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VIGOTSKI E A ESCOLA ATUAL:

fundamentos teóricos e
implicações pedagógicas

2a edição

Sueli Guadelupe de Lima Mendonça


Stela Miller
organizadoras

junqueira&marin
editores
Coordenação: Prof. Dr. Dinael Marin
Produção: ZEROCRIATIVA
Revisões: Maria Aparecida Boschi Ribeiro
Impressão:Gráfica Viena

Conselho Editorial da Junqueira&Marin:

Profa. Dra. Alda Junqueira Marin


Prof. Dr. Antonio Flavio Barbosa Moreira
Profa. Dra. Dirce Charara Monteiro
Prof. Dr. José Geraldo Silveira Bueno
Profa. Dra. Luciana Maria Giovanni
Profa. Dra. Maria das Mercês Ferreira Sampaio
Profa. Dra. Maria Isabel da Cunha
Prof. Dr. Odair Sass
Profa. Dra. Paula Perin Vicentini
Profa. Dra. Suely Amaral Mello

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

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V741
2.ed.

Vigotski e a escola atual: fundamentos teóricos e implicações pedagógicas /


Sueli Guadelupe de Lima Mendonça, Stela Miller, organizadoras. - 2.ed. revisada. -
Araraquara, SP: Junqueira&Marin; Marília, SP: Cultura Acadêmica, 2010.

Conferências e palestras proferidas em jornadas do Núcleo de Ensino da Faculdade


de Filosofia e Ciências, UNESP, Campus de Marília, a saber: a II Jornada,
realizada de 05 a 06 de agosto de 2003, com o tema: Vygotsky e a escola atual:
implicações no fazer pedagógico, e, a III Jornada, realizada de 19 a 22 de
outubro de 2004, com o tema: A teoria histórico-cultural e a produção do conhecimento.

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-86305-82-5

1. Vigotsky, L. S. (Lev Semenovich), 1896-1934.2. Educação - Filosofia. 3.


Educação - Aspectos sociais. 4. Psicologia educacional. I. Mendonça, Sueli
Guadelupe de Lima. II. Miller, Stela.

10-4005. CDD: 370.1


CDU:37(01)

12.08.10 23.08.10

DIREITOS RESERVADOS

JUNQUEIRA&MARINEDITORES
J.M. Editora e Comercial Ltda.
Rua Voluntários da Pátria, 3238
Jardim Santa Angelina
Fone/Fax: (16) 3336-3671
CEP 14802-205
Araraquara - São Paulo - Brasil

www.junqueiraemarin.com.br

Esta edição recebeu apoio da “Cultura Acadêmica” por meio da Faculdade de Filosofia e Ciências
- UNESP - Campus de Marília.

Proibida a reprodução total ou parcial desta edição, por qualquer meio ou forma, em língua portuguesa
ou qualquer outro idioma, sem a prévia e expressa autorização da editora.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
I ................ Sueli Guadelupe de Lima Mendonça & Stela Miller

PRIMEIRA PARTE:
FUNDAMENTOS DA TEORIA
HISTÓRICO-CULTURAL

FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS MARXISTASDA


OBRAVIGOTSKIANA:AQUESTÃO DACATEGORIADE
ATIVIDADE E ALGUMAS IMPLICAÇÕESPARA
O TRABALHO EDUCATIVO
3 ....................................................... Betty Antunes de Oliveira

ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS QUE


DISTANCIAMAPERSPECTIVASÓCIO-HISTÓRICA
VIGOTSKIANA DO CONSTRUTIVISMO PIAGETIANO
27 ........................................... Sueli Terezinha Ferreira Martins

IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS DA ESCOLA


DE VIGOTSKI: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
49 ............................................................. Lígia Márcia Martins

SEGUNDAPARTE:
IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS
DA ESCOLA DE VIGOTSKI

A MEDIAÇÃO DA PSICOLOGIA
HISTÓRICO-CULTURALNAATIVIDADE DE
PROFESSORES E DO PSICÓLOGO
65 .................................................. Elenita de Ricio Tanamachi
A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA SUBSIDIANDO
A REFLEXÃO DAQUESTÃO CULTURALNA
EDUCAÇÃO ESCOLAR
85 ....................................... José Roberto Boettger Giardinetto

VIGOTSKIE O PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM:


A FORMAÇÃO DE CONCEITOS
123 ........................................... Marilda Gonçalves Dias Facci

EDUCAÇÃO MATEMÁTICAEA
PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA
149 ........................................................................... Adil Poloni

PALAVRAS GRÁVIDAS E NASCIMENTOS DE


SIGNIFICADOS: A LINGUAGEM NA ESCOLA
169....................................................... Dagoberto Buim Arena

AAPROPRIAÇÃO DA ESCRITA COMO


UM INSTRUMENTO CULTURAL COMPLEXO
181 ............................................................. Suely Amaral Mello

CONTRIBUIÇÕES DE VIGOTSKI
PARAAEDUCAÇÃO INFANTIL
193 ............................................................. Suely Amaral Mello
APRESENTAÇÃO

Sueli Guadelupe de Lima Mendonça


Stela Miller

Os textos desta coletânea são artigos


referentes a conferências e palestras proferidas
durante duas jornadas do Núcleo de Ensino da
Faculdade de Filosofia e Ciências — UNESP — Campus
de Marília, a saber, a II Jornada, realizada de 05 a 06
de agosto de 2003, com o tema “Vygotsky (1) e a escola
atual: implicações no fazer pedagógico” e a III Jornada,
realizada de 19 a 22 de outubro de 2004, com o tema
“A teoria histórico-cultural e a produção do conhecimento”.
Esses dois eventos resultaram de um trabalho
coletivo de discussão e organização realizado pelo Grupo
de Pesquisa “Implicações pedagógicas da teoria
histórico-cultural” e pelo Núcleo de Ensino da
Faculdade de Filosofia e Ciências.
Pôr em discussão a teoria histórico-cultural e,
em particular, o pensamento de um de seus principais
representantes, Vigotski, foi uma opção feita pelos
organizadores das referidas jornadas, para
disponibilizar uma discussão aberta ao público a respeito
de uma teoria que vem ampliando o debate acerca de
temas fundamentais na área da psicologia do
desenvolvimento, com consequências importantes para
o encaminhamento dos processos educacionais, em
especial os que se referem à educação escolar.
Embora seja o mais conhecido representante
dessa teoria, Vigotski deve ser compreendido no quadro
mais amplo de suas relações com dois outros teóricos,
Luria e Leontiev, com os quais formava a chamada
“tróica intelectual”, cuja influência foi decisiva para
traçar os rumos da história da psicologia soviética (2).
Juntos,

estudaram desde processos neurofisiológicos até


relações entre o funcionamento intelectual e a

I
cultura da qual os indivíduos fazem parte,
trabalhando muito intensamente não só com
temas de psicologia do desenvolvimento, mas
também com as relações entre linguagem e
pensamento. Com tal extensão teórica, sua obra
traz implicações para as áreas da neurologia,
psiquiatria, educação e linguagem que não
podem, de forma alguma, ser ignoradas. (3)

Os fundamentos marxistas da obra de Vigotski


constituem outro ponto importante a ser considerado
para maior compreensão de sua produção teórica. Na
busca por uma psicologia digna desse nome, dizia
Vigotski, é preciso “construir uma ‘teoria mediadora’
que seja para a psicologia aquilo que o materialismo
histórico é para as ciências sociais. (...) Para Vygotski,
essa elaboração mediadora é a teoria histórico-cultural
do psiquismo.” (Grifos no original.) (4) Pela hipótese
central dessa teoria, “a atividade psíquica
especificamente humana seria a interiorização das
relações sociais sob a forma que essas relações se
revestem dentro de uma cultura dada.” (Grifos no
original). (5)
Este livro está organizado em duas partes. A
PRIMEIRA PARTE focaliza os aspectos mais amplos
da teoria histórico-cultural sob a denominação de
“FUNDAMENTOS DA TEORIA HISTÓRICO
CULTURAL”. Inclui os artigos: “Fundamentos filosóficos
marxistas da obra vigotskiana: a questão da categoria de
atividade e algumas implicações para o trabalho educativo”
de Betty Antunes de Oliveira; “Aspectos teórico
metodológicos que distanciam a perspectiva sócio-histórica
vigotskiana do construtivismo piagetiano”, de Sueli
Terezinha Ferreira Martins e “Implicações Pedagógicas
da Escola de Vigotski: algumas considerações”, de Lígia
Márcia Martins, artigo que faz a transição entre esta e
a SEGUNDA PARTE do livro, que focaliza os aspectos
mais diretamente ligados à reflexão sobre as
implicações pedagógicas da teoria histórico-cultural nas
áreas da docência e do currículo e, sob a denominação
de “IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS DA ESCOLA DE
VIGOTSKI”, inclui os artigos: “A mediação da psicologia

II
histórico-cultural na atividade de professores e do psicólogo”,
de Elenita de Ricio Tanamachi; “A pedagogia histórico
crítica subsidiando a reflexão da questão cultural na
educação escolar”, de José Roberto Boettger Giardinetto;
“Vigotski e o processo ensino-aprendizagem: a formação de
conceitos”, de Marilda Gonçalves Dias Facci; “Educação
matemática e a psicologia sócio-histórica”, de Adil Poloni;
“Palavras grávidas e nascimentos de significados: a
linguagem na escola”, de Dagoberto Buim Arena; “A
apropriação da escrita como um instrumento cultural
complexo” e “Contribuições de Vigotski para a Educação
Infantil”, de Suely Amaral Mello.
A PRIMEIRA PARTE traz como primeiro artigo
uma reflexão de Betty Antunes de Oliveira acerca dos
“Fundamentos filosóficos marxistas da obra
vigotskiana: a questão da categoria de atividade e
algumas implicações para o trabalho educativo”.
Nele encontramos os fundamentos ontológicos e sócio
culturais da obra de Vigotski que tem como fonte
original a obra de Karl Marx. A autora chama atenção
para as distorções do materialismo de Marx expressas
nas primeiras tentativas de fundar uma Psicologia
Marxista, nos anos 20 do século passado, apresentando
Vigotski como aquele que conseguiu superar a
apropriação artificial desse materialismo bem como a
aplicação mecanicista da lógica dialética. Na
explicitação clara e significativa dos fundamentos
teóricos do conceito de atividade humana é possível ir
estabelecendo as relações desse conceito fundante de
Marx com as reflexões sobre indivíduo e sociedade,
vistos numa perspectiva complementar e não
antagônica, leitura tão presente em análises
reducionistas. A categoria atividade humana na
psicologia de Vigotski “é uma unidade orgânica e recíproca
entre teoria e prática, através da qual o homem foi criando
sua própria essência, histórica e socialmente, criando,
portanto, a cultura – o patrimônio cultural do gênero
humano.” Esse princípio vai contra as visões pedagógicas
adaptativas do indivíduo ao sistema atual existente, já
que “o homem se torna humano transformando a natureza
para adaptá-la a si e não para o homem adaptar-se ao
existente.”

III
“Aspectos teórico-metodológicos que
distanciam a perspectiva sócio-histórica vigotskiana
do construtivismo piagetiano” é o artigo de Sueli
Terezinha Ferreira Martins. Nele, a autora apresenta
Vigotski, sua obra, os fundamentos de sua teoria, as
aproximações e os distanciamentos com a obra de
Piaget, destacando, no percurso histórico esboçado, os
quatorze anos de produção científica do autor, o acesso
inicialmente exíguo a suas obras e sua expansão a
partir de 1990, quando o mundo passa a conhecê-las.
Na sua visão, as aproximações pretendidas entre Piaget
e Vigotski, embora sejam até objeto de publicações na
atualidade, são indevidas, uma vez que desconsideram
as raízes marxistas da teoria Vigotskiana, sendo
algumas delas possíveis, porém nenhuma se referindo
aos elementos centrais da teoria desses dois autores.
Os únicos pontos comuns entre eles seriam os fatos
de terem nascido no mesmo ano e de terem pesquisado
os processos psicológicos próprios ao desenvolvimento
do ser humano e suas implicações na prática
pedagógica. Construíram uma teoria sobre o
desenvolvimento humano e estiveram à frente de
experiências educacionais. Porém, para além disso, é
desconsiderar a produção de ambos e todo o contexto
em que foram produzidas suas obras.
O terceiro e último artigo desta parte denomina
se “Implicações Pedagógicas da Escola de Vigotski:
algumas considerações”, de Lígia Márcia Martins.
Nele a autora parte de uma questão que o próprio
Vigotski levantava em seus cursos de formação para
professores: “O que é educar?” e que respondia
utilizando as ideias de Blonski, um de seus antigos
professores: “educação é a influência premeditada,
organizada e prolongada no desenvolvimento de um
organismo”. Destaca, a partir daí duas questões
centrais: a intencionalidade e a organização do processo
de formação. A primeira questão leva-nos a pensar no
significado da pré-ideação de um projeto e o
planejamento das atividades e procedimentos que
garantam a objetivação da pré-ideação (que se torna
um dado da realidade concreta). Duas são as
implicações advindas dessa postura: fazer a crítica, do

IV
ponto de vista da teoria vigotskiana e humanizar o
processo educativo pela socialização do saber escolar.
A segunda questão envolve a organização do processo
educativo, articulando método de ensino e
sistematização de conteúdo, objetivando a superação
dos conceitos cotidianos para a aquisição dos conceitos
científicos. Essa perspectiva deve levar à superação do
modelo calcado nas competências, próprio da visão da
educação como mercadoria que caracteriza o projeto
neoliberal para a educação.
A SEGUNDA PARTE está organizada em sete
artigos. O primeiro artigo é de Elenita de Ricio
Tanamachi intitulado “A mediação da psicologia
histórico-cultural na atividade de professores e do
psicólogo”. Ela apresenta os fundamentos da teoria
histórico-cultural e do método materialista histórico
dialético como essenciais na transformação da ação/
formação de professores, alunos e psicólogos. Através
de uma ação direta numa escola pública, a autora busca
desvendar, coletivamente com os agentes sociais da
escola, a relação entre a atividade (motivos/ações/
finalidades) e a consciência (significados e sentidos)
na prática pedagógica, problematizando a questão “por
que o aluno não aprende”, elaborando-a de outra forma,
“em que circuntâncias o aluno aprende”. O trabalho
realizado mostra o processo de alienação como um
obstáculo para se obter a articulação entre sentido e
significado na atividade pedagógica. Para superar essa
situação, aponta a necessidade de uma formação que
alie a competência técnico-pedagógica e compromisso
político com a transformação da realidade, visando à
humanização do próprio homem.
“A pedagogia histórico-crítica subsidiando a
reflexão da questão cultural na educação escolar” é
o artigo em que José Roberto Boettger Giardinetto
tece considerações sobre a produção, elaboração do
conhecimento e a importância da apropriação do saber
escolar pelos alunos da escola pública. A partir da
pedagogia histórico-crítica, problematiza a questão do
“respeito à cultura do aluno”, através de categorias
cotidiano, não cotidiano e processo de humanização,
conceitos-chave na teoria marxista na análise da

V
realidade social. Pautado em teóricos marxistas como
Saviani e Duarte, o autor defende o trabalho escolar
como elemento fundamental ao desenvolvimento
cultural dos alunos, levando-os à apropriação de
conteúdos sistematizados, construídos historicamente,
que contribuem para o desenvolvimento do gênero
humano, entendendo-o como ato de produzir direta e
indiretamente a humanidade em cada indivíduo, tendo
a escola o papel de mediação entre o indivíduo e o
conhecimento. Toma como exemplo a crítica à
etnomatemática, que se apega ao aspecto da
manifestação da matemática em diferentes espaços
etnoculturais como algo contraditório à ciência
matemática, ou à matemática escolar. Como afirma o
autor, “as diferentes produções da matemática em
contextos socais diversos não são ‘diferentes
matemáticas’, mas diferentes manifestações ‘da’
matemática”: trata-se de saber decodificar os traços
essenciais do conhecimento, no caso matemático
produzido fora da escola, mediante a matemática
escolar, sendo esses conteúdos manifestações do
conhecimento construído historicamente pelo homem
ao longo da história.
“Vigotski e o processo ensino-aprendizagem:
a formação de conceitos”, de Marilda Gonçalves Dias
Facci, trata da questão da formação dos conceitos na
teoria Vigotskiana. Nesse texto, os conceitos são
entendidos como construções culturais: são
internalizados pelo homem no decorrer de um processo
histórico-cultural, ou seja, ao longo de seu processo
de desenvolvimento. A autora destaca a diferença entre
os conceitos cotidianos, construídos pelo homem a
partir da observação e das atividades próprias de sua
vivência em interação com objetos e pessoas a sua
volta, e os conceitos científicos que são adquiridos por
meio de estudos sistematizados, como são os promovidos
pela instituição escolar, que insere o aluno em
situações que o levam a realizar sucessivos níveis de
abstração em torno de cada conceito que aprende.
Ambos os conceitos guardam entre si estreita relação,
de modo que um influencia na formação do outro: os
conceitos espontâneos podem oferecer suporte para a

VI
formação dos conceitos científicos e estes podem levar
os primeiros a níveis mais elaborados de generalização.
Daí se deduz a importância do trabalho escolar, cuja
tarefa primordial é ajudar a criança no desenvolvimento
dos conceitos científicos, responsáveis pelos níveis mais
elaborados dos processos psicológicos superiores do ser
humano.
Adil Poloni, em seu artigo intitulado “Educação
matemática e a psicologia sócio-histórica”, fala de
sua experiência com a educação matemática do ponto
de vista vigotskiano. Destaca a possibilidade de que
novos conhecimentos podem ser adquiridos numa
perspectiva sócio-centrada, através de uma prática que
valorize os aspectos sociais voltados para a formação
da cidadania. Na área da Matemática, as atividades
educativas, desse ponto de vista, pretendem trocar a
formação de uma consciência solitária por uma
consciência solidária. Nessa perspectiva, considera que
os problemas matemáticos não se separam dos
problemas da vida, pelo contrário, ajudam a resolvê
los. O ambiente cultural e a mediação do professor são
imprescindíveis para o desenvolvimento do aluno. Os
avanços cognitivos dependem de uma ação deliberada
do professor, dentro de um contexto significativo, que
concorrerá para o desenvolvimento dos modos de
internalização de significados no aluno. Longe de um
trabalho matemático que funcione como um receituário
de fórmulas, a educação matemática deve ser
emancipatória: incidir nas possibilidades da zona de
desenvolvimento potencial do aluno e levá-lo à
internalização de novos conhecimentos necessários a
sua formação como cidadão.
Em seu artigo “Palavras grávidas e
nascimentos de significados: a linguagem na escola”,
Dagoberto Buim Arena tem por finalidade dialogar com
dois estudiosos: o tcheco Kosik (1927) e o russo Mikhail
Bakhtin (1895-1975), a fim de “fazer um exercício sobre
a língua que a sociedade, pelas suas instituições de
ensino, poderia oferecer ao aluno”. Utiliza “como fio
guia a criança que se torna aluno ao entrar para a
escola, que se movimenta no ambiente histórico e
cultural, criado pelas relações interpessoais, movimento

VII
em que também é criada e recriada a língua com a
qual o aluno inicia o seu relacionamento como cocriador
da língua escrita”. Considera a língua não como objeto
estável, pronta para ser assimilada pelo aluno, mas
como um sistema de relativa estabilidade em que há
espaço para “a realização da criação humana”, o que a
torna “viva para o homem criador”. É no espaço
reservado às interações que isso se torna possível. Na
escola, é preciso que o processo de aprender a ler e a
escrever seja encaminhado considerando o uso social
da língua e o fato de que as significações são tecidas
no momento das enunciações. Só assim o sujeito
aprendiz pode apropriar-se da língua em sua essência.
Fora disso resta apenas a aparência.
“A apropriação da escrita como um
instrumento cultural complexo”, de Suely Amaral
Mello, focaliza as “contribuições de Vigotski acerca do
processo de aquisição da escrita”. A autora parte da
ideia de que muito do que se tem feito com a educação
das crianças carece de uma base científica; porém,
com o avanço já conquistado na área de educação, é
possível buscar maneiras de melhorar a prática
pedagógica levada a efeito nas escolas, no intuito de
chegar ao “desenvolvimento máximo da inteligência e
da personalidade das crianças”. Destaca-se, como
elemento essencial desse processo, a apropriação da
escrita pela criança que não tem sido devidamente
ensinada, pois, “ao enfatizar a escrita e o
reconhecimento das letras, acabamos por ensinar às
crianças o traçado das letras, mas não ensinamos a
linguagem escrita”. Isso equivale a dizer que, ao darmos
relevo ao aspecto técnico dessa aprendizagem, “nos
esquecemos da função social para a qual a escrita foi
criada”. A autora aponta como um grande equívoco a
focalização apenas da técnica da codificação, sem
considerar ou criar a necessidade da escrita na
criança, pois só quando tal necessidade é criada no
interior da língua em uso é que aprender a escrever
fará sentido para o aluno.
Finalmente, em seu outro artigo, denominado
“Contribuições de Vigotski para a Educação
Infantil”, Suely Amaral Mello destaca, inicialmente,

VIII
o valor da aprendizagem no processo educativo: as
crianças, desde que nascem, aprendem e, porque
aprendem, se desenvolvem. Isso permite pensar uma
nova Pedagogia para a infância, cuja base é a
organização intencional das atividades para a criança,
o que supõe que ela é capaz de aprender, consegue
estabelecer relações com os outros, consigo mesma e
com o mundo a seu redor. Nessa perspectiva, a relação
entre a aprendizagem e o desenvolvimento ganha um
novo entendimento: a aprendizagem leva ao
desenvolvimento. No contato com a cultura, com os
adultos e outras crianças são criadas as condições para
a aprendizagem infantil. Isso traz como consequência
a valorização do trabalho do professor, mediador do
processo educativo, cuja finalidade é a de garantir a
criação das qualidades essencialmente humanas no
educando, as quais são, inicialmente, externas ao ser
humano, internalizando-se quando se permite o acesso
das novas gerações à cultura historicamente
acumulada.
Pelo conjunto de artigos que o compõem, este
livro propõe-se a contribuir para a formação permanente
do professor, profissional hoje pouco valorizado frente
à sua responsabilidade social e intelectual. A qualidade
da educação requer a articulação entre teoria e prática,
inserindo na atividade pedagógica a intencionalidade
do processo de humanização de todos os atores nela
envolvidos. Além disso, sem a teoria não há
compreensão da prática e de seus problemas, e sem a
prática não há como se apropriar do real e transformá
lo. Assim, esta coletânea soma-se ao pensamento
daqueles que veem na teoria histórico-cultural um
caminho interessante a ser trilhado por todos os que
concebem a crise como momento possível de
transformação através da construção de novos sentidos
e significados, no rigor conceitual dos termos, visando
ao processo de humanização tão em risco na sociedade
atual.
Junho de 2006 (6)
Notas

(1) Vygotsky, assim grafado, é uma dentre as diferentes

IX
maneiras que encontramos, conforme a procedência da
edição, para escrever o nome desse autor. Escrito dessa
forma foi como se apresentou no título da II Jornada do
Núcleo de Ensino. Outras possibilidades, para citar as mais
conhecidas, são: Vygotski, Vigotskii e Vigotski. Nos textos
do livro será utilizada a grafia Vigotski, com exceção das
citações originais.

(2) VERNAUD, G. Lev Vygotski: pédagogue et penseur de notre


temps. Paris; Hachette Livre, 2000, p.4.

(3) VIGOTSKII, L. S., LURIA, A. R. & LEONTIEV, A. N.


Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo:
Ícone: Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p.15/
16.

(4) Trecho da página 12 de SÈVE, L. Dialectique et psychologie


chez Vygotski. In: Enfance. Tomo 42, v.1-2, p.11-16. Presses
Universitaires de France, 1989.

(5) Trecho da página 3 de ZAZZO, René. Vygotski (1896-1934).


In: Enfance. Tomo 42, n.1-2, p.3-10. Presses Universitaires
de France, 1989.

(6) Ano da primeira edição desta obra.

X
PRIMEIRA PARTE

FUNDAMENTOS DA TEORIA
HISTÓRICO-CULTURAL
FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS MARXISTAS DA
OBRA VIGOTSKIANA: A QUESTÃO DA
CATEGORIA DE ATIVIDADE E ALGUMAS
IMPLICAÇÕES PARA O TRABALHO EDUCATIVO

Betty Antunes de Oliveira

Introduzindo a questão
A categoria de atividade humana é a categoria
central da fundamentação filosófica da obra vigotskiana,
a qual tem como matriz os fundamentos ontológicos e
sócio-históricos de Marx. Isso quer dizer que o
significado dessa categoria nessa obra, bem como na
obra dos demais autores soviéticos da assim chamada
escola histórico-cultural, não se refere, como em geral é
entendido, a uma mera ação de um sujeito que
responde, de forma imediata, às influências de seu
meio, uma resposta determinada por sua organização
genética e/ou pela aprendizagem que lhe foi sendo
possibilitada ao longo de sua relação com esse meio,
mas sempre restrita aos limites genéticos de sua
espécie biológica. Bem ao contrário, essa categoria
empregada na psicologia soviética se refere a uma
determinada mediação entre homem e natureza,
entendendo-se aí, também, a natureza já modificada
por esse homem. Trata-se da atividade humana — o
trabalho humano. É, portanto, uma atividade teleológica
que rompe com os limites biológicos previstos pela specie
homo, isto é, uma atividade realizada por um sujeito
que transforma intencionalmente a natureza e a si
mesmo, para além daquilo que foi previsto pela
natureza. Está aí subentendido que é através dessa
atividade que o homem (entenda-se aí, os homens) não
só busca satisfazer suas necessidades biológicas, mas,
principalmente, aquelas necessidades que ele mesmo
vai criando, com os resultados sempre novos dessa
atividade que o medeia na sua relação com a natureza,

3
dentro de determinado contexto. O ponto diferenciador
a ser destacado nesse momento refere-se ao fato de
que a atividade humana não é dirigida meramente pelas
leis genéticas de sua espécie biológica, como acontece
com os demais animais, mas pelas leis histórico-sociais
criadas pelo próprio homem ao longo da história da
humanidade.
Até a última década da primeira metade do
século XIX a categoria de atividade humana não era
ainda considerada como objeto dos estudos filosóficos.
Marx e Engels, naquela época, posicionaram-se
veementemente contrários a esse tipo de
entendimento. Na primeira de suas Teses sobre
Feuerbach (MARX & ENGELS, 1979, p. 11), escritas nos
anos 40 daquele século, explicavam que a principal
insuficiência do materialismo metafísico era conceber
a realidade, a sensibilidade, somente na sua forma
contemplativa e não como atividade humana sensível,
como práxis de um sujeito; e, por outro lado, que o
idealismo, em oposição a esse materialismo, considerou
o lado ativo da atividade realizada por esse sujeito,
mas o fez de uma forma abstrata, isto é,
desconsiderando a atividade real, sensível daquele
sujeito ativo. E explicavam ainda, nessa tese, que
Feuerbach, ao buscar ultrapassar esses dois limites,
chegou a considerar os objetos sensíveis, distintos dos
objetos do pensamento, mas não conseguiu compreender
a atividade humana como atividade objetiva. Em
decorrência disso, o que passava a ser valorizado era
somente a atividade teórica do sujeito, como sendo a
atividade autenticamente humana; e que, por
consequência, a prática era concebida na sua forma
mais imediata e, como tal, desqualificada e suja. Com
essas explicações, Marx e Engels queriam demonstrar
que, para compreender a realidade humana, era
importante compreender a atividade humana como uma
atividade revolucionária, isto é, como atividade
transformadora, como atividade prático-crítica dentro de
um determinado contexto histórico-social.
A introdução, na psicologia dos anos 20 do
século passado, dessa categoria assim compreendida,
gerou uma transformação de toda a estrutura

4
conceitual dessa ciência. É preciso, porém, deixar claro
que as primeiras tentativas de fundar uma psicologia
com base no materialismo de Marx incorreram em erros
de natureza diversa (SHUARE, 1990, p. 57), como
aqueles decorrentes de uma apropriação superficial
desse tipo de materialismo o que, consequentemente,
provocou uma aplicação mecanicista da lógica dialética,
lógica esta indispensável para a compreensão dos
princípios marxianos. Com Vigotski, esse problema é
pela primeira vez constatado e devidamente delimitado.
Com base nessa delimitação, Vigotski desenvolve não
só estudos da obra marxiana, mas também debates,
principalmente com seus companheiros de pesquisa,
buscando continuadamente a superação desse
problema.
Hoje em dia, apesar de todo o esforço de Vigotski
e daqueles que continuaram a desenvolver sua teoria,
tem havido, em várias partes do mundo, inclusive no
Brasil, distorções do significado e sentido da categoria
de atividade e das demais que fazem parte do universo
conceitual de Vigotski. Um dos fatores decisivos desse
problema continua sendo a falta e/ou a superficialidade
de estudos daqueles fundamentos marxianos. Além
desse fator referente aos estudos desses fundamentos,
há que se considerar também aquele relativo a leituras
aligeiradas de seus textos, intensificadas pelo modismo,
surgido em volta da obra de Vigotski, nas últimas
décadas. Esse aligeiramento de leituras, por seu lado,
se intensifica ainda mais pelo tipo de divulgação feita
de várias publicações de escritos de Vigotski. Trata-se
de uma reprodução mutilada desses escritos, dos quais
são retiradas, exatamente, as partes que se referem
àqueles fundamentos marxianos. Com essa apropriação
altamente distorcida e, portanto, indébita, da obra de
Vigotski, o significado e sentido de todo o seu universo
conceitual são fortemente esvaziados, o que dá margem
a que esses escritos passem a ser utilizados em função
dos mais variados interesses que servem, em última
instância, de forma consciente ou não, para legitimar
teorias contrárias àquela defendida por Vigotski. Isso
tem gerado, em consequência, uma falsa adesão à obra
vigotskiana. Os resultados nefastos disso nas

5
pesquisas, principalmente nas pesquisas em educação
e no trabalho educativo, se acumulam.
Tendo como parâmetro essa situação, a
presente palestra tem o objetivo específico de
esclarecer em que consiste a categoria de atividade
humana em Marx, já que é essa concepção de atividade
que fundamenta toda a obra vigotskiana. A seguir
procurarei esclarecer como a forma imediatista de
compreender a atividade humana, vem produzindo
sérias consequências na forma de pensar e agir de
muitos educadores no trabalho educativo, mesmo
quando estes se propõem a realizar uma atuação
considerada progressista, baseada em Vigotski.

A categoria de atividade em Marx ou o


processo em que o homem se torna
humano
É bastante difundida a afirmação de que o
homem é um ser social. Mas o que isso quer dizer? O
homem também não é um ser natural? Um ser que faz
parte integrante da natureza? E se o homem é também
um ser natural, isto é, um ser regido por leis biológicas,
como ele se torna um ser histórico-social regido não
mais somente pelas leis biológicas de sua espécie, mas
principalmente por leis histórico-sociais?
Em primeiro lugar é preciso esclarecer que não
há possibilidade de uma vida histórico-social do homem
sem considerá-lo um ser biológico, um ser vivo
pertencente à natureza. Todo o processo histórico-social
vivenciado pelo gênero humano desde os seus
primórdios até hoje tem tido como base as leis e
processos da natureza. A não consideração dessas leis
e processos em função de meros interesses sócio
político-econômicos de uma minoria, como se constata
hoje em dia mais do que nunca, tem gerado em todo o
planeta o desequilíbrio do meio ambiente e,
consequentemente, do próprio organismo humano. Pois
bem, a base biológica do homem é uma característica
básica ineliminável, por mais que haja avanços
científicos e tecnológicos. Em outras palavras: mesmo

6
que os limites biológicos do homem estejam sendo cada
vez mais rompidos por esses avanços, não é possível e
nem desejável eliminar essa base biológica e nem as
leis e processos da natureza de modo geral, pois sem
essa base biológica e sem considerar as leis da
natureza como um todo, não há possibilidade de vida
e, assim, o homem não tem como desenvolver o seu
ser histórico e social.
Feita essa explicação, passemos a explicitar em
que consiste a atividade humana — o trabalho — na
obra marxiana. Marx explica que o trabalho

é um processo entre homem e Natureza, um


processo em que o homem, por sua própria ação,
media (sic), regula e controla seu metabolismo
com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a
matéria natural como uma força natural. Ele põe
em movimento as forças naturais pertencentes
à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e
mão, a fim de apropriar-se da matéria natural
numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar,
por meio desse movimento sobre a Natureza
externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao
mesmo tempo, sua própria natureza. (MARX,
1983, p. 149)

Com esse “apropriar-se da matéria natural


numa forma útil para sua própria vida”, isto é, tornando
o que foi apropriado da natureza em “órgãos da sua
individualidade” (MARX & ENGELS, 1979, entre outras
obras), o homem, através de sua atividade — o trabalho
—, se objetiva, respondendo às necessidades que seu
meio lhe instigou, modificando a natureza e a si mesmo.
Mais adiante Marx (2) ressalta um fator implícito na
citação acima, a saber, o de que o trabalho se constitui
na condição universal do homem tornar-se humano.
Nesse trecho, ele explica que o trabalho é uma

atividade orientada a um fim para produzir


valores de uso, apropriação do natural para
satisfazer a necessidades humanas, condição
universal do metabolismo entre homem e

7
natureza, condição natural e eterna da vida
humana e, portanto, independente de qualquer
forma dessa vida, sendo antes igualmente
comum a todas as suas formas sociais. (MARX,
1983, vol. 1, p. 153)

Vejamos o que isso quer dizer: diferindo da


atividade vital animal que é determinada
exclusivamente pelas leis biológicas, a atividade vital
humana é uma “atividade orientada a um fim”, o qual
é sempre determinado pelo contexto. Portanto, é uma
atividade dirigida por um fim que obedece não mais a
leis biológicas (3), mas a leis histórico-sociais. Note-se
que até mesmo as atividades chamadas biológicas como
o comer, dormir, reproduzir, etc., só são realizadas
dentro de certo padrão determinado histórica e
socialmente, isto é, a forma de concretizá-las é
determinada por um fim que responde aos usos e
costumes de determinada formação social, e não a leis
genéticas.
Para poder concretizar sua atividade, o homem
precisa apropriar-se do que outros já criaram. E é
através dessa apropriação e de um “pôr teleológico”
(LUKÁCS, 1978 e 1981) determinado para sua atividade
que o homem se objetiva. E esse fim posto é sempre
um produto social, mesmo quando enunciado por um
indivíduo singular. Ao objetivar-se cria sempre novas
necessidades e, consequentemente, novos
instrumentos, novas técnicas e, de igual modo, novos
conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos. Cria,
assim, a cultura. Esse processo contínuo e ininterrupto
de apropriação-objetivação (4), portanto, é instigado pela
necessidade da vida social que gera cada vez mais novas
necessidades, não previstas pela natureza, bem como
as respostas mais adequadas a elas.
Explicando mais detalhadamente: o ato de
colocar um fim (específico para cada atividade) é um
ato da consciência (que é já um produto histórico-social)
e, enquanto tal, é um ato dirigido pelas leis histórico
sociais (e não pelas leis genéticas). É preciso, porém,
deixar bem claro, que essa consciência pode ser ainda
uma consciência em si, isto é, uma consciência que,

8
necessariamente, não tem consciência dessa
consciência. Portanto, não é sempre um ato da
consciência para si, no qual a consciência tem
consciência dessa consciência. Sendo assim, apesar
de todo trabalho humano ser dirigido por uma finalidade
antes pré-idealizada pela consciência humana (a qual,
repito, não é determinada pelas leis biológicas, mas
pelas leis histórico-sociais), o homem não tem a
necessidade de ter consciência dessa consciência, em
todo tipo de atividade que realiza. Este é o caso das
atividades cotidianas, na execução das quais o homem
não precisa ter consciência da consciência que dirige
essas suas atividades, pois estas atividades respondem
a objetivos prático-utilitários que, por essas
características não exigem questionamentos e
respectivas reflexões. O mesmo, porém, não ocorre com
as atividades não cotidianas, como aquelas relativas à
ciência, à filosofia, à arte, ao trabalho educativo, etc.,
nas quais o homem estabelece intencionalmente suas
finalidades em função de valores e, para tanto, precisa
ter a consciência dessa consciência para organizar,
executar e avaliar a prática em função desses fins e
valores. É preciso ainda lembrar que, mesmo quando
se está concentrado em uma atividade onde é
indispensável ter-se consciência da consciência, como
é o caso do trabalho educativo, estamos
concomitantemente tendo uma consciência sem
consciência frente a uma série de ações que fazem
parte dessa atividade. Vejamos, por exemplo, o que
ocorre agora enquanto profiro essa palestra: até esse
exato momento, não havia, da minha parte, uma
consciência da consciência no que se refere ao ato de
eu estar ouvindo minha própria voz e de como a modero
de acordo com o ambiente, de estar atenta ao público
presente e medir sua reação ao que estou falando,
etc. Sem antes assegurar adequadamente o
automatismo dessas chamadas “pequenas” ações
dirigidas pela consciência (embora seja uma consciência
em si, isto é, uma consciência sem necessariamente
ter consciência dessa consciência), não poderia estar
concentrada na sequência de argumentações do
conteúdo de minha fala. Portanto, toda atividade

9
desenvolvida pelo homem é dirigida pela consciência,
seja a consciência em si ou a consciência para si. Ambas
são sempre dirigidas pelas leis histórico-sociais, tendo
se consciência disso ou não.
Feito esse esclarecimento sobre a relação entre
atividade e consciência, voltemos à questão da atividade
como uma dinâmica entre apropriação e objetivação do
sujeito. É interessante notar que é através dessa
dinâmica processual que o homem se “universaliza”. O
que isso quer dizer? Considerando-se o indivíduo
somente como um exemplar de uma espécie biológica
— a specie homo —, suas atividades estariam restritas
àquelas atividades previstas e dirigidas pelas leis
genéticas dessa espécie. Mas, como foi dito
anteriormente, as atividades do homem não se limitam
ao repertório previsto por sua espécie biológica. Vimos
que, enquanto um ser social que se forma pelo trabalho
(no sentido anteriormente exposto), o homem
desenvolve a capacidade de se apropriar das leis
essenciais da natureza e transformá-las em “órgãos
da sua individualidade”, isto é, em objeto e condição
de suas ações, necessárias à sua vida. Assim, o homem
observa as demais espécies animais e se apropria da
forma e função das atividades dessas espécies,
tornando-as suas, utilizando-as adequadamente para
aqueles fins sócio-históricos que dirigem sua atividade
vital. Desse modo, vai criando sempre novos objetos e
formas de vida. Como se pode verificar aí, o homem
não restringe suas atividades somente àquelas
atividades biológicas previstas por sua espécie, mas
desenvolve outras atividades que organizou a partir da
apropriação que fez das atividades de outras espécies
animais. Nesse processo, desenvolve cada vez mais o
conhecimento da natureza e do meio social em que
vive, o que também quer dizer o conhecimento de si
mesmo. E é essa apropriação das “forças essenciais da
natureza” (MARX, 1989), tanto da natureza
propriamente dita, quanto da natureza modificada por
ele, que lhe dá a possibilidade de desenvolver a
capacidade de atuar conscientemente (entenda-se, não
movido pelas leis biológicas) com qualquer que seja o
objeto. Em suma: embora não tenha condições físico

10
biológicas para executar certas atividades próprias de
outras espécies, o homem observa essas condições e
atividades e inventa aparelhos e modos de ser que
permitem a ele executá-las, embora a seu modo e para
suas finalidades. Isto é, sua atividade vital — o trabalho
— rompe e ultrapassa as barreiras biológicas de sua
espécie animal e cria novo modo de ser e novos objetos
para além do que foi previsto pela natureza para sua
espécie biológica. Esse ultrapassar as barreiras
biológicas e criar algo novo (sócio-historicamente) para
si se constitui no processo de universalização do
homem. Nesse processo, cada indivíduo contribui com
sua atividade, para a construção da cultura humana.
Essa contribuição se repete ininterruptamente de
geração em geração, aumentando cada vez mais o ser
do gênero humano. A esse processo de transformação
da natureza em função de sempre novas necessidades
(repita-se, não previstas pelas leis biológicas da specie
homo) chama-se o processo sócio-histórico do homem
tornar-se humano. O termo humano, como se vê, não
se refere às características (biológicas) da specie homo,
mas às características do gênero humano, isto é, às
características criadas socialmente ao longo da história
da humanidade, através da atividade humana.
Repetindo: é através desse processo de participar do
desenvolvimento do patrimônio cultural da humanidade
que o homem se torna humano.
Marx e muitos dos estudiosos que
desenvolveram suas ideias demonstraram que, para
compreender a essência humana, o comportamento do
homem com o meio em que vive e, dentro dele, o
comportamento consigo mesmo, é imprescindível
estudar a atividade humana e seu produto, já que é
através da atividade que o indivíduo não só se apropria
do conhecimento já existente, mas ao fazê-lo se objetiva
no produto de seu trabalho. E mais ainda, ele também
se desenvolve na sua relação com esse produto surgido
do trabalho. Dessa forma é possível “penetrar no interior
do homem” (SHUARE, 1990, p. 21-22) e, com isso, ir ao
mais recôndito daquilo que foi formando o humano nesse
homem. MARX, em seus Manuscritos Econômicos e
Filosóficos (5), utiliza-se da palavra “indústria”

11
referindo-se ao trabalho humano, dizendo que:

a história da indústria e da existência objetivada


da indústria é o livro aberto das faculdades
humanas [no original, “forças essenciais
humanas” – BO], a psicologia humana
sensivelmente apreensível; até agora, esta
história nunca se concebeu em relação com a
natureza humana [no original, “essência
humana”- BO], [...], como realidade das faculdades
humanas [no original, “forças essenciais
humanas” –BO] e como ato genérico humano [no
original, “como ato das forças do gênero humano”
–BO]. (MARX, 1989, p. 200, grifo no original)

Nesse trecho, Marx quer deixar claro que o


trabalho objetivado, isto é, o produto surgido através
do trabalho, se constitui num “livro aberto” onde se
pode buscar conhecer a forma em que se deu o trabalho
humano e o conteúdo que ele carrega através de suas
múltiplas funções sócio-históricas para a vida dos
homens. Por esse produto (incluindo-se aí,
necessariamente, os meios utilizados para produzi-lo)
podem ser conhecidas as suas “forças essenciais” (suas
capacidades, suas habilidades, sua vontade, sua
intencionalidade), que tiveram sua base nas “forças
essenciais” da natureza de que o homem se apropriou
tornando-as “órgãos de sua individualidade” como
ferramentas que utiliza em seu trabalho em função de
determinada finalidade surgida no seu contexto sócio
histórico. Desse modo, é possível conhecer a “essência”
que foi sendo formada nesse homem, isto é, aquilo que
o tornou humano.
Até aqui procurei esclarecer sumariamente o
processo ontológico (a criação de traços inelimináveis
do ser do homem, do gênero humano) que explica em
que consiste a categoria de atividade humana em Marx,
na qual Vigotski se baseia para desenvolver seus
estudos psicológicos e pedagógicos, como também o
fizeram seus companheiros contemporâneos de
trabalho e demais seguidores.

12
A categoria de atividade em Marx e o
processo de alienação
Essa explanação até agora feita não pode ser
compreendida por si só, pois esse processo ontológico
se dá dentro de determinadas relações sociais
concretas, históricas. Vejamos agora em que consiste
isso.
Todo esse desenvolvimento da sociedade
humana, descrito acima, se deu, por determinadas
razões, através de um processo desumanizador a que
chamamos aqui de “alienação”, isto é, através da
exploração do homem pelo homem. Mas de onde vem
essa alienação? A alienação da sociedade e,
consequentemente, a alienação dos indivíduos tem sua
origem na alienação do trabalho. Veremos que, nesses
termos, o trabalho deixa de ser a atividade mediadora
que forma a essência do humano no homem e passa a
ser uma atividade que esvazia o ser do homem. Isso
quer dizer que esse processo alienador não tem uma
estrutura que lhe seria exclusiva. Ele se instala, pura
e simplesmente, nas próprias relações intrínsecas à
estrutura ontológica da atividade vital humana — o
trabalho — que estão implícitas no que foi exposto até
aqui, quais sejam: 1) a relação do homem com a
produção, isto é, com a execução da atividade; 2) a
relação do homem com o produto da atividade
executada; 3) a relação do homem com o gênero
humano. Como se pode deduzir daí, a terceira relação
é decorrente das duas primeiras e, ao mesmo tempo, é
condição dessas duas relações, pois a atividade só pode
ser realizada se o indivíduo se apropriar dos
instrumentos culturais necessários para a
concretização dessa atividade. É preciso também
esclarecer aqui que essa relação do homem com o
gênero humano não se restringe somente à relação do
homem com o gênero humano como um todo, já que
ela se opera na vida em sociedade, na vida vivida entre
os homens — a relação do homem com os outros
homens —, o que também subentende uma outra
relação — a relação do homem consigo mesmo.

