classificar
como ocupações informais. Ainda tinha uma dançarina, uma
vendedora de loja, uma assistente administrativa da loja, aquela
que era cozinheira e fotógrafa, e uma técnica em enfermagem,
que apesar de serem atividades laborais formalizadas,
apresentam baixa remuneração. Nesse universo, temos ainda
uma entrevistada que trabalhava como professora e a que era
funcionária pública.
A rotina diária laboral das mulheres trabalhadoras da
fábrica localizada no presídio feminino não tem desvio. Não há
espaço para qualquer tipo de atraso ou falta. O dia das internas
começa às 05h da manhã, quando são acordadas e direcionadas
ao momento do banho e depois ao momento do café. Às
07h20min as internas trabalhadoras se organizam em filas,
dispostas em ordem alfabética, momento em que são
direcionadas ao trabalho da fábrica. O expediente de trabalho
163
tem início às 07h30min e término às 17h30min, de segunda a
quinta, com saída às 16h30min na sexta-feira, e por essa razão
não participam do banho de sol e de nenhuma rotina no interior
da prisão.
Quando perguntamos para cada uma das interlocutoras
o que elas consideravam da jornada de trabalho da fábrica
(normal/cansativa/justa/injusta), obtivemos alguns padrões de
respostas. Existem as trabalhadoras que afirmam que a rotina
de trabalho é justa e normal porque “na rua” já exerciam funções
pesadas.
164
Entrevistada 04: Às vezes normal, as vezes cansativa, pois
desempenhamos mais de uma função, mas eu gosto,
porque é um aprendizado.
Entrevistada 08: Sei que trabalho mais, são nove horas,
mas me sinto muito satisfeita, por causa da remissão. O
meu advogado fez um pedido e eu ganhei um dia a mais
em cada mês.
Entrevistada 09: Justa pelo fato de saber que é a jornada
correta pela CLT. É pesada, mas necessária e ocupa a
mente. Prefiro estar lá do que estar dentro da cela.
Entrevistada 10: Excessiva! No normal tinha que trabalhar
08h, mas aqui é 9h. Mesmo sendo excessiva é uma forma
de remir a pena e é uma forma de buscar com o juiz essa
hora extra.
Entrevistada 13: Cansativa. Mas é uma forma de ajudar a
minha família e querendo ou não pode remir a pena. Então
eu já vou pensando mais no futuro.
Entrevistada 14: É normal, porque é correto. Eu gosto. Eu
prefiro esse horário de trabalho do que estar na cela. Pro
preso tudo é melhor do que estar na cela. Preso não tem
direito a nada, então é justo! Não que sejamos
escravizadas, mas é melhor ser escravizada trabalhando
do que ficar na cela.
165
dispensando-se o recolhimento de impostos, 13° salário, férias e
FGTS 11.
Desse salário mínimo recebido destaca-se que os
familiares da trabalhadora poderão ter acesso a até dois terços
do valor recebido por aquele mês de trabalho, sendo uma parte
destinada para uma conta em nome da trabalhadora, a outra
parte para uma conta em nome de um de seus familiares e a
última parte destina-se a uma poupança que a detenta terá
acesso somente após o cumprimento de sua pena. Ainda, avulta-
se o fato de que o período de “experiência” no trabalho da fábrica,
de 01 (um) mês de serviço, não é remunerado. Ou seja, para
conquistar o trabalho na fábrica será necessário trabalhar sem
remuneração durante esse período.
Foi perguntado para as entrevistadas se elas
consideravam o valor recebido pelo seu trabalho justo ou
injusto, sendo obtido dois padrões de resposta. Existem as
trabalhadoras que acham o valor recebido justo e as que acham
que não é justo. O mais interessante a ser destacado foram as
justificativas apresentadas para cada constatação, a saber.
Existem as trabalhadoras que acreditam que o valor é
justo pela condição que elas ostentam de presidiárias,
demonstrando um sentimento de débito com a sociedade e que,
em verdade, o trabalho é assumido como uma extensão de suas
penas.
166
fábrica eu receberia mais, mas pelo fato de estar presa é
justo! É a visão deles, da sociedade em geral, que já está
presa, errada, e ainda vai receber pra trabalhar?
Entrevistada 04: Acho justo! Eu acho que fizemos algo
errado lá fora e ainda estamos aqui dentro trabalhando e
ganhando por isso! Querendo ou não, estamos tirando a
vaga de uma pessoa lá fora! Está tudo tá difícil lá fora, sem
emprego, e aqui a gente tem a oportunidade de estar
trabalhando e ganhando! Eu não acho que deveríamos
receber igual uma funcionária que trabalha na fábrica de
Vila Velha. Acho que lá fora ela está ganhando
honestamente o salário e eu errei e estou pagando por um
erro então não tenho que ganhar igual a ela. Entrevistada
05: Justo, porque é tão difícil trabalho lá fora e ai você tem
oportunidade aqui dentro. Eu não tenho nem palavras! É
ótimo! Não acho que deveríamos ganhar como as
funcionárias de Vila Velha, pois minhas despesas são
custeadas pelo Governo.
167
botar o nome na lista pra sair da esteira. Eu sei que como
costureira o salário seria bem mais, mas como estou presa,
posso falar o que senhora? Posso perder o serviço e posso
até ser transferida daqui. Eu acho que nós todas, presas,
merecíamos ganhar igual as trabalhadoras da fábrica de
Vila Velha, pois estamos aptas para fazer o mesmo serviço
que elas fazem, a única diferença é que somos presas, mas
somos caprichosas e dedicadas.
168
Entrevistada 08: “sexta não, porque a comida não chega.
Chega faltando 15min pra terminar o horário. Eu me sinto
mal de ter que engolir a comida.”
Entrevistada 09: “costuma ser respeitado, mas em
fechamento de lote, caso necessário, estendemos o horário
para depois fazermos o horário de almoço. A comida corre
risco de estragar.”
Entrevistada 10: “o almoço não é respeitado não pela
empresa. Não vai almoço no horário certo, principalmente
sexta, que temos 15min ou 30min de almoço.”
Entrevistada 11: “sim, só tem a complicação na sexta,
porque sempre atrasa, ai chega 12:15h, ai temos que
almoçar correndo, em 15min, pra voltar a trabalhar.”
169
Todas as interlocutoras relataram o contato diário com
produtos químicos. Foi perguntado a elas se utilizavam
Equipamentos de Proteção Individual - EPI’s e a maioria disse
usar quando estão nas suas funções originais, mas sempre são
deslocadas, existindo o momento em que ficam expostas aos
agentes químicos. A entrevistada 09 disse ainda que elas usam
chinelos e não sapatos, sendo “perigoso, pois pode cair uma
tesoura no meu pé e cortar porque não estou calçada”. Não
existe pagamento de adicional de insalubridade, nem controle
do tempo de exposição a produtos químicos.
Além da jornada de trabalho ser muito cansativa, as
trabalhadoras não possuem o direito de sentar.
170
sem problemas. Mas, tem as que afirmam que até para irem ao
banheiro é preciso pedir autorização, colocando o nome em um
quadro e esperando a ordem do superior. Isso tudo, porque o
trabalho da esteira não pode parar, tendo em vista que
comprometeria as metas estabelecidas pela fábrica, já que o foco
é a produção e não a saúde daquelas trabalhadoras presas.
171
tempo” de pensar no lucro que a força de trabalho de cada uma
delas é capaz de gerar para a empresa.
172
um susto, foi distração minha nas duas vezes. Dizem que
é normal entre as costureiras (...) Já vi acidentes na
máquina de fivela. Fez um furo no dedo de (funcionárias
A, B, C, D, E, F) 12. Agora colocaram dispositivo de
segurança. Dizem que é por falta de atenção o acidente.
Todas ficaram de atestado e depois voltaram e não foram
desligadas. Tem que está lá em outra função até hoje”.
Entrevistada 02: “foi falta de atenção, me acidentei
aprendendo a costurar, ai eu costurei o dedo. Fui na
saúde, retiraram a agulha que atravessou meu dedo e
colocaram um esparadrapo, e ai eu voltei a trabalhar na
hora (...) já vi acidente no velcro, a moça deu um ataque
de epilepsia e estava com uma tesoura na mão, ai ela ficou
se machucando, enfiando a tesoura no rosto, quase
perfurou o olho. Levaram ela pra saúde, ela ficou alguns
dias de observação e depois voltou a trabalhar”.
Entrevistada 03: “já me acidentei, caiu uma matriz, uma
forma de sapato, no meu dedo. Não precisei ficar afastada,
retornei no mesmo dia (...) já vi furarem o dedo, cair matriz,
ai vai pro atendimento, quando sangra vai pra enfermaria.
Não volta no mesmo dia, mas depois volta (...) se você se
machucou, você vai ter que faltar, não vai receber porque
não está trabalhando em razão do acidente que aconteceu
dentro da empresa”.
Entrevistada 04: “sim, me acidentei na máquina de fivela
e machuquei meu dedo. Fiquei de atestado por quinze
dias, fui atendida pela saúde. Eu recebi porque peguei
atestado, só perdi minha remissão.”
Entrevistada 12: “já vi acidente na máquina de fivela.
Perdeu metade do dedo e a unha e deu ponto. Eu vi duas
assim. Depois de 5 dias voltaram pra trabalhar, mas não
voltaram pra mesma função. Não receberam nada, só
levaram pra rua pra dar ponto, mas a empresa não arca
com nada.
173
acidente, explicando que se acidentaram em razão da sua
própria displicência e/ou falta de atenção. A maior parte das
interlocutoras relatou que após sofrerem o acidente, que
envolvem a mutilação de parte dos dedos; queda de matrizes
(formas de sapatos de aproximadamente 30 kg) nos dedos das
trabalhadoras; “costurar” o dedo ocasionando um furo e a
quebra da agulha que se aloja no dedo; retornam ao trabalho na
mesma hora, caso não sejam encaminhadas ao atendimento
externo, quando sangram e existe a necessidade de levá-las para
receberem ponto cirúrgico na área lesionada.
Conforme explicado por uma das interlocutoras, se a
trabalhadora se acidenta, deverá voltar para a cela, sem receber
por aqueles dias em que ficou “parada”. A maioria desses
acidentes, no entanto, deve ser atribuído a rotina corrida da
fábrica, com exigência do cumprimento de metas e mais metas
de produção. Se a meta ainda não foi cumprida, aumenta-se o
ritmo de rotação das esteiras e as trabalhadoras devem realizar
o serviço de forma cada vez mais ágil, caso contrário a esteira
roda 13, e é aí que elas acabam se mutilando e se lesionando.
174
tolhimento de direitos, de uma consciência de que não possuem
voz, que são incapazes de promoverem reivindicações sobre
algum tipo de direito, adotando uma passividade diante de
muitas situações violadoras. Talvez pelo medo de perderem o
posto de trabalho e consequentemente perderem a remissão, o
salário, a fuga do enclausuramento, etc., elas submetem seus
corpos a essa exposição de riscos à sua saúde física.
Diante do conteúdo empírico da pesquisa, resumido por
todos os relatos das interlocutoras entrevistadas, foi possível
constatar que o trabalho prisional desenvolvido na fábrica de
calçados infantis instalada no Centro Prisional Feminino de
Cariacica é desempenhado em um contexto: (i) exaustivo, onde
não se pode sentar, ir ao banheiro e ter atendimento médico,
sempre que solicitado; (ii) que não dispõe de um ambiente limpo,
condicionando as trabalhadoras a se alimentarem insalubre-
mente em meio a sujeira da empresa, sentadas em papelões no
chão; (iii) que expõe diariamente as trabalhadoras ao contato e
inalação de produtos químicos, sem que recebam nenhum
adicional de insalubridade e sem verificar minimamente os
impactos destes produtos na saúde das trabalhadoras presas;
(iv) em que as trabalhadoras são expostas a constantes
acidentes de trabalho, sem receberem o devido tratamento
médico.
Contudo, quando indagadas sobre o suposto efeito
“ressocializador” do trabalho no espaço prisional, várias foram
enfáticas ao afirmar que a atividade laboral exercida por elas
ajuda no processo de “ressocialização”.
175
mínimo e saber que 2/3 dele é muito necessário pra
minhas filhas lá fora.”
Entrevistada 11: “ajuda algumas pessoas, no meu caso, tô
usando o trabalho para juntar o dinheiro e poder estudar.
No final isso te ajuda a ressocializar”.
176
costurando...meus estudos foram todos jogado fora. Olha
o que to fazendo agora...”
177
Entrevistada 04: “Lembro todos os dias. Eu me sinto triste.
Fico pegando o sapato e lembrando quando eles eram
pequenininhos. Bate uma tristeza...e muita saudade. Ai eu
fico fazendo planos de quando eu sair, tudo vai ser
diferente”.
Entrevistada 07: “Lembro muito...lembro quando deixei o
meu filho com 11 anos”.
Entrevistada 14: “Sempre lembro, dos meus filhos, da
minha família...‘íxi’..., já chorei muito naquela fábrica. Eu
sei que meus filhos não tem mais idade pra usar esse
número, mas lembro muito deles”.
Considerações Finais
178
formalizando parcerias público-privadas, na medida em que
propagandeia benefícios para todas as partes envolvidas,
inclusive aos trabalhadores presos. O interior do cárcere,
cercado de grandes muros e grades, passou a ser o sinônimo de
um silenciamento intencional dos sujeitos ali abrigados, mas a
transcrição dos dados da pesquisa foi capaz de dar voz a
algumas personagens que, em singeleza de respostas,
materializaram a difícil realidade por elas vivenciada, que
ultrapassa as barreiras de uma ótica laboral.
Nesse contexto de privação da liberdade, a encarcerada
naturaliza uma realidade cruel e violadora de direitos, que
perpassa distintos abusos como não trabalhar sentada, não ir
ao banheiro ou receber atendimento médico de forma adequada,
alimentar-se em condições insalubres, sentadas em papelões em
meio à sujeira da fábrica, que inclusive habita ratos, ficarem
expostas diariamente a produtos químicos fortes, cumprirem
uma rotina de trabalho intensa com a imposição de metas nas
esteiras, sofrerem constantes acidentes de trabalhos, com a
recorrente mutilação de partes dos dedos, dentre outras
violações apresentadas na pesquisa. Em um emaranhado de
complexidades vivencias por essas mulheres encarceradas e
trabalhadoras, ainda é necessário lidar com as lembranças da
maternidade interrompida, pois o produto fabricado é destinado
ao público infantil, o que pode ser revelado como outro processo
cruel de sofrimento causado pela linha de produção da fábrica.
É necessário realizar uma ponderação sobre essa
suposta “boa fama” do sistema prisional capixaba e do trabalho
carcerário que vem sendo desenvolvido em estilo fabril por
detrás de sua fachada bem construída, pois a constatação
empírica é a de que a empresa parceira busca exclusivamente o
lucro e não a “ressocialização” da interna trabalhadora, já que
quando sai do presídio ela também sai da fábrica, não sendo
incorporada pela empresa.
Apesar de todo quadro violador de direitos, não existe
nenhum tipo de reivindicação por parte das interlocutoras, pois
elas trabalham na condição de “reeducandas”, na medida e que
são levadas a crer que erraram e estão naquele local para “pagar”
pelos crimes que cometeram, conforme verbalizado por muitas
delas.
179
Em verdade, se instalar empresas privadas no interior de
presídios estaduais possui algum propósito “ressocializador”,
esse transfigurou-se em exploração da mão-de-obra carcerária
em prol do capital privado no Centro Prisional Feminino de
Cariacica, nos moldes da gestão penal neoliberal promovida pelo
Estado do Espírito Santo, institucionalizando-se uma
precarização do trabalho desenvolvido.
