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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA

BRUNO VEFAGO DALMOLIN

O CENÁRIO QUE CONTA A HISTÓRIA

Palhoça
2021
2

UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA


BRUNO VEFAGO DALMOLIN

O CENÁRIO QUE CONTA A HISTÓRIA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso


de Graduação em Cinema e Audiovisual da
Universidade do Sul de Santa Catarina como requisito
parcial à obtenção do título de Bacharel em Cinema e
Audiovisual.

Prof. Dra. SOLANGE MARIA LEDA GALLO (Orientador)


Prof. Dr. ANDRÉ ARIETA (Orientador)

Palhoça
2021
3

BRUNO VEFAGO DALMOLIN

O CENÁRIO QUE CONTA A HISTÓRIA

Este trabalho de conclusão de curso foi julgado


adequado à obtenção do título de Bacharel em Cinema e
Audiovisual e aprovado em sua forma final pelo Curso
de Graduação em Cinema e Audiovisual da
Universidade do Sul de Santa Catarina.

Palhoça, dia 28 de Junho de 2021.


______________________________________________________
Dra. SOLANGE MARIA LEDA GALLO (Orientador)
Universidade do Sul de Santa Catarina
______________________________________________________
Dr. ANDRÉ ARIETA (Orientador)
Universidade do Sul de Santa Catarina
______________________________________________________
Dra. MARA SALLA (Co-Orientadora)
Universidade do Sul de Santa Catarina
______________________________________________________
Dra. NÁDIA R. MAFFI NECKEL (Co-Orientadora)
Universidade do Sul de Santa Catarina
______________________________________________________
Dra. MARILHA NACCARI (Co-Orientadora)
Universidade do Sul de Santa Catarina
4

Dedico meu trabalho monográfico aos meus


pais, minha irmã Larissa, minha tia Ionice e
meu falecido tio Laudir.
5

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais que sempre me deram todo o apoio necessário, não só no
período acadêmico, mas em todos os meus 24 anos de vida.
Agradeço a minha irmã Larissa, e tia Ionice, que foram as pessoas que mais me
incentivaram a seguir essa vontade que era entrar em um curso de Cinema.
Agradeço também o meu grande amigo, colega de curso, e fiel escudeiro, Douglas
Vieira Matos, que compartilhou comigo os maiores altos e baixos nestes 6 anos de faculdade.
Por fim gostaria de agradecer a todos os professores por todo o ensino, e
principalmente meus orientadores Solange Gallo e André Arieta, que durante a execução
deste projeto foram sempre muito atenciosos, e dispostos a guiar e auxiliar.
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RESUMO

O propósito desta monografia é fazer uma análise de cenário do longa-metragem


Blade Runner (1983), dirigido por Ridley Scott, tendo como principal objetivo, entender quais
foram os fatores que levaram o diretor a projetar aquela determinada forma de “futuro”, ou
seja, o ano de 2019 . Foram estudadas as referências visuais, os fatores políticos e
socioeconômicos da época de produção da obra, e como a junção desses elementos gerou um
resultado até então único. Para isso, foi realizada uma pesquisa a respeito do contexto de
produção do filme, como os Estados Unidos do governo de Ronald Reagan influenciou o
imaginário futurista de Blade Runner; e as referências visuais, quais foram as principais obras
que o diretor se baseou para criar a estética e o clima do filme. A partir disso foi possível,
através da análise de uma das cenas do longa, identificar, no cenário, a materialização das
principais influências. Se sucedeu então, uma comparação entre o futuro de 2019
apresentando no filme, e o presente existente (2021), mostrando que embora não tenhamos o
ambiente externo, depressivo de Blade Runner, o longa previu um estado de espírito
deprimente, muito semelhante ao atual. Por fim se concluiu que Ridley Scott conseguiu,
através dessa junção de referências, e fatores políticos e socioeconômicos, trabalhar os
cenários não apenas como uma questão estética, mas também como parte da história que está
sendo contada e aprofundamento das questões ideológicas envolvidas.

Palavras-chave: Cinema; Blade Runner; Cenário.


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ABSTRACT

The purpose of this monograph is to do a scenario analysis of the feature film


Blade Runner (1983), directed by Ridley Scott, having as main objective, to understand what
were the factors that led the director to project that particular form of "future", i.e., the year
2019. We studied the visual references, the political and socioeconomic factors at the time the
film was produced, and how the combination of these elements generated a unique result. To
this end, a research was conducted on the context of the film's production, how the United
States of Ronald Reagan's government influenced the futuristic imagery of Blade Runner; and
the visual references, which were the main works that the director used to create the aesthetics
and atmosphere of the film. From this it was possible, through the analysis of one of the
scenes in the feature film, to identify, in the scenario, the materialization of the main
influences. Then, a comparison was made between the 2019 future presented in the film and
the existing present (2021), showing that although we do not have the depressing external
environment of Blade Runner, the film predicted a depressing state of mind, very similar to
the present one. Finally it was concluded that Ridley Scott managed, through this junction of
references, and political and socioeconomic factors, to work the scenarios not only as an
aesthetic issue, but also as part of the story being told and deepening of the ideological issues
involved.

