Jornalista, documentarista, Diretor do Museu da Diversidade do RS/MUDI escritor e ex-secretário nacional do Audiovisual PLURAL Coordenador do Sistema Municipal de Museus de Santa Maria
SOCIEDADE & COMPORTAMENTO
Democracia trans Museus: lugares de
representatividade O Brasil vive hoje a curiosa (e perigosa) situ- ação de uma democracia trans: é ditadura, mas se identifica como democracia. E, como ocorre nesses casos, se ofende se alguém lhe chama pelo que é de fato. Vivemos em uma espécie Q uando nos referimos a museus, desenha- mos em nosso pensamento, o lugar onde o passado torna-se presente e imagetica- de roteiro mal feito daquelas ficções distópicas. mente nos transportamos à linearidade do tempo, Aliás, como diria Aldous Huxley, no obrigatório muitas vezes ressignificando o passado de nossos Admirável Mundo Novo: a ditadura perfeita terá antepassados, seus costumes e ações, reconstruin- ares de democracia. do a história. Sob este aspecto o museu torna-se A recente inauguração do Centro Integrado uma instituição democrática aonde o homem de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da se reconhece, interagindo com a realidade deste Democracia (CIEDDE) parece ter saído diretamente Entre os vários espaço, tornando-se espectador muitas vezes da Os museus, de outra distopia famosa, o célebre 1984, de George ataques à sua própria história, envolvida em aspectos da desde a sua Orwell. Convido o leitor a comparar o logotipo do memória e do patrimônio cultural íntimo e coleti- Centro com as capas do livro: até nisso se parecem. democracia vo simultaneamente. criação ,devem Porém, o que poderiam ser apenas coincidências, que estão Os museus desde a sua criação devem nos pos- nos possibilitar na verdade escancaram o quanto o totalitarismo sendo feitos, sibilitar vivenciar e experimentar diferentes reali- vivenciar e avançou em nosso país. Mas, claro, tudo em nome da o ataque dades, tendo potencial para estabelecer, modificar, experimentar democracia e do amor. Ainda que seja uma demo- intervir e contribuir na valorização das relações cracia relativa e um amor seletivo. à liberdade entre o homem e a sua própria realidade. diferentes Isso porque, é evidente, a decisão de retirar auto- de expressão Seguindo este raciocínio eu te pergunto, você se realidades, maticamente do ar conteúdos considerados como é o mais sente representado pelos museus em Santa Maria? tendo potencial “desinformação” ou “fake news” atingirão apenas Como organismos sociais, que representam um dos lados. E acho que todos já somos grandi- perigoso, tudo o que é humano e não humano, os museus para estabelecer nhos o suficiente para ter entendido isso. Além disso, porque é devem estar inseridos no contexto em que estão modificar, definir o que é considerado “fake news” e “desinfor- justamente ela localizados, permitindo representar as histórias e intervir e mação” passa por filtros como o “Grupo de Trabalho narrativas da sua comunidade. Contra o Discurso de Ódio”, integrado por pessoas que garante É importante que o homem contemporâneo contribuir na como Felipe Neto e Manuela d’Ávila. Outra inspira- que os erros busque cada vez mais interligar-se a pluralida- valorização das ção claramente orwelliana, o Ministério da Verdade. (entre outras de e a diversidade, buscando interagir com as relações entre o Percebem como sempre têm nomes bonitinhos? diferenças. Os meios de comunicação, a internet, No entanto, não existe nada menos democráti- coisas) sejam a globalização, permitem que estes indivíduos se homem e a sua co do que querer tutelar a democracia. Não existe apontados conectem com as diferenças e o desconhecido. própria ataque maior à liberdade do que calar vozes disso- A museologia contemporânea estabelece ações realidade nantes. Não existe atentado maior à diversidade de e estudos que contribuem para o uso de diversas opiniões do que permitir apenas o discurso único. tecnologias em beneficio não somente da expo- Um elemento comum em todas as ficções distópi- grafia e museografia, mas a procedimentos de cas (e ditaduras reais) é a supressão da liberdade de preservação e armazenamento de acervos, pos- expressão dos cidadãos. Também conhecida como sibilitando assim a salvaguarda destes materiais, censura. Logicamente, os vilões/autoridades sempre histórias e memórias. alegam que fazem isso em nome da liberdade, da Toda esta herança cultural nos permite infor- democracia e em defesa das instituições. mações de grande importância sobre diferentes Isso as legitima perante a opinião pública. A outra aspectos, como a história de um país e do passado instância legitimadora é a imprensa, que reforça essa de uma sociedade, contribuindo diretamente na narrativa. Ao derrubar canais dissonantes, os vilões/ formação da identidade e seus costumes, como autoridades garantem que só a sua versão da his- também na formação de grupos, nas categorias tória será contada. Daí porque essa tara em regular sociais e no resgate da memória, interligando o (leia-se censurar) as redes sociais, por exemplo. cidadão e suas raízes. Entre os vários ataques à democracia que estão O passado só permanece “vivo” através de sendo feitos, o ataque à liberdade de expressão é o trabalhos de síntese da memória, que nos dão a mais perigoso, porque é justamente ela que garante oportunidade de revivê-lo a partir do momento que os erros (entre outras coisas) sejam apontados. em que o indivíduo passa a compartilhar suas E a melhor maneira de perceber o quanto um gover- experiências, tornando com isso a memória pre- no tem apreço pela democracia é ver o quanto essa sente e constante. liberdade o incomoda. Os museus são e sempre serão espaços entre o Esses ataques, invariavelmente, vêm embrulhados eu e o outro, respeitando as individualidades, as com um laço bem bonito escrito “em defesa da de- diferenças, a diversidade e a liberdade de indaga- mocracia”. Na verdade, esse laço estará ao redor do ções e conceitos e suas experiências concebendo pescoço daqueles que se colocarem contra o regime. um equilíbrio em suas narrativas e histórias. Estas Como diria Josef Stalin, o maior genocida da instituições museológicas permitem ao público história e ídolo da esquerda: se não permitimos que interagir, conhecer e descobrir novos campos, nossos inimigos tenham armas, por que deveríamos reviver nossa história e memória, pois parte de permitir que eles tenham ideias? uma única premissa a liberdade!!
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DIÁRIO DE SANTA MARIA TERÇA-FEIRA, 19 DE MARÇO DE 2024 20