Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
* O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvi-
mento Científico e Tecnológico - Brasil (Bolsa de produtividade). Agradeço penhoradamente a
Gilberto Bercovici, Virgílio Afonso da Silva e Danilo Carlotti pelos valiosos comentários.
1
Para o significado e construção do 7 de setembro, ver KRAAY, 2010; LYRA, 1995. Como
exemplo de um calendário dos festejos oficiais no século XIX, ver o decreto de 30 de março de
1844.
2
Para um balanço da historiografia, ver PIMENTA, 2008; COSTA, 2005; MALERBA, 2006. Para o
processo na hispano-américa, ver URAN-URIBE, 1997; HENSEL, 2003; MORELLI, 2004. Não foi pos-
sível comparar o processo luso-brasileiro com o hispano-americano, mas destaco uma coletânea
que foi valiosa em sugestões, ANNINO, 2010, em especial o artigo de GARRIGA, 2010.
2 SAMUEL RODRIGUES BARBOSA
3
Sobre a formação da trama dos interesses econômicos no centro-sul, ver LENHARO, 1979;
FRAGOSO, 1998. Sobre o suposto projeto de recolonizar o Brasil pelas cortes portuguesas, ver RO-
CHA, 2009. Sobre a pressão britânica para a extinção do tráfico, ver BETHELL, 1976; ALENCASTRO,
1987. Sobre a presença inglesa, ver GUIMARÃES, 2011. Sobre o interesse do quadro administra-
tivo, um observador coevo assinalava que: «Todos os indivíduos expoliados dos seus empregos
pela extinção dos tribunais, converteram-se em patriotas exaltados; e como se tivessem sido
transformados por um agente sobrenatural, aqueles mesmos que haviam, durante a maior parte
da sua vida, serpejado entre os mais baixos escravos do poder, ergueram-se como ativos e estrê-
nuos defensores da independência» (ARMITAGE, 1977: 48). Para uma discussão do crescimento da
administração da justiça no período joanino, ver WEHLING y WEHLING, 2010.
4
Para uma exposição minuciosa do processo da independência nesta última perspectiva,
escrita à época das comemorações do centenário, ver LIMA, 1972.
5
Ver os trabalhos clássicos PRADO JÚNIOR, 1999; NOVAIS, 1995 e NOVAIS y MOTA, 1996.
6
Trata-se de uma formulação de inspiração weberiana. Para mais detalhes, SCHLUCHTER,
1985: 13-24.
INDETERMINAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO IMPERIAL LUSO-BRASILEIRO... 3
* * *
Depois de rezada uma missa, já na primeira proclamação oficial dos che-
fes militares da revolução da cidade do Porto, em 24 de agosto de 1820, a
constituição ingressa no tempo da decisão —«Vamos com os nossos Irmãos
d’Armas organisar hum Governo Provisional, que chame as Cortes a fazerem
a Constituição, cuja falta he a origem de todos os nossos males» (ARAUJO,
1846: 87)—. Em poucas semanas, a revolução ganha adesão em Portugal,
a regência colocada pelo rei é derrubada e substituída por uma junta e as
cortes são convocadas para constitucionalizar a monarquia 11. No início de ja-
7
Sobre o nexo entre política e festa, ver LOPEZ, 2004. Sobre cultura política em impressos e
formação da esfera pública, ver LUSTOSA, 2000; MOREL, 2005; MOREL, 2005a.
8
Sobre cultura política e história dos conceitos, ver NEVES, 2003; NEVES, 2005; RIBEIRO,
2009; LYNCH, 2005; LYNCH, 2008.
9
Para uma reflexão sobre a temporalidade histórica no período deste artigo, ver ARAÚJO,
2008.
