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Cap - Livro Do Corpo Ao Incorporal
Cap - Livro Do Corpo Ao Incorporal
* O autor é psicólogo, psicoterapeuta corporal formado por Romel Alves Costa, mestre e doutorando em
psicologia pela UFRJ. É também autor de artigos e co-autor do livro “Reich contemporâneo: perspectivas
clínicas e sociais”. Além disso, coordena grupos de formação de psicoterapeutas corporais sob o enfoque
clínico/social e é membro da APCRJ.
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última contribui para a formação de indivíduos adaptados ao autoritarismo. Além disso, faz
uma crítica contundente à igreja, à escola e à família na medida em que as considera
aliadas ao Estado fascista.
É a partir dos corpos atravessados pelo campo social que Deleuze e Guattari
descortinam seu olhar. Se por um lado a ordem social estabelecida se faz presente na
“domesticação” dos corpos, estes autores evocam o espaço do diferente, do caos e da
desordem como forma de combate à rotulação do capitalismo. Se a organização social
vigente classifica, territorializa e codifica, Deleuze e Guattari rumam na direção da
desterritorialização e da descodificação, pois a ordem social nunca consegue dominar tudo,
sempre algo lhe escapa.
De acordo com Reich, indivíduos auto-regulados, sem couraças rígidas, buscariam
trabalhar com o que fosse vitalmente necessário à sociedade e, ao fazê-lo, constituiriam
uma sociedade de trabalhadores, que ele denominou democracia do trabalho. Viver sem
medo da liberdade e em regime de autogestão social seriam os seus princípios – não
modelo, mas princípios!
Deleuze e Guattari são inventores. Inventam linhas de fuga por onde os fluxos
desejantes possam escapar. São matilhas, coletivos de sujeitos formando máquinas de
guerra – mecanismos de combate que o Estado não consegue dominar. São nômades,
indivíduos que caminham no estreito limiar entre as ciências, as artes, a literatura, a
filosofia. São bandos-devir, cuja forma é fugidia e cuja força está enraizada no desejo
continuum. É a horda de fluxos desejantes. É a conjunção das diversidades.
1
Reich, W. Análise do Caráter, 1933/1998. *
3
* Nas obras citadas, a primeira data refere-se ao escrito ou à publicação originais, a segunda à edição
referida.
2
Reich, W. A Função do Orgasmo, 1942/1984.
3
Reich, W. Psicologia de Massas do Fascismo, 1934/1988, pp. XVII e XVIII.
4
4
Termo referente à energia orgônica ou orgone – energia cósmica primordial. Ver em Reich, W. La Biopatia
del Cáncer, 1948/1985; Reich, W. Ether, God and Devil and Cosmic Superimposition, 1951/1979.
5
Deleuze, G. e Guattari, F. O Anti-Édipo, 1972/1976.
6
Microfísica do Poder, 1979/1990.
7
Deleuze e a Filosofia, 1990/1990, p. 81.
8
Saber que tem como objeto de estudo o corpo sem órgãos, o incorporal, os fluxos desejantes.
5
9
Segundo Platão a nos mover estava a busca da forma perfeita, no plano das idéias: o amor perfeito, o
trabalho ideal, etc.; no plano da realidade: as imperfeições e faltas correspondentes às figuras do plano das
idéias.
10
Deleuze, G. Nietzsche, 1965/1994.
11
Deleuze, G. Foucault, 1986/1991.
12
Ver esta noção em Deleuze, G. Lógica do Sentido, 1969/1994.
13
Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, 1980/1995.
14
Vigiar e Punir, 1975/1996.
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e pouco questionadores como retratam algumas de suas obras com fortes raízes
sociológicas15.
A família, a igreja e a escola constituem alvos do olhar crítico de Reich na medida
que agenciam a impotência16 e a dificuldade de entrega genital plena. A forte moral sexual
conservadora dessas instituições reforça o casamento compulsório e ascetismo durante a
juventude. Aquelas organizações são as guardiães da propriedade privada que é a base de
sustentação do capitalismo.
A seguir Reich traça um mapa que compreende a relação da sociedade autoritária –
agora não mais se restringindo somente ao aspecto capitalista – com a estrutura emocional
do “homem médio” que a adota e reforça os seus princípios fascistas. Reich decreta: “Foi a
estrutura humana autoritária, que teme a liberdade, que possibilitou o êxito de sua
propaganda”17. A submissão dos indivíduos os leva a procurar um agente externo salvador
(pai, nação, líder) e a não retomarem a sua própria potência.
