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, AE SANGUE
& O IRABALHC E O QUE FAZ O MUNDOx
2° Edição
Man. do , o operrio cuia vida e luta se contam heste livro, não e uma figura de .
Nasceu, viveu e morreu em Fernambuco. Ao seu funeral, no dia 15 de agósio de 1969,
compareceram velhos e jovens operários, companheiros das lutas pioneiras da classe
trabalhadora no do século e colegas da oficino em que trabalhou seus (lfimos onos de
vida. Manoel do atravessou värias gerações, semeando sempre com eu testemunho
sementes da dignidade, do solidariedade, da justiga e do amor. Manoel do foi um dos
numerosos militantes operários, conhecidos ou anánimos, que dedicam sug vida do
serviço do promogāo e libertação dos companheiros de trabalho, com inteligência e
coragem. Teve um nome conhecido e respeitado: Manoel do ; mas seu exemplo, nascido
da förga interior, identificao com todos os homens engajados no combate pe. la vitória
dos valóres humanos. Seu festemunho oral, transferide ra èste livro, tem extraordinária
importància histórica, pordue refidelidade, homens e iornados do movimento operário
100 ANOS DE SUOR E SANGUE
100 anos de SUIOr
e sangue
HOMENS E JORNADAS DA LUTA OPERARIA DO NORDESTE
Petrópolis RJ 1971
& EDITORA VOZES LTDA.
Manoel do 6 o autor legitimo déste livro. Escreveu-o com uma vida de 100 anos de trabalho e luta. Com
suor e Sangue. A idéia de publicá-lo nasceu de tinna equipe de trabalhadores, cuja convivéncia e
amizade com Manoel do os tornou depositários de uma mensagem que tinham o direito de guardar para
si — pertencia a täda a classe operária,
a todos os que lutam pela justica e liberdade.
PREFACIO
S. o espírito do Criador desce, o espírito criador, tanto da natureza como do homem, sobe. Daí ser o
trabalho a grande förca criadora. Trabalho inconsciente da natureza física. Trabalho consciente da natureza humana.
Essa criatividade da natureza fisica e da natureza racional so se opera com a cooperação do tempo, pois exige um
esförco paciente e continuado. Ao contrário da criatividade divina, que se exerce independente do tempo e do
espaço, de modo, imediato e gratuito.
Quando lemos, portanto, a história de um ser humano, como esta que neste livro se desenrola, ao longo de um
século contado dia a dia, – não cem anos de solidao mas cem anos de mutirão — defrontamonos com o mais
eloqiiente exemplo do que representa essa mais nobre e mais fecunda das forças criadoras. E quando se trata de
uma criatura humana que labutou, desde os doze anos de idade, para seguir literalmente o preceito biblico, - do
homem que ganha a vida não de graça, mas com o suor da sua fronte — estamos em face de um espetáculo que
nos uma definicăo de vida, mais perfeita, do que nos podem dar tādas as filosofias, e mesmo as teologias.
Até nas reflexães que essa chiatura nos legou, - formuladas por ésse humilde trabalhador manual e
registradas no capitulo final desta obra recoihida e redigida por seus companheiros e amigos — até mesmo,
portanto, em sua sabedoria èsse homem não , apenas um herói andnimo da Iuta pela vida. Foi um verdadeiro
sabio.
Quando dizia aos seus amigos — so trabalho o que homem tem de melhory; ou quando acrescentawa: não
sou pobre. Pobre quem não trabalhax; ou quando explicava aos amigos, na comemoração do centenário:
não estou na rua, não estou no hospital, não estou na casa dos filhos. Vivo do meu trabalho, sou
independente e tenho. 100 anos de vidax, eram ou não da mais auténtica sabedoria essas sentenças de um
centenério que foi a imagem viva do Povo brasileiro, ou melhor, do Povo em si, em sua mais simples e
perfeita formulação P Eram ou não a mais bela formulação do que é um homem livre? Coloco essas
reflexóes, em sua esséncia acima de tudo o que um génio das letras universais Maurice Barrès, exprimiu em
um livro classico da 3. literatura francesa moderna, procurando definir o que era Un homme librey.