13
O processo alienador se instala nessas relações
ontológicas do trabalho, imprimindo-lhes uma forma e
conteúdo distorcidos, próprios da exploração do homem
pelo homem, o que à primeira vista não se mostra
perceptível. Assim, no processo de alienação, a primeira
relação (a relação do homem com a produção, com a
execução da atividade) refere-se ao que se denomina
de divisão social do trabalho e nela o trabalho deixa de
ser a mediação que enriquece o ser do homem, para
se tornar no processo que o esvazia; e a segunda (a
relação do homem com o produto do trabalho) se refere
à propriedade privada, o que quer dizer que alguns
retêm em seu poder o produto do trabalho da grande
maioria de indivíduos (6). Consequentemente, a terceira
relação (a relação do homem com o gênero humano,
que engloba em si mesma as relações do homem com
os outros homens e do homem consigo mesmo) se
concretiza também alienadamente. Como o produto do
trabalho fica na mão de poucos, como uma propriedade
privada, a grande maioria não tem como usufruir desse
patrimônio. Isto é, a relação dessa grande maioria com
o gênero humano se dá somente através de limites
muito restritos, ou mesmo nem chega a se dar. Assim,
o processo alienador do trabalho humano não fica
restrito ao trabalho em si mesmo, mas permeia todas
as esferas da vida em sociedade. A alienação que se
dá em cada uma das três relações e as duas que
decorrem da terceira tornam-se “padrão” das relações
humanas (desde as mais complexas até aquelas mais
simples e imediatas). E, desse modo, instala-se a
exploração do homem pelo homem, uns explorando os
outros com os quais convive.
Note-se que é exatamente a situação alienada
e alienante dessas relações do trabalho que dá a
impressão de que há um antagonismo entre indivíduo
e sociedade. Este antagonismo, porém, se constitui
somente em um reflexo das relações sociais de
produção que servem à subordinação e domínio — a
sociedade de classes —, o que quer dizer, a exploração
do homem pelo homem. Mas o que significa esse ser
“um reflexo das relações sociais de produção”? Trata
se do seguinte: a forma de conceber a realidade, pelo

14
que ela se nos apresenta de imediato, não permite que
o raciocínio rompa esse limite restrito do imediatamente
perceptível, e, com isso, o raciocínio fica cerceado ao
imediatamente dado, às meras manifestações
fenomênicas. Em consequência dessa visão restrita de
realidade, a vida do homem singular é vista como algo
diferente da totalidade social, já que todas as
mediações entre esses dois polos não são
imediatamente perceptíveis. Por isso, numa sociedade
de classes sociais como a nossa, onde a propriedade é
privada, estando nas mãos de poucos, em detrimento
da grande maioria da totalidade social, a sociedade é
vista como algo contraposto à vida do homem singular,
algo que estaria impedindo o livre desenvolvimento de
sua individualidade. Com essa visão imediata da
concepção de realidade, através da qual, de um lado é
colocado o indivíduo e do outro lado a sociedade, fica
inconscientemente subentendido que a sociedade
poderia ser afastada da vida do indivíduo, ou mesmo
eliminada, para que aquele (o indivíduo) possa
concretizar sua individualidade, de forma plena e livre.
Nesse raciocínio imediatista, os polos indivíduo e
sociedade se mostram como antagônicos. Mas essa
forma imediatista de considerar o real é um mero
reflexo da realidade alienada. Isto é, considera-se a
realidade somente nos limites do que é visto de
imediato. Se o que estou vendo é uma sociedade
alienada, toma-se essa forma em que se encontra a
sociedade como a forma real da sociedade, como se a
realidade mesma fosse sempre assim, alienada e
alienante. É preciso considerar aqui que o processo de
alienação não é um traço ontológico do ser do homem,
da realidade humana, como o pensamento burguês quer
fazer crer. A alienação é somente um momento
histórico criado pela organização dada às relações
sociais da sociedade. E se essa organização é criada
pelos homens em determinadas circunstâncias sócio
históricas, é possível que os homens, conhecendo os
meandros desse processo, possam interferir nessa
realidade para transformá-la. Na verdade, não é a
sociedade mesma que estaria sendo um polo antagônico
ao indivíduo, mas sim o processo de alienação instalado

15
nessa sociedade que impossibilita o indivíduo de
apropriar-se das objetivações genéricas, isto é, das
objetivações produzidas pelo gênero humano,
marginalizando-o frente à sociedade em que vive. E
não só isso, todo o seu modo de ser, sua relação com
os demais homens são também determinados pelas
relações sociais alienadas. A exploração do homem pelo
homem passa a ser o padrão de comportamento e de
todas as relações entre os homens, bem como consigo
mesmo. É por isso que a sociedade se mostra como um
conjunto de “forças estranhas e hostis” (MARX, 1983,
1989, entre outras obras) que estariam impedindo o
desenvolvimento da individualidade, a qual acredita
se ser algo que já se traz ao nascer.
Do ponto de vista ontológico, o que ocorre é o
seguinte: o homem, enquanto ser social, como foi
explicado anteriormente, se torna humano exatamente
quando se apropria da produção social construída
histórica e socialmente pelas gerações anteriores,
tornando-a órgão da sua individualidade, com o qual se
objetiva, contribuindo para o avanço dessa produção
social. Sendo assim, sua individualidade é criada
exatamente nesse processo de socializar-se, isto é, esse
processo de apropriar-se/objetivar-se — a atividade
humana, o trabalho —, é que lhe possibilita ser cada
vez mais universal e livre frente aos limites de sua
espécie biológica. Mas, se as relações de produção estão
alienadas, a atividade humana se torna também
alienada e alienante. Consequentemente, a maioria
dos indivíduos se encontra numa situação em que não
consegue se apropriar do patrimônio cultural já
existente. E, assim, o indivíduo se torna e se sente
marginalizado. Como se pode deduzir daí, a alienação
permeia todas as esferas da vida dos indivíduos,
tornando cada um também um participante do processo
de exploração do homem pelo homem, seja ele um
explorador ou um explorado. Daí a necessidade urgente
do conhecimento de todo esse mecanismo subliminar
das circunstâncias sobre a vida dos homens, para que
se possa organizar, de forma intencional, uma práxis
transformadora.
Marx expressa-se veementemente contra a

16
concepção de que a sociedade é uma entidade
autônoma, que exista acima dos indivíduos. Ele adverte
que não há sociedade independente dos indivíduos. Por
outro lado, esclarece, como foi explicitado
anteriormente, que o indivíduo se torna indivíduo na
sua vida em sociedade e somente nela pode isolar-se.
Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos ele explica:

Importa, acima de tudo, evitar que a ‘sociedade’


se considere novamente como uma abstração
em confronto com o indivíduo. O indivíduo é o
ser social. A manifestação da sua vida — mesmo
quando não surge diretamente na forma de uma
manifestação comunitária, realizada
conjuntamente com os outros homens —
constitui, pois, uma expressão e uma
confirmação da vida social. A vida individual e a
vida genérica do homem não são diferentes, por
muito que — e isto é necessário — o modo de
existência da vida individual seja um modo mais
específico ou mais geral da vida genérica, ou por
mais que a vida genérica constitua uma vida
individual mais específica ou mais geral. (MARX,
1989, p. 195-196)

Mas por que é tão difícil compreender o homem


entendido enquanto um ser social? Por que na relação
indivíduo-sociedade esses dois polos se nos apresentam
como antagônicos? Na verdade, a subsunção do
indivíduo ao coletivo — a sociedade — não pode ser
concebida como pura operação mental do indivíduo
singular. Como bem explicam Marx e Engels “a diferença
entre o indivíduo como pessoa e o indivíduo naquilo
que tem de casual (7) não é uma diferença conceitual,
mas um fato histórico.” Mas como isso se dá na
realidade? Nesse mesmo texto citado, os autores (MARX
& ENGELS, 1979, p.119-120) explicam como a
subsunção do indivíduo ao coletivo — a sociedade —
dentro de circunstâncias históricas, se biparte:
[...] no curso do desenvolvimento histórico e
precisamente devido ao inevitável fato de que,

17
no interior da divisão do trabalho, as relações
sociais adquirem uma existência autônoma,
surge uma divisão na vida de cada indivíduo, na
medida em que ela é pessoal e na medida em
que está subsumida a um ramo qualquer do
trabalho e às condições a ele correspondentes.
(MARX & ENGELS, 1979, p. 110)

Marx e Engels alertam, ainda, que a forma e o


conteúdo, grau e qualidade da subsunção são
determinados de acordo com as etapas reais do
desenvolvimento das forças produtivas. Daí que se
colocam veementemente contra qualquer concepção
idealista da subsunção. Assim (MARX & ENGELS, 1979,
p. 119-121) explicam:

A divisão entre o indivíduo pessoal e o indivíduo


de classe, a casualidade*(8) das condições de vida
para o indivíduo, aparecem apenas com a
emergência da classe, que é, ela mesma, um
produto da burguesia. Esta casualidade* apenas
é engendrada e desenvolvida pela concorrência
e pela luta dos indivíduos entre si. Assim, na
imaginação, os indivíduos parecem ser mais
livres sob a dominação da burguesia do que
antes, porque suas condições de vida parecem
casuais*; mas na realidade, não são livres, pois
estão submetidos ao poder das coisas.

Em suma, considerando-se a categoria de


atividade em Marx, a relação indivíduo-sociedade, do
ponto de vista ontológico, são dois polos complementares
que formam um mesmo processo — a socialidade
humana. Nesses termos, o indivíduo não nasce com
sua individualidade já instalada e precisaria somente
desenvolvê-la na sua relação com a sociedade, como
afirmam as teorias que se fundamentam no paradigma
organismo-meio, mas sua individualidade é criada
através da atividade que concretiza, através da qual
ele se apropria dos conhecimentos já existentes para
executá-la e se objetiva ao concretizá-la, resultando
daí um produto de sua atividade. Como foi dito antes, é

18
nesse processo de apropriação-objetivação, através da
atividade, que o homem vai formando os órgãos de sua
individualidade e, portanto, sua individualidade
propriamente dita.
Como procurei mostrar, ontologicamente não
há antagonismo entre indivíduo e sociedade. Esse
antagonismo aparece exatamente pela forma como
estão sendo organizadas as relações de produção dessa
sociedade, organização essa que serve a interesses de
determinada classe em detrimento de outras, criando
classes antagônicas. E isso implica dizer que a forma
distorcida dada pela alienação à execução da atividade,
onde o trabalho se reduz a uma atividade de produzir
somente a mais-valia (esvaziando o ser do homem),
bem como a circulação e distribuição do produto daí
surgido, serve a interesses de uma minoria em
detrimento da grande maioria dos indivíduos.
Por isso chamo de falso o antagonismo entre
indivíduo e sociedade do qual falam tantas propostas
pedagógicas. E esse falso antagonismo só pode ser
compreendido e ultrapassado se se compreende a
atividade humana como aquela através da qual o
homem se torna humano. Como foi dito, esse
antagonismo não se constitui em uma característica
ineliminável do ser ontológico do homem. Bem ao
contrário, se essa situação foi criada pelo homem, ela
pode ser superada pelo próprio homem. Repetindo com
outras palavras: a dicotomia entre indivíduo e sociedade
é fruto de circunstâncias históricas (9). E, desde que
as estruturas sociais sejam transformadas, desfaz-se
essa dicotomia. E, para serem transformadas, o homem
precisa conhecer essas circunstâncias históricas na
sua multiplicidade e complexidade e, com base nesse
conhecimento, precisa organizar sua atividade para
transformar essas circunstâncias. Em suma: o
antagonismo entre indivíduo e sociedade não é um
traço ontológico do ser do homem, mas decorre dos
condicionamentos sociais que impõem uma atividade
humana alienada e alienante.
Como se pode deduzir do que foi exposto, a falta
de estudos sobre a categoria de atividade em Marx e,
consequentemente, a falsa mentalidade de que há um

19
antagonismo entre indivíduo e sociedade como inerente
ao ser do homem, estão diretamente ligadas a uma
distorção lógico-epistemológica no pensamento de
muitos autores sobre o que seja realidade humana. Esta
é compreendida somente no modo como imediatamente
ela se mostra aos olhos do sujeito. A realidade é, assim,
reduzida às suas manifestações fenomênicas, isto é,
ao imediatamente perceptível. Todo o movimento
dinâmico não imediatamente visível, que produz aquelas
manifestações, não é considerado. É como se não
existisse. Considerar-se que há um antagonismo entre
o indivíduo e sociedade, e a alienação como um processo
inerente do que chamam de natureza humana, são dois
exemplos dessa forma imediatista de conceber a
realidade. Note-se ainda que essa visão de realidade
reduzida ao imediatamente perceptível gera também
uma outra distorção lógico-epistemológica, qual seja,
a naturalização do social. Essa naturalização se explica
assim: se vejo a realidade como ela está aí, é porque
ela é assim. E se ela é assim, é porque faz parte
integrante da vida humana, do ser do homem. Não é
possível tratar dessa questão pormenorizadamente
aqui. Sugiro, para tanto, a leitura de Duarte (2000, p.
128-148).
Reporto-me a essa distorção de raciocínio, nesse
momento, somente para explicar que essas distorções
aqui rapidamente listadas, na verdade, são formas
fundamentadas na obviedade do imediatamente
perceptível e servem, quer se tenha consciência disso
ou não, para a legitimação de uma concepção de natureza
humana e, portanto, de homem, inerente ao capitalismo,
qual seja: o indivíduo só pode desenvolver-se através
da sua adaptação às estruturas existentes, e todo o
sucesso ou não do indivíduo estaria dependendo de
sua capacidade individual de adaptar-se ao meio. Em
decorrência disso, a escola não teria a função de
assegurar a ele o conhecimento necessário para
participar da transformação da sociedade, mas sim
assegurar que ele “aprenda a aprender” para se tornar
competitivo no mercado, nos moldes do que vem sendo
chamado de globalização e, assim, sentir-se “incluído”
no sistema. A apropriação do conhecimento estaria,

20
portanto, diretamente ligada ao quê, ao como e ao quanto
tal conhecimento está sendo necessário para sua
adaptação a esse mercado. Note-se, porém, que essa
redução dos limites do conhecimento do indivíduo aos
interesses mercadológicos sempre cambiantes lhe
impossibilita ter um conhecimento mais abrangente,
tanto de si mesmo como da sociedade, um
conhecimento para além dos parâmetros do sistema
existente. Impossibilita-lhe, portanto, apropriar-se de
um conhecimento da totalidade social para atuar nela
como sujeito.

Algumas implicações para o trabalho


educativo
Façamos agora uma espécie de resumo de
alguns pontos do que foi dito que se ligam
imediatamente a essa questão da adaptação do
indivíduo ao sistema existente. Vimos que a atividade
dos animais é dirigida somente pelas leis biológicas
que os levam a adaptar-se continuamente à natureza
para garantir sua sobrevivência e a perpetuação de cada
uma de suas espécies. O paradigma fundamental da
sua sobrevivência é o paradigma organismo-meio, um
paradigma, portanto, de características puramente
biológicas; o homem, porém, embora também um ser
natural — e, portanto, um animal —, através do trabalho
(sua atividade vital dirigida pela consciência e não pelas
leis biológicas), foi desenvolvendo capacidades e
habilidades para além daquelas previstas pela sua
espécie animal. Desse modo, rompe definitivamente
com o paradigma biológico de organismo-meio. Seu
paradigma fundamental passa a ser sócio-histórico, que
é a dinâmica entre apropriação e objetivação — o
trabalho. Isso quer dizer que o homem cria, pela sua
atividade, uma realidade para si que é sócio-histórica,
a qual se torna cada vez mais diferente daquela prevista
pela natureza para a specie homo.
Em outras palavras: o animal precisa se adaptar
à natureza para sobreviver e perpetuar sua espécie; o
homem, porém, embora mantenha sua base animal,

21
adapta a natureza às suas necessidades, as quais foram
criadas ao longo do próprio processo de transformar a
natureza, dando-lhe um sentido sócio-histórico. Isto é,
vai conhecendo as leis da natureza para, com elas,
transformar essa natureza, adaptando-a a sua existência
histórico-social. Dessa forma, além de transformar a
natureza ele transforma a si mesmo. É esse o importante
traço que diferencia o homem do animal — o trabalho
humano que transforma a natureza adaptando-a a si.
É interessante notar que as propostas
pedagógicas que se fundamentam no paradigma
organismo-meio, não tocam nesse salto qualitativo da
vida do homem surgido com a atividade dirigida
intencionalmente, um salto do ser meramente natural
que era ao ser social que é, através da dialética
apropriação-objetivação, e muito menos tocam na
questão da alienação, já que esta seria um dos
elementos da natureza humana considerada como algo
que já nasce com o homem. Tendo ou não consciência
desses aspectos desumanizadores e suas implicações
na vida dos homens, naturalizam o social ao propor a
adaptação do homem ao meio como fundamento da sua
formação como indivíduo participante do mercado.
Sendo assim, para que o indivíduo possa sobreviver
nesse meio que serve ao mercado, é preciso tornar-se
competitivo. Mas esse mercado serve à exploração do
homem pelo homem. Assim, sem levar em consideração
esse fato, que hoje é facilmente constatável, propugnam
(conscientemente ou não) a adaptação do homem ao
processo de exploração do homem pelo homem. Até
mesmo o senso comum já percebeu essa situação e
adverte sobre esse processo de exploração, como se
pode ver com a chamada “lei de Gerson” — aquele que
só quer levar vantagem em detrimento dos demais que
o rodeiam.
Considerando-se todos esses dados e
argumentações, aqui apresentados, pode-se entender
mais claramente em que consiste a grande diferença,
e, por que não dizer, antagonismo mesmo, entre as
propostas pedagógicas hoje tão na moda que objetivam
a mera adaptação do indivíduo ao já existente e as
propostas pedagógicas que têm como princípio a

22
formação do indivíduo como sujeito transformador da sua
realidade.

Para terminar

A categoria de atividade humana na psicologia


de Vigotski (SHUARE, 1990, p. 21) é, portanto,
compreendida ontologicamente como uma unidade
orgânica e recíproca entre teoria e prática, através da
qual o homem foi criando sua própria essência, histórica
e socialmente, criando, portanto, a cultura — o
patrimônio cultural do gênero humano. Em decorrência
disso, Vigotski concebe a relação indivíduo-sociedade
como uma unidade indissolúvel e, portanto, é contrário
à concepção de que a sociedade se constitui em uma
“força estranha e hostil” (nas palavras de Marx) à qual
o homem precisa adaptar-se para poder impor-se como
indivíduo. Essa unidade indissolúvel entre indivíduo e
sociedade se explica pelo fato de que o humano do
homem não é dado biologicamente, mas cada homem,
durante a sua vida em sociedade, precisa aprender a
ser humano. Em outras palavras: para viver em
sociedade não bastam as bases biológicas que a
natureza assegura ao indivíduo geneticamente, mas
ele precisa apropriar-se do mínimo daquele patrimônio
cultural criado, histórica e socialmente, pelas várias
gerações, para poder objetivar-se como ser social,
transformando-o pela sua atividade.
Esse é um princípio totalmente antagônico às
proposições pedagógicas de hoje que se fundamentam
no paradigma organismo-meio, isto é, que objetivam a
adaptação do indivíduo ao sistema existente, exigindo
que aprenda a aprender para competir adequadamente
aos objetivos do mercado (10) que servem a esse
sistema. Daí ser impossível utilizar-se da obra de
Vigotski para confirmar e legitimar essas proposições,
já que Vigotski fundamenta-se na categoria marxiana
de atividade humana, através da qual o homem se torna
humano transformando a natureza para adaptá-la a si e não
para o homem adaptar-se ao existente.
Com essa exposição, espero ter, pelo menos,

23
indicado os pontos essenciais da categoria marxiana
de atividade que fundamenta a obra de Vigotski e de
uma das suas implicações para o trabalho educativo,
qual seja: a atividade a ser desenvolvida no trabalho
educativo é exatamente aquela que está organizada
de modo a que o educando possa desenvolver-se como
sujeito transformador em seu contexto social, não só
conhecendo a complexidade da prática social existente,
mas também seus limites no sentido de contribuir com
sua atuação para as transformações desse contexto e
de si mesmo.

Referências

DUARTE, N. A Individualidade para si (contribuição a uma teoria


histórico-social da formação do indivíduo). Campinas: Autores
Associados, 1993.

______. Educação escolar, teoria do conhecimento e a escola de


Vigotski. Campinas: Autores Associados, 1996.

______. Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações


neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. Campinas:
Autores Associados, 2000.

LEONTIEV, A. N. Actividad, conciencia y personalidad. Buenos


Aires: Ediciones Ciencias del Hombre, 1978a.

______. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte,


1978b.

LUKÁCS, G. Introdução a uma estética marxista. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1978.

______. Ontologia dell’essere sociale. Roma: Riuniti, v. II, 1981.

MÁRKUS, G. Marxismo y antropología. Barcelona: Grijalbo, 1974.

MARX, K. O capital. Tradução: Regis Barbosa e Flávio R. Kothe.


São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção “Os Economistas”, v.1).

24
MARX, K. O capital. Tradução: Regis Barbosa e Flávio R. Kothe.
São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção “Os Economistas”, v.
1/2).

______. Manuscritos económico-filosóficos. Lisboa: Edições 70,


1989.

MARX, K. & ENGELS, F. A Ideologia alemã. São Paulo: Ciências


Humanas, 1979.

SHUARE, M. La psicología soviética tal como yo la veo. Moscou:


Editorial Progreso, 1990.

Notas

(1) Um estudo sério, minucioso e competente que esclarece


essa apropriação indébita da obra vigotskiana foi publicado
no livro de Newton DUARTE (2000).

(2) Vide também MARX, 1983, p.149-153 e 1984, p.105.

(3) Para melhor compreender essa concepção filosófica de


trabalho vide MÁRKUS (1974), LUKÁCS (1981), LEONTIEV
(1978 a e b), DUARTE (1993) entre outros.

(4) Vide DUARTE (1993 e 1996).

(5) Coloco a versão original, nessa nota, para que o leitor possa
compará-la com os colchetes que inseri na citação acima
e, assim, possa melhor entender os meandros das
argumentações que vêm sendo feitas nesse texto: „Man
sieht, wie die Geschichte der Industrie und das gewordne
gegenständliche Dasein der Industrie das aufgeschlagne
Buch der menschlichen Wesenskräfte, die sinnlich
vorliegende menschliche Psychologie ist, die bisher nicht
in ihrem Zusammenhang mit dem Wesen des Menschen,
sondern immer nur in einer äußern
Nützlichkeitsbeziehung gefaßt wurde, weil man -

25
innerhalb der Entfremdung sich bewegend - nur das
allgemeine Dasein des Menschen, die Religion, oder die
Geschichte in ihrem abstrakt-allgemeinen Wesen, als
Politik, Kunst, Literatur etc., ||IX| als Wirklichkeit der
menschlichen Wesenskräfte und als menschliche
Gattungsakte zu fassen wußte“.[Marx: Ökonomisch
philosophische Manuskripte aus dem Jahre 1844, S. 148.
Digitale Bibliothek Band 11: Marx/Engels, S. 717 (vgl. MEW
Bd. 40, S. 541-542) (grifos no original).

(6) Marx e Engels explicam: “...divisão do trabalho e propriedade


privada são expressões idênticas: a primeira enuncia em
relação à atividade, aquilo que se enuncia na segunda em
relação ao produto da atividade”. (MARX & ENGELS, 1979,
p.46).

(7) Os autores se referem à situação do indivíduo na sociedade


de classes, em que ele deixa de ser um “homem natural”
para ser um “homem casual”, isto é, o indivíduo é
considerado não mais pelos laços naturais de sua origem,
mas pela posição que passa a ocupar dentro das relações
sociais de produção — uma posição “casual”.

(8) As palavras “casualidade” e “casual” assinaladas com um


asterisco (*), nessa citação e nas duas posteriores, foram
aqui utilizadas para traduzir as palavras em alemão
“Zuffäligkeit” e “zuffälig”, respectivamente, substituindo
aquelas utilizadas pelo tradutor tais como “contingência”
e “acidental”, já que esta mudança de termos acaba
dificultando a identificação da referência que Marx e Engels
estão fazendo com o conceito de “homem casual” (em
relação ao conceito de “homem natural”).

(9) Marx e Engels explicam: “...as circunstâncias fazem os


homens, assim como os homens fazem as circunstâncias”.
(MARX& ENGELS, 1979, p.56).

(10) Vide DUARTE, 2000.

26
ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS QUE
DISTANCIAM A PERSPECTIVA SÓCIO-HISTÓRICA
VIGOTSKIANA DO CONSTRUTIVISMO
PIAGETIANO

Sueli Terezinha Ferreira Martins

Iniciada nas primeiras décadas do século XX,


a produção vigotskiana traz grande contribuição para a
construção de uma psicologia subsidiada pelo marxismo,
garantindo explicitamente os pressupostos teórico
metodológicos do materialismo histórico. As publicações
de Vigotski (1896-1934) têm sido objeto de estudo no
Brasil nas últimas décadas e têm ganhado cada vez
mais espaço na psicologia e na educação. Sua obra,
realizada em um curto espaço de tempo, nas décadas
de 1920 e 1930, em pouco mais de dez anos, portanto,
tem referenciado muitos estudos sobre o
desenvolvimento e a aprendizagem. Entre seus escritos,
os livros Formação social da mente e Pensamento e
linguagem, e a coletânea Linguagem, desenvolvimento e
aprendizagem com textos de Vigotski, Leontiev e Luria,
primeiras traduções que chegaram ao Brasil em 1984,
1987 e 1988, respectivamente, são os trabalhos mais
citados entre os educadores brasileiros. Só mais
recentemente encontramos a obra mais completa de
Vigotski com a reedição de traduções, sem os cortes
anteriores, como foi o caso da reedição de Pensamento
e Linguagem em 2001, e a publicação de parte das Obras
Escolhidas. De qualquer modo, nos últimos anos o
acesso à produção do psicólogo russo foi ampliado, seja
pela edição espanhola de sua obra, ou também, pela
difusão via grupos de pesquisa, núcleos vinculados a
programas de pós-graduação e eventos como este.
Entendemos que ocorre até certo modismo em
torno dos trabalhos vigotskianos, em grau infinitamente
menor do que o ocorrido com a produção piagetiana,
mas não menos preocupante.
Na educação brasileira, muitas publicações
27
propõem aproximações das concepções de Vigotski e
as da epistemologia genética piagetiana. O nosso
objetivo neste capítulo é ressaltar o pensamento de
Vigotski, trazendo para a nossa reflexão os
apontamentos que este foi fazendo no interior de seus
escritos sobre as diferenças que existem entre o seu
trabalho e a do pesquisador suíço. É importante
ressaltar de início que, do nosso ponto de vista, a
aproximação que muitos estudiosos brasileiros fazem
das obras vigotskiana e piagetiana é indevida,
descaracterizando exatamente as raízes marxistas do
pensador russo.
Porém, não podemos deixar de dizer que de fato
Vigotski e Piaget têm alguns pontos em comum: ambos
nasceram no mesmo ano e tiveram como preocupação
central a compreensão da gênese dos processos
psicológicos e suas implicações nas práticas
pedagógicas. Buscar semelhanças para além dessas é
desconsiderar a história, o contexto sócio-cultural e
político em que viveram; é não se debruçar com a devida
atenção nas suas produções.
Mesmo em relação aos pontos em comum, não
podemos deixar de lado o fato de que são aparentes
aproximações entre eles, pois nasceram, viveram e
produziram em contextos sociais muito diversos e
utilizaram concepções de homem e de mundo distintas.
Na Rússia (1) das primeiras décadas do século
XX, as concepções e métodos utilizados para o estudo
da mente e da consciência eram muito semelhantes
às propagadas na Europa. À frente do Instituto de
Psicologia de Moscou estava Chelpanov, adepto da
psicologia introspectiva de Wundt e opositor do
comportamentalismo. Sua perspectiva não era
materialista. Alguns anos após a revolução, Kornilov,
no 1º Congresso Soviético de Neuropsicologia, em 1923,
critica Chelpanov pelas bases idealistas da sua teoria
e propõe uma psicologia com bases materialistas e
marxistas, e logo após o substitui na direção do
Instituto. Só então é que vamos ter a formação de uma
equipe para a formulação e implementação de uma
Psicologia Marxista. Era um contexto social em que a
ciência era extremamente valorizada e esperava-se a

28
solução dos problemas sociais e econômicos. É o início
da era stalinista na União Soviética (2). É nesse
contexto que Vigotski está situado, participando da
equipe formada por Kornilov. De 1917, quando se
graduou em Direito, até 1923, Vigotski lecionava
psicologia, pedagogia e literatura. Sua inserção na área
literária nesse período, com inúmeras produções, tanto
críticas como peças teatrais, permitiu a organização
de Psicologia da Arte, em 1925, publicado no Brasil em
1999. É importante que se diga, que após a sua morte
(1934), de 1936 a 1956, a divulgação de suas produções
foi proibida na União Soviética (COLE, 1992; LURIA,
1992; LEONTIEV, 1996).
Falar sobre esse contexto é fundamental para
entender a sequência da obra vigotskiana e os motivos
que o levaram a insistentemente situar, em
praticamente todas as suas produções, as diferentes
correntes e teorias psicológicas da época, estabelecendo
o tempo todo um diálogo e as diferenças de suas
propostas em relação ao que já existia. Contemporâneo
de Piaget, Vigotski permanentemente dialogou com sua
obra. Diferentemente, raríssimas são as vezes que
encontramos esse movimento nas produções
piagetianas.

As bases filosóficas: como ignorar os


fundamentos marxistas na obra
vigotskiana?
Pelo caminho percorrido por Vigotski na
constituição de uma psicologia científica, é impossível
negar e não enxergar os fundamentos marxianos em
sua obra. Muitos esforços têm sido feitos nesse sentido,
buscando descaracterizar o trabalho do pensador russo.
DUARTE, em Vigotski e o ‘aprender a aprender’. Crítica às
apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria
vigotskiana, demonstra com precisão esse movimento,
em que os autores apresentam uma leitura das
produções do psicólogo russo “que o afasta do universo
político-ideológico de luta pela superação do capitalismo
e pela construção de uma sociedade socialista”
29
(DUARTE, 2000, p. 3). Exemplos disso são as traduções
norte-americanas e inglesas da produção vigotskiana,
as primeiras que chegaram ao Brasil e até hoje as
mais citadas pelos autores brasileiros.
Em Psicologia concreta do homem, manuscrito de
1929, publicado em número especial da Revista
Educação & Sociedade, Vigotski inicia explicitando o
significado da palavra história:

A palavra história (psicologia histórica) para mim


significa duas coisas: 1) abordagem dialética
geral das coisas – neste sentido qualquer coisa
tem sua história, neste sentido Marx: uma
ciência – a história [...], ciências naturais =
ciências da natureza, história natural; 2)
história no próprio sentido, isto é a história do
homem. Primeira história = materialismo
dialético, a segunda – materialismo histórico.
As funções superiores diferentemente das
inferiores, no seu desenvolvimento, são
subordinadas às regularidades históricas [...]
Toda a peculiaridade do psiquismo do homem
está em que nele são unidas (síntese) uma e
outra história (evolução + história). (VIGOTSKI,
2000, p. 23, grifos do autor)

Em o Método de Investigación, capítulo 2 de


História del desarrollo de las funciones psíquicas superiores,
publicado em 1931, Vigotski retoma a questão da
historicidade enquanto exigência fundamental do
método dialético. Ele diz:

Estudar algo historicamente significa estudá-lo


em movimento. Esta é a exigência fundamental
do método dialético. Quando em uma
investigação abarca-se o processo de
desenvolvimento de algum fenômeno em todas
as suas fases e mudanças, desde que surge até
que desapareça, isso implica explicitar sua
natureza, conhecer sua essência, já que
somente em movimento demonstra o corpo que
existe. Assim, a investigação histórica da
30
conduta não é algo que complementa ou ajuda o
estudo teórico, senão que constitui seu
fundamento. (VYGOTSKI, 1995, p. 67-68)

A ideia já indicada nesta passagem, de que “toda


ciência seria supérflua se houvesse coincidência
imediata entre a aparência e a essência das coisas”
citada por Marx (1981, p. 939) reaparece mais à frente,
no capítulo Análisis de las funciones psíquicas superiores
(3). Nesta ocasião, Vigotski critica a análise
fenomenológica ou descritiva que toma o fenômeno tal
como aparece externamente, acreditando que “a
aparência do objeto coincide com o nexo real dinâmico
causal que constitui suas bases” (VYGOTSKI, 1995, p.
103).
Se todos os objetos fossem fenotípica e
genotipicamente equivalentes (isto é, se os
verdadeiros princípios de sua construção e
operação fossem expressos por suas
manifestações externas), então, a experiência
do dia a dia seria plenamente suficiente para
substituir a análise científica. Tudo o que vimos
teria sido sujeito do conhecimento científico.
(VYGOTSKI, 1995, p. 103-104)

Ou seja, no método dialético, é preciso ir além


da aparência do fenômeno, buscando revelar as relações
dinâmico-causais reais subjacentes ao fenômeno,
captar as mediações que o determinam e o constituem,
contribuindo para que o concreto abstrato transforme-se
em concreto pensado, “uma rica totalidade de
determinações e relações diversas” (MARX, 1978b, p.
116). Em síntese, para a abordagem vigotskiana, a
análise psicológica implica:

análise do processo e não do objeto, que explicite


o nexo dinâmico-causal efetivo e sua relação no
lugar de indícios externos que desagregam o
processo; por conseguinte, de uma análise
explicativa e não descritiva; e, finalmente, a
análise genética que volte ao seu ponto de

31
partida e re-estabeleça todos os processos do
desenvolvimento de uma forma que em seu
estado atual é um fóssil psicológico (VYGOTSKI,
1995, p. 105-106)

Piaget, por sua vez, em A epistemologia genética,


obra publicada em 1970, mostra o caráter a-histórico
de sua teoria, dando preferência às investigações
sincrônicas em vez de diacrônicas (contemporâneas X
evolução no tempo). Ao tratar da biogênese dos
conhecimentos, contesta as posições do empirismo
(aquisição exógena) e do inatismo (núcleo fixo inato) e
propõe uma posição construtivista, sem pré-formação
exógena ou endógena; contínuas ultrapassagens das
elaborações sucessivas:

De um modo geral, as raízes biológicas dessas


estruturas e a explicação do fato de que elas se
tornam necessárias não deveriam ser
procuradas nem no sentido de uma ação
exclusiva do meio, nem de uma pré-formação à
base de puro inatismo, mas das auto-regulações
com seu funcionamento em circuitos e sua
tendência intrínseca ao equilíbrio. (PIAGET,
1978a, p. 37)

Mais à frente ele completa:

se o organismo constitui o ponto de partida do


sujeito com suas operações elaborativas, nem
por isso deixa de ser um objeto físico-químico
entre os demais, e obediente às suas leis mesmo
se acrescenta a elas novas leis. É, portanto, pelo
interior mesmo do organismo e não (ou apenas)
pelo canal das experiências externas que se faz
a junção entre as estruturas do sujeito e as da
realidade material. (PIAGET, 1978a, p. 39)

As produções piagetianas dão ênfase no aspecto


individual, na ação do sujeito sobre o meio,
naturalizando a relação indivíduo e sociedade. Sofrem
também a influência do estruturalismo (contrapondo

32
ao humanismo), atribuindo importância decisiva às
propriedades não intencionais inerentes ao
desenvolvimento em contraposição à atividade
intencional, opondo-se, assim, à essência das funções
psíquicas superiores (reflexão deliberada e
consciência). Insiste na eficácia causal de uma
estrutura profunda subjacente à aparência superficial,
imediatamente dada dos eventos. Em sua produção,
as ações conscientes e deliberadas de indivíduos e
grupos sociais são amplamente excluídas da análise e
são concebidas em termos de causalidade estrutural.
Defende ainda que o desenvolvimento humano orienta
se para a socialização do indivíduo, para a sua
capacidade cada vez maior de se relacionar socialmente
e atuar coletivamente. (PIAGET, 1978a). No seu trabalho
percebemos a concepção de social enquanto interações
entre os indivíduos ou entre indivíduo e objetos, estas
entendidas como relações mais imediatas, sem
qualquer menção ao social enquanto determinação do
desenvolvimento, através das relações sociais
materiais, presentes em Vigotski.
Em Problemas de psicologia genética (1978b),
publicado em 1972, Piaget diferencia dois aspectos no
desenvolvimento intelectual da criança: o aspecto
psicossocial, “que quer dizer tudo o que a criança recebe
do exterior, aprende por transmissão familiar, escolar,
educativa em geral” (PIAGET, 1978b, p. 211) e o aspecto
espontâneo, denominado psicológico pelo autor, “que é o
desenvolvimento da inteligência mesma: o que a criança
aprende por si mesma, o que não lhe foi ensinado, mas
o que ela deve descobrir sozinha” (PIAGET, 1978b, p.
211). Para o autor “o desenvolvimento psico-social está
subordinado ao desenvolvimento espontâneo e
psicológico” (PIAGET, 1978b, p. 212). Mais à frente,
explicita os diferentes fatores envolvidos no
desenvolvimento: a hereditariedade, a maturação
interna; a experiência física, a ação do objeto; a
transmissão social, o fator educativo; a equilibração.
Considera a equilibração como o fator fundamental do
desenvolvimento, enquanto os outros três fatores
ocupam espaço secundário em sua epistemologia.
Na perspectiva vigotskiana, o desenvolvimento

33
não se orienta para a socialização, mas
fundamentalmente para a conversão das relações
sociais em funções psíquicas (VYGOTSKI, 1995, p. 151).
O social tem muita importância para a compreensão da
teoria de Vigotski. “Primeiro, no sentido mais amplo
significa que todo o cultural é social. Justamente a
cultura é um produto da vida social e da atividade social
do ser humano [...]” (VYGOTSKI, 1995, p. 150-151). São
as relações sociais que o indivíduo estabelece com
outros indivíduos no decorrer de sua história individual
e pessoal e, também, a forma de organização social e
política.
Todas as funções psíquicas superiores são
relações interiorizadas de ordem social, são o
fundamento da estrutura social da personalidade.
Sua composição, estrutura genética e modo de
ação, em uma palavra, toda sua natureza é
social; inclusive ao converter-se em processos
psíquicos segue sendo quase-social. O homem,
inclusive sozinho consigo mesmo, conserva
funções de comunicação.

Modificando a conhecida tese de Marx (4),


poderíamos dizer que a natureza psíquica do
homem vem a ser um conjunto de relações
sociais transportadas ao interior e convertidas
em funções da personalidade e em formas de sua
estrutura. (VYGOTSKI, 1995, p. 151)

A concepção de desenvolvimento humano


e a aprendizagem

Vigotski nos trabalhos Estudo do desenvolvimento


dos conceitos científicos na idade infantil, capítulo de
Pensamento e linguagem (VYGOTSKI, 1993) e Interação
entre aprendizado e desenvolvimento (VIGOTSKI, 1989),
após a apresentação das diferentes concepções sobre
a relação entre desenvolvimento e aprendizagem,
34
defende que o desenvolvimento humano ocorre na
relação com a própria vida do indivíduo: relação com a
atividade, tanto aparente quanto interna. Assim, o lugar
ocupado pela criança nas relações sociais, suas
condições reais de vida, é a primeira coisa que deve
ser notada quando buscamos compreender as
determinações do desenvolvimento do psiquismo.
Desse modo, Vigotski chama a atenção para o
fato de que o processo de desenvolvimento das funções
psíquicas especificamente humanas, que ele denomina
de funções psíquicas superiores (5), depende de leis
sociais objetivas e ocorre por meio da apropriação da
produção social acumulada historicamente. Não está
submetido às leis biológicas, mas às leis sócio
históricas: as desigualdades entre os homens não
provêm das suas diferenças biológicas naturais. Elas
são produtos da desigualdade econômica.
A vinculação desse autor à visão materialista,
que concebe o homem enquanto fenômeno social, é
explicitada, estabelecendo uma clara diferença com
outras concepções de desenvolvimento humano
presentes no meio educacional, entre elas a concepção
piagetiana. Ainda em Método de Investigación (1995),
Vigotski ressalta que o desenvolvimento e a
aprendizagem são produtos de um processo enraizado
nas ligações entre história individual e história social
e o papel ativo do ser humano na transformação da
natureza, na criação e no emprego dos signos.

O homem introduz estímulos artificiais, confere


significação a sua conduta e cria com ajuda dos
signos, atuando de fora, novas conexões no
cérebro. [...] introduzimos como suposto em nossa
investigação um novo princípio regulador da
conduta, uma nova idéia sobre a determinação
das reações humanas – o princípio da
significação –, segundo o qual é o homem que
forma de fora conexões no cérebro, o dirige e
através dele, governa seu próprio corpo.
(VYGOTSKI, 1995, p.85)

É nessa passagem que o autor ressalta que a

35
formação do novo princípio regulador da conduta é a
vida social e a interação dos seres humanos. Um homem
influi em outro através da linguagem, e isto ocorre,
porque o signo, assim como a ferramenta, tem uma
função mediadora.

Por meio da ferramenta o homem influi sobre o


objeto de sua atividade. A ferramenta está
dirigida para fora: deve provocar umas ou outras
mudanças no objeto. É o meio da atividade
exterior do homem, orientado a modificar a
natureza. O signo não modifica nada no objeto
da operação psicológica: é o meio de que se vale
o homem para influir psicologicamente, bem em
sua própria conduta, quanto na dos demais; é
um meio para sua atividade interior, dirigida a
dominar o próprio ser humano: o signo está
orientado para dentro. (VYGOTSKI, 1995, p. 94)

O autor defende que o desenvolvimento é mais


lento do que a aprendizagem. O aprendizado não é
desenvolvimento, mas, se adequadamente organizado,
pode ativar e resultar em processos de desenvolvimento.
“Assim, o aprendizado é um aspecto necessário e
universal do processo do desenvolvimento das funções
psicológicas culturalmente organizadas e
especificamente humanas” (VIGOTSKI, 1989, p. 101).
Nesse sentido, Vigotski é claro ao propor a
unidade entre desenvolvimento e aprendizado,
enfatizando a relação de interdependência entre os
dois processos. Ele pressupõe a existência do nível de
desenvolvimento atual, que diz respeito àquelas
atividades que o indivíduo já interiorizou, tudo aquilo
que é capaz de fazer sozinho, sem ajuda de outras
pessoas. No entanto, ressalta o autor, o
desenvolvimento não se restringe apenas a essas
atividades, mas deve considerar também as funções
ainda em processo de desenvolvimento, com as quais o
indivíduo não tem autonomia para lidar. A discrepância
entre o nível de desenvolvimento atual, que é detectada
pela comparação entre os problemas resolvidos com
autonomia e o nível que ela atinge ao resolver

36
problemas sem autonomia, em colaboração com outra
pessoa, determina a zona de desenvolvimento imediato
da criança (VIGOTSKII, 1988, p. 111-113; VIGOTSKI,
1989, p. 95-97; VYGOTSKI, 1993, p. 238-240; VIGOTSKI,
2001, p. 327).
Um ensino orientado até uma etapa de
desenvolvimento já realizado é ineficaz do ponto
de vista do desenvolvimento geral da criança, não
é capaz de dirigir o processo de desenvolvimento,
mas vai atrás dele. A teoria do âmbito de
desenvolvimento potencial origina uma fórmula
que contradiz exatamente a orientação
tradicional: o único bom ensino é o que se
adianta ao desenvolvimento. [...] o
desenvolvimento das funções psicointelectuais
superiores na criança, dessas funções
especificamente humanas, formadas no decurso
da história do gênero humano, é um processo
absolutamente único. Podemos formular a lei
fundamental deste desenvolvimento do seguinte
modo: Todas as funções psicointelectuais
superiores aparecem duas vezes no decurso do
desenvolvimento da criança: a primeira vez, nas
atividades coletivas, nas atividades sociais, ou
seja, como funções interpsíquicas; a segunda,
nas atividades individuais, como propriedades
internas do pensamento da criança, ou seja,
como funções intrapsíquicas. (VIGOTSKII, 1988,
p. 114, grifo do autor)

Assim, conclui-se que a instrução deve estar


voltada para o futuro e não para o passado, enfatizando
o papel da cooperação no desenvolvimento psíquico
através da imitação e do ensino, pressupondo que a
aprendizagem da criança começa muito antes da
aprendizagem escolar, e que esta tem uma história
anterior, nunca partindo do zero. Porém, Vigotski
afirma que a existência dessa pré-história da
aprendizagem escolar não implica necessariamente
uma continuidade direta entre as duas etapas do
desenvolvimento. Nessa perspectiva, o papel da
37
educação escolar é fundamental. “O caminho do objeto
até a criança e desta até o objeto passa através de
outra pessoa. Essa estrutura humana complexa é
produto de um processo de desenvolvimento enraizado
nas ligações entre história individual e história social”
(VIGOTSKI, 1989, p. 40).
Ao abordar a imitação, o autor alerta para o
fato de que não se trata apenas de uma mera
reprodução. Ao imitar, a criança, segundo Vigotski,
adquire ações e formas de sociabilidade: “as crianças
podem imitar uma variedade de ações que vão muito
além dos limites das suas próprias capacidades. Numa
atividade coletiva ou sob a orientação dos adultos,
usando a imitação, as crianças são capazes de fazer
muitas coisas” (VIGOTSKI, 1989, p. 115).
Nitidamente distinta é a concepção apresentada
por Piaget, já que este enfatiza o papel da adaptação
por equilibração no desenvolvimento e suas bases
biológicas, secundarizando a influência do meio físico,
da ação dos objetos e da transmissão social, o fator
educativo. A equilibração é compreendida enquanto
reação do sujeito às perturbações exteriores,
compensação que atinge a reversibilidade operatória
no fim do desenvolvimento. (PIAGET, 1978b). Em Para
onde vai a educação?, Piaget afirma que as supostas
aptidões diferenciadas dos bons alunos, em igual nível
de inteligência “consistem principalmente na sua
capacidade de adaptação ao tipo de ensino que lhes é
fornecido” (PIAGET, 1977, p. 17). A perspectiva
construtivista, por contínuas ultrapassagens das
elaborações sucessivas, como vimos, do ponto de vista
pedagógico, leva, segundo Piaget, a dar toda ênfase às
atividades que favoreçam a espontaneidade da criança.
Em relação ao desenvolvimento, Piaget está
preocupado em compreender as raízes das diversas
formas de conhecimento, “desde as suas formas mais
elementares, e seguir sua evolução até os níveis
seguintes, até, inclusive, o pensamento científico”
(PIAGET, 1978a, p. 3). Ele afirma que o problema da
epistemologia é o aumento dos conhecimentos, isto é,
“da passagem de um conhecimento inferior ou mais
pobre a um saber mais rico (em compreensão e em
38
extensão)” (PIAGET, 1978a, p. 4). Assim, a partir dessa
compreensão, propõe as diferentes fases de
desenvolvimento, em que os níveis sensório-motores
são iniciais, chegando à inteligência operatória
(abstração formal) no nível mais rico e elaborado do
desenvolvimento humano, “independentemente de que
a criança receba ou não instrução” (VYGOTSKI, 1993,
p. 220). Desenvolve-se de dentro para fora (motivação
vem do interior da estrutura operativa) e uma vez
conhecidas as estruturas, elas se tornam disponíveis.
As estruturas posteriores formam-se sobre as
anteriores e as incorporam numa síntese superior.
Diferente da concepção vigotskiana de nível de
desenvolvimento potencial e da importância atribuída
às relações sociais, já apresentada, Piaget afirma:

Não creio mesmo que haja vantagem em acelerar


o desenvolvimento da criança além de certos
limites. Muita aceleração corre o risco de romper
o equilíbrio. O ideal da educação não é aprender
ao máximo, maximalizar os resultados, mas é
antes de tudo aprender a aprender; é aprender a
se desenvolver e aprender a continuar a se
desenvolver depois da escola. (PIAGET, 1978b, p.
225)

Nesse sentido, a aprendizagem para o autor


suíço depende de circunstâncias particulares e seria
a aquisição de novos hábitos ou de nova informação,
associada à experiência especial (abstração física,
focalização de atributos); geralmente depende de
alguma recompensa e o esquecimento é um fato
constante. Para Piaget, as estruturas desenvolvidas
constituem a capacidade básica que possibilita a
aprendizagem particular.

