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COMO OS CIGANOS FAZEM AS MALAS: aspectos do teatro e suas relações com

as tecnologias da criação em situações de confinamento.

Danielle de Jesus de Souza Fonsêca.

O Teatro em sua proposta digital, mediada pelas tecnologias, vem


ampliando as possibilidades de criação e recepção da cena. Com o avanço das
mídias digitais nas últimas décadas, principalmente a web 2.0, técnicas teatrais
foram aperfeiçoadas, gerando tecnologias, ou melhor, atualizando modos de
compreender, explorar e produzir uma prática teatral interessada em compor um
espaço cênico em profundo diálogo com a internet.

Uma dessas questões, pode ser vista, por exemplo, no alargamento da ideia
e prática de presença. Com uso da internet novas demandas surgem e, ao mesmo
tempo, se expandem contornos ate então não explorados na cena teatral. A
presença física mediada pela tecnologia nos oferece novos sentidos e
compreensões à cena e experiência teatral. Nisso, a telepresença se apresenta
como fenômeno possível de experimentação cênica. Tais pontos nos oferecem
outras percepções acerca da mediação teatral contemporânea, do modo como nos
relacionamos com as mídias digitais e as ações cênicas provenientes dessas
experimentações, como eixos de interesses e que serão discutidas ao longo desta
resenha.

Com a pandemia instaurada pelo Coronavírus, como se sabe, a dinâmica da


vida sofreu grandes transformações cotidianas, sobretudo o aspecto da coletividade
foi duramente afetado. Estar-junto, pensando a partir da concepção mafessoliana, se
tornou um fator de risco, pois potencializava a proliferação do vírus. Neste sentido,
no campo da arte, em especial do teatro, muitas experimentações emergiram a partir
da situação do confinamento. Gerando produções que discutissem aspectos sobre o
presente e sua relação com a vida planetária ameaçada.

Tal contexto, também colocou o público quanto os atores e a cena em


experimentações únicas. A partir da Filosofia do Teatro do crítico argentino Jorge
Dubatti, mais precisamente acerca do seu conceito Teatro Liminar, é possível
estabelecer conexões com a cena do agora, no sentido de tensionar e expandir as
fronteiras do campo teatral com as demais artes e, também, com outras mídias. É
com base nessa compreensão da cena contemporânea e sua estreita relação com a
mídia digital que o presente trabalho busca apresentar e refletir a partir de uma
experiência vivida em contexto remoto.

A obra a ser analisada foi realizada em ambiente virtual, por conta do


período pandêmico. O espetáculo em questão se chama Como os ciganos fazem as
malas1, do Grupo Galpão. A escolha pela obra da companhia teatral mineira se deve
ao fato da autora desta resenha ter tido a oportunidade de experimentar, enquanto
público, a cena teatral em modo digital produzida e encenada pelo grupo citado.

A análise que se inicia parte de uma viagem que aconteceu no dia 26 de


junho de 2021, um sábado. É assim que apresento a obra cênica do Grupo Galpão,
porque é deste modo que eles a anunciam: como uma viagem, uma possibilidade
nômade de existir em tempos urgentes e incertos. A dramaturgia conversa
intimamente com o contexto vivido de confinamento social. É partir desse cenário
que a narrativa irá se desenrolar, evocando memórias de um tempo e espaço em
que deslocamentos físicos eram possíveis.

A proposta virtual criada pelo grupo foi transmitida ao vivo pela internet, por
meio do aplicativo de mensagens instantâneas Telegram. Nele foi possível ver, ler,
ouvir e, principalmente, imaginar situações corriqueiras e incomuns na paisagem
criada pelo viajante. É com ele que embarcamos em sensações, metáforas, dilemas,
questões e demais ações que podem acontecer em uma viagem de avião. Além
disso, o viajante também lança pontos importantes, despertando no público
reflexões acerca do período pandêmico, sobretudo no que diz respeito ao
impedimento de ir e vir, de transitar livremente, quando o ato não se configurava
como um perigo sanitário.