10
Destaco o importante trabalho de SLEMIAN, 2009, que trabalha com uma temporalidade
mais alargada (1822-1834), mostrando a importância estruturante do constitucionalismo mo-
derno para a construção institucional do período pós-independência; SILVA, 1988, com documen-
tação muito útil; e sob o enfoque da história dos conceitos e da cultura política, os trabalhos já
mencionados de NEVES, 2003; NEVES, 2005. Assinados por juristas, contam-se alguns importan-
tes trabalhos de teoria constitucional com forte interlocução com a história: BERCOVICI, 2008;
CATTONI, 2011; CITTADINO, 2007; LIMA, 1999; MORAES, 2011; PAIXÃO, 2002; PAIXÃO y BIGLIAZZI, 2008.
Para uma síntese da história constitucional brasileira, ver SEELAENDER, 2010.
11
Sobre a revolução do Porto e projetos do constitucionalismo, ver o trabalho fundamental
de ALEXANDRE, 1993. Sobre as cortes portuguesas e a participação dos deputados brasileiros, ver
BERBEL, 2010. Sobre a cultura política do primeiro liberalismo português, ver VARGUES, 1997.
4 SAMUEL RODRIGUES BARBOSA
12
Um dos líderes civis da revolução e depois presidente das cortes constituintes, o bacharel
Manuel Fernandez Tomaz, afastava a hipótese de intervenção da Santa Aliança, com uma obser-
vação sobre o sentido indeterminado da constituição: «Eis-aqui a linguagem das tres Potencias
a respeito da Constituição. Ellas mesmas affirmão, que ainda se não sabe, qual é a natureza, que
deve ter huma Constituição do Estado: ellas mesmas dizem, que não se attrevem a decidir essa
grande questão; como é possível pois, que ellas tachassem de anarquica, e facciosa a Constituição
de Hespanha, e a que se vai formar pelo mesmo molde, se se não sabe ainda qual é a natureza de
huma Constituição?» (THOMAZ, 1822: 23).
13
Para breve informação biográfica, ver SOUZA, 2008.
14
Sobre a recepção da constituição de Cádiz, ver WEHLING y WEHLING, 2011; BERBEL, 2008.
INDETERMINAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO IMPERIAL LUSO-BRASILEIRO... 5
15
Ver os estudos sobre semântica dos discursos políticos, HESPANHA, 2004; HESPANHA, 2009;
SEELAENDER, 2007; NEVES y NEVES, 2009.
16
Sobre a participação dos escravos na Bahia, ver REIS y SILVA, 1999; no Pará, MACHADO,
2005.
17
Sobre os direitos adquiridos na acepção do antigo regime, ver HESPANHA, 1995.
6 SAMUEL RODRIGUES BARBOSA
França, onde só se vírão mortes, incendios, e roubos, e por fim huma destrui-
dora guerra; mas a vossa fidelidade he tão conhecida, que não he necessario
despertalha com razões» (ARAUJO, 1846: 110).
A regência do rei em Lisboa qualificava de «horrendo crime de rebellião
contra o poder, e Authoridade legitima do nosso Augusto Soberano El-rei
Nosso Senhor» o ocorrido na cidade do Porto e questionava o penhor da legi-
timidade tradicional proclamada pelos revolucionários:
«Não vos illudais pois, fieis, e valerosos Portuguezes, com semelhantes
apparencias; he evidente a contradicção com que os revoltosos, protestando
obediencia a El-rei Nosso Senhor, se subtrahem á Authoridade do Governo
legitimamente estabelecido por Sua Magestade, propondo-se, como declará-
rão os intrusos, que a si mesmos se constituirão debaixo do titulo de Gover-
no Supremo do Reino, a convocar Cortes, que sempre serão illegaes, quando
não forem chamadas pelo Soberano; e annunciar mudanças, e alterações, que,
quando muito, devião limitar-se a pedir, por isso que só podem emanar legiti-
ma, e permanentemente do Real consentimento» (ARAUJO, 1846: 146).
