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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020

KITSCH, CONSUMO E POLÍTICA: a publicidade das lojas


Havan e a estética do bolsonarismo 1
KITSCH, CONSUMPTION AND POLITICS: Havan’s
advertising and the aesthetic of bolsonarism
Rodrigo Cássio Oliveira 2

Resumo: O conceito de kitsch teve papel importante nas teorias estéticas e


comunicacionais do século XX, e reivindica atualizações no presente. Esse trabalho
revisita algumas destas teorias para analisar três vídeos publicitários postados nos
canais oficiais das lojas Havan e do seu proprietário Luciano Hang no YouTube.
Nosso objetivo é demonstrar a utilidade do conceito de kitsch para estudar a relação
entre a publicidade da Havan e o contexto político do Brasil atual. Concluímos que
o posicionamento da marca está alinhado à perspectiva política do presidente Jair
Bolsonaro. O kitsch opera como um elo entre a identidade corporativa da empresa e
a identidade política do bolsonarismo.

Palavras-Chave: Kitsch. Publicidade. YoutTube.

Abstract: Kitsch had an important role in aesthetic and communication theories of


20th century, and now requires an update approach. This work reviews some of these
theories to analyze three videos published on the official channels of Havan and its
owner Luciano Hang on YouTube. Our goal is to demonstrate the usefulness of kitsch
to study the relationship between Havan’s advertising and the political context in
Brazil currently. Our conclusion shows that the brand positioning of Havan is in line
with Jair Bolsonaro’s political view. Kitsch works as a link between the corporate
identity of Havan and the political identity of bolsonarism.

Keywords: Kitsch. Advertising. YouTube.

1. Introdução
O kitsch é um conceito do pensamento estético que reflete questões sociológicas e culturais.
Não por acaso, a literatura sobre este conceito é rica em considerações sobre a sociedade e a
cultura. No campo da comunicação, a assimilação das teorias do kitsch foi marcada por uma
confluência entre os problemas de pesquisa em estética e sobre a formação das chamadas
sociedades de massa. Neste trabalho, revisitamos algumas das principais teorias do kitsch, de

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Experiência Estética do XXIX Encontro Anual da
Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020.
2
Professor Adjunto da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC) da Universidade Federal de Goiás (UFG),
Doutor em Estética e Filosofia da Arte pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) com pós-doutorado
em Lexicologia e Estética pela Università di Pisa (UNIPI-Itália), rodrigocassio@ufg.br.

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modo a sublinhar aspectos que nos parecem importantes para uma assimilação do conceito
nos dias de hoje.

Nosso objeto é o material publicitário produzido pela rede de lojas Havan e divulgado na
plataforma de vídeos YouTube. Selecionamos três vídeos publicados em 2018 e 2019 para
serem analisados com base no conceito de kitsch, de modo a averiguar a sua pertinência e
eficácia na atualidade.

A campanha publicitária da Havan tem um conceito fortemente associado aos movimentos


populares de direita que emergiram no Brasil recente e embasaram a eleição de Jair
Bolsonaro, em 2018, como o primeiro presidente militar de cariz conservador na história da
Nova República. Essa associação não é implícita nem sutil, mas sim explícita e enfática, e
inclui a propagação de vídeos em que o proprietário e garoto propaganda da Havan, Luciano
Hang, aparece junto ao presidente3, ou define a si mesmo como um empresário ativista4.

A análise dos vídeos que selecionamos demonstra a relação entre a ‘estética do bolsonarismo’
e o kitsch adotado pela Havan na construção da sua identidade corporativa. Seja no material
publicitário, seja na manifestação dos movimentos de direita nas ruas, seja ainda na
construção da imagem pública de Jair Bolsonaro e de seus aliados, o kitsch é um elemento
constante do universo de imagens que tomamos como referência. Por isso, os estudos de
comunicação e estética podem se beneficiar muito do resgate deste conceito para a
compreensão do atual momento da cultura política brasileira.5

3
As aparições de Hang junto a Bolsonaro ocorrem tanto em vídeos postados no canal oficial do empresário
como em lives do próprio presidente, nas quais a presença de Hang pode ser vista como uma prática de
merchandising para a Havan. Cf. ‘Falando de otimismo com o presidente Bolsonaro | Ô Vidão’. Disponível em
<https://youtu.be/slwn9_kxI5g>. Acesso em: 24 fev. 2020. Cf. também ‘Live do presidente Bolsonaro com
Luciano Hang, proprietário da Havan’. Disponível em: <https://youtu.be/HnFCXSf5TCY>. Acesso em: 24 fev.
2020.
4
Cf. ‘Retrospectiva de 2019 | O Brasil que queremos’, no canal do YouTube de Luciano Hang. Disponível em:
<https://youtu.be/y6QEa8gFb6w>. Acesso em: 24 fev. 2020.
5
Usamos a expressão ‘estética do bolsonarismo’ em referência ao seu emprego no debate público sobre a
construção da imagem pública do governo Bolsonaro. No entanto, esse debate tem sido feito com pouco rigor e
rara fundamentação em teorias estéticas. O resultado são análises impressionistas e pouco elaboradas, como a do
artigo na Folha de São Paulo assinado por Pollyana Quintella (2020). Ao ignorar o conceito de kitsch, essas
análises cometem o erro de julgar que a estética do bolsonarismo é alguma coisa nova. Também na Folha de São
Paulo, Pedro França (2020) comparou essa estética com as vanguardas artísticas. Uma consulta ao extenso
debate sobre kitsch e vanguarda mostraria que a estética do bolsonarismo, na verdade, tem características
opostas àquelas que França tentou descrever.

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2. Revisitando o kitsch

Derivado da expressão alemã verkitschen, o kitsch foi difundido como conceito teórico nas
primeiras décadas do século XX. O termo reverbera o significado pejorativo original do
alemão, ou seja, a referência a algum tipo de engano, trapaça, fraude ou falsificação. A sua
inserção no discurso estético aponta para a percepção do mau gosto nas artes, referindo-o a
obras de qualidade inferior, ou que sequer deveriam ser consideradas obras de arte
propriamente ditas.

Por essa via, as menções habituais ao kitsch, no âmbito das teorias da arte e da cultura,
tendem a empregá-lo para tratar da artificialidade em detrimento da autenticidade, assim
como da realização de cópias, imitações ou simulações que substituem a originalidade das
verdadeiras formas artísticas.

Parte da origem deste emprego comum do conceito está ligada às filosofias do gosto do
século XVIII, a exemplo das versões muito conhecidas de Hume (1975) ou Kant (2016),
muito influentes no debate estético daquele momento. Outra parte, que também reporta a uma
herança filosófica moderna, diz respeito à popularização do romantismo em meados do
mesmo século, com o surgimento de um fenômeno muitas vezes nomeado de
‘sentimentalismo’, isto é, uma versão simplificada do idealismo romântico na literatura, na
música ou em outras artes.