Keywords: Movies; Blade Runner; Scenario


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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Nighthawks 15
Figura 2 – Fragmentos do filme Metropolis 16
Figura 3 – The Long Tomorrow 17
Figura 4 – L’Incal 18
Figura 5 – Artes do livro Sentinel 19
Figura 6 – Artes Conceituais de Blade Runner por Syd Mead 19
Figura 7 – Conjunto de Frames - Blade Runner 21
Figura 8 – Conjunto de Frames - Blade Runner 22
Figura 9 – Plano Inicial de Blade Runner 23
Figura 10 – VIsta da Antiga Usina Química de Teeside 23
Figura 11 – Conjunto de Frames - Blade Runner 24
Figura 12 – Conjunto de Frames - Blade Runner 25
Figura 13 – Conjunto de Frames - Blade Runner 26
Figura 14 – Conjunto de Frames - Blade Runner 27
Figura 15 – Conjunto de Frames - Blade Runner 28
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SUMÁRIO

1 - INTRODUÇÃO 10

2 - CONTEXTO DE PRODUÇÃO DO FILME 11


2.1 - AMBIENTAL 11
2.2 - ECONÔMICO 11
2.3 - MULTICULTURAL 13

3 - REFERÊNCIAS VISUAIS 14
3.1 - FILMES NOIR 14
3.2 - METROPOLIS 16
3.3 - MOEBIUS 17
3.3 - SYD MEAD 18

4 - ANÁLISE DE CENA 20

5 - FUTURO FICTÍCIO X PRESENTE REAL 30

6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS 31

7 - REFERÊNCIAS 34
10

1. INTRODUÇÃO

“Blade Runner” é um dos filmes mais importantes e influentes do gênero de


ficção científica, e principalmente daquilo que viria a se tornar o sub-gênero Cyberpunk, e
para falar melhor do tema, é necessário entender sobre o movimento literário do qual ele foi
derivado, o “New Wave”. Esse movimento da ficção científica que ocorreu durante os anos 60
e 70, abordava temas como, drogas psicodélicas, orientação religiosa, e sexo. Se tratando de
um futuro não tão distante, era pensado de uma maneira muito mais pessimista - indo contra o
habitual otimismo do gênero - com frequente foco em desastres causados por superpopulação,
descaso ambiental, e guerras; assim como um cinismo em relação à política. Eram também
explorados os dilemas morais e filosóficos que viriam com os computadores e inteligências
artificiais, esse tema estava muito presente na obra de Phillip K. Dick “Androides Sonham
com Ovelhas Elétricas?” de 1968, esse sendo o livro o qual “Blade Runner” utilizou de base.
De acordo com Alfredo Luiz Paes de Oliveira Suppia:

O Cyberpunk enquanto estética já vinha sendo gestado na literatura.


William Gibson viria a consolidar a base do movimento com a
publicação de seu Neuromancer, poucos anos depois, e o próprio
Phillip K. Dick, autor da chamada “New Wave” na ficção científica, já
teria lançado os elementos iniciais do Cyberpunk em suas obras. Mas,
no cinema, foi Blade Runner que primeiramente descreveu, de forma
tão incorporada, um “imaginário Cyberpunk”. (SUPPIA, 2002 p. 84).

Nesta monografia, iremos entender o que fez o diretor, Ridley Scott, imaginar o
mundo de Blade Runner, da maneira que foi apresentado. Com foco no cenário, o principal
objetivo é analisar quais foram as maiores influências para aquele ambiente ser do jeito que é.
Será levado em consideração o contexto histórico de produção do filme, e as referências
visuais do diretor, para entender como a mescla desses elementos criou um produto nunca
antes visto. Compreendendo como Ridley Scott criou essa visão de futura única a partir de
uma amálgama das mais variadas partes, será possível ter um maior entendimento de como
imaginar e trabalhar o universo de sua obra.
11

2. CONTEXTO DE PRODUÇÃO DO FILME

2.1 AMBIENTAL

A cena inicial de Blade Runner mostra o cenário de uma Los Angeles tomada por
fumaça, com torres de indústrias soltando gás flamejante nos céus, poluindo a atmosfera. Com
toda essa queima de combustíveis fósseis e emissão de gases, se nota que em toda
ambientação do filme não existe vegetação ou luz do sol. Cai constantemente uma chuva
ácida, que pode se associar com toda a poluição mostrada no início do filme, pois quanto mais
quente a atmosfera, mais umidade ela absorve.
Todo esse meio ambiente desgastado e precário do filme, podia ser visto como um
aviso, levando em consideração os valores do presidente que vinha ao poder no início daquela
década. O governo de Ronald Reagan do início dos anos 80, acreditava que a proteção
ambiental era um fardo econômico, dizendo que árvores causam mais poluição que carros, e
removendo painéis solares da casa branca. Em seus primeiros anos, houveram cortes de
orçamento e funcionários no órgão EPA (Agência de Proteção Ambiental dos Estados
Unidos), além disso, foi permitido a locação de dezenas de milhões de acres de terras
nacionais, para o desenvolvimento de petróleo, gás e carvão, mais do que qualquer
administração na história. Com todos esses fatores somados, a representação de um futuro em
que os resíduos industriais da cidade contribuem com a catástrofe ambiental, servia como um
lembrete do custo da emissão de gases e fumaça em Los Angeles e no mundo.

2.2 ECONÔMICO

O cenário apresentado no filme caracteriza uma reflexão direta das práticas


econômicas, políticas e culturais do “Reaganomics”, ou seja, a política econômica assumida
pelo presidente Ronald Reagan ao assumir o cargo no início dos anos 80, era sustentado por
12