A pesquisa desenvolvida penetrou pelos muros da fábrica
e da prisão e através da voz dessas mulheres trabalhadoras teve
contato com um contexto violador de direitos, que deve ser
denunciado e transformado com urgência, revelando-se
necessária uma fiscalização efetiva e isenta a ser realizada no
interior dos galpões que abrigam linhas de produções de
empresas parceiras do Estado.
Em meio a esse cenário de negligência e invisibilidade, o
silêncio do aprisionamento e da realidade laboral experimentada
por essas mulheres foi interrompido e as suas vozes devem ser
ouvidas a cada leitura dos resultados relatados.
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182
Economia solidária e as relações de
trabalho da rede de coletivos fora do eixo 1
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Introdução
183
cultural esta situada dentro da lógica da produção capitalista.
Na seção a seguir, trataremos a relação da rede de coletivos Fora
do Eixo com base na crítica ao modelo de Economia Solidária.
Por fim, avançamos no debate sobre as relações de trabalho do
Fora do Eixo e os impactos desta relação para os trabalhadores.
184
coletivos, 5 casas e 400 coletivos parceiros (PORTAL
TRANSPARÊNCIA FORA DO EIXO, 2015). Em 2013, eram 18
casas coletivas, 91 coletivos e cerca de 650 coletivos parceiros.
Nesse período, havia 600 pessoas ligadas diretamente ao FdE
que influenciavam cerca de dois mil agentes. “Em sua maioria,
os coletivos-membros são associados sem fins lucrativos”
(SAVAZONI, 2014, p. 27).
Os integrantes do FdE moram nas casas e atuam como
produtores culturais da rede. Eles compartilham todos os bens
nos espaços e os custos são repassados por “uma caixa coletivo” 3
(SAVAZONI, 2014). O “caixa coletivo” está integrado ao “clube de
troca” 4 e a sistematização é feita pelo simulacro do Banco, que
se encarrega de articular tanto formas de captação de recursos
em moeda corrente, assim quantifica e geri as “reservas
solidárias”.
Os recursos em moeda corrente para o caixa são
arrecadados dos projetos empreendidos, seja por meio de editais
de incentivo à cultura ou por outros formatos privados de
captação financeira. São esses recursos que garantiam a
subsistência dos trabalhadores, além dos custos essenciais das
casas.
O FdE mantem uma estrutura definida como uma rede
colaborativa e descentralizada de trabalho onde todos são atores
do processo de forma autônoma, sendo coordenadores e articu-
ladores de maneira democrática (PORTAL TRANSPA-RÊNCIA
recebe um nome que, em geral, exprime a ideologia do clube: green dollar, real
solidário, hora de trabalho, etc. O clube escolhe democraticamente – um voto
por cabeça –, determina a taxa de câmbio de sua moeda com a do país, o valor
total da emissão de sua moeda e sua repartição por igual entre todos os
membros. Com esta moeda local os membros do clube começam a comprar bens
e serviços uns dos outros. Para facilitar o intercâmbio, os clubes promovem
reuniões e feiras de troca periodicamente, em que cada membro se apresenta
aos demais, descreve o que tem para vender e o que precisa comprar. Ao fim das
apresentações, os membros se encontram e efetuam as trocas, usando a moeda
do clube como meio de pagamento. Também se recorre a jornais impressos e
eletrônicos para divulgar as ofertas e as demandas entre os membros” (SINGER,
2002, pg. 106).
185
FORA DO EIXO, 2015). Tendo em vista que o padrão de
convivência dos integrantes que, além de trabalharem, também
moram nas casas (SAVAZONI, 2014).
No ano de 2013, a rede de coletivos Fora do Eixo recebeu
uma série de denúncias realizadas no programa Roda Viva 5
sobre as relações de trabalho e o sistema financeiro “Cubo Card”,
no que diz respeito a não remuneração dos participantes da rede,
sobre o acesso a propriedade intelectual e a hierarquização do
trabalho na rede. Também nesse período, alguns dos ex-
integrantes divulgaram, via Facebook, entrevistas concedidas a
jornais online.
Além dessas denúncias, também foi divulgado um
manifesto das mulheres intitulado de “Manifesto: Fora do Eixo e
uma reflexão das mulheres contra o patriarcalismo”, que
participaram da rede de coletivos 6. O documento expõe que nas
casas Fora do Eixo a relação patriarcal estava presente e a
divisão de trabalho era realizada por gênero, em que as mulheres
eram encaminhadas para a sistematização dentro das casas, e
os homens ficavam com as tarefas externas de articulação
política.
Feita esta breve apresentação do histórico e das críticas
destinadas a rede, discorreremos nesse artigo alguns pontos que
estreitam a sua relação com a economia solidária e a sua
cooptação de força de trabalho. Portanto, há que se destacar a
necessidade de abranger o debate acerca da centralidade do
trabalho e o trabalho imaterial, a fim de apontar que a produção
cultural, ainda que imaterial, contribui para a reprodução do
capital.
O Trabalho e o Imaterial
186
reestruturação produtiva, na década 1970, em que apontou para
o debate sobre o “fim da centralidade do trabalho” no mundo
capitalista contemporâneo (ANTUNES, 2000).
Gorz (2005) discorre junto à linha de pensamento de
Lazzarato e Negri (2001), a respeito das potencialidades do
trabalho no campo da autonomia em que destaca o saber do
indivíduo mais valioso que o tempo da máquina. Com esse
pensamento, o homem também carrega consigo o capital e o
capital da própria empresa. O que fica em evidência é “a
inteligência, a imaginação e o saber que juntos constituem o
capital humano” (GORZ, 2005, p. 16). Para Gorz (2005), o
trabalho material não aparece nesse processo como no processo
de produção taylorizado e do pós-fordismo, ele o coloca como um
momento subalterno, e define o trabalho imaterial como central
para a criação do valor.
Desta forma, Gorz (2005) aponta a subjetividade como o
cerne deste processo inovador do trabalho que se configura de
maneira oposta ao processo de produção anterior a este. Assim,
o trabalho compreendido como imaterial diz respeito a uma nova
configuração da produção, o indivíduo se encarrega de novas
obrigações e tende a apresentar uma postura diferenciada no
processo de produção (LAZZARATO; NEGRI, 2001). Estas
dimensões estão distantes do pensamento marxista acerca do
modo de produção capitalista, pois têm como característica o
produto imaterial, fruto da “indústria humana”.
Para Úrsula Huws (2014), ainda que seja um desafio
trazer o debate de Karl Marx para a contemporaneidade, é
possível analisar as transformações do mundo do trabalho sob
a luz da teoria 7 marxista, ainda que os conceitos desenvolvidos
por Marx tenham sido escritos em meados do século XIX.
Huws (2014) explica que “a teoria do valor trabalho é o
nó que está no centro da conceitualização de Marx sobre o
capitalismo como uma relação social” (HUWS, 2014, p. 14). Com
7 “[...] é possível utilizar a teoria de Marx nas condições atuais para definir o que
é, ou não é, uma mercadoria, para identificar o local de produção de tais
mercadorias, sejam materiais ou imateriais, e para definir a classe trabalhadora
global em relação a esses processos de produção. Para proceder de tal maneira,
entretanto, é necessário reexaminar a teoria do valor trabalho em todas as suas
dimensões” (HUWS, 2014, p. 14).
187
isto, expõe três situações: a necessidade de subsistência dos
trabalhadores; seu trabalho; e a mais-valia expropriada dos
resultados desse trabalho, sem que o capital não possa ser
acumulado ou o capitalismo se perpetuar (HUWS, 2014).
No capítulo VI Inédito, Marx (1978) apresenta a
subsunção formal e real do trabalho ao capital. Com base na
subsunção real do trabalho ao capital nasce um modo de
produção dito como “tecnologicamente específico”, que se
desenvolve a partir das diversas formas que produzem a mais-
valia relativa. No entanto, a produção capitalista configura-se
como um padrão de continuidade, este ocorre pela subsunção
formal à subsunção real ao capital (MARX, 1978, p. 66). O
processo ocorre a partir de uma revolução total, que tende a
continuidade com a “produtividade do trabalho e na relação
entre o capitalista e operário” (MARX, 1978, p. 66).
Assim, há o aumento da força de trabalho e isto se dá ao
passo da utilização de suportes. “Desenvolvem-se as forças
produtivas sociais do trabalho, e, por força de trabalho em
grande escala, chega-se à aplicação da ciência e da maquinaria
à produção imediata” (MARX, 1978, p. 66). Ocorre, então, a
superexploração 8 da força de trabalho para ampliar a mais-valia
sem a preocupação com a consequente barbarização da vida
social (BEHRING, 2008). Destaca-se que o capitalista se
apropria do valor criado pelo trabalhador ao não pagar o
equivalente ao trabalho (MARX, 1996).
Para Marx (1978), há a ideia do que, de fato, pode ser
considerado como mercadoria, principalmente no que tange a
acumulação do capital por meio da extração da mais-valia, com
redução de custos e também com a redução do tempo necessário
para a realização do trabalho. Desta forma, a respeito da teoria
do valor-trabalho, o processo de trabalho é um meio de
valorização do capital. Esse formato é produtivo devido ao
trabalho se apresentar como mercadoria, porém há o trabalho
que pode ser considerado mercadoria individual, que representa
uma parte alíquota e se traduz em trabalho não pago que, por
sua vez, gera um produto que não representa gastos para o
capitalista (MARX, 1978). “É produtivo o trabalhador que
188
executa trabalho produtivo, e é produtivo o trabalho que gera
diretamente mais-valia, isto é, que valoriza o capital” (MARX,
1978, p. 71).
No que tange ao trabalho produtivo, Marx (1978) define
que o trabalhador vende a sua força de trabalho, e o sujeito
possuidor da força de trabalho vende o trabalho vivo e não
apenas uma mercadoria, portanto, consiste em um trabalhador
assalariado. Com isto, Marx (1978) chega à conclusão de que
nem “todo trabalhador produtivo é assalariado, mas nem todo
assalariado é trabalhador produtivo” (MARX, 1978, p. 72). O
consumo privado para Marx (1978) não é considerado produtivo,
nem mesmo os seus executores são considerados produtivos,
estes não se transformam em fatores do capital.
Marx (1978), explica melhor com um exemplo 9 sobre o
trabalhador produtivo e improdutivo quando ressalta as
profissões que não produzem algo concreto e mensurável.
Para tanto, os pontos que diferem o trabalho produtivo
do improdutivo estão entre a relação de troca do dinheiro pelo
dinheiro ou por dinheiro como capital. Desta forma, para a
realização do trabalho produtivo também tem que haver a
pressão do capitalista, que dirige a exploração deste trabalho
para garanti-lo. Sendo assim, “[...] a classe capitalista é a classe
produtiva por excelência (por excellence)” (MARX, 1978, p. 80).
Santos (2013), em uma recente análise sobre O Capital,
de Marx, leva em conta as categorias marxianas como expostas
a um percurso progressivo que passa do simples para o
complexo, num processo que busca compreender as múltiplas
determinações que constituem o concreto. Santos (2013),
também considera que o trabalho produtivo segue o seu próprio
movimento conceitual. Com isto, sob a luz da obra de Marx, o
Capítulo IV Inédito, identificou três níveis do trabalho produtivo
como fundamentais para a compreensão do trabalho imaterial.
189
O primeiro nível trata-se do processo de trabalho sob a forma
simples produção de valor de uso que tem a ver com o
suprimento das necessidades humanas que ultrapassam o
modo de produção; o segundo nível é sobre o processo de
trabalho na ordem do capital, e se caracteriza no processo que
aparece quando ocorre a generalização intensiva e extensiva na
forma de mercadoria, com a separação dos seus meios de
produção; e o terceiro nível diz respeito à exploração da
capacidade de trabalho socialmente combinada, cuja análise
esta sustentada na concepção de subsunção real do trabalho ao
capital com a junção das tecnologias aos processos de produção,
e que passa do conceito de trabalhador individual para
trabalhador coletivo (SANTOS, 2013).
Para Huws (2014), a relação de trabalho pode ser
entendida como uma forma agressiva aos trabalhadores e que
cada nó feito pelo sistema capitalista tem sua função.
190
como ponto de partida para a sua análise as relações de gênero.
Discorre ainda que, embora dependente de outras formas de
trabalho para sua reprodução, a forma por excelência de
trabalho que caracteriza o capitalismo é trabalho que produz
valor para o capital e produz a renda que é necessária para a
sobrevivência do trabalhador.
Huws (2014) apresenta um panorama que explica a
relação entre trabalho remunerado e não remunerado. Explica
que o trabalho assalariado, segundo Marx (1978), se compre-
ende como produtivo ou improdutivo. A autora investiu na
distinção entre os trabalhadores remunerados reprodutivos para
a sociedade capitalista em geral, como administração pública,
incluindo ONGs e serviços privados oferecidos individualmente;
os trabalhos não remunerados reprodutivos que são os
trabalhos domésticos, como cuidar de crianças, manutenção
doméstica, atividades culturais não mercantis, etc.; os trabalhos
remunerados diretamente produtivos para empresas
capitalistas individualistas, com a produção de mercadorias; e o
trabalho não remunerado diretamente produtivo, como o
trabalho de consumo (HUWS, 2014).
Essa análise, segundo Huws (2014), excluiria os
trabalhos realizados informalmente, como o freelancer, o
trabalho por peça, entre outros, que apesar de não estarem na
dinâmica do capital, contribuem para a sua acumulação e, de
certa forma, para a subsistência dos trabalhadores. Huws (2014)
defende que definir o trabalho como produtivo no sentido de
Marx, ignora a realidade de que existe uma quantidade
considerável de trabalho não remunerado que produz valor
diretamente ao capital, sem contribuir para a subsistência do
trabalhador. Para esclarecer, Huws (2014) destaca que “[...] o
trabalho ‘dentro do nó’ constitui um subconjunto de todo o
trabalho e está se expandindo rapidamente rumo a se tornar a
esmagadora maioria do trabalho remunerado” (HUWS, 2014, p.
17).
Huws (2014) desenvolve sua proposta de desmistificar a
relação entre trabalho digital e outras formas de trabalho.
Desmistifica a ideia de que o trabalho digital, bem como o
trabalho imaterial ou aquele baseado no imaterial, seja um novo
campo de atividade econômica. Então reforça que, na verdade:
191
É simplesmente uma expressão do crescimento da
complexidade da divisão do trabalho, com a fragmentação
de atividades em tarefas separadas, tanto mentais quanto
manuais, crescentemente passíveis de serem dispersas
geográfica e contratualmente para diferentes trabalha-
dores, que podem mal saber da existência um do outro
(HUWS, 2014, p. 17).
192
produção capitalista, sendo assim, não poderiam ser
considerados como “anti-capitalistas”, mas sim funcionais ao
capital.
Nessa disputa, percebemos que o Fora do Eixo apresenta
a proposta de atuação "alternativa" ao capitalismo cunhado
nesse discurso quando se propõe utilizar dos princípios da
economia solidária. Portanto, analisaremos a essência da
economia solidária a fim de compreender onde se instaura o
motor que impulsiona o movimento crescente do Fora do Eixo.
O Fora do Eixo apresenta um perfil autogestionário,
sendo interessante ressaltar que a economia solidária se instala
com a visão de empreendedorismo e, portanto, há uma
tendência a condução da responsabilização do indivíduo pelo
desemprego. A concepção dessa conduta com a característica
individualista é apontada por Dardot e Laval (2016), como
neoliberal quando se trata da nova subjetividade.
193
horizontais e verticais que constituem tramas mais
intrincadas (FONSECA apud SAVAZONI, 2014, p. 35).
194
simples de mercadorias. Com isto, Wellen (2012), destaca que
mesmo que a economia solidária não proporcionasse uma
transformação social, ela proporciona um retorno “fictício” à
circulação M-D-M.