Antes de dar substância ao kitsch, a mutação do romantismo produziu expressões artísticas


bastante populares que mantiveram o forte acento emotivo da experiência estética romântica,
mas descartaram a sua complexidade e esmero formal. Hermann Broch foi o intérprete do
kitsch que mais aprofundou essa interpretação: “nós poderíamos dizer que o romantismo, sem
ter por isso se tornado ele mesmo kitsch, é a mãe do kitsch, e há momentos em que a criança
se parece tanto com sua mãe que não é possível ver diferença entre elas” (BROCH, 1973, p.
62, tradução nossa).

Quando suspendemos a disputa terminológica que polemizou o conceito de massa para lidar
com as transformações culturais que configuraram o século XX, o kitsch pode ser visto como
uma manifestação estética indissociável de certa noção de cultura popular que ainda
repercute na nossa era (OLALQUIAGA, 1998). Em sentido amplo, ele é uma maneira de ser

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de sociedades capitalistas que atingiram certa altura do processo de industrialização e


desenvolveram um mercado cultural ativo.

Tal modo de ser se expressa em um sem número de objetos que essas sociedades produzem e
põem em circulação para consumo pelas camadas médias da população. Por isso, o kitsch
está presente no mundo da arte assim como na produção de artefatos culturais bem menos
prestigiosos, como peças de souvenir encontradas em lojas para o público turístico, ou em
toda a sorte de quinquilharias e bugigangas que recheiam as casas dos consumidores. Para
Abraham Moles (1972, p. 10), “o kitsch é a mercadoria ordinária (Duden), é uma secreção
artística derivada da venda dos produtos de uma sociedade em grandes lojas que assim se
transformam, a exemplo das estações de trem, em verdadeiros templos”.

A emergência do kitsch está relacionada à ascensão de classes em sociedades que, de alguma


maneira, vivenciam ou admitem a mobilidade social. Este é um fenômeno cuja história
remete ao clichê de comportamento dos nouveau riche, ou novos ricos, para tratar aqui, de
maneira genérica, sobre os casos de elevação do padrão de vida dentro de uma estrutura
social em diferentes momentos na história. Por essa razão, o kitsch teria vindo à tona junto de
um modelo de desfrute da vida que está arraigado no conforto produzido pelos avanços
técnicos da sociedade. Não por acaso, ele pode ser visto facilmente na maioria dos espaços
consagrados ao lazer, como shoppings centers, circuitos turísticos, clubes de convivência
social etc.

Algo semelhante ao surgimento do kitsch teria ocorrido quando da formação do barroco na


Europa do século XVII. O barroco foi um estilo artístico e uma configuração cultural que
promoveu grandes mudanças no continente europeu, e, assim como o kitsch, foi interpretado
nas primeiras décadas da sua história como uma novidade de extremo mau gosto, chegando a
ser visto como uma forma de degeneração dos valores clássicos renascentistas
(BURCKHARDT, 1961; CROCE, 1925; DUVIGNAUD, 1997).

As democracias modernas, por serem sociedades que ao menos em princípio admitem a


mobilidade social, fizeram com que o kitsch se tornasse uma categoria estética presente por
tempo indeterminado. Na medida em que houver a possibilidade de ascensão social, é
razoável acreditar que o kitsch concorrerá para ser protagonista da experiência estética do
consumidor médio. Isso significa que a sua atualização depende, basicamente, de condições

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econômicas que projetem novas classes ascendentes para uma faixa algo mais próxima do
topo da pirâmide social.

Visto como uma fonte de signos para essas classes que ascendem, o kitsch pode ser analisado
como uma categoria que promove a distinção social pelo consumo. A sua tônica está na
valoração dos consumidores, e não dos objetos dados ao consumo. O kitsch contribuiu,
assim, para eliminar o princípio estético da beleza das culturas que ele domina. As
dificuldades que o belo impõe para as formas de arte mais sofisticadas e exigentes – como
uma meta, um desafio, uma realização para artistas e fruidores – são trocadas pela facilidade
de uma fruição sem critérios, alimentada mais pelo desejo de pertencimento a um grupo
social que pelo interesse real na experiência estética.

Esse ponto de vista é compartilhado por teóricos de diferentes matizes intelectuais. O filósofo
conservador Roger Scruton, por exemplo, destaca o distanciamento do kitsch em relação à
beleza ao sublinhar que a sua presença, já desde o século XVIII, é coetânea ao processo de
dessacralização da cultura ocidental: “o kitsch é o mofo que se põe sobre a cultura viva
quando as pessoas preferem as armadilhas sensíveis da crença em vez daquilo em que de fato
se crê” (SCRUTON, 2009, p. 191, tradução nossa).

O kitsch resultaria, portanto, de um empobrecimento da experiência estética. Ele expressa a


circulação intensa, o acúmulo incessante e a falta de critérios para harmonizar os objetos. O
empenho pela inovação, contra o kitsch, teria fundamentado a sua oposição pelas vanguardas
artísticas, sendo este um dos tópicos mais estudados pelas análises teóricas do conceito.

As contribuições do crítico de arte norte-americano Clement Greenberg sobre este tema, em


seus ensaios de estética, foram fundamentais para alicerçar boa parte do debate sobre o kitsch
e a cultura artística do século XX. Embora a sua visão tenda a ser acusada de elitismo pelos
estudos culturais que predominam hoje, Greenberg continua a ser o autor que nos oferece
uma das melhores portas de entrada para a avaliação formal dos objetos kitsch, com aguda
atenção ao sentido social do seu desenvolvimento:

Para atender à demanda do novo mercado, uma nova mercadoria foi criada: a cultura
Ersatz, o kitsch, destinado àqueles que, insensíveis aos valores da cultura genuína,
ainda assim estão famintos pela diversidade que somente algum tipo de cultura pode
proporcionar. [...] A precondição para o kitsch, uma condição sem a qual ele seria
impossível, é a completa disponibilidade de uma tradição cultural plenamente

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amadurecida, de cujas descobertas, aquisições e autoconsciência o kitsch pode tirar


vantagem para os seus próprios fins. (GREENBERG, 2013, p. 34)

A interpretação de Greenberg, acima, acena para o caráter simulatório dos produtos do kitsch.
Ele está na apropriação que o kitsch faz da cultura considerada autêntica. Essa dimensão do
kitsch também é comentada por Jean Baudrillard em seu livro Sociedade do Consumo:

O kitsch opõe à estética da beleza e da originalidade a sua estética da simulação:


reproduz em toda parte os objetos maiores ou mais pequenos que a natureza, imita os
materiais (estuque, plástico, etc.), macaqueia as formas ou combina-se de maneira
discordante, repete a moda sem a ter vivido. (BAUDRILLARD, 2008, p. 141)

A simulação, tal como a vê Baudrillard, pode ser relacionada ao avanço daquilo que, no
século XX, Benjamin denominou de reprodutibilidade técnica ou mecânica (BENJAMIN,
2008). A produção de arte em série, para atender aos mercados consumidores, estimulou a
categorização dos produtos, incluindo a variedade mais acessível, de baixo custo, que incorre
na imitação e na reprodução dos produtos de maior valor.