quatro pilares: reduzir gastos do governo; reduzir impostos para pessoas físicas, empresas e
investimentos; reduzir regulamentação sobre empresas na economia geral; controlar oferta
monetária para reduzir inflação. Reaganomics se baseava na ideia de que apenas as grandes
empresas poderiam revitalizar os EUA. Em seu discurso inaugural Reagan disse “Governo
não é a solução para nossos problemas; governo é o problema”. Esses tipo de pensamento se
reflete no cenário de Blade Runner, na cena inicial do filme, se observa no horizonte uma
torre que se sobrepõe a todos os outros edifícios, essa torre pertence à Tyrell Corporation,
empresa que comanda a cidade. Um painel digital cobre toda a fachada de um arranha-céu,
assim como anúncios luminosos da Coca-Cola e outras empresas se destacam no ambiente. O
consumismo tomou conta da paisagem da cidade, sugerindo a força do mercado na economia.
E mesmo que de um ponto de vista “macro”, observando o geral, a Los Angeles do filme
pareça ser muito bonita com todas as suas luzes e arranha-céus, dando a entender que é uma
cidade que prosperou, ao se olhar de um ponto de vista “micro”, observando de perto, se vê o
contrário, toda essa publicidade que ilumina a megalópole cria um ambiente claustrofóbico, o
capitalismo na cidade é onipresente, em todos os lugares existe algum anúncio; e pelas ruas da
cidade se vê o contrário de algo próspero. Nelas se encontram sem-tetos, poluição e
superpopulação, lixo, sombras, vazamentos, além de prédios desabando ou abandonados,
condições pouco saudáveis para se viver.
Em Blade Runner, como o planeta terra está se deteriorando, a solução foi a
exploração espacial. Ao longo do filme, estão presentes diversos anúncios de algo chamado
“Off World”, isso é um convite aos habitantes para tentarem uma “nova vida” nas colônias
espaciais. A ideia de colonização espacial hoje em dia pode parecer distante, mas no começo
dos anos 80 aparentava ser um futuro próximo, considerando que, de 1969 a 1972
aconteceram 5 missões bem sucedidas de desembarque de astronautas na lua, e em 1981 foi
realizada a STS-1, a primeira vez que um ônibus espacial foi mandado para o espaço. Mesmo
parecendo ser um futuro promissor, na verdade só é refletida ainda mais a desigualdade
naquele planeta, as colônias espaciais parecem ser ótimas oportunidades ao alcance de todos,
mas que na verdade só está disponível para aqueles que têm condições financeiras e físicas.
Quando a aeronave com o anúncio do “Off World” promete a chance de se começar de novo,
é ignorado o fato de que a Los Angeles do filme é uma cidade privatizada. Assim como a
população estadunidense não tinha consciência de que as políticas econômicas de Reagan, de
13

livre mercado e baixa nos impostos, estavam tornando os Estados Unidos, na economia mais
estagnada e com maiores dívidas do primeiro mundo.

2.3 MULTICULTURAL

Ao longo do filme, algo que chama muito a atenção é a multiculturalidade,


principalmente oriental. Ideogramas japoneses estão presentes por toda a cidade, um painel
digital com a imagem de uma gueixa cobre a fachada de um arranha-céu. O comércio da parte
baixa da cidade remete muito mais aos dos países orientais do que os ocidente, e na multidão
de pessoas que por lá circulam, a maioria é asiática; a Los Angeles de Blade Runner sofreu
um verdadeiro domínio oriental, pois durante a época de produção do filme, esse era o
sentimento do que iria realmente acontecer. No final dos anos 70 e começo dos 80, o Japão
estava em uma crescente econômica, e com isso, a indústria estadunidense estava sendo
“ameaçada”, como alegava na época um dos jornais de maior renome dos Estados Unidos, o
New York Times.

É muito evidente, que muito mais do que a marinha mercante


americana está caindo em mãos estrangeiras. O mesmo acontece com
nossa indústria siderúrgica, nossa indústria de construção naval, nossa
indústria de eletrônicos, nossa indústria têxtil...e a lista continua.

Estamos sofrendo um Pearl Harbor econômico enquanto escritores


editoriais continuam a discursar sobre princípios de “livre comércio"
que não são observados por nenhuma outra nação, principalmente o
Japão. (Tradução livre deste autor).1

1
It is all too evident that more, much more than the
American merchant marine, is falling into foreign hands. So, too, has
our steel industry, our shipbuilding industry, our automobile industry,
our electronics industry, our textile industry ... the list goes on and on.

We are suffering an economic Pearl Harbor while editorial writers


continue to discourse on the principles of ''free trade'' which are
observed by no other nation, particularly Japan. (THE NEW YORK
TIMES, Out, 21, 1981, p. 30).
14

Toda a multiculturalidade em Blade Runner, representava nada menos que a


preocupação da economia japonesa vir a dominar a americana, pois já que o filme se passa em
uma distopia: um país como os Estados Unidos - extremamente patriota, orgulhoso de suas
tradições e seu “estilo vida”- vir a perder sua própria identidade, trazia a tona uma
insegurança enraizada profundamente nos valores fundamentais do povo estadunidense, como
a matéria do New York Times dava a entender:

Está se tornando cada vez mais evidente que a relação econômica dos
Estados Unidos com o Japão está sendo a de uma colônia, uma
província distante disponibilizando recursos naturais para uma
indústria estrangeira superior. (Tradução livre deste autor).2

3. REFERÊNCIAS VISUAIS

3.1 FILMES NOIR

Blade Runner pode ter sido revolucionário na criação do visual e clima


cyberpunk, porém as referências utilizadas por Ridley Scott, estão bem nítidas. Começando
pela atmosfera do filme, que deve muito do seu clima sombrio e estética escura aos filmes
noir dos anos 30 e 40. Noir se tratava de filmes de detetive, caracterizados por um pessimismo
que ia contra a otimista Hollywood da época, assim como o movimento New Wave
contrariava as otimistas histórias de ficção científica de sua época. Talvez por isso esses dois
gêneros tenham se casado tão bem na formação do Cyberpunk. Pode se afirmar que Blade
Runner se trata de filme Noir, como diz Suppia:

Em Blade Runner encontramos boa parte dos principais componentes


de um filme noir citados acima: o detetive ingênuo ou desavisado, as
mulheres fatais, o vilão ambíguo ou psicologicamente complexo, o
crime, a iluminação low key, contrastes de massas, uma cidade
tortuosa, sorumbática e misteriosa, etc. Retomemos aspectos de Blade

2
It is becoming more and more evident that the economic relationship of the
United States with Japan is getting to be that of a colony, a distant province supplying natural
resources to an industrial parent state. (THE NEW YORK TIMES, Out, 21, 1981 p. 30).
15

Runner tendo em vista a temática e estilização do visual do cinema


noir tradicional. (SUPPIA, 2002 p.77).

