Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Retocolite: abordagem
psicanalítica de fenômenos
somáticos
Denise Aizemberg Steinwurz1
Resumo: Este trabalho aborda os fenômenos somáticos a partir de uma visão psica-
nalítica, baseando-se nos conceitos da Escola de Psicossomática de Paris e da teoria de
D. W. Winnicott. A configuração psíquica dos pacientes psicossomáticos caracteriza-se
pela precariedade do processo de simbolização e da constituição do narcisismo primá-
rio. Esses fenômenos podem ser considerados como uma modalidade de descarga de
angústias que não podem ser pensadas e que são provenientes de experiências traumá-
ticas sofridas em estágios precoces, decorrentes de uma prejudicada relação mãe-bebê.
Para ilustrar essas questões, são apresentadas vinhetas clínicas de dois pacientes, um
com retocolite e outro com doença de Crohn.
Psicanálise v. 18 nº 1, 2016 | 29
Doença de Crohn e Retocolite: abordagem psicanalítica de fenômenos somáticos
Introdução
30 | Psicanálise v. 18 nº 1, 2016
Denise Aizemberg Steinwurz
Psicanálise v. 18 nº 1, 2016 | 31
Doença de Crohn e Retocolite: abordagem psicanalítica de fenômenos somáticos
Regressão somática
Desligamento psicossomático
32 | Psicanálise v. 18 nº 1, 2016
Denise Aizemberg Steinwurz
sente deprimido, mas também não se sente exatamente bem. Ele vive em um
mundo de conformidade e faz o que tem que fazer. Seu pensamento é concreto e
restringe-se ao presente. Seu discurso é desprovido de uma adequada modulação
afetiva e das fantasias que, em geral, sustentam o pensamento.
Quando em tratamento, a relação estabelecida por este paciente e seu psica-
nalista é uma relação funcional, como se fosse uma relação médica clássica. Não
é incomum muitos pacientes que recebo – principalmente os que vieram indica-
dos por seus médicos – chegarem ao meu consultório com seus exames clínicos
e de imagem (radiografias e colonoscopias, por exemplo) mesmo que saibam
que se trata de uma entrevista psicológica. Comumente, o paciente não consegue
associar livremente ou fazer uma reflexão mais profunda sobre si mesmo; ele
busca, no analista, receitas e instruções de ordem prática.
O que Smadja (2005) observa é que esse tipo de paciente tem uma concepção
do mundo pela qual imagina que o outro é igual a ele. Seu estado psíquico parece
o resultado de um lento processo de apagamento das produções psíquicas que
organizam sua singularidade. Quando acontece algo que daria um matiz mais
intenso ou que teria um caráter traumático, imediatamente um agravamento de
sua enfermidade ocupa o lugar do que poderia ser uma dramatização psíquica.
Smadja (2005) alerta que as somatizações desses pacientes são malignas, gra-
ves, evolutivas e podem levar à morte. Nos processos de regressão somática,
a aparição e o desenvolvimento das somatizações são imediatos e rápidos. No
desligamento, ao contrário, elas se desenvolvem progressivamente e, em um pri-
meiro momento, de maneira silenciosa. Um exemplo é a doença de Crohn.
O desligamento psicossomático caracteriza-se por ser um processo de longa
duração. Com uma estrutura psicossomática precária, os sujeitos têm poucos
recursos para lidar com estados desorganizadores. Logo, quando uma doença
se instala e se cronifica, ela pode conduzir a uma incapacidade para a vida e até
mesmo à morte.
Autores da Escola de Psicossomática de Paris propõem a noção de um espec-
tro psicossomático, que ilustra metaforicamente uma variedade de organizações
psicossomáticas. Essas organizações diferem pelo valor de seu sistema defensi-
vo, pela profundidade de seu nível evolutivo e pela quantidade e qualidade de
suas representações mentais. Em um extremo do espectro, figuram as organiza-
ções psicossomáticas mais emaranhadas na expressão somática; no outro extremo,
figuram as organizações psicossomáticas próximas às organizações neuróticas
(SMADJA, 2009b).