195
alcance da transformação social desconsiderando o modo de
produção vigente.
196
Eixo, em Belo Horizonte, em 2008, e qual foi o seu contato com
a rede de coletivos. A declaração expõe que a produtora não
trabalhou diretamente com o Fora do Eixo, mas acompanhou o
desenvolvimento da rede, pois como realizadora de um festival
independente, apontou várias situações causadas pela rede que
atingiram diversos festivais.
Ao que indica as declarações dos produtores que
trabalharam direta ou indiretamente com a rede de coletivos, há
o encantamento inicial pela proposta era imediato devido a falta
de inciativas com tal magnitude. Diante da aversão à produção
por meio das leis de incentivo à cultura que destinavam a
centralização de poucas regiões e só atendiam os grandes
festivais de música entre outros projetos maiores. Após a criação
da Associação Brasileira de Festivais Independentes – ABRAFIN,
em 2005, houve uma rotatividade e o fluxo de possibilidades
para que os produtores e músicos independentes concorressem
aos editais para a concretização dos festivais em meio à
competitividade deste ramo, além da criação e distribuição dos
materiais criados pelos artistas. No entanto, a ABRAFIN tomou
outros rumos após seu crescimento no seguimento de produções
culturais independentes (DOSSIÊ FDE, 2012). A mesma prática
do mercado estava posta para os músicos independentes, que
assim que entravam para a ABRAFIN e para o Fora do Eixo
tinham que aderir ao processo e perdiam sua identidade.
Segundo o relato, havia uma guerra de poder diante de
um nicho de mercado criado, à época. No seu relato é destacado
que se tratava de uma disputa dos grandes festivais contra o
Fora do Eixo e, também, uma disputa interna na ABRAFIN por
patrocínios e verbas (DOSSIÊ FDE, 2012).
Porém, não podemos desconsiderar que o cenário em que
o Fora do Eixo chegou a Belo Horizonte era de um campo fértil
para o desenvolvimento da música independente. Muitos
artistas aceitaram entrar para o Fora do Eixo local e, segundo a
produtora do BH Indie Music, com poucos meses de criação, o
coletivo FdE de BH conseguiu ter acesso ao incentivo financeiro
municipal de 200 mil reais. Este valor seria, até então, algo
inesperado tendo em vista que nenhum grupo ou produtor
alternativo de festivais da região tinha conseguido tal incentivo,
197
sendo o máximo arrecadado no valor de 20 mil a 40 mil reais
(DOSSIÊ FDE, 2012).
198
comportamento competitivo imposto sobre os sujeitos, tendo em
vista uma exacerbada valorização do capital. E, por fim, temos a
progressiva ampliação das formas de disciplinar o sujeito, seja
por via institucional codificada ou pelos governos para que se
tenha um só pensamento individual (DARDOT; LAVAL, 2016).
Com a concepção de que a competividade é uma das
características do neoliberalismo, retomamos ao ponto sobre a
desfiliação dos Festivais da ABRAFIN que teve repercussão, pois
enfatizou ainda mais quais foram às intencionalidades do Fora
do Eixo. Pretensões estas que não eram reveladas na aparência,
mas que foram percebidas pelos sujeitos que passaram pelo
circuito Fora do Eixo. Segundo o Blog Rock em Geral 14, treze
festivais 15 decidiram sair da Associação durante o IV Congresso
Fora do Eixo, em 2011. A notícia que o grupo se desfilaria da
ABRAFIN foi anunciada durante o evento por meio de um
documento assinado pelo “Grupo dos 13”.
As declarações foram sobre a falta de independência e
um sentimento de desconfiança com a associação. A polêmica
circulou em torno da ABRAFIN e o Fora do Eixo, pois a alegação
era de que, para os produtores independentes, a associação e a
rede de coletivos havia se tornado uma coisa só (BLOG ROCK
EM GERAL, 2011).
Ao fim do documento é declarada a desfiliação dos 13
festivais. Ainda sobre o Congresso Fora do Eixo, em 2011, outro
momento que teve repercussão foi a declaração de Pablo Capilé
durante uma transmissão do debate pelo PÓS-TV, em que cita
que o Estado de Pernambuco é a “personificação do rancor”, ao
referenciar à saída dos 13 festivais da ABRAFIN (RECIFE ROCK,
2011).
199
Outro comportamento que apresentou repercussão não
tanto quanto amistosa, foi outra declaração que o Pablo Capilé
fez durante um programa de rádio que, em ocasião, ele cita o
músico Flávio Augusto Câmara, mais conhecido como China.
Em entrevista pela Rádio “Queijo Elétrico”, que foi
compartilhada pelo perfil no youtube “Foraforo Auditoria já”,
Capilé comenta sobre o músico em relação a postura do Estado
de Pernambuco, como já citamos acima (FORAFORO
AUDITORIA JÁ, 2013, não paginado).
O músico China em resposta a esse pronunciamento do
coordenador do Fora do Eixo, aponta elementos que são
contrários à declaração exposta acima e rebate ao deixar claro
que a proposta que o Fora do Eixo apresenta como inovadora, já
é algo que é realizado a mais de vinte anos pelos músicos
independentes de Pernambuco (FORAFORO AUDITORIA JÁ,
2013). Também ressalta sobre a rede desqualificar o trabalho
dos artistas independentes, e ainda comenta um episódio que
ocorreu com ele, em que foi abordado por integrantes da rede
FdE e acusado de ter chamado a rede de corrupta (FORAFORO
AUDITORIA JÁ, 2013). Nesta ocasião ele explicou que não disse
a palavra corrupto. E na sequência dessa experiência vivida pelo
artista pernambucano, ele relata que fez algumas perguntas que
sempre o intrigaram, pois nunca teve respostas (FORAFORO
AUDITORIA JÁ, 2013).
200
qualquer forma. Então, pra onde vai essa grana? Por que
essa planilha não é aberta? [...] A única pergunta que eu
faço ao senhor Pablo Capilé, caso ele volte aqui: [...] Se o
governo mudar, com fica o Fora do Eixo? E a segunda
pergunta é: Da onde vem o dinheiro da casa Fora do Eixo?
Porque até agora eu não sei (FORAFORO AUDITORIA JÁ,
2013, não paginado, grifos nossos).
201
Após entendermos esse processo da saída dos festivais
da ABRAFIN, retomamos a declaração da Malu, que destaca o
diálogo com os trabalhadores do Fora do Eixo, sobre o BH Indie
Music não ter participado do circuito. Ela menciona, portanto,
que os integrantes do Fora do Eixo alegaram da seguinte forma
as retaliações ocorridas: “Obedecemos a uma regra maior das
diretrizes do FdE, não é nada pessoal” (DOSSIÊ FDE, 2012, não
paginado). Portanto, destacamos que o discurso dos integrantes
e participantes diretos do FdE, sobre seguirem as suas
diretrizes, se trata, na verdade, das diretrizes da economia
solidária. Com esse relato, aqui cabe os seguintes
questionamentos: Qual seria esse propósito maior, tendo em
vista que essa abundância que o Fora do Eixo tanto declara não
chega a outros trabalhadores envolvidos?
Sobre a capacitação de patrocínios, Malu também
declara que sem o patrocínio não tem como pagar os cachês.
Mas ao mesmo tempo, quem consegue patrocinadores não paga
as bandas e também não querem bandas independentes sem
público, como é o caso do Fora do Eixo. Mesmo sabendo que o
artista independente sem a possibilidade de realizar shows, não
forma seu público (DOSSIÊ FDE, 2012). É interessante perceber
que os relatos se encaixam com a mesma contextualização,
sendo Malu de Belo Horizonte e China de Olinda em
Pernambuco. E as críticas às Leis de Incentivo à Cultura
permanecem as mesmas sobre a questão da distribuição dos
editais dentre os recursos financeiros concedidos a rede de
coletivos.
A proposta do Fora do Eixo não consegue superar o
capitalismo e ainda contribui para uma transferência de valor
das pequenas empresas para as grandes empresas. O processo
ocorre com a venda de seus produtos com os preços inferiores
ao do mercado. Sendo assim, no caso do Fora do Eixo, o que é
barateado em si é o trabalho de toda a equipe que coloca em
movimento a produção de cultura proposta por eles.
Para a Malu, idealizadora do BH Indie Music, o Fora do
Eixo se configura como nocivo ao novo mercado de música
independente. Segundo ela, após as experiências não tão bem
sucedidas em Belo Horizonte, o Fora do Eixo retoma à capital
São Paulo, e volta ao eixo dentro da lógica do capital. Estabelece-
202
se com o que é mais oportuno para a sua sobrevivência a partir
da ideologia que precariza o trabalho de músicos e outras
profissões como designer, jornalistas, produtores, etc.
Outra questão sobre o oportunismo do Fora do Eixo está
relacionada aos relatos que diz respeito ao circuito se apropriar
de mobilizações organizadas por movimentos sociais que
possuem uma finalidade de luta contra todos os cortes de
direitos sociais. Esse depoimento foi publicado na página do
Blog “Dossiê do Fora do Eixo” que apresenta como ocorreu esse
processo chamado de “sequestro do #12M” 17.
Na ocasião, em 2012, o Fora do Eixo criou um evento com
o nome de “#12Mais” patrocinado pela Petrobrás. A
“mobilização” foi divulgada por um evento criado no Facebook,
não pela rede de coletivos, mas sim, por um perfil pessoal 18 de
um integrante do FdE, nomeado de “#12MaisLapa #12M Rio de
Janeiro”.
Portanto, com essas declarações podemos perceber que
a rede de coletivos Fora do Eixo apresentou uma proposta que
não era tão inovadora, no que diz respeito à produção cultural
artística no país, como os artistas independentes relatam acima.
Além disso, o uso do discurso acompanhado a um modelo
“alternativo” de trabalho, não passa do campo abstrato e a
concretização desse projeto apresenta algumas problemáticas
que impactam a vida dos trabalhadores. No que tange a
produção realizada pelo coletivo, identificamos também um
modelo que está alicerçado ao capitalismo que é o just-in-time.
Com o corte de gastos dentro da lógica deste modelo de
produção, os festivais e todo o material produzido apresenta
uma produção por demanda.
203
Conclusão
204
declarações sobre a rede são muito parecidas. Notamos ainda
que nas declarações havia um anseio em relatar a essência das
relações de trabalho, pois esses sujeitos se sentiram
prejudicados de alguma forma por esta dinâmica. E isso vai de
encontro ao levantamento que demonstra documentalmente o
que as entrevistas e a análise teórica já apontavam: que a rede
de coletivos Fora do Eixo apresenta apenas no discurso a
utilização da economia solidária e que, na realidade, sua prática
não se confere para além do capitalismo como proposta
alternativa.
Por fim, conferimos que a rede de coletivos Fora do Eixo
está pautada na economia solidária apenas no discurso e não
como relações concretas. E, com base nos dados levantados,
compreendemos que a economia solidária enquanto projeto
social, que teve um crescimento exponencial, na década de
1990, no Brasil, trata-se de um mecanismo de gerenciamento da
população que se encontra enquanto exército industrial de
reserva. Neste sentido, a leitura realizada pelos teóricos
defensores da economia solidária se configura como uma análise
fetichizada ao sistema capitalista. Além disso, rompe com as
possibilidades de unificação da classe trabalhadora, com o perfil
de um sujeito individualizado e, de tal modo, se faz obscurecer
os caminhos para uma possível transformação social.
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208
El estado nación y la contradicción
capital-trabajo en Argentina: sobre las
funciones de legitimación y acumulación
de los programas sociales de empleo
argentinos (2002-2011)
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
209
medidas implementadas en lo concreto por los diversos
gobiernos capitalistas y que tuvieron como eje vector la
flexibilización dentro del proceso de acumulación. Además del
aumento del desempleo, otra tendencia en el capitalismo
contemporáneo es la de dar continuidad al histórico proceso de
precarización laboral 3, ahora bajo nuevas determinaciones.
En el caso particular de Argentina, la operacionalización
de aquellos mecanismos de flexibilización por parte del capital
alcanzó su máximo vigor durante los años 90, bajo la hegemonía
de la ideología y programa neoliberal de los gobiernos de turno.
Al igual que en el resto de los países de América Latina, en dicho
período los gobiernos neoliberales argentinos implementaron las
medidas establecidas en el Consenso de Washington (CW)
dirigidas a reducir las funciones económicas del Estado, así
como también su privatización y descentralización. Estas
recetas provenientes del Fondo Monetario Internacional (FMI),
se expresaron en fuertes reformas de carácter monetario,
económico, previsional y laboral; e instauraron, en términos
generales, procesos de apertura económica y revaluación de la
moneda (Plan Convertibilidad) 4, de descentralización de
servicios sociales, de privatización de la administración y
empresas públicas (Reforma del Estado n. 23.696 y de la
Administración Pública), y de flexibilización laboral (Nueva Ley
de Empleo n. 24.013).
Bajo estas nuevas dinámicas del capital, la crisis
alcanzada años posteriores en Argentina (2001- 2002) no tuvo
precedentes. En el año 2002, un 23% de la población se
encontraba desocupada, mientras que la tasa de pobreza
210
alcanzó 49% y la de indigencia un 17, 8% 5. La respuesta
gubernamental inmediata al estallido de la crisis fue la represión
de la protesta social y la posterior declaración de estado de sitio;
seguida por la renuncia del por entonces Presidente de la Nación
y la declaración de Estados nacionales de Emergencia
Ocupacional (Decreto n. 165/02), Alimentaria (Decreto n.
108/02), Pública y de Reforma del Régimen Cambiario (Ley n.
25. 561), entre otros 6.
En materia de empleo, como medida anti cíclica y bajo el
título de disposición transitoria, el Ministerio de Trabajo, Empleo
y Seguridad Social (MTEySS) creó el programa de empleo Jefes
y Jefas de Hogar Desocupados (PJJHD- Decreto n. 565/02),
dirigido a brindar ayuda económica a padres y madres
desempleados/as, y el programa de Recuperación Productiva
(REPRO, Res. n. 481/02), destinado a empresas declaradas en
crisis.
Estas medidas forman parte del conjunto de programas
sociales de empleo que tanto los gobiernos de Argentina como
los del resto de América Latina vienen implementando desde las
últimas décadas del siglo pasado, como estrategias para
remediar y transitar los momentos críticos del capital
(GABRINETTI, 2014). Aunque presentados como transitorios,
tales programas de empleo, con objetivos y alcance similares,
constituyen una constante del accionar de los gobiernos
capitalistas de turno (GABRINETTI, 2014) vigente al día de la
fecha 7.
211
Dicha continuidad en el tiempo de programas de empleo
presentados como esporádicos, invita a reflexionar acerca de la
relación histórica en el capitalismo entre sus crisis, desempleo
estructural y el accionar de los gobiernos en sus distintos
niveles. En base a ello, en el presente capítulo se pretende
problematizar, en términos críticos, históricos y concretos,
respecto al papel de los programas de empleo argentinos en el
funcionamiento y perpetuación del sistema capitalista de clases.
Si bien las crisis del capital y el anuncio de tales
programas constituyen una constante en el sistema y gobiernos
capitalistas desde finales del siglo pasado, nuestro análisis se
limita al período concreto de la acumulación del capital en
Argentina correspondiente a los años 2001-2011, dado que en
el mismo tuvo lugar la crisis socioeconómica y política de mayor
alcance del país y su tratamiento por parte de los gobiernos 8.
Dadas tales características, consideramos que el análisis de los
programas allí creados, así como también, de las determina-
ciones generales y específicas de los mismos, podrían constituir
un aporte importante a los estudios críticos del capital,
específicamente, de la política social de los Estados capita-
listas 9.