E nas questões estéticas, o filme ainda compartilha de características dos filmes


noir, como, os longos planos de uma metrópole decadente, lotada e tomada pela discórdia
social; ambientes tomados por fumaça de cigarro e uma chuva interminável; todas essas
características podem ser identificadas, nos primeiro minutos de Blade Runner. Reforçando
essa ideia de uma cidade “perdida”, no script original do filme, o plano aéreo inicial que
mostra a Los Angeles de 2019, se refere a cidade como “Hades”, esse sendo o purgatório da
mitologia grega, dando a entender que a metrópole do filme é um verdadeiro inferno
cibernético.

Figura 1 - Nighthawks

Fonte: Nighthawks. Edward Hopper, 1942

No que se refere à atmosfera Noir, uma obra que consegue retratá-la muito bem é
a pintura “Nighthawks” de Edward Hopper. A obra foi uma das grandes referências de Ridley
Scott para Blade Runner, tanto que o próprio mantinha uma cópia da pintura sempre à vista da
equipe de produção, para demonstrar a atmosfera que ele almejava para o filme.
16

3.2 METROPOLIS

Figura 2 - Fragmentos do filme Metropolis

Fonte: Metropolis. Fritz Lang, 1927

É fácil de perceber, também, que Blade Runner faz referência ao filme de 1927,
Metrópolis, do diretor alemão Fritz Lang. Alguns planos do filme de Scott parecem releituras
coloridas do filme alemão, porém além da inspiração, existe algo que liga ambos diretores.
Em algum momento de suas vidas, antes de seus filmes futuristas serem produzidos, tanto o
alemão Lang, quanto o britânico Ridley Scott, viajaram a cidade de Nova York, Manhattan
causou um choque cultural em ambos os diretores. Enquanto Lang ficou maravilhado com a
silhueta vertical do local, Scott descreveu o lugar como “uma cidade em sobrecarga, prestes a
mergulhar no caos”. Nas duas metrópoles, a sociedade, assim como a arquitetura, se orienta
de forma vertical, com os ricos vivendo no alto, e os pobres nas partes mais baixas da cidade.
17

Porém, enquanto o filme de Lang mostra o ápice da industrialização e modernidade, a obra de


Scott vai por outra vertente, de acordo com SUPPIA:

Blade Runner cita notadamente Metropolis em sua recorrência ao


imaginário da cidade futurista. Contudo, Ridley Scott não se contenta
em apenas recriar a metrópole languiana, revestindo os elementos
estéticos precursoramente adotados no filme alemão com uma
“camada” pós-modernista, bem típica dos anos 80. A metrópole de
Blade Runner é claustrofóbica, poluída e decadente. (SUPPIA, 2002 p.
33).

3.3 MOEBIUS

No final dos anos 70, Ridley Scott conheceu uma revista chamada “Heavy Metal”,
onde eram publicados quadrinhos de ficção científica de variados artistas, e um deles era o
francês Jean Giraud, conhecido pelo pseudônimo Moebius. Scott ficou fascinado com a
estética de Moebius, passando a tentar incorporá-la em suas obras, tanto que foi o próprio
francês que desenhou as roupas espaciais dos personagens do filme “Alien”, esse sendo o
primeiro filme de Ridley Scott inspirado na revista Heavy Metal. Porém a obra onde as
referências à arte de Moebius são mais evidentes, é no próprio Blade Runner.

Figura 3 - The Long Tomorrow

Fonte: The Long Tomorrow. Jean Giraud “Moebius”, 1976


18

Figura 4 - L’Incal

Fonte: L’Incal. Jean Giraud “Moebius”, 1980

Analisando e comparando as artes das histórias de Moebius com a estética


cyberpunk de Blade Runner, é notável a inspiração de um sobre o outro. As cidades nas obras
são verticais e tomadas pela tecnologia, com estruturas que se amontoam umas em cima das
outras por consequência da superpopulação, esse amontoado de casas e edifícios cria um
caráter de “lugar nenhum”, onde as noções de espaço e tempo se perdem em meio ao
turbilhão tecnológico.

3.4 SYD MEAD

Um dos principais responsáveis pelo visual de Blade Runner, foi o artista


conceitual neofuturista Syd Mead. Ridley Scott descobriu o seu trabalho a partir de um livro
de arte intitulado “Sentinel”, este contendo criações do imaginário futurista do artista. Syd
Mead, o artista, trabalhou com Ridley Scott na criação das artes conceituais dos cenários de
Blade Runner, sendo originalmente chamado para desenhar apenas os spinners, os carros
voadores do filme, Mead acabou ficando responsável por desenhar grande parte dos cenários
do longa.
19

Figura 5 - Artes do livro Sentinel

Fonte: Sentinel. Syd Mead, 1978

Figura 6 - Artes Conceituais de Blade Runner por Syd Mead


20

Fonte: https://www.iamag.co/the-ar/

“Eu não tenho a intenção de ‘definir o futuro’ disse Mead em uma entrevista a
respeito de seu trabalho, “O que eu faço é pensar porque as coisas são do jeito que são,
combinar esse conhecimento com como as coisas eram, são, e podem ser trazidas para
realidade. Isso define o visual das coisas do ‘futuro’. Meus cenários são visões fantasiosas da
combinação de várias camadas de conhecimento e suposição”. Syd Mead era formado em
design industrial, e isso teve grande influência em seu trabalho. Suas artes de veículos ou de
outros maquinários futuristas pareciam plausíveis, pois Mead pensava no resultado final em
sua totalidade, imaginando como aquela criação realmente funcionaria se existisse, usando
como base a tecnologia existente da época; isso pode ser visto em Blade Runner, o visual do
filme passava uma sensação de anacronismo, um futuro com uma tecnologia nunca antes
vista, porém que ao mesmo tempo aparentava ser extremamente familiar.