Essa é também a interpretação de Thomaz Antonio na corte joanina no
Rio de Janeiro, a par das primeiras notícias da revolução em 17 de outubro
de 1820. Thomaz Antonio reitera a única interpretação possível pela gramá-
tica do antigo regime. Cabe ao rei convocar as cortes com natureza consul-
tiva para sugerir emendas, melhorias e aperfeiçoamentos na administração;
o rei somente é quem delibera para a felicidade dos seus fiéis vassalos. Para
Thomaz Antonio, constituição são os usos, costumes e leis fundamentais da
monarquia 18. A política de Thomaz Antonio informa de ponta a ponta a carta
régia aos governadores do reino, assinada pelo rei em 27 de outubro de 1820,
primeira resposta oficial da coroa à revolução 19.
Tais conselhos não são os únicos que recebe sua majestade. Vale a pena
estudar de perto os projetos do outro ministro já aludido, o conde de Palmela.
Isso permite reencontrar alguns temas aludidos acima: a mescla entre sen-
tidos de legitimidade tradicional e de uma indeterminada legitimidade em
construção, os paralelos entre acontecimentos locais e gerais da «federação
da Europa». Mas possibilita principalmente acompanhar o esforço para deci-
frar os desafios e riscos de um presente em convulsão, e de tornar operatório
na crise, as possibilidades de constitucionalização da monarquia, preservan-
do o decoro do trono.
Entre janeiro e fevereiro de 1821, Palmela responde a várias consultas do
rei. Fala em tempos de «crise que pode decidir talvez da existencia mesma da
Monarchia», do risco da «ultima e fatal scena de dissolução da Monarchia».
Situa a crise local no quadro mais geral, «há tendencia geral de todas as Na-
ções da Europa para a fórma de Governo Representativo, e emfim pela cons-
piração universal que existe contra os antigos Governos». Trabalha em favor
das decisões prontas e coerentes para o rei «salvar a sua gloria, o seu Throno,
e a Nação do abysmo de males de que estão ameaçados» 20.
18
Thomaz Antonio Vilanova Portugal, nasceu em Lisboa (ca. 1755), formou-se em direito
por Coimbra e exerceu vários cargos na magistratura. No Rio de Janeiro, entre 1818 e 1820,
cumulou os ministérios de Negócios do Reino, dos Estrangeiros e Guerra e do Erário. Sintetiza-
va na corte joanina a defesa das estruturas políticas da monarquia do antigo regime em oposição
à revolução do Porto e o liberalismo moderado de Palmela. Ver NEVES, 2008.
19
Transcrita em VARNHAGEN, 1940: 37-38.
20
VASCONCELLOS, 1851: passim.
INDETERMINAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO IMPERIAL LUSO-BRASILEIRO... 7
21
Ver a devassa em BIBLIOTECA NACIONAL, 1923: 277-325: «hum ajuntamento tumultuozo e
Sediciozo de homens mal intencionados... se revoltarão contra a Constituição actual do Estado,
bradando que só querião serem regidos pela Constituição d’Hespanha, emquanto não chegava a
que se estava organizando em Portugal» (p. 278).
22
Sobre Polizei, SEELAENDER, 2010a.
10 SAMUEL RODRIGUES BARBOSA
23
Ver, por exemplo, MELLO, 2004.
INDETERMINAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO IMPERIAL LUSO-BRASILEIRO... 11
São Paulo são suas pátrias, o Brasil é seu país, mas a nação à qual pertencem
é a portuguesa» (JANCSÓ y PIMENTA, 2000: 130). A expressão «mosaico», que
tem adquirido foros de categoria historiográfica, designa a complexa forma-
ção das múltiplas identidades políticas e serve ainda para introduzir a con-
tingência no processo de independências das províncias e regiões do império
português na América 24. Para províncias como Pará, Bahia, Pernambuco, o
alinhamento com o Rio de Janeiro, São Paulo e Minas, é um projeto dentre
outros. E para nossos fins, a hipótese é que o constitucionalismo introduz
indeterminação ao desnaturalizar a cogência das estruturas de ordenação
política do antigo regime, possibilitando a deliberação sobre novas configu-
rações do político. Com efeito, André Roberto Machado cita a advertência
do bispo do Pará em outubro de 1823, «Para ele, o constitucionalismo havia
dado “demasiada ânsia e liberdade às paixões”, quebrando assim a “mola real
das sociedades bem constituídas”» (MACHADO, 2005: 316).
