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GEORGES SNYDERS

ALUNOS FELIZES
Reflexão sobre a alegria na escola
a partir de textos literários

Tradução
Cária AidaPereira da Silva

EB
PAZ E TERRA
Copyright by Georges Snyders e Editions EAP
Títulos do original em francês Des éleves heureux- ÍNDICE
Réflexion sur Iajoie à /'éco/e à partir de que/ques textes littéraires
Preparação: Sandra Rodrigues Garcia
Revisão:Lulz H. Nery e Antônio P. Danesi
Revisão técnica: Maria Lúcia Pereira
Capa: Isabel Carballo

Dados Intemacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, Sp, Brasil)
PREFAcIO À EDIÇÃO BRASILEIRA 9
. Snyders, Georges.
Alunos klizes: reflexão sobre a alegria na escola a partir de INTRODUÇÃO 11
textos literários / Georges Snyders ; tradução Cátia Aida Pereira da Silva
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
1. Difusão cultural 2. Educação humanística-
PRIMEIRA PARTE
Aspectos psicológicos 3. Motivação na escola
4. Programas de melhoramento escolar 1. Título. IL Título: Reflexão sobre a
alegria na escola a partir de textos literários.
1 A PRESENÇA DA ALEGRIA ESCOLAR 27
93-0107 CDD-370.1 2 ALEGRIA E NÃO-ALEGRIA 41
3 JOVENS E ADULTOS 53
Indices para catálogo sistemático:
4 AS RELAç6ES PESSOAIS 69
1. Educação: Filosofia 370.1

Direitos adquiridos pela SEGUNDA PARTE


EDITORA PAZ E TERRA SA.
Rua do Triunfo, 177
01212 - São Paulo - SP 101
Tel.: (011) 223-6522
1 A ESCOLA, O OBRIGATÓRIO E A ALEGRIA
.Rua São José, 90 - 11.° andar - cj. 1111 2 AALEGRIAEAESCOLACOMO
20010 - Rio de Janeiro - RJ UM MUNDO DIFERENTE 119
Tel.: (021) 221-4066 161
que se reserva a propriedade desta tradução. 3 A OBRA-PRIMA COMO RUPTURA

Conselho Editorial: TERCEIRA PARTE


Antonio Candido
Celso Furtado
Fernando Gasparian 1 GENERALIZAR, UNlVERSALIZARA
Femando Henrique Cardoso
ALEGRIA ESCOLAR 187
2 ALGUMAS BREVES PALAVRAS,
1993 PARA FINALIZAR 197
Impresso no Brasil / Printed in Brasil
PREFÁCIO A EDIÇÃO BRASILEIRA

Para quem conhece a obra de Georges Snyders, a lucidez


com que escreve, a coerência com que defende suas posições, o
rigor com que analisa os problemas que discute, conviver,
agora, com Alunos [eliZfS - Reflexões sobre a alegria na escola a
partir de textos literários será uma satisfação e uma alegria que
se repetem.
Este é, sem dúvida, um livro profundamente atual. Um
livro que ultrapassa certo ranço tradicionalista em que a ale-
gria se afogava envergonhada de si mesma, contida, para não
virar pecado, que supera Certo cientificismo arrogante da mo-
dernidade e grita, mesmo discretamente, mas decididamente,
ao estilo do autor, em defesa da alegria.
A alegria na escola, por que Georges Snyders vem lu-
tando, alegremente, não é só necessária, mas possível. Neces-
sária porque, gerando-se numa alegria maior - a alegria de
viver -, a alegria na escola fortalece e estimula a alegria de
viver. Se o tempo da escola é um tempo de enfado em que
educador e educadora e educandos vivem os segundos, os mi-
nutos, os quartos de hora à espera de que a monotonia ter-
mine a fim de que partam risonhos para a vida lá fora. a tris-
teza da escola termina por deteriorar a alegria de viver. É
necessária ainda porque viver plenamente a alegria na escola
significa mudá-Ia, significa lutar para incrementar, melhorar,
aprofundar a mudança. Para tentar essa reviravolta indispensá-

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vel é preciso deixar bem longe de nós a distorção rnecanicista;
é necessário encarnar um pensar dinâmico, dialético. O tempo
que levamos dizendo que para haver alegria na escola é preciso
primeiro mudar radicalmente o mundo é o tempo que perde- INTRODUÇÃO
mos para começar a inventar e a viver a alegria. Além do mais,
lutar pela alegria na escola é uma forma de lutar pela mudança
do mundo.
Por outro lado, é possível a alegria, para falar apenas
entre nós. Para quem duvida que a alegria de viver está sendo
intensamente assumida pela juventude hoje, que se d~ conta
da geração de adolescentes e jovens que, recentemente, en-
Faltam novas idéias? Será que não me expliquei o sufi-
chendo as praças e as ruas, cantando, de cara pintada, vestidos
ciente?' Tive vontade de retomar os problemas sobre a alegria na
multicolormente, inauguravam uma nova forma de fazer polí-
escola,' esforçando-me para considerá-los sob um novo ângulo.
tica. Se batiam pelo impedimento do presidente, finalmente
Os "pedagogos", cientistas da educação a partir dos quais
conseguido. Não vieram às ruas sisudos, de paletó e gravata,
escrevi meu livro anterior, são especialistas que muitas vezes se
de colarinho duro. Vieram em algazarra criadora. Vieram can-
dirigem a especialistas. Donde meu desejo de recorrer também
tando. Vieram alegres e firmes. Falaram. Criticaram. Chora-
ram. Exigiram vergonha. Uma dessas adolescentes alegres a "escritores": romances, biografias, autob iografias, diários ín-
disse, na televisão, com duas lágrimas que lhe deslizavam pela timos onde os autores falam sobre si mesmos, criam persona-
face sorridente, no dia da votação do impedimento: "Assim gens e evocam vidas ilustres. Para o meu tema de pesquisa, isso
como fomos capazes de pôr o presidente na rua, nunca mais não faz muita diferença: as autobiografias são redigidas tanto
deixaremos que a vergonha Se mude deste país". tempo após os acontecimentos que ficam, sem dúvida, im-
Esta é uma afirmação grávida de seriedade mas, ao pregnadas de perfumes imaginários. E as criações romanescas
mesmo tempo, de esperança. E não há esperança sem alegria. são fruto, afinal, das emoções vividas.
Felicito a Editora Paz e Terra por acreditar na alegria. O que me atrai nos escritores é que eles não são profis-
sionais da escolaridade. Tampouco são consumidores incondi-
cionais da escola; eles formam uma espécie de camada inter-
Paulo Freire mediária. Assim, pretendo que os textos literários tragam
testemunhos mais variados, mais abertos e mais pessoais do
São Paulo, janeiro de 1993.
que os estudos dos pedagogos.
Por um lado, procuro nos textos literários matéria para
reflexão: às vezes eles serão simples pontos de partida, já que

* O livro anterior do autor, Ia joie à l'écolc, PUF, 1986, trata do mesmo assunto.
(N.T.)

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eu poderia chegar sozinho às mesmas afirmações. Mas não podemos aspirar a uma sociedade melhor com melhores es-
raro eles me ajudarão a precisar, a enriquecer, até mesmo a colas, sem termos que nos resignar com uma sociedade "sem
alterar o tema da alegria: vou superar a idéia de alegria para escola".
atingir alegrias particulares, localizadas, distintas umas das ou- Na verdade, recorri na maioria das vezes a obras "literá-
tras, para alcançar as inúmeras possibilidades de alegria na es- rias", sem descartar obras mais teóricas, de jaurês a Brecht, de
cola, os múltiplos recursos da escola em termos de alegria. Freud a Gramsci. Devo confessar que tal afirmação pode não
Por outro lado, procuro provas nesses textos: eles me corresponder ao tom geral do livro. Ela constituiria um inter-
confirmam que a alegria escolar existe de fato, que eu não lúdio iluminado em meio a um conjunto obscuro, porém rep-
estou me perdendo na irreal idade, pois a escola como local de resenta o que eu gostaria de ter valorizado.
alegria não representa uma utopia, simples desejo desvincu- Não me preocupei com a cronologia nem com a hetero-
lado daquilo com que alunos e educadores sonham e de que geneidade dos autores, ora muito ilustres, ora quase desconhe-
sentem falta. cidos: o sonho não tem a propriedade de abolir as barreiras
A escola já contém elementos válidos de alegria. Ela não temporais e espaciais? E o aluno feliz na escola e por causa da
é oposta à alegria, esse sentimento já é possível na escola atual, escola é um tema que tem ainda algo de sonho ...
o que torna ainda mais lamentável que ela não esteja entre
seus objetivos primordiais. É a partir da pr6pria escola, dos A pesca é escassa
fragmentos felizes que ela deixa transparecer, que se pode co-
meçar a pensar em como superar a escola atual. Pois os exemplos são raros, raríssimos, excepcionais. A
Eu gostaria que os testemunhos de alegria na escola apa- alegria na escola é vivenciada por poucos e parece reservada a
recessem como índices precursores, propondo através de exce- pouquíssimos. Eu precisei ler pilhas e pilhas de livros para re-
ções o que a escola poderia vir a ser em geral. Ou melhor, que colher o sumo de alguns momentos favoráveis. Eu pesquei,
esses testemunhos fossem pontos de apoio para que isso ocor- diria mesmo que quase implorei por casos de alegria "escolar"
resse, assim como certos homens são os precursores do que o nos livros. A imensa maioria dos escritores tem muito em comum
homem pode se propor. com a imensa maioria de alunos ao dizer que não existe alegria
~ Tenho ainda um terceiro motivo para pesquisar testemu- na escola.
nhos de alegria na escola: esta deve ser transformada e reno- Esse tema, para mim um dos aspectos essenciais do pro-
vada, mas pode ela melhorar ou é incorrigível? Seria o caso blema escolar, para muitos parece irreal, provoca risos. Quase
então de destruí-Ia: Ilich afirma que toda escola gera estruturas não consegui compartilhar as preocupações da minha pesquisa
"burocráticas" e que isso não tem remédio, a não ser renun- com meus amigos e colegas, para não falar dos meus ex-alunos.
ciando precisamente ao que define a escola: a sistematização. Não procurei sondar metodicamente os testemunhos de
Ao contrário, os textos sobre a alegria na escola reforçam alunos "em carne e osso", pois queria me referir a textos literá-
minha convicção de que esta, apesar de terríveis fracassos, rios. Contudo, entrevistei um grande número de jovens, apre-
também consegue ser bem-sucedida. Não é preciso transferir sentei perguntas a várias classes, das quais citarei apenas um
as esperanças para outros lugares (formação voluntária, lazer...); exemplo: em três classes do segundo ano do curso primário,

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perguntei o que era um "bom aluno". Nenhuma resposta evo- Quando se trata de amor ou de família, a maioria dos
cou a alegria ou o prazer, apenas um ou dois sugeriram que o livros diz: em certos momentos, tudo vai bem e somos felizes;
bom aluno é aquele que se interessa pelo que faz na escola. Em em outros não, tudo degringola. Quanto à escola, a alegria
compensação, apareciam incessantemente os temas da obe- parece que nunca vai se estabelecer, a não ser muito excepcio-
diência, da aplicação, da docilidade - fazer como foi dito nalmente.
para ser feito. Ora eu ficava admirado, ora escandalizado, e tinha a sen-
Não só os alunos que fracassam, como é de se esperar, sação de que o tema escapava ao meu objetivo. Admiti o
mas também muitos e muitos daqueles que são bem-sucedi- abismo existente entre os grandes "topos", os ímpetos retóri-
dos, de acordo com as regras convencionais, consideram evi- cas sobre a missão da escola, e a "realidade" desesperadora da
dente que a escola é triste e está condenada a ser triste - do escola tal como ela aparece em tantos romances escolares. Ter-
mesmo modo que lhes parece evidente que o Sol gira em minei por me concentrar sobre a reduzida seleção de textos
torno da Terra. que me eram favoráveis.
E a alegria começa onde a escola termina; pode-se fazer o
que se quiser, como se quiser, não há mais sanções. Serei um ingênuo?
Alguns guardam rancor contra a escola, mas o pior talvez
seja o fato de que a maioria dos alunos se resigna docemente à Para não ceder ao desânimo, disse a mim mesmo, em
monotonia da escola, esperando que ela. termine ao fim de primeiro lugar, que, considerando-se a prática das aulas no
cada dia, ao fim de cada ano, ao fim da juventude -- na ex- dia-a-dia, meu espanto é que é espantoso: professores e alunos
pectativa (e conformando-se com isso) de que ela os prepare vivem em condições realmente lastimáveis, com classes geral-
para aquele famoso futuro cheio de promessas e ameaças. mente superlotadas, locais inadequados, cansaço, angústias ...
A escola de hoje, onde não há mais palmatória, onde Portanto, ambas as partes estão essencialmente preocupadas
quase não há castigo, não tem uma imagem melhor, em rela- em sobreviver. Podendo-se, uma vez ou outra, sentir algum
ção à alegria, do que a mais rude escola do passado. prazer, tanto melhor. Mas quantos possuem a força, a audácia
O mais desconcertante é o caso dos escritores: a maioria, de abrir verdadeiras perspectivas à alegria - e os meios de
ao evocar sua juventude, a juventude, nem mesmo concebe alcançá-Ia? .
que a alegria seja possível na escola. Eles proclamam que não Em seguida, concluí que não seria preciso tomar os tex-
só sua experiência de vida, mas até mesmo suas leituras, deram-se tos ao pé da letra. O adulto desenvolve atitudes bastante ambí-
essencialmente fora da escola, na maior parte das vezes na bi- guas em relação à sua juventude: muitas vezes ele tem contas a
blioteca de seus pais. A escola aliás é desacreditada tanto pelos ajustar com ela, tratando com ironia e desprezo os entusias-
escritores-professores como pelos escritores-escritores. mos, as esperanças do seu passado e só guardará, da escola, os
Dessa forma, esses intelectuais que se dedicam à cultura, momentos deprimentes.
atingindo seus mais altos níveis, e que por outro lado se diri- Quanto ao escritor, ou seja, o adulto culto e orgulhoso
gem a um público culto, não teriam conhecido nenhuma ale- de sua cultura, ele é levado a crer e a fazer crer que seu talento
gria quando a escola os iniciou na cultura. e seu êxito devem-se somente a ele: o que aprendeu durante

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sua escolaridade, na experiência comum através de exercícios e há certos professores que querem abrira seus alunos esse tipo
triviais, em companhia de colegas limitados demais para apre- de itinerário: por exemplo, formar uma personalidade de opo-
ciar o seu valor: tantos obstáculos que ele superou pela força sitor, pegar, da cultura, os temas de oposição. Determinado
excepcional de sua personalidade. Que escritor consentiria em professor lamenta que o colégio (técnico) prepare os alunos para a
narrar uma infância acomodada à instituição? Onde colocar a "obediência ... a humildade social... a resignação" e está convicto
mordacidade, a ironia incisiva? de que eles se desenvolveriam se chegassem à insubmissão:

Que fazer para que 'eles se revoltem contra mim? Porque


À procura do sentido
somente se revoltando contra mim é que eles terão aprendido
alguma coisa de mim ... Certamente eu sou o único que pode
Havia, pois, necessidade de decifrar as queixas e acusações
ensinar-lhes a revolta."
dos alunos: nem minimizá-las nem tomá-Ias ao pé da letra, mas
tentar compreender a que dificuldades elas correspondern.
Resta distinguir entre o desenvolvimento do jovem na
Perante os colegas, perante um professor "sabido", o
revolta e o simples prazer de protestar contra determinada pes-
aluno sente medo de não estar à altura e o temor se traveste soa, determinada autoridade.
facilmente em crítica e em recusa. O medo do fracasso, o Não se deve ver em toda recusa escolar a réplica legítima
medo de enfrentar o difícil acionam mecanismos profundos dos jovens, oprimidos, nem tratá-Ia como capricho infantil,
de defesa: ceticismo generalizado, recusa das obrigações e mas sim decifrá-Ia como uma das atitudes possíveis nesta tão
avaliações. rude e às vezes desesperadora ascensão à alegria escolar. Em
Há momentos em que o aluno que fracassa pode apenas suma, decodificar os textos, pois talvez eles sejam menos de-
refugiar-se no "orgulho" de afirmar que "seus resultados sesperadores que à primeira leitura.
pouco lhe importarn'Y logo, ele só pode entregar-se à "pre- Uma última observação sobre este ponto: levaremos em
guiça". Certamente não excluiremos o papel positivo dessas conta o pudor dos jovens, sobretudo quando estão em classe e
negações escolares no desenvolvimento da personalidade, mas em grupo: eles quase não deixam transparecer suas emoções
o que é denunciado então pelo jovem faz sentido muito pessoais, íntimas: "os colegas vão zombar de mim". Mesmo
menos como testemunho sobre os fatos do que como expres- que exista alegria, ela aparece pouco nos fatos e corre o risco
são de uma personalidade à procura de si mesma: "Esta du- de aparecer ainda menos na fala.
reza, (como uma) casca, crescera em torno dele porque preci- Alguns gostariam de retrucar que está na moda criticar a
sava dela"." Porque são, por definição, jovens, de modo algum escola; mas por que não a moda inversa? De fato, desde Mon-
personalidades já formadas, ainda menos fixadas; não se repre- taigne - que se diz "desapontado" porque o termo magister
sentará a pessoa do professor chocando-se com as pessoas dos possui "pouco significado honroso entre nós"? - até Francis-
alunos, mas sim alunos tentando diferentes papéis - e o que Sarcey, no final do século XIX - propondo-se como
papel de refratário pode figurar entre os mais favoráveis. nova tarefa traçar perfis de professores que deixariam de ser
Mais um passo: é justamente seguindo caminhos indire- enfim "pouco agradáveis"6 -, é bastante longa a lista daqueles
tos que certos alunos avançam, afinal, em direção à alegria- que não encontraram alegria na escola.

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Valorizada, desvalorizada, superualorizada No século XVII (em minha tese, insisti longamente
nisso), a maioria dos valores educativos são colocados ao lado
É impossível ignorar que o discurso antiescolar faz parte da austeridade e da ascese. Lembrarei um único exemplo
da batalha política geral: repetir que a escola é um lugar de disso: Jacqueline Pascal quer acima de tudo persuadir as moças
tristeza é contribuir para o desânimo, para criar uma atmos- pelas quais ela zela de que "quanto menosagradávellhes for o
fera onde os alunos se sentirão desestimulados. O jovens já trabalho que fazem, mais ele agradará a Deus".7 Trata-se de
hesitantes quanto às suas possibilidades e à sua carreira serão habituar as crianças a "trabalhar com espírito de penitência", a
mais facilmente persuadidos a interromper os estudos - e eles, "se mortificarem" no e pelo trabalho. Como conseqüência
em sua maioria, não pertencem às classes mais favorecidas. disso elas não devem "seguir suas inclinações", nem mesmo
O discurso antiescolar também pode contribuir para o "se apegando mais a uma obra do que a outra". Tais renúncias
desenvolvimento de outros centros educativos além da escola custam um preço alto, pois "é preciso vigiar perfeitamente as
- em geral à base de voluntários, escapando assim a muitas crianças, nunca as deixando sozinhas em qualquer lugar que seja".
dificuldades do escolar, mas arriscando-se a ignorar suas tenta- Sem dúvida, Jacqueline Pascal é profundamente apegada a
tivas rumo à igualdade. Retomarei mais adiante a esse assunto. esses jovens alunos e é com a maior boa fé que ela acrescenta:
É preciso dizer também que atacamos a escola porque é
É preciso que nossa vigilância contínua seja feita com
mais fácil e menos arriscado do que se opor às Forças Arma-
doçura e com uma certa confiança que os faça, acima de tudo,
das, ou à Magistratura, ou à organização capitalista, enfim, à so-
acreditar que são amados e que é apenas para acompanhá-Ias
ciedade da qual a escola não é senão uma das partes; e os fra- que se está com eles.
cassos da escola são apenas um dos aspectos dos fracassos de
nossas sociedades. Um amor sustentado pela compaixão, que se preocupa
Se a escola atraiu e continua a atrair tantas críticas, é com as individualidades, sobretudo em suas fraquezas: "Não
porque está profundamente viciada - e sua renovação é uma se deixa, no entanto, de sentir piedade delas e de acostumar-se
tarefa urgente. Tais ataques, porém, demonstram também a com elas o máximo possível". Essa condescendência não pode
intensidade das esperanças colocadas na escolarização. A escola - aliás, não deve, aqui -. compensar a negação intencional
é alvo de expectativas demasiado grandiosas para que ela possa da alegria.
satisfazê-Ias - como quando se quer transformá-Ia no labora- Nos séculos XIX e XX, o acaso me fez encontrar três
tório da paz social, do entendimento entre os povos. Depois sátiras inglesas que, de um modo evidentemente irônico, pro-
do que, atacam-na a ponto de silenciar sobre seus sucessos, os clamam o tema da escola como que organizado pela não-ale-
quais poderiam suscitar-lhe a alegria. gria dos alunos.
Em primeiro lugar, afirmar-se-a que a questão alegria-
Escolas contra a alegria não-alegria não deve ser tratada em matéria de educação:
"Seus mestres sempre pareceram considerar que a satisfação
Não é em absoluto evidente que a escola deva centrar-se que podia haver em aprender isto ou aquilo era uma coisa
na alegria dos alunos. com a qual [o aluno] não tinha nada a ver"."

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Um pouco mais e teremos a alegria castigada em praça Mas para chegar a um resultado assim, foi preciso re-
pública: "Quanto mais (o aluno) detestasse uma coisa, maiores preender muito as crianças, cujo movimento inicial era "indig-
eram as chances de que essa coisa figurasse entre as suas obri- nar-se" quando se entediavam na escola, o que é um claro
gações". Ainda aqui, a oposição entre o dever e o prazer se indício de que esperavam dela algo muito diferente.
inscreve numa perspectiva religiosa: o que é agradável "cheira a
pecado" e junta-se a um pecado primordial, fundamental: "Eu já Para levantar nosso moral
disse inúmeras vezes que ele próprio sentia estar sendo mau". É o
pecado original da inf~ncia que vem mais uma vez puxar a orelha. Eu não gostaria de deixar ao leitor impressões tão contrá-
Por meio desse conjunto de castigos e temores, os educa- rias ao fim que persigo, e antes de entregar-me a análises mais
dores esperam conduzir a atitudes de submissão: "[Ele acredi- detalhadas gostaria de fazer eco a certos autores que pelo
tava] sem hesitação em tudo o que lhe era dito por aqueles menos lançaram apelos em direção a uma escola que provo-
que tinham autoridade sobre ele". Será necessário insistir na casse a alegria.
relação, no vínculo com o conservantismo social? Victor Hugo, após um violentíssimo ataque contra o en-
Em Dickens (e também pensamos, evidentemente, na sino e os mestres, evoca o momento em que
infância de Jules Valles), os educadores estão convictos de que
Sendo o saber sublime, aprender será suave,
a experiência cotidiana basta para justificar seu preceito: o me-
Homero carregará em seu vasto refluxo
lhor método para educar crianças e formar seu caráter é "dar-
O estudante fascinado. 11
lhes tudo de que não gostavam, e absolutamente nada do que
gostavam [..,] fazer tudo o que lhes desagradava, sem nunca Mas, para obter tal êxito, a escola não pode permanecer
fazer o que lhes era agradável"9. isolada, A alegria na escola supõe que "o Sol é para todos",
Como se faz com freqüência em pedagogia, usaremos de Michelet deseja que, além dos problemas de método, a peda-
metáfora extraída do campo da biologia: não a criança se for- gogia consiga propor aos alunos "um substancial alimento"
mando e se desenvolvendo como uma flor delicada que vai desa- onde o desenvolvimento e a alegria não estejam separados,
brochar, mas como uma ostra que deve ser "aberta à força", sendo o substancial "aquilo que (na escola} alegrará, preen-
Bernard Shaw, por sua vez, evoca a escola não mais como cherá o coração da criança", 12
um local de severidade e de maus-tratos, mas sim como se esta Gosto muito de colocar lado a lado estas duas frases de
estivesse entregue a um mal talvez ainda mais inimigo da ale- esperança e de cobrança. Uma, de Freud: "A escola deve pro-
gria: a escola é a instituição que nos "habituou a nos aborre- porcionar aos jovens vontade de viver e oferecer-lhes sustenta-
cermos" e ao longo dos anos desenvolveu em nós" a paciência ção e ponto de apoio" ,13 A outra, de Einstein: "A arte mais
para aceitar, para suportar o tédio" ,10 Graças à ação da escola, importante do mestre é provocar a alegria da ação criadora e
as pessoas, quando adultas, continuam a consentir no tédio: do conhecimento'v'" •
por exemplo, assistindo a conferências como aquelas que fez Mas por que não me limitei simplesmente a Comenius,
Shaw precisamente sobre o tema do tédio .., Não há mais ne- que não aceita que as crianças sejam infelizes na escola e deseja
cessidade de um regimento escolar. fundar uma nova educação onde a alegria ocupe todo o espaço

20 21
13. Sigmund Freud, Résuliats, Idées, Problemes, I, p. 131, PUF, 1984
que lhe é devido? "O local de ensino é, por sua natureza,
alegre e afável... delícia da alma."15 Seja como for, nossos alu- (sobre o suicídio, 1910).
14. Albert Einstein, Comment je vois le monde, 1979, P: 31.
nos de hoje talvez se identificassem mais com as angustiadas
15. Comenius, L'École de l'enfonce, 1628, capoI1I, citado por J. Prévost.
perguntas que o jovem Tõrless dirige aos próprios objetivos da 16. Musil, Les Désarrois de l'éleve Tõrless, 1960, P: 34 (em alemão,
educação, a uma alegria que se esquiva não renunciando,
datado de 1906).
porém, à exploração da matéria - e esse é um dos aspectos,
,.., o menor, d"e suas pertur bacões"
nao açoes .

A cada noite, sabe-se que se aprendeu isto ou aquilo [...]


que se obedeceu ao horário; [são] preparativos, exercícios: para
quê? Experimentamos uma espécie de fome interior [e nos
perguntamos]: de tudo o que fazemos aqui, o que é que nos
levará a algum lugar?16

NoTAS
1. Em relação ao meu último livro (La joie à l'ecole, PUF, 1986), o
atual é inteiramente novo: as análises são outras, os exemplos são
diferentes e as conclusões gerais - creio e espero - foram renova-
das e enriq uecidas.
2. Elisabeth Petit, Mademolselle Simon, 1958, p. 35.
3. Marcel Proust, [ean Santeuil; t.l, capo 1, V (escrito a partir de
1896, será publicado somente em 1952).
4. Pascal Laine, L7rrévolution, 1971, P: 79 (ele é professor de filoso-
fia em um colégio técnico).
5. Montaigne L. I, Du pédantisme, capo25.
6. Francisque Sarcey, Souvenirs de jeunesse, 1885, P: 253.
7. Jacqueline Pascal, Réglement pour les enfonts de Port-Royal.
8. Samuel Buder,Ainsi va toute chair, capoXXXI, 1921, escritoem 1885.
9. Dickens, Dombey et fils, L. L, capoVII, escrito em 1848, trad. fr.
de 1864.
10. Bernard Shaw, prefácio a Mésalliance, escrito em 1909.
11. Victor Hugo, Contemplations, L. I-XII, "A propósito de Horácio",
1856.
12. Michelet, Nos fils, "Introdução", 1869.

.22 23
!I'

A PRESENÇA DA ALEGRIA ESCOLAR

L PREVER •. OATUAL

Eu ousaria, se não parodiar, pelo menos trazer para limi-


tes estritamente escolares o "final" triunfante da Ética: "A bea-
titude não é o prêmio da virtude, mas apr6pria virtude; e não
sentimos alegria porque reprimimos nossas inclinações; ao
contrário, é porque sentimos alegria que podemos reprimir
nossas inclinações",' E eu gostaria de dizer: somente se o
aluno sentir a alegria presente na escola é que ele reprimirá sua
inclinação à distração, à preguiça, à facilidade. Pode-se real-
mente ajudá-Io a progredir exortando-o primeiro a despojar-se
daquilo que o tenta?
Afirmo que a escola preenche duas funções: preparar o
futuro e assegurar ao aluno as alegrias presentes durante esses
longuíssimos anos de escolaridade que a nossa civilização con-
quistou para ele.
A criança é o desejo de crescer; inúmeros jogos compro-
vam como ela imita o que pôde conhecer da vida dos adultos.
Conhecer, adivinhar ou suspeitar. O desejo de atividade sexual
ronda: "As crianças pressentem que numa esfera misteriosa,
contudo capital, o adulto é capaz de uma coisa maravilhosa ...
nelas agita-se uma violenta vontade de fazer o mesmo"."
A preparação para o futuro constitui um estímulo certo
no presente e se inscreve na primeira categoria daquilo que eu

27
denominaria alegrias intermediárias. O "mais tarde" é o Todos os refletores voltados para opresente
campo da prática profissional, do sucesso profissional -- e
também do exercício dos direitos; estamos muito longe de um Preparação para o futuro e alegria no presente são duas
utilitarismo que deveria envergonhar-se de si mesmo. funções que deveriam ser complementares, caso nenhuma ten-
A escola abrindo-se para o futuro: "trabalhe bastante para tasse obliterar a outra. Meu temor é que hoje isso não esteja
que mais tarde ... " ou então a variante pessimista "senão, mais em questão e que a tensão, ou até mesmo a crispação sobre o
tarde ... ", Para tanto, contribuem a vida diária - "mais tarde, futuro apague a outra função da escola, o outro aspecto da
quando você não for mais criança" -, o desejo do jovem de juventude: o agora. Cabe à escola encontrar um ponto de
poder comportar-se enfim como os adultos e a pressão do seu equilíbrio entre a criança como futuro adulto e a criança como
círculo e da sociedade para que ele leve em conta o longo prazo. atualmente criança. Uma criança que desejo que seja feliz em
Esse papel é tão evidente e tão freqüentemente lembrado suas qualidades de jovem, no seu presente de jovem, a come-
que serei breve a respeito dele -- e, ademais, gostaria de dedi- çar pelo seu presente escolar.
car este trabalho à exploração de uma outra missão da escola.
A fim de endireitar o bastão torto curvando-o em sentido
Contudo, é preciso enfatizar que preparar-se para o futuro faz
contrário, façamos doravante silêncio sobre a escola como prepa-
parte das alegrias presentes na infância: o desejo de crescer é
radora do futuro. Minha finalidade, agora, é centrar este trabalho
um dos componentes essenciais do presente da criança. Expecta-
nas alegrias presentes dos jovens, dar pleno espaço às alegrias
tivas, projetos, tensão em relação ao desconhecido:
do presente, ou melhor, criar um espaço pleno, na escola, para
Ela se julga, reconhece a nulidade do que faz, do que é. as alegrias do presente. Eu gostaria de uma escola onde a
E, no entanto, está segura do que será, do que fará... tem criança não tivesse que saltar as alegrias da infância, apres-
aquela estranha sensação de que o algo mais não é o que ela é sando-se, em fatos e pensamentos, rumo à idade adulta, mas
no presente, mas o que sera, aman h-a.3 onde pudesse apreciar em sua especificidade os diferentes mo-
Os métodos e as atitudes que a escola introjeta servirão ao mentos de suas idades.
sucesso posterior do aluno e são os mesmos dos quais ele já
necessita no presente para sentir alegria. A alegria presente da Alegria de ser aluno, alegria de serjovem
criança exige um certo autogovemo e·um controle de suas ações
- e a existência adulta terá que manter e desenvolver essas aquisi- A alegria do aluno não pode ser separada da alegria do
ções. Isso significa a esperança de um futuro caloroso que pro- jovem, da alegria de ser jovem. A criança é um ser dotado para
longue a vivência atual e, reciprocamente, a satisfação atual o presente, capaz de coincidir com o interesse presente, "inteira
como trunfo dos futuros êxitos. Aqueles famosos executivos em seu ser atual"; ela tem por que amar seu presente e viver no
dinâmicos, solicitados em toda parte, não seriam adultos que presente. Eu gostaria que ela vivesse o projeto de contenta-
viveram plenamente as alegrias da infância e que não esquece- mento e mesmo ° projeto de superação, adaptados às suas su-
ram a intensidade delas? cessivas etapas: "Cada idade tem a perfeição conveniente, a
espécie de maturidade que lhe é própria; [fala-se muito] de
um homem feito, mas consideremos uma criança feita"." A

28 29
cada idade corresponde uma forma de vida que tem valor, equilí- mais longe. É essencialmente através da alegria já conseguida
brio, coerência, que merece ser respeitada e levada a sério; a que ele vai pressentir que a etapa seguinte pode lhe proporcio-
cada idade correspondern problemas e conflitos reais, mas nar muito mais alegria.5
também recursos - e que já demonstraram sua capacidade, Há algo irrefutável quando se opõe o princípio do prazer
pois, o tempo todo, ela teve que enfrentar situações novas. ao princípio da realidade, quando se repete para o jovem que
Temos que incentivá-Ia a gostar da sua idade, a desfrutar ele deve trabalhar agora a fim de assegurar seu sucesso futuro,
do seu presente. O adulto amará a juventude não só pelo que que ele deve se organizar em função de objetivos a longo
ela promete ser, mas pelo que ela já é, ou seja, um período que prazo, adiar prazeres imediatos com vistas a obter satisfações
merece ser vivido, ao invés de um mero tempo de exercícios, mais importantes e mais duradouras.
nos dois sentidos da palavra. A especificidade da infância e sua Evidentemente, esses conselhos têm fundamento; ne-
valorização constituem dois temas estreitamente ligados: na nhum de nós, educadores, pôde um dia furtar-se a eles. O
medida em que se consegue pensar a infância como distinta, perigo é que acabem desvalorizando as alegrias da juventude ..
ou seja. compreendida no seu presente, é que ela deixa de apa- O problema é defender a preparação para o futuro, fazendo
recer como uma ausência em relação ao adulto. A moderna sentir, ao mesmo tempo, que o presente comporta alegrias vá-
psicologia infantil formou-se demonstrando que a infância lidas, de boa qualidade; elas não são incompatíveis com os
não se reduzia a ensaios preparatórios, mas que já constituía objetivos globais, e pode-se selecioná-Ias a fim de que não
uma vida harmoniosa. Uma pedagogia moderna fará da escola sejam incompatíveis com tais objetivos. Não se deve postular,
mais do que um simples lugar de pré-visão. mesmo de maneira implícita, que os desejos da criança são
inevitavelmente medíocres."
Frustrações necessárias e alegrias indispensáveis No final das contas, o próprio futuro, aquelas metas dis-
tantes pelas quais incitamos a criança a se sacrificar no pre-
Para crescer harmoniosamente, a criança precisa munir- sente, não são freqüentemente apresentados como renúncia,
se de alegria no presente. É verdade que, em cada etapa da resignação, submissão? - no melhor dos casos como triunfo,
vida do jovem, as limitações, as frustrações, os momentos de o que não significa que ele seja prazeroso. A alegria corre o
não-alegria têm um papel a desempenhar, dissuadindo-o de risco de ser descartada tanto da infância como da realidade
parar, de se "fixar" no estágio em que se encontra. Mas se o futura, em prol da austeridade e até mesmo do medo. A valo-
que predomina é a insatisfação do presente, o indivíduo ar- rização da vida adulta e o preço atribuído à alegria na infância
risca-se a buscar no futuro uma espécie de refUgio e é de se finalmente caminham juntos.
temer que ele não tenha a força suficiente para construir esse
futuro, para construir-se nesse futuro. Se ele não ama seu pre- Alegrias específicas da escola
sente, se não tem confiança em si mesmo no presente, seu
desejo de crescer ameaça transformar-se em fuga para o futuro. Procuro algo além do prazer imediato, mas também algo
Bem mais do que as decepções, a alegria presente é que lhe além do sacrifício dos prazeres imediatos. Quando eu induzo
dará forças para se desvencilhar das satisfações primitivas, para ir alunos a falar sobre a alegria na escola, alguns recordam a ale-

30 31.
gria das algazarras, a alegria do companheirismo. Muitos vencer mais tarde - sem se preocuparem mais com significa-
transpõem para a escola alegrias vindas de fora, como festas dos vivenciados ou não no presente.
combinadas na escola ou excursões organizadas pela escola,
mas todas com o objetivo preciso de sair da escola. Sem negar Trabalhar e serfeliz
o valor e a importância que podem assumir tais ocasiões, pro-
curo me ater fundamentalmente ao que chamarei de alegria Há uma simples promessa: "Isto lhe servirá mais tarde ...
propriamente escolar, quer dizer, a alegria de esperar o que me mais tarde você dará valor". E o agora? A partir daí, os alunos
parece constituir a propriedade característica da escola: a con- ficam evidentemente tentados a antecipar esse futuro, a se
vivência com a "cultura cultivada" que culmina na relação transportarem imediatamente para o "mais tarde" e, como eles
entre o aluno e os mais belos resultados atingidos pela cul- dizem, a "trabalhar", o que estranhamente significa que não se
tura/ as grandes conquistas da humanidade em todos os cam- está mais na escola. A escola deveria ser um local de alegria
pos, desde poemas até descobertas prodigiosas e tecnologias para os alunos e também para os professores. Na realidade, eu me
inacreditáveis. Alegria cultural, alegria cultural escolar... Eu ocuparei quase que somente dos alunos; contudo, privilegiar a
anuncio em algumas palavras os desenvolvimentos vindouros. alegria dos alunos já seria contribuir bastante com os professores.
Essas são alegrias impossíveis de ser atingidas sem inten- O bom seria perguntar à criança, quando esta voltasse da
sos esforços. Tais alegrias, vividas no presente do aluno, longe escola: "Você estudou direitinho?" E, no mesmo tom de voz:
de anular, justificam as exigências, compensam a demanda "A aula foi agradável? Ela trouxe algo de novo para você?".
constante para esse "se aplicar". Com, apesar de tudo (e tenho que admiti-lo), este equívoco
fundamental: mesmo que a escola não satisfaça completa-
"O esforço vale a pena, em vista da alegria que ele me
mente o aluno, este não pode ser o motivo para que ele a
proporciona", dirão os alunos, pelo menos de vez em quando,
abandone. Como fazer com que os alunos sintam que podem
"vale a pena levantar tão cedo todo dia e engolir tanto sapo".
e devem reivindicar a alegria escolar no presente? Com profes-
Ando à cata de alegrias escolares presentes, não imediatas -
sores que ousem dizer a seus alunos que o trabalho na escola é o
senão o que seria da ação do educador? -, mas conseguidas
contrário do tédio: "Nós vamos viver juntos uma bela aventura"."
na vida presente da classe, digamos que durante as semanas
Recreação - esse estranho termo: é evidente que a gente se cria,
dedicadas à abordagem de um determinado tema de estudo.
que a gente se recria e se recreia melhor fora da sala de aula?
Se, num passado recente, os alunos puderam verificar,
É claro que o trabalho dos adultos nas empresas pode
dentro de um determinado prazo, que seu trabalho efetiva-
incluir a alegria, embora não tenha por objetivo nem a forma-
mente lhes retribuía a alegria prometida, eles darão ao profes-
ção do indivíduo nem a busca da alegria. Eu gostaria que o
sor um crédito breve e satisfatório: a promessa de que, ao cabo
trabalho dos alunos na escola fosse vivido de modo bastante
de seus esforços, eles conhecerão a alegria de compreender, de
diferente: as obrigações, inevitáveis tanto num caso como no
se comover, de saber fazer ..•
outro, não representam aqui condições de produtividade e de
O que me parece temível é que alunos e professores lucro, mas etapas em direção à alegria - a menos que se che-
vejam-se reduzidos, com tanta freqüência, a experimentar a gue ao extremo de dizer que o trabalho escolar poderia ser o
escola como tempo inevitável de preparação, espera, meio de exemplo precursor do que será um trabalho adulto livre.

