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Autores: Eduardo Bruno Fernandes, Marcelle Ferreira Louzada

Título: Price World e a cosmogênese da Nova Terra: uma proposição artística


Palavras-chave: espetáculo, capitalismo, consumo
Senhoras e senhores, sejam bem-vindos à Price World 1. Nós sabemos que a
escolha da companhia não é uma escolha sua. Então, aproveite a viagem e as belezas
naturais de Price World. Ladies and gentlemen, welcome to Price World. We know that
choosing the company is not your choice. So enjoy the trip and the natural beauties of
Price World. É com esses dizeres, entoados diversas vezes de forma mecânica por uma
voz que sai de um rosto de mulher em uma tela de ipad, em português e em inglês, em
inglês e em português, que o passageiro é convidado a entrar em um ônibus e embarcar
em uma viagem rumo ao desconhecido. Antes de ser dada a partida, entrementes, ele
escuta, por meio de um alto-falante, o primeiro versículo de Gênesis, extraído da Bíblia
Sagrada, na voz do famoso jornalista e apresentador brasileiro de TV, Cid Moreira.
No começo Deus criou o céu e a terra. A terra era
um vazio, sem nenhum ser vivente e estava coberta sobre
um mar profundo. A escuridão cobria o mar, e o Espírito
de Deus se movia por cima da água. Então Deus disse:
que haja luz. E houve luz. E Deus viu que a luz era boa, e
a separou da escuridão. Deus pôs na luz o nome de Dia, e
na escuridão pôs o nome de Noite. A noite passou, e veio
a manhã. Esse foi o dia primeiro (GENESIS 1:5).

E assim, como uma matriz que anuncia o fim do mundo, Price World inaugura
uma Nova Terra, ao som da música Doce Mel, interpretada pela apresentadora brasileira
de TV, Xuxa. Logo no início, portanto, já se percebe que essa terra anunciada está
conectada à cultura pop, como referência estética e também como publicidade, a partir
de uma nova configuração ao que já está posto em nossa sociedade. Não obstante, em
Price World, a potencialização de outro território existencial não necessariamente está
relacionada às políticas de afirmação da vida, no sentido revolucionário. Ao contrário
trata-se um despotismo post-mortem, o déspota devindo ânus e vampiro. (DELEUZE &
GUATTARI, 2010, p.303). As hierarquias de poder se relacionam com o status de