Em meados de 1821, a vitória das cortes era patente. Um ano atrás, a
revolução dera o passo arriscado de desafiar as estruturas políticas do an-
tigo regime. As cortes funcionavam com regularidade, as bases já estavam
aprovadas, o rei voltara e estava submetido às cortes, chegavam notícias do
outro lado do Atlântico dando conta da adesão das várias províncias à causa
constitucional, reforço militar foi enviado à Bahia a pedido, e o príncipe
regente fora derrotado pela tropa que o obrigou a jurar as bases. Nas cortes
têm início os debates para dar uma configuração ao governo no ultramar
adequado à regeneração. Estes debates culminarão nos decretos de 29 de
setembro 1821 que, unintended consequences, precipitarão acontecimentos
decisivos.
Um dos decretos dava uma nova regulação ao governo das províncias do
reino do Brasil; mandava criar juntas provisórias de governo, eleitas pelas
paróquias, com autoridade e jurisdição civil, econômica, administrativa e de
polícia. Vale lembrar que a criação de juntas à medida que as províncias
aderiam à revolução não obedeceu uma formação uniforme, agora o decreto
ordenava uma configuração comum. Mais importante, o decreto dividia as
competências: o governo da fazenda, das armas e dos magistrados no exercí-
cio do poder contencioso e judicial ficavam independentes das juntas gover-
nativas e passavam a responder diretamente a Lisboa. O outro decreto orde-
nava o regresso do príncipe real a Portugal, vez que as províncias deveriam
responder a Lisboa e não ao Rio de Janeiro 25.
Em dezembro as ordens são conhecidas no Rio de Janeiro e São Paulo,
provocando reações na imprensa, em panfletos e pelos canais institucionais
utilizados com frequência nos últimos tempos: manifestos e representação
das câmaras e juntas 26.
24
Ver o artigo citado na nota anterior; ver também JANCSÓ, 2005; JANCSÓ, 2002.
25
Ver os decretos em MORAES, 1982: vol. 1, 205-208.
26
É o caso de dois panfletos/jornais de José da Silva Lisboa Despertador Brasiliense; Recla-
mação do Brasil; Representação da junta de governo de São Paulo de 24 de dezembro; os Mani-
festos do governo, senado da câmara e clero de S. Paulo de janeiro de 1822, a Representação do
bispo do cabido da Sé e do clero de São Paulo, 1º de janeiro de 1822; o Manifesto do povo do Rio
de Janeiro sobre a residência de Sua Alteza Real no Brasil, com mais de oito mil assinaturas; a
Memória dirigida a Sua Alteza Real o Príncipe Regente do Brasil pelos pernambucanos residen-
tes no Rio de Janeiro de 9 de janeiro. Ver BERNARDES, 2006: 526.
12 SAMUEL RODRIGUES BARBOSA
27
Uma das figuras centrais do processo de independência, o mais velho dos três irmãos
Andradas, José Bonifácio nasceu em Santos em 1763, filho de rico comerciante e funcionário da
administração. Formado em direito e filosofia por Coimbra, seguiu em viagens pela Europa para
estudo de química e mineralogia. Acumulou funções em Portugal após a invasão francesa contra
qual se alistou. De volta ao Brasil em 1819, foi membro da junta governativa de São Paulo, um
dos articuladores do Fico, ministro do príncipe regente. Foi peça central para a consolidação do
pólo político representado pelo Rio de Janeiro em oposição às Cortes. NEVES, 2002. Ver ainda,
CAVALCANTE, 2002.
INDETERMINAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO IMPERIAL LUSO-BRASILEIRO... 13
28
Para o Brasil, ver SLEMIAN, 2009; para Portugal, HESPANHA, 2009.
29
A exemplo da sedição bahiana de 1789, para isso ver JANCSÓ, 1996: 157 ss. Para um exem-
plo de uma devassa no período joanino e suas implicações para a cultura política, ver SLEMIAN,
2006. Sobre opinião pública, NEVES, 2009a.
30
Para mais detalhes, ver VARGUES, 1993. Sobre o Correio Brasiliense, com discussão perti-
nente a este a artigo, ver JANCSÓ y SLEMIAN, 2002.
INDETERMINAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO IMPERIAL LUSO-BRASILEIRO... 15
31
Para a discussão teórica do pluralismo, ver WOLKMER, 1997.
32
Sobre o conceito de lei, ver HESPANHA, 1993; HOMEM, 2003: 212 ss; LOPES, 2004.
33
Ver para essa discussão no período imediatamente seguinte, SLEMIAN, 2005.
16 SAMUEL RODRIGUES BARBOSA
34
Sobre as bases, ver HESPANHA, 2009: 70 ss.
35
A posse do brigadeiro fundava-se nos decretos de 29 de setembro de 1821.
36
FALCÃO, 1963: vol. 2, 222, passagem da representação da junta de São Paulo de 24 de
dezembro de 1821.
37
FALCÃO, 1963: vol. 2, 237. passagem da representação do governo, câmara, clero e povo
de São Paulo.
INDETERMINAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO IMPERIAL LUSO-BRASILEIRO... 17
até 01.10.1822». As passagens citadas no corpo do texto mostram o uso efetivo das bases como
constituição também no reino do Brasil.
40
Em 10 de junho de 1822, a junta do governo provisório de Minas Gerais representava o
príncipe regente, «a urgente necessidade de ser provida a Magistratura de Ouvidor de Paracatu
um homem Literato, e bem intencionado por se achar a mesma atualmente ocupada pelo Juiz
Ordinário mais velho, não tendo ainda a mais Superficial tintura das Letras, e nem das Leis, nem
havendo Letrados formados no País» (JUNTAS, 1973: vol. 2, 909).
41
Sobre a formação da elite letrada e a importância da sua coesão para a construção do
Estado, ver CARVALHO, 2003: 63 ss. Sobre a cultura jurídica no Império do Brasil, ver FONSECA,
2006; MOTA, 2006.
42
Exemplo de rábula e protagonista nas lutas de independência, foi Antônio Pereira Re-
bouças, nascido em 1798 em Maragogipe no Recôncavo Baiano, filho de um alfaiate português
e de uma liberta. De infância pobre, aprendeu o direito na prática como escriturário e como
escrevente de cartório. Foi um dos líderes do governo provisional da cidade de Cachoeira. De-
putado provincial muitas vezes, abandonou a política partidária após 1848, dedicando-se exclu-
sivamente à advocacia. Faleceu em 1880. Ver ainda, GRINBERG, 2002; GRINBERG, 2002a; BLAKE,
1970: vol. 1, 282-284.
INDETERMINAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO IMPERIAL LUSO-BRASILEIRO... 19
Outro universo de análise foi construído a partir dos redatores dos perió-
dicos (de 1808 a 1822) 43 e autores dos panfletos (de 1821 a 1823) conhecidos.
Do total de 58 indivíduos, 18 eram portadores de diplomas de Coimbra, dos
quais 14 bacharéis em direito. Quanto à ocupação, estavam representados os
professores (17), clero (14), advogados (13), funcionários públicos (13), nego-
ciantes (7), militares (6), proprietários de terra (4) e médico (1) 44.