Los programas analizados en el presente trabajo son los
considerados como emblemáticos del período estudiado, ello en
función de su aparición tanto en los discursos y publicaciones
Argentina, Mauricio Macri, anunció la creación del programa Empleo Joven, así
como también, la actualización de los programas Seguro de Desempleo y REPRO
(TORRES CABREROS, 2016). Por su parte, el actual presidente Alberto
Fernández anunció a principios de su mandato (enero 2020) la creación del
programa Hacer Trabajo, dirigido a "brindar apoyo, orientación y medios para
desarrollar emprendimientos y acompañar a los emprendedores en todo lo que
necesitan para ser sus propios jefes y llevar adelante sus negocios" (s/d, 2020).
En ambos casos, como veremos a lo largo del presente artículo, las prestaciones
y beneficiarios de los programas anunciados coinciden con las de los programas
de empleo preexistentes.
8 Dicho período de análisis también contempla la crisis internacional del año
212
oficiales de gobierno, en donde se anuncia su creación y/o rinde
cuentas de la evolución y resultados alcanzados por parte de los
mismos, como en los estudios académicos consultados y que
constituyen los antecedentes de la presente investigación
(PRETTO, 2018). Se utiliza, como herramienta de recolección y
análisis de datos, el método documental basado en el análisis de
normativa – entendida esta última como el conjunto de normas
que regulan una cierta materia o actividad- correspondiente al
período 2002-2011, referida a la creación, reglamentación,
implementación y contextualización de los programas sociales
de empleo. Como técnica de análisis de los datos obtenidos
durante el análisis de los programas, utilizamos la estrategia de
Análisis de Contenido, específicamente, la Técnica de Análisis
del Discurso (BARDIN, 2006).
A continuación, se realiza una breve reflexión, desde un
nivel abstracto de análisis, acerca del papel de los Estados
nacionales en el proceso de acumulación del capital: ¿de qué
manera los mismos participan de las relaciones sociales de
producción? ¿Su accionar se reduce a los momentos de crisis
del capital? Seguidamente, se sintetizan las principales
características de la legislación laboral argentina a partir de los
años 2000, es decir, se identifican las determinaciones
específicas de las decisiones gubernamentales de creación de los
programas de empleo aquí analizados para, finalmente, describir
y problematizar sobre los mismos. Por último, se comparten
algunas reflexiones finales en torno a las funciones de
acumulación y de legitimación de los programas.
213
deducen del capital 10. Su participación constante en el
desenvolvimiento de las fuerzas productivas se expresa por
medio de sus históricas funciones de acumulación y de
legitimación (MATHIAS; SALAMA, 1983; SALAMA, 1980), las
cuales son redefinidas a lo largo del tiempo por las
determinaciones generales y específicas del proceso histórico de
acumulación en cada territorio 11.
En lo que refiere a la función de acumulación, la misma
se dirige a regenerar el capital y se manifiesta, en términos
generales, en tres acciones estatales (MATHIAS; SALAMA, 1983).
Por un lado, los Estados capitalistas intervienen en los procesos
de acumulación por medio de su actuación en las leyes
capitalistas de tendencia a la nivelación y a la caída de las tasas
de ganancia. En el primer caso, el Estado interviene para
establecer jerarquías entre las tasas niveladas de ganancia, dado
que es justamente la diferencia entre las mismas y la tendencia
del capital a su acumulación, lo que “motoriza” el proceso de
acumulación. En otras palabras, al alterar la nivelación de las
tasas de ganancia, “El Estado favorece la emergencia de mejores
condiciones para la reproducción de ese capital” (MATHIAS;
SALAMA, 1983, p. 50, traducción propia). Esta acción estatal es
constante y realizada de manera “suave”, buscando influenciar
el curso natural de la acumulación.
214
En el caso de la intervención del Estado en la ley de
tendencia a la caída de la tasa de ganancia, Mathias e Salama
(1983) sostienen que la misma no es constante sino que tiene
lugar en los momentos de crisis del capital, por lo que requiere
de una participación estatal abrupta y precisa, que permita
modificar las condiciones de explotación de la clase operaria.
Como fue destacado anteriormente, la restauración necesaria de
las condiciones de valorización y dominación, generalmente se
traduce en crecimiento del desempleo, reducción salarial,
imposición de nuevas formas de producción, entre otras
medidas.
En este sentido, las crisis en el capitalismo representan,
en términos generales, el agotamiento de las fuerzas que
contrarían la caída tendencial de la tasa de ganancia (SALAMA,
1980). Este agotamiento tiene que ver en parte con la
incapacidad del capital para aumentar de manera suficiente la
tasa de explotación, es decir, de renovar las técnicas de
producción en base a la dominación de los trabajadores. Es por
tal motivo que las crisis revelan la necesidad de modificar las
condiciones de dominación de la clase operaria.
Sin embargo, el carácter regular y necesario de las crisis
no necesariamente indica que las mismas sean mecánicas y
previsibles. Por el contrario, “su manifestación coyuntural es
determinada por especificidades y particularidades de los
momentos sociales e históricos concretos” (CARCANHOLO,
2017, p. 19), a la vez que las mismas pueden presentarse en
períodos económicos de crecimiento pero con una tasa menor de
la que regía en el período anterior. En contraposición a lo
anteriormente expuesto, la ideología y programa neoliberal,
sostienen que las crisis son producidas por factores externos al
proceso de acumulación (NAKATANI; HERRERA, 2011).
Por su parte, además de regenerar el capital, los Estados
también buscan reproducir la fuerza de trabajo, lo que Mathias
e Salama (1983) denominan “función de legitimación”. En la
actualidad, existen diversas teorías que problematizan sobre la
reproducción de la fuerza de trabajo en el capitalismo. En
términos generales, todas ellas coinciden en dos puntos:
conciben dicha reproducción como un conjunto de procesos
destinados a garantir a las/os trabajadores/as y sus respectivas
215
familias, medios de subsistencia que den continuidad a su
trabajo; y señalan la funcionalidad de la misma al capital. De
esta manera, reproducir la fuerza de trabajo implica mantener
en funcionamiento la fuerza de trabajo empleada y a emplear
por el capital, por medio de la satisfacción de las necesidades
básicas de los trabajadores y sus familias (futuros trabajadores),
como ser, el consumo de alimentos, vestimenta, vivienda y
salud, entre otras (MARX, 2013).
De acuerdo a esto último, el histórico papel del mercado
y las familias en la reproducción de la fuerza de trabajo, se
complementó progresivamente con el de los Estados-Nación. En
la actualidad, la labor de estos últimos consiste, en términos
generales, en gestionar políticas salariales y de contratos
laborales, por un lado, y de políticas de salud, educación,
asistencia, etc., por el otro.
216
laboral y contratación de la fuerza de trabajo, que viabilizan su
explotación.
Constituyen ejemplo de ello normativas que posibilitan la
implementación del “turno americano” (entre otras modalidades
de flexibilización horaria), la fragmentación de vacaciones y
aguinaldo, los períodos de prueba, de flexibilización de los
salarios y formas contractuales (como ser las pasantías, los
contratos de tiempo determinado, etc.), entre otras
(MARTICORENA, 2015a). Asimismo, y en directa relación con lo
anterior, en dicho período se exacerbó la implementación, tanto
en el ámbito privado como público, de los mecanismos de
tercerización, especialización productiva y cooperativismo
(BASUALDO, 2016).
Respecto a los avances alcanzados por la política
laboral 13, en lo que refiere específicamente a la política salarial,
la misma presentó fuertes mejoras a partir de la regulación del
Salario Mínimo, Vital y Móvil (SMVyM), la incorporación al
salario básico de vales alimentarios (Ley n. 26.341/07) y de
sumas fijas no remunerativas otorgadas previamente bajo forma
de transferencias directas de renta (Decreto n. 392/03), el
aumento mínimo no imponible del impuesto a las ganancias,
aumento de las Asignaciones Familiares, entre otras medidas
(MARTICORENA, 2015a).
Estos “nuevos” salarios, junto a otras medidas como ser
el otorgamiento de créditos a la clase trabajadora empleada y
desempleada (éstos a tasas muy bajas de interés), permitieron
una progresiva valorización del capital, dado que aumentaron el
consumo de la fuerza de trabajo de manera suficiente para
solventar la demanda sobrante y expandir, de esta manera, el
mercado interno argentino (SEIFFER, 2016). Asimismo, dicho
aumento del gasto social tuvo lugar en un período de expansión
económica posibilitada, principalmente, por la elevación del
precio de los commodities, con la soja y cereales como productos
líderes, y de las retenciones a las exportaciones. Estos ingresos
elevados permitieron al gobierno argentino dar cierto oxígeno a
la producción industrial que históricamente se mostró en fuerte
dependencia de las divisas del campo 14, a la vez que actuaron
217
como garantía para las negociaciones de la deuda externa con el
sistema financiero que tuvieron lugar en el año 2005 (GIGLIANI,
2015).
En relación a los avances presentados por la política de
contratación de la fuerza de trabajo, los mismos se expresaron,
en un primer momento, a través de la Ley de Ordenamiento
Laboral n. 25. 877 sancionada en el año 2004. Entre otras
disposiciones, por medio de dicha Ley, el gobierno restituyó el
principio de ultractividad en la Ley de Contratos Colectivos de
Trabajo (14.250) y la primacía de las negociaciones colectivas de
ámbito mayor, esta última derogada por la Ley de Empleo
Estable n. 25.250. De esta manera, los convenios colectivos de
trabajo volvieron a regir sobre los realizados en instancias
inferiores, como ser, las de carácter empresarial.
Asimismo, por medio de esta Ley el gobierno creó un
Sistema Integral de Inspecciones del Trabajo y de la Seguridad
Social, que buscó “controlar y fiscalizar el cumplimiento de las
normas de trabajo y de la seguridad en todo el territorio nacional
y eliminar el trabajo no registrado” (OIT, 2014, p. 7). Dicho
Sistema fue creado junto a numerosas políticas de fiscalización
laboral, en el marco del Plan Nacional de Registro del Trabajo
(PNRT) sancionado en el año 2003.
En relación a esto último, las numerosas políticas de
fiscalización del trabajo no registrado que tuvieron lugar a lo
largo del siglo XXI, dan cuenta de la incapacidad de la política
micro y macro económica argentina de crear empleos genuinos
en el marco de un ciclo económico nacional e internacional
expansivo, por un lado, y del consecuente carácter paliativo de
la política de empleo nacional, por el otro (GIOSA ZUAZUA,
2006). De acuerdo a la OIT (2014), a finales del 2014 Argentina
presentaba un 6,9% de desempleo (lo que significó una
reducción a menos de la mitad de los valores que se alcanzó en
el 2003: más del 16%), y un 34,3% de empleo no registrado (en
comparación al 49% del año 2003). La relación presentada por
estos porcentajes a lo largo del período aquí problematizado, da
cuenta del carácter primariamente informal de los empleos
generados por entonces en el país.
218
Entre otros avances presentados por la política de
contratación de la fuerza de trabajo, se destacan también: i) la
disminución de seis a tres meses sin posibilidad de prorrogación
(año 2004) para los casos de periodo de prueba, aunque
permitiendo aún que los empleadores extingan la relación
laboral sin causa y sin pago de indemnización; ii) la condición
de irrenunciabilidad a las condiciones pactados en los contratos
individuales de trabajo (Ley 26.574); iii) la incorporación de
regulaciones para el contrato de trabajo a tiempo parcial
(26.474), como ser la imposibilidad de exigir al trabajador la
realización de horas extras; iv) el establecimiento del “Régimen
de ordenamiento de la reparación de los daños derivados de los
accidentes laborales y enfermedades profesionales” (Ley 26.773).
Además, una vez recuperado el crecimiento económico luego de
la crisis del 2009, en el 2010 se sancionaron leyes como:
219
tarios de los avances de la legislación laboral, y aquellos no
registrados y receptores de salarios bajos.
15 La crisis de la deuda tuvo lugar a inicios de los años 80, cuando los países
periféricos de América Latina se mostraron incapaces de hacer frente a los
compromisos adquiridos de pago de los préstamos recibidos años anteriores.
Dicha crisis comenzó específicamente en México, cuando la declaración de
insolvencia por parte de dicho gobierno en 1982, hizo con que los bancos
comerciales revieran el otorgamiento de préstamos financieros a los países
latinoamericanos. Así, este período “se caracteriza por una sistemática escasez
de financiamiento externo para los países de la región" (GIACABONE; SOROKIN,
2005, p. 6). Los montos, en dólares corrientes, de la deuda externa bruta de los
principales países de América Latina (Brasil, México, Argentina, Colombia y
Venezuela), pasaron de “US$ 22,8 bilhões em 1970, para US$ 193,4 bilhões em
1980 e para US$ 338,0 bilhões em 1990 (WORLD BANK, 2017)” (NAKATANI, s/d,
p. 6).
220
iniciativas 16. En sus postulados, muchos de estos programas
colocan la necesidad de “promover los esfuerzos individuales y
colectivos”, el “trabajo decente” (este último directamente
vinculado al Programa de Trabajo Decente de la Organización
Internacional del Trabajo – OIT), “mejorar la empleabilidad de
los individuos”, “generar oportunidades de inclusión social”,
entre otras 17.
Asimismo, más allá de sus respectivas particularidades,
por medio de estos programas los gobiernos periféricos situaron
al trabajo como elemento central de integración y recono-
cimiento social de los individuos, en este caso, pobres y
desempleados que han quedado por fuera de los “efectos del
derrame” defendidos por la política económica neoliberal. En tal
sentido, además de estar desempleado, presentar bajos ingresos
y/o condiciones de vulnerabilidad, otros condicionantes
establecidos por los programas para su ejecución tienen que ver
con el nivel educativo de sus potenciales beneficiarios, la
cantidad de hijos, discapacidad, entre otras características que
terminan por exacerbar su carácter focal y que colocan como
primer resultado la estigmatización de sus beneficiarios: éstos
son los marginalizados del sistema cuyo “mérito” es el de haber
“fracasado” como ciudadanos que estudian y/o trabajan.
En Argentina, constituyen ejemplo de esto último los
requisitos de edad para el caso de los programas de empleo
nacionales Teletrabajo a partir de los 45 años. Un nuevo Desafío
(Res. 1003/09) y Jóvenes con Más y Mejor Trabajo (JMyMT-
empleo argentinos son desde sus orígenes similares al resto de los creados en
América Latina, ello debido a que los objetivos, y en ocasiones, financiación y
auditoria de los mismo, son definidos, en términos generales y bajo forma de
recomendación, por organismos internacionales, como ser el FMI, Banco
Mundial (BM), Organización para la Cooperación y el Desarrollo Económicos
(OCDE), Organización Internacional del Trabajo (OIT), entre otros. Por lo tanto,
queda evidencia la contradicción presentada en el accionar de tales organismos:
las mismas entidades internacionales promotoras de programas dirigidos a
combatir el desempleo, son las que históricamente “aconsejan” implementar, a
cambio de ayudas monetarias, medidas de ajustes generadores de desempleo y
pobreza a corto y largo plazo.
221
Resoluciones n. 497/08 y 261/08), este último dirigido a
personas de entre 18 a 24 años, y los de género para el caso del
Plan Familias Incluidas (Decreto 1506/04) 18.
Al igual que los programas de empleo, a finales del siglo
pasado también cobraron relevancia los programas de
transferencia condicionada de ingresos (PTCI), dirigidos a
garantizar cierto mínimo de ingresos en los desocupados benefi-
ciarios a cambio de que estos últimos se ocupen de la salud y
educación de sus hijos 19. Desde los años 2000 y en el marco del
proceso de expansión económica arriba mencionado, tanto los
programas de empleo como los de TCI de América Latina se
propagaron. En el caso argentino en particular, y en lo que
respecta específicamente a los programas sociales de empleo,
además de aumentar en cantidad, estos programas presentaron
nuevas características en sus diseños y acciones propuestas, a
la vez que adquirieron un grado mayor de institucionalización.
