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MARCIO FLORES

GUSTAVO CHAVES LOPES Membro da ONG Igualdade


Jornalista, documentarista, Diretor do Museu da Diversidade do RS/MUDI
escritor e ex-secretário
nacional do Audiovisual PLURAL Coordenador do Sistema Municipal de
Museus de Santa Maria

SOCIEDADE & COMPORTAMENTO

Democracia trans Museus: lugares de


representatividade
O Brasil vive hoje a curiosa (e perigosa) situ-
ação de uma democracia trans: é ditadura,
mas se identifica como democracia. E,
como ocorre nesses casos, se ofende se alguém lhe
chama pelo que é de fato. Vivemos em uma espécie Q uando nos referimos a museus, desenha-
mos em nosso pensamento, o lugar onde
o passado torna-se presente e imagetica-
de roteiro mal feito daquelas ficções distópicas. mente nos transportamos à linearidade do tempo,
Aliás, como diria Aldous Huxley, no obrigatório muitas vezes ressignificando o passado de nossos
Admirável Mundo Novo: a ditadura perfeita terá antepassados, seus costumes e ações, reconstruin-
ares de democracia. do a história. Sob este aspecto o museu torna-se
A recente inauguração do Centro Integrado uma instituição democrática aonde o homem
de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da se reconhece, interagindo com a realidade deste
Democracia (CIEDDE) parece ter saído diretamente Entre os vários espaço, tornando-se espectador muitas vezes da Os museus,
de outra distopia famosa, o célebre 1984, de George ataques à sua própria história, envolvida em aspectos da desde a sua
Orwell. Convido o leitor a comparar o logotipo do memória e do patrimônio cultural íntimo e coleti-
Centro com as capas do livro: até nisso se parecem. democracia vo simultaneamente. criação ,devem
Porém, o que poderiam ser apenas coincidências, que estão Os museus desde a sua criação devem nos pos- nos possibilitar
na verdade escancaram o quanto o totalitarismo sendo feitos, sibilitar vivenciar e experimentar diferentes reali- vivenciar e
avançou em nosso país. Mas, claro, tudo em nome da o ataque dades, tendo potencial para estabelecer, modificar, experimentar
democracia e do amor. Ainda que seja uma demo- intervir e contribuir na valorização das relações
cracia relativa e um amor seletivo. à liberdade entre o homem e a sua própria realidade. diferentes
Isso porque, é evidente, a decisão de retirar auto- de expressão Seguindo este raciocínio eu te pergunto, você se realidades,
maticamente do ar conteúdos considerados como é o mais sente representado pelos museus em Santa Maria? tendo potencial
“desinformação” ou “fake news” atingirão apenas Como organismos sociais, que representam
um dos lados. E acho que todos já somos grandi- perigoso, tudo o que é humano e não humano, os museus para estabelecer
nhos o suficiente para ter entendido isso. Além disso, porque é devem estar inseridos no contexto em que estão modificar,
definir o que é considerado “fake news” e “desinfor- justamente ela localizados, permitindo representar as histórias e intervir e
mação” passa por filtros como o “Grupo de Trabalho narrativas da sua comunidade.
Contra o Discurso de Ódio”, integrado por pessoas que garante É importante que o homem contemporâneo contribuir na
como Felipe Neto e Manuela d’Ávila. Outra inspira- que os erros busque cada vez mais interligar-se a pluralida- valorização das
ção claramente orwelliana, o Ministério da Verdade. (entre outras de e a diversidade, buscando interagir com as relações entre o
Percebem como sempre têm nomes bonitinhos? diferenças. Os meios de comunicação, a internet,
No entanto, não existe nada menos democráti- coisas) sejam a globalização, permitem que estes indivíduos se homem e a sua
co do que querer tutelar a democracia. Não existe apontados conectem com as diferenças e o desconhecido. própria
ataque maior à liberdade do que calar vozes disso- A museologia contemporânea estabelece ações realidade
nantes. Não existe atentado maior à diversidade de e estudos que contribuem para o uso de diversas
opiniões do que permitir apenas o discurso único. tecnologias em beneficio não somente da expo-
Um elemento comum em todas as ficções distópi- grafia e museografia, mas a procedimentos de
cas (e ditaduras reais) é a supressão da liberdade de preservação e armazenamento de acervos, pos-
expressão dos cidadãos. Também conhecida como sibilitando assim a salvaguarda destes materiais,
censura. Logicamente, os vilões/autoridades sempre histórias e memórias.
alegam que fazem isso em nome da liberdade, da Toda esta herança cultural nos permite infor-
democracia e em defesa das instituições. mações de grande importância sobre diferentes
Isso as legitima perante a opinião pública. A outra aspectos, como a história de um país e do passado
instância legitimadora é a imprensa, que reforça essa de uma sociedade, contribuindo diretamente na
narrativa. Ao derrubar canais dissonantes, os vilões/ formação da identidade e seus costumes, como
autoridades garantem que só a sua versão da his- também na formação de grupos, nas categorias
tória será contada. Daí porque essa tara em regular sociais e no resgate da memória, interligando o
(leia-se censurar) as redes sociais, por exemplo. cidadão e suas raízes.
Entre os vários ataques à democracia que estão O passado só permanece “vivo” através de
sendo feitos, o ataque à liberdade de expressão é o trabalhos de síntese da memória, que nos dão a
mais perigoso, porque é justamente ela que garante oportunidade de revivê-lo a partir do momento
que os erros (entre outras coisas) sejam apontados. em que o indivíduo passa a compartilhar suas
E a melhor maneira de perceber o quanto um gover- experiências, tornando com isso a memória pre-
no tem apreço pela democracia é ver o quanto essa sente e constante.
liberdade o incomoda. Os museus são e sempre serão espaços entre o
Esses ataques, invariavelmente, vêm embrulhados eu e o outro, respeitando as individualidades, as
com um laço bem bonito escrito “em defesa da de- diferenças, a diversidade e a liberdade de indaga-
mocracia”. Na verdade, esse laço estará ao redor do ções e conceitos e suas experiências concebendo
pescoço daqueles que se colocarem contra o regime. um equilíbrio em suas narrativas e histórias. Estas
Como diria Josef Stalin, o maior genocida da instituições museológicas permitem ao público
história e ídolo da esquerda: se não permitimos que interagir, conhecer e descobrir novos campos,
nossos inimigos tenham armas, por que deveríamos reviver nossa história e memória, pois parte de
permitir que eles tenham ideias? uma única premissa a liberdade!!

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DIÁRIO DE SANTA MARIA TERÇA-FEIRA, 19 DE MARÇO DE 2024 20

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