Tal sistema é colocado em movimento pela pulsão sexual e pela pulsão de
morte; então, seu eixo será percorrido tanto na direção evolutiva quanto na re-
Psicanálise v. 18 nº 1, 2016 | 33
Doença de Crohn e Retocolite: abordagem psicanalítica de fenômenos somáticos
34 | Psicanálise v. 18 nº 1, 2016
Denise Aizemberg Steinwurz
Para Winnicott (1988), a psique não é uma estrutura pré-existente e sim algo
que vai se constituindo a partir da elaboração imaginativa dos elementos, dos
sentimentos e das funções somáticas. Essa elaboração se faz a partir da capa-
cidade materna de exercer funções primordiais como o holding, o handling e a
apresentação de objetos.
Com o desenvolvimento maturacional, a necessidade de um meio ambiente
perfeito, que inicialmente é absoluta, torna-se relativa; se a mãe é suficientemen-
te boa, o bebê se torna capaz de compensar suas deficiências através da ativida-
de mental. A compreensão do bebê livra a mãe da necessidade de ser perfeita,
embora ela, normalmente, tente manter o mundo do bebê tão simples quanto
possível (WINNICOTT, 1949).
Um ambiente inadequado, ou uma mãe fora do estado de preocupação ma-
terna primária, descrita por Winnicott (1956), são sentidos como uma invasão,
à qual o psicossoma do bebê precisa reagir; essa reação perturba a continuidade
de existência do bebê.
Alguns tipos de fracasso materno, especialmente um comportamento irregu-
lar, produzem uma hiperatividade do funcionamento mental. Há um crescimen-
to excessivo da função mental como reação a uma maternagem inconstante, e
o desenvolvimento de uma oposição entre a mente e o psicossoma. Em reação
a esse fracasso ambiental materno, o pensamento do bebê começa a controlar e
organizar os cuidados ao psicossoma, ao passo que, na saúde, essa é uma função
do ambiente. Quando há saúde, a mente não usurpa a função do meio ambiente,
mas sim permite que ocorra a compreensão das falhas da mãe.
O resultado mais comum de um precário cuidado materno tantalizante nos
estágios iniciais é que o funcionamento mental torna-se uma coisa em si, passan-
do a existir por si mesmo, substituindo a mãe boa e tornando-a desnecessária. A
psique do bebê se deixa atrair por essa mente, afastando-se do relacionamento
íntimo que originalmente mantinha com o soma. Disto resulta uma mente-psi-
que que é um fenômeno patológico (WINNICOTT, 1949).
Assim, estão dadas as condições para uma doença psicossomática, que se ca-
racteriza por uma dissociação entre psique e soma, impedindo que o sentimento
de self se desenvolva e que o indivíduo perceba a relação entre seu sintoma físico
e seu psiquismo. Em outras palavras, o paciente portador de uma doença psicos-
somática entende algo sobre si apenas no plano intelectual. A solução é dar-lhe
tempo para que se recupere da dissociação através de um trabalho com o psica-
nalista, a fim de que possa acessar a experiência traumática através da regressão
nas sessões analíticas, e alcançar uma experiência integradora pela primeira vez.
Psicanálise v. 18 nº 1, 2016 | 35
Doença de Crohn e Retocolite: abordagem psicanalítica de fenômenos somáticos
A função do psicanalista
Para este autor, a clínica confirma a ideia de que toda interrupção ou defici-
ência desta fonte de investimento trará graves dificuldades à criança no desen-
volvimento de sua vida pulsional e poderá criar as condições para a formação de
organizações narcisistas na idade adulta.