4. ANÁLISE DE CENA

Para se fazer uma análise do cenário externo de Blade Runner, a segunda cena do
filme consegue envolver todas as características que marcaram tanto o visual do longa. Em
questão de narrativa, a cena em questão é bem simples; é mostrado o protagonista, Deckard,
na parte baixa da cidade, ele está lendo um jornal em frente a uma loja. Em seguida, se dirige
até uma barraca de comida japonesa e então pede algo para comer quando dois policiais o
abordam, anunciando que ele está preso, Deckard entra no carro de um dos policiais, e os dois
voam até a delegacia. Aparentemente a cena serve apenas para levar o protagonista de um
ponto ao outro, mas na verdade ela é muito mais que isso. Através do cenário, o filme já está
21

contando ao espectador, uma história sobre aquele futuro distópico, e a análise a seguir
detalha quais os meios utilizados por Ridley Scott para contar essa história.

Figura 7 - Conjunto de Frames - Blade Runner

Fonte: Blade Runner, Ridley Scott, 1983

No plano inicial da cena, vemos que os edifícios preenchem todo o cenário, não é
possível ver nada além das fachadas dos prédios, e mesmo mostrando um ambiente vasto, o
filme consegue passar também uma sensação de claustrofobia. Pontos luminosos estão
espalhados por todo o ambiente, as luzes dos prédios e dos carros voadores se mesclam nesse
labirinto de concreto e aço. Se cada ponto de luz em tela representa pelo menos uma pessoa, a
cidade está evidentemente em sobrecarga. Mas o que mais chama atenção no cenário, é um
painel digital que cobre toda a fachada de um arranha-céu, e nele passa um vídeo publicitário
de uma mulher consumindo algo semelhante a uma pílula; enquanto o ambiente é soturno,
sem vista para nenhuma outra paisagem, o rosto gigante se destaca naquele espaço, causando
desconforto e demonstrando como a publicidade é invasiva nesse mundo.
Em 1983, no ano de lançamento do filme, quando se falava em um cidade nos
Estados Unidos, lotado de arranha-céus, painéis publicitários gigantescos e com incontáveis
luzes, a cidade que vinha em mente não era Los Angeles, mas sim Nova York. A influência da
metrópole americana é nítida, e isso vai da reação do diretor Ridley Scott, na primeira vez que
visitou a cidade. Como afirma SUPPIA:
22

Depois de ter se formado no Royal College of Arts, de Londres, e lá


ter feito um filme experimental, Boy and Bicycle, Scott ganhou uma
bolsa de estudos que lhe rendeu trabalho como designer gráfico em
Nova York - a qual, como o próprio diretor observa, lhe pareceu “uma
cidade em sobrecarga, prestes a mergulhar no caos”. Tempos depois,
Scott retornou a Londres e tornou-se diretor publicitário, realizando
mais de 3000 comerciais de televisão na Grã-Bretanha e Estados
Unidos. Nesse período, certa vez Scott chegou à Nova York de
helicóptero, vindo do aeroporto Kennedy e pousando na cobertura do
edifício da Pan Am. A experiência de ver a ilha de Manhattan de
helicóptero inspirou a sequência de abertura de Blade Runner…
(SUPPIA, 2002 p. 43, 44).

Figura 8 - Conjunto de Frames - Blade Runner

Fonte: Blade Runner, Ridley Scott, 1983

Agora na parte baixa da cidade, a perspectiva muda totalmente, se de cima ela era
uma cidade sobrecarregada, debaixo ela é intimidante. Ao fundo os arranha-céus se erguem
até onde não se pode mais enxergar, e mesmo com diversas luzes, o cinza prevalece, é uma
visão que angustia e oprime. Se vê também uma estrutura difícil de identificar ao certo. Essa
formação contém um emaranhado de fios, tubulações na vertical que lembram chaminés, uma
extremidade que se estende horizontalmente com um parapeito ao fim dela. Poucas luzes
iluminam essa estrutura que representa bem a estranheza do ambiente.
A estrutura descrita antes apresenta um design que remete a ambientes industriais,
essa referência visual está relacionada com a juventude do diretor, Ridley Scott. Quando mais
jovem, Scott, morou por um longo período de tempo na região de Teesside, na Inglaterra,
23

local conhecido pelo trabalho industrial. Scott já admitiu ter inspirado a cena de abertura de
Blade Runner, na antiga usina química de Teeside.

Figura 9 - Plano Inicial de Blade Runner

Fonte: Blade Runner, Ridley Scott, 1983

Figura 10 - Vista da Antiga Usina Química de Teeside

Fonte: https://www.gazettelive.co.uk

Não só no início, mas ao longo de todo filme, há áreas que remetem a essa
aparência industrial. Isso vai de encontro com toda a poluição e descaso ambiental que o
cenário do filme apresenta. Também conversa com questões do grande domínio empresarial,
como se toda a cidade fosse uma grande indústria.
24