32 33
Se fosse possível fazer tudo o que quiséssemos Diversas causas me parecem favorecer as iniciativas
atuais, apesar dos problemas provocados pelas crises, pelas di-
Agora, quero parodiar Platão. Sócrates explica muito ficuldades sociais, pelas decepções de todos os tipos: durante
bem que, para a imensa maioria dos homens, a justiça se reduz as últimas décadas, a pedagogia e as ciências da educação preo-
a uma triste necessidade: se não respeito a propriedade do vi- cuparam-se bastante com os métodos e as relações pedagógicas
zinho, que garantia posso ter de que os meus vizinhos respeita- e, assim, realizaram-se progressos nessas áreas. Agora, começa a
rão minha propriedade? É compreensível a sedução exercida operar-se uma conscientização da essencial importância dos
pelo mito de Giges, aquele que podia tornar-se invisível e co- conteúdos ensinados, gerando, dessa forma, um esforço para a
meter assim todas as infrações que quisesse sem o risco de renovação dos mesmos. Não basta que na escola se formem os
represálias. Sócrates, ao contrário, sustenta que a justiça representa instrumentos, os métodos e os hábitos destinados essencial-
para· cada um a saúde e a harmonia do seu ser, participando da mente a servir ao "mais tarde". Manifesta-se cada vez mais a
harmonia do cosmos. Não é verdade que para muitos a escola se preocupação com uma cultura escolar suscetível de responder
reduz a urna triste necessidade? É preciso que a juventude seja às demandas atuais dos jovens.
vivida em algum lugar, é preciso passar a juventude preparando a Temos uma segunda razão para acreditar que o eterno
pós-juventude... Qual Sócrates fará urna escola onde o aluno problema da alegria na escola possa conhecer um progresso
possa encontrar a consonância consigo mesmo? decisivo hoje. Durante séculos, a escola pôde subsistir propor-
Esse sonho de reconciliar a escola e a alegria presente não cionando aos alunos pouquíssima alegria no presente. Mas,
data de hoje. Basta pensar em Rabelais e mesmo IlO século hoje, muito mais jovens passam muito mais tempo na escola,
XVII, época já evocada pela sua austeridade educativa, e ouvir não só todas as fases da infância corno uma grande parte das
madarne de Maintenon fazer um trocadilho: "Uma educação fases da adolescência se desenvolvem no universo escolar. A
triste é uma triste educação". E Fénelon por sua vez: adolescência escolarizada exerce uma influência sobre a infân-
cia, que está ciente de ter um longo período de aulas pela
Observai uma grande falha das educações habituais: co-
frente. Não se trata mais de um período breve no qual é possí-
loca-se todo o prazer de um lado e todo o aborrecimento de
vel resignar-se com a ausência de alegria _.- provisoriamente.
outro; todo o aborrecimento no estudo, todo o prazer nos diver-
timentos. Que pode fazer uma criança senão suportar impacien- É fundamental ressaltar, em terceiro lugar, que a escola
temente essa regra e correr ansiosamente atrás dos jogos?9 atual recruta uma parte de seu "público" nos meios sociais
onde o presente, a alegria do presente e mesmo a festa do
Hoje, maiores chances de alegria presente ocupam um espaço considerável. Os argumentos
clássicos de economia, de investimento, do longo prazo têm
Assim, o ideal da alegria na escola, da alegria presente na pouquíssimas chances de serem levados em consideração por
escola nunca desapareceu. Porém, como eu já disse, quando esses novos consumidores da escola. É verdade que, em qual-
procuro testemunhos, notadamente entre os escritores, deparo quer época, a infância e a adolescência constituíram momen-
com uma imensa maioria de descontentes. Podemos ter a es- tos da vida ávidos de alegria presente e aptos à sua fruição.
perança de acertar mais que as coortes que nos precederam? Mas o mundo contemporâneo produz jovens mais capazes,

34 35
em relação ao passado, de conquistar essa alegria. Sem diferen- institucionalizar que os jovens só encontram alegria na vida
ciar o que é causa e o que é conseqüência, eles passam a pro- extra-escolar, e a escola se veria reduzida a atividades fragmen-
curá-Ia, a solicitá-Ia, a exigi-Ia com mais intensidade. tárias de exercícios. Mas, felizmente, podemos encarar a situa-
Por um lado, o lazer se estruturou em instituições. Os ção pelo seu lado positivo e concluir que nosso tempo propõe
instrumentos de lazer, desde a televisão até a organização dos como dever real a reconciliação entre a escola e a alegria.
esportes e das férias, ocupam posições-chave em nossas socie-
dades, sem paralelo com as simples distrações de tempos atrás.
Ademais, certas instituições de lazer, consideradas como meios IL A ExTRA-ESCOIARIDADE EAALEGRIA DO
de formação, estabelecem uma concorrência cada vez maior PRESENTE
com a escola. Elas prometem aos seus seguidores ~ que não
são alunos, que não são constrangidos como alunos _.- progre~ Evidentemente, eu poderia buscar essa alegria cultural do
dir sem despender tanto esforço como na escola, desfrutando presente no âmbito da extra-escolaridade e teria, num certo
da alegria muito mais rapidamente do que na escola. Se a escola sentido, menos dificuldade de encontrá- Ia. A extra-escolari-
não quer travar um combate por demais desigual, ela deverá se dade oferece uma diversidade que permite responder aos dife-
preocupar bem mais com a satisfação de seus adeptos. Enfim, rentes desejos, à multiplicidade dos gostos - desde a equita-
os temas da penitência, da dificuldade e do valor educativo ção até os grupos de rock - e desenvolver atividades não
tendem a se dissipar. Vivemos num mundo onde a procura da praticadas em aula, ou quando muito praticadas raramente.
alegria, ao invés de provocar culpa, aparece como um dos valores A extra-escolaridade é, na maior parte das vezes, opcio-
mais confessáveis, às vezes mesmo como um valor dominante .. nal; escolhemos o que queremos fazer, escolhemos prolongar
Dessa forma, o desejo de alegria dos jovens, mais forte, essa atividade até que ela não nos agrade mais. Além disso,
mais reconhecido que antigamente, encontra menos oposição, muitas das atividades da vida extra-escolar (esporte, música) se
em princípio, na sociedade dos adultos, ainda que as dificulda- orientam para fins próximos, estão pouco preocupadas em
des de aplicação permaneçam extremas. O ascetisrno é um preparar o fUturo e não pesam portanto como preocupações distan-
valor em baixa em todas as camadas da população. Mesmo tes, mesmo quando o resultado é medíocre. Por todas essas razões, a
que ainda quase não se diga que educar é ir em direção à luta contra a não-alegria é menos intensa do que na escola.
alegria, afirma-se menos que antigamente que educar é ir A extra-escolaridade ora retoma, à sua maneira, setores já
contra a alegria. A "sociedade de consumo" tem como verdade escolarizados, ora se abre para atividades que (ainda?) não tive-
a procura da alegria, mesmo que se tenha receio de que a ale- ram lugar na escola. É inegável que ela pode oferecer, aliás, as
gria escape precisamente quando procurada dessa maneira. ,llegrias da cultura mais elevada.
Aliás, os jovens dão provas de uma crescente impaciência
ante uma escola que lhes oferecesse pouca alegria e ameaçam, Não me posso impedir de ser reticente
finalmente, recusá-Ia de forma cada vez mais intensa. Está em
jogo o papel que a escola deve desempenhar e talvez até É o gosto pelo paradoxo ou pelo masoquismo do fracasso
mesmo sua sobrevivência. Acabaríamos por admitir e mesmo que me faz teimar em buscar a alegria. na instituição - a es-

36 37
cola - que aparenta ser a mais apropriada para excluí-la? Na operários especializados e de filhos de operários especializados
verdade, tenho vivos temores em relação às próprias alegrias imigrantes irá buscar os prazeres da li nguagem?
que a extra-escolaridade suscita. Não ter necessidade de en- Sonho com uma complementaridade e uma harmoniza-
frentar sanções ou avaliações como na escola retira, sem dú- ção entre a vida escolar e a vida extra-escolar, acima de tudo
vida, um grande peso, mas o amadorismo não pode cair numa no que diz respeito às instituições extra-escolares. A escola é
certa insipidez devido à descontinuidadei A solução seria res- um tempo da vida do jovem; ela não deve querer reger toda a
tabelecer a emulação através dos jogos e concursos - mas sua existência nem se considerar a única detentora de todas as
então seria julgada por quem? Seria desanimador para quem? formas de cultura.
Receio, sobretudo, que a extra-escolaridade se encaminhe Ela me parece indispensável, por um lado, por ter a
para as alegrias fáceis e que renuncie ao supremo, à obra- oportunidade de atingir largos contingentes de jovens, mesmo
prima. Evocada por um instante na televisão, a obra-prima que reticentes - digamos, com otimismo, inicialmente reti-
atua como um complemento, fica marginalizada, afogada em centes --, e, por outro, por superar o nível dos gostos e dos
meio a dez outros tipos de entretenimento. Existe a preocupa- hábitos já familiares, levando a um nível mais elevado.
ção de voltar a atenção para as grandes criações e para o indis- Aliás, dá-se livre curso ao desenvolvimento das indivi-
pensável esforço que deve ser feito para desfrutá-Ias? Resta o dualidades na extra-escolaridade. Não esqueçamos, porém,
recurso de negar a obra-prima e de proclamar que o gosto pelo que a vida escolar ajuda a vida extra-escolar, pois esta última se
romance policial tem o mesmo valor que o goSto por Rim- realiza de maneira bastante diferente conforme o nível básico
baud. Esses aforismos são muitas vezes proferidos por autores dos interessados. Em suma, mesmo que eu às vezes inveje os
cobertos de títulos, distinções e honrarias e insisto em ver prazeres da extra-escolaridade, não pretendo renunciar à in-
nisso um dos meios mais sutis para os bem-sucedidos de con- trodução da alegria do presente na escolaridade.
tinuar a reservar para eles próprios e para a sua classe social a
leitura dos grandes escritores - e as vantagens que, inevitavel- Cultura desinteressada?
mente, decorrem disso.
Receio que a extra-escolaridade não amplie realmente a Quero dizer de passagem que tenho a maior dificuldade
variedade dos gostos, pois, dentro do contexto das formas de em empregar o termo cultura desinteressada e não gostaria,
lazer "livres", cada um procura o que já aprecia ou já domina; portanto, que ele fosse confundido com a busca de alegria na
e, ao mesmo tempo, corre-se o risco de acentuar os desníveis escola. É claro que eu não penso, em absoluto, que a escola
sociais, de consolidar ainda mais fortemente as desigualdades. (nem mesmo e principalmente a escola técnica) tenha por ta-
Não há dúvida de que a escola está muito longe de conseguir refa visar a fins imediatos de inserção profissional. Gostaria,
êxitos iguais dos jovens de todas as origens, mas a extra-escola- aliás, que a especialização profissional e também cultural,
ridade não atinge nem mesmo de maneira unitária o conjunto quando, apesar de tudo, se fizer necessária, continuasse a in-
da população. Se é proposta uma atividade envolvendo futebol cluir uma formação total da pessoa.
e uma atividade envolvendo poesia, deixando-se cada um ir Mas muito se abusou do termo "desinteressado": por
para onde o conduz seu "desejo", que proporção de filhos de exemplo, durante muito tempo o estudo do latim foi apresen-

38 39
tado como o tipo por excelência de formação desinteressada.
2
Porém terminava-se a sua defesa demonstrando que, através
do seu .aprendizado, o aluno poderia ter mais chances no fu-
turo de atingir posições invejáveis. O desinteresse temporário ALEGRIA E NÃO-ALEGRIA
se resumia a uma antecipação bem conduzida, a uma boa co-
locação de pai de família. Procuro uma escola interessada, in-
teressada em ser, no presente, interessante.

NOTAS

1. Spinoza, L'Ethique, 5a parte, Proposição 42. Estou falando sem parar de alegria; vou invocar a alegria
2. Sigmund Freud, Un souuenir de Léonard de Vinci, cap.v, publi- cultural, a alegria escolar, chegarei mesmo a introduzir o neo-
cado em 1910. logismo "não-alegria", indispensável para minha tentativa de
3. Romain Rolland, Jean Christophe, 2, Le Matin, última página, examinar as relações entre alegria e tristeza. Não pretendo che-
1904. gar ao extremo de retomar os debates da Antiguidade entre
4. Jean-Jacques Rousseau, Emile 11, La Pléiade, p. 418. estóicos e epicuristas para determinar as noções de prazer, de
5. De acordo com Janine Chasseguet-Smirgel, Revue française de soberano bem; não sou de modo algum favorável a uma forma
psychanalyse, dez. 1973. de eudemonismo. Contudo, conservaria da Antiguidade, com
6. Cf. Bruno Bettelheim, Survivre, trad, de 1974. muito gosto, a confiança atribuída à alegria, confiança a tal
7. Empregarei sempre o termo "cultura" no sentido normativo de
ponto relevante que Aristóteles recusa qualquer discordância
cultura cultivada; refiro-me a valores e obras culturais. Mas gostaria,
entre a alegria e a pertinência da ação correspondente: "O ato
ao mesmo tempo, de introduzir uma ligação com os interesses da
de virtude é acompanhado de prazer ou, pelo menos, é des-
vida cotidiana, do trabalho, das atividades de lazer,
8. Alain Bosq uet, L'Enfont que tu étais, 1981, p. 319. provido de amargura e, em todo caso, não é algo penoso". 1
9. Fénelon, Traité de l'éducation desfilles, capoV. Desse modo, é a presença ou a ausência da alegria que se torna
o sinal da validade moral de nossas ações:

o homem que teme a sombra do perigo, que tem medo


de tudo, que é incapaz de suportar qualquer coisa, torna-se
covarde, enquanto o que de nada tem medo e enfrenta tudo se
faz temerário. Igualmente o que se. abstém de toda classe de
prazeres encontrando alegria é temperante, enquanto o que se
aflige é internperante.ê

A pedagogia de Kant é vista muitas vezes como um pane-


gírico acanhado do dever, exclusivo da vida dos sentimentos.

40 41
Na realidade, a alegria é colocada como sendo necessária ao busca. Mas até onde a angústia do desejo pode se introduzir
progresso moral: "Um coração alegre é o único capaz de sentir na alegria sem ameaçar a existência desta? Para tomar o meu
satisfação ao fazer o bem"." Não ter vergonha da alegria e sim tema na sua globalidade, gostaria de tentar apreender a inter-
exaltar o gosto, o desejo de alegria. secção da alegria e das tristezas.
Eu sonho em poder estabelecer um vínculo com Spinoza,
quando ele distingue o prazer, parcial e passageiro, da alegria, As angústias
onde o essencial está em jogo. Todo o ser e o movimento de
todo o ser estão interessados nisso, um caminho é aberto Cultura é conscientização e por isso mesmo exacerbação
rumo à investida total: "Quanto maior é a alegria, mais passa- de conflitos e dores. A partir do momento em que me tira do
mos para uma perfeição maior". 4 "banho morno", ela me obriga a confessar as angústias e
A alegria é um ato e não um estado no qual nos instala- discórdias que existem dentro de mim, ela me coloca diante da
mos confortavelmente, é «a atividade de passar para ... ". A ale- miséria e da vergonha dos homens. A guerra é testemunha
gria também é um ato na medida em que, através dela, "a atroz de que a humanidade não conseguiu sair de sua pré-história.
potência de agir é aumentada", um acréscimo de vida, fazendo A cultura são também os transviados, os dilacerados, os
o indivíduo se sentir como que prolongado, enquanto a não- delirantes, os malditos, os abismos, meus abismos, o louco que
alegria vai se restringir, se reduzir, se economizar, ficar de vigí- eu trago em mim e que me ameaça. A cultura vai me abando-
lia ou entregar-se à dispersão. nar por meio das minhas angústias?
Como eu gostaria de retomar, conforme o meu modo de Ruptura (e arrependimentos) em relação aos prazeres pri-
ver, este pressentimento poético de uma relação entre a alegria mitivos, a uma vida mais simples, a posições que pareciam já
asseguradas e vividas com um certo conforto. Que acontece
e a luz:
com nossas crenças mais singelas, à medida que penetramos na
No espelho de fogo da verdade cultura? Rupturas também com os menos cultos ou simples-
A alegria sorri a quem a busca.5 mente com aqueles que têm outro tipo de cultura: geralmente
com a família, com os primeiros colegas. A angústia é mais
o provérbio inglês simplifica sem dúvida a situação, mas viva entre aqueles que vêm de mais longe até a nossa cultura:
é muito gracioso: são inúmeros os imigrantes que se envergonham tanto do seu
meio quanto de separar-se dele. Seria progresso ou traição adotar
o que interessa na vida é ser feliz valores e um modo de vida que os seus não compartilham?
O lugar de ser feliz é aqui Em contrapartida, alguns alunos "burgueses" experimen-
A hora de ser feliz é agora. tam certo mal-estar na condição de privilegiados, rompendo
então com a sua classe para conviver com "pés-rapados" ou
Na verdade é aí que os problemas se multiplicam: na me- lamentando não ousar fazê-Ia.
dida em que a alegria é passagem, ela é "desejante", marcada,
portanto, pela necessidade e até mesmo pela falta. Ela se rela-
ciona, assim, com o modo de vida dos jovens que é transição,

42 43
As dominações fraco ou a alguém diferente dos outros, na exaltação bélica
contra aqueles que não pertencem ao meu grupo.
Existem na cultura ideologias a serviço dos dominantes e E há também as alegrias fáceis: deixar-se levar pelo con-
fragmentos de ideologia dominante, e não estou bem seguro formismo, aderir às correntes da moda é o quanto basta para
de poder evitá-los: todos os discursos que, para manter a que fiquemos tranqüilos com a coincidência dos gostos. Ideo-
ordem estabelecida e garantir o respeito e a submissão às auto- logias simplistas que pregam o mundo como ele é: os conflitos
ridades, justificaram as segregações - os negros, as mulheres e são escamoteados, as preocupações são reabsorvidas, desde que
o povo foram vistos então como insuficientemente maduros, por- cada um contribua para isso com um pouco de boa vontade
tanto, incapazes e indignos de gozar os direitos dos adultos. ou simplesmente de gentileza. O importante é aceitar no todo
Existem também os silêncios dessa cultura. Reina-se as coisas tais como elas se apresentam.
ideologicamente a partir do que não se diz: a escravidão, os
massacres dos índios etc. A ideologia dominante me parece Estar alegre e manter os olhos abertos
condenada a uma oscilação incessante entre as afirmações "a si-
tuação é, no geral, satisfatória" e "não se pode fazer nada melhor, Como fazer face à torrente de acusações contra a alegria e
tudo o que se tentou conduziu ao fracasso, reforçou o fracasso". também contra a ausência de alegria na cultura? Este trabalho
Quando se trata de uma ideologia dominante "avan- deveria ter por conseqüência, pelo menos eu o espero, o resta-
çada", ela se comove com as boas intenções daqueles que que- belecimento dos direitos da alegria. Eu gostaria simplesmente,
rem mudar algo mas demonstra, do mesmo modo, o fracasso neste momento, de fazer algumas observações preliminares.
e as catástrofes que eles desencadeiam ao querer fazer algo me- Sobre a alegria da crueldade: Adler analisa o homem
lhor do que o que já existe. cruel como aquele que primeiro se deixa levar pela piedade, a
Tem-se um avatar da cultura: ela pode tornar-se evasão, qual é sentida depois como uma fraqueza, levando-o a insta-
esquecimento, isolamento e refúgio em um mundo etéreo que lar-se obstinadamente no extremo oposto. Aparece, assim, o
se faz presente apenas em oposição ao mundo do cotidiano - aspecto incompleto essencial das alegrias "perversas": elas só
oásis num mundo dilacerado que eu abandonaria às suas dis- existem esforçando-se para não levar em consideração as não-
córdias. A cultura pode, assim, manter-me emparedado na re- alegrias, as angústias e os problemas, congelando-se num
signação e no fatalismo. O mundo e a ordem do mundo apa- bloco rnonolítico."
receriam como um dado "natural" contra o qual nada pode; e Do mesmo modo, as alegrias da cultura-evasão dirigem-
o homem, como uma "natureza" mais ou menos idêntica ao se apenas a uma parte do indivíduo: exigem que se coloquem
longo do tempo, dificilmente mutável. Querem me conduzir à fora do circuito porções essenciais de si mesmo, a ligação teo-
alegria da aceitação, deixar-me satisfeito com o que é um pá- ria-prática. Mas não se consegue esquecer completamente os
lido e frio reflexo da alegria que eu já havia sentido. Quanto à imperativos do mundo do qual se gostaria de fugir: eis um
própria alegria, não posso evitar certas questões espinhosas: as segundo aspecto incompleto.
alegrias perversas, as alegrias da crueldade (Schadenfreude), A alegria do conformismo mantém-se tão-somente por
para não falar em sadismo, em maus-tratos a alguém mais querer ignorar as angústias e por deixar de lado as aspirações

44 45
dos explorados, como o conhecimento das transformações já nos ensinou que o homem não desempenha um "papel predo-
realizadas em sua vida. Isso significa ignorar a porção de aber- minante no Universo", que ele não é "dono do mundo", pois
tura, de generosidade que existe nos outros, em particular nos a Terra não é o ponto central do Universo. Darwinanula
jovens, que ainda têm chances de escapar da esclerose da boa "nossa pretensão de estarmos separados do mundo animal".
.".
conscrencia. Freud apresenta-se como o terceiro dos mortificadores, nos ensi-
Procurar alegria na cultura implica não pegar qualquer nando que "o ego não manda na sua própria casa"; não sabe-
cultura e sim escolher entre as culturas, e para isso vejo dois mos o que se passa em nós e, pior ainda, não nos direcionamos
critérios: 1. uma cultura e uma alegria que se dirijam ao con- conforme uma vontade clara, já que o inconsciente se encontra no
junto da personalidade; 2. uma cultura e uma alegria que não princípio de nossas condutas e de nossos pensamentos,"
ignorem as angústias, que num certo sentido as provoquem, Num certo sentido, as análises de Freud são irrefutáveis.
mas que também abram caminho para superá-Ias através da O progresso cultural, de fato, minou certas alegrias simples e
denúncia, do desmascaramento, não mais tolerando as falsas em seu lugar fez nascer angústias. Mas a cada uma dessas de-
aparências tranqüilas - e então o mundo começa a parecer cepções culturais contrapõe-se uma alegria.
como um conjunto de tarefas e de exigências. A psicanálise constitui, acima de tudo, um certo domínio
É preciso ainda que a cultura que elucida as exigências do nosso inconsciente e, finalmente, de nós mesmos. Com ela,
não as torne, por isso mesmo, impossíveis. Talvez seja necessá- pode-se impedir que mecanismos psíquicos perigosos se apro-
rio chegar ao extremo de dizer que cada aquisição de alegria veitem da nossa ignorância.
cultural é acompanhada de responsabilidades e de angústias Na peça de Brecht, o astrônomo moderno exibe o es-
novas. Eu quero, eu escolho culturas cujo balanço seja posi- plendor de um mundo expandido até o infinito:
tivo, onde o excesso de alegria ultrapasse o excesso de "incô-
modo". Durante dois mil anos a humanidade acreditou que o
Enfim, aspiro a momentos de alegria, explosões de ale- Sol e todos os astros do céu giravam em torno dela... mura-
lhas, conchas e a imobilidade!"'Hoje, tomamos coragem e dei-
gria num contexto que oscila entre o difícil e o atroz, aspiro a
xamos que eles se movam em liberdade, sem repouso ... E a
alegrias que "compreendam" angústia e dor, que, "co-nasçam"
Terra gira alegremente em torno do Sol [e os homens] giram
com a angústia e a dor. Não aspiro à felicidade, que me parece
com ela. De um dia para o outro, o Universo perdeu seu
evocar a prudência num sentido de abstenção mais ou menos centro e, na manhã seguinte, havia um sem-número deles.
estóica, ou referir-se a um subentendido religioso. Assim, hoje todo mundo e ninguém pode ser considerado o
centro, pois de repente sobra lugar. Nossos navios vagam ao
A cultura rebaixada, a cultura realçada largo, nossos astros se movem ao largo num vasto espaço.

Alguns autores podem me ajudar a captar essa alegria ex- o Universo torna-se grandioso, incomensurável nas ima-
posta à não-alegria, mas que emerge, não obstante, desta última. gens de um antropocentrismo primário. No evolucionismo de
Freud afirma que os resultados essenciais atingidos pela Darwin, Jaurês encontrou um dos pilares de seu otimismo:
cultura se reduzem a outras tantas "humilhações'? Copérnico "Que os alunos possam imaginar de um modo geral a espécie

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humana dominando pouco a pouco as brutalidades da natu- uma citação do Fausto de Goethe) nos impele sem trégua para
reza e as brutalidades do instinto'? ou ainda, "a lição da vida a frente, sempre para a frente". Alegria da conquista, alegria de
que, degrau por degrau, parece ascender em direção a um pín- um progresso que não tem fim.
caro, como se a vida tivesse como lei, inscrita na própria natu- No amor, Freud afirma que "as mais belas manifestações
reza, superar-se sempre"." Sentir-se merecedor dessa imensa ele- de nossa vida amorosa, devemo-Ias à reação contra a impulsão
vação alimenta uma confiança sempre renovada do homem hostil que sentimos em nosso foro íntimo". A alegria do amor
em S1 mesmo. torna seu impulso no ódio, mas se distancia bastante dele.
Subsistem os sofrimentos culturais denunciados por Enfim, parece possível uma reconciliação entre o princí-
Freud; contudo, mesmo permanecendo pungentes, eles são pio do prazer e o princípio da realidade: quando a cultura (na
como que encobertos por alegrias muito mais intensas. verdade, fala-se aqui da pintura) é encarnada por uma obra,
uma criação, ela simultaneamente é resultado do "livre curso
Alegrias e dores, mas nunca em partes iguais dos desejos", nela se manifesta a "satisfação das pulsões" e não
é mais forçada a "renúncias"; e ao mesmo tempo o artista
Esse entrelaçamento entre alegria e não-alegria, resul- soube "retomar pé na realidade" e pode-se dizer que ele en-
tando finalmente numa vitória da alegria ou num coeficiente controu o "caminho de volta", aquele que vai do desejo ao
superior de alegria, não teria sido mais bem analisado do que fato. Aí está a obraY
pelo próprio Freud. Ele fala em três fontes de sofrimento: Transformando-se em realidade artística, o desejo escapa
ao risco de encerrar o indivíduo em si mesmo, em seus so-
A pulsão recalcada não pára nunca de procurar sua com- nhos. Pode-se estabelecer a alegria de uma comunicação in-
pleta satisfação e, no entanto, nada pode pôr fim a seu estado tensa entre o artista e seu público, sem que o desejo tenha que
de tensão permanente [de maneira que subsiste a cada vez uma]
se restringir. As obras de arte seduzem pelo "prazer ligado à
diferença entre a satisfação obtida e a satisfação perseguida. 11
beleza da forma"; o real, quando tocado pela beleza, deixa de
ser aquele obstáculo que bloqueia nossas aspirações. Basta
Mais particularmente, a não-alegria do ódio é um com-
substituir os criadores por alunos e responsabilizar a todos nós,
ponente indispensável à alegria do amor: união e mesmo unidade
que somos meros amadores, pela luta vitoriosa da alegria.
de "nossas mais ternas atitudes amorosas" com uma "hostili-
dade que pode chegar a comportar um desejo de morte incons- A alegria cultural não é serenidade satisfeita, ela é sempre
ciente". Enfim, em toda a nossa vida, o princípio do prazer atravessada e confrontada por elementos de não-alegria; esta
tenderia à satisfação de nossos desej os, mas ele se choca com o não é um primeiro momento que seria depois suprimido pela
princípio da realidade, ou seja, com a tristeza das limitações. alegria. Na realidade, a alegria é conquista instável, a ser ar-
Entretanto, toda vez Freud abre um caminho pelo qual a duamente defendida, pois está sempre ameaça da de recair no
alegria pode levar a melhor. No primeiro caso, é a própria desespero. É impossível separar a alegria cultural da luta para
distância entre o desejado e o realizado que se torna "a força superar a não-alegria; é preciso participar dessa luta. Deve
motriz, o aguilhão que nos impede de nos contentarmos com haver lucidez nessas lutas, "sarça ardente".
uma situação dada, qualquer que seja ela, e que (trata-se de

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É aos poetas que eu me entregaria para sondar esse assunto:
NOTAS
Piedade de nós que sempre combatemos nas fronteiras
1. Aristóteles, Éthique à Nicomaque, IV-1, 1120a.
do ilimitado e do futuro.
2.Id op.cit., Il-2, 1l04b.
É de sofrimento e de bondade
3. Emmanuel Kant, Réflexiom sur l'éducatíon, p.135.
que sera'fi'erta a ble eza. 13
4. Spinoza, 111- Définitíon des sentiments, N 45.
5. Friedrich Schiller, Ode à Ia joie, V.
Partilhar dos dramas daqueles que combatem, participar 6. Adler, Connaissance de l'homme, 2a parte, capo 5, .publicação de
da alegria de ultrapassar limites que pareciam definitivos: ape- 1927.
sar de tudo, a luz vai brilhando cada vez mais. Para ir em 7. Sigmund Freud, lntroduction à Ia psychanalyse, XVIII, publicação
direção à alegria, conto com as obras e os homens de cultura, de 1916.
já que esta está comprometida com a alegria. Quanto ao desa- 8. Podemos notar uma ressonância dramatizada dessa passagem de
lento, consigo vencê-Ia muito bem sozinho. Freud num livro recente: o professor de física lhes ensina "dois se-
gredos terríveis" e o jovem afirma: "Desde então, creio que as duas
Transposição diddtica da alegria feridas que ele abriu jamais cicatrizaram completamente". Em pri-
meiro lugar, "a Terra não é, como acreditávamos, o centro do Uni-
o problema consiste em passar da alegria/não-alegria da verso; o Sol e a abóbada celeste não giram, muito dóceis, em torno
cultura para a alegria/não-alegria da cultura dentro das condi- de nossa Terra; nosso planeta não passa de um asrrozinho insignifi-
cante, atirado num canto da galáxia e girando servilmente em torno
ções escolares.
do Sol. A coroa real caíra da cabeça de nossa mãe Terra". E a se-
A escola é terrivelmente difícil de suportar quando com- gunda afronta: "O homem não é a criatura querida. privilegiada de
parada aos momentos em que o jovem pode fazer aquilo que Deus ... ele é, como os outros, um elo da infinita cadeia dos ani-
deseja, na proporção que deseja e do modo como deseja sem mais". Daí a conclusão: "Nós, os homens, somos insignificantes".
que lhe prescrevam determinado objetivo e determinado mé- Kazanrzakis, Leme au Greco, p. 114.
todo para atingi-lo, sem que tenha que prestar contas nem ser 9. jean jaurês, Aux instituteurs, artigo de janeiro de 1888, ed. Riedec
avaliado, sem que seja obrigado a uma atividade de resposta. 10. Id., Díscours, janeiro de 1910.
Tais momentos podem acontecer em companhia de colegas 11. Sigmund Freud, Au-delà du príncipe de plaisir, V, Essais de
que o jovem, afinal, mais ou menos escolheu, que partilham psychanalyse, 1920.
sem dúvida dos seus gostos, enquanto o grupo escolar... 12. Sigmund Freud, Résultats, Idees, Problemes, I, p. 135, PUF, 1984
(os dois princípios, 1921).
O aluno corre o perigo de sentir-se vencido pela escola
13. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: La [alie Rousse, Collines,
("eles" são mais fortes, tenho que ir à escola), enquanto meu
1918.
problema, minha tarefa e meu tormento são estudar como a
alegria escolar pode levar a melhor sobre as alegrias da cultura
inicial e da cultura do lazer.
Para compensar todas as suas desvantagens, é preciso que
a escola se encaminhe em direção à obra-prima.

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51
3

JOVENS EADULTOS

I.OPOSIÇÃO ENTRE JOVENS EADULTOS:


RFALlDADES E QUIMERAS

Há realmente pouca esperança de alegria cultural na es-


cola se a juventude se reduzir à fraqueza, ao informe, às trevas
e à incerteza - ou pecado original, ser desnaturado que tem
necessidade perpétua de ser corrigido, ou ainda, amontoado
de humores e caprichos, abrandados com alguns prazeres sim-
plórios. A juventude não levada a sério, desvalorizada, indigna
do adulto, como poderia ela elevar-se até a alegria cultural?
Sua educação deve então ocorrer na dausura e no isolamento,
sob o signo da restrição e da austeridade. A criança deveria ser
infeliz por não passar de uma criança. Como uma ladainha
repetem-se as queixas seculares dos adultos contra os jovens,
de toda geração contra a geração seguinte.
É preciso dar um basta ao fato de a vida da criança e a
vida do adulto não encontrarem linguagem comum, de a vida
da criança e a do adulto só estarem ligadas (se assim me posso
exprimir) pela descontinuidade. Esse aspecto provocou não-
alegria em Simone de Beauvoir: "Meus pais repetiam que a
vida faz esquecer as amizades de infância ... os adultos não par-
tilhavam das nossas brincadeiras nem dos nossos prazeres". 1
Também não se deve aceitar que a infância seja interrompida
pela adolescência e pela vida adulta e constitua um episódio

53
tranqüilo, sem dúvida mas pelo fato de se desenvolver dentro Se as crianças continuassem a se desenvolver da maneira
de falsidades tranqüilizadoras. como se anunciam, teríamos apenas gênios; (mas) geralmente,
Por outro lado, como contar com a alegria cultural esco- elas prometem mais do que podem?
lar se a juventude é apresentada como ponto culminante, su-
Somente as crianças sabem o que procuram; elas perdem
prema conquista da vida? A iniciação à vida (adulta), longe de
tempo com um boneca de pano e esta toma-se importantíssima. 8
marcar momentos fecundos, soaria como regressão, decadên-
cia, seria a desolação de sentir desaparecer o que há de mais
Os adultos serão apresentados como eternos apressados,
caro e, conseqüentemente, o jovem não teria grande necessi-
sem que saibam, aliás, qual é a causa de sua pressa, e como
dade da cultura adulta. Ele pegaria dela somente alguns orna-
eternos insatisfeitos com o que fazem e com o que são.
mentos e poderes, úteis para rivalizar com os mais velhos.
Eu diria que, de fato, a ação do Pequeno Príncipe não
Essa "supervalorização" da infância é um lugar-comum
tem mais razão de ser do que a ação do adulto. Simplesmente,
na literatura. Poderíamos dizer que não é o caso de tomar esses
ele tem por lazer dedicar bastante tempo a ela, acabando por
escritos ao pé da letra. Entretanto, eles contribuíram para im-
transformá-Ia em apego, a menos que se trate de simples há-
portantes correntes da sensibilidade educativa,
bito. A desvalorização do adulto culmina com a desvalorização
Supervalorização religiosa:
da criança, apesar das intenções contrárias.
Ora, a inocência é plena
e a experiência é vazia A infância como refúgio
A inocência ganha
e a experiência perde Um dos motivos pelos quais a alegria na escola continua
A inocência sabe sendo uma ínfima exceção nos romances (ou mesmo nas bio-
e a expenenCla d escon h ece.2
'A •
grafias) é que muitos autores supervalorizam a primeira infân-
cia e, assim, depreciam a ação do adulto e das instituições
Supervalorização poética: "Talvez a infância seja o que adultas sobre os jovens. Os escritores mais evidentemente cul-
mais se aproxima da verdadeira vida"." tos devotam uma espécie de culto à criança inculta, suposta-
Supervalorização física: "O corpo da criança é a harmo- mente feliz antes da cultura, fora da cultura. De maneira geral,
nia, a perfeição do equilíbrio ... (as crianças são) perfeitas ma- são inúmeros os adultos que destilam uma nostalgia da infân-
ravilhas de arquiterura'" - crescer só traz "deformação". Ou cia, se refugiam, se encolhem na infância, em particular na-
ainda, "a criança de 12 anos atinge um ponto de equilíbrio e quilo que eles imaginam ter sido sua infância. Todos os elogios
de desenvolvimento insuperável que faz dela a obra-prima da feitos à criança estão longe de ser desinteressados: quando o
criação ... Depois, vem a catástrofe".5 adulto não ousa abordar de frente as dificuldades de sua exis-
Supervalorização psicanalítica: "Pensem no melancólico tência, ele se apraz em imaginar que existe uma criatura diante
contraste que existe entre a inteligência brilhante de uma da qual todos os problemas se dissipam: a criança.
criança saudável e a fraqueza mental de um adulto médio". 6 Além disso, o adulto sente-se como um ser sensível e
Mais duas citações: terno quando fica comovido com a fraqueza, a fragilidade da

54 55
criança. Ele se garante assim em relação à sua própria emotivi- tende àquele período em que o aluno, para afirmar-se e para
dade, ao seu próprio valor. Elogios politicamente interessados: marcar posição como jovem, vive a oposição aos adultos como
a criança é "sábia", ela precisa ser .sábia, precisa aceitar o medo ou desprezo, aversão ou compaixão - inclusive, natu-
,,))
mundo como ele é, ou melhor, como lhe propõem as autori- ra Imente, por seus mestres .
dades. A criança confia no poder, o que é um exemplo meritó- Na minha opinião, a condição básica para que possa
rio aos olhos de alguns ... Isso não impede toda geração adulta haver alegria na escola é que a criança sinta alegria em ser
de proclamar a decadência dos jovens da geração seguinte, criança e que ao mesmo tempo essa alegria seja incessante-
assim que se sente prestes a ser suplantada por esta última, não mente reconquistada cada vez que surgir um dos cem motivos
a tolerando, pois. que ela tem para ficar infeliz - é aí que a cultura adulta e
Não se trata unicamente da infância. Existe também a escolar pode constituir uma ajuda.
tentação, em certas épocas, de proclamar a adolescência como Existem cem motivos para ficar infeliz: desejo de crescer,
valor em si e desse modo declarar que ela não tem necessidade mas também tormento - não será preciso, para isso, renun-
da cultura adulta, e menos ainda d~ alegria cultural escolar. ciar a muitas vantagens e privilégios? Crescer é precipitar os
pais na velhice e na morte. Suspeita-se que sem dúvida será
Dizia-se: "Eu sou jovem", e havia-se formulado uma fi- bem grande o abismo entre as esperanças jovens e o que o
losofia, lançado um grito de guerra. A juventude era uma con- mundo vai oferecer, entre o que se promete fazer e o que se
juração, um desafio, um triunfo ... Era inquietante, difícil e consegue realizar. Ser pequeno é estar à mercê dos grandes,
delicioso ser jovem. Era um problema constante, uma infinita
não ser levado a sério, não estar à altura. Um texto emocio-
volúpia.?
nante de Henri Michaux vem a calhar:

Pode-se assegurar, assim, todas as vantagens da revolta


[o palhaço,] aquele que recebe golpes, não chega a devolvê-los,
juvenil sem ter que elaborar nenhuma análise, nenhum pro- mas bem que gostaria, e recebe muitos outros, pois é despro-
grama de aço, nada é derivado da cultura dos predecessores. vido de dureza, num mundo duro. Ele fascina as crianças que
Reúne-se, aliás, dessa maneira, o máximo de chances de con- riem loucamenve dele ou choram desoladas, pois aquilo lhes
duzir a revolta a um impasse - assim que os adolescentes se diz respeito."
tornarem adultos.
Sob uma forma infinitamente mais moderada, notare- Recursos da juventude
mos inúmeros romances onde os jovens parecem capazes de se
devotar a causas puras e grandiosas, enquanto os adultos, os Mas a criança pode encontrar um jeito de compensar
pais são reduzidos a cuidar dos seus pequenos interesses. esses dissabores e construir a alegria de ser jovem. Há uma
Donde, face à existência adulta, os jovens experimentam como alegria incontestável na juventude, pois as suas qualidades a
sentimento dominante o temor de atingi-Ia. Está-se realmente tornam apta à alegria. A experiência, repetida sem cessar, da
do lado oposto àquele de uma alegria cultural no qual os jo- crença e da tendência da juventude à felicidade comprova que
vens se iniciariam por intermédio do mundo adulto. A alegria o mundo e a criança não são opostos, mas podem se conciliar,
cultural é ainda mais difícil de atingir porque a escola se es- se reconciliar. Eis a possibilidade de a cultura adulta repre-

56 57
sentar um papel, seu papel necessário, inclusive aí, ou, melhor c) A juventude como disponibilidade
dizendo, sobretudo na escola.
Eu gostaria de relernbrar três dessas potencial idades da "A juventude é uma maneira de se enganar que se trans-
juventude: forma rapidamente numa maneira de nem mesmo poder" se
enganar."16 Não nos enganamos mais por não ousarmos nos
a) A juventude como vitalidade lançar num pensamento mais atrevido, voltando-nos para as
posições que acreditamos manter solidamente.
"Ele se sente com força suficiente para animar o que o Isso quer dizer que a juventude é tempo de indetermina-
cerca".'! Já quando bebê, "que superabundância de força, de ção: há mil possibilidades, estradas são abertas e oferecidas,
alegria e de orgulho nesse serzinho ... um entusiasmo que nada outras esperam para ser trilhadas. Riqueza e alegria da indeter-
cansa e que tudo alimenta ... uma fonte que jorra uma inesgo- minação profissional:
tável esperança". 12
Aos 14 anos, "você sente em si uma enorme energia, que [depois da aula de retórica] eu recusava apontar minha voca-
vem do peito e do ventre, espalha-se pelos braços, dilata-se na ção. Eu ainda não queria isto. Eu me sentia capaz de ser ofi-
garganta e termina no crânio. Você é feito de aço e de terrível cial, banqueiro, arquiteto; [ele recusa o contrato decenal para
vontade'l.P Aos 21 anos, ao saber-se tuberculoso, Camus es- o professorado; ele não quer assumir compromissos que o dei-
creve ao seu professor de filosofia: "Um ser jovem não saberia xem na situação] de não [poder] construir durante dez anos
renunciar totalmente a si. Todas as fàdigas reunidas não triunfa- uma catedral, de não [poder] comandar o Exército, de não
[poder] tornar-me monge.17
riam sobre as forças de recomeço que ele traz".14

b) A juventude como virgindade A indeterminação é também a oscilação entre os extre-


mos da vida moral - e a força de trafegar entre uma e outra:
É a primeira vez, será o primeiro amor: o mundo é novo "É o tempo da devassidão e da santidade, o tempo da tristeza e
porque o jovem é novo e não porque os outros seres estão da alegria, da caçoada e da admiração, da ambição e do sacrifício,
gastos. Assim, um laço mais íntimo, mais puro o prende a da avidez e da renúncia" .18O excessivo e a alegria do excessivo.
tudo o que vive: "Ele desfruta do mundo formando um todo A indeterminação deixa enfim o jovem na expectativa" na
com ele".1s Alguns (aqui Bosco) dizem que ele vai direto ao moratória. Ele ainda não se encontra encerrado em determi-
cerne das realidades, que ele atinge o "próprio ser das coisas" e nada função, em determinada "situação", daí estar aberto para
que suas intuições exprimem uma fé, um indizível de opostos sentir interesses além de seus interesses, ser mesmo capaz de
aos raciocínios, superiores aos raciocínios. Quanto a mim penso decidir contra seu interesse, uma vez que é mais sensível ao
antes na criança como uma chance de escapar ao "nada de novo sofrimento dos outros. A criança descobrindo a injustiça, in-
sob o sol" e à indiferença, ao entorpecimento daí resultantes. dignada, decidida a não aceitá-Ia. Vitalidade, virgindade, dis-
ponibilidade: tantos caminhos para os quais ser educado, tan-
tos apelos para ser educado, provocações para tentar a síntese
enriquecedora das idades.