No setting psicanalítico, o analista criará condições – explica Smadja (2009a)
– que permitam ao paciente percorrer com ele o caminho inverso àquele que o
levou a canalizar toda a sua energia pulsional para as somatizações. Isso significa
que o trabalho analítico deve permitir a emergência de um novo espaço de re-
36 | Psicanálise v. 18 nº 1, 2016
Denise Aizemberg Steinwurz
presentância psíquica para o conflito psíquico. Por sua postura, o analista ofere-
cer-se-á ao paciente para um processo de objetalização, uma inovação psíquica.
Ele exercerá uma função de potencialização do processo auto-organizador em
seu paciente.
Esse trabalho analítico, em sua processualidade, foi especificado por Marty
em uma fórmula que se tornou clássica: da função materna à psicanálise. Ela indica
um trajeto de uma conduta materna a uma conduta psicanalítica. Indica, porém,
uma direção: a que parte de uma conduta materna e se dirige para um objetivo,
aquele de uma percepção psicanalítica clássica do paciente. Esta direção, na prá-
tica da interpretação, repousa em uma concepção da evolução. Para Marty (cita-
do por SMADJA, 2009a), o psicanalista psicossomatista ajudará seu paciente a
refazer o caminho perdido no momento da desorganização psíquica e a retomar
seu funcionamento psíquico habitual. É o que Marty denomina de reorganização
psicossomática.
Dois pacientes de minha clínica nos ajudarão a ver como estes fenômenos se
dão: Rafael, que tem retocolite ulcerativa, e Felipe, que tem doença de Crohn.
A doença de Crohn é uma doença inflamatória crônica do trato gastrointes-
tinal. Ela pode afetar qualquer parte do tubo digestivo e, habitualmente, causa
diarreia, cólica abdominal, febre e, às vezes, perda de sangue e muco nas fezes.
Felipe, um adulto jovem portador de doença de Crohn, chegou para análise
depois de ter passado por uma crise da doença. Os sintomas de sangramento,
diarreia, fortes dores abdominais e perda do apetite culminaram em um enorme
emagrecimento subsequente. Até chegar ao diagnóstico de doença de Crohn,
Felipe passou por um processo difícil e penoso, pois foi internado várias vezes
e realizou exames desagradáveis e dolorosos. Em uma de suas internações, teve
que fazer uma cirurgia no intestino e esteve ameaçado, inicialmente, com a pos-
sibilidade de ter AIDS.
Felipe é solteiro. Mora com seus pais, sua irmã e seu sobrinho. Ele manifestou
os sintomas da doença aos 26 anos pela primeira vez após duas grandes perdas:
a saída de casa de seu irmão para casar-se e a morte de seu cachorro de 14 anos.
Antes mesmo de ter a doença de Crohn, Felipe sempre reagiu com manifesta-
ções somáticas frente às separações. Sempre sentia um mal-estar e tinha diarreia
como primeira reação à notícia da perda de um parente ou amigo próximo.
A primeira sessão de Felipe elucida o profundo sentimento de desamparo vi-
vido em suas internações, mostrando que necessitava uma mãe-analista capaz de
Psicanálise v. 18 nº 1, 2016 | 37
Doença de Crohn e Retocolite: abordagem psicanalítica de fenômenos somáticos
conter suas angústias. Além disso, essa sessão reflete seu pensamento operatório
e seu investimento narcísico no corpo.
Felipe entra, senta na poltrona e fica quieto, como se esperasse algum incen-
tivo de minha parte para começar a falar.
D – Fale-me um pouco sobre você...
F – Foi mais ou menos no final de 2005. Eu estava com uma vida profissional bem corri-
da... Eu sou auxiliar de enfermagem. Em dezembro, o meu irmão casou, só que eu nunca con-
segui assimilar a separação do meu irmão, da família. Quando ele casou, foi como se estivessem
me tirando ele, eu perdendo um irmão, e não ganhando uma irmã, no caso a minha cunhada.