Figura 11 - Conjunto de Frames - Blade Runner

Fonte: Blade Runner, Ridley Scott, 1983

Pode-se notar o uso de luzes néon pelo cenário, com a predominância de duas
cores, azul e vermelho, alcançando uma atmosfera entre frio e quente, a umidade e fumaça
presente no local ajudam a espalhar as cores por todo o cenário. Se observa também
ideogramas orientais na vitrine da loja de eletrônicos, passando um pouco da
multiculturalidade da cidade. Remover o aspecto de iluminação natural foi uma importante
escolha estética feita por Ridley Scott, para retratar o futuro como um lugar que teve a
naturalidade removida do mundo que ocupa, o transformando em uma distopia totalmente
industrializada. A cidade tem sua própria luz do dia eterno, essa escolha contribui para a
questão de artificialidade que Blade Runner aborda.
O tipo de iluminação utilizada no filme, com forte contraste entre luz e escuridão,
é muito característica dos filmes de gênero noir, que foi uma das maiores inspirações de Scott
25

para com a ambientação do filme. Filmes noir são famosos por suas cenas escuras, e
iluminação bastante específica, como explica Thiago Cardassi Sanches:

De acordo com Place e Peterson (2006), a estética de iluminação noir


é produzida em low-key (pouca claridade), por apenas um foco
direcionado de luz. Sem a composição das luzes auxiliares obtém-se
uma imagem na qual o contraste entre claro e escuro é
demasiadamente acentuado, conferindo um tom dramático ou sinistro
à cena. Em Blade Runner a iluminação, quase sempre artificial (neons,
faróis, postes), não permite que os personagens se revelem por
completo. (SANCHES, 2015 p. 88, 89).

Esse tipo de iluminação combinou perfeitamente com o conceito utilizado em


Blade Runner de uma cidade onde é sempre “noite”, porém está sempre coberta por uma
iluminação artificial.

Figura 12 - Conjunto de Frames - Blade Runner

Fonte: Blade Runner, Ridley Scott, 1983

Na imagem acima se observa um dirigível voando sobre a parte baixa da cidade e


nele há diversas pontas salientes luminosas. Um telão publicitário que diz “Off World”, se
tratando de um convite para as pessoas tentarem uma nova vida nas colônias espaciais. Outra
característica que chama atenção são os feixes de luzes apontando para baixo, como se
procurasse por alguém, não permitindo que ninguém escape de ver os anúncios que a
aeronave carrega.
26

Hoje em dia a ideia de colonização espacial parece fazer parte de um futuro muito
distante, porém quando colocado do ponto de vista de 1983, a suposição de poder morar fora
da terra em um futuro próximo, parecia cada vez mais real. No começo dos anos 80, o ônibus
espacial Columbia estaria fazendo suas primeiras missões, sendo a primeira em 1981; desde
1975 que nenhum homem ia ao espaço, o sonho da exploração espacial retornava. Isso pode
ter tido influência ao se imaginar colônias espaciais no futuro de 2019 em Blade Runner.

Figura 13 - Conjunto de Frames - Blade Runner

Fonte: Blade Runner, Ridley Scott, 1983

O multiculturalismo do filme é muito marcante, como já observado antes,


podemos ver ideogramas ocidentais na vitrine da loja; o estabelecimento onde o protagonista
se encontra na segunda foto é de comida tipicamente japonesa, parte dos guarda chuvas são
tipicamente de estética oriental, e a presença de pessoas asiáticas nas ruas é grande. Outro
27

detalhe é o movimento constante de pessoas nas ruas, reforçando apenas a superlotação dessa
cidade, e que também remete às cidades com grande densidade populacional na Ásia.
Os detalhes espalhados pelo cenário fazem com que a Los Angeles do filme
lembre mais um centro urbano no Japão, do que a própria cidade americana em si. Isso se dá
pelo crescimento comercial do país asiático na época de produção do filme, com diversas
indústrias estadunidenses sendo apropriadas, inclusive estúdios de Hollywood. A mídia
americana alegava que o país estaria sofrendo um “Pearl Harbor econômico”, fazendo
referência ao ataque militar do Japão a uma base naval dos Estados Unidos durante a segunda
guerra mundial. Sabendo desse contexto histórico, ao se observar essa multiculturalidade tão
presente do filme, fica claro que no futuro de Blade Runner, o Japão dominou a economia a
ponto de fazer com que os Estados Unidos perdessem a própria identidade.

Figura 14 - Conjunto de Frames - Blade Runner

Fonte: Blade Runner, Ridley Scott, 1983


28

Algo que não passa despercebido é o descuido e desgaste urbano. As ruas são
sujas, com lixo largado pelo chão, pichações nas paredes, e estruturas desgastadas como o
pilar que aparece nas imagens acima, que é de uma formação mais antiquada, contrastando
com toda a parte mais futurista ao redor. No canto esquerdo da segunda imagem se observa
uma cabine onde está escrito, ”VID PHON”, uma cabine de vídeo chamada que substituiu as
antigas cabines telefônicas. Vale notar que a chuva continua constante, e isso se mantém
durante todo o filme.
Blade Runner apresenta uma visão pessimista do futuro, em que as grandes
corporações causaram danos incalculáveis ao planeta, isso se reflete em suas chuvas
constantes, que tem como objetivo representar os efeitos de altos níveis de poluição de Los
Angeles, pois quanto mais quente a atmosfera, mais humidade ela comula, fazendo assim com
que chova. Na época de produção do filme, a agência de proteção ambiental dos Estados
Unidos estava sofrendo diversos cortes, pelo fato de o presidente da época, Ronald Reagan,
acreditar que os cuidados ambientais não passavam de um fardo econômico.3 Foram
permitidas também a locação de dezenas de milhões de acres para o desenvolvimento de
petróleo, gás e carvão. Então, por mais que a chuva no filme pareça estar lá apenas por uma
escolha estética, na verdade está representando todo o descaso ambiental de uma época.