En lo que refiere a las contraprestaciones solicitadas, en el
período post crisis 2001 los programas de empleo argentinos:
222
administraciones nacionales descentralizadas en territorios
locales (MADOERY, 2011). En materia de empleo, se
consolidaron las ya existentes Delegaciones Territoriales
dependientes de la Secretaría de Trabajo (ST), las Gerencias de
Empleo y Capacitación Laboral (GECALes) pertenecientes a la
Secretaría de Empleo (SE), específicamente a la Dirección
Nacional de Servicio Federal de Empleo. Estas instituciones
estaban dirigidas a controlar el trabajo informal y mediar los
conflictos laborales para el caso de las primeras, y a garantizar
la ejecución articulada de políticas, planes y programas de
empleo, brindar capacitaciones y promover la empleabilidad de
los trabajadores en las respectivas jurisdicciones (Resolución n.
100/2012), en el caso de las segundas. Otra importante medida
dirigida a organizar la política de empleo fue la creación en el
2003 del Plan Integral para la Promoción del Empleo (Res. n.
256/03 del MTEySS) 21 cuya principal finalidad es la de nuclear
y coordinar el funcionamiento de las Oficinas de Empleo
Municipales.
Son varios los programas que en el período analizado
adquirieron importante alcance y duración en el tiempo. Entre
ellos, se encuentra el ya mencionado programa JJJHD,
anunciado en el año 2002 en el marco de las medidas anti
cíclicas impulsadas por el gobierno. Como en la mayoría de los
programas aquí estudiados, el límite temporal establecido en las
prestaciones del PJJHD (31 diciembre 2002) fue extendido. Aún
vigente en el año 2005, y en consonancia con el proceso de
“activación” de la política social, el gobierno realizó, bajo un
“criterio de empleabilidad” (HOPP, 2009) el traspaso de sus
beneficiarios a los programas Familias Incluidas del Ministerio
de Desarrollo Social (MDS) y de Seguro de Capacitación y
Empleo, del MTEySS (SCyE, Decreto 1506/02 y Res. 336/06).
Jóvenes con Más y Mejor Trabajo (JMyMT) y del programa local Los Solares (2008-
2013). In: Revista De Prácticas y Discursos, Chaco, v. 4, n. 5, jul/dic, 2015.
21 Los programas analizados se enmarcan en diversos Planes creados por los
223
En el mismo año, el gobierno también creó el programa
REPRO anteriormente citado. Lejos de cumplir el límite de
duración (un año), el REPRO continuó en vigencia y fue
reutilizado (inclusive con mayor alcance e intensidad) en los
años 2008 y 2009, como medida anti cíclica para afrontar, esta
vez, los efectos de la crisis internacional. En tal período de post
crisis internacional, se creó también el Programa Ingreso Social
con Trabajo – Argentina Trabaja (PAT, Res. n. 3182/09 y Decreto
n. 1067/09) del MDS, dirigido a generar puestos “genuinos” de
trabajo por medio de la conformación de cooperativas diseñadas
para trabajar en comunidades necesitadas de obra pública y
servicios básicos.
Otro importante programa creado para paliar los efectos
de la crisis internacional, fue el ya mencionado y aún vigente
JMyMT del MTEySS. El mismo busca generar oportunidades de
trabajo en jóvenes de entre 18 y 24 años desocupados y sin
estudios secundarios completos, por medio de “acciones
integradas que les permitan identificar el perfil profesional en el
cual deseen desempeñarse, finalizar su escolaridad obligatoria,
realizar experiencias de formación y/o prácticas calificantes en
ambientes de trabajo, iniciar una actividad productiva de
manera independiente o insertarse en un empleo” (Res. n.
497/08).
A continuación, presentaremos una tabla con
información sistematizada sobre los objetivos, regulación, año
de creación, destinatarios y duración de los programas aquí
estudiados, seguida de algunos comentarios 22:
224
225
226
227
228
229
230
En relación a la información presentada, resulta de
interés destacar que muchos de los programas analizados
terminaron por fusionarse entre sí durante su implementación,
y en ocasiones, bajo un nuevo nombre. Inclusive, en la mayoría
de los casos, sus prestaciones, generalmente a cargo de entes
locales, fueron y continúan siendo ejecutadas por las Oficinas
de Empleo Municipales, por lo que el nombre de los programas
deja de tener protagonismo y son los gobiernos locales quienes
se visibilizan como los prestadores de servicios de empleo,
independientemente de cada programa nacional en particular
(PRETTO, 2015).
En relación a esto último, además de su fusión bajo
nuevo título o no, otra modalidad presentada en la gestión de
estos programas refiere a la complementación ejercida entre sus
prestaciones. Por ejemplo, como se puede ver en la tabla, en la
Resolución de creación del PIL, se establece que podrán
participar del programa trabajadoras y trabajadores mayores de
18 años que estén incluidos en el PJMyMT, SCyE, de Trabajo
Autogestionado, entre otros (Resolución 45/06). Otro ejemplo
está dado por la línea de Autoempleo del PIL que coloca entre
sus destinatarios a los beneficiarios del programa de SCyE
(Resolución 45/06); y por el Programa Entrenamiento para el
Trabajo, que se dirige a los beneficiarios del SCyE y de
cualquiera de los programas a la fecha administrados por el
MTEySS.
En resumen, como puede observarse en la tabla, la
mayoría de los programas presentan como potenciales destina-
tarios a beneficiarios de otros programas en ejecución, a la vez
que sus prestaciones y nombres son parecidos entre sí. A su vez,
otra herramienta estatal utilizada para gestionar fuerza de
trabajo vía programas sociales de empleo, consiste en garantizar
la continuidad de la condición de beneficiario de sus
participantes una vez finalizadas las prestaciones del programa
en cuestión, por miedo de su incorporación en otro programa
vigente. Esto último se explica por los cortos períodos de las
prestaciones, que como se puede observar en la tabla, en la
mayoría de los casos no supera los 12 meses 1.
231
Para finalizar, en la tabla se observa un aumento en la
cantidad de programas durante los años 2006 y 2008-2009. En
relación a lo sucedido en el 2006, dicho aumento podría deberse
al hecho de tratarse de un año pre electoral para cargo
presidencial, y por lo tanto, que los gobiernos busquen a través
de los mismos mayor legitimación política. Por su parte, el
aumento durante el período 2008- 2009 formaría parte del
conjunto de medidas anti cíclicas implementadas por el gobierno
para contrarrestar los efectos de la crisis internacional del 2007
en el mercado de trabajo argentino. No ha sucedido lo mismo en
el periodo post crisis 2001, dado que por entonces cobraron
mayor protagonismo, como medida anti cíclica, los Planes y los
PTCI del MD. Asimismo, otro posible motivo del aumento de los
programas de empleo en el año 2009, tendría que ver con la
derrota electoral legislativa que en dicho período protagonizó el
gobierno oficial.
En su conjunto, las dinámicas aquí presentadas
evidencian cómo los programas de empleo se encuentran en
constante adaptación a las demandas y dinámicas presentadas
por el mercado de trabajo, por lo que constituyen una
importante herramienta de gestión de la fuerza de trabajo en sus
distintas formas y facetas.
232
manera directa o no, y bajo alcance e intensidad diversa, en las
leyes tendenciales de caída y de nivelación de las tasas de
ganancia, así como también, en las dinámicas de los sectores
productivos, en los procesos de reproducción de la fuerza de
trabajo, etc.
Por un lado, los programas posibilitan disminuir costos
de ciertos sectores de la producción (acumulación). Por ejemplo,
en el caso de los objetivos perseguidos por los programas REPRO
y PAT, tal disminución tiene lugar por medio del subsidio a
salarios, capacitaciones y realización de obra pública que no sólo
es utilizada por la clase trabajadora para su reproducción como
fuerza de trabajo, sino también por los propios capitalistas en
sus procesos de circulación y regeneración del valor, entre otras
estrategias.
Los programas también disminuyen los costos
productivos por medio de la implementación de diversos
mecanismos de flexibilización de los procesos de compra y venta
de la fuerza de trabajo. Constituye un gran ejemplo de esto
último el carácter temporal de los programas (en su mayoría no
superan los 10 meses de ejecución) expresado de diversas
formas: en cooperativas (PAT y programa de Promoción y
Asistencia del Trabajo Autogestionado y la Microempresa, para
el caso de cooperativas generadas por trabajadores de empresas
recientemente quebradas), en emprendimientos individuales y/o
grupales cuya continuidad no se encuentra garantizada por
parte del Estado (programas Promoción del Microcrédito para el
Desarrollo de la Economía Social "Padre Carlos Cajade", De
Herramienta por Trabajo, y De Empleo Independiente y
Entramados Productivos Locales, entre otros), así como
también, en empleos transitorios en el sector público y privado
(PIL en sus diversas líneas de acción, De Entrenamiento para el
Trabajo, SCyE, De Empleo Transitorio en Obra Pública con
Aporte de Materiales: Trabajadores Constructores, De Desarrollo
del Empleo Local, De Empleo Comunitario).
Por otro lado, los programas se dirigen a satisfacer – no
obstante de manera parcial dado el bajo nivel de las
transferencias monetarias – necesidades de la clase trabajadora
consideradas básicas por el capital (legitimación), es decir,
necesarias para su funcionamiento basado en la explotación.
233
Este incremento de la capacidad adquisitiva de los trabajadores
por medio de sus nuevos “salarios”, así como también, de la
capacidad de ganancia de la clase capitalista, se traduce en
reconocimiento por parte de estas últimas hacia la clase
gobernante.
En su conjunto, el diseño de los programas sugiere la
creación de puestos de trabajo precarios tanto en el sector
privado como estatal. Dicha precariedad deviene no sólo del
carácter transitorio de los programas, sino también del monto
escaso de sus remuneraciones (al 2018 constituyen la mitad del
SMVyM), de la falta de aportes y jubilaciones, entre otras tantas
falencias. Asimismo, en el caso puntual de la creación de
puestos de trabajo en el sector público, la mayoría de los
programas colocan a sus transitorios beneficiarios en el deber
de realizar funciones estructurales del Estado en sus diversos
niveles. En tal sentido, a través de los programas los gobiernos
hacen uso de mano de obra barata y temporal para llevar
adelante sus obligaciones. Un claro ejemplo de esto son las
inestables cooperativas del PAT, por medio de las cuales los
beneficiarios del programa deben realizar obras públicas en
barrios carenciados. Por su parte, los programas de Inserción
Laboral en el sector público (PIL), JMyMT, de SCyE y de Empleo
Transitorio en Obra Pública con Aporte de Materiales (Res.
1164/06 y 387/08) sugieren la misma lógica de actuación (ver
en Tabla programas anteriormente presentada).
En resumen, se sostiene que el diseño e implementación
de los programas de empleo aquí analizados, son expresiones en
el siglo XXI del histórico proceso de precarización laboral. Esto
último coloca a la precariedad como un fenómeno también
presente en las esferas formales/registradas del trabajo, es
decir, aquellas reguladas por los Estados nacionales en sus
distintos niveles. En este sentido, entendemos que la actual
regulación precaria de la fuerza de trabajo no constituye una
“vuelta atrás” o “retorno” a las fases iniciales del capital, sino
una pérdida de derechos y concesiones alcanzadas por los
trabajadores a lo largo de la historia de la lucha de clases.
En relación a esto último, resulta de interés señalar cómo
los programas sociales de empleo constituyen una estrategia del
capital factible de coexistir con las diversas transformaciones-
234
muchas de ellas entendidas como “conquistas” de la clase
trabajadora- de la legislación laboral argentina desde finales del
siglo pasado. En relación al período aquí estudiado (2002-2011),
la “convivencia” entre los “avances” de la legislación laboral
argentina del siglo XXI y los programas de empleo, deja en
evidencia la “supervivencia” de la lógica flexibilizadora en los
procesos de regulación de la fuerza de trabajo argentina, a la vez
que profundiza los procesos de heterogeneización y
fragmentación de la clase trabajadora en el país.
Asimismo, el constante diseño y anuncio de programas
de empleo, refleja el reconocimiento por parte de los gobiernos
argentinos del carácter estructural del desempleo en el
capitalismo. Dicho fenómeno se expresa a su vez en el
crecimiento de la actuación del MDS – órgano estatal históri-
camente dirigido a asistir de manera focalizada y sin exigir
contraprestaciones laborales a quienes quedan por fuera del
“efecto derrame” – en los procesos de mejora de la empleabilidad
y de creación de puestos de trabajo (proceso de “activación” de
la política social), inclusive en un período económico de
expansión. Además, este aumento en la participación del MDS
en materia de empleo, expresa la necesidad del capital de crear
empleos transitorios y focalizados “por fuera” y/o de manera
paralela a la política macroeconómica.
Tal fenómeno también queda en evidencia en la
contradictoria relación establecida entre el carácter inestable
(temporal) de los empleos creados por los programas, y la
creciente institucionalización, y por ende, mayor cantidad y
estabilidad, de los organismos estatales responsables de su
ejecución, como es el caso del fortalecimiento del Instituto
Nacional de Asociativismo y Economía Social (INAES, Decreto
420/96), las GECALes y Oficinas de Empleo, la creación de la
Secretaría de Economía Social (Decreto n. 505/10), del Registro
de Efectores de Desarrollo Local y Economía Social (Decreto n.
189/04), etc. En relación a ello, adherimos a Lo Vuolo (2010)
cuando afirma, también refiriéndose a los programas de empleo
argentinos, que
235
es una relación económica basada en derechos de
propiedad, mientras que las políticas sociales establecen
relaciones sociales fundadas en los derechos sociales. La
confusión de estos ámbitos del complejo sistema social se
expresa en la confusión entre el “derecho” a un empleo con
la “obligación” de emplearse para recibir un beneficio de
los programas sociales. A esto se le suma la precariedad,
transitoriedad e insuficiencia del empleo que exigen los
programas sociales como contraprestación. Lejos de
consagrar un derecho social, la contraprestación laboral
de los programas sociales sirve para consolidar y legitimar
las relaciones de dominación/subordinación propias del
mercado laboral. De este modo, la política social no logra
expandir el acceso a los derechos sociales ni tampoco
resolver la cuestión de la precariedad e insuficiencia de
empleo, transformándose en un mecanismo más de
control social a lo que adiciona su potencialidad para
activar mecanismos de clientelismo político (LO VUOLO,
2010, p. 18).
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240
O espaço não formal como ponto de
encontro entre o conhecimento popular e
erudito: o direito à cidade e a formação
omnilateral1
_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Caroline Calvi 2
Introdução
1 Este artigo se baseia no recorte teórico da pesquisa feita por mim para a
dissertação de mestrado em Ensino de Humanidades pelo Instituto Federal do
Espírito Santo, “A educação omnilateral na busca do ser mais: contribuições do
Espaço Cultural Palácio Anchieta para a promoção da cidadania”, defendida em
abril de 2019, sob orientação do Prof. Dr. Carlos Roberto Pires Campos.
2 Graduada em História pela Universidade Federal do Espírito Santo e mestra
241
em um recorte micro, nos coloca o desafio de ir na raiz da
questão: a relação entre a ontologia do trabalho e a educação em
um horizonte do direito à cidade. Se a cidade foi e continua
sendo construída pelo gênero humano, por meio da ação
criadora e criativa do trabalho, por que, na maioria das vezes,
temos um estranhamento dos sujeitos em relação aos diferentes
espaços da cidade? Apesar de toda tecnologia e ondas
“modernização”, a qualidade de vida nos centros urbanos
tornou-se mercadoria, mostrando a faceta desigual do sistema
capitalista. Além disso, a problemática do direito à cidade nos
leva a denunciar a limitação da cidadania dentro dos moldes do
capitalismo, a qual a emancipação política (cidadã e
democrática) é diferente da emancipação humana, proposta por
este estudo, por meio da educação omnilateral (TONET, 2005).