A constitucionalização das províncias e do império abriu oportunidades
para os juristas nas juntas, conselhos e câmaras, como redatores de peri-
ódicos e panfletos. Mas os usos do direito e a reprodução da comunicação
jurídica não são monopólio dos letrados 45. Algo que fica por merecer maior
aprofundamento, a redundância e reiteração da forma jurídica —que será
importante para a criação de rotinas— conta com a atuação de rábulas, se-
cretários das câmaras e juntas, jornalistas que igualmente dizem o direito,
disputam sobre o legal e o legítimo.
* * *
A leitura da documentação constata a profusão e o uso enfático de pala-
vras como «constituição», «constitucional»: o rei, príncipe, deputados, au-
toridades das câmaras e juntas se apresentam como «constitucionais» ou
«amigos da constituição»; periódicos são publicados com títulos como, O
Constitucional, Réverbero Constitucional, Borboleta dos Campos Constitucio-
naes, Genio Constitucional, Mnemosine Constitucional. Interpretar a semânti-
ca e a pragmática dessas expressões e conceitos coligados é uma tarefa com-
plexa, para a qual este trabalho apresenta algumas sugestões.
O discurso do constitucionalismo luso-brasileiro dos anos 1821 e 1822
opera com indeterminação. Por um lado desafia e transige com estruturas e
práticas políticas do antigo regime, e, de outro, possibilita o experimentalis-
mo institucional 46. Quando se tem como referência a história constitucional
e institucional posterior, é saliente que algumas formas estruturais vão se
estabilizar traduzindo-se em rotinas. Neste período, porém, «constituição»
não designa uma estrutura já conhecida e assentada, mas é possibilidade de
escolhas colocadas à deliberação e à disputa, ora argumentada ora violenta.
Dizer-se «constitucional» significa assumir a agência na fabricação do políti-
co. Agência dos muitos estratos, dos áulicos aos pobres e escravos; em espa-
ços diferentes, de Lisboa às províncias passando pelos arranjos regionais; em
instituições diferentes, como as cortes, juntas, conselhos, câmaras. O nexo
43
Editados no Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Maranhão e Pará, além do Correio Bra-
siliense editado em Londres.
44
Igualmente ao universo anterior, havia acumulação entre as ocupações: Luis Augusto
May foi arrolado como militar e funcionário público; José da Silva Lisboa, como advogado e
professor; Januário da Cunha Barbosa, como professor e membro do clero, etc.
45
Ver reflexão teórica para o mundo português em HESPANHA, 1983.
46
Hespanha, que tanto tem escrito contra as ilusões de ruptura do liberalismo, matiza que
«frequentemente, porém, o texto agora jurado [bases] não consegue ocultar prenúncios de novi-
dades, pelo menos vocabulares, inconsistentes com a ideia de uma simples regeneração: quanto
ao conceito de comunidade política (“nação”), quanto à soberania e à fonte do poder constituin-
te, quanto à natureza do processo constituinte e da constituição, quanto à relação entre esta e
os direitos. Em todos estes pontos —e ainda noutros— damo-nos conta de indícios de sentidos
novos, ou apenas da combinação entre dois horizontes do sentido das palavras e das práticas: o
novo horizonte intelectual e político criado pela era das revoluções dos finais do século XVIII e o
horizonte da tradição» (HESPANHA, 2009: 71, grifo meu).
20 SAMUEL RODRIGUES BARBOSA
CRONOLOGÍA
1820
24 de agosto: revolução do Porto.
17 de outubro: chega à corte, sediada no Rio de Janeiro desde 1808, as
primeiras notícias da revolução.
27 de outubro: carta régia aos governadores do reino acerca da revo-
lução.
11 de novembro: mais notícias sobre o triunfo completo da revolução em
portugual.
1821
1º de janeiro: adesão do Pará à revolução.
24-26 de janeiro: instalação das cortes constituinte em Lisboa.
47
Entre outros trabalhos, ver LUHMANN, 2007: 360 ss, ver ainda THORNHILL, 2010. Sobre o
uso desta teoria social para o estudo do constitucionalismo, ver NEVES, 2009: cap. 1 e 47-55.
INDETERMINAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO IMPERIAL LUSO-BRASILEIRO... 21
1822
9 de janeiro: manifesto do povo do Rio de Janeiro sobre a residência de
S. A. Real no Brasil, dirigido ao Senado da Câmara. D. Pedro atende às repre-
sentações e declara ficar no Brasil, desobedecendo as cortes.
11 de janeiro: oposição da tropa portuguesa às decisões do príncipe; os
deputados de São Paulo tomam posse nas cortes.
13 janeiro: lei das cortes extinguindo os tribunais criados no Brasil por
d. João VI.
16 de janeiro: Novo Ministério. José Bonifácio na pasta do Reino, Justiça
e Estrangeiros.
21 de janeiro: Portaria de José Bonifácio prescreve «que de hoje em dian-
te não deve fazer cumprir as leis que vierem de Portugal, sem que primeiro
sejam submetidas ao beneplácito do Príncipe-regente».
8 de fevereiro: A câmara do Rio de Janeiro representa ao príncipe-regente
sobre a necessidade da criação de um conselho de procuradores-gerais das
províncias.
16 de fevereiro: decreto de d. Pedro convocando o conselho de procura-
dores das províncias.
18 de fevereiro: início da guerra da Bahia entre tropas brasileiras, leais a
d. Pedro, e as tropas do general Madeira, fiéis às cortes.
9 de abril: d. Pedro vai a Vila Rica para conseguir o reconhecimento da
autoridade do governo do Rio de Janeiro.
13 de maio: d. Pedro aceita o título de «Defensor Perpétuo do Brasil»,
oferecido pela câmara do Rio de Janeiro.
23 de maio: o príncipe recebe representação do câmara do Rio de Janeiro
pedindo a convocação de uma assembleia constituinte. Em São Paulo, come-
ça a chamada «bernarda de Francisco Inácio».
1º de junho: decreto de d. Pedro convocando os procuradores das provín-
cias.
2 de junho: inauguração da sociedade secreta Nobre Ordem dos Cavalei-
ros da Santa Cruz, chamada de Apostolado, sob liderança de José Bonifácio.
3 de junho: requerimento dos procuradores para convocação de uma as-
sembléia geral constituinte e legislativa. Assinatura pelo príncipe de decreto
a respeito.
18 de junho: decreto assinado pelo príncipe regulando o julgamento dos
crimes de imprensa.
19 de junho: instruções de José Bonifácio regulando a eleição de deputa-
dos constituintes.
24 de julho: as cortes permitem que o príncipe d. Pedro fique no Brasil,
governando sujeito ao rei e às cortes.
1º de agosto: decreto do príncipe declarando inimiga qualquer força ar-
mada que viesse de Portugal. Manifesto aos povos do Brasil, assinado por d.
Pedro e redigido por Gonçalves Ledo.
INDETERMINAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO IMPERIAL LUSO-BRASILEIRO... 23
1823
3 de junho: proclamação do rei português dissolvendo as cortes.
12 de novembro: d. Pedro I dissolve a constituinte.
13 de dezembro: carta de lei revogando legislação das cortes liberais por-
tuguesas.
1824
25 de março: d. Pedro I outorga a carta constitucional.
BIBLIOGRAFÍA
MOREL, M., 2005: As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e
sociabilidades na cidade imperial (1820-1840), São Paulo: Hucitec.
— 2005a: «Independência no papel: a imprensa periódica», en I. JANCSÓ (ed.): Inde-
pendência: História e Historiografia, São Paulo: Hucitec: 617-636.
MORELLI, F., 2004: «Entre ancien et nouveau régime. L’histoire politique hispano-amé-
ricaine du XIXe siècle», Annales. Histoire, Sciences Sociales, 59 (4): 759-781.
MOTA, C. G. (ed.), 2006: Os juristas na formação do estado-nação brasileiro. Do sécu-
lo XVI a 1850, São Paulo: Quartier Latin.