Em janeiro de 2006, morreu um dos meus cães mais velhos, com 14 anos... eu amo muito
animais... Então, para mim, foi como se fosse a perda de uma pessoa. Eu não soube assimilar o
que estava acontecendo, e desencadeou no sangramento, que eu comecei no dia 6 de janeiro. Falei
com a minha mãe, e ela falou: Vamos procurar um médico no hospital. Eu falei: não!, pois eu
estava há pouco tempo no serviço; não queria parar e tinha medo também. Geralmente, você
tem um câncer, uma coisa mais séria. Eu não queria parar de trabalhar para ir no médico. Eu
falei: Não, eu vou conseguir superar sozinho, e continuei trabalhando. Fui perdendo peso muito
rápido; as roupas vão ficando mais largas. Eu comecei até a usar duas calças, para disfarçar.
Só que chegou em um ponto que não dava. Começou a me dar queda de pressão, por causa
das cólicas muito fortes. O médico da perícia foi fazer o exame e ele pediu para todos retirarem
a roupa. Quando ele me viu, ele falou: Tem alguma coisa errada com essa sua magreza; isso
não é normal!. Falei que eu estava sentindo muita dor do lado direito. Quando ele apalpou,
apertou mais forte na área que ele estava desconfiando, e eu gritei, porque estava muito dolorido,
a pele sensível, não podia nem tocar na barriga! Ele me afastou do serviço imediatamente e
disse: Olha, você está com Retocolite ou Crohn. Você procura direitinho e faça exames, vê se
confirma o diagnóstico, mas eu vou te afastar agora. Aí, começou a correria, porque eu estava
na carência do convênio, e não tinha como fazer a colonoscopia, que é o exame mais detalhado
nesse caso. Aí eu comecei a correr atrás... Fui para o Hospital São Paulo, eles me internaram;
como eu não morava na região, ficava quatro horas quando eu ia, me davam alta. O médico
me orientou a esperar a carência, procurar um hospital do convênio, para ver o que o exame se
constatava e, então, voltar lá. Achei estranho, né? É uma doença que eu nunca tinha escutado
falar, nem de parente próximo, amigo, nada. Aí, foi passando... no Hospital São Paulo, não
consegui. Aí me encaminharam para o Emílio Ribas, que lá é doenças e moléstias infecciosas.
Me disseram que a senhora é especialista em Doença de Crohn, daí eu vim aqui.
D – Eu entendo que você se sente muito desamparado, sozinho, enfrentando muita dor e
gostaria de encontrar com quem compartilhar todas essas vivências assustadoras e desconheci-
das.
F – Eu fui para o Emílio Ribas. Quando eu dei entrada lá, eu achei que eu já não andava
mais, só com auxílio. Eu estava muito fraco, fraco mesmo. Eu nunca tinha passado uma situação
38 | Psicanálise v. 18 nº 1, 2016
Denise Aizemberg Steinwurz
daquelas, entrar na sala com várias pessoas... tinha HIV, tinha paciente com câncer... a gente
olha e a gente não vê a diferença... Então, eu olhei para todos e pensei: Qual a diferença de mim
e deles? É tudo igual! Aí eu conheci uma senhora lá que me chamou muito atenção. Ela tinha
HIV há 16 anos e ficava brincando com o pessoal, que levava uma vida normal, trabalhava,
tinha filhos... Eu falei: Meu Deus, é possível viver com uma doença crônica e viver, né?.
D – Então, você sentiu que essa senhora lhe deu alguma esperança, e você se sentiu melhor.
F – Fui fazer coleta no sangue. Quando a médica ia conversar comigo para ver o que estava
acontecendo, eu me senti bem constrangido, pois os médicos usam máscara. Eu falei: Acho que
o que eu devo ter deve ser muito grave! Porque eu nunca tinha passado lá! Precisava de más-
cara! Aí depois, veio o lado profissional. Eu falei: Não, ela não quer me contaminar e não se
contaminar; é só um cuidado que ela está tendo. Nada contra a minha pessoa. Aí comecei a
digerir de maneira positiva o que estava acontecendo.