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Price World ou sociedade à preço de bananas é o nome dado ao espetáculo cênico do grupo EmFoco,
que teve sua estreia em 2014 na cidade de Fortaleza – CE. EmFoco é um grupo de pesquisa cênica criado
em 2009 e tem como motivação investigar os expoentes do teatro contemporâneo, principalmente o uso
do espaço não convencional, da arte relacional e da performatividade. Price World ou sociedade à preço
de bananas foi fruto de um programa de formação e fomento às artes - Laboratório de criação cênica -
desenvolvido pela escola Porto Iracema das Artes, sediada em Fortaleza. Participaram deste projeto:
Eduardo Bruno, Marie Auip, Geórgia Dielle, Lyvia Mariane, Gabriel Matos, Dyhego Martins e Tales
Lopes, além de artistas convidados para integrarem o elenco a cada apresentação. O projeto também
contou com a tutoria do artista-pesquisador Dr. Marcos Bulhões durante sua concepção.
popularidade, visibilidade midiática e fama, pois, os códigos ideológicos, aqui,
funcionam a serviço da reprodução social como constante da espetacularização2 da vida.
O destino da viagem é a viagem em seu percurso. Ao entrar no ônibus,
conduzidos por uma mulher de tronco nu e um macaco de pelúcia a tiracolo, cada um é
lançado para outro território, mas, não, sem antes selar um primeiro pacto: todos os
passageiros presentes estão de acordo em obedecer às regras de outro sistema de
inscrição. Acordo selado, qualquer discordância ou violação das regras pode ocasionar
na expulsão do passageiro desta viagem, afinal, toda sociedade tem suas marcas e suas
leis. De acordo com os pensadores Deleuze e Guattari, em uma sociedade, o que se
preza não é, primeiramente, um meio de troca, mas um socius de inscrição onde o
essencial é marcar e ser marcado (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p.189). Da janela
do ônibus, pode-se acompanhar a cidade que se coloca em movimento com o ônibus
também em movimento.
Conforme a viagem prossegue, os trabalhadores-livres de Price World, aos
poucos, apresentam-se e apresentam o novo sistema de cifras desse novo mundo. Assim
que é dada a partida, todos os passageiros são realocados dos assentos escolhidos com a
justificativa de que para o perfeito funcionamento da máquina se faz necessário que
cada um esteja em seu devido lugar. Como estratégia de espetacularização de tudo em
larga escala, todavia, este mote, evidencia a segregação social em nossa sociedade. “Os
critérios que distinguem classes, castas e postos não devem ser procurados na fixidez
ou na permeabilidade, no fechamento ou na abertura relativas; estes critérios revelam-
se sempre decepcionantes, eminentemente enganadores (DELEUZE & GUATTARI,
2010, p.204).
É solicitado um documento de identificação com foto a cada passageiro para
que seja registrado no sistema de mapeamento e, caso alguém não o possua, deve
provar, de outra forma, como por exemplo, através de perfil em redes sociais, a sua
identidade. Caso isso não ocorra, porém, o ônibus interrompe o percurso da viagem para
a imediata saída do passageiro, ou seja, para a sua expulsão do ônibus. Em Price World
não se pode romper com a ordem estabelecida. Recompõe-se, assim, um novo modelo
de corpo, a partir da domesticação do corpo selvagem – fora do ônibus – e sua