A relação entre pensamento e linguagem

No capítulo O problema e o método de


investigação, do livro Pensamento e Linguagem, publicado
em 1934, Vygotski (1993) aprofunda sua compreensão
39
sobre a relação entre o pensamento e a palavra,
chamando a atenção para análise em unidades. “Por
unidade entendemos o resultado da análise que,
diferente dos elementos, goza de todas as propriedades
fundamentais características do conjunto e constitui uma
parte viva e indivisível da totalidade” (VYGOTSKI, 1993,
p. 19). Essa unidade, para o autor, seria o aspecto
interno da palavra, o seu significado, pois a palavra
sempre se refere não a um objeto isolado qualquer,
mas a todo um grupo ou toda uma classe de objetos.
“Devido a isso, em cada palavra subjaz uma
generalização” (VYGOSTSKI, 1993, p. 20).
A análise por unidades “demonstra que existe
um sistema dinâmico de significados em que o afetivo
e o intelectual se unem, mostra que todas as ideias
contêm, transmitida, uma atitude afetiva para com a
porção de realidade a que cada uma delas se refere”
(VYGOTSKI, 1993, p. 24).
Na visão vigotskiana o desenvolvimento dos
conceitos, dos significados das palavras, pressupõe o
desenvolvimento de muitas funções intelectuais:
atenção deliberada, memória lógica, abstração,
capacidade para comparar e diferenciar. Nessa
perspectiva, a instrução é uma das principais fontes
dos conceitos da criança e do adolescente; determina
o destino de todo o seu desenvolvimento mental
(funções intelectuais superiores – consciência refletida
e controle deliberado).
A questão levantada traz, entre outros aspectos,
a discussão sobre os conceitos cotidianos ou
espontâneos. Conhecer a atividade principal e o sentido
que determinados conteúdos têm para o aluno significa,
entre outras ações, explorar os conceitos cotidianos
que este traz para a sala de aula, para, a partir deles,
contribuir com o processo de apropriação pelos alunos
de conceitos científicos, produção social acumulada
historicamente.
Os conceitos cotidianos se formam durante o
processo da experiência pessoal da criança, numa
situação de confronto com uma situação concreta, ao
passo que os conceitos científicos, que se formam no
processo de instrução, “se distinguem dos espontâneos

40
por uma relação distinta com a experiência da criança, por
uma relação distinta com seu objeto e pelos diferentes
caminhos que percorrem desde o momento em que
nascem até que se formam definitivamente”
(VYGOTSKI, 1993, p. 195-196, grifo do autor). Os
conceitos cotidianos se processam de baixo para cima,
das propriedades mais elementares às superiores. Os
conceitos científicos, por sua vez, desenvolvem-se para
baixo, através de propriedades mais complexas e
superiores para outras mais elementares e inferiores,
fornecendo estruturas para o desenvolvimento
ascendente destes, facilitando a tomada de consciência
e a utilização deliberada dos conceitos pela criança.
Vigotski posiciona-se contrário ao modo como
as principais escolas de pensamento respondiam à
questão naquele momento, defendendo que um conceito

Não é simplesmente um conjunto de ligações


associativas que se assimila com ajuda da
memória, não é um hábito mental automático,
senão um autêntico e complexo ato do
pensamento. Como tal, não pode dominar-se com
ajuda da simples aprendizagem, senão que exige
infalivelmente que o pensamento da criança se
eleve em seu desenvolvimento interno a um grau
mais alto para que o conceito possa surgir na
consciência. A investigação nos ensina que em
qualquer grau de desenvolvimento o conceito é,
desde o ponto de vista psicológico, um ato de
generalização. [...] A palavra é a princípio uma
generalização do tipo mais elementar, e
unicamente à medida que se desenvolve a
criança passa da generalização elementar para
formas cada vez mais elevadas de generalização,
culminando com o processo de formação de
autênticos e verdadeiros conceitos.

O processo de desenvolvimento dos conceitos ou


dos significados das palavras exige o
desenvolvimento de uma série de funções (a
atenção voluntária, a memória lógica, a
abstração, a comparação e a diferenciação), de

41
modo que processos psíquicos tão complexos não
podem ser aprendidos e assimilados de modo
simples. (VYGOTSKI, 1993, p. 184-185, grifo do
autor)

Os conceitos espontâneos e não espontâneos


não têm caminhos opostos em seu desenvolvimento,
encontrando-se estreitamente inter-relacionados,
fazendo parte de um único processo. Tanto os conceitos
espontâneos quanto os científicos são afetados por
condições externas e internas, sendo a instrução uma
das principais fontes dos conceitos da criança em idade
escolar. É no início da idade escolar que as funções
intelectuais superiores, que exigem consciência
refletida e controle deliberado, passam a ocupar o
primeiro plano no processo de desenvolvimento
(VYGOTSKI, 1993, p. 208). O autor sintetiza:

Somente dentro de um sistema o conceito pode


adquirir um caráter voluntário e consciente. O
caráter consciente e a sistematização são
plenamente sinônimos quanto aos conceitos, o
mesmo que o são espontaneidade, a-consciência
e ausência de sistematização, três termos
diferentes para denominar o mesmo na natureza
dos conceitos infantis. (VYGOTSKI, 1993, p. 215)

Na perspectiva piagetiana, o pensamento


precede a linguagem e esta se limita a transformá-lo.
A linguagem amplia o poder do pensamento conferindo
às operações mobilidade e generalidade, principalmente
a partir das operações concretas, atingindo o ápice na
adolescência. São consideradas outras fontes do
pensamento: os símbolos (derivados da imitação,
aparecem mais ou menos com a linguagem, porém são
independentes dela) — jogo simbólico; imitação
retardada; imaginação mental (PIAGET, 1984).
No construtivismo piagetiano são enfatizadas
as atividades que favoreçam a espontaneidade do
indivíduo (conceitos cotidianos formados sem
intervenção da educação sistemática). A existência dos
conceitos está desligada do contexto e não é

42
mediatizada pela criança.
Voltando ao pensamento de Vigotski, são duas
as funções básicas da linguagem: comunicação e
generalização (VYGOTSKI, 1993, p. 22).

A função inicial da linguagem é a comunicativa.


A linguagem é antes de tudo um meio de
comunicação social, um meio de expressão e
compreensão. [...] Sabe-se que a linguagem
combina a função comunicativa com a de pensar,
mas não se tem investigado, nem se investiga
que relação existe entre ambas funções, que
condiciona sua coincidência na linguagem,
como se desenvolvem, nem como estão unidas
estruturalmente entre si.

[...] A comunicação baseada na compreensão


racional e na transmissão premeditada do
pensamento e das sensações exige
necessariamente um determinado sistema de
meios, protótipo do qual tem sido, é e será sempre
a linguagem humana, surgida da necessidade de
comunicação no trabalho. (VYGOTSKI, 1993, p.
21-22, grifo do autor)

Um dos pontos mais polêmicos do debate de


Vigotski e Piaget é exatamente a compreensão da
relação do pensamento e linguagem,
fundamentalmente no que Piaget denominou de
egocentrismo e discurso egocêntrico. Para ele, o elo
que liga todas as características específicas da lógica
infantil é o egocentrismo do pensamento das crianças.
Em Linguagem e Pensamento da Criança (1986), publicado
em 1923, o autor suíço estabelece uma distinção entre
o pensamento autístico, definido por ele como
individualista, não adaptado à realidade externa, e o
pensamento orientado, social, consciente, adaptado à
realidade. Para esse autor, o discurso egocêntrico
limita-se a acompanhar a atividade, precede o discurso
socializado e desaparece com o tempo, à medida que o
egocentrismo vai perdendo espaço e o pensamento
orientado torna-se hegemônico. Assim, para Piaget, o

43
discurso egocêntrico da criança é uma expressão do
egocentrismo do seu pensamento, não se adapta ao
pensamento dos adultos e não tem função no
pensamento.
Vigotski tem uma posição muito diferente desse
processo. Suas experiências evidenciaram “que a
linguagem egocêntrica converte-se em um instrumento
para pensar em sentido estrito, ou seja, começa a
exercer a função de planejar a resolução da tarefa
surgida no curso de sua atividade” (VYGOTSKI, 1993,
p. 51). Para ele, o discurso egocêntrico é um fenômeno
de transição entre o funcionamento interpsíquico e o
funcionamento intrapsíquico, da atividade social e
coletiva para a sua atividade mais individualizada.

A função inicial da linguagem é a de


comunicação, de conexão social, de influenciar
quem nos rodeia, tanto por parte dos adultos como
da criança. Por conseguinte, a linguagem inicial
da criança é somente social; chamá-la
linguagem socializada não é correto, porque
implica a idéia de uma linguagem originalmente
não social que se faz social ao longo do processo
de mudança e desenvolvimento.

Durante o desenvolvimento posterior, a


linguagem social da criança, que no início é
multifuncional, evolui segundo o princípio da
diversificação de funções independentes e, em
determinada idade, se diferencia nitidamente
em linguagem egocêntrica e comunicativa. [...]
a linguagem egocêntrica emerge no curso de um
processo social, quando as formas sociais de
comportamento, as formas de cooperação
coletiva, passam para a esfera das funções
psicológicas individuais da criança. (VYGOTSKI,
1993, p. 56-57)

Assim, enquanto para Piaget, a linguagem


egocêntrica é uma fase de transição do autismo para a
lógica, do íntimo, individual, para o social, para Vigotski
trata-se de uma forma transitória da linguagem externa

44
para a interna, da linguagem social para a individual.
Vigotski conclui: “A verdadeira direção do processo de
desenvolvimento do pensamento da criança não vai do
individual ao socializado, mas do social ao individual”
(VYGOTSKI, 1993, p. 59).
Para Vigotski, a linguagem egocêntrica
transforma-se, portanto, em linguagem interna.
Enquanto a primeira caracteriza-se como um discurso
externo no seu modo de expressão e como um discurso
interno na sua função e na sua estrutura, a segunda
volta-se para dentro, para o pensamento, estando a
serviço da orientação mental, da compreensão
consciente. Tanto uma quanto a outra preenchem
funções intelectuais.

Considerações finais

A obra vigotskiana é extensa e rica, e teríamos


ainda muitos apontamentos e reflexões a fazer sobre
sua produção. No entanto, procuramos priorizar alguns
aspectos mais pesquisados e divulgados do seu trabalho
como a concepção de desenvolvimento humano e os seus
desdobramentos na aprendizagem e a relação
pensamento e linguagem. Ao mesmo tempo, buscamos
enfatizar o contexto sócio-histórico em que seu trabalho
foi produzido e as bases filosóficas marxianas que o
subsidiaram. Desse modo, esperamos contribuir para
diferenciá-lo de outras concepções, apresentando
aspectos teórico-metodológicos e políticos que
distanciam a abordagem sócio-histórica vigotskiana do
construtivismo piagetiano.

Referências

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mente. Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Ícone,
1992. p. 07-19.

45
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apropriações neoliberais e pós modernas da teoria vigotskiana.
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Tradução: Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
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LURIA, A. R. A construção da mente. Tradução: Marcelo Brandão


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Tradução: José Arthur Giannotti e Edgar Malagodi. 2ª ed., São
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Olympio/UNESCO, 1977.

______. A epistemologia genética. In: Piaget. Tradução:


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Célia E. A Di Piero. São Paulo: Abril Cultural, 1978b. p. 209-94.
(Os Pensadores)

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D’Amorim, Paulo Sérgio Lima Silva. 12ª ed., Rio de Janeiro:
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______. A linguagem e o pensamento da criança. Tradução: Manuel


Campos. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

46
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Cipolla Neto, Luis S. M. Barreto, Solange, C. Afeche. 3ªed. São
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vol. II. Madrid: Visor, 1993.

______. Obras escogidas. Tradução: Lydia Kuper. vol. III. Madrid:


Visor, 1995.

Notas

(1) A partir de 1921, denominada União das Repúblicas


Socialistas Soviéticas (URSS).

(2) Stalin assumiu o poder na União Soviética em 1924, após


a morte de Lênin, e morreu em 1953.

(3) Esta questão já estava presente em O significado histórico


da crise da psicologia (VIGOTSKI, 1996. p. 383-384) e
reaparece em Pensamento e linguagem (VYGOTSKI, 1993.
p. 216).

(4) Vigotski refere-se à VI tese contra Feuerbach:


47
“Feuerbach resolve o mundo religioso na essência humana.
Mas a essência humana não é abstrato residindo no
indivíduo único. Em sua efetividade é o conjunto das
relações sociais.

Feuerbach, que não entra na crítica dessa essência efetiva,


é por isso forçado:

1) A abstrair o curso histórico e fixar o ânimo religioso


como para-si, pressupondo um indivíduo humano, abstrato
e isolado.

2) Por isso, “a essência só pode ser captada como “gênero”,


generalidade interna, muda, que liga muitos indivíduos
de modo natural.” (MARX, 1978a. p. 52, grifo do autor).

(5) Para Vigotski, as funções intelectuais superiores são


aquelas cujas características principais são a consciência
refletida e o controle deliberado, que só aparecem num
estágio relativamente tardio do desenvolvimento. “Trata
se, em primeiro lugar, de processos de domínio dos meios
externos do desenvolvimento cultural e do pensamento: a
linguagem, a escrita, o cálculo, o desenho; e, em segundo,
dos processos de desenvolvimento das funções psíquicas
superiores especiais, não limitadas nem determinadas
com exatidão, que na psicologia tradicional se denominam
atenção voluntária, memória lógica, formação de conceitos
etc.” (VYGOTSKI, 1995. p. 29)

48
IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS DA ESCOLA DE
VIGOTSKI: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Lígia Márcia Martins

Tomarmos como foco de nossas reflexões as


implicações da escola de Vigotski para a educação
permite-nos resgatar um dos anseios desse estudioso
que, no prólogo à edição russa de seu livro Psicologia
Pedagógica, publicado em 1926, já afirma seu objetivo
de auxiliar o professor no desempenho de seu trabalho
bem como contribuir com a elaboração de uma
concepção científica do processo pedagógico.
Embora tenha sido em sua trajetória posterior
que Vigotski efetivamente avançou em direção à
sistematização dos princípios que viriam constituir a
teoria histórico-cultural, podemos afirmar que toda sua
produção esteve comprometida com a consolidação de
uma ciência da educação a serviço do pleno
desenvolvimento dos indivíduos.
Vigotski iniciava seu curso na “Escola de
Formação de Professores”, em Gomel, pequena cidade
próxima a Moscou, lançando uma interrogação: o que é
educação? A essa pergunta respondia citando um de
seus professores, Pável Blonski, para quem “a educação
é a influência premeditada, organizada e prolongada
no desenvolvimento de um organismo” (VIGOTSKI,
2003).
É a partir dessa definição que teceremos nossas
considerações acerca do tema em pauta. O primeiro
ponto a se destacar reporta-nos à premeditação da
educação. Premeditar, do verbo latino praemeditari,
significa resolver antecipadamente, ou ainda, planejar,
intencionar a ação. Vigotski remete-nos à dimensão
teleológica da educação, a exigir conhecimentos sobre
quem é o indivíduo que se educa e a que fins atende a
educação. Nesse sentido, conforme afirma Duarte
(1993), conhecer o indivíduo, o aluno, em sua
concreticidade não se limita ao conhecimento do que
ele é, mas também ao conhecimento do que ele pode
49
vir a ser, e este conhecimento exige um claro
posicionamento em favor de algumas das possibilidades
desse vir-a-ser e consequentemente, contra outras.
Portanto, se a educação é uma influência
premeditada, compreendê-la em sua totalidade e
finalidade demanda situá-la no âmbito das formas
políticas e econômicas pelas quais se reveste
historicamente a organização social. E o que nos
apresenta a organização social contemporânea?
Apresenta-nos o fortalecimento do capital financeiro,
a legitimação dos processos de reprodução social que
coisificam o ser humano, que transformam a educação
em possibilidade de consumo individual, reduzindo-a à
condição de mercadoria. Trata-se de uma organização
política e econômica que, sob a égide do capital, busca
preparar os indivíduos para suportá-la pela via da
integração adaptativa, isto é, pela primazia do trabalho
alienado.
Saviani, em análise apresentada no IV
Congresso Nacional de Educação (CONED) acerca do
sistema nacional de ensino, afirma o quanto a política
educacional implementada pelo MEC acentua
desigualdades educacionais, na medida em que se
caracteriza pela flexibilização, diferenciação e
diversificação do processo de ensino resultantes da
descentralização das responsabilidades para com a
política educacional, transferindo-a cada vez mais para
os municípios, para as empresas, para as ONGs, para
as comunidades próximas às escolas, para as famílias,
voluntários, etc. Considera, ainda, que por tais
estratégias particularizam-se os modelos de
funcionamento e gestão do ensino escolar, ao mesmo
tempo em que se acirram as estratégias de controle
sobre os seus resultados por meio do sistema nacional
de avaliação. Na análise que faz, o autor alerta-nos
sobre a gravidade da situação presente, que ainda
impõe a universalização do ensino fundamental
enquanto efetiva possibilidade de acesso à cultura, dado
que se vê ameaçado pela política educacional em curso.
Resgatando, então, que a educação é uma
influência premeditada, duas questões tornam-se
cruciais. A primeira delas refere-se à necessária

50
negação desse modelo educacional que se coloca a
serviço da continuidade de uma ordem social que acirra
o empobrecimento objetivo e subjetivo dos indivíduos e
colabora com o esgarçamento das bases sociais
valorativas que conferem o significado e o sentido da
vida humana. Na medida em que esse modelo indica o
atendimento às novas demandas do processo neoliberal
globalizado, urge uma recusa intencional a seu
atendimento. Uma pedagogia que se fundamenta no
pensamento vigotskiano não pode preterir a crítica às
concepções neoliberais de educação.
A segunda questão decorre desta primeira e
implica a afirmação da função essencial da escola, qual
seja, a socialização do saber historicamente produzido
tendo em vista a máxima humanização dos indivíduos.
Assim sendo, consideramos que a nenhum título pode
ser preterido o papel humanizador da educação,
levando-se em conta que educar implica dada intenção,
implica um efetivo posicionamento político-pedagógico,
pressupõe tomada de decisões do educador, a todo o
momento, “a favor de algumas possibilidades e contra
outras...”.
Quais então as possibilidades do dever-ser
humano perante as quais assumiremos uma posição
afirmativa? Fundamentalmente aquelas que indicam
a formação dos processos psicológicos superiores, que,
por sua vez, exigem apropriações da cultura material e
intelectual tendo em vista a superação das formas
primitivas de pensamento e o desenvolvimento da
consciência.
Segundo Vigotski (1996), as funções psicológicas
superiores representam o substrato da consciência
humana, regulando o comportamento dos homens e,
definitivamente, diferenciando-os dos animais.
Considerando a origem social dessas funções, ou seja,
o fato de que apenas se desenvolvem pela mediação
das relações entre os homens, o autor virá afirmar a
apropriação da cultura enquanto condição para a
estruturação do pensamento humano e consequente
compreensão da realidade social e natural. Portanto
as funções psicológicas superiores sustentam o
desenvolvimento da consciência que, por sua vez, exige

51
o pensamento em conceitos.
A consciência é uma manifestação superior do
psiquismo, surgindo como consequência de
transformações e complexificações próprias ao processo
de humanização (LEONTIEV, 1978). O significado
atribuído ao conceito consciência implica a percepção
do fenômeno dentro do sistema de relações objetivas
que o sustentam e é para o estabelecimento destas
relações que a formação de conceitos assume
importância sem par.
Vigotski (1996) afirma que o pensamento em
conceitos é o meio mais adequado para se conhecer a
realidade e, apenas por essa via, é possível apreender
a essência interna (concreta) dos objetos, uma vez que
esta não se revela de imediato, no contato direto com
o fenômeno. Os nexos e relações que se manifestam
na dinâmica dos objetos, cujo desenvolvimento vincula
se à realidade como um todo, demandam a análise
mediada pelas abstrações, isto é, o domínio do
pensamento em conceitos, sendo esta a essência da
“análise genético-causal” por ele proposta. Isso posto,
redundante se torna dizer da importância atribuída
pela teoria histórico-cultural à educação escolar,
restando-nos reafirmar a assertiva de Duarte (1998)
acerca da necessária busca por concepções afirmativas
do ato de ensinar.
E quais serão as possibilidades perante as quais
assumiremos intencionalmente uma posição negativa?
Essencialmente as possibilidades que se concretizam
em modelos que preterem a educação enquanto traço
ineliminável do desenvolvimento humano e uma das
condições pelas quais o ser hominizado humaniza-se
no processo histórico social. Tais modelos, ao preterirem
a transmissão dos conhecimentos básicos
indispensáveis a uma formação intelectual que
assegure o domínio da cultura letrada de base
científica, aprisionam os indivíduos nos limites das
funções psicológicas elementares que se caracterizam
pelo domínio das relações espontâneas e a decorrente
formação de conceitos também espontâneos.
A roupagem pela qual se revestem tais modelos
atualmente é a retórica segundo a qual é urgente a

52
revisão dos processos de ensino-aprendizagem tendo
em vista melhor adequá-los à realidade concreta de
vida dos educandos e aos diferentes ritmos de
aprendizagem. Toma-se a construção do conhecimento
enquanto produto das elaborações cognitivas individuais
dos alunos na base de suas próprias experiências e de
seu cotidiano. Entretanto, como afirma Heller (1972),
o homem já nasce inserido em sua cotidianidade, e
seu desenvolvimento primário identifica-se com a
aquisição das habilidades e conhecimentos necessários
para vivê-la por si mesmo. Porém, a máxima
humanização dos indivíduos pressupõe a apropriação
de formas de elevação acima da vida cotidiana, e, nessa
elevação, a formação escolar exerce um papel
insubstituível.
Até este momento estivemos procurando
explicitar nossa compreensão acerca da
intencionalidade da educação propalada por Vigotski,
que, como afirma Duarte, “... situava a formação
intencional dos seres humanos por meio da educação
no centro de sua teoria psicológica” (DUARTE, 2000, p.
254).
O segundo atributo da definição de educação
apresentada por Vigotski a partir de Blonski refere-se
à sua organização. A análise que imprimiremos a esta
questão fundamenta-se em proposições de Demerval
Saviani expostas em seus livros Educação Brasileira:
estrutura e sistema (2000) e A nova lei da educação (LDB):
trajetória, limites e perspectivas (1997). A partir das
ideias desse autor buscaremos em Vigotski algumas
de suas contribuições acerca da organização do processo
educativo em face de seus objetivos essenciais.
A instituição escolar representa um fenômeno
histórico recente que remonta aos finais do século
XVIII, vindo firmar um novo modo de socialização, isto
é, o modo escolar. Essa forma, tornando-se dominante
nas sociedades contemporâneas, demanda, segundo
Saviani (2000), sistematização, ou seja, uma dada
organização, em um todo articulado e coerente,
sustentado por valores e finalidades, na base dos quais
são definidos os critérios de ordenação dos elementos
integrantes dessa totalidade. No atendimento da

53
demanda organizativa serão impressas várias atividades
circunscritas por normas que expressam os valores de
base das finalidades pretendidas, isto é, implanta-se
um sistema educacional. Nas sociedades modernas, a
competência para legislar e, portanto, instituir os
sistemas que operam em toda comunidade é do Estado,
donde resulta uma relação unívoca entre o modelo de
Estado e seu correspondente sistema de educação.
Ainda segundo esse autor, em suas origens
(decorrer do século XIX), os sistemas nacionais de
educação foram implantados tendo em vista a
erradicação do analfabetismo e a universalização da
instrução popular, iniciativa esta que não se fez
presente no Brasil e que marca o imenso déficit
histórico brasileiro no campo da educação. Foi a partir
da constituição de 1934 que a União trouxe para si a
tarefa de organizar a educação em todo país, o que
significou implantar um sistema nacional de educação.
Ao pretendermos focalizar o Sistema Nacional
de Educação ao qual estamos submetidos, o alvo não
pode ser outro senão a Lei de Diretrizes e Bases e os
projetos que nela se consubstanciam. De acordo com
Saviani (1998), a política educacional que vem sendo
implementada no Brasil denota a adoção de princípios
característicos do modelo norte-americano.
Diferentemente do que acontece na maioria dos países
europeus, que enfatizam a formação intelectual e a
construção de um cabedal cultural básico, tendo em
vista igualdade de condições educacionais, o referido
modelo atribui à escola básica a função de,
essencialmente, socializar os alunos, vinculando-a aos
municípios e preterindo um gerenciamento nacional
da educação. Por consequência, a gestão do ensino
escolar fica submetida a distintas iniciativas, dando
margem a distorções que esvaziam a escola de sua
função de ensinar.
O autor destaca, ainda, que, se esse modelo já
aponta nefastas consequências nos Estados Unidos
que, ao adotá-lo, já havia garantido a universalização
da educação em todos os níveis, que dizer do Brasil
onde sequer existe a universalização do ensino básico.
Nesse sentido, Saviani (1998) alerta sobre o risco de

54
se universalizar o ensino fundamental no Brasil sem,
contudo, erradicar o analfabetismo, postergando ainda
mais a igualdade de acesso aos bens culturais.
Pelo exposto, fica mais uma vez evidente a
intervinculação entre Estado e Educação, o que reitera
a necessidade de reconhecimento, nos meandros do
sistema educacional em vigência, do projeto político
neoliberal em curso. Esse projeto, para além de nos
forçar a conviver com o progressivo afastamento do
Estado no tocante às políticas públicas de direitos
sociais, traz em seu esteio um ideário que apregoa
uma sociedade de homens livres, responsáveis,
empreendedores e competitivos, posto que destinados
a escolhas, mudanças e sucesso individual.
Gentili (2001), referindo-se à perspectiva
neoliberal em educação, denuncia que o desafio que
se apresenta é a formação para a competência num
mercado de trabalho cada vez mais restrito e
competitivo, submetido à lógica segundo a qual os
indivíduos realizam-se a si mesmos. A educação se
coloca, então, com a função de instruir e adaptar,
preparando a inteligência para resolver problemas
concretos de uma realidade circunscrita às
necessidades primárias de sobrevivência.
Quando as formas historicamente elaboradas
de conhecimentos são preteridas e o ato pedagógico
alijado em seu conteúdo, é obvio que tal fato não quer
dizer o desaparecimento do conhecimento escolar;
outrossim, implica apontar que o processo ensino
aprendizagem passa a estar orientado por outra
concepção de conhecimento. Nessa concepção, o
conhecimento representa um produto individual e um
recurso cognitivo para adaptação do indivíduo ao meio.
A função adaptativa do conhecimento reitera sua
subserviência ao contexto, uma vez que este passa a
definir e comportar os critérios de validação do saber.
A construção do conhecimento apresenta-se
condicionada pelas diversidades individuais, culturais,
regionais, etc., enfim, pelos contextos, tomados então
como se guardassem para todos os indivíduos as
mesmas possibilidades humanizadoras, escamoteando
se e naturalizando-se dessa forma, as desigualdades

55
instituídas pela organização social capitalista.
Mas por que estamos tecendo estas
considerações acerca do ideário neoliberal
implicitamente embutido no disposto na LDB/96 que
se consubstancia no Referencial Curricular Nacional
para Educação Infantil, nos Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Fundamental e Médio, nas
Diretrizes Nacionais dos Cursos Superiores, etc? Em
quê essa temática vincula-se à teoria de Vigotski?
Para respondermos a tais questões é mister
explicitar, como o fez Duarte em seu livro “Vigotski e o
‘Aprender a Aprender’: críticas às apropriações
neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana”
(2000), a impropriedade da incorporação da teoria de
Vigotski a esse ideário, ou por outra, afirmar o papel
ideológico dessa utilização em face da legitimação dos
processos de produção social que buscam a hegemonia
do sistema globalizado de regulação do capital bem como
da ideologia neoliberal.
Concordamos com Duarte (idem) ao propor que
a compreensão do pensamento de Vigotski e de sua
escola exige o estudo de seus fundamentos marxistas
e sua localização no conjunto dos trabalhos
representativos da psicologia histórico-cultural, bem
como a clareza de que essa escola não é interacionista
ou construtivista. Não tendo por objetivo, neste texto,
aprofundar os preceitos que sustentam essas assertivas
de Duarte, mesmo porque o autor já o fez com
propriedade ímpar em seu livro acima referido, um
conceito específico, qual seja, o de inteligência,
convida-nos à análise pela qual intentamos reafirmar
as diferenças entre a teoria de Vigotski e o que vem
sendo difundido pelo ideário pedagógico oficial.
Nesse ideário, marcadamente construtivista, a
inteligência aparece como um conjunto de funções do
conhecimento a serviço da resolutibilidade de
problemas, isto é, como a capacidade de adaptação às
circunstâncias variadas. Para seu desenvolvimento, o
indivíduo apreende a realidade a título de fato
comprovável por qualquer experiência similar à sua,
atesta que o fato é verdadeiro e adequa-se às suas
regras de funcionamento. Deste modo, a função da

56
inteligência restringe-se à apreensão dos fatos, à
captação dos dados expostos às funções sensoriais,
culminando na construção do conhecimento sobre os
dados da experiência imediata e incorporados na
subjetividade do sujeito percipiente. Não há dúvidas
de que esse processo seja o primeiro passo para o
desenvolvimento da inteligência, entretanto, como
afirma Merani (1976), a inteligência humana pressupõe
a função que, conhecendo os dados da experiência,
submete-os à análise e síntese, pelo que os transforma
em inteligibilidade do real.
Portanto, a captação da realidade, por si só,
não assegura o seu real conhecimento, dado que este
exige a construção da inteligibilidade sobre a realidade
captada, isto é, uma vez conhecida, ela precisa ser
explicada. É enquanto possibilidade explicativa,
enquanto abstração mediadora na análise do real que
as teorias, a ciência e, portanto, a transmissão dos
conhecimentos clássicos assumem sua máxima
relevância.
Nessa direção de pensamento, Vigotski
preconiza a formação das funções psicológicas
superiores, a se desenvolverem por meio das
apropriações dos bens materiais e culturais objetivados
pelo gênero humano. Foi sob influência de Marx que
Vigotski concluiu as origens das formações superiores
na base das relações sociais que o indivíduo estabelece
com o mundo exterior, destacando-o enquanto produto
e enquanto agente ativo no processo de criação desse
meio e de seu próprio psiquismo. A esse modo de estudo,
que, segundo Luria, representava “caminhar para fora
do organismo objetivando descobrir as fontes das formas
especificamente humanas de atividade psicológica”
(LURIA, 1998, p. 26), Vigotski chamou de psicologia
cultural ou histórica. Essa psicologia virá então afirmar
o quanto os instrumentos culturais, com destaque
especial à escrita, à aritmética, aos saberes escolares,
expandem as possibilidades humanas, superando os
processos cognitivos elementares na direção dos
processos superiores.
Em pesquisas que realizou, Vigotskii (1998)
demonstrou a impropriedade de se calcar os processos

57
de ensino exclusivamente nas características
psicointelectuais já existentes nos educandos,
afirmando os processos de aprendizagem enquanto
fontes de desenvolvimento, ou seja, são esses processos
que ativam inúmeras formações que, por si só, não se
desenvolveriam. Nesse sentido, para ele, a tarefa
essencial da escola é assegurar todos os investimentos,
tendo em vista desenvolver no aluno aquilo que lhe
falta para a consolidação das funções psicointelectuais
superiores. Para tanto, defenderá um planejamento de
ensino que articule rigorosamente forma e conteúdo,
isto é, metodologia de ensino e sistematização de
conhecimentos, na base do qual possam se desenvolver
preceitos cada vez mais complexos de análises, sínteses
e generalizações. Essa trajetória pressupõe a superação
de conceitos sincréticos e espontâneos em direção aos
conceitos científicos, aptos a possibilitar o
estabelecimento de relações causais inteligíveis sobre
os fenômenos, na base das quais a realidade passa a
ser conhecida, compreendida e problematizada em sua
essência.
Deixemos claro que o significado atribuído à
problematização, assentando-se em princípios do
materialismo dialético, não se identifica com a noção
construtivista por várias razões. Primeiro, porque supõe
a superação do imediatamente perceptível, ou seja, os
problemas a serem resolvidos são apreendidos em
unidade com a realidade social que os sustenta e na
qual seus fundamentos devem ser desvelados, o que
indica a perspectiva da totalidade. Segundo, por implicar
o questionamento da realidade, isto é, o exercício do
raciocínio pelo qual se extrai de relações inteligíveis
já alcançadas, uma nova relação, o que indica a
perspectiva do movimento. E, finalmente, por indicar
ações intencionalmente efetivas de transformação da
realidade tendo em vista a emancipação humana, o
que indica a perspectiva do socialismo.
Desse modo, esperamos ter apresentado alguns
elementos indicativos de que a organização da educação
defendida por Vigotski não se identifica com modelos
educacionais que preterem a máxima humanização dos
indivíduos e a superação da ordem social capitalista.

58
Assim sendo, mais do que nunca é preciso reconhecer
a relação dialética entre educação e sociedade
afirmada por Saviani em seu livro Escola e Democracia
(1984). Essa relação pressupõe o elemento determinado
influenciando o elemento determinante, no que a
educação, ainda que seja elemento determinado, tem
um papel fundamental no processo de construção e
transformação da sociedade.
Recorremos à assertiva de Saviani, posto que
no desenvolvimento deste texto destacamos alguns
limites impostos aos objetivos e organização do atual
sistema educacional, localizamos tais limites na
ascendência hegemônica do Estado capitalista sobre a
educação e afirmamos a impropriedade de se buscar
no pensamento de Vigotski apoio para a consolidação
desse sistema. Para que, ao cabo destas análises, não
paire a falsa sensação de que pouco ou nada podemos
fazer em educação, é preciso reiterar a importância da
compreensão crítica sobre os fenômenos, neste caso,
a educação escolar, sabendo-se que essa compreensão
exige sabê-la condicionada, isto é, determinada
objetivamente por condicionantes históricos, e, a partir
desse reconhecimento, assumir uma posição política
de transformação. Acreditamos que esse
reconhecimento é fundamental na identificação das
condições de possibilidade que convertem crítica em
ações para a superação.
Para finalizar, reafirmamos a premência da
educação intencionalmente organizada a serviço do
desenvolvimento máximo de todos os indivíduos,
reportando-nos a Vigotski, para quem:

(...) a meta da educação não é a adaptação ao


ambiente já existente, que pode ser efetuado pela
própria vida, mas a criação de um ser humano
que olhe para além de seu meio; (...) não
concordamos com o fato de deixar o processo
educativo nas mãos das forças espontâneas da
vida, (...) tão insensato quanto se lançar ao
oceano e entregar-se ao livre jogo das ondas para
chegar à América! (VIGOTSKI, 2003, p. 77)

59
Referências

DUARTE, N. A individualidade para si (contribuições a uma


teoria histórico-social da formação do indivíduo). 1a. ed.
Campinas: Autores Associados, 1993.

______. Concepções afirmativas e negativas sobre o ato de


ensinar. Cadernos Cedes. Campinas, n.º 44, p. 85-106, abr. 1998.

______. Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações


neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 1ª ed.
Campinas: Autores Associados, 2000.

GENTILI, P. A falsificação do Consenso. 2ª ed. Petrópolis: Vozes,


2001.

HELLER, A. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra,


1972.

LEONTIEV, A. N. Actividad, consciência e personalidad. Buenos


Aires: Ediciones Ciências del Hombre, 1978.

LURIA, A. R. Vigotskii. In: VIGOTSKII, L. S.; LURIA, A. R. &


LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem.
Tradução: Maria da Penha Villalobos. 7ª ed. São Paulo: Ícone,
1998. p. 21-37.

MERANI, A. Estrutura e Dialética da Personalidade. Lisboa: Seara


Nova, 1976.

SAVIANI, D. Escola e Democracia: teorias da educação, curvatura


da vara, onze teses sobre educação e política. São Paulo: Cortez,
1984.

______. A nova lei da educação (L.D.B.): trajetória, limites e


perspectivas. Campinas: Autores Associados, 1997.

______. Educação brasileira: estrutura e sistema. Campinas:


Autores Associados, 2000.

60
SAVIANI, D. Da nova LDB ao novo plano nacional de educação:
por uma outra política educacional. 1ª ed. Campinas: Autores
Associados, 1998.

VIGOTSKI, L. S. Teoria e método em psicologia. Tradução: Cláudia


Berliner. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

______. Psicologia Pedagógica. Tradução: Claudia Shiling. 1ª ed.


Porto Alegre: Artmed, 2003.

VIGOTSKII, L. S. Aprendizagem e desenvolvimento intelectual


na idade escolar. In: VIGOTSKII, L. S.; LURIA, A. R. & LEONTIEV,
A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. Tradução:
Maria da Penha Villalobos. 7ª ed. São Paulo: Ícone, 1998. p. 103
117.

61
SEGUNDA PARTE
IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS DA ESCOLA DE
VIGOTSKI
A MEDIAÇÃO DA PSICOLOGIA HISTÓRICO
CULTURAL NA ATIVIDADE DE PROFESSORES E
DO PSICÓLOGO

Elenita de Ricio Tanamachi

Com o intuito de colocar em discussão o


trabalho desenvolvido em escola pública (1), o texto toma
como referência teórico-filosófica e metodológica a
concepção Histórico-Cultural de Psicologia, entendida
como uma mediação importante na atividade de
professores e do psicólogo.
As análises aqui propostas assentam-se sobre
três eixos norteadores de todas as etapas do trabalho.
O primeiro deles, refere-se à atualidade/
necessidade dos estudos de Marx para nos
contrapormos à barbárie como uma consequência
possível da sociedade capitalista contemporânea,
conforme a tese defendida por Mészàros (2003). Em
foco, o Materialismo Histórico Dialético proposto por
Marx, como a referência teórico-filosófica e
metodológica sem precedentes no que tange às
dimensões ontológica, epistemológica e lógica,
necessárias à compreensão do processo de
humanização dos indivíduos no contexto sócio-histórico
atual.
Nesse sentido, o trabalho reconhece a
concepção científica sobre o homem em geral, na visão
de Marx, como a base para os estudos sobre a
individualidade, a subjetividade, a personalidade, a
atividade, a consciência, a aprendizagem, o
desenvolvimento e tantos temas imediatamente
pertinentes à relação entre a Psicologia e a Educação,
desenvolvidos por Sève (1979), Vigotski (1996, 1998,
2001), Leontiev (1978, 1983, 1988), entre outros.
Cabe destacar que esses psicólogos, ao
considerarem que as relações entre os homens têm
favorecido a alienação, tomam como tarefa, também
da Psicologia, o estabelecimento de mediações entre o
65
desenvolvimento histórico-cultural da humanidade e
a vida particular dos indivíduos, buscando explicar,
conforme conclusão de Duarte (1993), não apenas como
e por que os indivíduos agem ou são de uma ou de
outra maneira, mas como e por que podem vir a agir ou
tornar-se seres emancipados.
O segundo ponto refere-se ao trabalho desses
psicólogos, mais especificamente aos estudos de
Vigotski, que orientam o encaminhamento do conteúdo
desenvolvido na escola, e os de Leontiev, que orientam
a forma de encaminhamento do trabalho realizado.
Considerando tanto a impossibilidade de tomá
los como estudos distintos, quanto as suas
especificidades, juntos eles orientam uma análise
preliminar dessa experiência.
A Psicologia aqui é entendida como ciência que
se propõe a explicar como, a partir do mundo objetivo
(que é histórica e socialmente determinado), constrói
se o mundo subjetivo do indivíduo. Nesse sentido, os
autores priorizam:

❑ a explicitação tanto da concepção filosófica e


metodológica, quanto dos procedimentos e das
funções do conhecimento psicológico;
❑ a não redução do “pensamento e da ação humana
a determinações do psiquismo individual”, propondo
como “primado ontológico do indivíduo”, que as ações
humanas são de natureza social até mesmo na
dimensão psicológica, do indivíduo. Portanto deve
se partir das relações sociais, chegar à “biografia”
do indivíduo, para retornar ao social (SÈVE, 1979);
❑ a não redução do conceito de indivíduo à descrição
das características de indivíduos em geral
(indivíduos empíricos).