O kitsch, assim, se apresentou como uma alternativa franqueada aos consumidores que não
podiam acessar a ate autêntica e original, mas mesmo assim desejavam ser reconhecidos
como consumidores de arte. Essa é uma das razões pelas quais, nas artes plásticas e
decorativas, o kitsch é marcado pelo escambo de materiais, com emprego de opções de
menor valor para substituir as variantes nobres. A estante feita com chapas de material
compensado, mas pintada com filetes que imitam madeiras de lei; o papel de parede que
reveste um ambiente para que ele pareça construído com pedras de mármore; a bijuteria que
imita o ouro com máxima fidelidade e custa dez vezes menos; o prato branco de plástico que
decora a sala de jantar como se fosse porcelana grega – todos estes exemplos pronunciam o
kitsch e definem a sua presença banal no mundo do consumo.

As peças de miniatura – quase sempre colecionáveis, e, portanto, consumíveis em série –


também são exemplos comuns do kitsch. Os chaveiros com a torre Eiffel, a estátua da
liberdade ou a torre de Pisa são presentes que muitos amigos trocam depois de uma viagem
pela França, os EUA ou a Itália.

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A reprodução destes símbolos de cidades turísticas na forma de mini-objetos portáveis é uma


das grandes marcas do turismo moderno, atestando a relação entre o kitsch e o lazer. Mas
também as imitações em grandes proporções são objetos kitsch tipicamente presentes na
cultura atual. O exagero proposital, a falta de proporção e a dificuldade de harmonização com
o ambiente são características do kitsch em todo tipo de reprodução, e não somente naquelas
que geram miniaturas.

Um exemplo interessante, nesse sentido, pode ser visto no conceito arquitetônico de um


condomínio de classe média alta da cidade de Araporã, interior de Minas Gerais. Batizado –
em língua inglesa – de Paris Park Residencial Club, o empreendimento faz muito mais do que
imitar o nome da capital da França. Na via de entrada que dá acesso às residências, foi
construída uma estátua de médio porte que imita a torre Eiffel, principal símbolo de Paris e
um dos monumentos mais recriados na volumosa produção de quinquilharias kitsch em todo
o mundo.

Figura 1 – Material de divulgação do Paris Park Residencial Club.


Fonte: Página oficial do empreendimento na internet.
Disponível em: < https://www.facebook.com/parisparkresidencialclub>. Acesso em: 24 fev. 2020.

Uma das imagens de divulgação deste empreendimento na internet pode ser analisada como
um excelente exemplo de ocorrência do kitsch na publicidade do setor de imóveis no Brasil

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(FIG. 1). Ela expõe o ideal kitsch de conforto e felicidade no padrão médio de vida,
posicionando uma família com feições alegres ao lado da imitação da torre Eiffel. Aos olhos
do consumidor afeiçoado ao kitsch, essa associação com Paris não deve soar excessiva,
forçada ou fake; e se ela soar assim, isto não deve ser um problema. Ao contrário, a
simulação acrescenta valor ao empreendimento, justamente por ser kitsch.

Os grupos sociais que habitam estes espaços se empenham para distinguir-se das camadas
inferiores da sociedade brasileira, uma vez que o recurso ao kitsch promove uma conexão
simbólica, ainda que fake, com a cultura de países mais ricos e desenvolvidos. Não sendo
possível simplesmente sair do Brasil, como fazem os mais ricos que montam colônias
brasileiras em cidades como Miami (EUA), o kitsch oferece uma alternativa para que estas
classes intermediárias simulem a sua expatriação voluntária.

As incoerências que cercam a presença do kitsch no espaço urbano reforçam a interpretação,


elaborada por Abraham Moles, de que este se trata de um estilo definido pela ausência do
estilo. Para dizer de maneira mais objetiva, o kitsch ignora ou omite as regras de seleção e
composição que regiam o funcionamento dos estilos artísticos tradicionais. Moles denomina
essa característica de princípio de inadequação: “O objeto está sempre, e ao mesmo tempo,
bem e mal situado: ‘bem’, ao nível da realização cuidada e acabada, ‘mal’ no sentido de que a
concepção está sempre amplamente distorcida” (MOLES, 1972, p. 71).

Antes de concluir essa apresentação resumida do conceito de kitsch, é importante mencionar


que o desenvolvimento da cultura artística no século XX se encarregou de tornar mais
complexa a relação entre o próprio kitsch e a arte de vanguarda. O protagonismo de Marcel
Duchamp e Andy Wahrol na formação da arte contemporânea passou, entre outros pontos,
pela assimilação do kitsch, projetando o conteúdo do conceito em formas expressivas
originais e inovadoras.

Seja por meio dos ready-mades de Duchamp, famosos por terem provocado a questão da
definição de arte na estética do século XX; seja por meio da pop art, que despista a
originalidade e rejeita o caráter unívoco das obras que cria, as vanguardas acabaram
permitindo que o kitsch se tornasse um item de repertório utilizado para referências irônicas à
cultura de massas. Há uma vasta gama de possibilidades expressivas que se desdobraram a
partir da apropriação do kitsch por estes artistas, e o debate estético foi muito além do que

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Greenberg podia prever quando criticou o início desse processo no auge do primeiro
modernismo.

Nessa chave de discussão, é evidente que seria indevido se referir ao kitsch do mesmo modo
que fazemos quando analisamos o mercado de produtos culturais para consumo em larga
escala. Peças artísticas muito interessantes, como as que foram criadas pelo pintor russo
Vladimir Tretchikof, ou pelo fotógrafo inglês Martin Parr, são exemplos de um outro kitsch
que não exerce as mesmas funções do kitsch ao qual nos referimos aqui (FIG.2).

Figura 2 – Learning Tower of Pisa (1990), fotografia de Martin Parr.


Fonte: Reprodução na revista The New Yorker em 07/04/2010.
Disponível em <https://www.newyorker.com/culture/photo-booth/off-the-shelf-martin-parrs-small-world>.
Acesso em: 24 fev. 2020.

A expressão do kitsch, nestes artistas, vem de um nível de autoconsciência sobre o estilo que
desloca o conceito da sua origem. Em certo sentido, estas são soluções criativas da própria
história da arte que desativam o elemento pejorativo associado ao kitsch, permitindo aos
artistas adotarem a sua forma estética sem a má consciência de endossarem seus efeitos sobre
a cultura e a sociedade.

3. Análise da publicidade das lojas Havan

Tendo apresentado as características do kitsch que mais interessam a este trabalho, passamos
agora à análise do material publicitário da loja Havan que coletamos na internet. Nosso

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objetivo é apontar a ocorrência de aspectos fundamentais do kitsch na linguagem destes


vídeos, de modo a compreender a sua relação com a estética dos movimentos de direita no
Brasil recente, e mais particularmente com a chamada estética do bolsonarismo.