58 59
IL A SÍNTESE ENRIQUECEDORA DAS IDADES mos. A infância deita rafzes e ramos até em nossas mais entrinchei-
ra d as construçoes
~ d e pe dra [e ai'dá]
se . ~ d e1"1C1OSa.
uma mvasao 23

A escola é uma obra comum dos jovens e dos adultos, os


adultos que lá estão em carne e osso, aqueles que instituíram a Isso é dito aqui corno um dado, um fato a ser consta-
vida escolar e constituíram o saber escolar para que os jovens, tado: os psicólogos observam que permanece em nós uma
pouco a pouco, se apropriem da cultura adulta. Contudo, os criança que nunca cresce realmente, uma porção de imaturi-
jovens também abordam essa cultura com sua especificidade, dade. Nós a lamentamos ao mesmo tempo que suspeitamos
insuflando-lhe sua maneira de serem jovens. que ela nos é preciosa.
Já falei da união das alegrias e das incertezas, com, apesar Da minha parte, vejo aí principalmente uma tarefa a ser
de tudo, um certo predomínio da alegria. A segunda condição cumprida: forjar como que uma unidade progressiva entre as
que possibilita a alegria na escola é a vivência enriquecedora da idades de um mesmo indivíduo, para não dizer uma coexistên-
síntese entre as idades. cia. Unir o arrebatamento, o calor da infância às atitudes ela-
"Olhares da infância, ricos por ainda não saberem ... boradas do adulto. Isso me faz pensar em outras tentativas
olhares densos para tudo o que lhes escapa, enriquecidos pelo igualmente proveitosas: Michelet e Gramsci sonhando unir
ainda indecifrado" .19 E o poeta pode propor: "As carências da cultura popular e cultura erudita, Ma~ e Lênin, a vida do
criança constituem sua genialidade". 20 proletariado e a ação do partido.
Gostaria de refletir sobre o ponto de junção entre as ca- Tais sínteses seriam possíveis? Elas permanecem difíceis e
rências e a genial idade, salvaguardando a genialidade da instáveis. Os riscos de que um termo destrua ou invalide o
criança sem com isso negar as carências. É certo que os confli- outro são enormes. Gostaria simplesmente de citar alguns
tos e as oposições entre jovens e adultos subsistem e devem exemplos onde se realizou essa feliz junção entre as idades.
subsistir. Mas não se pode, ao mesmo tempo, trabalhar para
uma síntese entre eles? O jovem leva para a escola a "geniali- a) O adulto ajudando os-jovens a tomar
dade" da qual ela necessita para vir a ser escola de alegria, e as consciência de seu valor.
"carências", que fazem com que ele necessite da escola para
buscar mais alegria. Muitas vezes os jovens aceitam, a respeito de si mesmos e
A alegria na escola significaria ao mesmo tempo felici- de Sua geração, muitas idéias e juízos que lhes são desfavorá-
dade por ser jovem e felicidade por tornar-se "adulto", lan- veis e que, em última instância, justificariam sua auto deprecia-
çando mão da mediação do adulto que ensina. Felicidade por ção. Alguns adultos, no entanto, são capazes de fazer com que
crescer e continuar a viver seu passado infantil sem amargura.21 os jovens se levem profundamente a sério. O novo professor
de filosofia, por exemplo, incita os alunos a adquirir uma
'
Ch eganamos a, maravi ilha d"a super-m. fAancia.
• 22 "consciência mais nítida de sua dignidade".24 Um aluno co-
meça a rir, pois "nunca lhe ocorrera que ele, um colegial, pu-
A infância não é uma coisa que morre em nós e seca desse ter dignidade", o que leva o professor a exclamar: "Que
assim que cumpre seu ciclo. Não é uma lembrança. É o mais o inconveniente se retire".
vivo dos tesouros e continua a nos enriquecer sem que o saiba-

60 61
""

Em circunstâncias como essa é o adulto que faz com que c) Unir assim ofim ao início da vida.
os jovens reconheçam o valor daquilo que estão vivendo - e,
11
principalmente, daquilo que estão fazendo e produzindo: "Ele Encontrar enfim a solução do problema que a infância
i':
lia os seus textos com uma voz que, instantaneamente, os lançou: "O que é uma grande vida senão um pensamento de
transformava em obras-primas] ...] Ele entendia melhor que juventude executado pela idade madura?" .29 A juventude ,i"I

,I, \
vocês o que vocês tinham querido dizer" .25 sonha e muitas vezes sonha certo, mas na falta de meios e
":,.1\
instrumentos eficazes, permanece em estado de sonho. A vida
b) "Ajudemos ajuventude a se conhecer;ela nos adulta, para que o imaginado assuma formas efetivas, torna-se
• • J
I J ,,26
restttutra o aom ae amar . criação, construção, cultura, conservando os gostos da criança
que brinca, do jovem que deseja.
Os adultos têm o que ensinar aos jovens, como ordenar Segundo o ponto de vista que nos guia neste momento, a
seus sonhos, dominar seus sonhos (o que não significa de alegria da escola pode tornar-se realidade na medida em que a
modo algum renunciar a eles), ir além de sua história pessoal e oposição psicológica entre as idades se dilua, proporcionando
das tentações do narcisismo, esforçando-se para ser objetivos. trocas produtivas entre elas. O que torna esse resultado difícil
Existe como que uma efervescência da juventude, que pode se é o fato de que o adulto, em particular, se constrói a partir das
perder e cair no ceticismo. A influência adulta pode contribuir múltiplas promessas de sua infância, escolhendo e acentuando
para transformá-la em impulso autoconsciente, em tarefas pos- potencialidades que ele sente em si (sempre chega um mo-
síveis e mesmo necessárias, consideradas certas condições his- mento em que é preciso se especializar) e arriscando-se a sufo-
tóricas. Mas é com a juventude que se conta para insuflar car e a se privar de outras - em última instância, mutilando o
como que uma febre criadora. É a capacidade de amar o jovem que ele era. Por isso, ele ficaria ainda menos permeável
mundo, de animá-Ia, contra tudo e contra todos, que os jo- às relações com aqueles que vivem a juventude.
Vens têm a transmitir aos adultos. "Quando a juventude esfria, "Nasci vários e morri um só".30
o resto do mundo treme. "27 Nosso problema caminharia para uma solução se este
É pela influência, pela ação dos jovens que os mais velhos "um" pudesse ser não retraimento, mas unidade organizada,
têm uma chance de escapar a um dos mais graves riscos que os acumulada, de uma multiplicidade que não tivesse sido rene-
ameaça: a indiferença. Os adultos "têm necessidade de provar gada. Penso em André Breton quando ele afirma que a mulher
a si mesmos, admirando de novo o que eles admiravam ou- mais amada representa a síntese, a composição de todas aque-
trora, que não estão decadentes".28 las que já haviam agradado por certas qualidades particulares."
Conseguiríamos gostar de nós mesmos através das dife- Um último exemplo de síntese enriquecedora ocorre no
rentes idades da vida: felizes por nos sentirmos jovens e felizes campo da comunicação - e de um modo muito diferente.
por estar indo para a idade adulta. A juventude como válida Quero, porém, falar um pouco sobre ele. Parece que ordina-
em si e como etapa a ultrapassar - o que supõe que a vida riamente a criança vive a comunicação como coisa evidente e
adulta não seja apresentada aos jovens e principalmente não se garantida. Ela sente que há um terreno comum entre os seres,
apresente como repugnante. uma coexistência pacífica; a proximidade leva mesmo à indivi-

62 63
I
são, a vida alheia e a sua participam da mesma história. Em quando esta não seria senão a coexistência desenhada entre' o
seguida, ocorre a descoherta da distância entre os seres, a plu- visto e oconcebido.
ralidade das perspectivas, muros, cisões, solidão, mas como A vida adulta seria então um período quase inútil que o
compensação capital cada um terá um ponto de vista original. artista, em última instância, se esforçaria para suprimir. Chega-se,
Tudo isso é bastante conhecido. O objetivo dos trabalhos assim, a uma oposição entre as idades que tornaria impossível
de M~rleau-Ponty é mostrar que o amor do adulto é capaz de uma ação educativa entre as mesmas - e que tornaria inútil a
reconquistar o dado primitivo, de fazê-lo reviver - man- intervenção da arte adulta nessa "perfeição" infantil.
tendo; evidentemente, as aquisições posteriores. O fosso entre Sabemos muito bem que a arte da criança possui quali-
as consciências permanece uma realidade fundamental e, en- dades e valores: a criança descobre que é capaz de se expressar,
tretanto, "não se podem mais separar absolutamente os pa- e que aquilo que ela expressa participa da sua auto construção e
péis ... amar é viver pelo menos em intenção a vida do outro. da exploração do mundo. Seu desenho dá provas de caráter,
O amor me tira de mim mesmo e institui uma mistura de vida, vivacidade, audácia; disso nasce um sentimento de deli-
ciosa e aérea facilidade, donde decorre com tanta freqüência a
mim e do outro".32
Essa confiante comunicação com o outro - que era ofe- alegria: "exprimindo despudoradamente seu prazer] ...] estando
recida à criança como dado primitivo e confortável - é de na idade em que não tem vergonha de mostrar seu prazer".33
reconstrução difícil e tumultuosa na medida em que a idade Nas criações do artista adulto vão se reproduzir certas caracte-
avança, pois ela deve agora se harmonizar com o sentimento rísticas da arte infantil, porém dentro de condições completa-
de cada vida em particular. Mas a síntese não é impossível e mente novas que comportam agora a experiência da solidão e
constitui um notável exemplo da unidade progressiva de uma da infelicidade e as tentativas de superá-Ias; "duro desejo de
durar" e, portanto, de trabalhar co m matérias sólidas, tão
vida humana.
rudes quanto o que se espera fazê-las expressar.
"A infância [é] dotada agora [... ] de órgãos viris e do
llL A ARTE E A CRIANÇA espírito analítico que lhe permite ordenar a soma dos materiais
involuntariamente amontoados" e, Baudelaire pode afirmar, o
A arte (aqui essencialmente a pintura) constitui um artista é "um homem que possui a genialidade da criança" .34É
exemplo privilegiado dessa síntese enriquecedora da infância e esse mesmo termo - "posse" - que vai ser elaborado por
da idade adulta .- e é o que torna possível e necessária uma Malraux: passa-se da criança que "seu talento possui" ao
profunda cooperação entre jovens e adultos, jovens e cultura adulto que toma posse de seu talento, chega à "dominação de
adulta e portanto uma escola de alegria. Não faltam tentações seus meios", consciência e controle de seus sonhos, cuja visão
de supervalorizar a arte da criança. Falou-se muito, muitíssimo final é "tentativa de posse do mundo".35
que o artista adulto devia tomar como modelo a criança, res- Nem a arte e a vida da criança se an ulam quando ela
gatar a admiração da criança diante das coisas descobertas pela enfrenta o crescimento, nem a vida adulta é um apêndice su-
primeira vez. É verdade que importantes correntes da pintura pérfluo de uma infância onde o essencial já teria ocorrido.
contempodnea inspiram-se expressamente na arte da criança, Não somente cada período da vida possui e conserva seu valor,

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li
11
'1,,\,

como também esses diferentes valores dos diferentes momen- 26. Michelet, Le Peuple, 3a parte, capoVIU, 1846.
tos estão aptos a se enriquecerem uns aos outros, e desse modo 27. Bernanos, Les Grands Cimetieres sous Ia Lune, La Pléiade, 1938,
a educação se faz possível - o que significa que para mim é p.494.
possível uma educação da alegria. 28. Jean Jaures, Discours à Ia distribution de prix du !ycéed'AIH 1880.
29. Alfred de Vigny, Cinq Mars, XX, La Lecture, 1826.
30. Paul Valéry, Eupalinos, La Pléiade, 1923, p. 114.
NOTAS 31. André Breton, L'Amour flu.
32. Merleau-Ponry, Cours à Ia Sorbonne sur les relations chez l'enfont,
1. Simone de Beauvoir, Mémoires d'une jeune fille rangée, 1958, P: 1964.
105. 33. Henri Michaux, Déplacements, Dégagements, 1985.
2. Charles Peguy, Mystere des saints innocents, 1912. 34. Charles Baudelaire, Curiosités esthétiques, La Pléiade, 1868, p.
3. André Breton, Premier manifeste du surréalisme, 1924. 1159.
4. Pascal Bruékner, Allez jouer ailleurs, 1977; P: 160. 35. André Malraux, Les Voix du silence, 3a parte: "La Création artis-
5. Michel Towrnier, Le roi des aulnes, 1970, P: 154. tique", lI, 1951.
6. Sigmund Freud, L'Avenir d'une illusion, IX, publicação de 1927.
7. Goethe, Poésie et Vérité, ta parte, L. n.
8. Antoine de Saint-Éxupery, Le Petlt Prince, XXII, 1943.
9. K1ausMann (nascido em 1906), Le Tburnant, capo m.
10. Henri Michaux, Deplacernents, Dégagements, p.70.
11. Jean-Jacques Rousseau, Emile, La Pléiade, p. 289.
12. Romain Rolland, [ean Christophe, 1, L'Aube, fim do 10 capítulo,
1904.
13. Alain Bosquet, LEnfont que tu étais, 1981, p. 319.
14. Camus, citado por Roger Grenier.
15. Henri Bosco, Lejardin des Trinitalres fosepb, 1966.
16. Paul Valéry, Mauuaises pensées et autres - à Ia lettre J, 1941.
17. Giraudoux, Simon le patétique, capo11,1926.
18. François Mauriac, Le [eune Homme, 1926.
19. Henri Michaux, Passaees, 1950.
20. Henri Michaux, Déplacements, Dégagements, 1985.
21. No lado oposto, temos os lamentos: "Ah, jamais me curarei da
minha tgrra natal! (...) E quem aliás algum dia se curou da sua in-
fância?". Lucie Delarue-Mardrus, Honfleur, l'Odeur du pays.
22. Bachelard, Poétique de ta rêuerie, 1960; Lautréamont; 1939.
23. Hellens, Documents secrets, 1978, p. 104.
24. Maurice Barrês, Les Déracinés, 1987.
25. R. Rabiniaux, Le Soleil des dortoirs, 1965, p. 31.

66 67
I
4

AS RELAÇ6ES PESSOAIS

Eu diria de bom grado que as relações pessoais na escola


são de três naturezas.
A escola é um lugar onde o aluno progride:
- com a ajuda dos colegas, através de suas relações com
seus iguais, ele toma conhecimento dos outros "na escola";
- através de suas relações com pessoas que são um pouco
superiores a ele: os professores e todos os outros adultos que
contribuem para o funcionam~nto do estabelecimento; .
- através de suas relações com realidades elevadíssimas: as
grandes obras e seus criadores, aos quais os professores servem
essencialmente de intermediários.
A escola são conteúdos e relações específicas: é preciso en-
contrar prazer em ambos para atingir a alegria.

L As REIAç6ES DOS ALUNOS ENTRE SI

Dentro da sala de aula, os alunos vivem a experiência das


particularidades individuais e das diferenças de grupos e do
todo da classe: os indivíduos são diferentes entre si, e muitas
vezes de difícil acesso. Os grupos sentem e desenvolvem fre-
qüenternente a exclusão, o desprezo, a incompreensão uns em
relação aos outros. O todo da classe e o todo da escola têm
muita dificuldade em constituir uma unidade. Na maioria das

69
vezes, eles a encontram mais em fases de oposição comum a dos outros rapazes vigorosos e briguentos, mas eles podem se
uma autoridade exterior do que em suas próprias riquezas. unir em torno de uma base própria:
Assim, uma série de tensões se superpõem umas às ou-
Eu sempre tive, desde a mais tenra idade, amigos que
tras. O aluno pode sentir sua originalidade individual amea-
detestavam a violência, apreciavam brincadeiras moderadas,
çada tanto por seus pares quanto por seus superiores ou pela
gostavam de conversas sensatas, buscavam resolutamente o
instituição. A questão é atingir uma alegria das relações, supe-
reino da equidade [...] os pacíficos se reconheciam rapida-
rando esses graves riscos de não-alegria. mente no meio da bagunçr
A maioria esmagadora dos autores (biógrafos ou roman-
cistas), ao evocar a escola, apresenta seus jovenshérois (muitas É possível aos mais frágeis atingir uma, alegria de camarada-
vezes eles próprios) como individualidades eminentes, cujo valor gem; a seu grupo pode faltar, contudo, um pouco de força vital.
advém de uma originalidade inestimável: eles são incompará- Por outro lado, não poderia nascer uma alegria de cama-
veis, casos, as exceções infelizes, maltratados e exilados em radagem a partir das próprias algazarras?
meio ao comum.
Individualidades fortes, mas personalidades delicadas iso- A gente se desafia, se encontra depois da aula, e é com o
ladas no grupo, a um só tempo rejeitadas e subjugadas por coração quente e a cabeça cheia de honra que a gente briga
copiosamente pela glória. Uma agressividade juvenil que já tem
classes que exigem conformismo. Eles próprios sentem a pre-
todos os furores do amor. Duas vontades de poder ainda rudes
sença dos outros, tão grosseiros, como uma constante ameaça
se chocam, se penetram, reconhecem seus limites e acabam
à riqueza de sua intimidade. Projetos de intelectuais, futuros ar-
por se respeítar.ê
tistas, mas já não reconhecidos pelos colegas e muitas vezes tam-
bém pelos professores, tanto seus interesses e ideais ultrapassavam Muito bem, mas o autor pressupõe aqui uma igualdade
o nível médio; sua aparência muitas vezes é frágil. Eles podem ser de força e de desafio entre os parceiros: este caso é favorável e
também bolsistas, separados dos colegas por suas origens sociais; podemos nos perguntar quantas disputas correspondem a esta.
e, nas fileiras nobilíssimas do colégio, alguns membros, "diferen-
ciados" do proletariado que vivem e proclamam constantemente o bom aluno é um bom colega?
seu isolamento. 1
Minhas leituras literárias me mostraram que o grupo de Para garantir uma maior alegria nas relações entre alunos,
colegas em geral é muito mais um freio do que um apoio. com que podemos contar? Com um aluno? Com um bom
aluno? O bom aluno é capaz de despertar na classe uma vida
o agrupamento dos que são rebeldes ao agrupamento calorosa, de responder aos desejos de sociabilidade dos colegas
com a mesma felicidade com que responde às perguntas dos
Minha escola quer instituir relações de alegria entre os professores? Infelizmente, o bom aluno tomado pela emula-
alunos. Como conseguir isso? Uma primeira possibilidade ção, pela ambição individual é muitas Vezes apartado de seus
seria que os excluídos se encontrassem e se reunissem. Não colegas. Nos melhores casos, ele também seria capaz de ser
resta dúvida de que cada um deles se sentia perdido no meio bem-sucedido naquilo que agrada aos outros, as façanhas es-

70 71
portivas, mas ele quase não as pratica: "Ele tinha outros inte- Esta é a razão pela qual ele protege e assegura a coesão feliz
resses e outros prazeres, bem superiores ... profunda vida interior ... do grupo; ele é ao mesmo tempo propriedade de todos - "Eu
vida espiritual"," elogiam os outros com uma certa ironia. pertencia aos meus colegas" -, seu destino é o destino de
Não é de espantar que, em Drieu de Ia Rochelle, os cada um, ele é o personagem central a partir do qual se desen-
"bons alunos" fiquem distantes da massa e quase sejam defini- rola a existência de todos: "Você é a consciência da classe", diz-
dos por essa distância: eles lhe um dos professores.
Simon, o aluno que gosta do trabalho propriamente es-
desprezavam o jogo[ ...] ficavam nos olhando gesticular-
colar e que se entusiasma com todas as formas de cultura. Não
mos, nos agarrarmos e nos jogarmos no chão; eles ouviam nossos
se separarão seus sucessos em unir seus colegas em relações de
urros incessantes. Nossa loucura, nossas imbecilidades, nossa vul-
amizade feliz e a influência dos grandes heróis aos quais ele
garidade lhes pareciam evidentes. E eles tomavam um cuidado
cada vez maior em sua atitude, escolhiam suas palavras.5 ". devota sua admiração - e que, freqüentemente, foram tam-
bém agrega dores. '
o que me interessa são os casos em que o milagre se Nem todo mundo possui esse talento inato que constitui
realiza: o bom aluno favorece a existência comum, torna-se o o encanto dos personagens de Giraudoux; são inúmeros os
intérprete de todos, seus colegas se reconhecem nele, reconhe- "bons alunos" que se alçaram à posição de conciliadores des-
cem nele as qualidades que gostariam de possuir: pendendo longos esforços táticos.
O bom aluno pode trazer para os outros mais trabalho,
Traços que, em outros, nos teriam enchido de descon- trabalho mais difícil; seus sucessos provocarão inveja; e depois,
fiança, nele nos seduziam mais ainda; sua aplicação: se ele era ele compactua ... Daí a prudência: "[eu demonstrava] uma si-
o melhor aluno, não o era, em absoluto, facilmente[ ...] ele mulação satisfatória de desenvoltura para evitar o descrédito
parecia ser o primeiro a se desculpar por isso] ... ] dava-nos uma normalmente atribuído aos sujeitos bons demais". 8 O grande
confiança em nós da qual ele mesmo, em relação a si, parecia
segredo é não "fazer" demais nem de um lado nem de outro:
às vezes desprovido."
"Durante meus anos de ginásio, esforcei-me para gozar, junto
a meus mestres, das vantagens do bom aluno, sem nem por
o idealismo de Giraudoux ultrapassa voluntariamente o
isso passar por um. cdf aos olhos de meus colegas"."
limite: o absoluto e a perfeição viram realidade. Simon é o
Um bom aluno, mesmo com características mais comuns
perfeito bom aluno e o colega perfeito. Ele não tem que recor-
do que Simon, pode desempenhar o papel de mediador entre
rer à premeditação e à moderação, não tem necessidade de
o professor e os colegas, contribuindo assim para criar uma
refrear sua vida afetiva para ceder espaço ao intelectual e ao
atmosfera mais favorável.
escolar, não se vê às voltas com a oposição entre o indivíduo e
a coletividade:
Há, em toda classe, pelo menos um aluno que goza do
"Não havia nenhum sentimento que eu não pudesse ex-
privilégio de ser ao mesmo tempo muito pouco "caxias" para
pandir à vontade dentro dos limites da minha classe." Ele vive
não se desmerecer aos olhos dos colegas e de uma gravidade
a complementaridade harmoniosa de seus desejos e a correspon- suficientemente sábia para que, se for o caso, o professor se
dência entre seus próprios desejos e aqueles dos seus colegas. apóie nele.l''

12 13
Assim parece, aliás, que é possível ser um "bom aluno" lLREIAç6ES ENTRE PROFESSORES E ALUNOS
sem tirar notas extraordinárias, quando se vive a aula com
uma certa intensidade de interesse e de seriedade. Eu usaria de bom grado, como epígrafe a esse tema, uma
seqüência do mme r:Aile ou Ia Cuisse. Co\uche faz os }ovens
o coro tem suas razões espectadores de um circo rirem às gargalhadas ao jogar um
balde d' água num palhaço. O pai dele, Funes, afirma que
Dar-se bem com os colegas de classe, entre companheiros aquilo não requer inteligência nem é diHcil de fazer; repete
de classe, não é a mesma coisa que o companherismo de lazer, então o mesmo gesto e nenhuma das crianças acha graça.
de jogos: a cultura, o progresso cultural se acham em questão, Então Coluche diz: "É preciso ter vontade de fazê-Ias rir" - e eu
visto que a gente está na escola. Pegamos aqui um dos mo- traduzo: é preciso que o professor tenha vontade e, o que é mais
mentos em que a cultura escolar coincide com' um modo de difícil, continue a ter vontade de formar os jovens na alegria.
vida; a teoria da solidariedade se une a uma prática de comu- A escola é uma instituição onde está em jogo alcançar a
nidade, limitada sem dúvida em sua extensão, mas intensa cultura, a alegria cultural pela mediação constante e contínua
para todos os que a vivem no dia-a-dia. das pessoas, não uma pura troca de idéias, pois nela a cultura ,é
Classes onde realmente se trabalha em comum, "cada um transmitida pela vivência.
tortura a mente junto com os outros para encontrar soluções". As relações pessoais professores-alunos e também alunos-
Daí uma primeira superação: são classes onde "cada um parti- alunos são sempre evocadas tanto nas biografias como nas en-
cipa da organização", e o próprio esforço é que lança os alunos trevistas diretas com alunos. Elas ocupam um lugar capital na
em direção à questão fundamental: "como convém viver"Y sua consciência. Logo que se fala nelas, voltam três temas ob-
Em suma, conflitos entre os alunos e sofrimento dos ex- sessivos: o que salva a escola de ser um inferno, ou, como se
cluídos - mas os excluídos podem se reagrupar, e as bagunças diz agora, de ser como a condenação às galés, são os amigos, a
talvez não tenham somente aspectos diabólicos. E, em certos ligação com os jovens da mesma idade. "No ano passado, eu
casos, a ação e o prestígio de alguns alunos podem representar
gostava do professor de matemática, comecei a gostar de mate-
um papel pacificador; arrastar a classe toda em direção a uma
mática e fiz progressos; este ano, como eu não gosto do profes-
amizade; à alegria do convívio pode se unir a alegria de uma
sor de matemática, piorei de novo na matéria". Finalmente o
tensão projetada para a cultura.
elogio tão contestável feito por alunos (e também por pais):
A classe como coletividade, vivendo em "bom entendi-
"Um bom professor consegue ensinar qualquer coisa ... ele nos
mento" (a expressão é magnífica), ansiando por trabalho e tal-
leva aonde quiser".
vez mesmo por obras-primas. Que sonho! "Uma vez, um
Os alunos vivem um universo de relações pessoais que
aluno havia entendido: em coro] ...] e isso, no fundo, não era
lhes parece ter uma incidência essencial sobre suas alegrias e
assim tão mal: aprender em coro, conhecerem todos juntos,
não-alegrias. Como reação, eu tenderia a menosprezar as rela-
formar um único saber" . 12
ções, visto que receio que o contato pessoal reduza o cultural.
Quero, apesar de tudo, dar plena expansão à alegria das
relações.

74 75
Quanto menos alegria os alunos esperam dos conteúdos relação tudo o que o professor provoca inadvertidamente, sem
culturais (pelo menos, é muito raro que o digam), mais eles sequer se dar conta, às vezes contra o que ele pretendeu. Por
proclamam suas esperanças com relação a um "professor exemplo, uma observação dirigida a um aluno estrangeiro que
legal". O cultural, o ideal cultural aparece para o aluno, na a interpretará como prova de que ele não é plenamente aceito
maioria das vezes, nos traços de um professor assim, que passa - e o professor não tem consciência de que suas atitudes
a ser incontestável: "As coisas que eu aprendi diretamente da podem assumir esse sentido.
boca de meus professores (na escola, portanto, e não nos li- Geralmente, nesse claro-obscuro das relações, pode ocor-
vros) permanecem estreitamente ligadas, na minha lembrança, rer "a reação que suscitava neles uma palavra que me escapara
àqueles que as formularam".13 e a frieza com que rejeitavam o que eu desejava ardentemente
A presença do educador e o papel muito particular da- transmitir-lhes"."
quilo que é a expressão mais direta de uma pessoa e que cria
um vínculo imediato com o outro: a voz, a voz do educador Os perigos do sucesso
que comunica a emoção, o fervor, a exaltação própria às gran-
des obras. Um professor declama poemas de Verlaine, e de Mesmo quando a relação parece boa, sérios riscos podem
maneira impecável: "Era para uma vitória que sua voz nos ser sentidos pelos alunos.
transportava, vitória de uma beleza e de um mistério". Uma Risco de conformismo: Valéry-Larbaud põe em cena um
vez em casa, o aluno vai reler os poemas, mas, "sem o auxílio jovem que adora poesia, aquela que lhe ensinam na escola.
da dicção magistral, eu receava não sentir todo o encanto que Um dia, ele descobre num jornal da moda um poema recente
aqueles textos deviam conter" .14Platão já reprovava fio texto que o toca profundamente e, no en~anto, não ousa gostar dele
escrito o fato de dirigir-se da mesma maneira a todo mundo e porque as regras escolares não são respeitadas nele;'? "Estáva-
de não conseguir responder nem às perguntas nem às críticas mos agindo errado ao18amar aquela poesia impura e irregular;
das quais é objeto: ele é incapaz de se defender," nosso gosto era mau como nossos sentimentos e nossos instin-
Na escola, o professor adapta e responde às perguntas- tos". O aluno que se abandonasse nas mãos do professor per-
e aos silêncios, geralmente mais reveladores ainda. Apreciar-se- deria a confiança em seu próprio julgamento, em seus pró-
á o aforismo de Freud: "Alguém fala: a luz se faz". prios gostos e., finalmente, em si mesmo. Chegaria ao extremo
Todos sabem que nos romances, biografias etc. abundam de assumir os juizos geralmente tão depreciativos dos educa-
acusações contra os professores. Não me deterei muito nisso, dores sobre os "jovens de hoje" e, sobretudo, renunciaria a
pois quero destacar o que provoca alegria; Entretanto, vejo-me contribuir com as novas inflexões da juventude para o patri-
obrigado a fazer eco a essas acusações. mônio cultural.
Inevitavelmente, introduzem-se naquelas longas horas de Risco de mimetismo: de tanto Se adaptar a cada um dos
aula as mudanças de humor do professor, seus equívocos e professores e se habituar às suas exigências particulares, o
seus momentos de distração, suas escolhas arbitrárias ou que, aluno arrisca-se a dissolver sua própria personalidade, a perder
pelo menos, assim parecem, dividindo a classe em rejeitados, de certo modo sua alma. Alguns são talentosíssimos em imitar
suspeitos e preferidos. Também tem um peso muito grande na as pessoas e suas mamas:

76 77
[Eu observara] que cada professor tem uma idéia pessoal as de adversário para adversário] ...] A regra do jogo pedia que
do aluno ideal: aquele que cohsegue se aproximar o máximo cada um permanecesse em seu campo.22
possível dela está feito ... [com aquele professor] sempre bem-
hurnorado, animado e disposto, eu era engraçado e atrevida- Não posso saber se amo ou se odeio?
mente íntimo; [com aquele outro] eu brilhava no papel de
rapazinho modelo ... Entretanto, às vezes eu gostaria de saber
Na verdade, a relação educadores-educandos é marcada
exatamente qual desses rapaZes, cujos papéis eu interpretava
tão bem, eu era. 19 pela coexistência de duas atitudes contradit6rias - e esse é
um tema que atravessa a pedagogia, de Platão a Freud.
Temos dois extremos: surge um professor que, pelo Alcibíades, na presença de S6crates, declara: "Normal-
brilho puro "e simples de sua personalidade, dissipa todos os mente, seria com júbilo que eu o teria visto desaparecer dentre
problemas. Eu sempre desconfio quando a escola é apresen- os vivos; mas sei que, se isso ocorresse, eu teria ainda mais
tada como um lugar idílico, a partir da chegada do professor dificuldade".23 Quando fica diante do mestre, ele se enver-
excepcional, pois estou convencido de que a relação é e conti- gonha: "Considero indigna a minha maneira de viver", in-
nua sendo difícil. digna das promessas e das perspectivas às quais havia, naquele
No universo tão negro de Frapié, o milagre ocorre quando momento, aderido. Mas ele não se mantém nesse nível e s6
uma substituta assume o lugar de uma das professoras cansa- lhe resta confessar a hesitação fundamental: "Realmente eu
das e apagadas: "Ela entra, no primeiro instante sorri para as não sei como proceder com o diabo desse homem".
crianças, estas lhe sorriem ... ela lhes agrada, elas lhe agradam É sabido que, para Freud, o aluno transfere para o pro-
... Depois, ela se apodera da classe". Trata-se de um milagre, e fessor a contradição que vive em relação ao pai: o pai, modelo
o aspecto religioso não está longe: "Sentia-se que ela se consu- a ser respeitado e imitado, aquele de quem tanto se espera,
mia, se esgotava; recebam-na: sua substância, seu calor"." mas também um. rival a ser eliminado e, antes de" mais nada,
Temos uma atmosfera bastante semelhante a essa numa rival sexual, obstáculo contra o qual a criança luta para con-
classe de terceira série, onde a devoção a um professor é vista quistar seu próprio lugar na existência. Tantas virtudes e tantas
como capaz de suprimir todas as dificuldades: decepções."

Assim que ele assumiu sua cadeira (no início do ano), Freud relembra sua pr6pria experiência escolar - revolta
estabeleceu-se uma energia leve, calorosa e benéfica entre a classe e submissão, crítica e veneração dos professores: "Ficávamos à
e ele [...] tal capacidade de dar e de receber [...] fomos levados de espreita de suas pequenas fraquezas e orgulhosos dos seus
roldão e ficamos felizescom essa ascendência/" grandes méritos". É extremamente penoso para um jovem to-
lerar, aceitar a superioridade de poder do pai e do educador _
Por outro lado, quando as rejeições atingem certo grau
mas é completamente impossível evitá-Ia.
de brutalidade e de paixão, inclino-me a interpretá-Ias mais
Mesmo que possa resultar na alegria, a relação educador-
como desafios e provocações do que como ruptura:
educando jamais será simples ou plana. Depender de alguém
Ele não conseguia nem explicar a si mesmo que um que não tem nem a mesma idade, nem os mesmos gostos,
'f
,I aluno pudesse ter, com um professor, outras relações que não nem o mesmo estilo de vida acarretará graves problemas.

78 79
Não posso saber se admiro ou se desprezo? Péguy: "Nossos jovens mestres eram belos como hussardos ne-
gros. Esbeltos, severos; de porte ereto". Certos alunos conse-
Numa mesma linha, cotejarei três textos de alunos ao guem conciliar respeito e zombaria:
mesmo tempo deslumbrados e decepcionados.
[Meus professores de retórica], eu os compreendia debo-
Wiechert está decepcionado com o abismo existente
chando deles, assim como fazem os jovens rapazes prontos a
entre as doutrinas professadas por seus mestres e suas vidas.
apreender o ridículo, sem deixar que o entusiasmo sofra com
isso.28
N6s não tínhamos um professor sequer de religião que,
uma vez havendo descido da cátedra, pudesse tornar-se discí-
pulo de Cristo; nenhum professor de história que fosse capaz An tin omias parciais, antinomia global
de pôr em prática aquelas virtudes de soldado e de homem de
Estado que ele louvava com tanto ardor.25 Contudo, essa contradição vivida pelo aluno entre o
apego e a rejeição ao educador está no cerne da vida escolar;
A desilusão de Pontalis é ainda mais viva porque ele se não é possível suprimi-Ia, e ela é dolorosa e provoca um in-
deu ao luxo de comparar a pessoa de seu professor. com os tenso mal-estar. Então eu me pergunto como, apesar de tudo,
grandes fatos que este lhe apresentava: conduzir a relação para mais alegria. Um caminho possível
seria que a escola elaborasse certo número de contradições par-
Um dia, eu vi nosso professor de história correr atrás de ciais, que me parecem ser, na realidade, os desdobramentos da
um Ônibus... o quê? Para ajudá-Io a subir, o cobrador tinha contradição inicial. Em cada oportunidade, a questão consisti-
que estender a mão [àquele homem] que conhecera o exílio ria em que alunos e professores conseguissem valorizar igual-
em Santa Helena e vencera os árabes em Poitiers. O mundo mente os dois termos e manter no mesmo nível os dois pratos
estava de ponta-cabeça; eu estava desconcerrado.é" da balança. Pode-se alcançar assim, de cada vez, uma alegria
específica e progredir em direção à alegria global.
Cavanna, aos 14 anos, ama. e admira seus professores,
a) Para que o aluno encontre alegria na relação, é preciso
mas está às voltas com o que ele chama de "complexo de Tar-
que ele se sinta e seja efetivamente levado a sério, tanto quanto
.zan". Ele é contido em seu entusiasmo pelo físico dos profes-
um adulto, "a gente não é criança ... ele nos trata como
sores, que ele considera lastimável:
criança". Mas não é menos necessário que ele seja reconhecido
como diferente do adulto, porque é jovem e, ao mesmo
Eu não' imaginava que alguém pudesse ser realmente in-
tempo, porque faz parte da nova geração. Portanto não toma-
teligente se não fosse um atleta. A imperfeição do corpo era o
sinal visível da degenerescência e os miolos da cabeça eram neces- remos ao pé da letra este elogio feito a um excelente professor:
sariamente tão gelatinosos quanto os músculos abdominais.V "Ele nos tratava como adultos e, com ele, nós o éramos" .29 Os
parceiros têm que viver entre si como diferentes, desiguais e,
Ele gostaria de poder tecer os mesmos elogios a todos os simultaneamente, em reciprocidade, porém uma reciprocidade
aspectos da personalidade de seus professores e lamenta não que não suprima, que não tenha a pretensão de suprimir o
consegui-Ia. Em contrapartida, penso na célebre passagem de fosso que existe entre as idades. .