Vale ressaltar que o pedido inicial apresentado


pela escola refere-se à necessidade de superação do
contexto posto pela pergunta “por que os alunos não
aprendem?” e isso exige um referencial da Psicologia
que permita, efetivamente, romper com as concepções
que referendam tal pergunta.
A concepção de Psicologia de Vigotski (1996,

66
1998, 2001) enfrenta esse desafio e oferece um rico
conteúdo a ser trabalhado na escola.
Visando a desenvolver temas da Psicologia, a
partir do Materialismo Histórico Dialético, o projeto
principal do autor constitui-se no estudo dos processos
de transformação do desenvolvimento humano em suas
dimensões filogenética, histórico-social e ontogenética,
buscando chegar até à dimensão microgenética —
formação e manifestação de determinado processo
psicológico. Prioriza as funções psicológicas superiores
— controle consciente do comportamento/atenção/
pensamento abstrato/capacidade de planejamento —,
as mudanças qualitativas do comportamento, a
educação em geral e escolar e o seu papel no
desenvolvimento. A finalidade de seu trabalho é
redefinir o método de compreensão do fenômeno
humano, para descobrir o meio pelo qual a natureza
social torna-se a natureza psicológica dos indivíduos. (2)
Para tanto, destaca o cérebro como órgão
material da atividade mental, que também se adapta
às transformações no meio físico e social; o processo
de internalização que permite a apropriação de
conceitos, de valores e de significados a partir da
atividade cognitiva e da consciência em relação à
atividade externa; o conceito de mediação, possível por
meio dos sistemas simbólicos que representam a
realidade (instrumentos e linguagem que regulam as
ações sobre os objetos e sobre o psiquismo
respectivamente). Conclui que os processos de
funcionamento mental do homem são fornecidos pela
cultura (no plano social, interpsicológico), por meio de
instrumentos psicológicos são internalizados
(movimento intrapsicológico), produzindo o movimento
de individuação (que é singular, mas socialmente
construído).
Estudando principalmente a relação
pensamento/linguagem, a relação aprendizagem/
desenvolvimento, a consciência e as emoções, o autor
supera as concepções inatistas, ambientalistas e
interacionistas que reforçam a ideia de determinismo
prévio (inato ou adquirido), defendendo a perspectiva
sócio-histórica ou histórico-cultural para explicar tais

67
temas relativos ao desenvolvimento humano.
Toma o pensamento e a linguagem como
processos de origem biopsicológica diferente e
desenvolvimento independente, mas que se relacionam
para permitir o funcionamento psicológico superior. A
linguagem, impulsionada pela necessidade de
comunicação, expressa o pensamento e age como
organizadora do mesmo e, no processo de
internalização, medeia a ação dos indivíduos. Portanto,
para o autor, a comunicação é fator de desenvolvimento.
Deve ser clara, precisa, provocar dúvidas e o desejo de
iniciar novos processos construtivos.
No que se refere à relação aprendizagem/
desenvolvimento, explica que a aprendizagem (escolar
e extraescolar) possibilita e movimenta o processo de
desenvolvimento, sendo este dinâmico (não gradativo,
nem de evolução progressiva ou de acumulação
quantitativa, como no caso de outras concepções), no
qual estágios de relativa estabilidade sucedem períodos
de mudanças radicais, com ênfase nos momentos de
crise. De acordo com a perspectiva sócio-histórica, o
desenvolvimento ocorre no nível real (aquilo que o
indivíduo já é capaz de fazer só) e por meio da Zona de
Desenvolvimento Próximo (obtida pela diferença entre
o que é capaz de fazer só e aquilo que faz com ajuda e
que explica a possibilidade de novas aprendizagens).
Nesse caso, a educação escolar deve produzir
desenvolvimento e este segue a aprendizagem que cria
a Zona de Desenvolvimento Próximo. O ensino deve
estar voltado para novos conhecimentos. E a Psicologia
deve estudar como os indivíduos elaboram os conceitos,
enfatizando as estratégias, os erros, o processo de
generalização. A pergunta “por que os alunos não
aprendem?” deve ser substituída por outra que remeta
aos fundamentos explicitados pelo autor. Deve-se
indagar pelas circunstâncias nas quais os alunos
aprendem ou não aprendem e os professores ensinam.
A teoria de Vigotski propõe ainda que a
formação da consciência individual envolve as relações
entre pensamento/linguagem, desenvolvimento/
aprendizagem, o significado das mesmas e os afetos e
emoções que oferecem as condições para a elaboração

68
da consciência. Desse modo, para o autor, o pensamento
tem origem na esfera motivacional (desejos,
necessidades, interesses, afetos...) que explicam o
porquê de sua existência.
Conforme se pode constatar, as categorias
desenvolvidas por Leontiev (1983), para explicar a
constituição histórico-cultural da individualidade
humana (Reflexo da Realidade, Atividade, Consciência
e Personalidade), já se encontram enunciadas por
Vigotski, uma vez que se constituem em princípios da
Psicologia Histórico-Cultural. A elas fazemos referência
como elementos que garantem principalmente os fins
e a forma de encaminhamento do trabalho realizado
na escola.
A Teoria do Reflexo, aqui entendida como Teoria
do Conhecimento, explicita uma forma de conhecimento
peculiar ao Materialismo Histórico Dialético.
Portanto, assumindo que o reflexo psíquico ou
a atividade psíquica é a imagem subjetiva da realidade,
os psicólogos soviéticos (Luria, Leontiev e Vigotski,
entre outros), reconhecem a especificidade da
realidade e o pertencimento dessa imagem ao sujeito
concreto, a essência ativa do processo de reflexo e a
inclusão da atividade do homem, em particular sua
atividade prática e essencialmente social por sua
natureza e origem, na Teoria do Conhecimento.
Para Leontiev (1983) (3), a origem do reflexo
encontra-se na atividade prática dos homens em
conjunto e dos indivíduos e é essa atividade que permite
a estruturação da consciência e da personalidade
humanas, sendo, ao mesmo tempo, por elas
estruturada. Nesse caso, a práxis tem um papel
fundamental na formação da imagem subjetiva e a
atividade deve ser considerada uma unidade central
da vida dos indivíduos.
Apresentando a gênese e a estrutura da
atividade humana, Leontiev fala sobre o motivo como
sendo o que distingue uma atividade de outra e
impulsiona a atividade, desde que articule uma
necessidade a um objeto; fala, também, sobre as ações/
operações que se relacionam às finalidades da
atividade. Discute, ainda, que na ação consciente estão

69
integradas a gênese da atividade (motivo) e o objeto da
ação (finalidade da atividade), lembrando que as ações
possíveis dependem das condições concretas de vida
dos indivíduos e são engendradas, formadas
historicamente.
Entre os motivos que impulsionam a atividade,
distingue os motivos geradores de sentido que conferem
sentido pessoal à atividade (a atividade é marcada pela
relação consciente entre os motivos da atividade e os
fins das ações) e os motivos estímulos que são externos
à atividade e a estimulam.
Propõe, ainda, a atividade principal como a
atividade cujo desenvolvimento coordena as mudanças
mais importantes nos processos psicológicos em
determinados momentos. Ela muda em função das
mudanças de motivos, e é esse processo que caracteriza
o desenvolvimento da consciência e da personalidade
(4).
Para o autor, a consciência é o produto subjetivo
da atividade do homem com outros homens e com os
objetos. Ela é um novo tipo de reflexo psíquico da
realidade, ou seja, a forma especificamente humana
de reflexo da realidade que comporta a significação
social, enquanto objeto de apropriação, e o sentido
pessoal, quando o significado converte-se em dados do
reflexo psíquico do indivíduo, passando a ocupar um
lugar específico, a desempenhar um papel na sua vida,
adquirindo um sentido subjetivo, ou melhor, tornando
se um conteúdo da consciência.
Em síntese, Martins (2001), tomando como
referência as análises de Leontiev, estabelece a relação
entre a atividade (motivos/ações/finalidades) e a
consciência (significados e sentidos), da forma como
segue.
Para que o homem possa agir em consonância
com finalidades humanizadoras é preciso que coincidam
o motivo (necessidade/objeto) da atividade e as relações
entre ações e seus fins específicos e que isso ocorra na
cabeça do homem, como ideias a serem conservadas pela
consciência. Desse modo confere-se sentido às suas
ações (o domínio da consciência sobre as ações faz-se
pela relação entre o significado e o sentido).

70
No entanto é preciso considerar que, na
sociedade capitalista, essas relações encontram-se
comprometidas devido à alienação. Nesse caso, os
motivos da atividade não correspondem aos fins das
ações, então a relação entre o sentido pessoal e o
significado social ocorre permeada pela alienação,
constituindo-se a consciência alienada.
Segundo Leontiev (1983), a alienação
caracteriza-se por uma contraposição entre o significado
e o sentido. Assim, afirma Asbahr (2005, p. 53), “o
indivíduo perde a possibilidade de refletir
psiquicamente a relação entre o motivo objetivo da ação
e seu objeto”; significações e sentidos deixam de ser
coincidentes e tornam-se contraditórios.
Recorrendo a Vásquez (1977), Martins (2001)
lembra-nos que a atividade consciente envolve a
produção de conhecimentos e a produção de finalidades
(objetivos para orientar a ação). É a finalidade que se
constitui em causa da ação, a atividade cognitiva em
si não impulsiona a ação. É por isso que o conhecimento
que permite compreender as finalidades dos indivíduos
e do próprio conhecimento pode garantir a atividade
consciente.
Essa é a tese (5) que orienta os fins e as formas
de condução do trabalho em foco.
Um terceiro eixo norteador de todas as etapas
da intervenção na escola refere-se ao lugar que esses
pressupostos assinalam para a Psicologia na Educação,
especialmente se consideramos as posturas
tradicionais assumidas por psicólogos.
Os aspectos aqui ressaltados permitem
explicitar espaços muito bem delimitados para a
Psicologia e para a Educação, no contexto da
constituição histórico-social dos indivíduos.
Discutindo a relação da educação escolar com
o desenvolvimento psíquico, Davidov (1988), cita
Rubinstein em uma passagem na qual ele discute a
unidade interna entre o desenvolvimento da criança e
o processo pedagógico, propondo elementos para
refletirmos os diferentes enfoques que a Psicologia e a
Pedagogia como ciências assumem em face desses
processos.

71
Para o autor, o objeto da Psicologia é constituído
pelas leis de desenvolvimento do psiquismo da criança
e o processo pedagógico é sua condição. O objeto da
Pedagogia é constituído pelas leis específicas da
educação e do ensino. Nesse caso, as propriedades
psíquicas da criança, nos diferentes níveis de seu
desenvolvimento, aparecem como condições que devem
ser consideradas. “O que para uma destas ciências é
objeto, para a outra atua como condição”.
Qual tem sido a postura do psicólogo em
contextos de escolarização?
Historicamente o psicólogo faz a Psicologia
acontecer na escola. Ele atua como se fosse possível
substituir o foco da ação do professor pelo objeto da
Psicologia. Desse modo, a Psicologia tem justificado
espaços corporativos ao psicólogo na Educação, muitas
vezes denominados de Psicologia Escolar. Nosso desafio
é romper com essa realidade de trabalho, propondo
encaminhamentos que permitam estruturar/explicitar
a Psicologia como uma condição, um conhecimento que
precisa ser considerado pelo professor.
Lembrando que, para o referencial aqui
defendido, não se trata de qualquer concepção de
Psicologia, nem de qualquer concepção pedagógica,
alguns aspectos que marcam a nossa ação na escola
merecem destaque.
A finalidade assumida para a Psicologia e para
a Educação é favorecer os processos de humanização e
a reapropriação da capacidade de pensamento crítico,
por meio da educação da consciência do psicólogo
(dimensão educativa de sua formação) e da consciência
do professor (dimensão psicológica de sua formação).
No que se refere à Educação, essa finalidade
concretiza-se por meio da valorização do papel da escola
para trabalhar com o que ainda não está formado no
aluno (adiantando-se ao seu desenvolvimento),
buscando o controle das atividades e privilegiando a
autonomia, a criatividade, a automotivação e a
diferenciação. Com ênfase no papel do professor como
mediador na dinâmica das relações interpessoais e na
relação da criança com os objetos do conhecimento,
ressaltando o papel da imitação e do brinquedo.

72
No que tange à Psicologia, cabe um
posicionamento diante das finalidades sociais da
Educação e da própria Psicologia como ciência, sempre
pautado na explicitação e conhecimento dos
pressupostos teórico-filosóficos e metodológicos que
fundamentam sua ação e reflexão; a redefinição do
seu objeto de estudo, enfocando tanto o modo como a
atividade do aluno e do professor, é determinada pela
Educação, quanto à descoberta das leis psicológicas
que regem esse processo. Cabe, ainda, a consideração
dos determinantes sociais e dos aspectos subjetivos
inerentes à organização escolar e à definição dos
problemas do ensino-aprendizagem, visando à
transformação do trabalho da escola. A atuação deve
considerar as finalidades, os recursos teóricos e as
práticas diferenciadas, incluindo a pesquisa que
permite a participação de todos no processo de
transformação dos resultados em ações concretas para
transformar a realidade.
Recorrendo novamente a Rubinstein, citado por
Davidov (1988), pode-se concluir que aquilo que se
constitui como objeto da Filosofia — as finalidades (o
porquê e o para que do processo de humanização dos
indivíduos) e da Psicologia — a explicação de como a
aprendizagem e o desenvolvimento permitem aos
indivíduos, por meio da atividade educativa, tomar o
controle consciente da realidade singular e universal
— é uma condição para que a educação escolar possa
dar conta de seu objeto, ou seja, a efetivação do ensino/
aprendizagem, por meio de recursos pedagógicos
concretamente organizados pelo professor. Portanto, as
dimensões educativa e psicológica devem estar
presentes na formação do professor e do psicólogo.
Ambas, enquanto ciências, encontram-se presentes no
processo de humanização.
Nesse contexto, a Psicologia Escolar não pode
ser compreendida como especialidade na formação do
psicólogo, embora tenha especificidades.
Necessariamente, há que se rever a Psicologia na
Educação, atribuindo-lhe um novo sentido, além de um
outro lugar ao psicólogo.

73
O início do trabalho

Quem solicita o trabalho na escola é a diretora,


a partir de um Curso de Especialização, no qual
apresentamos os Fundamentos do Materialismo
Histórico Dialético como uma condição para pensarmos
criticamente a Psicologia e a Educação.
Desde então, a intenção é refletir junto com os
professores sobre o que acontece quando as crianças não
aprendem... ou quando as crianças aprendem, acreditando
que essa compreensão permite superar o imobilismo
causado pela pergunta: Por que as crianças não aprendem?

A atividade dos professores e das


psicólogas

O pedido inicial apresentado pela diretora da


escola e depois convertido no pedido dos professores
em uma primeira reunião, leva-nos a propor a
perspectiva Histórico-Cultural como um conhecimento
mediador na transformação da ação/formação dos
professores, dos alunos e das próprias psicólogas.
Para identificar a necessidade de superação das
abordagens tradicionais da Psicologia que explicam o
fracasso escolar e decidirmos o que fazer, nós
analisamos e completamos, em conjunto, um quadro
(6) que relaciona o movimento de composição/
recomposição de nossa sociedade e o movimento de
constituição/organização do saber nas várias áreas do
conhecimento, mais especificamente a Psicologia na
Educação, destacando a concepção teórica e a
abordagem da Psicologia que justificam/explicam esse
movimento teórico-político de constituição da sociedade,
os procedimentos/tratamentos/termos de referência
utilizados na Psicologia e onde está situada a origem
do problema em cada caso.
Embora simplificado e inacabado, o quadro
permite visualizar melhor o desenvolvimento da
Psicologia na Educação e a relação com o contexto
74
histórico e social dos momentos nos quais o saber
psicológico é elaborado.
No caso específico do trabalho em foco, permite
que os professores o ampliem e compreendam como é
que historicamente o saber psicológico organiza-se para
justificar o status quo da Educação e da Psicologia, por
meio da ênfase em aspectos particulares dos indivíduos,
das famílias, ou do meio social, os quais admitem a
pergunta Por que os alunos não aprendem? e apontam
para a ausência de compromisso da Psicologia com a
condição multideterminada das circunstâncias nas
quais os indivíduos humanizam-se.
Uma vez identificada a importância de superar
as abordagens tradicionais da Psicologia para explicar
o fracasso escolar, a prioridade passa a ser a busca de
fundamentos teórico-filosóficos e metodológicos que
orientem um novo modo de pensar os processos de
aprendizagem e de escolarização, tendo como
consequência a possibilidade de concretizar novas
condições de ensino.
Propomos o pensamento crítico sobre o homem
a partir da concepção do Materialismo Histórico
Dialético como uma referência possível tanto à
Psicologia, quanto à Educação para identificar a
constituição histórico-social da individualidade e
compreender que a culpabilização dos indivíduos ou de
situações isoladas paralisa e não transforma o processo
de ensinar e de aprender.
A tarefa sugerida nessa etapa é aparentemente
muito simples e revela-se extremamente pertinente
às necessidades do trabalho. Nos intervalos entre um
encontro e outro, cada participante deve redigir um
parágrafo contando aquilo que, em sua experiência
profissional e pessoal, tem alguma relação com os temas
enfocados.
Esse esforço garante a avaliação do processo
de apropriação dos conteúdos estudados, além de exigir
o movimento de análise da prática em relação com as
questões teóricas e o retorno a elas, propondo novos
elementos, enriquecendo o conhecimento, assegurando
o espaço de elaboração própria, a delimitação dos
espaços específicos da Psicologia e da Educação e o

75
movimento de continuidade/ruptura com o trabalho já
desenvolvido pelo professor.
Um destaque nesse momento é para a
descoberta de que não há uma maneira única de pensar
a realidade. Referimo-nos, especificamente à Lógica
Dialética, Materialista e Histórica como um método de
compreensão e transformação da realidade e às
análises/sínteses/constatações feitas pelos professores
sobre o seu dia a dia de trabalho.
Na sequência do trabalho, são apresentados os
estudos da Psicologia e da Educação, desenvolvidos a
partir desse referencial, cujos temas permitem tanto
a apropriação de conhecimentos necessários à
delimitação do lugar do educador como um mediador
entre os conteúdos escolares e o processo de
aprendizagem dos alunos, quanto a apropriação de
conhecimentos pertinentes à explicitação da condição
de liberdade/autonomia do professor e do aluno, à
seleção de conteúdos e métodos e à compreensão da
relação desenvolvimento/aprendizagem.
As ações desenvolvidas com os professores, os
alunos, a direção e os pais, visando a compreender o
processo de elaboração conceitual de um grupo de
alunos e a reorientação das estratégias utilizadas em
sala de aula, tornam-se expressões concretas de uma
nova postura no trabalho da escola.
No que tange ao espaço específico da Psicologia,
apontam os temas da concepção Histórico-Cultural
fundamentais ao trabalho do psicólogo e do professor.
Dentre eles, a relação pensamento/linguagem e
desenvolvimento/aprendizagem, a elaboração
conceitual, a teoria da Zona de Desenvolvimento
Próximo, a teoria da Atividade e a questão da atividade
principal, a reflexão sobre a estrutura da atividade
(motivos/ações/finalidades) e a constituição da
consciência (significados/sentido) como forma
especificamente humana de reflexo da realidade, a
questão da alienação e as possibilidades de sua
superação; todos tratados a partir do Materialismo
Histórico Dialético.
A elaboração conjunta de todas as etapas do
trabalho viabiliza a compreensão/apropriação/
76
proposição de questões teóricas da Psicologia, da
Educação e da Filosofia Materialista Histórico Dialética
na prática concreta da escola.
Algumas dessas questões merecem destaque.
Uma delas, o compromisso atribuído à Psicologia,
pelos psicólogos que trabalham com base no
Materialismo Histórico Dialético, de explicar não só
aquilo que o homem é, mas, fundamentalmente, aquilo
em que ele pode vir a se constituir, mediado pela
educação escolar. Isso faz com que os professores
entendam a urgência de aliar a competência técnico
pedagógica e o compromisso político com a
transformação da realidade, no limite das
possibilidades existentes para a educação escolar.
Outra questão apontada nos encontros refere
se à necessidade da relação teoria-prática expressa
pelas bases gnosiológicas, epistemológicas, ontológicas
e lógicas do conhecimento. Uma fita contendo palestra
proferida por Betty Oliveira (2001) chega a ser assistida
mais de uma vez pelo grupo. Discutindo a dialética
entre o singular, o particular e o universal no
desenvolvimento da individualidade humana, a autora
ressalta a importância de que o conhecimento sobre o
homem considere as dimensões nas quais esse saber
é produzido, desde a Filosofia até a Ciência em geral e
seus ramos específicos. Entender as
multideterminações do conhecimento transforma o
conteúdo e a forma de relação com o mesmo.
Tão presente como as questões anteriores, a
diferença entre a visão empírica e a visão concreta do
aluno também surge como um tema importante em
momentos variados, acompanhada da difícil constatação
de que o aprendizado não é imediato, pois ele depende
da elaboração das funções psíquicas superiores e da
transformação de suas estruturas para ocorrer.
Depende, ainda, de ações que respondam às
necessidades do aluno e do professor, aliadas à
formação da consciência, para garantir os motivos
compatíveis com a apropriação do saber que eleva a
condição humana de ambos.
A apropriação dessas questões garante a
objetivação da tese que orienta o trabalho, segundo a

77
qual o conhecimento que permite compreender as
finalidades dos indivíduos e do próprio conhecimento,
pode garantir a atividade consciente. Em muitos
momentos, as ações empreendidas por todos os
participantes constituem-se na expressão concreta
dessa tese. Estudar, planejar cuidadosamente as
atividades e fazê-las acontecer em sala de aula, esperar
que todos acompanhem/compreendam as atividades,
investigar/pesquisar/propor novas possibilidades de
ensinar, entender o processo de aprendizagem tornam
se empreitadas constantes. Fundamentalmente,
entendendo os espaços específicos do psicólogo, do
professor, do diretor, dos pais e dos alunos.
Após um ano, a fala de uma professora em
Conselho de Classe sintetiza/sinaliza o movimento do
pensamento desencadeado pelo trabalho. Uma aluna
já conhecida na escola, ao final do terceiro ano na
primeira série, está finalmente alfabetizada, naquele
momento sob sua responsabilidade. Diz a professora:

Eu sei que tive um lugar importante nesse processo.


Que isso é fruto de um árduo trabalho meu, da aluna
e dos professores anteriores. Fiz tantas coisas,
tenteitanto que já nem sei mais o que efetivamente
funcionou. Se eu o soubesse, poderia utilizar essas
estratégias como um conhecimento para alfabetizar
outras crianças, não como meras tentativas...

Nessa mesma reunião do Conselho de Classe,


a diretora dá o seu veredicto. “Vamos conhecer outros
autores, não era bem assim que eu queria... Faz um
ano que nos reunimos e nada mudou!...” E o trabalho é
encerrado/impedido. Nós acreditamos que ele é
interrompido.

Implicações do trabalho para a atividade do


professor e do psicólogo

O trabalho é interrompido enquanto preparamos


a sistematização de questões teórico-práticas
decorrentes do esforço para, efetivamente,
78
compreendermos a concepção Histórico-Cultural de
Psicologia e de Educação como uma mediação possível
e necessária à atividade da escola.
Inicia-se a elaboração de um projeto pedagógico
que considera tanto as finalidades da Educação, quanto
da Psicologia no contexto da constituição histórico
social de todos os envolvidos. Uma das etapas do projeto
pedagógico visa à compreensão do processo de
aprendizagem de alunos que frequentam algumas salas
de projeto (7), estudando a elaboração conceitual a
partir da teoria da Zona de Desenvolvimento Próximo
de Vigotski e das categorias propostas por Leontiev para
explicar a atividade consciente. A finalidade de tal
investigação é a (re) orientação das estratégias
utilizadas para o ensino das várias áreas do
conhecimento, sempre considerando a participação dos
professores, dos alunos, dos pais e das psicólogas, para
estabelecer os espaços de cada um.
Esse momento é também considerado oportuno
para compartilhar o trabalho com outras unidades de
ensino, por meio da organização de textos e de
seminários.
Apenas para iniciar um debate, fazemos algumas
considerações que o impacto inicial, provocado pela
interrupção do trabalho, permite.
Momentos mais propriamente teóricos de
análises/discussões podem expressar possibilidades
práticas extremamente importantes na ação de quem
efetivamente faz a relação desenvolvimento/
aprendizagem ocorrer no interior da escola.
Desde que o conhecimento em questão abarque
as finalidades dos indivíduos e do próprio conhecimento,
explicitando-as na essência (aquilo que eles são e
aquilo em que podem se transformar), é possível
garantir, tal como propõe Vásquez (1977), a atividade
consciente (no limite do que compete ao conhecimento,
evidentemente).
Portanto, não se trata de mera reflexão sobre
procedimentos ou sobre a prática imediata, nem de
um posicionamento político diante da realidade. Trata
se da apropriação de um determinado conhecimento
como mediador entre a ação docente (suas finalidades
79
enquanto professor) e o seu modo de pensar sobre ela
(suas finalidades enquanto indivíduo). Por isso permite
a transformação do próprio conhecimento e da ação,
no limite das circunstâncias atuais, uma vez que tudo
isso ocorre por meio da alienação, na sociedade atual.
Desse modo é possível pensar na teoria que
transforma a ação, que transforma a teoria... tanto de
professores, quanto do psicólogo, contribuindo de modo
particular na formação de ambos.
Apesar da interrupção do trabalho, há
conquistas irreversíveis. A professora que precisa
entender o que fez, para poder alfabetizar outras
crianças; a professora que fala da atenção às
estratégias e ao conteúdo em sala de aula; os
professores que vão ao grupo de estudos na USP, para
continuar o projeto que não terminou; aqueles que
preparam projetos para pós-graduação...
Pode-se pensar na relação entre a consciência
alienada e a atividade consciente, nos níveis de
consciência, nas possibilidades concretamente
existentes para o desenvolvimento da atividade
consciente.
Contraditoriamente, quem dá início ao trabalho,
impulsionando a tomada de consciência sobre a
necessidade do conhecimento psicológico como um
mediador entre o processo de ensinar e de aprender
de professores, de alunos e das psicólogas, também o
interrompe. Isso revela que, no limite, a alienação
ainda é a forma particular por meio da qual se dá o
nosso processo de humanização. Isso revela a realidade
atual da escola, da Psicologia...
Para superar a prepotência própria da ação do
psicólogo que, respaldado por concepções tradicionais
de Psicologia, julga-se o resolvedor dos problemas da
escola e apenas fica chocado quando isso não ocorre,
buscamos a indignação e novos conhecimentos.
Discutimos nossas ações em inúmeros grupos.
Descobrimos que os trabalhos informados por um
referencial cuja finalidade é a transformação da
realidade, nas circunstâncias atuais, tendem a ser
interrompidos em algum momento. Só não sabemos
quando e como isso ocorrerá. Desse modo, a interrupção

80
pode ser compreendida como uma parte da ação, nunca
como o seu fim.
Concordando com Martins (2001), pensamos
que, ignorando a distinção entre a realidade alienada
e as possibilidades de criação de uma nova realidade,
resta-nos a opção entre os modelos idealistas e o falso
realismo de aceitação da vida como ela é.
Para tanto, defendemos que não basta qualquer
teoria e nem é suficiente qualquer método. A realidade
atual exige a atenção de pesquisadores, de educadores
e de psicólogos às dimensões ontológica, gnosiológica,
epistemológica e lógica do conhecimento. Sem isso,
justificamos a realidade.

Referências

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Análise da Atividade Pedagógica a partir da Psicologia Histórico
Cultural. (Dissertação de Mestrado), Curso de Pós-Graduação
em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano,
Universidade de São Paulo, São Paulo. 2005.

DAVIDOV, V. La ensenãnza escolar y el desarrollo psíquico:


investigación teórica y experimental. Moscou: Progresso, 1988.

DUARTE, N. A Individualidade para si: contribuições a uma


teoria histórico-social da formação do indivíduo. Campinas:
Autores Associados, 1993.

LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Horizonte


Universitário, 1978.

______. Actividad, consciencia e personalidad. Havana: Editorial


Pueblo y Educación, 1983.

______. Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique


infantil. In: VIGOTSKII, L. S.; LURIA, A. R. & LEONTIEV, A. N.
Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem. 4ª ed. São Paulo:
Ícone, 1988. p. 59-83.

81
MARTINS, L. M. Análise Sócio-Histórica do Processo de
Personalização de Professores. (Tese de Doutoramento). Curso
de Pós-Graduação em Educação, Universidade Estadual
Paulista, Marília, São Paulo, 2001.

MÉSZÀROS, I. O século XXI: socialismo ou barbárie? São Paulo:


Boitempo, 2003.

OLIVEIRA, B. A dialética do singular-particular-universal. Exposição


apresentada no V Encontro de Psicologia Social – ABRAPSO,
Universidade Estadual Paulista, Bauru, São Paulo, gravação em
fita cassete. 2001.

SÈVE, L. Marxismo e a teoria da personalidade. Lisboa: Livros


Horizonte, 1979.

TANAMACHI, E. & MEIRA, M. E. M. A atuação do psicólogo como


expressão do pensamento crítico em psicologia e educação. In:
MEIRA, M. E. M. & ANTUNES, M. A. M. (Orgs.). Psicologia Escolar:
práticas críticas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, p. 11-62.

VÁSQUEZ, A. S. Filosofia da Práxis. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1977.

VIGOTSKI, L. S. Teoria e Método em Psicologia. São Paulo: Martins


Fontes, 1996.

______. O desenvolvimento psicológico na infância. São Paulo:


Martins Fontes, 1998.

______. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo:


Martins Fontes, 2001.

Notas

(1) O trabalho, desenvolvido pela autora do texto, contou com


a colaboração das psicólogas Flávia da Silva Ferreira Asbahr
e Vanessa Mies Bombardi e com a participação da direção,
dos professores, dos pais e dos alunos da escola.

82
(2) Note-se que a Teoria do Reflexo de Marx está aqui expressa
por meio da natureza psicológica tomada como o reflexo
psíquico da realidade, ideia posteriormente desenvolvida
com as contribuições de Leontiev (1983) e Davidov (1988).

(3) Flávia da Silva Ferreira Asbahr, em sua dissertação de


mestrado (indicada nas referências), faz uma excelente
síntese desse texto de Leontiev e de outros que podem
auxiliar na compreensão de tema tão complexo.

(4) A tese de Lígia Márcia Martins (indicada nas referências)


apresenta elementos valiosos da teoria de Leontiev e de
outros autores, para compreendermos a concepção de
Homem, de Psiquismo e de Personalidade, no contexto da
Psicologia Histórico-Cultural.

(5) Respalda, ainda, essa tese uma síntese preliminar por nós
elaborada, a partir dos autores estudados. Pensando no
lugar da educação escolar em geral e em seu lugar na
sociedade capitalista, concluímos que a atividade do
professor é o ensino e a atividade do aluno, a aprendizagem.
O motivo do professor é a aprendizagem do aluno e a
expansão de seu próprio processo de humanização, por meio
da ação profissional; no caso do aluno, o motivo é a
necessidade de humanização pela apropriação do
conhecimento. O objeto, para ambos, é o conhecimento. O
significado da atividade de ensinar e de aprender para
professores e alunos é o desenvolvimento da cultura, e o
sentido, a humanização de ambos, na direção de uma
individualidade cada vez mais livre/autônoma/universal.
Considerando o caráter contraditório que assume a
atividade de ensinar e de aprender permeada pela
alienação, pode-se melhor analisar a realidade encontrada
na escola. Embora provisória é essa compreensão que
orienta a condução do trabalho na escola. Por certo,
comporta inúmeras discussões, por isso mesmo a
explicitamos.

(6) O quadro, utilizado como ponto de partida nessa etapa do


trabalho está publicado em artigo da autora do texto, em
conjunto com Marisa Meira, no livro Psicologia Escolar:
Práticas Críticas (TANAMACHI, E. & MEIRA, M. E. M., 2003),

83
indicado nas referências.

(7) Salas com um número menor de alunos, de modo a garantir


atenção redobrada aos alunos reprovados a partir da
primeira série.

84
A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA
SUBSIDIANDO A REFLEXÃO DA QUESTÃO
CULTURAL NA EDUCAÇÃO ESCOLAR

José Roberto Boettger Giardinetto

O objetivo deste trabalho é tecer algumas


considerações concernentes à relação entre produção
e elaboração do conhecimento, tendo em vista apontar
alguns subsídios teóricos para reflexão da importância
da apropriação do saber escolar para a formação cultural
dos indivíduos.
Para tanto, as considerações aqui apresentadas,
respaldadas na pedagogia histórico-crítica, inserem
se num contexto de debate sobre alguns aspectos
relativos à questão cultural no ensino da matemática.
Cumpre esclarecer que dados os limites deste trabalho,
buscar-se-á enfocar, nessas considerações, o que se
entende por efetivar uma prática educativa que promova
o respeito ao indivíduo, o respeito à cultura do aluno, um
ensino atrelado ao cotidiano de vida dos alunos à luz do
entendimento da especificidade e natureza do trabalho
escolar quanto ao tipo de relação promovida entre o
conhecimento matemático local e o conhecimento
matemático escolar.
De imediato cumpre esclarecer que quando se
aponta a necessidade de reflexão e explicitação sob
afirmações do tipo respeito ao aluno, respeito à cultura do
aluno, etc., não se está defendendo a negação de tais
afirmações. Não se trata de defender um ensino de
matemática imposto, que desmereça a contribuição do
aluno no processo de apropriação da matemática escolar
através da explicitação da parte de matemática
desenvolvida em sua vida, no contexto social de sua
comunidade. Trata-se, sim, da necessidade de superar
aquilo que faz com que tais afirmações se tornem frases
vazias, obviedades: o raciocínio espontaneísta, não
intencional que gera, como se evidenciará, um
descompromisso quanto à apropriação do saber
85
matemático escolar.
Num primeiro momento, torna-se necessário
abarcar algumas considerações teóricas relativas à
pedagogia histórico-crítica, de sorte a permitir subsidiar
a análise que será apresentada quanto às questões
relativas ao debate cultural no ensino da matemática.
Já num segundo momento, torna-se necessário
evidenciar uma crítica a algumas ideias segundo as
quais um bom ensino seria aquele atrelado ao cotidiano
de vida dos alunos, seria um ensino que respeitasse a
cultura do aluno, que respeitasse o aluno, entendendo a
necessidade de se fazer essa crítica na medida em
que denuncia uma concepção de respeito e de cultura
nos restritos limites das experiências de vida dos
alunos em contextos sociais diversos investigados e,
como tal, insuficientes para realização de uma prática
educativa que promova a plena formação do educando
mediante o acesso à cultura humana via apropriação
do saber escolar.
No campo do ensino da matemática, essas ideias
de respeito ao aluno, etc., nos restritos limites aqui
evidenciados, têm sido adotadas por algumas pesquisas
e trabalhos acadêmicos da denominada etnomatemática.
Nesse sentido, faz-se necessário esclarecer do que trata
a etnomatemática como tendência de pesquisa e, a
partir daí, apresentar algumas considerações críticas
a essa tendência da Educação Matemática brasileira,
em face da reflexão aqui desenvolvida.
Apresentados, em linhas gerais, os dois
momentos que compõem o presente trabalho, é possível
iniciar as reflexões.

A pedagogia histórico-crítica como


referencial para a reflexão da questão
cultural na educação escolar
Inicialmente criado por Dermeval Saviani
(1984), o termo pedagogia histórico-crítica sintetiza, muito
bem, dois aspectos nucleares dessa concepção
pedagógica, a saber, a necessidade de se implementar
uma análise historicizadora do fenômeno educativo a

86
partir de um olhar crítico sobre esse fenômeno.
Assim, a pedagogia histórico-crítica é histórica,
porque destaca a importância da historicidade do
fenômeno educativo ao longo do devir histórico do
desenvolvimento do homem, desenvolvimento cujo
processo denota a transformação da realidade natural
em uma realidade humanizada (MARX, 1985).
Comparece de forma implícita a essa pedagogia uma
concepção histórico-social de indivíduo.
Trata-se do seguinte: entender o que é o homem
não se limita a entendê-lo nos limites de suas condições
biológicas. Embora essas condições sejam importantes,
o homem se faz humano através de um constante
processo histórico e social de transformação da
realidade, mediante o trabalho, processo esse que
determina a própria transformação do homem enquanto
espécie. O produto dessa transformação da realidade
são as objetivações.
O tornar-se humano não é um processo regido
por leis biológicas, mas, sim, por leis histórico-sociais.
O homem não se limita a seu corpo orgânico, isto é, às
suas limitações biológicas; pelo contrário, supera essas
limitações criando o que Marx (1985) denomina de corpo
inorgânico. O processo histórico-social de formação do
corpo inorgânico do homem apresenta um caráter
ilimitado e universal gerando, com isso, uma realidade
não mais natural, mas sim, humanizada. A cada
indivíduo singular, cria-se a necessidade de
apropriação das objetivações para que ele possa se
situar nessa realidade transformada.
A construção do corpo inorgânico do homem se
dinamiza por uma relação entre objetivação e
apropriação (DUARTE, 1993, p. 49-54). Ao apropriar-se
dos objetos cujas origens apresentavam feições
puramente naturais, o homem objetiva neles
qualidades humanas (DUARTE, 1993, p. 35). A dinâmica
dessa relação entre objetivação e apropriação passa a
ser a dinâmica geradora do processo histórico. O
resultado é um conjunto de objetivações genéricas (isto
é, do gênero humano) tanto de ordem material quanto
espiritual (ideias, valores, etc.) que, dado o grau de
desenvolvimento atingido, determina, para cada
87
indivíduo singular, relações para com essas
objetivações em níveis qualitativamente distintos: um
nível de relação para com as objetivações em-si (a
linguagem, os costumes e os utensílios) em que essa
relação se dá na esfera da vida cotidiana e se refere a
uma relação espontânea no sentido de não intencional
(1), de não-consciência da consciência (OLIVEIRA, 2002b,
p. 119) para com elas. E o nível de relação intencional,
isto é, com consciência da consciência para com as
objetivações para-si (a ciência, a filosofia, a arte, a
moral, a ética e a política). (2)
A educação especificamente escolar se origina
desse processo transformador da realidade natural em
uma realidade humanizada através da dinâmica da
relação entre objetivação e apropriação, na medida em
que, dado esse progressivo avanço, se fez criar uma
instituição própria para a formação cultural dos
indivíduos, a saber, a escola.

O que se chama desenvolvimento histórico não


é outra coisa senão o processo através do qual o
homem produz a sua existência no tempo. Agindo
sobre a natureza, ou seja, trabalhando, o homem
vai construindo o mundo histórico, vai
construindo o mundo da cultura, o mundo
humano. E a educação tem suas origens nesse
processo. (SAVIANI, 1991, p. 96)

Assim, a educação escolar — forma secundária


nos modos de produção escravagista e medieval —, com
a época moderna, dadas as exigências da
universalização da escola, em decorrência das
profundas transformações na produção em que o
conhecimento metódico, a ciência, se torna força
produtiva direta, generaliza-se e passa a ser a forma
dominante de educação. Daí a necessidade histórico
social de formação universalizante, a todos, dos
domínios da cultura letrada (SAVIANI, 1991, p. 96-100).
Explicitado o fato da pedagogia histórico-crítica
adotar a historicidade do fenômeno educativo como um
dado delineador dessa pedagogia, é necessário agora
explicar o significado de ser uma pedagogia crítica.

88
A pedagogia histórico-crítica é crítica, porque
entende o fenômeno educativo como um fenômeno
social só passível de ser compreendido a partir dos seus
condicionantes sociais.

Com efeito, a Pedagogia Crítica implica a clareza


dos determinantes sociais da educação, a
compreensão do grau em que as contradições da
sociedade marcam a educação e,
conseqüentemente, como é preciso se
posicionar diante dessas contradições e
desenredar a educação das visões ambíguas,
para perceber claramente qual é a direção que
cabe imprimir à questão educacional. (SAVIANI,
1991, p. 103)

Assim, essa pedagogia se define como crítica,


porque reconhece que a educação é um elemento
condicionado pelos interesses da classe hegemônica
da sociedade. Mas esse condicionamento não é absoluto.
Caso contrário, tratar-se-ia de mais uma teoria
educacional crítico-reprodutivista (3), isto é, uma teoria
que concebe a educação como condicionada de forma
absoluta, reservando à educação escolar o papel de
mera agente reprodutora da ideologia dominante, do
status quo (SAVIANI, 1984).
Trata-se de se entender as múltiplas
contradições que se operam nas várias modalidades
da prática social, inclusive a escola, em que os
interesses de classe se contrapõem. Para isso é preciso
superar o determinismo implícito à concepção crítico
reprodutivista de educação, determinismo apoiado
numa visão mecanicista aí inerente. A superação dessa
visão mecanicista só é possível através de uma
compreensão histórica e crítica:
Em suma, a passagem dessa visão crítico
mecanicista, crítico-a-histórica para uma visão
crítico-dialética, portanto, histórico-crítica, da
Educação, é o que queremos traduzir com a
expressão Pedagogia Histórico-Crítica. Essa
formulação envolve a necessidade de se

89
compreender a Educação no seu
desenvolvimento histórico-objetivo e, por
conseqüência, a possibilidade de se articular
uma proposta pedagógica cujo ponto de
referência, cujo compromisso, seja a
transformação da sociedade e não sua
manutenção, a sua perpetuação. Esse é o sentido
básico da expressão Pedagogia Histórico-Crítica.
Seus pressupostos, portanto, são os da concepção
dialética da história. Isso envolve a possibilidade
de se compreender a Educação escolar tal como
ela se manifesta no presente, mas entendida
essa manifestação presente como resultado de
um longo processo de transformação histórica.
(SAVIANI, 1991, p. 95)

Como se percebe, a escola não foi simplesmente


criada pelo capital para servir-lhe, mas foi criada pelo
próprio processo de desenvolvimento do conhecimento
humano e da vida humana de modo geral. Interessante
verificar, entretanto, que, assim como o sistema
capitalista fez criar, dados seus interesses, a
necessidade de escolarização para todos, o fez em
condições adversas para a maioria dos indivíduos, nos
limites mínimos para a formação de uma mão-de-obra
minimamente qualificada.
Essas considerações até o momento apontadas
evidenciam que o saber escolar é uma necessidade de
ordem histórico-social. É inerente à formação plena
de todo homem, o acesso ao saber historicamente
elaborado via instituição escolar. Daí a importância do
trabalho escolar para a pedagogia histórico-crítica já
que é entendido como “um elemento necessário ao
desenvolvimento cultural, que concorre para o
desenvolvimento humano em geral” (SAVIANI, 1991, p.
105).
Um outro fato que revela ainda mais a
importância da apropriação do saber escolar vem do
fato de que, em decorrência do desenvolvimento atingido
pelo gênero humano, a formação do homem singular
não mais se restringe ao seu meio de vida mais
imediato com os demais homens nas relações de

90
trabalho e convivência social. A realidade tornou-se
por demais complexa, sendo a vida cotidiana não mais
suficiente para a formação do indivíduo. Em outras
palavras, a existência da escola se justifica pela
impossibilidade de sistematização do conhecimento
produzido pelo gênero humano em outras instâncias
da vida social fora da escola. Com a escola, viu-se criar
um espaço de transmissão e apropriação de um saber
metódico, científico, elaborado, sistematizado. Não se
trata, portanto, do saber espontâneo, não intencional
produzido nas outras instâncias da vida social
(SAVIANI,1991, p. 23).
A educação escolar se constitui numa atividade
mediadora entre o saber cotidiano e o saber não
cotidiano, isto é, entre o conhecimento resultante das
objetivações em-si próprias da vida cotidiana e as
objetivações para-si. A escola é o espaço próprio em
que se realiza o processo de ensino-aprendizagem dos
conteúdos das objetivações para-si. Daí que, além da
apropriação dos aspectos essenciais do saber científico,
à escola compete também promover a sensibilidade
artística, a postura filosófica, a análise política, etc.
Diante do claro entendimento de que o saber
escolar é uma necessidade de ordem histórico-social
inerente à formação plena de todo homem, para essa
pedagogia, é condenável toda e qualquer tentativa
(intencional ou não por parte de outras tendências
pedagógicas) de secundarizar ou até mesmo de negar
a importância do acesso ao saber escolar. A defesa de
escolarização a todo indivíduo é uma bandeira de luta
de todos os educadores identificados com o ideário da
pedagogia histórico-crítica. Entretanto, é sempre bom
ressaltar que essa defesa não se insere no quadro de
uma perspectiva neutra de saber escolar e de
instituição escolar. Não se trata de defender a escola
que está aí com todas as suas mazelas. O que se
defende é a escola enquanto legado histórico que a faz
ser instituição formativa necessária e imprescindível
a todo indivíduo. Os aspectos ideológicos se fazem
presentes em qualquer instância da vida social,
inclusive a escolar, mas não são absolutos do ponto de
vista da inserção e determinação dos interesses

91
dominantes. É preciso abstrair e retirar das
objetivações criadas pelo homem para o homem tudo
aquilo que colabora para sua progressiva humanização
e consequente libertação. Trata-se de se entender que
a formação dos indivíduos é contraditória, heterogênea
e se dá por relações sociais de dominação presentes
na história humana até hoje. Mas, por conta do enfoque
historicizador, entende-se que as forças de dominação
são características históricas elimináveis, isto é,
superáveis. No entanto, é preciso buscar, nessa
superação, o caráter essencialmente humanizador,
aquilo que, na cultura, tem apontado para a
universalidade e liberdade humanas. Duarte esclarece:

Ao longo do contraditório e heterogêneo processo


histórico, o gênero humano tem se enriquecido,
isto é, tem adquirido forças, faculdades e
necessidades qualitativamente superiores, que
passam a constituir parte ineliminável do ser
da humanidade no seu conjunto, ainda que, em
decorrência das relações alienadas, essas forças,
faculdades e necessidades não se efetivem na
vida da maioria dos indivíduos. Em outras
palavras, é preciso distinguir, no processo
histórico, aquilo que consideramos como algo a
ser superado juntamente com o capitalismo e
as relações sociais alienadas, daquilo que, tendo
surgido no interior dessas mesmas relações
sociais alienadas, nós entendamos que deva ser
preservado por uma sociedade socialista e
elevado a um nível superior de desenvolvimento.
(DUARTE, 1994, p. 133)

Evidencia-se a necessidade de se recuperar a


função humanizadora da escola. Trata-se da
necessidade de se captar, nas objetivações criadas, o
aspecto humanizador diferenciando-o de seu aspecto
alienador. O conteúdo de caráter humanizador pode
apontar, dados os interesses dos dominantes, para uma
não humanização dos homens (DUARTE, 1996, p. 24).
Isso se dá em todos os campos do conhecimento
humano. Não se pode hoje negar os benefícios da

92
energia nuclear (na medicina, por exemplo) apesar do
uso alienador dado a ela para coação de nações e
promoção de guerras. Não se podem negar os benefícios
possíveis da clonagem apesar de todos os riscos que
corremos, dados os interesses escusos das grandes
empresas norte-americanas e européias de
biotecnologia no desenvolvimento de pesquisas. Enfim,
não se pode negar os avanços gerados pelo capitalismo
em aproximadamente dois séculos e meio de existência,
apesar de ser necessário entender, denunciar e apontar
sua superação, dado seu processo injusto e alienador
de exploração da maioria dos homens por uma minoria
que detém o poder político, econômico e cultural. Deve
se, sim, fazer a crítica, mas abstraindo aquilo que
permanece como legado possível para a humanização
do homem.
Ao se recuperar a função humanizadora da
escola, está-se apontando para a defesa de uma rica
formação cultural como instrumentalização crítica para
se entender a realidade visando a sua transformação.
Essa criticidade possível de ser implementada via
trabalho escolar denota que não é possível ser crítico à
margem de apropriação do saber (SAVIANI, 1991, p.
82). Por conta da criticidade possível, a apropriação do
saber escolar torna-se uma necessidade, já que,
mediante a elevação cultural dos indivíduos, está-se
implementando a possibilidade de transformação da
sociedade através da transformação das consciências.
Daí a defesa da universalização da educação escolar.
Como esclarece Oliveira:

Educar não é somente educar sujeitos para esta


sociedade, mas sujeitos que a transformem,
tendo em vista determinados valores que
sintetizam as possibilidades já existentes
historicamente de o homem humanizar-se e
que, como tal, caracterizam o ser do homem
enquanto síntese das múltiplas determinações.
Saviani não vê a educação como um processo
que produz diretamente a transformação social.
A educação não transforma imediatamente a
sociedade. Ela transforma de forma mediatizada.