Os vídeos do YouTube analisados são ‘Nosso primeiro caminhão patriota | O Brasil que
queremos’6, postado em 18 de setembro de 2019 no canal oficial de Luciano Hang; ‘Venha
conhecer a Havan | Tudo em um só lugar’7, postado em 15 de julho de 2019, e ‘A Loja Mais
Amada do Brasil’8, postado em 3 de setembro de 2018, ambos no canal oficial das Lojas
Havan. O canal Havan Oficial foi criado em 13 de outubro de 2009, e possuía 810 mil
inscritos no momento de redação deste trabalho. Já o canal oficial de Luciano Hang foi criado
em 20 de fevereiro de 2018, e contava com 43,6 mil inscritos. Os três vídeos que analisamos,
considerados juntos, somavam mais de dez milhões e quinhentas mil visualizações, segundo
o índice registrado pelo próprio YouTube.

Antes de tudo, é importante notar que a identidade corporativa da Havan tem fortes
características do kitsch, independente das campanhas publicitárias na internet. Essas
características são um dos fatores preponderantes para o posicionamento da marca no
mercado varejista brasileiro. A ocorrência do kitsch na publicidade da Havan, portanto, é
coerente com a sua identidade corporativa, e não representa um elemento exclusivo do seu
plano de comunicação.

A maior evidência do que afirmamos acima é o padrão arquitetônico das lojas físicas da
empresa. Elas são projetadas como uma imitação da White House, ou Casa Branca,
residência oficial do presidente dos EUA e edifício mais famoso do conjunto de prédios
governamentais de Washington. Além de copiar os traços arquitetônicos da Casa Branca, as
unidades da Havan contam com uma estátua gigante que imita a Estátua da Liberdade de
Nova York. Em regra, a estátua é erigida na entrada do estacionamento da loja, de frente para
a rua que dá acesso ao local, e é praticamente impossível não a perceber e tomá-la como
referência de localização da empresa.

6
Disponível em: <https://youtu.be/A_zDek8PcCg>. Acesso em: 24 fev. 2020.
7
Disponível em: <https://youtu.be/EaiEYIkou6E>. Acesso em: 24 fev. 2020.
8
Disponível em: <https://youtu.be/ORdDPM9QEkQ>. Acesso em: 24 fev. 2020.

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A maior estátua da Havan já construída tem 57 metros e se apresenta como o monumento


mais alto do Brasil.9 Ela supera a altura do Cristo Redentor do Rio de Janeiro (38 metros),
ainda que atinja pouco mais da metade da altura da versão original que está em Nova York
(93 metros). A Estátua da Liberdade fake é um símbolo kitsch das lojas Havan, e com muita
frequência é mostrada ou recriada no material publicitário da empresa. Ela demonstra o
princípio de inadequação do kitsch: “não há grandeza geométrica subjacente ao kitsch: o fato
de que um objeto seja grande ou pequeno não tem nada de kitsch em si mesmo. Entretanto, a
ideia de uma desproporção das dimensões em relação ao objeto representado produzirá
objetos kitsch” (MOLES, 1972, p. 45).

Ao analisar a peça ‘Venha conhecer a Havan | Tudo em um só lugar’, verificamos que o


conceito arquitetônico das lojas físicas da empresa é muito valorizado pela linguagem
audiovisual do vídeo publicitário. No segmento varejista, não há outra grande marca no
Brasil que invista tanto empenho em exibir as características físicas das suas lojas como um
elemento de valor e distinção. Nesse sentido, as referências à arquitetura da Havan são uma
característica das suas campanhas que devem ser analisadas para compreender a sua
elaboração do kitsch no discurso publicitário.

Com 30 segundos de duração, o vídeo ‘Venha conhecer a Havan | Tudo em um só lugar’


reserva 6 planos externos de conjunto para mostrar a loja do exterior, de modo a destacar a
arquitetura do prédio e a presença da estátua como um símbolo monumental de visão
obrigatória. Destes 6 planos abertos, 3 mostram apenas a loja, 2 mostram a loja e a estátua, e
1 mostra apenas a estátua. Todos são planos produzidos por tomadas aéreas com a câmera em
movimento, sendo que dois deles são angulados com o eixo do ponto de fuga pendendo para
uma extremidade lateral. Essa composição reforça as dimensões gigantescas, seja da loja, seja
da estátua, como no plano que reproduzimos abaixo (FIG 3).

9
A estátua foi construída na frente da loja matriz da rede, na cidade de Barra Velha, em Santa Catarina. Cf. a
reportagem ‘Maior estátua do Brasil está em Santa Catarina’, do programa Balanço Geral, de Florianópolis
Disponível em: <https://youtu.be/rCE7QT-Aevk>. Acesso em: 24 fev. 2020.

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Figura 3 – Plano extraído do vídeo ‘Venha conhecer a Havan | Tudo em um só lugar’.


Fonte: < https://youtu.be/EaiEYIkou6E>. Acesso em: 24 fev. 2020.

O kitsch que se expressa por meio de imitações gigantes ‘fora de lugar’ também pode ser
visto nos movimentos de rua alinhados ao ponto de vista ideológico da direita no Brasil
recente. Ainda durante as manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, um
pato amarelo de borracha, confeccionado pela Federação das Indústrias do Estado de São
Paulo (FIESP), tornou-se um dos principais símbolos destes protestos (FIG. 4).

Figura 4 – O pato gigante da FIESP nas manifestações de rua da direita no Brasil.


Fonte: Site da FIESP. Disponível em: <http://www.fiesp.com.br/noticias/foto-contra-os-impostos-pato-de-12-
metros-de-altura-se-une-a-multidao-na-paulista>. Acesso em: 24 fev. 2020.

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O pato gigante foi produzido para a campanha ‘Não vou pagar o pato’, iniciada pela FIESP
em 2015 para questionar a carga tributária brasileira. A campanha ainda está ativa, embora
em um tom conciliatório e com muito menos rumor, contra os aumentos de impostos
promovidos por Paulo Guedes, ministro da economia do governo Bolsonaro.10

Mas o pato de borracha da FIEP não é um caso exclusivo de objeto kitsch adotado pelos
movimentos de rua que se alinham à direita no Brasil. Com a posse de Jair Bolsonaro, em
2019, novas manifestações – dessa vez, a favor do governo – ocorreram em momentos
críticos para o presidente. Estes protestos de apoio foram chamados por movimentos como o
Vem pra Rua, o Brasil Livre e o Nas Ruas, sempre que Bolsonaro demonstrou fragilidade
como chefe do executivo brasileiro.