Deleuze e Guattari18 operam uma relação entre estrutura/neurose, como também,
fluxos desejantes/esquizofrenia e o capitalismo, a atravessá-los. Estes autores assinalam
que se a psicanálise se fundamenta no modelo da neurose/estrutura e aponta a superação do
Édipo, o amadurecimento da pessoa através da integração à lei, do respeito à autoridade,
portanto, à ordem social estabelecida; a esquizoanálise percorre outra direção: a
esquizofrenia é o limiar por onde passam os fluxos desejantes em um corpo sem órgãos,
desterritorializado, diferenciado da produção social mais comum; a esquizofrenia arrebenta
com a produção capitalista, daí ser sua inimiga; a esquizofrenia é resultante do capitalismo,
mas, ao mesmo tempo, lhe escapa; além do mais ela é desfigurada e não enquadrável –
loucura?, patologia?, processo?, marca do gênio?!
Se a psicanálise fundamenta sua teoria na estrutura que se organiza ao redor de algo
que falta, a esquizoanálise propõe estudos: do inconsciente que transcende as pessoas, as
leis, as estruturas; da sexualidade não-humana no sujeito – para além da representação
antropomórfica uma vez que somos todos os “sexos” possíveis; da desterritorialização dos
fluxos de desejo em combate com a territorialização proporcionada pela noção de estrutura.
15
O Combate Sexual da Juventude, 1932/1986; As Origens da Moral Sexual, 1932/1988; Op. cit.,
1934/1988; A Revolução Sexual, 1945/1976.
16
Este termo tem não só um sentido sexual como também um alcance mais amplo.
17
Op. cit., 1934/1988, p. 38.
18
Op. cit., 1972/1976.
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IV – A ação coletiva
Já no período entre 1927 e 1937, Reich adotava formas de pensar e agir de cunho
nitidamente anarquista, valorizando a autogestão social, que ele denominava “democracia
do trabalho”20.
“A democracia do trabalho é baseada
essencialmente em dois fatores:
a) Um trabalhador é aquele que executa um
trabalho socialmente necessário; (...).
b) A responsabilidade social repousa na
sociedade dos trabalhadores e não no indivíduo
privado ou nos funcionários públicos.”21
Reich, entretanto, não se reporta a um paradigma rígido na medida em que ele crê que a
democracia do trabalho seria uma “conseqüência natural” da auto-regulação dos
indivíduos.
Em 1942, Reich acrescenta capítulos finais à 3a edição da obra “Psicologia de
Massas do Fascismo” – citada anteriormente – referentes à democracia do trabalho. Na sua
visão, quando o homem prescinde do autoritarismo, ele se auto-regula e vice-versa. A
diferença entre o anarquismo e a democracia do trabalho é que, na última, a autogestão
associada à liberdade só ocorreria se os homens deixassem de ser rigidamente
encouraçados e superassem o autoritarismo neles internalizado. Dessa maneira, seria um
equívoco pensar em liberdade e autogestão desconsiderando a blindagem de caráter e a
rigidez muscular das massas como fez o anarquismo. Reich costura, dessa forma, uma
aliança indissociável entre a auto-regulação organísmica e a autogestão social.
Quanto mais auto-regulado, mais o homem se torna autônomo, capitão de sua alma,
dono de seu destino e luta pela autogestão social, já o indivíduo encouraçado receia a
19
Câmara, M. V. Contribuições para a atualização da noção de corpo na teoria de Wilhelm Reich pela ótica
foucaultiana, 1997/1997.
20
Reich, W. Les hommes dans l’État, 1953/1978.
8
21
Idem, p. 60 (nota de rodapé). Tradução minha.
22
As redes de saber/poder foram estudadas profundamente em Foucault, M. Op. cit., 1975/1996.
9
V – Conclusão
23
Câmara, M. V. A propósito da (des)construção de alguns conceitos na teoria de Wilhelm Reich – a
perspectiva deleuzeana, 1998-1998.
10
24
Esta noção é empregada no texto: Foucault, M. História da Loucura, 1972/1995.
11
VI – Referências bibliográficas