E gue caráter de antes quebrar que torcerQuando préso, e um policial Ihe oferedia dinheiro e naturalmente
liberdade para que denunciasse os companheiros, respondeu com uma sobrièdade lapidar de inscrição
romana: Obrigado. Näo aceito. Sou artista, prefiro trabalharx.
Sou artista. . . Quando o liberalismo burgués, no Século XIX, dividiu a sociedade moderna em trés planos
paralelos: os proprietários, os operúrios e os artistas, criava o germe de tödas as opressóes e de revoluções
atuais do século XX. Os proprietários ficaram com o capital; os operários ficaram com o trabalho; os artistas
ficaram com a imaginação. E. como as paralelas sé se encontram,
Eis por que considero èste livro, embora ainda imperfeito em sua redação andnima, com
capítulos excelentes e outros fracos, com repetigöes initeis ou informaçães títeis mas
incompletas, – consideroo como obra da major importància e documento humano e historico de
valor.
Manoel do morreu poucos dias depois de ter completado 100 anos. KEu desejo morrer trabalhandox, dizia sempre.
Tinha àle 92 anos quando entrou no tiltimo emprégo, como mecánico. As suas māos continuaram firmes, a sua
lucidez perfeita, a sua capacidade profissional intactax, diz um de seus biógrafos anánimos desta obra admirável.
Nunca conneci o médox, costumava dizer. KQuando o trabalhador tem. Inédo É que não conhece o seu
valory. Ou entāo: Quando se trata da verdade ou da justica, pode custar a minha vida, eu escandalizo
tudox. KEo trabalho que faz o homemo. (Não teria chegado aos cem anos se fösse o estímulo
permanente que me veio do trabalhox.
Essas e outras máximas humanas désse extraordinário exemplar humano, registradas neste documentario de uma
das mais belas vidas do povo brasileiro e nordestino, no que tem de mais auténtico, farão déste livro uma pedra
humilde mas fundamental da história social de nossa terra.
Oxalá sirva ela também para que o futuro aprenda a ligāo néle contada. Quando se separa a sociedade em
cannadas estanques, em que um Mauá desconnega totalmente um Manoel do , e wiveversa, o resultado
é o que estamos vendo: um mundo entregue à violéncia social, com a espada de Dâmocles de
uma nova guerra universal, ja agora coletivamente suicida para täda a humanidade, pairando de
um fio sóbre nossos ombros.
Será que os homens incorrigíveis? E que sé mesmo à custa do suor e sanguex de heróis andnimoscomo
àste se possa organizar uma sociedade mais livre e mais justa, sempre com a ameaça de recair em
novas opressóes e injusticas?
Ou será possível que o exemplo de um entre muitos Manoáis do. , como àste, possa servir de licão e de
modélo à nossa imperdoãvel imprevidéncia?
ALCEU AMOROSO LIMA
CAPITULO |
HOMEM AOS 12 ANOS
A. preta velha não estava preparada para a humilhagão publica. Sua grande vaidade, a única waidade que
a pobreza lhe permitia, era a de exibir os vultosos quadris, que rebolava habilmente, apesar da idade, quando
atravessava as ruas retas, de poucas casas, daquele povoado que náo crescia. Seriam verdadeiros, dela mesmo, os
quartos que muitas jovens invejaram na velha negraTodos pensavam que sim. E até ela as vézes o admitia, tão
habituada estava as ancas postigas e aos olhares que o escondido enfeite atraia. Só Manoel do , o moleque mais
safado das redondezas, desconfiava de tāo exuberante recheio. Não era. menino de ficar com dividas. E decidiu que
valeria a pena correr o risco de mais uma surra da mãe, em. troca da verdade sãbre os tao admirados quartos. Ele
queria a verdade. Um dia, executou o plano. Ele sabia que, naquele horário, todos os dias a mulher passava por ali,
na rua principal, sempre vestida de branco. E ela apareceu, andar faceiro, enchendo a rua deserta com seus
requebros. Manoel do atacou de surprêsa, com a agi
lidade felina dos seus 10 amos ferventes de curiosidade.