80 81
Albert Thierry lembra uma frase de Pécauln "Não depo- France simbolizou isso muito bem através das frases entrernea-
sitem sua esperança nem sua recompensa principal na afeição das que, alternadamente, anunciam castigos de garotos e cele-
" , e comenta: "Uma recompensa, eu nao
,.. acei-.
dos seus aIunos bram o heroismo triunfante de um herói da Antiguidade."
taria recompensa. Mas uma esperançal" A igualdade das posi- O educador é frágil e os alunos, de modo mais ou menos
ções é uma promessa assintótica lançada ao infinito. confuso, dão-se conta disso: em relação aos grandes poetas,
b) Os alunos imploram ao professor que confie neles, a aos grandes sábios que evoca, e invoca, ele não passa de um
fim de que atinjam a alegria de ter confiança em si mesmos, humilde servidor, nunca à altura deles, jamais seguro de ter
de acreditar em suas forças: confiança na classe como um conseguido, por um instante que seja, atingir seu valor - e
todo, confiança em cada um; todo aluno é importante, ne- ainda menos de ter logrado comunicá-lo,
nhum é excluído. Simbolicamente, Sócrates nos diz que uma mulher vira
Por exemplo, na Escola Normal "a confiança de uma parteira quando ela própria não pode mais, por causa da
mente jovem e ávida numa mente culta e experiente. A con- idade, conceber. O educador deve se contentar em contemplar
fiança de um coração fácil de entusiasmar num coração ho- os filhos (espirituais) dos outros. O educador é vulnerável por-
nesto e bom" .31 Realmente, eles duvidam com tanta freqüên- que está exposto às mesmas tentações que a maioria de seus
cia de si próprios, nunca estando muito longe do desespero, contemporâneos, dos membros de sua classe social: preferên-
do abandono, de ir de encontro ao abandono - e a alegria. da cia por "pessoas de bem", por aqueles (alunos ou pais) que
relação bem-sucedida se confunde com a promessa de não estão dentro da norma, que são agradáveis ao convívio, que
serem incapazes: "Ele tinha o raro talento de comunicar seu compreendem depressa e que lhe farão as honras; temor e des-
talento aos alunos" ,32ou ainda: "Ele encontrava em todos nós confiança em relação àqueles que não estão de acordo: "mal-
qualidades maiores e, às vezes, até mesmo talento. Talvez real- educados", sujos ou, simplesmente, muito fracos."
mente os tivéssemos, tanto ele nos exaltava".33 Essas tentações, ocorrendo num âmbito restrito e defi-
Não é menos essencial que os alunos tenham à sua disposição nido, são particularmente visíveis - e chocantes, pois contra-
forças de resistência e ostentem um comportatnento fanfarrão. dizem as proclamações igualitárias mil vezes repetidas.
c) O educador torna-se ridículo; ele passa tanto tempo
Numa classe, qualquer classe, você tem todos os imbecis,
diante dos alunos, os quais vão aproveitar essas horas intermi-
todos os pouco dotados, todos os crápulas de amanhã. E, ao
náveis para descobrir suas manias, suas fixações. lado, os belos tipos sirnpáricos] ...] Você não fará distinção
"Pode-se viver sem fraquejar diante do punhal sempre entre eles, pois nisso consiste a honra da profissão.37
em riste do olhar de trinta crianças? ... [enfrentar] a cada mi-
nuto que passa, o animo ou a apatia, ambos extenuantes, de A relação educador-educando fica insustentável quando
uma classe."34 Numa análise mais profunda, o educador fica os alunos que não pertencem à "elite" sentem que - mesmo
ridículo porque, ao mesmo tempo, ele vive naquilo que a cul- que a escola lhes seja necessária e até imposta - aquela não é
tura apresenta de mais elaborado e quer que seus discípulos o a escola deles e portanto a alegria escolar não é feita para eles.
acompanhem - e é assaltado por preocupações imediatas e A relação progredirá em direção à alegria na medida em
vulgares, das quais a primeira é garantir a disciplina. Anatole que o educador tomar consciência desses elementos negativos,

82 83
esforçar-se para superá-Íos na medida do possível em determi- e) Um educador que conheça suá profissão, que tenha o
nado momento de uma determinada sociedade e permanecer domínio daquilo que se propõe e que tenha preparado minu-
atento às exigências a serem cumpridas - e afirmar que, ape- ciosamente seu curso - ao mesmo tempo, os alunos senti-
sar de tudo, ele já é grande, grandioso, exemplar, visto que é ele riam que ambas as partes estão associadas na mesma tarefa e
que abre caminho para o grande, o grandioso e o exemplar. que participam juntas da mesma busca. A alegria de descobrir
Nós sabemos que a crítica dos alunos contra os professo- com um professor que também descobre, que busca, explora,
tenta, tateia corno eles e, talvez, um pouco graças a eles. Viva-
res junta-se a uma certa admiração e que é através da crítica
cidade, imprevistos, o contrário da rotina.
que eles podem se encaminhar simultaneamente para uma ad-
Um professor explica a tática: "Dar a impressão de des-
miração mais viva e para uma crítica mais feroz: "A supe-
confiar do texto que vai ser explicado ... e, subitamente, revelar
rioridade manifesta [dos professores] que nos obstinamos em
sua beleza de improviso e compartilhar da surpresa da garo-
não querer reconhecer, mas à cujo contato o olhar se aguça, o
tada".40 E o aluno usufrui desse ganho inesperado:
espírito torna-se crítico até a perversidade'U"
d) O educador é, simultaneamente, superior aos alunos Os estudos de texto faziam-nos assistir ao desenrolar de
por sua posição, seu saber e sua experiência de vida e é supe- uma exploração. Tínhamos certeza, pela maneira como ela ques-
rado pelos alunos na mesma proporção em que o amanhã su- tionava o texto (que talvez soubesse de cor), de que as profunde-
zas do sentido eram quase tão novas para ela como para n6sY
pera o hoje, em que a força que se anuncia supera as realiza-
ções já fixadas. Não se trata aqui de uma simples montagem onde o edu-
É necessário que o professor admita a superação sem se cador encena uma comédia. Cada vez que ele se lança numa
refugiar na exasperação ("eles não são nada") ou na piedade "exposição", fica "exposto" ao julgamento, à crítica dos alunos
("não são nada e nem isso é culpa deles"). - e antes de tudo exposto a não ser compreendido nem
Não resta dúvida de que os alunos desenvolvem "quali- acompanhado. Nada é adquirido: o professor jamais chega a
dades" de arrogância nada fáceis de serem aceitas pelos profes- ter segurança de ter sido aprovado, e muito menos de ter con-
sores; um certo espírito de oposição ou, pelo menos, de cisão; duzido seus alunos até a cultura. O entendimento, assim
uma impaciência e exigências que traduzem, na verdade, a an- como a autoridade, tem que ser reconquistado sempre.f
siedade das expectativas: é a vida deles que está em jogo, sua Isso significa que a indiferença dos alunos e até a ba-
iniciação na vida, sua irrupção na vida. No entanto, para que a gunça constituem ameaças nunca afastadas, riscos que, nesta
relação seja feliz, é essencial que os professores consigam tratar profissão, aumentam terrivelmente com a idade - ao passo
com alegria esses mesmos elementos de combatividade: "[a ju- que, na maioria das outras, o tempo de serviço traz as garan-
ventude me agrada porque] eu encontro nela uma certa aspe- tias da dignidade.
reza, uma amargura no gostar que é positiva".39 Assim, o aluno exerce controle sobre a autoridade do
Compreensão, essa bela palavra: um professor compreen- mestre, tem autoridade sobre a autoridade do mestre; basta
sivo aceitará o aluno como ele é, ir~ compreendê-lo como ele que o aluno se mostre indiferente para pôr o educador em
é, e é precisamente o aspecto de benevolência incluso na com- cheque. Gostaria de extrair daí uma dupla conclusão: sendo o
preensão que fará com que ele progrida. poder do professor profundamente distinto dos outros pode-

84 85
II
I"

res, não é repressivo da mesma maneira, portanto não é de A relação será feliz na medida em que o professor não se
espantar que ele possa se tornar tão menos avesso à alegria que envergonhar de ser um adulto que permaneceu um pouco
os outros poderes. mais criança do que os outros, ou antes, um adulto que, me-
E a relação proporcionará alegria na medida em que os lhor que os outros, reconquistou a sua infância. Em particular,
alunos sentirem que o professor, mesmo sabendo que o resultado que ele tenha um certo tipo d.e humor: os alunos apreciam
nunca é garantido, sente prazer em atrair sua cumplicidade. que um professor tenha guardado alguma coisa d.o seu tempo
Professores-pais-patrões-policiais: era bom, e continua a de aluno que não se leve totalmente a sério. Ele é, ao mesmo
ser necessário denunciar sempre os riscos inerentes a todos os tempo, o professor que se deve levar a sério e o aluno, o ex-
poderes e o conluio sempre ameaçador entre eles. O setor em aluno que zomba um pouquinho dele.
que poder social e poder escolar mais se podem confUndir é o g) Para que a relação proporcione alegria, é necessário que
do fracasso em massa onde se perdem, apesar das felizes exce- seja vivida com gravidade e profundidade. O professor não se
ções, as crianças mais exploradas. Contudo é essencial que o encontra à parte, sentado em sua nuvem; ele revive os sentimen-
aluno sinta também o papel do professor, a relação com o profes- tos e as aspirações dos alunos como se fossem os dele:
sor na sua especificidade -- o que é proporcional à irnportân-
[...] minha responsabilidade [...] eu sou um acontecimento re-
cia que ele atribuirá à escola como local da descoberta em
levante para estas crianças; todo ano, elas trarão a mim uma
comum da cultura e não só da disciplina, proporcional ao espaço grande parte de seus pensamentos; todo ano, elas se nutrirão
que a escola atribuirá à cultura, e não só à dornesticação, das minhas idéias, dos fatos que lhes revelarei, dos trabalhos e
Os alunos sempre se decepcionarão se procurarem no dos castigos que lhes infligirei.44
professor um pai; não receberão o que lhes é devido caso se
limitem a ver nele um policial. Que isto sirva de consolo para os educadores: sim, é ver-
f) O educador é, por excelência, o adulto: aquele que dade que os alunos, muitos alunos esperam algo de vocês e da
sabe, organiza, prevê, assume as responsabilidades e comanda. sua cultura. Mas também se faz necessário tornar menos dra-
Mas também se pode pensar que, se o educador escolheu essa mática a relação, primeiramente recorrendo à humildade: é °
acaso que determina que o aluno tenha, naquele ano, aquele
profissão, foi mais ou menos conscientemente para salvaguar-
professor; dessa forma, qual é realmente a margem de liber-
dar uma certa parcela de infância nele mesmo. Hermann
dade de um professor em sua classe?
Broch conta que, quando era aluno, queria ser professor e
Ademais, em determinadas ocasiões, a melhor atitude do
fazia uma bela imagem de seu íuturo: de sua futura classe
professor seria talvez se apagar, apagar-se pelo menos enquanto
"compreendendo seu próprio rosto de criança".43
interveniente ativo e concentrar-se no papel de ouvinte. Mos-
Assim, a relação do professor com o aluno é também a
trar-se disponível, mesmo que não possa dar aprovações, e
relação do primeiro com sua própria infância e talvez, se ela
muito menos intrometer-se.
for suficientemente depurada ao longo dos anos, a relação
Alunos vêm contar suas desgraças ao professor:
com a infância absoluta. Mais do que todos os outros adultos,
o professor mantém um diálogo constantemente renovado Ele recebia aquilo suavemente, como se apanhasse uma
com a criança que ele era ou está convencido de ter sido. pena [...] aquelas penas deixadas ali pelos garotos depois das

86 87
~

brigas, não se tentava colá-Ias novamente em suas asas, pois em comum. O professor visto como pessoa aterrorizante por-
elas não se ftxariam mais.45 Um interesse e até mesmo uma
que encarna uma terrível cultura de dificuldades, terrível pelo
afeição que não se impõem, mas que sabem deixar todo o es-
que ela vai revelar. Essa contradição pode ter alegria, é a alegria
paço às jovens personalidades; uma harmonia a ser estabele-
cida entre combater e bater em retirada. própria da relação escolar no momento em que ela atinge seu
mais alto nível.
h) A condição primordial para um educador bem-suce-
dido é que, ao longo de todas as suas dificuldades pedagógicas Ligação e cultura
- sobrepostas evidentemente às dificuldades pessoais e fami-
liares -, o professor mantenha um potencial elevado de ale- Encontramos nos romances e biografias todos os graus de
gria, pois seu papel é convencer os alunos de que a escola e a ligações simpáticas, afetuosas e amorosas entre alunos e profes-
existência, agora, e aquilo que os espera depois merecem que sores, homo ou heterossexuais. Mas tais ligações, na maioria
eles se esforcem em crescer. Um ex-aluno está totalmente das vezes, se desenvolvem na escola quase como se desenvolve-
equivocado ao se queixar: "Confiam-nos (muitas vezes) a ho- riam fora da escola.
mens que talvez tenham muito a reclamar da vida para que Avançamos realmente para a alegria específica da relação
nos façam arriá-Ia"." escolar quando a sexualidade se une à admiração cultural e
Mas o belo círculo vicioso da pedagogia consiste em que contribui para a admiração cultural -' o que, naturalmente,
o professor, para dar alegria aos alunos, deve precisamente re- não a impede de subsistir enquanto tal.
ceber alegria dos alunos - talvez não a mesma alegria, mas Um autor cita uma professora de francês que teve nas
pelo menos um sempre possível estímulo para a alegria. Para séries finais do 10 grau: "Uma jovem loura, viva, apaixonante;
que o professor, lhes dê autoconfiança, é preciso que eles te- sua voz era sonora e rouca, sensual a ponto de me causar arrepios
nham confiança nele e que o próprio professor o sinta a ponto e até mesmo, muitas vezes, ereções. Ela lia admiravelmente". 48
de ter confiança na confiança deles. O ponto final entre as duas frases basta para marcar a
Uma professora afirma, a propósito de uma ex-aluna: complementaridade dos dois aspectos.
"Foi graças a ela, sim, graças a ela que eu pude acreditar em Outro exemplo: trata-se de um professor recém-chegado
mim. Eu, que era jovem, insegura, desajeitada, pude acreditar a uma cidadezinha, jovem, bonito, cheio de qualidades. Surge
em mim e na minha profissão" Y A alegria da relação é uma então uma sexualidade difusa: "O grande corpo de Antoine se
troca, todos dão, todos recebem. Quem se lembraria de avaliar inclina sobre as carteiras, algumas vezes desliza sobre um
os valores relativos do que é dado e do que é recebido? banco ... os cabelos então se roçam, elas têm ali, bem junto a
Acredito poder agora não suprimir totalmente a contra- elas, o calor e o perfume dele" .49
dição fundamental, mas talvez compreendê-Ia melhor e torná- Mas coexiste um outro movimento: "Nos seus bons mo-
Ia mais suportável, percebendo o aspecto mais global da coe- mentos, Antoine dizia a si mesmo que estava vendo inteligên-
xistência de dois termos, ambos dignos de consideração. O cias se estruturarem, sensibilidades se abrirem e se refinarem".
professor visto como pessoa sedutora, e isso com uma conota- Terá François Nourrissier absoluta razão ao dizer que "os
li ção até sexual: ele permite o acesso à alegria da cultura, da vida encontros professores-alunos preenchem, nos adolescentes,
li
'1,

! 88 89
1
li!
conduzir os alunos até o mais supremo e se decepciona por
uma paixão que a família já não alimenta e que o amor ainda
não consegui-lo: e o aluno sente que o supremo está em jogo,
não monopoliza"?50
decepciona-se por causa da decepção do professor e por ficar
É necessário esclarecer a natureza afetiva e mesmo sexual
tão aquém das expectativas.
da relação: a aula não é um puro diálogo de espírito para espí-
rito. Porém não se pode limitar o aspecto positivo da escola à Eu via que [o professor] amava o que nos lia [Virgílio],
relação afetiva nem procurar como única alegria da escola a que gostaria de nos transmitir aquele amor, exasperado por ser
alegria da relação. As palavras de um professor querido certa- obrigado a se limitar às correções mais elementares; [o aluno
mente têm peso e prestígio, mas nem tudo o que o professor argüido] balbuciava, ficava exasperado consigo mesmo, na-
querido diz tem o mesmo valor e proporciona a mesma ale- quele instante ele se odiava cruelmente por ser incapaz de
gria. Não é possível nem desejável que seus comentários elimi- [fazer] melhor.t!
nem a diferença de nível entre Jean Aicard e Victor Hugo. Na
verdade, somente na medida em que os alunos não esperam Torçamos para que, em outros momentos, a esperança
encontrar na escola a alegria dos conteúdos culturais, e em que do professor e os recursos dos alunos consigam se harmonizar.
desacreditam da cultura como algo capaz de lhes proporcionar
alegria, é que toda a sua expectativa é monopolizada pela rela- Esperança de unidade
ção. Ousaria dizer que eles acabam por aceitar a relação.
Dizer que a relação entre educadores e educandos é ao
A escola não se confunde mais com o relacional do que a
mesmo tempo afetiva e de progresso cultural - de progresso
pedagogia com uma distribuição bem-dosada do efetivo. A vo-
na conquista da cultura - é afirmar que o elemento intelec-
cação da escola é ser uma ponte entre as pessoas e participação
tual está apto à se unir aos elementos de sentimento. Dizer
na cultura: local de apropriação cultural, superação rumo à
que essa relação escolar pode proporcionar alegria é garantir
alegria cultural através da vivência de certas condições de co-
que o elemento intelectual contém como que um apelo à jun-
municação, de adaptação e de apoio de pessoa a pessoa.
ção com os elementos de sentimento - quando ambos são
Num certo sentido, o relacional é um meio a serviço do
vividos com bastante profundidade. Reciprocamente, o afetivo
acesso dos alunos à cultura; o professor é um servo, um servo
dá acesso ao intelectual: "O sentimento-paixão torna-se com-
de Victor Bugo. Maís profundamente, o relacional é um com-
preensão e, portanto, saber" .52
ponente do progresso cultural, do progresso total do aluno:
Isso significa que o homem pode alcançar sua unidade,
viver em companhia de, em amizade com, às vezes quase em
que não está condenado a uma infeliz distorção entre senti-
amor por um homem de cultura que tem por tarefa ajudá-lo a
mentos vivos, porém obscuros, indomáveis, e inteligência
ter acesso a essa cultura.
transparente, embora inerte. Na medida, contudo, em que a
personalidade nascente dos alunos já se mostra capaz de unifi-
Estamos sempre à beira do abismo car-se é que ela pode esperar uma alegria escolar composta de
amor pelo professor e amor pela matemática. A cultura escolar
É no interior das relações pedagógicas mais ricas que
chegaria com isso a abraçar, a abrasar a totalidade da pessoa.
pode ocorrer um tipo de drama escolar: o professor deseja

91
90
Procurei no campo das relações bem-sucedidas entre alu- união de um sentimento e de uma noção; o ensino da história
nos e professores um testemunho de que a inteligência e a vai "precisar" a noção, mas também "fortalecer" o sentimento,
afetividade podem não se opor uma à outra, Depois, tive von- na medida em que o conhecimento do passado se aproxima da
tade de falar um pouco mais sobre esse tema. "poesia" .55
De um modo geral, o homem -- e, desde cedo, a Existe urna possível unidade do intelectual e do afetivo,
criança - é dividido, sacudido e dilacerado entre potências apesar de todas as discordâncias evidentes. Isso significa que o
divergentes, essencialmente a inteligência, as tarefas racionais a desejo de compreender e a alegria de conhecer se acham tão
serem cumpridas e a clareza do julgamento, de um lado, e o profiindamente enraizados em n6s quanto a necessidade de amar.
passional e o desejo, de outro. O que caracteriza a escola é que É o que autoriza Bachelard a falar de um "complexo de Prome-
a formação da personalidade, o progresso total que se espera teu" que seria o" complexo de Édipo da vida intelectual" .56
da personalidade, passa essencialmente pela apropriação do E o poeta evoca aquele horizonte para o qual gostaríamos
conhecimento. Portanto, conta-se já com um vínculo entre o tanto de nos dirigir - e, sobretudo, dirigir a escola: "6 Sol,
conhecimento e a individualidade global. este é tempo da razão ardente".57
Contudo, certas áreas do conhecimento (poesia, artes ...) O saber pode ser convertido em fruição e as obras da
visam mais diretamente o afetivo; de todos os conhecimentos, cultura podem demonstrar que o sentimento pode se encami-
da geografia à matemática, esperam-se ressonâncias afetivas. nhar para a clareza, constituir uma via para o conhecimento e,
Todos sabemos que, para o aluno, o conhecimento é trazido assim, atingir a eficácia. 58 As emoções podem se unir a uma
pelo afetivo: ele aprende realmente bem o que o cativa, numa crítica das emoções, a um julgamento das emoções, sem que
atmosfera de aula que lhe parece segura, com um professor ambos percam a acuidade.
que sabe criar afinidades. Eis por que a escola ao mesmo tem
tempo necessidade de conciliar o intelectual e o afetivo, e Amar, querer amar, saber amar
constitui um local privilegiado para operar essa conciliação. A
alegria na escola só é possível na medida em que o intelectual e A cultura da "minha" escola gostaria de avançar mais
o afetivo conseguem não se opor. 53 nessa reconciliação do indivíduo consigo mesmo e na alegria
O ensino de história constitui um exemplo significativo. que ele pode esperar dessa reconcilação.
Sem sombra de dúvida, a história é reflexão, espírito crítico e O grande momento da unidade entre. o intelectual e o
ordenação minuciosa, mas ao mesmo tempo emoção: sensibi- afetivo seria um amor que não temesse "submeter-se ao tra-
lidade em relação ao passado, às imagens do passado, desde as balho da reflexão" e ao qual o amante somente deixaria "o
evocações descritivas até os retratos -.Quando dá vida aos ho- campo livre ap6s a experiência do pensamento" .59 O modelo
mens ou aos episódios do passado, ela se dirige a um imaginá- disso é Leonardo da Vinci, enquanto representante da unidade
rio preenchido pelo racional _.- e, dessa forma, suscita uma resplandecente dos poderes, das pulsões e do tipos de conheci-
"impressão grandiosa, saudável, duradoura. 54 mento. Aqueles que amam "conseguem sintonizar plenamente
Lavisse realiza uma típica aplicação disso ao ensino do seu amor com suas outras produçôes'T" Não é fatal que o
patriotismo na escola primária: o patriotismo é considerado. amor exclua toda e qualquer lucidez - o que condena a es-

92 93
cola à tristeza de um deserto afetivo e o aluno, sobretudo o dos sentimentos de culpa. Pela freqüência com que as crianças
bom aluno, às diversas formas de austeridade." trocam informações, fazem confidências umas às outras, Freud
A escola poderia ser um dos locais privilegiados para a tem a convicção de que elas não progridem fora dessas atitu-
reconciliação entre o conhecimento e o amor. Na verdade, o des. Os apoios explicativos fornecidos pelo adulto é que as
que me desola à leitura de tantas biografias e romances que ajudarão a confiar no amor. Freud afirma que o papel da es-
evocam as evoluções da juventude é a divisão realmente estan- cola primária é dirigir-se nesse sentido aos seus alunos. A es-
que que separa as buscas amorosas e sexuais da existência, das cola se vê portanto investida, e pelo próprio Freud, de uma
aquisições da escola, do desenvolvimento do pensamento pela missão de integrar o mais secreto, o mais inquietante do afe-
tivo com o discernimento racional.
escola. Dir-se-ia que o teórico e a cultura escolar nada têm a
proporcionar a alunos em busca do amor, a não ser o curso de
educação sexual- que se limita, na maioria das vezes, a deta-
Nous
lhes de prudência.
Algumas exceções, entretanto, podem abrir caminhos: 1. Cf. Annie Ernaux.
por exemplo, certos estudantes desejosos de enfrentar a vida e, 2. Georges Duhamel, Inventaire de l'abtme, capo IV; 1944.
acima de tudo, o amor. Ao invés de descartarem a escola e os 3. Pierre Emmanuel, Autobiographie, L'Ouvrier de ia onzieme heure,
livros em nome "da vida", procuram nos livros modos de se 1970, p. 242.
refinarem para viver e amar melhor: retomam livros estudados 4. A.-J. Cronin, Les VertesAnnées, capo VII, 1944.
em classe, principalmente madame de La Fayette, e a partir 5. Drieu de Ia Rochelle, Etat-civil; 2a parte, capo lI, 1921.
deles entregam-se a "experiências em pensamento'l.f Per- 6. Marcel Arland, Les Vivants, 1934, p. 81.
demo-nos na preparação do futuro, pois preocupar-se com amar 7. Giraudoux, Simon lepathétique, capoI, 1926.
já é uma forma de amar. Aliás, as releituras já são acontecimentos: 8. Raoul Girardet, Essais d'Ego-Hi;toire, 1984, p. 147.
"Procurávamos os desvios de nosso próprio coração". 9. Lukács, Pensée vécue, Mémoires parlés, edição francesa de 1986,
p.35.
10. Renê Masson, Des hommes qu'on livre aux enfonts, 1953, p. 200.
Os primeiros momentos do amor
11. Tendriakov, Le Prix desjours, 4a parte, capolI, 1976.
12. Reger Bordier, Un âge dor, 1967, p. 105.
A psicanálise nos ensinou que, para que esta reconcilia-
13. Elias Canetti, Histoire d'une [eunesse; 1980; 1908 em alemão,
ção entre o afetivo e o intelectual tenha uma chance de se p.197.
realizar, pelo menos em parte, ela deve ser iniciada bem cedo 14. G. E. Clancier, Un jeune homme au secret, 1989, p. 74.
- e que a contribuição dos adultos, do conhecimento do 15. Platão, Phêdre, 275d-e.
adulto, desempenha aí um papel capital. 16. Paul Guth, Le Naifaux 40 enfonts, 1955, p. 265.
Muitas vezes as criancinhas descobrem na angústia o que 17. Valêry-Larbaud, Enfontines Devoirs de uacances, 1917.
diz respeito à vida sexual, a começar pelas diferenças entre me- 18. Trata-se de um rapaz que vai entrar no 30 ano, cuja narração se
ninas e meninos. Há orisco de a vida sexual parecer-lhes uma refere a ele próprio.
"coisa horrível e repugnante",63 onde se manifesta a irrupção 19. Hermann Bahr, "Autoportrair" em Jean Launay, Textes, 1986.
~:
i
lI i
94 95

l
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I!
20. Léon Frapié, La Maternelle, capoVI, 1904. 53. O intelectual e o afetivo podem então participar juntos do livre
21. Yves Courriere, Joseph Kesse~ 1985, p. 76. curso da imaginação. Pascal vive no colégio momentos felizes, "pois
22. Brincourt, Le Vert Paradis, 1950, p. 27. era preciso imaginar tudo. Tudo, por sua própria conta. Tudo o que
23. Platão, Le Banquet, 215e. (o professor) ensinava doutamente. Tudo, desde a cor das águas do
24. Sigmund Freud, Résultats, Idées, Problêrnes, I, p. 228, PUF, 1984 Orinoco até a forma dos números ... ver, escutar, sentir, tocar os ob-
(Psychologie du lycéen, 1914). jetos irreais que um mestre lhe propõe, que alegria mágica".
25. Ernst Wiechert, Des flrêts et des bomrnes, 1950, p. 152. 54. Michelet, Le Peuple, 3a parte, capoIX, 1846.
26. J. B. Pontalis, L'amour des commencements, 1986, p. 77. 55. Lavisse, Questions d'enseignement national, 1885, P: 208.
27. Cavanna, Les Ritals, 1978, r- 207. 56. Bachelard, Psycbanalyse du feu, capoI, 1938.
28. Romain Rolland, mémoires, 1956, P: 33. 57. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: La Jolie Rousse, De l'ordre
29. Jean Daniel, Le Temps qui reste, 1984, p. 23. et de l'auenture, 1918.
30. Albert Thierry, L'Homme em proie aux enfants, L. lI, capo X, 58. Cf. Brecht, Petit organon pour le tbêatre.
59. Sigmund Freud, Un souvenir de L. de Vinci, publicação de 1910,
1909.
3 L Mouloud Feraoun, L'Anniversaire, 1989, p. 106. p.24.
32. Erckmann-Chatrian, Les années de college de maitre Nablot, VI, 60. Brecht, Meti, p. 159.
61. Particularmente, o "bom aluno" desejado por Françoise Dolto
1874.
desenvolveu nele o racional em detrimento do afetivo, desfazendo
33. Henri Bosco, Pascalet, 1958.
sua individualidade original.
34. Christian Rouaud, La Saldéprof 1983, p. 150.
35. Anatole France, Le livre de mon ami, Nouoelles amours, IX, 1885. 62. Robert Kanters, Aperte de vue, 1981, p. 36.
63. Sigmund Freud, Vie sexuelle: Les explications sexuelles données aux
36. Cf. Daniel Zimmermann, La sélection nan verbale à l'école, 1982.
enfants, publicação de 1907.
37. Roger Semer, Le Corsage à brandebourgs, 1964, P: 159.
38. Elias Canetti, Histoire d'une jeunesse, 1980; 1905 em alemão,
p.199.
39. Janine Sparling, Le Compromis, 1955, P: 46.
40. Janine Sparling, Le Comprornis, 1955, P: 46.
4 L Colette Audry, La Statue, 1983, p. 72.
42. Roland Banhes, Le bruissement de Ia langue, 1984, P: 348.
43. Hermann Broch, La Grandeur lnconnue, 1968, P: 54.
44. Albert Thierry, EHomme en proie aux enfants, 1909, p. 86.
45. Christian Rouaud, La Saldéprof 1983, r- 65.
46. Sacha Guirry; Si j'ai bonne mémoire, 1965, P: 78.
47. Tendriakov, La nult du bac, 1979, capo nr.
48. Georges Jean, La passion d'enseigner, 1985, p. 78.
1111 :
1

III 49. Fréderic Rey, Haute Saison, 1984, p. 261.


r-
50. François Nourrissier, Un petit bourgeois, 1963, 110.
51. Butor, Degrés, 1960, p. 149.
52. Gramsci dans le texte, 1975, pp. 115 e 173.

96 97
1
li
1.,1.,

I11

A ESCOLA, O OBRIGAT6RIO E A ALEGRIA

L SER OBRIGADO E SER FELIZ: SUCESSJlljt OU


SIMULTANEAMENTE?

Quem duvida que a nossa escola seja lugar de cumprir obri-


gações? O aluno não escolhe nem os seus professores, nem os
colegas, nem tampouco as modalidades de vida com eles. Não
escolhe o que se estuda, nem a maneira pela qual se estuda, os
programas e os horários são impostos. É o domínio do "dever";
autoridades nos vigiam para que nos conformemos às ordens.
Decorrem daí duas modalidades particularmente escola-
res de obrigação: o aluno deve prolongar o ensino em aplica-
ções pessoais - responder, executar os exercícios correspon-
dentes etc. - e tem que se submeter a avaliações, a
julgamentos e, de maneira quase garantida, a comparações
com os outros. Na maioria das vezes, seu trabalho e sua perfor-
mance são corrigidos, isto é, confrontados com um modelo
que passa a ser, na verdade, obrigatório.
Em suma, não se faz o que se quer, nem como se quer. A
produção do aluno se intercala entre um direcionamento pré-
vio e uma avaliação posterior.
Existe, além disso, um implícito da obrigação que se
pode ler na cátedra mais alta do professor - e mesmo que ela
seja colocada no mesmo nível, as cadeiras dos alunos estão
voltadas em conjunto para o professor; e mesmo que todos se

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instalem em circulo, o professor talvez só tenha dissimulado Sem chegar a coisas do tipo "a escola irá domesticá-lo ",
por um momento a sua "tirania". não está bem consolidada a idéia de que a escola é feita para
"conter" as crianças? Além disso, é terrivelmente verdadeiro
Festival de lamúrias que a palavra disciplina tem duplo sentido: os mais altos valo-
res culturais e os truques para manter os alunos sossegados.
Todos sabem que o obrigatório é objeto das mais violen- Aliás, \um dos riscos da obrigação escolar é fixar o aluno
tas imprecações por parte dos alunos, e é considerado o que em sua puerilidade - e que ele adote condutas do mesmo nível
mais se opõe à alegria. Para a maioria, alegria é sinônimo de para resistir, isto é, aquelas que ele sente como as mais apropriadas
opção. Como esperar alegria de um lugar onde não existe para exasperar o adulto, mais provocações que revoltas.
opção? No interminável florilégio de queixas contra o obriga- Queixas torrenciais dos alunos: o que nos impõem é difí-
tório escolherei arbitrariamente, alguns textos que me impres- cil demais, inutilmente difícil; eles nos impõem isso somente .
sionaram particularmente. Trata-se de escritores devotados às para poderem nos classificar e em seguida nos "orientar", quer
dizer, nos eliminar ou nos deixar de lado; eles nos impõem
grandes obras e que deploram que a obrigação as transforme
em algo semelhante a uma punição: "As mais belas línguas do isso para que o adulto tenha ocasião de realizar seu desejo de
superioridade, sua sede de autoridade sobre os jovens, subme-
mundo, os maiores poemas da humanidade não passam,para
ele [trata-se de um adolescente no colégio], de objeto de en- tendo-os a vexames e até a crueldades.
Eles não justificam o que nos impõem e se dispensam de
fado, de revolta e de desgosto". 1
justificá-Io, porque seriam obrigados a reconhecer todo o arbi-
"Quando me falavam da beleza de uma ode de Horácio,
trário que isso contém. Só o fato de isso ser imposto já é hu-
eu imaginava que estavam querendo caçoar mim[ ...] nada era
milhante e infantilizante, faz-nos viver num estado de depen-
mais enfadonho".2
dência infantil.
E, sob uma forma mais teórica, Paul Valéry se indigna
Eles nos exigem demais, gastamos um tempo demasiado
porque "o que foi verdadeiro, o que foi belo [...] um instru- com isso, não estamos mais suficientemente disponíveis para
mento de prazer ou de emoção" se degrada, pelo autoritarismo todo o resto. Como falar de alegria quando nos fazem viver
escolar, em um "instrumento de classificação"." com um medo perrnanentei? Medo quando a professora "pas-
A escola corre o risco de ser pura e simplesmente assimi- sava em revista cadernos e lousas". Medo de ser obrigado a
lada à repressão. Quando um professor conta uma história, recitar uma poesia "sozinho, em pé, diante da classe inteira'"
basta que os alunos escutem. Não se imporá nenhum exercício -- e uma poesia difícil. Medo de ser obrigado a responder ao
ou controle, e a criança exclamará: "Era uma hora encantada ... ser argüido: "Encontrarei forças para não gaguejar? Consegui-
nem parecia mais ser aula". 4 Não insistirei nos temas mais conhe- rei no mínimo pensar, preso por aquele olho no qual não se lia
cidos: o autoritarismo da escola produzindo ou revoltados ou nenhuma mansidão?"
seres frouxos que se curvam, se curvam, não ousam e nem mesmo
pensam em reerguer a cabeça. O "bom aluno" tem o hábito de
obedecer e de aceitar os modelos e valores sem questionã-los;
doutrinamento; assim se preservam as dominações sociais.

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Pode-se ir além das lágrimas? se protegido. Todos devem submeter-se, logo todos devem ser
tratados da mesma maneira e, portanto, todos devem ter seus
Sendo tudo isso bastante conhecido e freqüentemente re- direitos estabelecidos. A outra face, o anverso da obrigação, é
petido, é a outra vertente que me interessa explorar: as alegrias que se um aluno não tem direito, na escola, de fazer tudo de
do obrigat6rio. Em que medida a alegria pode nascer no interior que tem vontade (longe disso, aliás), os outros também não
do obrigat6rio e mesmo nascer do obrigat6rio, como atrair o têm o direito de fazer tudo de que têm vontade - nem de
fazerem com ele tudo de que têm vontade.
obrigat6rio para a alegria?
a) Em primeiro lugar, esses medos podem ter seu en- Eu acrescentaria que ainda devem ser realizados enormes
canto: "Eu gostava da emoção que o ruído dos passos da profes- progressos para que cada aluno usufrua os seus direitos e possa
sora que voltava fazia correr pela sala. Eu gostava do medo que lutar contra as suas violações. Mas aconselho enfaticamente
nos invadia quando ela passava em revista cadernos e lousas"." que s6 se abandone o obrigat6rio quando se tem certeza de
que não se vai cair no regime do capricho.
Alguns querem levar ao paroxismo, ao paradoxo as ale-
c) Assim, o que protege e rege a vida escolar é precisa-
grias pr6prias dessas situações de tensão' e de emoção. Celebra-
mente a regra. Daí um terceiro aspecto da alegria: adotar uma
se a alegria dos exames e dos concursos na medida em que eles
conduta mais firme e mais estruturada do que as da vida habi-
provocam um "estado emocional particular em que o ser é
tual - sem chegar ao universalismo do dever kantiano, o
obrigado a ir até o limite das suas possibilidades". 8 Eu diria de
aluno pode sentir que a norma escolar tem uma origem dife-
bom grado que a prova é a quintessência da obrigação escolar.
rente dos hábitos e fundamentos distintos das situações já esta-
a atrativo do obrigat6rio é o tempero que ele traz à
belecidas: ela pretende uma imparcialidade que não depende,
vida escolar:
que não dependeria das preferências, das afinidades ou mesmo
No colégio, ao invés de me submeter ao aspecto arbitrá- do valor dos indivíduos em questão. Resulta daí a possibili-
rio da regra do jogo, eu via um jogo nas regras. Nós as respei- dade de se livrar do caos das influências do ambiente assim
távamos para que a partida, prestes a acontecer, pudesse asse- como das cumplicidades e dos pressupostos.
gurar nosso prazer. No fundo, os maus alunos não passavam d) Estar protegido contra a arbitrariedade dos outros e
de maus jogadores.9 também se proteger contra a arbitrariedade contida em si pró-
prio: a obrigação escolar é forçar a... mas é, ao mesmo tempo,
Assim, uma primeira alegria consiste em que a obrigação ajudar a superar certas agitações da alma, hesitações inconsis-
escolar pode oferecer ao aluno um leque de experiências erno- tentes, frouxidão nas atitudes e nos desejos. Pode-se pôr termo
tivas que não tem equivalente no mundo cotidiano, na liber- a disposições mágicas e regressivas como essas; entregar-se a
dade comum: emoções vivas, às vezes violentas, mas controla- desvarios; saberíamos tudo, possuiríamos de um s6 lance, sem
das pelo conjunto da situação. esforço; o mundo vai ceder aos meus desejos ...
b) Com efeito - e isso leva a um segundo tipo de alegria Uma das virtudes e uma das alegrias da obrigação consis-
_, pode-se amar esses medos nascidos do obrigat6rio na me- tem em mostrar aos alunos que certas extravagâncias e certos
dida em que, simultaneamente, nos sentimos protegidos pelo
obrigat6rio, que passa a ser garantia, alívio e alegria de sentir-

104 105
caprichos "não colam". Só importa o que pode adquirir um
"A Vontade de lutar com futuros enigmas gramaticais,
certo peso de realidade, pelo menos de realidade escolar.
seus 'navarreses' e seus 'castelhanos' ", diz o herói do livro que
e) A obrigação é a chance que cada um tem de encami- conhece de cor "seu" Cid.12
nhar-se para aquilo que ainda não o atraía, onde ainda não
Quero aplicar à escola estas duas frases, mesmo que não
fora bem-sucedido. O encontro da criança com Rimbaud tem
tenham sido pensadas diretamente para ela: "Aquele a quem
muito mais chances de ocorrer caso seja imposto pela escola.
nunca se pede o que não pode fazer, nunca faz tudo o que
Resta em seguida a seqüência, feliz ou não, desse encontro. Resta
pode"13; e de modo bem semelhante: "Aqueles que nada fazem
também ao aluno tomar consciência de que ele não se teria
quando lhes é pedido um esforço comum, mas são prodigiosos
encaminhado para isso "espontaneamente".
quando se trata de um esforço que está acima de suas forças"."
f) Procurar, enganar-se e recomeçar após o erro. Todos
Acho que estou autorizado a passar do "pedido" à obrigação.
sabemos que é assim que se progride, que se atinge a alegria de
Não há dúvida de que nenhum aluno pode viver tantos
progredir, mas se essas retomadas não fossem impostas, se as
anos nesse estado de supertensão, evocado pelos dois autores;
deixassem por nossa conta, na maioria das vezes não faríamos
no entanto, é nessa direção, que conseguem ultrapassar até certo
corpo mole?
ponto, que podem apreender a alegria de uma realização e que
A irmãzinha leva pito, tem que refazer suas contas de
um dos caminhos para atingi-Ia é ser apoiado pela obrigação.
somar e é assim "obrigada a uma vitória sobre si mesma, cujo
Sem Cair nas armadilhas do "mais tarde", existem,
alcance exemplar ela ignorava". 10Não ceder, empenhar-se em vez
mesmo assim, momentos em que a gente deve penar para tor-
de entregar-se à dispersão: isso não é uma chance de alegria?
nar-se sensível à beleza de Baudelaire. Trata-se de "triunfar
Péguy diz com sutileza: "O ressaibo amargamente bom da pe-
sobre os desvios do espírito que Se esquiva"15; tenacidade,
nosa obediência desejada". 11 Quando aprende a escrever, ele
concentração de esforços, mas também momentos de crise e
acha ilógico que lhe imponham escrever com branco sobre de aridez.
preto, quando habitualmente se escreve com preto sobre
Não é da primeira vez, à primeira leitura de um poema, à
branco; entretanto, ele aceita o obrigatório e sua alegria
primeira visita ao museu que todo aluno é tomado como que
advém, creio eu, de uma confiança, aliás cheia de reticências,
por uma revelação. Mesmo aqueles que são mais receptivos,
na legitimidade do que a escola exige.
mais acolhedores em relação à cultura, têm necessidade de re-
g) No sentido mais global, a obrigação escolar é a espe-
começos, de novos encontros ocorridos graças a novas circuns-
rança de incitar o aluno a ir ao máximo de suas forças, ao
tâncias e também de tomar uma certa distância. Se a obrigação
limite das suas possibilidades, ao extremo de si mesmo; trans-
não estivesse ali como apoio, as metas culturais teriam menos
cender o nível habitual e seu desleixo por demais sossegado. chances de ser atingidas.
Alegria de enfrentar resistências, de vencê-Ias, pelo
É um consolo, um incentivo saber que, sobretudo para
menos em parte, de progredir em determinado campo e tam-
os maiores, o caminho não foi suave: Nietzsche pede que se
bém alegria de enfrentar-se a si mesmo e de progredir no auto-
faça os alunos sentirem "o martírio que são a história das ciên-·
domínio com a convicção de que, se a luta fosse facultativa,
cias ... as lutas, as derrotas, os retornos à luta dos sábios ... (há
não se teria ido até esse ponto. razão para) fazer tremer a alma dos jovens". 16

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Quis fazer surgir o caráter culturalmente frutífero da fracos reside no seu número) exprimam suas reações e deman-
obrigação, entretanto não posso esconder os seus limites, os das em relação àquilo que estão vivendo.
seus riscos- nem o que existe de fundamento na oposição Em todos os casos, os professores terão por tarefa justifi-
dos alunos à obrigação. car a legitimidade das obrigações que serão mantidas: elas só
Desse ponto de vista, uma primeira tarefa da "minha" produzem efeitos positivos na medida em que os alunos reco-
escola seria fazer evoluir o obrigatório; caberia, em seguida, nhecem que elas existem para ajudá-Ios - conscientização a
buscar as condições de um progresso rumo a uma autonomia ser adaptada, evidentemente, à idade deles.
propriamente escolar. Em que condições os alunos podem admitir que as obri-
gações escolares não são iguais aos trotes de calouros? Uma
Fazer as obrigações evoluírem escola que lute para que a obrigação não seja, nem inicial-
mente nem depois, sentida como um trote de calouros. Esse
Está fora de cogitação aceitar todas as obrigações existen- acordo com os alunos e a participação deles na elaboração do
tes. Algumas são devidas a falhas de organização; muitas, à obrigatório podem funcionar igualmente como freios à sua
falta de recursos locais, pessoal e dinheiro; algumas só se man- desvalorização. Trata-se, principalmente, de fazer com que os
têm por sobrevivência; outras se originam do desconheci- alunos sintam que o obrigatório e os trabalhos a que ele serviu
mento das necessidades e demandas dos jovens. Pode-se de apoio os ajudam a penetrar nas áreas difíceis e essenciais,
mesmo perguntar se não existem algumas que visam rebaixar e onde serão supercompensados com alegria pelos esforços des-
humilhar o aluno, ao invés de educá-lo. Portanto, não se pode pendidos. Isso é o que chamarei, na última parte deste livro,
considerar a obrigação em si mesma como libertadora, porém de campo das obras-primas. Não poderíamos, assim, nos enca-
cada tipo de obrigação deve ser posto em questão: naquele minhar para uma reconciliação entre os que protestam e os
caso determinado, determinada obrigação cumpre um papel que aceitam -- talvez, quem sabe, com uma docilidade dema-
siado cômoda?
positivo? Na ausência de determinada obrigação, o progresso
do aluno correria o risco de estagnar? & vezes, são simples "Minha" escola está decidida a introduzir essas zonas de
mal-entendidos que precisam ser superados, mas, principal- autonomia que tantas pedagogias, hoje, exigem; no plano da
mente, temos muitos imperativos que precisam ser transfor- organização, os alunos exprimirão suas reações, dirão seu
mados, subvertidos. ' ponto de vista, exporão seus próprios problemas; aprenderão
Isso exige, no mínimo, que os adultos discuta~ esse as- pouco a pouco a entrar em acordo, a encontrar procedimentos
de trabalho, não recuarão diante das responsabilidades e das
sunto com os jovens e, portanto, que a escola institua um
iniciativas a serem tomadas, proporão e participarão das deci-
espaço e um tempo, provocando hábitos de palavras tais para
sões. Em relação ao trabalho, trarão contribuições a partir das
que as discussões se desenvolvam em condições favoráveis e
suas próprias experiências - voltarei a esse assunto, a propó-
tenham seqüências efetivas. 17
sito da continuidade.
Uma das primeiras reformas pedagógicas a serem promo-
vidas seria organizar, em todas as escolas, em todos os níveis, a
possibilidade de que os alunos em grupos (pois a força dos