93
Isto é, o processo de transformação que se dá
pela educação refere-se não ao processo de
transformação ao nível das condições materiais
da estrutura social em que vivemos, mas ao
nível da transformação das consciências. E as
consciências são os sujeitos que atuam na
prática social. E será o conjunto da prática social
que gerará a transformação da sociedade. Mas é
preciso também considerar, ao mesmo tempo,
que essa transformação das consciências pela
educação não se dá de forma inteiramente
autônoma. Não é um processo independente das
determinações sociais, mas uma prática
determinada pelas estruturas sociais e
econômicas, uma prática que não se dá
independente da situação vigente, uma prática
que se processa dentro das circunstâncias
possíveis já existentes na sociedade dividida em
classes, uma sociedade marcada pelas relações
de dominação. [...] Saviani procura mostrar como,
já nessa sociedade em que vivemos, é possível
atuar na educação tendo como meta não
imediata a transformação social, uma meta
mediatizada pela transformação das
consciências. [...] E é nesse contexto que defende
a universalização da educação escolar e, por
conseqüência, a busca de construção de uma
Pedagogia histórico-crítica. (OLIVEIRA, 1994, p.
118)

Para a pedagogia histórico-crítica, o acesso à


cultura inerente aos conteúdos escolares não constitui
uma ameaça à autonomia intelectual dos indivíduos,
como que uma ingerência, no sentido negativo do termo.
Muito pelo contrário, é altamente positivo e necessário
para a formação cultural do educando, pois,
Quando se apropria dos clássicos e outros
autores, ao invés de isso significar uma perda
de autonomia ou um conservadorismo, isso
significa autonomia, independência de
pensamento, pois recria as categorias estudadas

94
dentro das perspectivas do contexto em que se
insere. (OLIVEIRA, 1994, p. 109)

Mas o saber escolar não advém do nada. A


matéria-prima da atividade escolar é o saber objetivo
produzido historicamente (SAVIANI, 1991), e esse saber,
em suas diversas manifestações na estrutura da vida
cotidiana, lança germens para atitudes teorizadoras
(DUARTE, 1996). No decorrer das atividades da prática
social, o indivíduo produz um saber assistemático e
espontâneo (não intencional) e a ciência elabora o
conhecimento sistematizado. O primeiro tipo de saber,
sendo espontâneo, isto é, não intencional, pode ser
aprendido no dia a dia dessa prática social. O
conhecimento sistematizado, porém, requer um local
— a escola — e procedimentos específicos para que
possa ser apropriado pelos indivíduos. Trata-se de se
diferenciar elaboração do saber de produção do saber:

Elaboração do saber não é sinônimo de produção


do saber. A produção do saber é social, se dá no
interior das relações sociais. A elaboração do
saber implica em expressar de forma elaborada
o saber que surge da prática social. Essa
expressão elaborada supõe o domínio dos
instrumentos de elaboração e sistematização.
Daí a importância da escola: se a escola não
permite o acesso a esses instrumentos, os
trabalhadores ficam bloqueados e impedidos de
ascenderem ao nível da elaboração do saber,
embora continuem, pela sua atividade prática
real, a contribuir para a produção do saber. O
saber sistematizado continua a ser propriedade
privada a serviço do grupo dominante. (SAVIANI,
1991, p. 81)

Nesse sentido, a importância da escola está na


decodificação, via sistematização, da produção do saber
em contextos sociais diversos. E a importância de
apropriação dessa sistematização coloca uma
perspectiva universalizante de cultura humana,
perspectiva esquecida nos debates culturais na medida
95
em que a perspectiva hegemônica defendida no ideário
multiculturalista é restrita à constatação das diferentes
produções sem entendê-las enquanto “partes” de um
“todo”, ou seja, sem perceber sua universalidade.
Nesse sentido, a cultura “se identifica com o
próprio modo como é produzida a existência humana”
(SAVIANI, 1985, p. 80). A cultura nada mais é que o
conjunto de objetivações oriundas dessa dinâmica entre
objetivação e apropriação, dinâmica transformadora da
realidade natural em uma realidade social, humana:

A cultura é um produto da própria ação humana,


um produto que se materializa, se objetiva em
objetos e artefatos (como instrumentos, outros
quaisquer bens de uso, etc), em idéias e
concepções da realidade (hábitos, costumes,
regras morais e valores para a condução do
comportamento, etc.), em técnicas de trabalho,
em criações artísticas, em conhecimento cada
vez mais elaborado, etc. Toda essa multiplicidade
de produção humana — a cultura humana,
constitui-se no patrimônio da humanidade, isto
é, patrimônio que todo homem, em princípio,
deveria ter pleno acesso para efetivar sua vida
como ser social que é. (OLIVEIRA, 2002a, p. 08)

Explicita-se aqui uma concepção de cultura na


sua dimensão mais genérica, na sua essência como a
produção do gênero humano. Essa produção se
diversifica em função dos modos de vida e valores dos
diferentes contextos sociais em diferentes regiões do
planeta.
Ocorre que essa diversidade se manifesta de
imediato aos olhos do pesquisador perdendo-se de vista
sua essência, isto é, o fato de que a sua diversidade de
produção é a produção da existência do homem e, como
tal, compõem em totalidade, a produção do gênero
humano, o patrimônio cultural da humanidade já
construído e em construção. Como esclarece Vieira
Pinto:

A dupla realidade da cultura, de ser por uma de

96
suas faces materializada em instrumentos,
objetos manufaturados e produtos de uso
corrente, e por outra de estar constituída por
idéias abstratas, concepções da realidade,
conhecimentos dos fenômenos e criações da
imaginação artística, correlacionadas uma e
outra face pelas respectivas técnicas, leva o
pensador ingênuo a desorientar-se ao conceituá
la, pois tem dificuldade em utilizar o método
necessário para chegar à formulação racional
do plano cultural em totalidade. A multiplicidade
dos produtos culturais desnorteia a visão do
pesquisador, e freqüentemente o conduz a
explicações ingênuas, metafísicas, formalistas,
porque lhe falta o ponto de vista genético. Revela
se incapaz de fazer o objetivismo histórico da
cultura, único procedimento que conduz à
compreensão de sua natureza. Perde-se num
universo de especulações. A cultura aparece-lhe,
no estado atual, como um infinito complexo de
conhecimentos científicos, de criações artísticas,
de operações técnicas, de fabricação de objetos,
máquinas, artefatos e mil outros produtos da
inteligência humana, e não sabe como unificar
todo esse mundo de entidades, subjetivas umas
e objetivas outras, de modo a dar a explicação
coerente que una num ponto de vista
esclarecedor toda esta extrema e diversificada
multiplicidade. Não dispondo senão de uma
concepção formalista da realidade, estará fadado
a transviar-se, pois pretenderá unir o mundo de
conceitos que colhe das multiformes
manifestações culturais correlacionando
mecanicamente cada conceito a uma delas,
mediante a análise sempre mais sutil e
aprofundada do seu conteúdo, com o que dificulta
a operação da síntese explicativa, que é uma das
finalidades do conhecimento, e que tem em vista,
mas julga consistir na aglomeração dos dados,
na comparação deles e extração das
regularidades significativas, ou seja, reduz à
atividade meramente indutiva. Este caminho é

97
impraticável para conduzir à explicação racional
do fenômeno da cultura, o que bem se documenta
pela variedade e divergência das concepções que
a propósito dela têm sido formuladas. (PINTO,
1979, p. 125)

A consequência desse fato é o pesquisador


atomizar o conceito de cultura, estratificando-o conforme
o grau de extensão dado a esses contextos (OLIVEIRA,
2002a, p. 08). Daí referências a cultura ocidental, cultura
indígena, cultura cigana, cultura popular, etc. Saviani
esclarece:

A essência da cultura consiste, pois, no processo


de produção, conservação e reprodução de
instrumentos, idéias e técnicas. É isto que
permite que o mesmo termo seja aplicado a
diferentes manifestações como ocorre, por
exemplo, nas expressões “cultura chinesa”,
“cultura indígena”, “cultura ocidental”. Em
quaisquer dos casos pode-se detectar a existência
de instrumentos, idéias e técnicas. Em
contrapartida, o que diferencia uma cultura de
outra é a direção seguida pelo processo cultural;
é, em suma, o tipo, as características de que se
revestem os instrumentos idéias e técnicas.
Como produtos do existir do homem, esses
elementos fundamentais se entrelaçam
constituindo uma rede de relações, de
significações, de valores que determinam ao
mesmo tempo que são determinados pelos modos
de agir e pensar dos homens. (SAVIANI, 1985, p.
123)

Dada a sociedade alienada, o que ocorre é que


o homem singular contribui para a cultura através da
sua atividade de vida na relação com os demais homens,
mas é impedido de desfrutar da totalidade da cultura
pelo gênero humano (SAVIANI, 1985, p. 124).
Daí que,
criada

Não se pode considerar a cultura pela mera

98
diversificação de sua produção pelas ditas
‘diferentes culturas’, mas considerá-la numa
visão unitária de cultura humana, o patrimônio
da humanidade a que todos deveriam ter pleno
direito de acesso e fruição. (OLIVEIRA, 2002a, p.
08)

Cumpre observar que essa dimensão


totalizadora de cultura precisa também abarcar uma
perspectiva historicizadora crítica sobre o processo de
desenvolvimento humano de sorte a apontar para as
possibilidades consideradas humanizadoras já
alcançadas historicamente (DUARTE, 1993, p. 62).
Diante dessas considerações, o trabalho
educativo escolar é entendido como “o ato de produzir,
direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular,
a humanidade que é produzida histórica e coletivamente
pelo conjunto dos homens” (SAVIANI, 1991, p. 21).
O trabalho educativo denota, para cada
indivíduo, uma produção fruto de um processo de
apropriação da cultura humana em seu nível mais
elaborado, através de um processo pedagógico
intencional, isto é, deliberado através de procedimentos
objetivos intencionalmente programados para a garantia
de tal apropriação (daí Saviani referir-se a uma ação
direta e intencional). E mais ainda, o que é fundamental
para este trabalho, o que deve ser apropriado tem como
parâmetro aquilo que a humanidade produziu de forma
histórica e coletiva por todos os homens, isto é, os
elementos culturais necessários para humanização de
todo homem:

O que o trabalho educativo produz? Ele produz,


nos indivíduos singulares, a humanidade, isto
é, o trabalho educativo alcança sua finalidade
quando cada indivíduo singular se apropria da
humanidade produzida histórica e
coletivamente, quando o indivíduo se apropria
dos elementos culturais necessários à sua
formação como ser humano, necessários à sua
humanização. Portanto, a referência
fundamental é justamente o quanto o gênero
99
humano conseguiu se desenvolver ao longo do
processo histórico de sua objetivação. (DUARTE,
1994, p. 142)

Nesse sentido, um ensino que verdadeiramente


contribua para a emancipação do homem visando a sua
plena humanização, não é aquele que se restringe a
valorizar o conhecimento local, mas, pelo contrário, é
muito mais que isso, é aquele que considera esse
conhecimento como ponto de partida possível para
superação da marginalidade cultural que lhe é
infringida, garantindo-lhe aquilo que o gênero humano
já elaborou e que, através da escola, via sistematização
do saber, se torna um legado possível de ser ofertado a
todos.
Essas colocações implicam um olhar sobre a
prática educativa de forma distinta frente a algumas
ideias segundo as quais um bom ensino seria aquele
que respeitasse a cultura do aluno, a individualidade do
aluno nos restritos limites das experiências de vida
dos contextos sociais dos alunos. No campo do ensino
da matemática, essas idéias têm sido frequentemente
adotadas pela denominada etnomatemática, uma linha
de pesquisa hegemônica da Educação Matemática com
forte inserção em Congressos e Encontros dessa área.
Nesse sentido, no próximo item, se faz necessário tecer
algumas considerações sobre a etnomatemática e, a
partir daí, apresentar algumas reflexões críticas
decorrentes da concepção da relação entre produção e
elaboração do saber presente nessa tendência na
Educação Matemática.

A relação entre o conhecimento local e o


conhecimento escolar: o debate cultural no
ensino da matemática
A perspectiva cultural do ensino da matemática
tem sido muito difundida no cenário da denominada
“Educação Matemática” brasileira, através da linha de
pesquisa denominada etnomatemática. Segundo
D’Ambrósio, etnomatemática denota “os modos, estilos,
100
artes, técnicas (tica) de explicar, aprender, conhecer,
lidar com (mathema) o ambiente natural, social,
cultural e imaginário (ethno)” (D’AMBRÓSIO, 2001, p.
02).
Através da etnomatemática, advoga-se uma
perspectiva pluralista de se entender a matemática
(CLARETO, 2002, p. 34), sendo a matemática escolar
fruto de uma interpretação etnocêntrica dessa ciência.
Nesse sentido, a matemática escolar seria a matemática
ocidental, uma matemática que se apresenta, segundo
essas pesquisas, imposta aos indivíduos (D’AMBRÓSIO,
2001, p. 73).
Através dessa diferenciação, desvela-se o que
consideram ser mecanismos ideológicos implícitos à
aprendizagem escolar, mecanismos respaldados numa
tendência enganosa de se pensar numa mesma matemática
para todos (D’AMBRÓSIO, 1990, p. 32). Nesse sentido,
é frequente observar em alguns trabalhos
etnomatemáticos, o emprego de expressões negativas
dirigidas à matemática escolar. Por exemplo, Scandiuzzi
(2002, p. 57) emprega o termo a matemática do invasor
para se referir à matemática escolar; já Gerdes (1991,
p. 05) refere-se à matemática escolar como aquela
importada de fora da África e D’Ambrósio (2001, p. 80)
fala em etnomatemática do branco. Já para se referir a
outras matemáticas de forma a utilizar um termo que se
relacione a esse processo considerado ideológico, é
possível encontrar em trabalhos dessa linha de
pesquisa, termos como matemática oprimida, matemática
escondida ou congelada (GERDES, 1991, p. 29); matemática
popular/do povo (MELLIN-OLSEN, apud GERDES, 1991,
p. 29).
Com o intuito de se contrapor à matemática
escolar como uma matemática ocidental imposta,
pesquisas etnomatemáticas defendem o que entendem
ser um resgate da identidade cultural dos indivíduos
através de uma valorização das formas de se entender,
interpretar e produzir matemática. Para D’Ambrosio
(2001, p. 42), trata-se de um processo de recuperação
da dignidade de um grupo social até então
marginalizado.
Em função da necessidade de se resgatar outras
101
matemáticas até então esquecidas, as pesquisas
etnomatemáticas realizam pesquisas de campo. Dentre
tantas pesquisas dessa natureza, pode-se apontar aqui
a de Damasceno e Gomes (2003) sobre a matemática
presente na produção de farinha de mandioca nos
municípios de Serra do Navio e Calçoene no Estado do
Amapá; a de Chieus (2002) sobre a matemática dos
pescadores no fabrico de canoas em Ubatuba, litoral
de São Paulo; a de Knijnik (1993) sobre a matemática
presente nas atividades dos sem-terra no Rio Grande
do Sul; a de Clareto (1993) sobre a matemática presente
nas atividades dos moradores da comunidade caiçara
de Camburi, litoral de São Paulo e a de Borba (1987)
realizada na favela da Vila Nogueira - São Quirino em
Campinas (SP).
Nos congressos e encontros na área da
Educação Matemática, as pesquisas etnomatemáticas
passaram a destacar o fato de que o ensino da
matemática reproduz os interesses do sistema vigente,
sendo a matemática entendida como um forte
instrumento perpetuador das desigualdades, como
mostram Anastácio (1993); Ferreira (1993); D’Ambrosio
(2001); Scandiuzzi (2002); etc.
Neste trabalho, não é possível adentrar na
reflexão sobre a concepção ideológica de escola e ensino
de matemática apontada por essa linha de pesquisa.
Cumpre esclarecer que essa reflexão já foi devidamente
desenvolvida em outros trabalhos (GIARDINETTO,
2004a, 2004b e 1999). Trata-se, no campo da Educação
Matemática, de uma concepção crítico-reprodutivista —
no conceito apresentado por Saviani (1991) —, de escola,
de matemática e de ensino de matemática que implica,
entre outras coisas, secundarização e descompromisso
para com a apropriação da matemática escolar por parte
dessa linha de pesquisa.
Diante da função ideológica implícita na
apropriação da matemática escolar e da preocupação
de se entender o contexto social investigado, as
pesquisas etnomatemáticas enfatizam o conhecimento
matemático local, isto é, aquele produzido em contextos
sociais diversos de forma a evidenciar a matemática que
os indivíduos sabem. A relação entre o conhecimento
102
matemático local e o conhecimento escolar se torna
um espaço de convivência de diferentes saberes
matemáticos em nome do respeito às ditas diferentes
matemáticas. Um ensino de matemática motivador seria
aquele que respeitasse os interesses dos alunos, isto é,
que considerasse os problemas oriundos das
experiências vividas.
A ênfase ao conhecimento local vai gerar um
ensino da matemática aplicado ao cotidiano vivido,
elegendo o cotidiano como a instância da vida social
propícia para a captação da verdadeira matemática. Nesse
sentido, D’Ambrósio aponta “inúmeros estudos sobre a
etnomatemática do cotidiano” (D’AMBRÓSIO, 2001, p.
22-25).
O que se percebe nos trabalhos dessa linha de
pesquisa é uma forte crítica ao ensino de matemática
que ainda hoje é regido por uma concepção tradicional
em que os conteúdos aparecem descontextualizados
dos problemas da prática social, apresentados de forma
mecânica e aleatória, sem qualquer menção a sua
gênese. Diante dessa concepção, a etnomatemática
vem apontar o fator cultural como elemento importante
a se considerar no ato pedagógico. Entretanto, essas
pesquisas defendem a contextualização da matemática
produzida em contextos sociais diversos mediante a
ênfase ao conhecimento matemático local (retratando
a matemática que os indivíduos sabem) em contraste
com a matemática escolar, gerando consequentemente,
uma secundarização da apropriação da matemática
escolar.
Procurar promover a contextualização da
matemática no ensino desta ciência é algo necessário
e imprescindível para a apropriação crítica desta
ciência. E isso não denota uma característica original
que identifica essa linha de pesquisa. No Brasil, já na
década de 60, Malba Tahan defendia a necessidade de
contextualização da matemática (TAHAN, 1965, p. 57
139). Caraça (1984), na década de 40, em Portugal,
defendia a necessidade de apontar “a influência que o
ambiente da vida social exerce sobre a criação da
Ciência” (CARAÇA, 1984, p. 13). Da mesma forma,
perspectivas construtivistas no ensino da matemática

103
apontam também essa contextualização.
A pedagogia histórico-crítica também defende
a contextualização do conhecimento no decorrer do
processo de ensino-aprendizagem (inclusive no ensino
da matemática), basta considerar os cinco passos
norteadores para a ação didático-pedagógica
apresentada por essa pedagogia (prática social,
problematização, instrumentalização, catarse e prática social)
apresentados por Dermeval Saviani em seu livro Escola
e Democracia (1985) e muito bem desenvolvidos por João
Luiz Gasparin (2002) em seu livro Uma Didática para a
Pedagogia Histórico-Crítica.
O fundamental é explicitar, em qualquer
tendência pedagógica que destaca a contextualização
da matemática (e demais conteúdos escolares), o que
efetivamente se entende por contextualização.
Interessa para este trabalho entender esse
conceito de contextualização no âmbito da pedagogia
histórico-crítica em oposição ao conceito entendido
pelas pesquisas etnomatemáticas, e as implicações
para a prática pedagógica daí decorrentes. Tal
entendimento implica pensar a concepção que se
promove quanto à relação entre os saberes aescolares
frente ao saber escolar: trata-se de conceber o
conhecimento (matemático) local (os saberes locais)
como uma forma distinta do conhecimento (matemático)
escolar, como fazem as pesquisas etnomatemáticas,
ou como uma forma específica de manifestação do
conhecimento (matemático) possível de ser decodificado
pelo conhecimento (matemático) escolar (sendo essa
decodificação apenas uma possibilidade para realização
do processo de ensino-aprendizagem)?
À luz da concepção totalizadora de cultura aqui
apresentada, em que um dos pressupostos
fundamentais é a diferenciação entre produção do saber
e a elaboração do saber, a contextualização, promovida
pela pedagogia histórico-crítica, é aquela em que
conhecimento (matemático) escolar acrescenta novas
determinações com níveis de abstrações mais amplos
que aqueles restritos ao imediatamente atrelado à
representação concreta vivida. Trata-se de uma
decodificação do conhecimento produzido através de

104
um processo regido por uma lógica de superação por
incorporação do conhecimento local na relação com o
conhecimento escolar (GASPARINI, 1990). A
manifestação cotidiana de determinado conceito
matemático, desenvolvida nas relações entre os
homens e para com a natureza em contextos sociais
diversos, revela a forma pragmática desse mesmo
conceito em sua expressão escolar. Esse conhecimento
produzido de forma assistemática passa a ser
sistematizado gerando o corpo de conhecimentos hoje
presentes, não em sua totalidade, na escola. Nesse
processo, aquilo que, de imediato, parece ser “outra”
matemática, pois é vista de forma dissociada da
matemática escolar, é, na verdade, “a” matemática hoje
constituída. Em outras palavras, as diferentes produções
da matemática em contextos sociais diversos não são
‘diferentes matemáticas’, mas diferentes manifestações “da”
matemática (GIARDINETTO, 2002).

É no processo histórico (das várias estruturas


sociais que se sucedem) que vai sendo produzido
o conhecimento matemático elaborado. Por mais
diferenciadas que sejam “as matemáticas” dos
diferentes grupos sociais, o cerne fundamental
de todas essas várias matemáticas, que parecem
à primeira vista como próprias do grupo, são mero
produto da mesma estrutura básica da
matemática já elaborada histórica e
socialmente... (GIARDINETTO, 1999, p. 07)

Nesse sentido, a importância da escola está na


decodificação, via sistematização, da produção do saber
em contextos sociais diversos através da análise das
distintas produções da matemática pela caracterização
do cerne fundamental, da estrutura básica da matemática já
elaborada histórica e socialmente, como foi dito na citação
acima. É a caracterização dessa estrutura básica que
pode, e deve, quando possível, ser elemento motivador
para a apropriação da matemática escolar. E essa
decodificação não denota diferentes matemáticas (a
local e a escolar), mas formas distintas da matemática
sistematizada na versão escolar.

105
Para melhor esclarecer essa reflexão considere
o exemplo da relação entre a matemática de um
funcionário de um frigorífico e a matemática de pastores
africanos.
Em Giardinetto (1999, p. 108-110) encontram
se considerações sobre formas diversas de contagem
apresentadas por funcionários alfabetizandos da
Universidade Federal de São Carlos (OLIVEIRA &
DUARTE, 1987). Interessa aqui a descrição de uma
dessas formas de contagem de um desses funcionários.
Segundo Giardinetto:

Havia um funcionário que, antes de trabalhar


na UFSCar, trabalhava no controle de entrada
de carne de um frigorífico. Por não saber contar
e diante da necessidade de contar um número
elevado de quartos de bois que entravam na
câmara fria, utilizava pedaços de sebos de bois
na relação de um para um (colocando os sebos
no bolso do avental), isto é, cada quarto de boi
correspondia a um dos dedos das mãos. Quando
chegava no último dedo (o décimo dedo da
segunda mão), o funcionário sabia que, dentro
do bolso de seu avental, tinha dez sebos. Obtendo
dez, o funcionário retirava os dez sebos e
substituía-os por um único sebo que agora era
colocado em um outro bolso do avental. Utilizava,
assim, a relação de correspondência um para dez.
Como se pode verificar nesse exemplo, o
funcionário não sabia contar, mas utilizava
correspondências: o número de dedos com
número de sebos e dez sebos de um bolso
correspondendo a um sebo em outro bolso,
significando a quantia de dez quartos de boi.
Finalizando a tarefa, chegava até a mesa do seu
superior e despejava os sebos na mesa para que
seu superior procedesse à contagem.
(GIARDINETTO, 1999, p. 108)

Em Ifrah, encontra-se a explicitação da


contagem processada por pastores africanos. Esse autor
afirma:
106
Em certas regiões da África ocidental, há
relativamente pouco tempo, os pastores tinham
um costume bastante prático para avaliar um
rebanho. Eles faziam os animais passarem em
fila, um a um. Após a passagem do primeiro
enfiavam uma concha num fio de lã branca, após
o segundo uma outra concha, e assim por diante
até dez. Nesse momento desmanchava-se o colar
e se introduzia uma concha numa lã azul,
associada às dezenas. E se recomeçava a enfiar
conchas na lã branca até a passagem do vigésimo
animal, quando se introduzia a uma segunda
concha no fio azul. Quando este tinha, por sua
vez, dez conchas, e cem animais haviam sido
contados, desfazia-se o colar das dezenas e
enfiava-se uma concha numa lã vermelha,
reservada desta vez para as centenas. Para
duzentos e cinqüenta e oito animais, por
exemplo, haveria oito conchas de lã branca, cinco
azuis e duas vermelhas. (IFRAH, 1989, p. 53)

As citações são claras quanto às similaridades


entre as duas formas de contagem.
Um outro exemplo é a matemática do poceiro, a
matemática do jogador de futebol de praia e a matemática
da sala de aula. Um poceiro — indivíduo que faz poços,
Trotta, Imenes e Jakobovic (1979) —, tendo em mãos
duas estacas de madeira amarradas por uma corda
uma à outra, realiza o traçado de uma circunferência.
Procede da seguinte forma: uma estaca é fixada na
terra. A outra estaca é afastada da estaca fixada de
tal forma que a corda é esticada. A estaca não fixada
pode girar em torno da outra fixada de sorte que a
ponta da estaca que gira vai, com o movimento, traçando
na terra a figura procurada.
Um jogador de futebol de praia preocupado em
traçar na areia a marca do pênalti procede da seguinte
maneira: com o pé, fixa na areia o calcanhar como um
eixo em que o corpo será girado. O jogador faz uma
pressão do dedão do pé para com a areia de sorte que,
no decorrer do giro do corpo, o dedão pressionado junto
a areia vai realizando um traçado. O resultado final é

107
uma figura (conhecida por todos como circunferência)
em que a marca do calcanhar na areia é o centro dessa
figura onde a bola poderá ficar para o chute do pênalti.
Já um aluno da aula de geometria precisa traçar
uma circunferência. Pega o compasso que tem uma
ponta fixada na folha de papel e a outra com um lápis
gira o compasso. Obtém a circunferência. Na aula de
geometria euclidiana, aprende que a circunferência é
um lugar geométrico, isto é, um conjunto de pontos
caracterizados por uma propriedade. A propriedade em
questão é o conjunto de pontos traçados a uma mesma
distância de um ponto dado (centro).
O que o poceiro, o jogador de futebol de praia e
o aluno de geometria têm em comum é o conceito
(sistematizado, elaborado) de circunferência, produzido
de formas distintas, por instrumentos distintos (as duas
estacas ligadas por uma corda, no caso do poceiro; o pé
por parte do jogador de futebol e o compasso, por parte
do aluno).
Interessante observar que essa dinamicidade
na produção da matemática se faz presente na história
dessa ciência (4). E alguns autores, sem perceber,
acabam fornecendo indícios para a investigação da
similaridade existente nas diferentes produções da
matemática em povos diversos.
É o caso de Ifrah (1989). Esse autor, ao abordar
a história dos números, acaba manifestando, surpreso,
o fato de existir uma similaridade nas distintas
produções relativas à gênese histórica dos números ao
afirmar:

É impressionante observar como, em suas


buscas e tentativas, homens muito distantes no
tempo e no espaço tomaram às vezes os mesmos
caminhos e desembocaram em resultados
inteiramente similares. Mas seria absurdo
pensar que estes povos se copiaram uns aos
outros: como vimos, eles simplesmente foram
colocados diante de condições iniciais
rigorosamente idênticas. O que explica por que
sociedades sem nenhum contato entre si
tenham chegado, simultaneamente ou em

108
épocas diferentes, a resultados semelhantes:
domínio do fogo, descoberta dos números,
progresso do urbanismo e da tecnologia,
desenvolvimento da agricultura, tratamento e
liga dos metais, invenção da roda ou do arado
[...]. (IFRAH, 1989, p. 180)

No mesmo sentido, muitos autores apontam


existirem “outros” Teoremas de Pitágoras que não são
de exclusividade de Pitágoras. Por exemplo, Gerdes
(1991, 1992) apresenta o Teorema de Pitágoras
“africano”.
Da mesma forma, o conhecido Triângulo de
Pascal não foi conceituado apenas por Blaise Pascal
(1632-1662), pois era de conhecimento dos chineses
no século XIV (BOYER, 1974, p. 151) e dos árabes desde
o século XI (IFRAH, 1989, p. 301).
E mais, no desenvolvimento histórico da
matemática, encontram-se problemas similares de
povos distintos em épocas distintas. Para não alongar
o presente trabalho, considera-se apenas um exemplo
de dois problemas similares, um retirado de Lauand
(1986) e o outro, retirado de Karlson (1961). (5)
❑ Numa escada de 100 degraus, no 1º degrau
está pousada 1 pomba; no 2º degrau, 2 pombas; no 3º
degrau, 3 pombas; no 4º degrau, 4 pombas; no 5º
degrau, 5 pombas; e assim em todos os degraus até o
100º. Diga, quem puder, quantas pombas há no total ?
(um dos Problemas para aguçar a inteligência dos jovens,
de Pseudo-Beda, o Venerável — século X. (apud
LAUAND, 1986, p. 97)
❑ Somar os 100 primeiros números [problema
resolvido por Carl Friedrich Gauss em 1785, quando
este tinha apenas 8 anos de idade conforme esclarece
Karlson (1961, p.100)]
Os exemplos aqui apresentados retratam muito
bem as direções seguidas pelo processo histórico (SAVIANI,
1985, p. 123). Não se trata de diferentes matemáticas,
mas, sim, de diferentes manifestações da matemática.
Essas diferentes produções da matemática em
contextos sociais diversos revelam, através das suas
semelhanças para com a matemática na forma escolar,
109
a universalidade e objetividade da matemática (6). A
história do desenvolvimento da matemática evidencia
isso e reitera a análise apresentada por Saviani (1991)
quando este afirma que a historicização “em lugar de
negar a objetividade e universalidade do saber, é a
forma de resgatá-la” (SAVIANI, 1991, p. 63).
Portanto, não se trata de questionar a
universalidade do conhecimento matemático. Esta não
é destronada. Ela é consequência do processo histórico.
É a superação da pretensa neutralidade do
conhecimento matemático que é destronada, pois a
revisão histórica não retira a apropriação de conceitos
que permaneceram no tempo, mas retira, sim, a
interpretação de uma produção única desses conceitos
substituindo-a pela diversidade de produções. Nesse
sentido, pode-se questionar o teorema de Pitágoras
como sendo uma apropriação exclusiva de Pitágoras (e
o do povo grego), desconsiderando o fato de que era de
conhecimento de outros povos, alguns não considerados
pela história da civilização ocidental, mas não se pode
negar a necessidade de sua apropriação no âmbito
escolar. Podem-se apontar outros sistemas de
numeração possíveis, mas a apropriação do sistema
numérico-posicional de origem hindu-árabe é algo
incontestável. Pode-se apontar para o fato de que a
geometria euclidiana não é propriamente obra de
Euclides, mas não se pode abrir mão de sua
apropriação. Considerando tantos outros exemplos, o
que se está aqui apontando é o equívoco de, ao se fazer
a crítica ao processo histórico da matemática (que não
é neutro, isento de embates de natureza ideológica),
estar se desqualificando a apropriação desses conceitos.
Trata-se, sim, de garantir a perspectiva historicizadora
crítica sobre o processo de desenvolvimento da
matemática no âmbito de sua apropriação na escola,
resgatando assim, as possibilidades consideradas
humanizadoras (DUARTE, 1993, p. 62) já alcançadas
historicamente pela matemática e que estão hoje
colocadas no ensino escolar.
Apresentadas essas considerações acerca da
dinâmica da produção da matemática na história dessa
ciência, cumpre esmiuçar mais alguns aspectos ainda

110
pertinentes à relação entre produção e elaboração do
saber presentes na perspectiva etnomatemática quanto
à questão cultural no ensino da matemática.
Para as pesquisas etnomatemáticas, a
valorização do indivíduo é a valorização daquilo que os
indivíduos sabem; daí a caracterização da matemática
produzida em contextos sociais diversos. Note que a
preocupação dessas pesquisas é com aquilo que os
indivíduos produzem de saber (trata-se da produção do
saber). Mas compete indagar: e aquilo que esses
indivíduos não sabem? Não são elementos
imprescindíveis para a efetiva realização de um ensino
que valorize o indivíduo? Ora, “o indivíduo precisa da
escola não para legitimar o conhecimento que ele já
produziu, mas para ter acesso ao conhecimento que
ele não é capaz de elaborar e sistematizar”
(GIARDINETTO, 1999, p. 91) já que “a função precípua
da escola é exatamente a de possibilitar o domínio
necessário dos instrumentos básicos que garantam essa
elaboração e sistematização” (SAVIANI, 1991, p. 82).
Portanto interessa aqui entender que a plena
valorização dos indivíduos não se restringe ao que
produzem mas, sim, à apropriação, no âmbito escolar,
da sistematização do saber.
Além disso, acreditar estar valorizando um
indivíduo ou uma comunidade pela mera utilização
daquilo que sabem não modifica e nem aponta para a
superação das condições que fazem desse indivíduo
um marginalizado cultural, já que a superação da
exclusão não está apenas em considerar o que sabem,
mas em superar as dificuldades pelas quais esses
indivíduos não têm acesso à cultura humana em geral,
garantindo, portanto, a apropriação daquilo que não
sabem e que definem esses indivíduos como
marginalizados culturalmente. Mesmo dando voz aos
excluídos, expressão utilizada por CLARETO (2002),
esses indivíduos continuam sendo excluídos se o
pesquisador se limitar a reiterar o que esses indivíduos
sabem através da restrição do acesso ao conhecimento
escolar, aquele que se relaciona de forma direta com
aquilo que esses indivíduos sabem.
E mais, os indivíduos investigados sob o ponto

111
de vista da expressão sistematizada do conhecimento,
não sabem o que sabem. No caso da matemática escolar,
somente através da sua utilização (a matemática
sistematizada) como um instrumento de análise torna
se possível decodificar, nas atividades dos indivíduos,
a matemática produzida por esses indivíduos. Sem esses
instrumentos, eles continuam utilizando o
conhecimento matemático de forma pragmática e
utilitária, forma própria exigida na esfera da vida
cotidiana (GIARDINETTO, 1999). Daí Saviani afirmar
naquela citação sobre a diferença entre elaboração e
produção do saber que “se a escola não permite o acesso
a esses instrumentos, os trabalhadores ficam
bloqueados e impedidos de ascenderem ao nível da
elaboração do saber, embora continuem, pela sua
atividade prática real, a contribuir para a produção do
saber” (SAVIANI, 1991, p. 81).
Cumpre inclusive afirmar que é graças ao
domínio do saber escolar matemático por parte dos
próprios pesquisadores etnomatemáticos que é possível
essa decodificação. O acesso à escola, foi fundamental
para os próprios pesquisadores etnomatemáticos, uma
vez que, sem o domínio da matemática escolar, não
haveria instrumentos e, portanto, condições de realizar
e defender suas pesquisas.
Como já havia dito, a ênfase ao conhecimento
local defendido por essas pesquisas, vai gerar um
ensino da matemática reduzido ao aplicável ao cotidiano
vivido, elegendo o cotidiano como a instância da vida
social propícia para a captação da verdadeira matemática.
E isso vai gerar um problema pedagógico: a
supervalorização do saber matemático cotidiano em
detrimento da apropriação do saber matemático escolar
(7).
Sobre a realização de um ensino atrelado ao
cotidiano de vida dos alunos, cumpre observar dois
aspectos.
O primeiro, mais evidente, é que a vida cotidiana
de todo indivíduo não é completa do ponto de vista de
permitir associar todo o conteúdo matemático presente
na grade curricular a problemas reais da vida dos
indivíduos. O conhecimento elaborado, dado o nível de

112
complexidade hoje alcançado, não trabalha somente
com as diferentes manifestações da matemática, mas
também com níveis de abstração cada vez maiores que,
muitas vezes, não encontram de forma direta, sua
manifestação prática no dia a dia. O que se vê em
algumas pesquisas da etnomatemática é justamente
apenas parte do conhecimento sistematizado, exemplos
em que é possível trabalhar com determinados conceitos
ou tópicos matemáticos através da caracterização de
sua produção em atividades práticas do dia a dia.
Já o segundo aspecto, não tão evidente quanto
o primeiro, se refere à lógica do pensamento no
cotidiano e seus limites se utilizados como referência
para apropriação dos conceitos escolares. Como já
observado em Giardinetto (1999, p. 60-84), a vida
cotidiana é pragmática e imediata, e o pensamento a
ela dirigido para a execução de uma determinada
atividade responde a essa pragmaticidade e
imediatismo. Como tal, essa lógica é economicista, já
que impõe a tomada rápida e precisa de elementos
estritamente necessários para o cumprimento da
atividade.
Entretanto, na aprendizagem escolar, a lógica
aí exigida, dado o plano mais complexo a atingir quanto
à apropriação dos conceitos escolares, é uma lógica
interna sistematizadora que dirige, instrumentaliza e
possibilita a sistematização dos conceitos.
Consequentemente, graças a essa lógica
sistematizadora, possibilita-se o acesso a níveis de
abstração mais complexos que aqueles exigidos no
decorrer das atividades cotidianas. Nesse sentido, a
lógica interna do pensamento cotidiano apresenta
limites para viabilizar atingir esses níveis de maiores
complexidades. É preciso diferenciar a apropriação de
um determinado conceito na vida cotidiana, da
apropriação deste mesmo conceito em sua expressão
elaborada, via atividade escolar.
Curioso perceber, em algumas pesquisas
etnomatemáticas, como em Knijnik (1993) e Monteiro
e Pompeu (2001), a referência à relação entre a
matemática escolar e a cotidiana como uma relação
dicotomizada através de uma pretensa escolha entre

113
qual matemática o aluno pode vir a necessitar no seu
dia a dia. Note que, neste caso, a matemática escolar
deixa assim de ser uma imposição ideológica tornando
se uma opção pretensamente democrática frente à
matemática do indivíduo.
O entendimento dessa relação impede a
percepção de elementos mediadores que possibilitariam
ao aluno entender a matemática escolar como um
processo de superação por incorporação da matemática
em contextos sociais diversos. O aluno não identifica,
no conteúdo aescolar, germens do conceito
sistematizado na versão escolar, nem os limites desse
conteúdo assistemático para apropriação da versão
elaborada. A relação entendida entre a matemática
escolar e a matemática do cotidiano é uma relação
dicotomizada, galgada numa lógica do ou...ou, isto é,
os pólos que compõem a relação são pólos distintos,
não relacionáveis. E opte o aluno por uma delas.
Assim, a tarefa de se tomar, nas diferentes
manifestações do processo de produção do
conhecimento matemático, o núcleo válido (DUARTE,
1989) que reproduz os traços essenciais do
conhecimento já sistematizado é substituída por uma
pretensa valorização do conhecimento matemático
produzido fora da escola, diante de uma matemática
escolar que, apresentada como uma possível opção, é
anunciada sem os elementos mediadores que fariam
com que o aluno entendesse essa matemática escolar
como um processo de superação por incorporação da
matemática em contextos sociais diversos.
Diante dessas reflexões, cumpre ressaltar a
defesa pela promoção da compreensão acerca da
universalidade do saber presente na versão escolar,
através da captação, nas diferentes manifestações
sociais, de elementos hoje formadores do conhecimento
desta versão já universalmente constituída. Assim, o
conhecimento historicamente produzido e
sistematizado, quando possível, estaria sendo
descortinado de sorte a revelar a diversidade das
manifestações da cultura até então escamoteada e
amortecida na sua composição. Caberia, portanto, ao
professor de matemática identificar, nas diferentes

114
manifestações da matemática, em contextos sociais
diversos, o(s) núcleo(s) válido(s), o que é possível auxiliar
na apropriação da versão sistemática já constituída,
passível de ser socializada via escola. Trata-se,
portanto, não de evidenciar o que há de diferente em
contextos sociais diversos quanto à matemática
constituída na versão escolar, mas, sim, de buscar
evidenciar as similaridades entre as diferenças, de
sorte a descortinar, na universalidade implícita à
matemática escolar, a riqueza dessa similaridade.
Nisso reside, talvez, a principal contribuição das
pesquisas etnomatemáticas. Subtraindo dessas
pesquisas o viés crítico-reprodutivista de escola e
ensino de matemática; a concepção relativista de
conhecimento matemático; a concepção imediatista de
indivíduo, realidade e conhecimento, entre outras
coisas aí presentes, é possível captar os dados relativos
às distintas formas de produção da matemática em
contextos sociais diversos por essas pesquisas
investigados, de sorte a promover, de posse desses
dados, a caracterização daquilo que se relaciona com
a matemática já historicamente construída, presente
na versão escolar, com o conhecimento elaborado,
sistematizado.
Finalizando o presente trabalho, cumpre afirmar
que o verdadeiro respeito ao aluno, a sua cultura não está
se restringindo àquilo que o aluno é, mas sim, àquilo
que, no aluno, está em formação. Nessa perspectiva, o
papel da escola para a formação do educando, é aquele
que aponta para a apropriação das objetivações do
gênero humano, para a cultura humana considerada
sua perspectiva totalizadora. Como afirma Duarte (1996,
p. 93):

O indivíduo humano se faz humano apropriando


se da humanidade produzida historicamente. O
indivíduo se humaniza reproduzindo as
características historicamente produzidas do
gênero humano. Nesse sentido, reconhecer a
historicidade do ser humano significa, em se
tratando do trabalho educativo, valorizar a
transmissão da experiência histórico-social,

115
valorizar a transmissão da experiência histórico
social, valorizar a transmissão do conhecimento
socialmente existente. (DUARTE, 1996, p. 93)

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Notas

(1) Esses conceitos denotam a necessidade de se superar o


conceito de “espontâneo” muito utilizado em determinados
trabalhos na Educação Matemática como algo que surge
naturalmente de “dentro” do indivíduo. Sobre isso ver
Giardinetto (1999, p. 21-24).

(2) Sobre os conceitos de objetivações em-si e para-si ver


Heller (1977).

(3) Saviani (1984, p.19-34) aponta como teorias crítico


reprodutivistas a teoria da escola enquanto aparelho
ideológico de estado de Althusser; a teoria da escola dualista
de C. Baudelot e R. Establet e a teoria do sistema de ensino
enquanto violência simbólica de Bourdieu e Passeron.

(4) Trata-se de pesquisa do autor realizada na UNESP (atividade


de pesquisa do docente).

(5) Swetz (1996) apresenta alguns exemplos de problemas


similares. Trata-se de um trabalho apresentado no
Encontro História e Educação Matemática, International
Study Group on the Relations Between History and Pedagogy
of Mathematics, ICME-8 satellite meeting, realizado na
Universidade do Minho, cidade de Braga, em Portugal, em
junho de 1996 (in Anais do Encontro, vol. I, p. 201-208).
Quatro destes problemas similares são reproduzidos em
120
Giardinetto (2004c, p. 13).

(6) Pesquisas etnomatemáticas equivocadamente identificam


a universalidade do saber com a neutralidade do saber. E,
nesse sentido, ao questionarem a neutralidade do saber,
acabam questionando a universalidade do saber, adotando,
consequentemente, concepções relativistas de
matemática. Maiores reflexões em Giardinetto (2004b).

(7) Vide Giardinetto (1997) e Giardinetto (1999).

(8) Trata-se de uma versão, para a língua portuguesa, do


trabalho original na língua alemã, trabalho apresentado
no Simpósio Internacional Verstehen und Verstandigung
(Compreender e Compreensão) realizado na Universidade
de Kassel, Alemanha, em fevereiro de 2001. A tradução foi
gentilmente cedida pela própria autora para ser aqui
utilizada como referência.