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DEBORD; Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. O termo espetáculo e
suas derivações – espetacularizado, espetacularização – coincide com a concepção de sociedade do
espetáculo de Debord. Porém, nesta ocasião, utiliza-se o termo sem qualquer metáfora, atribuindo a esta
palavra o próprio sentido usual empregado a mesma, como sendo uma atividade pública que impressiona
e é destinada a entreter. https://pt.wikipedia.org/wiki/Espet%C3%A1culo
integralização ou civilidade – dentro do ônibus, a serviço de comandos provindos de um
soberano virtual bárbaro.
Contudo, não se versa, aqui, de maneira alguma, de uma cena ou encenação de
teatro, no sentido de uma ordem clássica de representação: nada a interpretar. O que se
quer, de fato, é fabricar um novo mundo, ainda que em um intervalo de
aproximadamente duas horas, transversalizado pela performance-arte. Segundo a
pesquisadora Eleanora Fabião, o performer não improvisa uma ideia: ele cria um
programa e programa-se para realizá-lo. Ao agir seu programa, desprograma
organismo e meio (FABIÃO, p.237. 2008). Então, não se trata de uma atuação, mas da
experimentação de vacúolos de possibilidade a serviço de ecologias radicais que se
abrem para cosmopolíticas, fazendo funcionar uma maquinaria que tangencia a arte
contemporânea como dispositivo.
Para a pesquisadora Adriana Sansão Fontes, as práticas artísticas podem criar
situações inéditas de visibilidade, apontar ausências notáveis ou resistências às
exclusões no domínio público e desestabilizar expectativas e criar novas convivências.
Sendo assim, mais do que um meio de expressão, a potência das práticas artísticas está
em desregular valores cristalizados e abrir novas extensões do espaço vivido
(FONTES, 2013, p.211). Desta forma, a questão não está na representação, dramaturgia
ou narrativa cênica, mas no uso que se faz da arte como maquinaria estética para a
expansão e criação de mundos.
Como premissa, em Price World o capitalismo é aclamado como universal, o
capital como signo absoluto e a vida cotidiana como um espetáculo, em um show de
selfs compartilhados em redes sociais. Tudo é colocado em evidência: os corpos, os
discursos e o design da cidade. Entretanto, se é o capitalismo que determina as
condições e a possibilidade de uma história universal, isto só é verdade na medida em
que ele tem de se haver essencialmente com o seu próprio limite, com sua própria
destruição (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p.186). Price World, esse novo mundo
que se anuncia, constrói-se justamente quando se eleva a máxima potência este mundo
mesmo que já conhecemos e habitamos, explodindo-o nele mesmo até a total falência
dos seus códigos por saturação. Nesse sentido, nossas próprias práticas diárias são
colocadas em confronto através da especulação e espetacularização absoluta das
mesmas.
Entendendo que o modo de produção se esgota na medida em que as
possibilidades também ficam esgotadas, como primeiro mandamento, em Price World o
consumo é concebido como regra global. E se é função do capitalismo gerar serialismo,
em Price World tudo é serializado; o que se quer é codificar os fluxos do desejo,
inscrevê-los, registrá-los, fazer com que nenhum fluxo corra sem ser tamponado,
canalizado, regulado (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p.51). Os passageiros estão
absolutamente sobre controle: registrados, vigiados, guiados por uma uma voz que sai
de um rosto de mulher em uma tela de ipad e que aparece pontualmente para anunciar o
modo operativo dessa Nova Terra, cujo sistema é soberano, velocidade de cinco
gigabytes e acesso ilimitado3.
No percurso da viagem, um trabalhador-livre de Price World produz ecos
sonoros: a cidade é design, a arquitetura é design, a identidade é design, o cartão de
crédito é design, o estilo de vida é design, Deus é design. A cada esquina, podemos
perceber que este novo mundo é o fantasma do mundo mesmo que já estamos
habituados a viver. Porém, Price World revela um mundo, acima de tudo, perverso,
enfeitiçado e fetichista.
A cidade vista pela janela do ônibus e em outros momentos vivenciada por meio
das paragens oferecidas aos passageiros como turismo, funciona como um grande
safári. Se é verdade que o capitalismo assombrou todas as formas de sociedade
(DELEUZE & GUATTARI, 2010, p.189), em Price World não seria diferente. Aqui,
desde o início, partilha-se de uma série de rituais cotidianos e não menos sádicos: o
outro, aquele que está do lado de fora do ônibus, é visto como aquele que não atingiu a
luz. Dentro do ônibus, no entanto, estimula-se a prática dos sete pecados capitais,
vislumbrando o luxo como meio de investimento absoluto. A gula mostra os seus dentes
em jorros de vômito na porta de um grande supermercado, a avareza é estimulada como
qualidade singular, a luxuria, a ira, a preguiça, a soberba, cada uma com sua função
única na formação do sujeito-sucesso. Tudo que se faz, compartilha-se em rede social,
afinal, viver e não compartilhar não é viver. Da mesma forma em que fazer uma boa
ação e não compartilhar não é fazer uma boa ação.
Quando se retorna ao ponto de partida se reencontra o ponto de chegada. Nessa
gênese do mundo, Price World não funciona como um Jardim do Éden e nem mesmo
como Apocalipse. A realidade de Price World se constitui como um desvio do
capitalismo na produção de sua própria morte. Afinal, nossas sociedades apresentam
um vivo gosto por todos os códigos, os códigos estrangeiros ou exóticos, mas é um
gosto mortuário (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p.325).
3
Trecho extraído do texto original do espetáculo
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São


Paulo: editora 34, 2010.
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea.
In: Sala Preta USP, São Paulo, 2008. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57373. Acessado em: 15 de maio de
2017.
FONTES, Adriana Sansão. Intervenções temporárias, marcas permanentes:
Apropriações, arte e festa na cidade contemporânea. Rio de Janeiro: Casa da Palavra,
2013.

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