D – Talvez aqui também você tenha pensado se eu posso ouvir você sem ficar contaminada,
sem entrar em pânico junto com você.
F – Eles me internaram. Aí eu falei: É aqui mesmo que eu vou ficar, até eles descobrirem
o que eu tenho. Aí, como a gente da área da saúde tem curiosidade sobre os outros doentes, fui
no corredor andar um pouco e olhar nos quartos de isolamento, pela janelinha. O melhor pa-
ciente só mexeu o olho mesmo, estava bem em estado terminal. Aí eu olhava e, ao mesmo tempo
ficava em oração, pedindo para Deus, sabe? Dar força para eles e para mim porque eu não
sabia o que me esperava pela frente. Eu não sabia o que eu tinha. Eu fui para casa e retornei
para buscar o exame de sangue. Meu tio foi comigo, porque a minha mãe estava trabalhando.
Quando eu estava na fila para pegar meu exame, como eu estava muito fraco, eu desmaiei.
D – Muito fraco ou muito assustado...
F – Meu tio, ao invés de ficar na fila, ficou lá no estacionamento. Ele esqueceu que eu não
estava aguentando ficar de pé. Eu fiquei na fila. Demorou muito para ver o guichê, aí que eu
desmaiei. Aí foi só correria, né? Porque eu não estava andando... me colocaram na cadeira
de rodas, o segurança me buscou. Quando eu menos esperei, estava lá eu de novo... lá dentro.
Nisso, a minha mãe chegou, e eu comecei a chorar; eu estava nervoso e não sabia o que estava
acontecendo. Eu melhorei, me recuperei, tomei o soro e fui para casa novamente. Minha mãe
trabalha no Servidor Estadual, e estava tentando uma internação para mim lá. Aí começou a
correria: eu ia para o Hospital do Servidor pelo Pronto Socorro, passava pela triagem, fazia
exame de toque... Eu estava muito dolorido. Cada vez que eu ia, voltava para casa bem ma-
chucado, porque já estava com o intestino inflamado. O médico sempre fazia exame de toque.
Eu ia para casa, e nada de resolver. Eu não tinha direito ao hospital, porque era maior de 21
anos e não estava fazendo universidade no momento...
D – Acho que aqui também nós temos alguma coisa importante a descobrir sobre você, mas
você me avisa que o contato emocional é muito dolorido e que os outros profissionais têm sido
pouco respeitosos e pouco acolhedores com a sua dor.
Psicanálise v. 18 nº 1, 2016 | 39
Doença de Crohn e Retocolite: abordagem psicanalítica de fenômenos somáticos
40 | Psicanálise v. 18 nº 1, 2016
Denise Aizemberg Steinwurz
Psicanálise v. 18 nº 1, 2016 | 41
Doença de Crohn e Retocolite: abordagem psicanalítica de fenômenos somáticos
R – Por exemplo, vai ter o casamento da minha filha, e eu vou entrar na igreja com ela; já
estou me preparando... porque fico muito emocionado, sensível, não quero chorar... No meu
casamento, há 30 anos, eu saí chorando.
D – O que pensa disso?
R – Ah... quero tentar evitar, para melhorar do meu problema. E eu adoro esse genro, é
tudo de bom! Vai ser muito bom para minha filha.
D – Qualquer emoção você sente que te abala muito...
R – É. Falaram que é bom fazer exercício, então eu comprei uma esteira e, um dia sim,
outro não eu faço, mas não gosto; acho desagradável [faz cara de que é ruim]. Já fiz natação
antes, mas não gostava.
Assim como Felipe, Rafael apresentava um pensamento operatório. A tenta-
tiva de controle de Rafael parecia ser uma forma de não entrar em contato com
suas emoções, pois, assim como Felipe, também para Rafael estas seriam vividas
como uma força disruptiva, que desorganizaria o que ele tentava rigidamente
controlar.