121
VIGOTSKI E O PROCESSO ENSINO
APRENDIZAGEM: A FORMAÇÃO DE CONCEITOS

Marilda Gonçalves Dias Facci


No momento atual, falar que a sociedade está
em crise não se constitui em um paradoxo. Vivemos
numa época marcada por transformações profundas e
contraditórias. Desemprego em massa, privatização de
empresas públicas e de instituições de ensino, violência
simbólica e real, exclusão social são algumas das
características desse processo de transição do século
XX para o século XXI.
A sociedade passa por um processo de
globalização, de internacionalização do capital, com
abertura comercial, econômica, financeira e,
principalmente, cultural. A relação entre os países foi
intensificada no que se refere ao setor produtivo e aos
fluxos comerciais e financeiros e, na base dessas
transformações, constata-se a especificidade que
assume o processo de globalização associado ao ideário
neoliberal, o qual justifica e defende a liberdade
individual e a valorização da competição. Conforme
postulados de Friedeich Von Hayek (1899-1992) —
autor que, de acordo com Wainwright (1998), produziu
teorias que fundamentam a economia política neoliberal
—, a sociedade é resultante casual das ações
individuais, por isso não é possível prever nem gerir a
totalidade social. A epistemologia de Hayek é a da
anulação da totalidade, com visão do conhecimento de
forma subjetivada, individualizada e pragmática.
A competitividade do mundo econômico é
naturalizada, e clama-se que a escola prepare os alunos
para atender às demandas do mercado nacional e
internacional. Ao criticar a concepção liberal, Silva
(1997) afirma que a escola, nesta ótica, é vista como
um meio de transmissão de ideias que defendem as
excelências do livre mercado e da livre iniciativa. Na
visão de Gohn (2000), a educação, no contexto do
mundo globalizado, ganha importância, porque o elevado
123
grau de competitividade ampliou a necessidade de
conhecimento e informação. Desse modo, a formação
profissional tem sido encarada como uma resposta
estratégica, mas polêmica, aos problemas postos pela
globalização econômica, pela defesa da qualidade e da
competitividade, pelas transformações nas relações de
trabalho e pelo desemprego. Os preceitos neoliberais
apregoam, portanto, que seria a escola a responsável
pela definição do lugar que os indivíduos irão ocupar
na produção e também responsável para resolver a crise
do desemprego.
Cabe à escola, nessa visão ideológica, preparar
a mão de obra qualificada para atender às exigências
da competitividade econômica, assim como “preparar
indivíduos que, a partir da escolaridade básica bem
sucedida, sejam capazes de continuar a aprender e a
incorporar novos conhecimentos que os mantenham
menos vulneráveis aos processos de exclusão social”
(AFONSO & ANTUNES, 2001, p. 91). Nessa ótica,
portanto, o indivíduo tem de estar preparado para
sempre aprender, principalmente aprender a aprender,
para se adequar às intempéries do mercado. Problemas
como a falta de empregos para todos, distribuição
desigual de renda, formação e condições precárias para
o desenvolvimento da prática pedagógica não fazem
parte, portanto, da análise da função da escola em um
contexto neoliberal.
A sociedade contemporânea é caracterizada
como a sociedade do conhecimento, mas parece-nos que
o que menos interessa é que o conhecimento seja
socializado entre os homens, havendo até mesmo,
podemos afirmar, utilizando as ideias da “modernidade”
ou “pós-modernidade”, a crença de que é impossível
conhecer a totalidade, pois “tudo o que é sólido se
desmancha no ar”. A contradição, do nosso ponto de
vista, está posta: sociedade do conhecimento, marcada,
no entanto, pelo esvaziamento do conhecimento
científico na escola, pois, a cada dia que passa,
constatamos o quanto os conhecimentos clássicos estão
sendo deixados fora do currículo escolar, dando lugar
para os conteúdos extracurriculares, geralmente
vinculados apenas ao cotidiano dos alunos.

124
Os reflexos dessa crise que a sociedade
enfrenta encontram-se na escola e no trabalho do
professor. A prática pedagógica tem ficado à mercê de
várias teorias pedagógicas e psicológicas, ou mesmo
“modismos” presentes no contexto atual da educação.
Teorias, que, no entanto, muitas vezes, não são
pautadas em fundamentos filosóficos consistentes ou
que se baseiam no ecletismo, retirando de cada
perspectiva teórica aquilo que pode ser interessante para
compreender o processo ensino-aprendizagem. Não há
preocupação, neste caso, em analisar as visões
particulares que cada uma traz em seu cerne e que
divergem entre si, como o entendimento do que seja,
por exemplo, o ser humano e como este se desenvolve,
como se dá o processo de aquisição de conhecimentos,
entre outros aspectos, relegando, muitas vezes, ao
segundo plano ou negando a historicidade de todos os
fenômenos. Nosso objetivo, neste trabalho, gostaríamos
de mencionar, é analisar o processo de ensino
aprendizagem tomando-se por base, principalmente, a
formação de conceitos pautada na escola de Vigotski.
Portanto, estamos falando de uma abordagem que tem
seus fundamentos no marxismo e que busca fazer uma
análise histórica dos fenômenos que perpassam a
relação ensino-aprendizagem.
Ao analisar a formação de conceitos de acordo
com a teoria de Vigotski, não podemos deixar de
mencionar que a sua obra é produto da atmosfera
política, social, cultural e intelectual da Rússia, pós
Revolução de Outubro, de 1917, na qual estava presente
a perspectiva de construção de uma sociedade
socialista. Segundo Wertsch (1988), essa foi uma das
maiores revoluções sociais do século XX, e proporcionou
as duas décadas cultural e intelectualmente mais
interessantes dos últimos tempos. Vivendo em uma
época pós-revolucionária, Vigotski foi capaz de
desenvolver uma teoria psicológica que transcendia o
conflito entre a Psicologia Objetivista e a Psicologia
Subjetivista, conforme podemos constatar no seu texto
O significado histórico da crise da Psicologia (VIGOTSKI,
1996).
A nossa compreensão das obras de Vigotski

125
parte da perspectiva que o considera um pesquisador
que desenvolveu seu trabalho em bases marxistas, um
“radical” por querer ir à raiz de todos os problemas, e
coerente por se manter fiel a um método histórico de
compreensão do psiquismo humano. Shuare (1990)
ressalta que é o sentido histórico que engendra a teoria
de Vigotski.

A formação dos processos psicológicos


superiores

Baseado na concepção marxista acerca da


importância da produção de ferramentas no processo
histórico do gênero humano, Vigotski (1996) enfatiza
que o traço fundamental da atividade humana é a
mediação de instrumentos técnicos e instrumentos
psicológicos. Os instrumentos técnicos têm a função
de regular as ações sobre os objetos, e os instrumentos
psicológicos regulam as ações sobre o psiquismo das
pessoas, como, por exemplo, a linguagem, diferentes
formas de cálculos e numeração, os mapas, os desenhos
e todos os tipos de signos. Partindo das concepções de
Engels sobre o trabalho humano e o uso de
instrumentos, Vigotski analisou estes enquanto meios
pelos quais o homem, transformando a natureza,
transforma-se a si mesmo.
Os instrumentos constituem um produto da
evolução histórica da humanidade e, em suas
pesquisas, Vigotski verificou, conforme Facci e Silva
(1998, p. 129), que “o uso dos instrumentos e a
capacidade de inventar novas formas de utilizá-los são
pré-requisitos para o desenvolvimento histórico dos
seres humanos; são condições necessárias para o
surgimento das funções psicológicas superiores,
especificamente humanas”. A formação das funções
psicológicas superiores (FPS) é decorrente do caráter
mediatizado da atividade humana, e amplia as
possibilidades de compreensão e intervenção dos
homens sobre a realidade.
Na formação das FPS, no desenvolvimento
cultural da criança, toda função aparece duas vezes:
126
primeiro, como função interpsicológica, realizada por
meio das relações interpessoais, e, depois, como função
intrapsicológica, isto é, interiorizada. Podemos afirmar
que essa é uma premissa que norteia a produção teórica
do autor russo.
Todas as FPS se originam como relações entre
os seres humanos. Vigotski (2000b, p. 35) afirma que
“as funções psicológicas superiores criam-se no
coletivo”, são construídas pela estrutura social. Luria
(1998a), nesse sentido, declara que Vigotski,
influenciado por Marx, “[...] concluiu que as origens
das formas superiores de comportamento consciente
deveriam ser achadas nas relações sociais que o
indivíduo mantém com o mundo exterior”.
O desenvolvimento das formas superiores de
comportamento está sujeito à evolução da cultura
humana e muda em função das transformações
histórico-sociais. A defesa desse pressuposto, por
Vigotski, pauta-se em Marx, quando este concebe o
trabalho como o motor de todo processo histórico, como
a característica fundamental do homem. Por isso
Vigotski (2001, p. 43) enfatiza que desde que se tornou
possível o trabalho, entendido como “[...] intervenção
planejada e racional do homem nos processos naturais
com o fim de reagir e controlar os processos vitais do
homem e a natureza [...]”, a humanidade avançou um
novo degrau que diferencia o ser humano dos animais.
É com base no trabalho que o ser humano, ao
transformar a natureza, se constitui enquanto ser
humano, construindo a sociedade e fazendo a história.
Para Marx e Engels (1996, p. 39), “o primeiro ato
histórico é, portanto, a produção dos meios que
permitam a satisfação das necessidades, a produção
da própria vida material”. Produzindo os meios de
sobrevivência — trabalhando —, os homens têm
produzido sua história. Satisfeita esta primeira
necessidade (de subsistência), o ato de satisfazê-la e o
instrumento de satisfação já adquirido conduzem a
novas necessidades. A atuação prática sobre a
natureza, buscando a satisfação das necessidades
básicas, possibilita a formação das faculdades humanas,
criadas historicamente.

127
A produção de ideias, das representações sobre
o mundo, do pensamento, enfim, da própria consciência
está associada à atividade material e ao intercâmbio
entre os homens. Por meio do desenvolvimento da
prática social, o pensamento evolui do nível empírico
ao nível abstrato, teórico, representado,
essencialmente, pelo pensamento científico.
Vygotski (1995) compreende que as funções
psicológicas superiores possuem dois leitos de
desenvolvimento que jamais se fundem entre si, mas
são indissoluvelmente unidos. Em primeiro lugar, as
FPS compreendem os processos de domínio dos meios
externos do desenvolvimento da cultura e do
pensamento: a linguagem, a escrita, o cálculo, o
desenho, entre outros. Dessa forma, de acordo com
Baquero (1998), as FPS exigem uma utilização mais
significativa de mediadores com crescente
envolvimento de regulação voluntária e realização
consciente, estando estreitamente vinculadas ao
processo escolarização. Em segundo lugar, as FPS
compreendem os processos de desenvolvimento das
funções psíquicas superiores especiais, tais como:
atenção voluntária, memória lógica, formação de
conceitos. De acordo com Vygotsky e Luria (1996), é a
capacidade de fazer uso de ferramentas que dá
indicações do nível de desenvolvimento psicológico do
indivíduo e de sua capacidade de utilizar os mediadores
que caracterizam a diferenciação entre os homens e
os animais e, também, entre uma criança pequena e
um adulto. No caso da memória, por exemplo, o que
diferencia uma criança de um adulto é a forma como
utilizam os métodos culturais.
A mediação cultural, portanto, é um aspecto
primordial para o desenvolvimento de todas as FPS;
seu desenvolvimento é o fundamento de toda existência
consciente do ser humano. Sem o pensamento em
conceitos, é impossível a consciência do ser humano
(1), portanto a formação dos conceitos é um aspecto
muito importante da teoria de Vigotski quando se tem
como meta abordar o tema relação entre
desenvolvimento e aprendizagem.

128
A formação dos conceitos

Os fatores biológicos e culturais, com base na


filogenia e na ontogenia, permitem aos homens se
diferenciarem dos animais, tornando-os humanizados
mediante a formação dos processos psicológicos
superiores.
Durante seu processo de desenvolvimento,
segundo Vygotski (1997), a criança se apropria de
diversos mediadores culturais, das mais diversas
ferramentas. Dessa forma,

o desenvolvimento começa com a mobilização


das funções mais primitivas (inatas), com seu
uso natural. A seguir, passa por uma fase de
treinamento, em que, sob a influência de
condições externas, muda sua estrutura e
começa a converter-se de um processo natural
em um “processo cultural” complexo, quando se
constitui uma nova forma de comportamento,
com a ajuda de uma série de dispositivos
externos. O desenvolvimento chega, afinal, a um
estágio em que esses dispositivos auxiliares
externos são abandonados e tornados inúteis, e
o organismo sai desse processo evolutivo
transformado, possuidor de novas formas e
técnicas de comportamento. (VYGOTSKY &
LURIA, 1996, p. 215)

De acordo com Vigotski, é na primeira infância


que se encontra a raiz para o desenvolvimento dos
processos que podem dar lugar, mais tarde, à formação
de conceitos. Porém, as funções intelectuais,
necessárias para a formação de conceitos, desenvolvem
se plenamente apenas na adolescência, quando é
possível a transição definitiva ao pensamento
conceitual. Fatores como a exigência do meio social
imposta aos adolescentes, e as suas necessidades, os
motivos de suas atividades os incitam e os obrigam a
dar um passo decisivo no seu pensamento. No final da
adolescência, o jovem tem que superar a dificuldade

129
da transferência do significado do conceito elaborado
para novas situações concretas, pensadas também no
plano abstrato.
Todas as funções intelectuais básicas estão
presentes na formação dos conceitos e, desde os
estágios mais primitivos, o desenvolvimento mental da
criança ocorre sob a influência constante da sua
comunicação com os adultos. Essa comunicação,
segundo Luria (1998b), exige uma forte participação da
linguagem, conduz à formação da fala na criança, a
qual provoca uma reorganização radical da estrutura
total de suas funções psicológicas. Com base na
linguagem, formam-se os complexos processos de
regulação das próprias ações do ser humano — condição
necessária para a verdadeira formação de conceitos.
Os conceitos se estabelecem durante uma
operação intelectual quando os indivíduos tomam
consciência deles e lhes dão configuração lógica. Eles
não resultam de simples associações, pois, em sua
formação, intervêm todas as funções intelectuais em
uma combinação original, “[...] cujo fator central é o
uso funcional da palavra como meio de orientação
deliberada da atenção, da abstração, da seleção de
atributos e simbolização com a ajuda do signo”
(VYGOTSKI, 1993, p. 176). O processo de formação de
conceitos pressupõe a aprendizagem do domínio do
curso dos processos psíquicos próprios, mediante a
utilização de palavras e signos. O contexto cultural onde
o indivíduo se desenvolve vai lhe fornecer os
significados das palavras do grupo em que está inserido.
Todo conceito é sempre uma generalização.
O signo e a palavra é que permitem ao indivíduo
dominar e dirigir suas próprias operações psíquicas,
controlando o curso de sua atividade e orientando-a
de forma a resolver a tarefa proposta pelo meio em que
vive. Utilizando a palavra, a criança dirige
deliberadamente sua atenção para determinados
atributos. Servindo-se das palavras, ela sintetiza,
simboliza o conceito abstrato e o utiliza como signo. Ao
adquirir conceitos específicos, vários significados de
palavras entram em relação. Quando uma palavra nova
é aprendida pela criança, no início, ela é uma

130
generalização do tipo elementar, mas depois, à medida
que a criança se desenvolve, essa palavra é substituída
por generalizações de tipo mais complexo, culminando
o processo na formação dos verdadeiros conceitos
(VIGOTSKI, 2000a).
Cada estrutura de generalização determina a
possibilidade de equivalência dos conceitos em seu
círculo e cada conceito aparece representado na
consciência como uma figura sobre o fundo das relações
comuns que lhe correspondem. Cada vez que o indivíduo
organiza novas estruturas ele reorganiza e transforma
a estrutura de todos os conceitos anteriores. Mediante
o domínio de um novo princípio em uns poucos
conceitos, devido às leis estruturais, estes se estendem
e se transferem para a totalidade da esfera dos
conceitos. Nesse sentido, cada conceito que o indivíduo
internaliza, mobiliza a reelaboração de vários
conhecimentos já apropriados. Isso fica muito claro
quando observamos o emprego de uma nova palavra
por crianças ou mesmo por adultos: fazem uma tentativa
de colocá-las em diversos contextos até o momento em
que há uma apropriação desse conceito que passa a
ser utilizado corretamente.
Baquero (1998, p. 59-60) afirma que “[...] o
pensamento da criança se move em sentido vertical,
numa ‘ida e volta’ permanente, mais do que numa
direção horizontal comparando exemplos da mesma
espécie”. As crianças estabelecem relações, fazem
generalização ao utilizar e formar determinados
conceitos. Qualquer operação do pensamento —
definição, comparação e diferenciação de conceitos,
estabelecimento de relações lógicas entre eles, etc. —
realiza-se de acordo, unicamente, com linhas que
unem entre si os conceitos em relações comuns, que
determinam os possíveis caminhos do movimento de
um conceito a outro. Essa é, portanto, uma atividade
muito complexa que exige muita sistematização. Nesse
sentido, num primeiro momento, o indivíduo faz
agrupamentos sincréticos, formação de complexos e,
finalmente os conceitos, indo de uma compreensão
caótica dos significados das palavras até uma
compreensão que lhe permite extrapolar o significado

131
que está posto, vendo além do que está aparente,
fazendo relações e ampliando sua compreensão de
fenômenos que compõem a realidade social em que
vive. As palavras passam a ser utilizadas não mais
baseadas nas impressões imediatas dos indivíduos,
passando para um maior nível de abstração e formando
os verdadeiros conceitos.
Graças ao pensamento em conceito, as pessoas
chegam a ter uma compreensão da realidade, das outras
pessoas e delas mesmas. O conhecimento do verdadeiro
sentido da palavra, a ciência, a arte, as diversas esferas
da vida cultural podem ser corretamente assimiladas
somente por meio dos conceitos. Utilizando os
postulados marxistas, Vygotski (1996, p. 79) afirma que

o pensamento em conceitos é o meio mais


adequado para conhecer a realidade porque
penetra na essência interna dos objetos, já que
a natureza dos mesmos não se revela na
contemplação direta de um ou outro objeto
isolado, senão por meio dos nexos e relações que
se manifestam na dinâmica do objeto, em seu
desenvolvimento vinculado a todo o resto da
realidade. O vínculo interno das coisas se
descobre com ajuda do pensamento por conceitos,
já que elaborar um conceito sobre algum objeto
significa descobrir uma série de nexos e relações
do objeto dado com toda a realidade, significa
incluí-lo no complexo sistema dos fenômenos.

O conceito, segundo a lógica dialética, não


inclui somente o geral, senão também o particular e o
singular. Ele é o resultado de um conhecimento
duradouro e profundo do objeto, construído a partir de
relações sócio-históricas. Não se detém somente no
aparente, mas busca estabelecer relações com os
conceitos anteriormente apropriados. Se utilizarmos a
terminologia de Saviani (2002), podemos dizer que, a
partir da formação dos conceitos, os indivíduos têm
uma “catarse”, elaborando uma nova forma de
compreensão da prática social e dele mesmo.
Vigotski identifica dois tipos de conceitos: os

132
espontâneos ou cotidianos e os científicos ou não
cotidianos. Os conceitos espontâneos — tais como
irmão, número, o passado — são formados pela
comunicação direta da criança com as pessoas que a
rodeiam, apresentam dados puramente empíricos,
adquiridos pela manipulação e experiência direta, por
meio de interações sociais imediatas; já os conceitos
científicos — tais como exploração, causalidade,
história, lei de Archimedes — são apropriados no
processo educativo ou escolar. Segundo Baquero (1998,
p. 76), os conceitos podem ser formas rudimentares de
construção de significados, como é o caso dos
espontâneos, ou formas de categorização e
generalização avançadas, definidos como científicos.
Vygotski (1993, p. 183, grifos do autor), a esse
respeito, comenta que:

O desenvolvimento do conceito científico de


caráter social se produz nas condições do
processo de ensino, que constitui uma forma
singular de cooperação sistemática entre o
pedagogo e a criança. Durante o desenvolvimento
desta cooperação amadurecem as funções
psíquicas superiores da criança com a ajuda e
participação do adulto. No campo que nos
interessa, este encontra sua expressão na
crescente relatividade do pensamento causal e
no fato de que o pensamento científico da criança
avança até alcançar um nível de voluntariedade,
nível que é produto das condições de ensino. A
singular cooperação entre a criança e o adulto é
um aspecto crucial do processo de ensino,
juntamente com os conhecimentos que são
transmitidos à criança segundo um determinado
sistema. Estes fatores explicam o
amadurecimento precoce dos conceitos
científicos e também o fato de que o nível de seu
desenvolvimento intervenha como uma zona de
possibilidades muito próximas aos conceitos
cotidianos, abrindo-lhes o caminho e preparando
seu desenvolvimento.

133
Nunez e Pacheco (1997) enfatizam que, no
campo dos conceitos científicos, ocorrem níveis mais
elevados de tomada de consciência do que nos conceitos
espontâneos. Os científicos se formam na escola por
meio de um processo orientado, organizado e
sistemático. São ensinados com a formalização de
regras lógicas, e a sua assimilação envolve
procedimentos analíticos, iniciados por uma definição
verbal, envolvendo operações mentais de abstração e
generalização. Já os conceitos espontâneos, que se
caracterizam pela ausência de uma percepção
consciente de suas relações, são orientados pelas
semelhanças concretas e por generalizações isoladas.
Pensemos, por exemplo, no conceito de flor. O indivíduo,
no seu cotidiano aprende rapidamente o que é uma
flor, ele vê essa flor no jardim, no vaso e tem esse
conceito espontâneo. Essa palavra permite uma
generalização, de forma que rosa, cravo, margarida são
classificados como flor. Quando ele vai para a escola,
ao estudar Botânica, o conceito de flor se amplia: agora
ele vai aprender, por exemplo, sobre a constituição da
flor: cálice, corola, androceu, gineceu. Suas
informações são ampliadas e ocorre uma modificação
no conceito espontâneo que o indivíduo tinha. Esse
conceito pode ser cada vez mais aprofundado, chegando
a um estudo cada vez mais específico que complexifica
o seu entendimento do conceito flor.
Vigotski cita, nos seus exemplos, o conceito de
irmão, um conceito espontâneo adquirido de forma não
sistematizada e também o conceito de Revolução. Ao
interrogar as crianças da sua época sobre os dois
conceitos, fica patente a diferença de compreensão das
crianças acerca desses conceitos: o conceito de
Revolução — pensando em um período pós
revolucionário de grande importância na ex-União
Soviética — ensinado na escola, torna-se muito mais
fácil de ser exposto pelas crianças do que o conceito de
irmão, que foi aprendido sem intencionalidade, sem
maiores elaborações, ficando restrito, muitas vezes,
ao círculo das relações familiares.
O limite que separa os dois tipos de conceitos é
muito lábil, e ambos os processos estão intimamente

134
interligados. Ao se deparar com um novo conceito, a
criança busca seu significado por meio de uma
aproximação de um conceito já internalizado, já
apropriado por ela. O desenvolvimento do conceito
científico deve apoiar-se em um conceito espontâneo
já apropriado pelo indivíduo e este não pode ser
indiferente à formação daquele conceito. Os conceitos
espontâneos constituem a base dos conceitos
científicos, e estes, uma vez assimilados, permitem a
formação de novos conceitos espontâneos. Exemplo
dessa relação pode ser dado com o ensino de história,
que exige, com antecedência, noções de tempo como
ontem, hoje e amanhã — que podem ser aprendidas
cotidianamente — e que, por sua vez, certamente,
mudará a compreensão desses conceitos espontâneos
mencionados. A noção de tempo para o aluno se
modifica, é ampliada, tornando-se consciente e
fornecendo novos elementos para que ele compreenda
a sequência temporal dos fatos que ocorreram com o
desenvolvimento da humanidade. No entanto, podemos
tornar o conceito de tempo — ontem, hoje e amanhã —
um conceito científico, na medida em que o professor,
geralmente no ensino infantil, sistematiza esses
conceitos para serem trabalhados com os alunos. Um
conceito que era espontâneo, em determinado
momento, passa a ser científico quando sistematizado
em nível curricular, possibilitando generalizações e o
entendimento dos fatos históricos.
Entre os processos de aprendizagem e
desenvolvimento na formação de conceitos devem existir
relações de caráter infinitamente mais complexo e
positivo. O que se espera é que, na escola, a
aprendizagem se constitua em uma fonte de
desenvolvimento dos conceitos científicos, pois ela é o
momento decisivo e determinante de todo destino do
desenvolvimento intelectual da criança. Para Vigotski
(2000a, p. 296), o problema dos conceitos científicos
“[...] é uma questão de ensino e desenvolvimento, uma
vez que os conceitos espontâneos tornam possível o
próprio fato do surgimento desses conceitos a partir da
aprendizagem, que é fonte do seu desenvolvimento”.
É nesse contexto da análise psicológica da

135
ontogênese dos conceitos científicos que Vigotski
apresenta o conceito de zona de desenvolvimento
próximo. A criança orientada, ensinada pelo professor,
acompanhada pelo adulto ou por uma criança mais
experiente sempre pode realizar tarefas mais difíceis
do que quando sozinha. Nesse sentido, Vigotski
considera que existem dois processos de
desenvolvimento: o desenvolvimento atual — que
representa o desenvolvimento já efetivado pela criança
e o desenvolvimento próximo — que é caracterizado
pelas vias que estão em processo de amadurecimento.
O fundamental da escola é justamente a criança
aprender o novo, por isso é a zona de desenvolvimento
próximo que determina o campo das mudanças
acessíveis à criança, é ela que representa o momento
mais importante na relação da aprendizagem com o
desenvolvimento, por esse motivo é imprescindível que
a intervenção do professor se dê em nível prospectivo.
Para Vigotski (2000a), só é boa a aprendizagem
que passa à frente do desenvolvimento e o conduz. No
entanto, só se pode ensinar à criança aquilo que ela
for capaz de aprender. A aprendizagem começa daquilo
que ainda não está totalmente desenvolvido. A
aprendizagem e o desenvolvimento não coincidem
imediatamente, embora sejam dois processos que se
desenvolvem em complexas inter-relações. A
aprendizagem motiva e movimenta uma série de
funções as quais se encontram em fase de
amadurecimento na zona de desenvolvimento próximo.
Vygotski (1993, p. 242) esclarece, nesse sentido, que
“na idade infantil só é bom o ensino que vá à frente do
desenvolvimento e arrasta este último”. O ensino e a
aprendizagem, portanto, precedem o desenvolvimento,
provocando o desenvolvimento de estruturas mentais.

O trabalho pedagógico voltado para a


formação de conceitos científicos

A Psicologia Histórico-Cultural e a Pedagogia


Histórico-Crítica partem do pressuposto de que cabe à
escola possibilitar a apropriação do conhecimento
136
objetivo pelos alunos. Segundo Saviani (2003, p. 07),
“[...] o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a
humanidade que é produzida histórica e coletivamente
pelo conjunto dos homens”. Desse ponto de vista, o
que interessa para a educação é ajudar o aluno a se
apropriar dos elementos que os indivíduos da espécie
humana necessitam assimilar para se tornarem
humanos. Para tanto, a educação tem que partir,
sempre, do saber objetivo produzido historicamente,
transformando-o em conteúdos curriculares.
Duarte (1993) entende que a educação é um
processo mediador entre a vida do indivíduo e a
história. Para esse autor, “[...] não existe uma essência
humana independente da atividade histórica dos seres
humanos, da mesma forma que a humanidade não está
imediatamente dada aos indivíduos singulares”
(DUARTE, 1998, p. 86). Todo o conhecimento que está
sendo produzido na prática social precisa ser
novamente produzido em cada indivíduo singular, e isso
só é possível por meio da apropriação dos
conhecimentos. O processo de apropriação e de
objetivação é que torna os indivíduos cada vez mais
humanizados.
A educação escolar, de acordo com Saviani
(2003), diferencia-se de outras formas de educação
espontâneas, pois a sua finalidade é a ampliação da
humanidade no indivíduo e da sua consciência
histórica. Ela é um processo intencional e sistematizado
de transmissão dos conhecimentos, de modo a
possibilitar que o aluno vá além dos conhecimentos
cotidianos, que possa ter esse conhecimento superado
pela incorporação dos conhecimentos científicos. Esse
desenvolvimento cultural contribui, por sua vez, para o
desenvolvimento geral do indivíduo. Tal visão, do nosso
ponto de vista, é coerente com a teoria de Vigotski,
principalmente quando o autor afirma que a
aprendizagem promove o desenvolvimento, arrasta esse
desenvolvimento.
A apropriação dos conhecimentos científicos, de
acordo com Duarte (2000, p. 111), levará o aluno a
“conhecer de forma mais concreta, pela mediação das

137
abstrações, a realidade da qual ele é parte”. Como vimos
no item que trata da formação de conceitos, é a
apropriação dos conceitos científicos que leva o
indivíduo a conhecer sua realidade de forma crítica.
Assim, o adulto mais desenvolvido, no caso o professor,
deve ter como meta transmitir esse conhecimento
científico, de forma sistematizada, para os alunos.
Vigotski (2000a, p. 293) afirma que “Marx definiu com
profundidade a essência de todo conceito científico:
´Se a forma de manifestação e a essência das coisas
coincidissem imediatamente, toda ciência seria
desnecessária‘”. Poderíamos completar, que todo o
conhecimento transmitido/apropriado no processo de
escolarização só faz sentido se levar o aluno a ler nas
entrelinhas, a perceber as contradições históricas que
geraram esse próprio conhecimento e mesmo sua
vinculação com o contexto em que ele está inserido,
de forma a buscar transformação não somente na sua
vida particular, mas na prática social.
Leontiev (1978, p. 80) afirma que quanto maior
é o progresso da humanidade, mais rica é a prática
sócio-histórica acumulada por ela e mais cresce o papel
específico da educação. Portanto, mais complexa se
torna a sua tarefa. Esta é a razão, segundo esse autor,
por que toda etapa nova de desenvolvimento da
humanidade traz em seu bojo uma nova forma de
educação: “esta relação entre o processo histórico e o
progresso da educação é tão estreita que se pode, sem
risco de errar, julgar o nível geral do desenvolvimento
histórico da sociedade pelo nível de desenvolvimento
do sistema educativo e vice-versa”. A educação, de
acordo com a vertente da Psicologia russa, é colocada
em destaque, por partir do pressuposto de que os seres
humanos apropriam-se da cultura para se desenvolver
e também para que ocorra o desenvolvimento da
sociedade como um todo. Sem a transmissão dos
resultados do desenvolvimento sócio-histórico da
humanidade para as gerações seguintes, seria
impossível a continuidade do processo histórico.
O professor, nesse processo, tem uma grande
contribuição no desenvolvimento das FPS. Os conteúdos
trabalhados pelo professor, no processo educativo,

138
criam, em nível individual, novas estruturas mentais
(ou neoformações) evolutivas, decorrentes dos avanços
qualitativos no desenvolvimento da criança. Davidov e
Markova (1987a, 1987b) afirmam que o caráter ativo e
a participação da criança ou do jovem no processo de
assimilação ou apropriação da experiência social
constituem a condição essencial para o surgimento das
neoformações no desenvolvimento intelectual dos
alunos. Nesse caso é ativo o professor, é ativo o aluno
e também o conhecimento.
Conforme Lompscher, Márkova e Davidov (1987),
a peculiaridade da atividade docente em relação a
qualquer outra atividade consiste em que essa atividade
sempre constitui o acesso do aluno a uma nova
realidade, a um novo conhecimento sistematizado,
assim como o leva ao domínio de cada componente da
nova atividade. O novo conhecimento e o controle das
funções psicológicas, precisamente, enriquecem a
criança e transformam sua psique. Por meio do acesso
ao conhecimento científico, transmitido pelo professor,
o aluno pode tomar conhecimento da propriedade
principal de cada novo conceito e ampliar sua
possibilidade de compreender o mundo de forma crítica.
O processo de assimilação ou apropriação da
cultura não significa, para esses estudiosos da
Psicologia Histórico-Cultural, uma adaptação passiva
do indivíduo ao ambiente, não é uma simples cópia da
experiência social, mas sim uma atividade do indivíduo
destinada a dominar o mundo dos objetos da cultura
humana e suas transformações. É nesse processo de
apropriação do mundo externo, por meio do processo
de internalização que o aluno desenvolve as FPS. A
educação, se corretamente organizada, constitui a
forma universal e indispensável ao desenvolvimento
do processo intelectual (DAVIDOV & MARKOVA, 1987a).
A forma ativa com que a criança se apropria do
mundo das pessoas e dos objetos exige que a tarefa
estabelecida pelo educador tenha conteúdo para
proporcionar esse ir e vir do mundo externo ao interno.
O objetivo da escola não é interferir apenas na vida
particular do indivíduo, mas possibilitar que o aluno
provoque mudanças num âmbito maior da sociedade.

139
Para tanto, de acordo com Saviani (1987, p. 10), é
necessário elevar a prática desenvolvida do nível do
senso comum à consciência filosófica, o que significa
“passar de uma concepção fragmentária, incoerente,
desarticulada, implícita, degradada, mecânica, passiva
e simplista a uma concepção unitária, coerente,
articulada, explícita, original, intencional, ativa e
cultivada”. A escola, nesse sentido, pode e deve vir a
ser um instrumento de luta contra a hegemonia das
formas capitalistas de vida social, pois a passagem do
senso comum à consciência filosófica é uma condição
fundamental para situar a educação numa perspectiva
transformadora.
A produção do saber se dá no interior das
relações sociais, faz parte da realidade sócio-histórica.
No entanto, não é suficiente apenas que esse saber
seja elaborado, é fundamental que se torne passível
de ser apropriado por todos os membros da sociedade.
Se a escola não permite o acesso aos instrumentos
mediadores, ao conhecimento científico, ela contribuirá
para que esse saber continue sendo propriedade privada
da classe dominante, reforçando a ordem vigente. Cabe
ao professor, portanto, partir da prática social buscando
alterar, qualitativamente, a prática de seus alunos,
para que possam ser agentes de transformação social.
O conhecimento, os conteúdos clássicos serão a
ferramenta para passar do conhecimento cotidiano ao
conhecimento científico. Nesse sentido, o professor pode
provocar uma “revolução” no conhecimento dos alunos,
buscando socializar o que de melhor a sociedade já
produziu em termos culturais.
A prática pedagógica, diferente de uma
educação espontânea, deve ser a mediadora entre a
formação do indivíduo na vida cotidiana — onde ele se
apropria das objetivações genéricas em-si, utilizando
os conceitos de Heller (1972, 1991) —, e a formação do
indivíduo nas esferas não cotidianas — onde se apropria
das objetivações genéricas para-si (HELLER, 1972,
1991). Nessa mesma linha de pensamento, Duarte
(1996) defende que é necessário estabelecer
conscientemente, na prática pedagógica, a mediação
entre o cotidiano do aluno e as esferas não cotidianas

140
da vida social. O objetivo é fazer com que os alunos
criem relações conscientes com esse cotidiano, de modo
que se produzam neles necessidades não cotidianas,
por meio da apropriação de conhecimentos científicos,
artísticos, ético-filosóficos e políticos.

Considerações finais

Nos estudos realizados pelos continuadores de


Vigotski, como Davidov e Markova (1987a, 1987b),
percebemos uma grande valorização dos conteúdos, com
investimento no pensamento abstrato, teórico e na
defesa da escola enquanto uma instituição que tenha
como função transmitir os conhecimentos científicos.
Uma análise do método dialético de
conhecimento, enquanto ascensão do abstrato ao
concreto em Vigotski e em Marx, é apresentada por
Duarte (2000, p. 103-104). Na visão desse autor, para
Marx, “a apropriação do concreto pelo pensamento se
dá pela mediação das abstrações, pela mediação dos
conhecimentos mais elaborados” (p. 110). O aluno,
portanto, apropria-se desse conhecimento existente,
mas o transforma e cria novos conhecimentos. A relação
dialética entre conhecimento cotidiano e conhecimento
científico se faz presente neste processo, pois o saber
escolar interfere, provoca mudanças no conhecimento
cotidiano, o que por sua vez vai alterar o conhecimento
científico.
Para Davidov (1988, p. 173), “[...] a exposição do
conhecimento científico se realiza pelo procedimento
de ascensão do abstrato ao concreto, em que se utilizam
as abstrações e generalizações substanciais e os
conceitos teóricos”. O movimento do abstrato ao
concreto, como via fundamental e não única de
aprendizagem, supõe a apropriação do particular por
meio do geral e permite o vínculo teoria-prática. Dessa
forma, o professor, no processo ensino-aprendizagem,
faz a mediação entre o conhecimento e o aluno, levando
o a resolver os problemas escolares, utilizando os
conhecimentos da prática, mas relacionando-os com
as teorias expostas sobre o assunto.

141
O processo de apropriação dos conhecimentos
científicos, da teoria que explica a prática e a modifica,
requer, como já vimos anteriormente, toda uma série
de funções, como: a atenção arbitrária, a memória
lógica, a abstração, a comparação e a discriminação.
Vigotski (2000a), ao abordar esse tema na relação com
o processo de escolarização, evidencia que o ensino
direto de conceitos sempre se mostra estéril. O
professor que se utiliza somente do recurso da
exposição oral, do puro verbalismo, obterá, por parte do
aluno, apenas uma assimilação vazia do conteúdo
trabalhado. O docente deve partir do conhecimento
sincrético, desorganizado do aluno, para chegar ao
conhecimento sintético, sistematizado e vinculado à
prática social, explica Saviani (2002).
Além dessa sistematização, os conteúdos das
disciplinas são fundamentais para provocar o
desenvolvimento das FPS. Vigotski chegou à conclusão,
em suas pesquisas, que as disciplinas escolares, no
conjunto, e não isoladamente, influenciam o
desenvolvimento das funções psicológicas. Dessa forma,
o que se verifica é que a aritmética, por exemplo, não
desenvolve, independente e isoladamente, umas
funções, enquanto que a escrita desenvolve outras. A
tomada de consciência das disciplinas e mesmo o
pensamento abstrato da criança se desenvolvem em
todas as aulas. É necessário, portanto, descobrir essa
lógica interna dos processos de desenvolvimento
desencadeada pela educação escolar.
Com base no pressuposto de que a boa
aprendizagem é só aquela que se adianta ao
desenvolvimento, as escolas e os professores devem
ajudar os alunos a expressar, a desenvolver o que, por
si só, não podem fazer. É necessário criar na criança
as premissas de desenvolvimento e as funções psíquicas
que ainda não estão formadas. Isso pode ser realizado
por meio dos conteúdos curriculares. O professor, nesse
sentido, deve estruturar a atividade pedagógica de tal
forma que oriente o conteúdo e os ritmos de
desenvolvimento das FPS. Nunez e Pacheco (1997, p.
79) acrescentam, em relação a esse aspecto, que

142
[...] na medida em que a criança avança em seus
estágios nos diferentes níveis, não só devem
produzir-se mudanças quantitativas no conceito,
senão também, e fundamentalmente, mudanças
qualitativas nos conteúdos e na organização do
processo de aprendizagem que possibilitem
transformações significativas graduais na
personalidade do aluno.

O conceito vigotskiano de zona de


desenvolvimento próximo confere ao professor a função
principal de ensinar, de dirigir o processo educativo,
com a finalidade de potencializar as possibilidades do
aluno, de forma a converter em desenvolvimento atual
aquilo que estava na zona de desenvolvimento próximo.
O próprio processo de aprendizagem, de acordo com
Vygotski (1996), se realiza sempre em forma de
colaboração com crianças mais experientes ou com
adultos e constitui um caso particular de interação.
Não podemos dizer que qualquer interação conduz à
aprendizagem; a interação tem que ser organizada, os
objetivos precisam ser claramente definidos e os alunos
necessitam estar motivados para aprender. Portanto,
cabe ao professor transmitir conhecimentos, ensinar
os alunos de forma a dirigir a formação dos processos
psicológicos superiores dos educandos, atuando como
mediador entre os conceitos científicos e o aluno,
partindo de conhecimentos teóricos que auxiliem a
prática e utilizando a prática para aprofundar os
conhecimentos teóricos. Em outras palavras, o professor
deve encaminhar o ensino de maneira a forçar o aluno
ao desenvolvimento máximo das suas capacidades. Só
dessa forma seu trabalho tem sentido para o
desenvolvimento do psiquismo do aluno.
O professor domina determinados
conhecimentos que o aluno ainda não tem e deve
transmiti-los aos estudantes; ele deve ter autoridade
profissional e produzir, de forma deliberada, a
aprendizagem como resultado do ensino. Nesse sentido,
podemos afirmar, conforme estudos realizados
anteriormente em nossa tese de doutorado (FACCI,
2003 e 2004), que a escola e o trabalho docente são

143
valorizados nas pesquisas de Vigotski. O fundamental,
nesse aspecto, é enfatizar a função da escola e do
professor, tomando-se por base os conhecimentos
científicos, sistematizados em conteúdos curriculares,
no desenvolvimento dos processos psicológicos
superiores.

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Nota

(1) Tuleski (2002), ao apresentar uma análise das relações


que existiam entre a teoria vigotskiana e o contexto social,
político e econômico da União Soviética da década de 20 e
início da década de 30 do século XX, ressalta que a
importância do desenvolvimento e do aperfeiçoamento
técnico está presente, mesmo que implicitamente, em
vários momentos da obra de Vigotski. Para o psicólogo russo,
o processo de implantação do regime socialista dependia
da consciência coletiva do sujeito histórico, pois somente
o desenvolvimento desse coletivo criaria condições
fundamentais para que, no plano individual, a consciência
dos homens deixasse de ser burguesa e se transformasse
em comunista. O social de que trata Vigotski, em sua
teoria, é transformado pela ação coletiva dos homens e,
147
no caso específico daquela sociedade em que o autor vivia,
estava-se abandonando o modo capitalista de produzir a
vida e construindo uma nova forma de sociedade.

148
EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E A PSICOLOGIA
SÓCIO-HISTÓRICA

Adil Poloni
Em virtude do crescimento exponencial da
desigualdade social brasileira, as instituições, as
crenças e as práticas escolares matemáticas
estabelecidas são desafiadas constantemente. Isso
pode aumentar o interesse do professor e de seus
alunos por informações que favoreçam a discussão de
temas correlatos ao assunto que estejam tratando e
levá-los a procurar alternativas para desenvolver um
fazer pedagógico e didático operacionalizador das
vicissitudes que se avolumam e são de enfrentamento
não simples. O professor passa a buscar um motivo
central para instalar seu trabalho, enfrentar os
desafios e preocupar-se com sua participação nas
atividades propostas; ao mesmo tempo, reelabora,
aprofunda e amplia seu trabalho e procura nele integrar
as ações de outros professores.
Não é intenção propor aqui, para a sala de aula
de Matemática da escola pública, somente o aspecto
instrucional, no sentido tradicional de ensinar
habilidades técnicas específicas, ou itens do discurso
matemático. Também não basta substituir, na sala de
aula, um discurso pedagógico ou uma abordagem
psicológica por outros, para eles se tornarem,
automaticamente, uma postura emancipadora. É
necessário verificar o que cada discurso contém de
visão social de mundo e possibilidade social para o
professor e seus alunos, objetivando-se o
estabelecimento de uma escola pública democrática.
É quando, então, terá sentido para esse professor,
dentre outros, o questionamento: qual a visão social
de mundo em vigor naquelas atividades escolares em
que os conhecimentos matemáticos dos alunos são
testados em uma linguagem que eles não entendem,
ou em uma linguagem que somente valorize as
estruturas lógico-matemáticas?

149
Para mediar esses focos de tensão, tem-se à
disposição o uso de ferramentas que possibilitam atingir
o que Vygotsky (1984) chamou de internalização das
noções fundamentais que forem constituídas.
Mesmo que os professores de Matemática levem
seus alunos à emancipação, é complexa a tarefa de
estar sempre comprometido com o estabelecimento da
democratização da escola pública. Tal tarefa preocupa
se em constituir uma escola que cumpra seu papel de
possibilitar a compreensão da realidade vivida por cada
um, numa sociedade marcada por estruturas de poder
discriminatórias. Há que se considerar que a
desigualdade entre os homens não provém das suas
diferenças biológicas naturais. É consequência da
desigualdade econômica e de classes, e da diversidade
das relações formadas no decurso do processo sócio
histórico (LEONTIEV, 1978).
Para enfrentamento dessas considerações,
consegue-se encontrar inspiração, às vezes mais do
que organização, no modelo teórico-cognitivo proposto
por Vigotski e seguidores que trabalharam ou estão
trabalhando dentro da sua tradição: Luria, Leontiev,
Davidov, Zinchenko, e muitos outros. Doravante, serão
chamados, simplesmente, de escola vigotskiana.
Falar de Vigotski não é só se referir à sua obra.
Ler ou falar dele passa por uma crítica às
representações que são feitas a seu respeito. Hoje,
pensar Vigotski é pensar os autores que se reclamam
vigotskianos, a análise de filiações teóricas não
reivindicadas, como a de Bakhtin, a historicidade da
relação entre cognição e linguagem etc. O que pode
complexificar o entendimento é que pensar Vigotski
significa interpretá-lo no universo político que o
sustenta.
O modelo da escola vigotskiana, por tratar de
socializações, favorece que novos conhecimentos
matemáticos sejam constituídos e comunicados em
uma perspectiva sociocentrada. Abre para análise as
discussões, as propostas, os entendimentos, os
enfrentamentos e os encaminhamentos dos problemas
apresentados. Procura não adestrar os indivíduos para
que continuem, basicamente, sempre do mesmo jeito.

