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On the road. Outra vez, pé na estrada. Minas Gerais, Ceará, São Paulo, são tantos
caminhos se descortinando no meu campo de visão como uma longa estrada de linhas
contínuas e continuadas. Mais uma vez, pé na estrada, não importa quantas pegadas sejam
necessárias: deseja-se cidades. O sentido da viagem é uma viagem de sentidos. E faz
sentido começar essa narrativa torta, relato de viajante sem rumo, em uma retrospectiva
pelos meados de maio de 2013, quando parti de Belo Horizonte para o nordeste brasileiro,
empurrando, com uma das mãos, uma mala de rodinhas e segurando, na outra, uma
passagem aérea. Na ocasião, ansiava por novos ares, algo que impulsionasse os meus
processos de criação que acreditava estar estagnados e ranzinzos em ritornelos de funções
envolvendo casamento, dinheiro e trabalho. O destino escolhido se deu, principalmente,
por causa do mar. Já havia visitado Fortaleza e desde então me parecia instigante morar
em uma cidade que abrigava um litoral azul. Outro fator que me chamou bastante atenção
foi o desenho de representação da cidade no mapa nacional; nele, Fortaleza parece mesmo
figurar como um lugar “pra lá de onde o vento faz a curva”.
Em uma carta destinada ao amigo Neal Cassady, residente em San Francisco, no
mês de maio de 1951, Jack Kerouac afirmava que “a estrada já foi toda contada” (2013,
p.11). Com essa frase, não obstante, ele anunciava que acabara de escrever On the road,
relatando as experiências de viagens partilhadas com o amigo pelos Estados Unidos e
México. Segundo Kerouac, “a história é sobre você e eu e a estrada” (2013, p.11).
Ademais, como uma estrada que se descortina aos olhos do viajante, o livro foi escrito
em um rolo de papel com 36 cm de comprimento e, inserido na máquina de escrever
desenrolava-se sobre o chão a medida em que era escrito. A obra, contudo, marca a
geração beat – ou movimento beat – termo usado para descrever um grupo de amigos
norte-americanos, escritores e poetas, que vieram a se tornar conhecidos entre o final da
década de 50 e início de 60, e tinham como forte característica o processo de “escrita em
fluxo ou fluxo de consciência”. Compactuavam, entretanto, de uma contracultura e
entendiam o nomadismo como devir, sem amarras institucionais, máscaras sociais ou
qualquer hierarquia de valor moral.
On the road narra a vida por meio da experiência da estrada, através de uma escrita
autobiográfica. Aqui, entende-se por autobiografia uma figura da leitura, não um gênero
ou um modo, mas uma poética onde o artista é narrador e sujeito de sua produção. Durante
três semanas, entorpecido por benzedrina e café, Kerouac recuperou as anotações de uma
espécie de diário de bordo escrito durante as viagens realizadas, e mais lembranças que
surgiam nos delírios psicodélicos e sono, em um processo de escrita ininterrupta, sem
nenhum parágrafo ou pontuação. Simplesmente sentou-se em frente a máquina de
escrever e se colocou a narrar a vida, tudo sobre pegar a estrada e cruzar a América,
embalado pelo ritmo beep bop, na companhia de seu grande amigo Neal. E assim fez, de
fato, da vida a própria arte, em uma espécie de escrita de si, como confere o termo
Foucault. De acordo com o autor, a escrita de si não estaria relacionada somente ao si
próprio, no sentido da identidade, mas a uma soma de intimidades que vão de encontro à
coletividade. (2000, p.46). Entretanto, na narrativa autobiográfica não se está
comprometido com a veracidade dos fatos relatados; há um embaralhamento entre os fios
da vida e os fios da obra, ou seja, entre ficção e realidade de modo em que não se sabe
onde um termina e o outro se inicia, eles estão imbricados.
Seja com dezesseis ou com vinte e poucos anos, entrar em contato com uma
literatura beat realmente faz com que o coração se aventure em terras desconhecidas, com
que a palavra seja retomada enquanto autoria ou mesmo “máquina de guerra”
(DELEUZE, 1996). Contudo, a respeito de autoria, a pesquisadora Suzy Sperber articula
o termo à “pulsão de ficção”. Segundo a autora, a “simbolização, efabulação e imaginário
pertenceriam ao elemento comum ao ser humano de todas as culturas, em todos os
tempos” (2009, p.98). Sendo assim, criar corresponderia a re-inventar a si e às realidades
ao redor sendo que a pulsão de ficção, uma vez estimulada poderia conduzir à processos
de criação autorais. Nesse sentido, um autor é alguém que consegue retomar a capacidade
de agir e criar, valorizando a si mesmo e as suas experiências de vida, trazendo à vida o
caráter de obra e vice-versa, desafiando os limites entre a criação estética e a vida
cotidiana. Aos 30 e poucos anos, além dos beats e, claro, Balzac, ansiava por um processo
de escrita autoral que desenhasse a vida como arte. Com uma bagagem inscrita no corpo
de uma vida inteira dedicada à dança, o movimento servia mesmo como motor de voos
ensaiados; o que queria era tecer uma dramaturgia do cotidiano, tomando como ponto de
partida a experiência da viagem. Desejava, acima de tudo, descortinar o estrangeiro.
Em O conto da ilha desconhecida, escrito por José Saramago (1998), um
homem bate à porta do rei para pedir-lhe um barco. Ao ser indagado pelo próprio rei sobre
o porquê de querer um barco, discorre sobre a sua pretensão de ir ao encontro de ilhas
desconhecidas, que não existem nos mapas.
“Para ir à procura da ilha desconhecida, respondeu o homem,
Que ilha desconhecida, perguntou o rei disfarçando o riso, como se
tivesse na sua frente um louco varrido, dos que têm a mania das
navegações, a quem não seria bom contrariar logo de entrada. A ilha
desconhecida, repetiu o homem, Disparate, já não há ilhas
desconhecidas, Quem foi que te disse, rei, que já não há ilhas
desconhecidas, Estão todas nos mapas, Nos mapas só estão as ilhas
conhecidas, E que ilha desconhecida é essa de que queres ir à procura,
Se eu te pudesse dizer, então não seria desconhecida”. (SARAMAGO,
1998, p.16-17)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
BARTHES, Roland. Como viver junto. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São
Paulo: Editora 34, 1996. v.3.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Rio de Janeiro: Passagens, 2000.
KEROUAC, Jack. On the road. Porto Alegre, RS: L&PM, 2013.
SARAMAGO, José. O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.
SPERBER, Suzy. Razão e Ficção: uma retomada das formas simples. São Paulo: editora
Hucitec, 2009.