NEVES, L. M. B. P. D., 2002: «José Bonifácio de Andrada e Silva», en R. VAINFAS (ed.):
Dicionário do Brasil imperial (1822-1889), Rio de Janeiro: Objetiva: 424-426.
— 2003: Corcundas constitucionais: a cultura política da independência (1820-1822),
Rio de Janeiro: Revan.
— 2005: «Os panfletos políticos e a cultura política da Independência do Brasil», en I.
JANCSÓ (eds.): Independência: História e Historiografia, São Paulo: Hucitec: 637-675.
— 2008: «Tomás Vilanova Portugal», en R. VAINFAS y L. B. P. D. NEVES (eds.): Dicioná-
rio do Brasil joanino (1808-1821), Rio de Janeiro: Objetiva: 421-422.
— 2009: «Opinião pública», en J. F. JÚNIOR (ed.): Léxico da história dos conceitos polí-
ticos do Brasil, Belo Horizonte: Editora da UFMG: 181-202.
NEVES, L. M. B. P. D., y Neves, G. P. D., 2009: «Constituição», en J. F. JÚNIOR (eds.):
Léxico da história dos conceitos políticos do Brasil, Belo Horizonte: Editora da
UFMG: 65-90.
NEVES, M., 2009: Transconstitucionalismo, São Paulo: Martins Fontes.
NOVAIS, F., y MOTA, C. G., 1996: A independência política do Brasil, 2.ª ed., São Paulo:
Hucitec.
NOVAIS, F. A., 1995: Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808),
6.ª ed., São Paulo: Hucitec.
PAIXÃO, C., 2002: Modernidade, tempo e direito, Belo Horizonte: Del Rey.
PAIXÃO, C., y BIGLIAZZI, R., 2008: História constitucional inglesa e norte-americana: do
surgimento à estabilização da forma constitucional, Brasília: UnB.
PIMENTA, J. P. G., 2008: «A independência do Brasil e o liberalismo português: um
balanço da produção acadêmica», Revista Digital de Historia Iberoamericana, 1
(1): 70-105.
PRADO JÚNIOR, C., 1999: Formação do Brasil Contemporâneo, 23.ª ed., São Paulo: Bra-
siliense.
REIS, J. J., y SILVA, E., 1999: Negociação e conflito. A resistência negra no Brasil escra-
vista, São Paulo: Companhia das Letras.
RIBEIRO, G. S., 2000: «As noites das garrafadas : uma história entre outras de conflitos
antilusitanos e raciais na Corte do Rio de Janeiro, 1831», Luso-Brazilian Review,
37 (2): 59-74.
— 2002: A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilusitanos no
primeiro reinado, Relume Dumará.
— 2009: «Nação e cidadania nos jornais cariocas da época da Independência: o Cor-
reio do Rio de Janeiro como estudo de caso», en J. M. D. CARVALHO y L. B. P. D.
NEVES (eds.): Repensando o Brasil do Oitocentos. Cidadania, política e liberdade, Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira: 207-238.
ROCHA, A. P., 2009: A recolonização do Brasil pelas Cortes: histórias de uma invenção
historiográfica, São Paulo: Unesp.
SCHLUCHTER, W., 1985: The Rise of Western Rationalism. Max Weber’s Developmental
History, Berkeley: University of California.
— 2003: «The sociology of law as an empirical theory of validity», European Sociolo-
gical Review, 19 (5): 537-549.
SEELAENDER, A. C. L., 2007: «Notas sobre a constituição do direito público na Idade
Moderna- a doutrina das leis fundamentais», Sequências, 53: 197-232.
— 2010: «Verfassung und Verfassungsrecht in Brasilien (1824-1988)», Rechtsgeschichte.
Zeitschrift des Max-Planck-Instituts für europäische Rechtsgeschichte, 16: 97-103.
INDETERMINAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO IMPERIAL LUSO-BRASILEIRO... 27