150
Alguns professores de Matemática adotam a
abordagem da psicologia sócio-histórica em virtude da
dimensão política e social que ela desenvolve.
Acrescente-se o fato dessa psicologia ser bastante atual
para tratamento das questões em uma materialidade
na qual os alunos não mais sejam identificados ou
reduzidos a etapas de desenvolvimento. São entendidos
como seres humanos sociais, históricos e culturais que
se comunicam e assim internalizam os conhecimentos
constituídos interativamente. São pessoas hoje, em
suas casas, nas ruas, nos trabalhos, nos clubes, nas
igrejas, nas creches, nas pré-escolas ou nas escolas.
Constituem-se, sinergicamente, com base nas relações
estabelecidas em cada uma dessas instâncias, assim
como em todas elas.
Essa psicologia, ao ser tomada como modelo
teórico-cognitivo no âmbito da educação matemática,
desloca a prática centrada no professor e no aluno para
centramento de foco nos aspectos sociais que se
reportam para constituição da cidadania, aqui
entendida como aquela justa para a maioria. Estabelece
relações com o mundo experienciado e não com o
circunscrito ao virtual ou às ideias.
Com a psicologia sócio-histórica não se
intenciona, simplesmente, inculcar nos participantes
dos processos por ela norteados determinadas
atividades que indiquem como devam se comportar ou
dizer em ocasiões particulares. Ela é uma
contraposição à formação de professores e alunos
formatados e cristalizados na escola pública e uma
tentativa de imunizá-los contra a coonestação de visões
sociais de mundo ideológicas, dogmáticas e não
emancipadoras. Juntamente com a aquisição de
conceitos científicos, essa psicologia permite discutir
no coletivo da sala de aula um desenvolvimento segundo
a pedagogia histórico-crítica.
Os membros dos grupos em trabalho cooperativo
procuram ultrapassar as necessidades e motivações
individuais. Por serem consideradas circunstanciais,
essas necessidades e motivações são substituídas pelo
previsível, geral e compartilhado pela comunidade em
que estão inseridas.

151
Por isso, as atividades propostas procuram
trocar a consciência solitária pela consciência solidária
e fazer contraposição aos pressupostos individualistas
que normalmente são apregoados nas escolas públicas.
Constituem as pessoas como indivíduos ativos e
individuais e permeiam as explicações dos mecanismos
de produção de significado nas teorias contemporâneas
centradas no individual. Por causa da maneira como
essas teorias modelam seus discursos, torna-se difícil
para elas incorporarem, em um debate teórico, ideias
fundamentadas no social e no cultural e assumirem
os alunos como seres que se comunicam e legitimam
suas compreensões nas atividades que desenvolvem
em ambientes travando luta de classes.
A análise epistemológica desta apresentação
tem perspectivas teóricas que vão além das comumente
aceitas na sala de aula de Matemática, já que apresenta
um método de grande plasticidade no qual se destaca
o fato de os fenômenos serem tratados como processos
sociais em movimento, que, uma vez desencadeados,
modificam-se incessantemente. É uma dialética que
vem expressa no movimento próprio dos significados
produzidos e dos conceitos estabelecidos. São
aprofundamentos indo da aparência de um conceito
menos profundo até o mais profundo. Não se pode
confundir uma dessas aproximações com o conceito
considerado. São modificações que encontram suas
raízes na sociedade, na história e na cultura, as quais
também são fenômenos da educação matemática.
Vigotski não definiu um fenômeno nos moldes
dos manuais. Sua intenção expressa era, uma vez
apreendida a totalidade do método de Marx, saber de
que modo a ciência pode ser elaborada para abordar o
estudo da mente, seguindo o fio condutor da lógica
dialética do marxismo (COLE & SCRIBNER, 1984).
A aproximação dos processos em movimento
com a lógica dialética e consequente afastamento da
lógica matemática, ou lógica formal, e do seu
estruturalismo, levam os grupos de trabalho a tratarem
a escola como um lugar social. E como toda realidade
social, ela está permeada de dificuldades e
contradições. Entretanto, nela é possível desenvolver

152
procedimentos que não aniquilem os germes de
transformações lá existentes.
As atividades transformadoras que serão
desenvolvidas nos grupos, básicas na elaboração do
conhecimento matemático, podem potencializar uma
produção de significado que só se legitima como
conhecimento se for comprometido com a constituição
democrática, com a desideologização da sociedade em
que se inserem esses grupos e com a justiça social. O
conhecimento matemático, como parte do conhecimento
geral, “identifica-se com a luta para que a escola
pública se transforme num poderoso instrumento de
progresso intelectual da massa onde se afirma o papel
indissociável da competência técnica e do seu sentido
político” (LIBÂNEO, 1990, p. 76, destaque do autor).
A dialética do materialismo histórico,
assimilada pelo modelo da escola vigotskiana, considera
que o homem é um ser de natureza social e o que ele
tem de humano provém de sua vida em sociedade no
seio da cultura criada pela humanidade. Seu
desenvolvimento não é submetido às leis biológicas,
mas às leis sócio-históricas.
Entretanto, é desafiante para a maioria das
pessoas que vêm das tradições do positivismo lógico e
do behaviorismo pensar dialeticamente (STEINER,
1993).
As reflexões de algumas psicologias que enfocam
a adaptação biológica do ser humano ao meio
paradoxalmente secundarizam a submissão à cultura
e à história social do envolvido. Constituem um sujeito
que cresce acostumado a uma materialidade
naturalmente repetitiva.
Já no modelo da escola vigotskiana, o ser
humano desenvolve situações nas quais transforma e
é transformado pela realidade física, social, histórica
e cultural em sua volta e não por uma mera adaptação
ao meio físico e social. Nessa escola, o ser humano
constitui-se, basicamente, em um processo dialético e
dialógico, e não se priorizam as chamadas estruturas
operatórias do pensamento. Segundo Schmittau (1993),
as colocações sociocentradas da escola vigotskiana
contrastam com várias teorias ocidentais da cognição,

153
que presumem o desenvolvimento ocorrendo dentro de
um substrato biológico, de forma natural.
Leontiev explicitou o conceito de meio social:

Quando falamos do meio social em que vive o


homem, introduzimos neste conceito um sentido
diferente do que tem em biologia, o de condições
às quais se adapta o organismo. Para o homem,
o meio social imediato é o grupo social a que
pertence e que constitui o domínio da sua
comunicação direta. Ele tem evidentemente
uma influência sobre ele. (LEONTIEV, 1978, p.
172)

Essa consideração justifica a prioridade que se


dá, nesta apresentação, ao papel exercido pelo meio
social, intercomunicação, e não só de um ponto de vista
sociocultural mais amplo, mas direcionado ao outro,
um objeto social que se constitui como interlocutor nos
grupos de trabalho estabelecidos ao se tratar da sala
de aula.
Para a escola vigotskiana, todas as funções
mentais superiores desenvolvem-se similarmente, se
guindo da ação para o pensar. O desenvolvimento
cognitivo acontece em dois momentos: primeiro no ex
terior, ou plano social e comunicativo e, então, deriva
tivamente, no plano interno do desenvolvimento indi
vidual.
Os professores de Matemática propiciam a
produção do significado a ser internalizado, para
satisfazer demandas sociais, históricas e culturais,
estando eles próprios implicados no processo como
seres sociais ou interlocutores. A escola pública
constitui-se numa instituição criada pela sociedade
letrada para legitimar determinados campos
semânticos, visões de mundo e materialidades de
atividades. Sua finalidade envolve, por definição,
intervenção e comunicação, que conduzem a essas
legitimações.
Desconsidera-se o pressuposto dos esquemas
universais, o que se contrapõe à postura construtivista
centrada exclusivamente na produção cognitiva por

154
meio das interações com o mundo dos objetos,
rejeitando o primado da relação social na constituição
do ser humano.
As constantes mudanças nas condições
históricas tendem a afastar a possibilidade de ser
considerado um esquema universal para representar
adequadamente a relação dinâmica entre aspectos
intrapsicológicos e interpsicológicos do
desenvolvimento. As soluções disponíveis não são
definitivas e legitimam-se apenas para determinadas
situações, épocas e lugares. As mudanças acontecem
nas atividades, nos movimentos, nas práticas sociais,
nas comunicações com outras pessoas e naquele
conjunto de relações concretas, objetivas, que se
desenvolve dentro de uma estrutura social
historicamente determinada.
Um processo histórico, por ser extremamente
rápido, exige sempre adaptações e reconstruções das
ações humanas e está em contraposição à marcha
muito mais lenta das fixações biológicas da experiência.
Ele reflete sobre a história que esteja envolvida com a
cultura, relaciona-se com sua produção, reprodução,
formas de aquisição e socialização, e é um processo
repleto de vinculações com visões sociais de mundo.
Leontiev (1978), ao analisar o processo sócio
histórico, também deu pistas da abrangência que
envolve uma ampliação da resolução dos problemas
matemáticos: “...a concepção histórica pode fazer com
que a ciência não se separe dos grandes problemas da
vida, antes ajude a resolvê-los, a construir uma vida
nova, a de um homem liberto até o desenvolvimento
completo e harmonioso de todas as suas aptidões e
propriedades” (p. 142).
O modelo em questão, por ter comprometimen
to com o meio social, oferece uma prática pedagógica a
ser colocada sob controle de educadores matemáticos
que consolidem sua visão de mundo no sócio-histórico
e se afigurem como socializadores. Tal prática coloca
esses educadores e comunicadores em situações de
terem acentuadas possibilidades de sensibilizarem-se
para considerarem as biografias de seus alunos reais
inextricavelmente vinculadas à trajetória política e

155
econômica, e a visões de mundo de suas famílias, co
munidades e economias políticas locais.
O modelo sócio-histórico propicia uma teoria do
desenvolvimento que estabelece a escola pública em
um espaço central no qual poder e política operam
baseados em uma relação dialética e dialógica entre
indivíduos e grupos. Para explicitar as contradições,
funciona sob condições históricas e limites específicos
e dentro de visões de mundo utópicas e de
materialidades culturais.
Determinadas concepções consideram a
aprendizagem/ensino (1), a comunicação e o
desenvolvimento matemáticos como processos
individuais, mesmo reconhecendo que o professor de
Matemática, ou a estrutura escolar, desempenha um
papel importante nos resultados obtidos pelos alunos.
São abordagens individualistas, já que o aluno,
supostamente, apropria-se de determinado
conhecimento matemático cuja aquisição costuma-se
verificar por meio de uma avaliação.
Na aprendizagem/ensino matemática, o
desenvolvimento e a comunicação estão em
relacionamento íntimo. Neles, por intermédio da
imersão em uma situação de trabalho cooperativo
grupal, acontecem as interações do ser humano com o
mundo.
O trabalho assim articulado, com a mediação
exercida por quem propõe um excerto da linguagem
matemática para análise, ocasiona a internalização
progressiva das mediações e desperta processos
internos de desenvolvimento que não ocorrem se o ser
humano não estiver em contato com determinado
ambiente cultural.
O professor de Matemática e outros
interlocutores afiguram-se como pessoas reais,
fisicamente presentes diante daqueles para quem
legitimam o conhecimento. Têm um papel claro de
interferência deliberada com ação explícita e voluntária
para a produção de significado. Provocam avanços que
não ocorrem espontaneamente, como o que acontece
no desenvolvimento cognitivo, por exemplo.
A ocorrência da intervenção deliberada desse

156
professor é um processo pedagógico privilegiado, já que
procedimentos regulares ocorrendo na escola como a
demonstração, a assistência, o fornecimento de pistas,
a negociação, a comunicação, a instrução etc., levam
ao desenvolvimento pela internalização de modos de
produzir significados. Essa intervenção assume papel
central na trajetória dos alunos na escola pública, já
que as situações da sala de aula de Matemática
repousam sobre interações entre interlocutores. Estes
são justamente agentes propiciadores do
desenvolvimento cognitivo dos participantes.
O interlocutor não se constitui,
necessariamente, em situações com um professor de
Matemática fisicamente presente. A presença do outro
social, dentro da ideia de alguém que instala a
aprendizagem/ensino, pode ser concretizada nos
objetos, nos eventos, nas situações, na própria
linguagem, membro crítico desse processo, nos modos
de organização do real ou do significado. São
impregnações do mundo cultural fornecidas por
indivíduos que se comunicam com um indivíduo: os
interlocutores.
Esse processo educacional matemático pode
acontecer tanto de maneira informal pela imersão em
situações da vida cultural, quanto de forma deliberada,
pela ação explícita e voluntária de um outro social -
outridade - que dirige o processo.
Ainda no tratamento da internalização de
significados elaborados socialmente, o processo de
formação dos conceitos desempenhou para Vigotsky
(2001) um papel de destaque. Para explicar o papel da
instituição escolar no desenvolvimento do indivíduo,
ele fez distinção entre os conceitos constituídos na
experiência pessoal, concreta ou quotidiana dos
aprendizes, que chamou de conceitos quotidianos ou
espontâneos, e os elaborados na sala de aula e
adquiridos por meio do ensino sistemático - os conceitos
científicos.
Vygotsky (1984) demonstrou que um conceito
espontâneo, ou quotidiano, habitualmente surge no
aprendiz após seu contato com objetos ou fenômenos.
Só mais tarde esse aprendiz toma consciência do

157
conceito de objeto e aprende a efetuar operações
abstratas com ele. Inversamente, um conceito científico
nasce após estabelecimento de ligação indireta com o
objeto.
Primeiro o aprendiz está em situação de
confronto com um conceito e aprende a estabelecer
relações lógicas entre conceitos. Somente depois disso
tem consciência do objeto. É como se um conceito
científico abrisse caminho até o objeto, por meio da
experiência do aprendiz e no decorrer dessa
experiência. Um conceito espontâneo desenvolve-se por
um processo indutivo, das propriedades elementares e
inferiores às propriedades superiores; e um conceito
científico passa por um processo dedutivo, das
propriedades complexas e superiores às propriedades
elementares e inferiores. Os conceitos científicos
descem em virtude dos conceitos quotidianos, e estes
últimos se elevam por meio dos conceitos científicos.
Ainda que opostos, tais conceitos se encontram
intimamente ligados (LVOVSKI, 1996).
Para um aluno de Matemática aprender um
conceito matemático, é necessária, além das
informações recebidas do exterior, uma intensa
atividade mental. Entretanto, cabe ao meio ambiente
desafiar, exigir e estimular seu intelecto para que o
processo de desenvolvimento não se atrase ou deixe
de se completar. E, se um aluno vê sentido naquilo
que está aprendendo, seu interesse cresce, o que
favorece o aparecimento da aprendizagem/ensino
matemática.
A implantação de uma atividade pedagógica
emancipadora e voltada para a interlocução entre o
professor e o aluno tem a aprendizagem/ensino como
sustentáculo para desenvolver a produção de
significado. Infelizmente, esse processo raramente
ocorre na sala de aula de Matemática. O professor se
omite, ou, equivalentemente, se demite do envolvimento
com possibilidade de constituir uma sociedade justa
para a maioria, o que hoje passa, inevitavelmente, pelo
aprimoramento de determinada concepção de educação
matemática e comunicação.
Souza expressou essas preocupações,

158
considerando que:

(...) muitos professores propõem-se a dourar a


pílula, isto é, sugerir alterações no livro didático
ou renovar o currículo escolar de Matemática,
com aplicações ou historietas episódicas da
Matemática, mas na essência, a proposta
internalista permanece intacta. (...) estão, os
alunos, cada vez mais naufragando em um mar
de fórmulas prontas e regras preestabelecidas que,
embora não possuam um significado concreto em
relação à realidade deles, devem ser aprendidas
e memorizadas. (...) buscamos afastar da
Educação Matemática o exasperante e inócuo
ensino baseado na transmissão de fórmulas
decoradas e o descompromissado aprendizado de
receituários de problemas vazios de substância
matemática e desconectado do real. (SOUZA,
1994, p. 32, grifos do autor)

Os pesquisadores ocidentais preocupam-se mais


em investigar como um aprendiz chega a ser o que é.
Já os da escola vigotskiana estão mais preocupados
em descobrir não como o aprendiz chegou a ser o que
é, mas como pode chegar a ser o que ainda não é.
Nesse sentido, uma das ideias mais concretas
de Vygotsky (1984) sobre as relações entre o
funcionamento interpsicológico e o funcionamento
intrapsicológico foi por ele explicitada com o conceito
de zona de desenvolvimento proximal.
Nessa categoria se baseiam diversas tentativas
referentes à análise da prática educativa, da
comunicação e do planejamento de estratégias de
aprendizagem/ensino matemática. Tais tentativas
estabelecem que a autonomia no desempenho de uma
atividade é obtida, um tanto paradoxalmente, com a
assistência ou auxílio; elas formam por meio da
comunicação uma relação dinâmica entre
aprendizagem/ensino e desenvolvimento.
A aprendizagem/ensino matemática com base
nas teorias da escola vigotskiana oferece uma
alternativa emancipadora ao enfatizar a necessidade

159
da interação social e orientação dentro da zona de
desenvolvimento proximal, trazendo, assim, luz
relevante para a educação matemática e para a
comunicação.
A definição que apareceu na versão mais
difundida da formulação de Vigotski considera que:

A zona de desenvolvimento proximal é a distância


entre o nível de desenvolvimento real, que se
costuma determinar através da resolução
independente de problemas, e o nível de
desenvolvimento potencial, determinado através
da resolução de problemas sob a orientação de
um adulto ou em colaboração com companheiros
mais capazes. (VYGOTSKY, 1984, p.97)

O movimento na educação matemática -


chamado de contextual - propõe o engajamento dos
alunos na elaboração dos conceitos potenciais. Eles
necessitam de ajuda que vem da comunicação que
estabelecem com parceiros, com o professor orientador
e com ferramentas e informações relevantes.
Um professor de Matemática será
essencialmente diretivo, intervencionista e limitativo
do potencial dos seus alunos se falhar: ao apreciar o
nível do desenvolvimento que eles apresentam, ao
apreciar a direção na qual estão se movendo, e ao
permitir que eles enriqueçam suas próprias percepções
e comunicações de um problema.
Para assenhoreamento do ambiente cultural,
os alunos têm que ser ativos e também interativos.
Quando for estabelecida uma materialidade vinculada
às relações interindividuais que desenham um
determinado contorno cultural dos objetos, aí há
possibilidade de elaboração da significação cultural dos
objetos apreendidos.
No meio social em que é organizada a
aprendizagem/ensino matemática, sempre se
desenvolve uma atividade. Leontiev constituiu as
considerações conhecidas como teoria da atividade, que
era uma resposta à circunstância política imediata pela
qual passava o povo soviético, em tempo de extrema

160
tensão entre privado e coletivo, individual e social.
Por atividade, designamos os processos
psicologicamente caracterizados por aquilo a que
o processo, como um todo, se dirige (seu objeto),
coincidindo sempre com o objetivo que estimula
o sujeito a executar esta atividade, isto é, o
motivo. (LEONTIEV, 1978, p. 296)

Na escola pública, o objetivo para processamento


de uma internalização é apresentado sob a forma de
realizações em processos grupais cooperativos, nos quais
determinadas atividades são colocadas aos alunos, ou
mais comumente para eles e para o professor. A ideia
dessa atividade designa determinada internalização
tanto da legitimação feita dos significados para textos
científicos essenciais, de um ou de outro ramo da
Matemática, quanto da lógica da sua gênese.
Uma atividade realizada com o auxílio de
adultos ou alunos mais experientes, em torno dos
objetos, constitui um universo no qual os alunos
envolvidos, mediante um processo de internalização,
alcançam o domínio individual de seus pensamentos,
potencializando a comunicação (DAVYDOV &
ZINCHENKO, 1995).
O nível seguinte de análise, no sistema de
Leontiev, centrou-se numa unidade mais compatível
com a formulação original de Vigotski e com a psicologia
ocidental, a unidade de ação orientada para um objetivo.
“Um ato ou ação é um processo cujo motivo não coincide
com seu objetivo, isto é, com aquilo para o qual ele se
dirige, mas reside na atividade da qual ele faz parte”
(LEONTIEV, 1978, p. 77).
A imersão dos professores e dos alunos em uma
atividade concreta nada diz a respeito das relações
específicas implicadas entre meios e fins. Diz apenas
que as relações se desenvolvem num determinado
contexto social e histórico.
Leontiev propôs um terceiro nível de análise
na teoria da atividade, relacionado com uma operação:

Por operação, entendemos o modo de execução

161
de uma ação. A operação é o conteúdo
indispensável de toda ação, mas não se identifica
com uma ação. Uma só e mesma ação pode
realizar-se por meio de operações diferentes, e
inversamente, ações diferentes podem ser
realizadas pelas mesmas operações. (LEONTIEV,
1978, p. 303)

Os professores ocidentais referem-se à adição,


subtração, multiplicação ou divisão como operações, que
são mais ou menos rotinizadas, e os da escola
vigotskiana como ações, direcionadas para um objetivo.
Isso não é colocado como uma distinção pedante, mas
é uma referência à importância da manutenção de uma
maneira de agir em um nível no qual os indivíduos
trabalhem atentamente ao invés de usarem uma forma
mecânica, rotinizada como no caso da realização das
operações (MAKSIMOV, 1993).
No contexto situacional da atividade matemática
escolar, um motivo para aprender está na
aprendizagem/ensino em si mesma. Acontece como
atividade realizada em comum pela atribuição desta
ao professor e seus alunos, processa a produção de
significado e estabelece regras que comandam sua
aquisição e comunicação.
Atualmente, com o uso do método de resolução
de problemas, tornaram-se lugar comum as utilizações
em sala de aula de Matemática de pequenos grupos de
trabalho.
A escola vigotskiana, ao buscar um tratamento
de problemas educacionais urgentes e de práticas que
contribuíssem para o êxito do então novo experimento
ditado pelo projeto marxista, desenvolveu uma teoria
que explicitou como o trabalho cooperativo melhora as
habilidades dos professores e dos alunos, para
constituírem objetos com base em um excerto proposto
da linguagem matemática.
Em uma atividade escolar cooperativa,
estabelece-se uma negociação para legitimar
significados e, por meio dela, constituir a
aprendizagem/ensino das normas culturais, as
convenções sociais, e as visões sociais de mundo. É

162
inegável a importância da comunicação com outras
pessoas para o desenvolvimento do ser humano.
Essa maneira de agir fornece significativa
ligação entre processos individuais e sociais ao
estabelecer similitude entre o significado produzido para
o trecho proposto da linguagem matemática e situações
envolvendo a sociedade em que estão inseridos os
protagonistas.
No trabalho cooperativo, os elementos envolvem
se na interação, sintetizam conhecimentos
matemáticos, comunicam descobertas, falam das suas
dificuldades e do meio em que vivem, e legitimam modos
de produzir significados. Essas características apontam
para a possibilidade concreta de desfazer-se na escola
pública o assujeitamento imposto pelo modelo pedagógico
aí vigente.
Não se está objetivando que uma atividade
proposta seja só um meio para aprender ou solucionar
este ou aquele problema específico, mas que seja uma
contribuição para desenvolver e legitimar as operações
e as ações cognitivas desencadeadas com a proposição
do problema matemático ampliado.
Como o trabalhar cooperativamente pode afetar
o entendimento do trecho proposto da linguagem
matemática? Parte da resposta pode ser a de que os
parceiros engajados na ampliação da resolução de
problemas acabam executando uma função
momentânea de suporte intelectual, andaime, um para
o outro.
Esse suporte consiste em serem verificados os
elementos da atividade que estão além do nível de
desenvolvimento real do aluno. Somente completam
essa atividade os alunos para os quais a atividade
proposta possa estar dentro dos seus níveis de
desenvolvimento potencial. Aí sim, um processo
significativo pode ser realizado pelo aluno ao ser
assistido durante essa atividade (LAMBDIN, 1993).
Ao basear a organização da sala de aula no
trabalho em grupo e com ele coordenar as ações, o
professor de Matemática e seus alunos, obtêm
diferentes formas de comunicação com a realização de
uma atividade.

163
Em virtude das interações entre os membros
empenhados na produção de significado para um trecho
apresentado, cada indivíduo envolve-se na comunicação
do seu ponto de vista para justificação daquele trecho
e apresentação desse ponto de vista para discussão e
verificação. As justificações apresentadas são
decodificadas pelos parceiros e transformadas em
outras elaborações, já que o núcleo de um campo
semântico é passível de mudanças. Haverá
transformação do campo semântico com introdução de
um novo campo, levando-se em consideração os novos
pontos de vista expressos pelos parceiros.
Surge uma nova forma de comunicação,
demonstrando modificação na situação de
aprendizagem/ensino. Para um indivíduo envolvido
estar de acordo com uma elaboração, comunica ao grupo
sua justificação, ou situa-se em relação à do parceiro,
ou mesmo argumenta contra uma proposta dele, até o
caso extremo da situação de conflito!
Com o surgimento de uma posição cooperativa,
a ampliação da resolução de problemas matemáticos
liga-se à ampliação da produção de significado. Junto
com a coordenação das ações, a ampliação torna-se,
para os engajados no trabalho, parte integrante do
processo de análise e transforma-se em uma atividade
de aprendizagem/ensino.
No início das atividades, o professor de
Matemática assume a parte mais ativa no trabalho do
grupo e, no final, os participantes organizam-se de modo
a agir por conta própria. Por meio do intercâmbio e
cooperação entre si, regulamentam conscientemente
os procedimentos.
O papel do professor adquire uma dimensão
diferente nesse momento, já que passa a administrar
as possíveis dificuldades que surgem entre os alunos.
Ele apenas responde às questões, e o caráter das
perguntas mostra o nível de organização do grupo e
cria situações nas quais uma avaliação da ação de cada
participante não seja feita individualmente, mas em
virtude do trabalho como um todo.
A categoria da totalidade aqui utilizada não é
expressão de concepções totalitárias e tributárias de

164
abordagens incapazes de dar conta da individualidade
de cada professor e aluno. É uma abordagem
epistemológica não centrada no singular e no aluno.
A tendência geral no desenvolvimento da
produção de significado pelo ser humano leva-o
constantemente do social para o individual. É uma
função com repartição entre pessoas e transformação
na organização de cada elemento. Quando uma ação
interpessoal transforma-se em ação intrapessoal, há
transferência de competência do contexto social para
o individual. Aquilo que um membro do grupo faz em
cooperação hoje poderá fazê-lo sozinho amanhã. E uma
constituição de campos semânticos desse participante
repousa na atividade trabalhada e desenvolve-se por
interação, provocando transformações nas funções
cooperativas de cada um deles. Assim, uma atividade
cooperativa torna-se uma etapa necessária para o
mecanismo interior de uma atividade individual
(RUBTSOV, 1996).
Existe a nítida influência, na postura aqui
assumida, da concepção que considera a constituição
histórica da emancipação humana ocorrendo na
formação de uma sociedade na qual os homens
controlem as relações sociais ao invés de serem por
elas dominados, como se essa dominação fosse uma
força natural superior à vontade humana. A postura
aqui proposta reivindica, além de propiciar a
aprendizagem/ensino matemática, ser um processo de
superação da naturalidade das relações sociais
alienadas.

Referências

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formação social da mente. Tradução: José Cipolla Neto, Luis
Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche.1ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1984.

165
DAVYDOV, V.V. & ZINCHENKO, V. P. A contribuição de Vygotsky
para o desenvolvimento da psicologia. In: DANIELS, H. (org.)
Vygotsky em foco: pressupostos e desdobramentos. Tradutores:
Elisabeth J. Cestari, Mônica Saddy Martins. 1ª ed. Campinas:
Papirus, 1995. p. 151-167.

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Mathematics Problem Ssolving. Rev. Focus, v.15, n.º 2&3, p.48
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Perspectivas social e construtivista. Escolas russa e ocidental.
Tradução Eunice Gruman. 1ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas,
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MAKSIMOV, L. K. The Principle of the Order of Mathematical


Actions and its Mastery by Elementary Sschool Pupils. Rev.
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RUBTSOV, V. A atividade de aprendizado e os problemas


referentes à formação do pensamento teórico dos escolares. In:
BEDNARZ, N.; GARNIER, C. & ULANOVSKAYA, I. (orgs). Após
Vygotsky e Piaget. Perspectivas social e construtivista. Escolas
russa e ocidental. Tradução Eunice Gruman. 1ª ed. Porto Alegre:
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SCHMITTAU, J. Vygotskian Scientific Concepts: Implications


for Mathematics Education. Rev. Focus, v. 15, n.º 2&3, p. 29-33,
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SOUZA, A. C. C. Das categorias do conhecimento matemático à


sala de aula. Scientia, v. 5, p. 23-38, São Leopoldo, 1994.
166
STEINER, V. J. Afterword: Vvygotskian Aapproaches to
Mathematical Education. Rev. Focus, v. 15, n.º 2&3, p. 108-112,
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VIGOTSKY, L. S. A Construção do Pensamento e da Linguagem.


Tradução Paulo Bezerra. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins


Fontes. Tradução: José Cipolla Neto, Luis Silveira Menna
Barreto, Solange Castro Afeche.1ª ed., 1984.

Nota

(1) Os termos aprendizagem e ensino estão sendo usados de


maneira associada, em um único termo denominado
aprendizagem/ensino com primado da aprendizagem sobre
o ensino, visto que se ela não acontecer na sala de aula de
Matemática, o ensino não aconteceu. Ou, expressando-se
de outra maneira: se o aluno não aprendeu, o professor de
Matemática não ensinou.

167
PALAVRAS GRÁVIDAS E NASCIMENTOS DE
SIGNIFICADOS: A LINGUAGEM NA ESCOLA

Dagoberto Buim Arena

Introdução

Nos estudos sobre linguagem, sobre


pensamento, sobre o processo de aprender a ler e de
aprender a escrever a língua relativamente
materializada nos gêneros textuais, o pesquisador
encontra-se inevitavelmente com o russo Mikhail
Bakhtin. Suas reflexões sobre a filosofia da linguagem
e sobre o seu objeto continuam, depois de tantos
estudos no Brasil e no mundo ocidental, a intrigar pela
sua incapacidade de envelhecer e de se esgotar. Olhar
para a linguagem e olhar para os processos de
construção da leitura e da escritura são ações reflexivas
que encontram naquele estudioso o contraponto, a
referência para o diálogo, as trilhas para a interlocução
e o motivo para acionar o movimento das relações
intertextuais. Neste exercício de reflexão que tento
fazer, penso como fio-guia a criança que se torna aluno
ao entrar para a escola, que se movimenta no ambiente
histórico e cultural, criado pelas relações interpessoais,
movimento em que também é criada e recriada a língua
com a qual o aluno inicia o seu relacionamento como
cocriador (da língua escrita). As minhas reflexões
ancoram-se no princípio de que a estabilidade relativa
dos atos de linguagem permite a realização da criação
humana e seria esta a natureza da língua que a faz
viva para o homem criador.
Pretendo fazer um discurso não dogmático, isto
é, um discurso em movimento, portanto à espera do
pensamento conectado, hipertextual, linkado dos que
pensam comigo as palavras aqui organizadas, porque
há, por todo o texto, pontos de entrada e saída que
possibilitam a elaboração de outras enunciações
169
necessárias para a constituição do diálogo, considerado
por Bakhtin a unidade primeira da manifestação
linguística. Pretendo, assim, criar um discurso poroso,
aceitante, reflexivo para dialogar, pelas relações
intertextuais, com dois estudiosos: o tcheco Kosik (1927)
e o russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), e, por essa
mesma razão, esse discurso misturar-se-á com o deles,
embora, em certas situações, poderei apontar com
clareza, pelo citado, o que a eles pertencia, mas já não
mais pertence.
Penso em fazer um exercício sobre a língua que
a sociedade, pelas suas instituições de ensino, poderia
oferecer ao aluno. Apoio-me, para isso, em Kosik, porque
com ele dialogo sobre a concepção de fenômeno, da
sua aparência, da sua essência e do seu movimento,
com o intuito de entender as manifestações linguísticas
além da aparência, além da superficialidade do
fenômeno. Minha intenção é provocar certo
distanciamento do envolvimento usual em que nos
enredamos pelo fenômeno, neste caso, da língua e do
seu movimento social e na escola. Com isso, parto da
hipótese de que esse envolvimento leva o professor a
entender a língua como um objeto estável, imobilizado,
materializado nas marcas gráficas sobre um suporte
qualquer, pronta para ser abocanhada pelo aluno. O
distanciamento pretendido não significa devanear, mas
investigar, pensar, ficar insatisfeito, buscar ângulos
pouco visitados para melhor olhar o objeto com o qual
são elaboradas formas de pensar e com que são
transformados os modos de pensar. Por fim, meu
discurso permitirá que cheguemos juntos, autor e leitor,
ao entendimento de que o objeto oferecido ao aluno
para com ele interagir não é tão simples para ser
submetido a análises reducionistas, para situações de
ensino reducionistas, para apropriações também
reducionistas. Esse objeto é tão amplo e multifacetado
que fazer reduções é desqualificá-lo como um complexo
artefato histórico, cultural e antropológico.
Quero com os dois pensadores marxistas já
referenciados compreender o processo de investigação
e o objeto da filosofia da linguagem.

170
A aparência e a essência fenomênicas

O homem cria, em suas relações, um mundo


cujos fenômenos compõem e constituem a esfera do
cotidiano, do imediato, do evidente e da aparência. É
esse mundo que vemos, no dia a dia, nas relações, nos
fatos que acontecem e que queremos compreender,
embora sem as ferramentas adequadas para isso. Tudo
isso nos envolve e nos obscurece a compreensão porque
é tão imediato, tão evidente, que parece ser a verdade,
o verdadeiramente concreto. Mas, para Kosik, o
concreto não é o que está diante dos olhos e percebido
tão claramente e tão diretamente, porque

o complexo dos fenômenos externos que povoam


o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da
vida humana, que, com sua regularidade,
imediatismo e evidência, penetram na
consciência dos indivíduos agentes, assumindo
um aspecto independente e natural, constitui o
mundo da pseudoconcreticidade. A ele pertence
o mundo dos fenômenos externos que se
desenvolvem à superfície dos processos
realmente essenciais; o mundo do tráfico e da
manipulação, isto é, da práxis fetichizada dos
homens; o mundo das representações comuns,
que são projeções dos fenômenos externos na
consciência dos homens, produto da práxis
fetichizada, formas ideológicas de seu
movimento; o mundo dos objetos fixados, que dão
a impressão de ter condições naturais e não são
imediatamente reconhecíveis como resultados
da atividade social dos homens. (KOSIK, 1976, p.
11)

O concreto está além das aparências. É preciso


pensar sobre os fatos, sobre os objetos, sobre os
movimentos, realizando movimentos de abstração. O
homem, ao abstrair e refletir, rompe as fronteiras do
que está diante dos olhos, para elaborar conhecimentos
que se aproximam da essência do fato, do objeto, do

171
movimento em exame. Não se trata apenas de abrir
uma cortina e encontrar o objeto pronto, porque ele
sempre estará em movimento e a ação de pensar sobre
ele também deve estar em movimento para apreendê
lo no seu dinamismo e nas suas contradições.
Compreender a essência do fato, do objeto é chegar ao
concreto, porque o concreto é o pensado, o refletido, o
analisado além das aparências. Como conectar essas
reflexões com o ensino e com a aprendizagem da língua
escrita? Kosik entende que se vive em um mundo de
pseudoconcreticidade cujo movimento exige
movimentos, inclusive o de penetração na sua
concreticidade. Deste modo, a língua usada, ensinada
na escola, utilizada como ferramenta para a
compreensão do mundo e para a reelaboração dos modos
de pensar apresenta-se como fenômeno em sua
aparência que encerra também a sua essência pouco
compreendida. Ora, é a essa aparência que a língua é
reduzida ao se ensinar ao aluno o privilegiado caminho
da correspondência entre grafemas e fonemas como
percurso destacado para o domínio da linguagem,
porque, deste modo, desqualifica-se, tomando pela
aparência, um objeto em movimento na história, na
cultura e na sociedade multifacetada.
Como seria destruído o mundo da
pseudoconcreticidade? Pelo pensamento dialético, diria
Kosik, porque dissolve o mundo da aparência. Esse
exercício só pode ser realizado no limite do
conhecimento de cada um e de seu esforço reflexivo,
em suas relações múltiplas, com a necessidade de
conhecer o objeto em movimento, não estático, não
imobilizado, portanto, em constante recriação, o que
obriga o homem ao permanente investigar conforme a
natureza provisória do conhecimento elaborado. O modo
de pensar dogmático, fechado, pensa chegar à verdade
e imobilizá-la, mas nada é tão provisório quanto ela
porque os homens estão em movimento como também
em movimento está a língua recriada pelo diálogo
criador e provocador da reelaboração das consciências
humanas. A compreensão exige a análise do fenômeno,
porque “a essência se manifesta no fenômeno. O fato
de manifestar-se, sua evolução, demonstra que a

172
essência não é inerte, nem passiva” (KOSIK, 1976, p.
11).
Este modo de pensar a investigação é a
contribuição de Kosik para a formulação das
ferramentas teóricas apropriadas necessárias para
dialogar com Bakhtin a respeito da linguagem e da
língua escrita, objeto em movimento na aula, entendida
como a criação virtual e provisória entre alunos e
professores durante o tempo em que se encontram.

À procura da essência da linguagem

Duas afirmações a respeito de Bakhtin


orientam o leitor sobre o seu modo de ver o
conhecimento e seu movimento. A primeira refere-se
a sua preocupação com a autoria dos escritos, citada
na Introdução por Marina Yaguello: “um pensamento
verdadeiramente inovador não tem necessidade, para
assegurar sua duração, de ser assinado pelo autor”
(YAGUELLO, apud BAKHTIN, 1988, p. 18). A segunda,
mencionada por Roman Jakobson, ao referir-se a
Dostoievski e com ele concordar, remete à declaração
de Bakhtin acerca do escritor russo: “nada lhe parece
acabado; todo problema permanece aberto, sem fornecer
a mínima alusão a uma solução definitiva” (JAKOBSON
apud BAKHTIN, 1988, p. 10). O que emerge da própria
exposição de Bakhtin é a instabilidade e não a
estabilidade do conhecimento e, de certo modo, da
própria linguagem, da própria palavra, em razão de sua
criação permanente pelas relações humanas e por não
estarem imobilizadas como produto cultural concluído.
Nada, desse modo, permanece estável durante muito
tempo, porque a própria natureza da estabilidade é
provisória. Trata-se de uma característica que vai
solicitar a ação do pensamento de natureza dialética
para compreender o movimento da palavra, em sua
evolução constante, não na aparência gráfica ou sonora,
mas na sua essência ideologizada. A evolução da
palavra, portanto da linguagem, aciona a própria
mudança e evolução nos modos de pensá-la,
organizando uma contribuição recíproca entre
173
pensamento e linguagem.
Ao criar as situações para o ensinar e para o
aprender a língua, o professor utiliza fundamentalmente
a própria língua, e é ela, na interação e troca com o
pensamento em movimento na busca pela essência,
que envolve os sujeitos e promove a criação do
conhecimento compartilhado. É pela linguagem que a
atividade mental pode ser elaborada e compreendida,
como tarefa de

uma psicologia verdadeiramente objetiva. No


entanto seus fundamentos não devem ser nem
fisiológicos nem biológicos, mas sociológicos. De
fato, o marxismo encontra-se frente a uma árdua
tarefa: a procura de uma abordagem objetiva,
porém refinada e flexível, do psiquismo subjetivo
consciente do homem, que, em geral, é analisado
pelos métodos de introspecção. (BAKHTIN, 1988,
p.48)

Desse modo,

se a atividade mental tem um sentido, se ela


pode ser compreendida e explicada, ela deve ser
analisada por intermédio do signo real e tangível.
(BAKHTIN, 1988, p. 51)

Esse signo real e tangível que pode explicar a


atividade mental e, ao mesmo tempo, ser reelaborado
pelo aluno no processo de apropriação só será real se
estiver no nível da concreticidade pensado por Kosik.
Mais do que pela palavra, é pela enunciação, é pela
dialogia, como aponta Bakhtin, que o homem encontrará
o caminho possível para pensar o mundo e construir a
sua própria consciência, porque

a atividade mental não é visível nem pode ser


percebida diretamente, mas em compensação,
é compreensível. O que significa que durante o
processo de auto-observação, a atividade mental
é recolocada no contexto de outros signos
compreensíveis. O signo deve ser esclarecido por

174
outros signos. (BAKHTIN, 1988, p.61)

A compreensão se dá pela relação entre os


signos. Um signo se contrapõe a outro signo e esse é o
fundamento do diálogo, ferramenta necessária para a
compreensão da consciência. Se a evolução da
consciência individual dependerá da evolução da própria
língua, uma pergunta incômoda nasce: quem faz a
língua evoluir senão o próprio homem? É a própria ação
do homem, o seu pensar, o seu sentir que provocam as
mudanças na língua, e, ao mesmo tempo em que ele
próprio evolui, transforma o uso do seu dispositivo
linguístico: altera a língua e altera a sua própria
consciência. Nessa linha de pensamento, o professor,
ao mesmo tempo em que lida com a língua oral ou
escrita, além da sinalidade, da superficialidade, em
sua plenitude social, cultural, antropológica, ideológica,
para ensiná-la em seu movimento real, estabelece o
movimento dialógico necessário para a construção do
conhecimento, para a sua própria apropriação, para sua
própria objetivação e para a construção de sua
consciência e da consciência dos seus alunos, porque
as palavras são os sensores mais sensíveis dos
movimentos da consciência do homem e também porque

são tecidas a partir de uma multidão de fios


ideológicos e servem de trama a todas as relações
sociais em todos os domínios. É, portanto, claro
que a palavra será sempre o indicador mais
sensível de todas as transformações sociais,
mesmo daquelas que apenas despontam, que
ainda não tomaram forma, que ainda não
abriram caminho para sistemas ideológicos
estruturados e bem formados. (BAKHTIN, 1988,
p.41)

E, ainda,

se nós perdermos de vista a significação da


palavra, perdemos a própria palavra que fica,
assim, reduzida à sua realidade física,
acompanhada do processo fisiológico de sua

175
produção. O que faz de uma palavra uma palavra
é a sua significação. (BAKHTIN, 1988, p. 49)

A palavra em movimento reflete as mudanças


sociais, as mudanças do pensamento dos homens e ao
mesmo tempo se modifica por sua natureza instável,
como se fosse um sensor altamente sensível,
antecipador e anunciador. A língua a ser apropriada
pelo aluno não é, deste modo, a mesma a cada
momento, porque a palavra grávida de ideologia se
transforma, porque o professor e os alunos se
transformam com ela e por ela. As alterações do próprio
sistema de produção material e cultural acionam as
alterações de significação da palavra, que, de seu turno,
restabelece as relações humanas em outra frequência.
A evolução da pronúncia da palavra e a da entonação
do fluxo linguístico são evoluções na aparência do
fenômeno: a evolução da significação é a evolução da
essência, por isso mesmo, pouco percebida, mas essa
evolução não se encontra em movimento no interior da
palavra em relação a ela mesma, mas no interior da
enunciação, como faço agora, quando escrevo. A palavra,
em suma, não é autoritária, nem dogmática, porque
essas características a destruiriam, porque

a multiplicidade das significações é o índice que


faz de uma palavra uma palavra [...]Sua
significação é inseparável da situação concreta
em que se realiza. Sua significação é diferente
a cada vez, de acordo com a situação. Dessa
maneira, o tema absorve, dissolve a significação,
não lhe deixando a possibilidade desestabilizar
se e consolidar-se. (BAKHTIN, 1988, p. 130)

A padronização e a uniformidade do significado


da palavra são dilaceradas pelo caráter não dogmático
de sua essência. Se houvesse a padronização, seria
certo supor que haveria um significado maior ou
primeiro, estável, ao redor do qual orbitariam outros,
em menor dimensão, ou com prestígio valorado pelo
prestígio da classe social por onde circularia o
significado provisoriamente estabilizado. Mas esse

176
raciocínio não se sustenta, porque a palavra, sensor
social, é polissêmica, e, por essa razão, incapaz de
determinar significado independente do uso na
enunciação. Esse caráter polissêmico, todavia, revela
o embate em que são travadas as lutas pela imobilização
de significados em todas as áreas do conhecimento
humano, tanto na academia, nos movimentos sociais e
políticos, nas querelas familiares e na negociação entre
professores e alunos durante a construção da aula. As
desconfianças e as preocupações com a precisão de
significado indicam as facetas dessa luta diária e
permanente com a palavra, mas indicam também a
permanente gravidez e o permanente nascimento de
significados.