Em tempo real, o personagem viajante, que se apresenta como Escritor,


comenta fatos a respeito de sua viagem. Entre vôos, escalas e conexões, o viajante
vai narrando em textos, alguns deles lembram a escrita poética concreta, e áudios
com sonoridades que vão desde relatos ao compartilhamento de trechos de

1
Texto: Newton Moreno. Criação: Yara de Novaes, Tiago Macedo, Paulo André e Barulhista. Classificação
indicativa: Livre. Duração: 1h30.
músicas. Em determinados momentos, me senti como acompanhante do viajante,
em outros como uma amiga que segue à distância um diário de viagem em criação.

A voz de narração do viajante variava em diferentes intensidades vocais, ora


sussurrando, como se contasse um segredo ou fazendo uma confissão, em outros
momentos soltando uma gargalhada estridente e bravejante. Essa diversidade oral,
me fez pensar em como essas modulações são capazes de compor uma cena.
Perceber como a voz carrega a potência de se fazer imagem, assim como a
ambiência sonora foi um importante elemento de cena, cuja uma das finalidades era
convocar a presença do público a todo o momento. No sentido de dizer, estamos
juntos nessa viagem, onde múltiplas presenças em tempo real e espalhadas em
diversos territórios geográficos eram possíveis de estar, sentir e existir juntas.

Nessa experiência remota do Grupo Galpão o público era um ouvinte ativo,


que se relacionava com o que narrado. Por exemplo, em um dado momento, mais
precisamente na metade de tempo transcorrido, foi perguntado ao público sobre a
necessidade de uma pausa. Visto que no formato digital a concepção de tempo e
espaço se relaciona de outro modo, sabemos que o cansaço visual devido ao
excesso de telas foi uma realidade da vida pandêmica. Em outras palavras, este
aspecto foi levado em conta dentro do processo de criação cênica do Grupo Galpão.

Voltando à participação do público, a resposta dada era baseada na


pergunta do Escritor que poderia ser de alguns minutos – 2 minutos, 5 minutos – ou
na duração de um gesto, um tempo de respiro. Essa proposta de votação, de incluir
o público em uma ação, de decidir a respeito do desenrolar, mesmo que mínimo, da
narrativa, funda um gesto de co-laboração. Essa capacidade do público de intervir
nos conteúdos digitais são ações exploradas quando a prática artística compreende
a noção de tecnovívio. Tais práticas tecnoviviais, aqui trazemos novamente Dubatti,
são compreendidas como um convívio mediado por meios tecnológicos.

Este ponto também anuncia outros aspectos importantes, em deles foi


trazido pelo professor do curso Carlos Falci e diz respeito ao modo como os
dispositivos, neste caso o aplicativo Telegram, tem a capacidade de agenciar e atuar
diante da nossa experiência virtual. Segundo ele, com base em leituras de Deleuze,
Victa de Carvalho entre outros, nos interessa perguntar como os aparatos
tecnológicos são capazes de convocar ações e atualizar noções no campo do teatro,
por exemplo.

Ao convidar o público, em determinado momento, para participar ativamente,


o Grupo Galpão delega ao Telegram a oportunidade de atuar como agenciador
desse processo participativo. Acionando o aplicativo como meio eficiente de produzir
presença.

Como marca deste tempo de estreita relação com as mídias digitais e


acentuada durante o período pandêmico, deflagra múltiplos usos e criações como
visto em diversas produções. Este cenário, funda o que a professora Mariana Muniz
comentou em umas das suas vídeos-aulas, como “teatralidades possíveis”.
Movendo, nesse campo em aberto e expandido outras sensorialidades criadas e
postas para experimentação de imagens, sons, vídeos e demais conteúdos digitais
compartilhados.

Portanto, participar desta produção cênica e imersiva em uma determinada


temporalidade e dividida por muitas presenças, fez da minha viagem com o Grupo
Galpão uma experiência única. Atravessar cidades e países, participar de chegadas
e partidas, tudo isso sem sair de casa, contribuiu para a criação de um formato
cênico flutuante, poética e potente. Que bom que fiz essa viagem e que tantas
outras possam existir virtualmente e presencialmente. Viva o Teatro e suas
tecnologias vivas e pulsantes.

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