Em uma dessas manifestações, em 30 de junho de 2019, foram usados bonecos infláveis


gigantes para representar políticos do país (FIG. 5). Em um deles, o ex-presidente Luiz Inácio
da Silva é visto com uniforme de presidiário. Em outro, o ministro da justiça e ex-juiz Sérgio
Moro é reproduzido com o uniforme do Super-Homem, icônico super-herói nascido nos
quadrinhos e celebrizado pela cultura de massa.

Figura 5 – Manifestação de apoiadores do governo Jair Bolsonaro em junho de 2019.


Fonte: Portal de notícias R7. Disponível em: <https://noticias.r7.com/brasil/cidades-pelo-pais-tem-atos-de-
apoio-a-moro-e-lava-jato-30062019>. Acesso em: 24 fev. 2020.

10
Cf. <http://www.naovoupagaropato.com.br>. Acesso em: 24 fev. 2020.

13
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Ainda na análise do primeiro vídeo, não são apenas os planos que evocam a imitação de
símbolos dos EUA que podem ser analisados com base no conceito de kitsch. Também os
planos de conjunto internos, que mostram as prateleiras das lojas repletas de mercadoria,
aprofundam a identidade corporativa kitsch da Havan.

Uma das tônicas do material publicitário da empresa é afirmar a sua expansão acelerada pelo
Brasil. O número de lojas abertas é com frequência um dos dados mais utilizados para
consolidar sua imagem como a de um projeto bem-sucedido que se expande a plenos
pulmões na atualidade. Essa ênfase na expansão é um recurso conveniente para construir um
discurso de sucesso sobre uma loja de varejo não especializada, isto é, que oferece produtos
de diferentes naturezas e que servem a um grande número de finalidades.

No vídeo, a expansão do número de lojas é combinada com a variedade de produtos que as


unidades da rede oferecem, estabelecendo a ideia de ‘acumulação’ como um fio condutor do
discurso publicitário. Moles também estudou esse aspecto do kitsch, denominando-o de
‘frenesi’, ou seja, um acúmulo sem limite, uma busca “do ‘sempre mais’, que surge
abertamente na civilização burguesa” (MOLES, 1972, p. 72).

No vídeo ‘Venha conhecer a Havan | Tudo em um só lugar’, ouvimos do narrador que a


Havan está presente em 17 estados com mais de 120 lojas. Além de um grande número de
unidades, a marca oferece mais de 100 mil produtos nacionais e importados em cada loja, o
que justifica que a narração a defina como ‘loja mais completa do Brasil’. O texto narrado é
ilustrado pelos planos internos das prateleiras, captados sempre com a câmera alta e em
movimento, para que a fluidez da imagem se alie à impressão de expansividade, dinamismo e
acumulação.

‘Tudo em um só lugar.’ O aspecto kitsch da estética utilizada na construção dessa mensagem


pode ser notado desde o título da peça, que faz referência à alocação de múltiplos objetos em
um único espaço. A frase é pronunciada pelo narrador como fechamento do trecho que
descreve a variedade de produtos vendidos, enquanto as imagens das pratelereiras são
exibidas em uma sequência de planos. Estes se alternam no mesmo ritmo da narração, de
modo que a montagem do vídeo sirva como demonstração da diversidade de ofertas da loja,
com cada plano correspondendo ao nome de uma nova seção: ‘moda, cama, mesa e banho,
utilidades domésticas, brinquedos e muito mais’.

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O princípio kitsch do acúmulo infinito se intensifica, enfim, quando a edição do vídeo aplica
o recurso da segmentação do plano, ou divisão da tela, como se tornou conhecido esse
dispositivo da linguagem videográfica com a multiplicação das telas na era digital. O quadro
é recortado em tableaus e os planos são ‘espremidos’ para ocuparem o mesmo espaço.

No último passo da sequência de subdivisões, temos a superfície do quadro separado em


cinco subquadros, e em cada um deles há uma estante de produtos de natureza diversa. A
frase ‘tudo em um só lugar’ ganha tradução em imagem na linguagem do vídeo, consumando
assim a heterogeneidade típica da estética do kitsch (FIG. 6). É ainda Moles quem explica
essa característica formal: “um conjunto kitsch é constituído por objetos diversificados
empilhados em um volume de espaço com superfície restrita”, e “os objetos agrupados não
têm relação direta com os outros” (MOLES, 1972, p. 60–1).

Figura 6 – Frame extraído do vídeo ‘Tudo em um só lugar’.


Fonte: < https://youtu.be/EaiEYIkou6E>. Acesso em: 24 fev. 2020.

A frase final do narrador de ‘Venha conhecer a Havan | Tudo em um só lugar’ encaminha a


discussão de outro aspecto das campanhas da Havan que corrobora o kitsch, o
sentimentalismo: ‘Visite a Havan e venha descobrir porque somos a loja mais amada do
Brasil’. A marca da rede é adicionada no centro da tela, e estamos diante, enfim, do slogan da
Havan: ‘A loja mais amada do Brasil’.

O tema do amor é recorrente nas campanhas da marca, e é ele que domina a segunda peça
analisada neste trabalho, cujo título é o próprio slogan que citamos acima. O vídeo ‘A loja

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mais amada do Brasil’ é uma inserção comercial de 30 segundos cujo formato é mais bem
definido para o modelo de publicidade audiovisual no YouTube. Trata-se de uma peça que
busca atrair o interesse do usuário do YouTube de maneira instantânea, para evitar que ele
salte para o vídeo de destino tão logo terminem os cinco segundos obrigatórios de
visualização do material publicitário. Por isso, a locução do narrador começa com uma
pergunta, enquanto na imagem são empilhados corações azuis com a marca da empresa:
‘Todo mundo ama Havan. E você, Celso?’.

A pergunta deve suscitar a curiosidade do consumidor, que logo descobre, no plano seguinte,
que o Celso ao qual a voz se dirige é o apresentador de televisão Celso Portiolli. Em um
plano brevíssimo de dois segundos, Portiolli faz um gesto de coração com as mãos, e declara:
‘Eu amo a Havan’.

O vídeo foi realizado com a proporção de tela em 4:5, um formato ajustado para dispositivos
portáteis manuais como os smartphones. Essa opção reflete também o conteúdo da peça, pois
se trata de um anúncio composto essencialmente de depoimentos de celebridades que falam
para a câmera, filmadas em plano médio individual, acima da linha da cintura.

Depois de Celso Portiolli, vemos outras estrelas como os também apresentadores de televisão
Ratinho e Danilo Gentili, o jogador de futebol Falcão, alguns youtubers como Taciele
Alcolea e Whindersson Nunes e, ao final, a apresentadora Eliana. Todos repetem a mesma
frase de declaração de amor pela empresa, até que Eliana, no fechamento, pronuncia o
slogan: ‘Havan, a loja mais amada do Brasil’. Além de Portiolli, Falcão também aparece
fazendo o gesto de coração com as mãos (FIG. 7).

Figura 7 – Planos extraídos do vídeo ‘A loja mais amada do Brasil’.