108
109
Uma autonomia especificamente escolar O professor não dá o seu saber para o aluno: ele lhe per-
mite o acesso a ele desde que cada wn realize, por sua própria
Eu gostaria, sobretudo, de colocar a questão que me inte- conta, o movimento que fundamenta determinada idéia - talvez,
ressa sobremaneira, pois uma dificuldade essencial surge aqui: também, o compromisso que sustenta a validade de tais metas.
os alunos muitas vezes procuram na escola o mesmo tipo de Plutarco já dizia: "A inteligência dos alunos não é um
autonomia existente na vida cotidiana ou no lazer, ou seja, a vaso que se tem de encher; é uma fogueira que é preciso man-
opção - e se irritam por não encontrá-Ía, ter acesa". Os itinerários para a cultura são múltiplos, mas
Na realidade, na escola, a autonomia não pode consistir nunca inteiramente sinalizados. Só existe consentimento real
em fazer, a seu bel-prazer, este ou aquele dever, ou nenhum por parte do aluno se houver, pelo menos vislumbradas, outras
outro, nem optar entre um tex.to de Vitor Hugo ou uma pá- saídas possíveis. Pode haver educação sem que o discípulo sele-
gina de romance policial, pois as exigências culturais existem e cione, critique, rejeite, recuse, se oponha, se rebele - quando
são elas que mandam. isso s6 aconteceria em certos momentos, em certas fases, em
Além disso, gostaria que os alunos percebessem que, na relação a certos procedimentos? Nesse sentido, um alicerce de
escola a autonomia de uma atividade não basta para garantir autonomia e uma alegria primeira da autonomia encontram-se
seu valor. Não admito que qualquer atividade assumida pelos na base de todo ensino que ouse apresentar-se como tal.
j avens (recolher jornais velhos para ter os fundos necessários Um segundo momento dessa autonomia especificamente
para uma viagem etc.) seja, só por isso, considerada válida: escolar, e da alegria a ela correspondente, pode ser procurado
viso, na escola, atividades de alto nível, que se unam a conhe- na relação entre o aluno e a obra-prima.
cimentos de alto nível, atividades diretamente relacionadas às A singularidade da "minha" escola é transformar os con-
aquisições culturais. teúdos escolares a ponto de colocar em primeiro plano a obra-
Ando à cata de uma autonomia especificamente escolar, na prima e a alegria que o aluno pode extrair da obra-prima; uma
qual percebo dois aspectos. O primeiro patamar é que o aluno escola que ambiciona confrontar o aluno com as conquistas
não atinge nem o progresso nem a alegria se não retomar, de humanas essenciais, na esperança de que ele alcance assim as
modo pessoal e voluntário, isto é, autônomo, o trajeto que o profes- alegrias essenciais.
sor (ou o livro) traçam à sua frente ou mesmo, em parte, com ele. De fato, parece-me que posso encontrar nessa relação
Não se trata somente de dizer que o aluno -nâo deve rece- com a obra-prima uma síntese entre a obrigação e a autono-
ber a verdade do exterior, repetir respostas calcadas nas de ou- mia, entre a afirmação do obrigatório e o desejo de autonomia
trem e que não põem em jogo sua atividade pessoal. Mas o daqueles que protestam contra o obrigat6rio. Num certo sen-
aluno não pode receber a verdade do exterior, pois a verdade ·tido, a obra cultural aparece como o que há de mais obrigató-
não pode ser transferida de uma mente para outra mente. rio, de mais contrário ~ autonomia do aluno; não s6 no desen-
O aluno colocado em xeque geralmente fica bloqueado rolar dos programas escolares - determinadas obras são
numa espécie de passividade incoerdvel, tomando-se um fan- prescritas para determinado momento - mas, sobretudo, as
tasma presente-ausente; ele não conseguiu partir para a conquista obras por si s6: o quadro está dado, concluído, não tenho
de significados e as palavras não chegam a adquirir vida nele. outra coisa a fazer a não ser admiti-lo. O livro aparece como

110 111
""~
um objeto alheio a mim mesmo, ingerência de um outro, in- pouquíssima alegria). Conseguir enxergar-se mais claramente:
tervenção vinda do exterior. o livro é como uma daquelas "lentes de aumento"; ficamos
A resposta de Picasso a essas objeções banais é magnífica: mais capazes de discernir nossas intenções, a ponto de se
neste exemplo, o quadro é um nu; ao mesmo tempo ele foi poder afirmar que os leitores, conduzidos pelo autor (e alguns
inteiramente realizado pelo artista e cada um pode cornpô-lo: diriam: subjugados pelo autor), são menos os leitores do autor
do que os "leitores de si mesmos'v'''
É preciso que você dê a quem olha as condições para que
A atividade original do aluno não é anulada, mas exal-
ele, próprio faça o nu, com os seus olhos; [é preciso que] ele
tada pelo que lhe é proposto: o impulso provocado pela leitura
tenha à mão todas as coisas das quais necessite para fazer um
nu. Então ele mesmo as porá no lugar com os olhos dele. Cada se produz, em última instância, "no fundo de nós mesmos", e
um fará o nu que quiser com o nu que eu tiver feito para ele. 18 eis por que ele pode abrir "no fUndo de nós mesmos a porta
de moradas onde não teríamos logrado penetrar". Mas a metá-
A relação do espectador com o quadro é bem a síntese do fora, aqui, pode induzir ao erro: não imaginar territórios
obrigatório e da autonomia: a partir de dados impostos, é ele dados e delimitados, que teriam escapado a nossas investiga-
que monta o quadro, e esse quadro restituído é um Picasso; a ções anteriores - e, portanto, o autor teria que nos guiar até
prova de que a síntese foi bem-sucedida é a alegria sentida. lá passo a passo. O que se encontra desperto nos leitores é a
A situação do aluno não me parece fundamentalmente "vontade de servir-se do seu espírito" e precisamente o "poder
diferente daquela que vive, esse diletante, salvo pelo fato de de pensar por si mesmos". Para pôr em ação minha razão, meu
que o aluno não optou por ir ao encontro da obra-prima. Mas espírito, minha vontade, careço de um outro; eis o paradoxo
uma vez que tenha ido ... que fundamenta a liberdade do aluno dependente.
E se foi uma obra genial que abalou meu pensamento,
Tornar-se o que se é graças a um outro ele vai se voltar em direção ao genial, "tentar recriar em si
mesmo o que um mestre sentiu" - e também o que ele com-
a aluno fica preso a determinado livro por regulamentos obri- preendeu e desejou. Estamos aqui na confluência de uma obri-
gatórios, livro esse que constitui em si uma submissão ao seu autor. gação e de uma liberdade, e é a alegria desse encontro que eu
a papel dã "minha" escola é o de escolher a obra que sonho insuflar ao aluno.
pode convir àquele momento, àquelas circunstâncias, aos alu-
nos e, estabelecidas as regras, apresentá-Ia em condições favo- Interpretações criativas
ráveis à sua apropriação (notadamente aquela continuidade da
qual falarei em breve). A obra pode então se transformar em Ou a obra-prima permanece letra morta, ficando assim
instrumento privilegiado para conquistar a autonomia: "Essa perdida, ou os alunos irão, de uma vez, aceitá-Ia como é e
impressão de parir a si próprio". 19 interpretá-Ia, quase no sentido como se fala de intérprete no
Tornar-se o que se é livrando-se do peso das idéias pron- teatro, no cinema, no concerto - aliás, isso pode acontecer
tas, desembaraçando-se de uma infinidade de preconceitos e sem fazer nenhum gesto, nem dizer uma palavra suplementar.
menosprezos (menosprezar proporciona, no final das contas, Fazer viver a partir da sensibilidade de sua época e de seus
I
112 113

I
problemas, e também cada um a seu modo, a partir do que lI. A EsCOIA PARA APRENDERA
cada um é, do que já viveu, de suas expectativas. PRESCINDIR DE MESTRES?
O aluno dá vida à obra, dá sua vida à obra, e essa inter-
pretação pessoal é que constitui a primeira conquista de sua Diz-se freqüentemente que a escola tem por finalidade
originalidade autônoma. O primeiro "papel" dos alunos é negar a si própria, suprimir-se, a fim de criar um adulto "livre",
"representar" à sua maneira, inimitável, os teoremas de geo- sem mestre; a escola seria minada por uma contradição in-
metria ou as estrofes de um poema. Pode chegar, assim, a um terna: ela acumula obrigações e mestres, enquanto o fim visado é
"olhar produtivo": associar sua própria experiência à do autor, atingir o pensamento pessoal, buscar e aprender por si mesmo,
compará-Ia, assimilá-Ia, opôr-se a ela.21 fazer suas próprias aquisições e encontrar suas próprias normas.
O aluno não está condenado a ser um simples consumi- Com isso, chega-se mesmo a afirmar que a escola, seus
dor da cultura, ele não recebe simplesmente a obra, mas a mestres e suas obrigações são necessariamente contrários à ver-
prolonga, a enriquece, acrescenta-lhe algo, faz nascer nela ecos dadeira aquisição do saber e ao crescimento dos alunos. O
que nunca haviam ressoado. tempo escolar seria o oposto da idade adulta, a criança sub-
E eSS;1longa, lenta e difícil coabitação autônoma com as missa seria o oposto do adulto autônomo. ,
criações é a condição para que a criatividade do aluno alce E, sob formas diversas, teceremos comentários a partir da
vôo, ultrapasse a utilização hábil e as combinações astuciosas frase final de Nourritures Terrestres [OsFrutos da Terra]: "Na-
dos estereótipos espalhados à sua volta. tanael, agora, jogue meu livro fora".23
É por meio da alegria assim sentida - e que provoca o Na realidade, porém, a esperança de Gide e, de uma ma-
desejo de se envolver numa "interpretação" - que o aluno neira mais genérica, a esperança e o papel do educador são que
deixa de ser submisso e dominado; ele concilia em si a parcela Natanael procure outros livros, livros do mesmo nível, de alto
do sujeito autônomo e a parcela da herança recebida, das in- nível; que não se contente com a publicidade que o cerca, com
fluências sofridas, da autoridade. o conforto que o cerca, com os prazeres fáceis, imediatos e
As obrigações da escola podem levar os alunos a uma egoístas: o discípulo se livra da submissão àquele mestre, mas
independência que torna quase insignificante a liberdade que para atingir a altura dos mestres. E se Natanael se deixasse
eles pensam encontrar quando fazem muito simplesmente levar pelas pequenas modas sucessivas, Gide ficaria convencido
tudo de que têm vontade na hora. Um professor lê poemas a de que seus esforços educativos fracassaram.
seus alunos, fala dos autores, encontrando sempre o tom ade- Gostaria de dizer principalmente que o adulto nunca
quado: então eles vivem prescinde de mestres: ele se fia num determinado jornal, con-
fia-se a determinada Igreja, adere a determinada corrente de
[...] uma aventura e uma liberdade mais fortes do que aquelas,
sua época, inclusive o ceticismo, o indiferentismo e a absten-
precárias, das andanças, das férias] ...] [é tão melhor que o
ção, que são posições tão nítidas quanto as outras.
pátio do colégio] onde nos divertíamos sem parar com as mes-
mas brincadeiras, nos entregávamos às mesmas algazarras, re- Não há dúvida de que ele pode criticar as empreitadas às
tomávamos interminavelmente os mesmos diálogos entremea- quais se presta; mas o aluno, por sua vez, também não deixa
22
dos de fanfarronadas, de trocadilhos e obscenidades. de fazê-Io. Ele pode escolher, abandonar, mudar, esforçar-se

114 115
para unir e até mesmo misturar várias influências, matizando- 17. Cf. Oury, Pédagogie institutionnelle.
as. Isso é importante, sem dúvida, mas durante todo o tempo 18. Hélene Parmelin, Picasso dit, 1966, P: 111.
em que ele confia-se a determinada fonte de informação ou de 19. Annie Leclerc, Origines, 1988, p. 100.
direção, está tendo um mestre. Evidentemente, não é possível 20. Marcel Proust, Le Temps retrouvé, La Pléiade, IU, p. 911 e 1032.
verificar in loco as notícias, os comentários, as ordens, as reco- 21. Brecht, Écrits sur le théâtre, I, op. 258.
mendações, Cada adulto deve também extraí-los de determi- 22. G.E. Clancier, Un jeune bomme au secret; 1989, p. 77 e 82.
nada fonte (ou de determinadas fontes) exterior a ele próprio, 23. André Gide, Les Nourritures terrestres, 1897.
imperiosa enquanto ele não decide mudar de fonte e procurar
outra. A gente é sempre um pouco aluno do seu jornal, da sua
Igreja, do seu partido - e ser do grande partido daqueles que não
querem ter partido não faz ser mais autônomo, não faz perder o
caráter escolar do que pertencera um partido constituído.
A escola não para aprender a prescindir de mestres, mas
para se preparar a fim de melhor escolher os mestres voluntá-
rios da maturidade.
110

NOTAS

1. George Sand, Histoire de ma vie, I, 1855, P: 119.


2. Erckrnan-Chatrian, Maitre Nablot, IV; 1874.
3. Paul Valéry, La Pléiade, P: 497.
4. Louis Gilloux, Le Pain des rêues, 1942, p. 65.
r-
5. Joseph Zobel, Ia Rue Cases-Negras, 1974, 95.
6. Mede Hodge, Crick, crack, VII, 1982; em inglês, 1970.
7. Joseph Zobel, ibid. p. 95.
8. Georges Jean, La passion d'enseigner, 1985, p. 101.
9. J.-B. Ponralis, L'amour des commencements, 1986, p. 23.
10. Catherine Paysan, Nous autres les Sancbez; 1976, P: 41.
11. Chades Péguy, Pierre, La Pléiade, I, P: 1235 (redigido a partir de
11'
1898, só foi publicado em 1931).
12. Malegue, Augustin, 1932, L. II, capo r.
II
li! 13. James Mill, O pai de Stuart Mil!.
14. Monteherlant, Ia releve du matin -- Le Jeudi de Bagatelle, 1922.
15. Roger Martin du Gard, Souvenirs, I, La Pléiade, 1955.
16. Nietzsche, Aurore, Aphorisme, 195.

116 117
2

AALEGRIAEAESCOLA COMO
UM MUNDO DIFERENTE

L EM QUE CONDIç6ES APRENDER PASSA


A SER UMA MANEIRA DE VIVER?

A escola como um mundo diferente da vida: como em


relação à obrigação, aqueles que reclamam dela constituem
uma multidão, e escolhi arbitrariamente alguns testemunhos
sobre o assunto.
A escola tristemente oposta à vida, mas ainda mais triste-
mente oposta a si mesma. É uma construção cinzenta, fria, de
janelas com barras de ferro, com garotos sujos e malvestidos:
"Fazem-nos explicar Virgílio, os belos adolescentes dourados
pelo sol itálico, os doces pastores felizes que tocam flauta num
paraíso bucólico". Bem pior, "as grandes amorosas Dido,
Fedra e Safo são propostas como em temas de devaneios a
pequenos reclusos limitados às masturbações de dormitório".
E finalmente: "Ensina-se o vasto mundo a garotos enclausura-
dos que nem sequer têm o direito de ir brincar no jardim da
cidade". Em suma, a alunos aprisionados a esse ponto "ensina-
se a conquista da liberdade".'
Os riscos de não-alegria são então evidentes e foram evo-
cados com muita freqüência: risco de que a escola se degrade
como irreal, artificial, factícia; ela gira em torno de si mesma,
cai na mesmice, rotina, desgaste, sem dúvida ainda mais con-

119
, I"r

il
I
trários à alegria que incidentes mais ou menos dramáticos. Re- fazer nada".3 Ao tema do "mais tarde", junta-se o desgosto de
11
ceio que essa abstração gere muita melancolia e torpor na vida que o exercício não tenha outro fim a não ser ele mesmo. Ele
dos alunos; o que se opõe à alegria é muito menos o tormento gostaria de participar de uma pesquisa minimamente inova-
I1
do que o tédio, o vazio: vaidade, para quê? dora, seja para estudar uma planta ou para caracterizar o léxico
I Daí o emprego pejorativo do termo "escolar" para de- de um escritor, e que isso resultasse numa publicação - em
nunciar o que não tem relação com uma vivência real; leitura suma, deixar uma marca efetiva.
"esco I"ar , re d""
açao escoI"ar e tam b'em exercicros
I·" esco Iares ", Arcaísmo: os professores (e também os pais) tendem a
como quando os alunos fazem de conta que estão levando ao apresentar aos jovens as idéias e os livros que lhes agradavam
professor "respostas" para informá-Ia das coisas que ele, evi- antigamente, quando tinham a mesma idade que eles. O cir-
dentemente, sabia há muito tempo. culo fechado da escola parece muito propício a tal passadismo,
São inúmeros os alunos ávidos por deixar esse recinto diante do que toda geração reclama o direito à originalidade,
para ir ao encontro do mundo cotidiano, pois este lhes parece vive a novidade do seu mundo e reivindica ser diferente - e é
o mundo "autêntico"; encontrar condutas, desejos e até disso que ela espera sua alegria.
mesmo idéias e palavras que não existem e não têm equiva- A Antiguidade culmina no reino do latim e no elogio do
lente na escola. A distância entre o escolar e o vivido fora da mundo romano; era a "cultura de uma sociedade individua-
escola é tão grande que a escola se descobre, por essa razão, lista, patriarcal, agrícola, de economia fechada"," que aparece
desbotada e fantasiosa. ao aluno como incapaz de iniciá-Ia no mundo conternporâ-
Mas são sobretudo as crianças do proletariado que ficam neo. A impressão que fica é que se espera, desse modo, deter
divididas entre seu mundo rude, que se impõe a elas rude- o curso da história.
mente - às vezes, também, por movimentos bruscos, alegre- Enfim, a irreal idade da escola permite lançar-se no idílico
mente -, e as transposições etéreas da escola. Um belíssirno - e isso de dois modos: vai-se afirmar aos alunos que todos,
texto de Calaferte evoca alunos "horrorosos", crianças da zona ricos ou pobres, nativos ou estrangeiros, são iguais na escola e
miserável que não podem, que não querem distinguir uma podem esperar em seguida as mesmas carreiras, as mesmas be-
zona escolar de uma zona não-escolar; eles se recusam a dife- líssimas carreiras: o que daria a cada um alegria e esperança, se
renciar regras de conduta: "Nós não sabíamos brincar como isso não fosse desmentido pela experiência, a qual, a partir de
crianças. Precisávamos de verdadeiras batalhas. Era preciso que então, torna suspeitos até mesmo os germes de igualdade que
nos rasgássemos, que houvesse gritos de dor e lágrimas"." alguns professores se esforçam por introduzir. Daí o agrava-
Aliás, finalmente, ainda assim eles vão progredir quando um mentoda não-alegria.
diretor souber com eles, contra eles, bagunçar de verdade, A escola também vai proclamar que todos os homens,
como eles, partindo do estilo de vida deles e conduzindo ao todos os alunos são irmãos; vai ensinar o dever, a bondade e a
mesmo tempo um projeto pedagógico. justiça como possíveis e necessários. Em todas as áreas, ela vai
Voltemos àquilo que constitui aqui os riscos mais gerais apresentar heróis e propor o sentido, o exemplo de existências
de não-alegria: "O que mais nos desagradava nos estudos era a heróicas, a serviço de todos.
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inutilidade dos nossos trabalhos. Exercitar-se sempre e nunca
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1',1
120 121

11
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Muitos alunos se recusam a entrar em tais perspectivas, tome emprestado do extra-escolar gestos, momentos banais,
pois a contradição com o que eles vivem diariamente é dema- comuns e que podem, portanto, ser pouco formadores.
siado viva. Alguns se entusiasmam: "Pelos seus discursos e pelo Há o risco de que a escola perca sua alma, quer dizer, sua
seu exemplo, o senhor me fez acreditar que havia um grande originalidade: a relação da alegria com as obras-primas cultu-
número de homens verdadeiros ... o senhor me deu o desejo rais sem conseguir, aliás, eliminar seu caráter "factício":
apaixonado de uma vida extraordinária'i.? escreve um ex-aluno mesmo que a classe prepare um verdadeiro projeto de um ver-
ao seu professor de colégio. Em seguida, porém, empregado dadeiro restaurante, não haverá, como num escritório de pla-
modesto de uma repartição, ele encontra na vida unicamente nejamento, um projeto único redigido por um pequeno
crueldade, pequenas rivalidades e aviltamentos. E de quanto grupo, mas tantos projetos quantos forem os grupos que a classe
mais alto se cai, mais dolorosa é a queda. comportar, como num corriqueiro dever de matemática.

Suprimir a irrealidade da escola? A escola, real e irreal ao mesmo tempo

Eu gostaria de falar um pouco sobre as pedagogias que se A escola diferente da vida: em que medida isso é uma
esforçaram metodicamente para aproximar a escola da vida. perda para a escola e em que medida é seu papel, e até mesmo
Suprimir as não-alegrias da alteridade, suprimir a alteridade da sua definição? O duplo aspecto da questão é assinalado pela coe-
escola. Por exemplo, uma experiência ocorrida na França, no xistência de dois textos de Freud, se não contraditórios, pelo
GFEN: os alunos põem realmente para funcionar um restau- menos divergentes: num deles, Freud censura a escola por ser irreal,
rante, uma cantina na sua escola ou no seu bairro; os escritos já que se entrega muito facilmente ao idílico; a educação atual
que eles vão produzir serão mensagens reais, dirigidas a pes-
[...] não prepara as crianças para a agressividade da qual
soas reais, desde o prefeito até os fornecedores; as discussões elas estão destinadas a ser objeto; [é como se] se imaginasse
orais em classe terão igualmente objetivos reais: age-se seria- equipar pessoas para uma expedição polar com roupas de
mente. De uma maneira mais geral, a escola incita os alunos a verão e mapas dos lagos italianos.6
organizar fabricações ou atividades em dimensões reais: um
Mas num outro momento de sua obra, quando centra
circo de alunos vai percorrer a França; os alunos gerenciam os
sua reflexão na escola, Freud adverte:
recursos com o concurso discreto dos professores.
A experiência mostra que assim se proporciona muita A escola nunca deve esquecer que lida com indivíduos
alegria a muitos alunos. Resta saber se esse é verdadeiramente ainda imaturos, aos quais não pode ser negado o direito de se
um caminho de renovação da escola ou um simples paliativo, . demorar em certos estágios, mesmo que desagradáveis,do de-
enquanto se espera que a escola encontre a força e os meios senvolvimento. Ela não deve reivindicar para si a inexorabili-
para se renovar. dade da vida, não devepretender ser mais que um jogo de vida?
"Se a escola foi inventada, é porque a vida não é suficiente Estamos, aqui, no cerne do problema. Por certo, a pro-
para educar"(Martinand). Receio sobremaneira que aqui a escola clamação idílica da igualdade, a negação temporária e tão par-
não reproduza o extra-escolar e, menos provavelmente, não cial das disparidades ameaçam reverter-se em artifícios destina-

122 123
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dos a manter as desigualdades reais. A ficção de um universo


"O uso do tempo" escolar é completamente diferente do
virtuoso ajuda tanto menos os alunos quanto mais eles sintam tempo empregado na vida habitual; por certo, o tempo é im-
a opressão cotidiana. posto, mas sabemos que temos tempo à nossa frente, quanto
Entretanto, a escola pode renunciar à afirmação da igual- tempo temos à nossa frente: o tempo é garantido enquanto a
dade, do progresso possível? A portas fechadas, certamente; realidade é um intervalo entrecortado, imprevisível.
logo, com todos os riscos de irreal idade. O escolar é um retorno periódico e exatamente previsto
A renovação não deve ser anunciada como fatos já reali- de determinada matéria em determinado momento: daí uma
zados, mas como tarefas a serem executadas em classe, na es- expectativa, uma possibilidade de se preparar para quando a
cola, na vida - e dizê-Ío pode tornar-se aqui um dos primei- hora disso chegar, finalmente, de dar uma atenção especifica-
ros passos em direção ao fazer, sem ilusão imediata, mas sem mente disponível para isso.
renúncia. A alegria gratuita do discurso puro caindo na recusa Uma mesma matéria prosseguirá no mesmo ritmo du-
ou na decepção; a alegria áspera do discurso como acompa- rante um ano todo, pelo menos; daí resultam possibilidades de
nhamento da ação. progresso que não se pode esperar dos encontros "reais", visi-
Se a escola se abrisse rapidamente à reprodução do coti- tas ou passeios, que se fazem de vez em quando e sobre assun-
diano imediato, ela perderia a oportunidade, talvez única, de tos variados, de acordo com os caprichos da oferta e da pro-
fazer viver o outro lado, igualmente existente, do mundo: a cura; e os acasos, feliz ou infelizmente desordenados, do que se
imensa coorte, através da história, dos esforços para superar a encontrar.
desigualdade entre o homem livre e o escravo, o nobre e o Caminha-se passo a passo, aprende-se dentro de uma
plebeu, o homem e a mulher, o opressor e o oprimido. ordem; existem etapas e não se queimam etapas. Uma das fra-
ses mais usadas na escola é: "Na última vez, nós paramos em
Alegrias M irrealidade tal ponto; portanto, retomemos a partir desse ponto". Nada de
coincidências, de assuntos abordados em determinada ocasião
Daí a importância de levar em conta aqueles que encon- e abandonados devido a algum incidente. A efervescência de-
traram alegria no fato de a escola ser diferente da vida. O sordenada tem, sem dúvida, seus encantos, mas esse não é o
colégio, escreve Giraudoux, "a única morada onde as leis da ponto forte da escola.
gravidade são falsas... [ali] eu recebi o mundo renovado". 8 O estudo poderia e deveria ser feliz na escola, já que
Minha escola quer incitar o aluno a usar plenamente a pode ser graduado, progressivo e, portanto, adaptado aos re-
irrealidade, de maneira a sentir alegria com ela. cursos, em determinado momento, de determinado aluno:
A alegria consiste primeiramente em que esse mundo di- "Esforçam-se para introduzir em minha mente o que tem exa-
ferente, irreal, pode ser metódica e sistematicamente progra- tamente a sua medida, previsto expressamente para ela".?
mado para "apreendê-Ia", com regras, no duplo sentido de "Minha" escola cuidará para que a irrealidade se trans-
regrado e regular, que só são possíveis numa esfera assim - e forme em adaptação individual - aquilo com que a vida real
que garantem a segurança necessária ao estudo: "leis que todos não se preocupa.
devem respeitar me protegem" . Um pouco além da medida imediata:

124 125
Difícil o suficiente para impedir minha mente de relaxar alegria daqueles momentos escolares em que "só tenho que
(...] meu contentamento, meu apaziguamento são rapidamente
vencer a mim mesmo, em que não experimento outros medos
seguidos por uma nova inquietude, e novamente todas as minhas
senão aqueles advindos de mim, da minha fraqueza, da minha
forças se tensionarn [...] que jogo pode ser mais excitante? preguiça" .10
Em particular, os outros personagens da sua história,
A aula se passa em grupos e o grupo escolar é muito
com o que têm de afetuoso, mas também de devo rado r,
diferente das reuniões "da vida": fica-se junto por um longo
podem, por intervalos, sair do proscênio. Pontalis, ao viver no
tempo sem escolha - daí as convivências de ricos e pobres,
cristãos e judeus, brancos, mulatos e negros. Por certo, sabe- colégio, descobre uma liberdade, uma distância emancipadora
mos todos que elas são parciais e, num certo sentido, impossí- em relação a pais permanentemente atentos e, portanto, per-
veis e inúteis, mas é apenas na escola que elas têm lugar, o que manentemente vigilantes. Com os colegas, é possível se mani-
é, apesar de tudo, a glória da laicidade. festar, : falar, expressar-se, proclamar tantos acontecimentos
Não, a escola não é paradisíaca; as exclusões, as separa- que, na vida, seriam calados, deveriam ser calados:
ções nela prosseguem e prosseguem suas vítimas. No entanto,
Em toda família [reina] uma lei secreta do silêncio...
em certas circunstâncias, os alunos são como que arrancados
tudo o que se transmite de forte entre os seus, tudo o que os
de suas hierarquias; num momento, eles podem estar inteiros
une, os fixa uns aos outros, o ódio ou o amor, o rancor ou o
onde estão, naquela classe onde finalmente são os maiores ho- mal-estar não pode ser dito. 11
mens, às vezes sábios, às vezes poetas, que fazem a lei: ocorre
de a escola realizar um modo particular de harmonia, seu
Eis por que os "acertos de contas" na escola lhe parecem
modo de harmonia.
muito mais claros, mais fáceis do que em relação a seus pais.
Os alunos se sentem, ainda assim, um pouco mudados,
Precisamente porque não tem com seus alunos os laços
engrandecidos e enobrecidos; e o educador também é transfor-
reais da longa duração, a escola pode, às vezes, incentivá-Ias
mado por isso, em relação ao que ele era há um instante, na rua.
para o futuro com mais audácia que a famOia.
Na escola, adultos inteiramente disponíveis têm como O poeta se dirige à escola:
única fiinção permanecer ao alcance das crianças e colocar o
saber, sua experiência, ao alcance delas. Na vida, os adultos Disputando com as famílias, que de um vÔo precoce apavora,
sempre têm outra coisa a fazer enquanto se ocupam de sua Os talentos ocultos que as farão ser ilustres
prole. Tua receptividade estimula a vocação verdadeira
A alegria escolar consiste em que, precisamente nesse Que suspira hesitante. 12
mundo diferente, o peso, os múltiplos, indefinidos e irnprevi-
síveis acidentes do real podem, de repente, deixar de ser senti- Na verdade, a escola nunca é maternal; de imediato ela
dos como ameaçadores. Pode-se esperar que a escola seja um estabelece laços completamente diferentes, um lugar comple-
lugar que ponha de lado determinadas dificuldades pessoais do tamente diferente.
aluno; o aluno se livraria de determinados embaraços que Em suma, há mil razões para que a alteridade da escola
pesam sobre ele de outro modo. O aluno pode tentar sentir a se transforme num apoio ao aluno, aos seus estudos e também

126 127
à sua vida. Resta à escola colocá-Ia efetivamente em prática. É para alguns) para o sentimento tão feliz, a convicção de que o
belíssimo quando Nathalie Sarraute afirma que a escola lhe mundo é compreensível - e que o estamos compreendendo.
permite "possuir, realizar o que eu própria desejo". 13 Por que Simone de Beauvoir, na condição de estudante, percebe a
ela não diz que a escola faz também nascer novos desejos, Con- "harmonia das esferas". Tudo o que existe parece-lhe justifi-
cretiza num desejo aquele que o aluno apenas pressentia ainda cado e parte de uma ordem global: "Eu ocupava meu lugar na
confusamente? face da Terra e fazia o que devia ser feito[ ...] cada coisa e eu
mesma tínhamos nosso lugar exato aqui, agora e para sempre". 16
Domínio, transparência, consonância A geografia torna-se "êxtase", não só porque o mundo é
para ser admirado, mas sobretudo porque seu atlas apresenta
A alegria possível da escola como mundo diferente me imagens perfeitas, ou melhor, "a idéia perfeita" da ilha, do.
parece culminar em dois pontos: domínio e transparência. A cabo ... perfeição característica do irreal escolar.
escola é um lugar onde se podem atingir os controles da evi- E Nathalie Sarraute está convencida de que é preciso e
dência, visto que cada momento, cada detalhe pode ser pro- basta continuar a se instruir como ela começou para chegar ao
gramado para esse fim. ponto em que "eu saiba tudo ... não haverá nada que eu não
No jardim de infância, tem-se que colorir círculos sem lograrei conhecer" .17 O mundo como que oferecendo imedia-
sair de seus limites, mas não deixando espaços em branco: tamente estruturas capazes de acolher nossos desejos, de res-
"Um milagre miúdo, estreito, delicioso sai das minhas mãos e ponder aos nossos planos e susrentá-los; a comunicação seria
o círculo é preenchido"." Esse sucesso advém de sua própria em breve alcançada e até mesmo a unidade entre os homens.
aplicação e todos os ingredientes escolares estão reunidos: ela Sabemos muito bem que o ingresso no segundo grau vai
sente "a proteção da mestra" e também "a presença das outras dissipar essa alegria escolar simples e tão segura de si. Na ver-
crianças debruçadas em volta de mim", e atinge uma primeira dade, desde os primeiros anos, seria possível contar com os
experiência estética: "fervor ... podia-se dar um contorno à colegas para evitar que a criança viva numa inocência por de-
luz ... era delicioso e perturbador". mais completa. E a escola primária já comporta aspectos com-
Nathalie Sarraute gozará da impecabilidade escolar plexos, abertos para uma plural idade de perguntas e respostas,
quando, ao ter que sublinhar algo, executar "um traço perfei- desde a instrução cívica até a educação artística.
tamente reto e limpo, sem nenhuma irregularidade" e também De qualquer modo, é verdade que a partir do colégio, a
quando aprender a lista exaustiva e definitiva (pelo menos alegria escolar não pode mais consistir nessa crença simples
para ela) das regiões em que se divide a França: "Ei-las enfim numa totalidade límpida: "Depois do mundo das certezas, en-
todas ali, no seu lugar, docilmente, uma após a outra, [elas] se trava-se naquele do bastante bom, o mundo da dúvida ... da
apresentam ao meu chamado". 15 apreciação" 18, e Nathalie Sarraute diz que, no colégio, o
A escola é capaz de apresentar, de fazer viver um mundo mundo "se abria em todas as partes, se desfazia, se perdia".
organizado e consonante: a conformidade, a alegria da confor- O colégio e a adolescência: descobrir o mundo como
midade. Ao longo de todos os anos de escola primária, o que caótico e o conhecimento vacilante. É necessário mesmo ficar
se aprende e a maneira pela qual se aprende concorrem (pelo menos sabendo, um dia, que não existe, já pronto, simplesmente para

128 129
ser ouvido, um concerto universal. Angústia face à complexidade
do mundo, risco de não-alegria na cultura e, portanto, na escola. laudatório e um sentido muito pejorativo), enquanto em fa-
Mas uma base primeira de segurança é extremamente fa- mília ou na rua "a gente não usava palavras, a bem dizer, mas
vorável a um enfrentamento da angústia. Quando, por volta exclamações ou gritos acompanhados de gestos ou, a rigor, fra-
dos 15 anos, Simone de Beauvoir descobre que o que existe ses convencionais adaptadas a situações estereotipadas".20 A
não é totalmente belo, ela decide tornar-se escritora, instalar- alegria abre-se assim ao domínio do .refinamento, tanto cientí-
fico como literário.
se entre os "intelectuais" porque "o sábio, o artista, o escritor,
o pensador [criam] um outro mundo, luminoso e alegre, onde Evidentemente, não ignoro os riscos de "supernormas"
tudo tem a sua razão de ser"19, ou seja, ela compreende que da linguagem elaborada, nem as extremas dificuldades de
acesso a ela por parte de categorias inteiras de alunos. É pre-
esses temas primeiros da escola primária estão muito longe de
ciso fazer tudo para que eles sejam bem~sucedidos nela, mas
ser efetivos - e ela se impõe por tarefa participar da sua reali-
zação. Não se cogita que ela renuncie a sua emergência. não abandonando a própria meta, o leque múltiplo dos pensa-
mentos e dos sentimentos .
Se, mais tarde, ela luta e sabe lutar contra a injustiça e a
cacofonia, não é também porque ouviu o acorde, a harmonia A interpretação de textos é não só um exercício especifi-
camente escolar como parece reservado às escolas francesas.
nesse lugar, diferente da vida de todos os dias, onde começou
Na vida ou, pelo menos, na vida literária, o texto se defende,
sua carreira .pensante? Um impulso que ela extrai dessa ~xpe-
riência primeira, saboreada e depois perdida - um pouco se impõe por si só e é a escola que se empenha em fazer com
como o amor pela mãe e tudo o que frutifica a partir da nos- que ele seja acompanhado por um comentário. Essa dissecação
foi denunciada mil vezes.
talgia desse tempo abolido.
Mas eu gosto quando um autor declara: "Nunca pude
Alguns trabalhos onde a irrealidade se une à alegria admitir que um' poema fosse dissecado pela análise".21 Muitos
alunos têm necessidade de explicações que despertem a beleza
Gostaria de considerar rapidamente alguns trabalhos es- de um texto, que chamem à vida a beleza de um texto, que convi-
colares que me parecem favorecidos pelo fato de a escola ser dem os alunos à beleza do texto; e porque a escola é um ambiente
um mundo diferente - e eles proporcionam alegrias que me fechado onde se conhecem os alunos e a situação de cada um,
agrada chamar de escolares. pode-se tentar pressentir o que eles necessitam _ é por isso que
um esforço desses tem alguma chance de ser bem-sucedido.
O fato de a língua da escola não ser em todos os pontos
semelhante à da vida normal é a prova de que a escola é um Existe algo mais escolar do que fazer com que os textos
ambiente específico (acho que, em certos momentos, se exage- sejam decorados? Entretanto, creio que Jean Bernard tem
rou muito a diferença, a ponto de cristalizá-Ia em oposição; razão quando diz: "Muitas vezes é ao reler um poema pela
contudo, ela existe). É justamente isso o que permite a passa- quarta, quinta vez que descobrimos uma certa beleza, uma
certa interpretação que nos havia escapado até então".22
gem para uma comunicação renovada e cheia de recursos: a
linguagem da escola chega ao conceito, à abstração (e é notá- Saber de memória é evidentemente a melhor maneira de
vel que esse termo possua ao mesmo tempo um sentido muito chegar a esse tipo de repetição - eà alegria que ela pode
provocar.

130
131
Mundo onde se pode aplicar um método, progredir gra-
A tradução é um exercício escolar que existe também na
ças a um método e ir até o fim do método: [em matemática]
vida comum. Encontro, estranhamente, o mesmo termo em
"para quem segue a marcha correta, passo a passo, tudo é sim-
duas citações que não têm, por outro lado, realmente nenhum
ples; para quem pretende de repente recuperar os atrasos e
ponto em comum: "Por detrás do torneio francês, percebem-
pular etapas, tudo fica impossível",25
se na frase (original) sentidos misteriosos que estão por trás,
Isso é escolar: o que se propõe ao aluno é feito para estar
que se agitam e se manifestam" ,23 Por outro lado, a propósito
no nível dele, que pode dominá-lo até o fim. Trata-se de passar
dos romances ingleses, Simone de Beauvoir diz:
gradualmente de uma a outra proposta: a "sucessão vinculada'
e urgente das razões" - basta seguir, entregar-se a um enca-
Eu os decifrava lentamente. Eu sentia prazer em levantar,
com a ajuda de um dicionário, o véu opaco das palavras: des-
deamento lógico; obscuridade, dificuldade, sinuosidade da
crições e narrações retinham um pouco do seu mistério; eu busca até a alegria de encontrar a solução e de estar certo de
encontrava neles mais encanto e profundidade do que se os que aquela é mesmo a solução: cada elemento no seu lugar,
tivesse lido em francês.24 não podendo ser de outra maneira.ê"

A matemática convinha ao meu tipo de espírito, incapaz


É a palavra misteriosa que estabelece a ligação, e é aí que de se declarar satisfeito antes de haver compreendido total-
eu gostaria de perceber a intervenção específica do escolar: a mente o problema dado [...] nunca me conformei com pensa-
equivalência mais exata possível entre duas línguas é procurada mentos que não fossem até o fim deles mesmosP
e obtida nos casos práticos; porém, além disso, a escola pode
ter o tempo, o vagar, a disponibilidade de espírito necessários E o lugar onde se pode levar as idéias até suas conseq üên-
para revelar o que há de secreto e íntimo na correspondência cias e às conseqüências das conseqüências sem ser interrom-
pido pelo surgimento de um acontecimento fortuito é a es-
entre as línguas.
cola. Lugar onde se pode fazer exclusivamente o que foi
prescrito, o que prescrevemos para nós mesmos, sem dispensar
o exercfcio matemático atenção a nenhuma das circunstâncias do mundo chamado
Analisarei um pouco mais longamente duas alegrias esco- precisamente de "exterior". Essa é a razão pela qual a matemá-
lares que atestam da maneira mais convincente a alteridade da tica desponta como um dos aspectos mais representativos da
escola. Um certo tipo de isolamento feaIndo, uma espécie de msu-
escola: gostaria de ressaltar seu valor e seus limites, já que,
laridade caracterizam ao mesmo tempo a matemática ea escola:
apesar de tudo, elas tendem também para "a vida". Considera-
rei a matemática antes que ela se torne conscientização da rela- [na matemática] a gente se aventura numa única e mesma di-
ção entre o pensamento e o real, a redação antes que ela se reção, ininterruptamente; a gente se pergunta aonde aquilo vai
torne posse estética do mundo. dar, a gente se proíbe de olhar à direita e à esquerda e avança
Nada parece tão escolar quanto a matemática, ou talvez, passo a passo no desconhecido.28
melhor dizendo, há um primeiro uso, especificamente escolar,
Por certo, esse tipo de alegria matemática conserva um
da matemática. A alegria matemática é o tipo de alegria que
lado factício irreal; ele pede e também permite uma alegria
favorece a escola enquanto mundo diferente.