A tiltima ilusão feminima da preta caiu no chão. Arrancadas pelas māos decididas do travésso garðto, as invejadas
ancas ali estavam, humilhadas e humilhantes. O escándalo espalhouse ràpido pelos poucos recantos do vilarejo,
com a mesma velocidade com que a velha. negra corria, agora sem quartos e sem bamboleios, fugindo à vergonha
do escárnio publico.
As duas previsóes de Manoel do confirmaramse: as ancas eram falsas, agora todos Sabiam; e ao chegar
em casa, esperavao a mais feia surra que já apanhara. Mas nem chorou: era o preço da verdade, uma
verdade que, para éle, valia mais do que todas as surras do mundo.
Surra, Eis ai um assunto crn que o menino Manoel do era entendido. Apanhou muitas, na curta infäncia
que terminou aos 12 anos, quando herdou do pai moribundo a responsabilidade de sustentar a familia.
Era o filho mais velho,
Na busca do primeiro emprégo, logo que ficou , seguiu o itinerário de quase todos do lugar: Usina
Salgado, dona dos horizontes verdes de caga que limitavam o pequeno e pobre mundo da gente de
Nossa Senhora do , sede civil do município de Ipojuca,
Assim se homem o menino Manoel do . Homem no trabalho e na revolta, crianga nos Sonhos e no chöro. A
penugem da puberdade ainda não chegara, mas pélos de outra espécie já irritavam Sua cara Sem sorrisos — os
pélos da cana que carregava, dia inteiro, para a esteira.
Foi essa a maior surra de têda, a sua vida. Uma surra que o adulto aos 12 anos. - - - .
Então, corria o ano de 1881, quando o Brasil, com seus 200 estabelecimentos fabris, comegava a sentir,
com mais intensidade, as transformaçöes do processo industrial, que avangava da Europa para o resto
do mundo. No Rio de Janeiro, tipógrafos (1858) e caixeiros (1876) já haviam feito as primeiras greves,
sintomas do despertar da massa trabalhadora como classe. Ao lado das transformaçães técnicas e
econdmicas, que modificavam as regras do jögo da produ, acontecia o amadurecimento social do
proletariado, um amadurecimento lerdo a chegar ao Nordeste, mas manifestandose no Rio de Janeiro,
capital da politica e das idéias do País,
Os horizontes verdes da Usina Salgado eram, para Manoel do , naquele tempo, Os limites do
mundo. Eram a sua verdade. Nesse mundo e messa verdade, carregava cana com o corpo,
ganhando um salário que nem dava para assustar a fome que cercava sua familia. Ele não
Sabia, ainda, que os trabalhadores podiam unirse para fazer greves, Não sabia que o mundo
estava em ebuligão, agitado pela revolução da ciência e das novas idéias Sociais.
Éle nem sequer conbecia Recife, capital do seu Estado, cidade de 95 mil habitantes que ficava
ali, a 60 quilómetros de Nossa Senhora do .
Manoel do era apenas um menino que aprendera a lutar com a sinica arma que a vida Ihe dera:
o trabalho. Para , era a arma mais digna, a mais importante, a única com que poderia vencer. E
trabalhava, de sol a sol, ao lado dos homens, com responsabilidades iguais. Trabalhava com
honestidade e vigor, porque já entāo gostava de ser o melhor.
Era a sua maneira de lutar. Era o seu instrumento de independência e liberdade.
Já náo apanhava surras. O menino travésso transformarase num trabalhador sério, responsável, precoce
Cem Arios — 2