Disponível em: <https://youtu.be/ORdDPM9QEkQ>. Acesso em: 24 fev. 2020.

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Em um artigo pertinente para os estudos contemporâneos do kitsch, em que procura se


desvencilhar tanto da interpretação culturalista – ao modo de Morin (2011) – como da
interpretação que ele considera elitista – ao modo de Greenberg –, o pesquisador Sam
Binkley destacou a ideia de ‘sentimento pelo sentimento’ que está presente no estilo: “há no
kitsch um amor por todas as coisas sentimentais, que expressa uma alegria pelo simples fato
de sentir, seja este sentimento exaltação, tristeza ou afeto” (BINKLEY, 2000, p. 142,
tradução nossa).

No vídeo ‘A loja mais amada do Brasil’, observamos este gosto pelo próprio sentimento em
operação no discurso publicitário. Os famosos declaram amor pela Havan com exagero nos
movimentos dos braços e nas expressões faciais, aproximando-se de uma representação por
pantomima. Nos casos de Portiolli e Falcão, a pantomima de fato ocorre por meio do gesto de
coração com a mãos. A linguagem do vídeo quer comunicar, com o máximo de objetividade
e rapidez, o prazer que aqueles famosos sentem pelo fato de amarem a Havan.

Os dois segundos reservados para cada um, portanto, devem ser suficientes para convencer o
consumidor de que o sentimento de amor não apenas é autêntico, como também é, ele
próprio, uma fonte de satisfação para quem o possui. Para dizer em uma só frase, não se trata
somente de mostrar que as celebridades amam a Havan, mas também que é bom amar a
Havan.

O sentimentalismo também é cultivado pela estética bolsonarista no Brasil do presente. Ele se


faz visível em diversas ocasiões e por diferentes meios, sendo habitualmente injetado nas
mensagens, imagens e vídeos de propaganda que as redes de apoiadores compartilham no
WhatsApp. Os discursos propagados dessa maneira costumam conter manifestos públicos de
fidelidade a Bolsonaro, apresentando-o como vítima de complôs e traições. Por vezes, esses
discursos culminam em chamamentos públicos para que a população combata os inimigos do
país, entre os quais estão os membros do Congresso Nacional, se não alinhados ao presidente,
ou os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), se suas decisões são desaprovadas pelos
bolsonaristas.

São bastante comuns, também, as afirmações entusiásticas de que Bolsonaro e seus principais
ministros são heróis inspirados pelo amor ao Brasil, como no meme de forte apelo kitsch em
que Sérgio Moro aparece no interior de um coração feito pelas mãos do povo brasileiro (FIG.
8). Não é possível saber a origem exata do meme, mas ele foi compartilhado em diferentes

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comunidades de apoio a Bolsonaro no Facebook, a exemplo das páginas ‘Endireita Minas’11,


em 9 de agosto de 2019, e ‘Jair Bolsonaro 2022 – A última esperança da nação’12, em 28 de
julho do mesmo ano. O enquadramento de Moro dentro do coração de mãos habilita essa
imagem como um exemplo significativo da conexão entre a estética bolsonarista e a
publicidade da Havan, considerando aqui os planos em que Celso Portiolli e Falcão aparecem
fazendo o mesmo gesto enquanto declaram amor à empresa de Luciano Hang.

Figura 8 - Meme de Sérgio Moro enquadrado em um coração pelas mãos dos brasileiros.
Fonte: Diversas (comunidades digitais de simpatizantes de Bolsonaro).

Para reforçar a análise desse sentimentalismo kitsch, podemos mencionar alguns casos de
aparição pública de Bolsonaro em que ele próprio faz o gesto de coração com as mãos. A
primeira dessas aparições ocorreu antes da sua posse, em novembro de 2018. Em visita ao
plenário da Câmara, na condição de presidente eleito, Bolsonaro foi solicitado por um
apoiador a imitar uma arma de fogo com os dedos indicador e polegar. Esse gesto tinha se
consolidado durante a campanha de 2018 como uma espécie de marca da origem militar e do
posicionamento ideológico de Bolsonaro a favor do armamento civil.

De fato, a imagem pública do presidente é muito ligada ao seu gestuário, o que é


impulsionado pela facilidade com que os memes e stickers apreendem estes gestos e os

11
Disponível em: < https://facebook.com/108633483811919/photos/a.108633517145249/112709490070985>.
Acesso em: 25 fev. 2020.
12
Disponível em: < https://facebook.com/bolsonaros2/posts/1274751552705373>. Acesso em: 25 fev. 2020.

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reproduzem no debate público, como no próprio exemplo da Figura 8, com Sérgio Moro.
Além da arminha formada com a ponta dos dedos e o coração com as mãos, Bolsonaro utiliza
com muita frequência o sinal de positivo, com o dedo polegar em riste. Este é o terceiro de
seus gestos característicos, como veremos mais adiante.

Na ocasião de novembro de 2018, para evitar problemas de decoro por estar dentro da
Câmara, Bolsonaro substituiu pela primeira vez a arminha pelo coração (FIG. 9). Depois de
empossado, ele viria a repetir o novo gesto em público, a exemplo de quando o fez
acompanhado de Mauro Mendes, governador do Mato Grosso (FIG. 10). A imagem de
Bolsonaro fazendo o coração com as mãos se tornou, pouco a pouco, um dos ícones mais
frequentes na construção da sua imagem, sendo possível encontrar memes e stickers do
WhatsApp que fazem referência ao gesto.

Figura 9 – Bolsonaro eleito faz coração com as mãos no Congresso.


Fonte: Diário de Goiás (Gabriela Korossy). Disponível em: <https://diariodegoias.com.br/instado-a-fazer-gesto-
de-arma-bolsonaro-faz-coracaozinho-no-plenario-da-camara>. Acesso em: 24 fev. 2020.

Figura 10 – Bolsonaro presidente faz coração com as mãos junto de Mauro Mendes, governador do Mato
Grosso.
Fonte: Olhar Direto (Rogério Florentino).
Disponível em: < https://www.olhardireto.com.br/imgsite/noticias/_RFP8736(1).jpg >. Acesso em: 24 fev.
2020.

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O vídeo ‘A loja mais amada do Brasil’ foi produzido durante a campanha de 2018, pouco
tempo antes dos exemplos que mencionamos aqui. A correlação entre o sentimentalismo
kitsch dessa peça de publicidade e o gestuário do presidente Bolsonaro não é um caso
isolado. Ela também ocorre no terceiro vídeo que analisamos, a seguir.

‘Nosso primeiro caminhão patriota’ é uma peça de 01m40s divulgada no canal oficial de
Luciano Hang. Ela foi feita para anunciar uma novidade na estratégia de marketing da Havan:
a nova pintura dos caminhões da empresa, em verde e amarelo, reproduzindo a bandeira do
Brasil (FIG. 9). Para entender a particular apropriação do sentimentalismo kitsch nesse vídeo,
convém fazer um preâmbulo sobre o sentimento de patriotismo, isto é, sobre a ideia
romântica de amor à pátria.