133
132
mais definitiva que abrirá uma relação com o mundo. Terei a ter, recommander [trazer, recomendar] ou fazendo ranger os
dentes como exception [exceção] ... [eu vejo palavras] tentarem
oportunidade de voltar a esse ponto.
se colocar um s no plural, e porque não lhe vão bem, jogá-lo
fora, caindo na risada porque não deu certo mesmo, resultou
Ortografia e redação feio e grotesco, e rapidamente se pendurando o x que cai
como uma luva, ah, perfeito.30 •
Retorno agora ao campo literário - e, em primeiro
lugar, ao aprendizado da ortografia. Além de sua motivação Tem-se aí como que um princípio de experiência estética
direta, temos aí também um ponto de encontro de descon- que se desenvolve sobre o material propriamente escolar da
fianças políticas: pode-se sustentar - e muito se afirmou - ortografia: certos alunos talvez tenham necessidade, de início,
que as regras de ortografia, como as da linguagem correta, justamente para atingirem o belo, de se sentir em terreno co-
como as da boa educação, do bem vestir e dos bons modos, nhecido, cercados de regras estritas, com barreiras bem defini-
cumpriam tão-somente um papel socialmente conservador. das, as da correção formal, antes de navegarem no oceano sem
Certos gramáticos, com uma candura mais ou menos cons- limites das emoções, por exemplo, musicais.
ciente, reforçam tais temores. Por exemplo: O que nos encaminha para o último exemplo de alegria
provocada pela alteridade da escola, a escola como mundo dis-
[...] uma sociedade onde se confunde cada um" e "cada" é
tinto do mundo da vida: a redação.
uma sociedade onde as palavras não estão no lugar certo. E
quando as palavras não estão no lugar certo, por que as pessoas Escrever é o que há de mais irreal, palavras, palavras, e
e as coisas ficariam nos seus lugares? 29 não fatos ou ações. Mas é o que há de mais real, pois nada é
mais vivo que as criações literárias. A redação está entre os
A ortografia, instrumento convencional, forjado e man- exercícios mais nobres da escola e que podem dar mais alegria,
tido pela classe dominante para eliminar aqueles que, não sem dúvida porque anuncia um artificial que tende, apesar de
tendo nascido em berço de ouro, vão se perder entre as difi- tudo; a participar do mundo.
culdades malignamente acumuladas. Não deixa de ser bastante Mareel Arland tem que fazer uma redação sobre a neve:
verdadeiro encontrarmos, por esse viés, um dos maiores riscos ao mesmo tempo, "parece-me que essa neve, a partir do mo-
da escola e de não-alegria na escola: a seleção em benefício dos mento em que a chamei pelo nome, existe, me gela e me dá
já favorecidos. prazer"31 e, ao mesmo tempo consciente da irrealidade, diz
Mas é possível uma outra versão e Cavanna, filho de imi- que "é um modo de agir, uma mentira".
grantes italianos realmente pobres, nos conta que alegria lhe A partir do momento em que Simone de Beauvoir compõe
proporcionou a ortografia: histórias imaginárias, "elas existiam e eu ficava muito orgu-
lhosa de tê-Ias tirado do nada"32, o que é escrito em classe
Existem palavras com h demais, consoantes dobradas, toma consistência na comunicação: o texto "interessava a ou-
muitos eau, ault, ain e xc. Eram as minhas preferidas. Isso lhes
dá uma fisionomia especial, um ar precioso, um pouco doen- * Evidentemente, Cavanna está se referindo ao francês, língua em que este livro
tio como thé [chá] ou, ao contrário, musculosas como appor- foi escrito. (N.T.)

134 135
É preciso que o texto seja belo· - e, para isso, que cada
tras pessoas". A bem dizer, seu público se reduz aos colegas,
um dos elementos o seja, a começar pelas palavras. Mas esta-
professores e pais.
E chego agora à redação de Nathalie Sarraute33; o tema mos num primeiro estágio de iniciação estética, onde são con-
sideradas belas as palavras "revestidas de belas vestimentas, de
dado agrada-lhe enormemente: relembrar "meu primeiro des-
roupas de festa"; as palavras que figuram nas antologias de
gosto". Imediatamente ela se instala na alteridade: nem cogita
de "relembrar um de meus desgostos ... um verdadeiro des- trechos escolhidos e "cuja origem garante a elegância, a graça,
gosto sentido por mim, vivido por mim pra valer... não en- a beleza". Como se diz "como você está bonito" a um amigo
trego nada que seja exclusivamente meu".34 que se vestiu com apuro e que faz todos os esforços para se
Como a escola, mas à sua própria maneira, a literatura é manter impecável, mas que está pouco à vontade.
diferente da vida, é uma transposição que só é possível através Na verdade, isso já vai um pouco mais longe. Habitual-
de um distanciamento em relação aos acontecimentos vividos. mente a gente usa as palavras de todo dia, sem considerá-Ias
Temos então mudanças consideráveis: nossa jovem narradora realmente. Porém, quando empregadas numa redação, "adqui-
quer escolher um desgosto "que estivesse fora da minha pró- rem, no contato com as outras, um ar respeitável". O valor
pria vida", pois "eu poderia considerá-Ia mantendo-me a uma ético das palavras não reside somente na busca de um efeito de
boa distância". Já que a veracidade não é mais o critério, pas- estranheza, de afeição, mas nas relações que se logrou estabele-
sam a existir duas ordens deles: primeiro, e como sempre cer entre elas. Tais relações são capazes de valorizar termos que
acontece na escola, o público ao qual se dirige, as condições de o uso banalizara.
uma boa comunicação com esse público tão particular: Amor pelas palavras, alegria de falar bem.
Eu preparo para os outros o que considero bom para
Essa é a sua iniciação na preocupação estética: ela acre-
eles, escolho o que eles gostam, o que eles podem esperar ... dita que a beleza só se pode afirmar sem estabelecer uma rela-
escrever para os outros sobre um daqueles desgostos que lhes ção com o real, que só se consegue o belo se não se levar em
dizem respeito. conta o verdadeiro. Isso porque ela ainda está presa ao dilema:
ou pálida reprodução da vivência ou imaginações mágicas que
O escritor, no fundo, como o professor, não é aquele que
não querem se relacionar com a vivência, O factício prevalece
se entrega, se dá, mas aquele que dá aos outros algo de que eles
por seu poder ernotivo, e ela pensa poder alcançar a beleza
têm necessidade para que se interessem: "Eu fico na sombra,
ernotiva apenas pelo factfcio. Uma das primeiras experiências
fora de alcance" . de beleza, de prazer encontrado na beleza.
E, sobretudo, o critério da beleza literária: o cachorrinho
O factfcio tem riscos e limites: pode-se ir em direção ao
que ela supõe haver perdido poderá ter-se afogado ou ter sido
arbitrário, a qualquer coisa, não se estabelecendo contato com
esmagado por uma locomotiva, a cena poderá se passar no verão
a "rude realidade a ser extinta" - de resto, é muito mais fácil
ou no outono, de acordo com as imagens que pareceram mais
colocar a vivência à distância para aqueles a quem ela não
emocionantes à autora e as palavras que ela considerar mais im-
oprime com muita rudeza. Mas, em espelho, o factício tem
pressionantes. Entramos na ordem do literário, onde a vontade
valor: ele será sempre um dos ingredientes do literário; aqui,
de impressionar o leitor altera o rumo do caso narrado, onde a
no início da aprendizagem, ele ocupa quase o espaço todo.
forma modifica o conteúdo, já que ambos são inseparáveis.

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Abrir-se para a vida, não seperder na vida tório) essas alegrias são atravessadas e contraditas por múltiplas
não-alegrias, que nascem do caráter, apesar de tudo, factkio
A escola, na sua alteridade, é o espaço privilegiado do desses processos; alguns os taxam de insignificantes.
factício e, muito particularmente, a redação. A redação que se Resultam dois tipos de questão: por que tais pessoas e
apresenta ao professor não tem por finalidade ensinar-lhe algo esse pequeno grupo só encontram alegria nessa escola? Como
que ele ignorava e gostaria de conhecer, o que constitui o renovar a escola apoiando-se nesses poucos, para que essas ale-
papel real de um texto nas comunicações reais. Ela tampouco grias se generalizem? Pode-se esperar uma síntese entre o factí-
participa de um projeto para modificar uma situação. cio da escola e uma escola cujo lastro seja o real?
Contudo, são precisamente a segurança e a leveza assegu- Isso pareceria uma tarefa impossível, se as alegrias do fac-
radas pelo factício da escola que permitirão dedicar-se à be- tício não fossem ao mesmo tempo as primeiras tentativas de

leza. Não há nenhuma importância fatual no fato de o cachor- um apelo a se prolongar em direção a um real que elas anun-
ciam, prometem, e do qual necessitam; algo que as superasse
rinho afogar-se ou sofrer um acidente, e é por esse motivo que
englobando uma relação com a experiência vivida. É na conti-
a autora pode escolher a situação que sentir como a mais pro-
nuidade das culturas que eu busco tais sínteses.
pícia à beleza, à emoção que deseja provocar.
Evidentemente, deve-se ir além dessa redação que é um
exemplo voluntário e caricaturalmente escolar, deve-se ir além da IL CONTINUIDADE
pista que ela nos indicou: o belo literário será buscado numa
elaboração, que não será nem reprodução, nem mentira explí- "Minha" escola quer pôr em primeiro plano a obra-
cita; a linguagem elaborada não se confunde com os termos prima - e voltarei longamente a esse tema -, mas ela tam-
pomposos. Porém o sentido do belo, do literário, da beleza bém quer tomar como fundamento pedagógico a continui-
literária está realmente em germe nesse exercício de redação. dade das culturas enquanto esperança de superar a contradição
A escola, paralelamente, deve, como se diz, abrir-se mais entre a escola como mundo diferente e o desejo de realidade
para a vida, aproximar-se mais do mundo - mas também é no escolar.
essencial que ela se mantenha na sua alteridade: um lugar "Minha" escola quer e acha possível uma continuidade
onde o que se escreve e o que se faz não tem uma conseqüên- entre a vivência do aluno, seus valores, gostos, expectativas, os
cia direta em relação à realidade; onde se pode proceder, em problemas que ele coloca e a cultura que a escola lhe oferece.
condições menos duras que as da vida, às primeiras aborda- Continuidade ao mesmo tempo para que os alunos sejam pessoal-
gens da cultura e da alegria que lhes correspondem. mente afetados pelo que lhes é ensinado e para que tenham con-
fiança na possibilidade de ter acesso ao que lhes é ensinado.
Integrar o irreal e superá-lo Essa continuidade pode existir, e nunca é evidente ou
fácil; há necessidade da minha escola para promovê-Ia e para
Reuni casos e dei exemplos onde se afirmavam as alegrias que o aluno complete esse trajeto.
da escola como mundo diferente e que mostravam que alguns Trata-se de estimular a elaboração do que o aluno vive e
encontraram a alegria assim. Mas (como, aliás, no caso do obriga- sente; alegria de sentir a complementaridade entre sua cultura

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cabeça para outra, como .um incêndio de árvore em árvore
primeira e a cultura elaborada, entre a alegria da cultura pri-
numa floresta seca.37
meira e a alegria da cultura elaborada; alegria dos alunos de se
sentirem a caminho de ... Num filme de Eric Rohmer, Conte
Agora uma aula sobre a descoberta da América:
de printemps [Conto de primavera], um professor de filosofia
evoca o que eu quero chamar de continuidade: completar e Falo daquele desejo que levou Cristóvão Colombo a partir
ampliar a experiência, o pensamento dos alunos, sem tomar o para as índias, tento reacender em seus espíritos aquela familiari-
lugar deles. dade com o ouro e com as grandes cidades resplandecentes.
As dificuldades não advêm tanto do campo da psicologia:
a juventude, como eu já disse, está apta à alegria; trata-se de Nota-se aqui que é necessária uma mudança do conteúdo
apoiar-se nas alegrias já existentes para expandi-Ias. Não há ensinado para que os alunos alcancem essa continuidade emo-
dúvida de que os jovens têm mil razões de não-alegria e, no cionante: que seja colocado em primeiro plano o estado de
entanto, tantos adultos que celebraram a felicidade da infancia espírito do descobridor, do viajante; resta então ao professor
não conseguiram enganar-se totalmente. insuflar-lhe vida.
É em relação às próprias culturas que se deve refletir. Em Apesar do aspecto anedótico, de menor alcance, o caso a
primeiro lugar, alguns exemplos felizes de alunos que sentiram seguir pode servir de incentivo; em Ambert, o professor da 6a
essa continuidade a ponto de ficarem comovidos com as maté- série com quem tem início o estudo do latim,
rias ensinadas.
O aluno vibrando com o estudo de história: [...] conhecia todos os tipos de nossa cidadezinha; ele aprovei-
tava isso para comentar os textos com a ajuda de exemplos e
Eu gostaria de ter sido um daqueles gladiadores que res- anedotas tiradas dos costumes locais. Isso influía nos jovens
ponderam "n6s te segUiremos" ao escravo Espártaco e sonhava cérebros. Saindo da aula, podíamos encontrar Catão, o Velho,
35
ter a oportunidade de lutar ao lado de homens de coragem. bom administrador, duro com seus empregados e usando
couve como remédio para todas as doenças. Ou mesmo Arqui-
O aluno vibrando com o estudo da geografia: medes sob os traços de Louis de Ia Ribeyre que, por um sis-
tema de pranchas sustentadas por alavancas, erguia o telhado
Não era da minha carteira, por certo, que eu ouvia a de uma granja.3B
lição de geografia, mas do alto da grandegávea, em plena luz
do céu resplandecendo o infinito das águas... Parecia-me, à As pessoas encontradas adquirem assim uma certa poesia,
visão daqueles mapas, que me fora feita a promessa de que um os heróis antigos são valorizados ao se aproximarem da vida da
36
dia meu desejo [de viajar] tornar-se-ia realidade. cidadezinha.
Por que essa continuidade é tão difícil de realizar?
Eles vibram junto com o estudo da geografia: uma aula
O escolar geralmente paira sobre o aluno, sem que este nem
sobre o Egito: mesmo imagine que a meta a ser atingida é incorporá-lo à sua
Consegui maravilhar meus alunos da 6a série [...] eu via vivência: "As crianças têm duas vozes, uma voz de estudante para
seus olhos se arregalarem, a vontade de viajar passando de uma ler na escola, recitar suas lições e responder aos professores; e uma

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voz de homenzinho para discutir as suas coisas"..39 A voz de do que ele pensava e fazia. Mudanças de atitudes que só são
estudante é "solene", mas diz respeito ao que eles sentem como possíveis por mudanças dos conteúdos ensinados.
"fora do mundo e morto". Eles mantêm o escolar à distância Uma cultura que leve o aluno a se compreender melhor,
deles mesmos. a se sondar melhor. É como se o autor apreendesse e sentisse
Mas também não se deve acreditar que a continuidade se melhor qu.e ele o que se passa nele; a cultura encontra palavras
estabelece facilmente da prática rumo à compreensão: as crianças adequadas para exprimir o que ele gostaria de dizer. Os ho-
podem muito bem construir modelos reduzidos de aviões sem mens necessitam de um porta-voz, um "Édipo que lhes expli-
se preocupar com dados teóricos nem conhecer os princípios do que seus próprios enigmas'?", pois nossos sentimentos e nossas
experiências são com tanta freqüência indecisos, em contradi-
vôo. O porquê do que elas fazem não as afeta; ler obras facilita-
das quase não as ajuda, pois elas só andam à cata de "elemen- ção uns com os outros - e é justamente aí que temos necessi-
tos técnicos de caráter imediatamente prárico"," Para que pro- dade de orientação.
Não se trata, naturalmente, de um simples registro, nem de
gridam, é preciso que o educador organize um tipo de tarefas
que, por si só, as conduza e até as obrigue a se questionar sobre puro intelectualismo, nem tampouco de uma exortação: a cul-
suas ações - e que ele as ajude nisso. tura elaborada leva a uma maior coerência e estabilidade das
experiências até então fugazes: "Os grandes autores [conse-
o professor no nível do aluno, o aluno no nível do professor guiam] consolidar minhas descobertas balbuciantes" .44 Mais
do que isso: um esforço para fazer com que cada um viva sua
A continuidade entre a cultura escolar e a vivência do dignidade real e, no entanto, tão facilmente abandonada, re-
aluno se conquista, creio eu, na confluência de duas correntes: negada: "Tentar conscientizar os homens da grandeza que eles
o educador se esforça para coincidir com as experiências do ignoram existir dentro de si próprios". 45
aluno - evidentemente, para fazê-Io progredir, mas, antes de O objetivo da "minha" escola é que o aluno se encontre
mais nada, para revivê-Ías com ele, de maneira que o aluno graças ao que lhe é proposto, o reconheça como seu, faça-o
sinta a pedagogia como que deitando raízes no seu real: "Tu, o seu - o ame: "De tefabuta narratur'46 ["O sujeito da história
mestre ... tu te instalas naquilo que o discípulo compreendeu, na o
és tu"], dizia velho Horácio.
maneira pela qual ele compreendeu; (então) talvez tenhas a Um belo exemplo de continuidade: os diálogos de Pla-
chance de conduzi-Ia para onde tu estás"." tão: "Pequenas verdades familiares e palpáveis, todas elas... os
E, numa linguagem mais direta, mais apaixonada, um pequenos acontecimentos da vida coridiana'Y e chega-se sobre
professor diz a propósito de seus alunos: "Com aqueles que a justiça, a beleza e a ciência, a "conclusões enormes".
cantam, eu canto algumas vezes; com aqueles que choram, O tema da continuidade entre cultura do aluno e cultura
tento chorar; se eu acreditasse poder ser útil a algum dan- escolar implica, portanto, uma concepção particular da cultura
çando, eu dançaria para ele".42 - eu diria mesmo uma renovação na cultura. .
Chorar juntos é uma etapa para mitigar o pranto. A afirmação primordial é que a vida comum, a vida coti-
O aluno, por sua vez, faz a experiência de que a cultura diana dos homens e, portanto, dos alunos comporta algo além
que lhe é proposta esclarece o sentido do que ele pensa e faz, do esmagador, do medíocre onde chafurdamos, do sufocante.

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"Para conhecer os homens, não basta desprezá-los"," o encontros com rapazes ricos e bonitos à beira de uma luxuosa
mundo não se resume a um imenso contra-senso. A cultura da piscina particular não representa um nível zero de cultura, e
"minha" escola não quer ser erigida sobre a desvalorização dos sim sonhos ele felicidade e beleza. Aqueles que não estão do
homens: lado melhor ela sociedade refazem o mundo para que este lhes
traga mais prazer. Essa não é também uma forma acabada da
Mas faz tanto tempo que fazem as pessoas acreditarem
cultura: o imaginário é ingênuo, por inteiro. Estarnos no iní-
Que elas não têm futuro, que são irremediavelmente
cio de uma conscientização, o sonho ainda é apenas o pressen-
ignorantes
timento de uma ação possível.
E idiotas de nascença
Que tomamos o partido delas.49
Unir o espontâneo ao teórico
Ela quer, sim, deitar raizes nos valores contidos no coti-
diano, o cotidiano de todos: "Os gestos delicados e fraternos O problema da "minha" escola é convidar os alunos a
dos homens repartindo o pão"50; há "bastante vida pura e um encaminhamento que parta do cotidiano e que, de etapa
nobre para construir todo um mundo ... essa vida possível es- em etapa, siga em direção à obra-prima. Essa longa marcha da
tava ali, prestes a brotar"Y Mesmo um homem que tem fome, cultura rumo à cultura para levar a termo o que existe em
principalmente ele; valores fundamentais são vivenciados na germe no cotidiano: nem considerar esse trajeto impossível,
sua dor: a vergonha de não conseguir pensar em outra coisa; a nem acreditá-Ío já percorrido, concluído: "Eles pareciam não
reivindicação de alimento tornando-se sinônimo de reivindi- duvidar do que seriam capazes, mas tudo neles achava-se
cação de dignidade. pronto para o despertar e para a conquista."53 Avanços enor-
O que é sentido pelas massas no trabalho, nas relações mes ainda estão por realizar-se, mas eles não são incapazes de
humanas, na política: isso parece muitas vezes desconcertante, fazê-lo: que quebrem "o encanto que escondia deles próprios
caótico, muito distante da alta cultura. Entretanto, os valores sua humanidade [e que tenham] vislumbrado a alegria. Então,
afluem para aí: experiências de robustez nascidas na mesma eles gostariam de conquistá-Ia e saberiam assenhorear-se dela".
ação, coragem, paciência, resistir, agüentar; confiança no Se eu creio ser capital que o aluno fique face a face com os
grupo, principalmente se ele consegue unir, apesar de todas as grandes avanços culturais, não é para "introduzir ex novo uma
dificuldades, abertura para a vida, simpatia p ela vida, poder de ciência", mas sim para "renovar uma atividade ja existente". 54
estimulação.P As .idéias recebidas, as influências sofridas ao acaso das
A cultura de "massa" - programas de rádio e TV e fil- condições e dos meios de vida; esperanças, desej os, expectati-
mes comuns, diversões de massa - não é o estágio terminal vas, aspirações sentidos primeiro no próprio acontecimento;
ao qual espero conduzir os alunos da "minha" escola; esse "paixões elementares" sujeitas às grandes oscilações entre a
também não é um prazer inútil, e menos ainda aviltante: assis- despreocupação e o desestímulo, que ameaçam flutuar entre o
tir a um jogo na televisão pode ser um estímulo ao esforço, ao egoísmo, a agressividade, o fechamento, a culpa - face ao
respeito às regras, à façanha. desejo de ser eficiente, de mudar alguma coisa na sua vida, de
A cultura de evasão que faz as datil6grafas sonharem com contribuir para o outro, de dividir.

144 145
A cultura da "minha" escola se impõe por meta organizar
Esses novos caminhos são necessários: o novo público de
a vivência: superar o parcial, estabelecer ligações, vislumbrar
alunos tem ainda menos chance que o antigo de assimilar as
perspectivas, conseguindo colocar como conjuntos a situação,
descobertas feitas fora da escola. Esses novos caminhos são
a comunidade e até o desenrolar da história.
possíveis, tecnicamente possíveis (livros de bolso, presença
As obras-primas da cultura são necessárias para esses fins
constante da música, de todas as músicas), mas, sobretudo,
e, assim, somos conduzidos até elas.
culturalmente possíveis: é precisamente porque as "outras"
Entre o espontâneo e o teórico existem constantes trocas,
culturas, como o cinema, o jazz ou o rock, ganharam impor-
a união de duas forças, e aí reside, diz Gramsci, ajudando-nos
tância e dignidade, que se torna possível não mais recusá-Ias,
assim a ter a dimensão total da questão escolar, "todo o misté-
não mais contrapô-Ias à cultura da escola, mas sim fazer delas
rio da educação e do governo".55
etapas em direção à cultura.
É por isso que eu gostaria de me diferenciar de Alain,
que opõe desesperadamente as formas da cultura que ele ad- o atual
mira a todas as outras que não passariam de rnesrnice.f"
Gostaria de me diferenciar também de certos contempo-
Evidentemente, a imensa maioria do que se aprende na
râneos que podem estabelecer um dilema entre o trabalho de escola pertence ao passado. A escola tem que legar a herança, a
se informar, documentar, investigar, colocar em ação as técni- experiência acumulada; não só conservar o passado, mas as-
cas e o acesso às grandes obras da cultura.? sumi-Ia: "Essa couraça de segredos que os homens precisam
Consideremos, por exemplo, aquelas "pesquisas" em que transmitir uns aos outros".58
o aluno é colocado em contato direto com a experiência. Ele
O passado como tal, mantido a distância, em sua estra-
terá a oportunidade de se expressar, de se comunicar a partir nheza (como "alhures"), pode proporcionar alegria aos alunos:
do que sente e do que o afeta: afinal, não é elucidando sua
sua diferença deixa liberdade para imaginar como as coisas po-
própria experiência que ele se tornará compreensivo para com diam acontecer, então.
a experiência dos outros e, aos poucos, ao ganhar em gravidade,
De um modo agradável, divertir-se sobrepondo os fatos
chegará até a experiência dos heróis da cultura? Existe oposição ou
contemporâneos aos acontecimentos de outrora: a guerra da Es-
complementaridade entre o desejo de se informar sobre os acon-
panha em 1936 é comparada aos combates dos filisteus contra os
tecimentos, as técnicas atuais e a vontade de compreender por
hebreus, uma regata faz pensar na lnvendvel Armada."
que essas técnicas dão certo e como transformam nosso mundo?
De modo mais sério, os alunos podem ter acesso à sensa-
Chartier e Hebrand me parecem, contudo, aceitar muito facil-
ção de que o passado não está perdido e não se perdeu; a
mente "o desaparecimento das funções de transmissão patrimo-
história é um movimento pelo qual o passado se mantém e se
nial que sobreveio por volta de 1976" (p. 392).
prolonga no presente e se ultrapassa, se projeta para o futuro.
Nossa época oferece novos caminhos para chegarmos às
Nosso presente conserva presentes as etapas do passado; as cul-
obras-primas, antigas e novas. Ela não obriga, absolutamente,
turas passadas, em particular, não abandonaram sua existência,
a renunciar às obras-primas - desde que não se comece pelas
e seu estudo ainda pode ser fonte de alegria.
mais recuadas, mais distantes.
A cultura passada não é somente o peso de uma herança;

146
147
é também o favor de ser aceito por aqueles que, através dos duplo aspecto da fecundidade e das explorações: "Liam-se [no
tempos, conseguiram ernbelezar o mundo, é enfim a promessa e a mapa] o esforço e a paixão dos trabalhadores".
esperança de transmitir algo, por minha vez, saldando a minha
dívida para com aqueles que me permitiram realizá-lo. o mundo atual está em dificuldades, não em decadência
Mas a escola não está condenada a ser passadista, inadap-
tada ao atual, ignorante e até desdenhosa do atual - o que O presente provoca nos alunos um interesse que o pro-
tornaria impossível qualquer continuidade com a experiência fessor pode ampliar até o universal: "Para julgar a guerra [um
vivida pelos alunos. "Minha" escola atérn-se essencialmente a professor de quem ele gosta muito] nos lia Giraudoux"62, que
prolongar a cultura até hoje: o presente ou, pelo menos, um era contemporâneo deles.
passado próximo. Quando Butor fala em obras "conternporâ- O professor deve convencer os alunos de que de fato
neas", estende-se aos últimos 50 anos.60 De maneira alguma existe uma "alta cultura" presente, atual, contemporânea deles,
fica evidente que seja necessário iniciar o estudo da literatura enquanto eles tendem a pensar que aquela pertence exclusiva-
francesa pela obras da Idade Média. Os alunos sentem alegria mente ao passado. e que não tem equivalente nas produções ho-
ao se dedicarem ao atual: assim, eles têm muito mais chances diernas. O que é, para a maior parte deles, um compositor de
de se sentirem envolvidos, de reconhecerem seus problemas. música "moderna"?
Não se exclui a possibilidade de que eles tenham uma experiên- O desejo do atual é particularmente intenso nas ciências
cia pessoal e queiram expressá-Ia, discutir, apaixonar-se. Não se e nas técnicas:
exclui a possibilidade de que o estudo resulte numa ação. A
cultura atual vai desde ouvir Boulez até a criação dos alunos. E você se perguntava [...] em que momento, enfim, vocês
deixariam aquele purgatório de chatice, aqueles balbucios das
Existe, por certo, o risco de se deixar levar; a escola quase
primeiras lições de física (roldana, composição das forças con-
não ousa abordar o mundo atual: muitas vezes existem dificul-
correntes)( ...] vocês poderiam penetrar finalmente naquele
dades técnicas para abordar as técnicas atuais; muitas vezes campo tão maravilhoso, o perfil das asas de avião. 63
esse mundo é indizível: a guerra, a fome. Ele é sempre objeto
de discussão e, portanto, de indecisão. O atual complexo parece muito mais atraente que o ele-
"Minha" escola, apésar de tudo, pretende reservar um mentar, passado.
amplo espaço para o atual; ela confiará o bastante no presente Somos levados a crer que a música de Boulez é difícil
para transmitir aos alunos confiança em sua época: existe em demais para o aprendizado dos jovens e que melhor seria,
tudo o que está ocorrendo o compreensível, o justificado, o "para começar", fazê-Ios ouvir Mozart. Não é por um movi-
válido e a grandeza - e podemos sem dúvida perceber aí o mento semelhante a esse que se prefere ensinar as "máquinas
anúncio de um "algo mais". simples"? "Minha" escola quer apostar que a atração do atual,
Com determinado professor, a "geografia se abrilhantava a conivência com o atual e uma certa conformidade das sensi-
com movimento e vida ... uma maravilhosa viagem à desco- bilidades no atual serão poderosas o suficiente para conduzir
berta de paisagens e de humanidades contemporâneas'T" os alunos para além dos obstáculos nascidos da complexidade
Em particular, captar os homens em suas atividades sob o dos processos.

148 149
Já que ninguém pensa seriamente em contestar a pre- hoje que, a cada geração, mantêm a vida de Homero" Y Não
sença do passado na escola, a questão é organizar o vaivém se trata de propor aos alunos (somente) o sentido histórico da
entre passado e presente, e muitas vezes será mais vantajoso obra, tal como ele quis e concebeu em sua criação. Não é
fazê-lo a partir do presente: "Tanto quanto é perigoso para o obrigatório que eles coincidam com a intenção primitiva, o
historiador, é necessário ao professor escolher seu ponto de "horizonte" dos primeiros leitores - o qual poderia estar se-
partida no presente para explicar o passado" .64 O que, aliás, riamente ameaçado de não mais se relacionar com a sensibili-
leva a uma reflexão importante sobre a diferença entre a dade atual deles/"
ordem da descoberta e a ordem da exposição, a diferença entre Mas se a obra do passado sobrevive e nos dá alegria hoje,
a constituição de uma disciplina e o seu ensino, logo, à especi- é porque ela é rica em significados múltiplos, tão rica que cada
ficidade da pedagogia; é o tema da transposição didática que é geração pode encontrar nela respostas a suas interrogações, res-
assim reencontrado. posta adaptada à sua época: um sentido presente; a obra nos diz
Esse vaivém exige do educador múltiplas competências, e respeito, ela tem valor em relação ao que estamos vivendo.
Butor colocará mesmo o interesse pela cultura atual como cri- Acontece de esta visão contemporânea da obra passada esta-
tério de valor geral de um educador: "56 [são] capazes de pô- belecer-se a partir de obras que nos são efetivamente contem-
los verdadeiramente em relação com o passado os professores que porâneas e inspiradas no antigamente: talvez seja à luz do Ven-
nutrem uma certa curiosidade pelas obras contemporâneas'l.f dredi de Michel Tournier que os alunos descobrirão o encanto
Muitas vezes é a partir da literatura contemporânea que o de Robinson Crusoé.
jovem se tornará sensível à literatura - e, portanto, também à A escola como local de alteridade: as alegrias podem en-
literatura do passado. Mas é preciso ir além, questionando-se contrar espaço nela assim como os protestos e as queixas; ten-
sobre as alegrias que os alunos encontram nas obras do pas- tativa de superar essa contradição pelo tema de uma cultura
I1
sado: em que casos elas são imediatas? Muitas vezes elas não são que se situaria em continuidade com a vivência dos alunos.
li! derivadas da participação em alegrias do presente, de sua ten- Num extremo, ela permanece distinta do cotidiano e benefi-
I'I'
I',
são para o presente? "O prazer que nos proporcionam as obras cia-se da irreal idade da escola para se manifestar; no outro, ela
11

111' antigas fica maior quando somos mais capazes de gozar dos está às voltas com o real, com as experiências daqueles a quem
I'
prazeres pr6prios do nosso tempo".66 ela se dirige. A continuidade da cultura proposta com a vivên-
°
Os alunos têm assim que transpor para passado os prazeres cia dos alunos implica o espaço do atual.
que geralmente começam a experimentar em sua própria época,
nos acontecimentos e obras de sua época. É preciso que esses A obra-prima, o grande homem como continuidade
prazeres sejam fortes para que a transferência se faça possível.
Já falei da obra-prima em sua relação com a dualidade
Fazer de Homero nosso contemporâneo obrigação-autonomia. Dedicarei à obra-prima o desenvolvi-
mento final. Aqui, quero considerá-Ia em relação à continui-
No final das contas, o êxito do ensino, aqui, consiste em dade: à primeira vista, a obra-prima parece ser o contrário da
integrar ao passado o presente da cultura. "São as obras de continuidade; mas, na realidade, ela é a expansão desta.

150 151
-..;>;,-..;;:·~'t,:-,,"=tr . r E77 ~~.~;..,.;,.;

Falemos primeiro do "grande homem", notadamente do o culto é um pária?


"grande escritor" - não o escritor perdido na sua diferença,
desgarrado no meio dos outros, e menos ainda a salvo, longe Se assim for, a cultura, mesmo como convívio com o
dos outros; ele fala em seu nome inirnitável e em nome daque- grandioso, não precisa subtrair o culto do seu ambiente de
les que nunca falaram: ele faz ouvir "as palavras que nunca origem, por mais "modesto" que ele seja. Evidentemente, é
foram ditas, que permaneceram no fundo dos corações".69 dificílimo para a pessoa culta escapar de uma espécie de isola-
O escritor sente mais intensamente que os outros a co- mento entre os seus. Ousaria dizer que um pouco de cultura, o
munidade humana - e é por isso que ele sente com tanta início do ingresso na cultura, descarta os menos cultos, e que
freqüência a necessidade de se dirigir a ela, de evocá-Ia como mais cultura, mas sobretudo aquela cultura que não rompeu
capaz de existir em sua multiplicidade unida: com a cotidianidade ou negou os valores da cotidianidade, per-
mite redescobrir os múltiplos laços entre a sua cultura e a cultura
Eu choro por mim daqueles que passam por não tê-la?
ou por todos nós? Michelet viveu esse problema pessoalmente: "Quase
São lágrimas por minhas lágrimas
todos aqueles que ascendem, perdem-se, tornam-se mistos,
ou por nossas lágrimas?
bastardos; perdem a originalidade de sua classe, sem ganhar a
Mas eu não choro
. 70 originalidade de uma outra".72 E Michelet afirma que ele con-
.EU gnto.
seguiu subir muito alto na sociedade e na cultura sem renegar
A obra-prima existe, mas não como um meteoro sem co- nem sua família nem os primeiros momentos de sua personali-
municação e, portanro, sem ponto de apoio. Muito pelo con- dade. Afirma ele que deve isso à sua tarefa de educador, que
trário, ela é a "expressão mais poderosa, o testemunho espiri- foi devido à "amizade" com os jovens: estes ainda não haviam
tual de uma época, ela concentra todas essas forças num conseguido sucesso e se colocavam como mediadores entre o
impulso soberano"." Captar a validade de todas essas existên- povo e o "gran d e h omem. "
cias, no presente e no passado, aqui e noutro lugar, torná-Ia Da mesma forma, o desejo de uma cultura em continui-
consciente para os interessados: o conjunto de tantas vidas ba- dade com a vida das massas e a participação na edificação de
nais é que possibilitou os grandes movimentos da história e a tal cultura constituem um dos fios condutores de sua carreira:
ação de alguns grandes homens históricos. A obra-prima é "Caso abram meu coração quando eu morrer, ler-se-á a idéia
capaz de estabelecer comunicação com tantos homens porque que me perseguiu: quando haverá livros populares?"73
prolonga os valores de tantos e tantos homens. Mais um passo: ao invés de pensar e de deplorar o
Sua originalidade consiste, enfim, em dar forma ao que abismo existente entre as pessoas cultas e as massas, Marx
os homens dessa época pressentiam: as exigências a serem sa- conta precisamente com a cultura para conduzir certos "bur-
tisfeitas, possibilidades em via de nascerem. Eu gostaria de gueses" às posições revolucionárias, desde que eles levem sua
levar a sério a metáfora do século XVIII: a cultura como reflexão longe o bastante para abarcar a "inteligência teórica
"luzes", para lembrar que a luz tem a vocação de resplandecer. do conjunto do movimento histórico".74
Para que os alunos possam sentir a continuidade entre a

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cultura que lhes é proposta e a sua vida, em determinados tédio e no desagrado - e que não atingem o "encantamento"
casos - notadamente no caso das ciências - será preciso in- da alegria cultural.
serir os fenômenos a serem estudados num encaminhamento É extremamente difícil traçar um quadro delas, pois que
adequado. Em outros casos, será preciso buscar mesmo uma re- se imbricam e se misturam. Pode-se simplesmente evocar algu-
novação dos próprios conteúdos culturais. mas áreas, sem pretender ser axaustivo, Vou enumerá-Ias, meio
ao acaso:
a) alegria do bom funcionamento, alegria do sucesso, triun-
IIL OBRAS SECUNDÁRIAS,ALEGRIAS INTERMEDIÁRIAS far so bre a dificuldade, orgulho de não desistir; vencer-se, su-
perar-se, mostrar do que se é capaz, mostrá-lo aos outros e a si
"Minha" escola quer colocar em primeiro plano as obras-
mesmo, enfrentar o esforço; o esforço pela beleza do esforço;
primas, mas não é possível que os alunos passem de obra-
b) sentir-se progredir e tornar-se cada vez mais senhor de
prima em obra-prima, a gente não se alimenta apenas de sucu-
si, superar o medo, adquirir autoconfiança: eu estou à altura,
lência. A escola consome em larga escala obras que chamarei
COmose deve ser e COmose espera de mim, mostrar o que se vale.
de secundárias, de Jean Aicard a Rossini.
E acercando-se cada vez mais da área escolar: a alegria do
"Minha" escola deseja que elas sejam uma preparação
dever cumprido, a alegria de obter bons resultados e boas notas:
para o que há de mais completo, sem se confundir com ele. Elas
c) trabalhar bem para dar prazer àqueles que se ama;
abrem caminho para ... trazendo alegrias mais fáceis de serem atin-
gidas, constituindo transições: uma sensibilidade mais próxima da d) tudo isso é bom para preparar meu futuro e prova que
saberei conquistá-lo;
nossa, experiências progressivas e menos intimidadoras,
Um pintor japonês explica que, na juventude, diante dos e) viver com os colegas e simultaneamente se distinguir
deles, brilhar aos olhos deles;
quadros mais famosos, ficava "bloqueado" justamente pelo
respeito e pela admiração que chegavam ao ponto de provocar f) finalmente, alegria de aprender, de compreender, de se
nele sentimentos de indignidade: "Eu teria me sentido ridí- expressar, de agir, realizar, criar - tomando mais iniciativas, assu-
culo diante de mim mesmo se tivesse afirmado poder com- mindo responsabilidades e sentindo sua autonomia se afirmar.
preendê-los"." Em contrapartida, quando contemplava obras Chamo essas alegrias de "intermediárias" na medida em
onde se expressavam homens "que não eram gênios", ele se que não visam às gra,ndes conquistas humanas, não se centrarn
sentia à vontade, à vontade o bastante para fruí-las, Isso não nas obras-primas, na medida em que se desenvolvem fora dos
passou de um período transitório. objetivos essenciais da cultura e, na maioria das vezes, sem que
Se as obras intermediárias tomam parte no progresso dos o valor cultural do objetivo seja realmente considerado; é a
alunos, é porque elas se inserem num certo modo de continui- alegria de se expressar, sem se preocupar tanto com o valor do
dade: trazem em si algo do valor, da grandeza das obras-primas "em que é expresso; alegria de progredir em autonomia, até por
quantidades infinitesimais e por isso mesmo mais assimilãveis"." meio de ações prosaicas (juntar jornais velhos, vendê-los e,
E é aí que eu gostaria de falar mais longamente sobre as com o dinheiro, levar a classe para fazer uma excursão etc.).
alegrias intermediárias: são elas que motivam, que põem em mo- Outros exemplos: classificar e colecionar um pouco de
vimento a imensa maioria dos alunos que não afundam no tudo o que cai na mão e se presta à enumeração, ou então

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organizar nomenclaturas de capitais, de ossos do crânio... e simples termos de uma enumeração. Ao mesmo tempo, con-
decorá-Ias. Às vezes, chega-se ao difícil pelo difícil - montar cedemo-nos os meios e os intrumentos necessários ao pro-
o quebra-cabeça, resolver um enigma simplesmente por ele ser gresso, pois refinamos nossa inteligência e nossa mem6ria.
enigmático. A alegria intermediária é ao mesmo tempo estímulo para
Na verdade, não é a qualidade dos conteúdos culturais ir mais longe e como que uma prefiguração do que se vai
que é posta em primeiro plano: os alunos montaram uma peça descobrir indo mais longe.
de teatro e o público transformou-a num verdadeiro sucesso. "Minha" escola quer expandir as alegrias intermediárias,
Talvez se tratasse de uma obra medíocre, mas de belo efeito o que é possível visto que elas contêm os elementos mais váli-
cênico. Talvez ela seja válida, mas os alunos/atores preocupa- dos, certamente misturados a dejetos: a alegria da concorrên-
ram-se tanto com o seu alcance quanto com as dificuldades cia em classe ameaça se degradar em gloríola e mesmo em
múltiplas que tiveram que superar - e com seu êxito? antecipação de sujeitar os "inferiores"; mas isso pode se tornar
também, desde que os professores participem ativamente, de-
sejo de ter adversários à altura, desejo de que muitos colegas
Amar muitas «não-o bras-primas "para conseguir
façam muitos progressos para que o confronto valha a pena.
amar as obras-primas Pode-se até fazer um esforço no sentido de organizar o con-
fronto no conjunto das esferas da vida, perguntando-se se
É importante ter em vista o papel positivo dessas alegrias
quem leva a melhor quando se trata de resolver um problema
intermediárias.
de matemática continua na frente quando entra em cogitação
Em primeiro lugar, não procuraremos traçar linhas de de-
ajudar um colega a compreender a matemática.
marcação: em que condições a alegria da obra-prima é real-
mente pura? Na alegria de ter acesso a determinado poema Figurar entre os primeiros da classe. Não era somente a
talvez se insinue a gloríola de não ser como aqueles que per- vaidade que o aconselhava a se aplicar nos estudos, nem o
manecem alheios a ele. O usaria até dizer que é mais ou menos desejo de confirmar a boa opinião que os seus pais tinham de
você. Era preciso saber comportar-se [...] Nojo do desleixo??
como acontece no amor: quando se parte em busca de um
amor perfeitamente desinteressado, puramente platônico ... Contra as tentações de amolecimento, adotar atitudes de
E sobretudo as alegrias intermediárias, de abordagem tão firmeza, de dignidade, que o aluno, aqui, pressente quão favo-
mais fácil, podem constituir etapas rumo ao essencial: desde ráveis são ao encontro com a cultura.
que se conseguiu dominar esforços repetidos, difíceis, para Não se pode negar as alegrias intermediárias, a continui-
guardar os nomes dos ossos do crânio (o que por si só, caso se dade das alegrias intermediárias nas alegrias essenciais.
fique nisso, não me parece nem mais nem menos válido do Alain, por haver ignorado esse encaminhamento, e
que montar o quebra-cabeça), pode-se mesmo assim dar um mesmo por ter oposto as alegrias umas às outras, isolou a
passo à frente, pois nos encontramos muito perto da obra para obra-prima da vida do aluno e finalmente eliminou a alegria.
compreender coisas realmente importantes. Por exemplo, A prova disso é que, ap6s anunciá-Ia de maneira tão bela em
como é que a cabeça funciona? Estamos dispostos a ir em algumas passagens, não logra fazer dela um dos tons dominan-
direção a conhecimentos bem mais enriquecedores do que os tes de sua pedagogia.

