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A “nuvem” de Sebastião Nery

Hélio Duque

Existem livros que falam como se tivessem boca. Há séculos, o padre


Antonio Vieira proclamava que “o livro é um mudo que fala; um morto que vive.”
Daí o seu valor na formação da sociedade humana, sendo companheiro notável e
leal. No Império Romano, Cícero sentenciou: “Uma casa sem livros é um corpo sem
alma.” Séculos depois, no renascimento da Europa, Erasmo de Rotterdam afirmava:
“Sem o amor dos livros, o homem mais rico é pobre.” O livro tem a força de
amedrontar o poder absoluto em todos os tempos, sempre desejoso de petrificar o
espírito libertário de um povo.

Fiel ao princípio para quem o que a mente do homem pode conceber,


sua mão pode executar o brasileiro Sebastião Nery, dos maiores jornalistas
brasileiros, acaba de lançar a sua notável autobiografia. É livro que fala como se
tivesse boca. De indiscutível valor literário, é leitura prazerosa nas suas 600
páginas. Ali, em 38 capítulos, a vida vivida, testemunhada em rica experiência de
corpo presente, no Brasil e pelo mundo afora, retrata um tempo de travessia
marcante, onde audácia, talento, competência, decência e coragem física e moral
marcaram o seu itinerário.

A “Nuvem – o que ficou do que passou”, lançado pela Geração


Editorial, de São Paulo, retrata 50 anos de História do Brasil. Acaba de ter a
segunda edição, ante o êxito editorial. Na sua apresentação, o escritor Paulo
Schmidt destaca: “Todo grande personagem é inspirado por uma entidade que o
orienta, auxilia ou abandona. Uma nuvem que, por sinal fez chover na sua horta,
tornando—o um dos mais respeitados jornalistas brasileiros e cronista-mor da nossa
época, além de professor, advogado, político, e, sobretudo, homem de letras, na
acepção mais ampla do termo. Com o presente livro, que acrescentou aos seus 15
anteriores, Sebastião Nery também merece agora figurar entre os memorialistas ao
calibre de Graciliano Ramos e de Pedro Nava.”

É livro imperdível para quem deseja conhecer e se atualizar sobre a


árdua, difícil e desafiadora missão de lutar pela construção de um Brasil moderno.
Onde o atraso oligárquico de uma sociedade feudalizada, exigia ser confrontada e
com isso arrostando a intolerância dos poderosos e auto-intitulados donos do poder.
Nele está retratado, não apenas no jornalismo, mas ao longo da sua vida
profissional, o que significa, coma afirma: os perigos de caminhar à frente, já que é
sob aos pés dos vanguardeiros que as borboletas levantam vôo. Nosso amigo
comum Joaci Góes, ex-deputado Federal e que alia a competência de grande
empresário baiano a de intelectual militante é taxativo: “Saio da leitura do livro de
Sebastião Nery enriquecido com a multiplicidade das experiências e das vidas que
aborda, do Brasil e do mundo. Não sei de outro brasileiro que tenha vivido de modo
tão intenso, imprevisível, emocionante quanto a vida que Nery nos conta nessa obra
ciclópica que instrui e diverte.É a única pessoa que realizou a façanha de se eleger
para postos legislativos por três Estados da Federação: vereador, por Minas, Belo
Horizonte; deputado estadual pela Bahia e deputado federal pelo Rio de Janeiro.”
A arte de viver de Nery demonstra que é o homem que traça o seu
destino. É uma autobiografia diferente, rica em desafios e enfrentamentos com as
iniqüidades usurpadoras do poder, em todos os tempos. E nessas batalhas, em
nome do moral que deve nortear os ocupantes das funções públicas, foi implacável
combatente pelos valores éticos. Colocou a sua inteligência desafiadora de genial
escritor em favor da liberdade e resistência às tiranias. Testemunha ocular da
história, seja no Brasil ou nas várias esquinas do mundo, produziu livros
importantes sobre a redemocratização da Espanha e de Portugal. Em outros, os
equívocos do coletivismo burocrático, muito antes da queda do muro de Berlim,
foram diagnosticados com coerência e maestria.

Em “A Nuvem – e que ficou do que passou”, Sebastião Nery produziu


um livro de memória à altura do seu talento indiscutível. Àqueles brasileiros que
acompanham as suas colunas editadas em vários jornais brasileiros, tem agora a
oportunidade de conhecer uma vida de experiência testemunhais de um tempo. Na
sua missão de adido cultural na Itália, por três anos e na França, por dois, buscou,
com êxito, alargar as relações do Brasil com o mundo da cultura secular daqueles
notáveis países. A ação na diplomaria cultural, integra capítulos enriquecedores e de
enorme valor histórico no seu livro.

Alceu de Amoroso Lima, o saudoso Tristão de Athayde, conceituou que


“o passado não é o que passou. É o que ficou do que passou. “ Fiel a esse
pensamento Sebastião Nery, na pg. 548, afirma: “A história é a crônica do novo
contra o velho. Cristo construiu a mais eterna das instituições aos 30 anos. Maomé,
aos 40, era o guia do seu povo. Buda, aos 29, estava nas montanhas mudando a
cabeça do Oriente. Lênin, aos 30, era o principal criador do partido que ia mudar a
história do século. Napoleão, aos 27, presidia o Diretório e comandava a França.
Bolívar, aos 24, já havia libertado quatro países e voltava herói á Venezuela.
Churchill, aos 40, carregava a Inglaterra na cinza do seu charuto. Mitterrand, aos
29, ajudava Charles de Gaulle a reconstruir a França libertada.”

A universalidade do memorialista, ao expressar a vocação desses


resistentes lutadores pelas causas em que depositavam fé, é referência ao que foi e
o que é a sua vida admirável de notável brasileiro.

Hélio Duque é doutor em Ciências, área econômica, pela Universidade Estadual


Paulista (Unesp). Foi Deputado Federal (1978-1991). É autor de vários livros sobre a
economia brasileira.

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