Não nos referimos ao patriotismo como simples baliza do Estado moderno ou dever moral
dos cidadãos, mas sim à ideia de exaltação nacional que constituiu um dos núcleos da estética
romântica entre os séculos XVIII e XIX. Este sentimento de amor à pátria foi um dos
elementos do romantismo que tiveram o seu sentido transformado pelas formas populares de
expressão que o sobrepuseram, incluindo o kitsch. Andrea Meccacci observa, nesse
movimento histórico, a emergência de uma ‘lógica do patético’ cujas repercussões ainda
estão presentes na cultura popular do nosso tempo:

O sentimento, ao mesmo tempo forma e conteúdo da alma romântica, se transformou


em caricatura pequeno-burguesa. Todos os objetos do sentimento romântico (a
natureza, o amor, a pátria) foram revirados pelo kitsch para o seu próprio contrário:
não mais dimensões inquietantes de interioridade, mas práticas de consolo.
(MECACCI, 2014, p. 30, tradução nossa)

O que mais diferencia o amor à pátria no bolsonarismo é a sua imersão em uma atividade
permanente de propaganda ideológica. O sentimento de patriotismo é utilizado como
instrumento para persuadir os apoiadores a se manterem engajados na defesa de Bolsonaro.
Para o bolsonarismo, a pátria é algo que está sempre em risco, e se você ama a pátria, como
se espera que ame, é preciso estar sempre disposto a apoiar o governo. Este modo de
vivenciar o amor à pátria permite que o governo adote, na sua comunicação oficial,

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estratégias típicas da propaganda em contexto de guerra, com a esquerda posicionada no


lugar do inimigo.13

Para funcionar como matéria da propaganda militante, o patriotismo não poderia ser, como
foi no romantismo, um sentimento nascido da introspecção, que surgia das raízes profundas
da subjetividade, isto é, da condição autêntica e única dos indivíduos que se viam como
membros de um Estado nacional moderno. A variante kitsch do patriotismo é desprovida de
conteúdo. Ela nasce da própria exaustão do ideal moderno de Estado-Nação, de modo que o
fruidor da experiência estética não consegue amparar o seu patriotismo na realidade. O amor
à pátria se alimenta de si mesmo, sem encontrar um referente. Temos aqui, com efeito, uma
alteração no modo como as pessoas se relacionam com objetos estéticos, o que diferencia o
patriotismo kitsch daquele que vigeu no período romântico: “o kitsch propõe o sentimento
não como premissa da experiência estética, mas como a sua finalidade” (MECACCI, 2014, p.
30, tradução nossa).

Feito este preâmbulo sobre sentimentalismo kitsch e patriotismo, podemos retornar ao


terceiro vídeo em análise. Luciano Hang é personagem único desta peça, comandando toda a
ação e dialogando com os espectadores. Os primeiros planos se desenvolvem ao mesmo
tempo que ouvimos a introdução do hino nacional brasileiro. Eles mostram o dono da Havan
subindo na cabine de um dos caminhões que receberam a nova pintura, e que foram batizados
por Hang, como ele mesmo informa, de ‘caminhões patriotas’.

Figura 11 – Plano extraído do vídeo ‘Nosso primeiro caminhão patriota’.


Disponível em: < https://youtu.be/A_zDek8PcCg>. Acesso em: 24 fev. 2020.

13
Em outra ocasião, comentamos sobre a relação entre a estratégia de comunicação de Bolsonaro e a
propaganda de guerra. Cf. Oliveira (2020).

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O empresário usa calça verde e uma camisa amarela com o slogan específico desta nova
campanha: ‘O Brasil que queremos só depende de nós’. Uma série de planos posteriores, de
tomadas externas, mostrarão o caminhão dirigido por Hang em uma pista com a estátua da
Havan ao fundo. Estes planos revelam que a mesma frase da camiseta do empresário pode ser
lida nos caminhões, escrita em fonte branca sobre o fundo azul, no círculo central da bandeira
brasileira (FIG. 11).

Ainda na sequência introdutória, em um encadeamento de planos bastante breves com efeitos


de edição sobre o tempo das imagens, Hang é visto em uma série de ações que o apresentam
como um trabalhador aguerrido, que se ocupa das mesmas atividades de qualquer funcionário
da sua empresa. O conceito da sua atuação é que Hang cuida com as próprias mãos do
patrimônio da Havan, e por isso ele é visto fixando decalques com a bandeira do Brasil na
lateral do caminhão recém-pintado, e também dirigindo o veículo, em um plano interno feito
de dentro da cabine.

Em um plano brevíssimo que intercala estas ações, Hang aparece de frente para a câmera,
subido na porta do caminhão, e fazendo um gesto de positivo com o polegar. Este é o terceiro
dos gestos característicos que marcam as aparições públicas de Bolsonaro, sobre o qual
comentamos há pouco. Ao reproduzir esse gesto, Hang demonstra que o vínculo entre a
Havan e a estética do bolsonarismo se dá não apenas no nível explícito do patriotismo inflado
e extravagante, mas também no nível mais sutil do gestuário que os dois personagens
públicos – o empresário e o presidente – compartilham.

Figura 12 – Plano extraído do vídeo ‘Nosso primeiro caminhão patriota’.


Disponível em: < https://youtu.be/A_zDek8PcCg>. Acesso em: 24 fev. 2020.

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Figura 13 – Bolsonaro e Sérgio Moro fazem sinal de positivo.


Fonte: Jornal GGN (Marcos Corrêa/Presidência da República)
Disponível em: < https://jornalggn.com.br/crise/segundo-bebianno-guedes-chamou-moro-para-ministerio-antes-
do-2o-turno>. Acesso em: 24 fev. 2020.

Figura 14 – Exemplo de post no Twitter com o sinal de positivo que caracteriza Bolsonaro.
Fonte: Twitter oficial de Jair Bolsonaro.
Disponível em: < https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1088500925923246080>. Acesso em: 24 fev. 2020.

Nas imagens acima, vemos Hang com o polegar em riste no vídeo que analisamos (FIG. 12),
uma aparição pública de Bolsonaro com Sérgio Moro (FIG. 13), e um post do presidente no
Twitter que reproduz o sinal de positivo como uma de suas marcas gestuais mais
características (FIG. 14). No caso da última imagem, trata-se de uma manifestação de
Bolsonaro do dia em que o deputado eleito Jean Wyllys, do PSOL, anunciou que estava
desistindo do mandato e saindo do Brasil por causa de ameaças.