Nesse sentido, dar enfoque as potencialidades
pedagógicas dos espaços não formais nos diferentes espaços das
cidades possibilitam criar pontos de encontro e de
problematizações em relação as contradições referentes ao
direito à cidade. O processo pedagógico que promova o diálogo
entre a educação formal e não formal, tendo o plano de fundo o
direito à cidade nos dá possibilidades de uma formação pautada
na omnilateralidade.
As temáticas abordadas nesse artigo encontraram no
Materialismo Histórico Dialético e na Psicologia Histórico-
Cultural as suas bases teóricas e metodológicas, principalmente
a partir do conceito de trabalho, ação fundante do ser social.
Assim, este estudo parte da concepção de que os seres humanos
são essencialmente sociais, culturais e históricos, capazes de
interpretar e transformar sua realidade.
242
Iniciaremos o capítulo abordando a importância de uma
educação não formal presente nos espaços urbanos em
profundo diálogo com a educação formal, como possibilidade de
rompimento da lógica neoliberal, a partir de uma educação que
promova o conhecimento pautado na intencionalidade,
criticidade e consciência histórica, a partir da prática social, de
forma que os conceitos espontâneos sejam trabalhados
pedagogicamente para a apropriação dos conceitos científicos
(VIGOTSKI, 2009). A segunda parte do capítulo será a relação
entre o direito à cidade e a formação omnilateral, partindo das
categorias trabalho e educação para a construção de
possibilidades, por meio da consciência histórica, de pensarmos
criticamente as relações sociais a partir de práticas educativas
que estimulem a problematização do direito à cidade, para o
exercício de práticas coletivas, no horizonte da emancipação
humana.
243
não é nativa, ela é construída por escolhas ou sob certas
condicionalidades, há intencionalidade no seu desenvolvimento,
o aprendizado não é espontâneo, [...] não é naturalizado”.
A partir desse primeiro conceito sobre a educação não
formal podemos definir que, assim como a educação escolar
possui como objetivo o ensino e a aprendizagem dos conheci-
mentos sistematizados historicamente acumulados, a partir de
uma organização curricular que também contém em seu objetivo
último uma intencionalidade, o diálogo entre a educação formal
e a educação não formal torna-se o fio condutor da construção
da cidadania e da formação orgânica dos sujeitos da
aprendizagem, o princípio para uma educação omnilateral.
Para compreender melhor sobre a educação não formal,
precisamos diferenciá-la também da educação informal. Gohn
(2010) distingue e caracteriza a educação informal como aquela
que “ opera em ambientes espontâneos, onde as relações sociais
se desenvolvem segundo gostos, preferências [...]. Os saberes
adquiridos são absorvidos no processo de vivência e socialização
pelos laços culturais e de origem dos indivíduos” (GOHN, 2010,
p.18). Tal conceito nos remete à educação que é socialmente
herdada, por meio das relações familiares e por pertencimentos
culturais, de acordo com a nacionalidade, idade, etnia, religião
do indivíduo, entre outros aspectos.
Baseado no conceito de educação ampla, este estudo
considera todos os tipos de educação como partes constituintes
da formação humana dos sujeitos que, a partir do
desenvolvimento do gênero humano, diretamente determinado
ao desenvolvimento histórico das sociedades, pressupõe o
trabalho, no sentido de atividade vital dos seres humanos,
também um princípio formativo.
244
A atividade criadora medeia as relações dos seres
humanos com a natureza, sendo esta relação, para Marx (2010),
a centralidade ontológica do ser humano, baseada no trabalho,
na linguagem e na socialidade. A atividade humana possui
finalidade, é teleológica, ou seja, transforma de forma consciente
a natureza e “diferencia os homens das outras espécies de
animais, por meio da criação dos seus meios de sobrevivência
(ferramentas) para o suprimento de suas necessidades [...],
possibilitando a inauguração do mundo cultural e social”
(CALVI, 2019, p. 31). Destarte, “o ser humano não nasce
humano, ele faz-se humano; e o formar-se humano de cada um
nunca esgota as possibilidades do humanizar-se já existentes na
história humana ou passíveis de ainda serem criadas” (DELLA
FONTE, 2018, p.10).
245
Compreendemos, portanto, que a educação não ocorre de
forma espontânea, além de defendermos métodos pedagógicos
que permitam aos sujeitos o ato da reflexão, do pensar, sendo
essa a base da ordem científica. Assim como partimos do
conceito de educação em um sentido amplo, também utilizamos
a categoria de trabalho em seu sentido amplo para
compreendermos as questões inerentes à aprendizagem, a partir
das ideias de Lev S. Vigotski (1896-1934) e sua proposta
metodológica para a compreensão da consciência humana e seu
desenvolvimento, formando os pressupostos do que hoje
chamamos de Psicologia Histórico-Cultural 3, bastante difun-
dida no meio educacional nos últimos anos.
Vigotski, conforme Duarte (2004), posicionou politica-
mente seus estudos na construção de um homem novo em uma
nova sociedade 4, e com isso rompe com a Psicologia de sua época
para propor a explicação 5 dos processos psicológicos humanos
como produções histórico-sociais. Nesse sentido, defendendo a
leitura marxista da obra de Vigotski, “convém insistirmos sobre
isso: temos de saber com exatidão qual é a ciência com a qual
queremos romper por completo” (VIGOTSKI, 2004, p. 367), pois,
pensando pedagogicamente, quando adotamos nossos estudos
atrelados à investigação da Psicologia Histórico-Cultural,
sabemos com exatidão qual a prática pedagógica que desejamos
romper na contemporaneidade.
No caso da educação brasileira, denunciamos a urgência
do rompimento com a escola neoliberal e seus dois fenômenos:
246
a mercantilização da educação 6 e a concepção utilitarista do
saber em sua forma liberal na organização escolar (LAVAL,
2019), que precariza principalmente a educação pública. A onda
neoliberal encontrou no Brasil forte aceitação no Construtivismo,
pedagogia do aprender a aprender que, por trás de um discurso
de aparente humanização, produz em sua essência uma
educação pautada em práticas que promovem a individualização
e naturalizam a desigualdade social em defesa da meritocracia.
Newton Duarte, em seu livro Vigotski e o “aprender a
aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da
teoria vigotskiana, publicado em 2004, faz uma defesa da leitura
marxista da obra de Vigotski, partindo da leitura dos clássicos
escritos pelo próprio autor russo. Segundo Duarte, o ecletismo
das interpretações neoliberais das obras de Vigotski, tal como
associar as ideias do russo com as de Piaget, como alguns
autores denominam de “socioconstrutivismo”, por exemplo, se
dá pelo esvaziamento do aporte teórico marxista de Vigotski por
alguns de seus comentadores, com o intuito de prover ações
utilitárias e pragmáticas no contexto escolar brasileiro. Essas
ações contribuem para a perda de um conceito primordial
defendido por Vigotski em toda a sua obra: o conceito da práxis.
Nesse sentido, esvaziar o rigor teórico da obra de vigotskiana
estimula o empobrecimento das práticas educativas e o
esvaziamento de sentido no ato de educar, visando apenas os
resultados, não os processos de aprendizagem.
Em um plano macro, a lógica neoliberal de produção guia
e justifica ideologicamente os moldes da lógica neoliberal de
educação (LAVAL, 2019), que orienta a mecanização educacional
para atender a produção capitalista em suas necessidades –
formação de força de trabalho em massa. Essa orientação
supracitada é naturalizada pela ideia de que a educação pode
ser objeto de escolha no livre mercado, quando, na verdade,
6 Christian Laval defende que o mundo neoliberal gerou uma nova ordem na
educação, de caráter mundial, notada pela dominação do capital dentro das
escolas – privadas e públicas – e das universidades. Este processo resultou na
“mercadorização” do setor público educacional e na concorrência e competição
nas diferentes instituições de ensino. Dessa forma, a função social da escola se
perde quando os educandos e seus familiares são vistos por essa lógica como
mercado consumidor, os quais serão formados para atender as exigências do
mercado de trabalho.
247
estimula que a educação se torne um bem de capitalização do
privado ao diminuir o dever do Estado de fornecer o direito
fundamental para garantir a cidadania efetiva: condições dignas
e de qualidade 7 no ensino para todos.
Sobre a utilização do conhecimento como fator de
valorização do capital, através do aumento da eficiência do
sistema, Laval indica que
248
pensamento individual para o pensamento generalizante.
Segundo Vigotski (2004), todo conceito é também generalização,
momento de transição aos níveis mais elaborados de abstração.
249
bases teóricas marxistas em relação as funções psicológicas
superiores – atenção voluntária, memória, abstração – como
produto das relações sociais, sendo a psique humana a síntese
da evolução biológica e da história. A partir dessa análise,
Vigotski elaborou os fundamentos da psicologia histórico-
cultural e rompeu com a Psicologia de sua época para a defesa
de que “todo o cultural é social; [...] todas as funções superiores
constituíram-se na filogênese, não biologicamente, mas
socialmente; [...] sua natureza – são sociais (VIGOTSKI, 2000, p.
26).
As pesquisas vigotskianas contemplaram a escola como
local privilegiado ao processo de aprendizagem, tornando
concreto o ato educar para pensar, diferenciando a compreensão
da memorização – processo mecânico – como produção de
pensamento e criticidade, na apropriação de diferentes signifi-
cados e sentidos. Desse modo, a educação revela-se como “parte
integrante e necessária ao desenvolvimento do indivíduo e de seu
psiquismo, [...] tornando-se um instrumento para a compre-
ensão da realidade, em suas múltiplas determinações”
(MARTINS, 2016, p. 232).
Além de defender a importância da articulação da
educação escolar com os espaços não formais para a
materialização de uma educação política-pedagógica contra-
hegemônica, conforme Saviani (2013) advoga, concebemos
igualmente que a educação “pode ser uma mediação para a
construção de uma sociabilidade plenamente emancipada”
(TONET, 2005, p. 477), em um horizonte de fortalecimento da
escola pública, formadora de sujeitos capazes de interpretar e
transformar – coletivamente – suas realidades sociais por
intermédio da educação formal e não formal, resultantes do
patrimônio cultural 8. Porém, devemos salientar previamente,
que uma sociedade plenamente emancipada não é possível de
ser encontrada nos moldes atuais de sociabilidade a qual
vivemos. Dessa forma, torna-se necessária a compreensão da
250
diferença entre emancipação política e emancipação humana. A
primeira não garante a liberdade, uma vez que os cidadãos
possuem apenas igualdade jurídica, como membros da
sociedade civil, dirigidos pelo Estado. Assim, a “emancipação
política trouxe para a humanidade, em sua essência [...] uma
expressão e uma condição de reprodução da desigualdade
social. Uma forma de liberdade humana essencialmente
limitada” (TONET, 2005, p. 475), em uma perspectiva alienada
da liberdade. A emancipação humana, por sua vez, é limitada
dentro do Estado provido pelo capitalismo, visto que, sob a
perspectiva do capital, a sua reprodução torna-se predominante
em detrimento da realização plena de todos os sujeitos. Nesse
sentido, a cidadania também é limitada, visto que abrange
somente a dimensão política, não social.
Na conformação prática da pesquisa, propusemos uma
educação capaz de recompor o ser humano fragmentado
historicamente pelo desenvolvimento das formas produtivas
construídas pelo capitalismo, na potencialidade de uma
formação omnilateral em confronto às contradições desse
sistema que não apenas produz mercadorias, mas torna o
próprio homem em mercadoria, uma vez que “a produção produz
o homem não somente como uma mercadoria, a mercadoria
humana, [...] ela o produz, nesta determinação respectiva,
precisamente como um ser desumanizado [...]” (MARX, 2010, p.
92-93).
251
A mediação cultural 9, presente nos espaços não formais
de educação – museus; espaços culturais; galerias de arte;
pontos turísticos; etc – como processo pedagógico, possui
intencionalidade, sendo “um processo sóciopolítico, cultural e
pedagógico de formação para a cidadania, entendendo o político
como a formação do indivíduo para interagir com o outro em
sociedade” (GOHN, 2010, p. 33).
Os educandos, de diferentes instituições de ensino,
públicas e privadas, os educadores e qualquer outra pessoa que
tenha interesse em conhecer o espaço não formal, independente
de classe social, leva consigo sua “bagagem” sociocultural, a
qual será abordada dialeticamente em conjunto à temática que
aquele espaço possui – depende da exposição presente dentro do
espaço não formal institucional 10 ou da abordagem educativa de
professores em espaços públicos. Por exemplo: o conteúdo de
uma mediação cultural de uma referida exposição (seja ela de
Arte, ou histórica, ou bibliográfica, entre outras temáticas) é
igual entre os trabalhadores da educação não formal, também
chamados de mediadores culturais, porém, o diálogo (a
mediação cultural) entre o mediador e o público é diferente, pois
cada processo de ensino e aprendizagem dentro dos espaços não
formais depende da relação entre os participantes do processo.
A prática educativa não formal, dentro dos diferentes
espaços não formais, além de possuir intencionalidade, também
possui diferentes interatividades, de acordo com o público, pois
a mediação cultural parte dos conhecimentos informais e
252
formais das pessoas presentes para, dialogicamente, criar
pontes de discussão com a temática do espaço não formal.
Portanto, as “metodologias operadas no processo de aprendi-
zagem partem da cultura dos indivíduos e dos grupos. [...]
Penetra-se no campo do simbólico, das [...] representações que
conferem sentido e significado às ações humanas” (GOHN, 2010,
p. 46).
253
cidades. Porém, apenas encontrar esses espaços não é o
suficiente, torna-se necessário, para não dizer urgente, a
apropriação desses ambientes por meio de mediações educativas
que demonstrem as contradições existentes dentro desses
espaços e, inevitavelmente, nas cidades. Destarte, devemos
como educadores “pensar em modos sensíveis de possibilitar
que os sujeitos se apropriem da cidade, sem deixar de perceber
que a cidade reflete a organização social capitalista” (CHISTÉ;
SGARBI, 2018, p.102).
Pensar na educação em sentido amplo, resultado do
trabalho criador entre os sujeitos, capaz de formar homens e
mulheres, é refletir também sobre o papel do direito à cidade
como espaço público que educa. Em um cenário de produções
históricas e culturais, a cidade demonstra suas contradições em
relação à cidadania, chegando até na impossibilidade desta
última, quando “a invisibilidade de determinados tipos de
sujeitos no processo de materialização da cidade é que a esvazia
da dimensão pública, dando-lhe uma configuração privada” (DE
ARAUJO, 2011, p. 137). Nesse sentido, poderíamos afirmar que
a luta pela cidadania é a luta do tempo presente. Entretanto, ao
tentarmos dar um passo além, podemos afirmar que a superação
da cidadania para o encontro – por meio da mediação educativa
– da liberdade plena 11 é a luta do tempo presente. Assim, a partir
superação do modo de produção capitalista e da propriedade
privada, também teremos a possibilidade de superar a cidadania
(já pouco abrangente dentro dos limites do capitalismo), como
forma de sustentação do status quo.
O caráter educativo da cidade permite discutir tais
contradições por meio dos espaços não formais, institucionais e
não-institucionais, dando enfoque à crítica ao estranhamento
dos sujeitos em relação à cidade, quando suas construções e
instituições (trabalho objetificado) são personificadas, tornando-
se maiores e hostis aos sujeitos que as criaram. Esse
estranhamento gera a invisibilidade de diversos grupos sociais e
254
naturaliza interesses particulares como se fossem interesses de
toda a sociedade.