A língua na escola

O olhar orientado por Kosik encontrará, na


escola, o ensino e a aprendizagem aparentes da língua
escrita. Imobilizada, descrita, apresentada com
existência exterior aos sujeitos e às suas relações,
terá, aparentemente, os contornos constitutivos de uma
língua, mas não resistirá à análise em movimentos
dialéticos, mediados pela própria linguagem, que a
despirá de sua sombra, para apresentá-la como fraude.
Aprender a escrever ou aprender a ler, sem considerar
a língua no seu uso social, sem considerar a sua
polissemia criada na relação entre seus criadores, é
apropriar-se de um outro objeto cujos contornos
exteriores podem esboçar a existência da língua, mas
uma análise kosikiana apontará para a ilusão dessa
existência. A escola encara, nestes tempos, a difícil
tarefa de organizar a aula de modo que professores e
alunos criem, em suas relações, o objeto real que os
transforma.
Ler deixará, de acordo com este ponto de vista,
de basear-se no desempenho da oralização para ser o
ato de criação da leitura, que, como a escrita e a própria
linguagem, não está imobilizada para ser ensinada,
aprendida, ou para dela o aluno ser aproximado,
estimulado, ou em relação a ela desenvolver condutas

177
de hábito. A leitura, porque lida com os embates entre
as palavras, criadas pelas relações múltiplas entre os
homens, também é criada nessa relação. A leitura,
portanto, não existe. É criada quando os homens se
encontram na mediação pelo texto escrito. Provisória e
fortuita, como é da própria natureza da linguagem,
porque, como afirma Bakhtin:

A cada palavra da enunciação que estamos em


processo de compreender, fazemos corresponder
uma série de palavras nossas, formando uma
réplica. Quanto mais numerosas e substanciais
forem, mais profunda e real é a nossa
compreensão. (BAKHTIN, 1988, p. 132)

Conclusão

Na introdução destas reflexões anunciei a


construção de meu discurso pela relação intertextual
com os discursos de Bakhtin e de Kosik para realizar
movimentos de compreensão da essência, do real,
embora não de modo integral, dada a limitação do
conhecimento de quem pensa e da própria limitação
de conhecimento do homem. Com esse olhar, foi
possível apreciar a humildade acadêmica impregnada
no discurso bakhtiniano, conduta recomendada ao
pesquisador que quer construir também o seu discurso
com botões de conexão para outros textos, outros
pensamentos, outras práticas, com as organizações
características do hipertexto. Com esse olhar, ainda
será possível olhar para os manuais escolares, apreciar
ali a língua imobilizada e auscultá-la para verificar seu
estado de morbidez. Ou, por outra porta, entrar pela
aula e apreciar os instrumentos de criação ou de morte,
praticados pelos que a usam. Ler e reler Bakhtin, como
fazem os estudos sobre linguagem no Brasil, é
mergulhar no mundo histórico-cultural para encontrar
as ferramentas teóricas adequadas para a compreensão
do movimento construtor da aula e das relações
filogenéticas e ontogenéticas, banhadas pela afeição

178
em processos humanizantes.
Embora seja imprópria a estratégia de concluir
um trabalho com perguntas, apoio-me nas
características do discurso que intenta provocar sempre
a colaboração do leitor para deixar algumas indagações.
Como se apropriar da língua escrita e a objetivar se a
relação com ela se dá pela sua aparência durante as
aulas? Como elaborar conceitos, lidar com a polissemia
dos significados, se há apenas dois caminhos: o certo
— padrão, e o errado — o desvio? Como se humanizar
com a privação da negociação de significados,
recomendados pelo conceito de dialogia proposto por
Bakhtin? Como aprender a lidar com a língua como
tecnologia de compreensão do mundo e ao mesmo tempo
como mediação para a formação da consciência, sem
ter, fundamentalmente, acesso a ela em sua essência
no encontro entre homens em milhares de aulas que
constituem a vida do homem escolarizado?
Entendo essas perguntas como pontos em que
o leitor possa clicar o seu mouse para mergulhar em
outras perguntas com respostas provisórias, porque as
respostas, como as perguntas, estão presentes nos
fenômenos que aparecem inocentemente diante de
nossos olhos.

Referências

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:


Hucitec, 1988.

KOSIK, K. Dialética do concreto. Rio: Paz e Terra, 1976.

179
A APROPRIAÇÃO DA ESCRITA COMO UM
INSTRUMENTO CULTURAL COMPLEXO

Suely Amaral Mello


Nesta exposição, pretendo trazer a minha
leitura das contribuições de Vigotski acerca do processo
de aquisição da escrita. Parto da ideia de que muito do
que temos feito com a educação das nossas crianças
carece de uma base científica e que, frente aos novos
conhecimentos que temos hoje e que já nos permitem
falar em uma nova ciência — a ciência da educa
ção —, podemos perceber alguns equívocos nas práticas
que muitos de nós realizamos na educação das crianças
e, a partir da percepção e de uma atitude que busque a
superação desses equívocos, podemos buscar maneiras
de melhorar o que estamos fazendo e o modo como
trabalhamos para garantir isso que todos queremos e
que é a maior conquista que a educação pode permitir:
a formação e o desenvolvimento máximo da inteligência
e da personalidade das crianças. A apropriação da
escrita como um instrumento cultural complexo é
elemento essencial na formação da inteligência de cada
sujeito.
Ao apresentar essa leitura de Vigotski pensando
a apropriação da escrita pela criança entre 0 e 10 anos,
vou defender a ideia de que, até agora, temos
contaminado, por assim dizer, a educação infantil com
as tarefas típicas do ensino fundamental e que, de
agora em diante, frente aos novos conhecimentos sobre
o processo de desenvolvimento das crianças, trata-se
de fazer o inverso: deixar contaminar o ensino
fundamental com atividades que julgamos típicas da
educação infantil — ainda que, muitas vezes, elas não
estejam mais contempladas na educação das nossas
crianças pequenas. Falo das atividades de expressão
como o desenho, a pintura, a brincadeira de faz de
conta, a modelagem, a construção, a dança, a poesia e
a própria fala. Essas atividades são, em geral, vistas
como improdutivas — seja no ensino fundamental, seja
181
na educação infantil —, mas, na verdade, são essenciais
para a formação da identidade, da inteligência e da
personalidade da criança, além de serem fundamentais
para a apropriação efetiva da escrita, uma vez que,
como afirma Vigotski, a mão escreve o desejo de
expressão da criança e esse desejo de expressão precisa
ser exercitado e cultivado para chegar a ser escrito.
Vou explorar as ideias de Vigotski contidas num
texto que ele chamou “O desenvolvimento da linguagem
escrita” (VYGOTSKI, 1995) onde, em síntese, critica
as formas como na década de 20 na antiga União
Soviética e como ainda hoje entre nós apresentamos a
escrita para as crianças. Para o Autor, ao enfatizar a
escrita e o reconhecimento das letras, acabamos por
ensinar às crianças o traçado das letras, mas não
ensinamos a linguagem escrita. E dizia, ainda, que
essa forma de apresentação da escrita exige “enorme
atenção e esforços por parte do professor e do aluno, e
devido a tal esforço o processo se transforma em algo
independente, em algo que se basta a si mesmo,
enquanto a linguagem viva passa a um plano posterior”
(p. 183). Ou seja, ao começarmos pelo aspecto técnico
e ao dedicarmos tanto tempo a ele, nós nos esquecemos
da função social para a qual a escrita foi criada:
esquecemo-nos de que a escrita foi criada para
responder à necessidade de registro, de expressão e
comunicação com o outro distante no tempo e no espaço.
Por isso, de um modo geral, “nosso ensino ainda não
se baseia no desenvolvimento natural das necessidades
da criança, nem em sua própria iniciativa: chega-lhe
de fora, das mãos do professor e lembra a aquisição de
um hábito técnico” (p. 183).
Ao mesmo tempo, apontava a complexidade da
aquisição da escrita explicando que a escrita é uma
representação de 2a. ordem: “forma-se por um sistema
de signos que identificam convencionalmente os sons
e palavras da linguagem oral que são, por sua vez,
signos de objetos e relações reais” (p. 184). Dessa
forma, a escrita representa a fala que, por sua vez,
representa a realidade. Assim, a fala, como
representação da realidade, se interpõe entre a
realidade e a escrita. No entanto, para que haja

182
efetivamente a apropriação da escrita, o nexo
intermediário representado pela fala deve desaparecer
gradualmente e a escrita deve transformar-se em um
sistema de signos que simbolizam diretamente os
objetos e as situações designadas. Ou seja, um leitor,
ao ler, busca a realidade e não os sons por trás da
palavra escrita. Da mesma forma, um produtor de textos
ao escrever busca registrar essencialmente
sentimentos, informações, experiências vividas e não
os sons de palavras que representam essas
experiências. Por isso, alertava, o ensino da escrita
não pode ser tratado como uma questão técnica; a
escrita precisa ser apresentada à criança como um
instrumento cultural complexo, um objeto da cultura
que tem uma função social. Para pensar diretrizes para
o ensino da escrita, Vigotski lembrava, em primeiro
lugar, que escrita não começa quando a criança pega
no lápis pela primeira vez, mas começa no primeiro
gesto, quando, ainda bebê, ela tenta se expressar e se
comunicar. Lembrava, com isso, que a história da
escrita é a história do desejo de expressão da criança.
Por isso, todas as atividades de expressão — que em
geral ocupam lugar de segunda categoria em nossas
escolas, como a expressão oral, o desenho, o faz de
conta, a modelagem, a pintura — precisam ser
estimuladas e cultivadas se quisermos que as nossas
crianças se apropriem da escrita como leitoras e
produtoras de texto. A escrita registra nosso desejo e
necessidade de comunicação e expressão; a vivência
de experiências significativas cria necessidades de
expressar-se e comunicar-se.
Lendo Vigotski, entendo que o maior equívoco
que cometemos no processo de ensino da escrita é a
utilização de um método artificial criado especialmente
para ensinar a criança a escrever e que enfatiza o
domínio da técnica e não considera nem cria a
necessidade da escrita na criança. Para Vigotski, da
mesma forma que a linguagem oral é apropriada pela
criança sem grandes esforços, a partir da necessidade
de se comunicar com os outros — necessidade que é
criada nela ao viver numa sociedade que fala —, a
escrita precisa se tornar uma necessidade da criança

183
que vive numa sociedade que lê e escreve. Para isso,
dizia ele, a escrita precisa ser apresentada não como
um ato motor, mas como uma atividade cultural
complexa, considerando o uso social para o qual foi
criada. Quando a criança convive com situações reais
de leitura e escrita, na escola ou em casa, ela cria
para si a necessidade da escrita e, quando no início do
processo de aquisição da escrita está a necessidade
da criança de escrever, a escrita fará sentido para ela.
Como diria Vigotski, nesse caso, a escrita não lhe
chegará de fora como uma imposição do outro. Quando
cultivamos nas crianças o desejo de expressão, quando
criamos nelas a necessidade da escrita e quando
utilizamos a escrita considerando sempre sua função
social, estaremos respondendo ao apelo de Vigotski para
que os educadores ensinem às crianças a linguagem
escrita e não as letras.
Na verdade, o equívoco que me parece essencial
corrigir em relação às nossas práticas tradicionais é o
de pensar que as crianças — seja na educação infantil,
seja no ensino fundamental — aprendem quando ouvem
informações da professora ou quando executam
atividades escolares pensadas pela professora para
preencher o tempo da criança na escola. Para aqueles
que partilham desse modo de pensar, o bom aluno é
aquele que ouve e executa as tarefas que a professora
propõe e que permite que a professora “passe” para a
turma a maior quantidade de conteúdo escolar.
Retomando a teoria histórico-cultural, a criança
que aprende é ativa no processo de aprender. O que
isso significa? Que ela aprende quando é sujeito do
processo de conhecimento e não um elemento passivo
que recebe pronto o conteúdo do ensino. No processo
de relacionar-se com o mundo e de apropriar-se dos
objetos que o compõem (a linguagem, os objetos
materiais e não materiais, os instrumentos, as
técnicas, os hábitos e os costumes, os valores, enfim o
conjunto da cultura humana) a criança atribui sentido
a tudo o que vê, experimenta, conhece. Só a criança
que está em atividade é capaz de atribuir um sentido
ao que realiza. E o que significa estar em atividade?
Significa a criança saber o que está fazendo, para que

184
faz e estar motivada pelo resultado daquilo que realiza.
Quanto maior for a participação da criança na escola
dando a conhecer suas necessidades de conhecimento
— que poderão ser aproveitadas ou transformadas pela
escola conforme seu grau de humanização ou alienação
—, trazendo elementos que ajudam a dar corpo à
atividade, participando na definição da forma de
realização das tarefas, na organização do plano do dia,
na organização do espaço... enfim, quanto maior a
presença intelectual da criança na escola, maior a
possibilidade de que a tarefa proposta se configure como
uma atividade significativa para a criança. Por isso,
não se trata de garantir que a criança receba uma
quantidade de informação sem que ela tenha tempo
para apropriar-se dela, atribuir-lhe um sentido e
expressar o sentido que atribui à apropriação. A
informação será apropriada apenas se a criança puder
interpretá-la e expressá-la sob a forma de uma
linguagem que torne objetiva esta sua compreensão —
que pode ser a fala, um desenho, uma maquete, uma
escultura, um jogo de faz de conta, uma dança ou
mesmo um texto escrito numa situação em que, se as
crianças não escrevem, a professora é a escriba da
turma. É um processo de diálogo que se estabelece
entre a criança e a cultura, processo esse que, na
escola, é mediado pela professora e pelas outras
crianças. Isso implica, essencialmente, dar voz à
criança e permitir sua participação na vida da escola,
num projeto que é feito com elas e não para elas ou por
elas.
Em nosso desejo de garantir que as crianças
aprendam o mais cedo possível a ler e a escrever — e
esse é outro equívoco das nossas práticas recentes:
pensar que quanto mais cedo a criança se alfabetizar,
mais sucesso ela terá na escola e na vida —,
preenchemos o tempo que a criança passa na escola
infantil com “atividades” de escrita, que são, de um
modo geral, tarefas de treino de escrita de letras e
sílabas e palavras. Esse treino de escrita não é uma
atividade de expressão, pois, em geral, começamos
pelas letras — com as quais as crianças não podem
ainda expressar uma ideia, uma informação, uma

185
intenção de comunicação. De um modo geral, insistimos
no reconhecimento das letras — com as quais a criança
não lê nada. Esse trabalho com as letras e sílabas
dificulta a concentração da criança, uma vez que não
faz sentido para ela e, por isso, acaba por tomar o maior
tempo da atividade na escola infantil e todo o tempo da
criança na escola fundamental. Além disso, a criança,
de um modo geral, não tem ainda as bases para essa
aprendizagem complexa que é a escrita — nem na
escola infantil, quando justamente o trabalho educativo
deve formar essas bases, nem na escola fundamental,
já que a antecipação das atividades de alfabetização
do ensino fundamental para a educação infantil, que
tem infelizmente se tornado uma prática comum,
impede que essas bases se formem. Por isso, as
atividades de treino propostas na escola exigem um
esforço enorme da criança e têm poucas chances de
responder às expectativas da professora. Ou seja, a
criança passa um longo período na escola infantil,
realizando enfadonhas tarefas de escrita que não têm
sentido para ela, pois não expressam seu desejo de
expressão, e que tampouco são bem recebidas pela
professora que, em seu desejo equivocado de que a
criança aprenda cedo a ler e a escrever, enfatiza os
erros e pouco valoriza os acertos. Com isso, a criança
vai acumulando uma história de fracasso e de cansaço
em relação à escola.
Essa atividade de treino de escrita de letras ou
sílabas ou palavras e até mesmo de textos que não
expressam o desejo de comunicação e expressão das
crianças vai, aos poucos, tomando o lugar de todas as
demais atividades que deveriam ter lugar na escola
privilegiando a cultura da expressão. Em outras
palavras, com um olhar orientado pela crítica de
Vigotski, perceberemos que por um longo período —
durante o qual a criança se aproxima da escrita —
fechamos para a criança os canais de expressão na
escola: para as formas pelas quais ela poderia se
expressar — a fala, o desenho, a pintura, o faz de
conta... que formam as bases necessárias para a
aquisição da escrita —, não há tempo porque ela está
ocupada com a escrita e, pela escrita, ela não pode se

186
expressar, porque está ainda aprendendo as letras. Sem
exercitar a expressão, o escrever fica cada vez mais
mecânico, pois sem ter o que dizer, a criança não tem
por que escrever.
Em relação a tudo isso, há ainda uma questão
séria para a qual temos dado pouca atenção. Refiro
me ao sentido que levamos a criança a estabelecer
com essa escrita sob a forma de treino e que marca a
relação que ela vai estabelecer com a escrita no futuro:
ao enfatizar o aspecto técnico, começando pelo
reconhecimento das letras e gastando um tempo
enorme numa atividade que não expressa informação,
ideia, ou desejo pessoal de comunicação ou expressão,
acabamos por ensinar a criança que escrever é
desenhar as letras, quando de fato, escrever é registrar
e expressar informações, ideias e sentimentos.
Para ilustrar essa discussão, vale contar o caso
de um menino de seis anos, que frequenta uma escola
infantil onde as crianças realizam todos os dias
atividades de escrita. Ao perceber a pesquisadora que
escreve, aproxima-se e pergunta:
— Moça, o que você está fazendo?
— Estou escrevendo!
— Por quê?
— Para eu ler depois e me lembrar do que eu
vi.
— Quem mandou? (1)
Nesse diálogo, percebe-se a concepção de
escrita que a escola apresentou para a criança:
escrevemos o que alguém manda. Ao que tudo indica,
em nenhum momento a escola apresentou para esse
menino a ideia de que a escrita serve para a
comunicação com os outros, para expressar o que
sentimos, pensamos, aprendemos, para divulgar uma
ideia, para lembrar. Para esse menino, muito
provavelmente, escrever é escrever letras e, também
muito provavelmente, quando se defrontar com um
texto, vai buscar nele as letras e não vai entender
nada, porque no texto estarão ideias e informações e
não letras, sílabas e palavras. Depois de tanto tempo
gasto com o treino de escrita, percebemos que ele não
serviu para avançar o desenvolvimento cultural dessa

187
criança. Nem poderia, pois lhe ensinaram as letras,
mas não a linguagem escrita que é muito mais
complexa e envolve muito mais do que o aspecto técnico.
Para Vygotski (1995), a linguagem escrita tem
uma história que começa com o gesto do bebê que ainda
não fala e aponta o objeto que deseja. Do gesto, essa
história da escrita passa, a partir da linguagem oral,
pelo desenho e pela brincadeira de faz de conta antes
de chegar à escrita. Com isso entendo que a história
da aquisição da linguagem escrita é a história da
formação e do desenvolvimento do desejo de expressão
na criança. É a criança que quer se comunicar que
está por trás do gesto, da fala, do desenho, da
brincadeira. É, igualmente, a criança que quer se
comunicar que precisa estar por trás da mão que
escreve. Por isso, do meu ponto de vista, um equívoco
que estamos cometendo na escola — infantil e
fundamental — é barrar todas as formas de expressão
da criança e concentrar todas as nossas forças na
atividade de treino da escrita, que da forma como temos
realizado nem se constitui como atividade de expressão
para a criança.
Voltemos ao caso do menino citado acima. Se
ele vivesse na escola muitas experiências significativas,
pudesse fazer muitas descobertas, tivesse um tempo
para contar sobre elas para o grupo, e a professora
tivesse por hábito registrar por escrito esses relatos;
se ele tivesse um tempo para contar as histórias vividas
fora da escola, e que a professora também registraria;
se juntos — crianças e professora — fizessem um
registro das histórias preferidas ouvidas na escola; se
juntos se acostumassem a fazer um diário ao fim de
cada dia onde registrassem as atividades realizadas,
os acontecimentos do dia e a percepção do grupo em
relação às experiências vividas, então a escrita faria
sentido para ele e sua aquisição seria uma necessidade
dele, não uma necessidade da professora e dos pais.
Por isso defendo a necessidade da criança —
seja na educação infantil, seja no ensino fundamental
— expressar-se por meio das muitas linguagens
possíveis. Com isso, não quero excluir a linguagem
escrita. Ao contrário, quero incluí-la de modo a se tornar

188
mais uma linguagem de expressão das crianças. O fato
é que essas linguagens não podem estar separadas,
nem entre si e nem separadas de experiências
significativas que tragam conteúdo à expressão das
crianças nas diferentes linguagens. Se as crianças
puderem conviver com a escrita e com a leitura —
realizadas inicialmente pela professora — enquanto
vivem muitas experiências significativas — por exemplo,
conhecendo o espaço por meio de passeios pelos
arredores da escola, pelo bairro, pela cidade;
conhecendo pessoas por meio de visitas, de aproximação
com as pessoas que trabalham na escola, de visita dos
pais, mães e avós da turma à escola, de leitura de
histórias, de poesias, de audição de música, de filmes —;
se puderem conhecer mais sobre os assuntos que
chamam sua atenção por meio de observação e
experimentação na natureza, leitura, vídeo, conversa
com especialistas e se depois puderem comentar essas
experiências e registrá-las por meio de desenho,
pintura, colagem, modelagem, brincadeiras e teatro de
fantoches — a leitura e a escrita constituirão o próximo
passo que a criança vai querer dar em seu processo de
apropriar-se do mundo.
Com isso, quero dizer que, se queremos que
nossas crianças leiam e escrevam bem e se tornem
verdadeiras leitoras e produtoras de texto — o que, de
fato, é uma meta importantíssima do nosso trabalho
como professores —, é necessário que trabalhemos
profundamente o desejo e o exercício da expressão por
meio de diferentes linguagens: a expressão oral por
meio de relatos, poemas e música, o desenho, a pintura,
a colagem, o faz de conta, o teatro de fantoches, a
construção com retalhos de madeira, com caixas de
papelão, a modelagem com papel, massa de modelar,
argila, enfim, que as crianças experimentem os
materiais disponíveis que a escola e a educadora têm
como responsabilidade ampliar e diversificar sempre.
Essa necessidade de expressão — é sempre importante
lembrar — surge a partir do que as crianças veem,
ouvem, vivem, descobrem e aprendem. Quando essas
experiências são registradas por escrito por meio de
textos que as crianças produzem e a professora registra

189
com as palavras das crianças, garantimos a introdução
adequada da criança ao mundo da linguagem escrita,
utilizando a escrita para cumprir a função social para
a qual ela foi criada. Quando fazemos isso, o sentido
que a criança atribui à escrita coincide com sua função
social. Desse ponto de vista, podemos dizer que a
criança verdadeiramente se apropria da escrita como
um instrumento cultural complexo e assim a utilizará.
Entretanto, é importante lembrar que este
trabalho começa não por propor atividades de escrita
para a criança, mas por estimular e exercitar seu
desejo de expressão. Fazemos isso quando a deixamos
contar suas histórias de vida e de imaginação para o
grupo — e também contando histórias para ela,
histórias que ela vai recontar depois. Também
estimulamos e exercitamos seu desejo de expressão
quando estimulamos sua observação, quando
solicitamos rotineiramente sua opinião sobre os
problemas e os temas discutidos na sala, quando
solicitamos sua participação na solução de problemas
surgidos na turma, quando avaliamos o dia vivido na
escola junto com todo o grupo, quando chamamos sua
participação para o estabelecimento das regras e dos
combinados, para a organização da rotina e do plano do
dia. Também estimulamos sua expressão quando
deixamos no horário diário — que pode ser inicialmente
semanal no ensino fundamental para que a professora
perceba sua importância — um tempo para uma
atividade livre que a criança vai escolher entre as
possibilidades existentes na sala ou na escola e depois
vai relatar para a turma o que fez nesse tempo e por
que foi interessante. Em breves palavras: é uma
questão de permitir à criança exercitar seu papel de
protagonista no seu processo de aprender e se tornar
um cidadão. Isso implica dar-lhe voz, tratá-la como
alguém que, se não sabe, é capaz de aprender. Desse
ponto de vista, resolvemos vários problemas ao mesmo
tempo: permitimos, em primeiro lugar, que ela forme
uma imagem positiva de si mesma, condição emocional
fundamental para aprender qualquer coisa. Ao trazer
sua história para a escola, ao formular e expressar
opiniões, ao propor soluções para os problemas vividos

190
no grupo, ao expressar suas ideias, angústias e
sentimentos, a criança deixa de ser um anônimo e
passa a ser alguém que tem uma identidade no grupo.
Em segundo lugar, possibilitamos que se sinta parte
da escola. Essa sensação de pertencimento é um
correlato essencial da disciplina — cuja causa primeira
é o sentimento de exclusão, e não a pobreza ou a
desagregação da família tradicional, como muitos de
nós pensamos. Em terceiro lugar, esse envolvimento
da criança na vida da escola promove sua expressão
oral que é condição essencial para o desenvolvimento
da inteligência. As palavras são a matéria com que
trabalha o pensamento; se faltam as palavras, falta o
pensamento. A palavra estabiliza um sentido, organiza
o mundo para aquele que passa a ver e conhecer a
cultura humana e a natureza; com ela, ampliamos
nossa memória, nosso conhecimento do mundo, o
controle da nossa própria conduta que se exerce pela
linguagem interna.
Pesquisas têm demonstrado que sob as
condições adequadas de vida e de educação, as crianças
desenvolvem intensamente — e desde bem pequenas —
diferentes capacidades práticas, intelectuais e
artísticas. No entanto, isso não nos deve levar a pensar
que podemos abreviar a infância para apressar o
desenvolvimento de sua inteligência e de sua
personalidade. Em cada idade da vida há uma forma
explícita da relação do ser humano com o mundo e é
essa a forma por meio da qual o sujeito mais aprende.
Na idade pré-escolar, essa atividade é o brincar e todas
as formas de expressão que a criança aprende. Na idade
escolar, essa atividade será o estudo. No entanto é
importante considerar que a compreensão e
interpretação que a criança faz do que estuda precisará
ser sempre objetivada, expressa pela criança e não há
qualquer fundamentação científica que justifique que
essa expressão deva ser restrita a uma única
linguagem. Ao contrário, é do exercício de múltiplas
linguagens que a expressão se fortalece.
Ao mesmo tempo, é importante lembrar que a
passagem do brincar ao estudo como atividade por meio
da qual a criança mais aprende não acontece como

191
num passe de mágica, de um momento para o outro.
Ao contrário, é um processo por meio do qual, aos
poucos, a criança vai deixando de se relacionar com o
mundo por meio da brincadeira e começa a fazer do
estudo sua atividade principal. Enquanto esse processo
acontece, respeitamos um tempo livre na escola
fundamental para que a criança possa viver ainda um
tempo de brincar, de fazer de conta, de ser criança.
Por tudo isso, defendo a ideia de que devemos
com urgência “descontaminar” a escola da infância dos
procedimentos típicos do ensino fundamental e
“contaminar” o ensino fundamental com procedimentos
— como as atividades de expressão — que devemos ter
como típicos da escola infantil e que, para o bom
desenvolvimento da inteligência e da personalidade das
crianças, devem estar presentes também nas séries
iniciais do ensino fundamental.

Referências

VYGOTSKI, L. S. La prehistoria del desarrollo del lenguaje


escrito. In: Obras Escogidas, Madrid: Visor, v. 3, 1995.

Nota

(1) Paixão, K.de M. G. A educação infantil e as práticas


escolarizadas de educação. Dissertação de mestrado. Assis,
Unesp, 2004.

192
CONTRIBUIÇÕES DE VIGOTSKI PARA A
EDUCAÇÃO INFANTIL

Suely Amaral Mello

Vigotski é um autor que se tornou conhecido


entre nós antes de ser lido, conforme afirma Newton
Duarte (1996). Esse, no entanto, não é fato localizado
só entre nós. Parece mais generalizada certa
ambiguidade no atual redescobrimento da teoria
histórico-cultural (RIVIÈRE, 1988). Com isso, por um
lado, corre-se o risco de certo fundamentalismo:
idolatra-se o autor reproduzindo-se literalmente
algumas de suas ideias e esquecendo-se de entendê
las na riqueza de possibilidades que apresentam para
a compreensão da criança e dos problemas concretos
enfrentados na escola hoje. Por outro lado, corre-se o
risco de certa superficialidade no tratamento da teoria
que traz junto o perigo da obviedade: de tanto falar e
de tanto ouvir falar de Vigotski, achamos que já o
conhecemos. Como já o conhecemos, não há por que
buscar conhecer mais e mais profundamente. As poucas
ideias conhecidas viram um modismo que nada tem a
ver com a teoria. Deslocadas do conjunto da obra não
podem orientar procedimentos que concretizem a teoria
sob a forma de prática. Sem dar conta da teoria na sua
complexidade, esses fragmentos viram apenas discurso,
mas que o senso comum costuma chamar de teoria e,
a partir daí, costuma-se dizer que a teoria, na prática,
não dá certo. Desse ponto de vista, abandona-se a teoria
antes de conhecê-la, acreditando-se, com essa visão
reducionista, que Vigotski seja mais um teórico sem
proveito para a educação.
Ambas as situações me parecem manifestações
do mesmo conhecimento ainda não suficientemente
profundo, radical e de conjunto (SAVIANI, 1985) que o
universo da obra de Vigotski e de seus colaboradores
demonstra ser necessário.
Em geral, percebo que a contribuição da teoria
histórico-cultural, na forma como tem sido
193
compreendida, está centrada no conceito de zona de
desenvolvimento. Este é, aliás, um conceito que sofre
com a interpretação não adequada. O conceito de zona
de desenvolvimento próximo aponta essencialmente
para o trabalho colaborativo entre educador e criança
e entre criança e criança. E isto por duas razões, pelo
menos: primeiro porque é a partir das experiências
vividas, social e coletivamente, que a criança forma
para si as ações internas e, em segundo lugar, porque
o sujeito que aprende é sempre ativo no processo: não
é ouvinte apenas, nem executor de tarefas
fragmentadas, mas é o sujeito das necessidades de
conhecimento às quais a atividade proposta na escola
deve responder. Como afirma Vygotski (1995), a
atividade pessoal do estudante (da criança) deve ser a
base do processo educativo, e todo o trabalho do
professor deve estar direcionado para guiar e regular
esta atividade. Por isso, a participação da criança no
processo de organização e planejamento da atividade
deve acontecer, seja de forma direta — quando ela
toma a iniciativa ou verbaliza seu desejo de
conhecimento —, seja através da escuta competente
do profissional que a educa e dela cuida.
Nessa perspectiva, muda também nosso trabalho
como educadores: em lugar do planejamento solitário
e engessado, passamos a considerar a criança como
parceira interessada no conhecimento do mundo.
Assim, no tempo antes dedicado a programar a rotina
diária para preencher o tempo da criança na escola,
passamos a estudar e a refletir sobre o desenvolvimento
infantil como condição da escuta das necessidades das
crianças, buscando compreender essas necessidades
à luz da teoria, como necessidades do desenvolvimento
infantil. Para Vygotski (1995), o papel do educador é
especialmente complexo porque ele precisa conhecer
as regularidades do desenvolvimento psíquico da
criança, a dinâmica do ambiente social da criança e,
finalmente, as possibilidades de sua atividade
pedagógica para usá-las de maneira adequada e
conduzir a criança a níveis cada vez mais elevados de
atividade, consciência e personalidade. Dessa forma,
as funções do adulto e da criança são distintas, suas

194
experiências e possibilidades são diferentes: ainda
assim o processo é de colaboração, e — a partir da
teoria da curvatura da vara anunciada por Lênin e
popularizada entre nós por Dermeval Saviani (1985) —
podemos dizer que a figura principal dessa colaboração
é o papel de autêntico sujeito da criança.
Eu vejo a teoria histórico-cultural como uma
revolução nas concepções que orientaram a educação
até hoje. Isso porque, como espero mostrar nesta
reflexão, a teoria acerca do desenvolvimento humano
em Vigotski é essencialmente uma teoria da educação.
Então, justamente para dimensionar a sua
contribuição e para perceber o revolucionário de suas
ideias, permitindo que elas revolucionem a educação,
é que se faz necessário definir o que é o núcleo duro
da teoria. Quando vamos à raiz das ideias de Vigotski
— explicitadas em sua teoria porque o conceito de
homem e de seu desenvolvimento psíquico é o elemento
vertebrador da teoria —, percebemos que sua teoria
não pode ser tomada como complementar à teoria de
Piaget. São duas teorias distintas e como tal devem
ser respeitadas, mas não se complementam, nem se
misturam, nem se justapõem.
Entendo que o elemento central do divisor de
águas que se estabelece entre as duas teorias é o
conceito de homem e de como ele se desenvolve, ou
seja, o que motiva o desenvolvimento psíquico no
homem.
Enquanto Piaget vê o homem com o olhar do
biólogo e enfatiza sua determinação natural, biológica
e, a partir daí, pensa o humano e as características
humanas como parte dessa determinação natural, como
dadas ao sujeito biologicamente, à semelhança do que
acontece ao conjunto dos outros seres vivos, Vigotski
— marxista russo, que foi contemporâneo da revolução
de 1917, colaborador do ministro da educação e cultura
do governo de Lênin — vê o homem e sua humanidade
como produto da história que o próprio homem criou e
da cultura, ou seja, dos objetos, dos instrumentos, da
ciência, das formas de relacionar-se, dos valores, dos
costumes, da lógica, das linguagens, enfim dos sistemas
de signos que o próprio homem criou.

195
Em outras palavras, vê o humano como produção
humana.
E é só olhar para os nossos antepassados, na
idade da pedra, dos metais, na idade média para
concordarmos com a tese de que as qualidades
humanas foram sendo criadas ao longo da história no
mesmo processo que os homens e as mulheres foram
criando os objetos da cultura material e não material.
Vigotski percebeu, além disso, que essas
faculdades (a linguagem, o pensamento abstrato, a
memória voluntária, os sentimentos, as percepções, a
atenção voluntária, as habilidades, as capacidades),
criadas ao longo da história humana, não se fixam
geneticamente, mas sim nos fenômenos externos da
cultura material e não material. E é só pensarmos em
personagens do cinema como Kaspar Hauser, Nell e
nas meninas iranianas personagens de “A Maçã” para
concordarmos também com essa ideia de que, ao
nascer, as novas gerações encontram um mundo pleno
de objetos e instrumentos, de signos que precisam
aprender a utilizar e, ao aprender a utilizá-los, se
apropriam também das faculdades humanas
necessárias ao seu uso e que estão fixadas neles. Assim,
para aprender a utilizar os objetos da cultura a que
têm acesso e para se apropriar das faculdades humanas
neles fixadas é necessário reproduzir o uso para o qual
os objetos foram criados. Ou seja, o processo de
apropriação da cultura assim como das faculdades
humanas precisa ser aprendido coletivamente com
parceiros mais experientes. Não se trata, pois, de uma
relação imediata entre a criança e o objeto a ser
conhecido, mas de uma relação mediada socialmente,
coletiva. Por isso a relação das novas gerações com a
cultura — que configura o processo de humanização —
é sempre um processo de educação.
Como afirmava Marx (1962), as percepções
humanas, o sentido ético, estético, a moral, as emoções,
as capacidades, as aptidões, o sentimento, a vontade,
o pensamento... tudo no ser humano resulta de sua
atividade social com os objetos no quadro de suas
condições materiais de vida e educação.
Assim, enquanto, para Piaget, o processo de

196
desenvolvimento psíquico aconteceria
independentemente do processo de educação, uma vez
que biologicamente determinado, para Vigotski, a teoria
do desenvolvimento humano é essencialmente uma
teoria da educação. Desde as primeiras semanas de
vida do ser humano manifesta-se a lei geral do
desenvolvimento psíquico: as ações externas vividas
socialmente vão sendo interiorizadas pelo sujeito e vão
se tornando ações internas. Desse ponto de vista, pois,
é completamente distinta a relação que ambas as
teorias estabelecem entre aprendizagem e
desenvolvimento. Enquanto para Piaget o
desenvolvimento nos primeiros anos de vida acontece
de forma independente dos processos de aprendizagem
— e, de certa forma, os precede —, na perspectiva
histórico-cultural, a organização adequada da
aprendizagem promove desenvolvimento. Por isso é que
não conhecemos nenhuma orientação da teoria de
Piaget sobre como educar as crianças pequenininhas.
Para Piaget, e segundo a leitura que Vygotski (1993)
fez de Piaget, só em etapas tardias do desenvolvimento
infantil os processos de educação teriam uma
interferência nos processos de desenvolvimento.
Então, para Vigotski, os aspectos biológicos são
essenciais, mas não são suficientes para mover o
desenvolvimento psíquico que se configura como
desenvolvimento cultural. O que move de fato o
desenvolvimento é a atividade do sujeito, atividade esta
que é coletiva, mediada por um parceiro mais experiente
— que, na escola, é o professor — que não substitui a
criança em sua necessária atividade, mas propõe
intencionalmente a atividade, amplia e qualifica a
atividade iniciada pela criança, interfere sempre que
necessário para garantir, com as atividades propostas,
que cada criança se aproprie das máximas capacidades
humanas dadas naquele momento da história. Desse
ponto de vista, tendo a educação um caráter
essencialmente humanizador — pois para Vigotski, a
educação deve, em primeiro lugar, garantir o
desenvolvimento da personalidade humana — o papel
do professor assume caráter igualmente essencial. Se,
de uma perspectiva piagetiana, o trabalho do professor,

197
nos primeiros anos de vida, deve permitir o
desenvolvimento de faculdades que de uma forma ou
de outra se formarão, dentro do quadro das
potencialidades dadas naturalmente, para a teoria
histórico-cultural, o trabalho do professor deve garantir,
com toda intencionalidade, a formação de faculdades
que, na ausência dos processos de educação, não
acontecerão. Esse processo se configura como um
processo de criação de novas necessidades nas
crianças.
Se observarmos uma criança em seus primeiros
dias de vida, perceberemos que a própria necessidade
de estabelecer relações com os outros e com o mundo
é produto da educação. O bebê não sabe ainda olhar o
mundo, não é capaz ainda de estabelecer relações com
o adulto que se aproxima. É o adulto que se aproxima
dele para cuidar — e que fala com ele como se ele já
fosse capaz de responder — que o ensina primeiro a
concentrar a atenção no adulto que fala, depois a gostar
dessa relação de ter alguém lhe dando atenção, e
finalmente a buscar essa relação.
Da mesma forma se dá com a linguagem. Como
defende Vigotski, a formação de todas as funções
psicofisiológicas superiores (no sentido de que têm uma
base fisiológica que evolui com o desenvolvimento
cultural) como a memória voluntária, o pensamento
verbal, o controle da própria conduta — que são
internas — envolve sempre e inicialmente o exercício
da função como ação externa, socialmente partilhada.
Por isso, a história do desenvolvimento de cada criança
é uma história de sua relação inicial com o adulto que
cuida dela e, por tudo o que se disse acima, a educa.
Fundamenta-se, pois, em Vigotski, a preocupação
recente com a educação dos pequenos expressa no
binômio cuidar e educar.
A gênese da comunicação na criança está
condicionada pela atitude do adulto de fazer dela
interlocutora, ou seja, sujeito no processo de
comunicação. É nesse processo que se cria nela a
necessidade de comunicar-se. Em outras palavras,
quando o adulto fala com a criança pequenininha, ela
aprende uma necessidade nova, que ela não tinha e

198
precisa aprender a ter. E que só aprende quando o
adulto fala com ela.
Para a criança pequena, o adulto é a fonte de
todas as novas necessidades. Ao trazer coisas para a
criança ver, pegar, ouvir, o adulto cria nela essas
necessidades — mães da necessidade de conhecer o
mundo que a rodeia. Nesse processo, vai criando uma
memória, aprende a concentrar sua atenção, percebe
os objetos que a rodeiam de forma cada vez mais
completa. Nesse mesmo processo vai formando suas
percepções de um mundo que tem peso, forma, cor,
textura, movimento, sons e, mais tarde, também nome
e função.
Assim, nos primeiros contatos do adulto com a
criança, tem início o desenvolvimento das bases da
inteligência da criança.
E também da personalidade.
A relação inicial que vemos estabelecida entre
a criança e o adulto é uma relação essencialmente
emocional que, sendo positiva, possibilita uma vivência
agradável entendida como um convite à ampliação da
relação com o mundo de pessoas e objetos ao redor.
Sendo negativa, inibe a iniciativa da criança. Em lugar
de abrir-se para o mundo que se descortina frente a
ela, a criança se fecha.
Assim, com a teoria histórico-cultural, muda a
concepção que tínhamos do processo de educação — que
passa a ser de humanização, de educação da
personalidade em lugar de instrução —; muda a
concepção de desenvolvimento — que, de natural, passa
a ser compreendido como produto do acesso social e
intencionalmente organizado à cultura —; muda a
compreensão do papel do educador nesse processo —
de secundário, passa a essencial, ainda que sempre
colaborativo. Como afirma Vigotski (apud DAVIDOV,
1995), o processo educativo é ativo em três sentidos: o
professor é ativo, a criança é ativa, o meio que eles
constroem também é ativo. É importante perceber que
o fato do educador infantil ter papel essencial na
educação da criança não significa que a criança só
aprende quando o adulto dirige e controla a atividade.
O papel essencial do adulto está em criar

199
intencionalmente um espaço rico e provocador de
experiências, em enriquecer a atividade das crianças,
em acompanhar seu processo de desenvolvimento
criando sempre vivências e experiências, mas nunca
engessando ou substituindo a experiência da criança.
O adulto é um criador de mediações entre o mundo da
cultura e a criança, e, como tal, não pode substituí-la
nesse acesso ativo ao mundo de que a criança precisa
se apropriar.
Muda igualmente, e de forma radical, nossa
concepção de criança e de seu papel no processo de
seu desenvolvimento. De ser passivo, passa a ser ativo,
capaz de aprender desde muito pequenininha com as
relações sociais que vivencia, capaz de — sob influência
do adulto — atribuir significado às situações que
experimenta.
De novo nos deparamos com a necessidade do
educador dirigir sempre sua prática pela
intencionalidade baseada no conhecimento das
peculiaridades da criança e de seu desenvolvimento,
pois o lugar que a criança ocupa nas relações sociais
de que participa exerce força motivadora no
desenvolvimento de sua inteligência e de sua
personalidade. Portanto, nossa concepção de criança
condiciona o desenvolvimento das crianças que
educamos, uma vez que condiciona a atividade que lhes
propomos. Na perspectiva histórico-cultural, quanto
mais consciente é nossa relação com a teoria, mais
ampla, rica e diversificada pode ser a experiência que
propomos à criança e maior o rol de qualidades humanas
de que ela pode se apropriar.
E, uma vez que a criança começa a aprender
desde que nasce, ela já tem uma história quando chega
na escola da infância. Tratada como um sujeito histórico
e cultural, a criança emerge da sombra dos
preconceitos do mundo dominado pelos adultos, deixa
pouco a pouco o anonimato em que vive e passa a ser
vista como personalidade em formação e passa a
merecer a liberdade e a possibilidade de conhecer.
Assumir a perspectiva histórico-cultural implica
assumir a pluralidade das identidades infantis, o que
implica que o educador perceba a história individual

200
de cada criança como parte de sua identidade e não
como um fardo do qual a criança precisa se livrar.
Implica, também, não criticar, lamentar ou negar a
linguagem e os valores que as crianças aprendem em
casa e trazem para a escola. Implica não tentar fazer a
criança esquecer-se ou envergonhar-se da memória
da vida fora da escola, mas, aos poucos, percebê-la
criticamente.
Perceber a criança como um ser capaz e
competente abre para ela o direito à igualdade de
oportunidades, permite o acesso ao conhecimento e à
cultura e afirma a escola em sua função precípua de
ensinar o que as pessoas não sabem, de elevar o grau
de sua experiência cultural.
Pesquisas têm demonstrado que, sob as
condições adequadas de vida e de educação, ou seja, a
partir da vivência coletiva da experiência social
intencionalmente organizada e apresentada, as
crianças desenvolvem intensamente diferentes
capacidades práticas, intelectuais e artísticas,
começam a formar as primeiras ideias, os primeiros
hábitos morais e traços de caráter quando são ainda
bem pequenas (ZAPOROZHETS, 1987). Tais pesquisas
questionam a afirmação da idade como etapa específica
do desenvolvimento psíquico.
No entanto, o fato de que as crianças, sob a
influência do trabalho educativo intencional, possam
desenvolver sua inteligência e personalidade desde a
mais tenra idade não nos deve levar a entender que
devamos abreviar a infância para apressar seu
desenvolvimento psíquico. Conforme lembra Leontiev
(1988), em cada idade há uma forma explícita da relação
do sujeito com o mundo, e é esta a forma pela qual ele
mais aprende na idade dada. É preciso que aprendamos
com a teoria ou com a observação das nossas crianças
pequenas aquelas atividades que melhor medeiam sua
relação com o mundo nas diferentes etapas de vida
que percorrem entre 0 e 10 anos.
Creio que, a partir daí, podemos dizer que as
ideias de Vigotski e seus colaboradores constituem uma
teoria de futuro, pois abrem a possibilidade para a
formação de cada ser humano para ser um dirigente

201
como defendia Gramsci (1979), “gente pra brilhar e
não pra morrer de fome” de que falou Maiakowski,
conterrâneo e contemporâneo de Vigotski.

Referências

DAVIDOV, V. V. The Influence of L.S.Vygotsky on Education,


Theory, Research and Practice, in Educational Researcher, v.
24, n.º 3, abril 1995.

DUARTE, N. Educação escolar, Teoria do Cotidiano e a Escola de


Vigotski. Campinas: Autores Associados, 1996.

GRAMSCI, A. Os Intelectuais e a organização da cultura. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

LEONTIEV, A. N. Uma contribuição à teoria do desenvolvimento


da psique infantil. In: VIGOTSKII, L. S.; LEONTIEV, A. N. &
LURIA, A. R. Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem.
Tradução: Maria Penha Villalobos. 4ª ed. São Paulo: Ícone: Edusp,
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MARX, K. Manuscritos Econômicos e Filosóficos. In: FROMM, E.


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SAVIANI, D. Escola e Democracia. São Paulo: Cortez: Autores


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VYGOTSKI, L. S. Obras Escogidas. Madrid: Aprendizaje: Visor. v.


3, 1995.

______. Obras Escogidas. Madrid: Aprendizaje: Visor. v. 2, 1993.

ZAPAROZHETS, A. V. La importância de los períodos iniciales


de la vida en la formación de la personalidad infantil. In:
DAVIDOV, V. & SHUARE, M. (orgs.). La Psicologia Evolutiva y
Pedagógica en la URSS (Antologia). Moscou: Progresso, 1987.
202

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