No contato comigo, pudemos perceber a impossibilidade de os dois de terem
qualquer vida imaginativa. A ajuda do analista nestes casos em que os processos
de simbolização e da constituição do narcisismo primário encontram-se prejudi-
cados é extremamente necessária no sentido de o analista ajudar na construção
da história do paciente. Dando um significado emocional à dor física e ao sofri-
mento do paciente, ele pode ir adquirindo um mínimo de simbolização.
Nos pacientes que apresentam um processo de somatização do tipo desliga-
mento psicossomático, conforme descrito neste trabalho, as matrizes traumáticas são
decorrentes de uma relação mãe-bebê muito precária que deixam suas marcas,
tais como vimos a partir das ideias de Winnicott.
Considerações finais
Em muitos sujeitos como Felipe e como Rafael, aquilo que é dor física, afec-
ção orgânica, doença no corpo, funcionam como a única via possível de descarga
de intensidades que não encontram, em um aparato com menos recursos psíqui-
cos, outra possibilidade de processamento.
Será fundamentalmente através da análise que a capacidade simbólica quase
inexistente poderá ser construída, através da colocação em palavras de cada afeto
não sentido e, portanto, não assimilado mentalmente. Na medida em que o ana-
lista for construindo com este sujeito – cuja dor no corpo grita – novas ligações
psíquicas, aquilo que estava inicialmente precário pode ir ganhando novo status:
onde houve a falta de uma sustentação da mãe como primeiro objeto, o analista
42 | Psicanálise v. 18 nº 1, 2016
Denise Aizemberg Steinwurz
apresenta-se como um novo objeto com quem o paciente poderá – talvez pela
primeira vez – ser escutado naquilo que, de fato, o corpo denuncia.
É interessante notar que alguém que está acometido por uma doença física
recebe atenção e cuidado maiores de todo o entorno, da equipe médica e dos
familiares. De alguma forma, é como se ele clamasse novamente por uma mater-
nagem que não lhe foi dada de forma suficientemente boa, em uma época muito
precoce de sua vida. A pessoa doente parece mesmo um bebê, em especial em
patologias como a doença de Crohn e a retocolite, nas quais o trato gastrointes-
tinal, assim como em um bebê, é o cerne de sua preocupação, tornando-se palco
de suas dores. É como se esse sujeito voltasse a ser um bebê que está vivendo
o alimentar-se, o ter cólicas abdominais, o evacuar, como aquilo que tem mais
importância para a sua sobrevivência.
Será no percorrer do caminho da análise, um processo que é longo e cuida-
doso, que esta nova dupla poderá ir dando conta das intensas angústias que, de
outra forma, parecem irromper no psiquismo, como que arrastando consigo a
capacidade de pensar as dores emocionais. O que até então transbordaria para
os órgãos do corpo vai logrando outras vias de se fazer ver, agora com possibi-
lidade de se fazer representar.
Abstract: This paper discusses the somatic phenomena from a psychoanalytic view, ba-
sed on the concepts of Psychosomatic School of Paris and D. W. Winnicott theory. The
psychic configuration of psychosomatic patients is characterized by the precariousness
of symbolization process and the constitution of primary narcissism. These phenome-
na can be considered as a discharge mode of anxiety that cannot be designed, and come
from traumatic experiences in early stages, the result of an injured mother-baby. To
illustrate these issues are presented clinical vignettes from two patients, one with colitis
and another with Crohn’s disease.
Referências
AISENSTEIN, M. The indissociable unity of psyche and soma: a view from the
Paris Psychosomatic School. Internacional Journal of Psychoanalysis, v. 87,
p. 667-680, 2006.
Psicanálise v. 18 nº 1, 2016 | 43
Doença de Crohn e Retocolite: abordagem psicanalítica de fenômenos somáticos
44 | Psicanálise v. 18 nº 1, 2016