Estimular a ocupação dos diferentes espaços da cidade,
entre eles, os espaços não formais, de forma educativa,
intencional e crítica, incentiva o diálogo entre a pluralidade
social e cultural, no sentido de que a apropriação da cidade seja
um intermédio de múltiplas aprendizagens, de forma a
complementar as aprendizagens ocorridas no ambiente escolar
e estimular ações coletivas. Essa formação, dentro e fora da
escola, capaz de desenvolver o educando de forma ética, estética
e científica, traz como possibilidade a educação como fator que
humaniza e forma o ser humano em todas as suas facetas. No
entanto, esse modelo educativo só será possível, a partir da
superação das contradições referentes ao direito à cidade e à
educação.
255
uma tentativa de organizar lutas fragmentadas num
denominador comum [...] (TAVOLARI, 2016, p. 102).
256
dos cidadãos nos centros urbanos em mercadoria, de forma a
prejudicar as ações políticas coletivas.
257
Considerações finais
258
do seu trabalho apenas de forma aparente. Torna-se necessário
o (re)encontro à essência, negada pelo trabalho explorado, visto
por nós o trabalho para fins de suprimento das necessidades
humanas.
Passado, presente e futuro, portanto, são espaços de
tempo primordiais para chegarmos à humanização e emanci-
pação permanente, de forma a nos utilizarmos da história e do
patrimônio cultural acumulado a fim de rompermos com o que
nos é imposto e, de forma revolucionária, crer no futuro de um
homem novo, em uma nova sociedade, por intermédio da práxis,
partindo do estranhamento para a revelação da potencialidade
humana. Somente na superação do capitalismo e das relações
unilaterais impostas por esse sistema, as fraturas humanas
poderão ser reconstituídas para a formação omnilateral em
múltiplas aprendizagens, dando possibilidade ao homem, por
meio do trabalho livre, de “apropriar-se disso que ele produziu
(da sua essência materializada nas produções culturais) de
modo pleno, inteiro, omnilateralmente” (DELLA FONTE, 2018,
p.13).
Não podemos deixar de considerar, portanto, a educação
como valiosa ferramenta na formação humana de homens e
mulheres no processo de rompimento da lógica neoliberal, que
dá base e sustentação a governos autoritários e
antidemocráticos, que não só fraturam as capacidades criadoras
dos sujeitos como também os mortificam 12. Reintegramos o
papel revolucionário da esperança e do trabalho como fatores
12 Neste exato momento em que escrevo as palavras finais deste artigo, o Brasil
chega a soma de 16.118 pessoas que perderam suas vidas diante da maior crise
de saúde pública historicamente já enfrentada no país. A pandemia do Covid-
19, que até agora coloca o Brasil em quarto lugar de maior número de casos,
com 241.080 casos confirmados (números que aumentam consideravelmente a
cada dia) escancarou algo já muito denunciado: a total falta de capacidade do
sistema capitalista, baseado no livre mercado, de atender as reais necessidade
dos seres humanos de forma igualitária. Diante do cenário desastroso brasileiro,
administrado por um governo de característica fascista, o qual coloca o lucro
acima da vida, o resultado, que poderia ser totalmente evitado, é o lamento de
milhares de famílias que em seu interior perderam entes queridos. A todos
afetados diretamente e indiretamente pela pandemia, nossa solidariedade e
respeito. Dados retirados do jornal El País Brasil. Fonte:< https://
brasil.elpais.com/brasil/2020-05-18/ao-vivo-ultimas-noticias-sobre-o-corona
virus-no-mundo-e-a-crise-politica-no-brasil.html>. Acesso em: 18 maio 2020.
259
humanizadores que, juntamente com a educação (em sentido
amplo) possuem papéis fundamentais de luta contra o status
quo e na recomposição do ser humano em todas as suas facetas,
pois “entendemos que a emancipação humana deve ser colocada
claramente como fim maior de uma atividade educativa da
perspectiva do trabalho” (TONET, 2005, p.482).
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262
A educação profissional como extensão da
política de Educação de Jovens e Adultos:
a experiência do município de Vitória
_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Considerações Iniciais
essência [...] é a revelação do segredo do homem como ser ontocriativo, como ser
que cria a realidade (humano-social) e que, portanto, compreende a realidade
(humana e não-humana, a realidade na sua totalidade). A práxis do homem não
e a atividade prática contraposta à teoria; é determinação da existência humana
como elaboração da realidade” (1986, p. 202).
263
No que tange a experiência da integração da Educação
Profissional à Educação de Jovens e Adultos no município de
Vitória, é importante destacar que ela vem sendo construída
coletivamente desde 2017, em atendimento à Meta 10 do Plano
Municipal de Educação, que estabelece a oferta de 25% das
matrículas da EJA integrada à Educação Profissional. Em nossa
compreensão, uma proposta não pode ser (im)plantada em uma
comunidade de forma impositiva, mas sim, deve ser “plantada”
por meio de um processo de construção coletiva. Nesse sentido,
iniciamos o processo de (im)plantação a partir de diálogos com
três escolas de Ensino Fundamental da Rede Municipal de
Vitória: Francisco Lacerda de Aguiar, Padre Anchieta e Prezideu
Amorim que, a princípio, ressignificaram a Atividade Curricular
Complementar (ACC), que ocorre no horário de 18 às 19h,
introduzindo nesse espaço/tempo a disciplina “Fundamentos do
Mundo do Trabalho 5.
A incorporação da disciplina Fundamentos do Mundo do
Trabalho ao currículo da EJA ancora-se na abordagem do
trabalho humano em suas dimensões ontológica e histórica e
como produtor da sobrevivência e da cultura. Apoia-se na
perspectiva crítica de compreensão do conceito de trabalho e
mundo do trabalho, diferenciando-os dos conceitos de emprego
e mercado de trabalho, com uma intencionalidade de consolidar
uma prática pedagógica fundamentada nas dimensões do
trabalho, ciência e cultura aos/as estudantes jovens, adultos/as
e idosos/as trabalhadores/as. Além disso, os Fundamentos do
Mundo do Trabalho nas ACCs, contribuem também para
proporcionar uma leitura panorâmica e crítica do nosso
desenvolvimento e das transformações do trabalho na atuali-
dade, bem como seus reflexos na exploração do/a trabalhador/a
a partir da precarização, historicamente inseridos na lógica do
capitalismo.
Reconhecendo a premissa que deve mediar o processo de
aprendizagem dos sujeitos da EJA, o diálogo entre o conheci-
mento escolar sistematizado e o conhecimento produzido social-
264
mente, ou seja, o entrelaçamento dos conteúdos escolares
acumulados historicamente com as práticas sociais dos/as
estudantes, organizamos este texto com o intuito de socializar a
experiência da EJA Profissional em curso na Rede Municipal de
Educação de Vitória. Evidenciaremos aspectos da fundamen-
tação da proposta, que foi construída com a participação do
Grupo Trabalho e Práxis da UFES 6. Na segunda parte do texto
exploraremos a concepção dos/as estudantes sobre a proposta,
com vistas a uma reflexão acerca da ressignificação do currículo
da EJA por meio da integração entre ciência, cultura e trabalho
e seu impacto na vida dos/as jovens, adultos e idosos/as.
6 O Grupo Trabalho e Práxis coordenado pela Prof. Drª Lívia Moraes e pelo Prof.
Dr. Rafael Bellan tem atuado em parceria com a SEME desde 2017 no
planejamento do Curso Fundamentos do Mundo do Trabalho. Realiza formações
para os/as profissionais das escolas da EJA Profissional. Esse Grupo está
vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade
Federal do Espírito Santo e tem como membros docentes e discentes da
graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado de diversos cursos, tais como
Ciências Sociais, Jornalismo, Geografia, Design, Política Social, dentre outros.
265
Na perspectiva crítica de compreensão do conceito de
trabalho e mundo do trabalho, diferenciando-os dos conceitos
de emprego e mercado de trabalho, procurou-se o fortalecimento
dos pressupostos filosóficos que compreendem o trabalho em
sua dimensão ontológica e central na formação dos/as jovens,
adultos/as e idosos/as trabalhadores/as.
O contexto econômico, histórico e político brasileiro atual
tem se manifestado altamente desfavorável aos/às trabalha-
dores/as, produzindo altas taxas de desemprego, ampliando o
subemprego, precarizando em larga escala as relações de
trabalho, deixando uma grande massa de trabalhadores/as na
informalidade na tentativa desenfreada de (sobre)viverem. Daí a
necessidade de, além dos conhecimentos da formação geral,
apropriação de conhecimentos relacionados ao Mundo do
Trabalho produzindo reflexões críticas sobre o trabalho em sua
visão ontológica e sobre a necessidade de compreender os
fenômenos da precarização como marca de uma economia
dependente 7.
Cabe ressaltar que a qualificação profissional sempre foi
uma demanda anunciada em diferentes espaços formativos
pelos/as estudantes da EJA do município de Vitória, como um
clamor frente à ausência de oportunidades de trabalho. Esses
argumentavam a necessidade de inserção no mundo do trabalho
e acreditavam que a qualificação os aproximaria desse objetivo.
Os/as estudantes, em sua maioria, estão vinculados ao mundo
do trabalho de alguma forma, quer seja pelo trabalho formal ou
informal; quer seja pelas experiências e necessidades como
sujeitos que integram uma sociedade cada vez mais exigente,
meritocrática e competitiva. Nesse sentido, realizamos parcerias
com instituições que atuam no campo da Educação Profissional
e ofertamos cursos de qualificação profissional às sextas-feiras,
além da disciplina Fundamentos do Mundo do Trabalho nos
horários das Atividades Curriculares Complementares. Há,
portanto, o objetivo de contribuir na qualificação profissional,
266
mas rompendo com a visão utilitarista de formação para o
mercado do trabalho.
Outra iniciativa construída neste processo foi a
implantação do PROEJA (Programa Nacional de Integração da
Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade da
Educação de Jovens e Adultos) na forma de cursos FIC
(Formação Inicial e Continuada), inicialmente em uma escola da
rede municipal (Escola Izaura Marques da Silva) localizada em
um território popular de Vitória. Tal proposta assume a
perspectiva do currículo integrado com conhecimentos rele-
vantes permeados pelas relações sociais vinculadas à prática
social e ao mundo do trabalho, constituindo assim, uma
experiência piloto de Educação Profissional integrada à EJA com
o curso de Operador de Computador, de acordo com as diretrizes
do Decreto Federal nº 5.840/2006.
Por meio de um currículo integrado o que se propõe é
romper com a dualidade estrutural que marca a história da
educação no Brasil desde os seus primórdios. O trabalho
assume como referência o sentido educativo a partir da concep-
ção gramsciana de escola unitária, tendo como interlocutores
Frigotto, Ciavatta, Ramos e outros autores do campo do
Trabalho e Educação na perspectiva da formação omnilateral,
como alternativa
267
escola em um ambiente de integração entre a ciência, cultura e
trabalho.
A proposta de Educação Profissional integrada à EJA se
constitui como referência na articulação dos conhecimentos
gerais e específicos. Para além dessa articulação, permite aos/às
estudantes a oportunidade de exercitar o seu espírito criativo em
iniciativas que possibilitem desenvolver seu potencial, tendo
como princípios básicos a autonomia. Assim, é fundamental que
a Educação Profissional e Tecnológica vincule-se a um projeto
de desenvolvimento econômico e social, com vistas a atender a
diversidade de situações da população brasileira em especial das
comunidades mais populares das cidades e do campo,
contribuindo para a redução das desigualdades sociais.
A partir de 2018, a Educação Profissional se consolida no
município de Vitória como política pública nas quatro escolas
citadas tornando-se uma demanda para as demais escolas que
ofertam a EJA. Nesse contexto, ressalta-se que o processo de
consolidação da proposta só foi possível devido à parceria com a
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) por meio do
Grupo de Pesquisa Trabalho e Práxis. O grupo tem sua atuação
desde o planejamento da disciplina “Fundamentos do Mundo do
Trabalho” realizando o processo de formação com os/as
profissionais dessas escolas mensalmente, como um projeto de
extensão em que a Universidade se articula diretamente com a
Educação Básica.
Em 2019 mais duas escolas são incluídas na EJA
Profissional que, gradativamente, se constitui como uma política
pública para a Rede de Vitória. A escola Alvimar Silva passou a
ofertar o curso Fundamentos do Mundo do Trabalho nas ACCs
e a Escola João Bandeira o Proeja FIC em Operador de Compu-
tador, atendendo uma demanda específica da comunidade de
Jaburu. Em atendimento à necessidade de duas comunidades
escolares, em 2020 as escolas Ceciliano Abel de Almeida e
Aldevani S. F. de Azevedo também passaram a ofertar o Proeja
FIC com o curso de Operador de Computador.
Esse intenso movimento formativo culmina, também em
2020, com a inserção da disciplina “Fundamentos do Mundo do
Trabalho” no Currículo das escolas de EJA da rede municipal de
Vitória.
268
Outra inciativa importante para a rede a partir de 2020
foi a implantação do Projeto Integrador de Pesquisa e
Interlocução com a Comunidade - PIPIC nas ACCs de todas as
unidades de Ensino. O PIPIC se configura como estratégia
pedagógica de caráter interdisciplinar com vistas ao exercício do
diálogo entre teoria e prática, da criação, do planejamento, da
investigação científica, da intervenção comunitária, resultando
em um processo de articulação dos saberes com o contexto
histórico, econômico e social, ambiental e cultural. Contribui
também para conceber um novo olhar para o currículo da EJA
no município de Vitória. Assim será possível buscar de fato
novas possibilidades para consolidar uma educação popular,
tendo a pesquisa como princípio pedagógico. De acordo com
Ramos;
269
política pública. Esses sujeitos trouxeram para a avaliação
percepções importantes, tanto na materialidade da proposta
pedagógica que atualmente está sendo desenvolvida nas escolas,
quanto nos aspectos políticos e ideológicos que historicamente
marcaram a EJA. Concordamos com Fazenda quando nos diz
que:
A história atual de uma determinada prática só pode ser
revelada em sua complexidade quando investigada em
suas origens de tempo e espaço - por isso a importância
fundamental de que o pesquisador da prática investigue a
mesma não só em sua ação imediata, tal como ela
aparentemente se revela, mas permita-se compreender os
condicionantes históricos que a determinam (FAZENDA,
1994, p.75).
270
mundo do trabalho com o pragmatismo da qualificação
profissional.
Relatos de professores/as traduzem que trabalhar com a
Educação de Jovens e Adultos tem se tornado uma tarefa
complexa. Isso porque o currículo praticado está distante do
contexto e das necessidades dos/as jovens e adultos,
produzindo impactos em sua permanência e em seu
desempenho. Além disso, os fatores externos como a violência, a
luta pela sobrevivência, a vulnerabilidade social imprimem uma
perspectiva negativa nos sujeitos, desmotivando-os à busca pela
escolarização. Diante disso, as práticas de currículo integrado
com o eixo mundo do trabalho, além da qualificação profissional,
produzem mais sentido para aquilo que se ensina e aprende.
Efeitos concretos na vida dos/as estudantes que passam a
vislumbrar possibilidades mais reais a exemplo de ascensão nas
carreiras profissionais ou até mesmo o aperfeiçoamento do
trabalho.
É notório como a vinculação com o mundo do trabalho
tem provocado uma nova dinâmica na prática educativa. As
experiências concretas que a disciplina Fundamentos do Mundo
do Trabalho e as oportunidades de qualificação profissional
oferecidas por outras instituições ou integradas ao currículo
impactam positivamente a vida dos estudantes.
271
O relato acima nos possibilita refletir sobre descobertas
acerca da condição precarizada das mulheres trabalhadoras.