Figura 15 - Conjunto de Frames - Blade Runner

3
LITTLE, Amanda. A look back at Reagan’s environmental record. Grist,
2004. Disponível em: <https://grist.org/article/griscom-reagan/>.
29

Fonte: Blade Runner, Ridley Scott, 1983

De dentro do carro que leva Deckard até a delegacia, é possível observar no


horizonte a torre da Tyrell Corporation, a megacorporação que comanda Los Angeles no
filme. Mesmo distante, a construção é marcante, estando sempre sobre tudo e todos, servindo
de lembrete do poder que a empresa tem sobre a cidade. E da mesma maneira que não há
escapatória da presença empresarial, também não há da publicitária, pois em um ambiente
cinza em que é sempre noite, as publicidades luminosas e coloridas é o que chama atenção.
Observando o cenário dessa megalópole, em que uma torre empresarial gigantesca serve pra
lembrar quem está no comando, e que tem como únicas paisagens o consumismo, é fácil
concluir que a cidade vive o capitalismo desenfreado.
Como já dito anteriormente no capítulo sobre o contexto econômico da época de
produção do filme, em 1980 assumiu a presidência dos Estados Unidos o republicano Ronald
Reagan, trazendo com ele uma promessa de mudanças para com a economia estadunidense.
As políticas econômicas do governo de Reagan se sustentavam em quatro pilares: reduzir
gastos do governo; reduzir impostos para pessoas físicas, empresas e investimentos; reduzir
regulamentação sobre empresas na economia geral; controlar oferta monetária para reduzir a
inflação. A intenção era reduzir a intervenção do estado sobre a economia, pavimentando o
caminho para grandes empresas crescerem ainda mais. Se em Blade Runner, uma
megacorporação é “dona” da cidade, e publicidades estão por todos os lugares, mais uma vez
é apenas um reflexo das políticas que estavam sendo empregadas nos Estados Unidos.
30

5. FUTURO FICTÍCIO X PRESENTE REAL

Blade Runner não é um filme que tenta prever o futuro, ele apenas faz suposições,
e por mais que não sejam precisas, algumas das ideias apresentadas no filme realmente vieram
a se tornar realidade, porém de maneiras diferentes. As mudanças climáticas podem não
causar chuvas intermináveis em Los Angeles, porém, o estado da Califórnia sofre
frequentemente com incêndios florestais por culpa do aquecimento global. Não temos
megacorporações comandando cidades, com suas torres imponentes em formato de pirâmide,
nos rodeando de gigantescos anúncios luminosos enquanto caminhamos na rua; na verdade as
grandes empresas comandam o mundo através de tudo que consumimos. Estamos
frequentemente sendo bombardeados por publicidades em nossos celulares e computadores.
Se você comenta com alguém que está pensando em comprar alguma coisa, logo aparece em
seu celular um anúncio de exatamente o mesmo produto, em função da vigilância permanente
das megacorporações que não tomaram conta somente dos lugares físicos onde vivemos, na
verdade elas tomam conta, cada dia mais, da nossa vida simbólica e imaginária. Em Blade
Runner, o Japão dominou a economia, e mesmo isso não tendo acontecido de fato, outro país
oriental disputa diretamente com os Estados Unidos pelo domínio econômico, esse sendo a
China. No cinema, o mercado chinês já superou o estadunidense, fazendo estúdios de
Hollywood tentarem ganhar cada vez mais popularidade no país asiático. Porém, mesmo com
a crescente econômica da China, nenhum país chegou a dominar a cultura dos Estados
Unidos, na verdade foram eles mesmos que fizeram uma invasão cultural por todo o mundo.
Usando o Brasil como exemplo, onde desde criança estamos acostumados a consumir
conteúdos dos EUA, como: filmes, séries, músicas, etc., produtos estes que apresentam um
estilo de vida diferente do nosso, fazendo com que muitos passem a almejar um certo padrão
que não condiz com a realidade brasileira. A respeito desta invasão cultural, Júlia Falivene
Alves afirma:

Dessa maneira, sem que os norte-americanos se apropriassem do


nosso território, tivessem que vir pessoalmente até o Brasil ou
destruíssem fisicamente seus habitantes, como no passado fizeram os
portugueses, passamos a sofrer quase o mesmo processo de invasão,
dominação e colonialismo cultural experimentado pelos índios após
31

1500. Tratava-se agora de uma “invasão teleguiada”, sem a presença


do invasor, que, mesmo lá da América do Norte, fazia chegar até nós
seus produtos culturais. (ALVES, 2012 p. 21).

Por mais que o cenário do filme seja admirável pelo seu conceito futurista, ele é
desolador e depressivo. Como dito antes, o roteiro original do filme se referia à cidade de
“Hades”, como se as pessoas estivessem vivendo em uma espécie de inferno. O planeta está
tão inabitável, que a melhor opção é migrar para as colônias espaciais. Pelo menos na ficção
os humanos tem pra onde fugir.
Muito mais do que tentar prever um futuro, Blade Runner previu o sentimento de
desesperança, de viver constantemente com medo. Não vivemos em uma distopia tecnológica,
mas vivemos em uma distopia discursiva: desde 2019 passamos por uma pandemia que
resultou em milhões de mortos, e ainda sim existem muitos que não se importam, líderes
mundiais que fazem pouco caso, e não só em relação ao vírus, mas também a diversas outras
questões ambientais. A ciência parece não ser mais levada em consideração. Blade Runner
causava um sentimento depressivo, ao se mostrar como nosso mundo e meio ambiente se
apresentaria em 2019: uma cidade opressiva, poluída, sem natureza, superlotada, desgastada,
sombria e desnorteante, que tenta maquiar sua falta de vida através das luzes artificiais, mas
que na verdade só retrata a artificialidade daquele mundo;
Hoje, em 2021, para encontrar um lugar assim não é necessário ir até Los
Angeles, é só ir até São Paulo. Para se deprimir basta acessar qualquer portal de notícias; se
no filme é difícil viver em um planeta devastado, na realidade de 2019 é difícil conviver com
tanta desinformação. O longa de Ridley Scott não tentou fazer previsões, fez suposições do
que o futuro poderia ser, mas em algo ele foi preciso, previu o sentimento de viver em ameaça
constante, de querer ir embora, mas infelizmente no nosso caso, ainda não temos como.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na época de lançamento de Blade Runner, o filme foi inovador para ficção