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Não se pode tampouco instalar os alunos nas alegrias in- 16. Simone de Beauvoir, ibid., pp. 26, 68, 80.
termediárias como se não houvesse nada além disso. Creio que 17. Nathalie Sarraute, ibid., p. 166.
Freinet não saiu do lugar a partir do momento em que, sob o 18. Gaston Bonheur, L'Ardoíse et Ia Craie, 1980, p. 72.
nome geral de escolástica, deixou de lado as obras mestras da 19. Simone de Beauvoir, ibid., p. 142.
20. Raymond Abellio, Ma derniêre rnémoire; 1971, P: 149.
cultura. O maior risco das alegrias intermediárias, e o mais
21. Colette Audry, Ia Statue, 1983, p. 73.
freqüente é querer se realizar sem apelar, para a obra-prima e
22. Jean Bernard, C'e« de I'homme qu'il s'agit, 1988, p. 54.
até indo contra a obra-prima.
23. Fr. Sarcey, Souvenirs de jeunesse, 1885, p. 286.
Para que os alunos da "minha" escola sintam as alegrias 24. Simone de Beauvoir, ibíd., p. 72.
intermediárias simultaneamente como etapas válidas e pata- 25. André Maurois, Mémoires, 1970, cap.2.
mares a serem ultrapassados, é preciso algo como a coragem; a 26. Raymond Abellio, ibid, capo VI.
alegria da obra-prima está unida à não-alegria de forma muito 27. Yukawa, L'Itinéraire d'un physiden [aponais, 1982, p. 80.
mais rude do que certas alegrias intermediárias que vão dar 28. Elias Canetti, Hístoíre d'une [eunesse, 1980; 1905 em alemão,
imediatamente na satisfação: montar uma peça de Racine é p.316.
confrontar-se com o trágico, ao passo que apresentar uma 29. A. Moumet, Encore le massacre de Ia Iangue française, 1935, Pre-
obra bonitinha ... fácio.
30. Cavanna, Les Ritals, 1978, p. 144.
31. MarcelArland, Terrenatale, 1938, N.
NOTAS 32. Simone de Beauvoir, íbid., P: 71.
33. Convém precisar que as análises magistrais de Claude Pujade-
1. Claude Roy, Moije, 1969, p. 137. Renaud, contidas no seu livro L'écoIe dans Ia littérature, a respeito
2. Calaferte, Requiem des innocents, 1980, p. 149. dessa redação de Nathalie Sarraute, foram da maior importância
3. Valéry-Larbaud, Enfontines Deuairs de uacances, 1917, p. 202. para mim, embora eu me distancie das conclusões apresentadas.
4. Paul Vaillant-Coururier, Enfonce, 1938, p. 165. 34. Nathalie Sarraute, ibid., p. 194.
5. Albert Thierry; Le Sourireblessé, 1922, p. 218. 35. Florimond Bonte, De l'ombre à Ia lumiére, 1965, capo V.
6. Sigmund Freud, Malaise dans Ia civilisation, Vfl l, em nota, publi- 36. Louis Guilloux, Le pain des rêues, 1942, p. 59.
cação de 1930. 37. Butor, Degrés, pp. 87-90.
7. Sigmund Freud, Résultats, Idées, Problêmes, I, p. 131, PUF, 1984 38. Henri Pourrat, Les fardins sauvages, 1923, p. 36.
(sobre o suicídio, 1910). 39. Guehenno, "Sur le chemin des hommes", Humanisme d'au-
8. Giraudoux, Adorable Clio, Nuit à Cbâteauroux, 1920. jourd'hui, 1959, p. 144.
9. Nathalie Sarraute, Enfonce, P: 160. 40. Leontiev, Activité, Conscience, Personnalizé, 1984, p. 128.
10. Jean Forton, L'Épingle dujeu, 1960, p. 64 .. 41. Kierkegaard, Point de vue explicatif de mon oeuure, capo I, 2,
l1.J.-B. Pontalis, ibid, P: 15. publicação de 1859, em francês 1940.
12. Sully-Prudhomme, Le Bonheur, 1888. 42. Michel de Saint-Pierre, Les NouveauxAristocrates, 1960, capo n.
13. Nathalie Sarraute, ibid., P: 160. 43. Micheler, fournal, janeiro, 1842.
14. Annie Leclerc, ibid., 1988, p. 25. 44. Memmi, La Statue de sel, 2a parte, capo n, 1966.
15. Nathalie Sarraute, ibid., P: 160. 45. André Malraux, Le Temps du mépris, 1935, p. 9.

158 159
46. Horácio, Satire L 3
47. Taine, Étienne Mayran, capo VIII, 1862, (1909).
48. Benjamin Constant, Journaux intimes.
49. GuillaumeApollinaire, Calligrammes: sur lesprophéties, 1918. A OBRA-PRIMA COMO RUPTURA
50. Louis Guilloux, Lesangnoir, 1935, r- 131.
51. Jean-Paul Sartre, Les Mains safes, 1948.
52. Gramsci dans le texte, 3a seção, II.
53. Louis Guilloux, Lesangnoir, 1935, p. 131.
54. Ibid., r- 604.
55. Gramsci, ibid., P: 173.
56. Alain, por exemplo, Resolução de 20 de junho de 1933.
57. Chartier e Hebrard, Discours sur Ia lecture, 1990. L SIM, OADMIRÁVEL ExISTE
58. Paul Nizan, Anioine Bloyé, 1933, p. 168.
59. Christine de Rivoyre, Boy, 1973. Já fui levado a falar da obra-prima, primeiro em sua rela-
60. Buror, Conversation avec Gaussen, Le Monde de l'éducation, fev. ção com o obrigatório, para dizer que ela constituía o ca-
1976. minho mais real rumo à autonomia; depois, com relação à
61. Paul Vaillant-Couturier~ Enfance, 1938, p. 163. continuidade: a obra-prima não é necessariamente o contrário
62. Jean Daniel, Le Temps qui reste, 1984, r- 23.
da continuidade, pode ser sua forma superior.
63. Butor, Degrés, 1960, p. 113.
64. Lavísse, Questions d'enseignement national, 1885, P: 30. Gostaria agora de voltar mais diretamente ao tema da
65. Butor, Conversation auec Gaussen. obra-prima: o centro da "minha" escola é a relação do aluno
66. Brecht, Additif au petit organon. com a obra-prima. Continuidade, por certo, mas também
67. Butor, Conversation auec Gaussen. ruptura - ou melhor, a educação me parece a arte de modu-
68. Jauss, Pour une esthétique de Ia réception, 1978. lar, conforme o caso, a dialética continuidade-ruptura.
69. Michelet, Journal, janeiro 1842. Continuidade: esforço para vincular o novo ao que já
70. Guillevic, Avec, 1966, P: 81. constitui a experiência e o gosto. Ruptura: existem coisas que
71. Stephan Zweig, Ia Confosion des sentiments, 1929, p. 32. ultrapassam e até mesmo transcendem o habitual. Que os alu-
72. Michelet, Le Peuple, A Edgard Quinet, 1846, P: 70.
nos percebam que existem grandes obras, grandes ações, gran-
73. Michelet, Nosfils, LV, capo II, 1869.
des personagens - muito acima do que se faz diariamente.
74. Karl Marx, Maniftste communiste, I, 1848.
Choque, atração do choque, atração pelo que passa das medi-
75. Oskar Kokoschka, Ma vie, 1986, p. 51.
76. Mareel Proust, La Prisonniere, La Pléiade, 3, p. 263. das ou, pelo menos, das minhas medidas. A continuidade é a
77. François Bott, Autobiographie d'un autre, 1988, p. 47. valorização da vida, da pessoa, da cultura dos alunos. A rup- .
tura é a confiança nas obras-primas, na ação das obras-primas
e no papel da escola de modo que o aluno não fique alheio a
elas. Pretendo valorizar o cotidiano e a obra-prima; não pre-
tendo renunciar nem ao cotidiano nem à obra-prima.

160 161
Certamente a educação nunca pode ser uma contribui- alegria cultural. E de vez em quando trabalhar com as obras-
ção puramente exterior que seria vertida, revertida sobre os primas que se farão, desse modo, raras e anunciadas meio solene-
indivíduos; mas não se desconhecerá a importância da ruptura. A mente. Os alunos serão avisados de que uma obra-prima será
educação não se reduz a um desenvolvimento do que já estava abordada. Momentos fortes; voltar os refletores para o admirável.
latente, a uma simples aquiescência às forças espontâneas do ser. Tentaremos mostrar aos alunos que todo o resto é via de
Convém lembrar que os temas natureza e espontanei- acesso; ao fazermos o resto, ficará presente na mente uma
dade tiveram um papel importante a desempenhar em deter- orientação no sentido de... uma ultrapassagem de ... uma pre-
minado momento da história, quando era preciso opor-se à sença, um apelo para não parar muito antes.
imagem da criança como o ser mais violentamente exposto ao "Minha" escola, a tarefa, a vocação e a alegria final da
pecado original. Porém, agora, esses temas devem não ser abo- minha escola: convencer os alunos de que existem obras-pri-
lidos, mas integrados numa síntese mais ampla. mas e de que elas constituem os focos, os "faróis" da cultura,
Também nos refugiaremos no tema do parto, que pode- logo, da escola:
ria desconhecer a importância da ruptura. Essa metáfora pode
Eu só ficava curioso, só ficava ávido por conhecer so-
dissimular facilmente, em alguns, a falta de grandes valores a
mente o que eu sonhava ser mais verdadeiro do que eu
serem propostos. Cuidemos para que o receio tão legítimo do mesmo, o que tinha o mérito de me mostrar um pouco do
doutrinamento não se transforme em ceticismo, o que conti- pensamento d e um gran dee gemo.
zên] 1
nua sendo a negação do educativo. Só se justifica que cada um
seja o depositário de uma verdade interior e satisfatória dentro Pluralidade das obras-primas
de uma perspectiva religiosa ou, no mínimo, metafísica que
cabe, pois, explicitar, É essencial estender o termo e a noção de obra-prima ao
De fato, em Platão, a arte de parir os espíritos, a maiêu- conjunto das áreas - mesmo que não se possa esperar que
tica, leva a participar das idéias cuja existência pura, eterna, elas atinjam a todos: obras-primas do passado, mas também
transcende a todo indivíduo; o diálogo socrático, com a inter- do presente; obras-primas artísticas e literárias (e é a essas que
venção constante e muitas vezes invasiva das palavras de Sócra- se costuma reservar a palavra), mas também as grandes desco-
tes, visa afastar o interlocutar da experiência sensível como a bertas científicas que levaram a novas imagens do mundo,
simples opinião e conduzi-lo muito além do que ele com- novos modos de pensamento; as grandes sínteses das ciências
preendia, do que ele era para si mesmo. humanas que levam a perspectivas plenas quanto às civiliza-
Nem todas as alegrias culturais são alegrias da obra-prima, ções e aos diálogos entre as civilizações; obras-primas morais,
pois a cultura não é somente obra-prima; as obras intermediá- problemáticas dos valores; obras-primas de ação, a luta siste-
rias, as tarefas intermediárias, as alegrias intermediárias ocupa- mática contra a injustiça; obras-primas técnicas, sobre as
rão a imensa maioria das horas escolares. Na escola, não mais quais, infelizmente, não sei dizer grande coisa.
que na vida do dia-a-dia, é impossível estar todo o tempo no O esforço da "minha" escola é para que o aluno participe da
nível das obras-primas. Trata-se de conscien.tizar os alunos de grandeza, trave relações com ela; instituir o cara-a-cara entre o
que naqueles momentos também não se está no máximo da aluno e a grandeza; o aluno é convidado a associar-se aos maiores:

162 163
"Eu me descobria todos os dias e não havia, parecia-me, limites nem Às vezes, o professor de francês lê para eles um grande
em mim nem nas riquezas do mundo'? (Ele está então no colégio.) texto: "Ficamos embasbacados, somos sacudidos por uma
"Minha" escola tem o intuito de colocar a obra-prima tempestade, algo imenso passa: a literatura". 6 Quando Clan-
um pouco mais ao nosso alcance, para que os alunos se aproxi- cier evoca os poemas de que gosta, sente que tais obras
mem dela sem serem esmagados e sim, ao contrário, para que mudam sua vida, conferem-lhe uma "intensidade" e uma
extraiam do seu caráter excepcional toda a alegria que pode "graça" das quais ele se achava bem distante no curso comum;
atingir as pessoas comuns, as pessoas que não são geniais, por- a dor e a angústia não desaparecem, pelo contrário, mas, evo-
tanto os alunos que ainda não são geniais. cadas pelo poeta, elas "me davam uma espécie de exaltação
Que os alunos descubram a grandeza nos livros, o teó- feliz".7 Ele está fora do cotidiano e bastante próximo do coti-
rico, raciocínios e experiências preparadas pelo educador - e diano, pois que os poemas lhe parecem designar as moças que
é bem significativo que o termo experiência corresponda tanto ele começou a descobrir. O aluno não está encerrado, empare-
a um sentido existencial como a um sentido científico. Eles dado; ele vive uma abertura: "Suas palavras [pareciam-me]
apóiam-se nela, confiam nela e, assim reconhecida, a experiên- vindas não do passado, mas do futuro".
cia pode prosseguir, transpor-se em veemência, vivida por
conta própria pelo jovem, em força e solidez. Talvez seja pre- Grandeza adivinhada, grandeza vivenciada
ciso que cada um, a escola e a vida, tenham a coragem de
desempenhar seus papéis. Pode acontecer de o sentimento de ruptura ser tão forte que
Hoje, a novidade da escola, a renovação da escola seria a continuidade não fica mais salvaguardada: quando Zobel está
que ela tivesse por fim a obra-prima. A alegria da obra-prima é no colégio, parece-lhe que existe, por um lado, "um mundo
a razão de ser, o elemento essencial da "minha" escola - im- de todo dia, banal, brutal, inexorável aos desejos" e, por outro,
põem-se renovações do obrigatório e da alteridade para que o "um mundo espaçoso, lógico e.sobretudo benevolente, atraente,
aluno consiga atingi-Ia. Propor "explicações, respostas que não desejável"." O universo da cultura e da arte correria o risco de
humilhem, mas que encham o ser de emoções exaltadas'l.! servir simplesmente como compensação, como suplemento de
alma ao mundo cotidiano, que abandonaríamos à sua própria
Eu teria a ingenuidade de tomar ao pé da letra o que
sorte, afirmando que não é possível melhorá-Ia. Todas as espé-
Annie Ernaux diz ironicamente a respeito de si mesma e de
cies de tentações estéticas são ameaçadoras,'
uma cultura que lhe custou tantos esforços, notadamente por-
que ela pertencia a um ambiente essencialmente diferente. Ela Mas os avanços são ainda necessárias e possíveis. Por
sente alegria de ser "da tribo" dos grandes escritores, dos gran- exemplo, quando o professor lê histórias onde são evocadas
des espíritos: "Eu penso como eles, sinto como eles"." crianças muito infelizes, que já trabalham, exploradas, mas
Sentimo-nos melhor sustentados pela vida cotidiana: nos que se auxiliam mutuamente na fraternidade e no heroísmo:
livros, notadamente naqueles que se estudam em classe, "os "Ah, como eu gostaria também ... [de ser] o herói de um sacri-
adultos falavam enfim daquilo que jamais diziam na vida, con- fício consentido por um outro"." A identificação cultural com
fessavam sentimentos exaltados, dos quais pareciam, aliás, sentir um certo jovem herói não se separa da esperança de um devo-
vergonha" .5 tamento pessoal.

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Mais tarde, na adolescência, somos alçados às nuvens e repercussão na vida. "Consentimos nas obras-primas. Admi-
"pelos grandes autores que amamos: paixões fortes, desejos de rar, ser entusiasta: sempre me pareceu que, em nosso século, é
amor integral, o oposto do degradante".'? bom dar esse exemplo de besteira". 12
Heroísmo captado nas obras-primas, heroísmo visado na Sacralização da cultura, da obra de arte, idolatria? Não,
própria vida. Não que se possa passar diretamente da cultura à trata-se simplesmente de retomar nosso bem, o bem dos ho-
existência de todo dia. Mas renunciar a prolongar a cultura mens, a grandeza do que é terreno.
numa vida significativa, fora do comum, seria ainda assim en-
cerrá-Ia num irnpasse: inspirar-se nos heróis estudados, tornar- o poder de admirar
se digno deles, responder a seu apelo, por certo isso é um jogo,
começa como um jogo: "Vou ser fUlano" - mas isso pode Vejam-se quantas tarefas impossíveis! Existe, no entanto,
um sustentáculo - e grandioso: a capacidade de admiração
ficar muito distante da vivência, Projetar-se "no país de Júlio
Verne, de Livingstone e de Savorgnan de Brazza. De tanto própria da juventude.
imitar, brincando, os grandes exemplos de coragem, audácia "Quando então sentiríamos as belezas da vida, a não ser
e sangue-frio, não se pode esperar conseguir algumas dessas na inancia?"13 A criancinha admira: mil escritores já evocaram
qualidades?". 11 o garotinho que descobre, se deslumbra, experimenta tudo
Apesar de todas as desigualdades que a dilaceram, a es- pela primeira vez, "nenhum aspecto da vida está ainda embo-
cola constitui uma oportunidade de cada aluno atingir a obra- tado" (Baudelaire), todas as coisas surgem para ele em sua no-
prima numa ou noutra área; e é para introduzi-Ia na obra- vidade, donde tantas experiências de alegria. O que quer que
prima que a escola se faz mais necessária, pois para isso deve se costume dizer sobre isso, o fato é que essa capacidade de
haver esforços longos, contínuos e sistemáticos; um direciona- admirar não desaparece com a idade, mas sim assume novas
mento, o obrigatório; o bom êxito de uma dialética de conti- formas. Os jovens são levados pelo desejo de admirar, pela
nuidade e ruptura. A obra-prima justifica a escola, as alegrias esperança de admirar. Através daqueles a quem se admira, so-
da obra-prima é que compensam as dificuldades da escola. A brevém também a necessidade de se auto-afirmar, de se esti-
partir do momento em que se renuncia à obra-prima, pode-se mar: ser valorizado a partir dos entusiasmos.
renunciar à escola e contentar-se com "locais de formação". Todos sabemos que, atualmente, são raríssimos os alunos
Em seguida, evidentemente, acumulam-se todas as difi- que vivem a escola como espaço de admiração. O drama da
culdades: ninguém poderá levantar o rol das obras-primas, os escola é que a massa dos alunos quase não usa essa força do
juízos de valor variam consideravelmente. Estou convencido encantamento, essa tensão para o que eles apreciam e que os
de que o que é obra-prima em Pequim deve ser reconhecido, supera, reservando-as para outras áreas - astros dos esportes
acabará sendo reconhecido como obra-prima em Paris, porém ou da música, certos filmes, certas canções, certas façanhas,
às custas de que hábitos, de que esforços? São mil dificuldades, certas personalidades. Na maioria dos casos, é fora da escola
que deixam, porém, intacta a própria afirmação da obra- que os jovens às vezes instauram, e às vezes reconhecem, gran-
prima, a qual dá origem a alegrias, alegrias escolares distintas dezas que admiram.
das alegrias habituais, pois têm bem mais acuidade, densidade A escola, por sua vez, tende a renunciar à admiração e a

166 167
se contentar com o esforço. Quantos educadores não deixaram algum que o professor de música pretenda substituir as esco-
pouco a pouco seu entusiasmo atenuar-se, pois é humanamente lhas dos alunos pelas dele.
. difícil manter o ardor ao longo de tantos anos, de tantas repe- No entanto, acho que não é nem escandaloso nem con-
tições .:_. e após tanta recusa. Muitos nem querem mais saber tradit6rio organizar o desejo de admirar, inserindo nele a refle-
que seu ofício é profissão de entusiasmo, e além disso o am- xão e as conscientizações,
biente social deveria oferecer uma sustentação muito maior. A admiração - e isso é muito evidente - não se impõe.
"O valor do homem está na proporção do que ele Menos que nunca, o papel do professor, aqui, será o de co-
admira."14 mandar. Dará, sim, muitas explicações, esclarecimentos e sele-
"Minha" escola se impõe por tarefa recuperar pelo menos cionará o que, em determinado momento, pode tocar determi-
uma parte dessa capacidade de admirar, coloca a admiração nado público de alunos; administrar as margens de continuidade
como exigência constituiib. Exaltar, aguçar a admiração - e também os sobressaltos da ruptura, apresentação do magní-
eu ousaria dizê-Ia? -, ensinar a admiração. fico ao mesmo tempo para desencadear reações essenciais e
Mas como fazer para que os alunos admirem o que se para infundir nos alunos a confiança de que eles são capazes
desenrola e se repete no interior da escola? Não significa de ter acesso a todas essas coisas.
chamá-Ias a inverter sua experiência própria e, assim, ir ao Em que casos podemos esperar que as admirações dos
encontro do fracasso? Na melhor das hipóteses se conseguiria alunos se transformem, em que casos seremos levados a justa-
uma aceitação d6cil. por tipos diversos de admiração?
"Nosso professor de francês, de vez em quando, ao ler
As admirações se discutem um texto [que admira] ... entra em transe; os grandes textos
transformam-no em outra pessoa."15
A sorte do professor é que ele se dirige a jovens e que, Não há dúvida de que o professor deve pôr muito de si
muito naturalmente, seu desejo de admirar (ainda) comporta nisso: é primeiro pela simpatia, em uníssono com o professor,
amplas zonas difUsas, iqcertas; e eles têm dificuldade em estabele- deixando-se conquistar por seu entusiasmo, que os alunos vão
cer diferenças, em escolher; às vezes, por causas mínimas, deixam- vibrar. E esse não é um papel fácil de manter: o professor
se convencer por certo colega, deixam-se arrastar pela moda do "embarca" nos seus êxtases; os alunos sorriem. Conseguirá ele
momento. justificar seus arroubos sem fazer um sermão, sem cair no enfá-
O professor pode levar os alunos a tomar consciência do tico? Muitos alunos esperam simplesmente que a aula regula ..
que se introduz de acaso, de determinação nas suas preferên- mentar retome seu curso.
cias e, portanto, que não é um verdadeiro sacrilégio questionar Mas, sobretudo, para haver uma chance de que os alunos
seus gostos. admirem o escolar, é preciso que o escolar apresente algo de
Certamente, os alunos dificilmente suportam, na maioria admirável - pelo menos de vez em quando, não como ali-
das vezes, que o professor ataque a sua escala de valores. Eles mento diário, já que, repito, as obras e as alegrias intermediá-
aceitam que o professor de física queira substituir as idéias rias devem ocupar amplos espaços.
deles pelas suas, pois são as idéias da ciência, mas de modo A escola pode apresentar algo tão admirável quanto os

168 169
shows de Madonna, as façanhas esportivas de Maradona? Admiração histórica e valor literário servem aqui essen-
Quem dá aos alunos tanta alegria, quem desperta desejos de cialmente de suporte! Augustin Thierry se recorda do "entu-
identificação tão vivos? Ademais, é necessário que a escola siasmo" sentido no ginásio ao ler certa passagem do livro Os
ouse afirmar o que é admirável, pois os alunos talvez não o Mártires de Chateaubriand:
descubram sozinhos, assim como não descobrirão sozinhos a
Lei de Ohm. O essencial é que se tornem capazes de verificar Andando de um lado para o outro da sala [de estudos],
eu repetia em voz alta e fazendo meus passos ressoar: "Phara-
e redescobrir a tal lei por seus próprios meios, por pouco que
mond! Pharamond! Lutamos com a espada e, depois, a evoca-
tenham sido ajudados a atingir o limiar. Assim também, após
ção do combate de quarenta mil bárbaros".2o
ter anunciado a obra-prima, "minha" escola acionará tudo
para que os alunos a sintam efetivamente como tal.
Admiração pelas obras-primas científicas

E alguns exemplos de admiração por obras-primas cientí-


IL ALGUNS EXEMPLOS DE ALEGRIAS DA OBRA-PRIMA
ficas: na classe de Lavisse, o professor discorre longamente
A admiração pela poesia - que tem continuidade imediata- sobre Galileu confirmando Copérnico: "Uma nova explicação
do mundo ... uma grande coisa ... aquilo me pareceu tão bonito
mente na alegria de compor as próprias poesias:
que, naquela noite mesmo, escrevi aos meus pais para contar-
E é assim que começa a iniciação poética, naquela escola lhes aquela aula em termos entusiásticos" .21
primária, naquela carteira ... eu vejo e ouço que aquelas linhas A alegria provém ao mesmo tempo do conteúdo ensi-
estão vivas, que de duas em duas elas se respondem pela rima, nado (a perspectiva do Universo na sua infinitude) e da con-
como pássaros ou homens que colhem as uvas, e o que elas
fiança que os jovens adquirem em suas próprias forças intelec-
contam nos encanta. 16
tuais: "Nós éramos portanto capazes de amar a ciência e de
O jovem Marcel Pagnol, aos 13 anos, descobre versos compreender sua beleza, sua grandeza, sua utilidade".
que julga esplêndidos: "Senti o arrepio sagrado da beleza. Lá-
[A química:] ciência harmoniosa, lógica sem ser abstrata, rigo-
grimas subiram-me aos olhos e penetrei naquele reino",17
rosa em seus princípios e inesperada em suas manifestações [...]
Essas experiências muitas vezes surgem de forma repen-
Uma ciência dos amores e dos ódios moleculares.F
tina para aquele que as vive: revelação. Na verdade, elas são o
resultado de um trabalho e de um progresso: "Aprendi lenta-
Perceber tal dinamismo no interior da matéria e de um
mente a gramática. Treinaram-me na sintaxe. Despertaram meus
modo ordenado e compreensível suscitou o entusiasmo de
sentimentos. E eis que, bruscamente, um poema atinge o meu
jaurês, que apreendia assim o mundo da química em corres-
coração". 18 pondência com o mundo social e descobria a unidade das exis-
Admiração pela beleza plástica. Maurice Sachs e sua
tências: ele estava no ginásio e, pela primeira vez, fazia a expe-
classe fazem uma excursão à abadia de jnmieges: "[Deixei
riência da combinação de dois gases:
aquele lugar] transformado e consciente de uma verdade de
beleza exterior a mim, palpável e comunicativa",19

170 171
A idéia da atividade espontânea, das afinidades secretas, mento. É como um primeiro amor, diz Russell.ê" enquanto
da proporção, da medida penetrava subitamente naquilo que Einsteinse encaminha mais para a liberdade interior e a
até então não passara, para nós, de matéria inerte e estúpida. serenidade.
Parecia-nos que uma grande comoção de inteligência e de vida
Sthendal, como se sabe, gostava muito de álgebra: ela
estava abalando o universo material.23
realiza "prodígios" vinculando-se apenas a uma das qualidades
Admiração pelas obras-primas matemáticas: já falei das do objeto, permitindo ao espírito "reunir todas as suas forças
alegrias matemáticas expandindo-se na alteridade da escola e num s6 lado do objeto". Essa divisão dos pontos de vista, por
gostaria agora de captá-Ias no momento em que passam para a conseguinte, é um procedimento muito artificial, conside-
categoria de alegrias das obras-primas. rando o objeto apenas em sua global idade, isto é, na sua reali-
dade. Contudo, Sthendal tem a convicção de que a matemá-
a) Alegria de confiar no pensamento tica pode ser transmutada em conhecimento universal: "Eu
imaginava, aos 14 anos, que avançando na matemática conse-
Os refratários à alegria matemática são, evidentemente, guiria saber coisas certas e indubitáveis e poderia pôr-me à
numerosíssimos, Citarei apenas dois deles, visto que meu tra- prova à vontade sobre todas as coisas".29
balho optou por se colocar ao lado daqueles que encontram Sua paixão pela matemática surgiu quando ele a sentiu
alegria na escola. Um censura o professor de matemática por como o contrário da "hipocrisia", a área onde a hipocrisia é
ser "pretensioso" e s6 aprecia as disciplinas onde reinam os impossível, insustentável porque ela própria se denunciaria.
"dogmas da dúvida prudente, da incerteza e do relativo") o Daí sua decepção quando, numa dificuldade precisa de ál-
inverso, pois, da força afirmativa.24 gebra elementar (um fator negativo multiplicado por outro
Outro exige os direitos do indivíduo, da diferença indivi- fator negativo "dá" um resultado positivo), ele percebe que
dual, não os encontra contemplados no campo da matemá- seus -professores,seus interlocutores se refugiam numa obscuri-
tica: "Eu via que s6 é possível encontrar uma solução exata dade mais ou menos voluntária, o que não está longe da detes-
para cada problema e isso acabava com qualquer vontade de tada malandragem.
procurar o que os outros poderiam achar tanto quanto eu".25
O jovem Einstein, ao contrário, gosta na matemática de b) Stbendal deu azar
"libertar-se das cadeias do puramente pessoal"26e participar do
que é comum a todos os homens, atingir o universal. Outros encontraram professores mais convincentes e não
Mil vozes se harmonizam para louvar a validade categó- tiveram que abafar seu entusiasmo matemático.
rica, não resta dúvida, prova-se o que se afirma, manipulam-se A grande alegria matemática na qual eu gostaria de insis-
seres sem o menor escrúpulo, dizem-se apenas coisas garanti- tir aqui, porque se alça ao nível da alegria das obras-primas, é
das; um saber organizado, unificado, num encadeamento in- que a matemática se aplica ao mundo, torna-o menos opaco:
contestável. Broch traduz isso em metáforas poéticas: "cordões acordo entre a matemática e a realidade, isto é, finalmente,
de fios celestes... rede de realidades luminosas't." Daí o encan- entre o espírito e as coisas; o homem não seria, portanto, es-
tamento, a paixão, a sensação de felicidade, a felicidade do pensa- trangeiro, exilado num Universo impenetrável às suas idéias,
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172 .]73
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indiferente à sua sorte. Podemos esperar humanizar o mundo, pensamento puro, atingir (tal) grau de certeza" 31 e que esse
pois o que calculamos, o que demonstramos coincide com o pensamento teórico relativo aos triângulos geométricos se apli-
desenrolar dos fenômenos. que aos triângulos efetivos: "O Universo se mantém diante de
Temos a afirmação de que o pensamento do homem e o nós como um enigma e, no entanto, é parcialmente acessível
próprio homem estão no lugar certo em sua relação com o às nossas observações e à nossa compreensão".
universo - e a isso chamarei propriamente obra-prima mate- Esse mesmo fervor aparece em Max Planck:
mática - nos discípulos de Tendriakov:
Desde minha tenra juventude isto nunca deixou de me
Um ilngulo grad.uado permite estabelecer a altura de encher de entusiasmos: as leis da razão humana coincidem
uma chaminé de fábrica [...] o comprimento e a largura de uma com as leis que governam o mundo; e, portanto, o raciocínio
caixa-d' água [permitem estabelecer] o número de crianças hos- puro torna o homem capaz de atingir o conhecimento dos
pedadas numa colônia de férias.30 mecanismos deste rnundo.P

Admiração fundamental diante da matemática: ela esta- Quanto a Heisenberg, ele criou uma brincadeira "mais
belece um elo entre coisas que pareciam completamente hete- apaixonante do que qualquer um dos jogos aos quais se entre-
rogêneas entre si, fazendo com que surja algo comum entre gavam meus colegas" e que consistia em "brincar de combinar
elas. O mundo não é tão desordenado, tão caótico, não está a matemática com as minhas percepções", e sempre ganhava,
fora do nosso alcance, como se poderia temer anteriormente. visto que a matemática "combina com o que se vê".33
Já é admirável, quando se está aqui na Terra, que os cál- As vidas não seriam incompreensíveis, elucidações pro-
culos, os raciocínios e as demonstrações, através de seus des- gressivas são possíveis e a matemática é ao mesmo tempo a
vios tão obscuros, se achem em concerto com a realidade. construção e a revelação delas.
Mais admirável ainda quando se chega a conhecer a distância
entre a Terra e as estrelas, e a prever eclipses. O que "não se vê, Beleza da matemática, angústia da matemática
é preciso calcular"; pode-se calcular e os resultados desses cál-
culos não serão imaginações nem caprichos. O aspecto estético da matemática, celebrado com tanta
freqüência, pode ser sentido pelos alunos desde que os professores
Grandes homens da ciência estejam convictos da sua importância: "O ensino da matemá-
tica: à beleza dessas noções é que conviria, antes de mais nada,
Li três grandes matemáticos da mesma época que, em tornar sensível, e sua utilidade prática viria como acréscimo" .34
termos quase semelhantes, dizem e louvam o que foi, para Beleza: é muito pouco dizer que o pensamento puro da
eles, a alegria matemática no ginásio, e conseguem levá-Ia até a matemática desemboca no real; na verdade, ele constrói um
obra-prima. real harmonioso. O professor mostra fotografias que repre-
Aos 12 anos, Einstein aprende a demonstração de que as sentam conchas, um desenho de Da Vinci, o Partenon, e a
três alturas de um triângulo se cruzam em um mesmo ponto: .cada vez faz aparecer um traço do geométrico, a regra de ouro,
"É extraordinário descobrir que o homem pode, no campo do proporções entre as linhas e os volumes, a um só tempo perfei-

174 175
tarnente exatos e calculáveis - e que provocam a sensação da apesar d~ todos os dissabores, recuos e ameaças no meio dos
plenitude estética." quais nos debatemos.
A matemática revela um campo "de uma harmonia e de
uma simplicidade além... das contradições do humano". Ela Se existe vida, existem obras-primas para se amar
não poderia, por conseguinte, ajudar-nos a abordar os enigmas
obscuros, apenas dizíveis, que se agitam dentro de nós?36 É importante dizer que a alegria escolar presente, e sobre-
Nem por isso as coisas se tornam simples: não é de es- tudo a alegria diante das obras-primas, pode e deve começar
pantar que a matemática, aguçando a perspicácia, intensifique bem cedo: ela não está de modo algum reservada às classes
o sentido do mal e da infelicidade. Pode-se esperar que ela seja mais adiantadas.
ao mesmo tempo alívio para as dores que ela própria avivou? Antes mesmo de entrar na escola, deve existir confiança,
"Com a ajuda desse auxiliar terrível eu descobrirei na humani- e a intuição de que a experiência vai ser bonita: poesia, mú-
dade... a maldade sombria e hedionda. "37 E também se pode sica, o aluno espera que lhe sejam reveladas as "maravilhas do
recorrer à matemática "santa" para "consolar-se", Ambigüi- céu e da Terra". Essa esperança se apóia numa decisão infantil-
mente cultural, razão pela qual o aluno tem chance de ser
dade da alegria.
Do mesmo modo, a matemática pode provocar confusão, aceito: estávamos "decididos a fazer de cada uma das letras que
tínhamos que traçar uma obra-prima imortal".39
participar das confusõesdos jovens: o infinito, o poder de ir sempre
O que atrai muitas crianças é a alegria de se dirigirem a
além sem que nunca exista a segurança de um limite - isso
uma elucidação de valores já pressentidos. Elas vão brotar da
não constitui "uma força irracional, selvagem, destrutiva"? 38
escrita: "Eu poderia fazer minha mão correr (sobre o papel)
O aluno Tõrless recusa as interpretações místicas da ma-
deixando na sua esteira marcas cheias de sentido" - e tam-
temática. É em si mesmo, mas tomando distância em relação
bém da leitura:"Q papel dera algo, simplesmente graças ao
ao pensamento consciente e refletido, que ele procura uma fato de que o havíamos fixado com o 0Ihar".40
"certeza íntima", capaz de ajudá-Ia a "transpor o abismo" entre
Depois, a alegria de aprender a ler na escola.Algunsapren-
nossas simples experiências habituais e a audácia de manipular, dem a ler repetindo em conjunto os sons escritos no quadro:
como se as dominássemos realmente, noções tão explosivas
quanto o infinito ou os números imaginários. Inquietude, Aquelas turmas eram belas como um espetáculo e como
"pavor que se transforma lentamente, muito lentamente, em um jogo [...] no rosto da professora espalhava-se progressiva-
volúpia". mente a satisfação de ouvir de todas as bocas o som exato, um
coral do qual desfrutávamos com avidez.41
A importância, o valor da matemática e das ciências em
geral não diz respeito somente à imensidão de suas aplicações: Felicidade de participar de um grupo, unido de um
a partir do momento que são sentidas como obras-primas, elas modo simples e forte: todos realizam ao mesmo tempo a
provocam uma alegria que se pode tornar primordial para os mesma tarefa, a voz de cada um reforça a voz e, ao mesmo
alunos; pelo menos para certos alunos: alegria de conhecer, tempo, a confiança do outro. E o acordo se completa na ten-
alegria de que é possível conhecer, alegria porque o mundo são para a alegria cultural; a porta está aberta para a cultura e,
não é impróprio ao nosso conhecimento - e à nossa alegria; simultaneamente, para a consideração dos outros.