No vídeo ‘Nosso primeiro caminhão patriota’, superada a introdução, vemos Luciano Hang
descer do caminhão e fazer um discurso sobre a nova campanha da Havan. O texto
pronunciado pelo empresário enfatiza que há ‘dezenas e dezenas’ de caminhões que
começarão a ‘andar por todo o Brasil’, o que é coerente com a imagem de marca em
expansão que a empresa quer transmitir. O tom do discurso de Hang varia entre o entusiasmo

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e a exortação, e inclui frases no modo imperativo, que estimulam o espectador a também


utilizar a bandeira nacional como símbolo.

Nesse momento, Hang se dirige explicitamente aos caminhoneiros, categoria profissional que
apoiou maciçamente a candidatura de Bolsonaro, sobretudo depois de receber o seu apoio na
histórica greve de 2018: ‘Coloque também no seu caminhão uma bandeira, pinte o seu
caminhão de verde e amarelo, e vamos fazer do nosso Brasil uma grande nação’, afirma o
empresário.

‘O Brasil que queremos só depende de você... de mim, e de você’, prossegue Hang,


incrementando a frase estampada em sua camiseta e nos caminhões. A primeira pessoa do
plural também aparece no título do vídeo: ‘Nosso primeiro caminhão patriota’. ‘Nós’, aqui, é
uma referência direta aos caminhoneiros. Ao aparecer no vídeo ele próprio como um
caminhoneiro, Hang simula seu pertencimento ao mesmo grupo social dos interlocutores a
quem se dirige.

A campanha com os caminhões patriotas da Havan pode ser vista como uma tática dos
publicitários da empresa para confirmar que ela e o bolsonarismo se sustentam em uma
mesma base de apoio na sociedade. O tom exortativo com que Hang busca diálogo com os
caminhoneiros é uma contrapartida que o empresário oferece a Bolsonaro pelo seu apoio à
marca. O vídeo busca consolidar o enlace entre os caminhoneiros e o presidente, e pode ser
considerado propaganda política para o governo do mesmo modo que é uma peça de
publicidade para a Havan.

Figura 15 – Deputado Bibo Nunes discursando no Congresso.


Fonte: Jornal O Globo (Blog Lauro Jardim). Disponível em: < https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-
jardim/post/deputado-pede-cancelamento-de-reuniao-do-psl-pode-acontecer-luta-corporal-ouca.html>. Acesso
em: 24 fev. 2020.

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Para finalizar a análise, acrescentamos acima, como imagem de referência, um registro de


quando o deputado federal Bibo Nunes, alinhado a Bolsonaro, participou de uma sessão
oficial da Câmara usando um terno com a estampa da bandeira do Brasil (FIG. 15). A
exacerbação do patriotismo é umas das maiores evidências de que a publicidade da Havan e a
estética do bolsonarismo compartilham o kitsch como fundamento das suas presenças na
sociedade brasileira.

Tanto em um como em outro, o amor à pátria se converte em um lema vinculativo, um item


extravagante de grande força visual que despreza o bom gosto para propagar um apoio
amoroso e vital ao governo.

4. Considerações finais

No Brasil recente, as campanhas publicitárias da Havan não somente repercutem a estética do


bolsonarismo como também ajudam a defini-la. O resultado é uma excêntrica convergência
entre a identidade corporativa da empresa e a identidade política do governo. Não parece
possível entender uma delas sem fazer uma análise cuidadosa da outra.

O kitsch é uma espécie de liga que vincula essas duas identidades. Esperamos ter
demonstrado, pela análise dos três vídeos que selecionamos, que o estilo se expressa em
aspectos formais que estão presentes tanto no material de campanha da empresa como na
construção da imagem pública dos membros políticos do bolsonarismo. Estes aspectos são
investigados pela literatura teórica sobre o kitsch, que revisitamos para entender melhor o
modo como ele ganhou forma hoje no Brasil.

Em um livro sobre a passagem do kitsch para o que ele denomina de neo-kitsch


contemporâneo, Giulio Padoan afirma que “o novo comunicador possui a sabedoria da
potência das emoções e da simpatia, e sabe que uma comunicação visual emocional é apta a
tocar as cordas profundas da alma humana” (PADOAN, 2018, p. 132, tradução nossa). Essa
comunicação carregada de sentimento, que se dá na configuração atual do kitsch, tem em
Luciano Hang um representante de peso no contexto brasileiro.

Uma atualização mais completa das teorias do kitsch por certo deve empreender esforços no
sentido de aprofundar o conceito frente a novas abordagens da cultura contemporânea.

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Segundo André Lemos (2002, p. 76), “o usuário interativo da cibercultura nasce do


desaparecimento do social e da implosão do individualismo moderno”. Essa é uma ideia que
tem origem em Jean Baudrillard, uma das fontes principais deste artigo: “os media são
produtores não de socialização mas do seu contrário, da implosão do social nas massas”
(BAUDRILLARD, 1991, p. 106).

Algo relativo a essa implosão do social parece ocorrer com o bolsonarismo, e os objetos de
estudo desse trabalho indicam isso. Essa implosão acarretaria uma absorção de todas as
formas culturais na linguagem publicitária. As simulações da cultura romântica na
publicidade kitsch podem ser um efeito disso.

Para além da noção de cibercultura, pensamos que há ainda um interessante caminho a ser
percorrido pelas teorias do kitsch na intersecção entre o pensamento estético e as pesquisas
atuais sobre midiatização (HJARVARD, 2013; MATTOS; JANOTTI JUNIOR; JACKS,
2012). Mas essa é uma linha de análise que ainda precisamos desenvolver antes de
aprofundá-la em um produto acadêmico.

Não é possível saber até que ponto a convergência entre a Havan e o bolsonarismo avançará
nos próximos anos, mas é razoável acreditar que ela só será desfeita no caso de uma crise
política grave do governo.

O núcleo ideológico do governo Bolsonaro é formado por ideólogos que se inspiram em um


tipo de conservadorismo que não apresenta lastro na realidade. Eles prometem beleza estética
e resgate dos valores tradicionais do ocidente, mas só conseguem entregar o kitsch como
experiência estética para os brasileiros. Desse modo, a atuação de tais agentes políticos
remete ao espírito nouveau riche que sempre ajudou a explicar a adesão das classes sociais
médias ao kitsch.

O tema da ascensão de uma nova classe média no Brasil, tão debatido nas duas primeiras
décadas deste século, talvez possa ser revisitado à luz da explosão kitsch que despontou com
o bolsonarismo. A relação entre a divisão da sociedade brasileira e a recorrência do kitsch é
um tema a ser mais bem estudado, ainda mais pelo papel político que o estilo passou a ter no
presente.

Embora sempre tenha tido algum papel político, há algo de inédito na maneira como o kitsch
vem sendo apropriado por uma força política que se materializa em partidos e lideranças

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elegíveis no Brasil. Acreditamos que os estudos de comunicação e estética são uma das
melhores portas de entrada para confrontar esse tema de pesquisa.

Referências

BAUDRILLARD, J. Simulacros e Simulação. Tradução de Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio
d’Água, 1991.
BAUDRILLARD, J. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70, 2008.
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