científica. Era certamente um dos filmes mais belos já feitos. Ele não só mudou a maneira
como o mundo se parece, mas principalmente, mudou a maneira como olhamos para o
32

mundo. Muitas pessoas acreditam que quando se trata do gênero ficção científica, é necessário
que haja uma relação verificável com reais possibilidades científicas, com projeções
plausíveis. Mas não levam em consideração que mesmo com “científica” na definição, ainda
se tratam de histórias fantasiosas, principalmente as que se passam no futuro. Simplesmente
não é possível prever o amanhã, quem dirá anos à frente. Por isso que até o lançamento de
Blade Runner, grande parte dos filmes futuristas tecnológicos estavam mais interessados na
fantasia do que qualquer diálogo com a realidade, esse foi um dos pontos que fez o longa de
Ridley Scott se destacar, imaginando um futuro mais crível. Como relata o jornalista Chris
O’Falt para o site Indiewire, a respeito de um dos principais artistas de produção de Blade
Runner, Syd Mead, a produção de um estado melancólico inédito:

A ideia de tecnologia mudando a aparência do mundo, não era


novidade na ficção científica, porém os primeiros esboços de Syd
Mead, com o artista de efeitos visuais, Douglas Trumball, e o designer
de produção Lawrence G. Paull, projetaram uma visão de futuro sobre
Los Angeles, mostrando como a reconhecível arquitetura, edifícios e
história de Los Angeles iriam prover a base na qual o futuro seria
construído. A amplamente copiada estética de “Blade Runner” é
frequentemente referida em termos bastante sucintos de “lixo-chique”
- essa sensação de que os artefatos antiquados do mundo que nós
conhecemos, iriam se tornar a fachada em ruínas ou a decadência
urbana do futuro. Não é só o fato de que reconhecemos Los Angeles,
mas também que nos aprofundamos no design de produção, com a
história de fundo sobre como o mundo mudou. (Tradução livre deste
autor)4.

4
The idea of technology changing the look a world was nothing new
to sci-fi, but Mead’s early sketches and work with VFX artist Douglas
Trumball and production designer Lawrence G. Puall projected a
vision of the future on top of Los Angeles – showing how the
recognizable architecture, buildings and history of Los Angeles would
provide a base that the future was built on. The widely copied “Blade
Runner” aesthetic is often referred to now in rather reductive terms of
“trash-chic” – that sense that the antiquated artifacts of the world we
know would become the crumbling facade or urban decay of the
future. It’s not only that we recognize Los Angeles, but ingrained in
the production design as the backstory of how the world has changed.
(O’Falt, Out, 3, 2017).
33

A maneira como o diretor imaginou aquele mundo, foi uma amálgama de suas
próprias referências e do momento político-social que os Estados Unidos estava vivendo. Ele
observou com calma o presente, para poder construir um futuro plausível. Através desta
pesquisa, foi possível identificar os fatores que levaram o cenário de Blade Runner a ser
concebido da maneira que foi. Ridley Scott reuniu referências dos mais variados meios
artísticos, e as aplicou num contexto político e socioeconômico dos EUA do governo de
Ronald Reagan, criando assim uma representação de futuro nunca antes vista. Toda a poluição
da cidade, que é representada através das chuvas intermináveis e fumaça espalhada pela rua,
combina com a atmosfera noir a qual o diretor almejava alcançar; o desnorteante amontoado
de construções dos quadrinhos de Moebius, vai de encontro com os Estados Unidos capitalista
de Reagan, fazendo assim uma cidade claustrofóbica tomada por anúncios publicitários, um
consumismo opressor, sufocante e invasivo; a Los Angeles de 2019 se inspira também na
megalópole Metrópoles -que por sua vez se baseia em Nova York- ao mesmo tempo que
recebe um aspecto oriental devido à crescente economia do Japão, na época de produção do
filme, criando assim uma cidade multicultural. Esses foram alguns exemplos de como Ridley
Scott mesclou os elementos que tinha à sua disposição, trabalhando as partes mais fantasiosas
de maneiras mais objetivas, enquanto levantava debates sobre o presente, falando do futuro.
Talvez seja por isso que nenhum filme de ficção científica, futurista tecnológico como é Blade
Runner, tenha feito o que o longa de Scott fez, justamente por tratarem, nesses filmes, os
cenários e os aspectos visuais apenas como questão estética, e não como materialização de
questões ideológicas e menos ainda como parte da história que a obra quer contar, como faz
Blade Runner.
_______________________________________________
34

7. REFERÊNCIAS

ALVES, Júlia. A Invasão Cultural Norte-Americana. São Paulo: Moderna. 2012.

AMBROSE, Dahlia. The Secrets Of Film Noir Photography. Light Stalking, 2020.
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2021

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Teeside. Teeside Live, 2017. Disponível em:
<https://www.gazettelive.co.uk/news/teesside-news/trailer-blade-runner-2049-takes-13007760
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<https://br.steelseries.com/blog/who-created-cyberpunk-sci-fi-224>. Acesso em: 03 mai. 2021

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2019. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=YK6IjJkjkiI&lc=UgyR0VDFpGEZJI-rK_d4AaABAg&
ab_channel=JustWrite>. Acesso em: 19 abr. 2021

LITTLE, Amanda. A look back at Reagan’s environmental record. Grist, 2004. Disponível
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Disponível
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4nibus_espaciais&oldid=60492858>. Acesso em: 28 mai. 2021

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O’FALT, Chris. 5 Ways ‘Blade Runner’ Changed the Look of Sci-Fi Forever. Indie Wire,
2017. Disponível em:
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36

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