176 177
A primeira experiência de uma grande alegria estética: continuidade. Nesse sentido, aprender uma língua é manejá-Ia
no seu uso mais corrente como instrumento de comunicação.
[...] uma impressão de felicidade, a felicidade de estar ali, com
A escola, porém, deve ser também ruptura, choque, ir-
outras crianças, em companhia daquela senhora: ela desenhava
rupção do admirável que quebra os hábitos e as rotinas. Uma
no quadro-negro pássaros e flores [e a criancinha] compreende
que as mãos podem representar coisas mais belas que as coisas. escola que soubesse estabelecer essa dialética da continuidade e
Mais belas oudiferentes.42 da ruptura não poderia convencer também os alunos que ela
surpreende no primeiro instante? Nesse sentido, aprender uma
Desde a escola maternal, o contato com pinturas belíssi- língua é captá-Ia na sua grandeza. Há um tipo de alegria que
mas, os primeiros confrontos com as experiências esclarecedo- só se atinge se se capta a língua "na sua mais elevada forma de
ras; caso contrário, não há razão para que a alegria apareça em beleza, na forma poderosa de sua mais extrema paixão... nos
seguida. Ela será sempre postergada para mais tarde, para poetas, naqueles que criam a língua e a aperfeiçoam".44 É nos
aquele momento misterioso em que os jovens serão capazes de grandes autores que "a palavra assume seu pleno valor [porque
compreender e de sentir ... como os velhos ela é depositária] dos pensamentos de um valor maior". 45
Uma alegria assim se situa na escala final dos esforços, é o Um exemplo de aprendizado de grandeza cultural e na
ápice a ser atingido, mas também é a base, o fundamento, a grandeza cultural, ainda mais notável porque a criança é pe-
pedra de toque das aquisições escolares iniciais, a partir do quena. Por volta dos 7, 8 anos, François Jacob escreve de uma
momento em que os alunos sintam a que ponto seus progres- maneira bastante medíocre; para ajudá-lo a progredir, mos-
sos na leitura, e depois em múltiplos ensaios e na compreen- tram-lhe não modelos escolares, mas "reproduções de bicos-
são, podem enriquecer suas vidas. de-pena de grandes pintores, Rembrandt, Dürer, Goya"; assim
fazem-no apreender "como inclinar a curva de um traço, mo-
A palavra "primário" é uma palavra magnífica. Ela in- dular sua espessura ou seu grão".46 A partir das conquistas es-
dica o caráter primeiro, essencial, aquele sem o qual não se téticas, ele passa a uma espécie de generalização gráfica na ação
passa e que passa antes de tudo. O trigo é primário. O vinho é
cotidiana: "tudo o que se podia extrair de um traço da pena".
primário. Não o bolo. Não o vinho espumante. (Os professo-
É sob a ação desses grandes modelos, aproximados dele pelo
res dão) o pão e o vinho da cultura.43
comentário e pelo gesto, que sua escrita melhorou.
Grandeza dos professores, de certos professores:
IIL ALGUNS OUTROS EXEMPLOS DEALEGRIA
Meus educadores eram pessoas de valor. Dois deles, na
PROPORCIONADA PEIA OBRA-PRIMA: APRENDER NA verdade, tinham grandeza. É bom que no meio de pessoas ho-
GRANDEZA;APRENDER A GRANDEZA nestas a escola o coloque, um belo dia, diante de grandes figu-
ras. A marca delas ficará em você.47
Falou-se muito que o ensino deveria se preocupar com as
coisas usuais, habituais, familiares - coisas que não confun- Penso em Victor Hugo, o discípulo, dizendo aos seu ex-
dissem demasiado, em particular, as crianças mais "desfavore- professor: "Sem o senhor, eu teria crescido pequeno".148 Final-
cidas". Decerto, por um lado, a escola precisa acionar essa mente, este texto meio convencido, meio irônico de Giraudoux:

178 179
Vocês me abriram os olhos e iluminaram o interior da
Da mesma forma que em geografia, para estudar a
minha mente] ...] vocês me fizeram saborear o elevado prazer
menor montanha, desenhávamos sempre ao seu lado o con-
de aprender e este outro, mil vezes mais deslumbrante, de
torno do Himalaia, medíamos assim, em sua maior escala,
compreender] ...lVocês me afastaram dos caminhos sombrios e
Prometeu para a audácia, Bayard para a honra, cada homem,
tentadores, ou melhor, me ensinaram neste Universo a sabo-
cada sentimento] ...] eu conhecia heróis demais para que hou-
rear as seduções turvas saindo delas ileso.50
vesse para mim algo além das belezas ou feiúras heróicas.t?

Com esta recaída tão característica que casa o monumen-


Obra-prima '- riscos e ridiculos
tal com as falhas do 'cotidiano: "Suave coisa, mal esclarecida no
A tensão para a grandeza só tem efeitos benéficos, a
estudo, que sublima uma criança que lê". '
Rocha Tarpeia do derrisório está próxima do Capitólio.
A grandeza é aqui vinculada a pessoas, a figuras ernble- Certos alunos que querem transpor os grandes persona-
máticas, sejam elas da Antiguidade ou pertencentes a nossa gens de outrora para o mundo de hoje ameaçam cair numa
história, sejam elas legendárias ou históricas. mistura indistinta de bravura e infantil idade. Às vezes, uma
Esses personagens, evidentemente idealizados, reduzidos simples sobreposição de antigos discursos heróicos aos peque-
às suas qualidades puras, podiam primeiro ser abordados de. nos incidentes da vida diária -. a paródia é sempre cons-
maneira anedótica, depois de um modo cada vez mais apro- ciente? Projetos a um só tempo grandiosos e bizarros onde o
fundado, até figurarem nas grandes obras literárias. "Minha" desejo de comandar ambiciona inscrever-se nas perspectivas
escola gostaria de reencontrar heróis, adaptados à vida' e às históricas célebres: um sonha encontrar o tesouro, o ideal e o
aspirações de hoje, ao mesmo tempo próximos dos alunos e poder dos albigenses'", outro se vê recriando o Império Ro-
abrindo caminho entre eles a cotoveladas, Ousaria mesmo mano na sua unidade e na unidade de sua língua: o latim - e
citar Sully-Prudhomme, cujas alusões pomposas quase não ele mesmo figuraria entre os donos do mundo. 52
serão 'compreendidas hoje, o que indica a necessidade de Corre-se um grande risco de fazer um pastiche dos heróis
mudar de registro, mantendo um mesmo nível: e também dos autores.
Apresentar o grandioso aos alunos pode trazer decepções
Se a alegria do céu raramente ilumina para o professor que acreditou um pouco depressa demais que
Teus austeros claustros que não têm horizonte já fora bem-sucedido e tomou seu desejo de promover a esté-
Um pouco do grande Zéfiro que sopra em Salarnina tica pela realidade do gosto dos jovens.
Mistura um salubre aroma ao ar dos teus pulmões. Um professor mostra reproduções da Capela Sistina:

Grandeza, reconhecimento aos mestres que lhe permiti- Creio que algo como uma confusa admiração desperta
ram ter acesso a ela e efetuara ruptura. Mas são os alunos, os enfim neles. Eles estão boquiabertos, meio embaraçados; eis
jovens, que acenam para as armadilhas da esperteza. O estilo e que, inesperada e surpreendente na calma inabitual, uma voz
o pensamento de Cavanna se harmonizam perfeitamente com pronuncia com convicção: "Oh! que belas nádegas!"53.
isso. Ele se dirige aos seus professores dos últimos anos da
escola primária:
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Mas pode ser muito pior: diante das grandes obras, de gran- 3. Henri Michaux, Déplacements, Dégagements, 1985.
4. Annie Ernaux, Les Armoires vicies, 1974, p.147.
des exemplos de vida, o jovem não corre o risco de se sentir
5. Robert Kanters, À perte de vue, 1981, p. 36.
muito superado, humilhado, massacrado, indigno do que se
6. Jutes Roy, Étranger pour mes freres, 1982, P: 58.
espera dele? Essas vitórias ideais não vão impedi-Io de ser ele
7. G. E. Clancier, Un jeune homme au secret, 1989, p. 58.
mesmo, de dar sua opinião, sua modesta opinião? O perigo está,
8. Joseph Zobel, La Rue Cases-Negras, 1974, p.179.
por conseguinte, em faz~-lo tender para prazeres simplórios
9. Louis Guilloux, Le Pain des rêues, 1942, P: 63.
onde todo o mundo estará lado a lado e cantará em uníssono.
10. Michelet , Ma feunesse, L. lI, capo VI, 1884, póstumo.
"Minha" escola espera que os alunos sintam como a 11. B. Cremieux, t» premier de Ia classe, 1921, p. 39.
obra-prima lhes proporciona força e desejo de se aproximar 12. Victor Hugo, William Shakepeare, 2a parte, L. IV, 1864.
dela. Ela não sujeita, não reduz ao silêncio: ao contrário, é ela 13. Tendriakov, Leprixdesjours, 1976, P: 196.
que ajuda cada um a saber por onde vai ... sua via. Isso pressu- 14. Renan, Souuenirs d'enfonce a de jeunesse, 1883, capo Il.
põe professores capazes de insuflar vida à dialética continui- 15. Jules Roy, Étranger pour mes frêres, 1982, p. 58.
dade-ruptura. A aposta da "minha" escola, dada a necessidade de 16. F. James, De l'âge divinà l'âge ingrat, 1921, P: 58.
percorrer a continuidade, é que de tanto percorrer a continuidade 17. Marcel Pagnol, Le Tempsdesamours, 1977, p. 6.
o aluno se decida e fique cara a cara com a obra-prima. 18. Antoine de Saint-Éxupery, Pilote de guerre, 1942, X.
Na nossa sociedade, a juventude é que se devota à cul- 19. Maurice Sachs, Le Sabbat, 1979, rv:
20. Augustin Thierry, prefácio ao Récits des temps mérovingiens,
tura, a cultura é a sua atividade. O pior seria que ela se enver-
1840; Les Martyrs, L. VI.
gonhasse da cultura, pois isso implicaria dependência e falta
21. Lavisse, Souvenirs, 1912, p. 228.
de dinheiro.
22. Jean Paulhac, Les Bons Éleves, 1955, p. 32 (trata-se de alunos que
O conservantismo não gosta da alegria, nem do desejo de
se preparam para a Escola Politécnica).
alegria, por menos política que seja a aparência da alegria. A 23. jean jaures, Discours à Ia distribution des prix au Iycéesd'Alb4 1888.
ambição final de meu tema se localiza na relação entre a ale-
24. Henri Bosco, Pascalet, 1958.
gria sentida pelos jovens na escola e o esforço dos homens para 25. R. Rudigoz, [aumal d'un écriuain, 1961, P: 124.
introduzir alegria em todas as vidas. Evidentemente, espero que 26. Albert Einstein, Autoportralt; 1980.
essa alegria cultural escolar, quer dizer, descoberta na escola e 27. Hermann Broch, La Grandeur incormue, 1968, P: 78.
pela escola, se irradie para a existência inteira. Uma sociedade 28. Bertrand Russel, I, Autobiograpbie, 1967, P: 36.
que se preocupa pouco com a alegria dos adultos não é muito 29. Sthendal, Vie de Henri Brulard, capo 34, escrito em 1835,
capaz de conduzir suas crianças à alegria. A alegria, termo 1a edição datada de 1890.
comum de esforços através das idades ... 30. Tendriakov, Le printemps s'amuse, 1977, capo 13.
31. Albert Einstein, Autoportrait, 1980, P: 15.
32. Max Planck, Auiobiograpbie sdentifique, 1960.
NoI:4.S 33. W. Heisenberg citado em H. Cuny, Sauants du monde entier, 1966.
34. Butor, Le Voyageurà Ia roue, 1979, P: 36.
1. Marcel Proust, Swann, La Pléiade, I, p. 384. 35. A. Lanoux, La Classe du matin, 1949, P: 255.
2. Memmi, La Statue de sel, 2a parte, capo Il, 1966. 36. Yukawa, L'itinéraire d'un physiden japonais, 1982, P: 89.

182 183
37. Lautréamont, Les Chants de Maldoror, 1874,2° canto, estrofe 10.
38. Musil, Les Désarrois de l'éleve Tõrless, 1960, p. 34 (em alemão,
1906). TERCEIRA PARTE
39. Wiechert, Des Forêts et des Hommes, 1950, p. 33.
40. Merle Hodge, Crick, crock; V; 1970.
41. Joseph Zobel, La Rue Cases-Négres, 1974, p. 95.
42. Georges Jean, La Passion d'enseigner, 1985, p. 5I.
43. Giraudoux, Littérature; 1941.
44. Stephan Zweig, La Confusion des sentiments, 1929, p. 37.
45. Joyce, Stephen le héros, em inglês 1908, trad. fr. de 1948,p. 28.
46. François Jacob, La Statue intérieure, 1987.
47. Henri Bosco, LeJardin des trinitaires, 1966, p. 150.
48. Victor Hugo, QJtatre-Vinff-Treize, 1874, L 7°, V.
49. Giraudoux, Simon lepathétique, 1926, cap.I,
50. Cavanna, Les Ritals, 1978, p. 4I.
51. Cf. B. Crernieux, Le premier de Ia classe, 1921.
52. Cf. Valéry-Larbaud, Fermina Marquez, 1911.
53. jeanne Galzy, La Femme chez les garçons, 1942, p. 63.

184
1

GENERALIZAR, UNIVERSALlZAR
A ALEGRIA ESCOLAR

Apesar de tudo, existem casos atestados ou pelo menos


descritos, evocados de alegria na escola; portanto, concluímos
que esta' não é impossível.
Meu problema é ampliá-Ias. Se me esforço para com-
preender as alegrias escolares sentidas por alguns - e sei
muito bem que são, na maior parte das vezes, casos privilegia-
dos - não é para reservá-Ias a eles, mas, ao contrário, para
aprender com eles como ajudar os outros. Saber que essas ale-
grias existem, proclamar que elas existem, entender como
foram vivenciadas por este ou por aquele, tudo isso não pode
constituir um apoio para os professores, os pais e, sobretudo,
para os alunos?
Em que condições a alegria de um jovem Einstein, de
uma jovem Nathalie Sarraute, em que condições pode ser pro-
posta para a massa dos alunos? Que essas alegrias se instalem
plenamente na totalidade dos bons alunos e dos alunos media-
nos; que se propaguem em direção àqueles que são os menos
bem colocados na sociedade, na escola.
Não se pode deixar de voltar ao problema da dernocrati-
zação da escola. Em relação a um tema tão vasto e tão repeti-
damente tratado 1, sublinhei apenas alguns aspectos: aqueles
talvez que posso ilustrar com exemplos literários.
Certamente é uma ilusão colocar a escola como que de-
terminando, pelo progresso da instrução, o progresso social-

187
ou, pelo menos, passando a ser o foco principal dos movimen- as instituições não-igualitárias de uma sociedade não-igualitá-
tos progressistas. Mas é fácil demais, sob o pretexto de denun- ria, a escola é sem dúvida a menos não-igualitária ou, digamos,
ciar essa ilusão, deixar todo o peso de um lado só e afirmar uma das menos não-igualitárias pois, apesar de tudo, é o lugar
que a escola se reduz à "reprodução", tendo por finalidade onde jovens muito diferentes têm alguma chance de conviver,
única preparar os alunos para sua futura profissão, numa resig- de se conhecerem, de serem governados por princípios iguais
nada continuidade da situação dos pais; ela já não teria nada a
para todos. Comparemos as mesmas situações numa empresa.
ver com os valores de justiça, de democracia.
A escola é o espelho, a resultante, talvez também uma das
Perceberemos melhor o real papel da escola a partir das
causas de nossa sociedade não-igualitária, também um dos lu-
atitudes da sociedade, constituídas em relação aos educadores
gares essenciais onde se desenvolvem os movimentos e as lutas
- sobretudo a "boa sociedade":
que perpassam essa sociedade para que ela triunfe sobre a desi-
gualdade. É esse caráter dialético qae faz da escola um palco
Não somos funcionários como os outros. A burguesia
não se engana a respeito ao nos menosprezar como ela faz, pois onde as coisas mudam (multiplicidade, à primeira vista, irracio-
adivinha muito bem que nossos exercícios, por mais modestos nal), as situações jamais se fixam, pois o que está em jogo move-
que sejam, estão a serviço de um ideal humano que a ameaça.ê se entre as forças que lutam pela proeminência na sociedade.

o exercício escolar certamente não basta, mas pode, se Os riscos do elitismo


outros elementos favoráveis se conjugam a ele, levar a uma
reflexão crítica, a uma conscientização. Sei muito bem que muitos dos meus argumentos pode-
São inegáveis os conluios entre a escola e as classes domi- riam ser facilmente tachados de elitistas: a alegria cultural pa-
nantes, entre as ideologias difundidas pela escola e as ideologias rece ser um luxo reservado àqueles a quem não falta nenhuma
das classes dominantes em determinada época (o colonialismo). das satisfações básicas e é ainda muito mais difícil de atingir
Mas a burguesia nunca sentiu a escola como um aliado seguro com alunos que vivem em condições difíceis. Da obra-prima,
- ou melhor, sempre a considerou como um aliado extrema- conseguem extrair grupos restritos de indivíduos que estão, esta-
mente incerto; caso contrário, ela teria prolongado o tempo de tisticamente, situados em um determinado lado da escala social.
escolaridade, coberto o país de construções escolares e reser- Daí nasce a opinião corrente de que se se deseja democra-
vado aos educadores tratamentos privilegiados e, principal- tizar a escola, devido ao grande número de alunos que ela re-
mente, consideração e honrarias. cebe, logo, ao grande número de alunos explorados, de alunos
Pois bem, ocorreu o contrário, e os momentos em que o "diferentes", de alunos fracassados - não se pode ir até a obra-
movimento popular levou a melhor sobre as estruturas estabe- prima: é preciso se contentar em ficar nas zonas medianas, tanto
lecidas é que corresponderam aos avanços da escola, à sua valori- na eÉlha das poesias quanto na demonstração dos teoremas.
zação e à valorização dos professores. A partir daí, percebemos Dando um passo à frente, declarar que as obras-primas
todas as possibilidades que a escola encerra - desde que a têm por função permitir à "elite" social estabelecida reconhe-
inovação da sociedade a associe a seu movimento progressista. cer-se e separar-se do vulgar. Em aula, a obra-prima teria por
A escola é não-igualitária e segregativa; mas, dentre todas função supervalorizar os bons e arrasar os demais.

188 189
Naturalmente,eu ficaria desolado se meu trabalho fosse sem dúvida para não usar o termo exploradas, são as mais liga-
visto por esse ângulo, das ao presente, as mais desejosas de satisfação no presente."
Uma observação preliminar: não se pretende chamar de Os pais "burgueses" ensinam aos seus filhos que o futuro
elitista a flsica contemporânea pela razão de que pouquíssimás pes- os compensará amplamente pelos esforços e mesmo pelos sa-
soas a compreendem e podem extrair alegria dessa compreensão. crifícios que o presente, em particular o presente da escola,
Quero afirmar que a escola não pode renunciar à obra- exige deles. Mas essas crianças não ficam de todo convencidas,
prima, nem mesmo com a. intenção aparentemente generosa a partir da experiência dos pais e das pessoas que lhes são mais
de não desfavorecer os desfavorecidos. Sem dúvida, seremos próximas, de que a seqüência da vida seja destinada a propor-
levados a propor caminhos diferentes, a nos apoiarmos em pa- cionar-lhes grandes alegrias. Elas vivem num mundo de penú-
tamares intermediários diferentes, a ger~r, na imensa reserva ria, não há bastante, ou melhor, corre-se o risco de não haver
das produções, escolhas diferentes, mas são precisamente esses bastante - bastante alimento, repouso e respeito para elas.
resultados que todos precisam atingir. Daí a sensação de que o que não se obtém imediatamente,
"Democratizar" a obra-prima, generalizar as alegrias que muito provavelmente não se terá jamais. Assim, estão à p ro-
ela provoca. Será que as crianças exploradas são necessária e cura do que lhes possa trazet satisfações tangíveis, aqui e agora,
definitivamente impermeáveis à obra-prima? Não há dúvida a elas e ao grupo dos pares que desempenham um papel tão
de que muitos se mostraram, até agora, reticentes aos apelos da importante. Bettelheim parece pensar que essas atitudes só tra-
cultura escolar. No entanto esses apelos não eram suficiente- zem prejuízo ao progresso educativo. Quanto a mim, creio
mente convincentes - e também as condições de vida impos- que as exigências desses alunos podem tornar-se um apoio
tas a tantos jovens não os prepararam para ouvir esses apelos. para seu desenvolvimento pessoal e uma contribuição capital a
Quero afirmar que a cultura e as obras-primas podem se uma escola que colocar em primeiro plano a alegria que so-
dirigir a todos e proporcionar alegria a todos. Isso representa mente o presente pode proporcionar - sem renunciar, aliás, à
uma imensa luta a ser empreendida, na escola e fora da escola, criação de um equilíbrio entre a preparação para o fUturo e o
no impulso do movimento social, associando-a ao impulso do respeito pelo passado.
movimento social. Essa não é uma utopia generosa que basta- Em seguida, em relação à própria cultura: os alunos
ria proclamar para ficarmos com a consciência tranqüila. "proletários" podem contar com um tipo de alegria escolar
que, em última instância, pareceria reservada a eles quase especifica-
À espera de "palmadas" mente: ~ esperança de não serem mais dominados, de serem menos
duramente dominados, de lutar melhor contra as dominações,
Popularizar a alegria escolar não me parece- uma tarefa A cena se passa no século XIX: o pai sabe muito bem que
impossível, quaisquer que sejam as dificuldades com as quais seu filho será pedreiro como ele próprio, mas antes (o que é
ela se choca quando em contato com os fatos. Primeiramente, uma novidade nesse meio) irá à escola. Um amigo faz a se-
em relação ao público: Bettelheim mostra de maneira muito guinte objeção:
perspicaz que as crianças que ele chama de "subprivilegiadas",
Você acha que ele subirá mais agilmente na escada
quando souber ler e escrever?Mão destra para a pena não con-

190 191
tinua boa para a colher de pedreiro [...] Ninguém na sua casa nada, é preciso que, de uma maneira ou de outra, eles se reco-
nunca soube ler assim como na nossa, e não foi isso que nos nheçam nela; para que os conteúdos ensinados despertem res-
impediu de comer o suficiente." sonâncias diretas no conjunto dos alunos, a escola deve propor
temas que valorizem o conjunto dos homens, o papel das mas-
E o pai responde: sas, suas provações e também suas conquistas; enfim, a vida do
povo, numa perspectiva capaz de apoiar sua ação.
Quem sabe ler e escrever é como Se tivesse mais olhos e
ouvidos do que os outros [...] A questão não é somente comer
A história do longo. esforço pelo qual esse grande operá-
para matar a fome, e sim servir-se de sua inteligência para não
rio, o povo, era após era, pôde construir-se a si mesmo. Ne-
viver como animais [...] de outro modo, aqueles que têm ins-
nhum pobre trabalhador, se refizer mentalmente o caminho
trução, bons ou maus, levam os ignorantes no cabresto.
dos nossos pais e o seguir, sucumbirá. Ele será sustentado e
engrandecido pela grande alma, vendo-a em suas lutas, cho-
Em outro livro, para crianças, encontramos esta bela pas- cando-se, caindo muitas vezes, muitas vezes se levantando,
sagem. Um aluno de 6a série diz: mas sempre inspirado por uma coragem indomável e por uma
jovem esperança,"
Entendo por que é necessário aprender o francês: para
não cometer erros de grafia quando se datilografam cartas para Tudo isso requer a renovação dos conteúdos inculcados,
o patrão. Entendo por que é preciso aprender matemática:
a qual projetaria toda a luz sobre a imensa presença dos "des-
para não cometer erros nas contas da patrão. Mas não entendo
graduados"; seria possível chegar a uma inversão dos proble-
por que é preciso aprender história, .
mas do fracasso cultural, do fracasso escolar: as classes sociais
Um adulto lhe responde: "É preciso aprender história que teriam mais interesse em aprender, que desenvolveriam
para entender como o seu patrão se tornou seu patrão".5 mais interesse em aprender, em suma, que manifestariam
De tanto mostrar os limites da escola, de ficar mostrando "mais avidez'" em aprender são as mais insatisfeitas com o
quase que tão-somente os limites da escola, arriscamo-nos a estado de coisas existente, a começar pelos filhos dos mais ex-
esquecer como ela pode ajudar o povo a se conscientizar do plorados, aqueles que atualmente tanto receamos receber em
papel que representa e do papel que deve representar. O que nossa classe.
não significa, absolutamente, que estejamos satisfeitos com a
escola como ela é, nem que contemos mecanicamente com a As fecundas contradições da cultura
escola como ela é para atingir semelhantes fins.
Pensemos no estudo da história. Augustin Thierry escreve: Um passo adiante: a cultura, a despeito de certas aparên-
"A parte mais numerosa e mais esquecida da nação merece reviver cias, dirige-se bem mais aos explorados do que aos mais favo-
na história'" - e é essa história que ele desejaria compor. recidos. Ou melhor, a cultura constitui um conjunto extraor-
Desse modo, o conhecimento da história poderia se po- dinariamente contraditório: não há dúvida de que muitos dos
pularizar; a alegria escolar da história poderia se generalizar. elementos da cultura são a expressão satisfeita e cômoda dos
Para que os alunos possam extrair alegria de uma matéria ensi- modos de vida e de pensamento das classes dominantes, mas

192 193
nunca faltam os dados originados das lutas contra a infelici-
Não há dúvida de que atravessar os elementos conserva-
dade, lutas passadas, lutas a serem preparadas. Conjunto con-
dores de uma ideologia para deles extrair ousadias progressistas
traditório, portanto, trabalhado por um dinamismo - tra-
não está ao alcance dos indivíduos enquanto tais, mas pressupõe
tando-se pois de favorecer esse dinamismo, de inserir-se nesse
que eles possam se apoiar em movimentos progressistas já exis-
dinamismo.
tentes, em doutrinas progressistas já bastante fortes para sus-
Renovação dos conteúdos; nem todas as obras-primas são
tentar as buscas pessoais - e para arrastar consigo a escola.
opostas ao povo, contrárias aos seus interesses, impermeáveis
A luta pela alegria da cultura é a mesma luta para genera-
aos seus gostos. Ou antes, raríssimas são as obras-primas que
lizar e universalizar a alegria da cultura. Em geral, hoje, as
pregam a resignação dos explorados à exploração. As grandes
pessoas cultas não estão mais felizes com sua condição; tem-se
obras têm, na maior parte das vezes, um alcance progressista.
mesmo a impressão de que o conhecimento, a ciência, a ins-
Elas ajudam, podem ajudar e devem ajudar as massas na sua trução aumentam "o mal e a dor"." Mas como ser feliz com
conscientização. Contudo, certas interpretações feitas pela
uma cultura que não se dirige ao coletivo dos homens, que
ideologia dominante, certa apresentação, pelos meios de co- não visa promover o coletivo dos homens?
municação e, freqüentemente, também pela escola, infeliz-
mente, empenham-se em torná-Ias inofensivas. A tarefa con-
siste em devolver-lhes a conrundência. No'E4S
Nem aceitar a cultura tal como ela é oferecida atualmente
pelo mercado, nem sonhar com produções virgens de todo o 1. Georges Snyders, École, Classes e Lutte de classes.
peso conservador, mas usar todos os recursos, todas as possibi- 2. Renê Jean Clot, Le Bleu d'outre-tombe, 1956, p. 35.
lidades democráticas já incluídas na maior parte das correntes 3. Bruno Bettelheim, Survivre, trad. fr. de 1979.
culturais já existentes. Ressaltar esse movimento de superação, 4. G. Nigremont, [eanton (publicado em 1967, mas inspirado,
dentre outros, em Martin Nadaud).
essa ambição de superação que caracteriza as grandes realiza-
5. Sophie Morgenstern, IA Sixiéme, 1984, p. 84.
ções da cultura, sem dúvida porque ela é a marca dos grandes
6. Augustin Thierry, Lettres sur l'histoire, Carta I, 1827.
momentos da realidade: "A cultura demole, recusa e arruína,
7. Micheler, Nos fils, 1, V, capo u, 1869.
reergue, reconstrói ... mostrar, na revolução, a mais antiga das 8. Brecht, Écrits sur le théâtre, I, p. 263.
tradições" .9 9. Guehenno, Conversion à l'humain, 1931, p. 177.
A maioria das revoluções começou se apropriando - e até 10. Robert Merle, Derriere Ia uitre, 1974, p. 708.
o fim ~ do saber constituído; e assim conseguiram superá-lo 11. Émile Zola, Vérité, L. II, 1, 1903.
e rlnesmo transformá-lo:

o saber é sempre o saber [...] Marx defendeu uma tese


de filosofia na Universidade de Berlim, Lênin prestou exames
de direito na Universidade de São Petersburgo; Trotsky, em
o dessa; Mao era bibliotecário-assistente na Universidade, de
Pequim; Fidel Castro é doutor em direito.P

194
195
2

ALGUMAS BREVES PALAVRAS,


PARA FINALIZAR

"Minha" escola tem a pretensiosa ambição de buscar para


e com seus alunos uma cultura que una os termos essenciais
humanidade e progresso.

r. Em seu sentido mais global, a cultura é o esforço para


não admitir como fatal e inelutável, e menos ainda como be-
néfico, o esmagamento dos mais fracos. Enquanto a natureza é
terrível, atrozmente desigual, a cultura é o esforço de apazi-
guar a luta pela vida. Diminuir a violência, as agressões, a mi-
séria - e isso é a infra-estrutura indispensável para que se
possam expandir as liberdades individuais e coletivas.
Alegria de que os homens sejam homens.
Assim, a cultura; é impulso, tensão, exigência, ação da
qual todos os homens são chamados a participar. As obras
"culturais", as obras-primas "culturais" constituem apenas um
aspecto da cultura, mas são o aspecto ao qual a escola está
mais bem adaptada. A rejeição da cultura, como o nazismo,
em nome do misticismo imediato do sangue e da raça, enca-
minha-se inelutavelmente para o culto da força "natural", da
luta; logo, para a exaltação da guerra, para a desigualdade entre
os homens: exclusões, racismo. Temos assim uma dupla fonte de
não-alegria, apesar dos acessos de orgulho exacerbado.
Não existem duas culturas, uma racista e uma não-ra-
cista, mas cultura ou rejeição da cultura.

197
ças comuns. Minha história, a história e a história dos outros
lI. A cultura é o que me arranca de mim mesmo, um muitas vezes se contrariam; mas elas poderiam se fecundar.
quesrionamento sobre o meu lugar no mundo; tento me situar em Posso entrever que as oposições entre mim e o outro, entre
relação ao tempo, aos lugares e ao futuro que precisa ser criado. meus interesses e a manutenção do coletivo, entre meus dese-
Mas a cultura também me prende a mim, me revela a jos e as leis da sociedade, entre o indivíduo e a coletividade -
mim mesmo. Compreender melhor, apreender melhor os ou- essas oposições nas quais nos debatemos todos - talvez não
tros e me compreender melhor e apreender melhor a mim sejam a última palavra da história ou a infelicidade definitiva.
mesmo: dois movimentos complementares e, sem dúvida, in-
dissociáveis. É precisamente pelo "prazer de descobrir as dis- IV Por isso mesmo, o que se acredita ser a "natureza" de
tâncias e as diferenças" que atingimos o "prazer que nos pro- cada homem se modifica no mais profundo dele mesmo na
porciona o que está próximo de nós e nos é próprio";' Receio medida em que ele toma parte na modificação do conjunto
que minha insignificante pessoa seja asfixiada em meio a tan- das relações que o opõem e o unem a seus contempodneos. É
tas realidades diferentes - e, no entanto, eu me reencontro, preciso ampliar para o conjunto do mundo essa convicção do
eu me encontro assim e isso pode, de maneira muito eficaz, transformável no homem: transformável pelos esforços huma-
ser um prazer. nos, transformável no bom sentido, pois já em via de transfor-
mação, podendo e devendo ser efetuado.
liL Uma cultura que seja um esforço para integrar meus pró- Captar o mundo na sua mobilidade: precisamente por-
prios esforços aos mais vastos impulsos do movimento humano. que é contraditório é que o mundo é instável, não-definitivo,'
A cultura é o que pode permitir essa integração a conjun- mutável. Nossa situação, nosso modo de vida, o que parece
tos; e esses conjuntos podem ser colocados como tais a não ser "natural" e, portanto, imutável; vamos ao exemplo mais cruel,
pela c~ltura? Passar de algumas pessoas que conhecemos e que a guerra e o caráter inevitável das guerras: na verdade, isso é
lamamos à idéia abstrata de humanidade - abstrata ea mais simplesmente familiar, isso sempre foi assim, a primeira reação
viva, a mais positiva que existe -, quando a cultura nos auxi- é a de pensar que isso é evidente. A cultura da "minha" escola
lia suficientemente nisso. Uma cultura que faça da minha par- vai desvendar o caráter "insólito... provisório ... histórico" da
ticipação na humanidade não simplesmente um fato a ser realidade e, assim, a cultura poderá nos revelar "o prazer de
aceito, mas uma tarefa a ser promovida, e qae chegue mesmo gozar das possibilidades de renovações."
a dizer que eu sou essa participação: "Um homem nunca está Duas afirmações fundamentais, pensando, portanto,
só; um homem é todas as relações; sua nobreza é a nobreza mais particularmente na guerra: "É intolerável... é preciso que
dessas relações'',2 isso acabe" e "tem de haver uma saída". Essas duas afirmações
Assim, portanto, minha liberdade poderia não se definir se confortam, na medida em que outra vida, outro modo de
por separação das liberdades dos outros e ainda menos por vida parecem possíveis e na medida em que· essa vida, esse
oposição: o que eu posso de maneira válida me propor realizar modo de vida não serão mais suportáveis.
não encontrarei apenas, essencialmente na minha consciência É admitir não somente que o mundo dá oportunidade à
solitária, mas também na minha relação com tarefas e esperan- nossa intervenção - não está fora da nossa esfera de controle

198 199
(o que já afirmei em relação à cultura em geral) - mas tam- [sejam] contemporâneas", não significa, em absoluto, negação
bém que o mundo traz em si as forças capazes de fazê-Ia pro- da história, imobilidade. Significa isto sim que se pode superar
gredir, que já o fizeram progredir, portanto, que podemos as aparências caóticas captando ao mesmo tempo a parcela de
confiar nele para prolongar esse movimento. Acredito profun- mobilidade das formas sociais e o modo como elas se ligam
damente que essa é a luta dos mais explorados, dos mais des- umas às outras. Nosso mundo parece justificado e não-arbitrá-
providos, de todos aqueles que, caso não lutassem mais, cai- rio, ele constitui portanto um alicerce confiável para nossos
riam muito em breve novamente em estado de escravidão. esforços rumo ao mundo de amanhã.
Hoje, esses explorados são os que passam fome nos países Não existe escolha, de modo algum, entre uma ascensão
onde há fome - e também nos demais. direta, irresistível, à qual bastaria se entregar, e o caos. Gosto
deste texto pedagógico, cujo conteúdo não ficou obsoleto: na
Progresso classe, "a gente fica sensível, desamparado, pouco importa; in-
seguro, azar seu, o futuro em formação, cheio de amor e de
A maior alegria cultural é sentir-se participante de um clareza"." Zola, cuja simplicidade os belos espíritos reprova-
movimento de autoprogresso, do progresso da sua comuni- vam, diz no entanto: "Cada progresso teve que ser conquis-
dade, do progresso do mundo. Essa é também a a pedra de toque
tado por séculos de luta. Cada passo à frente da humanidade
da cultura própria da "minha" escola, ou melhor, das culturas,
exigiu torrentes de sangue e de lágrimas", mas continua:
pois esse progresso pode ser concebido e promovido de muitas
"Cremo-nos vencidos e muito caminhamos, encontramo-nos
maneiras distintas.
perto da meta"?
Sem dúvida, é necessário que a cultura consiga uma pro-
Quando na escola primária jacques Duelos vê "os heróis
fundida.de capaz de atingir encadeamentos que, por isso mesmo,
caindo finalmente sob os golpes das potências do mal, mas
façam sentido.
deixando atrás deles um rastro de luz". 8
Por um lado, no plano diretamente cultural:
A cultura da "minha" escola visa despertar e fortalecer
nos alunos a alegria de participar do progresso. Há necessidade
Como eu aprendi na escola, os gregos da Antiguidade, e
mais particularmente Pitágoras e Eudides, já possuíam o co- da cultura para fazer os jovens compreenderem que eles são
nhecimento que eu acreditava estar descobrindo. Mas isso não chamados a prolongar um movimento preexistente do real e
diminuiu o meu zelo, pelo contrário. 4 que oferece um lastro à sua ação. Não se trata de reassegurar,
mas de assegurar a cultura, para ficar sabendo que, no passado,
Unir-se a uma cultura que nos supera no tempo, que tem a vida dos homens, a marcha do mundo não registrou so-
origem numa época muito anterior à nossa, que perdurará de- mente fracassos, mas também lutas e avanços: através de um
pois de nós, logo, nos prolongará - e extrair alegria disso. melhor conhecimento da história, eles saberão que "nos tem-
Por outro lado, nas instituições "há continuidade ... das pos mais difíceis, a justiça e mesmo a liberdade nunca deixaram
comunidades da Idade Média ao regime dos sindicatos e dos de ter defensores"."
partidos'l.? O fato de existirem "constantes da civilização", e E, no presente, fazer os jovens compreenderem que sua
mesmo que num certo sentido "as formas de ontem e de hoje época não é pior que as outras, masque está repleta de possibi-

200 201
lidades, de promessas; seus pais, a geração anterior, não fez afetivo; ela é, no sentido mais elevado do termo, poética:
tudo, nem tudo conseguiu, e é por isso que sua tarefa não é "Neste novo que nos é trazido pelo poeta, há uma abertura
fácil nem impossível. para o futuro que é irredutível".J2
A cultura, para pensar que o que obtivemos marca as
primeiras etapas -- devendo-se prolongá-Ias: Fatalidade dos cataclismos?

Outros que virão depois de nós Todas as evocações do progresso, da alegria do progresso
Mais pacientes, mais tenazes ... chocam-se, em nossos dias, com um obstáculo fundamental: o
Eles terão como apoio imenso desenvolvimento dos conhecimentos científicos e das
O canto que foi cantado realizações técnicas não proporcionou à condição humana um
Quando foi a nossa vez.
aperfeiçoamento equivalente e sim, muitas vezes, uma regres-
Sei que tudo à minha volta é vontade
são, chegando à barbárie e, sem parar, à ameaça das grandes
D·e Ir mais. 1onge, dee vi . 10
viver mais.
instabilidades.
Sozinho, contando somente com minhas próprias forças, Resta questionar as condições nas quais esse desenvolvi-
eu ficaria desesperado: necessito da cultura porque necessito mento científico e técnico foi efetuado. Walter Benjamin se
incessantemente de razões para ter confiança. teria equivocado ao sustentar que, tomando como motor o
"Minha" escola s6 existe se houver progresso possível e, lucro, chegou-se muito menos a uma valorização do que a
portanto, já real da humanidade. Se, depois de séculos e sécu- uma exploração do mundo que converge para a exploração do
los, os homens nada fizeram de válido, que esperança racional homem?
de aperfeiçoamento pode subsistir? As coisas não podem surgir Além do domínio da natureza, o problema consiste em
bruscamente do nada. O essencial do materialismo dialético que seja elaborado o "domínio da relação entre a natureza e a
talvez seja a presença e a ação .do que está para ser construido humanidade",13 E Walter Benjamin não pensa que essa infle-
no seio do que existe: "Não chamamos comunismo a um es- xão possa ser conquistada senão às custas de uma "interrupção
tado que deve ser criado nem a um ideal pelo qual a realidade revolucionária" .
deveria ser regida, mas ao movimento real que abole o estado O sentimento do progresso se encontra na ponta da re-
atual".u Por certo, há recuos e perdas catastróficas, No en- flexão política, e quando um pai olha para o filho recém-nas-
tanto, não me conformo com aqueles que dizem que o esforço cido, tão desprotegido, ele "pensa que aquela criança terá uma
rumo ao progresso é belo por si s6. Assim, a estrada e o trajeto vida melhor, mais justa que a sua. É uma esperança, é um
seriam mais preciosos que o ponto de chegada. Seria necessário compromisso" .14
afirmar, face à hist6ria, um "balanço globalmente positivo"? A escola pode assumir um âmbito progressista, a alegria
A confiança no futuro é a junção de provas da razão e de de não ficar emparedada na ordem estabelecida, na desordem
algo como que uma crença, visto que o futuro 'não pode ser estabelecida, Eu diria, quase sem querer fazer política, que
mostrado, e menos ainda demonstrado. Tal crença se fortalece basta estender o nível de exigências até não mais aceitar a con-
na medida em que se reforça a unidade entre o racional e o tradição entre as palavras e as coisas, entre as invocações à

202 203
democracia e a pertinência dos fatos: "Fraternidade, mas a luta
está em toda parte; igualdade, mas todas as desproporções vão
se ampliando; liberdade, mas os fracos são submetidos a todos
os jogos da força"Y Ao incitar a transformação dessas fórmulas
em realidade, a escola procede do mesmo modo que quando
leva até o fim a explicação de um texto, ou quando extrai
todas as conseqüências do enunciado de um problema e con-
duz às alegrias mais dolorosas e mais fecundas.

NOTAS

1. Brecht, Petit organon.


2. Guehenno, Journal des années noires, 1947, P: 331.
3. Brecht, Écrits sur le tbéãtre, I, p. 295.
4. W. Heinsenberg, in Hilaire Cuny, Savants du monde entier, 1966.
5. P. Emrnanuel, Qui est cet homme? Autobiographie, 1947.
6. Manuel généra/, 1912, citado em OzoufNous, Les Mattres decole,
1967.
7. Émile Zola, Writé, L. IV; 1, 1903.
8. Jacques Duelos, Mémoires, I, p. 30, 1968.
9. Augustin Thierry, Lettres sur l'histoire de France, Carta I, 1827.
10. Guillevic, Spbêre, 1977.
11. Karl Marx, ldéologie allemande, I, 1, 1846.
12. Butor, Entretien avec Georges Charbonnier, 1967.
13. W.Benjamin, Sem unique: Planetarium, 1928.
14. Paul Nizan, Antoine Bloyé, 1933, p. 168.
15. Jean jaures, Discours, 12 de fevereiro de 1895.

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