Nota-se como o direito à educação não é garantido e efetivado
apenas pelo preceito legal, mas sim pela luta dos próprios
sujeitos de direitos. Além disso, a servidão também é
evidenciada na fala da estudante, fato recorrente na vida de
muitas trabalhadoras domésticas onde a
272
O relato acima traz um aspecto muito importante na
relação teoria-prática que os/as estudantes estabelecem. No
caso em questão, trata-se de um estudante adulto que já atua
há muitos anos na construção civil e fez o curso de Auxiliar de
Eletricista, organizado em parceria com o IFES. O seu relato é
revelador quanto à questão da precarização das condições de
trabalho, sobretudo com a falta de Equipamentos de Proteção
Individual (EPI’s). Talvez o conhecimento específico do curso de
eletricista não teve tanta relevância quanto à disciplina de
Segurança no Trabalho, uma vez que adquiriu conhecimento
tácito na atividade de eletricista ao longo de muitos anos de
experiência na construção civil trabalhando com elétrica. Toda
essa experiência não foi suficiente para lhe despertar quanto aos
riscos que se expôs durante sua trajetória profissional, o que nos
revela a importância da formação qualificada no exercício de
uma profissão.
A disciplina Fundamentos do Mundo do Trabalho foi
organizada em três eixos: i) Aspectos históricos do mundo do
trabalho; iii) Diversidades do mundo do trabalho; iii) Questões
atuais do mundo do trabalho. Cada tema foi explorado por meio
de roteiros didáticos que culminavam com uma concretude em
resposta aos aprendizados. Destacam-se para efeito de
ilustração os roteiros 8 que discutiam a Reforma Trabalhista,
cuja culminância foi uma palestra sobre o Sindicalismo no Brasil
com o Presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Construção
Civil (Sintraconst-ES). Ao final do ano, em um momento de
avaliação sobre a disciplina Fundamentos do Mundo do
Trabalho, um estudante destacou:
8 Durante esse processo (2017 a 2020) foram elaborados de forma coletiva 120
roteiros didáticos interdisciplinares para subsidiar o trabalho com os
Fundamentos do Mundo do Trabalho.
273
meus colegas de trabalho assinamos um papel para não
descontar mais para o sindicato. E depois daquela palestra
e vi como eu estava sendo ignorante. Entendi que quem
defende o trabalhador é o sindicato. E naquele momento
que eu assinei o papel eu não tinha esse conhecimento.
Eu quero voltar atrás nisso aí (Estudante 3, 2018).
274
o ensino fundamental e também quero continuar os
estudos (Estudante 4, 2018).
Considerações Finais
275
cotidianamente com o coletivo de profissionais das escolas,
(im)plantada a partir de uma demanda real da comunidade,
avaliada sistematicamente junto aos sujeitos envolvidos, tem um
enorme potencial para se configurar como política pública.
Mesmo que o contexto do trabalho na atualidade não seja
animador, e que a falta de oportunidades para os/as jovens e
adultos/as seja uma realidade perversa, pode-se afirmar que a
Educação de Jovens e Adultos, independente da oferta de cursos
de qualificação profissional, deve estar atrelada à formação
profissional a partir de um currículo que traduza o trabalho
como princípio educativo. A Educação Profissional Integrada à
EJA é pauta da gestão pública e precisa ser concretizada
progressivamente como afirmação de um projeto educacional
que se inspire na essencialidade do trabalho como formação
humana e se conecte com as necessidades dos/as estudantes.
Nessa direção, para a proposição de uma Educação
Profissional na perspectiva de valorização da Educação de
Jovens e Adultos, rompendo com a dicotomia da cultura geral
com a formação profissional, essas escolas vêm reconstruindo a
sua proposta pedagógica coletivamente com diversos segmentos
sociais que convergem com esses ideais, cumprindo assim a
função primordial de produzir “[...] em cada indivíduo singular,
a humanidade que é produzida coletivamente pelo conjunto dos
homens” (SAVIANI, 1997, p.17).
Reiteramos que a intenção deste texto foi contribuir para
o debate acerca da Educação Profissional Integrada à Educação
de Jovens e Adultos como política pública que se contraponha
às reformas neoliberais e que busque alternativas práticas e
possíveis, pautadas no processo de geração de renda e trabalho,
redução das desigualdades sociais e no desenvolvimento
científico e tecnológico. Dessa forma, concretizaremos um
projeto educacional pautado no que Freire afirmou: “a
necessidade de o educador assumir o compromisso com os
destinos do país. Compromisso com seu povo. Com o homem
concreto. Compromisso com o ser mais deste homem” (2007, p.
25), abrindo caminho para seguirmos firmes na construção de
uma tão sonhada sociedade inclusiva e igualitária.
276
Referências
277
A categoria trabalho no currículo
da EJA do município Vitória como
dispositivo de memórias
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Considerações Iniciais
um conceito absoluto ou neutro, como o faz o pensamento liberal, mas sim como
um conceito histórico, na perspectiva da formação humana, como fundamento
dos interesses comuns por todos os cidadãos, por meio de garantias legais e
políticas sociais, as quais não são suficientes para a superação das desigual-
dades, mas podem trazer contradições importantes para a luta de classes em
benefício da classe trabalhadora.
279
pressupostos teóricos com a realidade dos estudantes,
constituindo-se em uma ferramenta para conscientização sobre
si e o mundo.
Nas memórias trazidas por esses estudantes da Eja,
identificamos a exploração e precarização do trabalho como um
dos temas mais recorrentes, que emergem na reconstituição
individual de suas histórias de vida, sendo apontados como um
dos motivos que contribuíram para o abandono da escola, mas
também como elementos disparadores de retorno na busca de
melhores condições de trabalho e de vida.
280
Neste projeto desenvolvido nas escolas de EJA, por meio
do diálogo entre passado e presente, identificamos um processo
dialógico e na busca de compreender o sentido de uma educação
mais humana e mais libertadora, em um processo empírico e
histórico, reconhecendo que:
281
geradora de novos saberes do que simplesmente a de nos
adaptar a ela (FREIRE, 1996, p.86).
282
unidade é múltiplo. Para localizarmos uma lembrança não
basta um fio de Ariadne; é preciso desenrolar fios de
meadas diversas, pois ela é um ponto de encontro de vários
caminhos, é ponto complexo de convergência dos muitos
planos do nosso passado (BOSI, 1994, p. 413).
283
como um objeto jogado no lixo. Mas Deus sabe de tudo,
né? A gente que trabalha na área industrial, com perigo,
você mata um amigo sem querer. Hoje eu estou encostado
pelo Seguro Social e falou para eu fazer um curso de
porteiro. Eu já tô com o certificado na mão. A minha
vantagem é que eu sei ler. Mas tá difícil, eu não consigo
emprego. Agora entrando de férias no fim do ano, tenho
que apresentar no INSS pra marcar a perícia. Eles podem
me “tesourar” e aí.... com o curso que eu já fiz, eles vão me
mandar pro mercado, né? Hoje tem uns três meses que eu
voltei a estudar, porque o INSS mandou (Estudante 1,
2019).
284
perversa do neoliberalismo, os desempregados “são levados a se
considerarem indignos da sociedade e, sobretudo, responsáveis
pela sua própria situação, que julgam degradante (já que
degradada) e até censurável. Eles se acusam daquilo que são
vítimas” (FORRESTER, 1997, p. 11). Com a ameaça constante
de demissão, o trabalhador carrega o sentimento de que “para
além da exploração dos homens, há algo ainda pior: a ausência
de qualquer exploração” (FORRESTER, 1997, p. 16).
285
embora o sujeito não tenha domínio do sistema da escrita
alfabética, ele pode estar inserido em contexto de práticas sociais
de leitura e escrita. Isso significa dizer que adultos analfabetos,
por viverem em um meio em que a leitura e a escrita têm
presença forte, se inserem em suas práticas: recebem cartas e,
com isso, ouvem a leitura desse texto ou ditam uma carta para
se comunicar com alguém distante; escutam a leitura de notícias
de jornais para se manter atualizados; solicitam que as pessoas
leiam as instruções de uma receita para poder fazer um prato
específico; etc.
286
aposentadoria da senhora e foi aceita’. Aos 49 anos, eu
falei ‘graças a Deus!’. Com dois anos... Tem 48 anos que
estou na mesma família. Sou babá e trabalho ainda, agora
eu tô com a filha da patroa, criando as netas da patroa.
Tive que me virar na vida, correr atrás de minhas coisas,
mesmo não sabendo ler (Estudante 3, 2018).
287
vida de muitas mulheres que são “levadas” para o trabalho
doméstico sem remuneração específica. Essa situação só foi
minimizada recentemente com promulgação da chamada PEC
das Domésticas, em 2012, como resultado de uma história de
lutas dessas trabalhadoras, que viveram séculos de dominação
e exploração. No caso em tela, a estudante relata que, além da
não ter uma remuneração fixa, não tinha o recolhimento da
contribuição previdenciária para fins de aposentadoria junto ao
INSS. Para conseguir a aposentadoria, foi obrigada a recorrer
ao trabalho extra de “catar latinha” para pagar o INSS. Situações
como essa, narrada pela estudante, não são fatos isolados. É
mais uma constatação de direitos negados de relações
trabalhistas que se conjugam com as consequências nefastas da
Reforma Trabalhista, consolidada após o golpe de 2016, que
desmontou intencionalmente a CLT, e substituiu o modelo de
emprego padrão por formas de trabalho absolutamente
precárias. Entre elas estão a terceirização sem limites, o trabalho
por jornada parcial e o trabalho intermitente. Com isso,
assistimos diversas categorias de trabalhadores sofrendo com a
instabilidade nas relações de trabalho. Este processo não é
transitório e ocorre em diversos países, pois, “[...] onde quer que
os imperativos do mercado regulem a economia e governem a
reprodução social, não há como escapar da exploração” (WOOD,
1998, p. 29).
288
morei muito tempo. Assim mesmo, eu fui pra rua por
minha conta, no caso... Eu pedia, eu vendia bala, não
cheguei a envolver com drogas. Pior que tinha muito na
rua isso mesmo. Tinha uso de cola. Eu ajudava eles a
saírem dessa vida, eu falava com eles, dava conselhos para
aqueles colegas que queriam seguir comigo. Eu vigiava e
lavava carro. Fazia outras coisas ao invés de ficar usando
algum tipo de droga. Eu cheguei a ficar numa “Casa
Aberta”, eles chamam de casa aberta, às vezes aparecia a
kombizinha e a gente se escondia deles. As vezes a gente
ia à casa aberta só pra comer mesmo. Tinha uma lá em
Goiabeiras... Eles davam conselhos pra gente, vinham com
uns projetos, sopas, essas coisas. Fiquei na rua mais ou
menos uns 3 anos... O morro já era uma prisão pra mim.
Hoje, no morro, conhecendo outras pessoas, a gente vai
crescendo, vai tendo espaço, as pessoas que você vai
conhecendo vão te dando espaço e você vai andando,
crescendo. Quando você vai vendo o morro não está mais
pequeno, quer dizer, já está com mais espaço. Eu hoje sou
da Igreja Batista. A religião sempre teve perto, mas eu não
seguia. A religião me ajuda um pouco. Eu hoje já vejo a
rua com outros olhos. Agora eu vejo como um lugar
perigoso, o que eu não via antes... O trabalho é muito
importante para a transformação da pessoa mesmo.
Transformação de vida e abrir a mente. Sobre a escola,
primeiramente o mais importante é o ensinamento. A
escola tem muita coisa pra ensinar, que eu não vi na
minha infância. Eu achava uma coisa muito chata e
enjoada. Meu pai falava, mas eu não via a importância.
Agora eu vejo como importante, maravilha! Eu, hoje, só
quero estudar e arrumar um serviço (Estudante 4, 2018).
289
A rua parece simbolizar a agonia e a morte social. O uso
da pinga pode ser interpretado como um analgésico que
possibilita aos indivíduos liberarem-se dos códigos –
amarras – aos internalizados e entrar num mundo
imaginário que afaste, pelo menos por curtos espaços de
tempo, as pressões sociais. Ela atua como mediador que
torna possível o desligamento do mundo das obrigações,
dos papéis sociais e o mergulho num outro plano de
realidade, que afasta a percepção do fracasso, faz esquecer
dores e decepções, enfim, torna suportável o cotidiano (
VIEIRA; BEZERRA;ROSA, 1994, p.102).
290
eu vi aquilo, aquilo pra mim, nossa! Era um bicho de 7
cabeças. Eu nunca tinha saído do interiorzinho, da roça,
pra uma cidade enorme. De repente, foi um choque pra
mim... Eu vim embora, trabalhei nessa casa, acreditando
que ela ia me dar estudo, me colocar na escola, me pagar
um salário. Isso tudo foi uma ilusão, eu até chupava
chupeta ainda, eu entrava para aquele quartinho de
empregada doméstica pra dormir à noite, alí eu chorava,
ali eu me desabafava, ali eu falava com Deus, quanto
sofrimento! Eu acho, não precisava estar ali, preferia estar
na casa de meus pais, passando fome, comendo arroz
puro, quando tinha, ou quando não tinha, eu comeria a
polenta de banana, banana verde, entendeu? Que é o que
tinha para comer, ou uma sopa de aipim, que era o almoço,
ou que era a janta, ou às vezes, simplesmente uma
canjiquinha, é isso, Mas eu era feliz naquele lugar. Comia
aquilo, mas eu era mais feliz do que aquela proposta que
a madame tinha feito. Dali eu vim, ela não me deu estudo,
não me deu nada. Ela foi falando que eu tinha que lavar,
passar, arrumar, cozinhar, aí eu falava que eu não sabia,
e ela dizia, ninguém nasce sabendo minha filha, aprenda,
que ninguém nasce sabendo, se vire, vamos lá, tem que
aprender. Fui aprendendo, ali eu fui fazendo, entendeu?
Quando eu tive meus 15 poucos anos, ela me mandou
embora. Isso que eu fui embora eu já entendia um pouco,
que eu já tinha uma irmã que trabalhava aqui. Aí eu
comecei a andar com minha a irmã, eu comecei a lidar, a
conhecer mais, a ter mais conhecimento... Minha vida foi
um pouco difícil sim, mas hoje ela se resume em alegria,
porque eu trabalho em uma casa de advogados, que hoje
eu tenho uns cômodos estendidos atrás da casa de minha
irmã, eu não pago aluguel, graças ao que esses patrões
fizeram para mim. Então, quer dizer, eu sai do aluguel, eu
tenho um teto, eu tenho onde morar agora, eu tenho uma
casa, um quarto pros meus filhos, um quarto pra mim,
mas é nosso. O que me trouxe pra escola, é o quê? Eu
quero sim, me expressar melhor, escrevendo melhor,
lendo, e também assim, tentar recuperar o que ficou lá
atrás, que eu acho que nunca é tarde, quando a gente
quer. E hoje eu sou feliz (Estudante 5, 2018).
291
direito à educação, à própria vida, interferindo no desenvolvi-
mento físico, emocional e educacional. Para Costa e Calvão:
Considerações Finais
292
indícios de que, apesar das dificuldades, da opressão, das resis-
tências, há também nessas narrativas um sentimento de
superação e de coragem para lutar por melhores condições de
vida. No tecer dessas histórias de vida contadas pelos
estudantes, há um sentimento que pudemos perceber e
compreender: a crença na instituição escolar. Esse sentimento
alimenta forças e deixa marcas daquilo que os tornam tão
convictos que a escola é um lugar de recomeço, uma instância
de lutas, e, ao mesmo tempo um lugar de sonhos e esperanças.
Referências
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THOMPSON, E.P. A miséria da teoria: ou um planetário de
erros. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1981.
VIEIRA, M.A.C.; BEZERRA, E.M.R.; ROSA,C.M.M. População de
rua:quem é, como vive, como é vista. São Paulo: Hucitec,1994.
WOOD, Ellen Meiksins. As origens agrárias do capitalismo.
Crítica marxista. v. 50, n. 3, jul./ag. 1998.
294